terça-feira, 1 de fevereiro de 2011 By: Fred

Lançamento Gênesis do Conhecimento - Dona Beija - A Feiticeira do Araxá - Thomas Leonardos


THOMAS LEONARDOS


A FEITICEIRA DO ARAXÁ


EDITORA RECORD


SUMÁRIO


PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO
PREFÁCIO DA SEGUNDA
EDIÇÃO DEDICATÓRIA
PREFÁCIO A TERCEIRA EDIÇÃO
I – A FITA VERMELHA
II - ENCANTAMENTO
III - DESTRUINDO UM QUILOMBO
IV - O GRANDE NARIZ DE MINAS
V - POR ORDEM DEL-REI!
VI - O GRANDE DIPLOMATA
VII - O PLANALTO DA LUZ
VIII - PELO AMOR DE UMA ÍNDIA
IX - TRAIÇÃO
X - PAUSA
XI - A MENINA DOS OLHOS AZUIS
XII -MINAS OU GOIÁS?
XIII - SUA EXCELÊNCIA O OUVIDOR
XIV - PREPARATIVOS DE FESTA
XV - O BANQUETE INTERROMPIDO
XVI - O RAPTO
XVII - RUMO A PARACATU DO PRÍNCIPE
XVIII - O TRIÂNGULO VOLTA A MINAS
XIX - ASSIM QUE CESSAREM AS CHUVAS...
XX - O FIM DE UM CAPRICHO
XXI - COMO AS NINFAS DOS BOSQUES
XXII - ISOLAMENTO
XXIII - REPULSA
XXIV - AFRONTA
XXV - DECISÃO
XXVI - ENSAIO DE SEDUÇÃO
XXVII - A CHÁCARA FAMOSA
XXVIII - NOVAS REGRAS PARA UM VELHO JOGO
XXIX - NÃO ERA TÃO FÁCIL ASSIM
XXX - A CAPITULAÇÃO DO SOBRADO
XXXI - MATERNIDADE
XXXII - OUTRA DESILUSÃO
XXXIII - O PRINCIPAL PARCEIRO
XXXIV - "INTERMEZZO"
XXXV - RENÚNCIA
XXXVI - JOÃOZINHO
XXXVII - NASCE OUTRA MENINA
XXXVIII - CIÚME
XXXIX - UMA CASA FECHADA
XL - DUAS MULHERES CHAMADAS ANA
XLI - FRUSTRAÇÃO
XLII - OCRIME XLIII - OUTONO
XLIV - O QUE CHEGOU DEPOIS DA FESTA
XLV - ÊXODO
XLVI - DIAMANTES
XLVII - "INDIGNA IRMÃ"
XLVIII - MISSÃO CUMPRIDA


1


Meu caro Cleanto Vieira Gonçalves

Em novembro de 1948, corri ao Araxá em busca de alívio,
pois meses antes, num tombo desastrado de cavalo, quebrara
a perna e dores cruciantes, aninhavam-se em torno do
fêmur operado. Tive, então, oportunidade de provar, pela
primeira vez, as águas famosas do Barreiro e banhar-me na
morna e negra lama vegetal retirada das algas do lago
sulfuroso.
Enquanto me restabelecia, o espírito repousado ia-se
enamorando daquelas terras do Triângulo Mineiro, sem
dúvida das mais belas que o Brasil possui.
Tudo isso, porém, que já era muito, não teria sido suficiente
se você não fosse então, Diretor da Estância Hidro-Mineral
do Araxá e, portanto, gerente do Grande Hotel. O modo
com que você e sua querida e saudosa esposa, — sem
esquecer seu sobrinho Laerte — acolheram minha família,
tinha um quê imponderavelmente montanhês, que vem das
raízes da mais pura e tradicional hospitalidade mineira. Algo
que não se sabe bem como definir, mas de fato tão
espontâneo e humano que não se esquece mais e vem,
afinal, exprimir-se em gratidão para o resta da vida.
Foi você, ainda, quem me proporcionou a oportunidade,
rara, de conhecer a fundo a gente e as coisas da terra,
pondo-me em contacto com os fatos que iriam constituir o
tema deste livro, razão por que é você um pouco, ou
melhor, bastante responsável por ele. Daí a razão desta
dedicatória.
Seu amigo para sempre grato,
THOMAS LEONARDOS
Rio, 22 de fevereiro de 1957.

Entreguei esta dedicatória ao Cleanto, na manhã do dia 22
de fevereiro de 1957, juntamente com os originais do livro.
Disse-me seu colega de escritório, Dr. Antônio David, que
naquela mesma tarde Cleanto retivera-o, após as horas do
expediente e lera, para ele ouvir, todo este romance, noite
adentro, manifestando grande satisfação. Consola-me um
pouco a certeza de ter proporcionado à um bom amigo,
algumas horas de alegria, às vésperas da morte que o colheria
inesperadamente, num doloroso desastre de automóvel,
exatamente dois dias depois.
Encerrou-se assim, abruptamente a vida de um advogado de
apenas quarenta anos, em plena atividade e tom um
promissor futuro tanto profissional como político.
Ajudaram-me neste livro, com informações, críticas
construtivas e palavras amigas de incentivo, as seguintes
pessoas:
Calmon Barreto
Carlos Ribeiro
Celso Kelly
Fábio Carneiro de Mendonça
Fausto Alvim Francis Leonardos
Gilberto Ferrez
Maria Eugênia
Celso
Maria Júlia Melazzi
Maria Wanderley de Menezes
Mário Rolla
Marcos Carneiro de Mendonça
Oswaldo de Miranda Ferraz
San Tiago Dantas
Sebastião Affonseca e Silva Stella Leonardos
A todos quero deixar expressa minha gratidão, e aos que já
passaram à eternidade, minha grande saudade.
O AUTOR

... porque em verdade só "o coração conhece sua própria
amargura"
SALOMÃO (Provérbios — Cap. XIV, versículo X)

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Em 1880 viveu no Triângulo Mineiro uma singular mulher.
Chamava-se Ana Tacinta de São José, mas foi pela alcunha
poética de Dona Beija que passou a ser conhecida.
Há, nas planuras altas do Brasil central, uma flor azul,
oriunda de planta agreste, de nome Beijo e, como os olhos
de Ana Jacinta eram azuis também, isso explica a razão do
apelido.
As recordações que essa criatura deixou são várias e
contraditórias. Sabe-se que teve um fim de vida sereno,
dedicado à caridade e à religião, em contraste com sua
mocidade, tormentosa desde os dezesseis anos, a partir do
dia em que foi raptada pelo Ouvidor-Real, Joaquim Ignacio
Silveira da Motta. Dai por diante e até que a velhice viesse
empanar-lhe a beleza — dizem as crônicas da época — foi
seu triste destino, destruir reputações e fortunas de homens
de prol.
Não a pouparam por isso seus contemporâneos nem os que,
mais tarde, neles se basearam para descrever-lhe a vida.
Apontam-na, geralmente, em palavras rudes isentas de
serenidade, como autêntica embaixatriz do Mal.
Senti a um só tempo, o apelo do tema e a necessidade duma
revisão serena das narrações destorcidas e foi isso que
provocou este livro.
Romanceando, nele abordei, para dar melhor idéia da época
e do ambiente, alguns dos acontecimentos marcantes — não
só os pertinentes à região — como também os de âmbito
mais largo que lá se esbateram. Quem nisso, porém, não se
interessar, poderá, sem perda da seqüência da narrativa,
omitir a leitura dos Capítulos III a IX e XII.
Temo que longos anos de advocacia hajam de tal maneira
influído em meu modo de escrever, que dificilmente possa
me livrar do defeito — que profissionalmente é uma
necessidade — de procurar levar a outrem a convicção que
me anima.
Para que a critica literária não me acometa, pelo menos por
este flanco que sinto descoberto, não fugi ao motivo que me
impelia: fazer, como advogado, um trabalho de pesquisa e
revisão dós fatos que deixaram a memória de Dona Beija
envolta na crosta suja e dura da má fama. Nesse esforço,
reivindico a sinceridade com que tentei ir ao fundo da
verdade, procurando vencer essa crosta deformante, a ver se
descobria a razão dos motivos que explicariam a vida
aparentemente contraditória de uma criatura, cuja beleza
ainda a tornou mais exposta à maldade de seus
contemporâneos.
Este livro reflete, pois, as razões póstumas de Ana Jacinta de
São José, como as faria se fosse eu o seu patrono e como se
de mim dependesse o juízo de seus pósteros.
A meus colegas da família judiciária peço desculpas se, nessa
aventura literária, afastei-me dos clássicos elementos de
prova, perdendo-me na fantasia de Querer penetrar, pela
análise — quando me faltavam dados positivos — no âmago
das causas que determinaram as atitudes de Dona Beija e que
muito escândalo causaram na época.
À crítica, lembraria, ainda, que se transpus novamente o
currículo profissional para invadir o campo da literatura, fiei-
me em outra incursão anterior, aquela feita em 1932,
quando impelido então pela ousadia da mocidade, escrevi
meu primeiro romance "Os Inadaptados".
Perdoem-me, pois, se acharem, que me embalei demais, em
busca da verdade e da beleza *, mas a explicação disso é, que
estou com Gustavo Corção quando ele diz que a "obra de
arte é uma experiência pessoal profunda", e outra verdade, é
que a inquietude do meu espírito não resiste em aceitar o
desafio que tais experiências oferecem e que agora, mais
uma vez, se repete.

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Foi a 30 de novembro de 1957 que realizei a idéia de lançar
na cidade do Araxá a primeira edição deste livro. O evento
movimentou aquele lindo e próspero rincão do Triângulo
Mineiro e excitou, sobretudo, a imaginação local. Disso dá
bem idéia, o anúncio que meu querido e saudoso amigo, o
Major Sebastião Affonseca profusamente distribuiu depois
de redigi-lo com generosa simplicidade. Transporto-o para
este prefácio:

"UMA FESTA CULTURAL E SOCIAL DA CIDADE DO
ARAXA: Os poderes públicos, as autoridades, as associações
de classe, as associações culturais e todos os elementos
sociais, reunir-se-ão nos salões do Clube Brasil, às vinte
horas (8 horas) da noite, no dia 30 de novembro, para
prestarem uma homenagem ao Dr. THOMAS
LEONARDOS, autor do romance "A FEITICEIRA DO
ARAXÁ. O autor deseja fazer o lançamento oficial do
romance em Araxá, e a cidade nesta festa cultural deve
recebê-lo condignamente. Apesar de tratar-se de uma linda
Dama de uma vida livre, o autor na descrição pormenorizada
de sua vida, guarda verdadeira moral literária, podendo o
romance ser lido por todas as pessoas. O autor analisa e
descreve os costumes sociais daquela arrastada época (1820)
e descreve os efeitos maravilhosos da radioatividade das
Aguas Minerais, que redundam em uma verdadeira
propaganda para a nossa "Estância" no Barreto. Esta raríssima
entidade feminina, com sua elegância e beleza física, dotada
de uma fulgurante inteligência em conjunto com uma
argúcia admirável e seu fascinante olhar, empolgava e
arrastava o sexo masculino com sua presença e selecionava e
desprezava conforme suas simpatias. Tornou-se célebre na
história, por ter sido o eixo central sobre o qual girou a
reincorporação de todo território do Triângulo Mineiro a
Minas Gerais, em 4 de abril de 1816. O programa está assim
delineado: a orquestra sob a batuta do maestro Clóvis
Cardoso Júnior abrirá a sessão com uma "ouverture" de seu
repertório; haverá a apresentação do Autor pelo Presidente
do Rotary Clube. O Autor fará a dissertação sobre a
solenidade, apresentando o romance à sociedade araxaense
que deve recebê-lo com uma salva de palmas. Será facultada
a palavra aos assistentes. Como se trata de uma reunião
histórica social, vai ser lavrada uma ata comemorativa que
deverá receber assinatura de todos os presentes, a qual será
entregue à Biblioteca Municipal. Em seguida a orquestra
executará três ou quatrp valsas que serão rodopiadas nos
salões pela elegante juventude presente. Terminará assim a
reunião. O Conjunto da organização: Prefeitura Municipal,
Clube Brasil, Rotary Clube, Associação Comercial de Aia xá.
Sociedade de Medicina e Cirurgia, Associação Rural, Rádio
Difusora Ibiara, Correio de Araxá, Escola Técnica de
Comércio e Clube Caçula". A festa não se encerrou, porém,
nessas três ou quatro valsas, pois rodopiou-se alegremente
até ao raiar do sol, e mais: a cativante hospitalidade dos
araxaenses foi ao ponto de dar-me as honras cívicas de sua
cidadania, lavrando se solene Ata Histórica dessa chamada
"primeira Festa Cultural e Social realizada na cidade de
Araxá, na noite de 30 de novembro de 1957." Dali destaco
as principais passagens:

"Os poderes públicos, as autoridades, as associações de
classe, as associações culturais, todos os elementos sociais de
Araxá, reuniram-se no Clube Brasil, às vinte horas, a fim de
prestar uma homenagem ao Dr. Thomas Leonardos, que
veio a esta cidade especialmente para fazer o lançamento
oficial de "A Feiticeira do Araxá", romance histórico por ele
escrito e que tem como principal personagem essa
extraordinária figura feminina Ana Jacinta de São José,
vulgarmente conhecida por
Dona Anja.
O livro conquanto possa ser considerado obra de interesse
nacional e mesmo universal, pela maneira agradável e ao
mesmo tempo profunda com que analisa temas banais,
porém eternos, representa sobretudo uma dádiva magnífica
ao povo de Araxá. Vale como eficientíssima propaganda de
nossa terra e de nossa gente. O Dr. Thomas Leonardos foi
alvo de homenagem do Rotary Clube do Araxá em sua
reunião de quarta-feira última. Falou na ocasião o Dr.
Armando Zema que outorgou ao homenageado, em nome
do Rotary, o titulo honorário de cidadão araxaense; às 19,45
horas, o Dr. Thomas Leonardos e sua comitiva foram
Recebidos defronte ao prédio do Clube Brasil. Grande massa
popular ali estacionada, não regateou aplausos aos ilustres
visitantes. O Dr. Mário Cecílio Salomão, Presidente do
Rotary Clube do Araxá, fez a apresentação do autor, o qual
logo depois, em brilhante alocução, entregou seu romance à
cidade de Araxá.
O insigne historiógrafo e arquivista conterrâneo, Sr.
Sebastião Affonseca e Silva, foi o principal idealizador e
organizador da primeira Festa Cultural-Social, realizada em
Araxá".
Trago à tona todas essas gratíssimas lembranças pela
oportunidade que bra se me oferece e porque quero, antes
de mais nada, manifestar minha profunda gratidão àquela
boa, culta e laboriosa gente do velho arraial de São
Domingos do Araxá, à qual desde então me vinculei
sentimentalmente.
Revendo ainda coisas passadas, dentre os papéis guardados
reencontrei — na página 47 do "O Cruzeiro" de 12 de abril
de 1958 — publicação de carta minha, fichada nos
ARQUIVOS IMPLACÁVEIS de João Conde. Escrevi:


"Meu caro João Conde,
Você demonstrou tão benévolo interesse pelo meu livro "A
Feiticeira do Araxá", que eu vou concluir nesta carta a
conversa que há dias foi interrompida.
"Qual o motivo — perguntou você — que me levou a
escrever sobre Ana Jacinta de São José, a Dona Beija do
Araxá? Respondo: tenho horror à injustiça. Na família,
queriam-me médico e creio que decepcionei quando viram
que ia estudar Direito. Formado, sonhava eu com a causa
perfeita, aquela que na realidade a advocacia não me queria
dar até que um acidente jogou-me, convalescente, no Araxá.
Lá, encontrei uma pobre grande mulher — ou melhor - a
história dessa criatura quase que irremediavelmente
deformada pelo "ouvi dizer" preguiçoso dos seus pósteros.
Falavam dela. Faziam-no por hábito, e também porque falar
mal dos outros parece que tem mais graça do que falar bem.
O caso interessou-me. Lembrei-me do provérbio francês:
"calomniez toujours, il en restera quelque chose" e também
duma norma que me tracei: nunca acreditar que ninguém
seja tão bom quanto quer parecer, nem tão ruim quanto os
outros dizem.
Assim, antes de soltar a imaginação, procurei verificar os
fatos, lastro indispensável para o romance idealizado. Não
larguei mais a idéia. De informação em informação, de obra
em obra consultada, cheguei afinal a um inesperado Arquivo
do Araxá muito bem organizado, propriedade de um
patriarca da cidade, o Major Sebastião de Affonseca e Silva.
No volume 26 ele colecionou a matéria de uma obra ainda
inédita, cujos originais estão com o Professor Calmon
Barreto e que tem o título de ANA JACINTA DE SÃO JOSÉ
(DONA BEIJA IN NATURA) - SUA VIDA EM ORDEM
CRONOLÓGICA DO BERÇO AO TÚMULO -
COLETÂNEA DE NARRATIVAS OUVIDAS.
Foi esse trabalho que me permitiu dar consistência aos fatos
que narrei romanceando, e aos quais dei a interpretação
psicológica que entendi acertada.
1957 foi o ano da Beija. A personalidade de Ana Jacinta
renasceu das cinzas do esquecimento mercê de três obras: a
primeira foi a do saudoso Raul Machado, que escreveu um
livro de crônicas chamado "Dona Beja", dedicando-lhe
poucas páginas sem originalidade aliás; o segundo é o
interessantíssimo e alentado livro de 510 páginas de Agripa
Vasconcelos "A Vida em Flor de D. Beija". Tem ele um belo
kit motiv poético retratando a paisagem da terra, pois "Em
agosto umbuzeiro é pau, em setembro ele refóia. Em
outubro enfloridesce, vem a chuva a terra móia..." mas,
quando nesse fundo, tocantemente sentimental ele coloca a
figura da Beija, fá-lo com impiedosa injustiça. É um libelo
tremendo o daquele ilustre homem de letras. Para Agripa, é
ela quem manda matar o seu antigo noivo; seria perversa e
pervertida; em lúgubre sadismo fez chicotear certo homem
que a procurava, para sugar-lhe vampíricamente o sangue da
ferida. O "calomniez toujours" atinge nesse livro o auge.
A verdade, porém, é que não achei dado algum que
autorizasse quadro tão sombriamente psicopatologia.
Meu livro não visou engrandecer a vida de Dona Beija: nada
disso. Procurei apenas repô-la no lugar que realmente
ocupou. Não omiti as referências aos seus pecados, mas
também não encontrei razão alguma para exagerá-los a
ponto de forçar as fronteiras da morbidez. Creio que acertei,
pois minha maior recompensa não ficou apenas na bondosa
acolhida dos críticos que muito me honraram. Ela reflete-se
em meu coração "na lembrança daqueles poucos e
inesquecíveis dias que passei no Araxá em novembro do ano
passado, onde o livro foi lançado. As homenagens que
recebi não se podem atribuir ao valor do livro. Explicam-se
antes pelo reconhecimento da justiça que procurei fazer a
uma criatura que viveu em sua terra uma tormentosa e
amarga existência. E o Araxá inteiro agradeceu comovido a
quem teve a coragem de dizer por escrito aquilo que todos
eles confusamente já sentiam: Ana Jacinta não era tão má
assim.
Agora, Conde, ajude-me a levar avante a idéia que lancei: a
belíssima casa colonial da Beija, no Araxá, deve ser tombada
pelo Patrimônio Histórico. Faça-se nele o Museu da Beija,
com seus móveis, suas alfaias, suas jóias, seu ambiente
enfim. Seria das mais belas atrações turísticas de todo o
Triângulo Mineiro e sobretudo a prova de que afinal de
contas os homens não são tão ingratos quanto às vezes
parecem. Sempre seu, Thomas Leonardos".
A surpreendente acolhida que este livro teve, encontra,
creio eu, sua mais plausível explicação no fato de haver eu
tentado, — a bico de pena já que não se usa mais a ponta da
espada — reabilitar a memória e, portanto, restaurar a
dignidade da lembrança de uma criatura assim tão
vilipendiada. O grande e saudoso crítico de "O Estado de São
Paulo", Edgar Cavalheiro, compreendeu o sentido do livro
quando disse:

"Dona Beija sai do seu livro engrandecida, e se ao leitor fosse
perguntado se a absolveria de todos os seus pecados, com
certeza o veredito lhe seria, após a leitura de "A Feiticeira do
Araxá", inteiramente favorável".
Quanto ao MUSEU DA BEIJA, nada reivindico senão o que
presumo de direito me pertença: a prioridade da idéia
lançada a público naquela carta a João Conde, divulgada em
12 de abril de 1958. Por isso, quando por iniciativa dos
"Diários Associados", aquela mesma revista, em 13 de
novembro de 1965, noticiou a inauguração do Museu,
confesso que fiquei sentido pelo silêncio que se fez em
torno do meu nome. Logo lembrei aquele soberbo soneto de
Raul de Leoni, chamado "Ingratidão" que está em seu livro
"Luz Mediterrânea". Narra ali o poeta a história do homem
que, em menino, plantara "com mão ingênua e mansa uma
linda amendoeira adolescente", mas a ingrata planta só quis
florescer "em pomar alheio".
Tudo, porém, não passou de leve nuvem cinzenta, cedo
dissipada, graças, sobretudo, a dois fatos:
O primeiro surgiu inesperadamente, dentro de minha
própria casa. Ao retornar de uma viagem profissional, minha
mulher disse-me que relendo o livro nele encontrara
motivação para um lundu.** É uma singela jóia de harmonia
musical que o talento de Mary compôs, em momento de
feliz inspiração. Desde então o livro deixou de ser só meu.
Passou a ser um escrito do qual brotara música e canção que
a ele se prendiam, qual reflexo sentimental da união de
nossas vidas também no terreno da arte.
Embora assim enriquecido, não seria isso suficiente para
alargar o conhecimento e a aceitação de "A FEITICEIRA DO
ARAXÁ", para além das fronteiras conquistadas junto aos
leitores e à critica quando da primeira edição. Realmente foi
preciso que mais seis anos passassem, até que um segundo
fato, somando-se ao primeiro, viesse provocar esta segunda
edição.
Foi assim: Carlos Mafra de Laet, que em 1958 fazia brilhante
crítica literária na "Última Hora", sob o pseudônimo de João
da Ega, na edição de 22 de novembro brindou-me com uma
generosíssima apreciação do livro. Atribuí-a, em parte, à
nossa velha amizade, mas em verdade Laet gostara mesmo
do livro e quando nos encontrávamos a ele sempre se referia
com entusiasmo. Em 1967, ocupando o cargo de Secretário
de Turismo Estadual, preocupava-se ele com a apresentação
do Carnaval do ano seguinte. Anos antes, o Salgueiro
ressuscitara a história da famosa Chica da Silva, tão bem
encarnada por Isabel Valença e assim conquistara o primeiro
lugar no Carnaval do Centenário da Cidade. Novamente
procurava o Salgueiro motivação para outro desfile.
Encurtando: Laet telefonou-me sugerindo que procurasse
Pamplona; atendi-o prontamente; Pamplona gostou do livro;
Osmar Valença, à testa da Escola deu carta branca a
Pamplona que pôs-se logo a trabalhar e o resultado foi que a
25 de fevereiro de 1968, "A FEITICEIRA DO ARAXÁ"
saltava das páginas deste livro para derramar-se sobre as ruas
aquecidas pelo verão e por mais um Carnaval Carioca. O
Prefeito Paulo Márcio Ferreira, de S. Domingos do Araxá,
sensibilizado, mandou uma delegação composta dos
senhores Hélio Ferreira, membro da Academia Araxaense
de Letras e colaborador do "Correio de Araxá"; Luiz di
Mambro, Secretário da Prefeitura e senhora e o advogado
Rinaldo Cunha, assessor jurídico da Prefeitura local que
ofereceu ao Salgueiro ricas lembranças.
Eis em traços rápidos relembradas — para conhecimento
dos leitores — as etapas que este livro venceu, desde a sua
primeira edição até agora.
Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1971.
O Autor

Dedicatória Dona Beija
Para Mary, querida esposa e brava companheira, que ao
fazer e compor a letra e a música do lundu "A Canção da
Feiticeira" completou, embelezando com um lastro de
harmonia sonora, minha história sobre Dona Beija, dedico a
terceira edição deste livro.

PREFÁCIO DA TERCEIRA EDIÇÃO

Foi nos idos de 1957 que primeiro divulguei este livro. Fiz
com que o lançamento se fizesse no Araxá, não só porque
foi lá que Dona Beija passou os anos decisivos de sua
tormentosa existência como também para marcar meu
agradecimento a todos os bons amigos que ali deixei e que
tanto me incentivaram. Dentre eles, principalmente, deu-
me a melhor ajuda o Major Sebastião Affonseca e Silva que,
permitindo-me examinar seu precioso arquivo sobre a
história do arraial de São Domingos dos Araxás, ensejou-me
conhecer seu escrito ainda não publicado, chamado Dona
Beija — em natura.
Sem isso eu não poderia ter feito este livro que, no fundo, é
como um memorial de advogado romanceado. Lembro que,
ao escrevê-lo, obedeci a um mandato verbal.
A primeira edição foi pequena. Esgotou-se com rapidez,
absorvida em sua maior parte pelos leitores de Minas Gerais,
sobretudo aqueles oriundos do Triângulo Mineiro, que
voltou a ser incorporado àquele estado em conseqüência do
rapto de Dona Beija pelo Ouvidor do Rei. Além disso,
despertava a curiosidade das levas de veranistas que tiravam
férias no Grande Hotel do Barreiro, em busca das águas
radioativas.
Cerca de dez anos transcorreram até que uma segunda
edição — já bem maior, com 10.000 exemplares - decorreu
da escolha do tema pela Escola de Samba Acadêmicos do
Salgueiro, que usou-o para seu desfile de carnaval de 1968, e
isso graças à indicação de meu saudoso amigo Carlos Mafra
de Laet.
De 1968 até agora, meu amigo Adolfo Aizen, da EBAL,
soltou duas edições, resumindo e embelezando o escrito
com desenhos quadrinizados. Foram publicados assim cerca
de 30.000 outros exemplares.
Finalmente, vem agora esta terceira edição do livro (que
poderia ser considerada a quinta se levássemos em conta a
versão em quadrinhos), estimulada pelo fato de a TV
Manchete estar apresentando a novela Dona Beija, seguindo
o roteiro traçado por Wilson Aguiar Filho, inspirado neste
livro e no de Agripa Vasconcelos (A Vida em Flor de Dona
Beija), "mas imaginando-a com traços de Marguerite
Gauthier (a Dama das Camélias), de Lucrécia Bórgia, de
Maria Antonieta e muitas outras". Fê-lo por convite de
Carlos Heitor Cony, autor da sinopse, e "para escrever o
texto final da novela, Wilson decidiu mesclar pinceladas
fortes de ódio e amor, bondade e dureza, instinto e
educação, para compor a personagem" (Manchete de
5/4/1986, reportagem de Lilian Ben David).
Neste passo, é oportuno transcrever um parágrafo da
entrevista que dei ao jornal O Fluminense, publicada em 17
de março de 1986, e que resume meu pensar neste livro
refletido. Não visei "engrandecer a vida de Dona Beija: nada
disso. Procurei apenas repô-la no lugar que realmente
ocupou. Não omiti referências aos seus pecados, mas
também não encontrei razão alguma para exagerá-los ao
ponto de forçar as fronteiras da morbidez".
Na novela histórica anterior — A Marquesa de Santos —
Maitê Proença dividia a responsabilidade de representar a
Domitila com as demais figuras fundamentais da época: Dom
Pedro I, a Imperatriz Leopoldina, José Bonifácio, o Chalaça
etc. Na Dona Beija de agora, na soberba equipe que
representa com Maitê surgem figuras —
independentemente do valor de cada um — em inevitável
segundo plano face à responsabilidade e à preponderância
que recai sobre o papel de Dona Beija. Ora, foi exatamente
nesse papel básico que o talento e a vocação da grande
artista Maitê Proença estiveram à altura de sua beleza. Seu
encanto deu um feitiço todo pessoal à Feiticeira do Araxá, e
um completo cunho de autenticidade, como o papel exigia.
A TV Manchete soube encontrar nela a pessoa certa, bem
como, aliás, em todos os demais integrantes do elenco, a
começar por Gracindo Jr. e Sérgio Brito. Compõem, todos
eles, admirável conjunto.
Espero, pois, que os que assistirem à novela televisada e
queiram formar juízo próprio sobre a vida e a conduta de
Ana Jacinta de São José encontrem aqui, nestas razões
romanceadas, motivo para absolver Dona Beija dos pecados
que o império de circunstâncias adversas a fizeram cometer
e para rejeitar aqueles que lhe foram maldosa e injustamente
imputados. Não foi senão esse, o objetivo deste livro.
Rio de Janeiro, 12 de abril de 1986
Thomas Leonardos

I
A FITA VERMELHA

— Por favor, amarrem os cintos e apaguem os cigarros —
disse-nos amavelmente a aeromoça — estamos baixando
sobre o aeroporto do Araxá.
O aviso não me interessava. Não fumo e já vinha amarrado
desde que deixara Belo Horizonte por causa do mau tempo e
por causa, sobretudo, do meu instinto de conservação,
digamos assim. Também não gosto de olhar para fora em
horas de aterragem, pois tenho a tola, porém mui real
impressão de que o globo terrestre fica lá embaixo esperando
para nos esborrachar.
Mas o pesado avião pousou, leve e seguro como um
passarinho, aliviando-se dos passageiros e descarregando
meus temores.
Saltei. O coração batia com força. Emoção?
Meu olhar de homem do litoral, acostumado a panoramas
com a presença risonha e quase obrigatória do mar,
extasiava-se ante os severos e imensos chapadões daquela
formosa região do Triângulo Mineiro. Nunca penetrara tão
fundo, tão dentro do Brasil.
Desembaraçadas as bagagens, tomamos um automóvel que
nos levaria através da pequena cidade do Araxá, com suas
ruas limpas, bem calçadas e arborizadas ao famoso subúrbio
do Barreiro onde foram construídos com requintes de
suntuosidade, as Termas e o Grande Hotel.
Ao chofer, tipo de índio, perguntei, para puxar conversa,
como chamavam aos habitantes do local. Respondeu
particularizando, como se só ele contasse:
— Eu sou araxano.
— Araxano? Pensei que fosse araxaense.
— Há araxanos e araxaenses — condescendeu em explicar.
Nós que descendemos da velha tribo dos índios da região,
temos garbo em ser araxanos. Araxaenses são os outros que
moram por ai, mas que vieram depois, acrescentou com
visível desprezo.
Fiquei assim logo ciente, da presença de um regionalismo
bem vivo que teimava em persistir ante a onda avassaladora
e igualitária do heterogêneo povo brasileiro.
O automóvel avançava. Atingíamos as praças urbanas e o
chofer nos ia mostrando: a velha igreja de São Sebastião, o
Ginásio Dom Bosco, o moderno Estádio Municipal, orgulho
de araxanos e araxaenses, a Matriz, a chácara do Major
Sebastião de Affonseca e Silva, conhecido historiador e pai
do saudoso bispo D. Gaspar, de São Paulo, prematuramente
morto num desastre de avião e muitas coisas mais.
Reparei logo num velho casarão amarelo, muito bem
conservado, com suas sacadas coloniais.
Era o famoso solar da Beija.
Depois conheci a fonte Dona Beija. Nas Termas, os vitrais
magníficos de Joaquim Ferreira da Rocha e Genesco Murta,
tentavam contar a história de Araxá e, com ela, a de Dona
Beija.
Dona Beija sempre. Dona Beija em toda parte.
Perguntei no hotel, logo que cheguei, quem era essa
criatura. Responderam-me vagamente. Sabiam apenas que
morrera há muitos e muitos anos.
No dia seguinte, fiz amizade com um velho comerciante
local. Um desses curiosos tipos do interior que a morte
esqueceu e que falam do Imperador e da Abolição, como
próximos passados.
— Mas quem foi, afinal, essa Dona Beija? Custa crer que haja
morrido há tanto tempo. Tem-se a impressão viva de sua
presença.
— Ah! moço, — respondeu-me o velho, seus olhos luzindo
de entusiasmo — Araxá não seria nada sem Dona Beija. Já
imaginou um vestido branco sem fita vermelha?
— Estou imaginando. E daí?
— Pois ela é a fita vermelha. Visita o Major Affonseca. Ela
sabe coisasl Terá muito prazer em recebê-lo e o de que ele
mais gosta, é falar de Dona Beija.

II
ENCANTAMENTO

Não uma, mas muitas vezes procurei o Major Affonseca e à
medida que ia tomando notas e mais notas para me distrair e
também pensando na possibilidade de uma reportagem, ia
descobrindo a realidade de uma das mais belas histórias que
se poderiam imaginar!
História soberba, esquecida na curva do século; escondida na
névoa do passado; enterrada nos chanfrados daqueles
chapadões mordidos pela erosão; mina opulenta de
recordações preciosas esperando que alguém revelasse toda a
grandeza do sofrimento, da luta e do amor frustrado de uma
criatura excepcional, marcada pelo destino para influir de tal
maneira na vida dos homens de sua época, que até por sua
causa, o mapa de velhas províncias brasileiras foi alterado,
reavendo Minas Gerais as vastas terras do seu Triângulo
usurpadas por Goiás desde o século XVIII.
Essa mulher, que tinha o nome poético de Ana Jacinta de
São José, e o apelido de Dona Beija, reinou naqueles vastos
sertões graças à sua beleza unida a uma inteligência
dominadora.
Aconteceu então o imprevisto: é que a mera história de seu
fascínio, por uma vez, enfeitiçou-me a tal ponto que, certa
noite, suave e morna, em que eu havia ido sozinho para dar
uma volta a pé, em redor do lago traseiro às Termas, sentei-
me sobre a relva fresca, borrifada de sereno, frente à fonte
que aflorava no grotão.
O silêncio era quase absoluto e a escuridão também, dando
assim a impressão de que o céu tinha mais estrelas e estava
mais cortado pela via-láctea, justamente porque, na Terra, ao
redor de mim, não havia luz alguma, uma lâmpada sequer a
desafiar o clarão dos astros.
A tarde inteira ouvira o Major Affonseca falar de Dona Beija.
Estava tão impregnado de suas histórias naqueles meus
poucos dias de férias vadias que, sem querer, deixei escapar
em voz alta um pensamento de fundo maldoso.
— Grande mulher devia você ter sido, Ana Jacinta de São
José, se a décima parte do que contam a seu respeito for
verdadel Parece que cheguei atrasado nas terras do seu
reino. Nada para fazer neste monótono Araxá! Nada para
distrair a gente. Não fosse a dor da minha perna quebrada e a
esperança de melhoria nesses banhos de lama, amanhã
mesmo ia emboral Ah, mas se você fosse viva, as coisas
seriam outras e uma de suas festinhas do Jatobá faria disso
aqui um lugar bem bom!
— Ainda o Jatobá... sempre o Jatobál Será que até hoje só o
que ficou de mim é a lembrança dos meus pecados? Vocês
homens não mudam, nem aprendem! Até você, que veio de
tão longe, e tantos anos depois de minha morte, ainda ousa
perturbar o sossego da minha fonte com recordações que
me envergonham?
— Eu não tenho culpa, respondi confuso. Disseram-me que
você...
— Disseram-lhe que fui mulher bonita; que pus a beleza a
serviço do mal; que fui perdida; que fui mulher má. Não foi
isso o que lhe contaram?
— Nem tanto...
— Pois então não lhe contaram tudo, ou melhor, não lhe
contaram nada de minha vida.
— Ah?
— Até hoje não encontrei ninguém que olhasse minha vida
com bondade; que a estudasse sem preconceitos e que a
explicasse como realmente foi. Ninguém quis me
compreender, e só quem compreende perdoa!
— Foi pena.
— Pena de quê?
— Que você tivesse vivido numa época tão atrasada. Se
fosse hoje, você não precisaria mais de ter vergonha do seu
passado. A palavra vergonha diminuiu tanto de sentido que
de futuro talvez só a encontraremos nos dicionários, como
expressão arcaica. Hoje, quando alguém está com muita
vergonha de alguma coisa, vai a um médico como se tivesse
uma dor qualquer. O médico põe o paciente deitado num
divã em quarto sombrio. Os olhos se fecham e o enver-
gonhado, isto é, o doente, vai dizendo o que o incomoda e o
médico vai analisando e resolvendo as causas que criam a
vergonha.
— E depois?
— Depois o doente fica bom.
— Fica bom? e a vergonha?
— Você não compreende. É que hoje o conceito da moral
recuou para dar mais espaço à medicina.
— Então parece que as coisas mudaram muito. Mas não se
trata disso comigo. No meu tempo, vergonha não era
doença e eu sempre tive uma saúde de ferro. Não precisei de
médicos quando estava viva e muito menos agora, depois de
morta. O que eu precisava, o que ainda preciso é um
advogado, como você, que estude meu caso e o explique
como ele realmente foi, para acabar, de vez, com as lendas
maldosas meu respeito e das quais você mesmo foi vitima.
— Seu advogado? Eu? Tinha graça!
— Por que não?
— Porque estou de férias, é boal Trabalho há anos sem
descansar. Um dia fujo e venho para cá para não ver clientes
e você vai logo querendo que eu seja seu advogado!... Ainda
por cima advogado de mulher fantasma!
— Mas meu caso é diferente.
— É claro que é diferente. Seu caso é de literatura e não de
direito. Para defendê-la em vez de se propor uma ação em
juízo seria preciso escrever uma novela!
— Que tem isso? Uma petição bem feita não deixa de ser
uma obra de arte, como qualquer outra e você sabe isso, não
só porque faz petições, como porque já escreveu um
romance. Não será, pois, a primeira vez.
— Você sabe muita coisa a meu respeito, mas o que você não
sabe é que meu primeiro romance foi o último.
— Por quê?
— Porque não dá certo. Espanta os clientes.
— Tolice! Você parece que não lê os clássicos. Lembra-se
daquela quadrinha famosa de Antônio Ferreira, o poeta
quinhentista que está no Castro:
"Não fazem dano às Musas os doutores, antes ajuda às suas
letras dão e cora elas merecem mais favores que em tudo
cabem para tudo vão".
E Muito bem!
— Não adianta você fugir de mim. Eu o estava esperando.
— A mim?
— Eu sabia que um dia chegaria de longe um advogado. Ele
viria aqui à noite. Sozinho. Sentaria na relva, encostado à
minha árvore, perto da minha fonte. Então eu falaria...
— Sua árvore?
— É. Pergunte a todos, amanhã, quando for dia e dirão que
esta é a árvore da Beija, a minha árvore querida sob cuja
sombra eu me sentava em meu tempo de moça. Pois bem
esse advogado escreveria um livro contando a verdade, e eu
seria então absolvida, mesmo depois de morta, dos maus
pensamentos dos que acreditam nos caluniadores de minha
memória.
— Você parece ter muita certeza das coisas...
— Aonde estou não há mais incertezas. Isso é só para quem
anda em seu mundo.
— Já que você está brincando de fantasma comigo, por que
não aparece?
— Para quê? Isso só iria perturbá-lo inutilmente.
— E você acha, por acaso, que eu já não estou
suficientemente perturbado?
Nesse momento lembro-me ter ouvido uma gargalhada!
Uma gargalhada que até hoje ainda ecoa em meus ouvidos.
Era um riso de mulher feliz! Um riso argentino, triunfante e
claro que se confundiu com o ruído da água batendo nas
pedras.
... E tudo acabou como os sonhos acabam, mas como é em
sonhos que a realidade principia, aqui estão as razões do
advogado que Ana Jacinta de São José constituiu por
mandato verbal, naquela noite encantada de primavera.
Razões de advogado ou reflexo da alucinação da última
vítima de seu fascínio?
É o que até hoje ainda me pergunto.

III
DESTRUINDO UM QUILOMBO

— Fala Iboapi...
— Obediente, o índio aproximou-se do chefe da tribo. O
Andaiá fixou-o com dureza. Seus olhos enevoados pela
velhice, encaravam a bela figura do jovem guerreiro com
indisfarçável má vontade.
O recém-chegado, retesando os músculos em posição de
sentido, braço erguido em reverência ao chefe, dir-se-ia uma
estátua de cobre, não fosse a centelha do seu olhar que
desafiava e retribuía a antipatia do ancião.
Com voz pausada, porém arfando pela pressa com que
cobrira a longa caminhada, ele começou o relato das notícias
que o trouxera à presença do Andaiá. Falava silabadamente,
colorindo o verbo com as imagens típicas do linguajar
silvícola, em frases curtas e incisivas, como as notas musicais
de um stacatto.
— Ontem à noite, Andaiá, nuvens pesadas esconderam a
lua até quase o romper do sol. Iboapi estava em seu posto,
no alto do tronco do jequitibá que o raio de Tupã cortou
quando de sua última fúria. Dali se avista bem o vale em que
moram os homens da cor da noite. Faziam eles a festa do
fim da estação das chuvas...
Iboapi parou para tomar fôlego e porque terminara de
descrever o palco da tragédia que ainda estava por ser
narrada.
Imune, porém, ao tom emotivo do relato, o Andaiá
interveio, impassível: — O que Iboapi conta não é novo.
Toda tribo ouviu os gritos e as canções desses infiéis, quando
o vento do vale começou a soprar. Além disso, mesmo antes
que o vento nos trouxesse esses sons, era só colar o ouvido
ao chão para sentir o tremor que faz estremecer a floresta. O
que Iboapi conta não é novo.
Mas Iboapi não se deixou intimidar pela má vontade do
velho. Incisivo, retrucou:
— O vento do vale soprou até muito depois do sol nascer.
Antes disso, porém, o tambor dos homens da cor da noite
deixou de bater. O tambor dos homens da cor da noite parou
de tocar. Parou. Parou para sempre.
A essas palavras o Andaiá levantou-se, a fisionomia
contraída.
— Será que Mahú esqueceu minhas ordens? Não lhe
recomendei eu que serenasse seu ímpeto guerreiro e
deixasse em paz a gente da cor da noite?
— Não, Andaiá. Nem Mahú, nem qualquer araxano
desobedeceu às suas ordens. Não fomos nós que fizemos
calar o tambor da gente do Ambrósio. Foram homens claros
e pálidos como a lua. Feios e peludos como feras. Com
cabelos que não param só na cabeça, mas descem pela cara,
pelos braços, pelas pernas e até o peito como maldição de
Tupã. Eles surgiram da mata. Tantos, como uma corrente de
formigas. Armados de ferro. Alguns também cobertos de
ferro com paus vomitando fogo e estalando como bambus
verdes queimando...
A essa altura, o relato de Iboapi atingira as raias do
sensacional e em torno do Andaiá grupavam-se os anciãos
da tribo, ávidos de notícias. Entre eles notava-se também
uma jovem índia de rara beleza. Era Catuíra, a filha do
grande Andaiá. Seus olhos cravados em Iboapi não
procuravam esconder a admiração e a ternura que nutria
pelo guerreiro.
— ... e a todos tiraram a vida — prosseguiu Iboapi —
guerreiros, mulheres, velhos e curumins. Quando o sol
apareceu por cima da serra, não havia ninguém mais vivo,
senão eu, para contar o que aconteceu. Os homens pálidos
queimaram todas as tabas. Nossas terras agora, Andaiá,
podem descer pelos vales e se estender até os grandes
montes, porque os homens da cor da noite não existem
mais.
— Onde estão agora os homens pálidos?
— Os homens pálidos voltaram cantando para a mata, assim
que o sol de hoje começou a esquentar a planície. Segui-os
de longe, por muito tempo, temendo que avançassem para
nossas bandas. Mas eles seguiram para o grande rio onde
embarcaram em inúmeras pirogas deixando que a correnteza
os levasse para longe.
— Os homens pálidos estão chegando cada vez mais perto de
nós, disse então o velho Andaiá. Caminham, caminham pela
mata adentro, numa inquietação de loucos, revolvendo a
terra, apanhando as pedras faiscantes e a areia amarela dos
rios, espantando a caça que nos alimenta. Precisamos estar
preparados. Vamos mudar nossas tabas para o alto do
planalto do Araxá. De lá veremos tudo que se passa ao redor
de nós.
Nada temos, grande chefe — sentenciou o feiticeiro da tribo
— com a guerra entre os homens pálidos e os da cor da
noite. Tupã nos fez diferentes ...
Ao longe, para o lado do nascente, uma nuvem negra de
urubus descrevia largos círculos sobre a área que, por vários
anos fora o quilombo onde, o negro Ambrósio, reinara
como zumbi inconteste.
Era a confirmação macabra do relato de Iboapi. A aldeia dos
negros sumira. Sobrara apenas um fim de fogueira, a exalar
odor acre e nauseabundo de carnes queimadas, já em
decomposição.

IV
O GRANDE NARIZ DE MINAS

Para compreender o diálogo travado entre Iboapi e o Andaiá
da tribo, precisamos recuar o tempo até o segundo quartel
do século XVIII, ou mesmo um pouco antes talvez.
O cenário da narrativa situa-se na região, hoje conhecida
pelo nome de Triângulo Mineiro, encravada entre as divisas
dos territórios agora formados pelos Estados de Goiás, Mato
Grosso e São Paulo e recortado pelos vales dos Rios Parnaíba
e Grande, afluentes do Paraná.
Quem observa os contornos dos limites de Minas Gerais,
mesmo com espírito desprevenido não pode deixar de
reparar que o recorte do grande Estado montanhês, dentro
do território brasileiro, lembra o perfil de uma cabeça de
gigante decepada, virada contra o mar, no sentido leste —
oeste.
Serve-lhe de chapéu o mapa baiano. Escorando-a por trás e
por baixo estão as faixas das terras estreitas dos Estados do
Espírito Santo e do Rio de Janeiro. A boca e o queixo estão
moldados por São Paulo e seu grande, seu imenso nariz, que
evoca o de um ciclópico Cirano de Bergerac avançando
continuamente terra adentro, parece querer aspirar os ares
dos pantanais de Mato Grosso e equilibra junto à testa todo o
peso dos planaltos goianos.
Foi e continua sendo das mais prósperas regiões do Brasil
Central, riquíssima em minérios vários. Seu clima é ameno e
saudável, graças à altitude média que mantém em xeque os
calores tropicais. É a terra dos grandes rebanhos, onde o
arroz, o trigo, a cana-de-açúcar e o café também vicejam. Lá
desabrocharam cidades florescentes, de população laboriosa
e culta, estendendo sua atividade para as mais variadas
indústrias.
Grandes centros urbanos surgiram nos largos vales e
chapadões, destacando-se Uberlândia, Araguari, Monte
Alegre, Prata, Frutal, Sacramento, Uberaba e Araxá.
É, aliás, num subúrbio dessa última cidade, o Barreiro do
Araxá, que se encontram, em impressionante depressão
geológica indicativa de imensa cratera de vulcão extinto há
milênios — as mais ricas fontes que emanam gases radio-
ativos e alcalino-sulfurosos das que se conhecem no Brasil.
Em seus lagos negros e quietos vicejam espécies raras de
algas, cujas raízes, em contacto com a água e mercê das
condições térmicas locais, constituem uma pasta negra e
gelatinosa, que propicia os célebres banhos de lama, cujas
virtudes terapêuticas já se tornaram famosas dentro e fora do
país.
Foi lá também que, ao tempo da Ditadura, se ergueu em
suntuoso arranjo arquitetônico, luxuosíssimo hotel
abrangendo um cassino e termas moderníssimas. É um
conjunto que nada fica a dever ao que se construiu em
Quitandinha e cujo aspecto monumental, nababesco e
chocante, em meio ao atraso local, pareceu a um talentoso
jornalista patrício, complexo de culpa ditatorial, procurando
"devolver ao povo, em pedra e cimento, um pouco do que
tirou à sua alma, à sua vontade, à sua legítima felicidade de
ser humano".
Mas não nos estarreçamos ante o presente risonho dessa
maravilhosa região, nem nos entonteçamos ao prever o
desenvolvimento ainda maior desses planaltos férteis e
verdejantes que circundarão, um dia, a nova capital do
Brasil, já em terras de Goiás. Ao invés disso paremos um
pouco para olhar para trás e se deixarmos o tempo recuar
sem tropeços, iremos ver o desenrolar de um passado de
romance, de lutas e de sofrimento.
Sentiremos, então, os dramas humanos em toda a sua
emoção e violência: a terra disputada entre as duas grandes
capitanias centrais; o desmembramento do Triângulo da
Capitania de Minas Gerais e a volta a Minas Gerais em 1816.
Vale relembrar, às vezes, os tempos idos, em que a Nação
Brasileira, em lenta formação, crescia no interior, em ritmo
largo e seguro, livre do narcótico colonial português que
mantinha o litoral dormitando.
As entradas contínuas dos paulistas, pelo sul, e dos cearenses
pelo norte, amplexavam a terra como pintas gigantes,
tentando modelar a pátria do futuro.
Eram essas entradas que alimentavam de estímulo e
esperança toda uma raça enérgica e altiva, insubmissa aos
meridianos divisórios numa terra ainda virgem e que
propiciava os grandes lances de amor e ambição que dão
forte colorido humano a esse passado, com detalhes ainda
praticamente inéditos à grande maioria dos brasileiros,
como, por exemplo, o episódio da vida da Dona Beija, que
passaremos a relatar, tão logo completemos a narrativa dos
principais fatos anteriores, a qual ajudará o leitor a
interpretar a existência daquela singular mulher.

V
POR ORDEM DEL-REI!

— Diga, por favor, senhor Mestre-de-Campo, tudo o que
sabe, pois preciso dar ao senhor Governador-Geral um relato
completo da situação.
O Mestre-de-Campo Inácio Correa Pamplona soltou
estrondosa gargalhada:
— Ora, senhor Capitão! Diga-me antes Vossa Senhoria por
que motivo o senhor Governador-Geral quer agora fingir
que se está preocupando com os nossos problemas? Quando
em 1733, antes, portanto, de assumir o Governo desta
infeliz Capitania o senhor Conde de Bobadela, fomos em
comissão a São Sebastião do Rio de Janeiro para ver se
conseguíamos ajuda necessária à abertura da Entrada do
Picadão. Sabe qual foi a resposta?
O Capitão meneou a cabeça.
— Não sabe? Pois bem, disse-nos Sua Excelência que
desistíssemos do projeto; que o caminho avançava para
muito além do meridiano divisório das terras desta Colônia
de Portugal, daquelas que, por tratado, pertencem ao Rei de
Espanha. Em bom português, mandou-nos às favas! E nós,
também, em bom português, mandamo-lo às urtigas!
Viramos-lhe as costas e voltamos para cá. Pusemos mãos à
obra. Abrimos o Picadão nós mesmos! Até hoje não
encontramos o tal meridiano divisório e o caminho
continuará aberto, se Deus assim quiser, sustentado pelos
nossos próprios recursos.
E como o Capitão nada retrucasse àquele desabafo,
Pamplona prosseguiu:
— Tratados! Bobagens! Tolices! Quem lá quer saber de
Tratados no meio desses sertões? Bem sei, senhor Capitão,
que Vossa Senhoria está me tomando por um matuto bruto e
ignorantão. Pois saiba Vossa Senhoria que sei ler e aprendi,
em moço, tanto quanto pude: um pouco de caligrafia, de
Geografia e de História, o bastante para me lembrar que um
Rei de França, creio que Francisco I, referiu-se à divisão das
terras descobertas e por descobrir, desde logo doadas pelo
Papa às casas reinantes de Portugal e Espanha como
Testamento de Adão! Essa é boa! Com que autoridade se
divide a Terra, que pertence a todos e, sobretudo, aos que as
descobrem, exploram e conquistam, entre uns e não entre
outros? Só mesmo se Adão tivesse deixado testamento...
Sabe? Não há como os franceses para acanalhar as coisas,
mas justiça lhes seja feita: ninguém os faz tomar gato por
lebre!
Como o Capitão esboçasse uma resposta:
— Mas, espere, senhor Capitão! Ainda não disse tudo! Afinal,
que quer agora de nós o Governo d'El-Rei? Que paguemos
impostos, não é assim? Mas para pagarmos impostos — nós
que não somos escravos, — precisamos ser ricos. Como
seremos ricos se ficarmos parados nessa vila que chamam de
Vila Rica, mas é de fato uma vila pobre?
— Pedras? Ouro? Já os rasparam!
— Tudo que havia à flor da terra, no leito dos córregos, nos
filões das minas já acabou, ou melhor, está se acabando. Há,
pois, que ir buscá-los onde ainda existam em abundância.
Para isso, porém, temos que avançar, avançar sempre. Seja
pelo roteiro de Lourenço Castanho, isto é, a leste, seja pelo
sul, que é o caminho preferido dos paulistas e que vai de
Bambuí ao desemboque, ou então pelo nosso Caminho do
Picadão!
— Seja por onde for, temos que alcançar os baixios de Mato
Grosso e do Paraguai ou as terras altas de Goiás, por onde já
andam levas e levas de sertanistas e de onde já começam a
vir ouro e pedrarias em apreciável quantidade.
— Permita-lhe dizer-lhe, senhor Mestre-de-Campo, que o
Senhor Governador-Geral sabe e aprecia, em seu justo valor,
o esforço e o sacrifício dos sertanistas.
— Sabe e aprecia? Essa é boal Sabe e aprecia, mas deixa-se
ficar na comodidade do Rio de Janeiro a sorver o bom vinho
que lhe vem de Portugal e a receber o ouro que nós lhe
mandamos daqui! Admita, senhor Capitão, que esse é modo
mui cômodo de apreciar o esforço alheio!
— Não seja injusto, senhor Mestre-de-Campo. O Senhor
Governador sabe, aprecia e quer ajudar. Por que motivo
estaria eu aqui? Pensa Vossa Senhoria que é agradável a um
homem da corte, como eu, fazer essa penosa viagem serra
acima, do litoral para cá e, sobretudo, nessa tormentosa
quaítra de chuvas e rios cheios!
— Então para que veio Vossa Senhoria até cá, senhor
Capitão, embora sua amável presença não nos dê senão
honra e prazer?
— Tenho documentos de importância a entregar
pessoalmente ao senhor Conde de Bobadela que se dignará
receber-me em audiência amanhã à tarde. Tive também
ordens para avistar-me com Vossa Senhoria.
— Comigo? Por que comigo?
— Sim, senhor Mestre-de-Campo. Para falar sobre coisas que
alguns sabem, muitos falam, mas que não devem ser escritas.
— Confesso minha curiosidade, senhor Capitão e, desta vez,
prometo ouvi-lo, sem interrupção.
— Não hoje, se me permite, senhor Pamplona. Morro por
me esticar numa cama de verdade. Há semanas que não sei o
que é uma noite bem dormida.
As palavras de José Francisco de Montalvo, Capitão da
guarda pessoal de sua Majestade Fidelíssima, em missão
especial à Colônia do Brasil, despertou Pamplona. Ali estava
ele a discutir com o moço fidalgo há cerca de uma hora,
esquecido das mais comezinhas regras de hospitalidade.
— Perdoe-me, Capitão. O interesse em ouvi-lo era tal que
olvidei estar Vossa Senhoria cansado e provavelmente com
fome. Dê-me a honra de agasalhá-lo sob meu teto.
— A honra será toda minha. Não devo nem quero recusar
seu amável convite.
A conversa tivera lugar na larga e tosca varanda da casa de
mestre-de-campo Pamplona. Penetrando com o recém-
vindo na residência, Pamplona mandou servir o jantar.
Obedientes ao costume da época, as mulheres da casa não
partilharam da refeição, servida por escravos, nem vieram à
presença do hóspede.
Milho assado e fumegante, batatas doces e frangos grelhados
ao espeto com molho de pimenta-do-reino para abrir o
apetite apareceram em profusão. Melado e farinha para a
sobremesa, tudo regado a suco de abacaxi fresco.
Os dois homens comeram vorazmente. Para Montalvo,
maltratado pela viagem, agravada pela escassez da caça tão
parca na época chuvosa, a frugal e sadia refeição apeteceu-
lhe como um régio banquete.
A escolta do Capitão, composta de uns vinte homens, já fora
devidamente acomodada e alimentada.
Finda a refeição, Montalvo, cansadíssimo, pediu licença para
recolher-se ao aposento que lhe fora reservado.
Antes de despir-se o moço chegou-se ao peitoril da janela. A
casa construída no alto de um outeiro, permitia-lhe ver as
primeiras sombras da noite que começavam a invadir os
vales, mas o topo dos morros ainda estavam dourados de sol.
Reinava paz no ambiente, paz que o toque da ave-maria
gravemente solenizava. Cessara, como por encanto o
burburinho do populacho que enchia a Vila Rica daquele
tempo, irrequieto com as perspectivas que a exploração do
minério ainda oferecia.
Montalvo inspirou com força o ar perfumado e leve que a
umidade impregnava dos perfumes da floresta.
Um frêmito de mocidade fustigou-lhe cansaço, tirando-o, ao
mesmo tempo, do estado contemplativo.
Com os sentidos agora alertados, ele pareceu ouvir vozes
femininas. Não se enganara. Eram as filhas de Pamplona, em
rebuliço com a novidade da chegada do hóspede, que
tagarelavam e riam. Era um farfalhar de saias, um arrastar de
cadeiras que não acabava mais. Sem dúvida que estavam a
espiá-lo, ou pelo buraco da grossa fechadura, ou talvez
mesmo trepando até a bandeirola da porta.
Enraiveceu-se. Estúpidos, esses colonos com o hábito
muçulmano de trancar o mulherio da casa! Por que não o
deixavam falar com as meninas? Será que nenhuma tocaria o
cravo? Então ele tomaria uma delas pela mão — escolheria a
mais gentil de todas, está claro — a pretexto de ensinar-lhe
os passos do minueto e de outras músicas modernas que se
dançavam em Lisboa e Madri!
Lisboa... Madri... quanta saudade! Quanta mulher bonita! A
vida social da Colônia positivamente era detestável! O Rio de
Janeiro, a nova Capital, ainda estava muito longe do
esplendor europeu e não se comparava sequer ao fausto da
velha Bahia. E Vila Rica então? Um verdadeiro fim do
mundo! Avançou para a porta, decidido a abri-la com
violência. Alguma coisa, porém, o deteve. Um pensamento
fugaz como um raio fê-lo parar e sorrir. Lembrara-se de que
as moças poderiam ser feias, deselegantes, desdentadas até, e
se assim fosse, não poderia sequer sonhar que atrás daquela
porta estavam mulheres lindas, de pele alva, cabelos sedosos,
olhos doces e amendoados, mãos aveludadas, com unhas
bem tratadas que dariam estalidos secos e precisos, como o
tique-taque de um relógio, ao fazer o cafuné.
Mulheres lindas! Como as havia em abundância em Madri!
Lisboa também, Madri, porém, parecia ter o dom especial de
reter a beleza feminina da Terra. Lembrou-se de certa
andaluza de pele morena e pisar gracioso com quem... E
deixou-se embriagar com a recordação.
A noite avançava. O quarto de paredes lisas caiadas de
branco acinzenta va-se. Enchiam-no móveis. da época: uma
velha cômoda de jacarandá, duas cadeiras e um cabide.
Como único ornamento, um crucifixo, maravilhosamente
esculpido em madeira dura. A cruz impregnada de pó de
ouro e as tintas da imagem ressaltavam o corpo martirizado e
o semblante dolorido do Divino Crucificado.
Montalvo era bom cristão. A imagem sacra exerceu sobre
ele efeito imediato. Recalcando maus pensamentos, deixou o
espírito libertar-se e ajoelhando ante o Cristo fez contrito o
sinal-da-cruz. Depois, cambaleando de sono permitiu que
seu corpo cansado recebesse o prêmio de uma cama
arrumada e macia, com uma bela colcha de cetim verde
bordada a mão, exalando suave aroma de capim cheiroso. E
dormiu. Dormiu um sono profundo e reparador. Um sono
de paz e dever cumprido, para o qual muito cooperara, diga-
se de passagem, o suculento jantar que lhe ofereceu Mestre
Pamplona.

VI
O GRANDE DIPLOMATA

E qual seria o relato que o Capitão da Guarda d'El-Rei fez, no
dia seguinte, ao Mestre-de-Campo?
Nada mais, nada menos que um resumo dos últimos
acontecimentos políticos de natureza internacional que já se
refletiram na administração da Colônia.
Portugal, desde que reivindicara a descoberta do Brasil,
deixara essas imensas terras praticamente como reserva do
seu grande império ultramarino. Muitas causas contribuíram
para isso.
Em primeiro lugar, as riquezas do Oriente galvanizaram por
vários séculos o espírito ambicioso e aventureiro dos
navegadores da Escola de Sagres. Que ofereciam essas novas
plagas sul-americanas para saciar a ambição a não ser, a
princípio, o pau vermelho, cor de brasa,, que em profusão
aqui vicejava? Longos anos teriam que passar até que, à
medida que se desvanecia a pouco e pouco o sonho das
índias fabulosas, começasse o Brasil a crescer no campo
econômico como exportador de madeira a princípio, depois
importador de escravos e produtor de açúcar, para enfim
culminar na apoteose do ouro e das pedrarias.
Em segundo lugar, Portugal era pequeno demais para
vitalizar rapidamente colônia tão vasta. Fez o que pôde,
tentando o sistema das doações por Capitanias, para depois
passar ao dos Governadores-Gerais. O principal era dar
tempo ao tempo, mantendo o Brasil trancado, para melhor
prendê-lo futuramente à Metrópole. E isso foi conseguido,
com muita luta e sacrifício.
Em terceiro lugar, era do interesse de Portugal manter
escondida e ignorada, tanto quanto possível, a nova colônia
do Sul, porque, se dela muito se gabasse, poderia atrair a
cobiça de outros poderes rapaces (e como os havia na
Europa daqueles tempos!), com maiores possibilidades de
conquista e colonização.
Mesmo assim, e apesar de todo o cuidado, não foi possível
evitar a invasão dos holandeses ao norte e as diversas
tentativas dos franceses de criarem a França Antártica, e
isso, para só falarmos nos ataques mais sérios, pois muitos
outros esporádicos ocorreram, visando a diversos pontos do
vasto litoral desguarnecido.
Tivemos também o domínio espanhol, mas esse foi
largamente compensado pela abolição legal do meridiano
divisor. Se reis d'Espanha legalmente passaram a reinar sobre
Portugal, não havia mais razão para deixar de penetrar terra
adentro, pois cessara de direito a fronteira colonial entre
Espanha e Portugal. Por esse tempo, aliás, já os bandeirantes
paulistas e os exploradores da Bacia Amazônica haviam
ultrapassado de muito o meridiano fixado pelo Tratado das
Tordesilhas.
Os mais autorizados historiados são, por isso, acordes em
reconhecer a vantagem que representaram para o Brasil os
sessenta anos de domínio espanhol de 1580 a 1640, embora,
no Reino, o povo exprimisse desgosto numa quadrinha
famosa:

Viva o Cardeal D. Henrique,
No inferno muitos anos;
Porque deixou Portugal
Em herança aos Castelhanos.

Toda a América Latina foi, portanto, naquela época, uma só
colônia, sem fronteiras, da mesma maneira que, na Europa,
toda a península Ibérica ficara sujeita ao jugo dos Reis
d'Espanha.
Quando, portanto, em 1640, o Duque de Bragança,
alcunhado o "Feliz Restaurador", foi aclamado Rei de um
Portugal novamente libertado da Espanha, já não era mais
possível secionar a crescente colônia brasileira, de acordo
com o caduco Tratado das Tordesilhas de 1494, pois os
contornos da fronteira brasileira, dentro do mapa da
América do Sul, já eram aqueles, com pequenas diferenças,
que ainda hoje vigoram.
Ainda assim Portugal continuava cauteloso. Evitava irritar
abertamente a Espanha em questões de limites coloniais.
Essa prudência foi o motivo, mal interpretado pelos
mineiros, da aparente falta de apoio oficial à abertura do
Caminho do Picadão, forcejava por explicar o Capitão
Montalvo, ao cabeçudo mestre-de-campo Pamplona.
— Mas agora não há mais razão para tais reservas, concluiu
ele.
— Por quê?
— Porque, além de tudo isso, foi assinado em 1750 o Tratado
de Madri.
— Mais um Tratado para ser roído pelas traças das
bibliotecas, rosnou com indisfarçável desprezo o rude e
cético Mestre-de-Campo. Que diz lá esse Tratado?
— Esse Tratado, senhor Pamplona, há de fazer historial
Doravante o ajuste de Madri fará lei nas questões de
fronteira entre as casas reinantes de Suas Majestades
Católicas d'Espanha e Fidelíssima de Portugal. Passaram a ser
letra morta os acordos anteriores, tais como a Bula do Papa
Alexandre VI, o Tratado das Tordesilhas, o de Lisboa, o de
Utrecht e todos os outros. As entradas que brasileiros
audazes fizeram para além do meridiano divisor foram
legalizadas pelo Rei. Não apenas a grande bacia Amazônica,
já reconhecida como de Portugal, pelo Tratado de Utrecht,
mas também todas as terras, taladas pelos bandeirantes do
Sul, com exceção da Colônia do Sacramento, inclusive o Ca-
minho do Picadão, que se deve aos mineiros, ficam sendo
Brasil, de verdade, de fato e de direito.
— Senhor Mestre-de-Campo, nesse Montalvo, levantando-se
para dar maior ênfase, e exprimindo, aliás, uma real
convicção, se Deus nos ajudar, se a Fé e a coragem que
tantas provas já têm dado os homens desta terra, da qual
Vossa Excelência, senhor Mestre-de-Campo, é um exemplo,
não vierem a faltar, o Brasil será, em pouco tempo, a maior e
mais rica das colônias do Sul!
— Belas palavras, belas palavras, senhor Capitão, e pela parte
que me toca, muito obrigado, pelo seu elogio à minha
desmerecedora pessoa. Mas, diga-me algo: perdemos a
Colônia do Sacramento, não é assim?
— Perder não é o termo, senhor Pamplona! Transigimos,
preferindo trocar umas poucas planuras nas bandas orientais
do Rio da Prata para, em compensação, ficarmos com terras
infinitamente maiores, nos planaltos do Centro, onde o ouro
e os diamantes rolam em profusão entre o cascalho dos rios.
Além disso, preocupa-se o Governo de sua Majestade com o
fato de apresentar esta Colônia tão grande litoral exposto à
cobiça alheia. É na penetração, terra adentro, que está por
enquanto a garantia da grandeza do Brasill
O Mestre-de-Campo quedou pensativo, para perguntar,
depois de breve pausa:
— E, diga-me ainda, senhor Capitão — Vossa Senhoria que
parece tudo saber, — como foi que Portugal e Espanha
chegaram a acordo em questão de tanta importância, depois
de tão longa luta?
— Sua pergunta, senhor Pamplona, revela sabedoria. Não sei
se poderei respondê-la, mas vou tentar fazê-lo.
— Em primeiro lugar, Deus iluminou o espírito e a
inteligência de nossos reis governantes.
A divina invocação levou ambos os homens a se
persignarem como aceitação inconteste dessa premissa
fundamental.
— Além disso — continuou o Capitão — laços de familia
ligam agora os soberanos de Espanha e Portugal. A rainha de
Espanha é hoje a princesa portuguesa, D. Maria Bárbara,
irmã d'El-Rei D. João V, mulher de rara inteligência e,
consta, grande conhecedora das questões do Estado. Diz-se,
porém, ainda, que nada se teria feito se um homem
providencial não houvesse aparecido, apresentando um
estudo completo dos pontos que serviriam de base, com
ligeiríssimas alterações, às cláusulas do Tratado de Madri.
— E esse homem?
— Esse homem é um brasileiro, senhor Mestre-de-Campo,
um homem nascido nestas terras.
— Um brasileiro? De onde?
— De Santos. Chama-se Alexandre de Gusmão. Pessoa de
raro talento e fino trato diplomático. Não sei se sabe, senhor
Mestre-de-Campo, que nosso amado soberano ressentia-se
muito de não ver adicionado aos seus títulos de realeza um
que indicasse seu devotamento à Fé Cristã. Enquanto os reis
de França tinham direito ao título de "Cristianíssimos" e de
"Católicos", os de Espanha, nada havia nos de Portugal que
demonstrasse seu zelo e amor pela Igreja de Cristo. Foi
então que o inteligente brasileiro deu certeira cartada.
— Como?
— Servia ele, por muitos anos, em Paris como Secretário do
Conde de Ribeiro Grande, nosso embaixador junto à Corte
de França, e isso, naturalmente, depois de ter estudado aqui
em Colégio de Jesuítas e aprimorado suas humanidades em
Lisboa. Completou, porém, sua cultura em Paris,
doutorando-se em Direito Civil, Romano e Eclesiástico. Sua
inteligência era viva e penetrante. O posto seguinte foi
Roma, onde insinuou-se de tal sorte junto à Corte Pontifícia,
que o Papa Benedito XIII ofereceu-lhe o título de Príncipe
Romano. Modestamente, ele declinou da honraria, alegando
falta de autorização do seu soberano. Em compensação,
porém, advogou e obteve do Santo Padre que permitisse aos
Reis de Portugal passassem a usar, desde então, o título de
"Fidelíssimo". Conseguiu assim, com pasmosa facilidade o
grande anelo, aquilo que mais aspirava o nosso Rei.
— Daí por diante — prosseguiu Montalvo — Gusmão foi na
verdade, o Homem do Rei. O Tratado de Madri, embora
certos portugueses o ataquem, sem razão, como lesivo aos
interesses de Portugal, foi obra dele. O meridiano das
Tordesilhas já oficialmente abolido na região Amazônica,
não é mais o fio fantasma que corta o Brasil ao meio. Deve-
se isso, sem dúvida, sobretudo a Alexandre de Gusmão.
Compreende agora, senhor Mestre-de-Campo, porque os
senhores sertanistas terão hoje e sempre, com os
agradecimentos do governo d'El-Dei, o apoio desse mesmo
Governo? As forças armadas da Colônia já têm ordem para
marchar convosco pelo Caminho do Picadão, ou por outros
caminhos que nos indicar, até ao coração do Brasil. Para isso
aqui estou, e chegada é a hora de perguntar-lhe, senhor
Mestre-de-Campo: de que precisa para o avanço?
Pamplona levantou-se. A fisionomia contraiu-se e
respondeu: — No momento, avanço nenhum é possível
sem antes tornarmos seguros os caminhos. Negros e índios
barram as entradas. Temos uma primeira etapa a vencer, a
qual não deve ser muito difícil se a expedição for bem
conduzida. É o quilombo dos negros fugidos do trabalho de
garimpagem e chefiados pelo zumbi Ambrósio. Segue-se a
vasta região dos índios Araxás. Isso já não será tão fácil. Os
negros, como nós, vieram de fora, mas os índios são os
verdadeiros senhores da terra e sabem como defendê-la.
Teremos muita luta pela frente, senhor Capitão!

VII
O Planalto da Luz

O plano de conquista das terras ocupadas pelos negros do
Ambrósio e pelos índios Araxás foi então delineado para ser
executado em duas etapas sucessivas.
O extermínio do quilombo africano foi relativamente fácil,
como previra Pamplona. O ataque aos índios, porém, exigia
cautelas especiais.
Os araxanos diferiam da maioria dos selvagens da terra. Seu
nome provinha do local que habitavam por se tratar de um
dos mais altos chapadões. Era ali onde mais cedo se
adivinhava a aproximação das madrugadas. Por isso o nome
Araxá, que significava, como já vimos, o planalto da luz.
Não se assemelhavam aos das demais tribos esses índios.
Destacavam-se os varões pela estatura e singular rijeza dos
músculos, além do porte airoso e dominador. As mulheres,
mais graciosas que as suas irmãs de outras regiões, eram de
surpreendente fecundidade. Tudo isso se atribuía às
propriedades específicas das milagrosas águas da região. A
caça e a pesca eram ali extraordinariamente abundantes.
Fertilíssimo o solo, sobretudo o dos vales circundantes,
decorrentes de depressões geológicas de remota origem
vulcânica, onde uma camada densa de humo, durante
milênios, se acumulara.
Tal fama atingiu a bravura desses Índios araxanos, que as
penetrações no interior de Goiás se faziam ladeando suas
terras, deixando-os assim ilhados e intactos entre a vasta
região mesopotâmica formada pelos Rios Paranaíba e o das
Velhas, numa gleba de cerca de dez mil quilômetros
quadrados.
Sebastião de Affonseca e Silva, o autor da História do Araxá,
trabalho adaptado por Ayres da Matta Machado e publicado
pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 1946, refere-se
a essa tribo com ternura, porque ele mesmo se jacta de
descender da velha raça através de sua bisavó Quitéria,
autêntica araxana.
E assim vivia em paz a grande tribo até que nas cercanias se
formou um agrupamento de negros, fugindo da escravidão e
que ia crescendo com a chegada de novos evadidos.
Teria isso se passado entre 1681 e 1783, diz o mesmo autor.
Era sem dúvida uma favela incômoda, o Quilombo do
Ambrósio que se estabeleceu em local próximo aos Índios,
conhecido por Samambaia, com algumas centenas de negros
chefiados pelo célebre Ambrósio, vivendo de pilhagens, ata-
cando e exterminando as comitivas dos sertanistas.
Os negros lançaram o terror nas cercanias e tornaram
inseguros os caminhos às penetrações dos bandeirantes, que
passaram a dar longas voltas para evitá-los.
Apesar disso, a Nação dos Araxás, de um lado, e o Quilombo
do Ambrósio do outro, viveram longos anos em paz. Negros
e índios não se misturavam, esquivando-se mutuamente.

VIII
PELO AMOR DE UMA ÍNDIA

A aproximação cios primeiros brancos deu-se por volta do
ano de 1736, com o guarda-mor Feliciano Cardoso de
Carvalho e sua gente. Subiu ele o São Francisco e depois
rumou para a esquerda e, nas margens auríferas do Rio das
Velhas fundou o Arraial do Tabuleiro. Pouco durou esse
Arraial, arrazado que foi pelos índios Caiapós.
Voltaram, porém, os brancos em 1760 e fixaram-se no
Arraial do Rio das Abelhas que, mais tarde, chamar-se-ia do
Desemboque, isso porque era por ali que se fazia a junção
com o Caminho do Picadão por onde as bandeiras paulistas
rumavam para Goiás.
Como os Xavantes, que até há pouco permaneciam isolados
do meio brasileiro, os Araxás também assim se mantinham.
Ao seu derredor, sucediam-se as Entradas. A leste e ao
norte, o território dos araxanos fazia fronteira com o roteiro
de Lourenço Castanho, mais tarde chamado o Caminho do
Picadão, aberto em 1733 e com intenso tráfico de sertanistas
que demandavam o ouro para os lados do Paraguai e de
Goiás. A sudeste e ao sul, suas terras limitavam-se com a
estrada aberta de Bambuí e Desemboque e, finalmente, a
oeste pelos caminhos de penetração que, de São Paulo,
rumavam aos sertões brutos.
Os araxanos começaram então a constituir um problema
sério para o Governo de Minas. Cerca de três mil índios
excepcionalmente organizados pelos grandes Andaiás,
formavam uma barreira que tolhia o desenvolvimento da
região hoje conhecida sob o nome de Triângulo Mineiro.
Mas, antes dos índios, que pelo menos não atacavam quem
lhes deixasse livre o território, urgia resolver o problema
premente e maior: os negros agressivos do Ambrósio.
De 1741 a 1746, eles já haviam desbaratado e exterminado
duas expedições. Foi, portanto, para enfrentá-los que, em
1765, Inácio Correia Pamplona deixou Vila Rica com muita
gente, munição e duzentas bestas de carga.
Nos primeiros dias da primavera, ainda em setembro daquele
ano, avançou a expedição segundo o curso do Rio Bambui,
só fazendo alto em Samambaia, a oito quilômetros apenas do
Quilombo do Ambrósio.
Pamplona, hábil Mestre-de-Campo, não apressou o ataque.
Esperou pacientemente que os negros celebrassem as festas
do fim da estiagem.
Dizem que esperou muito, até que, certa tarde, ele começou
a ouvir o bater dos tambores. Entregavam-se afinal os negros
ao ritual festivo. Embriagados pelo alua, os guerreiros de
ébano dançavam. Nem sentinelas havia. Era chegado o
momento da ação.
Coberto ainda pelas sombras da noite, Pamplona fez avançar
seus homens e, aos primeiros clarões da madrugada,
desfechou um ataque decisivo, fulminante, mortífero. O
extermínio do Quilombo do Ambrósio foi total e Pamplona
voltou coberto de glória.
Mas em seus postos avançados, os vigilantes araxanos
assistiram emboscados à luta entre brancos e negros e
apressaram-se, como vimos, a relatá-la ao velho Andaiá, o
sábio chefe da tribo. Este, prevendo a inevitabilidade de um
choque com os brancos, prudentemente removeu os
núcleos principais dos índios dos vales circunvizinhos,
grupando-os ao alto da lagoa seca, onde hoje está o
aeroporto.
O planalto oferecia excepcional posição estratégica. Bastava
subir às árvores mais altas para avistar toda a região
circunvizinha.
Exterminado o Quilombo do Ambrósio, os Araxás
redobravam a vigilância, multiplicando as sentinelas. O
velho e experiente Andaiá sabia que os brancos não
parariam o seu avanço e que, depois dos negros, seriam os
índios as segundos vítimas. Previu, também, que a invasão
viria dos lados do Desemboque e de fato acentuavam-se os
indícios da aproximação.
Para prevenir-se de qualquer surpresa, o Andaiá organizou
uma tropa volante de uns cem índios comandados pelo
jovem e valente guerreiro de sua predileção chamado Mahú.
Ele era de porte atlético e, leal e corajoso, nele via o velho
Andaiá um provável continuador da obra de tantos Andaiás.
Certa vez, Mahú partiu com seus araxanos para o ponto mais
vulnerável à incursão dos brancos. Não tardou a encontrá-
los.
Grande bandeira, a de Batista Maciel, avançava pelos sertões
das Perdizes talando imprudentemente o território dos
Araxás.
Na calada da noite, Mahú e seus homens arrojam-se sobre
ela exterminando-a.
Empolgado pela vitória, Mahú torna à tribo carregando
armas e troféus. Festas triunfais o recebem, e o Andaiá, para
recompensá-lo, promete-lhe a filha, Catuíra, a jovem mais
bela da tribo. Esta, porém, por outro apaixonada, mostra-se
indiferente aos feitos de Mahú.
O tempo passa e os sertões em volta da terra dos araxanos
estão calmos. Não há o menor indício de qualquer nova
incursão.
Mahú comanda uma dezena de índios em missão de
reconhecimento. Ele recorda-se da primeira vez que
retornou à tribo coberto de glórias e troféus e doía-lhe à
vaidade retroceder à taba sem novos feitos a relatar. Quem
sabe se vencedor de outra batalha, Catuíra não se deixaria
inflamar de amor pelo herói?
Essa idéia o embriaga e ele não pode mais ceder à tentação
de atacar.
Buscando os brancos muito além das suas terras e depois de
alguns dias de marcha, os índios sedentos de sangué^tbpam
afinal com o arraial do Rio das Abelhas.
Anoitece, acendem-se as primeiras luzes nas moradas
modestas de pau-a-pique rebocadas de barro. Ninguém
imagina ser aquela a última noite do arraial. Ao ataque
aprestam-se os índios febrilmente, avivando as cores com
que se pintam ritualmente para a guerra. As flechas
incendiárias estão prontas, assim como os tacapes e
bovdunas e Mahú ataca, empolgado com a imagem de
Catuíra e a recompensa da vitória, que outra vez lhe sorri.
Seria, porém, de acordo com a lenda, tal promessa de
casamento a desgraça dos Araxás. De fato, desde menina,
Catuíra já havia escolhido o atraente Iboapi. Era ele, e não
Mahú, o senhor de seus sonhos de adolescente apaixonada.
Mas, filha obediente, que poderia fazer contra a vontade do
velho Andaiá? Aceitou entre lágrimas e suspiros o noivado
com Mahú.
Iboapi, porém, não era homem para capitular.
Enquanto isso, passavam-se as luas e aproximava-se a data da
festa do casamento de Catuíra com Mahú. Seria uma festa
nacional para os Araxás.
Nas vésperas do dia fatídico Catuíra sussurrou ao seu amado
um desesperado adeus.
A alma de Iboapi, é um inferno. Para ele não há resignação,
mas, por outro lado, sente-se impotente ante a
inevitabilidade dos fatos.
Novamente desabrocha a primavera. É a época preferida dos
brancos para suas incursões. As chuvas começam a encher
os rios, facilitando a navegação. O Andaiá bem sabe o perigo
que isso representa e antes do casamento de sua filha,
organiza novas patrulhas de reconhecimento.
Novamente Mahú as comandará. O jovem índio, porém,
sofre o efeito psicológico de seu próximo enlace com
Catuíra. Está sôfrego, ardente e, sobretudo, preocupado com
a inexplicável frieza da noiva. As ordens que recebera do
Andaiá foram precisas. A expedição era de mero
reconhecimento e sob pretexto algum deveria travar
combate.
Mahú chega com seu bando até os limites do Arraial do Rio
das Abelhas, o núcleo civilizado mais próximo. Os índios
emboscados nas matas circunvizinhas observaram a vida
pacata do arraial. Mahú já se considera chefe. Desobedece às
ordens do velho Andaiá e deflagra o ataque impiedoso. Os
índios circundam o arraial e, em gritos que mais parecem o
latir de cães selvagens, exterminam a pequena aldeia. Nem o
Capitão-mor, Feliciano Cardoso de Camargo, o fundador do
arraial, pode escapar.
Novamente volta Mahú à tribo como vencedor, mas nem
assim colheu ele o melhor troféu da luta.
A nação dos Araxás parecia agora mais segura e mais forte
com a queda do último bastião dos brancos mais próximos às
suas terras.
Falta agora bem pouco para o casamento. Catuíra encara
atormentada o deserto melancólico de um futuro sem amor,
enquanto Iboapi parecia acometido pela demência.
Era como uma ovelha desgarrada que evitara o rebanho. Seu
coração só abrigava ódio: ódio contra todos e contra tudo;
ódio até contra Tupã, que parecia conspirar contra ele
enchendo de glória o rival detestado.
Seu vulto era o de uma sombra desterrada e sem rumo, a
vagar pelas florestas. Em busca de quê? De tudo, de qualquer
coisa, do milagre, do impossível que lhe restituísse Catuíra.
Foi esse índio desesperado que Mestre Pamplona encontrou
quando de sua nova expedição.
A destruição do Arraial do Rio das Abelhas fora um erro
irreparável dos índios. O horror da chacina abalou toda a
Capitania. O Governo de Minas organizou rapidamente uma
expedição punitiva. E quem estaria apto a comandá-la, se
não Mestre Pamplona, o bem sucedido exterminador do
Quilombo do Ambrósio, além de tudo exímio sertanista?
Pamplona redobrou de cuidado. Ele sabia que os Araxás
seriam adversários de valor e, por isso, só avançava à noite,
temendo os espiões dos Andaiás. Certa madrugada, topa com
Iboapi que, apático, aparvalhado pela desgraça, deixa-se
prender sem resistência. Levado à presença de Pamplona,
este, bom psicólogo, logo descobriu o drama daquela alma
ferida. Pôs a serviço da coluna o ódio do índio. Iboapi será
seu guia, e Catuíra, o prêmio da traição.
Iboapi exulta. O amor de Catuíra, o ódio a Mahú e à sua
gente, fazem-no, naquele momento, o Calabar dos Araxás.
Na vingança, Iboapi requinta ao sugerir o ataque para o
próprio dia do casamento. Pamplona aceita a idéia. Quer
repetir a tática vitoriosa no Quilombo de Ambrósio, mas
para isso é mister deixar que o entusiasmo da festa e os
excessos das bebidas entorpeçam e quebrem a resistência
dos índios.
No dia aprazado, todos entregues à festa, abandonam os
índios as medidas de precaução usuais.
Os brancos aproximam-se despercebidos. Chegam tão perto
que conseguem reconhecer as pessoas do grupo central: o
velho Andaiá, coberto com seus paramentos de gala, Mahú
triunfante e orgulhoso; Catuíra submissa e abatida.
É então dada a ordem para o ataque fulminante. Os indios,
completamente aturdidos, deixam-se matar sem a menor
reação. Os atacantes avançam para o grupo central. O
Andaiá vê Iboapi liderando os brancos e ruge: Iboapi é
traidor!
Pamplona que, com o auxílio de Iboapi, havia colocado seus
homens em locais estratégicos para o assalto, ordenou
cerrado fogo sobre a grande massa indígena que, incauta,
comia, bebia e dançava, festejando o casamento.
Enquanto massacravam-se os índios como carneiros
encurralados, Pamplona aproxima-se do Andaiá, dando-lhe
voz de prisão. Este resiste. Prefere morrer com sua gente. O
arraial dos índios está completamente dominado.
Depois da matança, veio o saque seguido do incêndio das
tabas. Novamente Pamplona compadece-se do velho
Andaiá. Não o leva prisioneiro, nem o mata, abandona-o
para que chore sozinho, o fim da tribo dos Araxás. Mas o
Andaiá não sobrevive a tão fundo desgosto e morre pouco
depois.
Tanto sacrifício, porém, não favorece Iboapi. Mahú
consegue escapar levando a cobiçada Catuíra. Iboapi é agora
repudiado pelos remanescentes da tribo, dada a sua traição.
Diz-se que se juntou à caravana de Pamplona que retomava
e integrou-se à civilização.
Depois da fuga, Mahú tentou reagrupar a tribo, mas a
invencibilidade fora quebrada para sempre.
A libertação dos sertões dos Araxás abriu logo caminho à
imigração. Levas após levas de sertanistas começaram a
encher rapidamente as novas terras, famosas pelas suas
águas, seu clima e sua riqueza mineral.
E assim o Triângulo Mineiro se foi povoando, não apenas
com a população movediça dos faiscadores, mas, sobretudo,
com criadores e fazendeiros que vinham de longe para salgar
seus rebanhos nas fontes de água sulfurosa e que ali por
perto se fixavam, a fim de, periodicamente, levar o gado às
fontes milagrosas que supriam com vantagem, a falta de sal
do interior brasileiro, tão longe do litoral.
Tão grande e constante foi esse movimento, que se tornou
necessário marcar dias, e depois, horas, para que homens e
animais determinados viessem às fontes do Araxá, pois o
atropelo de gado e de gente, misturando-se num vaivém
constante, criava uma série de problemas que perturbavam a
ordem e degeneravam, as mais das vezes, em mortíferos
encontros.
PAUSA

Fica assim o leitor conhecendo os principais fatos, as lendas,
a história e uma sucinta descrição do meio físico da região
que, anos após, serviria de palco à vida de Ana Jacinta de São
José, a extraordinária Dona Beija.

XI
A MENINA DOS OLHOS AZUIS

Não se escoara ainda o primeiro ano do século dezenove e
uma notícia sensacional sacudiu a vida monótona e
pachorrenta daqueles sertões:
— A Maria Bernarda deu à luz uma menina de olhos azuis!
— Azuis? Não é possível!
— Azuis, sim. Azuis da cor do Beijo.
— Mas como, se a Maria Bernarda é filha de índios araxanos?
— Sei eu lá? O que sei, porque vi, é que a criança parece ura
anjinho louro.
Esses e outros comentários semelhantes partiam das
mulheres morenas da terra e provocaram logo uma romaria
à Fazenda do Mourão Rachado onde, de fato, uma índia
civilizada dera à luz uma graciosa criança, de pele morena
clara, que tinha, porém, os olhos de um azul tão
profundamente celestial, que pareciam duas rodelinhas do
céu! Mistério? Milagre?
Evidentemente, nem uma coisa, nem outra, mas o certo é
que do nascimento à morte, a vida daquela singular e infeliz
mulher, de pai até hoje incógnito e a qual ao nascer, recebeu
o nome poético de Ana Jacinta de São José, mas que, de fato,
só foi mesmo conhecida por Dona Beija, parece ter sido o de
atrair multidões.
Sua longa e tormentosa existência, pois viveu mais de
oitenta anos, acompanharia quase todo o século passado.
Foi ela que deu graça e feitiço à história do Arraial de S.
Domingos do Araxá. Não fora assim, e o recapitular dos fatos
ocorridos naquela região resu-mir-se-ia a um monótono
alinhar de datas. Mas Ana Jacinta, despertando paixões,
salpicou de escândalos aquelas pacatas e imensas regiões, a
ponto de provocar o retorno do grande Triângulo que se
anexara à província de Goiás, novamente para a de Minas
Gerais.

XII
MINAS OU GOIÁS?

De fato, o Triângulo de há muito já não era mineiro. Isso
aconteceu quando, livre o território de negros e índios,
cuidou-se de demarcar a nova terra, cuja vastidão não ficava
longe dos cem mil quilômetros quadrados!
Para isso foi encarregado, em 1743, o senhor Tomaz Robim
de Barros Barreto do Rego. As divisas, demarcadas de norte a
sul, partiam da "Guarda do Arrependido, seguindo a linha
reta a sul, à serra do Lourenço Castanho, ao Rio de S. Marcos
e ao Desemboque, deste ao Rio Paranaíba e por este abaixo
até tocar no Rio Grande, na Capitania de São Paulo".
Por motivos de ordem fiscal — pois a taxação de Minas era
bem maior que a de Goiás — os faiscadores e garimpeiros do
Triângulo sonhavam em retirar tais terras da jurisdição
mineira, passando-as para Goiás. A disputa nesse sentido
deve ter sido violenta, à vista de um velho documento da
Câmara de São Bento do Tamanduá:
"Os homens foragidos, vagabundos, insidiosos, inimigos da
paz, das repúblicas, cheios de impetuosas malversações
populares, em quererem fazer pertencente à Capitania de
Goiás no antigo Rio das Abelhas hoje Rio das Velhas,
povoado, ou conquistado desde as eras de 1737 e 1738 em
diante pelos habitantes da dita capitania, a fim de ficar
servindo aquela povoação de quilombo ou couto às assíduas
hostilidades de violentas mortes e roubos, e aos escandalosos
extravios de ouro em pó e diamantes que se transportam
para todas as capitanias adjacentes, e iludirem como têm
iludido o Real donativo das cem arrobas de Vossa Majestade
sem atenção às leis positivas que a dirigem debaixo de
levíssimas penas".
Iam as coisas nesse pé, ora mais calmas, ora mais tensas,
porém, em permanente mal-estar, quando pela região surgiu
um homem que iria ter influência decisiva.
Tratava-se do Padre Félix José Soares da Silva, pessoa que,
segundo as crônicas da época, aliava a notável talento
completa ausência de escrúpulos. Seu passado não o
recomendava. Dizia-se até que fora condenado pela Justiça
de Vila Rica, a instâncias do Bispo de Mariana, a quem ele
odiava.
Procurando escapar à jurisdição de tal Bispado, vislumbrou
ele, na incerteza da carta demarcatória do Triângulo
Mineiro, uma rara oportunidade. Com grande poder
persuasivo, começou por insinuar às elites dirigentes do
Arraial do Araxá, que o território do mesmo ficava dentro, e
não fora, de Goiás.
Isso, porém, não era verdade. A grande região
mesopotâmica era incontestavelmente mineira. Surgira para
a civilização, graças às grandes entradas. Mantivera-se
mineira com o estabelecimento dos arraiais povoados por
faiscadores de ouro e garimpeiros das Gerais.
Luiz Diogo Lobo da Silva, Governador da Capitania de Minas
Gerais, tomou a peito o problema e resolveu examinar
pessoalmente os limites discutidos, e, convencendo-se da
legitimidade dos mesmos, fez com que Pamplona os
ocupasse.
Isso em 1766.
Apesar de tudo, o movimento separatista recrudesceu a
ponto de a Câmara de São Bento de Tamanduá, sentindo o
perigo, deitar nova proclamação:

"Para nenhuma das mencionadas explorações, providências
e conquistas concorrem auxílio, gente, despesa, ou outro
algum subsídio da Capitania de Goiás. Antes, todos aqueles
longínquos e vastíssimos sertões têm sido demandados,
penetrados, posseados até o presente em que atualmente se
acham por ordem auxílios e eficazes providências dos
Excelentíssimos Senhores Generais e Governadores da
Capitania de Minas Gerais, concorrendo com graves
despesas para as repetidas bandeiras que combateram a
muitos gentios e perigosos quilombos, não só o povo e
Câmaras de toda a Capitania, como fica dito, mas ainda a
muitos particulares e como especialidade o Mestre-de-
Campo, Regente Inácio Correia Pamplona".
Pouco valeu então o argumento histórico. O imposto
escorchante da Capitania de Minas Gerais, a tristemente
famosa "derrama" falava mais alto que tudo. A anexação pura
e-simples a Goiás, com direito ou sem direito, significava a
libertação do pesado tributo, a possibilidade de um trabalho
produtivo cujos lucros não fossem parar nas mãos indolentes
e rapaces do Fisco d'El-Rei.
Eis aí o motivo real do sucesso da campanha pró-Goiás do
Padre Félix, cognominado "O Pequenino", dada a sua
pequena estatura.
Vendo quanto o trêfego prelado representava de perigoso
para a causa mineira, o Governador Lobo da Silva muniu-se
de uma ordem de prisão do Cabido de. Mariana e deteve o
padre, mas ao ser ele transportado para Vila Rica, o
Governador, desconcertadamente, relaxou a prisão,
justificando-a... "tendo em conta o seu caráter eclesiástico" e
"a ver se melhorava de produzir apaixonadas idéias o seu
orgulhoso espírito, fazendo nutrir no seio daqueles
habitantes que a transportação para Goiás lhes era mais útil
do que a obediência às justiças civis e militares de Minas".
Pelo visto, foi o Padre Félix a alma do movimento. No
ânimo popular encontrou perfeita correspondência com os
seus propósitos e interesses. Tanto os habitantes do Rio das
Abelhas, como o ardiloso sacerdote, só queriam era
liberdade para os contrabandos e davam tudo para se
esquivarem à derrama. Assim, o Padre Félix foi ter com o
Governador de Goiás, D. João Manuel de Melo, a quem
logrou convencer de que aquela paragem era novo
descoberto. No entanto, aí existiam cento e vinte habitantes
e autoridades instituídas pela Capitania de Minas, havia mais
de vinte anos, segundo documentação autorizada.
Em recompensa obteve o Padre Félix nomeação para Vigário
da Capela do Senhor Bom Jesus, com amplos poderes
eclesiásticos. Mas, o Cabido de Mariana e o Vigário de S.
Bento de Tamanduá, tinham expedido contra ele ordem de
prisão. Nessa conjuntura, receoso de exercer as suas funções,
desceu de canoa até Sabará, onde se envolveu em novas
tropelias.
A Capitania de Goiás ganhara a partida, pois, sumindo o
Padre Félix, o Governo de Minas Gerais relaxou sua pressão
sobre o Triângulo, a ponto de à 4 de agosto de 1788, haver o
Padre Antônio Alves Machado celebrado a primeira missa
nos sertões de Araxá e, ao terminá-la, solenemente afirmou
a posse da terra para a Vigairaria de Goiás.

XIII
SUA EXCELÊNCIA O OUVIDOR

Talvez o Triângulo Mineiro até hoje não fosse mineiro e
continuasse território goiano, não brilhassem, certa feita,
demasiadamente, os lindos olhos azuis de Dona Beija.
Despontava o ano da graça de 1816 quando um certo dia de
verão, pesado e úmido, Araxá engalanava-se para receber
luzida comitiva. Era o próprio Ouvidor do Rei que estava a
chegar.
Desincumbindo-se de suas altas funções, tinha o Ouvidor,
naquele tempo, entre outras, atribuição inspecionadora e
carregadora, para depois dizer ao próprio soberano, por
escrito ou de viva voz, o que ouvira da nobreza, povo e
clero espalhados paios vastos territórios brasileiros sob o
domínio da coroa dos Braganças.
Fazia ele, então, para tal fim, longa e penosa caminhada pelo
interior agreste. A viagem durava meses e apesar de todas as
facilidades que tinha em função do cargo, nem assim deixava
de oferecer grande incomodo.
O Ouvidor, como que um embaixador pessoal do próprio
Monarca, no desempenho de tais funções, não estava
adstrito à autoridade local.
O trabalho, posto que de grande responsabilidade e realce,
não era afanoso quando a correição se limitava aos povoados
do litoral e aqueles do recôncavo próximo, mas, à medida
que o Brasil crescia no sentido horizontal, de este-oeste e a
ponto de hoje ser maior nessa direção que na de norte-sul, a
visita aos povoados internos se tornava cada vez mais penosa
e demorada.
O senhor Ouvidor, portanto, quando pleiteara e conseguira
o alto e honroso posto só calculou bem o sacrifício que se
impôs, quando apareceu pela frente o sertão bruto por
vencer, para atingir os arraiais longínquos cuja população
reclamava a presença do representante pessoal do Rei.
Dispusera-se, afinal, à longa caminhada.
Araxá, então parte da Capitania de Goiás, como já vimos,
seria um dos pontos mais profundos por atingir, já de
retorno ao Rio de Janeiro pela Capitania de São Paulo. Mal
poderia ele prever, que o pacato arraial goiano oferecer-lhe-
ia a maior tentação de sua vida, uma tentação arrasadora a
que ele sucumbiria, deixando desmoronar a organização de
sua cuidadosamente planejada vida, familiar e política.
E a população de Araxá então?
Homens de prol e gente humilde, se eles pudessem prever
que a passagem do Ouvidor seria como que um terremoto
em suas vidas, jamais teriam pleiteado, com tanto afã e
persistência, a presença do senhor Dom Joaquim Inácio
Silveira da Mofa!
Tudo o que o modesto arraial do Araxá podia dispor e
oferecer para agasalhar com garbo o senhor Ouvidor fora
providenciado.
Mensageiros cortavam a galope as picadas para informar os
habitantes de toda a redondeza a hora certa da chegada da
comitiva. As mais ricas alfaias ornavam as sacadas das janelas
das moradas coloniais, caiadas para a ocasião de cores vivas,
como o rosa, o branco, o azul e o amarelo; depenaram-se
mangueiras frondosas, de sua folhagem, para juncar o solo
de saibro batido com um manto verde, e como não chovia
há muito, escravos carregados de baldes, como um
formigueiro negro, iam e vinham desde o raiar do dia,
lançando águas às ruas, para que a cavalhada não levantasse
poeira.
Precisamente às nove horas da manhã, ia alto o quente sol
de janeiro, quando a comissão de recepção dos grandes do
arraial se pôs em contacto, sob artístico arco de triunfo feito
de bambus imperiais entrelaçados, ostentando a bandeira do
Reino Unido, o pálio dos Braganças e a flâmula pontifícia
amarela e branca, com a comitiva do Ouvidor.
E, ao alegre bimbalhar dos sinos, cortados com o estrondo
dos rojões, Sua Excelência o Senhor Ouvidor, ostentando
vestes de gala, entrava triunfantemente no Arraial de S.
Domingos do Araxá.
Era a primeira vez que tão algo dignitário de Sua Majestade
Fidelíssima o Rei de Portugal, Brasil e "Algarves atingia as
terras dominadas anos atrás pelos altivos araxanos, desde
quando se teve notícia delas, pelo relato do famoso
sertanista chamado Lourenço Castanho Taques.

XIV
PREPARATIVOS DE FESTA

A comitiva do Ouvidor era bem maior que se esperava.
Avaliavam-na em cerca de cinqüenta homens, mas à medida
que avançava interior adentro a ela iam aderindo membros
de outros arraiais, de modo que, naquela manhã, mais de
duzentos forasteiros desembocaram abruptamente no Araxá.
Era Wuita gente, de uma só vez, para o vilarejo.
Os soldados, sobretudo, qual marujos que aportam após
longos meses no mar, lançavam olhares gulosos às lindas
caboclas do Arraial.
Que belas e diferentes eram elas comparadas às demais
mulheres do interior!
Eram só os homens que se lançavam na aventura das
grandes penetrações. As mulheres, sobretudo as brancas,
vinham depois, muito depois e enquanto não chegavam,
cresciam os povoados novos graças ao cruzamento do
pioneiro com a negra escrava ou com a índia capturada.
Mas no Araxá tudo fora diferente. Por quê?
— Porque, quando os homens de Pamplona destruíram os
araxanos, raptaram, numa repetição da sabinada romana,
grande número de índias e seus descendentes ali estavam,
representados nessa rija população de caboclos fortes e
caboclas lindas, uns mais bronzeados, outros menos, outros
até alourados, com um tnatiz de olhos que variava do preto
azeviche ao azul translúcido dos europeus aos mais
obliquamente mongólicos do índio brasileiro. Mas o fato é
que todos eles ostentavam tez rosada e sadia, que
contrastavam com o aspecto macilento das gentes de outras
terras.
Seria a água das fontes do Araxá a causa do aspecto saudável
dos filhos do local?
Ai, porém, de quem da comitiva transgredisse as ordens
severas do Ouvidor se se fizesse de engraçado com as moças
dos arraiais! O Ouvidor ali estava encarnando a presença
augusta do Rei para distribuir Justiça, proteger o fraco,
castigar o déspota e a lei primeira que o Ouvidor impunha,
lei que ele mesmo, homem severo e de irreprochável
austeridade cumpria a rigor, era a do respeito. Ai de quem se
deixasse apanhar em fraquezas da carne ou em atitudes
debocha-doras! Um carrasco oficial não acompanhava a
comitiva por mero acaso, e ao rufar macabro dos tambores,
mais de um fora pendurado aos galhos do caminho, como
exemplo aos outros e prova da inflexibilidade do chefe.
Como toda a gente da redondeza, Ana Jacinta agora moça,
ostentando beleza rara que mais lhe realçava a graça de seus
dezesseis anos — a quem só chamavam de Dona Beija pelo
azul água-marinha de seus grandes e meigos olhos — viera
ver de perto a festa da chegada.
Como^mge fosse sua morada, não pôde chegar a tempo de
assistir à imponente entrada do brilhante cortejo. Seus tios,
com quem vivia, desde que perdera a mãe; eram gente
humilde e paupérrima, gente que a velhice tornara
indiferente e que não se abalaria do longínquo roçado só
para ver o Ouvidor ou quem quer que fosse. Preferiram
vestir a moça da melhor maneira possível e deixaram-na ir
ao povoado escoltada por um velho e fiel escravo que servia
de pajem. Enfeitaram-na como melhor puderam e fizeram-
no, aliás, tão bem, que mais parecia em seu sóbrio traje de
amazona uma fidalga que uma simples filha do povo.
Deixaram-na partir, orgulhosos da beleza da sobrinha e
acompanharam, com olhar embevecido, seu porte airoso
realçado pela montaria até que, na primeira curva da estrada,
ela sumiu seguida do pajem num trote alegre e alvoroçado.

O BANQUETE INTERROMPIDO

Quando Ana Jacinta e seu velho pajem atingiram Araxá, já as
efusões da chegada do Ouvidor e sua comitiva haviam
amainado.
As boas-vindas que uns, mais exaltados, vendo nele o
reflexo da própria figura do Rei, e outros por mera sabujice,
levaram ao extremo de um ridículo beija-mão, já tinham
sido dadas, bem como realizada já fora a missa solene em
que se rendeu graças ao Todo-Poderoso pela feliz chegada
de tão nobre e alto dignitário.
Por isso a grande praça, desabrigada de árvores e asfixiante
de mormaço a todos afugentara. Por ser hora do almoço,
abrigavam-se os convivas sob vasto caramanchão coberto de
sapé, recém-construído justamente para o evento festivo.
Ao centro da mesa os grandes da terra banqueteavam o
Ouvidor, que tinha à direita o vigário do Arraial e, à
esquerda, o Presidente da Câmara. Os demais arrumaram-se
de acordo com a hierarquia conferida pela posição e a idade,
até que nas duas extremidades da mesa, aboletavam-se os
agregados e homens de armas da comitiva, a par com os
mais humildes habitantes do Araxá.
Dir-se-ia que maldoso acaso armara o cenário teatral para a
chegada da moça.
O grande almoço terminava, farto em carnes e pescados,
copiosamente regado a vinho e com as misteriosas águas das
fontes límpidas do Araxá. Mal o apetite serenava e ei-lo
novamente acicatado pela presença de grandes tabuleiros
caprichosamente arrumados e cheios de guloseimas, frutas e
doces que os escravos traziam com fartura.
O morno ambiente pesava sob a pressão dos alimentos
excessivamente ingeridos. Soprava uma brisa tão discreta,
que mal dava para balouçar o pano das bandeiras,
convidando todos para o torpor da sesta em redes de palinha
trançada e, por isso, as pálpebras dos convivas baixavam
sobre olhos fatigados, fugindo à luz que brilha tão
intensamente nos grandes planaltos.
Levantou-se o presidente da Câmara para a saudação oficial.
Fez-se silêncio. Os escravos suspenderam o serviço
obedientes ao sinal do feitor, promovido na ocasião a
mordomo. Cessou, como por encanto, o tilintar de copos e
talheres. Até os arrotos fortes, de bom tom na época, pois
denotavam satisfação e saciedade, foram se transformando
em pequenos soluços abafados, enquanto os presentes,
inclusive o Ouvidor, mal escondiam a expressão de tédio,
pela ameaça de um novo discurso que se adivinhava longo e
maçante, a avaliar pelos grossos rolos de papel que o orador
pomposamente empunhava.
Foi quando algo de inenarravelmente belo ocorreu.
Não muito longe, bem no alto da colina que a estrada
inclinada trazia ao centro da praça, surgiu Ana Jacinta
montada a cavalo.
Seus cabelos louros e soltos fulgiam ao sol do meio-dia e.sua
beleza realçava-se pelo contraste de seu pajem velho e feio.
O traje cinzento de amazona modelava-lhe a cintura fina, de
onde emergia o busto bem lançado que permitia adivinhar a
perfeição de um corpo de mulher ostentando as primeiras
pompas da maturidade.
Ninguém poderia ficar indiferente à súbita presença da
moça.
Para aqueles cujo espirito podia elevar-se, Ana Jacinta
lembraria um anjo, uma aparição celestial em forma de
mulher, mas para os que estivessem com os sentidos a
rastejar, ali estava em carne e osso a mulher-sensação, a
mulher-pecado, a eterna perturbadora.
Ao aproximar-se com naturalidade do centro do grupo, não
avaliava ela que marcharia para o fim de sua meninice.
Ágil, ela apeou, passando a rédea do seu cavalo ao pajem,
que permaneceu montado e vencendo uns momentos
incertos de timidez, virou-se para o grande Ouvidor,
fazendo-lhe graciosa reverência.
Seguiram-se instantes arrastados de estupor. Ela com seus
lindos olhos de azul profundo fitando a figura madura,
porém ainda esbelta e varonil do Ouvidor, impecavelmente
trajado e que tardava em retribuir a gentil homenagem.
Ele levantou-se afinal e, sem dizer uma só palavra, sem um
gesto sequer de agradecimento à cortesia da moça, para ela
dirigiu-se a passos inseguros, seus olhos cravados nos dela.
Era incomodamente sensível a todos os presentes, que o
fascínio da Ana Jacinta tonteara o Ouvidor e tal era a
expressão do homem ao caminhar para ela, que a menina
recuou. O instinto lhe dizia que ela enfrentava, pela primeira
vez, um homem cujos sentidos ela perturbara
profundamente.
Assustada, ela recuou, galgando rapidamente a montaria, e
soltando uma risadinha nervosa, fez meia volta e deu rédeas
ao cavalo que disparou em desabrido galope.
Em menos de dois minutos Ana Jacinta sumira atrás da
colina seguida do pajem espavorido e, no meio da praça
mormacenta, via-se apenas a figura ridícula do grande
Ouvidor, desarvorado, aparvalhado, pisando inseguro sua
própria sombra.
De repente, aquele homem sisudo, morigerado, disciplinado
e aparentemente austero, parecendo tocado por uma faísca
do inferno, desandou a gritar como um possesso, para seus
homens de armas, uma ordem dementada:
— Peguem-na! Peguem-na! Depressa, animais! Não a
deixem fugir!

XVI
O RAPTO

A princípio, os homens do Ouvidor, apesar de seus berros,
quedaram-se indecisos.
Que lhes ordenava o amo? Que fossem ao encalço duma
mocinha de dezesseis anos e a prendessem como um
malfeitor?
Mas o Ouvidor não lhes deu tempo para muito pensar e
repetindo, como um insano, a ordem de prisão, aos urros,
em tom que antes não lhes era familiar, eles logo se
contagiaram com o sentido da ordem inesperada e
cambaleantes de vinho, todos se lançaram à sela e a caçada à
Dona Beija começou.
Embora ela levasse de vantagem alguns minutos sobre os
seus perseguidores, não teve idéia de procurar esconderijo
seguro. Pensando que a extravagância do Ouvidor
terminasse ali mesmo, julgou que a presença dos grandes do
Arraial, inclusive a do eclesiástico, seria bastante para por
fim ao ridículo da cena que ela, involuntariamente,
desencadeara.
Enganou-se.
O Ouvidor, ou porque embriagado, ou porque — preferem
essa versão as crônicas da época — estivesse sob o domínio
das enfeitiçadoras águas do Araxá, mandara às urtigas
conveniência e aparência. Sua violenta e punidora auste-
ridade, inflexível quando se tratava de reprimir deslizes
alheios, era mais aparente que real. Quando a tentação
fustigou-lhe os sentidos já no outono de uma vida que se ia
sem grandes sensações, o quarentão não encontrou força
bastante para deter, ou pelo menos desviar o aluvião de
desejos descontrolados que acabavam de romper os diques
do racional e a besta humana explodiu em Sua Excelência o
grande Ouvidor, em intensidade equivalente à grandeza de
sua posição política e social.
Quando Ana Jacinta e seu pajem, de volta ao roçado caseiro,
montando as velhas alimárias, notaram que estavam sendo
perseguidos, já era tarde para fugir. O velho e fiel escravo
colocou-se à frente de sua querida sinhazinha, brandindo o
chicote, única arma que possuía, numa atitude de defesa
mais simbólica que real.
Com uma gargalhada boçal um brutamontes avinhado
desembainhou a espada, trespassando-a no pobre negro, que
caiu agonizante.
Ana Jacinta estava cercada.
O Ouvidor estaca e fita longamente a presa. Parecia começar
a meditar sobre a violência dos fatos tão rapidamente
desencadeados.
Ainda havia tempo para recuar. É verdade que um homem,
estertorando a seus pés, entrava na agonia da morte. Mas
que valia então a vida de um pobre escravo?
Pensaria ele em retornar ao Arraial de Araxá? Teria coragem
de enfrentar o olhar da gente dali depois de tão grande
escândalo? Depois do que fizera? E como explicar o
assassinato do velho pajem? Em meio a esses pensamentos
tumultuados o acaso fê-lo notar que, para a direita, um
pequeno vale se desenhava tendo ao fundo uma habitação
modesta cercada de um roçado de milho. Tomou rápida
decisão:
— Esvaziem a casal — ordenou.
A ordem foi rapidamente cumprida. Gritos desesperados de
mulher, choro de crianças, granidos de porcos e cacarejos de
galinhas espavoridas, precederam o rápido e sumário
despejo.
Terminado o assalto, o Ouvidor apeou-se e foi pessoalmente
inspecionar a morada com o capitão da guarda.
— Lugar infecto, resmungou mal-humorado. Enfim, não há
outrol Tragam as mantas e também a menina, mas com
delicadeza, acrescentou revelando ainda um resquício de
fidalguia. Depois cerquem o vale de homens armados e que
ninguém me perturbe enquanto eu não chamar. Se alguém
quiser incomodar, seja quem for, a ordem é atirar. Está
claro?
— Está claríssimo, senhor Ouvidor, respondeu o Capitão, em
tom subserviente enquanto saía para cumprir a ordem.
Aproximou-se de Ana Jacinta e fê-la apear.
Desesperada, ela pôs-se a gritar por socorro. O homem
aborreceu-se e sussurrou impaciente:
— Cale a boca, menina. Não vê que não adianta gritar?
Quem mandou você aparecer na praça na hora do vinho?
Agora, o melhor é ficar quietinha e ainda dar graças a Deus
que foi o Ouvidor, e não outro, que lhe quis. E sem mais
cerimônias ele a foi empurrando para o casebre do vale.
Pelas faces contraídas e tristes de Ana Jacinta de São José
começavam a rolar, silenciosas e amargas, as lágrimas de
resignação.
O céu escurecera. Uma sucessão de raios, trovões e logo a
seguir desandou a chover. Era um dos costumeiros
temporais de verão, acompanhado de aguaceiro, aliviando a
pressão atmosférica da tarde quente.

XVII
RUMO A PARACATU DO PRÍNCIPE

Quanto tempo passou o Ouvidor com sua presa na modesta
casa do vale? Ninguém sabe ao certo e tudo que dizem em
torno desse assunto transborda da especulação à lenda.
O que se pode afirmar é que o Ouvidor, serenada a primeira
onda de paixão furiosa que o acometeu e assim que seu
raciocínio retornou ao equilíbrio, viu-se diante de sério e
complexo problema.
Continuar no Araxá não era possível. Seus homens, após o
triste exemplo do chefe e aproveitando o interlúdio
amoroso, entregaram-se aos mais bárbaros excessos.
Saquearam à vontade a propriedade privada, repetindo em
grande escala os desmandos contra a população inerme,
principalmente contra as mulheres cuja honra passaram a
desrespeitar.
Tornar de onde viera, ao lar, e ao meio social que o cercava,
isso era algo que não podia cogitar agora. A notícia do
escândalo espalhou-se. Emissários montando os mais ligeiros
cavalos da terra, partiam em todas as direções a pedir
socorro aos arraiais circunvizinhos, a alertar os homens
válidos da região contra os desmandos do Ouvidor e de toda
sua soldadesca. Dentro de dois ou três dias mais, todo o
sertão estaria em armas contra ele.
Além disso, soubera que uma comissão dos homens mais
idôneos no local seguira logo para representar ao
Governador de Goiás — pois Araxá ficava então, sob a
jurisdição goiana — relatando aquilo a que já chamavam ali o
maior crime do século.
Urgia, pois, sair dali, e quanto mais depressa melhor,
passando logo para as terras de Minas Gerais cujas
autoridades não teriam competência para reprimir crimes
cometidos em outras Capitanias e onde, com sua fidalga
arrogância ser-lhe-ia fácil ressuscitar o temor reverenciai
que o Ouvidor d'El-Rei inspirava à gente humilde do
interior.
E a moça? Que faria dela agora? Deixá-la-ia? Levá-la-ia?
Esse, o problema mais sério.
O impulso que o fizera agir, de maneira tão louca, como um
irracional a desafiar as ordens do seu Rei, a esquecer sua
família legalmente constituída e a religião dos seus maiores,
dominara-o demais.
Era homem de meia-idade. Pensava ter experiência da vida.
Supusera que as aventuras amorosas eram imagens passadas,
boas apenas para recordar. Mas aquela meninal Aquela Ana
Jacintal Aquela Dona Beijai Não foram só seus instintos que
ela perturbara, mas também a sua própria razão.
Possuíra-a. Possuíra aquele corpo palpitante de virgem
apavorada. Pela força. Pela brutalidade. Pela enorme e
covarde vantagem que a posição social lhe dava.
E daí? Dissera-lhe no paroxismo da paixão, talvez
envergonhado do que fizera, usando para isso de frases
banais e pouco imaginosas, que ela seria o sol do outono de
sua vida, de sua vida faustosa, mas vazia de amor.
Ela respondera-lhe, e foram essas as únicas palavras que
proferira, palavras abafadas de vergonha e tristeza, mas
indicativas já da mulher dominadora que ela seria um dia:
— Dizem que o sol quando nasce, nasce para todos, mas
hoje, ai de mim, seria melhor que ele tivesse deixado de
nascer, a iluminar este chiqueirot
Que desejaria dizer? Referia-se apenas ao tosco local como
chiqueiro, ou seria ele o grande porco?
Aquilo ferira-o como uma bofetada. Nunca mulher alguma
ousara insultá-lo, e agora essa selvagenzinha do sertão, ao
invés de agradecer e honrar-se com as atenções do Ouvidor
do Rei, cuspia-lhe do fundo de sua impotência, todo o seu
asco, todo o seu orgulhoso e indomável desdém.
Isso não pararia assim! Aquela mulher ainda quere-lo-ia! Ele
ainda a faria roer-se de ciúmes.
Por quê?
Porque sua vaidade o exigia.
Vaidade? Só vaidade?
Antes da madrugada do segundo dia que se seguiu a esses
fatos a comitiva pôs-se de novo em marcha.
Atravessou o Arraial do Araxá à luz das últimas estrelas.
Casas fechadas, portas barricadas com trancas de ferro e
móveis pesados. Preces abafadas e um temor de vila ocupada
como em tempo de guerra, ficaram para trás.
O Senhor Ouvidor e sua comitiva fugiam na calada da noite,
ao contacto da gente que lhe estendera a mão hospitaleira e
confiante e a qual ele atraiçoara.
O objetivo agora era alcançar Paracatu do Príncipe, para
dentro das terras da Capitania de Minas Gerais.

XVIII
O TRIÂNGULO VOLTA A MINAS

Agora era agir, e agir rápido. Velha quizília que o Ouvidor
mantinha com o Governador da Capitania de Goiás, daria a
este rara oportunidade de vingança.
Então o senhor Ouvidor do Rei, em andanças de correição,
vinha à sua Capitania para ouvir queixas e distribuir Justiça, e
era justamente a comitiva dele, com Sua Excelência à frente
que, como um vendaval apocalítico desabava sobre o inerme
e confiante Arraial do Araxá, em tropelias de toda ordem,
culminando em estupro e homicídio?
Era inacreditável!
Ora, da gente do Triângulo, pouquíssima ainda se lembrava
das causas que, cerca de quarenta anos antes, fizeram com
que aquelas terras desincorporassem da Capitania de Minas
Gerais para se anexarem às de Goiás.
Além disso, Goiás, esquecida no fundo da terra brasileira, só
exercia uma jurisdição simbólica naquela região, presa como
vimos, por fatalidade geográfica, muito mais a Minas Gerais
cuja influência se fazia sempre mais sentida que a de
qualquer outra Capitania.
É verdade que, com a criação da Capitania de São Paulo,
desmembrada da de Minas Gerais, teria sido possível, talvez,
carrear para a nova Capitania as terras do Triângulo, mas,
como à época elas estavam sob jurisdição goiana, disso
ninguém cogitou.
Sabia o esperto Ouvidor que, dois anos antes, os próprios
moradores do local haviam enviado um emissário ao Rio de
Janeiro, rogando a D. João que permitisse a reincorporação a
Minas Gerais de toda aquela região. E ele mesmo acabava de
ouvir dos grandes da terra, dos discursos proferidos no
interrompido banquete, quando chegara ao Arraial, ser esse
um objetivo acalentado pela gente inquieta da região que,
mais tarde, tentaria a autodeterminação governamental com
foros de Província a parte no Império, e até de Estado
Federado na República. Fora mesmo instado para que
pusesse o peso do seu prestígio em favor da causa
reincorporada do Triângulo à Capitania mãe, de Minas
Gerais.
Nunca com isso se preocupara. Que lhe importava se esses
longínquos sertões integrassem os vastos territórios das
Capitanias de Minas ou as de Goiás?
A situação agora, porém, mudava inteiramente de aspecto.
Se o Triângulo, e com ele o Arraial do Araxá tornasse a
Minas Gerais, automaticamente a autoridade que deveria
procurar punir o crime não seria mais a goiana e sim a
mineira. Suas relações com a governança de Minas eram
ótimas e, lá, ele contaria a história a seu jeito, de modo que a
narração à autoridade suprema do Rei não conteria a
causticante agressividade que o Governador de Goiás poria,
sem dúvida, no relato do crime de seu inimigo. Além disso,
haveria o fator tempo a ganhar. A emoção esfriaria com o
esquecimento, e os próprios araxaenses e araxanos não
poderiam senão lançar a seu crédito a de-sincorporação da
retrógrada capitania de Goiás, muito embora soubessem que,
no fundo, o que lhe moveria à rápida ação não seria a
participação de um ideal, mas sim o instinto de conservação.
Se assim pensou, melhor agiu.
Antes mesmo de atingir Paracatu do Príncipe, destacou
logo, da comitiva, gente de sua confiança, a qual rumou
diretamente para o Rio de Janeiro, levando seu integral
apoio ao pedido de reintegração do Triângulo a Minas,
reforçando o pedido anterior da gente da terra. Homem
prático, fez logo ressaltar as vantagens fiscais que dai
adviriam.


Tudo isso pesou. O Ouvidor tinha prestígio e até então bom
passado moral, o que lhe dava autoridade para pleitear a
favor do povo.
Pouco tardou a concordância Real e a 4 de abril de 1816,
Carta Régia desintegrava o território contestado de Goiás,
passando o de novo a Minas Gerais, cerca de três meses,
portanto, após o rapto de Ana Jacinta. Um recorde de
celeridade a vencer distâncias, num século em que o cavalo
era ainda o único meio de transporte.
Joaquim Inácio Silveira da Mota respirou aliviado. A Justiça
dos homens não o importunaria mais. O Governador de
Goiás nada poderia agora contra ele e as autoridades mineiras
estavam por demais gratas pelo serviço prestado à velha
Capitania ao dar-lhe de volta os territórios cobiçados, de
modo que não seriam episódios como o rapto de uma moça
e a morte de um escravo que importariam num momento
desses.
Foi assim que Minas Gerais ficou devendo a Ana Jacinta, a
famosa Dona Beija, a reconquista pacifica das terras do
Triângulo.
A França deveu a integridade de seu território, em certo
momento histórico decisivo, ao martírio de Joana D'Arc.
O Triângulo Mineiro é hoje mineiro e não goiano, graças ao
sacrifício de Ana Jacinta.
A primeira foi queimada como bruxa para depois ser elevada
à santificação. A segunda foi estuprada para depois baixar aos
infernos da prostituição.
Não estamos comparando, nem traçando paralelos, nem
mesmo procurando tirar ilações. Mas por que estranha
associação de idéias uma nos lembrou a outra? Será porque
no destino de cada um, como uma escada em que se sobe e
se desce, há um momento em que se pisa o mesmo degrau?

XIX
ASSIM QUE CESSAREM AS CHUVAS...

Mutação de cenário.
O tempo rolou. Cerca de dois anos já se passaram desde o
rapto de Ana Jacinta.
Estamos, agora, em Paracatu do Príncipe, mercado de pedras
raras, pois aí convergiam os sertanistas do Norte, Sul e
centro, os quais após garimparem em Minas e Goiás, vinham
barganhar com os comerciantes do litoral a troca de seus
achados por dinheiro contado, víveres, gado e toda a sorte
de utilidades.
Ali imperava Dona Beija, alçada à posição de favorita do
Ouvidor, o mais alto dignitário que com ela ostensivamente
aparecia, como se fora de direito sua mulher. Ninguém
ousava interpelá-lo sobre a legalidade de tal união, e embora
cochichassem narrativas romanceadas do crime do Arraial
do Araxá, ninguém permitia que o comentário passasse dos
murmúrios.
Como era bela a jovem mulherl Que ar senhoril e
aristocrático o seul Que porte airoso, e com que olhar
dominador enfrentava a maledicência feminina e a
concupiscência masculina!
Dona Beija tronejava com uma grandeza de estilo, digna das
grandes concubinas de Versalhes, e embora se conhecesse a
irregularidade de sua vida com o Ouvidor, sua presença era
disputada como galardão social.
Mas se tudo corria assim pomposamente, em seu aspecto
externo, a vida íntima entre ela e o Ouvidor emborrascava-
se cada vez mais.
— Em abril, daqui a quarenta dias, mais ou menos, assim que
cessarem as chuvas, rumaremos para a Corte, condescendeu
em informá-la, certo dia, ou mais precisamente certa noite,
o Ouvidor.
Falava em tom afetadamente despreocupado. Verdade é que
tencionava dizer isso há mais de uma semana, mas aguardava
momento propício para fazê-lo. Não sabia como ela reagiria.
Aliás não mais se enganava. Aquela mulher que ele raptara,
logo após a puberdade, aquela menina que fora o primeiro a
possuir, até hoje não se rendera. A convivência prolongada
não os aproximara e a intimidade, imposta pelas
circunstâncias, pesava cada vez mais.
D. Joaquim Ignacio não tinha, porém, motivo aparente para
nada reclamar. Dona Beija era passiva como uma escrava e à
sua obediência aos seus desejos aliava-se uma irreprochável
lealdade. Era-lhe, porém, impossível dar àquela vida, o calor
do afeto consentido e partilhado e, isso, que ele esperara
conseguir com o tempo, tornava-se, ao contrário, cada vez
mais inatingível, exasperando-o até as fronteiras da
demência.
Naquele crepúsculo de verão, porém, ele resolveu tudo
arriscar. Chovia forte. Chuva pesada de fevereiro que apenas
dava para refrescar.
Mal soaram as seis horas, apressou ele o jantar. Solicita, a
escrava trouxe a terrina de canja, suculenta e fumegante,
com folhinhas de hortelã perfumando a sopa, mas, após
umas colheradas sorvidas às pressas, ele nada mais quis
comer. Definhava visivelmente o
senhor Ouvidor nesses últimos tempos, sobretudo depois
que recebera ordens reiteradas e terminantes da Corte, para
voltar ao Rio.
Com elas viera, também, uma carta lacrada do seu grande
amigo o Príncipe D. Pedro, o futuro Imperador. Dizia-lhe,
confidencialmente, que a esposa do Ouvidor, em plena
cerimônia de beija-mão real, explodira em soluços, pedindo
a D. João que fizesse voltar o marido dessa interminável
comissão que durava mais de dois anos, e cujos rumores
escandalosos, grande abalo lhe causavam. Que voltasse logo,
dizia o Príncipe, pois já se murmurava demais sobre a
estranha aventura, responsável por tão longa permanência
no sertão.
Terminada a refeição, recolheu-se o Ouvidor logo ao
aposento que, por sinal, não era uma alcova. É que Dona
Beija desprezara a alcova como dormitório, contrariando
racionalmente o costume anti-higiênico da época. Preferira
transformar, para isso, um dos amplos salões do casarão, com
luz e ar diretos com grandes janelas que davam para a rua.
Ele achara graça, a princípio, na idéia da mulher e
concordara com os seus desejos. Aliás, logo convenceu-se
de que ela tinha muita razão. O clima de Paracatu,
geralmente quente, fazia com que a alcova mal arejada se
tornasse abafada.
Tirou as botas, recostando-se no amplo leito de espaldares,
cercado de cortinados protetores contra os impertinentes
mosquitos, sempre mais numerosos na quadra quente.
Deitou-se e fingiu modorrar, mas com seus olhos semi-
cerrados, acompanhava os gestos da mulher que o seguira,
como de costume, ao dormitório.
Ela não estava, evidentemente, com sono. Deixou-se ficar
por muito tempo como que perdida em pensamentos, a testa
colocada à veneziana, olhando por entre as frestas a chuva
que cala, aparentando estar engolfada em um longo cismar.
Só muito depois é que, lentamente, começou a libertar-se
das complicadas roupas da época. Primeiro o vestido como a
saia a roçar o chão. Depois o corpete, anáguas e mais
anáguas, até que o corpo escultural surgiu livre e nu, em
todo o esplendor da mocidade.
Parecia incrível mas era a primeira vez que ele a
contemplava assim. De hábito, ela despia-se recatadamente,
atrás do grande biombo chinês e dali só saia já de camisola.
Aquela atitude inesperadamente impúdica, assombrou-o de
tal modo que o aparvalhamento dominou a principio todas
as outras sensações.
Será que ela o supunha adormecido, ou considerava-o já
coisa tão sem importância que nem sequer se incomodava se
ele a estivesse vendo ou não?
Enquanto ele se torturava com tais pensamentos, ela movia-
se no quarto com a desenvoltura de um felino. Suas mãos
hábeis e ligeiras apanharam os cabelos louros que lhe caiam,
fartos, sobre os ombros. Enroscou-se com elegância natural
num amplo coque que lhe descobriu a nuca e o pedestal for-
moso do pescoço.
O cabelo suspenso parecia tornar sua nudez superlativa. A
luz indecisa do crepúsculo ainda invadia o aposento através
das frestas das venezianas, desenhando sobre o alvíssimo
corpo listas discretas em meios tons da penumbra e
claridade.
Apanhou a camisola. Dispunha-se a vesti-la e caminhar para
a cama, quando, num muxoxo de arrependimento, mudou
de pensar e de direção. Ou porque a cama não se
apresentasse hospitaleira, naquele principio de noite quente,
ou porque a proximidade do homem desleixado a
desgostasse, o fato é que ela se deixou ficar hesitante entre a
cama e a marquesa. Decidiu afinal pela marquesa e estirou-se
sobre a frescura da palhinha aberta que imprimia em sua
pele o desenho dos pequenos hexágonos do trançado.
Entre a cama e a marquesa, três passos apenas os separavam.
Nessa altura, já a escuridão da noite borrascosa fizera
enegrecer tanto o aposento, que o Ouvidor não conseguia
mais ver Ana Jacinta.
A chuva continuava. Monótona, igual, enervante. Só se
ouvia o barulho da água; copiosa tombando em ritmo
regular, cortado às vezes pelo bater dos ferros êc uma égua,
que se colara ao muro da casa,, debaixo da janela, para
proteger-se sob o vasto beiral.
O Ouvidor levantou-se e, às palpadelas, foi em busca da
mulher.
— Vem, disse ele, segui ando-lhe o braço.
— A cama está quente demais, protestou ela.
— Vem.
— Não.
Estaria ele ouvindo certo? Ela dissera não!
Desafiava-o, então? Puxou-a irritado. Ela reagiu. Seguiu-se
um simulacro de luta corporal, em que o homem levou a
melhor.
Naquela noite, o Ouvidor sentiu, pela última vez, a ilusão da
conquista, ilusão que durou pouco, pois, quando julgou
azado dizer:
— Em abril, daqui a quarenta dias, mais ou menos, assim que
cessarem as chuvas, iremos para a Corte, teve como resposta
uma desconcertante gargalhada.
— Para o Rio? Era só o que faltaval
Ele estranhou o inesperado tom de desafio de quem lhe fora
sempre tão submissa.
— Você não quer conhecer a Corte?
— A Corte não me interessa.
— Você irá para lá, se eu quiser.
— Para que me quer lá?
— Porque eu quero você sempre. Aqui, lá, em qualquer
lugar. Sempre ao pé de mim.
— Sim, você me quer sempre atrelada a você. Paa§ servi-lo,
parece que sirvo.
— Não é isso. Você sabe que eu gosto de você.
— Essa declaração de amor vem tarde. Você me quer porque
sabe e sente que eu não gosto de você e ainda pensa que
pode quebrar minha vontade, como já quebrou minha vida.
Mas para o Rio não vou. Se você me quiser mesmo, fique
por aqui. Eu sou filha do sertão e do sertão só saio morta.
Aqui todos me respeitam, porque sou a moça do Ouvidor.
Na Corte você tem sua mulher, sua família, seus fidalgos e
eu, para onde irei? Para uma casinha de mulher largada,
onde você irá me ver quando sua mulher o enfezar ou
quando a Corte de São Cristóvão o aborrecer. Tudo isso,
bem entendido, quando você tiver tempo, ou não estiver
muito cansado. Pois fique sabendo que não sou mulher para
uma colocação de segunda classe. Você não pediu licença
para me arrancar do Araxá. Sabia que eu era noiva?
— Não.
— Nem se preocupou em saberl Você pensou na minha
família? Também não. Meu aio? Seus homens o mataram.
Foi feita, pois, sua vontade, mas não a minha. Agora estou
aqui. Araxá? Paracatu? Pouco interessa. Nada mais me
interessa. Não consegui o homem a quem eu queria. A vida,
perdeu a graça. Sou uma morta-viva. Você, ou outro
qualquer, que importa? Mas resignei-me. Não o envergonho.
— Todo esse desabafo é para me dizer que você não gosta
de mim?
— Agora é que você pergunta? Por que você não me
perguntou isso antes de se apossar de mim? Você é homem
inteligente. Você acha, por acaso, que eu gosto de você?
Sem saber o que dizer, ele procurou desconversar:
— Paracatu já me faz mal aos nervos e aos seus também.
Precisamos voltar.
— Menos eu.
— Veremos.
— Não adianta ameaçar. Não vou mesmo. Só se me levar
amarrada o que será minto pior para você.
— Por quê?
— Porque a primeira coisa que farei ao chegar ao Rio será
queixar-me ao seu amigo, o Príncipe D. Pedro.
— E daí.
— Pensa que não sei que mulher bonita faz dele o que quer?
— Sua...
— Que mais poderei eu ser senão essa coisa horrível, depois
do que você me fez? Se o homem que ainda amo não me
quiser mais, quando eu tornar a ele, depois que você me
deixar em paz, e se meu destino nesse mundo ingrato é vir a
ser isso, que você me chamou agora, de uma coisa você
pode ficar certo: os homens que vierem depois, pagarão caro
o mal que você me fez, e não serei eu uma dessas infelizes
que se empurram na sarjeta depois de haver servido.

XX
O FIM DE UM CAPRICHO

Ela não mentira ao Ouvidor. Entre eles, a separá-los havia
mais que a diferença da idade e a recordação traumática da
violência do primeiro encontro.
Passara ele os primeiros tempos atordoado com a beleza e o
encanto da moça que raptara, mas no fundo, ficara sempre o
sentimento de culpa que ora se fixava na cena dolorosa da
morte do aio de Ana Jacinta, ora na recordação de uma
esposa dedicada, abandonada na Corte, aguardando seu
sempre adiado retorno, ora a angustiosa saudade dos filhos,
ora a vergonha de se haver degradado a ponto de arriscar o
alto cargo de Ouvidor, por simples capricho sensual, ora
tudo isso se somava num mal-estar inexprimível, que lhe
afetava os nervos e avelhantava precocemente o semblante,
onde a preocupação desenhava fundos sulcos. A insónia
atormentava-o continuamente e quando fustigava os
sentidos para aplacar a tensão, o sono que se seguia aos
arroubos amorosos vinha entrecortado de sonhos
angustiosos, suores e sensação de asfixia, despertando-o
ainda mais lasso que no dia anterior.
Por sua vez, para Ana Jacinta, a vaidade que talvez sentisse
de ser a preferida do Ouvidor estava longe de compensar
seus muitos dissabores.
O homem inquieto que tinha a seu lado e que só a
procurava, desde a primeira vez, por instinto animal, nunca
lhe dera sequer a ilusão de um verdadeiro amor.
Pelo contrário, a vida com o Ouvidor era um constante
desequilíbrio entre a violenta solicitação material e a
monotonia dos intervalos que a falta de entendimento e de
amizade tornava difícil suportar.
Sempre que ela sofria a afronta dos seus beijos e o contacto
de sua barba agrisalhada e mal cuidada, não podia evitar uma
sensação de náusea invencível, sem deixar de imaginar que
diferente poderia ser a sua vida se tudo houvesse corrido
normalmente e se Sampaio fosse seu esposo.
Sampaio?
Sim. Ele chamava-se Manuel Fernando Sampaio. Fora seu
namorado. Era praticamente seu noivo quando o rapto
ocorrera. Infelizmente o guapo rapaz não estava no Arraial
do Araxá quando da chegada do Ouvidor e sua comitiva.
Fora, dias antes, a mando do pai, comprar uma partida de
gado em remota paragem. Como a defenderia se lá estivesse
no dia fatídico!
No íntimo, tanto ela, como o Ouvidor estavam
representando um pouco, naquela cena intima descrita no
capitulo anterior.
A verdade nua e crua é que ambos sentiam-se, ela
confessadamente, e ele ainda que mal apercebesse isso,
fartos um do outro.
E tanto assim era que logo no dia seguinte chegaram a
acordo, sem qualquer outro atrito.
Ele tornaria à Corte, não mais em abril, mas imediatamente,
enfrentando ainda a estação chuvosa. Seguiria serra abaixo,
pelas picadas abertas, e a lombo de burro, ou então, talvez,
pelo caminho menos áspero, porém mais longo que pelo
sertão da Bahia ia ter em Salvador e, dali, por mar, até o Rio
de Janeiro.
Ela voltaria para Araxá.
Conversaram, então, pela primeira vez, como dois entes
civilizados e surpreenderam-se de encontrar afinal um
terreno de entendimento. O rompimento foi ameno, quase
alegre, pois ambos estavam felizes de se libertarem de um
convívio que fora doloroso em seu início e triste em suas
conseqüências.
Delicadamente, ela nada exigiu. Ele generosamente, fez com
que ela levasse o suficiente para uma vida digna e sem
aperturas financeiras durante os próximos meses. Depois,
com calma, ela decidiria. Se fosse da sua vontade ficar por lá,
que ficasse, mas se, pelo contrário, mudasse de intenção e
resolvesse ir à Corte, como era desejo dele, frisou
novamente, então não hesitasse. Fosse sem medo, pois
encontrá-lo-ia com sua posição consolidada, graças à
amizade do Príncipe, com seu prestígio político aumentado
pela gratidão dos mineiros a quem ele ajudara a reaver o
cobiçado Triângulo e sempre seu amigo e protetor.

XXI
COMO AS NINFAS DOS BOSQUES

Ana Jacinta voltou ao Araxá.
Ei-la, de novo, em seu querido Arraial, matando a saudade
das velhas paisagens, bebendo a água azul da fonte do
Barreiro, que um dia ostentaria seu nome famoso e
mergulhando outra vez seu corpo, cada vez mais belo, na
lama negra e benfazeja da lagoa das algas.
O banho em plena mata, à sombra das velhas árvores amigas!
A tepidez das águas sulfurosas escurecidas pelo manto das
algas ...e suas mãos buscavam sôfregas as raízes negras da
vegetação lacustre e, cheias, voltavam com a massa informe,
pegajosa e morna.
Como lhe sabia bem aquele banho da lama vegetal! Que
instinto lhe ensinava estar ali uma fonte de
rejuvenescimento e beleza?
A massa cremosa aglutinava-se à sua pele e se o silêncio e a
quietude da mata pudessem ser profanados, ver-se-ia Ana
Jacinta, negra como azeviche e bela como a Rainha de Sabá!
Terminada a massagem, uma clareira por onde os raios de sol
penetravam fundo na mata oferecia-lhe um colchão natural
de musgo úmido onde se deitava, permitindo que, por largo
tempo, o sol cozinhasse a camada da lama vegetal que seus
poros avidamente absorviam, solicitados pelo calor.
Faltava, porém, a última parte da cena edênica, que ela
repetiria anos em fora, e a cujo hábito, os velhos da terra
atribuem a duradoura beleza de Dona Beija, beleza que a
acompanhou até os mais avançados anos da vida.
Agora, era desvencilhar-se da lama pegajosa, mas para isso
era mister deixar o lago e embrenhar-se numa picada em
plena mata, onde uma espessa neblina radioativa indicava o
grotão da sua fonte predileta. Ali, amassando folhas de
samambaia, à guisa de esponja, ela colocava-se sob o impacto
da cascata, os pés mergulhados no poço cavado entre as
pedras roliças e mus-guentas, para livrar-se dos restos da
lama que relutavam em despregar-se de seu corpo.
Essa última cena do ritual aquático, hoje cientificamente
repetido pelos que procuram novas energias naquelas águas
mágicas, não mais ao natural, como Dona Beija, mas nos
modernos estabelecimentos hidroterápicos das Termas do
Araxá imaginou-a assim inspirado poeta:

Foi aqui nestas águas transparentes
Que Dona Beija se banhou.
Ainda Se espalha no ar a claridade infinita
Dos seus louros cabelos envolventes.
Nua, na paz sentimental dos poentes
Se era linda, tornava-se mais linda:
Ao vê-la, o sol dizia-lhe:
"Bem-vinda!"
E os seus olhos ficavam mais ardentes.

A água que corre em lânguidos meneios,
Guarda o perfume quente na água fria,
Daqueles braços e daqueles seios...

E ao vir a noite, antes que o luar desponte,
Sobe da fonte estranha melodia...
Que a voz de Dona Beija é a alma da fonte.


XXII
ISOLAMENTO

O que se segue na vida de Ana Jacinta abrange agora um
período de cerca de vinte anos. É a fase mais difícil de
narrar, porque a mais triste, embora pareça superficialmente
a mais alegre, mesmo romanceando, como fizemos até
agora.
Mais difícil, não só porque foge ao nosso plano descer a
minúcias que cairiam na banalidade da literatura erótica, mas
também porque a vida dessa criatura oferece facetas que
provam ter sido a degradação em que se deixou escorregar
durante quase vinte anos, mero episódio e não o fator
dominante em sua vida. Chegamos à conclusão de que ela
foi impelida ao meretrício, por um complexo fortíssimo de
circunstâncias adversas e não por tendência natural.
Quem lhe estudou a vida, sente que tal período foi para ela,
sobretudo, uma fase de duríssima provação, fase que ela
enfrentou resignada, imprimindo mesmo àquela triste
situação o cunho marcante de uma personalidade altiva e
inteligente.
De retorno ao Araxá de sua infância, Ana Jacinta só
encontrou maldade e incompreensão.
A hipocrisia das mulheres casadas negava-lhe o conforto da
amizade feminina, por interpretação deturpada da verdade
dos fatos. Matronas alcoviteiras em segredinhos, com
olhares significativos e arvorando-se em peritas em questões
de amor, davam a entender que o rapto fora uma farsa.
Houvera sim uma fuga. Fuga consentida e do agrado da
moça. Por seu lado, os homens excitavam-se ao rever no
Arraial a mulher por quem o grande Ouvidor tudo
sacrificara: família, honra, reputação.
Mas para Ana Jacinta bastaria que um só compreendesse e
era seu antigo noivo Manoel Fernando Sampaio...
— Se eu soubesse que você queria voltar...
— Você duvidou?
— Sei lál Uma vez cheguei a ir até Paracatu. Ia disposto a
tudo. Levava bons cavalos e cabras de confiança. O Ouvidor
pagaria com a vida o que nos fez.
— Não era preciso tanto. Se eu soubesse que você estava lá;
se eu tivesse certeza de que você me aceitaria depois de tudo
o que aconteceu, eu mesma iria ter com você e você me
levaria para onde quisesse. Não seriam precisos mais crimes.
Por que você não encontrou meios de me fazer sentir a sua
presença?
— Porque fiquei com a impressão de que você era feliz com
ele. Quando a comissão foi a Goiás exigir justiça do
Governador, as mulheres daqui puseram-se a falar. Diziam
que você foi com o Ouvidor porque quis; que se você não
fosse se exibir e tentá-lo no dia da chegada, nada
aconteceria; que você enfeitiçou o homem de propósito.
Dona Justina, a mulher do capitão, disse até que se o marido
se fizesse de bobo e bancasse D. Quixote indo na tal
comissão de queixa, ela lhe daria uma surra, em plena praça.
— No entanto, você foi a Paracatu?
— Fui. Fui para me certificar, mas antes de fazer qualquer
violência, quis ver se você ainda era a mesma.
— E porque não seria a mesma? O que aconteceu não foi por
minha culpa e muito menos por minha vontade e você
devia saber disso, melhor que ninguém!
— Está bem, mas o fato é que havia em Paracatu, no dia em
que lá apareci, uma cavalhada. Meti-me entre os peões.
Fiquei a certa distância, puxei a aba do chapéu sobre os
olhos. Deixara crescer a barba. Você não me reconheceria
de longe, como de fato não me reconheceu.
— Eu nem o vi.
— Mas eu vi você! Não tinha olhos para outra coisa. Posso
até descrever o vestido com que você apareceu no palanque
ao lado do Ouvidor para assistir à cavalhada e dar prêmios
aos vencedores: era de veludo roxo, com babados brancos.
O chapéu era da mesma cor com uma grande pluma rosa.
— Você gostou? Eu ainda o guardo.
— O vestido assentava-lhe tão bem! Nunca você me pareceu
mais linda, com seus cachos louros amarrados e caindo sobre
o ombro esquerdol Nunca sofri tanto! Como doía ver você
com outro. Você não avalia o que é isso. É preciso ser
homem para saber como dói.
— Eu me lembro. Foi a primeira vez em que apareci em
público com ele. Morria de vergonha. Passei a manhã toda
chorando.
— Pois então você esgotou todas as lágrimas, porque você ria
e falava tão animadamente que parecia a mais feliz das
mulheres. Tão alegre parecia e, ainda por cima, apoiada no
braço dele, que não pude mais suportar a cena revoltante e
voltei no mesmo instante para aqui.
— Então você me abandonou?
— Eu abandonei quem já havia me abandonado.
— Pois olhei Acredite, eu estava infeliz. Eu nunca fui feliz
com ele! Naquela hora estava nervosa. Tinha a tola
impressão de que todos iam jogar pedras na moça do
Ouvidor. Mas a vaidade dominou meu medo. Procurei me
vestir bem, procurei parecer alegre. Procurei esmagar aquele
meio sórdido, que só queria ver pecado e maldade na minha
tragédia. Parece que consegui, pois, desde então, fui
respeitada e procurada, mas o que você pensou fosse
felicidade, foi um triunfo amargo. Mas não adianta querer
explicar mais. É preciso ser mulher para sentir e
compreender. Agora digo eu: é uma dor de mulher!... e,
depois disso, que fez você?
— Voltei.
— Voltou e casou, pelo que vejo.
— Casei, sim.
— Com quem? Quando?
— Com a Ana. Há oito meses...
— A Aninha Felizardo?
— Ela mesmo. Está para dar à luz.
— Quem diria! E você gosta mesmo dela?
— Ela é muito boa para mim. Tem muita paciência comigo.
— Não foi isso que perguntei. Então você casou mesmo...
— Parece...
— O que parece é que o destino me persegue! Tudo me
aconteceu ou cedo demais, ou tarde demais. Há qualquer
coisa de desencontrado na minha vida. Enfim, se ela achou
em você metade daquilo com que sonhei, então ela será
feliz, muito feliz mesmo...
XXIII
REPULSA

Com uma escrava chamada Maria Crioula, que em Paracatu
o Ouvidor lhe dera de presente, alma ingênua e boa, fiel
companheira de toda sua tormentosa existência, e que, mais
tarde, ela deixaria em testamento para uma de suas filhas,
tomou Ana Jacinta, de aluguel, uma casa de sobrado na praça
principal do Arraial. Esta seria a casa que, depois, viria a
adquirir e que passaria à história com o título de Sobrado da
Beija.
Não tinha planos. Nem para o presente, nem para o futuro.
Queria parar um pouco, descansar o corpo ultrajado por dois
anos de convivência com um homem que não conseguira
amar e, sobretudo, dar repouso à alma dorida pelo tropel dos
acontecimentos que levaram de roldão íua vida infeliz.
Queria voltar à realidade, ao sossego do arraial da infância; à
convivência dos velhos amigos.
A realidade, porém, ofereceu-se inesperadamente dura de
enfrentar.
Não era só o fato de Sampaio haver casado. Já não bastava o
golpe de ter perdido o homem de seus sonhos de menina e
eis que, em sua inexperiência, ela não previu que, em seu
redor, apertar-se-ia, asfixiante, o círculo da hipocrisia.
As mulheres, inconscientemente despeitadas, na maioria,
incapazes de provocar, ainda que de longe, gestos que se
comparassem ao arrebatamento do Ouvidor, vingavam-se
sob a capa de virtudes ofendidas.
Os homens, também, eram cruéis. Os casados, temendo
complicações conjugais, negavam-lhe, covardes, não só um
aperto de mão amiga, como até mesmo a condescendência
dos gestos banais de cortesia, embora, ao cair da noite,
lançassem à sorrelfa, olhares maliciosos, quando não
acompanhados de gestos equívocos. Os solteiros e viúvos,
sem a necessidade de tanta cautela, valiam-se do precedente
do Ouvidor para considerar a fatalidade de Ana Jacinta como
fato consumado e dar-lhes supostos direitos.
Repelidos pela altivez da moça, passavam a engrossar as
fileiras inimigas, acoimando de orgulho e vaidade o asco
compreensível da moça por suas desprezíveis
personalidades.
Assim passaram-se os dias, as semanas e os meses nesse
ambiente turvo e mentalmente insalubre até que Ana Jacinta
começou a pensar seriamente em deixar, para sempre,
aquele recanto ingrato.

XXIV
AFRONTA

O dinheiro que o Ouvidor lhe dera estava por findar.
Impossível manter uma vida digna e honesta a que se
propusera com sinceridade, se todos a consideravam uma
réproba, incapaz de regenerar-se.
Iria embora, mas para onde? Pensou em Vila Rica. Toda
Minas já conhecia sua história. De pouco valeria sair para tão
perto. O Rio de Janeiro, sem dúvida, seria o melhor local,
mas lá estaria o Ouvidor, que não a deixaria em paz. Levara
dois penosos anos onde o seu prestígio far-se-ia de novo
pesadamente sentir. Salvador, a antiga capital da Colônia,
parecia o local mais indicado. Valeria a pena tentar?
Estava ela uma tarde, imersa nesses tristes e indecisos
cismares, quando alguém a chamou. Era Maria Crioula.
— Sinhá, disse a negra, o Feliciano, escravo de dona
Genoveva, diz que tem um presente para Sinhá.
— Um presente para mim? De dona Genoveva? A senhora
do Coronel Bonifácio? Deve haver engano! Em todo caso,
traga-mo, Maria.
— Não posso, Sinhá. O Feliciano diz que tem ordem de dona
Genoveva para só fazê a entrega à senhora mesmo.
— Pois que entre!
A negra saiu em busca do escravo e Ana Jacinta pôs-se a
pensar:
— Que quererá de mim dona Genoveva? Ela já me
desfeiteou mais de uma vez em público! Será que se
arrependeu? Será que, afinal, posso encontrar nesta gente
ingrata um gesto amigo?
O escravo entrou, acompanhado de Maria Crioula. Trazia
uma caixa de regular tamanho, do tipo das que se
embrulhavam doces de fabricação caseira. Respeitoso,
entregou-a à Ana Jacinta.
Curiosa, alvoroçada por uma esperança, ela desamarrou a fita
azul do embrulho caprichosamente envolto em papel cetim
de França. Levantou a tampa e estacou horrorizada!
Não podia crer no que via. A caixa estava cheia, até as
bordas, de estrume fétido e como suprema afronta, num
cartão, onde mão firme traçara umas poucas palavras
impiedosas, lia-se:
Para a "moça" do Ouvidor uma lembrança das Senhoras do
Araxá

Seus olhos encheram-se de lágrimas. Seu copo de fel estava
cheio e transbordava.
Por que a tratavam assim? Por que a perseguiam?
Deixou que as lágrimas rolassem livremente sobre as faces
enrubescidas de tristeza e de vergonha. Feliciano e Maria
Crioula não encontravam palavras para consolá-la.
Durou pouco, porém, seu abatimento. Disse a Feliciano que
esperasse e, recompondo-se, desceu ao jardim onde aos
primeiros calores da primavera soberbas rosas cor de chá
desabrochavam. Cortou cerca de uma dezena e, com a
mesma fita azul-daro do embrulho, amarrou-as em gracioso
ramalhete, en-volvendo-as no mesmo papel cetim de
França. Entregou-ás ao escravo, recomendando que também
só as entregasse em mãos de sua dona, a senhora Genoveva,
a quem endereçou o seguinte bilhete:
"As Senhoras do Araxá, aos cuidados de dona Genoveva.
Como agradecer o presente, tão útil, para o canteiro donde
tirei estas rosas que ora, em retribuição, lhes ofereço? Cada
uma dá o que tem".
Assinou: Ana Jacinta e rematou, sublinhando, a "moça" do
Ouvidor.
As senhoras do Araxá arrepender-se-iam amargamente de
ter desafiado a ira de uma criatura que, em breve, nem todas
elas juntas poderiam um dia enfrentar.


XXV
DECISÃO

E agora?
Agora as coisas precisavam mudar. Evidentemente, urgia
tomar uma decisão qualquer. Choviam sobre Ana Jacinta as
pedras daquelas que, esquecendo a lição dos Evangelhos,
julgavam-se sem pecado. Não aparecia a mão caridosa e
compreensiva que a amparasse e a defendesse. Queriam vê-
la na sarjeta, ao nivel de Josefa Pereira e da Candinha da
Serra.
Enganavam-se.
Essas duas mulheres, eram infelizes, pobres de espírito que
se deixavam explorar pelos brutamontes da terra e dos que
vinham ao Araxá para a salga do gado.
Com ela a coisa seria diferente, bem diferente.
Apedrejavam-na porque fora raptada pelo Ouvidor.
Esse, o motivo ostensivo, mas o presente nauseabundo teve
a vantagem não só de abalar-lhe os nervos, como também
de clarear-lhe a inteligência.
Via claro, bem claro, agora. As senhoras do Araxá não
estavam preocupadas com ela só porque fora a moça do
Ouvidor. O que temiam era a permanente presença de sua
beleza, de sua mocidade radiosa e triunfante. Era a inte-
ligência que seu olhar revelava, o garbo do seu porte, o
fascínio que logo exerceu sobre os homens da localidade.
Era sobre ela, que eles cochichavam ao interromper
abruptamente a conversa à aproximação das mães, das
esposas, das irmãs e das noivas; era ela que lhes dava aquele
ar aparvalhado e cismativo que os tornava esquecidos de
responder às moças e às senhoras da casa nas horas das
reuniões familiares.
Seria então ela a perturbadora?
Sua modéstia natural nunca a deixara perceber isso, mas a
caixa de estrume, com fita azul e papel cetim de França
vinha por tudo claro, claro, claro!
Ajnda incerta e com as idéias desordenadas, deixou que os
olhos anali-sassemos móveis pesados da vasta sala vazia.
O sofá vazio. As cadeiras. Tudo vazio como a sua própria
vida!
Mirou-se no grande espelho de cristal de Veneza, o qual,
por milagre, chegara intacto àquele fim do mundo e sorriu à
sua própria imagem.
O espelho retribuiu-lhe a saudação.
Como era bonita!
Surpreendeu-se com a tardia descoberta. Até então, deixara
que outros reparassem nela, mas ela não se descobrira ainda.
Era bonita! Era linda! Que maravilhosa descoberta! Uma
onda narcísica tonteou-lhe os sentidos.
Avançou para o espelho. Mirou-se, remirou-se. Com a mão
esquerda segurou a borda da pesada saia rastejante, e com a
direita, apoiou-se ao braço de parceiro imaginário, ensaiando
os passos de uma pavana e volteou ao som de um cravo
também imaginário!
Agonizava, assim, seu último sonho romântico neste
devaneio!
De súbito, seus olhos tomaram uma expressão dura quase
dementada. Estacou. Fria, impassível, hirta ante o espelho.
Não mais ouvia as notas plangentes do cravo, não mais
sentia a presença do parceiro delicado, de punhos de renda.
Um tumultuar de sons mal definidos, batia-lhe agora nos
nervos num crescendo de cadência envolvente.
A floresta próxima parecia invadir a sala. Numa algazarra,
ouvia o grito dos índios, o atabaque africano e sobre tudo
isso, o tropel dos cavalos do conquistador branco,
avançando, pisando, dilacerando, violentando a virgindade
da mata?, tal como o Ouvidor fizera com ela.
Sentia-se integrada na tragédia da terra. Mãos invisíveis
apertavam-lhe a garganta, o peito, os braços. As roupas
pesavam-lhe como fardo escravizador. Soluçava, ria, chorava
ao mesmo tempo, enquanto a sarabanda, martelando-lhe os
tímpanos, tomava-lhe a espinha num arrepio dominador.
Com ambas as mãos, libertou-se da gargantilha que lhe
agravava a sensação de asfixia, e da parte superior do vestido
que lhe apertava os braços e o busto, soltou os cabelos e
possuída pelo ritmo frenético dos sons, acompanhou em
meneios selvagens a força arrebatadora da música.
Quanto tempo durou o delírio?
Ela jamais saberia. Para o futuro recordar-se-ia vagamente de
tudo isso, qué lhe parecia inexplicável, atribuindo-o a um
pesadelo sem admitir que ela participara da cena de olhos
abertos.
O que nunca chegou a compreender foi o sentido daquela
rajada. Não associou aquele sacolejo violento ao fato de, ali
por diante, ter arredado todos os escrúpulos que a faziam
ainda hesitar em enfrentar a dureza da vida a que se
propusera para vencer e dominar a hostilidade do meio.
Como se desenhava triste o seu futuro!
O pecado não estava no que lhe acontecera! O pecado
parecia que estava nela! Em ser diferente. A beleza em meio
à feiúra! A inteligência em meio à parvoíce.
Sem saber por que, trouxe à lembrança um fato que se
passara há tempos, na primeira infância e por não
compreender o significado, ficara mergulhado no
inconsciente.
Recordou-se que, certa vez, na roça do velho tio, ela o vira
trazer na sacola usada para as compras do arraial, alguns
punhados de milho. Era milho especial, vindo de longe, cuja
excelência um amigo agricultor muito gabara. Mas o velho,
ao invés de plantar em boa terra a semente generosa,
ineptamente roçara, para tal fim, uma aba de colina mal
ensolarada e de humo ralo. O resultado foi triste: a boa
semente em terra ruim venceu com dificuldade a aspereza
do meio e, depois de alguns meses, espigas pequenas e mo-
finas foram o resultado mesquinho de tanto labor.
Uma das sementes, porém, rolara a encosta agreste e se
aninhara, por acaso, numa valeta úmida e quente, que
ofereceu todas as possibilidades de crescimento e
frutificação.
Assim, em meio à plantação raquítica, um belo exemplar,
provando a excelência do grão e a incúria do lavrador.
Pois quando a espiga daquele pé ainda estava longe do
douramento, ela viu seu tio, num momento de ira, ceifar o
belo espigão.
Perguntou, atônita, porque agira assim e ele respondera com
mau humor:
— É para ela não sê besta de passa na frente das outras!
Eis o que lhe aguardava no Araxá: a destruição por haver
passado à frente das outras!
Ela, porém, não seria como a espiga imolada. Sua alma
endurecera à força de sofrimentos e a afronta de Dona
Genoveva seria o derradeiro espinho a magoá-la. Sentia-se,
agora, com a coragem da amazona capaz de amputar um seio
para melhor enfrentar o inimigo.
Anoitecia. Acalmou-se.
Recompondo-se do desalinho em que se deixara ficar, abriu
de par em par a janela da sala que dava para a rua. A praça
estava quase deserta àquela hora. Ao longe caminhava em
sua direção, sobre a calçada tosca feita de pedras roliças,
unidas umas nas outras, um vulto de homem. Era seu
Bonifácio, o marido de dona Genoveva.
Avançava lentamente e sem dúvida passaria rente a ela, bem
trajado, como de costume. Desnecessariamente perto, como
também era de seu hábito.
Dessa vez, porém, ela não recuou e deixou, de propósito,
que seus braços, apoiados sobre o peitoril da janela,
roçassem no caminhante.
Apesar de seu aspecto sisudo, o suave contacto fê-lo lançar
um olhar equívoco. Isso também não era a primeira vez,
mas, agora, ela correspondeu com um sorriso mau.
Ele notou o sorriso. Apenas não compreendeu que era mau
e estacou. Não esperara, sem dúvida, a réplica amável.
— Aonde vai com tanta pressa, seu Bonifácio, disse ela, com
voz cantante e macia.
— Volto para casa, minha senhora, respondeu ele fazendo
esforçado apelo a um tom de falsa dignidade.
— Gostaria tanto que me desse alguns momentos de atenção!
Sinto-me tão só, seu Bonifácio, e o senhor é o único homem
de confiança, no Araxá, com quem eu desejaria me
aconselhar.
Ele hesitava, entre surpreso, feliz, vaidoso e assustado, sem
saber o que fazer e muito menos o que responder.
— Ohl Eu sei — disse ela, compreensiva — o senhor tem
medo de entrar pela porta da frente, mas não é preciso. Dê
uma volta à praça, discretamente, e entre pela dos fundos
que dá para o beco. Lá ninguém o verá.
O homem obedeceu como um autômato. Só não correu para
manter as aparências, mas seu coração pulava como o de um
cachorro farejando lingüiça.

XXVI
ENSAIO DE SEDUÇÃO

Pouparemos ao leitor a descrição da cena subseqüente.
Apenas devemos acrescentar que, poucas horas após o
ultraje, dona Beija teve a oportunidade de vingar-se de dona
Genoveva, mas não o fez.
A vingança não a interessava e, como sempre, revelaria uma
grandeza de atitudes que a colocaria em plano superior à
gente do seu meio.
Também não cometeu a insensatez de tirar todas as
esperanças de seu Bonifácio, de quem agora, tanto dependia.
Falou-lhe em tom franco e confidencial, que o desarmou
por completo. No fim da conversa, sentia-se orgulhoso por
ter ela recorrido aos seus conselhos paternais, e algo
decepcionado por haver sido promovido a uma espécie de
pai, depois que seus sentidos se viram despertados para
outras direções.
O fato é que ficou confuso, porquanto ela começou dizendo
que recorria a ele como a um protetor. Sabia que ele era
bom e a compreenderia como um pai, mas, se não quisesse
encará-la assim, não tivesse cuidadosl Em outra ocasião, ela
recompensaria o nobre gesto de ter vindo em seu socorro,
com tudo o que de melhor pode uma mulher dar a um
homem, mas evidentemente, não ali e, sobretudo, não logo
depois do que aconteceral
Aguçou-lhe a curiosidade com o segredo do acontecimento
irrelevado. Ele quis, naturalmente, saber o que se passara.
Era algo de bom, sem dúvida — disse ele galantemente —
pois fora isso que provocara o convite de Dona Beija para
entrar em sua casa, tornando-o assim o mais feliz dos
homens do Araxá. Mas, sem dúvida, também seria algo de
mau — e isso ele pensou — pois evitava que se
consumassem ali, e logo, todas as conseqüências que ele
supôs obter do inesperado convite. Ela excitou-o,
entonteceu-o, enervou-o.
Manteve-o fisicamente distante, mas abriu-se em
confidências prometedoras. Não lhe diria, porém,
positivamente, não lhe contaria o que ocorrera naquela
tarde. Que se contentasse em saber que fora algo de muito
mau, que muito a magoara. De fato, ela só o convidara a
entrar para ficar com a certeza dele ter ou não participado
do acontecido — pois tinha também certa responsabilidade
no que ocorrera, — mas via agora que ele estava inocente e
pedia desculpas por tê-lo incomodado à toa.
Ele surpreendeu-se e manifestou com nova galanteria seu
espanto:
— Então julgou que partiria de mim algo que a pudesse
magoar?
— Não! Não!
Ela estava certa, agora, de que ele não seria capaz de tal coisa
e fora mesmo só para certificar-se disso, aliás, que ela o
convidara para entrar, repetiu, embora, talvez, dona
Genoveva não gostasse que o marido freqüentasse sua casa.
— Como não — respondeu ele com fingimento. Dona
Genoveva teria mesmo honra nisso, pois simpatizava muito
com elal
É claro que ele, ai, já nem sequer media bem o significado
das próprias palavras.
Foi então que Dona Beija se permitiu destilar umas gotinhas
de fel, bem poucas, é verdade, em relação ao ultraje
recebido. Devagarinho, foi dizendo, foi contando tudo, e
com todos os requintes e coloridos de detalhes que só uma
mulher sabe dar e com a graça que lhe era peculiar.
Ele ouviu tudo, estarrecido e contrariado. Depois quis logo
reparar a ofensa à moda da época, com grandes cenas e
maiores gestos.
Ela levou algum tempo para acalmá-lo, e então, tocou-lhe a
vez de implorar que ela também tivesse piedade dele.
Partisse o ultraje de um homem, e este já teria lavrado sua
sentença de morte, pois ele mesmo o mataria, mas que ela
compreendesse, como mulher, o ciúme infundado de outra
mulher. Ainda assim, oferecia-lhe como pública reparação,
levá-la de braço dado à presença da esposa e de suas amigas e
comprometia-se a que, todas elas, Dona Genoveva à frente,
lhe pedissem desculpas.
— Não, meu amigo, interveio docemente a astuta mulher,
colocando entre suas mãos macias a grande mão calosa do
senhor Bonifácio. Estou paga, e bem paga, por saber que o
senhor não partilhou de tão maus pensamentos a meu
respeito. Mas de que me adiantaria essa reparação? Acirrar-
se-iam, fatalmente, os ódios contra mim. Criar-se-ia uma
situação desagradável entre osenhor e Dona Genoveva, e eu
ficaria triste em retribuir sua generosidade com um motivo
de desgosto para si. Deixemos, pois os maus com sua mal-
dade! Nada mais quero delas.
— Mas isso não pode ficar assim!
— Pode e vai ficar assim, meu amigo, respondeu ela, com
suave autoridade, mas se quiser me agradar, só peço duas
coisas. Posso?
— Concedido, desde já!
— A primeira, é um rogo: não falemos mais nisso, nem
entre nós, nem com ninguém.
— Agradeço sua generosidade!
— Obrigada, senhor Bonifácio, mas não é só generosidade.
Eu preciso de sua influência ainda, para outra coisa.
— Diga, Senhora!
— Preciso muito que o senhor me arranje o sitio do Jatobá!

A CHÁCARA FAMOSA

A Chácara do Jatobá ficava perto da fonte radioativa, por
trás das fontes sulfurosas (hoje o Grande Hotel, as Termas e
o lago artificial ficam entre essas fontes) tudo a poucos
quilômetros do centro do Araxá.
Era a posição estratégica visada por Dona Beija, que se estava
transformando em fria calculista.
Os fazendeiros da redondeza para ali traziam os seus
rebanhos, para a salga nas fontes sulfurosas e não perdiam a
oportunidade de ir tomar um gole na fonte radioativa, já
então famosa por suas propriedades rejuvenescedoras.
Em torno dela, refestelavam-se. Abriam seus farnéis à
sombra acolhedora das grandes árvores. Bebiam a fartar a
água límpida que jorrava das pedras cobertas de líquen,
enchendo o grotão de uma neblina de forte radioatividade
cuja emanação queimava a pele com tanta violência como se
estivesse exposta ao sol e provocava uma excitação nervosa
que, as mais das vezes, se manifestava numa grande
exaltação sensorial.
Pois bem, a Chácara do Jatobá ficava a poucos passos desse
grotão famoso que, atualmente remodelado pela mão do
homem, tem o nome de Fonte da Beija. É por lá que hoje
passa a fila interminável de aquáticos, a maioria dos quais
olha, sem compreender o significado dos magníficos
azulejos que ornam a gruta com motivos da época, e que
tentam contar a história de Dona Beija.
Foi no Jatobá, e só no Jatobá, que Dona Beija se permitiu
levar uma vida livre, curtida pelos desenganos e a crueldade
dos seus semelhantes.
Estava agora tristemente convencida de que uma mulher
desprotegida e só, nada poderia se não tivesse posses.
Nascera pobre e na pobreza passara a infância, sem saber ao
certo a sua origem.
Dizia-se que seu pai fora um fidalgo português que, por
espírito de aventura, unira-se às diversas expedições
arrasadoras de Pamplona, e deixara em sua inconseqüente
passagem pela terra desbravada, grávida, uma descendente
da tribo araxana. A mãe morrera pouco após o parto, e o
velho casal que a acolhera por caridade encantado com seus
olhos azuis, e aos quais chamava de tios, evidentemente
nem seus parentes eram.
Do pai ela herdara quase todos os característicos biológicos:
a alvura da pele que o cruzamento indígena apenas
amorenara, os cabelos cor de ouro e os olhos azuis. Além
disso, aquela distinção natural de maneiras e uma nobreza de
caráter que se cristalizara numa atitude arisca de defesa e
desafio ante a vida.
Da mãe ela guardara aquele amor selvagem ao torrão natal; à
terra de sua tribo; ao ar, ao sol, às águas daqueles planaltos de
onde ela nunca quis sair, nem mesmo para ver aquela coisa
imensa e azul, maior que todos os lagos juntos e com mais
água que todos os rios da terra a que chamavam: mar.
No dia seguinte ao da entrevista com seu Bonifácio, este,
com as mesmas cautelas, voltou ao sobrado, entrando pela
mesma porta do quintal traseiro que dava para o beco, e isso,
ao anoitecer, logo depois do toque da ave-maria.
Vinha trazer-lhe, desanimado, a resposta do dono do Jatobá,
pois teria, ou melhor, tinha quase certeza que ela não
poderia concordar com a condição absurda do proprietário.
— Mas não aceitou ele a proposta do arrendamento? —
perguntou a moça, já desapontada.
— Rejeitar não rejeitou, mas as condições são tão absurdas
que, para mim, equivalem a uma rejeição.
— Mas quanto ele está pedindo? — insistiu Dona Beija.
Encabulado, certo mesmo de ter falhado, ele desabafou:
— O homem só arrenda o Jatobá por trinta mil-réis!
— Trinta mil-réis por mês?
— Trinta mil. É uma fortunal
— É dinheiro bastante, seu Bonifácio, mas vou confiar-lhe
um segredo: pelo Jatobá eu daria até cinqüenta mil-réis por
mês!
Seu Bonifácio assustou-se:
— Menina, disse ele em tom irônico, trinta mil-réis é muito
dinheiro. Equivale a um mil-réis por dia! Onde espera
conseguir tanto dinheiro?
— Onde, seu Bonifácio? Ao fazer essa pergunta ela
aproximou-se dele em atitude impudica e desafiante.
— Onde? repetiu. Mas aqui mesmo seu Bonifácio! Muito
mais perto que o senhor imagina. Quer ver?
Atônito, ele afastou-se, dando um passo para trás, em busca
de apoio. Ela riu:
— Mas por que recua seu Bonifácio? Já não quer mais que
eu agradeça o serviço que acaba de me prestar?
XXVIII
NOVAS REGRAS PARA UM VELHO JOGO

O sobrado amarelo da Praça central continuou sendo a casa
respeitada da senhora Ana Jacinta de São José, enquanto que
a chácara do Jatobá era o negócio de Dona Beija.
Sua personalidade como que se bipartiu. Negócio? Que
negócio?
O negócio era o seguinte: a chácara do Jatobá era uma casa
de diversão, digamos assim, para não irmos já a mais
detalhes, mas uma diversão regrada, disciplinada.
Um porteiro musculoso, imponente em sua libré impecável
comandava uma equipe de escravos e fâmulos de confiança.
Tinha carta branca para selecionar os senhores fazendeiros
que quisessem repousar e divertir-se na chácara do Jatobá.
As condições preliminares eram: que não residissem no
Araxá, nem em suas redondezas; que solicitassem, com uma
antecedência minima de dois dias, autorização para serem
recebidos no Jatobá; que viessem bem trajados; que fossem
brancos (pois a senhora tinha preconceitos racistas); que
pagassem à vista e à entrada, a taxa fixa de duzentos mil-réis.
Isso dava direito: a penetrar na chácara desde as dez horas da
manhã; a usar todas as dependências do vasto solar, menos
aposentos particulares, reservados a Dona Beija; a participar
com ela de um almoço às dez e trinta, onde as melhores
iguarias e as mais finas bebidas lhes eram servidas; às doze,
repouso e sesta; às treze horas, Dona Beija reapareceria e os
convidados decidiriam, por maioria o que preferiam: jogos
de salão, violão com canções ou simples conversa com Dona
Beija; às três da tarde, era servido um lanche ligeiro
acompanhado de orques tra, para os que quisessem dançar
com Dona Beija; às quatro e meia encerrava-se a festa e os
convidados se retiravam.
Por essa altura, dizia-se ou, melhor, sabia-se, embora não
constasse oficialmente do programa, que dentre os
presentes, um poderia receber convite especial para retirar-
se um pouco mais tarde que os demais, mas isso ficava
inteiramente a critério dela e ninguém teria o direito de
reclamar fosse o que fosse, nem mesmo a escorchadora taxa
de entrada, significava obrigação alguma por parte dela.
A astuta mulher, evidentemente por instinto feminino,
aliado a um raro sentido psicológico, dava aos homens tudo
o que o meio atrasado lhes negava: um ambiente requintado;
um conforto imprevisto e inesquecível; uma excitação
intelectual que ela mantinha viva através de uma conversa
clara, chistosa e livre; tantos livros quanto era possível
naquela época e que apareciam naqueles ermos; gravuras
bastantes para atrair até mesmo analfabetos que, aliás,
rareavam entre os bafejados pela fortuna e linhagem; e, a
coroar tudo isso, a suprema vaidade do macho esperançado
de ser preferido na entrevista íntima depois das quatro e
meia da tarde.
O prêmio final, e sobretudo a incerteza de ganhá-lo, davam
ao ambiente do Jatobá uma moldura excitante de jogo de
azar, que obrigavam o eleito feliz a retornar, e o que ainda
não fora contemplado a voltar também, esperançado por um
olhar que supunha mais terno, um aperto de mão que ima-
ginara mais demorado, ou mesmo a esperança de uma
palavra mais significativa.
Eram, pois, os que supõem ter sido o Jatobá um conventilho
banal. Além de nem disso ter a aparência, o mero fato de os
freqüentadores não terem a prévia certeza de ultrapassar a
hora-limite, fazia com que os homens porfiassem em
exceder-se uns aos outros, a ver qual deles mais fizesse para
chamar a si as atenções e as graças da gentil senhora.
Numa época em que os homens mandavam e só eles
podiam, a Chácara do Jatobá era uma miniatura de
matriarcado em que Dona Beija pairava ora distante, ora
presente mas sempre troneando.
O negócio rendeu. Rendeu tanto, e em tão pouco tempo,
que ela ficou rica. Pouco tardou que duas outras criaturas, de
segunda classe, chamadas Josefa Pereira e Candinha da Serra,
aproveitando o material-homem que o Jatobá refugava,
também construíssem um sobrado no Arraial, e alugassem
chácaras nas vizinhanças, para receber aqueles para quem a
festa diária de Dona Beija se encerrava sem esperança às
quatro e meia da tarde.
Para que se tenha idéia do sacrifício financeiro que a taxa de
duzentos mil-réis das diversões do Jatobá representava, basta
lembrar que o grama de ouro custava, então, um mil-réis.
Como o dinheiro às vezes era escasso, o porteiro do Jatobá
tinha, também, uma balança e aceitava, por ordem da Dona
Beija, o equivalente do preço da entrada em duzentas gramas
de ouro!
Araxá passou a ser encarada como a cidade do mal, com o
Jatobá e as chácaras adjacentes da Candinha e da Josefa
encravadas em seus subúrbios selvagens.
Era uma ameaça permanente à estrutura das famílias
patriarcais das redondezas enquanto também sugava, para
seu arraial, de cambulhada, com a fama de cidade perdida,
todo o ouro da região.
Ali pompearam o luxo e a riqueza. O que havia de melhor
na época desembarcava da Europa no Salvador e no Rio de
Janeiro, e enfrentava o caminho agreste rumo ao Araxá:
perfumes de França, tecidos de seda e veludo, cristais da
Boémia, espelhos de Veneza, os melhores vinhos do Reino e
licores, livros, gravuras, quadros, móveis, louças chinesas, de
Macau e da Companhia das Índias, bronzes e bibelôs, eram
adquiridos por Dona Beija, quando não lhe vinham ter às
mãos de graça, oferecidos pela legião de admiradores, que
também despejavam no Jatobá, jóias valiosíssimas
encastoando em ouro do melhor quilate as pedras mais raras
encontradas na terra.
Mas, apesar de tudo, era uma mulher triste aquela Dona
Beija, que voltava, ao cair da noite, ao sobrado do Arraial;
mulher triste, com ela mesma e com tudo que a cercava e
que sentia no fundo do ser o peso insuportável daquela vida
dúplice e o vazio real de sua existência.
Tornava à casa depois de fechar o Jatobá, de examinar como
boa comerciante os saldos do dia e tomar as providências
para o dia subseqüente; de examinar a lista dos convidados já
programados para os dias futuros e, sobretudo, sem nunca
esquecer o banho de cascata na fonte radioativa que, se não
lhe lavava a alma, pesada de tristeza e remorso, pelo menos
limpava o corpo e mantinha o frescor da mocidade.
Em casa esperava-a Maria Crioula, escrava amiga e confiante,
com a canja simples e gostosa e uma cama para descansar.
Às vezes, porém, o esforço despendido ultrapassava suas
energias físicas e psíquicas. Então, era sobre o ombro de
Maria Crioula, que Ana Jacinta, muitas vezes, derramava
lágrimas de cansaço e revolta, pois o amanhã seria outro dia
de fingimento e canseiras, e a todos os senhores que
chegavam sôfregos por vê-la, ouvi-la e tocá-la, ela tinha por
obrigação acolher com semblante risonho- e ditos chistosos,
embora se sentisse, no fundo, mais escrava, daquela vida
detestável, que a própria Maria Crioula.

XXIX
NÃO ERA TÃO FÁCIL ASSIM

Vencendo resistências íntimas, e seguindo o ritmo da
existência traçada, Dona Beija começou a enriquecer
rapidamente. Em poucos meses, o primeiro ano ainda não
havia escoado, e o negócio do Jatobá lhe permitira acumular
vastos haveres. Mas tão metódica era em seus hábitos e tão
frios os seus cálculos, que ela mesma, apesar da vida que
levava, nunca ultrapassou certos limites.
Confirma isso o caso de dois homens que tudo fizeram, em
vão, para receber-lhes as graças. Um deles chamava-se
Felício da Rocha Rouriz.
Deixemos que conte essa história o Major Sebastião de
Affonseca e Silva, pois fê-lo de modo incomparavelmente
pitoresco e vivo:
"O Sr. Felício era moreno-claro, descendente de português,
com altura de dois metros e peso de mais de cem quilos. Era
comerciante honesto e o grande capitalista da praça, onde
gozava de grande conceito social. Era um homem nervoso,
sistemático e observador, usando de frases ou ditos incisivos
que mais realçavam a sua excentricidade individual. Por
exemplo: Usava ou empregava o advérbio "diretamente"
mais com pronúncia própria sua onde ele dizia DE-
RETAMENTE, coubesse ou não o emprego do termo no
assunto em que se tratava. Quando um ótimo freguês ia lhe
pedir dinheiro emprestado, ele respondia: Então,
deretamente o senhor veio alugar o meu dinheiro? O solici-
tante respondia: Não, senhor Felício, eu vim pedir dinheiro
emprestado. Pois, deretamente, o premio que o senhor vai
me pagar representa o aluguel do meu dinheiro... Olha,
deretamente, vou lhe emprestar o meu dinheiro, mais, de-
retamente, vou lhe avisar, que no fim do ano, o dinheiro
deve visitar a gaveta do dono, mesmo que em janeiro,
deretamente, eu possa lhe fazer novo empréstimo,
descontando o premio que o senhor deretamente tivesse
que me pagar (que admirável intuição bancária deste inculto
financista). Tratando-se de dinheiro, era um avarento e
usurário que propositalmente deixava cair no assoalho, notas
de cinco, dez e vinte mil-réis para verificar a fidelidade de
seus escravos. No dia seguinte, seu escravo Adão, que era o
varredor da casa, encontrando o dinheiro, ia entregar ao
senhor Felício, dizendo-lhe: o senhor perdeu este dinheiro.
O Sr. Felício, todo satisfeito, esfregando as mãos dizia:
Diretamente è de consciência; quando se acha uma cousa,
deve-se entregai ao dono. O escravo Adão merecia a inteira
confiança do Sr. Felício. Narrou-nos uma das
excentricidades do Sr. Felício em completar e adorar o seu
dinheiro. Em alguns dias em horas de seus lazeres, antes de
sua sesta, recolhia-se ao seu quarto, puxava o grande
canastrão que estava debaixo da cama, retirava todo o
dinheiro existente que orçava às vezes em trinta, quarenta
ou cinqüenta contos de réis; espalhava as notas em ordem
dos valores sobre a cama e erguia a veneziana da janela e
ficava nesse estado contemplativo, aguardando que uma
rajada de vento penetrada pela janela, pusesse em
movimento ondulatório todas aquelas notas, para neste
momento, ele sentir a sensação do argentário-adorador do
dinheiro, com um frenético arrepio e respiração ofegante,
com as mãos cruzadas sobre o peito, pronunciar as seguintes
palavras: "MINHA NOSSA SENHORA, NAO SEI DE ONDE
SAIU TANTO DINHEIRO!" Recolhia todas as notas em
pacotes por valores e colocava no grande canastrão que
fechava a cadeado e recolhia-o para debaixo da cama.
Passava em seguida à sua sesta, onde em sonhos
deslumbrantes de usurário, verificava o crescer constante de
sua fortuna. Essa narrativa é autêntica, porque a ouvimos do
escravo Adão. Para demonstrar o quanto o Sr.; Felício ado-
rava o dinheiro como comerciante, vamos descrever este
episódio: Uma freguesa, residente em Córrego do Sal,
distante três quilômetros da Vila, fez-lhe diversas compras e
no pagamento de quarenta réis, moeda de cobre divisionária
de um mil-réis, com a promessa de trazer no primeiro
domingo. Não tendo comparecido no dia marcado, o Sr.
Felício depois de alguns dias montou em sua célebre "besta
ruça" e dirigiu-se para o Córrego do Sal em casa de sua
freguesa. Ao chegar, cumprimentando-a disse-lhe:
"Deretamente a senhora não cumpriu o que tinha prometido
em ir pagar-me o quarenta réis no domingo". A freguesa
pressurosamente apresentou-lhe a nota de um mil-réis,
dizendo: Não fui, Sr. Felício, porque não troquei a nota.
Retorquiu o Sr. Felício: Deretamente a senhora deve
providenciar para que não seja preciso eu repetir esta
viagem. Novamente esporeou a besta e veio para a Vila.
Decorridos mais alguns dias, não tendo a freguesa,
comparecido, o Sr. Felído arriou a besta e dirigiu-se ao
Córrego do Sal, e já mais imperioso exigiu o pagamento de
quarenta réis. A paciente freguesa lhe disse: Senhor Felído,
aqui está a nota que eu ainda não consegui trocar. Pois
deretamente a senhora deve providenciar esse troco, porque
a senhora que é boa, freguesa, está passando para o terreno
dos maus pagadores; cousa que o Sr. Felído não tolerava
nem admitia. Decorridos mais alguns dias, p senhor Felício
tomou resolução. Muniu-se do troco da nota de um mil-réis,
levando consigo novecentos e sessenta réis em moedas de
cobre e pela terceira vez, montando em sua besta, para do
lado de fora da porta da freguesa, com semblante sorridente,
lhe disse: Deretamente venho receber o meu quarenta réis!
Ao que ela respondeu: Senhor Felício, infelizmente ainda
não troquei a nota de um mil-réis! O Sr. Felício com o
semblante radiante, lhe disse: DERETAMENTE, DONA, A
FLOR DESTA VEZ LHE MURCHOU NAS MÃOS! - aqui
tem o troco de novecentos e sessenta réis e a senhora me
passe para cá a nota de dez tostões!... Experimentou grande
satisfação nesta liquidação que lhe custou três viagens, onde
percorreu dezoito quilômetros. Por ser original nos termos
empregados o Sr. Felício passou para um estribilho popular:
Quando se pilhava qualquer pessoa em falso, dizia-se:
"DERETAMENTE A FLOR DESTA VEZ LHE MURCHOU
NAS MÃOS!"
Pois bem, retomemos nos, agora, a narração relativa a esse
homem de quem Waldir Costa, em seu livro "Araxá — Da
Maloca ao Palácio", chamou de "pardo caturra, dono de
muito ouro, que vivia de juros judaicos que ele chamava,
bêbado de usura, o perfume do capital".
Confiado no valor do dinheiro, com o qual tudo conseguia,
nunca lhe passou pela cabeça que se se dispusesse a gastar a
taxa escorchadora, por Dona Beija exigida, ela o repeliria.
Com a vontade rasgada entre o desejo e a avareza, primeiro
teve a idéia de pedir-lhe um abatimento, mas vencendo a
sovinice, muniu-se certa noite de dinheiro suficiente e
marchou resoluto, deretamente, para o sobrado amarelo do
Largo.
Bateu. Fê-lo com a força que supunha bastante para ser
ouvido do interior, mas dosando as batidas para não
despertar a atenção da vizinhança. Era tarde, e os moradores
já estavam recolhidos.
Com voz de sono, Maria Crioula — que tinha ordens
expressas de Ana Jacinta para não abrir a quem quer que
fosse — suspendeu a guilhotina da vidraça e, por trás da
veneziana, perguntou quem era e a que vinha.
Impaciente pela espera e por verse exposto a possíveis
olhares indiscretos, em plena praça, o senhor Felício foi logo
ao assunto, certo de que seu rasgo de prodigalidade faria
abrir de par em par as portas do sobrado.
— Olhe, diga à sua dona, que me mande abrir a porta, pois,
deretamente, aqui estão os duzentos.


A resposta não se fez esperar. Do interior da casa a voz de
Dona Beija, despertada pelos batidos e que ouvira o estranho
recado, dizia, com indisfarçável mau humor, a Maria
Crioula:
— Diga ao senhor Felício que deretamente vá para o inferno
e deixe-me em paz.
E lá foi ele, frustrado pelo fracasso amoroso, mas
consolando-se com o acariciar da sua grande nota de
duzentos mil-réis que repousava, outra vez segurai no fundo
do seu bolso.
Outro episódio, ocorreu com um homem chamado Sotério
Ribeiro Rosa. Deixemos que Sebastião Affonseca e Silva
também nos relate a história:
"O Sr. Sotério Ribeiro Rosa era um ilustre senhor de grande
prestigio social, um dos chefes do Partido Conservador,
grande fazendeiro, grande criador, opulento capitalista e
possuidor de inúmeros escravos. Era, porém, um tublode, do
primeiro cruzamento, cabelos bastante crespos. Seu solar era
semelhante a uma grande fortaleza pelas dimensões e
grossuras das paredes, com alçapões subteirâneos para a
defesa em caso de um ataque por inimigos políticos. Como
político de grande prestígio, conseguiu que Dom Pedro II
fosse padrinho de batismo de um de seus filhos. O
Imperador mandou um dos seus ministros representá-lo por
procuração e foi uma das mais opulentas e estrondosas festas
realizadas na Fazenda da Serra. Para essas festas foi convi-
dada Dona Beija, que esteve como elemento de destaque
social. O Sr. Sotério trocava de roupa duas vezes ao dia é só
saía à rua acompanhado de dois pajens, trajados a rigor.
Como elemento social e político de proeminência, era
constantemente convidado para reuniões, ora de política,
ora de caráter social; diziam os seus críticos que antes de ir a
essas reuniões, usava previamente um pequeno clister de
Agua Florida (único perfume de luxo naquela, época) para,
quando tivesse de expelir gases, trescalaria só o odor do
perfume. Estava, porém, como o Sr. Felício, deslumbrado
pela propaganda e por tudo que diziam sobre Dona Beija.
Sabendo que ela procedia a rigorosa seleção entre . os seus
pretensos admiradores, ele temendo uma recusa, que lhe
feriria o amor-próprio, julgou prudente sondar o terreno
enviando lhe um grande presente. Este valioso presente era
um rico e custoso corte de seda, em uma salva de prata
lavrada que representaria quatro ou cincwvezes a taxa
exigida dos duzentos mil-réis. Vestiu três de seus lacaios,
trajando-os a rigor e mandou-os em casa de Dona Beija levar
o rico presente. Anunciada pelo porteiro a presença dos
emissários do Sr. Sotério, veio ordem de Dona Beija para
introduzi-los na sala de visitas. Historicamente é preciso
declarar que sendo o Sr. Sotério um político de grande
prestígio e destaque, Dona Beija supôs que fosse para fazer
pedidos políticos para interferência dela no movimento
eleitoral das próximas eleições; como era de costume dos
dois partidos valerem-se do seu prestigio perante o
eleitorado. Os três emissários do Sr. Sotério estavam no salão
de visitas quando, minutos depois, Dona Beija lhes aparece,
como sempre trajada pelos últimos figurinos. O portador que
estava com o presente, levanta-se e respeitosamente a
cumprimenta, dirigindo-se para seu lado, pronunciou as se-
guintes palavras: "AQUI ESTA UM PRESENTE QUE
NHONHÔ MANDOU PARA A SENHORA". Foi só nesse
momento que Dona Beija compreendeu e percebeu quais
fossem as intenções do Sr. Sotério. Visivelmente con-
trariada, não tocou no presente para ver o que era, e em
verdadeiro estado colérico, apontando para a porta da saída
do salão, disse ao emissário: "VOLTE E DIGA AO SEU
SENHOR QUE EU NAO RECEBO HOMENS DE COR!"

XXX
A CAPITULAÇÃO DO SOBRADO

Mal podia então Ana Jacinta prever que Cupido tomaria de
assalto o seu sobrado e que ela capitularia.
Certa vez, alta noite, foi despertada pelo latido dos cães e
pela voz imperiosa de um homem que parecia alcoolizado.
Discutia violentamente com Maria Crioula, não em frente da
sua casa, mas no quintal dos fundos, junto à porta traseira
pela qual, duas vezes, ela fizera entrar há tempos o senhor
Bonifácio.
— Abra ou eu arrombo! O tom decisivo da voz era tal, que
não havia a menor dúvida de que suas intenções eram
realmente essas.
Aquela voz deu-lhe um arrepio.
Era mesmo ele. Era Sampaio que vinha afinal.
— Acenda a sala de visitas e deixe o senhor entrar, disse,
mal contendo a emoção, a Maria Crioula, que tremia de
medo, enquanto corria à penteadeira para por um pouco de
ordem no desalinho de mulher despertada em pleno sono.
Mas Sampaio não deu tempo para nada nem tampouco
obedeceu à ordem de ir para a sala.
Ela ouviu o ranger do portão de ferro que se abria, e logo
após os passos rápidos e decididos do intruso na escada de
madeira e eis a figura impulsiva e dominadora do seu antigo
noivo!
O coração de Ana Jacinta batia descompassadamente.
Com a entrada de Sampaio, os cães pararam de latir e Maria
Crioula reconhecendo-o, retirou-se.
A casa tornava ao silêncio, em meio à quietude da noite que
findava. O silêncio também invadiu o amplo dormitório de
Ana Jacinta, onde Sampaio estacou à porta da entrada,
arfando, o porte agigantado pela luz mortiça de uma
lamparina que agonizava, em estalinhos secos, queimando as
últimas gotas de azeite que flutuavam ainda sobre a água de
um copo.
Ela via-o, embora de costas, sentada diante do toucador, pelo
reflexo do espelho. Tremia-lhe a mão que, empunhando o
pente ainda não erguera, tão desfalecida estava, sobre os
cabelos revoltos.
O silêncio pesava mais que a escuridão, pois a pequena
chama da lamparina se foi, num último estalido, enquanto
ela e ele, pareciam ter medo de quebrar o feitiço daqueles
momentos que se prolongavam tensos.
Ana Jacinta, porém, conseguiu dominar-se primeiro, e
esforçando-se por dar um tom natural à voz dirigiu-lhe uma
saudação:
— Boa noite, Sampaio!
As trevas não permitiram que ele percebesse a emoção que a
banalidade da frase escondia e, julgando que ela o recebia
como a qualquer outro de rotina, talvez até com indiferença,
cego de ciúme, deixou escapar seu sentimento confuso de
ódio e amor numa imprecação e num insulto:
— Diga antes, noite maldita! Boa noite? Se for boa para
você, sua cadela ingrata!
A frase brutal doeu-lhe como uma chibatada e foi só então
que ela bendisse a escuridão protetora, pois chorava,
vencida, lágrimas de vergonha, tristeza e arrependimento.
Com um fiapo de voz incerta, em que já se infiltrava um
princípio de revolta, ela murmurou:
— Então foi só para me dizer isso que você me despertou,
Sampaio?
E ele, veemente:
— Não, não foi só para isso! Na verdade eu nem tenho nada
para lhe dizer! Vim porque eu também quero, ou você pensa
que vou fazer fila com os estrangeiros idiotas que vão ao
Jatobá? Eles podem, não é? Então eu também posso! Eles
pagam? Então também posso pagar!
Sem mais força para fingir, chegou então a vez dela explodir:
— Há anos que o amo, Sampaio! Até há poucos minutos,
sua presença aqui deu-me a esperança da maior felicidade de
minha vida, mas, depois do que você disse... você, não!
Nunca!
E como ele silenciasse, ela continuou, desesperada, entre
soluços:
— Que espécie de homem é você, afinal, que chega sempre
atrasado? Por que me deixou só quando o Ouvidor apareceu?
Por que não me foi buscar em Paracatu? Por que não me
ajudou quando voltei para cá?
— Já sei, já sei o que vai dizer: que está casado, não é? Tem
mulher e tem filhos! Mas então, volte para eles, canalha, não
os abandone agora, como você me abandonou antes. Volte,
e não venha, como um ladrão, na calada da noite, roubar o
meu sossego. Volte, covarde! deixe-me em paz, viver minha
vida. j vida de mulher desgraçada e infeliz. Volte! Voltei
O tempo foi passando e, sem parar, eles se foram insultando,
ofendendo, torturando, à procura de frases, que mais
ferissem, para dar uma aparência de ódio ao amor que lhes
consumia.
Enquanto isso, a noite escorria e as primeiras claridades
permitiam que se enxergassem por entre as lágrimas, pois
ambos já tinham os olhos grossos de tanto chorar.
Foi bastante que se vissem para que esses dois entes,
famintos de ternura, transformassem as expressões de raiva
com que se fustigavam impiedosamente.
Ficaram como duas crianças grandes sem saber como acabar
uma briga sem convicção, até que o dia que raiava
encarregou-se de fazer triunfar o amor.
Antes de tomá-la nos braços, confessando-se vencido, ele
ajoelhou-se aos seus pés e cobrindo-lhe as mãos de beijos,
confiou-lhe a dor de havê-la perdido. A brutalidade da sua
atitude, nascera do ciúme. É que ele pensara que ela o banira
do pensamento para sempre e isso era demais para que
pudesse suportar, mas agora sentia que ela ainda lhe
guardava um pouco da velha estima. Estava regiamente
compensado. Arrependido das lágrimas que provocara, nada
mais rogava senão que ela o tivesse como amigo e protetor.
Ainda de joelhos, implorava que não o deixasse partir sem
uma palavra de perdão.
E a pobre moça raptada, violentada, maltratada pela vida e
pelos homens, deu-lhe não só o perdão que ele implorava,
como o reteve para oferecer-lhe todo o amor que lhe ia
n'alma, aquele amor que ela guardara intacto e virgem das
torpezas do Ouvidor e dos deboches do Jatobá.
Para eles a descoberta de que ainda se amavam,
surpreendeu-os como um bálsamo divino. Tiveram a ilusão
de que o tempo parara desde o último e casto encontro,
antes da chegada do grande Ouvidor.
E foi só então que Ana Jacinta de São José provou, na
claridade incerta de uma gloriosa madrugada, a emoção
inexprimível de um amor verdadeiramente consentido.

XXXI
MATERNIDADE

Ana Jacinta teve, depois disso, uma filha sem pai ostensivo.
Chamou-a Teresa Tomásia de Jesus.
Hildebrando de Araujo Pontes escreveu... "aos trinta e seis
anos D. Beija era mãe de duas encantadoras jovens, frutos
anônimos de seu amor livre as quais, pela sua irrepreensível
conduta moral, foram desposadas por dois homens
importantes da sociedade araxa-ense. Um foi o coronel
Fortunato José da Silva Botelho que, por cinqüenta anos,
dominou despótica e prepotentemente a politica daquela vila
onde e em cujo município pretendeu proclamar a República
do Araxá anexando-lhe os municípios de Patrocínio e de
Bagagem; o outro foi Clementino Borges, residente na
Bagagem". Teresa Tomásia foi a primeira.

Capítulo XXXII
OUTRA DESILUSÃO

A vida continuava.
Afinal, o encontro de Sampaio com Ana Jacinta não foi,
nem podia ser uma solução, nem para ele, nem para ela.
A ilusão maravilhosa da felicidade teve duração efêmera.
O gênio de Sampaio, impulsivo e autoritário, embora
encontrasse compreensão pelo muito amor que lhe
dedicava, ia deixando um rastro de mal-estar e amargura.
Ele se habituara a encarar o sobrado de Dona Beija na praça
principal do Arraial, como sucursal de sua casa e não levava
em conta um complexo de circunstâncias que a realidade
impunha. Em dias indeterminados e á horas incertas exigia
que ela o recebesse.
A situação familiar dele complicou-se, e para esquecê-la, deu
para beber. Por outro lado, os encontros com Ana Jacinta às
vezes eram penosos.
Não tardou a que ele impusesse o fechamento da chácara do
Jatobá. Ela capitulou a princípio, mas depois entrou a resistir.
Entendia ser direito dela, nessa altura da vida, não mais se
sujeitar ao domínio de quem quer que fosse. Além disso
Sampaio era casado e não seria maior o escândalo se ele
sustentasse a concubina a poucos passos do seu lar?
Ele relutou mas teve que acabar concordando.
O certo é que aquele homem violento, estava com a alma
dilacerada entre duas mulheres: a esposa e a antiga
namorada, tornada sua amante, com filhos legítimos da
primeira e uma filha adulterina da segunda.
Por sua vez, Ana Jacinta rapidamente perdeu a ilusão de que
seu namoro de moça tivera um coroamento feliz.
Ela chegou mesmo a se arrepender da fraqueza que a
dominou naquela madrugada, permitindo a permanência de
Sampaio no sobrado. Ele quebrara o ritmo de sua vida já
naturalmente complicada, e que agora se tornava ainda mais
difícil de recompor.
Sofreu um hiato, o seu negócio do Jatobá.
Nova mobilização de energias e nova crise de consciência
para abafar escrúpulos, fizeram-na reabrir a casa de diversão.
Recomeçou a enriquecer.


XXXIII
O PRINCIPAL PARCEIRO

Mas então, perguntará o leitor, essa pobre moça nunca teve
um amor real a lhe encher a vida?
Ela teve sim outro episódio de amor tão forte, ou quiçá
maior que o episódio Sampaio.
Talvez a palavra episódio esteja mal aplicada. Sampaio foi
mais que um episódio. Ele foi, sem dúvida, o parceiro
marcante da vida de Dona Beija e a força de sua presença
projetar-se-ia na pessoa da filha bastarda, Teresa Tomásia de
Jesus.
Completemos, porém, a história de Sampaio com Ana
Jacinta.

XXXIV
"INTERMEZZO"

Sampaio, ao fim de algum tempo, pareceu conformado ou
pelo menos resignado, com o arranjo imposto por Dona
Beija.
Não fora assim, como teria perdurado o concubinato por
mais de dez anos?
Com a fortuna que aumentava, o prestigio da mulher
cresceu. Ela, que a principio era apontada como a enjeitada
do Ouvidor, impusera-se chegando a dominar o meio hostil.
Para vencer, empregou as mesmas armas com que a
agrediram. Assim, decisão e cinismo anularam os efeitos da
hipocrisia dos que a queriam isolada.
Aquela pobre moça, a quem as senhoras do Araxá a
princípio negaram a mão amiga, quando ela mais precisava
de amparo, isto é, quando a supunham abandonada à sua
sorte, marcada pelo pecdo e tendo como futuro, apenas a
sarjeta da prostituição, constatavam agora com raiva
impotente, que ela transformara a sarjeta num canal de ouro;
que eia organizara o pecado em negócio ostensivo e
dominava o ambiente de tal maneira que, em poucos anos,
passou a representar uma força política de primeira
grandeza, que se irradiava para muito além do Triângulo
Mineiro.
Com que arte, com que graça, com que finura sabia agirl As
festas do Jatobá nunca descambaram para o deboche
orgíaco. Havia liberdade e alegria, é fato, entre os
freqüentadores, mas as reuniões não terminavam em
tumulto, com tiros, facadas, bebedeira e polícia, como
acontecia, repetidamente, nas chácaras da Josefa e da
Candinha. Os fregueses sabiam que, para não serem
excluídos, definitivamente do Jatobá, tinham que se ater às
regras da casa, como senhores realmente civilizados e não
brutamontes rurais.
O Jatobá era uma colmeia e Dona Beija a rainha. Quem hão
pudesse seguir o vôo da rainha, paciência, que se
conformasse com o rol de pagador. Se não quisesse, que
desaparecesse ou procurasse outras chácaras mais acessíveis.
Assim, por paradoxal que isso pareça, a chácara do Jatobá foi
tomando um aspecto de dignidade incompatível, aliás, com
a última parte do programa, isto é, aquela que ocorria depois
das quatro e meia da tarde, quando Dona Beija queria ou
julgava conveniente reter algum dos convivas.
Saberia a esperta sertaneja que repetia naqueles sertões a
façanha das heteras atenienses, em torno de quem grandes
homens, muitas vezes, moldaram a história da Antigüidade?
Soubesse ou não, o fato é que Dona Beija conviveu com a
gente de prol da época, da grande zona agropecuária
brasileira de Minas, São Paulo e Goiás, quando não atraia os
que vinham até de mais longe, ou seja, da Província Baiana e
até mesmo da própria Corte.
E esses homens de prol, que começaram por simples amor à
aventura a fazer esporádicas visitas à chácara do Jatobá,
acabaram por respeitar os conselhos daquela mulher inculta,
porém talentosa e que aprendera na escola dura do
sofrimento a governar seus semelhantes.
Assim, os salões do sobrado de Ana Jacinta, antes
hermeticamente cerrados, na grande Praça central do Araxá,
já se abriam para recepções faustosas, onde se fazia boa
música e onde não faltavam representantes do governo e
maiorais dos partidos políticos.
Oficiosamente a chácara do Jatobá passava por ser apenas a
residência de repouso da Dona Beija junto à fonte e da
árvore secular que até hoje lhe guardam o nome poético.
— E as senhoras também iam às recepções do sobrado?
Perguntará provavelmente o leitor.
Claro que sim. Acompanhavam, resmungando, os seus
amigos realçando em sorrisos amarelos a lembrança do
esterco que elas envia desta vez, de presente a Dona Beija.
De uma feita, como lhes minguasse o assunto, gabaran as
flores do jardim. Dona Beija respondeu-lhes, do meio do
salão onde se encontrava, dirigindo-se significativamente a
Dona Genoveva, que agora, não tinha outro remédio senão
o de freqüentar também a sua casa:
— É curioso, senhoras, quando aqui cheguei a terra do meu
jardim era estéril e nada ali produzia, mas Dona Genoveva
teve a bondade de enviar-me um pouco do adubo de seu
curral e, desde então, como por encanto, as flores que eram
poucas, ficaram abundantes e mais belas.
Seu Bonifácio tossiu, para esconder o nervoso. Dona
Genoveva roxeou de raiva e as senhoras que contribuíram
para o maldoso presente e que se lembravam de como ele
fora oferecido, batiam em rápidos cliques-cliques os leques
sobre os bustos estofados e arfantes lançados para o alto por
espartilhos que lhes comprimia a cintura como varas de
litores romanos.
— Por que não nos convida para um passeio em sua
chácara, minha cara senhora?
Dona Beija olhou para Dona Idalina, a petulante,
interlocutora e adivinhando-lhe a maldade da pergunta,
respondeu brejeira:
— Senhora, corre por aí uma lenda. Diz-se que naquela
chácara há uma fonte proibida que vem fundo, das
entranhas da Terra, onde habita o Espírito do Mal. Por isso,
diz-se ainda que quem lhe bebe, ou mesmo quem lhe toca, a
água azul e cristalina, sofre logo seus efeitos perturbadores.
Se for homem, torna-se vingativo e mau, e se for mulher...
torna-se pecadora. Por que haveria eu então de expor, Dona
Idalina, sua beleza e sua virtude ao feitiço da fonte maléfica?
Como Dona Idalina não era bela, nem virtuosa, esboçou,
como resposta, um sorriso que mais parecia um ricto filho
de sua maldade espicaçada.
Foi para um canto do salão, onde já se encontrava Dona
Genoveva, que se mordia de despeito impotente, e que
sussurrava palavras de fel, à senhora do Presidente da
Câmara.
— Para que foi a senhora falar no Jatobá, Dona Idalina? —
perguntou, irritada.
— Para que ela ato pensasse que nos nlo sabíamos!
— O Jatobá está aqui mesmo, sua tola — explodiu Dona
Genoveva, perdendo a cautela no falar. Quem nao sabe que
esta casa tem duas entradas? É pela dos fundos que o senhor
Sampaio vem todas as quartas-feiras. Pouca vergonha! Não é
à toa que a Aninha adoeceu e não fica boa. De tristeza nin-
guém se cura! E agora parece que já não é mais o senhor
Sampaio o predileto. Ouvi dizer que o Joãozinho também
tem a chave dos fundos. Se um dia eles se encontram por
aqui é capaz de haver sangue! Pelo jeito a Beija não se dará
brevemente mais ao trabalho de ir ao Jatobá! Receberá seus
admiradores aqui mesmo, debaixo de nossos narizes
enquanto os idiotas dos nossos maridos lhe fazem
reverências e ainda nos obrigam a lhe fazer salamaleques!
Como os homens são vaidosos e tolos, minha filha!
Dona Genoveva, que se gabava de tudo saber, só não sabia
que fora o seu marido o primeiro senhor a'inaugurar a porta
traseira como passagem secreta!
Enquanto isso a escrava Delfina trouxe uma bandeja
carregada de saborosos refrescos de maracujá.
Acompanhava-a Martinho, seu marido, com pratos de
biscoitos e de doces de coco e de ovo.
— Senhoras, disse Dona Beija — virándole para as visitas —
em homenagem à Dona Idalina quebrei agora o feitiço da
Fonte Azul! A água desses refrescos trouxe-a hoje da Fonte
do Jatobá. Portanto, quando quiserem me dar a honra de
uma visita à chácara, combinem com seus maridos, que terei
muito prazer em recebe-las. Já neste instante, a água
enfeitiçada se reflete em seus olhos, minhas amigas, num
estranho fulgor!
— Eu nao acredito em bruxarias! berrou, possessa, Dona
Genoveva.
— Nem eu, minha amiga, respondeu rindo Dona Beija. Se
acreditasse nlo poria em risco tantas virtudes!
Os maridos intervieram rapidamente na convena, que estava
a ponto de se azedar, e não levaram as esposas ao Jatobá por
dois poderosos motivos: primeiro, porque não deviam expô-
las ao ambiente equívoco da chácara; e, segundo, porque
não seriam eles que as deixariam quebrar o encanto
misterioso daquele refúgio deliciosamente proibido.

XXXV
RENÚNCIA

A frivolidade e a excitação daquele ambiente iriam sofrer
súbita e violenta mutação. Uma tragédia se aproximava, da
qual Sampaio seria a vítima.
O Jatobá entrara em férias por algum tempo. O pretexto
eram obras, remodelações, pinturas e a captação das águas da
Fonte Azul que estudos futuros revelaram ser radioativas.
A realidade, porém, era outra: Ana Jacinta engravidara outra
vez.
Em seu egoísmo, Sampaio a nada atendia. Em vão rogou-lhe
Dona Beija que espaçasse as visitas, que respeitasse a
delicadeza do seu estado. Precisava de calma e sossego para
receber o novo ser que se formava.
No intimo ela estava decidida a mudar de vida. Sempre
detestara o papel que representava e sua consciência nunca
lhe dera repouso. Cristã e devota, ela reconhecia o pecado
mortal em que incorria.
As circunstâncias explicavam sua atitude ante a vida, mas
explicar não é justificar, e ela não se justificava.
Em tudo isso, o que mais a aborrecia era a participação a que
se deixara arrastar no adultério de Sampaio.
Como de costume, na calada da noite, ao receber certa vez a
visita de Sampaio, ela tentou dizer-lhe tudo o que lhe pesava
na alma. Propôs-lhe, até, que se ele renunciasse a ela, por
sua vez ela se comprometeria a mudar radicalmente de vida.
Venderia o Jatobá e dedicar-se-ia exclusivamente a Teresa
Tomásia, a filha que Deus lhes dera e ao outro ser que estava
por nascer.
Enriquecera, não precisava da ajuda material dele, nem de
ninguém, para levar avante tal propósito, mas precisava, sim,
e muito, de sua amizade e compreensão, para a dupla
renúncia que ela propunha.
Sampaio escondeu a surpresa e o desapontamento, numa
atitude de aparente compreensão. Aproveitou até a ocasião,
para dizer, também, que a vida que levava estava longe de
agradar-lhe. Se ele soubesse que ela voltaria para o Araxá não
teria casado com Aninha, que era aliás, uma santa mulher, a
quem cie sempre se incriminava de magoar. Mas estava
certo então de haver perdido Ana Jacinta para sempre.
Diziam no Araxá que o Ouvidor a levara para a Corte,
quando, inesperadamente, ei-la de volta. Ela deveria saber
que ele a acolheria assim mesmo, desafiando as más línguas,
passando uma esponja sobre o passado e oferecendo-lhe até
seu nome, se o quisesse, e ei-los, ali, juntos, mais uma vez,
pai e mãe de uma filha e, no entanto, era ele o mais infeliz
dos dois, pois nem sequer poderia levar Teresa Tomásia em
público e chamá-la de filha.
Comoveu-se. Havia lágrimas em seus olhos a dizer tudo isso.
Ela também. Ana Jacinta jurou que devotaria o resto de sua
vida a Teresa Tomásia e que ele não tivesse cuidado, pois a
criança não se envergonharia da mãe, nem viria a ter igual
futuro.
Não mentia e ele sentiu-lhe a sinceridade quando, ao
despedir-se, beijou-lhe as faces úmidas.
Isso ocorrera numa noite de inverno. A lua já em
minguante, pouco clareava. Sampaio, pela primeira vez em
muitos anos, atravessou a praça em meio, sem as coleantes
cautelas habituais para tentar não chamar a atenção.
Trazia a cabeça em fogo. Não estava, positivamente
preparado para receber de Ana Jacinta, e logo naquela noite,
em que acalentava outros propósitos, um inesperado convite
à renuncia.
Renunciar a ela?
Não, por todos os demônios!
Mas então, por que, aparentemente, concordara, deixando-a
com uma impressão de aquiescência? Por quê?
Porque pensara, evidentemente, que se tratava de capricho
passageiro de mulher grávida. Todas ficam mais ou menos
sentimentais nessa fase com medo de morrer de parto.
Mas por que se metera, também, a fazer confidências e a
falar com ela sobre a pobre da Aninha?
Uma rajada de vento frio fustigou-lhe as faces enquanto as
idéias afloravam desconexas, num remoinho torturante e a
garganta seca pedia um trago de bebida forte.
Rumou para o botequim do seu Joaquim. Estava fechado.
Fechado? Pois que se abrisse. Para que serve um botequim
fechado? Botequim é para estar aberto, sobretudo, à noite.
Com os punhos, bateu com violência na tosca porta de
peroba. O ruído trouxe logo à janela seu Joaquim de vela na
mão, camisola de lã e um çapüz a cobrir-lhe metade da
careca relqzente.
— Abra essa porcaria, ordenou Sampaio.
— Pois não, seu Sampaio, obedeceu temeroso e servil o
botequineiro.
A chave rangeu na tranca de ferro, mas antes que a porta se
abrisse, Sampaio escancarou-a com um pontapé. Seu
Joaquim recuou, amedrontado.
— Vou apanhar um cálice, seu Sampaio.
Sampaio empunhou a garrafa de aguardente e quebrando o
gargalo na borda do balcão, sorveu avidamente a bebida em
largo trago e levando o resto da garrafa partida, marchou
decidido em direção novamente ao sobrado da Beija.
A mulher do Joaquim veio dos fundos tiritando,
estremunhando e envolta num velho chalé sebento.
— Que confusão é esta? — perguntou.
— É seu Sampaio que queria beber a estas horas da noite.
Parecia um doido.
— Ora, ora, retrucou a mulher, - num dar de ombros, de
quem muito entendeu.
— Ora, ora, o quê, mulher?
— É isso mesmo. Cachaça é remédio. Ele está assim desde
que seu Joãozinho voltou e a Beija se meteu com o outro
também.
— Será?
A promessa de renúncia por parte de Sampaio não subsistiu
meia horal O tempo de atravessar a praça, tomar um gole e
voltar ao sobrado amarelo.

XXXVI
JOÃOZINHO

Parece que a causa de tudo isso, e muito mais, era mesmo o
Joãozinho.
Joãozinho era o apelido caseiro que se transportara do lar
para os vizinhos, e dos vizinhos para todo o Arraial, de um
menino que um dia voltaria ao Araxá paterno, laureado em
Ciências Jurídicas pela Academia de Coimbra e com o título,
naquele tempo raro, de doutor.
Era, em suma, João Carneiro de Mendonça, filho de família
opulenta e fidalga residente: no Araxá.
"Jovem, esbelto e insinuante, portador de alta linhagem,
com sangue nobre, nenhuma dificuldade encontrou, por
meio de emissário para obter audiência de Dona Beija",
conta Sebastião de Affonseca e Silva.
João despertou em Ana Jacinta forte sentimento. Algo de
novo, de imponderável, de indefinível, afinidade que
encontrava talvez explicação no sangue fidalgo do seu lado
paterno.
Que surpresa agradável para o jovem, aquele encontro em
meio tão selvagem com uma criatura de espírito, de hábitos
requintados e de beleza estonteante como Dona Beija, e para
ela, que encantamento, o convívio de um homem
inteligente e culto, que lhe falava sem afetação, de um modo
diferente e novo, que saciava sua curiosidade relatando
coisas que se passavam fora de seu círculo restrito, que a
galanteava como um gentil-homem e que, mesmo quando
aturdido em seus transportes amorosos, nunca deixava de
tratá-la como grande senhora.
Quão diferente esse homem — e ela os conhecia bem —
dos que a cortejavam no Jatobá. Sobretudo, que contraste
entre esse ser civilizado e a rusticidade descontrolada de
Sampaio!
Dizem as crônicas da época, e repetem os estudiosos da vida
de Dona Beija, que o doutor João Carneiro de Mendonça
também teve papel marcante na vida de Ana Jacinta de São
José.
Durante ou depois de sua ligação com Sampaio?
Foi ele, ao que dizem os narradores da época, que provocou
a queda do primeiro nas graças de Dona Beija. O certo é que
Sampaio e João eram dois homens marcantes, cada um no
seu gênero e com personalidades bem diferentes e que se
afirmavam demasiadamente para caberem, ao mesmo
tempo, na vida de uma só mulher, mesmo que ela fosse
senhora de hábitos livres, de vivacidade arguta e grande
prática para lidar com homens temperamentais.
Ana Jacinta era inteligente demais para não sentir que nesse
"menage à trois" alguém estava sobrando, e para evitar mal
maior, propôs a Sampaio, lealmente, renúncia recíproca à
vida pecaminosa que levavam.
Oferecia, também, por seu lado, renunciar de vez à vida
mundana. Jurara pela felicidade de Teresa Tomásia e do ser
que se formava em suas entranhas e fizera-o com
sinceridade.
Sampaio não era, porém, homem para capitular, mesmo sob
a forma de renúncia. Renunciar, e mormente agora em que
a simples presença do rival vinha reabrir as feridas de um
ciúme sempre latente?
Acabar por quê? O mal estava feito. Renúncia? Regeneração?
História de padres para mulheres velhasl Ana Jacinta queria
sem duvida descartar-se dele para que lhe sucedesse seu
novo encanto, o senhor doutor João Carneiro de Mendonça!
Pois enganava-se, mulher! Não seria ele, Manuel Fernando
de Sampaio, que cederia seu lugar ao jovem e emproado
doutorzinho! Dar-lhe-ia uma lição de mestre!
E Sampaio que já era uma natureza intolerante passou a ficar
intolerável.

XXXVII
NASCE OUTRA MENINA

Ana Jacinta de São José teve outra filha que, como a
primeira, não teria pai ostensivo.
Chamou-a de Joana de Deus São José.
Exprimiria a coincidência do primeiro nome algum indicio
dé sua ligação com João Carneiro de Mendonça?

XXXVIII
CIÚME

O estado de espírito de Sampaio atingia as fronteiras da
demência.
Era de causar dó o desespero daquele homem roído de
ciúmes por Dona Beija. Sua vida tornou-se um inferno, e
essa angústia ele o transmitiu à família e a Ana Jacinta
também.
Passou a interferir ostensivamente então na vida de Dona.
Beija. Era só cismar com a cara de um forasteiro que ele
supusesse, certo ou errado, ter estado no Jatobá e vinha logo
um insulto, uma provocação, criando às vezes situações
impossíveis de contornar.
Perdera a noção das conveniências. Dava para entrar no
sobrado, armado, em dias incertos e a horas incertas, na
esperança de lá encontrar o rival.
Em vão Ana Jacinta implorou-lhe moderação. Em vão
contemporizou. Em vão ela cedia a ver se o acalmava. Em
vão, ela procurou serená-lo, adiando para futuro incerto seus
propósitos de encerramento da vida que levavam.
Enquanto isso o Jatobá estava em decadência, embora ela
ainda mantivesse lá, sua gente e grande parte de seus
haveres. Agora, passava os dias cuidando das filhas e as
noites aproximavam-se sempre pesadas de incertezas, pois
não saberia se Sampaio viria ou não, se estaria alcoolizado e
em que estado de espírito se encontraria.
Não havia sistema nervoso que agüentasse uma tal tensão.
Quando chegou à conclusão de que seus rogos não eram
mais atendidos, que sua força de persuasão falhara e que o
sacrifício continuado de seu corpo também nada mais
adiantava, ela tomou uma de suas habituais resoluções
definitivas.
Fez vir do Jatobá o Bugre, um canzarrão dinamarquês,
verdadeiro lupus canis, que passava o dia amarrado,
rosnando, a mostrar os dentes aos visitantes e que, à noite,
era solto para a guarda da chácara.
Com ele vieram, também, três escravos hercúleos, homens
de sua confiança , e que ela sempre mantinha a mão, no
Jatobá, uma espécie de guarda pessoal e cuja simples
presença já lhe fora por diversas vezes preciosa para amainar
os arroubos de certos visitantes inquietos e propensos a
desrespeitar as regras disciplinares da casa.
Alojou-os no sobrado, e à noite, deixou o Bugre solto, no
quintal. Como a casa tinha fachada para a praça e era
meticulosamente trancada a ferrolhos e barras, a mansão só
seria mesmo vulnerável pela parte traseira, onde um quintal
ajardinado com entrada de serviço se comunicava para um
beco de serventia pública.
Esse quintal por onde primeiro passara o senhor Bonifácio,
depois serviria de caminho a Sampaio, e agora, dizia-se
ainda, envolto-na grande capa negra dos estudantes de
Coimbra o doutor também penetrava com as devidas
cautelas, o Bugre passou a ocupar, rosnando, farejando, com
a língua pendente de sua mandíbula respeitável de mastim
feroz. Ofegante e nervoso — o animal que estava habituado
às larguezas da chácara — estranhou sua nova prisão e logo
na primeira noite estraçalhou duas galinhas que tinham por
costume dormitar empoleiradas em galho baixo de uma
goiabeira.

XXXIX
UMA CASA FECHADA

Desprevenido da presença de todo esse reforço de homens e
bichos, sem levar a sério que, ao deixar o sobrado, na
antevéspera, ela lhe fizera clara advertência:
— Sampaio, rogo-lhe, de joelhos pelo amor de nossa filha,
não nos perturbe mais, porque se você não me atender desta
vez, juro que agirei!
Mas ele voltou e bateu na porta traseira, na forma do
costume. Desta vez, porém, ninguém veio abrir. Forçou a
porta. O Bugre avançou, mordendo-lhe o braço. Os homens
vieram em seu socorro, prendendo o animal, mas
rechaçaram Sampaio. Eram ordens terminantes.
Ele esquecera, ou melhor sequer notara o tom súplice
daquele apelo de Ana Jacinta, confundindo-o com tantos
outros que em vão ela havia repetido nos últimos tempos.
Os atritos já haviam entrado de tal maneira em seus hábitos,
que ele os julgava como preliminar quase indispensável aos
arroubos que se sucediam.
Curioso fenômeno processara-se na vida daquele homem: a
bigamia passara a ser um estado quase natural e inevitável
conseqüência de mero desenrolar dos acontecimentos.
Conhecera Ana Jacinta desde menina. Com ela brincara e
brigara — porque a briga era sua especialidade — e isso,
desde a infância. Tudo era tão remoto, que nem se lembrava
de como o conhecimento se travara. Cresceram juntos,
brincando e brigando, ao evolver de duas fortes
personalidades, cuja atração mútua importava em impacto.
Com o tempo, a brincadeira infantil se foi transformando
imperceptivelmente em desejo, e as brigas da parte dele,
começavam a tomar o contorno másculo da tentativa de
domínio e posse, enquanto ela resistia, com ademanes e
faceiríces para tornar-se ainda mais cobiçada.
Iam as coisas nesse pé, e os responsáveis por ambos já
achavam que melhor seria ficassem noivos e casassem
dentro em um ano, quando, de súbito, ocorre o inesperado:
a paixão e o crime do Ouvidor.
Não foi, pois, a vida de Ana Jacinta apenas que sofreu um
hiato violento que lhe desviou o curso da existência.
Sampaio teve a sua parte.
Julgando-a perdida para sempre, condescendeu em casar
com Aninha Felizardo, aquela menina serena e boa que já o
amava há tantos anos, em silêncio, desesperançada de jamais
retê-lo, tão certa estava de não poder enfrentar o garbo e a
concorrência perturbadora de Ana Jacinta.
Mas o improvável aconteceu.
Aquilo com que Aninha tanto sonhara, mas que jamais
ousara conscientemente desejar, ou seja a supressão da rival,
veio de maneira tão completa que ela chorou a um tempo de
tristeza e felicidade.
Piedosa e boa rezava para que um Destino Todo-Poderoso
poupasse e protegesse moça raptada, mas não a ponto dela
voltar a tempo de evitar seu casamento com Sampaio!
Como seria isso possível? Por certo ela não sabia, mas não
era preciso saber, o Destino é que saberia e daria jeito
qualquer. Era bastante rezar.
Como em história de fadas, tudo aconteceu como ela queria:
sumira a rival; pouparam-lhe a vida; retiveram-na longe,
bem longe, o tempo suficiente para que seu amado a
considerasse perdida, e ele, então, tivesse tempo de reparar
nos seus grandes olhos negros, súplices de amor e se
deixasse amar na ilusão de que também amava, enquanto
que o encanto da outra se quebrasse, com a ausência, para
sempre.
Mas os anos passaram e Ana Jacinta voltou. Que importava
isso agora, após o casamento? Aninha era dessas almas puras,
voltadas para Deus e tão certa estava de que o altar
completaria, por si só o milagre do amor, que nunca
imaginou pudesse seu esposo desejar outra mulher senão
aquela com a qual se ligara pelo sacramento do matrimônio.
Tão certa estava disso, que ela mesmo pediu a Sampaio que a
levasse à presença de Ana Jacinta. Que fossem visitá-la,
porque, coitada, que culpa tivera da paixão que inspirara ao
Ouvidor?
Sua mãe, porém, que com eles morava e que mantinha
grande autoridade sobre o jovem casal, proibiu-lhes
terminantemente que tal fizessem.
— Tinha graça, minha filha, você, uma senhora casada, a
entreter relações com uma mulher perdida. Que belo
exemplo para os seus futuros filhos e o que não diriam
nossos amigos?
— Eia não teve culpa, Mamãel
— Bobageml Isso é o que os homens dizem. Se você tivesse
minha idade e minha experiência, você saberia que mulher
raptada que volta, bonita, corada e pimpona é porque gostou
do rapto ou melhor, é porque se deixou raptar!
Foi por isso que Aninha não procurou Ana Jacinta.
As duas Anas não se encontraram, e quem sabe se, em
franco entendimento, de mulher para mulher, não se
houvessem entendido e respeitado?
Quanto a Sampaio, já sabemos o que houve. O rapto da
namorada deixara-o desarvorado a principio. Depois, num
desespero de louco, foi até Paracatu tentar recuperá-la,
disposto mesmo a eliminar o Ouvidor. Mas as dificuldades
para levar a cabo o seu intento mal planejado eram tais, que
se deixou ficar pelas redondezas a ver se encontrava um
meio de falar com Ana Jacinta.
Ela e o Ouvidor estavam cercados de tanta gente que não
seria possível aproximar-se dela sem se deixar reconhecer.
Esperou, pois, a vaquejada quando ela aparecia em público.
Primeiro ele faria com que ela o percebesse e, depois,
tentaria falar-lhe a sós.
De fato ela apareceu na hora aprazada, no palanque de
honra, ao lado do Ouvidor. Estonteantemente bela, em seu
vestido lilás, com um chapéu de plumas rosas a cair sobre o
ombro esquerdo, misturando-se com seus cachos louros, em
maravilhosa harmonia cromática.
Ela pisou o tablado do palanque com tanto garbo, fustigara os
presentes com um olhar de tal maneira orgulhoso e
desafiador, que süa presença dominou instantaneamente
todos, inclusive o próprio Ouvidor, que a seu lado parecia
mais um velho escudeiro que mesmo seu amo e senhor.
Aquela aparência de Eva triunfadora feriu Sampaio em
cheio. Ele sentiu-se mesquinho, pueril, impotente.
Galopara do Araxá a Paracatu com a alma de um herói que
vai libertar a amada prisioneira, e o quadro que se lhe
deparou destruiu suas ilusões.
Prisioneira, ela? Com aquele jeito? Com aquele vestido que
ele nunca pensou houvesse igual de tão bonito que era? Com
aquele aspecto de quem tem tudo o que quer e faz tudo o
que lhe apetece? E o Ouvidor? Seria ele como o
dragão da lenda que rouba a princesa, aquele cara de pobre
diabo que mais parecia um cãozinho amarrado à saia da
Dona Beija?
— Raptor? Aquele velho tinha lá cara de raptar alguém?
Seria dele esse pensamento?
Pensou que fosse mas enganara-se. Quem o emitira fora
Dona Genoveva, numa visita feita à sua velha tia, para falar,
falar como sempre, sobre o grande assunto que abalara o
Araxá. Ouvira atrás da porta, ao mesmo tempo atraído e
revoltado, esse estranho diálogo:
— Ah, Dona Genoveva, quanta desgraça junta nesses
últimos dias! Enfim parece que há males que vêm para o
bem!
— Como assim, Dona Apolinária?
— A senhora sabe que o noivado do meu sobrinho com
Ana Jacinta não era do agrado do meu irmão. Aquela
menina tem um jeito tão desenvolto que não nos dá sossego
há muito tempo. Briga com o noivo de manhã à noite e
quando parece que o noivado vai se romper, vê-se que ele
está maluco por ela. Parece incrível que o Manoel Fernando,
um rapaz de tanta vontade, de gênio tão duro aturasse aquela
moça tão mal-educada!
— Não seria feitiço, Dona Apolinária?
— Claro que é feitiço. Aquilo é bruxaria que ela herdou da
mãe Índia!
— A senhora acredita mesmo nesse negócio de rapto do
Ouvidor?
— Tenho minhas dúvidas, Dona Genoveva, mas é isso que
meu irmão me conta.
— Seu irmão é como meu marido. Os homens têm muito
boa fé, e quando se trata de mulheres, ficam logo bobos. Não
vê logo que aquilo não podia ter acontecido assim? Tudo
estava preparado, Dona Apolinária! Tudo combinado! Ela
apareceu é ele apanhou-a, porque ela quis! Ela fingiu que
fugia para salvar as aparências e o Ouvidor que tem cara de
burro fez aquele papelão! O raptado foi ele, Dona Apolinária!
— Será?
— Claro! Quem teve mais a perder?, Ele ou ela?
— Foi feitiço!
— Se foi! Dizem que ela está num luxo desbragado em
Paracatu! Está entrando no dinheiro do Ouvidor e já
mandou mais de cem mil-réis para os tios!
— Tanto dinheiro assim?
— O fato é que a família dela ficou bem caladinha e nós é
que estamos nos ralando. Falam até que o Araxá vai voltar
para Minas por causa desse crime! Já pensou nisso, Dona
Apolinária? Se for verdade, ai de nós! Vão recomeçar outra
vez os impostos. É só para isso que Minas se lembra de nós!
Vamos ficar pobres, Dona Apolinária!
— Que horror, Dona Genoveval Que tempo difícil esse em
que estamos vivendo. Não há mais sossego!
— Pois é. A senhora chegou a ver o Ouvidor?
— Só quando ele passou na rua com a comitiva. Vi-o da
janela.
— E a senhora achou que aquele velho tinha lá cara de
raptar alguém? O veneno daquela conversa infiltrou-se
fundo e ficou como que esquecido nos refolhos da memória
de Sampaio, mas foi bastante ver Ana Jacinta em Paracatu do
Príncipe, e vê-la a distribuir sorrisos, fulgurante e
dominadora como uma rainha glorificada, e ele sentiu seu
orgulho esmigalhado e a frase da dona Genoveva com a
dúvida torturante que ela encerrava, veio à tona, sem que
ele pudesse, na angústia que sentia, descobrir-lhe a origem
maldosa. Teria sido rapto ou uma farsa?
— Ali estava a resposta cruel, pensou ele: era uma farsa,
sem a menor dúvida! Ela preferira o Ouvidor apesar de
velho, pelas pompas que lhe dava.
Voltou logo para o Araxá.
A primeira pessoa que o acaso lhe pôs à frente foi Aninha
Felizardo. Vinha saindo da Igreja, o rosário entre os dedos.
— Você esteve com ela? Perguntou a moça timidamente.
— Não saí do Araxá para procurar ninguém! Fui comprar
cavalos em Paracatu, porque é lá que se vendem cavalos. É
só, e ninguém tem nada com isso.
— Mas ela é sua noiva, Sampaio, disse Aninha, com seus
grandes olhos negros já cheios d'água, pelo tom ríspido da
resposta.
— Minha noiva é você, sua tola — disse ele num dos seus
habituais rompantes e sem esperar resposta, fustigou a
montaria, partindo a galope.

XX
DUAS MULHERES CHAMADAS ANA

Ana Felizarda e Ana Jacinta de São José foram as duas
mulheres da vida de Sampaio. A primeira deu-lhe um lar
fecundo e calmo. A segunda trouxe-lhe a aventura e a
excitação capazes de quebrar a rotina de uma existência
descolorida.
Tal como as circunstâncias se apresentavam, Sampaio
precisou de ambas.
O rapto desviou, sem dúvida, o curso da vida de Ana Jacinta,
mas ele, talvez, fosse a maior vitima, pois quebrara-se-lhe,
para sempre, a possibilidade da unidade amorosa e isso levá-
lo-ia à destruição.
A calma e a aventurai Como é difícil encontrar isso numa só
mulher! A calma que se não transforme em monotonia e a
aventura que não descambe para o delírio!
Por isso, Sampaio amou a ambas. Primeiro, sucessivamente,
depois somadas. Foi preciso reuni-las para que aquela
criatura sôfrega, inquieta e ardente tivesse a ilusão completa
da felicidade.
Não era o caso vulgar do homem com a esposa e a amante.
Ele quis reuni-las, numa bigamia do bom e velho estilo
bíblico-patriarcal.
Aninha Felizardo resignou-se à sua sorte, mas Ana Jacinta
não! Ela perdera, ou melhor, todas as ilusões amorosas da
mocidade lhe foram arrancadas, com tal brutalidade, que não
mais seria possível narcotizar-se com romantismos e, além
disso, ela não era mulher para sujeitar-se ao papel de
segunda dama, fosse li de quem fosse. Por sua vez Sampaio
não era homem para admitir concorrentes.

XLI
FRUSTRAÇÃO

Na manhã seguinte à visita frustrada de Sampaio graças à
vigilância agressiva do Bugre, Ana Jacinta preparou-se para
tornar ao Jatobá.
Desta vez pretendia ficar uns dias, umas semanas talvez, mas
seu objetivo era só repousar.
Queria passar uns tempos longe do bulício do Arraial, sem
ver ninguém, só com as duas filhas e os fâmulos de
confiança. Trancar-se-ia na chácara. Não receberia visita
alguma. Banhos matinais com a lama das algas negras, no
lago de água morna seguidos de uma boa ducha da Cascata
Azul, restituir-lhe-iam, sem dúvida, as cores às faces
empalidecidas e acalmariam a tensão de seus nervos
permanentemente solicitados pela presença inquieta e
perturbadora de Sampaio.
Sampaio... Dessa vez era mesmo o fim. Ela não permitiria
que ele lhe perturbasse mais a existência. Nem ele, nem
mais ninguém!
Por essas horas ele já devia estar convencido de que tudo
que os havia ligado pertencia ao passado. Depois era só
resolver delicadamente seu caso com Joãozinho, mas isso
com mais vagar.
Parece que ela ainda queria bem a esse seu último achado
amoroso. Tão civilizado, tão amigo, tão preocupado com o
futuro da filha, sempre pronto à renúncia e tão diferente de
Sampaio que parecia colocar seu egoísmo na frente de tudo,
até mesmo esquecendo por vezes seus deveres para com
Teresa Tomásia.
O rompimento com Joio Carneiro de Mendonça ficaria para
mais tarde — Deus sabe quando! — e depois, só almejava
um resto de vida pacato, de matrona rica, a fazer caridade,
muita caridade e a dar às filhas, com piedade religiosa, um
ambiente de segurança e moralidade, para que elas não
corressem o risco de vir a sofrer, no futuro, as vicissitudes
que mancharam sua vida turbulenta.
Estava tudo pronto para a curta viagem. Os cavalos selados,
para ela e Severina. Um escravo acompanhá-las-ia com dois
burros, os jacas cheios de pertences para a mudança
provisória. À tarde, completados os arranjos do Jatobá,
voltaria para buscar as meninas.
Assim planejava Ana Jacinta as coisas para o presente e o
futuro, e depois de dar a Maria Crioula as últimas
recomendações com relação às meninas, deixou o sobrado
da praça e rumou para a chácara.
A pequena comitiva pôs-se lentamente em marcha e pouco
depois perdia o Arraial de vista na curva de uma colina.
Era um dia de outono, claro e ventoso. As nuvens que, em
geral, vinham do sul, voltavam correndo, rechaçadas por um
noroeste morno, ora acumulando-se em grandes nimbos,
escondendo o sol, ora fragmentando-se. Era a época dos
primeiros roçados do ano, para as plantações de milho e os
tratos da terra revolvida, exalavam dos vales e das várzeas
um cheiro forte de humo fértil, que as chuvas do verão
haviam ali depositado em suas continuas enxurradas.
Entre o morro e a pequena ribanceira a estrada se estreitava
tanto que mal dava largura para um carro de bois passar.
Nem mesmo estrada podia chamar-se s tal caminho que
mais se assemelhava a uma picada, invadida de mato por
todos os lados.
Saindo de trás de uma moita e de jeito a barrar-lhe o
caminho surgiu um homem. Antes mesmo de reparar-lhe
nas feições, Ana Jacinta logo adivinhou num sobressalto
quem era: Sampaiol
Ele aproximou-se a passos lentos. A fisionomia transtornada
não deixava dúvida de que sinistros eram seus intentos. O
chapéu de aba larga dissimulava os olhos vermelhos e
cansados por uma noite de vigília e os lábios tremiam de
raiva e emoção. O braço esquerdo apoiava a mão inchada
pelas dentadas do Bugre, numa tipóia improvisada e a outra
empunhava um rebenque de couro cru.
Ele chegou-se mais e ela apavorou-se:
— Não, Sampaio! Não faça isso, pelo amor de nossa filha!
De nada adiantou. Violento, ele arrancou Ana Jacinta do
cavalo, fazendo-a cair ao chão. Insensível à seus rogos e aos
dos escravos, ele começou a chibatá-la, nas costas, no peito,
nas faces, nas mãos, numa bárbara explosão de raiva
incontida.
Para proteger seus lindos olhos azuis ameaçados, ela deixou-
se cair, de frente, rosto à terra, cobrindo as faces com as
mãos. Chorava de dor, de vergonha, de ódio, de desespero.
Parecia que a vingança de Sampaio não se saciava, e foi só
quando seu braço cansou de bater que, sem uma palavra,
partiu, deixando a pobre mulher caída, mordendo o pó da
estrada, o vestido rasgado, o corpo lanhado e intumescido.
Um carro de bois que vinha em sentido contrário, foi a
salvação. Esvaziaram-no da mercadoria que transportava e
forrando seu fundo tosco de tábua mal aplainadas com um
cobertor, colocaram Ana Jacinta, desmaiada.
Com os solavancos do carro, a pobre mulher voltou a si,
sofrendo dores atrozes.
Cerca de meia hora depois, ela voltava ao conforto do
sobrado, e os gritos de dor e desespero que a princípio
dominavam até mesmo o chiado do carro de bois, foram, a
pouco e pouco amortecendo, transformando-se em gemidos
profundos que agora mais pareciam soluços de tardio
arrependimento.
XLII
O CRIME

Há quem diga que foi Ana Jacinta quem mandou matar
Sampaio, porque ele acabou assassinado. Mas o crime só
ocorreu depois de um ano do violento rompimento. Por
que, pois, ligar um fato ao outro? A hipótese, por certo, não
é desprezível, mas afigura-se-nos bem pouco provável.
Houvesse o crime se dado logo após o açoitamento explicar-
se-ia, embora não se justificasse, que o assassino agira em
represália como mandatário da mulher agredida e insultada.
Tudo o que sabemos, porém, sobre Ana Jacinta faz-nos
alijar, por inadmissível, tal versão do crime.
Apesar dos seus graves defeitos, não se pode deixar de
reconhecer que Ana Jacinta estava longe de ser uma criatura
banal e, embora levasse vida reprovável, era como alguém
que percorresse conscientemente um mau caminho,
porque, certo ou errado, chegara à conclusão de que esse era
o único meio que a vida lhe oferecia para atingir o círculo
onde estava a gente tida por boa. Nem por isso era melhor
essa gente, pois foi a falta de caridade provavelmente que
obrigou Dona Beija a levar a vida que levou. Teimosa e
resoluta, ela resolveu penetrar nesse círculo, usando o meio
mais curto, senão o mais recomendável.
O fato é que, até então, ela nunca manifestara instintos
maus. Pelo contrário, a pobreza e a desgraça da terra não
batiam em vão à sua porta e seus próprios detratores nunca
lhe negaram a faceta caridosa do seu caráter. Tudo indica,
aliás, que seu próprio sofrimento tornara-a mais
compreensiva para com a miséria alheia.
Por que, pois, mandaria ela matar um homem, que, apesar
de seus defeitos fora, durante certo tempo, parte integrante
de sua vida? Homem que ela amara sem restrições, que lhe
dera uma filha de ambos muito querida, a quem ela
lamentava sinceramente não poder tornar feliz, por
circunstâncias adversas que não provinham só dela, que a ela
se apegara apaixonadamente, e que, mesmo no momento em
que ela impôs a separação, manifestara, a seu modo, em
reação brutal, o sofrimento que lhe dilacerava a alma?
E por que seria ela, e não outrem o mandante do crime?
Manoel Fernandes Sampaio foi sempre homem de
temperamento agressivo, que multiplicava em seu redor
antipatizantes e desafetos.
A vida também (oi dura para ele. Depois de tremenda luta
no seio da família, permitiram que noivasse Ana Jacinta. Mal
vencia ele essa batalha decisiva de sua juventude, e às
vésperas do casamento, a noiva lhe é arrebatada pelo grande
Ouvidor. Mais tarde ela voltou e ele a retoma parcialmente,
mas aí a censura do meio volta-se contra ele, pois. está
casado.
Como seria possível, em relação a ele, referir-se a Ana
Jacinta senão como concubina?
A Igreja, por sua vez, não poderia confortá-lo antes que ele
se conformasse com a renúncia total, pois era adultério o seu
pecado, e de escândalo público o estado em que vivia.
Enquanto isso, a gentalha comprazia-se comentando o
romance picante que animava a monotonia do plácido
arraial sertanejo.
Tudo isso acirrara, ao invés de aplacar o seu temperamento
irascível. Não possuí-la seria como tortura do inferno, mas
tê-la assim, era como pena do purgatório I
Sabê-la partilhada por terceiros que pagavam entrada na
Chácara do Jatobá, foi uma situação com a qual ele nunca se
conformou. Que importava que a razão lhe dissesse que
devia se dar por feliz com a virtude de uma esposa devotada?
Nada aplacava sua inquietação, porque, no fundo, era a outra
que realmente importava.
Desde menino, Ana Jacinta fora seu brinquedo. Brinquedo
dele e de mais ninguém. Ela crescera para ele, e com essa
idéia ele se habituara. Seus primeiros sonhos de amor, devia-
os a ela; seus primeiros desejos de homem foi ela quem os
provocou.
A vida os ia levando para o casamento, até que, de súbito,
um acontecimento inesperado os separou violentamente.
A separação se foi alargando. Para ela o Ouvidor em Paracatu
do Príncipe. Para ele, Aninha Felizardo, agora sua esposa.
Mas a vida, como torrente de rio caprichoso, que parecia tê-
los afastado para sempre, novamente jogou-os um de
encontro ao outro. O Ouvidor foi apenas um acidente, uma
espécie de ilha fluvial, digamos assim para manter a imagem
do rio, até que a vida de ambos se confundiu de novo como
se os dois braços d'água voltassem a se reunir.
Nunca mais seria como dantes, porém!
Reunidos, sim pela fatalidade, mas não amalgamados, pois ao
se apartarem para a aventura da grande volta as águas
separadas guardariam, para sempre, o cheiro e a cor da terra
que sozinhas haviam sulcado.
A unidade do amor de Sampaio e Ana Jacinta jamais se
restabeleceria.
O reencontro deu-lhes, sem dúvida, por algum tempo, a
ilusão de união completa, mas logo viram que o Araxá seria
pequeno demais para eles, na situação em que se achavam.
A estreiteza do meio no qual tiveram que representar a
comédia da vida, não tardou a asfixiá-los. Juntos, um teria
que ceder lugar ao outro. O mais fraco cairia. O mais forte é
sempre quem mais resiste, e quem mais resiste nesses casos,
não é o homem com o ímpeto que o desgasta, mas a mulher
com a poupança de energia, filha de sua paciência natural. É,
por isso mesmo, quase sempre mais resistente ao impacto da
vida.
Sampaio fizera no pequeno palco araxano um largo círculo,
largo demais, de inimigos: era a gente da terra que não mais
aturava seu temperamento atrabiliário; era a gente de fora
que ele agredia com seu regionalismo feroz; eram homens
de prol que ele cismava terem estado no Jatobá e que, por
isso mesmo, supunha, certo ou erradamente, terem
merecido os favores de Ana Jacinta. Procurando na bebida e
no jogo alívio para seus tormentos, só os agravava.
Desde que ocorreu o rompimento com Ana Jacinta, Sampaio
foi aumentando as doses de álcool e, cor., elas, aumentaram,
também, as paradas do jogo propícias às discussões e às rixas.
Rara a semana em que cadeiras e garrafas não se quebravam
e que, em meio à luta, não luzia a lâmina de uma faca.
Certa noite, em volta à mesa de cartas, numa velha casa
ainda hoje existente no fim do Largo da Matriz, estavam os
jogadores empenhados na luta do azar, empunhando
baralhos de cartas sebentas. Dois tocos de vela jorravam luz
indecisa.
Sampaio defrontava com a janela escancarada para a rua,
onde raros passantes cruzavam àquela hora. Do lado de fora
um vulto aproximou-se sorrateiro. Apoiou-se no peitoril da
janela e ficou, por alguns momentos, estudando o ambiente
interno.
Ninguém reparou nele, empolgados que estavam com o
jogo. O homem era um certo Antônio, jagunço de má fama,
conhecido ali e em comarcas adjacentes como empreiteiro
de crimes, mas contra quem até então nada de positivo se
provara. Rondava Sampaio há vários dias, sem se deixar
perceber, querendo pegá-lo de emboscada, pois a futura
vítima não era pessoa com quem se brincasse impunemente.
E agora Sampaio ali estava à sua frente, a atenção imersa no
jogo, a menos de três metros de distância, seu largo peito de
homem forte exposto como alvo iluminado a toco de vela.
Antônio sacou da garrucha, alvejou com cuidado e fez fogo.
Sampaio, atingido em pleno coração caiu fulminado sobre a
mesa na qual estava debruçado, e o criminoso dando à sela
de um cavalo ligeiro sumiu com facilidade na escuridão.
Preso dias depois, o acusado a principio negou a autoria do
crime, mas acabou por confessar, chamando a si toda a
responsabilidade. Negou houvesse mandante, dizendo
apenas que se vingava de maus tratos e de ameaças que
Sampaio repetidamente lhe infligia.
Estranhas e poderosas influências se fizeram então sentir a
favor do assassino, que veio a ser absolvido.
A família de Sampaio, inconformada, moveu céus e terras,
tentando envolver Dona Beija como a mandante do crime.
Nada ficou provado nesse sentido. Sampaio, em vida,
espalhara muitos rancores. Por que seria ela a responsável, e
não outrem? O assassino provou que o ameaçado de morte
era ele, e que agira dominado pelo pavor de ser morto.
O certo é que o ambiente em torno do sobrado amarelo da
Beija no Largo da Matriz nunca mais foi o mesmo, e o
demônio da dúvida, até hoje, ronda sinistramente a memória
de Ana Jacinta de São José.
Teria sido ela a mandante?

XLIII
OUTONO

Quem diria que aquela senhora idosa, mãe exemplar de duas
filhas bem casadas, que só se trajava de preto, a dedicar o
resto da sua vida a atos de caridade e obras pias, tendo como
único consolo e distração o carinho dos netos, fora a mulher
famosa, por quem Joaquim Inácio Silveira da Mota, o grande
Ouvidor, se deixara arrastar a um crime, pondo em risco sua
carreira política?
Quem adivinharia que, graças a ela, Minas Gerais conseguiu
reaver as cobiçadas terras do Triângulo? Por quem Manuel
Fernando Sampaio cometeu as maiores loucuras que um
homem pode praticar por causa de uma mulher? Que tanto
trabalho deu à nobre família dos Carneiros de Mendonça,
pela paixão inspirada ao jovem João, recém-chegado de
Coimbra e com quem ela encerrou sua vida de grande
amorosa? Por quem os homens de prol das redondezas
esvaziaram as sacolas de ouro e diamantes, não medindo, na
ânsia da conquista, nem distâncias, nem conseqüências, a
ponto de produzir um abalo econômico em toda a região
diarhantífera e pastoril que circundava de muitas e muitas
léguas o velho Arraial de São Domingos do Araxá?
Tudo isso já parecia tão longe, tão passado e, no entanto,
fora há tão pouco tempol
Quantos anos haviam decorrido? Dez? Doze? Não chegavam
a quinze, por certo.
£ o solar do Jatobá, com suas riquezas, suas alfaias e seu
parque bem cuidado? Praticamente não existia mais.
Decaiu o casarão depois que ela o passou a terceiros. Era
agora, simplesmente, uma pacata estalagem, onde pousavam
rústicos boiadeiros que traziam seus rebanhos para a salga
das fontes sulfurosas.
Já não os acompanhavam os senhores das grandes fazendas.
Ir ao Araxá, para quê? Era um perder de tempo que não
compensava a viagem fatigante pelas estradas ora poeirentas,
ora enlameadas. Feitores e capatazes de confiança
encarregavam-se agora do transporte do gado. No tempo em
que a Beija era a Beija, e o Jatobá a sua chácara, então sim,
valia a pena ir até lá!
Só três coisas não haviam mudado: o porte altivo de Ana
Jacinta, a mulher dominadora de sempre, que sabia pisar
firme e enfrentar o olhar de quem quer que fosse; o sobrado
amarelo na Praça da Matriz e o grande nome de guerra, o
nome de Dona Beija, que ia a pouco e pouco perdendo o
sentido malicioso com que antes era referido para
transmudar-se no apelido de uma senhora de respeito e
incontestável prestígio.
Os últimos dos senhores que ainda alimentavam a ilusão de
reviver o passado frívolo da antiga Rainha do Sertão,
retornavam, melancólicos e irritados.
— Você a viu? Esteve no Jatobá?
— Vi-a, sim. Aposentou-se. Acabaram-se as festas.
Procurei-a na cidade. Não quis me receber. Passa hoje por
grande dama. Ficou riquíssima graças ao dinheiro que nos
sugou. Os padres agora procuram salvar-lhe a alma. O Jatobá
acabou. Está caindo aos pedaços. É uma ruína!
— E ela? Muito velha? Acabada?
— Nem tanto, mas seus vestidos não são mais os mesmos.
Afoga-se como uma freira. Só anda de preto. Parece uma
viúva em luto permanente.
— Então mudo os meus planos. Sou capaz até de não ir mais
lá.
— É o melhor que você faz. Guarde as boas recordações e
não volte, para não ter uma desilusão igual à minha.
Fidalgos e fazendeiros, faiscadores e aventureiros sumiram
de repente. Por quê? Porque o Araxá era elal Araxá era a
Beija e a Beija era o farol daquelas paragens ermas!
Sem ela, Araxá voltou a ser como suas inúmeras irmãs do
grande sertão do centro: um povoado como outro qualquer,
mais movimentado, talvez, por causa das fontes, mas que só
renasceria muito tempo depois, quando a ciência revelasse o
valor incalculável de suas águas.


XLIV
O QUE CHEGOU DEPOIS DA FESTA

O clarão da fogueira que Ana Jacinta acendeu não
desapareceria sem que um jovem e petulante intruso
tentasse provocar o crepitar de uma derradeira chama.
Para os lados de São João del-Rei vivia um abastado
fazendeiro que fizera muitas visitas ao Jatobá em seus áureos
tempos, e que lá, gostosamente, deixou grande parte de seus
haveres.
Era um homem bonachão, mas indiscreto, que não sabia,
não queria e, sobretudo, gostava de exagerar suas conquistas,
costumando alardear o grande prestígio que dizia ter junto à
Beija, a grande Rainha do Sertão, mulher que, afirmava sem
modéstia, faria por ele as maiores loucuras!
A realidade, porém, era outra. Dona Beija, com a esperteza
de sempre, descobrindo que a vaidade cegava esse rico
admirador que se chamava Rodrigo, apenas fazia-o pagar
caro as vitórias de suas supostas conquistas.
Rodrigo era solteirão e criava um sobrinho, filho de irmã
viúva, por quem se afeiçoou e que seria, um dia, seu
herdeiro universal. Bernardo, este o seu nome, cresceu —
entre os cuidados da mãe que lhe fazia as vontades e do tio,
que sem a devida cautela falava em sua frente assuntos
impróprios aos ouvidos de um infante, — voluntarioso,
arrogante e precocemente disposto a aventuras fesceninas.
Adolescente ainda, conhecia, por muito ouvir contar, em
todos seus detalhes certos e deturpados, a vida da mulher
famosa e assim aguardava impaciente, que, o correr dos anos
lhe permitisse incorporar-se à legião de seus admiradores.
Houve, porém, um desencontro no tempo. Dona Beija não
ficaria esperando, para aposentar-se, que Bernardo atingisse
a maturidade. Isso porém, foi algo de que nem sequer
cogitou o imaginoso rapaz.
Todo o mundo fazia-lhe a vontade: a mãe, o tio, os feitores,
os escravos. Por que faria exceção Dona Beija? Ele estava
certo, certíssimo, de que quando soubesse ela que estava por
chegar, ela mandaria atapetar as escadas do Jatobá, como nos
dias de gala, segundo seu tio e com seu mais belo vestido,
em grande decote, o colo magnifico, cintilante de jóias,
aguardá-lo-ia no patamar de entrada, e com um sorriso
acolhedor diria mais ou menos assim:
— Seja bem-vindo, Bernardo. Então você é o sobrinho de
quem Rodrigo tanto falava? Nunca avaliei que você fosse um
rapagão tão fortel
Ele então responderia com uma frase que, de tão estudada, já
nem bem se lembrava, mas que seria uma síntese de
inteligência, de fino espírito e alta galanteria, tudo tão bem
dosado e oportuno, que ela daí por diante não pensaria em
mais ninguém, senão nele.
Logo no dia subseqüente ao aniversário, em que completou
dezoito anos, pôs-se em marcha para o Araxá. Fazia-se
acompanhar de dois homens de confiança, um dos quais
levava, cuidadosamente, embrulhado, régio presente: uma
caixa de prata portuguesa, primorosamente lavrada, forrada
de veludo carmesim, contendo um soberbo conjunto de
crisálidas montadas em ouro, somando um colar, um par de
grandes brincos pendentes e um broche.
Sua primeira desilusão foi topar com o Jatobá transformado
agora, como já vimos, em pacata estalagem de vaqueiros.
Sem se dar por vencido, aproveitou
a pousada para descansar um pouco, mudar de roupa e fazer
uma ligeira refeição, enquanto fazia seguir um dos seus
homens com o presente vanguardeiro.
Ana Jacinta recebeu o emissário estupefata. Quem era esse
senhor Bernardo, lá das bandas de São João del-Rei? A que
vinha? Sobrinho de quem? Do senhor Rodrigo?
— Sim, sim, esforçava-se em recordar, mas a memória não a
ajudava. Em todo o caso, fingiu lembrar-se do tal Rodrigo.
Tinham sido tantost Mas por que mandava ele com seu
sobrinho Bernardo um rico presente?
— Não, explicava o homem, o presente não era do tio e sim
do jovem sobrinho.
Ela olhava, sem ver as lindas jóias, seu pensamento longe,
perdido no passado, lembrando que tais oferendas eram o
preliminar costumeiro de exigências que vinham logo
depois.
— Mostra, vovól
Era Haidée, sua netinha, de dois anos, que lhe puxava a saia,
na ânsia de também ver o presente. Carinhosa, ela lhe fez a
vontade.
— Deve haver engano, disse, afinal, ao portador. Diga a seu
patrão que não o conheço.
— Perdão, senhora, ele pede uma entrevista, não só pela
honra de conhecê-la, como, também, porque diz ter algo de
muito importante para dizer-lhe, minha senhora.
— Pois então que venha, disse ela. Recebê-lo-emos à tarde,
às quatro horas, mas leve de volta o presente. Ele mo trará
pessoalmente, se houver razão para isso.
O homem insistiu e ela respondeu, peremptoriamente:
— Diga-lhe que não recebo presentes de desconhecidos.
Antes da hora marcada, o sôfrego Don Juan martelava, com
insistência, a aldrava da porta de entrada.
O rapaz não era apenas mal-educado e insolente. Possuía
natureza acentuadamente psicótica, mas, naquele tempo —
em que os loucos conscienciosamente eram surrados para
serem libertados dos maus espíritos — só se acreditava nas
virtudes terapêuticas de uma boa sova e Dona Beija, apesar
de ser mulher inteligente, porque o jovem intruso lhe
despertaria complexos ainda não resolvidos, de um triste
passado que ela queria bem enterrado e silencioso, desta vez
ficou cega a toda compreensão.
— Senhora, foi logo dizendo o improvisado Casanova, em
estilo grandiloqüente, acuso-vos de faltar às boas regras da
hospitalidade.
— De que me reprochais, senhor? Não vos recebo eu, em
minha casa como visitante ilustre, pronta para atender às
vossas ordens?
Ele não percebeu que a mulher ironizava ao imitar-lhe a fala
pomposa e, por isso, prosseguiu:
— Compreendo, agora, que preferistes fosse eu mesmo o
portador do mimo que trouxe para vosso regalo, senhora dos
meus sonhos. Por isso perdôo o gesto pouco gentil da
devolução das jóias, mas por que me desafiais, senhora, com
um tão feio e negro vestido? Pensais com isso enganar-me?
Ela o fitava agora entre perplexa e insultada.
Tinha mudado de vida, sim, e os anos haviam passado,
fixando nos sulcos das primeiras rugas, suas desilusões, mas
era ainda suficientemente mulher, e mulher vaidosa, para
não tolerar a crítica do petulante fedelho ao seu vestido de
cetim preto, elegante embora severo.
Bernardo, porém, ainda não tinha desfiado todo o rosário das
cretinices que vinha decorando em caminho:
— Abusais dos meus verdes anos, senhora! Tentais esconder
a meus olhos, ávidos, o panorama soberbo das vossas formas
naturais. Por que mereço eu tão duro tratamento? Não
tendes mais coração, senhora? Levantai esses coques de ouro
que escondem o lóbulo das vossas orelhas, onde eu mesmo
pendurarei os brincos que vos trouxe, e desafogai, senhora,
esse busto alabastrino dos negros véus que o encobrem, pois
é sobre esse pedestal de carne, soberbo e arfante, que
depositarei este colar que de longe trouxe para cingir o
pescoço de Dona Beija, a grande Rainha do Sertão!
Como continuasse imóvel e silenciosa, ele levantou-se, e
com parva e solene decisão encaminhou-se para ela.
Levantou-se primeiro um coque, depois outro e,
descobrindo as orelhas, enfiou pelos orifícios vazios dos
lóbulos, primeiro um, depois outro, o par de brincos que
trouxera.
A precisão com que Bernardo agira, parecia mais a de um
adestrado joalheiro a experimentar a mercadoria numa
cliente, mas quando ela sentiu que o rapaz tentava
desabotoar-lhe a gargantilha, ou para cingir-lhe o busto com
o colar que na outra mão trazia, ou para com mão profana
explorar-lhe recantos mais íntimos, ela sentiu-se possuída de
uma cólera tão intensa e inexprimível que, rubra de raiva,
levantou-se e deixando a sala de visitas, subiu a escada
rapidamente, rumo a seus aposentos, a fim de recompor-se,
temerosa de que suas filhas a encontrassem assim
despenteada pelo estranho e alucinado visitante.
Bernardo era, no fundo, um pobre rapaz. Tanto sonhara com
Dona Beija, mercê do que muito ouvira dizer, que procurara
manter latentes seus mais violentos instintos, esperando que
explodissem na presença dela!
Achavam-no bobo as moças de São João del-Rei? Bobas
eram elas! Mais bobas ficariam quando soubessem de sua
aventura com Dona Beija, a famosa Rainha do Sertão!
Bernardo planejara, há anos, que este seria o dia de sua
primeira aventura de homem, e para uma estréia de gala,
arquitetara ter um caso, para referências futuras, com a
grande mulher da época, ou melhor, da época do seu tio
Rodrigo.
Os planos, porém, não se estavam desenrolando exatamente
como previra, admitiu ele, de si para si, quando se viu
corretamente recebido pela senhora amatronada,
severamente vestida de preto.
Paciência! O homem não é um animal como outro qualquer,
pensou ele, e tem o privilégio da palavra. Primeiro falaria e
depois agiria.
Obediente a essa orientação, diria todas as asneiras que lhe
viriam à cabeça e, depois, num crescendo de ousadia,
passaria rapidamente aos atos.
Esperaria que voltasse? Não! Nada tinha que esperar! Não
ouvira ela o que lhe dissera? Não tolerara que ele lhe pusesse
as mãos? Não se retirara com seus enormes brincos
pendurados às orelhas? Não deixara a porta aberta?
Esperaria que voltasse? Não tinha que esperar! Não ouvira
ela o que lhe dissera? Não tolerara que ele lhe pusesse as
mãos? Não se retirara com seus enormes brincos pendurados
às orelhas? Não deixara a porta aberta?
Então, por que hesitar? Qualquer homem experimentado
saberia que ela o estava convidando, embora discretamente,
para entrar!. Por que não experimentara antes uma aventura
assim, com qualquer outra para não perder-se agora em tolas
hesitações?
Como que para sacudir suas dúvidas, uma rajada de ar entrou
pela janela aberta. Inflou as cortinas, fazendo tilintar os
cristais do grande lustre, e sem parar ai, empurrou a porta da
sala que ficara encostada, abrindo-a para o interior da casa.
Bernardo quis interpretar o fato como um acaso à seu favor.
— A porta que se abre é um convite para entrar,
monologou ele, acacianamente. Entro ou não entro —
indagou-se ainda perplexo?
— Entro — concluiu — vencendo as últimas hesitações.
Embarafustou-se pela porta adentro e, num segundo, atingiu,
arfando, o segundo pavimento.
Três portas fechadas e uma janela aberta apresentavam-se,
agora, na peça do andar superior. A esmo abriu a primeira
porta e deparou com Dona Beija a recompor-se.
Despendurara os brincos e refazia as tranças que, depois,
formariam os dois coques que ele desfizera, afoitamente.
— Agora, disse, ela, dominado-se, ao vê-lo novamente, o
senhor já fez suas artes, já desmanchou meu penteado. Até
onde pensava levar essa brincadeira?
— É — foi tudo que ele encontrou para dizer, parvamente,
à guisa de resposta.
Na verdade não pensava mais em nada.
O grotesco da cena era tal e a atitude daquele inábil
casanova, hesitante e inócuo, era tão ridícula que Ana
Jacinta, apesar de tudo, não pôde conter o riso.
— Pare com esse riso, senhora, disse ele, irritado.
Ela ria ainda mais. Ria como há muito não ria. Um riso
puxando outro, até as lágrimas virem-lhe aos olhos.
Ele resolveu acabar bruscamente com aquela explosão de
aparente alegria que tanto o perturbava e, sem jeito,
enlaçou-a por detrás, tentando beijar-lhe o pescoço. Ela
repeliu-o como a um inseto incômodo, e, séria:
— Rapaz, não seja tolo. Pegue suas jóias e vá embora. Enfim,
você valeu a risada. Agora chega.
— Isso não vai ficar assim, disse ele, perdendo o tom
majestoso da frase. Você não pode me mandar embora. Sou
um homem e ninguém brinca comigo. Você não recebeu tio
Rodrigo? Por que não vai fazer o mesmo comigo?
— Eu não me lembro do que fiz com seu tio Rodrigo, nem
sei mais quem era ele. O que fiz com ele, se é que fiz
mesmo, fiz também com muitos outros, infelizmente, mas
agora não faço mais nada do que você pretende, com
ninguém e, muito menos, com um menino bobo como
você! Não vê, rapaz, que eu podia ser sua mãe?
Ele não interpretou a palavra mãe como simples referência à
idade, antes pensou, sem razão, que ela se comparava à sua
própria mãe. O raciocínio falso fê-lo explodir:
— Podia coisa nenhuma! Tinha graça ter mãe assim!
— Você tem razão, admitiu ela, tristemente. Não teria graça
alguma mesmo. Eu só quis dizer que, na minha idade
poderia ter um filho grande, como você, mas, se tivesse faria
com que ele não fosse tão bobo.
— Boba é esta conversa. Vamos parar com isso, de filho e de
mãe! Hoje eu vim disposto a tudo!
... e com essa bravata, o jovem avançou novamente para ela.
Ela manteve-o distante.
— Espere, respondeu. Então você quer mesmo fazer hoje
sua primeira aventura, e está disposto a tudo, não é?
— Sim!
— Não seria melhor que você fosse embora e ficasse o dito
pelo não dito? Vou fazer-lhe uma proposta: Você vai
embora e me deixa em paz. Não diga a ninguém que esteve
aqui, que eu prometo guardar segredo de sua visita. Está
bem?
— Não!
— Pois, então, seja como quiser — disse ela impaciente. Já
que você não vai embora, espere-me meu jovem
conquistador. Volto já e para você não ficar com má
recordação minha, vou dar-lhe um beijo. Na boca não! Que
é isso? Na testa. Assim. Até já. Você não quer mesmo ir
embora? Não? Teimosinho, hein?
... e com essas palavras ela deixou o aposento.
— Bom, pensou ele, isso já é outro falar. Bem que tio
Rodrigo dizia que ela era caprichosa. Está é muito velha para
mim! Depois desta visita não apareço mais aqui.
Vencera, estava certo, as resistências da Rainha do Sertão.
Refestelou-se numa poltrona, mas, sôfrego, não se aquietou.
Levantou-se logo. Deu uma pirueta de contente. Mirou-se
no espelho do toucador. Estava satisfeito. Saudou-se:
— Parabéns, Bernardo!
Sentia calor. Despiu o casaco. Como continuasse afogueado,
libertou-se da camisa. De torso nu respirou com força, inflou
o peito. Retesou os músculos. Estava vaidoso como um
pavão.
Ouviu passos no aposento contíguo. Era ela, sem dúvida,
que vinha ao seu encontro.
Oh, o grande encontro! A maçaneta rangeu e a porta abriu-
se. Ai, ele recuou!
Dois grandes e musculosos negros, de torso nu, chibata em
punho, entraram e barraram as saídas do aposento. Atrás
deles, vinha Dona Beija.
— Que significa isso? — indagou medroso, mas tentando
manter a arrogância.
— Significa que o senhor vai levar uma surra, disse
calmamente Dona Beija.
— Nunca ninguém me tocou, e não há de ser você, mulher
perdida, que vai fazer isso.
— Sou eu mesma, meu rapaz, quem vai fazer isso e para seu
próprio bem!
Se sua mãe lhe tivesse surrado de vez em quando, para você
aprender a respeitar a casa dos outros, poupar-me-ia esse
trabalho, que não é do meu agrado, seu mal-educado!
Vamos!
As chibatadas sibilaram e ele pôs-se a berrar.
— Basta, disse ela, logo depois. Não é para machucar. É só
para ensinar.
Bernardo saiu como uma flecha, escada abaixo, aos
tropeções. Correu até o meio da praça, onde o populacho o
apupava, em busca de seus aios. As senhoras do sobrado
chegaram às sacadas com as crianças ao colo.
— Vai deixar o ladrão fugir, Dona Beija? — perguntou uma
vizinha.
— Não é ladrão, não, Dona Cremilda. É um bobo que veio
de São João del-Rei e quis se fazer de engraçadinho comigo.
Já levou o corretivo.
E assim, todo o mundo ficou sabendo que ninguém mais se
fazia de tolo com uma pessoa tão digna de respeito como a
senhora Dona Beija, sob pena de levar um corretivo igual.

XLV
ÊXODO

Ana Jacinta realizou, depois de velha, um projeto antigo:
deixar o Araxá.
Seu primeiro ímpeto foi de fazê-lo quando, moça ainda, para
ali tornou, desonrada e infeliz, tão logo conseguiu livrar-se
do grande Ouvidor. Repudiada pela incompreensão aliada à
hipocrisia, impôs-se como pôde.
Agora sua vida entrava na fase serena da velhice.
Casara as duas filhas: Teresa Tomásia de Jesus, a suposta filha
de Sampaio, com Joaquim Ribeiro da Silva, cuja filha, por sua
vez, desposaria José da Silva Botelho, famoso estoura-vergas
do sertão, homem violento e autoritário, que teve em vida
dois objetivos: criar uma república autônoma com os três
municípios do Triângulo Mineiro e fazer-se seu Presidente
com o título de Barão do Araxá. Não conseguiu nem uma
coisa nem outra, isto é, nem a republiqueta, nem o baronato.
O único titular agraciado com o nome de Araxá foi
Domiciano Leite Ribeiro, segundo Lúcia Miguel Pereira - "O
Visconde de Araxá", "Correio da Manhã" de 17 de outubro
de I955.
Joana de Deus São José, a suposta filha de João Carneiro de
Mendonça casou-se com Clementino Martins Borges, seu
genro preferido.
Vasta foi a fortuna que acumulou em garimpos, matas
virgens e fazendas de gado.
Caridosa, espalhava em redor de si o bem que podia. Seu
prestígio político era real e sua personalidade influente
conseguia manter amortecida e distante a lembrança de uma
fase superada de sua vida mundana.
Mas as conseqüências daqueles dias agitados, ainda
perduravam. Muito forasteiro que chegava ao Araxá, ou que
para lá propositadamente ia, embalava a esperança de reatar
com ela casos antigos, ainda confiando no passado da
garbosa matrona. Bastava, porém, a visão severa de Ana
Jacinta, corberta de negro, em sua fase de austeridade, para
desiludir os últimos remanescentes de uma corte de
admiradores envelhecidos e decadentes.
Pior que tudo, pois isso, em verdade não mais contava, era a
campanha que lhe moviam os inimigos gratuitos que, por
motivos políticos, ou outros quaisquer, apontavam-na ainda
— embora nada tivesse ficado provado — como implicada
no assassinato de Sampaio.
Ela podia esmagar os difamadores de sua honra, assumindo a
responsabilidade de um passado triste, reabilitado por seu
repúdio ao pecado, mas doia-lhe a sombra da dúvida que
sentia presente com relação à morte de Sampaio, do homem
a quem ela votou um amor desinteressado, a ponto de haver
permitido fosse ele o pai de sua primogênita.
Essa realmente a última gota de fel a amargurar-lhe a alma e
que a fez partir.

XLVI
DIAMANTES

O ano de 1853 anunciou-se sensacional.
No leito do Rio Bagagem que regava região tida como de
pouca importância diamantífera, envolto no cascalho
revolvido por garimpeiros desiludidos, luziu
inesperadamente a maior pedra preciosa que jamais apareceu
no Brasil, o famoso diamante Estrela do Sul, cujo peso bruto
atingiu duzentos e cinqüenta e quatro quilates e meio!
Cortada, a fabulosa pedra ainda pesava cento e vinte e cinco
quilates. Adquiriu-a o "gaikwar" de Baroda pela soma de
oitenta mil libras esterlinas, ou sejam quase quinze milhões
de cruzeiros, ao câmbio atual.
Pouco depois, outra pedra famosa foi descoberta, o
Diamante de Dresden, bem menor que a Estrela do Sul, pois
só pesava quarenta quilates, mas que se tornou notória,
sobretudo pela raríssima coloração: um verde-maçã
belissimo.
O português Garcia da Orta, vice-rei de Gôa, em 1565, tanto
escreveu e falou sobre as minas diamantíferas do Indostão
que por muito tempo ele desviou de nós a atenção do reinol,
mas o Estrela do Sul ultrapassou em beleza e tamanho as
pedras indianas, e foi por isso, exatamente, que o "gaikwar"
de Baroda o adquiriu.
A febre das pedrarias, que já sacudira por tantas e tantas
vezes as gerais brasileiras, renasceu com violência num de
seus derradeiros lampejos. Breve, no entanto, muito breve
mesmo, as famosas terras azuis da África do Sul iriam
começar a jorrar no mundo uma quantidade de brilhantes
notórios, como o Estrela da África do Sul, também chamado
o Dudley; o Vitória, o Tiffany, o Excelsior, o Nassak, o
Stewart, o Porter Rhodes; o Koh-i-noor para culminar no
grande Cullinan, que pesava três vezes mais que o maior
diamante até então conhecido!
A corrida diamantífera do Rio Bagagem! Eis ai o pretexto
para Ana Jacinta deixar de vez o Araxá. Ela aproveitou-o.
Tinha então pouco mais de cinqüenta anos.
Mudando-se para Bagagem, depois de ter vendido tudo o
que possuía no Araxá, estabeleceu-se lá, projetando sobre a
região do seu novo domicílio a influência de sua pessoa.
Waldir Costa conta que, continuando ela "senhora de
riqueza considerável, equipou o seu garimpo dos recursos
técnicos conhecidos naquele tempo, conseguindo uma
produção notável.
Dispondo de numerosa escravaria, em pouco prazo as
baterias de pilão multiplicaram-lhe a fortuna, dando-lhe a
notoriedade de possuidora de muitos haveres.
Dama de traquejo social, boa dona-de-casa, hospitaleira e
caridosa, acolhia à sua sombra os necessitados, amparava as
obras de benemerência social, numa palavra, a tudo atendia,
irradiando respeito e simpatia ao povo, em geral.
Matrona rica, a todos distribuía os préstimos cativando a
amizade e o apreço do povo. Convertida, freqüentava, com
assiduidade, os atos religiosos, militando nas associações pias,
às quais emprestava o prestígio da sua influência, recrutando
entre as amigas, elementos para as irmandades, num
trabalho de ação social e religiosa muito importante.
Tomava a liderança de todas as festas, que animava com as
quermesses rendosas para as prebendas, graças à riqueza
corrente e o afluxo de garimpeiros.
Essa projeção social de Dona Beija ia-lhe creditando a
admiração dos habitantes do lugar. É vezo nas sociedades
provincianas, consolidar os laços de amizade com as pessoas
influentes, por meio do compadresco, pois chega a ser
padrão de glória chamar de comadre à senhora do chefe
político, à fazendeira abastada, ou à coronela prestigiosa.
Os compadres ricos e como eles as comadres, exercem uma
advocaciazinha administrativa muito curiosa nos centros
pequenos. É quem promove a soltura dos presos sem a
despesa de carceragem; quem consegue uma redução nos
lançamentos fiscais; quem pleiteia o perdão de uma dívida
ativa; providencia uma baixa de patente; quando preciso,
resolve um ou outro caso íntimo de família e faz, quase por
um dever de ofício, o pedido de casamento dos afilhados,
quando não é dos amigos. O homem simples da vila vê
nesses atos de mera rotina social, uma dificuldade muito
grande e se embaraça neles, como nas maiores dificuldades.
Dona Beija colheu logo um magote de afilhados. Os netos
cercavam-na de muito carinho e dela não se afastavam. Com
tantas crianças que se recomendam aos seus cuidados, a casa
grande de Dona Beija era alegre como um pombal.
Sobre o Rio Bagagem, construiu uma ponte, que até hoje lhe
guarda o nome: A Ponte da Beija.
Sebastião de Affonseca e Silva diz que a maior obra
executada "foi a virada do Rio Bagagem para colher o
cascalho do leito do rio, onde presumia ter maior depósito
de diamantes". Diz ainda o mesmo autor que procurou, em
vão, conseguir um opúsculo publicado em 1898, não se sabe
por quem, chamado "A VIRADA DE DONA BEIJA".

XLVII
"INDIGNA IRMÃ"

Em 10 de junho de 1869 Ana Jacinta preparou-se para a
morte que, no entanto, só viria muito mais tarde. Fez
testamento. Tinha, então, sessenta e nove anos.
Contrita, confessou: "tenho sempre vivido em estado de
solteira".
Disse das duas filhas que houvera: Teresa Tomásia de Jesus e
Joana de Deus São José; com quem haviam casado; apontou-
as herdeiras, mas silenciou de quem as tivera.
Disse que nasceu e se batizou na cidade de Formiga, na
Província de Minas Gerais, sendo filha natural de Maria
Bernardo dos Santos e, a seguir, com humildade, admitiu
perante seus semelhantes aquilo que já devia ter sussurrado
em seu confessionário: "Declaro que sou indigna Irmã de
Nossa Senhora do Carmo, em cujo hábito", rogou, "será meu
corpo envolto, assim mais o de S. Francisco; de Nossa
Senhora Mãe dos Homens, da Terra Santa e de Santo
Antônio".
Ordenou um "funeral decente, mas sem pompa",
manifestando o desejo de ser sepultada "se for possível, na
Igreja Matriz, sendo acompanhada pelos Sacerdotes que se
acharem, os quais me dirão uma missa de corpo presente e
um oitavário seguido".
Pediu missas: "cinqüenta pelas almas do Purgatório em
compensação de alguma promessa que deva e tenha passado
pela lembrança; vinte por alma de meus pais; vinte por alma
daquelas pessoas com quem tenha tido negócios e que,
contra minha vontade, possa ter prejudicado".
Confirmou que por ocasião do casamento de Teresa Tomásia
deu-lhe a escrava querida — Maria Crioula — que lhe custou
quinhentos mil-réis. A filha Joana deu-lhe desde pequena a
escrava Luísa Cabral e que, ao morrer, Haidée, a netinha,
receberia a parda Severina, ou se preferisse, um conto de
réis em dinheiro.
Quanto aos outros escravos "Martinho e Delfina, casados,
continuarão a servir como escravos, aquele por mais seis e
esta por mais quatro a contar-se do meu falecimento, findos
os quais o meu testamenteiro lhes passará carta de
liberdade".
Deixando ainda consignadas outras manifestações de última
vontade quanto ao destino de bens e indicação de
testamenteiros, concluiu: "£ este o meu solene testamento,
que estando em meu perfeito juízo e entendimento,
ignorando a hora em que Deus tenha de chamar-me,
determino fazer; é minha última vontade, que quero se
cumpra depois de minha morte e para o que, peço à Justiça
de meu pais que lhe dê todo vigor e cumprimento".

XLVIII
MISSÃO CUMPRIDA

Senhora Ana Jacinto de São José:
Homens de letras, dos mais ilustres, vivos e mortos e,
também, milhares de forasteiros de outras regiões do Brasil e
do estrangeiro, andaram em terras do Araxá e provaram as
águas de suas fontes.
A impressão deles foi forte, pois muitos dedicaram a essas
rústicas paragens palavras em que transbordam os mais
variados sentimentos, a começar por Saint Hilaire que foi o
primeiro a deixar em livro famoso, frases esparsas sobre o
Araxá: "une belle plaine couverte de pâturages et bordée par
des capões; onde ele encantou-se porque" l'aspect du village,
dont toutes les maisons, Ion de mon voyage, étaint encore
nouvelles, la verdure des pâturages, les bouquets de bois
dont ils sons parsemés, la beauté ravissante du ciel, cet air de
gaité qu'ont si souvent les pays de plaine, tout cela formait
un ensemble charmant". Queixou-se, porém, da má
educação de seus habitantes em contraste com a polidez da
dos outros povoados mineiros: "Il s'en faut bien que les ha-
bitants d'Araxa aient cette politesse qui distingue ceux de la
partie orientale de Minas Gerais. Leurs manières sont, en
général, grossières et dédaigneuses".
Como se vé, Araxá é, por fatalidade, uma região que suscita
polêmicas. Provoca tudo, menos a indiferença.
Quem ignora o bem que Alberto de Oliveira, o grande e
saudoso vate, dedicava a esses ermos que anualmente
visitava?
Adelmar Tavares, certa vez, ao percorrer a igreja de São
Sebastião do Araxá, em que repousa a imagem de Nossa
Senhora das Dores, empolgou-se pela obra de um pobre e
genial artista chamado Bento Antônio da Boa Morte que, em
1824, esculpira-o de um velho tronco de cedro e, sem
conter a inspiração, em loas à sagrada imagem, fez um lindo
poema-prece que dedicou a seu amigo Fausto Alvim, de
onde extraio estes formosos fragmentos:

"Senhora das Dores do Araxá
Vestidinha de roxo como a bonina da serra,
Vestidinha de roxo como a estrela da chuva,
Vestidinha de roxo como a chaga de Cristo!
Venho de um mundo de tão longe para ver-te:...
Trago-te todas as rosas que abriram hoje
na manhã de tua linda Cidade.
— As rosas que as mãos trêmulas de Alberto um dia te
trouxeram,
Por entre estrofes imortais!...
Senhora, que Bento Antônio da Boa Morte,
o pobre artista fazedor de imagens,
ergueu de seu Gênio, e da sua fé,
de um rude cedro da montanha,
há mais de século passado;
Senhora das Dores, ora por
nós!"

Depois, veio Olegário Mariano. Não sei se ele visitou a velha
igreja de São Sebastião, nem tampouco se viu as esculturas
sacras de Bento Antônio, cognominado com justiça o
Aleijadinho dos Sertões, mas sei que, depois de beber a água
azul de vossa fonte, compôs aquele soneto famoso a que
chamou "A fonte da Beija" e que contém esta passagem
vibrante:
"A água que corre em lânguidos meneios,
Guarda o perfume quente na água fria,
Daqueles braços e daqueles seios..."

Viriato Corrêa também escreveu algo sobre vossa vida, para
teatro, em peça infelizmente de tão restrita divulgação, que
nem eu, empenhado em conhecê-la, pude deitar os olhos
sobre tal escrito.
E tantos mais!
Waldir Costa, por exemplo, em seu minucioso livro "Araxá
— Da maloca ao Palácio" dedica-vos algumas páginas
interessantes.
Um velho médico local, Augusto Eduardo Montandon,
tentou descrever vossa incomparável beleza, nesta pequena
frase tão cheia de entusiasmo e significação: "A natureza fez
a Beija e depois quebrou o molde, para não sair outra criatura
igual".
Fostes, pois, realmente incomparável, Senhora Ana Jacinta,
e não fora assim, como explicar que a magia do vosso nome
perdurasse, desafiando o tempo?
Outros artistas em vós se inspiraram, externando-se através
de variadas manifestações estéticas.
Nos vitrais das termas e nos azulejos das fontes falam de vós
Joaquim Ferreira da Rocha e Genesco Murta.
Ao professor Calmon Barreto devem-se a pintura e a
maquete de vossa estátua eqüestre, ainda não erguida na
praça fronteira ao Grande Hotel e às Termas do Barreiro do
Araxá.
Não há palavras para descrever a beleza dessa concepção
artística. Imaginou-vos ele montada à amazona, seguida do
infeliz pajem, no esplendor dos dezesseis anos, 'justamente
no dia fatídico em que os olhos do Grande Ouvidor cairam
sobre vós, como os de uma ave de rapina.
A idéia de movimento que a estátua dá, é tão natural, que se
tem a impressão de que o cavalo da frente trota, enquanto o
de trás esforça-se por alcançá-lo. Do conjunto escultural,
ressuma um tal frêmito de vida, que só um artista que sabe e
sente a vossa história poderia dar. Em verdade, o que se
imagina ao vê-la, o que quase se sente, é o próprio vento a
desalinhar-vos os cabelos, a beijar-vos as faces e a obrigar o
pesado traje de montaria a não esconder o modelo das vossas
formas perfeitas.
Tão intensa a impressão que essa obra de arte me causou,
que não resisti à tentação de pedir ao artista que a
reproduzisse na capa deste livro.
É a única imagem que ostenta.
Deixamos para o fim a referência ao Major Sebastião de
Affonseca. Foi ele quem, de viva voz, primeiro me contou
vossa história, vestindo-a com graça e vivacidade, ao relatar
autênticas narrativas que, por sua vez, ele ouviu de pessoas
que convosco conviveram no século passado.
Quando, anos após, retornei às notas que, a vosso respeito,
dele colhi em 1948, soube que ele deixara em mãos do
Professor Calmon Barreto completa biografia datilografada
assim intitulada:

1800 - 1874
ANA JACINTA DE SÃO JOSÉ
(DONA BEIJA - IN NATURA)
SUA VIDA EM ORDEM CRONOLÓGICA
DO BERÇO AO TÚMULO
COLETÂNEA DE NARRATIVAS OUVIDAS DE
PESSOAS SEPTUAGENÁRIAS,
OCTOGENÁRIAS, NONAGENARIAS E QUASE
CENTENÁRIAS
1950
ARAXÁ - MINAS

Esse trabalho, não divulgado, mas que eu tive o privilégio de
ler, é precioso repositório de fatos, escrito de maneira
pitoresca e muito original, como aqueles transcritos neste
livro, o que fizemos com a necessária autorização do Autor.
Eis agora mais um livro, Senhora, a vosso respeito. Não é
uma biografia, nem pretende confirmar ou negar isto ou
aquilo que até hoje foi escrito. É apenas uma tentativa de
interpretação, romanceada a meu bel-prazer do sentido que
deu à vossa existência e dos seus fatos marcantes cuja maior
parte chegou-me através de narrativas e escritos que senti
deturpados pela curiosidade erótica. Essa curiosidade mal-sã,
se por um lado teve a vantagem de manter viva a vossa
lembrança, sem dúvida também fez que se perdesse de vista
o objetivo mais alto de vossa vida.
Esta é a conclusão a que cheguei.
Fiz este livro quebrando uma linha de conduta que me
impus há vários anos: a de não tornar às letras profanas.
Obrigastes-me, Senhora, a romper compromisso que,
embora assumido comigo mesmo, nem por isso supunha
revogável.
Com ele respondo à irresistível magia da vossa súplica, que
me apanhou desprex snido em meio a uns poucos dias de
férias, arduamente adquiridos, quando, não sei se
adormecido ou acordado sobre a maciez da relva úmida,
diante de vossa fonte murmurante, olhava embevecido um
céu extravagantemente belo, no encantamento de uma noite
de primavera.
Presto-vos, pois, contas, Senhora, da vossa ordem e do meu
mandato. Do mais estranho mandato que me veio ter às
mãos, em circunstâncias ainda mais estranhas, e para
terminar, direi duas palavras apenas: missão cumprida.
Mas não, vejo que isso não basta. É pouco. É seco. É militar
demais.
Permiti, pois, Senhora, que acrescente algo ainda ao que aí
vai, como confidência, ou mesmo como confissão: foi,
talvez, o perfume de pecado o que me atraiu em vossa
história, pobre pecador que também sou. À medida, porém,
que fui conhecendo a verdade, tomando contacto com
vosso sofrimento, vendo como a possibilidade de amar vos
foi negada, só então percebi o que outros antes talvez não
vissem ou não quisessem ver, sentindo o que outros talvez
não sentissem: que vossa vida, Senhora, foi uma luta
dramática e desigual, contra o seu arraial, contra o seu meio,
contra a sua época, contra tudo e contra todos!
Mas vencestes. Vencestes como era possível vencer em tais
circunstâncias, isto é, aceitando a luva que vos atiraram à
face, porque outra alternativa não permitiram vossos
inimigos.
Vencendo, não abusastes da vitória. Soubestes preservar
bondade suficiente em vosso coração ferido e, por isso, tão
logo se viram confundidos os que vos queriam mal, voltastes
a ser, sem ira, sem amargura e sem vingança, o que vossa
índole ordenava: uma pobre criatura de Deus, maternal e
boa, mas por Ele castigada em seus insondáveis desígnios,
talvez para que Minas pudesse recuperar as terras do seu
Triângulo; talvez para que o Brasil melhor conhecesse as
fontes benfazejas do vosso Araxá; talvez, sobretudo, para
lembrar novamente aos esquecidos, entre os quais,
infelizmente, vos inscrevestes, que nem sempre os fins
justificam os meios.
É, pois, com um sentir de respeito à vossa vida
incompreendida, Senhora, que encerro estas linhas. Ao
fazê-lo, considerar-me-ei feliz se esse respeito que ora
proclamo, for partilhado por qualquer de meus leitores, e,
com estas despedidas, beija-vos as mãos, vosso amigo e
patrono post mortem.

O AUTOR

P.S. — Não vos preocupem meus honorários, Senhora. Já
não disse e repito que me considero bem pago e satisfeito?
Haverá moeda que valha o inesquecível diálogo que se
dignou entreter comigo naquela mansa e misteriosa noite de
primavera?

Há contradições quanto à localização da Chácara do Jatobá. Tudo indica, porém, que ela se situava
nas proximidades das fontes.
Obra citada, págs. 43 a 48.
Obra citada, págs. 48 e 49.
Obra citada.
"Aos oitenta anos" deixou escrito o médico Eduardo Augusto Montandon "ela po«-Muía ainda os
traços de beleza que a destacavam do comum das outras velhas".




 
 
 
 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
Dona Beija - A Feiticeira do Araxá - Thomas Leonardos
 
 
links ao final da mensagem
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
Sinopse:
 
Em 1880 viveu no Triângulo Mineiro uma singular mulher. Chamava-se Ana Tacinta de São José, mas foi pela alcunha poética de Dona Beija que passou a ser conhecida.
Há, nas planuras altas do Brasil central, uma flor azul, oriunda de planta agreste, de nome Beijo e, como os olhos de Ana Jacinta eram azuis também, isso explica a razão do apelido.
 
As recordações que essa criatura deixou são várias e contraditórias. Sabe-se que teve um fim de vida sereno, dedicado à caridade e à religião, em contraste com sua mocidade, tormentosa desde os dezesseis anos, a partir do dia em que foi raptada pelo Ouvidor-Real, Joaquim Ignacio Silveira da Motta. Dai por diante e até que a velhice viesse empanar-lhe a beleza — dizem as crônicas da época — foi seu triste destino, destruir reputações e fortunas de homens de prol.
 
 
 
 
 
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