quinta-feira, 31 de março de 2011 By: Fred

Lançamento Gênesis do Conhecimento - Voltar do Amanhã - Dr. George G. Ritchie


Um psiquiatra descreve aqui sua própria experiência no
outro lado da morte...

VOLTAR DO
AMANHÃ

Dr. George G. Ritchie e
Elisabeth Sherrill


Tradução
GILBERTO CAMPISTA GUARINO

QUINTA EDIÇÃO


APRESENTAÇÃO

Considerando-se a história e o desenvolvimento da Filosofia,
bem se pode caracterizá-la como uma obsessão com a
morte. A morte, aliás, jamais deixou de ser uma profunda e
fundamental preocupação dos filósofos. Assim, não é tão
surpreendente que eu tenha ficado intrigado quando em
1965, aos 21 anos, como estudante que ainda não colara
grau em Filosofia, soube do caso de um homem, tido por
clinicamente "morto", que passara por uma experiência
incrível e vivera para narrá-la. Como se não bastasse, esse
homem era um médico respeitável, por aquele tempo um
psiquiatra residente, já com o acervo de catorze anos como
clínico geral. E ele ansiava por compartilhar sua história.
Quando surgiu uma oportunidade de ouvi-lo falar,
aproveitei-me disso, fiquei profundamente impressionado e
"arquivei" tudo mentalmente. Mais tarde, ouvindo outros
relatos similares, comecei a investigar experiências de quase-
morte.
O nome do psiquiatra é GEORGE RITCHIE, que — agora —
deu à público a sua experiência: a crônica de um dos três ou
quatro mais fantásticos e bem documentados casos de
"morte" que conheço. Mesmo considerada isoladamente, a
história do Dr. RITCHIE é surpreendente, ainda mais
quando se compreende e leva em conta as centenas e
centenas de pessoas que mantiveram íntimos contatos com
a morte, retornando com narrativas notavelmente
semelhantes.
Para muitos, permanecerá a pergunta: GEORGE RITCHIE
esteve realmente morto? E estiveram-no os muitos outros
que se viram em tais circunstâncias?... Em termos amplos, se
morte se define por um estado peculiar ao corpo, do qual
nenhuma reestruturação funcional é possível — definição
esta bastante razoável —, tem-se que nenhuma dessas
pessoas estava morta. Entretanto, a matéria dos critérios
últimos de tanatodiagnose está, no sentido clínico — e
mesmo agora —, solta no ar, sem muita colocação na própria
Medicina. De minha parte, estou propenso a entender que
— independentemente do estado que se aceite como o de
morte corporal — o Dr. RITCHIE e alguns outros chegaram
mais perto, muito mais perto desse estado do que a grande
maioria de seus companheiros viventes, seres humanos
como eles. E, só por essa razão, eu estou ansioso por ouvir o
que têm a dizer.
Uma outra pergunta que frequentemente aparece em relação
a essas experiências versa que tipo de efeitos elas geram na
vida daqueles que as atravessam. Serão visíveis, pelo teor da
própria narrativa do Dr. RITCHIE, as vastíssimas — na
realidade, centrais — consequências advindas à vida que
leva. Infelizmente, só os que o conhecem como amigo
podem verdadeiramente sentir a profundidade de
benevolência, compreensão e amorosa preocupação com o
próximo que caracterizam esse homem notável.
Com essas observações, deixem que eu me afaste do
caminho e que os apresente ao meu amigo George. Espero
que, através deste livro, venham vocês a amá-lo como
minha família e eu o amamos.
Dr. R AYMOIMD A. MOODY, JR.
Autor de "Vida depois da vida"

Prefácio à Edição Brasileira

Seria possível ao homem ver e estar no amanhã?
Considerando-se as consequências a que conduz o estudo da
Física moderna, associando a Mecânica Quântica e a Teoria,
da Relatividade (Restrita e Geral), na tentativa de formular
um modelo que explique melhor os Fatos do nosso
contorno, pode dizer-se que, hoje, as fronteiras do
"impossível" estão muito além da audácia dos aceleradores
de partículas, que dilatam, que empurram para adiante o
campo da Física das inconcebíveis energias dos
megaeletronvolts e dos gigaeletronvolts.
A teoria quântica do campo, a geometrodinâmica quântica e
as chamadas "gauge theories" estão, dia após dia, en-
trelaçando-se com outras áreas do Conhecimento. Aliás,
esse peculiar fenômeno de consciência, consciência esta que
Itzhaak Bentov definiu como sendo "a capacidade de um
dado sistema responder a estímulos, em quantidade e quali-
dade" (Stalking the Wild Pendulum), lembra uma rede cujas
malhas se ínterseccionam, forçando-nos, cada vez mais, em
direção à unidade ontológica, num outro nível de
perquirição epistemológica.
Descartes, o genial criador da Geometria Analítica, afirmou:
"Toda a Filosofia é como uma árvore cujas raízes são a
Metafísica, o tronco é a Física e os galhos que saem deste
tronco são todas as outras ciências". (Meditações)
John Archibald Wheeler, uni dos mais notáveis físicos
teóricos do mundo, um mestre da Geometrodinâmica
(Teoria da Relatividade Geral), escreveu: "A Ciência não
progride antes que a Filosofia autorize-a e encorage-a a
tanto". (Gravitation, pág. 1.208 com Charles Misner e Kip S.
Thorn).
Jean-Emile Charon, renomado físico teórico, afirma-se
"convicto de que, se os cientistas contemporâneos se recu-
sam, por instinto, a penetrar os temas da Metafísica com
suas pesquisas, não obstante serem aqueles tão fundamentais
para o Homem, deve-se-o, em parte, à incapacidade de
filosofar, e, em parte, porque se revelam inaptos a imaginar e
a criar. Finalmente, porque a reflexão metafísica lhes é
inacessível. (L'Esprit — Cet Inconnu)
David Finkelstein, prefaciando The Dancing Wu Li Masters,
de Gary Zukav, anota: "Zukav sabe que a Física é, dentre
outras coisas, uma tentativa de harmonia com uma entidade
muito maior do que nós próprios, pedindo para plantar,
formular e erradicar, primeiro um, depois outro dos nossos
mais acalentados preconceitos e hábitos de pensamento
enraizados — uma busca sem fim do inatingível. (The
Dancing Wu Li Masters)
O Dr. George Ritchie não tratou, especificamente, de
nenhum desses assuntos, mas nos leva a cogitar de todos
eles. Apresentou um Fato e narrou as suas decorrências.
Enfrentou uma guerra, viu-se, por inúmeras vezes,
totalmente perplexo, esmagado pela força dos
acontecimentos, passou por fases de depressão, preparou um
homem para morrer, e morreu — ele mesmo —
clinicamente, por nove minutos, sobre um leito de hospital,
no Texas.
Rapidamente, do Acampamento Barkeley para o consul-
tório, a Vida exigiu-lhe um testemunho de honestidade e
coerência, que o fez antecipar-se ao amanhã da
Humanidade, depois de ter voltado do seu próprio amanhã...
Em nove minutos de tempo objetivo, desenrolou-se toda
uma existência de tempo subjetivo, relativamente à nossa
dimensão.
Isso resultou num pequeno livro, de grandes perspectivas,
não obstante. Nada melhor que a narrativa do fato, para
vermos se ele confirma ou infirma a teoria.
Haverá uma vida depois da morte? Quem poderá dizê-lo?
Somente os que afirmam ter visto o "outro lado". E será
mesmo, aquele, o "outro lado"?... Ou... o nosso é que é um
outro?...
O Conhecimento é um fato singular, que comporta — no
mínimo — cinco problemas: de possibilidade, de origem, de
forma, de essência e de critério da verdade. Nele, que é a
própria vida, não existe lugar para os que, simplesmente,
querem gozar, usufruir, observar... Não existe mais lugar
privilegiado para estes.
George Gordon fíitchie é um dos que participam, em ato.
Será que nós não somos outros tantos, em potência?... Será
que Você não é o próximo?...
Gilberto Campista Guarino
Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1980.

Nota

Esta tradução não é nem literal nem literária "stricto sensu".
Comparando os textos de inúmeros originais, em vários
idiomas, com as traduções para a língua portuguesa,
frequentemente tenho experimentado a estranha sensação
de que o conteúdo do pensamento dos autores ora escapou
da forma, ora foi esmagado por ela.
Como nos célebres versos de Belmiro Braga (poeta mineiro)
a Emílio de Menezes:
"Ora o assunto transborda do soneto, Ora sobra soneto e
falta assunto..."
Não tenho dúvidas de que a boa tradução precisa recriar o
original. Digo recriar porque, antes de mais nada, o que
necessita ser transposto é a intenção, o pensamento do
autor; a forma não pode deixar de obedecer ao vernáculo
que recebe a idéia. Seria absurdo escrever em português
como se se estivesse no trato do inglês, por exemplo. E vice-
versa.
Não obstante, urge atentar para o fato de que, se todas as
palavras, em suas múltiplas combinações, estão denotando e
conotando alguma coisa, no original, a tradução — se não
deve copiar o vocabulário — não pode prescindir de retratar
todos os conteúdos.
Assim, transpor e modular são técnicas, no método de
traduzir, abrangendo palavras, frases, períodos e estilos. E
todos eles são verdadeiros "holons", apenas para lembrar a
magnífica teoria de Arthur Koestler.
No caso vertente, o leitor vai ter uma conversa em voz alta:
nem o rigor da linguagem escrita, nem a total e absoluta
liberdade da linguagem falada. Aqui, ambos os modos
cooperam; não se excluem.
Com isso, creio justificar a alguma gíria e a correta colocação
pronominal, o coloquialismo e algum vernaculismo, que
procurei dosar de modo a reproduzir o original da ágil língua
inglesa. Nela, o autor "pensou alto".
Esperemos, todos, participar da sessão de Fred Owen,
sabendo colocar-nos, ora como Ritchie, ora como o
paciente.
O Tradutor

1

Cheguei cedo ao meu consultório, de modo a — como
gostava — ter uns poucos minutos a sós, antes que meu pri-
meiro paciente chegasse. Olhei o cômodo ainda na
penumbra — a escrivaninha, cadeiras confortáveis, o sofá
amarelo diante da janela. Achei a prática da psiquiatria
profundamente satisfatória. Durante os treze anos em que
trabalhara como médico, experimentara com frequência a
sensação de que estava tratando somente com partes de uma
pessoa, lidando, antes, com sintomas de doença do que com
a própria doença. No "Memorial Hospital", em Richmond,
Virgínia, onde eu estagiava, não havia tempo para conhecer
meus pacientes como gente; isso, aliás, é comum em todos
os grandes hospitais da nossa época. Não havia tempo para
se ouvir as indagações que estavam por detrás das perguntas
que eles haviam feito na sala de entrevistas.
Voltei então à escola, já quando estava na casa dos quarenta.
Não havia sido fácil pedir à minha esposa para deixar
Richmond, e mudar-se para Charlottesville; não havia sido
nada fácil desenraizar as nossas crianças da escola, desistir da
minha posição como presidente da Academia de Clínica
Geral de Richmond, e voltar a outros anos de estudo e resi-
dência. Todavia, durante a dúzia de anos, que se seguiu
àquela decisão, por muitas vezes me senti feliz por a haver
tomado, e jamais tanto quanto neste instante calmo, ao
começo do dia.
Com uma sacudidela, abri a agenda sobre a mesa e corri a
lista de consultas do dia. Mildred Brown. Peter Jones. Jane
Martin.
Não me recordara de que, ainda ontem, ele havia deixado a
clínica da Universidade. O médico de Fred, na última
semana, dera-me, por telefone, o seu relatório: "carcinoma
nos pulmões, com metástase para o cérebro", mas eu já sabia
disso. Fred estava morrendo de câncer pulmonar. Desde
setembro que eu suspeitava de tudo, já há cinco meses, da
primeira vez que ele veio procurar-me com sintomas de
depressão aguda. Tudo — a depressão, a tosse seca, o fumar
ininterrupto, durante nossas sessões - me havia posto em
alerta, tanto que lhe marquei uma hora para exame físico
completo no Hospital-Escola Médica da Universidade de
Virginia, aqui em Charlottesville.
Aparentemente, Fred não foi a esse exame. Três semanas
mais tarde, como tivesse redobradas suspeitas, examinei-o
mesmo nesta sala. E claro que eu não dispunha de equipa-
mento adequado, mas ouvira o suficiente através de um
estetoscópio. Desde então, ele tem estado no Hospital da
Universidade, submetendo-se a uma série de testes e
conferências. Isso, porém, tem sido mais por consideração a
Fred, e no seu interesse, do que em função de alguma
dúvida.
E agora, às 13:00h, ele estaria aqui. Como poderia ajudá-lo
diante do tremendo fato da sua própria morte? Nos meses
em que estivera a vir aqui, ele havia dado tantos passos
importantes... mas tinha ainda um longo caminho a
percorrer. Era de tempo que ele precisava,
desesperadamente precisava. E era exatamente tempo o que
Fred não tinha mais.
Além disso, esse câncer inoperável surgindo justo agora —
ele estava com quarenta e poucos — parecer-lhe-ia a própria
negação de todos os progressos que tinha feito. No seu caso,
o câncer iria provar em cheio o que a sua neurose sempre
quisera ver provado: que o mundo e cada pessoa tinham,
desde que nascera, conspirado contra ele. E o problema era
que ele não estava de todo errado. Fred nada conhecera
além de relacionamentos doentios: desde uma mãe que o
renegara, através de uma série de instáveis lares de adoção,
até uma sucessão de patrões que o haviam explorado, e um
casamento desastroso. Nosso objetivo era desenvolver
relações mais sadias. Começando com os primeiros sinais de
confiança em mim, ele estava — pela primeira vez na vida
— estendendo a mão a verdadeiras amizades. E agora estava
morrendo! A traição suprema ocorrera, a prova decisiva de
que haviam, desde o início, jogado contra ele.
Durante outras sessões, naquela manhã, minha mente
permaneceu voltando-se para Fred. À hora do almoço, pedi
um sanduíche e comi-o sentado à minha mesa, para o caso
de ele chegar cedo. Mas... 13:00h, e nada... 13:15h, e
nenhum sinal de Fred... Chegou às 13:35h, a primeira vez,
em cinco meses, que se atrasara para a sessão.
"Não vou poder pagar", disse ele, mesmo antes de sentar-se.
"Saí do emprego esta manhã. Disse àqueles camaradas
sovinas exatamente o que eu pensava deles! Queriam que eu
ficasse até que eles arranjassem substituto, mas por que eu
deveria fazer isso por eles?"
"Quatro meses foi o que os doutores me deram!", continuou,
largando-se na poltrona com algo que, provavelmente,
desejava parecesse uma risada. "Que piada, hein doutor?
Toda essa escavação no passado, para que eu pudesse
melhorar no futuro... só que, agora, não vou ter um futuro!
Arranjei as coisas com a minha mãe, arranjei tudo com a
minha mulher — e, agora, tudo uma perda de tempo, hein?"
"Ao contrário", eu lhe disse. "Essas coisas são, agora, mais
urgentes do que nunca. O seu futuro, mais do que você
possa imaginar, depende da rapidez com que você resolva
esse assunto de relacionamento".
Ele me encarou... o seu olhar ferido era terrível de se ver.
"Meu futuro?", disse, num eco. "Acabo de lhe dizer que eles
me dão quatro meses, o que, provavelmente, significa quatro
semanas, porque médicos mentem como qualquer outra
pessoa. Francamente, não acho que valha a pena."
"Não estou falando de quatro meses, ou quatro semanas, ou
quarenta anos. Estou falando a respeito do futuro que não
tem medida."
Vi, então, os olhos de Fred abrirem-se desmesuradamente, e
isso foi como se uma porta houvesse batido bem na minha
cara. "Você está falando sobre... céu e inferno, esse tipo de
coisa? Deixe disso, doutor!"
Ele estava tentando manter o tom mefistofélico, mas eu
pude ver que o aborrecera. Nosso relacionamento tinha sido
construído devagar, através das semanas, com base no
compromisso de que eu "jogaria limpo" com ele. Isso era de
absoluta importância; frequentemente, Fred comentava que
eu era a primeira pessoa que não tentava iludi-lo.
"Nunca pensei que, dentre tanta gente, recebesse isso de
você! Se eu quisesse escutar baboseiras sobre a morte não ser
o fim, teria procurado algum ministro carola. Se você puser
um bom donativo na sacola, eles prometerão asas e uma
harpa e tudo mais o que você queira".
Respirei fundo, tateando atrás das palavras certas — ou, pelo
menos, procurando as que não fossem erradas. Eu conhecia
da história de Fred o bastante para saber que qualquer coisa
traindo uma simples sugestão religiosa era anátema para ele.
O mais cruel dos três pares de pais adotivos que tivera havia
sido um pio casal, frequentador de igrejas, que acreditava
poder espancar a soturnidade do alheado menino.
"Não sei nada sobre harpas e asas", eu disse. "Só posso dizer-
lhe o que eu mesmo observei depois..."
Fiz uma pausa, com receio da palavra perigosa que poderia
desfazer a ponte de confiança erigida entre nós. "Depois que
eu morri" — isso era o que eu havia começado a dizer.
Todavia, aqui estava um homem para quem, com frequên-
cia, se havia mentido. Como poderia eu partilhar com ele
esse ponto nevrálgico da minha vida, sem parecer o maior
mentiroso de todos?
Hesitante, comecei:
"Fred, uma vez os doutores desistiram de mim também,
acharam que era caso perdido. Fui declarado morto, com
lençol sobre a cabeça e tudo o mais. O fato de que,
transcorridos dez minutos, fui trazido para viver um pouco
mais sobre esta terra é, para mim, um simples parênteses
numa história muito maior. E, Fred... é essa grande história
que eu gostaria de contar para você".
Fred tirou um maço de cigarros e, com a mão trêmula,
acendeu um.
"Você está me pedindo para acreditar que deu uma olhada
nalgum tipo de vida futura? Não importa se esta vida é uma
peça ordinária, porque tudo vai virar rosas na outra... E isso
o que você vai dizer, não é?"
"Não estou pedindo que você acredite em coisa alguma.
Simplesmente, estou contando aquilo em que eu creio. E
não tenho qualquer idéia sobre com o que a outra vida vai
parecer. O que quer que eu tenha visto foi, por assim dizer,
da soleira da porta. Todavia, foi o bastante para me conven-
cer de duas coisas: uma, que nossa consciência não cessa
com a morte física; e que, na realidade, fica mais penetrante
e autoconsciente do que nunca. Outra, que o modo pelo
qual empregamos nosso tempo, o tipo de afinidades que
construímos na Terra é muitíssimo mais — infinitamente
mais — importante do que podemos supor".
Por algum tempo, Fred estivera muito aborrecido comigo
para me olhar no rosto. E, de repente, perguntou — os olhos
fixos na forração marrom e verde:
"Já que você estava tão doente quanto diz, como é que sabia
que não estava delirando?"
"Fred, isso é porque essa experiência foi a coisa mais
completamente real que aconteceu comigo. E, também, des-
de aquele tempo, tenho tido oportunidade de estudar sonhos
e alucinações. Tratei de pacientes que sofriam alucinações.
Simplesmente, não há qualquer semelhança."
"Quer dizer que, honestamente, você acredita que nós
continuamos... sendo nós mesmos? Quero dizer, que nós
continuamos sendo nós mesmos depois?"
"Apostaria minha vida nisso. Tudo o que eu fiz, nos últimos
trinta anos — graduar-me em Medicina, especializar-me em
Psiquiatria, e todas as horas de trabalho voluntário com
gente jovem, a cada semana —, tudo remonta àquela
experiência. Não creio que o delírio possa fazer isso, possa
governar toda a vida de um homem".
"Delírio não podia mesmo", ele concordou. "Mas... e se fosse
uma ilusão momentânea? Suponha que... você sabe...
estivesse enganado durante todo o tempo?"
"É... suponha que eu estivesse doido, você quer dizer".
Eu estava sorrindo, mas essa era uma pergunta válida,
legítima. De todos os mortais, os loucos parecem o mais
plausível a si próprios.
"É uma pergunta difícil de responder, Fred. Não creio que
qualquer um de nós possa ter sempre a certeza de estar
sendo coerente. Todavia, tenho uma razão para esperar que
o que digo tenha sentido, e essa razão é a verdadeira inqui-
sição a que fui submetido na Universidade de Virgínia, antes
de poder treinar como psiquiatra. Tive de enfrentar cada
membro superior do pessoal, um por um, responder a todo o
tipo de pergunta que me propusessem. E isso porque a
experiência que eu atravessei — a experiência da morte e
daquilo que acontece depois — foi tão decisiva para tudo
aquilo em que eu acreditava que achei que eles tinham um
certo direito de saber sobre ela. Por isso, contei-a para eles.
O que os eminentes doutores deduziram, isso eu não sei...
Mas, depois de ouvirem tudo o que eu tinha a dizer, todos e
cada um deles me julgaram, ao mesmo tempo, são e
emocionalmente equilibrado".
"O que prova que os médicos são malucos", disse Fred.
Mas ele estava sorrindo, o primeiro sorriso desde que en-
trara. Eu sabia que, quaisquer fossem as suas reservas, pelo
menos estava pronto a ouvir.
A história era longa demais para ser contada em uma, ou até
mesmo em duas sessões, mas senti que, não obstante o
tempo que levássemos, a coisa toda valeria a pena. Sendo
Fred o tipo de pessoa que era, eu sabia não ser aconselhável
começar pela minha interpretação pessoal do fato. Era
necessário que ele o escutasse, pormenor por pormenor, tal
como aconteceu, para, depois, montar sua própria opinião.
"Não vou tentar induzí-lo a qualquer conclusão, Fred. Vou
me limitar a descrever o que se passou,'passo por passo,
desde o momento em que dei entrada naquele Hospital do
Exército. Se, mais tarde, você quiser discutir sobre a signi-
ficação que porventura exista — significação para você, para
mim — poderemos fazer isso".
"Hospital do Exército?" Fred indagou. E retrocedeu: "Isso foi
durante a Segunda Guerra Mundial, não foi? Você quer dizer
que... levou um tiro?"
"Foi durante a guerra, Fred... mas nenhuma bala me atingiu".
Sorri, pesaroso à recordação. "Foi o clima no oeste do
Texas..."

2

Fechei os olhos, recordando-me de há trinta e dois anos,
lembrando-me da longa viagem de Virgínia a Abilene, no
Texas, com centenas de recrutas, muitos — como eu —
saindo de casa por vez primeira. Eu nascera e fora criado em
Richmond, e lembro-me bem do meu espanto ao constatar
que havia, no mundo, algum lugar vazio de árvores.
E comecei a narrativa...
"Era pelo fim de setembro de 1943. Eu estava a caminho do
Acampamento Barkeley, no Texas, para o treinamento
básico. Contava, então, vinte anos de idade. Era alto, mais
magro, o tipo atraente de garoto daqueles dias, cheio de
idealismo sobre vencer a guerra e varrer os nazistas.
A única coisa que eu não estava apto a combater era a
poeira. Na estação ferroviária de Abilene, fomos acomoda-
dos em caminhões que se dirigiam ao acampamento, muitas
milhas além. A poeira era soprada com tanta força que, du-
rante todo o trajeto, nada pudemos ver. Eu sabia que o
Acampamento de Barkeley tinha de ser um lugar enorme —
estimava-se que lá estivessem treinando 250.000 homens —
, mas levou dias até que a poeira assentasse o suficiente a me
permitir dar uma olhada no local: era uma cidade de
barracos de madeira estendendo-se pelo deserto.
Durante as tempestades de pó, nós tínhamos de ir para os
exercícios usando óculos de proteção, e, mesmo assim,
éramos forçados a ter sempre uma das mãos no ombro de
quem ia à frente; caso contrário esbarraríamos uns nos ou-
tros. A chuva começava em novembro, e toda aquela
poeirada virava lama. Mas o vento secava tudo e soprava pó
no rosto de todo o mundo. Costumava-se dizer que era, na
Terra, o único lugar onde se podia marchar com lama até os
joelhos e ainda levar poeira nos olhos.
Como se não bastasse, ficava terrivelmente frio em de-
zembro, mais frio do que jamais o fora, em Richmond. No
dia 10 de dezembro, sentamo-nos no chão, por duas horas
— fazia 10 graus abaixo de zero —, enquanto algum jovem
tenente ensinava-nos o modo correto de limpar o
equipamento. Naquela noite, todo o nosso pelotão estava
tossindo.
Na manhã seguinte, minha garganta ainda estava doendo,
então fui recolhido ao "estaleiro". Seguramente, eu estava
com febre, não uma febre muito alta, mais ou menos 38.8° -
Mesmo assim, veio um jipe e conduziu-me para o hospital
da base.
O hospital era algo da ordem de cinco mil leitos, ocupando
mais de duzentas construções em madeira, baixas, todas
entrecortadas por corredores. Estando eu com febre, a
enfermeira de plantão mandou-me para uma ala de
isolamento, que compreendia alojamentos com vinte e
quatro camas, um consultório médico, uma sala para o
pessoal da enfermagem e, de um lado, por onde se entrava,
um cômodo de provisão; do outro, três cubículos, com
apenas uma cama em cada um, onde você era alojado caso
estivesse realmente enfermo. Eu, no entanto, estava
levemente febril, por isso que ocupando a ala principal.
A única coisa que de fato me preocupava era que, no dia 18
de dezembro — e era, então, dia 11 —, eu deveria tomar um
trem de volta a Virgínia. Eu havia obtido, simplesmente, a
maior oportunidade que um soldado raso de vinte e um anos
podia esperar do Exército dos Estados Unidos, e não ia
desperdiçá-la por causa de um resfriado tolo. Começaria a
frequentar as aulas, no Colégio Médico de Virgínia, aos 22
de dezembro, na minha cidade natal: Richmond. Iria tornar-
me um médico, sob os auspícios do Programa de
Treinamento Especial do Exército.
O espanto que tudo isso me causara mantinha-me acordado,
à noite, imaginando se era mesmo verdade. Foi logo depois
do Dia de Ação de Graças que me mandaram chamar do
campo de exercícios para enfrentar uma sala apinhada de
majores e coronéis — até mesmo dois generais-de-brigada.
Eu estava certo de que se tratava de uma corte marcial e
tentava recordar, evocando cenas de filmes, se eles lhe
davam uma oportunidade de telefonar a seus pais, ou se o
conduziam para fora e o fuzilavam.
Com meus joelhos tremendo, permaneci em posição de
sentido, enquanto eles me crivavam de perguntas. Era
verdade que havia concluído o pré-médico na Universidade
de Richmond? Era verdade que eu havia sido aceito no
Colégio Médico de Virginia? Qual fora a razão que me levava
ao alistamento no Exército, já que os estudantes de Medicina
eram automaticamente dispensados de incomoração?
Um dos oficiais deu, finalmente, explicações. Pelo inverno
de 1943, o Exército ressentia-se da falta de médicos. Todos
sabiam que a grande invasão dos aliados, na Europa, ia
ocorrer a algum momento do ano seguinte. Por mais quanto
tempo duraria a guerra? Cinco anos? Seis?... Eles precisavam
de médicos, com rapidez, e — é óbvio — o meio mais
rápido de engendrá-los era localizar soldados que houvessem
tido qualquer espécie de treinamento anterior.
Sim, disse-lhes, estremecendo de alívio, eu terminara meu
pré-médico no verão anterior, aos dezenove anos,
completando, em dois anos, o curso que durava quatro. E,
era verdade, minha matrícula no Colégio Médico de Virginia
fora deferida. Quanto ao alistamento opcional no Exército...
era uma questão pessoal, mas todos esses oficiais estavam me
olhando, esperando uma resposta.
Disse-lhes que havia sido por causa do meu pai, devido à sua
entrada no Serviço Militar. Permaneceram, então, de olhos
grudados em mim, aguardando a história toda, de modo que
me lancei a ela. Expliquei que meu pai era um perito em
carvão, trabalhando na Estrada de Ferro C & O, viajando em
contato com seus grandes clientes, mostrando-lhes como
construir fornalhas eficazes, e assim por diante. Quando
estourou a guerra, a C & O cedeu meu pai ao governo
federal, e ele partiu para uma inspeção nacional das plantas
de construção de complexos de energia a partir do carvão,
em bases militares. Quando a invasão da Europa se
transformou numa possibilidade, ele recebeu uma comissão
no Exército e foi designado para integrar um grupo a cujo
encargo ficaria a estocagem de combustível para o Dia D.
Eis que o meu pai, já além da idade de recrutamento, estava
pronto a atravessar os mares e a seguir as primeiras tropas até
ao Continente, para instalar depósitos de combustível. E
aqui estava eu, aos vinte anos, ainda na escola, como se nada
houvesse acontecido. Por isso me alistara voluntariamente e
fora mandado para o Acampamento Barkeley, no Texas.
Eu não comuniquei isto aos oficiais, mas o fato era que umas
poucas semanas na poeira e na lama haviam mudado meu
pensamento a respeito de quanto um soldado de infantaria
era necessário nessa guerra. E, então, bem enquanto sentia
quão pouco eu significava, veio a incrível notícia de que, de
qualquer modo, estava indo para a escola de Medicina, por
iniciativa do Exército!
Permaneci mirando o teto de madeira da ala de isolamento,
metido no pijama branco e empapuçado que eles lhe
fornecem, sentindo-me bastante satisfeito com a maneira
pela qual as coisas estavam se desdobrando. Suponho que, se
eu fosse uma pessoa religiosa, teria dito que Deus fizera tudo
aquilo. Todavia, isso não me passou pela idéia, É claro que eu
fora à Igreja, de volta a casa, mas isso não tinha sido de tanta
importância para mim.
Observar, isso é que era importante. Desde os doze anos, eu
era escoteiro, gradualmente subindo de posto, de lobinho a
chefe, e, então, no último verão, assistente nível I do Gran-
de Chefe. Desse modo, tendia a, naturalmente, pensar em
termos de honra, pontos, promoções etc... Agora, o engaja-
mento voluntário no Exército era quase como uma nota de
honra — uma espécie de boa ação —, e o fato de ser
mandado à escola médica, uma espécie de recompensa.
Era assim que a vida funcionava. Tome a Medicina como
paradigma. Durante toda a minha vida eu tinha desejado ser
médico, muito antes de ter idade o bastante para pensar em
ganhar a vida. Descobri, então, no colégio, que os médicos
podiam ganhar muito enquanto ajudavam as pessoas. O
problema era que você não discutia esse mérito para
arrebatar os prêmios. Eles vinham como resultado do que
devia ser feito de correto.
A enfermeira do Exército deteve-se junto ao meu leito e
sacudiu um termômetro. Coloquei-o sob a língua,
esperando, no mínimo, boas novas. Era dia 15 de dezembro,
e eu já estava recolhido àquele pavilhão há quatro dias, sem
qualquer melhora. Isso estava me deixando preocupado com
o embarque, dia 18, naquele trem. Eu sabia que — mesmo
passada a febre - você ficava ainda uns dias na ala de
recuperação.
A enfermeira leu a temperatura e marcou a papeleta.
"Lamento, mas continua com 38.8º, disse, parecendo
realmente consternada. Eu lhe contara sobre a grande
oportunidade conseguida; ela e todo o resto do pessoal me
pareciam mesmo preocupados.
Importunei-os até que me conseguissem um maço de
horários de trens, que guardei na mesinha de cabeceira,
junto da bilha, do copo de água, da cuspideira e da luz notur-
na. Aqueles horários eram meu laço com o mundo exterior,
no meio de toda aquela parafernália hospitalar. Se, por azar,
eu ainda estivesse aqui no dia 18, estudaria cada rota ferro-
viária até Virgínia, até que descobrisse um jeito de estar em
Richmond para o início das aulas, no dia 22. Se eu não apa-
recesse, por certo perderia a chance, pois sabia haver uma
dúzia de outros soldados, prontos para tomar o meu lugar.
Mesmo que, por algum milagre, o pessoal o reservasse para
mim, se eu chegasse depois de começadas as aulas, minhas
chances de alcançar a turma eram mais ou menos zero. Esse
era um dos mais competitivos programas do Serviço Militar.
Fora avisado de que um terço da turma tinha sido reprovado
nos primeiros nove meses.
Engoli o comprimido que a enfermeira deixara dentro de um
copo de papel e voltei ao meu confortador filosofismo.
Sabia, exatamente, por que tinha, desde o início, querido ser
médico. Não era dinheiro o motivo. Era para ajudar o vovô
Dabney.
Ele era o pai de minha mãe. Eu era capaz de, fechando os
olhos, visualizar seus olhos azuis e seu bigode branco e
cerdoso. Os Dabney eram imigrantes franceses que se ha-
viam estabelecido na Virgínia, durante o século XVIII,
numa região que ainda guarda o sotaque que lhes era
característico. O jardim do vovô Dabney era sempre um
"jiardim"; o seu carro, sempre um "ciarro".
Ele e a vovó Dabney eram mais como pais do que avós,
tanto para minha irmã mais velha quanto para mim. Nossa
mãe faleceu um mês depois de eu ter nascido, e o trabalho
do pai, na companhia C & O, exigia que viajasse muito.
Assim, vovô e vovó levaram-nos, a mim e a Mary Jane, para
"Moss Side", a grande casa de alvenaria situada no que, por
aquele tempo, eram os limites de Richmond.
Tratava-se de um lugar maravilhoso para a criação de um
menino. Havia cadeiras de vime enormes na ampla varanda,
velhos carvalhos em toda a área. Vovó tinha galinhas e uma
vaca pelo gramado, até que uma postura municipal proibiu
isso. Era uma senhora pequena, à antiga, que chamava o
marido por Sr. Dabney e que preferia seu velho fogão a
lenha aos novos fogões a gás. Durante todas as manhãs da
minha primeira infância, acordei com o ruído do seu
moedor de pão na cozinha.
Vovô Dabney era dono da maior loja de calçados do Sul. Na
seção infantil, que ficava no segundo andar, havia um
carrossel a pedal onde eu adorava brincar. De outras vezes,
ele me levava à estação de Acca, perto da nossa casa, para
ver a mudança de locomotivas nos velhos comboios
Richmond, Frederik e Potomac.
O outro membro da família era a Srta. Williams, a enfer-
meira que tinha vindo comigo do hospital em que eu
nascera, uma criança prematura e doente, que ninguém
acreditava sobrevivesse. O vovô Dabney gostava de contar
que eu era tão miúdo que tinha sido levado para casa dentro
de uma caixa de sapatos Florsheim. A Srta. Williams usava
óculos com aro de prata e tinha um galo no nariz, bem no
lugar onde ela o fraturara, e que fora mal soldado. Ela me
colocou numa encubadeira — o que, em Richmond, era
ainda novidade, até então, — e, depois ficou para cuidar de
Mary Jane e de mim.
Quando eu tinha sete anos, papai casou-se de novo. Mary
Jane e eu fomos viver com ele e a nossa madrasta numa
pequena casa, em Brook Road. A Srta. Williams foi trabalhar
para outra pessoa. Eu, porém, ainda passava quase todo o fim
de semana com vovô e vovó, em "Moss Side". Aos poucos,
com o passar do tempo, observei a decadência do meu avô,
que progressivamente se deformava e encurvava, sob a ação
de uma doença que ninguém podia curar.
Chamavam-na artrite reumatóide. Quando eu era pequeno,
o mal estava circunscrito apenas às suas pernas. Ele
caminhava com muletas. Depois, alastrou-se para os ombros
e as mãos; ele teve de viver numa cadeira de rodas. À
medida que eu crescia, tirava-o da cadeira e colocava-o no
seu "ciarro" ou sobre a sua cama. Era, então, que podia
observar como lhe causava dores. Não que o vovô, de
alguma vez, dissesse algo; ele era a pessoa mais resignada do
mundo. Na realidade, o seu médico costumava levar outros
pacientes para visitar o velho aleijado, de modo a que ele
levantasse-lhes o moral. Todavia, quando eu o levantava da
cadeira, ele se retraia e seu rosto ficava pálido. Foi então que
eu me decidi a ser médico.
Já era muito tarde para fazer alguma coisa pelo vovô. Ele
morrera há três anos, quando — então — eu contava
dezessete. Lembro-me de estar voltando de uma excursão,
como os escoteiros costumavam fazer nos fins de semana, e
de encontrar o Henry e a Bruce Gordon, meus irmãos, na
janela da frente. Henry tinha somente sete anos, e Bruce
Gordon, oito, de modo que, provavelmente, eram muito
pequenos para atinar o que exatamente se estava passando.
Todavia, pude, de imediato, ver que ambos haviam estado
chorando. Disseram-me, que papai, mamãe e Mary Jane
estavam para os lados de "Moss Side". O corpo do vovô
Dabney tinha sido preparado na sala de visitas.
Eu tinha parado sob a porta da sala por longo tempo,
experimentando estranha relutância em entrar. O caixão de
metal cinzento estava fixo sobre cavaletes, perto do velho
fonógrafo edsoniano. Consegui, finalmente, atravessar a
soleira e parei, olhando para o meu avô.
No entanto, aquela figura pálida e imóvel não era o vovô
Dabney! Ele estava silencioso demais, muito sem cor. Foram
as suas mãos que especialmente me chocaram. O maquilador
havia esticado os dedos deformados, de modo a que eles
ficassem retos sobre o cetim brilhante. As mãos do vovô
eram, para mim, mais bonitas quando retorcidas. Aquelas
mãos, ali, estavam muito lisas, lívidas como cera. Tinham,
para mim, um aspecto horrível.
Mas, conquanto eu jamais pudesse ter a oportunidade de
ajudar meu avô, pelo menos ele chamou a minha atenção
para o sofrimento no mundo. E se, como eu agora estava
descobrindo, um homem podia ganhar dinheiro prevenindo
o sofrimento, é que, pura e simplesmente, essa era a
maravilhosa justiça em que o universo estava estruturado.
De fato, era engraçado... tão logo eu descobri o lado
monetário de tudo, comecei a pensar em todas as coisas que
eu gostaria de ter. Organizara uma boa listinha, começando
com um Cadillac, uma piscina e um barco.
Eu, o tutelado, estava almoçando no amplo cômodo, de
maneira que pus de lado os sonhos de vida fina, o bastante
para me concentrar no prato de estanho à minha frente.
Mas, quando a refeição terminou, voltaram os vôos da
imaginação. Calculei que, neste urgente programa do
Exército, eu seria um dos mais jovens médicos a graduar-se.
E, então... bem, afinal a guerra não poderia durar para
sempre.
Olhei para o anel na minha mão esquerda: o mocho dourado
da Fraternidade Phi-Gama-Delta, incrustado na pedra de
ônix preto, com os dizeres "Universidade de Richmorid,
1945," dispostos em semicírculo na base. Assim como
muitos da turma de 1945, aqui estava eu, em 1943,
terminando a escola e enfiado num uniforme. Se eu iniciasse
a escola médica este mês e terminasse tudo em três anos...
imaginei, por então, que poderia ter aquele Cadillac.
Dia 16 de dezembro. Peguei o monte de horários de trem na
mesinha de cabeceira e, pela centésima vez, examinei-o
cuidadosamente. Mas, não importava o que eu pensasse.. .
não havia jeito de, em menos de 30 horas, ir de Abilene, no
Texas, até Richmond — na Virgínia. Na realidade, eu teria
sorte se o conseguisse no espaço de 48 horas, já que
vigorava o horário de guerra e que o Natal vinha próximo.
Aquilo significava que 19 de dezembro era, positivamente, o
último dia para sair de Abilene. E, agora, ao invés de um
resfriado, os médicos estavam chamando o que eu tinha de
gripe.
Inesperadamente, então, na manhã de 17 de dezembro, o
mercúrio do fino tubo de vidro parou em 379 . A enfer-
meira de dia imediatamente comunicou o fato ao médico de
plantão, oficial do dia. Em poucos instantes, ele surgiu e
disse:
"Estou, pessoalmente, levando-o para a Recuperação". Pôs
no ombro a minha mochila e pôs-se a caminho por um
dédalo de corredores de madeira, e eu caminhando apres-
sadamente atrás dele, com minhas botas e meu capote. Mal
podia acreditar que esses homens e essas mulheres, todos
oficiais, se submetessem a tanto estorvo por causa de um
pobre soldado raso. O médico, porém, garantiu-me que —
caso a minha temperatura se mantivesse normal — ele
aceleraria o andamento dos papéis da baixa e eu estaria fora
no dia seguinte.
A enfermaria de recuperação, para onde eu fora transferido,
era tal qual a que acabara de deixar: doze leitos
perpendiculares a cada parede, vinte e quatro cadeiras
pintadas de branco, vinte e quatro mesinhas de cabeceira,
cada uma com uma lâmpada e uma pequena luz noturna. Lá
estavam, igualmente, os três escritórios por onde se entrava
e os três cubículos particulares transversalmente a eles. Só
que, aqui, porque fôssemos convalescentes, não estávamos
impedidos de transitar por outras acomodações do imenso
complexo hospitalar, por exemplo, a agência postal, ou o
cinema-teatro, que ficavam em outros prédios, por
interconexão. No entanto, passei o dia sentado junto à
minha cama. Nevava, lá fora, e eu não queria me expor ao
risco de pegar um outro resfriado nalgum corredor ventoso.
Fiquei meditando sobre o Natal e sobre como seria for-
midável retornar a Richmond. Tinha certeza de que dariam
aos soldados o feriado de Natal, e, como Richmond era a
minha cidade de origem, eu poderia estar com a minha fa-
mília.
É claro que papai não estava, mas minha mãe por certo
estaria. Aliás, ela era minha madrasta e, embora nem sempre
nos houvéssemos relacionado bem, o fato de eu estar
sentado dentro de uma caserna, num hospital de madeira,
no Texas, com a janela marcada de geada, fez com que me
apercebesse de que tinha saudade dela.
Até poderia ser que Mary Jane e seu marido viessem de Fort
Belvoirn, na Virgínia. Eu sentia mesmo falta de Mary Jane, e
até de Henry e Bruce Gordon, de quem eu sentira ciúme
desde que nasceram. Agora que minha madrasta tinha filhos
do próprio ventre eu estava certo de que não ligava tanto
para mim. Mas, no Natal, bem... seria simplesmente
"grande" observá-los vozeando escadas abaixo.
Na hora em que as luzes se apagavam, uma enfermeira
atravessava a enfermaria de recuperação tomando as
temperaturas e anotando-as num caderninho. Era parte da
rotina — eles estiveram fazendo isso durante o dia todo, por
intervalos — e não desconfiei de nada, até que um contínuo
apareceu junto do meu leito, com minha mochila e meu
equipamento sob o braço, dizendo:
"Temos de ir para o isolamento".
Olhei para ele. "O que é que você quer dizer?"
"Você está com febre. Tenho de levá-lo para uma en-
fermaria de isolamento".
"Mas, a minha febre passou! Estou saindo amanhã!"
Ele deu de ombros e foi procurar uma enfermeira. Desta
vez, eu mesmo li a temperatura: 39.5?
Inteiramente arrasado, segui o soldado através de diversos
saguões e alojamentos idênticos aos dois em que estivera. O
máximo que esperava era que me levasse de volta para a
enfermaria de onde, naquela manhã, eu viera, na qual todo o
mundo se interessava tanto por mim. Mas, conquanto esta,
onde agora estávamos, parecesse exatamente com aquela, vi
— depois de um minuto de observação — que não o era. O
contínuo disse haver no acampamento tanta gripe que todos
os leitos eram ocupados no instante em que vagavam.
Fui para o que ele me indicou, mas sono era algo fora de
cogitação. E agora?... O que é que eu ia fazer? O dia seguinte
seria 18. Eu nunca estaria naquele primeiro trem... E, se
perdesse também o do dia 19?
Tossi miseravelmente durante a noite toda. Minha tosse e a
dos demais, à minha volta, mantiveram-me desperto. Por
que a minha febre de repente disparara de novo? Desde o
pré-médico, eu sabia que gripe mal curada era passível de
evoluir para pneumonia. O que acontecia então era que
ninguém podia mover um dedo que surtisse algum efeito
positivo. Dizia-se que uns poucos médicos andavam expe-
rimentando algumas drogas pouco conhecidas; porém, não
se tratava ainda de medicamentos de uso generalizado. Se o
meu problema acabasse em pneumonia - bem, nem se falas-
se em quanto tempo eu teria de permanecer ali.
Todavia, na manhã seguinte, dia 18 de dezembro, a febre
cedeu um pouco, não o suficiente para permitir minha
remoção para a Recuperação, mas o bastante para manter
acesas minhas esperanças. Falei às novas enfermeiras a
respeito da minha meta, em Richmond; elas foram tão
simpáticas quanto as outras. De noite, um grupo de
integrantes do quadro de pessoal estava preocupadamente
discutindo o meu problema. Alguém descobriu, enquanto
esquadrinhava os horários, um trem que saía de Abilene na
noite de 19, mais precisamente na madrugada do dia 20, às
4:00h. Com um pouco de sorte, seria possível chegar a
Richmond bem em cima da hora.
"Eu poderia providenciar um jipe para apanhá-lo exatamente
aqui, no hospital", falou um dos médicos.
"Se a sua temperatura continua a descer, nós o removemos,
de manhã, para a Recuperação. Isso vai ser dia 19, de modo
que, de lá, pode ir direto para a estação, amanhã à noite, sem
mais se apresentar nos alojamentos da sua companhia",
completou.
E, maravilha das maravilhas, na manhã de 19, minha
temperatura novamente voltou ao normal! Cumprindo-se a
palavra do doutor, fui de imediato removido para uma
enfermaria de recuperação, com armas e bagagens e corria
requisição de um jipe para me apanhar ali às 3h20min da
manhã seguinte.
Ocupei o quarto leito nessa enfermaria, que não diferia,
exteriormente, das outras. Doze leitos numa fileira, doze na
ala lateral, três escritórios perto da porta, três pequenos
cômodos disponíveis para casos graves. Essa disposição,
conquanto monótona, era — para mim — o quarto mais
lindo do mundo. Ali, naquela noite mesmo, um jipe estaria
vindo, a fim de me levar embora, para sempre, das
tormentas de areia e dos campos de exercício.
Naquela tarde, vesti o uniforme, só para me reacostumar ao
uso de roupas. Esforcei-me por descansar, mas estava agitado
demais para ficar quieto por muito tempo. Lá pelas 17h, o
ocupante do outro leito sugeriu que poderíamos matar o
tempo indo ao cinema. Da primeira vez em que eu estivera
numa enfermaria de recuperação, raramente ousara me
mexer, por medo de ficar doente de novo. Contudo, desta
vez, estava pronto a topar qualquer coisa que abreviasse a
espera. O suspense desses últimos dias, o fato de quase ficar
liberado, voltando — depois — para o isolamento, e de volta
à Recuperação, isso tudo estava me fazendo ficar com medo.
Fomos à vesperal, logo depois do lanche, porque eu queria ir
dormir cedo. Nem mesmo me lembro sobre o que era o
filme. Só sei que estávamos sentando na sala de projeção
quando senti um violento acesso de tosse.
Voltamos para a enfermaria por volta das 21h15min; eu fazia
figa para que a enfermeira já tivesse terminado as suas
"rondas" daquela noite. Somente o contínuo estava de
serviço, o que me fez respirar de alívio. Sentia-me febril, e
não queria ninguém enfiando um termômetro na minha
boca.
Fui à sala do contínuo e pedi algumas aspirinas. Ele me
deu seis comprimidos e três tabletes de aspirina, fenacetina e
cafeína. Esses eram os únicos medicamentos que podiam ser
livremente distribuídos. Peguei no fundo da sua sala a minha
mochila, minhas botas de calcanhar alto, e meu sobretudo
verde-acinzentado, e empilhei-os ao pé da cama. Depois,
dobrei meu uniforme e coloquei-o sobre a cadeira, pronto
para vesti-lo no meio da noite.
Certifiquei-me de que o despertador que uma das en-
fermeiras me havia emprestado estava preparado para tocar
às 3:00 horas. Finalmente, tomei duas aspirinas e um tablete
de APC, e — apesar de a maioria do pessoal estar ainda acor-
dado e perambulando — meti-me na cama. Num segundo,
estava dormindo.

3

Um verdadeiro espasmo de tosse me acordou. Passei a mão
sobre a mesinha de cabeceira, à procura da cuspideira, e
cuspi algo. Minha cabeça doía e meu peito parecia em fogo.
A enfermaria estava silenciosa e escura. Só as pequeninas
luzes noturnas permaneciam pálidamente acesas, ao lado de
cada leito. Doze pequenos halos ao longo de cada parede.
Que horas eram? Firmei os olhos no despertador, mas estava
escuro demais para vê-lo. Peguei-o, então, e segurei-o mais
perto do foquinho.
Meia-noite.
Peguei a bilha de água de sobre a mesa, enchi um copo e
engoli mais duas aspirinas e um tablete de APC. Deitei-me,
pela primeira vez notando que meus lençóis estavam
ficando molhados. Fiquei tendo de me sentar para cuspir.
Devo, finalmente, ter tirado uma pestana, porque, de
repente, acordei totalmente sem ar. Quando o acesso de
tosse serenou, olhei de novo para o relógio...
Duas e dez.
Menos de sessenta minutos até à hora de levantar. Eu estava
me sentindo podre, suando em bicas, o coração às mar-
teladas. Tomei a última aspirina e tentei reconciliar o sono,
mas continuei a tossir, enquanto alguma coisa se soltava do
fundo do peito. Tive, então, de agarrar a cuspideira. Final-
mente, ajeitei o travesseiro às costas e me recostei. Isso
pareceu aliviar a tosse, mas — agora — eu tinha certeza de
que estava com febre: o corpo todo me doía. Era preciso que
mais ninguém descobrisse, até que eu embarcasse, a salvo,
naquele trem!
Verifiquei novamente o relógio. Estava quase na hora de
começar a me vestir. Desliguei o alarme. Não tinha o
propósito de perturbar todo o mundo, se eu já estava
acordado. Levantei-me, imaginando se ousaria ligar a
lâmpada para começar a me vestir. Se essa tosse não acordara
ninguém, nada mais o faria. Acendi a luz, contornei a cama,
até à cadeira, intrigado com o tremor das minhas pernas.
Peguei o uniforme e, prudentemente, fui para junto da
mesinha. Senti-me inteiramente tonto. Era preciso ter
cuidado, caso contrário o motorista notaria algo. Parei,
mirando a mesinha.
A cuspideira estava cheia de sangue vivo e brilhante, até à
borda.
Uma luz se deslocava, proveniente da sala, perto da porta.
Fui até lá e olhei para dentro. O auxiliar estava lendo uma
revista.
"Empreste-me um termômetro, por um instante", falei.
Ele se levantou e alcançou-me um que estava numa
prateleira. Afastei-me, alguns passos, antes de colocá-lo sob
a língua: isso era só da minha conta. Depois de um minuto,
chequei a temperatura, à luz que se coava pela ponta da sala
ao lado.
Li ou tentei ler. Não podia entender o que estava se pas-
sando. Não importava o quanto eu sacudisse o termômetro...
o fio de mercúrio parecia chegar ao máximo. O auxiliar
surgiu atrás de mim e tirou o termômetro da minha mão.
"Quase 41.59!" gritou, em altos timbres. E, antes que me
fosse possível detê-lo, correu e atravessou as portas duplas
que davam para o corredor.
Num minuto depois, voltava, com a enfermeira da noite a
toda a brida. Ela apanhou na prateleira da sala ao lado um
outro termômetro e pôs-se a controlar o tempo pelo relógio,
enquanto eu me maldizia por cabeça-oca. Depois, a
enfermeira retirou o termômetro e olhou-o.
"Sente-se", disse ela.
Guiou-me, então, como a uma criança pequena, até a cadeira
onde o rapaz estivera sentado, ordenando-lhe:
"Você permanece aqui, com ele. Volto num segundo!"
Enquanto ela desaparecia, eu disse ao soldado:
"Não posso ficar por aqui. Tenho de conseguir me vestir.
Preciso tomar um trem, dentro de exatamente uma hora".
"Tenha calma", respondeu-me. "O médico está vindo".
O que é que havia com o cara? Será que ele não tinha me
escutado?
"Estou indo para Abilene!", falei. "Um jipe estará vindo me
buscar, dentro de vinte minutos!"
"Está certo", respondeu. "Faça o favor de sentar-se,
quietinho, e tudo acabará muito bem".
Aquele lunático jamais ligaria para o que eu estava dizendo,
e o mesmo aconteceu quando o doutor chegou. Auscultou-
me o peito, e começou a cogitar de raios X.
"Ele jamais andará tanto", disse à enfermeira. "É melhor
chamarmos uma ambulância".
A enfermeira deu um telefonema, enquanto eu tentava
explicar-lhes que não estava esperando ambulância
nenhuma; era um jipe. Ainda estava falando, quando dois
soldados entraram correndo com uma padioja. O doutor
ordenou-me que deitasse, o que, considerando-se que eu
devia estar dentro do uniforme, era uma loucura. Todavia,
soldado raso não discute com um capitão. Deitei-me na
padiola, colocaram à minha volta alguns cobertores e
ergueram a coisa toda.
Logo a seguir, senti o ar frio da noite no meu rosto. Estavam,
jeitosamente, me colocando dentro de uma ambulância e,
em seguida, saímos feito flecha por cima de uma estrada.
Pouco tempo depois, a porta foi aberta e, de novo, senti
aquele sopro de ar gélido. Conduziram-me, abrindo algumas
portas e depositaram a padiola dentro de um quarto cheio de
aparelhagens. Um homem de roupa branca inclinou-se
sobre mim.
"Acha que pode ficar de pé só por um minuto?", foi a
pergunta.
Quase ri quando os dois guardadores de padiola enfiaram os
dois braços entre os meus e me puseram de pé. Muito mais
do que um minuto eu fico na estação ferroviária... por
pouco!
Ainda me segurando pelos braços, conduziram-me a um
painel vertical, provido de uma reentrância pouco profunda,
onde se devia apoiar o queixo. O homem de branco,
medindo-me com os olhos... "Um metro e oitenta e três
centímetros", disse, girando uma manivela do lado do
dispositivo, para alçá-lo um pouquinho, e — dando um
tapinha na reentrância, como a indicá-la para mim,
perguntou:
"Pode chegar o queixo até aqui? ótimo. Agora fique quieto
por um segundo".
Os auxiliares largaram os meus braços e foram, com o
técnico, para detrás de uma divisória. Escutei um clique e
um zumbido.
O zumbido aumentou e aumentou. Estava ficando mais
forte. Estava dentro da minha cabeça. Meus joelhos
pareciam feitos de borracha. Estavam se dobrando, eu estava
caindo e o zumbido continuava a crescer.
De repente, pus-me sentado com um sobressalto. Que horas
eram? Olhei para a mesinha de cabeceira, mas eles haviam
tirado o relógio. Para falar a verdade... onde estava o meu
material? Os horários de trens? Meu relógio?!
Olhei à minha volta. Achava-me num quarto minúsculo, o
qual eu jamais vira. Graças ao clarão vermelho da luz para
noite, via que a cama praticamente o tomava. Havia uma
cadeira branca, de madeira, perto da soleira da porta, a cama,
a mesinha. Isso era tudo.
Onde estaria eu?
E como chegara ali?
Fiz uma panorâmica, tentando me lembrar... O aparelho de
raios X... exato! Eles me levaram para a sala de radiografias
e... eu devo ter desmaiado ou qualquer coisa.
O trem! Tinha perdido o trem! Alarmado, pulei para fora da
cama, procurando as minhas roupas. É claro que o pessoal
do Raios X não sabia de nada a respeito do trem. Por isso,
eles me haviam posto ali dentro, ao invés de me mandar de
volta para onde o jipe estava esperando.
Meu uniforme não estava sobre a cadeira. Olhei debaixo
dela. Atrás. Nem a mala de campanha nem nada. Onde mais,
se não naquele pequeno armário embutido, poderiam ter
guardado as minhas coisas? Talvez, debaixo da cama? Voltei-
me e, então, gelei. Alguém estava deitado sobre aquela
cama.
Cheguei mais para perto. Tratava-se de um jovem, de
cabelos castanhos e curtos, imóvel. Mas... aquilo era impos-
sível! Eu acabara de saltar daquela cama! Por um momento,
lutei com o mistério do que se passava. Era algo excessiva-
mente esquisito de se pensar, além do que eu não dispunha
de tempo para tanto.
O auxiliar! Talvez minhas roupas estivessem dentro do seu
quarto! Precipitei-me para fora do pequeno cômodo e
procurei à minha volta. Duas fileiras de lâmpadas noturnas
brilhavam contra as paredes na enfermaria. Não me parecia
ter estado ali antes, todavia, não era fácil garanti-lo... todas
elas eram muito semelhantes.
A porta da sala, que ficava exatamente numa transversal a
mim, estava aberta, a luz estava acesa, mas nem sinal de
auxiliar. Entrei. As prateleiras sustinham somente o
equipamento de costume... nada de roupas nem de sapatos à
vista. As salas do médico e da enfermeira estavam às escuras
— ninguém por lá. Silenciosamente, caminhei pelo corredor
lateral, na grande sala onde os soldados dormiam,
imaginando se eles não poderiam ter colocado meu
equipamento por ali, nalgum canto. A luz, porém, estava
pálida demais... não se podia ver muita coisa. Salvo alguns
roncos e tosses ocasionais, não se ouvia um só ruído.
Voltei pelos escritórios e dei no corredor, por onde vinha
um sargento, carregando uma bandeja de instrumentos
coberta por um pano. Com toda a certeza, ele não sabia de
nada, mas eu me sentia tão feliz em encontrar alguém
acordado que fui em sua direção.
"Perdão, Sargento", disse eu. "O Senhor não teria visto o
auxiliar desta unidade?"
Ele não respondeu. Sequer olhou para mim. Continuou a vir,
na minha direção, sem diminuir o passo.
"Presta atenção!", berrei, saindo do seu caminho.
No instante seguinte, já ele havia me ultrapassado como se
em momento algum me tivesse visto, embora eu ignorasse
como não nos havíamos esbarrado.
Foi então que eu vi uma coisa que me deu uma nova idéia.
Estava no corredor, mais para baixo, uma porta de metal
pesado, dando saída para o exterior. Corri em direção a ela.
Mesmo que tivesse perdido o trem, descobriria um jeito de
chegar a Richmond!
Quase sem me aperceber, dei comigo mesmo do lado de
fora, correndo céleremente, de fato mais rápido do que fora
capaz em toda a minha vida. Não estava tão frio quando an-
tes. Na realidade, eu não sentia nem frio nem calor.
Fiquei estupefato, quando - ao olhar para baixo - não vi o
solo, mas — sim — copas de arbustos do gênero "prosopis
grandulosa". O acampamento Barkeley parecia ter ficado
bem para trás, à medida que eu me deslocava velozmente
sobre o deserto escuro e frio. Minha mente continuava a
dizer que o que eu estava fazendo era impraticável, e, ainda
assim... estava acontecendo.
Uma cidade passou sob mim feito relâmpago, os sinais
luminosos cintilando nos cruzamentos. Aquilo era ridículo!
Um ser humano simplesmente não podia voar sem um avião
— mas eu estava voando muito baixo para um avião.
A região parecia, agora, mais arborizada: grandes campos
polvilhados de neve. Vez por outra, eu enxergava uma
estrada, mas o tráfego era reduzido àquela hora da noite e as
cidades pelas quais eu passava estavam escuras e silenciosas.
Estava indo para Richmond. Sabia-o de algum modo, desde
o momento em que irrompi porta do hospital afora. O fato
de estar indo cem vezes mais rápido do que qualquer trem
sobre a terra poderia, sem dúvida, me levar a Richmond.
Mas... agora que eu meditava no assunto, como podia estar
certo de ser aquele o caminho para Richmond? Só viajara
uma vez entre Texas e Virgínia, indo por outro trajeto, além
do que uma grande parte da viagem ferroviária tinha
transcorrido durante a noite. O que era que me fazia pensar
que eu poderia, por minha própria conta, achar o caminho
de volta à Richmond?
Neste instante, um rio extremamente largo estava sob mim.
Havia uma ponte comprida e alta, e — na outra margem —
a maior cidade a que, até então, eu chegara. Oxalá me
fosse possível descer e encontrar alguém que me fornecesse
indicações quaisquer.
Quase de imediato, notei que estava descendo mais devagar.
Um foco azul, brilhante, estava bem abaixo de mim, justo
onde duas ruas confluíam. Vinha do gás neon de um
anúncio luminoso colocado sobre a porta de um prédio tér-
reo, em cuja janela da frente se lia:"Cerveja Pabst — Rótulo
Azul". As letras piscando sobre a porta diziam: "Café — Res-
taurante". E uma luz, coada pelas janelas, derramava-se pela
pavimentação.
Fixando-a, dei comigo mesmo completamente parado. A
sensação de me ver, de algum modo, no ar, suspenso a mais
ou menos 15 metros, era ainda mais estranha do que aquela
ventania. Mas eu não dispunha de tempo para queimar as
pestanas pensando nisso, pois um homem apareceu andando
a passo rápido pela calçada. Finalmente, pensei, poderia
descobrir que cidade era aquela e em que direção eu estava
indo. No mesmo instante em que a idéia me veio à mente,
vi-me com os pés sobre a calçada, acompanhando o passo
apressado do desconhecido. Pensamento e movimento
tinham se reduzido a uma só coisa. Tratava-se de um
paisano, talvez na casa dos 40, envergando capote, e sem
chapéu. Estaria, sem dúvida, mergulhado nalgum
pensamento, porque sequer me olhou no momento em que
tomei o passo a seu lado.
"Por favor", disse eu, "pode me dizer que cidade é esta?"
Ele continuou andando...
"Senhor, por fineza", disse eu, mais alto, "não sou daqui e
gostaria muito de..."
Chegamos ao Café e ele virou, estendendo a mão para pegar
a maçaneta da porta. Será que o homem era surdo? Levantei
a mão esquerda para tocar no seu ombro.
Não encontrei resistência.
Fiquei ali, de pé em frente à porta, boquiaberto, embas-
bacado, enquanto ele abriu-a e desapareceu lá dentro. Fora
como se eu houvesse tocado em... ar rarefeito. Algo como se
não existisse ninguém ali. Não obstante, eu o vira distinta-
mente, até mesmo o queixo, onde a barba preta estava por
fazer.
Renunciei ao mistério do homem sem substância e me
encostei no cabo de um poste telefônico, para repensar os
acontecimentos. Meu corpo atravessou aquele cabo, como
se tampouco ele estivesse ali.
Lá, na calçada daquela cidade desconhecida, passara-me pela
cabeça um pensamento de incredulidade, o mais esquisito e
árduo que eu jamais tivera. O homem no café, este poste
telefônico... supunha que fossem perfeitamente normais.
Supunha fosse eu que, de algum modo, houvesse mudado. E
se, de algum jeito impossível, ou inimaginável, eu tivesse
perdido... minha solidez? Se eu tivesse perdido minha
capacidade de segurar coisas, de estabelecer contato com o
mundo, até mesmo de ser visto! O que acaba de acontecer
com aquele homem. . . Era óbvio que, em momento
nenhum, ele me vira ou ouvira.
E, agora - estando eu diante de fatos -, sabia que tampouco
aquele sargento, no hospital, me tinha visto e ouvido. Era
como se eu nà*o existisse para ambos.
E, continuaram os pensamentos perturbadores, se aqueles
dois não me tinham visto, o que era que me havia feito
pensar que as pessoas do Colégio Médico de Virginia iriam
ser capazes de me ver? Qual era o sentido daquela impetuosa
corrida para Richmond, se — quando eu chegasse —
ninguém poderia registrar minha presença?
O mesmo em relação ao Natal. E se eu chegasse a casa para o
Natal e nem mesmo a minha família pudesse me enxergar?
Assolou-me uma terrível solidão. Eu tinha de readquirir
aquela solidez à qual as demais pessoas correspondiam. De
algum modo, de algum jeito eu tinha de fazer isso.
De repente, recordei-me do rapaz que eu vira sobre a cama,
naquele exíguo quarto de hospital. E se aquilo fosse.. . eu?
Ou, seja lá o que for, a parte material, minha parte física, da
qual, por algum processo inexplicável, eu me separara? E se a
forma que eu deixara deitada num quarto hospitalar, no
Texas, fosse a minha própria forma?
E, se o fosse, como eu poderia dar por lá de novo? Por quê,
tão impensadamente, me afastara eu de lá?!
Movia-me de novo, velozmente me afastando da cidade.
Abaixo, estava o rio, muito largo. Eu parecia estar voltando,
voltando para de onde viera, e tudo isso ainda mais rápido
do que antes. Lagos, colinas e fazendas sumiam-se de sob
mim, à medida que eu seguia, a toda, numa linha reta
constante, sobre a terra ensombrecida pela noite.
Finalmente, rarearam as árvores e, num relance, vi e
reconheci os arbustos de "prosopis grandulosa" e as revinas
áridas do leste do Texas. Lá estavam os telhados dos
alojamentos do Acampamento Barkeley, silhuetas negras e
longilíneas recortadas no chão coberto de neve. Agora, eu
descera e estava reduzindo a velocidade. Num momento,
eis-me parado, de pé, em frente ao hospital da base.
Corri para dentro. Lá estava o setor de admissões, onde,
havia dez dias, eu preenchera a ficha. Evidentemente, estava
silenciosa àquela hora da noite, porque os escritórios
estavam fechados e trancados. Sobressaltado, desloquei-me
pelo corredor da esquerda, mas detive-me ao observar que
ele me levava a algo que parecia um refeitório. Onde estava
o auxiliar a quem, cedo, eu fizera despertar naquela noite?
Finalmente, depois de passar por inúmeros saguões, cheguei
a uma grande sala que me pareceu familiar. Havia, sobre
cada leito enfileirado junto à parede, uma forma adormecida;
todavia, aquela por que eu procurava — aquela que eu,
agora, estava convicto de pertencer a mim — estava num
dos pequenos quartos próximos à porta. Disso eu tinha
certeza. Olhei, ansiosamente, para dentro de cada um
deles... os dois primeiros estavam vazios, e, no último, havia
um homem em tração, ambas as pernas engessadas.
Voltei para o corredor e olhei para os lados, indeciso. Onde
estava aquele pequeno quarto? Pelo menos, em que ala
daquele hospital imenso estava ele situado?
Eu puxava pela cabeça, torturava o cérebro tentando me
lembrar de alguma coisa — fosse o que fosse —; algo que me
ajudasse a localizá-lo, mas de nada adiantava. Devia ter
estado inconsciente quando me transportaram da sala de
raios X para lá; e, quando acordei, estivera tão obcecado pela
idéia de chegar a Virgínia que safra atabalhoadamente, sem
ao menos olhar para trás. 0 caso era que por ali, nalgum
lugar dentre aproximadamente duzentos alojamentos, existia
um quarto exíguo, que se revestia, para mim, de infinita
importância. E ele poderia ser qualquer um dentre tantos.
Desse modo teve início uma das mais estranhas buscas que
já houve: a procura de mim mesmo. Corri de uma para outra
enfermaria daquele enorme complexo hospitalar, parando
em cada pequeno quarto, curvando-me sobre o ocupante do
leito, e prosseguindo apressado. Havia centenas e centenas
desses cubículos de solteiro, uns iguais aos outros. As
enfermarias eram tão semelhantes que logo me confundi a
respeito daquelas em que eu estivera. Já não sabia até que
ponto eu estava ou não indo e vindo pelos mesmos trajetos.
Aos poucos, uma verdade bem mais alarmante tomou conta
de mim.
Em momento algum eu me vira a mim mesmo.
Não de fato. Não do modo pelo qual eu vira outras pessoas.
Do peito para baixo, opservara o suficiente para saber que se
tratava de mim mesmo; mas, dos ombros para cima, agora
me apercebia que tudo se reduzia a uma imagem
bidimensional, como que espelhada, olhando-me fixamente
de dentro de um compartimento de vidro. Vez por outra,
um instantâneo também bidimensional. E isso fora tudo. A
minha presença volumétrica animada e capaz de ocupar o
espaço-curvo, essa de modo algum eu conhecia.
Descobrira ser aquele o modo por que reconhecemos as
pessoas: não pelo formato do nariz, nem pela cor dos olhos,
mas pelo impacto do todo tridimensional, com todos os
componentes, a um só tempo.
É claro que eu sabia quanto media e pesava. Como se
memorizasse a descrição de um estranho, fui repetindo: um
metro e oitenta e três, oitenta quilos e setecentos gramas.
Todavia, de que adiantava aquilo quando se estava estirado
sobre a cama? Ali se encontravam fileiras e fileiras de
soldados que deviam ter mais ou menos aquela dimensão.
Tal como eu, estavam todos por volta do final da mocidade,
ou lá pelos vinte anos quase, todos enfiados em pijamas de
hospital, sob cobertores do Exército, e todos com os cabelos
cortados à moda escovinha.
A forma por que eu procurava tinha de estar num dos três
pequenos quartos para solteiro, que ficavam à frente de cada
enfermaria. Isso era o único fato que eu conhecia
perfeitamente. Naqueles quartos, não obstante, eu já havia
visto uma dúzia de homens que se assemelhavam
precisamente com o sujeito que eu acreditava ser eu mesmo,
além de que mal começava a procura naquele lugar que mais
parecia um labirinto. Como eu ia saber que me havia achado
a mim mesmo? Teria eu já morrido?
Continuei a caminhar, a parar, a examinar rostos sem que
conseguisse me encontrar. A solidão que experimentava na
cidade pouco familiar transformava-se em pânico sempre
crescente. Eu estava isolado de toda e qualquer pessoa no
mundo, desligado da própria solidez da terra física, e agora...
até mesmo da minha identidade.
Se a pessoa sobre a cama era pesada, ou no caso de ter cabelo
louro ou sardas, eu me precipitava para ela. Mas nem sempre
era fácil distinguir esses sinais, ao halo pálido da luz noturna.
Não havia esperança. Apoiei-me a uma parede (a posição era
um hábito, a despeito de haver crescido acostumado ao fato
de que paredes e mobílias não me sustentavam) e quebrei a
cabeça atrás de alguma informação da memória, alguma
característica física que me identificasse exclusivamente a
mim, entre todos aqueles soldados que, pela casa dos vinte
anos, ali dormiam. Algum sinal no rosto ou nas mãos?
Alguma verruga, talvez... ou, uma cicatriz? Não... o anel.
Claro! O ônix negro e oval com o mocho dourado... Por que
não pensava nisso antes! Seria preciso reiniciar tudo, voltar a
cada quarto onde estivesse deitado um sujeito que se
parecesse com aquilo que eu achasse que eu mesmo parecia.
Recomecei pelo caminho por onde viera.
Quer dizer... eu achava que esse era o caminho. Tudo era tão
confuso: enfermarias idênticas, dando para corredores
idênticos. Entrei e saí rapidamente nos quartos de solteiro,
procurando, numa mirada, ver se a mão esquerda estava fora
das cobertas. As mais das vezes, porém, estava escondida
entre os lençóis, e tudo o que então me cabia fazer era
esperar que o indivíduo mudasse de posição.
Uma vez, demorei-me sentado ao lado de um jovem de
cabelos pretos, cujos queixo e boca faziam-me, à claridade
mortiça, recordar os de meu pai. O rapaz gemia baixo,
dormindo sobre o lado esquerdo, com o braço esquerdo sob
o travesseiro. Quanto mais eu fixava o olhar sobre ele mais
me convencia de que aquele era o meu próprio eu físico.
Por diversas vezes consecutivas, agarrei o travesseiro,
tentando atirá-lo longe, mas meus dedos fechavam-se em
pleno ar. Finalmente, o moço levantou-se apoiado sobre um
cotovelo, apalpando a mesinha de cabeceira, atrás da jarra de
água. Sua mão esquerda ostentava uma aliança de ouro.
Continuei a procurar, de enfermaria a enfermaria. Passei por
um bom número de soldados despertos que, ou,
silenciosamente, olhavam para o teto, ou se sentavam sobre
a beira da cama, fumando um cigarro. E era precisamente
esse pessoal acordado que tornava minha solidão terrível.
Uma coisa é entrar sem ser percebido num quarto onde
alguém esteja dormindo; outra, muito diferente, é ver que a
pessoa olha diretamente para você e não manifesta sinais da
sua existência. No saguão, ainda uma vez, dei um pulo para o
lado, dando passagem a uma enfermeira ou a um ordenança
que se aproximasse. Agora, sabia que não colidiríamos - nem
mesmo nos poderíamos tocar um no outro — embora o
pensamento de que alguém podia andar através do
mesmíssimo espaço onde eu me achava de pé fosse algo a
que eu não podia fazer frente.
Finalmente, minha perambulação conduziu-me ao
departamento de Raios X. O operador de roupa branca, que,
anteriormente, eu encontrara, estava sentado a uma mesa,
tendo alguns papéis num prendedor. Ali estava o último dos
seres humanos que tinham falado comigo.
Gritei para ele:
"Olhe para mim! Estou bem aqui, de pé!"
Ele destampou sua caneta e tomou nota de alguma coisa.
Seria verdade que nada mais que umas poucas horas fosse
tudo o que medeasse o momento em que me haviam, numa
padiola, conduzido para ali e aquele instante, agora? Com
toda a certeza, aquilo acontecera havia semanas, havia anos.
Ou... a questão era de minutos? Havia, também, alguma
coisa esquisita com o tempo, naquele mundo onde regras a
respeito de espaço, velocidade e massa não vigiam. Eu
perdera toda a capacidade de avaliar o quanto demorava uma
daquelas experiências: se uma fração de segundo, se horas.
Relutei em me afastar da única pessoa que, até então,
reconhecera. Todavia, depois de não sei quanto tempo,
continuei a minha peregrinação. Mais corredores, mais
enfermarias: doze leitos enfileirados perpendicularmente à
parede direita; doze ao longo da parede esquerda, três
escritórios lá no fim, próximos à porta, três quartos depois
deles. Homens que dormiam, homens totalmente
acordados, indivíduos entediados, seres que sentiam medo;
jamais, porém, o anel com o mocho.
Um jovem chorava, dentro de um cubículo. Provavelmente,
nostálgico. Muitos de nós choravam, no momento em que
pensávamos no fato de que ninguém nos via, especialmente
naquele momento, quando o Natal já ia chegando.
Ninguém no outro cubículo. Cama desprovida de lençóis.
No último quarto...
Recuei, surpreso. Havia alguém sobre a cama, com tudo em
ordem, só que o lençol havia sido puxado de modo a cobrir a
cabeça, deixando descobertos apenas os braços.
Aqueles braços pareciam estranhamente enrigecidos e retos,
sem naturalidade, as mãos com as palmas viradas para bai-
xo...
Um pequeno mocho de ouro estava no dedo médio! Um
mocho incrustado numa pedra oval, de ônix negro.


5

Olhos cravados naquela mão, engatinhei — devagar — na
direção da forma. Havia alguma coisa de terrível a respeito.
Mesmo à pálida claridade da luz para noite, pude observar
que os braços estavam brancos demais e muito lisos. Onde já
havia eu visto uma mão igual àquela? Lembrei-me então: a
mão do vovô Dabney, exposto na sala de estar, em "Moss
Side".
Retornei para a porta. O homem sobre aquela cama estava
morto! Experimentei a mesma relutância que da primeira
vez em que fora forçado a permanecer dentro de um quarto
com uma pessoa morta. Mas... e se aquele fosse o meu anel?
Então... então seria eu mesmo, tratar-se-ia da parte separada
de mim. Aquilo significava que eu estava...
Pela primeira vez, em toda essa experiência, ocorreu-me a
palavra "morte" em conexão com o que se estava passando.
Acontece que eu não estava morto! Como poderia conciliar
as duas coisas: estar morto e acordado? Pensava: a morte era
diferente... e, realmente, experimentava isso. A morte era...
eu não sabia... mergulhar no vazio... era o nada. Mas, eu era
eu mesmo, completamente acordado, só que sem um corpo
físico para operar.
Freneticamente, agatanhei o lençol, tentando afastá-lo para
descobrir a fisionomia do cadáver. Meus esforços sequer
agitaram o ar silencioso do pequeno quarto.
Finalmente, afundei na cama, desesperado. Ou, melhor: fiz
isso mentalmente, pois que — na realidade — meu ser
desencarnado não foi apto a contatá-la fisicamente. Ali, bem
ali, estavam minha própria forma e minha própria
substância, muito embora tão distantes de mim quanto os
planetas, uns dos outros. Era isso a morte? Consistia nessa
separação de uma parte da pessoa?
Eu ainda não tinha qualquer certeza, quando começou a
operar-se uma mudança na luz do quarto; de repente, per-
cebi que se havia tornado mais brilhante, muito mais
brilhante, do que fora. Virei-me, com o fito de examinar a
lâmpada acesa sobre a mesinha de cabeceira. Não havia
dúvidas quanto à impossibilidade de um simples filamento
construído para suportar energia elétrica de 15 watts irradiar
tanta luz.
Olhei, pasmado, ao brilho, que aumentava, vindo de parte
nenhuma, parecendo esplender, ao mesmo tempo, por toda
a parte. Nem todas as lâmpadas na enfermaria produziriam
aquele tanto de luz. Nem mesmo todas as lâmpadas do
mundo! Brilhava tanto que chegava às raias do impossível:
era algo como se um milhão de maçaricos ardessem a um só
tempo. Surgiu-me um pensamento, bem no auge de minha
estupefação... um pensamento prosaico, provavelmente
originário de alguma conferência versando sobre Biologia,
nos tempos de universidade: "Estou feliz por não ter, neste
instante, olhos físicos. Esta luz poderia destruir-me a retina
num décimo de segundo."
"Não... não a luz", corrigi-me a mim.
"Ele".
Ele seria excessivamente brilhante para ser olhado. Isso
porque, então, percebi não se tratar de luz, mas de um
homem, que ingressava no quarto; ou, melhor, um homem
feito de luz, muito embora isso não me fosse mais possível
de conceber do que a incrível intensidade luminosa em que
sua forma se estruturava.
No momento em que o percebi, emergiu uma ordem em
minha mente. "Levante-se!" As palavras vinham de dentro
de mim mesmo, pão obstante investidas de uma autoridade
que meus simples pensamentos jamais possuíram. Coloquei-
me de pé e, enquanto o fazia, lá eclodiu a certeza estupenda:
"Você está em presença do Filho de Deus".
Ainda uma vez, pareceu-me o conceito estruturar-se dentro
de mim; não, porém, como pensamento sem especulação.
Era um tipo de saber, imediato e completo. Conhecia
também outros fatos a respeito Dele. Por exemplo, que esse
era o ser masculino mais total que eu já encontrara. Se se
tratava do Filho de Deus, então seu nome era Jesus, mas...
não. O Jesus dos meus livros da Escola Domingueira. Este
era gentil, terno, compreensivo e — provavelmente — um
tanto ou quanto débil. Aquela Pessoa era o próprio poder,
mais velha do que o tempo e, no entanto, mais atual do que
ninguém que eu já houvesse encontrado.
E, acima de tudo, eu sabia que aquele Homem me amava.
Sabia-o com aquela mesma certeza interior misteriosa.
Muitíssimo mais que poder, era amor incondicional o que
emanava dessa Presença. Um amor assombroso, um amor
além do nível mais arrojado de que fosse capaz a minha
imaginação. Esse amor conhecia cada aspecto negativo do
meu ser — as altercações com a minha madrasta, meu
temperamento explosivo, os devaneios sexuais, que jamais
pude controlar, cada pensamento e cada ação maus e
egoístas, desde o dia em que nasci, tudo isso ele conhecia. . .
e aceitava-me tal como eu era, e do mesmo modo me
amava.
Quando digo que Ele conhecia tudo a meu respeito, quero
significar que isso era, simplesmente, um fato observável,
porque cada um dos episódios de minha vida haviam
penetrado naquele quarto, simultaneamente à sua presença
radiante. E isso não obsta a que eu deva descrevê-los a todos,
se os abordar. Tudo o que se passara comigo ali estava, visí-
vel a olho nu, situado no tempo e animado de vida, parecen-
do acontecer naquele instante.
Como isso era possível, não sabia. Jamais, até então,
experimentara o tipo de espaço que parecia formar o nosso
contorno. O pequeno quarto para solteiro ainda era visível,
todavia não mais como continente. Ao invés disso,
circundava-nos o que eu só poderia interpretar como um
mural enorme, com a característica tridimensória das figuras
que o compunham, as quais falavam e moviam-se.
Muitas dessas figuras pareciam ser eu mesmo. Petrificado,
vi-me a mim mesmo de pé, junto ao quadro-negro, numa
aula de ortografia. Contemplei-me recebendo o distintivo
correspondente a "Águia", na minha tropa de escotismo;
conduzindo o vovô Dabney pela varanda, em "Moss Side".
Vi-me como uma criança raquítica, arquejando, à procura de
ar, dentro de uma incubadeira. Simultaneamente (parecia
não haver antes nem depois), uma cesária tirava-me do
ventre de uma jovem mulher, doente e moribunda, que eu
jamais pudera contemplar.
Seguiu-se a percepção de mim mesmo, alguns meses mais
velho, no colo de uma mulher que expressava ternura no
rosto emoldurado com óculos de aro de prata, e onde
sobressaía um nariz adunco. Ao nosso lado, no chão,
brincava uma menina com três anos de idade; devia ser
Mary Jane, muito embora eu não pudesse, é claro, lembrar-
me dela naquela idade. Todavia, a Srta. Williams era
exatamente como eu a guardava na retina. Apareceu em
muitas das cenas. Num arrebatamento de saudade há muito
represada, percebi quanto eu a amava. Paralelamente a estas
cenas, vi o papai trazendo para "Moss Side" uma morena alta
e esguia: era a mulher com quem iria casar-se. Mary Jane e
eu entramos com ambos na casa de Brook Road no 4.306; eu
parei, intimidado, junto à janela da sala de jantar, doido para
sair, mas com medo do menino que estava perto da porta.
Cenas tristes e alegres entremeavam-se. Vi quando apanhei
do tal garoto, experimentei humilhação quando minha irmã
despencou-se de dentro de casa para me defender, com-
prando a minha briga. Depois, vi-me chorando quando papai
se despediu por uma semana, por duas, um mês, sempre
sendo levado pelo seu trabalho.
Muito de tristeza tinha raízes em mim. Esquivei-me a um
beijo de boa-noite que minha madrasta tentou me dar.
Cheguei a ver o próprio pensamento que originou aquilo:
Recuso-me a amar esta mulher. Minha mãe morreu. A Srta.
Williams foi embora. Se eu lhe dedicar o meu amor, ela
também vai me deixar.
Seguiu-se a visão de mim mesmo aos dez anos de idade, de
pé junto à mesma janela da sala de jantar, enquanto o papai
ia ao hospital buscar a mamãe e o Henry, nosso novo irmão.
Sem mesmo o ter visto, lá estava eu decidindo que não ia
gostar do recém-chegado.
Outras cenas — centenas, milhares — sucederam-se, todas
iluminadas pela luz clarividente, uma existência em que o
tempo parecia ter cessado. Em tempo comum, uma simples
olhadela em tantos eventos tomaria semanas; e eu sequer
tinha a sensação dos minutos passando.
Quando completei doze anos, mudamo-nos para uma casa
nova, situada pelo limite oeste de Richmond. Lá estava a
cena. Vi a nova bicicleta que o vovô e a vovó Dabney me
haviam dado, revi-me pedalando umas mil vezes por sobre a
ponte da estrada de ferro, para ir vê-los em "Moss Side".
Nem faltou a tarde em que eu vim para casa e encontrei o
passeio juncado de lascas de madeira de bálsamo, tudo o que
sobrava do aeromodelo gigante que eu colara tira por tira,
numa trabalheira de louco. Observei minha fúria centrali-
zada no Henry, de três anos, que cometera esse ultraje; fúria
que, com o passar do tempo, empederniu-se numa taciturna
retirada do convívio de toda a família.
Também foram evocados episódios do meu tempo de curso
colegial — datas, exames de química, melhor tempo da
escola na corrida de uma milha. Revi o dia em que colei
grau, minha admissão â Universidade de Richmond. E,
durante todo esse tempo, continuei a observar minha pose
de pescoço duro e meu afastamento de minha mãe, de meu
irmão Henry e mesmo da pequena Bruce Gordon. Depois, lá
estava o papai chegando a casa no seu uniforme de major; lá
estava eu, deslocando-me até à agência de correio para o
alistamento militar. Observei o processo de chamada no
Acampamento Lee, e eu, com centenas de outros recrutas,
embarcando no trem para o Acampamento Barkeley.
Cada pormenor de vinte anos de existência estava ali para
ser visto. Tudo o que havia de negativo, de positivo, os
pontos e o habitual, o comum. Eis que, então, no meio dessa
visão de tudo o que ocorrera, surgiu uma questão. E a per-
gunta estava implícita em cada cena, parecendo — assim
como as próprias sequências — ter sua origem na luz cheia
de vida ao meu lado.
Que fez Você da sua vida?
Óbvio que não se tratava de uma pergunta, no sentido de
que Ele estivesse atrás de informação, já que era patente o
que eu fizera da minha vida. E, de qualquer modo, essa re-
trospectiva total, perfeita e detalhada, veio dele; não de
mim. Eu não teria podido, de modo próprio, recordar um
décimo do que ali aparecera, se Ele não me o houvesse
mostrado. .
Que fez Você da sua vida? A pergunta parecia dizer respeito
a valores, não a fatos: o que Você realizou com as cotas de
tempo que lhe foram dispensadas? E todos os
acontecimentos de uma juventude tipicamente encantada
pareceram, à luz dessa indagação, não apenas indiferentes,
mas triviais. Não tinha eu feito alguma coisa duradoura,
alguma coisa importante? Desesperadamente, procurei algo
em torno de mim mesmo, algo que pudesse parecer válido à
luz dessa realidade resplandecente.
Não que houvesse pecados espetaculares; só as fantasias
sexuais de hábito e a reserva da maior parte dos
adolescentes. Porém, se não existiam despenhadeiros
horrendos, tampouco havia grandes alturas.
Tudo havia sido uma clamorosa, míope e constante
preocupação comigo mesmo. Será que eu jamais ultrapassara
os meus próprios interesses imediatistas? Não tinha eu feito
nada que fosse reconhecido como valoroso? Finalmente,
localizei o momento culminante da minha vida:
"Tornei-me Escoteiro Águia!"
De novo, as palavras pareceram emanar da Presença a meu
lado:
Isso foi a sua glória.
Era verdade. Eu podia me ver no centro do círculo,
recebendo o prêmio, inundado de orgulho, a admiração da
minha família e dos meus amigos estampada no olhar que
todos me dirigiam. Eu, eu, eu, sempre no centro. Será que
não se tinha sucedido nenhuma ocasião em que eu houvesse
permitido a alguém ocupar o ponto central?
Depois, aos onze anos, ansioso, dirigia-me a um ofício
religioso, pedindo a Jesus fosse Ele o Senhor da minha vida.
Mas percebi o quão rapidamente a excitação inicial se trans-
formou em rotina monótona dos domingos. Pior, eu percebi
a fatuidade e a auto-estima que estavam na base de tudo. Eu
era melhor do que os guris que não iam à igreja; melhor, até
mesmo, do que muitos que lá compareciam: como prova, lá
estava o meu distintivo de impoluta assiduidade.
Comecei, então, a apontar os meus cursos a nível de pré-
médico; expliquei que ia ser um médico e ajudar as pessoas.
Todavia, o Cadillac e o avião particular estavam visíveis nos
bastidores das cenas de aula... naquela luz toda irradiante,
eles eram pensamentos tão observáveis quanto quaisquer
ações.
— De repente, senti raiva da própria pergunta. Não era jus-
to! Claro que eu não tinha feito nada com a minha vida! Eu
não tinha tido tempo... Como se poderia julgar uma pessoa
que nem tinha começado a viver?
Todavia, o pensamento em resposta não revelava um só
traço de julgamento. A morte — e a palavra estava
penetrada de amor — podia vir a qualquer idade.
Bem, é claro. Sabia que bebês e crianças de tenra idade
morriam. Não importa como, eu sempre presumira que uma
vida longa me era, de algum modo, devida.
"Que dizer do seguro, cujo prêmio eu receberia ao com-
pletar setenta?" Antes que pudesse chamá-las de volta, as
palavras se perdiam nesse estranho campo de manifestação,
onde a comunicação processava-se por meio do
pensamento, em lugar do discurso. Havia alguns meses, eu
fizera o plano securitário-padrão de vida, que a polícia
oferecia aos que estavam na ativa; nalgum recanto da minha
subconsciência, acreditei que aquele pedaço de papel
garantia a própria vida. Se já antes suspeitava de que havia
alegria na Presença a meu lado, agora eu estava convicto de
tanto: a luminosidade pareceu vibrar e bruxulear, numa
espécie de riso sagrado — não por minha causa nem por ser
tão tolo. Não se tratava de uma risada de chacota, mas, sim,
o gáudio que parecia dizer que a felicidade era ainda mais
duradoura, a despeito de todo erro e calamidade.
E compreendi, no êxtase daquele riso, que era eu mesmo
quem estava, tão asperamente, julgando os acontecimentos.
Fora eu quem os vira triviais, egoísticos, sem importância.
Nenhuma condenação desse tipo vinha da glória
resplandecendo à minha volta. Ele não censurava nem
reprovava. Simplesmente... me amava. Aquilo tudo era uma
prova do seu amor. Simplesmente, plenificava o mundo com
a Sua própria Presença e, ainda — de algum modo —,
assistindo-me pessoalmente. Ali, Ele permanecia,
aguardando minha resposta à pergunta ainda em suspenso
no ar ofuscante.
Que tem Você para me mostrar daquilo que fez com a sua
vida?
Já havia entendido que, durante os meus primeiros e
desvairados esforços para sair-me com alguma resposta de
impacto, eu não havia — por meio nenhum — atingido o
objetivo. Ele não estava perguntando a respeito de proezas
nem de prêmios.
Como tudo o mais que se originava dele, a questão dizia
respeito a amor. Quanto fora você capaz de amar? Devotara
aos outros o amor que lhe devoto? Totalmente?
Incondicionalmente?
Ao ouvir uma tal pergunta, apercebi-me do quão tola era a
tentativa de descobrir uma resposta nas cenas que se
desenrolavam. Certamente, eu não sabia que fosse possível
um amor daquele tipo. Indignado, pensei: alguém devia ter
me dito!
Aquele era um bom momento para atinar com o significado
da vida — alguma coisa como submeter-se a um exame final
e descobrir que se ia ser testado num assunto que jamais se
estudara. Se era aquele o ponto de convergência de tudo,
por que ninguém me havia dito?
E, não obstante esses pensamentos se originassem de auto-
piedade e auto desculpismo, o pensamento em resposta não
trazia nenhuma reprimenda. Nada, além de uns laivos de
riso celestial, se ocultava atrás das palavras:
Sem dúvida que eu lhe disse.
Mas, como?!... E, ainda tentando justificar-me: como teria
sido possível que Ele me houvesse dito e eu não tivesse
ouvido?
Disse-lhe através da vida que eu vivi. Disse-lhe através da
morte que eu morri. E, se você me observar, verá mais...
Com um estremecimento, notei que nos movíamos. Eu não
tivera consciência de haver deixado o hospital; agora, no
entanto, ele não estava à vista. Tinham evanescido os
acontecimentos vivos da minha existência, os quais — antes
— nos rodeavam. No lugar deles, parecia que estávamos
voando bem alto, sobre a Terra, juntos, em direção a um
longínquo ponto de luz.
Não se assemelhava à viagem em desdobramento, que eu
antes fizera. Naquele caso, obcecavam-me os meus próprios
pensamentos, e eu parecera quase tangenciar a superfície da
Terra. Agora, estávamos mais alto, deslocando-nos com
maior rapidez; e, sempre como me fora ordenado, com os
meus olhos nele, essa forma de movimento não mais parecia
estranha nem alarmante.
O ponto distante ganhou as dimensões de uma grande
cidade, na direção da qual estávamos descendo. Ainda era
noite, mas chaminés de fábricas largavam fumaça e muitos
edifícios deixavam ver luzes acesas em todos os andares. Um
oceano, ou um extenso lago, situava-se além das luzes; bem
poderia ser Boston, Detroit ou Toronto; não se tratava de
nenhum lugar onde eu houvesse estado, isso era certo. Mas,
óbvio, pensei, enquanto nos aproximávamos o bastante para
enxergar as ruas superlotadas: tratava-se de um lugar onde
indústrias de artefatos bélicos estavam operando vinte e
quatro horas por dia.
Na realidade, as ruas estavam fervendo de gente. Bem abaixo
de nós, dois homens investiam um contra o outro no
mesmo trecho de calçada; um instante depois, um passou
através do outro. O mesmo acontecia dentro das fábricas que
zumbiam e nos edifícios de escritórios — onde eu podia
enxergar com a mesma facilidade com que enxergava nas
ruas: gente demais nas máquinas e sentada às mesas. Um ho-
mem de cabelos grisalhos ocupava uma cadeira dentro de
um cômodo, ditando uma carta num cilindro que girava.
Um outro indivíduo, talvez dez anos mais velho, de pé, atrás
do primeiro nem uma polegada afastado, permanecia
tentando agarrar o tubo condutor de fala, até que pudesse
arrebatá-lo da mão do primeiro.
"Não!", dizia ele,"se você pedir cem dúzias eles cobrarão
mais. Peça mil dúzias de uma vez. Pierce teria arranjado um
negócio melhor. Por que você mandou o Bill naquela tarefa
com a Treadwell. Prosseguiram corrigindo, dando ordens,
enquanto o homem da cadeira parecia nem mesmo vê-lo ou
ouvi-lo.
Notei esse fenômeno repetidamente: gente alheia aos que
estavam bem ao lado. Observei um grupo de trabalhadores
do tipo congregação reunidos em torno de uma cantina
onde serviam café. Uma das mulheres pediu um cigarro a
uma outra — na realidade, ela suplicou, já que era aquilo que
desejava mais do que qualquer outra coisa no mundo. A
outra, todavia, ignorava-a, enquanto tagarelava com seus
amigos. Pegou um maço de cigarros no seu manto e, sem ao
menos oferecer um cigarro àquela que lhe estendia a mão
tão ansiosamente, tirou um e acendeu-o. Rápida como uma
cobra armando o bote, a mulher que não obtivera o cigarro
agarrou o que estava aceso na boca da outra. Novamente,
tentou segurá-lo.
E, novamente...
Com um discreto arrepio, compreendi que ela era incapaz
de retê-lo.
Pensei naquele cabo, no posto telefônico e no lençol sobre a
cama do hospital. Lembrei de mim mesmo gritando para um
homem que nunca retornou para me olhar. E, então,
evoquei aquela gente, ali, naquela cidade, em vão tentando
atrair atenções e caminhando pelo passeio sem ocupar
espaço. Esses indivíduos estavam, claramente, no mesmo
apuro de falta de substância em que me achava.
Na realidade, estavam mortos como eu.
Mas, era tudo tão diverso do que eu sempre imaginava ser a
morte. Pude observar uma mulher, de talvez cinquenta
anos, seguindo, rua abaixo, um homem de mais ou menos a
mesma idade. Ela parecia muitíssimo viva, agitada e chorosa,
e o homem a quem ela se dirigia enfaticamente sequer regis-
trava sua existência.
"Você não tem dormido o suficiente. Marjorie exige muito
de você. E você sabe que nunca será forte. Por que não está
usando um cachecol? Você jamais deveria ter se casado com
uma mulher que não pensa senão em si mesma". Havia mais,
muito mais... concluí que ela era a mãe dele, a despeito de
parecerem ter quase a mesma idade. Há quanto tempo
estaria ela seguindo-o dessa maneira? Era a isso que a morte
se assemelhava?... Estar permanentemente invisível aos
viventes, embora sempre e inteiramente absorto em
negócios?
Não acumuleis tesouros na Terra. Porque, onde o vosso
tesouro estiver, ali estará também o vosso coração! Eu jamais
fora bem na memorização das Escrituras, mas aquelas
palavras de Jesus, durante o Sermão no Monte, pularam da
minha mente, como um choque elétrico. Era possível que
toda aquela gente sem solidez — o homem de negócios, a
mulher que implorava cigarros, aquela mãe — conquanto
não mais podendo entrar em contato com a Terra, ainda
tivessem por lá os seus afetos. E eu?... Teria os meus?... Meio
aterrorizado, pensei naquela insígnia de Escoteiro-Águia, na
inscrição do anel, no ingresso da Escola Médica... Estaria
meu coração centralizado em coisas como essas, ele que é o
centro do meu ser?
Fique me olhando. Fora isso que Jesus me dissera quando
nos pusemos a caminho, naquela viagem extraordinária. E, a
partir do momento em que comecei a proceder assim, de
todas as vezes que o olhava, o medo desaparecia, não
obstante a medonha pergunta persistisse. Na realidade, eu
não teria podido suportar nada do que me fora mostrado,
não estivesse Ele diante de mim.
Com a rapidez do pensamento, viajáramos de cidade a
cidade, por lugares aparentemente familiares, até mesmo
pelos Estados Unidos e — possivelmente — pelo Canadá, re-
giões da Terra que eu já conhecia, salvo pelos milhares de
seres não-físicos que, agora, eu observava ocuparem
também aquele espaço "normal".
Dentro de uma casa, um homem era seguido, cômodo após
cômodo, por um outro, mais moço, que repetia: "Desculpe,
pai! Eu não sabia o que aquilo ia causar à mamãe. Eu não
compreendia". Porém, era óbvio que o interlocutor não
podia escutá-lo, embora eu pudesse ouvi-lo claramente. O
senhor estava levando uma bandeja para um quarto onde
uma mulher idosa permanecia sentada sobre uma cama.
"Desculpe, pai", o jovem continuava, "lamento, mamãe."
E aquilo prosseguia, num modo contínuo, uma vez em cima
da outra, dito a ouvidos que não podiam ouvir.
Sentindo-me frustrado, virei-me para a claridade ao meu
lado. Mas, conquanto experimentasse a Sua compaixão
inundando-me como uma torrente, não alcancei nenhuma
compreensão.
Por diversas vezes, detivemo-nos ante cenas semelhantes.
Aqui, era um rapaz que ia nas pegadas de uma adolescente,
pelos corredores de um colégio, repetindo: "Desculpe,
Nancy!" Mais adiante, eram as súplicas de perdão que uma
mulher de meia idade dirigia a um homem de cabelos
grisalhos.
"Por que, Jesus, eles estão tão tristes?", indaguei, meio
suplicante. "Por que ficam falando com gente inapta a ouvi-
los?"
E, então, o pensamento se fez sentir, vindo da Presença: São
suicidas, agrilhoados a cada consequência do ato cometido.
Embora sabendo que isso provinha dele, não de mim, tal
idéia encheu-me de assombro, porque não mais presenciei
cenas como aquelas. Contudo, eu havia apreendido a
verdade que Ele me ensinava.
Aos poucos, comecei a reparar em algo mais. Todas as
pessoas vivas que nós estávamos observando traziam em
torno de si mesmas uma pálida luminescência, semelhante a
um campo elétrico que sobrepairava à superfície de seus
corpos. Tal luminosidade acompanhava-as em seus
movimentos, como se fosse uma segunda pele, feita de luz
pálida e quase imperceptível.
De início, pensei que se tratasse de um reflexo do brilho da
Pessoa que permanecia ao meu lado. Todavia, não notava
reflexo nenhum, por exemplo — nos edifícios em que
entrávamos, nem nos objetos inanimados. Percebi que
tampouco era observável nos seres não-físicos. Via, agora,
que nem o meu próprio corpo possuía aquela espata
esmaecida.
Estávamos assim, quando a luz conduziu-me para dentro de
um bar churrascaria sujo, perto do que parecia ser uma
grande base naval. Uma porção de pessoas, marinheiros —
em sua maioria —, fazia uma fila de dar voltas, dentro do
estabelecimento, enquanto outras socavam as botas de
madeira na parede. Alguns poucos tomavam cerveja, mas a
maior parte parecia entornar uísque tão rápido quanto
rápidos pudessem ser os dois suados garçons.
Observei, então, uma coisa chocante. Uma parte dos
homens que estavam de pé dentro do bar pareciam
incapazes de levar os drinques até aos lábios. Seguidamente,
tentavam agarrar as doses ao alcance da mão; estas, porém,
passavam através das canecas, do balcão de madeira de lei e,
até mesmo, dos braços e corpos dos beberrões à volta deles.
Faltava a cada um desses indivíduos a auréola de luz que
circundava os outros.
O casulo de luz deve, nestes termos, ser propriedade
exclusiva de corpos físicos. Os mortos — nós que perdemos
a solidez - haviam perdido também aquela "segunda pele". E
era óbvio que os vivos — cercados de luz, os que na reali-
dade estavam bebendo, falando, empurrando-se mutuamen-
te — não podiam nem ver os desencarnados em sede
desesperadora, no meio deles, nem sentir-lhes o empurra-
empurra frenético para chegar até àqueles copos. Embora
também me fosse claro, eu estava vendo, que a gente não-
sólida podia, a um só tempo, ver e ouvir uns aos outros.
Entre eles, irrompiam, constantemente, discussões furiosas a
respeito de copos que ninguém podia realmente levar aos
lábios.
Eu pensei que já tivesse visto bebedeira grossa nas festas de
congraçamento, em Richmond; todavia, o jeito pelo qual
civis e militares se comportavam ali batia todo o resto. Vi
quando um marujo ainda moço se ergueu, cambaleante, de
um tamborete e deu dois ou três passos, estatelando-se no
chafo. Dois dos seus companheiros abaixaram-se e começa
ram a arrastá-lo para longe da aglomeração.
Mas, não era bem aquilo que eu estava vendo. O que me
espantava era como o casulo de luz que envolvia o
marinheiro inconsciente pura e simplesmente se abriu!
Seccionou-se bem na coroinha no alto da cabeça, e
começou a parecer que estava sendo descascado, até aos
ombros. Instantaneamente, mais lesto do que eu jamais vira
alguém se mover, e um daqueles seres — que estivera com
ele, dentro do bar — já estava em cima do rapaz. A criatura
estivera, como sombra sedenta, rondando o marujo,
vorazmente lhe acompanhando a cada gole. Agora, parecia
que saltava sobre ele como uma fera salta sobre a presa.
Um segundo depois, a figura tinha — para minha absoluta
perplexidade — desaparecido. Tudo acontecera antes mes-
mo que os dois homens tivessem tido tempo de arrastar o
fardo inconsciente de sob os pés dentro do bar. Por um
minuto, eu vira — distintamente — dois indivíduos; no
momento em que eles estearam o moço a uma parede, havia
apenas um.
Observei, estupefato, que a cena se repetiu por mais duas
vezes. Um homem desmaiou, rapidamente se produziu uma
rachadura no casulo, e um daqueles seres arremessou-se
sobre o ponto, desaparecendo dentro do outro homem,
quase como se se houvesse fundido com ele.
Seria, então, aquela cobertura de luz algum tipo de escudo
de proteção? Tratar-se-ia de proteção contra... contra seres
desencarnados, como eu? As criaturas ora sem substância
tinham, presumivelmente, possuído corpos sólidos, tal qual
eu mesmo. Suponha-se que, enquanto nesses corpos,
houvessem desenvolvido uma dependência do álcool, que
ultrapassava os limites físicos. Essa dependência tornara-se
mental; até mesmo espiritual. Quando então perdiam o
corpo físico, a alternativa era única: ou se apossavam, ainda
que por diminuto lapso de tempo, de um outro corpo físico,
ou estariam eternamente desvinculados daquilo que nunca
haviam deixado de desejar ardentemente.
Uma eternidade como essa seria um tipo de inferno... o
pensamento causou-me um arrepio. Toda vez que pensava
em inferno — se é que pensava nele —, era em termos de
um lugar cheio de fogo, sob a Terra, onde homens maus —
como Hitler — estariam para sempre queimando. Mas, e se
existisse um nível de inferno bem sobre a superfície?... Num
círculo infernal, invisível e insuspeitado às pessoas vivas,
que ocupavam o mesmo espaço?.. . Que tal se ele significasse
a permanência na Terra, mas a total e irrevogável
incapacidade de entrar em contato com ela? Pensei naquela
mãe cujo filho não podia ouvi-la... a mulher que queria
aquele cigarro. Pensei em mim mesmo, cuidando
unicamente de chegara Richmond, incapaz de me fazer
visível a quem quer que fosse, impossibilitado de receber
auxílio.
Querer mais, queimar de desejo exatamente onde se tem
menos poder, — isso seria verdadeiramente o inferno.
Com um estremecimento, compreendi que não apenas
''seria"... mas que era. Aquilo era o inferno: e eu era parte
dele tanto quanto aqueles outros seres desencarnados.
Morrera, tinha perdido meu corpo físico. Agora, eu existia
numa região que de modo algum me corresponderia. ..
Mas, se aquilo era o inferno, se não havia nenhuma es-
perança, então por que Ele estava ao meu lado? Por que meu
coração pulava de alegria a cada vez que eu o fitava? Pois era
Ele, esmagadoramente Ele, a impressão capital da jornada.
Os panoramas e choques que me assaltavam eram coisa
alguma, comparados ao que, na essência, estava acontecendo
e que era, basicamente, isto: eu estava me apaixonando pela
Pessoa ao meu lado. Olhasse eu pelo prisma que fosse, Ele
permanecia o motivo real da minha atenção. O que quer que
eu visse, nada se comparava a Ele.
E esta era outra das coisas que me estavam frustrando: se eu
podia vê-lo, por que ninguém mais podia? Imediatamente,
pensei: Ele era muito luminoso para a sensibilidade óptica
dos que estavam vivos. Todavia, com certeza os seres vivos
por que passávamos registravam, de algum modo, a torrente
de amor que se espairava, como o calor se expandindo de
um fogo poderoso!
E aqueles outros, os que — como eu — não mais possuíam
olhos físicos, passíveis de destruição?... Como era possível
que, simplesmente, deixassem de ver o Amor e a Compaixão
abrasadores, bem no meio deles?... Como era possível que
lhes escapasse a presença de alguém mais próximo e mais
brilhante que o sol do meio-dia?
A menos que...
Por vez primeira, ocorreu-me excogitar sobre a possível
significação do que tinha acontecido, quando — aos onze
anos de idade — me dirigi para o altar da igreja. Talvez se
tratasse de algo cuja importância era infinitamente maior do
que eu havia podido imaginar. Com efeito, seria realmente
possível que eu tivesse "nascido de novo", como disse o
pregador? Ter-me-iam sido dados novos olhos, soubesse-o
ou não? Ou, então, poderiam também estes outros vê-los,
bastando — para isso — que a atenção não estivesse
prisioneira no mundo físico que haviam perdido?
"Onde estiver o seu coração..."
Enquanto o meu coração tinha estado exclusivamente
decidido a chegar a Richmond numa certa data, tampouco
fora eu capaz de ver Jesus. Talvez fôssemos capazes de nos
constituirmos em impedimento para Ele, toda a vez que
tivéssemos a atenção centralizada alhures.
Movíamo-nos, de novo.
Deixáramos a base naval, com sua circunferência de ruas e
bares surrados e pardacentos, e estávamos, agora, na orla de
uma extensa planície, nesta dimensão onde viajar parecia
não
despender tempo nenhum. Até esse ponto da nossa jornada,
tínhamos visitado paragens onde vivos e mortos coexistiam,
lado a lado. Para dizer melhor: onde seres desencarnados, de
todo não-registrados pelos viventes, flutuavam bem em cima
de coisas e sobre pessoas, guiados pelo centro de seus
desejos.
Agora, entretanto, não obstante fosse patente que estávamos
ainda na superfície da terra, nalgum lugar, eu não podia ver
nenhuma mulher ou homem vivo. A planície estava tomada
por indivíduos, apinhada de hordas integradas por seres
desencarnados verdadeiramente fantasmagóricos; não havia,
por ali, uma só pessoa sólida e cercada de luz. Aqueles
milhares de gentes não tinham, obviamente, mais substância
do que eu próprio. E, dentre todos os tipos de seres em que
eu já pusera os olhos, eram aqueles os mais contrariados,
frustrados, os mais raivosos e encolerizados, os mais
absolutamente miseráveis.
"Senhor Jesus!", exclamei. "Onde estamos?"
Minha primeira impressão foi a de que estávamos
contemplando algum campo de batalha: por todos os lados,
aquelas criaturas juguladas ao que se assemelhava a uma
sequência de lutas mortais, estorcegando-se, esmurrando-se,
mutuamente se arrancando os olhos. Não poderia ser uma
guerra moderna, visto não haver tanques nem canhões.
Quando olhei de mais perto, pude perceber que não existia
qualquer tipo de arma; somente mãos, e pés, e dentes.
Observei, então, que ninguém estava sendo ferido. Não
havia sangue, nem corpos juncando o solo, um golpe que
eliminasse um oponente tê-lo-ia — naquelas circunstâncias
— deixado intacto, tal qual dantes.
Embora parecessem estar literalmente uns em cima dos
outros, ainda assim era como se esmurrassem o ar.
Finalmente, compreendi ser óbvio que — desprovidos de
substância — não podiam tocar-se. Não podiam matar,
muito embora, sem sombra de dúvidas, o desejassem,
porque suas vítimas intencionais já estavam mortas. Por isso
entrechocavam-se em frenesi, numa crise de raiva
impotente.
Se, antes, eu achava que estava vendo o inferno, agora tinha
certeza. Até àquele momento, a miséria por mim observada
vinha consistindo num encadeamento frustrado com o
mundo físico, do qual nato mais fazíamos parte. Agora,
percebia existirem outras espécies de grilhões. Aqui não
existiam objetos sólidos nem gente para escravizar a alma.
Aquelas criaturas pareciam estar entre grades de hábitos
mentais e emocionais, enjauladas no ódio, na
concupiscência, em formas-pensamento destrutivas.
Ainda mais hediondos e deprimentes do que as dentadas e
os pontapés era os abusos sexuais, que muitos perpetravam
em febricitante pantomima. Por toda a nossa volta, tentava-
se cometer atos de perversão com os quais eu sequer
sonhara. Era impossível dizer se eram sons reais ou lamentos
de frustração que nos alcançavam ou se correspondiam à
transferência de pensamentos de desespero. Isso, em se
considerando aquele mundo desencarnado, não parecia, na
realidade, importar. Fosse qual fosse o pensamento, não
importa o quão fugaz ou involuntário, a ação imediatamente
tomava corpo, mais pormenorizada do que as palavras
poderiam expressar, mais rápido do que as ondas sonoras
poderiam propagá-las.
E o diapasão dos pensamentos tinha a ver com o
conhecimento superior, ou habilidades, ou embasamento
último do emissor... "Eu lhe disse!" "Sempre eu soube
disso!" "Não avisei?...!" Frases como essas ecoavam, aos
guinchos, umas após as outras. Nesse meio, e com uma
sensação de mórbida familiaridade, reconheci meu próprio
pensamento. Isso era eu, meu próprio tom de voz — o
virtuoso, o laureado, o carola. Até os vinte anos, eu não
havia, ainda, desenvolvido nenhum hábito físico
ergastulante; não como o haviam feito os seres que eu vira
em desornado empenho por se aproximarem daquele bar.
Todavia, aqueles ganidos de inveja, da auto-importância
ferida, eu os escutara muitíssimo bem.
Uma vez mais, contudo, não partiu condenação da Presença
a meu lado; partia-lhe do coração apenas compaixão por
aquelas infelizes criaturas. Era evidente não ser desejo seu
que elas estivessem, ali.
O que, então, as mantinha naquele lugar? Por que cada um
simplesmente não se levantava e saía? Eu não via razão que
justificasse o porquê do não-afastamento da pessoa-alvo dos
esganiçamentos daquele homem de carantonha. Nem
entendia por que aquela mulher não desaparecia das vistas
do outro que, tão furiosamente, esmurrava-a com punhos
insubstanciais. Na realidade, nenhum daqueles seres
doentiamente irados podia reter suas vítimas. Não havia
muros. Era óbvio que nada os impediria de sozinhos e
simplesmente, partir dali.
A menos que... a menos que, naquela região de Espíritos
desencarnados, o "sozinho" exprimisse uma ficção. Não
havia recantos privativos num universo onde inexistiam
paredes ou lugares que não fossem habitados por outros
seres a que se estava constantemente exposto.
Pensei, tomado de súbito pânico: como vai se viver para
sempre num lugar onde os meus mais entranhados e
secretos pensamentos não tinham nada de privaticidade?
Nada de os mascarar, nada de os dissimular; não havia jeito
de fingir ser aquilo que eu não era realmente. Que
intolerável! A não ser, claro, que todos à minha volta
tivessem o mesmo tipo de pensamentos... A menos que
achar os outros tão detestáveis quanto nós mesmos fosse
uma espécie de consolação, mesmo que à nosso alcance
estivesse apenas a instilação mútua do veneno que
segregávamos.
Talvez fosse essa a explicação para esse lugar medonho.
Talvez, no curso de eons ou segundos, cada criatura ali
houvesse buscado a companhia de indivíduos igualmente
presunçosos e iracundos, até que passassem a integrar aquela
sociedade de danados.
Talvez não fosse Jesus quem os abandonara, mas eles que se
houvessem evadido da luz que lhes revelava a própria treva.
Ou, então. . . não estariam eles tão isolados quanto a
princípio pareciam estar... Aos poucos, eu me tornava cons-
ciente de que havia algo mais naquele plano de formas que
se engalfinhavam. Pressentia-o, quase que desde o princípio;
todavia, por longo tempo fora incapaz de localizar o de que
se tratava. Atingi meu objetivo, não sem um choque que me
deixou apavorado.
Seres aparentemente feitos de luz sustentavam aquela
planície toda infelicidade. Suas dimensões e seu brilho
enceguecedor haviam sido os responsáveis pelo fato de
minha inapreensibilidade no que a eles respeitava. Agora
que eu adaptara meus olhos de forma a registrá-los, podia
ver que essas imensas presenças inclinavam-se sobre as
pequenas criaturas. Talvez até estivessem conversando com
elas.
Esses seres brilhantes não seriam anjos? E a luz ao meu
lado... não seria também um anjo? Mas o pensamento que
tão indelevelmente se imprimira na minha mente, naquele
pequeno quarto de hospital, fora: "Você está na presença do
Filho de Deus". Seria incrível que cada um desses outros
espectros humanos - desventurados e indignos como eu
também, estivesse na Sua presença? Numa região onde
espaço e tempo não mais obedeciam a qualquer lei que eu
conhecesse, poderia Ele estar acompanhando cada um deles
como acompanhava a mim?
Ignorava-o. Tudo o que com clareza eu percebia era o
fato de que nenhum daqueles seres atrabiliários fora
abandonado. Eles estavam recebendo assistência; velava-se
por eles.
E o fato igualmente observável era que nenhum deles tinha
conhecimento do que se passava. Se Jesus ou Seus anjos
estavam falando com eles, era pacífico que não ouviam
nada.
A torrente de rancor nascida em seus próprios corações era
ininterrupta; seus olhos só buscavam um pobre circunstante
para humilhar. Ter-me-ia parecido impossível desconhecer
os mais impressionantes e avantajados componentes de toda
a paisagem, salvo porque, de mim mesmo, não tivera olhos
de ver.
Agora que me conscientizará dessas presenças brilhantes, na
realidade compreendi o aturdimento em que vira tanta gente
mergulhada, sem sequer perceber o fato, enquanto Jesus
poderia, a qualquer tempo, desvelar-me a realidade,
bastando que, para tanto, eu estivesse pronto. Havia também
anjos povoando as cidades vivas que tínhamos visitado. Ti-
nham estado presentes nas ruas, nas fábricas, nos lares e até
mesmo naquele áspero bar, onde ninguém tinha mais cons-
ciência da existência deles do que eu mesmo.
E, imediatamente, atinei com o denominador comum de
todas as cenas até o momento: tratava-se da incapacidade de
ver, de compreender Jesus. Quer se tratasse de um apetite
físico, de uma autocentralização ou de uma preocupação
mundana, não importava.. . o que quer que caísse na traje-
tória da sua luz não poderia, ser negativo, continuar
vivendo.

6

Movíamo-nos, de novo. Ou — melhor — a cena à nossa
frente estava, de algum modo, mudando, ampliando-se. A
qualidade da luz é que era diferente, enquanto —
repentinamente — o ar adquirira maior transparência,
facultando-me a visão do que já, por muito tempo, estaria
ali.
Ainda uma vez, acontecia como se Jesus apenas me pudesse
revelar o que minha mente fosse capaz de apreender.
Mostrara-me, primeiro, um domínio infernal, povoado de
seres apanhados na armadilha de alguma espécie de auto-
atenção. Agora, começara a perceber, por detrás, além e
através de tudo aquilo, uma nova realidade! Edifícios
enormes cravavam-se num belo parque ensolarado, cujas
várias estruturas se interrelacionavam, como se houvesse um
padrão para a maneira na qual estavam dispostos; algo que
me evocava uma bem planejada universidade, com a
exclusão do ridículo que consistiria comparar aquilo tudo a
qualquer coisa na Terra. Era mais como se todos os colégios
e escolas do mundo não passassem de fragmentadas
reproduções dessa realidade.
Parecia que tínhamos, de repente, passado a uma dimensão
de toda outra, quase um outro tipo de existência. Depois do
clamor das belicosas cidades e das vozes estridentes na
planície, fazia-se, ali, sentir uma paz total. Quando entramos
num dos edifícios e começamos a descer por um corredor
de teto alto, ao longo do qual se alinhavam altos portais, o ar
revelava-se tão silencioso que me causou verdadeiro espanto
a visão de gente pelo caminho.
Não podia dizer se se tratava de homens ou de mulheres, se
eram velhos ou jovens, pois estavam — todos —, da cabeça
aos pés, cobertos por mantos com capuz, leves e soltos.
Todavia, a atmosfera local em nada se assemelhava ao que eu
imaginava fosse um monastério. Era mais como um
formidável centro de estudo, fremindo na excitação de
grande descoberta. Cada pessoa por que passávamos, nos
grandes saguões e pelas escadas curvas, parecia absorta até à
medula numa qualquer atividade centralizadora; trocavam-se
poucas palavras. Mesmo assim, eu não registrava qualquer
sinal de inamistosidade, mas - sim — um alheamento de
total concentração.
O que quer mais que aquela gente fosse, todos se revelavam
extrema e soberanamente desprendidos — absortos nalgum
objetivo além deles mesmos. Vislumbrei, através de portas
abertas, recintos enormes, ocupados com aparelhagem
complexa. Em muitos deles, figuras como as já descritas
inclinavam-se sobre mapas e diagramas intricados, ou
tomavam posição junto às elaboradas mesas de controle
onde piscavam luzes. Os primeiros vagidos de uma educação
científica me haviam feito experimentar uma pontinha de
orgulho. Na universidade, eu me especializara em Química,
concluíra o curso secundário de Biologia, estudara Física e
Cálculo. Mas, se aquilo que via — agora — era alguma
modalidade de atividade científica, tudo estava tão além do
que eu conhecia que sequer me era possível supor do que se
tratava. De algum modo, pude sentir que se estava
realizando alguma vasta experiência, talvez dúzias e dúzias
de tais experiências.
"Mestre", perguntei, "o que estão fazendo?"
Mas, conquanto o Saber se irradiasse Dele como língua de
fogo; embora pressentisse eu que, naquele pujante "campus",
cada atividade tinha sua fonte em Deus, nenhuma explicação
me iluminou a mente. Como dantes, amor era o que se
comunicava: compaixão por minha ignorância, uma
compreensão que envolvia toda a minha incapacidade de
compreender.
E algo mais... A despeito do Seu óbvio prazer quanto aos
seres à nossa volta, captei a sensação de que nem mesmo
aquilo representava o máximo; penetrei na idéia de que Ele
tinha coisas muitíssimo mais importantes para me mostrar.
Bastava que eu pudesse vê-las.
E, assim, continuei a segui-lo por outros edifícios naquele
domínio do pensamento. Ingressamos num estúdio onde
estava sendo composta e executada música de uma
complexidade que eu sequer podia começar a acompanhar.
Havia ritmos complicados, tonalidades inexistentes em
qualquer escala por mim conhecida.
"Mas, é claro!", apanhei-me pensando... "Bach é apenas o
começo!"
A seguir, atravessamos uma biblioteca do tamanho da
Universidade de Richmond. Fitei o interior de recintos
literalmente ocupados com documentos de pergaminhos de
argila, de couro, papel e metal, enfileirados do chão ao teto.
Nesse momento, ocorreu-me:
"Aqui estão reunidos os livros que têm importância no
universo".
De imediato, imaginei que isso era impossível. Como se faria
que, nalgum lugar além da Terra, livros pudessem ser
escritos! Todavia, o pensamento se mantinha, muito embora
minha mente o rejeitasse. "As obras capitais do Universo"...
a frase ia e vinha, enquanto percorríamos as salas de leitura
abobadadas, cheias de sábios silenciosos. Então, à porta que
dava para uma das menores Salas, à semelhança de um
anexo, invadiu-me este pensamento: "Aqui está localizado o
cérebro desta terra".


Saímos, novamente, no parque silencioso, onde reinava
sadia expectação. Depois, entramos num edifício abarrotado
de maquinário tecnológico. Dentro de uma estranha
estrutura esférica, um estreito jirau levou-nos até sobre um
reservatório de alguma coisa que parecia ser água comum.
Entramos e saímos de lugares que se assemelhavam a
gigantescos laboratórios, bem assim no que poderia ter sido
alguma espécie de observatório espacial. E, à medida que
prosseguíamos, meu estado de estupefação crescia.
"Senhor", especulei... "será isto... o céu"? A tranquilidade, a
reverberação luminosa, tudo era — seguramente — celestial!
Também o eram a ausência de "self", de ego. "Quando estes
seres estavam na Terra, acaso ultrapassaram desejos
egoísticos?"
"Sim, eles os ultrapassaram, e continuaram a ultrapassá-los."
Naquela atmosfera concentrada e ansiosa, a resposta brilhou
como a luz do sol. Mas, pensei eu, se o crescimento íntimo
podia continuar, então aquilo não era tudo. Então... então
devia faltar alguma coisa até mesmo àqueles seres
transbordantes de serenidade. E, de repente, comecei a
imaginar se não era a mesma coisa o que faltava no "círculo
inferior". Estariam essas criaturas desprendidas e
silenciosamente indagadoras de algum modo falhando em
ver Jesus? Ou, talvez, em vê-lo pelo que Ele mesmo
representava? Era pacífico que recebiam dele sugestões e
laivos; era óbvio que aquilo que buscavam tão
concentradamente outra coisa não era senão a verdade. Mas,
e se até mesmo a sede pela verdade pudesse impor desvio
quanto à Verdade, ela mesma? A verdade que estava ali,
bem no meio deles, enquanto a procuravam em livros e
tubos de ensaio...
Ignorava-o. E perto do Seu inexprimível amor, meu próprio
aturdimento e todas as perguntas que se desejava pôr
revelavam-se de somenos. Talvez, concluí - finalmente -,
Ele não possa me dizer mais do que eu possa compreender:
quiçá inexistiam em mim, até aquele momento, sensores
aptos a captar e decodificar uma explicação?
A Personalidade à meu lado continuava a ser o evento
central, de absoluta propriedade. Quaisquer fossem as
ocorrências que me apontava, tudo era adicional; Ele
permanecia, incontestavelmente, o verdadeiro foco da
minha atenção.
Talvez aí residisse o motivo por que eu não houvera atinado
com o exato momento em que deixamos a superfície da
Terra.
Até aquele ponto, mantivera eu a impressão de que ha-
víamos estado viajando sobre a própria Terra, embora não
me fosse possível imaginar de que modo isso se dava. Até
mesmo o que eu fora levado a crer por um "plano superior",
caracterizado por aprendizagem e pensamentos profundos,
não estava assim tão em apartado do "plano físico", onde
seres sem corpo permaneciam encadeados a um mundo só-
lido.
Agora, entretanto, parecia que havíamos deixado a Terra
para trás. Não mais a divisava. Ao invés disso, era como se
estivéssemos num vácuo imenso com a única diferença em
que sempre pensara naquilo como em domínio assustador,
expresso numa palavra intimidadora; e, ali, isso não se dava.
Um qualquer indício de inopino parecia transvibrar a
imensidão do vazio.
Foi então que, a infinita distância, longe demais para ser
registrada por qualquer tipo de visão de que já ouvira falar...
foi então que divisei... uma cidade. Cintilante, aparen-
temente sem fim, brilhante o suficiente para se impor à
distância inimaginável que medeava. A claridade parecia
originar-se das próprias paredes e ruas desse lugar, e de seres
que, agora, eu sabia estavam se deslocando por ela. Para ser
mais preciso, a cidade e tudo o que a integrava parecia ser
estruturado em luz, do mesmo modo que a Figura ao meu
lado.
Até àquele momento, eu não havia lido o Apocalipse. Fiquei
de queixo caído diante daquele remoto espetáculo,
imaginando o quão brilhantes deveriam ser cada prédio e
cada habitante para se fazerem vistos a tantos anos-luz de
distância. Seriam aqueles seres resplandecentes — pensava
eu, maravilhado — os que haviam conservado Jesus como
centro de suas vidas? Estaria, finalmente, contemplando os
que O teriam procurado em tudo? Os que nisso se haveriam
empenhado tanto e com tal proficiência que se haviam
assimilado a Ele, penetrando a Sua própria forma?... Mal não
propusera a questão, e duas das figuras radiosas como que se
destacaram da cidade, vindo ao nosso encontro,
arremetendo através daquela infinitude na velocidade da luz.
Mas, na mesma proporção em que elas vinham em nossa
direção, nós nos afastávamos... até mais rapidamente.
Aumentou a distância, a visão esmaeceu. Mesmo que eu
exclamasse em protesto de angustiosa frustração, e
conquanto o fizesse, sabia que minha visão imperfeita não
reunia condições para, senão por um átimo, reter um quê
daquele céu verdadeiro, supremo. Ele me havia mostrado
tudo o que eu mesmo tornara possível. . . Agora, estávamos
muito longe, deslocando-nos velozmente.
De repente, paredes fecharam-se à nossa volta. E tudo ficou
tão estreito, tão à semelhança de uma caixa, que levou
alguns segundos até que eu reconhecesse o pequeno quarto
de hospital, de onde nos afastáramos ao que parecia ser uma
vida.
Jesus ainda se erguia ao meu lado; caso contrário, a
consciência não poderia ter suportado a transição do espaço
infinito para as dimensões cubiculares daquele quarto. Nos
meus pensamentos, a cidade gloriosa ainda faiscava e
incandecia, acenando e atraindo-me. Notei, com total
indiferença, que havia um vulto deitado sob o lençol, na
cama que quase tomava o quarto minúsculo.
E, não obstante estas sensações de restrição, a Presença
dizia-me que, de algum jeito, eu tinha algo a ver com aquela
forma coberta; dizia-me que seus planos em relação a mim
envolviam também aquela coisa semelhante a uma massa
informe. Eu me aproximava da coisa, que — aos poucos —
tomava o meu campo de visão, apagando a Luz. Em
desespero, supliquei que não me deixasse; que me preparasse
a fim de que eu pudesse compreender e participar daquela
cidade ofuscante. Pedi-lhe que não me abandonasse naquele
lugar escuro e estreito.
Como uma história há muito tempo quase esquecida,
lembrei-me de mim mesmo, esquadrinhando saguões e
enfermarias, naquele mesmíssimo hospital, querendo —
desesperadamente — achar o corpo que estava sobre aquela
cama. Vindo do instante mais solitário de toda a minha
existência, eu havia saltado para a mais perfeita noção de
posse que já conhecera. A Luz do Mestre penetrava a minha
vida, preenchendo-a completamente e a idéia de me separar
Dele era mais do que eu podia suportar.
A um só tempo, enquanto eu continuava a implorar, senti a
consciência escapando. Minha mente começou a turvar-se...
Não mais sabia pelo que eu lutava. Minha garganta estava em
fogo e o peso sobre o meu peito me esmagava.
Abri os olhos, mas havia algo diante do meu rosto. As cegas,
tateei os cobertores, tentando descobrir o que era que estava
me cobrindo; todavia, mover os braços era algo semelhante
a tentar içar barras de chumbo. Finalmente meus dedos se
entrelaçaram. Com os da mão direita, toquei um aro com
uma pedra oval, que estava no anular da mão esquerda.
Devagar, girei-o e girei-o, na medida que o breu mais se fe-
chava sobre mim.
Quatro sessões me haviam sido necessárias para relatar a
Fred Owen esse tanto da minha história. Durante todo o
tempo, ele me interrompia para fazer perguntas ou propor
interpretações e para me fazer ciente de que não estava,
necessariamente, engolindo uma palavra que fosse.
Agora, entretanto, estava sentado, absolutamente quieto,
enquanto os números do relógio digital sobre a minha mesa
iam rodando. Quando chegou o meu outro paciente, ouvi a
porta externa abrir e fechar, olhei o relógio: tínhamos mais
dez minutos.
"Você... tinha retornado ao seu corpo?" ele perguntou
finalmente.
"Esse é o modo por que, agora, eu o interpreto", disse eu.
"Quando isso ocorreu, não era muito o que eu sabia das
coisas. Permaneci quase inconsciente durante os outros dois
ou três dias. Só tive sonhos febris, do tipo pesadelo — o tipo
da coisa que você espera acontecer durante uma doença
grave".
Aquilo era o principal, eu lhe disse. Quando a consciência
começou a voltar, o de que mais eu me apercebia era de
estar doente. Meus distúrbios físicos impregnavam tudo o
que me cercava. Mas, enquanto eu estivera... fora do corpo?
— não mais sabia descrevê-lo — inexistia qualquer dor.
Nenhuma sensação física.
A outra coisa de que, com toda a segurança, eu podia
relembrar — prossegui — era ter aberto os olhos com uma
dor de cabeça de elefante, vendo uma enfermeira sorrindo
para mim.
"E bom tê-lo de volta conosco", disse ela. "Por um instante,
nós pensamos que você não fosse conseguir".
Lambi os meus lábios, rachados de febre, e consegui rosnar:
"Que dia é este?"
"Véspera de Natal, cabo Ritchie".
Acrescentou que a folga do feriado para o pessoal do hospital
havia sido cancelada, por causa da epidemia de gripe e da
alta incidência de pneumonia que grassava pelo acampa-
mento.
Tentei arquitetar uma outra pergunta, de modo a que ela não
saísse. Eu precisava, de algum jeito, comunicar à enfermeira
o que se havia passado comigo.
Sim, disse, tinha nevado durante quase todos os dias. Seu
nome, revelou-me, era Tenente Irvine.
"Acabo de ter a mais estarrecedora experiência", falei, sem
rebuços. "Foi algo que deve ser conhecido de cada pessoa
sobre a Terra."
Fui interrompido por um acesso de tosse. A Tenente Irvine
teve de passar o seu braço pelas minhas costas e me
soerguer, para me dar um gole d'água.
"Não fale mais agora", atalhou. "Virei visitá-lo, mais tarde".
E, com efeito, comecei a imaginar... O que ia eu dizer?
"Acabo de ver a Deus? Estive no inferno? "Vislumbrei o
céu?" Ela ia pensar que eu estava doido.
Por toda aquela semana, fosse quando fosse que alguém
entrava no pequeno quarto, esforcei-me por descrever a Luz
que enchera aquele espaço, ali mesmo, bem assim a
pergunta medular que Ele me pusera, jamais conseguindo ir
além das primeiras poucas palavras.
"Descanse um pouquinho agora. Não tente andar", diria o
doutor ou a enfermeira. E, na realidade, minha voz não
passava de um crocito entrecortado. Era óbvio que a equipe
estava mais interessada em assuntos como taxa de
metabolismo, minha temperatura e a quantidade de soro
intravenoso que eu estava tomando. A atenção que me
estava sendo dispensada era sinal evidente de que eu estava
sendo considerado mais do que um caso rotineiro. E,
gradualmente, na medida em que os dias passaram, reuni
tudo o que se havia desdobrado no andar do hospital,
enquanto — da minha perspectiva de eventos — eu estava
encontrando Jesus.
"Por hoje, a nossa hora acabou", disse a Fred, "mas se você
quiser, amanha" lhe direi o que eu descobri com os
doutores".
Fred estava, agora, vindo diariamente, muito embora a curta
caminhada desde a quadra do parque o deixasse com falta de
ar. Então, foi na tarde seguinte que resumi a minha
história...

8

Soube que, depois de haver desmaiado na frente daquela
máquina de Raios X, eu fora levado para uma pequena sala
de isolamento, numa enfermaria próxima, onde minha
condição tinha sido diagnosticada como pneumonia dupla.
Em 1943, "drogas milagrosas" ainda estavam na infância, de
modo que, durante as 24 horas seguintes, e a despeito de
tudo o que o hospital pudesse fazer, meu estado agravou-se.
Dia 21 de dezembro, de manhã cedo, 24 horas depois de ter
sido levado inconsciente para dentro da saleta, o auxiliar de
enfermagem distribuía os medicamentos prescritos, quando,
ao chegar ao cubículo onde eu me encontrava, tentou, mas
não conseguiu, achar o meu pulso. Conferiu meu ritmo
respiratório... Nada. A seguir, tirou minha pressão...
Novamente, nada. Então, saiu correndo à procura do oficial
do dia.
Ele chegou a toda e fez todos os exames de novo, obtendo
os mesmos resultados. Finalmente, empertigou-se e disse
para o auxiliar: "Muito bem, está morto. Quando terminar o
serviço, prepare-o para necrotério." Disse isso gravemente:
naquele mês, outros óbitos já tinham ocorrido no
Acampamento Barkeley. Foi com relutância que ele endirei-
tou meus braços sobre os cobertores, cobriu-me o rosto com
o lençol e voltou para a enfermaria, a fim de fazer pelos
vivos o que lhe fosse possível.
O auxiliar continuou com as suas rondas. Deve ter sido neste
momento que eu, na minha desesperada busca sem corpo,
cheguei de volta àquele pequeno cômodo e vi a pessoa
coberta por um lençol.
Segundo os registros hospitalares, o rapaz retornou ao
pequeno cômodo, mais ou menos nove minutos depois, para
iniciar os preparativos do cadáver, na transferência ao
necrotério. Mas, não se teria movido aquela mão sobre o
cobertor?
Novamente, o rapaz disparou à cata do oficial do dia, que
voltou com ele, examinou-me pela segunda vez e, também
pela segunda vez, declarou-me morto. O jovem contínuo —
durante a longa e solitária vigília noturna — sem dúvida
estava imaginando coisas.
Foi então que ocorreu o fato, cujo impacto integral
só anos depois eu atinei. No momento em que dele tomei
consciência, surpreendi-me — é certo; mas não a ponto de
emudecer de assombro, como acontece hoje em dia, a cada
vez que medito sobre ele.
O rapaz recusou-se a aceitar o veredicto do oficial seu
superior. "Talvez" — sugeriu — "o senhor pudesse aplicar-
lhe uma injeção de adrenalina diretamente no músculo car-
díaco".
Em primeiro lugar, em se tratando de um soldado raso, era
simplesmente inconcebível que ele tergiversasse um oficial,
especialmente sobre assunto médico, e, ainda mais, levando-
se em conta tratar-se de alguém não-especializado, enquanto
se tinha, no oficial, um médico formado. Em segundo lugar,
o que o moço estava sugerindo era, do ponto de vista médi-
co, ridículo. Era verdade que, naqueles dias, antecedentes ao
uso generalizado de massagem cardíaca e eletrochoque, a
injeção direta de adrenalina no coração, às vezes — em
casos de parada cardíaca —, era tentada. Isso, porém, só na
hipótese de o coração ter parado em razão de algum trauma
ocorrido com um paciente essencialmente saudável, como
num caso de afogamento, em que a reativação cardíaca ofe-
rece alguma esperança de restabelecimento final.
Todavia, a partir do instante em que a deterioração é do
sistema inteiro, originária de uma moléstia como a
pneumonia, algumas contrações cardíacas obtidas a mais não
levavam a nada. Tecnicamente, pode-se conseguir uns
poucos minutos de batimentos, mas em nada isso altera a
condição geral. E o meu estado era, realmente, de todo
irreversível... qualquer profissional da Medicina saberia
disso. Depois de tanto tempo sem oxigenação, estaria
irrecuperavelmente danificado.
E, ainda assim, mesmo no perfeito juízo da inutilidade do
expediente, esse ilustrado oficial acolheu a sugestão daquele
desinformado indivíduo, que o margeava. "Pegue na sala de
material um pacote esterilizado", ordenou-lhe. Assim que o
moço retornou, o oficial encheu a seringa com a adrenalina
de um frasco e cravou-me a agulha no coração.
Os batimentos recomeçaram, se bem que, a princípio,
irregulares. Então, enquanto os dois observavam, incrédulos,
assumiram uma pulsação rítmica. Logo depois a respiração
começou. Minha pressão arterial subiu. Meu fôlego
acresceu-se...
De modo algum se tratava de uma pronta recuperação. Isso
passou-se três dias antes que eu ficasse consciente, cinco
dias antes de eu ser retirado da lista de casos críticos, e duas
semanas antes de eu andar. Somente agora, porém, quando
já ficaram para trás vinte e sete anos da minha própria
experiência médica, é que posso aquilatar do pasmo com que
toda a equipe tinha acompanhado o meu progresso. Ao
tempo em que me achei suficientemente bem para fazer
perguntas, o oficial de serviços naquela noite e o contínuo,
cujo pressentimento provara estar correto, haviam, ambos,
partido com uma unidade através dos mares. Recebi, não
obstante, uma visita pessoal do Dr. Donald G. Francy, o
Comandante a quem o oficial do dia narrara os
acontecimentos da noite. O Dr. Francy classificou a minha
recuperação como "o caso médico mais espantoso que já
encontrei". Anos depois, deu uma declaração tomada a
termo por notário público, em que dizia: "O virtual retorno
da morte que ocorreu com o cabo George G. Ritchie, bem
como sua reassunção ao vigor da saúde, tem de ser explicado
por outros meios que não os naturais".

9

Aquela época, entretanto, os pormenores do meu
restabelecimento interessavam-me muito pouco, disse-o a
Fred Owen. Eu encarava a minha volta a esta vida como
uma calamidade; teria, mesmo, ficado com aqueles que
trabalharam para me reviver, se eu tivesse tido força para tal.
Durante a maior parte do tempo, permaneci na cama, um
jovem muito doente, batalhando com o imenso Encontro
que mantivera, ali mesmo, naquele cubículo. Fiquei
pensando em Jesus, querendo. descobrir como contar a
outros sobre Ele, imaginando como eu poderia viver onde
não pudesse vê-lo.
Foi num dia em que a minha separação parecia mais fácil de
suportar que alguém entrou no quarto. Contínuos lotados na
enfermaria, enfermeiras, médicos — não importava quem
fosse —, o fato era que meu coração dava um salto quando
quer que alguém aparecia. A Tenente Irvine — descobri que
o seu prenome era Retta — estava peculiarmente interessada
em "investigar", como ela colocava a questão; e a cada vez
eu novamente tentava dizer-lhe o que me ocorrera. "Era
como o sol mais brilhante que você já viu, só que não um
sol que queimava..." O problema estava em que me faltavam
palavras capazes de expressar ainda que fosse o aspecto mais
pálido de tudo. Eu podia observar que as minhas tentativas
só a desorientavam, parecendo-lhe um quebra-cabeça.
Pensando bem, percebi que Retta Irvine não podia ter mais
de vinte e seis, vinte e sete de idade, uma lourinha alinhada,
dona de um sorriso agradável, que — não obstante —
parecera aos meus olhos uma mulher de meia-idade, mais
velha do que eu, e a quem me seria possível extravasar meus
problemas. Já que ná"o conseguia fazê-la compreender a Luz
e os mundos que Ele me havia mostrado, comecei a falar-lhe
a respeito do meu curso de Medicina e de como eu deveria
ter iniciado as aulas, três semanas antes. Simpatizou
imediatamente com esse assunto. Era uma curtição falar com
ela. Por que não percebera, antes, como era maravilhoso
olhar dentro de um rosto humano e ver que ele estava
olhando para mim, falar e observar-lhe a reação?...
Tão logo me foi possível trautear para fora do pavilhão
principal, minha disposição melhorou ainda mais, e comecei
a acutilar todo o pessoal com meus pedidos de remoção para
um dos leitos normais, onde eu tivesse gente de ambos os
lados. Fiquei impressionado ao me lembrar de como eu —
uma pessoa tímida e bastante introvertida — fora capaz de
enfrentar uma tal experiência. Fora só no escotismo e na
Fraternidade que eu me sentira à vontade com outras
pessoas; e a causa dessa descontração havia sido o contato
constante com o mesmo grupo. Agora, de repente, dava
comigo mesmo cumprimentando ilustres desconhecidos
como se fossem velhos amigos do peito. A extrema solidão
que eu conhecera, enquanto — invisível e insuspeitado —
vagava por aqueles mesmos pavilhões, causara-me uma
profunda reviravolta.
Todas as vezes que, à noite, as luzes eram desligadas e que a
conversa aos poucos silenciava, eu me deitava, mirando o
arco das luzes noturnas da ala, repensando cada detalhe
daquela extraordinária noite quando a Luz entrara, ela pró-
pria, naqueles insípidos alojamentos de madeira. Estaria Ele
ainda aqui?, comecei a me perguntar. Seria apenas porque
Ele fosse excessivamente ofuscante para os nossos olhos
físicos que nenhum de nós O podia ver?
Fiquei desencorajado de sequer tentar transmitir aos outros
o que eu vira. Desencorajado e, também, um tanto ou
quanto cioso. Estava desfrutando demais a recente
camaradagem do pavilhão para me arriscar a ser posto no
ostracismo, como se fosse um biruta. Não obstante, a cada
noite, durante horas, eu me recordava de cada uma das
visões, de cada som peculiar àquele tempo incrivelmente
vívido. Primeiro, aquele domínio infernal, que me fora
permitido olhar pelo mais longo intervalo. Aquele lugar, de
onde as criaturas sequer podiam escapar, muito embora não
mais pertencessem à Terra, escravas dos envolvimentos, das
ânsias desvairadas e do orgulho que haviam permitido as
dominasse aqui. A seguir, a rápida visita aonde o próprio eu
ficara para trás, onde tudo era busca impessoal da verdade,
onde eu quase pudera imaginar-me no céu, exceto por
aquela fugaz revelação. E, então, a cidade gloriosa... vira-a
por um simples instante, e — no entanto — permanecera o
mais nítido de toda a experiência... o mais dolorosamente
nítido.
Que significava aquilo tudo? Por que, dentre todas as
pessoas, fora eu aquela a quem tais coisas deveriam ser mos-
tradas? E, acima de tudo, que deveria eu fazer a respeito,
agora?
Era isso o que Fred Owen estava me perguntando, afundado
na cadeira de braço perto da minha, contando o tempo das
palavras entre respirações difíceis.
"Isso fez alguma diferença de peso?", indagou. "Quero dizer,
diferença na sua vida, naquilo que você realizou. Porque, do
contrário, a coisa é — toda — muito fascinante, um
caminho íntimo para Deus, e toda aquela história; mas, eu
não vejo o quanto isso importe".
Um caminho íntimo... Acaso eu detectara uma ponta de
inveja, naquelas palavras? Se fosse isso, e'staria claro que eu
não obtivera sucesso na trasmissão da essência da experiên-
cia.
Lembrei a Fred que aquilo não era viagem direta para o céu.
Se é que, de algum jeito, eu tinha visto o céu, isso teria sido
a uma distância enorme, inatingível pela pessoa que eu, por
então, era, que podia conceber, ou em que me podia
transformar. Nem acreditava pudesse um garoto na casa dos
vinte ter mergulhado nas profundezas do inferno; por
exemplo, eu não vira o lago de fogo que consta da Bíblia.
O que, porém, tinha visto da outra vida, tal como estava
aparentemente sendo vivida por gente muito semelhante a
mim, era inferno. O bastante para encher-me de um terror a
qualquer atitude, hábito, prioridade que me pudesse
determinar uma existência como algumas daquelas. Disse a
Fred que, desde aquela noite, no Texas, nada comigo
ocorrera por acaso; nenhum encontro com pessoas fora sem
importância. Desde aquele tempo, cada minuto de cada dia
me autoconscientizava da presença de um mundo maior.
E, bastante estranho, fora — não o terror — mas a glória
daquele mundo que tornara tão árdua a minha volta a esta
vida. O contraste entre o amor de Jesus e o mundo no qual
eu me encontrei, tendo de continuar a viver, fez o ano que
se seguiu à doença o mais difícil da minha vida.
"Que diferença fizera", Fred perguntava-me. Eu sabia que,
para jogar limpo com ele — tal como eu concordara em
jogar — seria necessário contar-lhe, e contar-lhe
honestamente, o que aconteceu depois.


10

Três semanas depois do meu encontro astral com o Cristo, a
Tenente Irvine parou junto à minha cama com boas e
inesperadas novas. A Escola Médica de Virgínia tinha deixa-
do em aberto a minha matrícula! Deveria apresentar-me
para as aulas, assim que pudesse viajar para o leste!
Uma vez mais, a minha convalescença transformou-se numa
corrida contra o tempo: cada dia de aulas perdido significava
mais a compensar, menos oportunidade de acompanhar o
programa. "Nós não temos permissão de mostrar aos
pacientes as suas papeletas, mas eu lhe digo, com toda certe-
za, que eles não o deixarão sair daqui antes de engordar ou-
tros 7 quilos".
Então, comecei a comer, empanzinando-me com pire de
batatas, que grudava na minha boca ressequida como se
fosse goma arábica; bebendo leite até que a visão de uma
embalagem metálica me fizesse o estômago subir à garganta.
Finalmente, num dia claro e ventoso de janeiro, exatamente
um mês depois de ter sido listado para iniciar o estudo
médico, recebi do Hospital do Acampamento Barkeley
minha dispensa oficial. Fiquei olhando fixamente para a
passagem de trem nas minhas mãos. O Exército, muito mais
do que um assento, havia reservado uma cabine-leito para
que eu saísse de Abilene na tarde seguinte, o que era um
luxo nunca visto, em se tratando de um soldado raso. Além
disso, levava comigo uma indicação de que havia ainda mui-
to a recuperar. Quando me deram alta, meu peso, conforme
constava dos documentos, era sessenta quilos e oitocentos
gramas, vinte menos que os oitenta e oitocentos com que
me apresentara. E eu sabia que quase sessenta e um quilos
era, pelo menos, 7 quilos a mais do que já pesara.. .
Mas, o ponto era que eu estava indo para a Faculdade de
Medicina: haviam reservado a minha vaga! Telefonei à
minha madrasta para informar-lhe a que horas o trem chega-
ria a Richmond. Durante todo o tempo em que eu permane-
cera hospitalizado, ela escreveu-me com regularidade, di-
zendo saber que eu estava muito doente para responder.
Sentia-me feliz em deixar a coisa correr naquele pé, feliz
com o correio do hospital, que a mantivera informada.
Nunca fora muito bom na comunicação com ela.
Olhei pela janela do Pullman, à medida que a paisagem do
campo ficava para trás. Texerkana... Little Rock.. .
Memphis... comboios diversos, máquinas diferentes
tracionando o vagão para o leste.
Começamos a subir em direção de Charleston, desde oeste
de Virginia, cujas fronteiras cruzamos. Como tudo era belo!
— Convington, Clifton Forge, Waynesboro. Os riachos
ondulantes, as florestas onde eu acampara com a minha
tropa, nos tempos de escotismo... Depois, descemos a
encosta leste da Serra Azul, em direção a Charlottesville e,
finalmente, direto para Richmond.
Estava escurecendo de novo quando alcançamos a cidade,
48 horas depois do embarque, em Abilene. Sob a pista do
elevado, o tráfego do "rush" arrastava-se, parachoque com
parachoque, através das ruas enlameadas. No meio do
crepúsculo antecipado, peculiar ao inverno, distingui, mais
adiante, a vasta massa de tijolos do Armazém da Rua
Principal. Com o coração às marteladas, eu me debatia
dentro do sobretudo.

Fosse pela fraqueza ou pela excitação de estar em casa, tosse
pelo que fosse, minhas pernas estavam tremendo e o peso da
capa quase me derrubava. Pela janela da composição, pude
ver que a plataforma da estação estava apinhada de viajantes,
a maioria de uniforme como eu.
Então, divisei a minha madrasta. Alta, mais magra do que eu
lembrasse, com os cabelos castanhos, que iam até à cintura,
presos num coque, debaixo do chapéu, ela trauteava ao
longo da plataforma, arrastando, atrás dela, o Henry, que
estava com dez de idade.
Puxei de sob a poltrona o meu equipamento e, com
dificuldade, avancei pelo corredor do trem; em Abilene,
haviam designado alguém que carregasse a pesada mochila
para mim. Mamãe me identificou tão logo desci os degraus.
Um momento depois, e seus braços me apertavam,
enquanto o Henry tentava subir nas minhas costas. Não
disse uma palavra a respeito da minha aparência; uns passos
a mais, porém, e ela, esticando-se, tirou-me a mochila.
Provavelmente com a mesma intenção, conduziu-nos ao
elevador, ao invés de nos fazer chegar à rua pela escada, ao
mesmo tempo que ia me pondo a par de um mundo de
notícias de família.
Bruce Gordon tinha pegado um resfriado, e estava de molho.
O Natal havia sido vazio, porque papai e eu não estávamos.
Vovó Dabney tinha me convidado para tomar café-da-
manhã, no dia seguinte, em "Moss Side", antes da minha
apresentação na Faculdade de Medicina, às 9:00h — "Pode
estar certo de que vai comer sonhos..."
Quando, mais tarde, naquela noite, Henry e Bruce Gordon já
dormiam, mamãe e eu nos sentamos na sala de estar,
levando a gemada que ela guardara.
"George?"
Olhei para cima e encontrei-lhe os olhos castanhos bem nos
meus. "Alguma coisa lhe aconteceu, George. É algo sobre
que você possa falar?"
Impotente, dei de ombros. Enquanto criança, eu sempre
suspeitara de que ela podia ler meus pensamentos. E eis que,
de súbito, ali mesmo — naquela sala familiar —, com a foto
do papai sobre o console, sucedeu algo esquisito. Depois de
ter estado, por semanas, tentando descrever a alguém mais a
minha experiência de desdobramento, vi-me, de inópino,
atingindo o alvo. Vale dizer: contando tudo à minha
madrasta, aquela mulher, a quem — durante toda a minha
vida — eu opusera resistência em termos de comunicação.
Eis que eu lhe exprimia aquilo que fora incapaz de dizer a
quem quer que fosse.
Pude ouvir-me descrevendo-lhe como eu saltara do leito e
me voltara para dar com um jovem ainda deitado ali. Ouvi-
me, a mim mesmo, discorrer a respeito do vôo frenético em
direção a Richmond, e sobre a volta ao Acampamento
Barkeley, à procura de mim mesmo; sobre a Luz e a jornada
a que nos lançamos...
Ela ouviu todo o relato, sem pronunciar uma palavra,
raramente mudando de postura no sofá, buscando-me o
rosto com aqueles olhos que não perdiam coisa alguma. A
medida que eu falava, ia me dando conta de algo tão
estarrecedor quanto aquela torrente de palavras na boca de
um jovem como eu, que — comumente — parecia ter a
língua amarrada. Não se tratava de que ela cresse em mim, o
que claramente aconteceu. Tratava-se, na verdade, de
alguma coisa que se estava desenrolando dentro de mim,
uma surpreendente mudança de ponto de vista, chegando ao
extremo de eu me ver, num dado momento, olhando não
para a madrasta de George Ritchie, mas para Mary Skeen
Ritchie, uma pessoa com a sua própria história.
Pela primeira vez em minha vida, eu estava enxergando a
jovem e intrépida mulher que não apenas assumira o papel
de mãe em relação a Mary Jane e a mim, mas que fora a
administradora severa de uma família cujo chefe só estava
em casa durante os fins de semana.
Embora eu continuasse a falar, "ouvi" algo que o papai uma
vez me contara, algo a que nunca, dantes, prestara atenção:
que havia sido a nossa madrasta quem firmara pé em
aguardar três anos para ter filhos dela mesma, de modo a que
Mary Jane e eu pudéssemos tê-la exclusivamente para nós.
Continuei falando a respeito da cidade celestial, e bem assim
de como eu ansiara vê-la de mais perto. Todavia, o que pela
primeira vez estava entendendo era o quão ameaçador o
novo casamento do papai para a vovó Dabney, o porque de
— tão frequentemente — ela me haver recordado de que
Mary Skeen não era a minha verdadeira mãe. Recordei-me
do meu retraimento de juventude, do meu emburramento e
hostilidade; agora, porém, eu estava podendo avaliar a mágoa
que aquilo tudo deveria ter causado àquela mulher adorável,
sentada à minha frente.
Quando terminei a minha história, permanecemos, ambos,
por um longo tempo, em silêncio. Finalmente, mamãe
sussurrou:
"George, Deus confiou-lhe enormes verdades".
Ele ainda o está fazendo, pensei! Agora mesmo, enquanto eu
discorria sobre a absoluta aceitação que encontrara nele,
nascia em mim uma novíssima habilidade em aceitar mamãe
por ela mesma.
Que misterioso poder estaria contido na simples narrativa
dessa experiência? Eu tinha ficado imaginando o que Deus
esperava de mim, depois de um tal encontro... Pura e
simplesmente... falar sobre aquilo tudo? Seria isso parte da
resposta?

11

Se, contudo, a volta ao lar fora melhor do que eu esperava, o
início das aulas, no outro dia, foi pior. Eu enfrentava uma
defasagem de um mês em relação ao resto da turma; mal
poderia levar para casa a pilha de livros que me deram,
abandonando qualquer esperança de leitura e compreensão.
Naquela semana, durante as conferências, os mestres
deixaram voar palavras decassilábicas, em Latim. Só se via
estudantes à minha volta, ocupados em escrevinhar nos
caderninhos, enquanto eu tentava simplesmente entender
qual era o assunto.
Minha saúde também trabalhou contra mim. O simples
caminhar de um edifício aos outros, na própria cidade
universitária, deixava-me exausto; e o ato de me concentrar
numa palestra por mais de alguns minutos era-me impossí-
vel. Seguidamente, durante as noites, minha cabeça estalava,
e eu percebia que estivera dormindo à escrivaninha.
A cada aluno de primeiro ano tinha sido fornecida uma pasta
marrom de papel comum, contendo uma coleção de ossos
humanos — costela, vértebra, cúbito e rádio — a qual
dever-se-ia conhecer bem. Um dia, sem saber onde havia
colocado a minha pasta, retornei, ansiosamente, ao
laboratório de anatomia. "Você por acaso viu uma sacola de
ossos?", perguntei a um estudante que estava de pé, junto à
porta.
Ele tirou uma linhada da minha forma emaciada, e
respondeu: "Claro, meu velho. Está de pé, bem na minha
frente".
E foi assim que, aos poucos, fui entrando numa fase
destrutiva. A preocupação começou a consumir o meu
tempo de estudo. Meu rendimento ficou ainda pior,
enquanto cresceu ainda mais a preocupação. Todos os outros
pareciam extremamente seguros, confiantes no que faziam.
À medida que as semanas passaram, comecei a me sentir
como um debilóide perdido no meio de gênios.
Foi quando, em maio, sucedeu algo maravilhoso.
Já havia alguns anos que eu conhecia Marguerite Shell;
desde que o seu irmão, Bob, agregou-se ao pessoal da Phi-
Gama, na Universidade de Richmond. Bob Shell
rapidamente se tornou o meu melhor amigo. Conheci
Marguerite na residência dele, em Lawrenceville, uma
pequena cidade, mais ou menos a 112 quilômetros ao Sul de
Richmond. Ela era uma garota do tipo "mignon", cabelos
castanhos, de olhos de um azul-manhã-de-abril. Achei que
Marguerite Shell era a menina mais bonita que eu já vira.
Quanto, porém, a encontros, eu estava ciente de não ter a
menor chance. Ela era extremamente benquista; com efeito,
logo depois que nos conhecemos, foi fisgada por um outro
irmão de Fraternidade.
Agora, Bob Shell estava engajado no projeto Navy V-12, na
Universidade de Richmond. Uma noite, telefonou com boas
notícias. Marguerite e o namorado haviam rompido.
Aquilo foi uma surpresa, mas surpresa ainda maior foi
quando eu liguei para ela, marcando um encontro, e ela
aceitou. 0 racionamento de gasolina era um problema no
tempo de guerra; mas, conversei com a vovó Dabney sobre
me emprestar o seu Oldsmobile cor-de-água, juntamente
com cupons suficientes para uma viagem de ida e volta a
Lawrenceville. Aquele Oldsmobile 1941 era um dos carros
mais bonitos jamais construídos, com sua forma aerodinâmi-
ca e o radiador de cromo. Fiquei pensando no figurão que eu
faria dentro daquele carro, dirigindo-me para a casa dos
Shell.
De algum modo, a minha auto-estima ficou lisonjeada
quando Marguerite olhou, por cima do meu ombro para a
porta do carro, perguntando: "Onde está o Bob?" Mas, não
obstante ter estado — como é óbvio — à espera de nós dois,
ela saiu comigo e tivemos uma noite maravilhosa. Depois
disso, gastei meu tempo disponível mendigando da escola
passes de oito horas e, da família, cupons para gasolina.
Lá pelo meio do verão, eu estava sabendo que desejava
Marguerite para minha esposa, mais do que qualquer outra
coisa que jamais quisera. Igualmente, sabia que não podia
pedir fosse quem fosse em casamento sem contar-lhe o mais
importante evento da minha vida. Foi assim que, gaguejando
e vacilando, tentei, por inúmeras vezes, descrever-lhe o que
ocorrera no hospital de Barkeley. E, de todas as vezes, via o
brilho de sua face esmaecer, seus olhos azuis denotarem
mais ansiedade, o que me obrigava a mudar de assunto às
pressas. Estava evidente que ela interpretava a ocorrência
como uma ilusão mental. De qualquer modo, à maneira de
como agiam muitos casais durante a guerra, nós tentamos ser
mais práticos e objetivos, instintivamente nos distanciamos
dos temas morte e futuro.
Então, em agosto, fui convocado a comparecer diante de um
dos administradores da escola. Em sua sala pequena e sem ar,
comunicou-me que eu retornaria à ativa, a menos que
obtivesse conceito B, tanto em Bioquímica quanto em
Bacteriologia, nos exames finais daquele período. Muito
mais, teceu críticas nada lisonjeiras sobre a minha cabeça e
sobre a incompetência mental de quem quer que me
houvesse admitido no programa, enquanto, de pé, em sinal
de atenção, eu permanecia, a quase 1 metro entre a porta e
sua mesa, sentindo que me abandonavam os últimos
fragmentos de autoconfiança.
Eu estava muito envolvido em meus próprios problemas
para perceber que aquele homem vibrava a mesma língua
sarcástica contra todos os estudantes, o que — sem dúvida
— era parte de uma estratégia calculada para, antes que
conseguíssemos alcançar a frente de batalha como médicos-
de-campo, afastar os truculentos e os autoconfiantes. No que
concernia a mim, a sua avaliação simplesmente confirmava a
minha própria: eu era muito pateta para ser um médico.
Ao longo das seis semanas seguintes, enquanto me
debruçava em cima de trechos de livros, as palavras dele to-
cavam em minha cabeça como um disco empenado. Minhas
médias finais, nas duas disciplinas, corresponderam a D e E!
Fui novamente chamado ao seu gabinete, dia 25 de se-
tembro. As suas primeiras palavras foram enérgicas e
oficiais. Tratava-se de reivindicação efetivamente imediata
para o Acampamento Barkeley. Igualmente efetiva, desde
aquela data, a reclassificação para trabalhos ativos no
estrangeiro. Então, aditou uma nota pessoal:
"Ritchie, se você retornar desta guerra com vida, irei
pessoalmente providenciar para que jamais consiga ser
admitido, nesta ou noutra qualquer Faculdade de Medicina.
Você desperdiçou o tempo dos professores e do pessoal e
impediu que um outro qualquer estudante, capaz de
aproveitar bem uma tal oportunidade, se engajasse no
Programa. Eu vou cuidar para que nunca mais esbanje o
tempo e os recursos da profissão médica".
Não me recordo de como consegui chegar à passagem do
"hall"! Só me lembro de ter observado gente ocupada,
passando velozmente à minha frente, pessoas que estavam
nos lugares onde deviam estar; lembro-me também de haver
atinado com o fato de que andar para a direita ou para a
esquerda, subindo ou descendo escadas, não fazia a mais
leve diferença para ninguém sobre a Terra. Foi o mais frio e
glacial dia da minha vida.
Era, também, meu vigésimo primeiro aniversário.
No dia em que se esperava que a vida começasse, a minha
havia perdido o seu propósito. Que me restava fazer, senão
retornar ao treinamento na poeira do Texas, e — por fim —,
eventualmente, receber uma bala, em algum lugar da Europa
ou da Ásia? Por que, Jesus?, fiquei perguntando. Por que eu
não pudera, logo de início, ficar com Você?
O pior de tudo era que a mamãe estava planejando uma
grande festa-surpresa para mim, naquela noite. Marguerite,
que — por então — estava trabalhando em Richmond, viria.
Minha irmã Mary Jane, cujo marido estava no Pacífico, ia
estar presente; e também a irmã mais velha de Marguerite,
com o marido, além de muitas outras pessoas. Haveria
presentes, e congratulações, e cartões cheios de bons votos
para o futuro.
Vagarosamente, encaminhei-me para o meu armário
individual e demorei o máximo possível a esvaziá-lo Textos
de Medicina, cadernos de anotações cheios de páginas com
manchas de tinta, minha sacola de ossos. E agora?... Como
poderia pedir a Marguerite que se casasse comigo, quando —
supondo que eu regressasse vivo da guerra — não teria
meios de mantê-la depois?
Veio-me o pensamento de como seria fácil subir até ao
laboratório de Química e misturar uns poucos ingredientes
dentro de um copo graduado.. . Eu podia ser burro demais
para me tornar médico, mas compreendera o suficiente das
conferências sobre venenos; não seria o primeiro ex-
estudante de Medicina a escolher esse caminho de fuga.
A imagem permaneceu na minha mente apenas por um
átimo, enxotada por orna outra: os suicidas, que eu vira
algemados às exatas situações de que haviam tentado eximir-
se, num sítio onde um minuto poderia durar uma
eternidade. Se naquela noite eu não era capaz de enfrentar o
desapontamento de Marguerite, em relação a mim, como o
suportaria num verdadeiro "para sempre"? Vi aqueles olhos
torturados, ouvi-lhes o "desculpe-me", numa repetição sem
fim, sem que as súplicas, por um momento sequer,
atingissem os ouvidos aos quais eram dirigidas... e eu sabia
que aquilo tudo se interporia, para sempre, entre mim e
qualquer impulso sério de supressão da minha própria vida.
Compareci à minha festa de aniversário. Soprei as velas do
meu bolo, desembrulhei fitas e papel de seda, e ri com as
piadas sobre quanto dinheiro ganhavam os médicos. Então,
quando os outros já tinham Ido, contei a mamãe e a
Marguerite.
Elas foram maravilhosas, recordando-me de que, por aquele
tempo, já um quarto da turma havia sido eliminado.
Marguerite ressaltou que, se não eu, alguém mais estaria
sentindo desapontamento, o que só me fez sentir pior em
relação à garota para quem eu estava dizendo adeus.
É claro que, no jargão do Exército, "imediatamente"
significava "depois de uma demora infinita", de modo que se
escoaram quase três semanas antes que chegassem as ordens
para a minha reapresentação no Acampamento Barkeley. Saí
cedo, numa manhã de outubro, juntamente com três outros
estudantes de Medicina que, como eu, não tinham
conseguido acompanhar o programa. Um dos companheiros
possuía um carro, um velho Plymouth negro;
combináramos o revezamento na direção.
Formávamos um grupo bastante silencioso, dirigindo-nos
para oeste, através de gloriosas cores de outono. Fiquei
pensando no papai, que estava alhures, na França. A grande
invasão do Dia D ocorrera quatro meses antes, e a unidade
do papai seguira as primeiras tropas, desde as cabeças-de-
praia até o interior da França. Foi durante esse avanço que
aconteceu a grande contribuição de papai à guerra. Os
alemães, na proporção em que batiam em retirada, tinham
sido forçados a abandonar uma das grandes reservas naturais
da Europa: os brejos turfosos da Bélgica e da França, os quais
eram vastos reservatórios naturais de combustível. Para
evitar que essa riqueza caísse nas mãos dos aliados, os
alemães em retirada sistematicamente inundavam os
pântanos baixos, inutilizados por muitos anos, ao que a
maior parte das pessoas acreditava.
O problema foi entregue ao papai: de então a seis semanas
ele operacionalizou os brejos. Papai era um herói, seu nome
foi mencionado em histórias de jornais e em relatórios
oficiais.
E o seu filho?... Estava tomando o rumo de um Acam-
pamento de Serviço Militar, exatamente onde estivera treze
meses antes.
A única perspectiva luminosa que, durante aquele cintilante
outubro, apareceu no meu horizonte foi da carta que, uma
semana antes, chegara da França, sugerindo que papai
poderia estar em casa pelo Natal.
Na primeira noite de viagem só fomos até Cincinnati, sem
falar muito, cada um de nós lutando com pensamentos
como os meus. No dia seguinte, descansamos um pouco,
revezando-nos ao volante, falando sobre nossas namoradas,
os acontecimentos mundiais, a pescaria que fizéramos ou
deixáramos de fazer durante o verão — ou seja, falamos
sobre tudo, menos Faculdade de Medicina e guerra.
Louisville, Memphis. Chegamos ao Mississipi ao entardecer
do terceiro dia e movemo-nos para o sul, ao longo da
margem oriental, rumando para a travessia do rio, em
Vicksburg. Milharais e lavouras de açúcar estendiam-se,
vazios, longitudinal e radialmente a ambos os lados do
Mississipi; eram quilômetros e quilômetros de restolho ocre,
ao sol poente. Para trás de nós, Vicksburg, sobre a sua alta
chapada. Pete estava dirigindo; os outros, prestando atenção
às indicações relativas à ponte que aparecia no nosso mapa.
Na cidade, Pete entrou por uma rua que descia em direção
ao rio. "Algum sinal?", perguntou-me por cima do próprio
ombro. Do ângulo em que me postava, no banco traseiro, eu
devia vigiar a janela da esquerda.
Não respondi. Durante o último quilômetro e tanto, minha
boca estivera seca, e meu estômago, retesado. Alguma coisa
no traçado daquela cidade parecia estranha e
impossivelmente familiar.
Eu sabia jamais ter estado antes ali; não obstante, conhecia
exatamente o aspecto que a margem ia tomar na curva
seguinte, como iam ser os cruzamentos... Lá estava! Tal qual
eu soubera por antecipação. E, de inópino, eis que era capaz
de jurar que, bem à frente, naquela mesma rua, a alguns
quarteirões, daríamos com um prédio de estrutura branca,
teto vermelho, com os dizeres "Café", em letras de neon
encimando a porta.
"Lá está! Vire à esquerda!" O cara da frente, perto do Pete,
apontou para uma pequena indicação na esquina. "A ponte
deve estar para trás, naquela direção."
Pete reduziu a velocidade e estendeu a mão, dando sinal de
que ia virar à esquerda.
"Por favor!" — minha voz soava áspera — "Não pare, Pete!
Continue em frente".
O rapaz que tinha visto a sinalização virou-se para me olhar.
"A placa indica aquele caminho", falou.
"Eu sei. Eu... é só que eu gostaria de seguir mais alguns
quarteirões nessa direção. Só isso".
Agora, todo mundo dentro do carro estava olhando para
mim. "Pensei ter reconhecido alguma coisa", disse eu.
Pete deu de ombros e endireitou o volante. "É muito
longe?", perguntou, acelerando vagarosamente.
Meu coração estava batendo muito rápido para eu falar. Um
quarteirão adiante, na esquina, do meu lado, estava um Café
todo branco, o qual abria por toda a noite, com um teto
vermelho. O anúncio luminoso, em cima da porta, estava
ofuscado sob o brilho da luz do dia, mas ainda podia ser vis-
to, apoiado na janela da direita.
Ali estava a calçada onde eu caminhara ao lado de um
homem que não me podia ver. Ali estava o posto telefônico
junto ao qual permanecera por tanto tempo... Por quanto
tempo? Em que tipo de tempo e em que espécie de corpo?
"Pare!", gritei. Pete estava passando pelo pequeno res-
taurante. Ele meteu o pé no freio... novamente, eu pude
perceber que todo mundo me olhava. Tratava-se de uma rua
comuníssima, semelhante a dúzias de outras pelas quais
estivéramos dirigindo, desde que havíamos saído de
Richmond.
"Pensei que você nunca tivesse estado no Mississipi", disse o
Pete.
Minha mão transpirava, segura à maçaneta da porta. Eu
estava doido para saltar daquele carro, atravessar aquela rua
até ao posto de telefone, deitar a mão naquele telegrafista,
segurá-lo e sacudi-lo. Queria abrir a porta daquele Café,
entrar e observar quem quer que estivesse por ali, de visita.
Queria formular alguma pergunta: que horas são?, por
exemplo... Qualquer coisa, só para escutar a minha própria
voz e ouvir a resposta.
Soltei a maçaneta e forcei meus olhos a se afastarem do Café
da esquina. Foi então que respondi à pergunta do Pete: "Eu
também..."
Que mais podia dizer? Estivera aqui uma noite, ao mesmo
tempo que permanecia deitado num leito de hospital, no
Texas?
Pete sacudiu o volante, impacientemente, e seguiu as placas,
subindo as ladeiras em direção à ponte. Mas, sobre o mapa
que estava no meu colo, meu dedo traçou uma linha:
Abilene, no Texas — passando por Arkansas e Louisiana...
uma linha reta, exatamente a leste, de Abilene a Vicksburg,
no Mississipi. Enquanto passávamos sobre a extensão d'água,
larga e barrenta, uma voz dentro de mim estrondeava:
Então, foi aqui! Vicksburg, Mississipi. Foi aqui onde eu parei
durante aquela impetuosa corrida sem corpo. Aqui, me
detive, aqui raciocinei, daqui eu voltei...

12

Dessa vez, fiquei só duas semanas no Acampamento
Barkeley. Naturalmente, os soldados com quem eu treinara
haviam tomado o navio para as frentes de batalha por todo o
mundo, e, desde então, outros grupos de recrutas tinham ido
e vindo. Fui indicado para o Corpo Médico-Administrativo,
em razão do meu treinamento médico, e lotado numa
companhia de reserva, aguardando indicação para um
hospital-de-campo. Nesse ínterim, a rotina do acampamento
era a mesma para todos: marchar dez horas por dia, no meio
da poeira que bloqueava a garganta e feria os olhos.
Na primeira hora de folga, fui correndo até ao hospital visitar
a Tenente Irvine. "Foi um erro", disse, quando eu lhe contei
a respeito do meu desempenho medíocre na Faculdade.
"Você sabe que ainda não estava cem por cento quando saiu
daqui. Da próxima vez, depois da guerra, você vai sair-se
melhor".
Ela parecia depositar tanta confiança em mim que eu não lhe
contei o que o administrador tinha dito. Como eu queria
poder contar-lhe sobre a passagem por Vicksburg e a visão
do Café onde ficara, enquanto meu corpo físico permanecia
deitado, ali mesmo, naquele pavilhão hospitalar! Contudo,
minhas desastradas tentativas de descrição a Marguerite
haviam me ensinado uma coisa: Discorrer sobre os eventos
daquela noite era algo que exercia um estranho poder — um
poder que Deus poderia aplicar. Mas, teria que ser na sua
sincronização, conforme se dera com a Mamãe, na nossa
sala de estar, na noite em que regressei de Richmond. Não
era uma faculdade que eu pudesse empregar por mim
mesmo, discorrendo sobre o assunto por minha própria
conta e razões. Se o fizesse, tal qual se deu com Marguerite,
sairia uma verdadeira mixórdia.
No começo de novembro, fui mandado para o Acampa-
mento Rucker, no Alabama, para treinar como técnico
médico e cirúrgico, no 123º Hospital de Retirada. A Batalha
prosseguia na Europa, e unidades como o 1239 eram
reunidas e embarcadas para a frente, tão rapidamente quanto
se pudesse achar pessoal. Só obtive um fim de semana livre,
bem antes do Dia de Ação de Graças, para uma rápida
viagem do Alabama até Virginia, e uma breve estada com
Marguerite e minha família. Mamãe ainda esperava que
papai estivesse em casa pelo Natal, e — agora — todas as
minhas esperanças convergiam para vê-lo antes que eu
mesmo zarpasse para a França.
O 123º tomou o trem no Acampamento Rucker, na véspera
do Natal de 1944, passando pelo Acampamento Kilmer, em
New Jersey, e dirigindo-se para o embarque. Durante aquela
noite, enquanto eu tentava conciliar o sono, no leito
superior do beliche, meus pensamentos continuaram a
regredir até à véspera do Natal passado, quando acordara
num leito de hospital, sentindo dor no peito e recordando-
me da mais amorosa presença que jamais conhecera.
Onde teria Ele estado durante o ano que passou?... Onde
teria estado esse Jesus que eu conheci? Ele não podia ter
mudado, nem ido embora — aquela Luz era onipenetrante
demais para que eu pudesse imaginar qualquer lapso de tem-
po ou extensão de espaço que Ele não preenchesse. Mas
aquilo, agora, era simples imaginação. Por que era que Ele
não fazia mais diferença para o jeito que eu conduzia as
coisas? Talvez você esperasse — disse, com os meus botões
— que qualquer indivíduo que houvesse passado por uma
experiência como a sua, quem quer que — ainda
pálidamente — houvesse tido um vislumbre do amor que
alicerça o universo; talvez você esperasse que essa pessoa
não mais se aborrecesse com acontecimentos exteriores.
Eu, porém, me aborrecia. Estava terrivelmente aborrecido.
Estava irritado com a fanfarronice daquele sargento que
sentava três cadeiras à minha frente; ele e o odor do seu
charuto enorme empesteando o vagão. Incomodava-me a
troça que os homens do 123º - especialmente os do Monte,
vindos das grandes cidades — faziam do meu sotaque sulista
e de minhas idéias de cidade pequena. Ao invés de, agora,
estar apto a sacudir todas essas coisas, ei-las que se
impunham, cada vez me perturbando mais.
Lá pela manhã, deteve-se o comboio — demoradamente —
num trecho escuro da linha férrea. Passava uma estrada nas
cercanias; vez por outra, via faróis de veículos atravessando
um elevado, à frente. Então, rompeu uma alvorada fria...
uma qualquer coisa, como se fosse um caroço, veio-me à
garganta. Estávamos no pátio de manobras de Acca, fora de
Richmond, Virgínia, a menos de dois quilômetros da minha
casa! Lá estava a usina da velha Estrada de Ferro de Rich-
mond, Fredericksburg e Potomac, aonde o vovô Dabney
costumava trazer-me para olhar os trens. E aquela ponte! Eu
devo ter pedalado a minha bicicleta umas mil vezes, sobre
aquela estrada, entre a casa da minha gente e "Moss Side".
Era manhã do Natal, e minha família estava bem ali, a pouco
menos de dois quilômetros do outro lado daquelas árvores.
A nostalgia que eu havia lutado para constringir, extravasou
numa inundação. Será que Henry e Bruce já estavam de pé?
Eles eram sempre os primeiros a levantar no dia de Natal. E
o Papai... teria chegado a casa ontem? Será que estávamos a
menos de dois quilômetros um do outro, bem naquele
instante, depois de termos estado separados por milhares de
quilômetros e uma guerra?...
Por volta das 7:00h, houve uma sacudidela e um rangido de
rodas; o trem começou a mover-se, de novo. Acelerando,
diminuindo, parando, levou o dia inteiro para alcançar o
Acampamento Kilmer. Foi o Natal mais longo da minha
vida.
Falei com a minha família de uma cabine telefônica, nalgum
lugar do acampamento. Papai chegara a casa; ele havia
alcançado Richmond na véspera do Natal...
Nossa data de levantar âncora ainda não era conhecida, é
claro, mas eles estavam dando uma folga de doze horas, no
dia 28. Não era o bastante para voltar até Richmond, mas eu
conseguiria ir até Washington e voltar.
E foi assim que a família subiu por trem, até Washington, e
eu desci de New Jersey. Antes mesmo que o meu vagão
parasse, vi-os de pé, na plataforma da Estação Nacional de
Washington, embora, um momento antes, já tivesse
reconhecido um homem de cabelos grisalhos parado junto à
mamãe. Quando fui para a Europa, o cabelo do papai era
negro como azeviche. Sua cabeleira e as linhas do seu rosto
testemunhavam aquilo por que ele passara; de si mesmo, de
modo próprio, falava somente de coisas alegres — como sua
família parecia bem, quanto eu ia gozar a região dos campos
na França. Tivemos meia hora sentados num banco na sala
de espera dura de gente. Então, o meu trem de regresso
chamou e, da janela, acenei, até que os perdi na multidão de
outros adeuses da guerra.

13

O 123º embarcou no "SS Brasil" no dia de ano de 1945,
enquanto — pelas docas — a Cruz Vermelha distribuía
sonhos e uma banda tocava "My Mama Done Tol'Me".
Viajávamos há três dias quando o vapor foi atingido por uma
das furiosas tempestades do Atlântico Norte. O 123º estava
alojado no andar mais alto do navio, bem debaixo da ponte
de comando; todavia, alto como estávamos, ainda assim as
vagas quebravam-se contra os alojamentos e filtravam-se por
sob as portas. Nestas condições, ovos duros pareciam ser o
único alimento que as cozinhas podiam mandar; de qualquer
modo, a maioria de nós estava enjoada demais para comer.
A despeito da tempestade, os submarinos eram visíveis na
área. Para enfrentar as horas de tensão, pusemo-nos
sentados sobre os nossos beliches, que sacudiam
loucamente, de quatro em quatro, prestando atenção às
cargas de profundidade, lançadas das plataformas inferiores,
e que iam explodir dentro da água, muito embaixo de nós.
Foi observando as fisionomias retesadas à minha volta que
atinei com dois elementos dos meus próprios sentimentos.
Quanto à perspectiva de sermos torpedeados e forçados a
entrar nos botes salva-vidas, no meio daquele gélido
temporal, eu estava tão apavorado quanto o sujeito próximo
a mim. A mecânica do morrer, o sofrimento e o pânico
eram, para mim, atemorizantes como no comum.
Todavia no que respeitava à morte propriamente dita, não
apenas eu não lhe tinha medo, quanto me deparei comigo
mesmo desejando que acontecesse.
Se assim fosse, eu iria estar com Ele! Estaria fora desse
mundo miserável, onde homens atravessavam um oceano
com o fito de matar outros homens; um mundo no qual,
mesmo entre nós, existia tão pouco amor.
Às 4:00h do dia 16 de janeiro, o "SS Brasil" deteve-se no
meio de um denso nevoeiro ao largo do porto francês de "Le
Havre". À medida que a neblina se dissipou, ocupamos a
balaustrada para tirar a nossa primeira linhada da Europa.
Aos poucos, devagar, a névoa cinzenta dissipou-se: cascos
de aço retorcido que haviam sido navios, um muro solitário,
onde estivera um quarteirão de edifícios. . . nenhum cine-
jornal me havia preparado para a minha primeira visão de
uma cidade arrasada por bombardeios.
O ancoradouro estava excessivamente entulhado de des-
troços para permitir maior aproximação do nosso navio, de
modo que fomos para a terra em pequenas embarcações,
marchando — depois — para uma fila de caminhões abertos
que nos transportariam até ao Acampamento Lucky Strike,
uma etapa a mais ou menos noventa e seis quilômetros terra
adentro. A camada de neve, de aproximadamente cinco
centímetros de espessura na traseira dos caminhões,
rapidamente congelava, à medida que nossas botas
esmagavam-na. A maior parte dos soldados abaixou-se nas
laterais do caminhão, para escapar ao vento cortante; eu,
porém, tornei-me petrificado, enquanto nos deslocávamos
pesadamente através da cidade, passando por casas de que
apenas as paredes tinham permanecido de pé, e das quais
saíam tiras de papel de parede brilhante, tremulando ao
vento. Fiquei pensando no papai, com sua face marcada e
seu cabelo cinzento, aquilatando melhor a que se
assemelhara a invasão.
Em Lucky Strike , armamos nossas tendas e, então,
sentamo-nos sobre nossos catres, tentando reter e coordenar
alguma impressão. Na manhã seguinte, estávamos empenha-
dos em mastigar alguma coisa quando um jipe irrompeu no
acampamento, o motorista berrando qualquer coisa sobre a
destruição de um trem. Pulamos para dentro de cada veículo
disponível e, durante o trajeto, conseguimos fragmentos da
história. Tratava-se de tropas americanas oriundas do "SS-
Brasil" que estavam a bordo da composição. Suspeitava-se de
sabotagem por parte das forças francesas de Vichy.
Ao que constasse, nossa unidade — localizada no andar mais
alto do transatlântico — fora a primeira a desembarcar e a
única que chegou ao acampamento por estrada de rodagem.
Todo o resto do navio, muitos milhares de tropas, fora
acomodado, no correr do dia e nas primeiras horas da noite,
num comboio do tipo "pau para toda obra", integrado por
pequenos vagões de construção francesa, aptos a carregar
quarenta homens ou oito cavalos... Já passava da meia-noite,
antes que todos tivessem embarcado, quando começou a
lenta viagem ao longo do despedaçado sistema ferroviário
francês. Quando se aproximava da estação de "Saint-Valéry-
en-Caux", que era nas cercanias, o trem foi misteriosamente
deslocado para um trilho pouco utilizado, que ia dar no
prédio da estação.
Eu jamais assistira à uma tal cena de carnificina; nem
imaginara tal coisa. Alguns dos homens tinham sofrido
morte instantânea, muitos outros estavam presos entre as
ferragens, gritando por socorro. Pisamos em inúmeros
braços e pernas, lutamos contra metal retorcido que nos
impedia alcançar nossos companheiros. Fui designado, ao
que percebi, para junto de um capitão que estava
trabalhando numa improvisada tenda de primeiros socorros.
Todavia, nossos suprimentos médicos ainda não haviam sido
descarregados; por muito tempo, só havia uma tesoura de
enfermagem, uma agulha e linha, e mais umas poucas
injeções de morfina entre o médico e eu.
Era a minha apresentação ao sofrimento humano em grande
escala. Uma vez, acreditava querer cuidar de pessoas que
estivessem sofrendo. Mas, estivera pensando em problemas
normais, como o vovô Dabney e sua artrite. O que, porém,
hoje nos faceava era sofrimento deliberadamente infligido
por um grupo de pessoas a outro grupo de pessoas. Se o ódio
podia chegar a ter tamanho poder — porque nós nos
estávamos preparando para fazer a mesma coisa com os ou-
tros —, quem poderia querer viver num mundo daquele
jeito?
Quando a última baixa tinha sido enviada ao hospital mais
próximo, de ambulância, no fim do dia de pesadelo, deparei-
me cismando no fato de que a outros tinha sido permitida a
saída dessa existência, enquanto eu fora condenado a
permanecer nela. Tinha visto morrer companheiros da
minha idade, naquele dia, e — salvo pelo quanto padeciam
— sentia, em relação aos mesmos, azoinante inveja. Por que
havia sido nossa unidade a única a não embarcar naquele
trem?
A pergunta veio atormentar-me, com insistência, ao longo
das duas semanas seguintes, na medida que eu me sentia a
uns poucos metros, a uns poucos centímetros da fronteira
que nos separava da presença d'Ele, fronteira essa a que nós
— criaturas corpóreas — chamamos morte. O 123º viajou
do Acampamento Lucky Strike para Rethel, França, qui-
nhentos e sessenta e três quilômetros a leste, onde podería-
mos socorrer as tropas que estavam nas zonas de combate.
Estabelecemos nosso acampamento — hospital, quartos de
dormir rancho — no chão de um castelo abandonado, com
as altas janelas quebradas e negras, e ervas daninhas
crescendo na estrada que o circundava. E, lá, enquanto nos
ocupávamos com os feridos e os moribundos, meu anseio
pela morte tornou-se uma obsessão. Encarei a minha
sobrevivência física como sentença prolatada num
julgamento, como uma rejeição, em relação a mim, por
parte da pessoa cujo amor significava tudo.
Uma tarde, estava sentado sobre um toco de árvore do
castelo, ainda uma vez pedindo para ser admitido à presença
d'Ele, quando um superior, um sargento, apareceu correndo
através do quintal. "De pé, soldado!", latiu ele — "Está na
tenda C um sargento da Força Aérea com a rótula quase es-
tourada".
Logo que entrei na barraca, reconheci-o: uma jaqueta da
Força Aérea estava ao pé do armário individual e, quando a
vi, meu corpo ficou todo tenso. Três listras em cima, três
listras embaixo, um diamante no meio: o cara não era um
simples sargento, era um sargento de muita categoria. Todo
sargento daqueles que eu conhecera era um tipo garganta,
bitolado, fanfarrão e tirano.
"Como vai, meu nome é Jack Helms. Qual é o seu?"
Do catre, olhando para cima com olhos vitrificados de dor e
morfina, estava um companheiro com mais ou menos a
minha idade. Era claro que ele se encontrava terrivelmente
ferido, mas — ainda assim — quando lhe disse o meu nome,
manifestou desejo de conhecer uma porção de outras coisas
a meu respeito; de onde eu era, que tipo de coisas gostava de
fazer, se tinha irmãos e irmãs. Disse-me que falar ajudava-o a
desviar da dor a própria mente.
Alheio a mim mesmo, de repente, encontrei-me, de igual
modo, fazendo-lhe perguntas, enquanto mudava sua roupa.
Contou-me que era de El Dorado, em Arkansas, e que tinha
estado trabalhando, lá mesmo, num "drive-in", como
garçom. Naquela manhã o jipe que estivera guiando passara
por cima de uma mina; por sorte, seu dono fora o único
ferido.
Um médico entrou para examinar o ferimento e instruiu-me
a mantê-lo sempre limpo. Uma vez que eu terminava a
tarefa indicada, já não havia razões para permanecer; não
obstante, fiquei rodando em volta da cama. Havia algo em
Jack — ele não gostava de ser chamado sargento — que fazia
com que você quisesse permanecer perto dele. Ele me
lembrava alguém, mas quem eu não podia saber. Era um
camarada grande, simpático, de rosto bronzeado e olhos
marrom escuros; mais, o seu sorriso é que era inesquecível.
Ocupava todo o seu rosto, de uma orelha a outra,
envolvendo tudo — você, a grande tenda verde e todo o
lamacento hospital num calor de reconhecimento e
gratidão.
Eu já cuidara de ferimentos no joelho; sabia que conti-
nuavam a doer. Jack, porém, nunca mencionou a dor;
parecia mais preocupado com os meus problemas do que
com os seus próprios. Quando soube do fracasso na
Faculdade de Medicina, explodiu num dos seus sorrisos
solares. "As pessoas dizem muitas coisas", atalhou. "Se o meu
palpite está certo, ele sequer estará naquela faculdade,
quando você regressar".
Meu trabalho, como auxiliar médico, incluía tudo, desde
carregar bandejas até aplicar injeções e levar recados ao
armazém geral do Exército. Como os demais auxiliares,
fiquei enchendo o tempo até que a minha mudança se
efetivou. Agora, para surpresa minha, ali estava eu, fazendo
serão, trabalhando horas extras. Quem seria que Jack me
recordava, e por que me sentia tão bem quando estava com
ele?
Fiquei curioso, quando — no seu segundo dia de hospital —
apareceu um major da Força Aérea procurando pelo Sar-
gento Helms. No rígido sistema de castas em que se estrutu-
rava o serviço, oficiais e alistados mantinham poucos conta-
tos oficiosos. Todavia, quando o conduzi à tenda C, o major
sentou-se ao pé do catre de Jack e bateu uma prosa de meia
hora. Depois, Jack me disse que aquele fora o oficial que ele
estava conduzindo quando o jipe atingiu a mina e capotou.
"Então", arremedou, "é natural que ele se preocupe comigo".
Por esse tempo, eu já estava descobrindo que o
comportamento "natural" no Jack era, de alguma sorte,
diverso do comum. Para mim, o mais notável aspecto das
contínuas visitas do major não era a acolhida que Jack lhe
dava, mas — sim — o fato de que ele recebia da mesma
maneira a todos os que se detinham para falar-lhe...
incluindo eu. Parecia não fazer distinção entre o major ou o
cirurgião que lhe operava o joelho e o mais inferior dos
auxiliares que lhe mudava a roupa de cama.
Dali a uma semana, Jack estava manquitolando, apoiado a
uma bengala, e, sempre que eu não estava de serviço, nós
dávamos uma volta juntos, primeiro pelos parques do
palácio, passando pelo meio das ervas daninhas, daquilo que
— uma vez — fora um jardim submerso; depois, saindo pela
estrada que conduzia a Rethel. Eu estava, ostensivamente,
ajudando um aviador ferido a recuperar-se. Mas,
conscientizara-me de que a maior cura processava-se em
mim, e suspeitava que Jack também sabia disso.
Durante aqueles passeios, conversamos sobre tudo —
colégio, infância, carreiras — e, por todo o tempo, avultou-
me a sensação de que já conhecera Jack Helms antes. Soube
que ele era um cristão muito confiante, um protestante,
embora fosse à Igreja com a família católica, que o adotara e
lhe demonstrara grande bondade. De repente, um dia, sem
pretender conversar com mais ninguém o que eu conversara
com minha madrasta, pilhei-me contando-lhe a respeito da
noite em que regressara do cinema do hospital e pedira ao
plantonista alguns tabletes de aspirina. As palavras
simplesmente fluíram, tal como sucedera anteriormente.
Narrei-lhe tudo: a corrida da ambulância à seção de Raios X,
o despertar num pequeno cômodo, encontrando alguém
mais na minha cama, a descida de uma rua em Vicksburg,
Mississipi, a tentativa de encontrar um pedestre que pudesse
me ouvir.
Era a segunda vez que eu tinha sido capaz de relatar a minha
experiência. A julgar pelo assombro estampado no rosto de
Jack, eu podia dizer que ele jamais escutara algo ainda que
semelhante ao que lhe descrevia. Por sua expressão, também
pude ver que, nem por um instante, duvidava,do que eu
estava dizendo. Descrevi a Luz que havia penetrado o
cubículo. Como alguma coisa entrara na minha vida, ao
mesmo tempo... como ela ficara interiormente iluminada
por um amor semelhante ao qual eu nada vira...
Detive-me, fitando Jack. Permanecia aquela incômoda
sensação de já o haver conhecido antes. Aquela estranha
impressão que me possuíra exatamente no primeiro dia em
que me senti na presença de um amigo já familiar.. .
Fora Cristo quem, por todo aquele tempo, estivera me
olhando, através dos olhos de Jack Helms.
A aceitação. O cuidado. A alegria, é claro que eu reconhecia
tudo aquilo! Era o que tinha encontrado, dentro de um
quarto de hospital, no Texas, e, agora, a mais de oito mil
quilômetros de distância, novamente me deparava com Ele,
numa encosta, na França. Desta vez, não passavam de ecos
imperfeitos, transmitidos através de um ser humano falível.
Mas, ao menos, agora sabendo de quem a mensagem se
originava.
Todas as peças estavam caindo no seu devido lugar, quando
fizemos a volta na estrada e começamos a voltar na direção
do acampamento. Por algum tempo, nenhum de nós falou.
Jack não me pressionou a prosseguir com a minha história
interrompida; ele, no seu jeito de perceber as coisas, parecia
saber que eu estava elaborando algo na minha mente.
Será que a solidão que experimentara durante aquele ano, a
alienação do mundo e tudo o que acontecera ali não
representavam uma ânsia de regressar ao tempo em que
estivera na presença d'Ele? Mas, ser-me-ia possível
encontrá-lo através do retorno?, fiquei imaginando,
enquanto subíamos uma colina. A própria natureza da
Pessoa que eu encontrara era o seu ser-agora. Ele era
esmagador e onipresente, de tal modo que nenhum outro
tempo podia existir onde Ele estivesse. De repente, percebi
que não era bom procurar por Ele no passado, mesmo
quando esse passado estava há apenas quinze meses. Naquela
tarde, sobre a estrada que vinha de Rethel, eu soube que, se
desejasse sentir a proximidade de Cristo — e eu queria isso,
acima de tudo o mais —, séria necessário encontrá-lo na
gente que Ele punha diante de mim, a cada dia.
Tínhamos alcançado os domínios do castelo, enquanto esses
pensamentos continuavam a rodopiar na minha cabeça.
Demos a volta por trás; lá estava o toco de árvore sobre o
qual eu me sentara, há umas poucas duas semanas, rezando
para ser admitido à morte. E, de súbito, naquele dia de novas
auto-descobertas, vim à saber de mais alguma coisa. Aquela
oração fora respondida. Num certo sentido, que nunca
havia podido imaginar, eu de fato morrera. Pela primeira
vez, em muitos meses, pusera de lado a minha auto-piedade,
minha auto-incriminação — fossem quais fossem os
pensamentos sobre mim mesmo —, o bastante para ficar
envolvido com mais alguém. A lesão e a cura de Jack tinham
sido o único fato a me ocupar a mente, no transcurso
daquelas duas semanas. Tomando conta dele, eu me perdera
de vista, a mim próprio. E, ao me perder a mim mesmo,
descobrira Cristo.
Estranho, pensei; também fora necessário que eu morresse,
no Texas, para que o visse. Imaginava se era forçoso, antes
de enxergar algo mais dele mesmo, que sempre morrês-
semos, ou que perecesse alguma parte teimosa de nós
mesmos.
Antes de regressar à base aérea onde servia, Jack ficou mais
outra semana no hospital; apenas uma semana, durante a
qual cimentou-se uma amizade que devia durar trinta anos.
Hoje, ele vive na Praia de Malibu, Califórnia, e eu, em
Charllottesville, Virgínia, de modo que não nos vemos com
tanta frequência; todavia cada visita soa como se
estivéssemos caminhando por uma estrada no interior da
França.
Para mim, aquele passeio no campo foi o começo, o
momento em que comecei a estabelecer o nexo entre a
experiência de quase-morte, em Barkeley, Texas, com o
resto da minha vida. Concluí ter sido o primeiro passo em
direção à desistência das tentativas de retomada daquela
visão de Jesus ocorrida fora do mundo, seguida da sua
procura nas coisas confusas da vida.
Aquilo não era fácil para um jovem soldado que passara toda
a sua vida numa pequena cidade do sul. Católicos-romanos,
judeus e negros — eu crescera acreditando que essa gente
não era apenas diferente de mim, mas que não era tão boa
quanto eu. E, então, Jesus na sua misericórdia, me havia
colocado no 123º. Deixou que começasse com Jack porque
Jack era simples; por uma questão de naturalidade, não se
podia deixar de ver o Cristo em Jack. Mas, só muito tempo
depois comecei a enxergar Jesus num judeu de Nova Iorque,
num italiano de Chicago, num negro de Trenton.
Descobri algo mais, que — de início — me intrigou. Quanto
mais aprendia a ver Cristo em outras pessoas, menos era
esmagado pela morte e pelo sofrimento com que nossa
unidade tratava. Parecia-me dever acontecer o oposto, isto
é, quanto mais você encontrasse para amar nas pessoas,
tanto mais difícil seria observar-lhes o padecimento, É claro
que nunca chegou a ser fácil; todavia, tornou-se, de algum
modo... tolerável. E eis que, ainda uma vez, descobri-me
com o pensamento voltado para a experiência do Texas.
Cheguei à conclusão de que tal memória tinha sido
fascinante, viver apenas no júbilo da presença d'Ele. Mas,
quando me recordava de tudo, honestamente, percebia que
— naquele "outro domínio" tinha ocorrido muita coisa
francamente hedionda, cenas de agonia piores do que
qualquer coisa até mesmo naquele trem, em St. Valery.
Dissera a mim mesmo que desejava deixar esta terra porque
tinha visto um lugar melhor. O pós-vida que vislumbrara
era, em concomitância, infinitamente mais luminoso e
infinitamente mais selvagem e terrível do que esta. Por que
não me havia o lado mal daquele mundo esmagado o
espírito tanto quanto o tinham feito as negatividades deste?
De volta à minha tenda, começara a ler a Bíblia, e — um dia
— cheguei a um Salmo que parecia ajudar. "Para onde me
ausentarei do teu Espírito? para onde fugirei da tua face"?, li
no Salmo 139. "Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha
cama no mais profundo abismo, lá estás também".
Era óbvio... aquela era a resposta: Jesus estivera ali, naquelas
cenas do abismo. Fora a sua Luz e a sua compaixão, através
das quais eu via o supremo horror, que haviam lançado um
raio de esperança, até no inferno.
Quando, em maio de 1945, a guerra acabou na Europa, o
123º entrou na Alemanha junto das tropas de ocupação. Eu
integrava um grupo designado para um campo de
concentração perto de Wuppertal, encarregado de prestar
socorro médico a prisioneiros recém-libertos, muitos dos
quais judeus holandeses, franceses e da Europa oriental. Esta
foi a experiência mais chocante que tive. Por esse tempo, eu
já conhecia de sobejo a doença, a morte súbita e os
ferimentos; mas verificar os efeitos da inanição progressiva,
caminhar pelo meio daquelas cabanas onde milhares de
homens tinham morrido um pouco de cada vez, ao longo de
anos e anos, isso era uma nova espécie de horror. Tratava-se
de um processo irreversível, no caso de muitos: a despeito
da medicação e alimentação que podíamos prontamente
conseguir-lhes, perdíamos grande número deles, a cada dia
que passava.
Agora, realmente necessitava da minha nova auto-
descoberta. Quando a abominação se tornou pesada demais
para carregar, fiz o que tinha aprendido a fazer. Fui de um
extremo ao outro daqueles alojamentos, olhando aqueles
rostos, até que percebi a face de Cristo olhando-me de volta.
E foi assim que vim a conhecer Wild Bill Cody. Não era esse
o seu verdadeiro nome. 0 nome real compunha-se de sete
impronunciáveis sílabas, em polonês; mas, como possuísse
longos e despenteados bigodes caídos, tal como nos filmes
do velho herói do Oeste, os soldados americanos
chamavam-no Wild Bill. Ele era um dos internos do campo
de concentração, mas — obviamente — não estava ali há
muito tempo: sua postura estava erecta; seus olhos,
brilhantes; sua energia, infatigável. Como falasse
fluentemente inglês, francês, alemão e russo, tão bem
quanto o polonês, tornou-se uma espécie de tradutor
oficioso do acampamento.
Nós lhe apresentávamos todo o tipo de problemas; o serviço
de documentação e registro estava, sozinho e vacilante,
tentando relocalizar pessoas cujas famílias — e até mesmo
cidades — poderiam ter desaparecido. Mas, embora Wild
Bill trabalhasse de quinze a dezesseis horas por dia, ele não
dava sinais de fraqueza. Enquanto o restante de nós estava
caindo de fadiga, ele parecia ganhar força. "Temos tempo
para isso, meu velho'' dizia. "Está esperando o dia inteiro
para ver-nos". A sua compaixão pelos companheiros de pri-
são brilhava no seu rosto, e foi com esse brilho que eu
deparei quando meu próprio ânimo estava baixo.
Fiquei pasmado, quando, um dia, os documentos de Wild
Bill vieram às nossas mãos: estivera em Wuppertal desde
1939! Durante seis anos, vivera sob aquela dieta de fome,
dormira, como todos, nas mesmas cabanas insalubres e sem
ar, sem a menor deterioração física ou mental.
Talvez ainda mais espantoso fosse o fato de que todos os
grupos do acampamento consideravam-no um amigo. Ele
era aquele que servia de árbitro nas discussões entre
internos. Só pude avaliar o quanto isso era raro depois de
estar em Wuppertal por um certo número de semanas,
porque aquilo era um aglomerado de prisioneiros de todas as
nacionalidades, que se odiavam mutuamente, quase na
mesma proporção do ódio que tinham pelos alemães.
Quanto a estes, o sentimento adverso espalhou-se tão
rapidamente que, nalguns dos campos liberados mais cedo,
antigos prisioneiros haviam empunhado revólveres, invadi-
do a aldeia mais próxima e simplesmente atirado nos primei-
ros alemães que viram. Uma parte das instruções dizia res-
peito a prevenir esse tipo de ocorrência, e — novamente —
Wild Bill foi nosso maior trunfo, ponderando junto aos di-
versos grupos, aconselhando o perdão.
"Para alguns deles, não é fácil perdoar", comentei com ele,
um dia, quando nos sentamos por sobre canecos de chá, no
centro de tratamento. E concluí: "Foram tantos os que
perderam membros das próprias famílias"...
Wild Bill recostou-se na cadeira alta e sorveu sua bebida.
"Nós moramos no bairro judeu, em Varsóvia", começou ele,
pausadamente. Eram as primeiras palavras que o escutara
pronunciar a seu próprio respeito. "Moramos lá, minha
esposa, nossas duas filhas e nossos três garotos. Quando os
alemães chegaram â nossa rua, alinharam a todos contra o
muro e abriram fogo com as metralhadoras. Supliquei para
morrer com a minha família, mas, porque eu ralasse alemão,
eles me botaram num grupo de trabalho."
Fez uma pausa, talvez revendo esposa e cinco filhos.
"Eu tinha de decidir no ato", prosseguiu, "se passava a odiar
os soldados que tinham feito aquilo. Era, realmente, uma
decisão fácil. Eu era advogado. Minha prática, com fre-
quência, me havia mostrado o que o ódio podia fazer às pes-
soas, de corpo e mente. Aliás, fora o ódio que acabara de
matar as seis pessoas que me eram mais importantes no
mundo. Decidi, então, que — fosse qual fosse o tempo que
me sobrasse de vida — iria empregá-lo no amor a todo o ser
com que viesse a entrar em contato."
Amar a todo o ser... era esse o poder responsável pelo bem
de um homem, não obstante toda a privação. Era esse o
poder que eu encontrara num quarto de hospital no Texas, e
o qual estava aprendendo, a pouco e pouco, a reconhecer
onde quer que Ele escolhesse para brilhar, não importando a
autoconsciência do veículo humano a seu serviço.
Na Primavera de 1946, regressei aos Estados Unidos,
procedente dos trabalhos da ocupação da Alemanha.
Marguerite e eu casamo-nos no ano seguinte. Quando
chegou o momento de lhe contar a respeito da experiência
do Texas, a coisa simplesmente aconteceu, com naturalidade
e quase sem esforço da minha parte, tal como das outras
vezes, e auxiliando no crescimento do amor entre nós.
Nesse ínterim, o pressentimento de Jack Helms revelou-se
correto; o administrador que não poupara esforços para me
manter fora da Faculdade de Medicina de Virgínia não tinha
mais qualquer vínculo com a instituição.
Foi o Dr. Sidney Negus o homem que saiu em defesa da
minha readmissão. Ele era o professor que me havia atribuí-
do conceito D em Bioquímica. Dessa vez, eu estava decidido
a não cometer o erro em que incorrera anteriormente.
Agora eu percebia que o meu problema tivera início no
momento em que eu afastara de Jesus os meus olhos,
centralizando-os em mim mesmo. Dessa vez, não me
preocupei com a minha memória fraca, e — sem dificuldade
— consegui vencer a Faculdade.
Desde o início da minha carreira, porém, descobri o que
sabem todos os médicos: a Medicina não está de posse das
respostas todas. Quando confuso e desafiado — o que
frequentemente se dava — orava pelo meu paciente em
silêncio, envolvendo a prece no meu próprio hausto —,
solicitando a ajuda de Jesus para o diagnóstico certo e para a
prescrição do tratamento. Como decorrência, Marguerite e
eu estruturamos o hábito da oração em conjunto por todos
os pacientes, todas as noites.
Continuei a ler a Bíblia. Era engraçado... no tempo das
celebrações de domingo, a Bíblia me parecera, ao mesmo
tempo, aborrecida e difícil. A partir do Texas, tornara-se,
pura e simplesmente, a descrição factual da vida. Quando, à
beira do lago, Jesus dissera o "Segui-me" a alguns pescadores,
estava claro que eles haviam largado tudo e correram atrás
d'Ele... quem poderia resistir? Quando Ele dissera: "Eu sou a
Luz do mundo", isso era, simplesmente, um fato observável.
Se, porém, a minha experiência tornara a Bíblia
compreensível, agora, então, na medida que, desde a guerra,
eu a lia sistematicamente, era muito mais a Bíblia que me
auxiliava a entender a experiência. Lendo e relendo os
relatos sobre a crucificação, finamente percebi de onde viera
aquela certeza, quando da presença d'Ele... que já havia
compensado aquilo tudo. E era à luz da sua ressurreição que
nós nos mantínhamos.
Por que esses feitos cósmicos se aplicavam a mim — como
se, de algum modo, eu me tivesse deles apropriado, durante
aquela cerimônia litúrgica, aos doze anos de idade —, não o
sabia. Mas, lendo a Bíblia, comecei a compreender a absoluta
importância que, no planejamento d'Ele, têm as nossas vidas
na Terra. Como fora grave o meu equívoco a bordo do SS-
Brasil", em St. Valery, em Rethel... como errara ao detestar a
minha própria vida e ao pedir-lhe que me tirasse deste
mundo antes que a sua obra em mim estivesse feita.
Pensei nas almas infortunadas que contemplara naquele
primeiro domínio pós-terrestre; aquelas almas apanhadas na
armadilha de ódios e luxúria, fixadas em coisas materiais que
lhes estavam, para sempre, além do alcance. De algum
modo, nenhuma delas completara o crescimento, no ciclo
de vida terrestre, tivesse ele sido longo ou curto. Não tive
dificuldade em crer no completismo da tarefa terrestre
assinalada por Deus a alguns daqueles jovens espedaçados na
Europa, de modo que estivessem bem preparados para galgar
uma esfera mais próxima ao Cristo. Era, porém, ponto
pacífico que isso não aconteceu comigo. Minha auto-
centralização, meus preconceitos, minha própria
integridade... como ousara eu, com tudo isso, pedir para
morrer! Ter-me-ia, no meu anelo por Ele, olvidado do que
Jesus me mostrava? Será que eu havia seriamente desejado
uma eternidade nalguma existência como aquela dos seres
mais infelizes com que já deparara, participando com eles
daquela insistência na própria superioridade, sem que se
importassem com a aniquilação de todos os demais?... E teria
eu, então, de fato alcançado a condição por que almejava, a
ponto de poder dizer, de modo próprio, que realizara tudo o
que devia realizar na Terra?

14

Uma noite do inverno de 1952, sentei-me na sala de estar,
lendo um exemplar da revista "Life". Estávamos mais ou
menos no meio de dezembro, porque acabávamos de
realizar nossa festa de Natal na Academia de Medicina de
Richmond, a qual eu integrava havia pouco tempo. Essas
festas eram anuais. Aquele número do "Life" estava coalhado
de sugestões para receitas inéditas de perus e presuntos,
intercaladas por páginas que exibiam alegres figuras de
Santas. Sem maior interesse, eu passava os olhos pela revista,
quando de repente, meus dedos se apertaram.
Desenhada na página bem na minha frente estava uma
gigantesca estrutura esférica, seccionada diametralmente, de
modo a revelar, no seu interior, homens e máquinas. Havia
uma espécie de guindaste móvel, montado sobre longarinas
de aço, turbinas, um enorme tanque circular, escadas,
plataformas e, embaixo, junto a uma espécie de esquina, uma
pequena sala de controle.
Mas, o que pôs meu coração quase a saltar pela boca não foi
a aparência estranha e futurista desses objetos, e sim a cer-
teza de que já havia visto aquilo antes. Não fora
recentemente... De algum modo, há alguns anos, eu
permanecera contemplando não um desenho daquela esfera
enorme, mas a própria coisa. E também caminhara naquele
singular interior; vira a passagem para a escada, bem ali,
perscrutando aquele vasto tanque de água.
Mas... não! Eu não podia ter estado ali! Correndo os olhos
pelo texto vi que aquilo de que me lembrava era impossível:
Na semana passada, a comissão de Energia Atômica ergueu
parte do seu véu de segredo, e permitiu que artistas da "Life"
esboçassem alguns pormenores do protótipo do segundo
motor atômico submarino dos Estados Unidos e da estranha
casa que o guarda. O edifício, elevando-se, agora, perto de
Schenectady, NY, vai constituir-se na maior esfera já
construída pelo homem, a um custo de dois milhões de
dólares, com uma concha de aço medindo 68,58m.
O artigo continuava para informar que, de maneira a evitar
possível contaminação radioativa, os cientistas iam construir
o motor submarino dentro da esfera e, então, submergi-lo
no tanque, para testes. Sentindo-me derrotado, baixei a
revista até o meu colo. Eu experimentara tamanha certeza
quanto a já ter visto aquela operação; e, todavia, nunca
estivera em Schenectady. De qualquer jeito, lembrava-me
de algo que se passara algum tempo atrás, e aquilo estava
sendo construído exatamente agora. A coisa que eu vira
estava pronta e em operação, não obstante eu não fizesse
qualquer idéia do que...
Então, eu me lembrei. Fora na tranquila região, semelhante a
uma cidade universitária, habitada por seres envoltos em
pensamentos como monges envoltos em hábitos, onde eu
estivera, em 1943 — como a Terra mede o tempo —,
contemplando o enorme edifício de forma esférica, e
caminhando por entre suas intrincadas instalações...
Que era aquilo? Que misterioso nexo teria com a vida e o
pensamento do mundo onde me achava em 1952, com
Marguerite falando pelo telefone, na saleta, e cartões de
Natal enfileirados sobre a toalha? Há muito que não pensava
a esse respeito, salvo para excogitar se estão certos os
filósofos, ao dizerem que dadas idéias parecem cair não se
sabe de onde, sobre áreas amplamente disseminadas pelo
mundo, simultaneamente. Tornara-me cauteloso na própria
pesquisa de regiões supra-terrestres. Enquanto o Cristo fora
o meu guia, não tinha havido nada a temer. Mas, desde a
minha experiência de fora do corpo, nove anos antes,
encontrara indivíduos que tinham ficado tão fascinados pelo
mundo dos "espíritos" que pareciam ter perdido de vista o
Espírito d'Ele Mesmo.


Quando, naquela noite, sentei-me na sala de estar, tudo o de
que eu estava certo era que chegara a hora de começar a dar
mais a público o meu encontro com Cristo. Se nós está-
vamos, realmente, ingressando na era da força atômica, sem
conhecer o poder que a criou então o problema da nossa
própria destruição, bem assim como a do mundo, seria
questão de décadas. Não era o bastante o clero profissional
falar às claras, com franqueza; parecia-me a mim, que cada
um que houvesse passado por uma qualquer experiência de
Deus carregava uma responsabilidade. E isso deve,
novamente, ter sido medida do tempo d'Ele: eu, que não
fora capaz de alinhavar duas palavras, dei comigo mesmo
falando para grupos de jovens, para clubes, igrejas, enfim:
para quem quer que desejasse ouvir a mensagem de que
Deus é amor, e que todo o resto é inferno e negação.
É claro que eu estava certo da minha ruína profissional,
desde então; e é fora de dúvida que perdi mesmo alguns pa-
cientes não dispostos nem desejosos de se confiarem a um
"fanático religioso". Mas, era desconcertante... as pessoas
cujo desprezo eu mais temia frequentemente foram as que
denotaram maior aceitação. Quando pleiteei residência em
Psiquiatria, no Hospital da Universidade de Virgínia, um
amigo na equipe avisou-me de que eu não devia mencionar
a minha experiência, porque ele ignorava qual seria a reação
dos demais. E, realmente, a primeira pessoa a entrevistar-me
acabou sendo o Dr. Wilfred Abse, catedrático de Psicanálise
e Psicoterapia Analítica no Departamento de Psiquiatria, e
um dos figurões na Sociedade Psicanalítica de Virgínia.
Nem bem pisara o seu gabinete, e já o Dr. Abse me recebeu
com esta frase: "Bem, Dr. Ritchie, estou sabendo que o
senhor encontrou-se com Cristo". Vi minhas oportunidades
na Universidade de Virgínia batendo asas pela janela. O Dr.
Abse era judeu, um analista freudiano, e estava me co-
locando uma pergunta direta, que exigia uma resposta. Quase
murmurando, como de tantas vezes fizera, voltei-me para
Jesus:
"Senhor, que digo agora?" E as palavras pareceram quase
audíveis: Aquele que me negar diante dos homens, também
eu o negarei diante de meu Pai".
Disse, então ao Dr. Abse: "Não mais posso negar a realidade
do que se passou comigo, em Barkeley, no Texas; não mais
do que o poderia Saulo de Tarso, quanto ao que lhe
aconteceu na estrada para Damasco"
E aquilo era a pá-de-cal, eu pensei, nas minhas chances de
tornar-me um psiquiatra. Imaginam qual não foi minha
surpresa, quando — algumas semanas mais tarde — recebi
uma carta informando-me de que obtivera aceitação
unânime da banca examinadora. Anos mais tarde, quando o
Dr. Abse e eu nos tínhamos tornado bons amigos, disse-me
ele que aquela conversa particular havia, realmente, sido
crítica. "Todos nós, por aqui, estávamos cientes de que você
alegava ter passado por uma experiência de projeção astral.
Se, no diálogo comigo, você — ainda que por um momento
— tivesse negado a ocorrência, eu o teria rejeitado como
uma pessoa profundamente insegura e, mais provavelmente,
como alguém incapaz de distinguir entre fato e fantasia".
É claro que, no meu consultório, em contato com a prática
sólida e judiciosa da psiquiatria, raramente faço menção às
minhas perspectivas de Deus. Só quando a necessidade se
faz extrema, como no caso de Fred Owen, é que violo
aquele silêncio profissional.
Um dia, enquanto estávamos debatendo as consequências da
experiência do Texas na minha vida, perguntei-lhe: "Sabe
você por que toda manhã eu chego mais cedo ao con-
sultório, antes dos outros médicos e da equipe toda? E por-
que aplico aquele tempo na oração a benefício de cada paci-
ente que irei ver durante o dia. Creio que Jesus tem uma
agenda e uma escala de tempo para cada um de nós, e eu
peço a ajuda d'Ele para que o paciente e eu possamos, juntos,
descobri-las".
Se Jesus estava dando a Fred Owen apenas semanas sobre a
Terra, ao invés de décadas, "é porque Ele sabe que você
pode terminar a sua tarefa em semanas. Você pode dar e
receber perdão. Pode libertar-se de vícios, apegos e raivas —
isto é, de qualquer bagagem que você não deseje conduzir
para um lugar onde tudo é Luz".
É óbvio que eu não sei o que ia nos recessos mais íntimos do
coração de Fred Owen; a Psiquiatria, nos seus melhores
resultados, está limitada ao que o paciente partilha conosco.
O que eu sei é que o homem que veio ao meu gabinete para
o que acabou sendo nossa sessão terminal, no dia 9 de maio
de 1977, era uma pessoa muito diferente daquela que eu
vira, pela primeira vez, em dezembro. É claro que ele estava
fisicamente mais fraco. Na realidade, um vizinho tinha de
trazê-lo de carro, e ele deitava-se no sofá amarelo durante a
sessão toda. Contudo, as coisas que dizia, no interstício de
uma respiração exaustiva, e a paz — até mesmo o humor —
que havia dentro dos seus olhos encheram-se de alegria. Ele
estivera batalhando com seus antigos empregadores, na
tentativa de ver suas contas hospitalares incluídas no plano
de saúde deles; eu mesmo havia preenchido uma porção de
formulários. Naquela semana, ele fora notificado da decisão
final: sua pretensão havia sido indeferida, sob o pretexto de
que ele saíra do emprego sem dar o aviso prévio.
"Você sabe o que mais?" disse-me. "Eles estão com a razão.
Eu saí porque estava louco e queria causar-lhes problemas.
Só que, agora, sou eu quem está com os problemas".
Deu uma risada, que foi interrompida pela tosse; todavia, o
som pareceu-me bonito, porque era uma risada autêntica e
real, um riso do coração, sem sinal de amargura. "E como
nós temos lido, hein, Doe? O que se planta, o que se colhe.
Se eu soubesse disso à tempo, então... perder o prêmio seria
coisa de somenos."
"Sabe o que é que eu faço, agora que não estou dormindo tão
bem à noite?" - prosseguiu – "Oro por aqueles sujeitos no
trabalho - peço que a loja tenha realmente um bom ano,
mais negócios e benefícios que eles saibam empregar".
Claro está que homem algum pode especular sobre a
experiência de outro homem além da sepultura, mas quando
aquele vizinho telefonou-me para me informar da morte de
Fred Owen, ocorrida no dia 24 de maio, não tive problemas
em imaginar-lhe aquele momento de assombrosa transição.
A Luz que aumentava. A alegria que enchia o coração de um
homem que bem se desincumbira do seu dever de casa.
Deus está ocupado, edificando uma raça de homens que
saibam como amar. Acredito que o destino da própria Terra
depende do progresso que efetuemos, tanto quanto creio,
que, agora, o tempo é muito curto. Quanto ao que vamos
encontrar no outro mundo, também acredito que isso vai
depender do qual amplo se faça o nosso triunfo nas
empreitadas do amor, aqui e agora.


 
 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
Voltar do Amanhã - Dr. George G. Ritchie
 
 
 
 
links ao final da mensagem
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
Sinopse:
 
De um modo geral, os fenômenos paranormais dividem as pessoas em dois grupos radicais: os que acredita, e os que não. E entre eles é impossível qualquer diálogo. Isto se reflete também na maioria das obras sobre o assunto.
Voltar do Amanhã é um livro fora de série exatamente por romper este círculo vicioso. Ele revela a trajetória de um homem que não acreditava, que não tinha nenhuma fé, mas que, ao haver experiências concretas, não pôde mais negar a realidade dos fatos. O Dr. George G. Ritchie, após morrer clinicamente durante nove minutos, voltou inexplicavelmente à vida. E o que lhe aconteceu neste curto período de tempo mudou inteiramente seus caminhos no mundo. Agora você vai conhecer sua história. Quem sabe ela mudará também seus caminhos?
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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