sexta-feira, 29 de abril de 2011 By: Fred

Lançamento Gênesis do Conhecimento - O Animal Agonizante - Philip Roth


PHILIP ROTH

O Animal
Agonizante

Tradução
Paulo Henriques Britto
COMPANHIA DAS LETRAS

Para N. M.

Prelúdio

O corpo contém a história da vida tanto quanto o cérebro.
Edna O'Brien

Eu a conheci há oito anos. Era minha aluna. Não sou mais
professor em horário integral, não sou mais professor de
literatura no sentido estrito — há anos que só dou o mesmo
curso, para uma turma grande de alunos do último período,
sobre crítica, chamado Crítica Prática. Muitos dos alunos são
do sexo feminino. Por dois motivos: porque é um tema com
uma combinação atraente de glamour intelectual e glamour
jornalístico, e porque elas me conhecem de me ouvirem
fazendo resenhas de livros na rádio educativa, ou então de
me verem no canal 13 falando sobre cultura. Nos últimos
quinze anos, minha atuação como crítico de cultura
televisivo fez com que eu me tornasse uma figura
razoavelmente conhecida na cidade, e é isso que atrai as
garotas para o meu curso. No início, eu não me dava conta
de que aparecer na televisão por dez minutos uma vez por
semana podia impressionar tanto aquelas alunas. Mas elas
sentem uma atração irresistível pela celebridade, mesmo
que seja uma celebridade pífia como a minha.
Ora, sou muito vulnerável à beleza feminina, como você
sabe. Todo mundo se torna indefeso diante de alguma coisa,
e no meu caso é isso. Diante de uma mulher bonita, não
enxergo mais nada. Logo na primeira aula descubro quase
imediatamente qual daquelas garotas é a minha. Mark Twain
tem uma história em que ele foge de um touro e sobe numa
árvore, e o touro olha para ele e pensa: "O senhor é a minha
refeição". Pois bem, leia-se "a senhorita" em vez de "o
senhor", e é isso que eu penso quando vejo as garotas na sala
de aula. Já se vão oito anos — eu já estava com sessenta e
dois anos, e a garota, que se chama Consuela Castillo, tinha
vinte e quatro. Ela não é como as outras da turma. Nem
parece uma aluna, pelo menos uma aluna comum. Não é
uma pós-adolescente, não é uma dessas garotas
desmazeladas, tranchas, que dizem "tipo assim" cada vez que
abrem a boca. Ela fala bem, é equilibrada, tem uma postura
perfeita — parece saber alguma coisa a respeito da vida adul-
ta, além de saber se sentar, ficar em pé e andar. Assim que
você entra na sala, percebe que essa garota sabe mais, ou
então quer saber mais. A maneira como ela se veste. Não é
exatamente o que se chama de chique, ela com certeza não
se veste de modo exagerado, mas, para começar, nunca usa
jeans, nem passado nem amassado. Usa umas roupas
escolhidas a dedo, com um bom gosto discreto, saias,
vestidos e calças feitas sob medida. Não para se tornar
menos sensual, e sim, ao que parece, para se profissionalizar
— ela se veste como uma secretária bonita de uma firma de
advocacia de prestígio. Como se fosse a secretária do
presidente de um banco. Usa uma blusa de seda creme por
baixo de um blazer azul feito sob medida, com botões
dourados, na bolsinha marrom com aquela pátina de couro
caro, botinhas que chegam até o tornozelo e combinam
com a bolsa, e uma saia de tricô cinza, um tecido
ligeiramente elástico, que revela as linhas de seu corpo com
aquela sutileza de que só mesmo uma saia assim seria capaz.
O penteado é natural, porém bem cuidado. A tez é clara, a
boca é curva, embora os lábios sejam cheios, e a testa é
arredondada, uma testa policia, lisa, com uma elegância de
Brancusi. Ela é cubana. Filha de uma próspera família
cubana que mora em Nova Jersey, do outro lado do rio, no
condado de Bergen. O cabelo é negro, bem negro, lustroso,
um pouco grosso. E ela é grande. Um mulherão grande. A
blusa de seda está desabotoada até o terceiro botão, de modo
que dá para ver que ela tem seios poderosos, lindos.
Imediatamente você vê a fenda entre eles. E você vê que ela
sabe. Você percebe que, apesar do decoro, da
meticulosidade, do estilo cuidadosamente refinado — ou por
causa disso tudo —, ela tem consciência de si própria. Ela
vem à primeira aula com uma jaqueta abotoada por cima da
blusa, porém cinco minutos depois do início da aula não está
mais de jaqueta. Quando volto a olhar para ela, já vestiu a
jaqueta outra vez. De modo que você compreende que a
moça tem consciência de seu poder, mas não sabe direito
como usá-lo, o que fazer com ele, não sabe nem mesmo até
que ponto quer ter todo esse poder. O corpo ainda é novo
para ela, a moça ainda o está experimentando, tentando
compreendê-lo, é um pouco como um menino que anda na
rua com uma arma carregada, sem saber se está armado para
se proteger ou se para dar início a uma carreira no crime.
E essa moça também tem consciência de outra coisa, algo
que eu não poderia ter percebido logo na primeira aula:
considera a cultura importante, tem por ela uma reverência
um tanto antiquada. Não que tenha alguma intenção de
dedicar sua vida à cultura. Isso ela não quer e nem poderia
fazer — teve uma educação tradicional demais para isso —,
porém acha a cultura, a coisa mais importante e maravilhosa
que conhece. E o tipo de pessoa que sente fascínio pelos
impressionistas, porém é obrigada a ficar muito tempo
olhando com atenção — e sempre com uma incômoda
sensação de perplexidade — para um Picasso da fase cubista,
esforçando-se ao máximo para compreendê-lo. Assim, fica
olhando, aguardando uma nova sensação surpreendente, um
pensamento novo, uma emoção nova, e quando nada disso
acontece ela se recrimina por sua incompetência e por lhe
faltar... o quê? Ela se recrimina por nem sequer saber o que
é que lhe falta. A arte mais moderna a deixa não apenas
perplexa, como também decepcionada consigo mesma. Ela
gostaria muito que Picasso fosse mais importante para ela,
talvez até a transformasse, porém há uma espécie de cortina
translúcida que a separa do proscênio da genialidade,
toldando sua visão e obrigando-a a adorar a certa distância.
Consuela dá à arte, a toda a arte, muito mais do que recebe
em troca, uma espécie de seriedade que chega a ser tocante.
Um coração bom, um rosto lindo, um olhar ao mesmo
tempo convidativo e distanciado, peitos sensacionais, uma
mulher ainda recém-saída do ovo, tanto assim que não
causaria espanto encontrar fragmentos de casca colados
naquela testa ovóide. Vi de imediato que aquela garota seria
minha.
Bom, tenho uma regra há uns quinze anos que jamais violo.
Nunca me aproximo das alunas em caráter particular
enquanto elas não fazem o exame final e recebem a nota,
quando então para elas já não estou mais oficialmente in
loco parentis. Por maior que seja a tentação — e mesmo que
eu receba um sinal inconfundível para começar a flertar e
dar o primeiro passo —, jamais violei essa regra desde que,
em meados dos anos 80, o número do disque-assédio foi
pela primeira vez afixado à porta da minha sala. Não entro
em contato com elas para não cair nas mãos daquelas
pessoas na universidade que, se pudessem, dariam um jeito
de criar sérios obstáculos ao meu prazer de viver.
Todos os anos dou um curso de catorze semanas, e durante
todo esse tempo não tenho caso com nenhuma aluna. Então
aplico um truque. É um truque honesto, às claras, lícito, mas
é um truque assim mesmo. Terminado o exame final,
lançadas as notas, dou uma festa no meu apartamento para
os alunos. A festa é sempre um sucesso, e é sempre a mesma
coisa. Convido os alunos para beber alguma coisa na minha
casa por volta das seis da tarde. Explico que a festa vai das
seis às oito, e eles sempre acabam ficando até as duas da
manhã. As alunas mais corajosas, a partir das dez da noite, se
transformam em personagens muito interessantes e me
falam sobre o que realmente lhes interessa. No curso de
Crítica Prática, costuma haver cerca de vinte alunos, por
vezes até vinte e cinco, de modo que ao todo são quinze,
dezesseis garotas e cinco ou seis rapazes, dos quais dois ou
três são heterossexuais. As dez da noite, metade desse grupo
já foi embora. Normalmente, ficam um rapaz hetero, talvez
um rapaz gay e cerca de nove garotas. As que ficam são
sempre as mais cultas, mais inteligentes e animadas da
turma. Elas falam sobre o que andam lendo, que músicas
têm ouvido, as últimas exposições que foram ver —
entusiasmos a respeito dos quais não costumam conversar
com pessoas mais velhas, e às vezes nem mesmo com as
amigas. Elas se conhecem na minha turma. E me conhecem
também. No decorrer da festa, de repente se dão conta de
que sou um ser humano. Não sou o professor, não sou a
minha reputação, não sou o pai delas. Moro num
apartamento duplex agradável e bem-arrumado; elas vêem
minha extensa biblioteca, estantes com prateleiras dos dois
lados, onde estão guardados os livros que li ao longo de toda
a minha vida, que ocupam quase todo o andar de baixo;
vêem o meu piano, vêem como sou dedicado ao meu
trabalho, e vão ficando.
Houve um ano em que minha aluna mais engraçada era
como aquela cabra que vai se esconder dentro do relógio,
no conto de fadas. Expulsei os últimos alunos às duas da
manhã, e enquanto me despedia deles dei pela falta de uma
das garotas.
Perguntei: "Cadê a palhaça da turma, a filha de Próspero?"
"Ah, acho que a Miranda já foi", alguém respondeu. Voltei
para dentro do apartamento e comecei a arrumar a sala
quando ouvi uma porta se fechando no andar de cima. A
porta do banheiro. E Miranda desceu a escada, rindo,
radiante, numa felicidade besta — eu nunca havia reparado,
até aquele momento, que ela era tão bonita —, e disse: "Eu
fui muito esperta, não fui? Me escondi no banheiro do
segundo andar, e agora vou dormir com você".
Uma coisinha de nada, menos de um metro e sessenta, e foi
tirando o suéter, me mostrando os peitos, revelando o torso
adolescente de uma virgem de Balthus transgredindo pela
primeira vez, e é claro que acabamos na cama. Como uma
menina que fugisse do melodrama ameaçador de um quadro
de Balthus para participar da festa da turma, Miranda havia
passado a noite andando de gatinhas no chão, com o traseiro
para cima, ou esparramada no sofá, indefesa, ou então
encarapitada no braço de uma bergère, aparentemente sem
perceber que, com a saia subindo as coxas e as pernas
abertas de modo nada decoroso, estava com aquele exato ar
de uma personagem de Balthus, parecendo estar seminua
embora estivesse vestida. Tudo está escondido e nada está
oculto. Muitas daquelas meninas já tinham vida sexual desde
os catorze anos, e ao chegar aos vinte sempre há uma ou
duas que, movidas pela curiosidade, resolvem transar com
um homem da minha idade, mesmo que seja só uma vez,
doidas para no dia seguinte contar tudo às amigas, que vão
franzir a testa e perguntar: "Mas e a pele dele? Ele não tinha
um cheiro esquisito? E aquele cabelo branco comprido? E
aquela papada? E a barriga dele? Você não ficou com nojo?"
Miranda me disse depois: "Você já deve ter transado com
centenas de mulheres. Eu queria saber como era". "E como
foi?" Então ela disse coisas em que não acreditei de todo,
mas não tinha importância. Ela fora audaz — havia se dado
conta de que era capaz de fazer aquilo, por mais decidida e
apavorada que se sentisse escondida no banheiro. Ela
descobrira o quanto era corajosa ao se ver diante daquela
justaposição insólita, descobrira que era capaz de vencer
seus medos iniciais, bem como qualquer sentimento de
repulsa que tivesse experimentado de início, e eu — com
relação à tal justaposição — simplesmente me esbaldei.
Miranda, aquela menina que se esparramava, que aprontava
palhaçadas, fazendo pose, a roupa de baixo espalhada pelo
chão. Só o prazer de olhar já bastava. Se bem que ela me deu
muito mais do que isso. As décadas que se passaram desde
os anos 60 complementaram muito bem a revolução sexual.
As meninas dessa geração são sensacionais em matéria de
felação. Nunca houve nada semelhante a essas garotas, na
classe social delas.
Consuela Castillo. Olhei para ela e fiquei muitíssimo bem
impressionado com sua atitude. Ella sabia o quanto seu
corpo valia. Sabia quem era. Sabia também que jamais
encontraria um lugar no mundo cultural em que eu vivia —
para Consuela, a cultura era uma coisa deslumbrante, mas
não algo com que ela pudesse conviver. Assim, veio à festa
— eu temia que talvez não viesse — e, pela primeira vez, se
abriu comigo. Por não saber até que ponto seria cautelosa e
séria, fiz questão de não demonstrar nenhum interesse
especial por Consuela durante as aulas, nem nas duas
ocasiões em que a recebi na minha sala para falar sobre seus
trabalhos. Nessas reuniões a dois, ela foi discreta e
respeitosa, anotando tudo que eu dizia, por menos
importante que fosse. Na minha sala, sempre entrava e saía
com a jaqueta sob medida por cima da blusa. Na primeira
vez em que veio falar comigo — sentamo-nos lado a lado à
minha mesa, como manda o figurino, com a porta
escancarada para o corredor público, com nossos oito
membros, nossos dois torsos tão diferentes, perfeitamente
visíveis para todos os Big Brothers que por lá passassem (e
também com a janela aberta, aberta por mim, escancarada
por mim, por temer o perfume de Consuela) —, na primeira
vez, ela estava com uma calça elegante de flanela cinza, com
as bainhas viradas, e na segunda veio com uma saia preta de
jérsei com uma meia-calça preta por baixo, mas, tal como na
sala de aula, aquela blusa de sempre, uma blusa creme
contrastando com a pele alvíssima, desabotoada até o
terceiro botão. Na festa, porém, ela tirou a jaqueta depois de
tomar um único copo de vinho e, destemida, só de blusa,
sorriu para mim, ofereceu-me um sorriso aberto, sedutor.
Estávamos a poucos centímetros um do outro, no meu
escritório, onde eu acabava de lhe mostrar um manuscrito
de Kafka que possuo — três páginas escritas à mão por
Kafka, o discurso que ele fez numa festa em homenagem ao
chefe da companhia de seguros onde trabalhava, o qual
estava se aposentando; esse manuscrito de 1910 me fora
dado de presente por uma mulher casada, rica, de trinta
anos de idade, que tinha sido minha aluna-amante alguns
anos antes.
Consuela estava falando de modo entusiástico a respeito de
tudo. Ela se empolgou quando pus na sua mão o manuscrito
de Kafka, e assim tudo começou a vir à tona ao mesmo
tempo, perguntas que ela havia contido durante todo aquele
semestre, ao mesmo tempo em que eu, em segredo,
continha meu desejo. "Que tipo de música você costuma
ouvir? Você toca piano mesmo? Você lê o dia inteiro? Você
sabe de cor todos os poemas que tem nas suas estantes?"
Cada uma daquelas perguntas deixava claro o quanto a
maravilhava — foi essa a palavra que ela usou — a minha
vida, minha vida cultural coerente e tranqüila. Perguntei-lhe
o que ela estava fazendo, como era sua vida, e Consuela me
explicou que depois do colegial não entrara para a faculdade
logo em seguida — tinha decidido trabalhar como secretária.
Isso eu havia percebido desde o início: a secretária particular
decorosa e fiel, um verdadeiro tesouro para um homem
poderoso, banqueiro ou dono de firma de advocacia. Sem
dúvida, Consuela pertencia a uma outra era, uma era mais
bem-comportada; parecia-me que a maneira como se via a si
própria, tal como sua postura, tinha muito a ver com o fato
de que ela era filha de imigrantes cubanos ricos, gente
endinheirada que fugira da revolução.
Disse-me Consuela: "Não gostei de ser secretária. Tentei
durante dois anos, mas é um mundo muito chato, e meus
pais sempre queriam que eu voltasse para a faculdade, era o
que eles esperavam de mim. Até que finalmente resolvi
estudar, mesmo. Acho que eu estava tentando me rebelar,
mas era uma coisa infantil, por isso me matriculei. Fico
maravilhada com as artes". Novamente a palavra
"maravilhar", usada de modo abundante e sincero. "Do que
é que você gosta?", perguntei. "Teatro. Tudo que é tipo de
teatro. Eu vou à ópera. Meu pai adora ópera, e nós vamos
juntos ao Met. O favorito dele é Puccini. Eu sempre gosto
de ir com ele." "Você adora os seus pais." "Adoro, sim",
disse ela. "Me fale sobre eles." "Pois é, eles são cubanos.
Muito orgulhosos. E se deram muito bem aqui. Os cubanos
que vieram pra cá por causa da revolução tinham uma certa
maneira de ver o mundo, e — não sei por quê — todos se
deram muito bem. Aquele primeiro grupo, como a minha
família, trabalhou muito, eles fizeram tudo que era preciso
fazer, se deram tão bem que, como o meu avô dizia, aqueles
que chegaram e precisaram de ajuda do governo logo no
início, porque não tinham nada, alguns deles, poucos anos
depois, começaram a mandar cheques para o governo,
devolvendo o que haviam recebido. Eles não sabiam o que
fazer com o dinheiro, meu avô dizia. Foi a primeira vez na
história do Tesouro dos Estados Unidos que houve
devolução de dinheiro." "Você adora o seu avô, também.
Como é que ele é?", indaguei. "Ele é como meu pai — uma
pessoa equilibrada, extremamente tradicional, com uma
visão do mundo bem européia. Dar duro e se instruir acima
de tudo. Acima de tudo, mesmo. E, como o meu pai, um
homem totalmente família. Muito religioso. Se bem que não
é tanto de ir à igreja. Meu pai também não. Mas a minha
mãe vai. Minha avó também. Minha avó reza o terço toda
noite. As pessoas dão terços de presente pra ela. Ela tem uns
terços que são os prediletos dela. Minha avó adora o terço
dela." "Você vai à igreja?" "Quando eu era pequena. Agora,
não. Minha família sabe se adaptar. Os cubanos daquela
geração sabiam se adaptar, até certo ponto. Minha família
gostaria que a gente fosse à igreja, eu e o meu irmão, mas eu
não vou, não." "Que tipo de restrição uma moça cubana
criada nos Estados Unidos enfrenta que não existe numa
família americana típica?" "Ah, eu tinha que chegar em casa
muito mais cedo. Tinha que chegar em casa numa hora em
que as minhas amigas todas estavam saindo de casa, no
verão. Eu tinha que estar em casa às oito da noite, em pleno
verão, quando tinha catorze, quinze anos. Mas o meu pai
não era uma pessoa assustadora. Ele é um pai bem normal,
simpático. Só que nenhum garoto podia entrar no meu
quarto. Nunca. Mas quando fiz dezesseis anos, comecei a ser
tratada igual às minhas amigas, quanto à hora de chegar em
casa, esses lances." "E os seus pais, quando foi que eles
vieram pra cá?" "Em 1960. Naquela época o Fidel ainda
deixava as pessoas saírem. Eles se casaram em Cuba.
Primeiro foram pro México. Depois vieram pra cá. Eu nasci
aqui, é claro." "Você se considera americana?" "Eu nasci
aqui, mas não, eu sou cubana. Cubaníssima." "Isso me
surpreende, Consuela. A sua voz, seu jeito, seu vocabulário,
'esses lances', 'o cara'. A mim, você parece completamente
americana. Por que é que você se considera cubana?"
"Minha família é cubana. É isso. E só isso. A minha família
tem um orgulho extraordinário. Eles adoram o país deles. É
uma coisa que está no coração. Está no sangue. Eles já eram
assim em Cuba." "Por que é que eles gostam tanto de Cuba?"
"Ah, lá era muito divertido. Era uma sociedade de pessoas
que tinham o melhor do que havia em todo o mundo.
Totalmente cosmopolitas, ainda mais quem morava em
Havana. E era lindo. Tinha umas festas sensacionais. Eles
realmente se divertiam muito." "Festas? Me fala sobre as
festas." "Eu tenho umas fotos da minha mãe nos bailes à
fantasia. Do tempo de debutante dela. Fotos do baile de
debutante da minha mãe." "O que é que a família dela fazia?"
"Ah, isso aí é uma longa história." "Me conta." "Bom, o
primeiro espanhol da família da minha avó foi pra lá como
general. Era de uma família espanhola rica, dinheiro velho.
Minha avó tinha aula particular em casa, aos dezoito anos foi
a Paris pra comprar vestidos. Na minha família tem título de
nobreza dos dois lados, de mãe e de pai, nobreza espanhola.
Alguns são antiqüíssimos. Quer dizer, minha avó é duquesa
— lá na Espanha." "E você é duquesa também, Consuela?"
"Não", ela respondeu, sorrindo, "sou só uma garota cubana
de sorte." "Pois bem, você pode muito bem passar por
duquesa. Deve haver uma duquesa parecida com você nas
paredes do Museu do Prado. Você conhece aquela famosa
pintura de Velázquez, As meninas? Se bem que a
princesinha desse quadro é clara, é loura." "Acho que não
conheço, não." "Está lá em Madri. No Prado. Eu vou lhe
mostrar."
Descemos a escada de aço em espiral até minha biblioteca,
encontrei um volume grande de reproduções de obras de
Velázquez, e passamos quinze minutos sentados lado a lado,
virando as páginas, um quarto de hora emocionante em que
nós dois aprendemos alguma coisa — ela, pela primeira vez,
a respeito de Velázquez, e eu, mais uma vez, sobre a
deliciosa imbecilidade do desejo. Toda essa conversa! Eu
mostrando Kafka e Velázquez a ela... por que é que a gente
faz isso? Bem, a gente tem de fazer alguma coisa. São os
véus da dança. Não confundir com sedução. Isso não tem
nada a ver com sedução. O que se está disfarçando aqui é o
motivo de tudo, o desejo puro e simples. Os véus ocultam o
impulso cego. Quem fala sobre todos esses assuntos tem a
impressão errônea, tanto quanto ela, de que sabe do que está
falando. Mas não é como uma conversa com o advogado no
médico, em que o que vai ser dito no decorrer da conversa
vai alterar o rumo dos seus atos. Aqui, você sabe o que quer,
sabe o que vai fazer, e nada vai fazê-lo mudar de idéia. Nada
do que vai ser dito aqui vai mudar coisa alguma.
A grande peça que a biologia prega nas pessoas é que a gente
já é íntima antes mesmo de saber coisa alguma a respeito da
outra pessoa. No primeiro momento, já entendemos tudo.
Um é atraído pela superfície do outro no início, mas
também intui a dimensão mais profunda. E a atração não
precisa ser equivalente: ela se sente atraída por uma coisa,
você por outra. É a superfície, é curiosidade, mas então,
pum!, a dimensão profunda. É bom ela ser cubana, é bom a
avó dela ser isso e o avô aquilo, é bom eu saber tocar piano e
ter um manuscrito de Kafka, mas tudo isso não passa de um
desvio no caminho que vamos acabar seguindo. Faz parte do
encantamento, imagino; porém, se essa parte não fosse
necessária, eu gostaria muito mais. Em matéria de
encantamento, o sexo por si só já basta. Será que os homens
acham as mulheres tão encantadoras quando o sexo é
omitido? Será que alguém, qualquer que seja o sexo, acha
alguém encantador se não houver nada de sexual entre eles?
Tem alguém que encanta você sem ser por isso? Não tem.
Ela pensa: estou dizendo a ele quem sou. Ele está interes-
sado em quem eu sou. Isso é verdade, mas estou curioso a
respeito dela porque quero comê-la. Não preciso que ela se
interesse tanto por Kafka e Velázquez. Enquanto converso
com ela, estou pensando: ainda vou precisar de quanto
tempo de conversa? Três horas? Quatro? Será que vai chegar
a oito? O véu começou há apenas vinte minutos e já estou
me perguntando: afinal, o que é que isso tudo tem a ver
com os peitos dela, a pele dela, o porte dela? A arte francesa
do flerte não me interessa nem um pouco. O que me
interessa é o impulso selvagem. Não, isso não é sedução. É
comédia. É a comédia de criar uma conexão que não é a
conexão — que não chega aos pés da conexão — criada de
modo nada artificial pelo desejo. Isso é a convenção
instantânea, que nos dá algo em comum de imediato, a
tentativa de transformar o desejo em alguma coisa que seja
socialmente aceitável. No entanto, o que faz do desejo,
desejo é justamente o que nele há de radicalmente
inaceitável. Não, isso aqui é apenas uma maneira de traçar a
trajetória, não para a frente, mas para trás, em direção ao
impulso elementar. Não confundir o véu com a transação
real. Sem dúvida, pode até surgir uma outra coisa, mas essa
outra coisa não tem nada a ver com sair para comprar
cortinas e edredons, nada a ver com entrar para o clube da
evolução da espécie. A evolução da espécie pode continuar
perfeitamente sem mim. Eu quero comer essa garota, e vou
ter que aturar alguns véus, sim, mas é só um meio de atingir
um fim. Até que ponto isso é uma estratégia? Agrada-me a
idéia de que isso é apenas uma estratégia.
"Vamos ao teatro um dia desses?", perguntei-lhe. "Ah, acho
uma ótima idéia", respondeu Consuela, e eu não sabia na
época se ela estava sozinha ou se tinha namorado, mas não
importava, e dois ou três dias depois — e tudo foi oito anos
atrás, em 1992 — ela me mandou um bilhete dizendo: "Foi
ótimo ser convidada para sua festa, conhecer o seu
apartamento maravilhoso, a sua biblioteca extraordinária, ter
nas mãos um papel com palavras escritas por Franz Kafka.
Foi muita generosidade sua me apresentar a obra de Diego
Velázquez...". Consuela acrescentou seu telefone
juntamente com seu endereço, e assim telefonei para ela e
convidei-a para sair. "Que tal pegar um teatro comigo? Você
sabe que meu trabalho é esse. Tenho que ir ao teatro quase
toda semana, e sempre me dão dois ingressos, e talvez você
queira ir comigo."
Assim, nos encontramos num restaurante, fomos ao teatro,
não foi nem um pouco interessante, eu estava sentado ao
lado dela, olhando para aqueles seios lindos, para aquele
corpo lindo. Ela tem seios tamanho 44, essa duquesa, seios
realmente grandes e bonitos, e uma tez muito branca, o tipo
de pele que, só de olhar, dá vontade de lamber. E no teatro,
no escuro, o poder da imobilidade dela era tremendo. O que
poderia ser mais erótico naquela situação do que a aparente
ausência, na mulher fascinante, de qualquer intenção
erótica?
Depois da peça, eu lhe disse que podíamos ir beber em
algum lugar, só que havia um problema. "As pessoas me
reconhecem por causa da televisão, e onde a gente for, seja
o Algonquin, o Carlyle, qualquer lugar, pode ser que alguém
venha perturbar a nossa privacidade." Ela observou: "Já
reparei que as pessoas ficam reparando na gente, no
restaurante e no teatro". "Isso incomodou você?", perguntei.
"Não sei se me incomodou. Só sei que percebi. E fiquei
pensando se você se incomodava." "Não se pode fazer
nada", respondi; "faz parte do trabalho." "Imagino", disse ela,
"que ficaram achando que eu era uma tiete." "Você não tem
a menor cara de tiete", garanti. "Mas aposto que foi isso que
eles pensaram. 'Olha lá o David Kepesh com uma das tietes
dele.' Eles devem achar que eu sou uma garota boba, uma
deslumbrada." "E se eles pensassem isso, mesmo?", per-
guntei. "Acho que eu não ia gostar muito, não. Eu queria
terminar a faculdade antes de meus pais me verem na Page
Six do Post." "Eu acho que você não vai sair na Page Six.
Isso não vai acontecer." "Eu espero que não aconteça,
sério", disse ela. "Olha, se isso está incomodando você",
propus, "a gente pode resolver o problema indo pro meu
apartamento. A gente pode beber alguma coisa lá." "Está
bem", disse ela, mas só depois de um momento sério,
entregue a pensamentos silenciosos, "acho que é uma idéia
melhor." Não uma boa idéia, apenas uma idéia melhor.
Fomos para o meu apartamento, e ela me pediu que eu
pusesse alguma música. Normalmente eu escolhia música
clássica leve para ela. Trios de Haycln, a Oferenda musical,
movimentos rápidos de sinfonias de Beethoven, adágios de
Brahms. Ela gostava em particular da sétima de Beethoven, e
assim em várias noites sucessivas ela se entregou ao impulso
irresistível de ficar em pé e balançar os braços no ar, de
brincadeira, como se fosse ela e não Bernstein que estivesse
regendo a orquestra. A visão daqueles seios estremecendo
sob a blusa enquanto ela, como uma criança representando,
fingia reger a orquestra com uma batuta invisível era
profundamente excitante, e é bem possível que não
houvesse nada de infantil naquilo, que ela fingisse reger
justamente para me excitar. Porque sem dúvida não
demorou para que ela se desse conta de que não era possível
continuar acreditando, como uma aluna, que era o velho
professor quem estava no comando. Pois no sexo não há um
ponto de equilíbrio absoluto. Não existe igualdade sexual,
não pode haver igualdade sexual, uma igualdade em que as
duas partes sejam iguais, em que o quociente masculino e o
quociente feminino estejam perfeitamente equilibrados.
Não há como negociar de modo medido essa loucura. Não
se trata de um acordo de cinqüenta por cento para um,
cinqüenta por cento para outro, como numa transação
comercial. O que está em jogo aqui é o caos de Eros, a
desestabilização radical que é a excitação erótica. Na hora do
sexo, todos nós voltamos para a selva. Voltamos para o
pântano. O que há é um domínio, um desequilíbrio
perpétuo. Você vai excluir o domínio? Você vai excluir a
entrega? O domínio é a pederneira, é ele que produz a
faísca, que dá início a tudo. Depois, o quê? Escute. Você vai
ver. Você vai ver aonde leva o domínio. Você vai ver aonde
leva a entrega.
Às vezes, como naquela noite, eu escolhia para ela um
quinteto de cordas de Dvorálc — uma música eletrizante,
fácil de reconhecer e apreender. Ela gostava que eu tocasse
piano, isso criava uma atmosfera romântica e sedutora que
agradava a ela, e a mim também. Os prelúdios mais fáceis de
Chopin. Schubert, alguns dos Momentos musicais.
Movimentos de algumas das sonatas. Nada de muito difícil,
peças que eu já havia estudado e não tocava muito mal.
Normalmente só toco quando estou sozinho, mesmo agora
que minha técnica melhorou, mas era agradável tocar para
ela. Tudo aquilo fazia parte da embriaguez — para nós dois.
Tocar música é uma coisa engraçada. Algumas coisas agora
estão mais fáceis para mim, porém a maioria das peças tem
um trecho que é sempre difícil, passagens que nunca
consegui resolver durante todos os anos em que estudei
piano sozinho, sem professor. Naquele tempo, quando eu
esbarrava num problema, sempre arranjava uma maneira
maluca de resolvê-lo. Ou de não resolvê-lo — certos saltos,
movimentos complicados de um lado do teclado para o
outro, desses que arrebentam os dedos da gente. Eu ainda
não tinha professora no tempo em que conheci Consuela,
então o jeito era apelar para aquelas improvisações idiotas
que eram minhas soluções para os problemas técnicos. Só
tive umas poucas aulas quando menino e, até arranjar a
professora, há cinco anos, eu era basicamente um
autodidata. Uma formação muito precária. Se tivesse
estudado a sério, hoje precisaria gastar menos tempo
estudando. Acordo cedo e fico duas horas, duas horas e
meia quando posso, estudando, ao nascer do dia — mais do
que isso não dá. Se bem que, quando estou trabalhando em
algumas peças em particular, estudo mais um pouco depois.
Estou em forma, mas me canso logo. Tanto mental quanto
fisicamente. Já li uma quantidade enorme de música. Quer
dizer, li no sentido técnico — não é só ler como quem lê
um livro, e sim fazer uma leitura diante do teclado. Comprei
uma quantidade enorme de partituras, tenho tudo em
matéria de literatura para piano, e eu lia muito, e tocava
muita coisa, ainda que mal. Uma em outra passagem, não tão
mal assim. Para ver como é que a peça funcionava. Não che-
gava a tocar bem, mas me dava algum prazer. E nosso tema
é o prazer. Como encarar de modo sério, no decorrer de
toda uma existência, os prazeres modestos e íntimos que
podemos ter.
As aulas de piano foram um presente que dei a mim mesmo
quando completei sessenta e cinco anos e finalmente
consegui me recuperar da perda de Consuela. E de lá para cá
avancei muito. Hoje toco umas peças bem difíceis.
Intermezzi de Brahms. Schumann. Um prelúdio difícil de
Chopin. Eu encaro um trecho de uma peça bem difícil,
ainda não sei tocar bem, mas continuo trabalhando. Quando
digo à minha professora, irritado: "Não consigo tocar isso
direito. Como é que a gente resolve esse problema?", ela
responde: "O jeito é tocar mil vezes". Como tudo que dá
prazer, você entende, a coisa tem um lado desagradável,
mas minha relação com a música se aprofundou, e agora se
tornou essencial para minha vida. Faz sentido me dedicar a
isso agora. Porque as garotas — por quanto tempo ainda vou
poder?
Não posso afirmar que Consuela se excitava tanto ao me ver
tocando piano quanto eu me excitava ao vê-la fingindo re-
ger Beethoven. Até hoje não posso afirmar com certeza se
alguma coisa que eu fazia excitava Consuela sexualmente. E
por esse motivo, acima de tudo, que desde a primeira vez
em que fomos para a cama, há oito anos, jamais tive um
único momento de paz; é por isso que, tenha ela percebido
o fato ou não, a partir desse momento passei a ser só
fraqueza e preocupação; por isso jamais consegui concluir se
a solução era vê-la com mais freqüência ou com menos
freqüência ou até mesmo parar de procurá-la, abrir mão dela
— fazer o impensável e, aos sessenta e dois anos de idade,
abrir mão voluntariamente de uma garota belíssima, com
vinte e quatro anos de idade, que me dizia centenas de
vezes: "Eu te adoro", mas que nunca, nem mesmo de modo
insincero, conseguiu se obrigar a sussurrar: "Eu te desejo, eu
quero você — não posso viver sem o teu pau".
Consuela não era desse tipo. E no entanto era por isso que o
medo de que ela me trocasse por outro jamais me deixava
em paz, por isso que eu não conseguia parar de pensar nela,
por isso que, estando ela presente ou não, jamais me sentia
seguro em relação a ela. O lado obsessivo desse estado era
terrível. Quando se está sendo iludido, ajuda não pensar
demais e simplesmente gozar o prazer da ilusão. Mas para
mim esse prazer não existia: eu só fazia pensar — pensar,
preocupar-me e sofrer, sim. Concentre-se no prazer, eu
dizia a mim mesmo. Que outro motivo senão o prazer me
faz optar por levar a vida que levo, impondo um mínimo de
restrições à minha independência? Tive o meu casamento,
quando estava na faixa dos vinte fiz aquele primeiro
casamento ruim que tantas pessoas fazem, o primeiro
casamento ruim que é tão ruim quanto o serviço militar,
mas depois disso tomei a decisão de não ter o segundo
casamento ruim, nem o terceiro, nem o quarto. Decidi,
depois daquilo, nunca mais voltar para dentro da gaiola.
Naquela primeira noite, estávamos sentados no sofá ouvindo
Dvorák. A certa altura Consuela encontrou um livro que a
interessou — já não me lembro qual, mas nunca vou me
esquecer daquele momento. Ela virou-se — eu estava
sentado aí onde você está, no canto do sofá, e ela estava ali
—, virou o torso em noventa graus, e com o livro apoiado
no braço do sofá começou a ler, e por estar ela inclinada
para a frente, vi por baixo da roupa suas nádegas, vi a forma
nítida, o que era um convite sensacional. Consuela é uma
moça alta, com um corpo ligeiramente estreito demais. Era
como se seu corpo não lhe servisse exatamente. Não por ser
ela gorda demais. Mas ela está longe de ser o tipo anoréxico.
A gente vê carne feminina, e é carne da boa, abundante —
é por isso que você vê. Pois então lá estava ela, não
completamente deitada no sofá, mas mesmo assim, com as
nádegas meio que viradas para mim. Uma mulher que tem
consciência do próprio corpo como Consuela tem e faz o
que ela está fazendo, concluí, está me convidando a tomar a
iniciativa. O instinto sexual continua intacto — sem
nenhuma interferência do senso de decoro cubano. Naquela
bunda semi-virada para mim, vejo que não há nada me
separando da coisa pura. Indo aquilo de que falamos, tudo
aquilo que tive de ouvir a respeito da família dela, nada
daquilo interferiu. Ela sabe virar a bunda direitinho, apesar
de tudo isso. Da maneira primordial. Exibindo-se. E a
exibição é perfeita. Ela está me dizendo que não preciso
mais conter os impulsos de tocar.
Comecei a acariciar suas nádegas, e ela gostou. Disse: "É uma
situação esquisita. Eu nunca vou poder ser a sua namorada.
Por todos os motivos possíveis. Você vive num mundo
diferente". "Diferente?", perguntei, rindo. "Diferente por
quê?" E nesse momento mesmo, é claro, a gente começa a
mentir, dizendo: "Ah, não é um lugar tão elevado assim, se
é isso que você está imaginando. Não é um mundo tão
glamoroso assim. Nem chega a ser um mundo. Uma vez por
semana eu apareço na televisão. Uma vez por semana eu
falo no rádio. Uma ou duas vezes por mês publico alguma
coisa nas últimas páginas de uma revista lida por vinte
pessoas, no máximo. O meu programa? E um programa
cultural que passa nas manhãs de domingo. Ninguém assiste.
Não é um mundo que dê motivo pra você se preocupar. Eu
posso trazer você para esse mundo com a maior facilidade.
Fica comigo, por favor.
Ela parece estar pensando no que eu disse, mas o que é que
ela pode estar pensando? "Está bem", diz ela, "por ora. Por
hoje. Mas jamais vou poder ser sua esposa." "Concordo",
disse eu, mas pensei: e quem é que estava pedindo a ela que
se casasse comigo? Quem foi que levantou essa
possibilidade? Estou com sessenta e dois anos, ela com vinte
e quatro. É só eu pegar na bunda dela que ela vem me dizer
que não pode se casar comigo? Eu não sabia que ainda
existiam garotas assim. Ela é ainda mais tradicional do que
eu imaginava. Ou talvez mais estranha, mais fora do comum
do que eu imaginava. Como eu viria a descobrir, Consuela é
uma garota comum, mas não é previsível. Não há nada de
mecânico em seu comportamento. Ela é ao mesmo tempo
diferente e misteriosa, e cheia de pequenas surpresas. Mas,
principalmente no começo, era difícil para mim decifrá-la, e
erroneamente — ou talvez não — fiquei achando que isso
tinha a ver com o fato de ela ser cubana. "Eu adoro meu
mundinho cubano", disse Consuela. "Adoro minha família
acolhedora, e já deu para eu perceber que isso é uma coisa
que você não vai gostar, que você não vai querer. De modo
que eu nunca vou poder ser sua, de verdade."
Essa ingenuidade simpática, combinada com aquele corpo
maravilhoso, era tão fascinante para mim que nem mesmo
naquele momento, naquela primeira noite, consegui ter
certeza de que ia conseguir comê-la como se ela fosse mais
uma Miranda sapeca. Não, Consuela não era como a cabra
dentro do relógio. Ela podia dizer qualquer coisa — era tão
estupidamente atraente que eu não apenas não conseguia
resistir a ela como também não era capaz de imaginar que
algum homem conseguisse resistir, e foi naquele momento,
acariciando suas nádegas enquanto ela explicava que não
podia ser minha esposa, que meu terrível ciúme nasceu.
O ciúme. A insegurança. O medo de perdê-la, mesmo quan-
do eu estava deitado em cima dela. Obsessões que, em toda
a minha experiência tão variada, eu jamais experimentara.
Com Consuela, como jamais ocorrera com ninguém antes
dela, no mesmo instante toda a minha autoconfiança
escorreu pelo ralo abaixo.
Assim, fomos para a cama. Aconteceu depressa, menos por
causa do meu inebriamento do que pela falta de
complexidade dela. Ou melhor: sua clareza. Ou melhor: sua
maturidade recém-adquirida, porém uma maturidade, eu
diria, de caráter simples: ela estava em comunhão com
aquele corpo exatamente como queria estar, tal como não
conseguia estar em comunhão com a arte. Ela se despiu, e
não apenas a blusa era de seda, mas também a roupa de
baixo era de seda. Sua lingerie era quase pornográfica. Uma
surpresa. Está claro que ela a escolheu para agradar. Está
claro que ela a escolheu pensando num homem, mesmo que
nenhum homem jamais viesse a vê- la. Está claro que você
não faz a menor idéia do que ela é, do quanto ela é
inteligente ou burra, do quanto é superficial ou profunda,
inocente ou traiçoeira, ou sábia, ou até mesmo perversa.
Com uma mulher controlada como ela, com tamanho poder
sexual, não se pode fazer idéia de nada disso, jamais. O
emaranhado que é o caráter dela fica obscurecido por sua
beleza. Assim mesmo, fiquei muito comovido ao ver aquela
lingerie, ao ver aquele corpo. "Olha só você", eu disse.
Duas coisas no corpo de Consuela chamam a atenção. Em
primeiro lugar os seios. Os seios mais magníficos que jamais
vi — e olhe que eu nasci em 1930: a esta altura, já vi muitos
seios. Os dela eram redondos, cheios, perfeitos. O tipo de
seio com um mamilo que parece um pires. Não o que parece
um úbere, porém aquele mamilo grande, de um tom claro
de rosa parda- cento, que é tão excitante. A segunda coisa
era o fato de que seus pêlos pubianos eram lisos.
Normalmente são encaracola- dos. Os dela pareciam cabelo
de asiático. Lisos, estendidos, e parcos. O detalhe dos pêlos
pubianos é importante porque vai reaparecer.
Sim, puxei os lençóis e ela veio para a minha cama, Con-
suela Castillo, exemplar superclássico da fêmea fértil de
nossa espécie de mamífero. E já naquela primeira vez, com
apenas vinte e quatro anos, ela estava disposta a sentar-se
em cima de mim. Uma vez lá, ficou um pouco insegura, e
até eu lhe dar um tapinha no braço para chamar sua atenção
e fazê-la ir um pouco mais devagar, ela estava desligada de
tudo, com uma energia excessiva, disparada, com os olhos
fechados, perdida numa brincadeira infantil só dela. Era um
pouco como se estivesse regendo a orquestra de brincadeira.
Creio que estava tentando se entregar por completo, mas era
jovem demais para isso, por mais que se esforçasse, e não foi
isso que acabou fazendo. Porém, sabendo quanto seus seios
me atraíam, e querendo que eu os visse do melhor ângulo,
Consuela montou em mim quando lhe pedi. E fez então
uma coisa um tanto pornográfica para se fazer na primeira
vez, e isso, mais uma vez para minha surpresa, por iniciativa
própria — brincou com os seios em torno do meu pau. Ela
debruçou-se sobre mim e colocou meu pau entre seus
peitos, para que eu o visse aninhado, enquanto ela apertava
um seio contra o outro com a mão. Sabia o quanto aquela
visão me excitava, a pele de um contra a pele do outro.
Lembro-me de ter dito: "Você se dá conta de que tem os
seios mais bonitos que eu já vi em toda a minha vida?". E,
como uma secretária eficiente e perfeita anotando um
memorando, ou talvez como uma filha cubana bem-
educada, respondeu: "Eu sei, sim. Percebo como você se liga
nos meus seios".
Mas no começo, de modo geral, quando fazíamos amor o
ritmo era quase sempre excessivo. Ela estava se esforçando
demais para impressionar seu professor. Mais devagar, me
acompanhe, eu dizia. Menos energia, mais compreensão.
Você pode controlar o processo com mais sutileza. Uma
atitude de naturalidade crua tem um lado muito bom, mas
não com esse distanciamento. As primeiras vezes em que
me chupou, Consuela sacudia a cabeça com uma rapidez
implacável, tá-tá-tá — era impossível não gozar muito antes
do que eu pretendia, mas então, no momento em que eu
começava a ejacular, ela parava de repente e recebia o jato
como se fosse um ralo aberto. Era como gozar dentro de
uma cesta de papéis. Ninguém jamais havia dito a ela para
não parar naquela hora. Nenhum dos cinco namorados
anteriores tinha ousado lhe dizer isso. Eram jovens demais.
Eram da idade dela. já estavam mais do que satisfeitos de
estar conseguindo aquilo.
Então aconteceu uma coisa. A mordida. O revide. A mor-
dida que era o revide da vida. Uma noite Consuela
transgrediu os limites da sua eficiência habitual,
tranqüilizadora e bem- comportada, ultrapassou os limites
dos manuais e se aventurou por território desconhecido, e
foi então que a turbulência daquele caso teve início para
mim. A coisa aconteceu assim. Uma noite, quando ela
estava estirada na cama debaixo de mim, passiva, esperando
que eu lhe abrisse as pernas e a penetrasse, em vez disso
coloquei dois travesseiros atrás de sua cabeça, levantando-a,
colocando-a num determinado ângulo contra a cabeceira,
pus um joelho de cada lado de sua cabeça, ficando minha
bunda acima do centro de seu corpo, inclinei-me sobre o
rosto dela e, com um ritmo implacável, comecei a foder sua
boca. E que eu já estava tão entediado com aquelas felações
mecânicas que, para escandalizá-la, fixei-a naquela posição,
fixei-a segurando-lhe os cabelos, enrascando uma mecha
numa das mãos, em torno do punho, como se fosse uma
correia, como se fossem as rédeas presas a um bridão.
Ora, nenhuma mulher gosta que lhe puxem os cabelos.
Muitas mulheres até ficam excitadas, mas isso não quer dizer
que gostem. E não gostam porque não há como negar que é
um gesto de domínio, um domínio que se impõe e persiste,
que as faz pensar: é exatamente como eu imaginava que o
sexo seria. Uma coisa brutal, sim — esse cara não é um
bruto, mas sabe ser brutal. Depois que gozei, quando me
afastei, Consuela parecia não apenas horrorizada, mas
também enfurecida. Sim, finalmente alguma coisa está
acontecendo com ela. Não é mais tão confortável para ela.
Não é mais a mesma coisa do que fazer escalas no piano. Por
dentro, ela está fervendo, de modo incontrolável. Eu
continuava em cima dela — ajoelhado sobre ela, pingando
nela — e estávamos nos encarando olho no olho, friamente,
quando, depois de engolir com força, ela trincou os dentes.
De repente. Com crueldade. Uma crueldade dirigida a mim.
Não foi um ato. Foi uma reação instintiva. Ela mordeu,
usando toda a força dos músculos mastigatórios para fechar
o maxilar com violência. Era como se estivesse dizendo: eu
podia ter feito isso, era o que eu queria fazer, mas não fiz.
Até que enfim, a reação direta, incisiva, visceral, partindo
daquela beleza clássica e contida! Até então, tudo era
controlado pelo narcisismo, pelo exibicionismo, e apesar da
exibição de energia, apesar da audácia, havia ali algo de
estranhamente inerte. Não sei se Consuela ainda se lembra
daquela mordida, aquela mordida vivificante que a libertou
de sua atitude de auto-vigilância e iniciou-a no sonho
sinistro, mas eu nunca vou me esquecer. A verdade do amor
em sua íntegra. A garota instintiva irrompendo não apenas
do invólucro de sua vaidade, mas também do cativeiro de
seu lar cubano aconchegante. Foi assim que teve início de
verdade seu domínio sobre mim — o domínio em que eu a
iniciei através do meu domínio. Eu sou o responsável pelo
domínio dela sobre mim.
Sabe, acho que em mim Consuela percebeu a existência de
uma versão adquirível do refinamento de sua família, daque-
le passado aristocrático irreversivelmente perdido que é
mais ou menos um mito para ela. Um homem do mundo.
Uma autoridade em matéria de cultura. O professor dela. A
maioria das pessoas fica horrorizada com a diferença
enorme de idade, mas é justamente isso que atrai Consuela.
A estranheza erótica é a única coisa que as pessoas em geral
registram, e registram como repugnância, como uma farsa
repugnante. Mas a idade que tenho é da maior importância
para Consuela. Essas garotas que andam com velhos não o
fazem apesar da idade — elas são atraídas pela idade, fazem
o que fazem por causa da idade. Por quê? No caso de
Consuela, porque a enorme diferença de idade lhe dá
permissão de submeter-se, creio eu. Minha idade e meu
status lhe dão uma justificativa racional para entregar-se, e
entregar-se na cama não é uma sensação desagradável. Mas,
ao mesmo tempo, entregar-se de modo íntimo a um
homem muito, mas muito mais velho, dá a esse tipo de
garota uma autoridade que ela não consegue obter numa
relação sexual com um homem mais moço. Ela obtém tanto
os prazeres da submissão quanto os prazeres do domínio. Se
um rapaz se submete ao poder dela, que significado tem
isso, sendo ela uma criatura tão obviamente desejável? Mas
fazer com que um homem do mundo se submeta a ela
apenas por causa da força de sua juventude e sua beleza?
Capturar o interesse total, tornar-se a paixão absorvente de
um homem que lhe é inacessível em todas as outras esferas,
penetrar num mundo que ela admira e que estaria fechado
para ela não fosse essa via de acesso — isso é poder, e é o
poder que ela deseja. A troca de domínios não é feita de
modo seqüencial, e sim contínua. E não é bem uma troca; é
mais um entrelaçamento. E aí está a fonte não apenas da
minha obsessão por ela, mas também da contra-obsessão
dela por mim. Pelo menos foi como entendi a coisa na
época, o que pouco me ajudou a compreender o que ela
estava tentando fazer e por que eu estava me envolvendo
cada vez mais.
Por mais que você saiba, por mais que você pense, por mais
que você planeje, projete e conspire, você não é superior ao
sexo. O sexo é um jogo muito arriscado. Um homem não
teria dois terços dos problemas que tem se não se metesse
em aventuras para conseguir foder. É o sexo que perturba
nossas vidas naturalmente ordenadas. Sei disso melhor do
que qualquer um. Todas as vaidades, sem exceção, voltam
para zombar de você. Leia o Don Juan de Byron. Mas o que
é que você faz se você está com sessenta e dois anos e acha
que nunca mais vai conseguir se apossar de uma coisa tão
perfeita? O que é que você faz se você está com sessenta e
dois anos e a vontade de tomar tudo aquilo que ainda pode
ser tomado continua mais forte do que nunca? O que é que
você faz se você está com sessenta e dois anos e se dá conta
de que todos aqueles órgãos até agora invisíveis (rins,
pulmões, veias, artérias, cérebro, intestinos, próstata,
coração) estão começando a se manifestar da maneira mais
assustadora, ao mesmo tempo em que o órgão que
protagonizou a maior parte da sua vida está fadado a
murchar, até se tornar insignificante?
Não me entenda mal. Não estou dizendo que, através de
uma Consuela, você consegue se iludir e ficar achando que
tem uma última oportunidade de ser jovem. Pelo contrário,
a distância que separa você da juventude fica mais evidente
do que nunca. Na energia dela, no seu entusiasmo, sua
ignorância juvenil, sua sapiência juvenil, a diferença é
enfatizada a cada momento. Você nunca tem a menor
dúvida de que quem tem vinte e quatro anos é ela. Só
mesmo um idiota pode achar que voltou a ser jovem. Se
você se sentisse jovem, seria fácil. Mas, longe de se sentir
jovem, o que você sente é o contraste doloroso entre o futu-
ro ilimitado dela e os limites do seu futuro, você sente mais
até do que já costuma sentir a dor da perda de todos os seus
dons que já foram embora. E como jogar beisebol com um
grupo de rapazes de vinte e poucos anos. Você não se sente
jovem por estar jogando com eles. Você nota a diferença a
cada segundo do jogo. Mas pelo menos você não está
sentado, de fora, assistindo.
O que acontece é o seguinte: você sente da maneira mais
dolorosa o quanto envelheceu, só que de uma maneira
nova.
Você pode imaginar o que é a velhice? É claro que não. Eu
não podia. Nunca consegui. Não fazia idéia do que era. Não
tinha nem mesmo uma imagem falsa — não tinha imagem
nenhuma. E ninguém quer outra coisa. Ninguém quer
encarar a velhice antes de ser obrigado a encará-la. Como é
que tudo vai terminar? Em relação a isso, ser obtuso é de
rigueur.
Por motivos óbvios, é impossível imaginar uma etapa de
vida posterior àquela em que estamos. Às vezes já chegamos
na metade da fase seguinte quando nos damos conta de que
já estamos nela. Além disso, as primeiras etapas da velhice
têm lá suas vantagens. Mesmo assim, as intermediárias são
ameaçadoras para muita gente. Mas e a etapa final? Curioso
— é a primeira vez 11a vida que você consegue ficar
completamente de fora da situação que você está vivendo.
Observar a decadência do próprio corpo de um ponto de
vista externo (para quem tem a sorte que eu tive) permite
que a gente se sinta, graças à vitalidade que continua a ter, a
uma distância razoável dessa decadência — às vezes dá até
para sentir-se orgulhosamente independente dela. Sem
dúvida, vão aumentando cada vez mais os sinais que nos
levam a tirar aquela conclusão desagradável, mas assim
mesmo a gente continua de fora. E a fúria dessa objetividade
é brutal.
É importante traçar uma distinção entre o morrer e a morte.
O morrer não é um processo ininterrupto. Se a gente tem
saúde e se sente bem, é um processo invisível. O final que é
uma certeza nem sempre se anuncia de maneira
espalhafatosa. Não, você não consegue entender. A única
coisa que você entende a respeito dos velhos quando você
não é velho é que eles foram marcados pelo tempo. Mas
compreender isso só tem o efeito de fixá-los no tempo
deles, e assim você não compreende nada. Para aqueles que
ainda não são velhos, ser velho significa ter sido. Porém ser
velho significa também que, apesar e além de ter sido, você
continua sendo. Esse ter sido ainda está cheio de vida. Você
continua sendo, e a consciência de continuar sendo é tão
avassaladora quanto a consciência de ter sido. Eis uma
maneira de encarar a velhice: é a época da vida em que a
consciência de que a sua vida está em jogo é apenas um fato
cotidiano. E impossível não saber o fim que o aguarda em
breve. O silêncio em que você vai mergulhar para sempre.
Fora isso, tudo é tal como antes. Fora isso, você continua
sendo imortal enquanto vive.
Até não muito tempo atrás, existia uma maneira pré-
fabricada de ser velho, tal como havia uma maneira pré-
fabricada de ser jovem. Hoje em dia nenhuma das duas
funciona mais. Houve um grande conflito a respeito do que
é permissível — e uma grande revolução. Não obstante, será
que um homem de setenta anos de idade ainda deve
continuar a envolver-se com o aspecto carnal da comédia
humana? Ser desavergonhadamente um velho nada
monástico, ainda suscetível às excitações humanas? Não é
essa condição que outrora era simbolizada pelo cachimbo e
a cadeira de balanço. Talvez ainda seja uma espécie de
afronta para muita gente você não se pautar pelo antigo re-
lógio da vida. Tenho consciência de que não posso contar
com o respeito virtuoso dos outros adultos. Mas o que é que
eu posso fazer quando constato que, pelo menos no meu
caso, nada, nada se aquieta, por mais que a gente envelheça?
Depois daquela mordida, ela passou a vir à minha casa com a
maior sem-cerimônia. Desde o momento em que percebeu
como era fácil assumir o controle da situação, não se tratava
mais de sair à noite e depois dar uma trepada. Ela me
telefonava e perguntava: "Posso ficar umas horas aí?",
sabendo que eu jamais diria não, sabendo que todas as vezes
ela me faria dizer "olha só você" como se ela própria fosse
um Picasso, era só despir-se e postar-se à minha frente. Eu,
seu professor de Crítica Prática, o esteta dos programas de
domingo na tevê educativa, a maior autoridade da tevê
nova-iorquina em matéria do que há de melhor no
momento para se ver, ouvir e ler — eu a havia elevado à
categoria de grande obra de arte, com toda a influência
mágica de uma grande obra de arte. Não a artista, e sim a
própria obra. Não havia nada que ela pudesse não entender
— bastava-lhe estar ali, à vista, e era só olhar para mim que
ela compreendia sua importância. Não se exigia dela, como
não se exige de um concerto para violino nem da lua, que
ela tivesse uma concepção de si própria. Era aí que eu
entrava: eu era a autoconsciência de Consuela. Eu era o gato
olhando para o peixinho no aquário. Só que quem tinha
dentes era o peixe.
O ciúme. Esse veneno. E gratuito. Ciúme até mesmo quan-
do ela me diz que vai patinar no gelo com o irmão dela de
dezoito anos. Será ele o homem que vai roubá-la de mim?
Nesses amores obsessivos, você deixa de ser a pessoa
autoconfiante de sempre, quando você está no torvelinho
da paixão e quando a garota tem pouco mais de um terço da
sua idade. Eu me sinto ansioso se não telefonar para ela
todos os dias, e assim que ligo para ela fico ansioso.
Antigamente, quando uma mulher exigia de mim que lhe
telefonasse o tempo todo, e não parava de me ligar, eu
inevitavelmente me livrava dela — e agora era eu que exigia
que ela ligasse, que exigia a dose diária via telefone. Por que
é que fico elogiando-a quando falo com ela? Por que não
paro de dizer que ela é perfeita? Por que tenho sempre a
sensação de que estou dizendo a coisa errada para essa
garota? Não consigo imaginar como ela me vê, como ela vê
coisa nenhuma, e minha confusão me faz dizer coisas que
me parecem falsas ou exageradas, por isso ponho o fone no
gancho cheio de um ressentimento mudo voltado para ela.
Mas quando, com muita autodisciplina, consigo passar o dia
inteiro, o que é raro, sem falar com ela, sem ligar para ela,
sem elogiá-la, sem parecer falso, sem ficar ressentido pelo
que ela faz comigo sem saber que o faz, é pior ainda. Não
consigo parar de fazer o que quer que estiver fazendo, e
tudo que faço me deixa contrariado. Com ela, não sinto a
autoridade que é necessária para a minha estabilidade, e, no
entanto, o que a atraiu em mim foi justamente essa
autoridade.
Nas noites em que Consuela não está comigo, me deformo
de tanto pensar onde ela pode estar e o que pode estar
fazendo. Mas mesmo depois de passar a noite em sua
companhia, depois que ela vai para casa não consigo dormir.
A experiência de ter estado com ela é forte demais. Fico
sentado na cama, e no meio da noite grito: "Consuela
Castillo, me deixe em paz!". Chega, digo a mim mesmo.
Levante-se, troque as roupas de cama, tome mais um banho,
livre-se do cheiro dela, e depois livre-se dela. É preciso. Sua
vida virou uma campanha incessante por causa dela. Cadê a
sensação de realização, de posse? Se ela é sua, por que é que
você não consegue tê-la? Você não consegue ter o que você
quer mesmo depois de obter o que você quer. Você não
consegue ter paz, é impossível ter paz, por causa da
diferença de idade e o que há de inevitavelmente doloroso
nela. Por causa da diferença de idade, eu tenho o prazer,
mas nunca perco o anseio. Isso nunca aconteceu antes?
Não. Nunca tive sessenta e dois anos. Eu não estava mais
naquela fase da minha vida em que me julgava capaz de
fazer tudo. No entanto, ainda me lembrava bem dessa fase.
Você vê uma mulher bonita. Você vê essa mulher de longe.
Você chega-se a ela e pergunta: "Quem é você?". Você vai
jantar com ela. E assim por diante. Aquela fase, em que você
não se preocupa com nada. Você entra no ônibus. Há uma
criatura tão linda que todo mundo tem medo de se sentar ao
lado dela. O lugar ao lado da garota mais bonita do mundo
— está vazio. Então você vai e se senta ali. Mas agora esse
tempo passou, e nunca mais você vai ter tranqüilidade, vai
ter paz. Eu ficava preocupado por ela andar de um lado para
outro com aquela blusa. Ela tira a jaqueta, e eis a blusa. Tira a
blusa, e eis a perfeição. Um rapaz um dia vai encontrá-la e
levá-la embora. Vai levá-la de mim, que despertei seus
sentidos, que lhe dei sua estatura, que fui o catalisador que
tornou possível sua emancipação, que a preparou para ele.
Como é que sei que um rapaz vai levá-la embora? Porque eu
já fui o rapaz que o teria feito.
Quando eu era mais jovem, não era suscetível. Os outros
ficavam com ciúme mais cedo, mas eu conseguia me
proteger disso. Deixava que a mulher fizesse o que quisesse,
confiante de que eu conseguiria vencer graças ao domínio
sexual. Mas o ciúme, naturalmente, é a armadilha que leva
ao contrato. Os homens reagem ao ciúme dizendo: "Essa
não vai ser de ninguém. Vai ser só minha — vou me casar
com ela. Vou capturá-la dessa maneira. Através das
convenções". O casamento cura o ciúme. E por isso que
muitos homens se casam. Porque não se sentem seguros
com aquela outra pessoa, fazem com que ela assine o
contrato: Prometo não etc.
Como é que posso capturar Consuela? É uma idéia
moralmente humilhante, mas não há como escapar dela.
Com certeza não vou conseguir prendê-la prometendo
casamento, mas de que outra maneira se pode prender uma
mulher jovem com a idade em que estou? O que mais posso
oferecer a ela numa sociedade em que o sexo virou um
mercado livre, que flui como leite e mel? E é assim que
começa a pornografia. A pornografia do ciúme. A
pornografia da auto-destruição. Estou fascinado, estou
cativado, no entanto estou cativado do lado de fora da mol-
dura. Por que é que estou do lado de fora? Por causa da
idade. Da ferida da idade. A pornografia, em sua forma
clássica, funciona por cerca de cinco ou dez minutos, e
depois se transforma em comédia. Mas nesta pornografia as
imagens são extremamente dolorosas. A pornografia comum
é uma estetização do ciúme. Ela elimina o tormento. Mas
"estetização" por quê? Por que não "anestesia"? Bom, talvez
as duas coisas. E uma representação, a pornografia comum.
E uma forma de arte degradada. Não é apenas faz-de-conta,
é uma coisa abertamente insincera. A gente deseja a garota
do filme pornô, mas não sente ciúme do sujeito que a está
comendo porque ele age como substituto da gente. É
extraordinário — para você ver o poder da arte, mesmo
degradada. O tal sujeito atua como substituto, a nosso
serviço; com isso a pontada do ciúme se transforma numa
sensação agradável. Como a gente é cúmplice invisível do
ato, a pornografia comum elimina o tormento, enquanto a
minha não deixa o tormento sair. Na minha pornografia,
você se identifica não com o homem saciado, o que está
transando, e sim com o que não está transando, o que está
perdendo, o que perdeu.
Um rapaz um dia vai encontrá-la e levá-la embora. Eu vejo
esse rapaz. Eu o conheço. Sei do que ele é capaz porque esse
rapaz sou eu com vinte e cinco anos, ainda sem mulher e
filho; eu em estado bruto, antes de fazer o que todo mundo
faz. Eu o vejo olhando para ela, a atravessar a praça ampla —
a dominar a praça — do Lincoln Center. Ele está invisível,
atrás de um pilar, olhando para ela tal como eu a olhei
naquela noite em que a levei para assistir a um concerto de
Beethoven pela primeira vez na vida dela. Consuela está de
botas, botas de couro de cano comprido, e um vestidinho
curto, bem cortado, uma garota arrasadora a céu aberto,
numa noite quente de outono, desavergonhadamente
caminhando pelas ruas do mundo para todo mundo cobiçar
e admirar — e está sorrindo. Está feliz. Essa mulher
arrasadora está vindo encontrar-se comigo. Só que não sou
eu no filme pornográfico. E ele. O ele que antes era eu, mas
não é mais. Vendo esse rapaz vendo essa garota, sei até nos
menores detalhes o que vai acontecer em seguida, e
sabendo o que vai acontecer, imaginando o que vai
acontecer, é impossível pensar em termos daquilo que você
encara racionalmente como o seu interesse próprio. E
impossível pensar que nem todo mundo se sente dessa
maneira a respeito dessa garota porque nem todo mundo
está obcecado por essa garota. Na verdade, você não
consegue imaginá-la indo a lugar nenhum. Não consegue
imaginá-la na rua, numa loja, numa festa, numa praia, sem
que aquele sujeito surja das sombras. O tormento
pornográfico: ver alguém transando, e esse alguém é quem
você foi no passado.
Quando você finalmente perde uma garota como Consuela,
isso acontece com você em todos os lugares, todos os
lugares em que você esteve com ela. Quando ela vai
embora, é estranho, você se lembra dela lá, vê aquele espaço
vazio sem você, mas com ela tal como ela estava com você,
só que com o rapaz de vinte e cinco anos que você não é
mais. Você a imagina dominando o ambiente, com aquele
vestidinho curto bem cortado. Vindo em direção a você.
Afrodite. Então ela passa por você e vai embora, e a
pornografia escapa do seu controle.
Indago (mas o que adianta ficar sabendo?) à respeito dos
namorados dela, peço que me diga com quantos ela foi para
a cama antes de me conhecer, e que idade tinha quando
começou, e se já transou com outra garota ou com dois
rapazes ao mesmo tempo (ou com um cavalo, ou um
papagaio, ou um macaco), e foi então que ela me disse que
só havia tido cinco namorados. Por mais atraente, bem
vestida e deliciosa que fosse, ela tinha tido um número
relativamente pequeno de namorados para uma garota de
hoje. A influência repressora de sua família cubana rica e
conservadora (isto é, se ela estiver dizendo a verdade). E o
último namorado era um colega dela, um boboca que nem
sabia comê-la direito, que só se concentrava no seu próprio
orgasmo. Aquela velha história idiota de sempre. Um
homem que não era apreciador de mulheres.
Aliás, a moralidade dela não era coerente. Lembro-me de
que naquela época o poeta George O'Hearn, um homem
que foi casado com a mesma mulher a vida toda, tinha uma
namorada no bairro de Consuela, e ele estava lá, no centro
da cidade, tomando café-da-manhã com a namorada num
café, e Consuela o viu e ficou indignada. Reconheceu-o com
base na foto que aparece na contracapa do livro que ele
lançara pouco antes, que estava na minha mesa-de-
cabeceira, e ela sabia que eu o conhecia. Consuela me
visitou naquela noite. "Eu vi o seu amigo. Ele estava com
uma garota às oito da manhã, num restaurante, e estava
beijando ela — ele é casado." Em relação a tais coisas, ela era
capaz de pronunciar todos os lugares-comuns previsíveis,
embora agisse a contrapelo de todas as convenções ao ter
um caso com um homem trinta e oito anos mais velho do
que ela. Isso era inevitável, porque por dentro se sentia
insegura e perdida boa parte do tempo; no entanto, algo de
especial estava acontecendo com ela, uma coisa grande,
imprevista, provisória, que lhe alimentava a vaidade e a
autoconfiança, e que — por mais emocionante que fosse —,
ao que tudo indicava (e ao contrário do que acontecia
comigo), não a estava virando do avesso.
Consuela me disse, durante um dos meus interrogatórios,
que teve um namorado no tempo do colegial que sentia um
desejo fortíssimo de vê-la menstruar. Sempre que ela
começava a menstruar, tinha de telefonar para ele; o
namorado vinha correndo, ela ficava em pé à sua frente e
ele ficava vendo o sangue a lhe escorrer pelas coxas,
espalhando-se no chão. "Você fazia isso pra ele?", perguntei.
"Fazia." "E a sua família, a sua família tradicional? Você tinha
quinze anos, não podia ficar na rua depois das oito mesmo
no verão, e ainda assim você fazia isso? A sua avó era
duquesa", insisti, "e não largava o terço, e, no entanto, você
fazia isso?" "Eu não estava mais com quinze anos. Estava
com dezesseis." "Dezesseis. Entendi. Isso explica tudo. E
você fazia isso sempre?" "Sempre que ficava menstruada.
Todo mês", ela respondeu. "Quem era esse garoto? Você não
disse que nenhum garoto podia entrar no seu quarto? Quem
era ele? Quem é ele?"
Um rapaz de boa família. Cubano, também. Carlos Alonso.
Um menino todo certinho, bem-educado, diz ela, que vinha
pegá-la em casa de terno e gravata, nunca buzinava à porta
da casa dela, que entrava e falava com os pais dela, um
garoto discreto, de uma boa família que levava muito à sério
sua situação social. Tal como ocorre na família de Consuela,
a figura do pai é cercada de respeito, todos são muito
instruídos, todos são perfeitamente bilíngües, estudam nas
melhores escolas, freqüentam os melhores clubes, lêem El
Diário e o Bergen Record, adoram Reagan, adoram Bush,
detestam Kennedy, cubanos ricos de Nova Jersey que estão
à direita de Luís xiv, e Carlos telefona para ela e lhe diz: não
menstrue sem mim.
Imagine a cena. Depois da escola, no banheiro de uma casa
de subúrbio no condado de Bergen, os dois absortos no
enigma daquele sangramento como se fossem Adão e Eva.
Porque Carlos também está fascinado. Ele também sabe que
ela é uma obra de arte, aquela mulher entre poucas que é
uma obra de arte, de arte clássica, beleza em sua forma
clássica, porém viva, viva, e qual a reação estética à beleza
viva, hein, meus alunos? Desejo. Sim, Carlos é um espelho
para ela. Os homens sempre foram espelhos para ela.
Querem até vê-la menstruar. Ela é a magia feminina da qual
nenhum homem escapa. Envolta culturalmente em seu
passado cubano decoroso, porém sua vaidade inspira aquelas
liberdades. Ela permite aquelas liberdades porque se olha no
espelho e diz: "Outra pessoa tem que ver isso também".
"Me telefona", disse eu, "quando você for menstruar. Quero
que você venha aqui. Quero ver também."
Também. Para você ver como o ciúme é descarado, como o
desejo é febril — e foi assim que aconteceu uma coisa quase
desastrosa.
Porque ao mesmo tempo, naquele ano, eu estava tendo um
caso com uma mulher muito atraente, muito forte,
responsável, sem nenhuma vulnerabilidade debilitante,
nenhum vício, nenhuma loucura, uma inteligência
penetrante, confiável sob todos os aspectos, despida de
qualquer ironia e incapaz de ser espirituosa, porém uma
amante sensual, eficiente e atenta. Carolyn Lyons. Muitos
anos antes, em meados dos anos 60, ela também fora minha
aluna. Nas décadas seguintes, porém, nós não havíamos nos
procurado, e assim, quando nos encontramos por acaso na
rua, quando Carolyn estava indo para o trabalho, nos
abraçamos, um abraço bem apertado, como se fosse um
evento catastrófico, uma guerra mundial (e não o fato de ela
haver se mudado para a Califórnia para estudar direito), que
nos tivesse separado por vinte e quatro anos. Nós dois
ficamos nos elogiando mutuamente, como estávamos
conservados, relembramos às gargalhadas a loucura de uma
noite na minha sala na faculdade, quando ela tinha dezeno-
ve anos, fizemos inúmeros comentários ternos sobre o
passado, e ali mesmo combinamos jantar juntos no dia
seguinte.
Carolyn ainda estava bonita, com traços fortes e radiantes,
embora a pele abaixo dos olhos cinza-claros estivesse fina e
enrugada, menos, creio eu, por culpa da insônia crônica de
que ela sofria do que pelo efeito combinado de todos
aqueles desapontamentos que não são raros nas biografias de
mulheres profissionalmente bem-sucedidas já na faixa dos
quarenta, que na maioria das vezes comem no jantar o que é
entregue à porta de seus apartamentos em Manhattan
dentro de um saco plástico trazido por um imigrante. E seu
corpo agora ocupava mais espaço do que antes. Dois
divórcios, nenhum filho, um emprego exigente, que pagava
muito bem e exigia que ela viajasse ao estrangeiro com
freqüência — o efeito de tudo isso fora o acréscimo de uns
quinze quilos ao seu peso, e assim, quando fomos para a
cama, ela sussurrou: "Eu não sou mais a mesma", levando-
me a retrucar: "E você acha que eu sou?" E nada mais foi
dito sobre o assunto.
Quando era aluna de graduação, Carolyn tinha como
companheira de quarto, uma das locomotivas da faculdade,
uma líder carismática dos anos 60, uma espécie de Abbie
Hoffman de saias chamada Janie Wyatt, uma garota de
Manhasset que escreveu para mim uma encantadora
monografia de final de curso intitulada "Cem maneiras de
aprontar na biblioteca". Cito a frase de abertura: "A felação
na biblioteca é a própria essência, a transgressão santificada,
a missa negra no campus". Janie pesava menos de cinqüenta
quilos, tinha um metro e meio de altura, no máximo, uma
lourinha que dava a impressão de que você poderia levantá-
la com facilidade e jogá-la de um lado para o outro, e era a
rainha da sacanagem da universidade.
Naquele tempo, Carolyn tinha uma admiração profunda por
Janie. Carolyn me dizia: "Ela tem tantos casos! Ao mesmo
tempo. Você vai no apartamento de um aluno de pós-
graduação, ou de um instrutor jovem, e encontra as
calcinhas da Janie secando nas torneiras do chuveiro". Se
um aluno tinha vontade de fazer sexo, Carolyn me dizia, se
estava andando pelo campus e de repente tinha vontade de
fazer sexo, ele ligava para Janie. E se ela queria também, lá
iam os dois. Um garoto estava andando e parava de repente,
dizendo: "Acho que vou ligar para a Janie", e aí os dois não
apareciam na aula. Boa parte do corpo docente condenava
aquele comportamento sexual escandaloso, achando que era
sinal de burrice. Até mesmo alguns dos garotos — uma hora
diziam que ela era uma puta, e daí a pouco estavam na cama
com ela. Mas ela não era burra nem era uma puta. Janie era
uma pessoa que sabia o que estava fazendo. Ela se plantava à
sua frente, pequenina daquele jeito, as pernas ligeiramente
afastadas, o rosto bem sardento, cabelo louro curto, de cara
lavada, fora o batom bem vermelho, e um sorriso
escancarado, que confessava: é assim que eu sou, é isso que
eu faço, e se você não gosta, paciência.
Sob que aspecto Janie me deixava mais atônito? Sob muitos
aspectos — bem no início da revolução que ocorreu nas
universidades, havia muitas coisas que a distinguiam como
uma espécie nova e notável de criatura. Ela me deixou
atônito, curiosamente, ao fazer algo que pode não parecer
nada radical hoje em dia, quando as mulheres se tornaram
muito mais livres, algo que talvez não fosse nada em
comparação com sua atitude pública escandalosa e
desafiante. De tudo que ela fez, o que mais me deixou
atônito foi conquistar o homem mais tímido do campus,
nosso poeta. Naquele tempo, as relações amorosas entre
professores e alunos causavam espanto não apenas por
constituírem uma novidade, mas também por ocorrerem
abertamente, e elas causaram muitos divórcios, além do
meu. O poeta era um homem que não possuía os talentos
que os outros têm quando se trata de defender seus
interesses no mundo. Todo o seu egoísmo era canalizado
para a linguagem. Ele terminou morrendo de alcoolismo,
relativamente jovem; porém, sozinho num país permissivo
como o nosso, só mesmo a bebida para acabar com um
sujeito como ele. Casado, dois filhos, extremamente tímido,
menos quando estava diante de sua platéia deslumbrada,
falando sobre poesia. Arrancar das sombras aquele homem
era inimaginável. Menos para Janie. Numa festa. Muitos
alunos, de ambos os sexos, queriam se aproximar dele. As
meninas inteligentes eram todas meio apaixonadas por
aquele homem romântico, distanciado da vida, mas ele
parecia não confiar em ninguém. Até que Janie se
aproximou dele na festa, pegou-o pela mão e disse: "Vamos
dançar", e pronto, a partir daí o poeta estava atrelado a ela.
Ao que parecia, ele confiou em Janie logo de saída. A
pequenina Janie Wyatt: somos todos iguais, somos todos
livres, podemos aprontar o que quisermos.
Janie e Carolyn, com mais umas três ou quatro outras
rebeldes de classe alta, formavam um grupo que se intitulava
As Escrachadas. Eu nunca vira nada igual a essas meninas, e
não apenas porque elas se cobriam de andrajos como ciganas
e andavam descalças. Elas detestavam a inocência. Não
suportavam o controle. Não tinham medo de chamar a
atenção, e não tinham medo de ser clandestinas. Rebelar-se
contra sua condição era tudo para elas. Essas garotas e suas
seguidoras talvez tenham formado, em termos históricos, a
primeira onda de moças americanas totalmente
comprometidas com seu próprio desejo. Nada de retórica,
nada de ideologia, apenas o campo de jogo do prazer
abrindo-se para os corajosos. A coragem foi se firmando à
medida que elas se davam conta das possibilidades que
tinham a sua frente, quando entenderam que não estavam
mais sendo controladas, que não estavam mais submissas ao
antigo sistema, nem a qualquer outro — quando perceberam
que podiam fazer o que quisessem.
Foi uma revolução improvisada de início, a revolução dos
anos 60; a vanguarda universitária era minúscula, metade de
um por cento, talvez um e meio por cento, mas isso não
importava, porque a facção vibrante da sociedade logo foi
atrás dela. A cultura é sempre conduzida por sua ponta mais
estreita, e no caso das garotas desse campus a liderança era o
grupo das Escrachadas de Janie, as pioneiras de uma
mudança sexual completamente espontânea. Vinte anos
antes, no tempo em que eu era estudante, os campi eram
perfeitamente administrados. As normas dos dormitórios. A
supervisão inquestionável. A autoridade emanava de uma
fonte kafkiana distante — "a administração" —, e a
linguagem da administração parecia saída de santo
Agostinho. A gente tentava driblar todo esse controle, mas
até mais ou menos 1964 praticamente todo mundo que era
vigiado respeitava a lei, eram todos membros honrados
daquele grupo que Hawthorne denominava "os que gostam
de limites". Então ocorreu a explosão contida por tanto
tempo, o ataque irreverente aos padrões de normalidade e
ao consenso cultural do pós-guerra. Tudo que era
inadministrável irrompeu de súbito, e a transformação
irreversível da juventude teve início.
Carolyn jamais obteve a notoriedade de Janie, nem tam-
pouco a desejou. Participava dos protestos, das provocações,
da insolência divertida, mas com uma autodisciplina bem
dela, e jamais levou sua insubordinação a ponto de pôr em
risco seu futuro. Não me surpreende ver Carolyn tal como é
agora, na meia- idade — totalmente integrada ao mundo
empresarial, conformadamente careta. Escandalizar em
nome da causa da liberdade sexual nunca foi a vocação de
Carolyn. Nem isso, nem a rebeldia absoluta. Mas Janie —
permita-me essa digressão por um momento —, Janie foi à
sua maneira uma espécie de Simón Bolívar para as Consuela
Castillo do mundo. Sim, uma grande líder revolucionária
como o sul-americano Bolívar, cujos exércitos destruíram o
poder da Espanha colonialista — uma rebelde que não tinha
medo de lutar contra forças superiores, a libertadora que
enfrentou a moralidade reinante no campus e terminou por
destruir sua autoridade.
Hoje, a liberdade sexual das moças bem-nascidas que são
minhas alunas é como se fosse, para elas, garantida pela
Declaração de Independência, um direito que não lhes exige
muita coragem para dele se valerem, e que está em perfeita
harmonia com a busca da felicidade tal como foi concebida
pelos fundadores da nação na Filadélfia, em 1776. Na
verdade, a desinibição total de que se aproveitam agora as
Consuela e as Miranda, sem sequer se dar conta do que estão
fazendo, deriva da audácia das desavergonhadas e
subversivas Janie Wyatt dos anos 60, e da vitória
extraordinária que elas conquistaram pela força de um
comportamento atroz. A dimensão grosseira da vida ameri-
cana que já fora retratada nos filmes de gângster — foi isso
que Janie trouxe para o campus, porque era essa a
intensidade necessária para derrubar os defensores das
normas. Foi assim que elas enfrentaram o poder — usando a
linguagem suja delas, e não a dos poderosos.
Janie nasceu na cidade, mas foi criada nos subúrbios, em
Long Island, em Manhasset. Sua mãe professora ia trabalhar
todos os dias em Queens, onde a família morava antes de se
mudar para Manhasset, e onde ficava a escola em que ela
ainda lecionava na décima série. O pai ia para o trabalho na
direção oposta, para Great Neck, a três quilômetros de casa,
onde era sócio da firma de advocacia do pai de Carolyn. Foi
assim que as meninas se conheceram. Aquela casa vazia no
subúrbio excita todos os nervos sexuais de Janie. Ela entra
na puberdade no momento em que a música está mudando,
e é por isso que põe o volume no máximo. A esperteza de
Janie foi perceber, quando foi para o subúrbio, a vantagem
de morar lá. Quando menina, na cidade, jamais era livre,
jamais vivia solta como viviam os garotos. Mas lá em
Manhasset ela encontrou sua fronteira. Havia vizinhos,
também, mas eles não ficavam tão próximos quanto na
cidade. Janie chegava da escola e as ruas estavam vazias.
Eram como as cidadezinhas do Velho Oeste. Não havia nin-
guém por perto. Todos tinham saído. Assim, enquanto os
moradores não voltavam de trem, ela agitava seu pequeno
mundo. Trinta anos depois, uma Janie Wyatt reaparece em
forma degenerada como Amy Fisher, entregando-se
submissa ao mecânico de automóveis por conta própria; mas
Janie era inteligente e era uma agitadora nata — insubmissa,
descarada, uma surfista esperta deslizando sobre as ondas da
transformação social. Os subúrbios, onde as meninas, longe
dos perigos da cidade, não precisavam ser vigiadas
constantemente, onde os pais não ficavam o tempo todo
preocupados, os subúrbios foram a escola suíça de Janie em
território americano. Os subúrbios criaram o espaço em que
floresceu aquela educação a serviço do proibido. O
afrouxamento da vigilância, o espaço cada vez maior
concedido a toda aquela garotada que recebera do dr. Spock
as armas da desobediência — e o florescimento foi
completo. Até que escapou de todo e qualquer controle.
Foi essa transformação o tema da monografia de Janie. Foi
essa a história que ela contou. Os Subúrbios. A Pílula. A
Pílula que pôs a mulher em pé de igualdade com o homem.
A Música. Little Richard agitando tudo. A Batida do Pélvis.
O Carro. A garotada toda junta, rodando no Carro. A
Prosperidade. A Casa Vazia durante o dia. O Divórcio. Os
adultos com a cabeça em outro lugar. A Maconha. As
Drogas. O dr. Spock. Foi tudo isso que resultou na
Universidade Senhor das Moscas, o nome dado pelas
Escrachadas à nossa faculdade. A célula revolucionária de
Janie não colocava bombas em lugar nenhum. Janie não era
Bernardine Dohrn nem Kathy Boudin. Também não se
interessava pelas Betty Friedan do momento. As
Escrachadas não tinham nada contra a discussão social ou
política, mas isso era o outro lado da década. Havia naquela
turbulência duas tendências: de um lado, a ideologia da
libertação individual, que garantia ao indivíduo os direitos
orgiásticos em oposição aos interesses tradicionais da
comunidade; por outro lado havia também, muitas vezes
associada à primeira, uma consciência comum a respeito dos
direitos civis e contrária à guerra, a desobediência cujo
prestígio moral vinha de Thoreau. E, como essas duas
correntes se interligavam, era difícil desacreditar a orgia.
Porém a célula de Janie tinha a ver com prazer, não com
política. E essas células de prazer existiam não apenas no
nosso campus, mas também em todo o país; eram milhares
de rapazes e moças que nem sempre cheiravam muito bem,
com camisetas coloridas tié-dye, entregando-se juntos a
atividades imprudentes. Twist and shout, work it on out —
era esse, e não "A Internacional", o hino desses jovens. Uma
música lasciva, direta, fundo musical para trepadas. Fundo
musical para felações, o bebop do povo. E claro que a
música sempre foi sexualmente útil, dentro das limitações
impostas pelo momento. Até mesmo Glenn Miller, no
tempo em que as canções precisavam passar por um
romantismo barato para chegar ao sexo, lubrificava a si-
tuação na medida do possível. Depois o jovem Sinatra.
Depois o saxofone melífluo. Mas que limitações se
impunham às Escrachadas? Elas usavam a música tal como
usavam a maconha, como um combustível, como o
emblema de sua rebelião, uma incitação ao vandalismo
erótico. Na minha adolescência, na época das bandas de
swing, tudo que havia para criar um clima era a bebida. Já
para elas havia todo um arsenal de anti-inibidores
potentíssimos.
Ser professor dessas garotas teve um efeito pedagógico sobre
mim: ver como elas se vestiam, ver como jogavam para o
lado as boas maneiras e punham para fora o que tinham de
mais cru, ouvir a música delas com elas, fumar com elas
ouvindo Janis Joplin, sua Bessie Smith branca, sua Judy
Garland bagunceira e desbocada, ouvir com elas Jimi
Hendrix, seu Charlie Parker da guitarra, ficar desbundado
com elas e ouvir Hendrix tocando guitarra ao contrário,
invertendo tudo, retardando o ritmo, acelerando o ritmo, e
Janie cantando seu mantra lisérgico, "Hendrix e sexo,
Hendrix e sexo", e Carolyn recitando o dela, "Um homem
bonito de voz bonita" — ver a arrogância, o apetite, a
excitação daquelas Janie que não tinham o terror biológico
da ereção, que não tinham medo da transformação fálica do
homem.
As Janie Wyatt dos anos 60 sabiam como agir com homens
em estado de ereção. Elas próprias estavam em ereção, e por
isso sabiam como lidar com eles. O impulso aventureiro
masculino, a iniciativa masculina, não era um gesto rebelde
a exigir denúncia e julgamento, e sim um sinal sexual ao
qual se podia reagir positivamente ou não. Controlar o
impulso masculino e acusá-lo? Não era esse o sistema
ideológico que lhes fora instilado. Elas eram lúdicas demais
para aceitar a doutrinação da animosidade e do
ressentimento. A educação delas privilegiara os instintos.
Não estavam interessadas em substituir as velhas inibições,
proibições e instruções morais por novas formas de vi-
gilância, novos sistemas de controle, um novo conjunto de
crenças ortodoxas. Elas sabiam onde estava o prazer e
sabiam se entregar ao desejo sem medo. Sem medo do
impulso agressivo, no meio da tempestade transformadora
— e, pela primeira vez em território americano, desde que
as mulheres peregrinas da colônia de Plymouth foram
enclausuradas por um governo eclesiástico para protegê-las
das corrupções da carne e da pecaminosidade dos homens,
uma geração que tirava conclusões a partir de suas bocetas a
respeito da natureza da experiência e das delícias do mundo.
O bolívar não é a moeda da Venezuela? Pois bem, quando
for eleita a primeira mulher à presidência dos Estados
Unidos, eu gostaria que o dólar fosse substituído pelo Wyatt.
Janie merece. Ela democratizou o direito ao prazer.
Um parêntese. O posto comercial inglês estabelecido em
Merry Mount que tanto indignava os puritanos de Plymouth
— você já ouviu falar nele? Uma colônia que vivia do
comércio de peles, menor que Plymouth, uns cinqüenta
quilômetros a noroeste de Plymouth. Onde hoje fica
Quincy, Massachusetts. Homens bebendo, vendendo armas
aos índios, fazendo amizade com os índios.
Confraternizando com o inimigo, copulando com as índias,
que tradicionalmente ficavam na posição do cachorrinho
para serem possuídas por detrás. Um antro de paganismo em
plena Massachusetts puritana, onde a Bíblia era a lei.
Dançavam em volta de um mastro usando máscaras de
bichos, um culto realizado todos os meses. Hawthorne
escreveu um conto com base nesse mastro: o governador
Endicott manda uma milícia puritana chefiada por Miles
Standish para derrubar o tal mastro, um pinheiro enfeitado
com bandeiras e fitas coloridas, galhadas de alces e rosas,
com mais de vinte metros de altura. "A alegria e a
melancolia disputavam um império" — foi assim que
Hawthorne resumiu a situação.
Durante algum tempo, Merry Mount foi governada por um
especulador, um advogado, um personagem privilegiado e
carismático chamado Thomas Morton. Ele é uma espécie de
criatura silvestre, um personagem saído de Como quiseres,
um demônio selvagem de Sonho de uma noite de verão.
Shakespeare é contemporâneo de Morton; nasceu por volta
de onze anos antes dele. Shakespeare é o rock-'n'-roll de
Morton. Os puritanos de Plymouth o prenderam, depois os
puritanos de Salem o prenderam — puseram-no no
pelourinho, lhe impuseram multas, jogaram-no na prisão.
Ele acabou se exilando no Maine, onde morreu com
sessenta e muitos anos. Mas Morton não resistia à tentação
de provocá-los. Ele exercia um fascínio obsceno sobre os
puritanos. Porque quem não é absolutamente religioso acaba
virando um Morton. Os puritanos tinham pavor de que suas
filhas fossem levadas e corrompidas pelo alegre
miscigenador de Merry Mount. Um branco, um índio
branco, atraindo donzelas? Era mais sinistro ainda do que
peles-vermelhas furtando donzelas. Morton ia transformar
as filhas deles em Escrachadas. Era essa a principal
preocupação deles, isso e o fato de que Morton vendia
armas de fogo aos índios. Os puritanos eram obcecados com
a nova geração. Porque, se eles perdessem a nova geração,
aquele experimento inédito de intolerância ditatorial
fracassaria. A velha história americana: salvar os jovens do
sexo. Só que é sempre tarde demais. Tarde demais, porque
eles já nasceram.
Duas vezes Morton foi enviado à Inglaterra para ser julgado
por desobediência, mas a classe dominante inglesa e a Igreja
Anglicana não estavam interessadas nos separatistas da Nova
Inglaterra. Nas duas vezes, o tribunal inglês julgou o
processo improcedente, e Morton voltou para a Nova
Inglaterra. Os ingleses pensavam: Morton tem razão — nós
também não gostaríamos de tê-lo como vizinho, mas ele
não está obrigando ninguém a fazer nada, e esses puritanos
de merda são uns malucos.
No seu livro Of Plymouth Plantation, o governador William
Bradford tem muito a dizer sobre as iniqüidades de Merry'
Mount, aquela "prodigalidade desmedida", aquele "excesso
extravagante". "Eles se entregavam a uma grande
licenciosidade e levavam uma vida dissoluta, chafurdando
em tudo que há de profano." Refere-se aos confederados de
Morton como "bacantes insensatos". Para ele, Morton é "o
Mestre-sala da Anarquia", o mestre de "uma Escola de
Ateísmo". O governador Bradford é um ideólogo poderoso.
No século XVII, a religiosidade sabia escrever direitinho.
Tanto quanto a irreligiosidade. Morton publicou um livro
também, The new English Canaan, baseado nas observações
que fez, fascinado, da sociedade indígena — mas um livro
obsceno, segundo Bradford, porque fala também dos
puritanos: "dão grãs mostras de religião, porém não de
humanidade". Morton é direto. Não suprime nada. Tivemos
que esperar trezentos anos para voltar a ouvir a voz de
Thomas Morton nos Estados Unidos, sem censura, em
Henry Miller. O choque entre Plymouth e Merry Mount,
entre Bradford e Morton, entre ordem e desordem — o
prenuncio colonial da convulsão nacional que viria a
explodir trezentos e trinta e tantos anos depois, quando
finalmente nasceu a América de Morton, com miscigenação
e tudo.
Não, os anos 60 não foram uma aberração. Janie Wyatt não
foi uma aberração. Foi uma mortonista natural, no conflito
que vem se desenrolando desde o início. Na imensidão
inculta da América, a ordem há de reinar. Os puritanos eram
os agentes da ordem e da virtude piedosa e da razão certa, e
o outro lado era a desordem. Mas por que ordem e
desordem? Por que Morton não é o grande teólogo da
ausência de regras? Por que Morton não é visto
corretamente como o fundador da liberdade pessoal? Na
teocracia puritana, todos tinham liberdade de fazer o bem;
na Merry Mount de Morton, todos tinham liberdade — e
ponto final.
E houve muitos outros Morton. Aventureiros mercantis
sem a ideologia da santidade, gente que pouco se importava
se estava incluída entre os eleitos ou não. Vieram com
Bradford no Mayflower, emigraram depois em outros
navios, mas ninguém os menciona no Dia de Ação de
Graças, porque eles não suportavam aquelas comunidades de
santos e crentes em que nenhum desvio era permitido.
Nossos primeiros heróis americanos foram os opressores de
Morton: Endicott, Bradford, Miles Standish. Merry Mount
foi expurgada da versão oficial por ser a história não de uma
utopia de virtude, e sim de uma utopia de sinceridade. No
entanto, era o rosto de Morton que devia estar esculpido lá
no monte Rushmore. Isso vai acontecer também, no
mesmo dia em que o dólar passar a se chamar Wyatt.
A minha Merry Mount? Eu e os anos 60? Bom, levei a sério
a desordem daquela época relativamente breve, e tomei ao
pé da letra a palavra do momento, libertação. Foi então que
me separei da minha mulher. Para ser exato, ela me pegou
em flagrante com as Escrachadas e me expulsou de casa.
Ora, havia outros professores na minha universidade que
usavam cabelo comprido e roupas psieodélicas, mas para
eles aquilo era só uma espécie de férias. Esse tipo de
professor era uma mistura de voyeur com turista. De vez em
quando eles se aventuravam um pouco mais, mas foram
poucos os que ultrapassaram a trincheira e penetraram no
campo de batalha. Eu, porém, assim que me dei conta do
que significava aquela desordem, decidi extrair do momento
uma justificativa para mim, desfazer os compromissos
anteriores e os atuais e não fazer aquilo como uma atividade
secundária, não me colocar, como faziam muitos da minha
idade, acima ou abaixo dos acontecimentos, ou simples-
mente usá-los como afrodisíaco, mas seguir a lógica da
revolução até sua conclusão, e sem me tomar uma de suas
vítimas.
Isso não foi fácil. Só porque não existe nenhum memorial
em homenagem àqueles que pereceram no meio da
confusão, não se deve concluir que não houve fatalidades.
Não ocorreu nenhuma carnificina, mas perdas e danos não
faltaram. Não foi uma revolução toda certinha,
transcorrendo de modo digno no plano da teoria. Foi uma
bagunça infantil, absurda, descontrolada e radical, toda a
sociedade envolvida num tremendo quebra-quebra. Se bem
que havia um lado cômico também. Uma revolução que ao
mesmo tempo parecia o dia que se segue a uma revolução
— um grande idílio. As pessoas tiravam a cueca e andavam
por aí rindo. Muitas vezes era apenas uma farsa, uma farsa
pueril, porém uma farsa pueril com implicações ex-
traordinariamente profundas; em muitos casos não era nada
mais do que uma afirmação de poder adolescente, a maior e
mais poderosa geração do país a entrar na adolescência, com
todos os hormônios a mil, ao mesmo tempo. O impacto, no
entanto, foi revolucionário. As coisas mudaram para
sempre.
O ceticismo, a descrença, o bom senso em questões cultu-
rais e políticas que normalmente nos impede de mergulhar
em movimentos de massa, tudo isso atuava em mim como
um escudo eficiente. Jamais desbundei tanto quanto as
outras pessoas, nem jamais foi essa a minha intenção. Para
mim, o importante era despir a revolução de sua parafernália
imediata, seus aparatos patológicos, suas baboseiras retóricas
e aquela dinamite farmacológica que levava pessoas a se
jogarem das janelas — deixar de lado o que havia de pior e
aproveitar a idéia, dizer a mim mesmo: que grande
oportunidade, que oportunidade de fazer minha própria
revolução! Não há sentido em me conter só porque, por
mero acaso, eu nasci neste ano e não naquele.
Pessoas que tinham quinze, vinte anos menos do que eu, os
beneficiários privilegiados da revolução, podiam se dar ao
luxo de vivê-la de modo inconsciente. Havia uma tremenda
festa rolando, um paraíso imundo de desordem, e sem
pensar nem ter de pensar elas mergulhavam, normalmente
aceitando todas as trivialidades e todo o lixo. Mas eu tinha
de pensar. Eu estava ainda na flor da idade, e o país todo
estava passando por aquele momento extraordinário. Será
que posso fazer parte deste repúdio enlouquecido,
bagunçado e barulhento, desta destruição generalizada do
passado inibidor? Será que consigo dominar a disciplina da
liberdade, e não me entregar à imprudência da liberdade?
Como transformar a liberdade num sistema?
Paguei um preço alto para poder responder a essas pergun-
tas. Tenho um filho de quarenta e dois anos que me odeia.
Não vamos entrar nesse assunto. A questão é que a turba
não veio abrir a porta da minha prisão. A turba exaltada
estava lá, mas o fato é que eu tive que abrir a porta por conta
própria. Porque também eu era submisso e
fundamentalmente inibido, muito embora, apesar de casado,
saísse de casa de fininho para comer quem eu conseguisse
ganhar. Aquela espécie de libertação dos anos 60 era o que
eu tinha em mente desde o começo, mas no começo, no
meu começo, não havia nenhum apoio comuna! a um
projeto como aquele, nenhuma torrente social que viesse
me arrastar no seu embalo. Só havia obstáculos, entre eles
minha própria natureza domesticada, minhas origens
provincianas, todas as idéias de seriedade que haviam sido
incutidas em mim, das quais eu não podia me livrar sozinho.
Toda a trajetória da minha educação e minha formação
tivera o efeito de me fazer cair na ilusão de que seria
possível para mim assumir uma vida doméstica para a qual
eu não tinha nenhuma paciência. O homem de família,
consciencioso, casado, com 1 filho — e então a revolução
tem início. Tudo aquilo explode, e me vejo cercado de
garotas, e o que é que eu devia fazer — continuar casado,
tendo casos adúlteros, pensando: é assim que é, é dessa
maneira tolhida que se deve viver?
Não nasci na floresta, não fui criado por animais selvagens,
não descobri a liberdade de modo natural. Não nasci
sabendo nada disso. Também eu não tinha autoridade
suficiente para fazer às claras o que queria fazer. O homem
que está sentado à sua frente não é mais o homem que se
casou em 1956. Para adquirir uma consciência confiante de
minha própria autonomia, teria sido necessário receber uma
orientação que simplesmente não existia, pelo menos no
meu pequeno mundo; e foi assim que casar e ter um filho
me parecia, em 1956, a coisa natural a se fazer, mesmo no
meu caso.
No tempo em que eu era menino, nenhum homem tinha
liberdade na esfera sexual. Nela, todo homem era um
gatuno. Um ladrão de sexo. A gente "tirava um sarro". Sexo
furtivo. A gente adulava, implorava, elogiava, insistia — o
sexo implicava uma luta, contra os valores ou até mesmo
contra a vontade da garota. Segundo as regras, o homem
tinha que impor sua vontade a ela. Era assim que ensinavam
as garotas a preservar o espetáculo de sua virtude. A idéia de
uma garota normal se oferecendo, sem exigir um sem-
número de chateações, a quebrar o código e cometer o ato
sexual me teria deixado confuso. Porque ninguém, nem
homem nem mulher, fazia idéia de que existissem direitos
sexuais inatos. Isso era uma idéia inconcebível. Talvez, se
ela gostasse de você, ela topasse lhe bater uma punheta — o
que, na prática, não passava de uma forma de
automasturbação com a mão da garota no meio; mas a idéia
de que uma garota toparia fazer alguma coisa com você sem
todo aquele ritual de assédio psicológico, sem uma exortação
que exigisse uma tenacidade implacável e monomaníaca —
bom, isso era simplesmente impensável. Para conseguir ser
chupado, então, sem dúvida era necessário um esforço
sobre-humano. Em quatro anos de faculdade, só consegui
ser chupado uma única vez. Era o máximo que se podia
obter. Numa cidadezinha bem caipira nos montes Catskill,
onde meus pais tinham um pequeno hotel e onde entrei na
adolescência nos anos 40, só se podia ter uma relação sexual
consensual com uma prostituta ou então com a garota que
se namorava desde menino e que todos imaginavam que
fosse acabar se casando com você. E o preço a pagar era, na
maioria das vezes, acabar se casando com ela, mesmo.
Os meus pais? Eles eram pais. Eu recebi uma educação
sentimental, sim, falando sério. Quando meu pai, instigado
por minha mãe, finalmente resolveu conversar comigo
sobre sexo, eu já estava com dezesseis anos, foi em 1946, e
fiquei enojado ao me dar conta de que ele não sabia o que
me dizer, aquela criatura delicada nascida num cortiço no
Lovver East Side de Manhattan em 1898. Basicamente, o
que ele queria me passar era a típica mensagem de um bom
pai judeu daquela geração: "Você é um pêssego, uma
ameixa, você pode estragar sua vida...". É claro que ele não
sabia que eu já estava com uma doença venérea, que eu
pegara da garota vadia da cidade que dava para todo mundo.
Pois eram assim os pais naquela época remota.
Veja bem, o homem heterossexual que vai se casar é como
o seminarista que vai virar padre: ele faz um voto de
castidade, só que aparentemente só se dá conta disso três,
quatro ou cinco anos depois. A natureza do casamento
normal não é menos sufocante para um heterossexual viril
— dadas as preferências sexuais de um heterossexual viril —
do que para um gay ou uma lésbica. Se bem que agora até
mesmo os gays querem se casar. Casar na igreja. Diante de
duzentas, trezentas testemunhas. Espere só para ver o que
vai acontecer com o desejo que os levou a se tornarem gays.
Eu esperava mais dessa gente, mas pelo visto também eles
não têm senso de realidade. Pensando bem, deve ser por
causa da AIDS. A Queda e a Ascensão da Camisa-de-Vênus:
essa é a história sexual da segunda metade do século XX. A
camisinha voltou. E, junto com ela, tudo aquilo que foi
destruído nos anos 60. Qual é o homem que vai dizer que
realmente acha tão bom transar com camisinha quanto
transar sem? Qual é a graça? E por isso que o aparelho
digestivo, na nossa época, passou a disputar a supremacia
como órgão sexual com os outros orifícios. A necessidade
lancinante de uma mucosa. Para se livrar da camisinha, o
jeito é arranjar um parceiro constante, e por isso eles se
casam. Os gays militantes querem se casar e querem ser
aceitos abertamente pelo Exército. As duas instituições que
eu odiava. E pelo mesmo motivo: a arregimentação.
A última pessoa que levou essas questões a sério foi John
Milton, trezentos e cinqüenta anos atrás. Você já leu os
panfletos dele sobre o divórcio? Na época dele, Milton
ganhou muitos inimigos por causa desses textos. Estão aqui,
no meio dos meus livros, com as margens cheias de
anotações feitas nos anos 6o. "Teria nosso Salvador aberto
para nós esta porta perigosa e fortuita do matrimônio para
que ela se fechasse sobre nós como se fora o portão da
morte [...]?" Não, os homens não sabem nada — ou então
agem conscientemente como se não soubessem nada — a
respeito do lado duro e trágico daquilo que estão assumindo.
Na melhor das hipóteses, pensam com estoicismo: é, eu sei
que mais cedo ou mais tarde vou ter que abrir mão do sexo
nesse casamento, mas em troca vou conseguir outras coisas,
mais valiosas. Mas será que eles se dão conta da renúncia
que estão aceitando? Ser casto, viver sem sexo — bom,
como é que a gente vai aceitar as derrotas, as concessões, as
frustrações? Ganhando mais dinheiro, ganhando o máximo
de dinheiro possível? Fazendo tantos filhos quantos for
possível? Isso ajuda, mas não chega aos pés da outra coisa.
Porque a outra coisa se fundamenta na sua existência física,
na carne que nasce e na carne que morre. Porque é só
quando você fode que tudo aquilo de que você não gosta na
vida, tudo aquilo que derrota você na vida, é vingado da
maneira mais pura, ainda que efêmera. É só nesse momento
que você está vivo do modo mais limpo, que você é você
mesmo do modo mais limpo. Não é o sexo que é corrupção
— é o resto. Sexo não é só atrito e diversão superficial. E
também a maneira como nos vingamos da morte. Não se
esqueça da morte. Não se esqueça da morte jamais. É
verdade, também o sexo tem um poder limitado. Eu sei
muito bem quais são os limites desse poder. Mas me diga
uma coisa: existe poder maior?
Enfim, voltemos a Carolyn Lyons, quase vinte e cinco anos
e quinze quilos depois. No passado, eu adorava seu
tamanho, mas em pouco tempo aprendi a gostar do
tamanho novo, toda aquela monumentalidade na base
sustentando um torso esguio. Deixei que ela me inspirasse
como se eu fosse Gastou Lachai-se. Seu traseiro largo, suas
coxas pesadas me falavam de tudo que havia de feminino
nela, compactado como num fardo. E quando ela se mexia
debaixo de mim, a sutileza de sua excitação me inspirava
outra comparação pastoral: era como semear um campo que
se movesse lentamente. Carolyn, a flor estudante, eu
polinizava; Carolyn, aos quarenta e cinco anos de idade, era
preciso arar. A disparidade de escala entre a metade supe-
rior, sinuosa como outrora, e a inferior, agora tão
substanciosa, repetia uma tensão fascinante que havia no
modo como eu a percebia. Para mim, ela era um ser híbrido,
que combinava a pioneira inteligente, trêmula, ousada, que
levantava a mão a toda hora em sala de aula, a linda
dissidente em traje cigano, a amiga mais sensata de Janie
Wyatt, que sabia todas as respostas em 1965, e a executiva
autoconfiante que havia se tornado na meia-idade, que tinha
potencial para dominar qualquer um.
Era de se esperar que, com a passagem do tempo, e à medida
que a paixão tórrida alimentada pelo tabu da relação
professor-aluna cessasse de atiçar os prazeres permitidos do
presente, nossos encontros fossem perdendo seu atrativo
nostálgico. Porém um ano já se passara e isso não havia
acontecido. Graças à facilidade, à tranqüilidade, à confiança
física inerentes à retomada de uma velha parceria, e graças
ao realismo de Carolyn — o senso de proporção que as
indignidades da vida adulta, como era de se esperar, haviam
imposto às expectativas românticas de uma menina de classe
alta muito bem-dotada — eu ob- tinha recompensas que era
impossível extrair de Consuela, por mais que me refestelasse
em seus seios. Nossas noites harmoniosas e sensatas na cama
— programadas via celular, correndo de um lugar para
outro, para quando Carolyn pousasse no aeroporto Kennedy
vindo de uma de suas viagens de trabalho — eram agora
meu único ponto de contato com a minha autoconfiança
pré-Consuela. Eu nunca precisara tanto da saciedade
previsível que Carolyn me proporcionava, agora que ela fora
testada como mulher e sobrevivera estoicamente. Nós dois
obtínhamos exatamente o que queríamos. Era uma joint
venture, nossa parceria sexual, em que as duas partes
lucravam, fortemente marcada pela eficiência executiva de
Carolyn. Prazer e equilíbrio combinavam-se.
Então veio a noite em que Consuela retirou o tampão e fi-
cou em pé no meu banheiro, um joelho inclinado em
direção ao outro, sangrando, como o são Sebastião de
Mantegna, um fio de sangue escorrendo pelas coxas
enquanto eu olhava. Foi emocionante? Fiquei deliciado?
Mesmerizado? Sem dúvida, porém senti-me menino outra
vez. Eu havia decidido exigir o máximo dela, e quando ela
cedeu, desavergonhadamente, acabei intimidando a mim
mesmo. Tinha a impressão de que não restava nada a fazer
— para não ser totalmente humilhado por aquela
naturalidade exótica dela — senão ajoelhar-me e lamber suas
coxas até deixá-las limpas. O que ela permitiu que aconte-
cesse sem fazer nenhum comentário. Infantilizando-me
mais ainda. A personalidade absurda de quem se é. A
estupidez de ser você mesmo. A comédia inevitável de ser
alguém. Cada novo excesso me enfraquece mais ainda —
mas o que pode fazer um homem insaciável?
A expressão no rosto dela? Eu estava à seus pés. Eu estava
no chão. Meu rosto estava apertado contra sua carne, como
se fosse um bebê mamando, de modo que não me era
possível ver o rosto dela. Mas é como eu já disse: acho que
ela não estava intimidada. Não havia nenhuma emoção nova
e avassaladora para Consuela enfrentar. Depois que
passamos pelas preliminares e nos tornamos amantes, ela
parecia capaz de assimilar com facilidade tudo aquilo que sua
nudez provocasse em mim. Para ela, não fazia sentido um
homem casado como George O'Heam beijar uma garota
inteiramente vestida num lugar público às oito da manhã —
isso era o caos, para Consuela. Mas aquilo? Aquilo era apenas
uma diversão inédita. Era uma coisa natural, o destino físico
que ela assumia sem nenhum problema. Sem dúvida, a
atenção que lhe dava aquela autoridade cultural que estava
de joelhos à seus pés teria o efeito de fazê-la sentir-se
importante. Consuela passara a vida inteira atraindo rapazes,
sendo amada pela família, adorada pelo pai, de modo que o
autocontrole, a tranqüilidade, uma espécie de equanimidade
de estátua, era a forma que sua teatralidade assumia de modo
instintivo. Por algum motivo, Consuela estava livre daqueles
constrangimentos a que praticamente todo mundo está
sujeito.
Isso foi numa noite de quinta-feira. Na sexta à noite, Carol
veio direto do aeroporto aqui para a minha casa, e na manhã
de sábado eu estava sentado à mesa, já tomando o café-da-
manhã, quando ela entrou na cozinha com passos largos,
vindo do chuveiro, usando o meu roupão, segurando um
tampão ensangüentado semi-envolto em papel higiênico.
Primeiro ela me mostrou o tampão, depois jogou-o em cima
de mim. "Você anda trepando com outras mulheres. Me
conta a verdade", disse Carolyn, "e depois eu vou embora.
Não gosto disso. Já tive dois maridos que trepavam com
outras mulheres. Não gostei, e continuo não gostando.
Ainda mais com você. A gente conseguiu ter essa ligação —
e aí você faz isso. Você tem tudo como você quer — a
gente trepa sem estar num esquema matrimonial e sem
envolvimento romântico — e aí você me faz uma coisa
dessas. Não tem muitas como eu, não, David. Eu me
interesso pela mesma coisa que você. Eu compreendo as
coisas. Hedonismo harmonioso. Eu sou uma só em um
milhão, seu idiota — então como é que é que você me faz
uma coisa dessas?" Ela falava não com aquela raiva de esposa
fortalecida por um direito adquirido, e sim como uma
cortesã famosa, amparada por uma superioridade erótica
inquestionável. E estava coberta de razão: a maioria das
pessoas leva para a cama o que há de pior na sua biografia;
ela só levava o melhor. Não, Carolyn não estava zangada;
estava humilhada e arrasada. Mais uma vez, sua sexualidade
abundante havia sido considerada insuficiente por um
homem, esse ser insaciável em que não se pode confiar.
Disse ela: "Eu não vou brigar com você. Quero que você me
diga a verdade e depois você nunca mais vai me ver".
Tentei permanecer o mais tranqüilo possível, manifestando
apenas uma curiosidade não muito forte, ao perguntar:
"Onde é que você achou isso?". O tampão estava agora na
mesa da cozinha, entre a manteigueira e o bule de chá. "No
banheiro. No lixo." "Pois bem, não sei de quem é nem como
foi parar lá." "Por que você não põe dentro do seu hagel e
come?", sugeriu Carolyn. Limitei-me a dizer: "Eu comeria
com o maior prazer, se isso deixasse você satisfeita. Mas não
sei de quem é. Acho que eu devia primeiro descobrir de
quem é antes de comer'. "Eu não suporto isso, David. Eu
fico uma fera." "Tenho uma idéia.
Uma hipótese. O meu amigo George", expliquei, "tem a
chave do meu apartamento. Ele ganhou o Pulitzer, ele faz
leituras de poesia, dá aula na New School, conhece
mulheres, garotas, ele come todo mundo que aparece na
frente dele, e como naturalmente não pode levar essas
garotas para a casa dele, por causa da mulher e dos filhos, e
como encontrar um quarto de hotel em Nova York às vezes
é impossível, e como, além disso, ele vive duro, e como as
mulheres são casadas, muitas delas, e ele não pode ir pra
casa delas" — até agora, todas as palavras que eu dissera
eram verdadeiras —, "ele às vezes vem com uma mulher pra
cá."
Isso não era verdade. Era a mesma mentira durável que me
havia salvado a pele em outras ocasiões, ao longo dos anos,
em que foi descoberto algum objeto incriminativo
pertencente a outra mulher — se bem que nunca antes um
objeto tão primordial —, deixado por negligência ou de
propósito no meu apartamento. A mentira durável do
libertino típico. Nada de que eu possa me orgulhar.
"Quer dizer", disse Carolyn, "que o George trepa com todas
essas mulheres na sua cama." "Não com todas. Com algumas,
sim. Ele usa a cama do quarto de hóspedes. Ele é meu
amigo. O casamento dele não é nenhuma maravilha.
Quando vejo a vida que ele leva, me lembro do tempo em
que eu era casado. O George só se sente puro quando está
transgredindo. O lado obediente dele lhe dá engulhos.
Como é que eu posso dizer não?" "Você é meticuloso
demais para entrar numa dessas, David. Organizado demais.
Não acredito em nenhuma palavra que você está dizendo.
Tudo na sua vida é tão certinho, tudo é tão pensado, bem
pesado..." "Mais motivo ainda pra você acreditar..." "Alguém
esteve aqui, David." "Ninguém", argumentei. "Comigo, não.
Eu realmente não sei de quem é esse tampão." Era uma
situação tensa, feroz, mas mentindo descaradamente
consegui sobreviver, e por sorte ela não me abandonou
quando eu mais precisava dela. Carolyn só foi embora
depois, quando eu pedi.
Perdão, tenho que atender o telefone. Preciso atender.
Perdão...
Desculpe a demora. Acabou que não era o telefonema que
eu estava esperando. Desculpe eu deixar você sozinho desse
jeito, mas era o meu filho. Ele me telefonou para dizer que
ainda se sente muito insultado por tudo que eu disse no
nosso último encontro, e para saber se eu tinha recebido a
carta furiosa que ele me mandou.
Sabe, eu já esperava que não ia ser fácil a minha relação com
ele, até imaginava que ele ia começar a me odiar antes
mesmo que eu desse motivo. Eu sabia que cair fora seria
difícil, e que não daria para pular o muro se não estivesse
sozinho. Se tivesse levado meu filho comigo, se isso fosse
possível, não faria sentido, porque ele estava com oito anos
e eu não poderia ter levado a vida que queria levar. Tive que
trair meu filho, e não fui perdoado por isso, e nunca vou ser.
No ano passado ele se tornou adúltero aos quarenta e dois
anos de idade; desde então, deu de aparecer aqui em casa
sem avisar. Onze horas, meia-noite, uma, até duas da
madrugada, ele toca o interfone. "Sou eu. Abre a porta, me
deixa entrar!" Ele briga com a mulher, sai de casa batendo a
porta, pega o carro e, quando dá por si, está aqui. Depois que
ele ficou adulto, a gente passava anos sem se ver; às vezes
eram meses sem nem mesmo trocar um telefonema. Você
pode imaginar a minha surpresa quando ele apareceu aqui à
meia-noite pela primeira vez. O que é que você veio fazer
aqui?, eu pergunto. Ele está numa enrascada. Está em crise.
Está sofrendo. Por quê? Porque arranjou uma namorada.
Uma moça de vinte e seis anos que recentemente começou
a trabalhar para ele. Ele é dono de uma pequena companhia
que restaura obras de arte. Era o que a mãe dele fazia até se
aposentar: ela era restauradora. Ele entrou no campo da mãe
depois que concluiu o doutorado na New York University,
começou a trabalhar com ela, e agora a firma vai muito bem,
com dezoito empregados trabalhando num loft no SoHo.
Muito trabalho para galerias, colecionadores particulares,
leiloeiros, consultores da Sothebys, e por aí vai. Kenny é um
homem grandalhão, bonito, se veste de modo impecável,
fala com muita autoridade, escreve com inteligência, fala
francês e alemão fluentemente — no mundo da arte, sem
dúvida alguma ele causa uma tremenda impressão. Mas em
mim, não. Minhas deficiências estão na raiz do sofrimento
dele. E só ele chegar perto de mim que a ferida que há
dentro dele começa a sangrar. No trabalho, é um sujeito
ativo, saudável, seguro, sem nenhuma deficiência, mas basta
eu lhe dirigir a palavra que tudo que há de forte nele fica
paralisado. E basta eu ficar calado enquanto ele fala para
abalar tudo que faz dele uma pessoa eficiente. Eu sou o pai
que ele não consegue derrotar, o pai na presença de quem
seus poderes são subjugados. Por quê? Talvez por eu ter sido
um pai ausente. Um pai ausente e uma figura apavorante.
Ausente e carregado de significados. Eu traí meu filho. Isso
por si só já é motivo para que não possa haver uma relação
tranqüila entre nós. Não há nada na nossa história pessoal
que bloqueie aquele instinto filial que nos leva a achar que o
pai é o responsável por todas as nossas limitações.
Sou o pai Karamazov de Kenny, a força vil e monstruosa
pela qual ele, um santo de amor, um homem que tem de se
comportar bem o tempo todo, se sente injustiçado, e que
lhe inspira sentimentos parricidas, como se ele fosse todos
os irmãos Karamazov concentrados num só. Os pais
desempenham um papel lendário na cabeça dos filhos, e
descobri que a lenda que me foi atribuída é de caráter
dostoievskiano no final dos anos 70, quando recebi pelo
correio uma cópia de um trabalho que Kenny escreveu
quando estava no segundo ano em Princeton, um trabalho
nota-dez sobre Os irmãos Karamazov. Não foi difícil
perceber que a relevância do livro para ele era uma fantasia
exagerada de sua própria situação. Kenny era um menino
superexcitável, para quem tudo que lia tinha um significado
pessoal que apagava tudo o mais que dizia respeito à
literatura. Nessa época, a única coisa em que ele pensava era
o distanciamento entre nós dois, e o tema de seu trabalho
não poderia ter sido outra coisa que não o pai. Um libertino
depravado. Um velho solitário e libidinoso. Um velho que
andava com meninas. Um grande bufão que transformou
sua casa num harém de mulheres de vida duvidosa. Um pai
que, como você deve se lembrar, abandona o primeiro filho,
ignora todos os filhos, "pois um filho", escreve Dostoievski,
"teria atrapalhado suas orgias". Você não leu Os irmãos
Karamazov? Mas você tem que ler, mesmo que seja só para
ver o retrato divertido daquele pai vergonhoso, perdulário,
mau.
Sempre que Kenny me procurava, em desespero, na
adolescência, era sempre por causa do mesmo problema.
Continua sendo: alguma coisa ameaçou sua auto-imagem de
pessoa absolutamente correta. De uma maneira ou de outra,
eu o estimulava a relativizar essa idéia, temperá-la um
pouco, mas bastava que eu desse a entender tal coisa para
ele ter um acesso de fúria, me dar as costas e correr de volta
para a mãe. Lembro-me de que uma vez lhe perguntei —
ele estava com treze anos, tinha entrado para o secundário e
começava a dar sinal de que já era algo mais que uma
criança — se ele queria passar o verão comigo numa casa
que eu havia alugado nos montes Catskill, não muito longe
do hotel de meus pais. Era uma tarde de maio, e estávamos
assistindo a uma partida de beisebol. Mais um daqueles
domingos tensos que passávamos juntos. Aquele convite
desconcertou Kenny de tal modo que ele foi obrigado a ir
correndo até o banheiro do Shea Stadium para vomitar.
Antigamente, no Velho Mundo, os pais iniciavam os filhos
na vida sexual levando-os a um puteiro, e foi como se eu
tivesse proposto isso. Ele vomitou porque, se passasse o
verão comigo, talvez encontrasse uma das minhas garotas.
Talvez duas. Talvez mais. Porque, na cabeça dele, a minha
casa era um puteiro. No entanto, aquele acesso de vômito
significava não apenas que eu lhe dava nojo, mas também,
mais ainda, que aquele nojo lhe dava nojo. Por quê? Porque
ele queria aquilo desesperadamente, porque, até mesmo
tendo um pai que lhe inspira raiva e frustração, os
momentos que ele passa na companhia dele são
importantíssimos, porque ele anseia tremendamente pela
figura do pai. Isso foi no tempo em que ele ainda não havia
cauterizado a ferida se transformando num moralista.
No último ano de faculdade Kenny suspeitou, com razão,
que havia engravidado uma colega. De início, ficou tão
alarmado que não conseguiu contar para a mãe, e por isso
me procurou. Eu lhe garanti que, se de fato a moça estivesse
grávida, ele não teria que se casar com ela. Afinal, não
estávamos em 1901. Se a moça estava decidida a ter o filho,
como ela já estava dizendo, então a escolha era dela, não
dele. Eu era a favor do direito de escolha, mas não achava
que ela devia impor a escolha dela a Kenny. Insisti que ele
devia dizer à garota que, aos vinte e um anos de idade,
recém-formado, ele não queria um filho, não podia
sustentar um filho, não tinha nenhuma intenção de se
tornar responsável por um filho. Se, aos vinte e um anos de
idade, ela queria assumir aquela responsabilidade sozinha,
era uma decisão que ela teria que tomar por conta própria.
Ofereci a Kenny dinheiro para pagar o aborto. Disse que eu
estava do lado dele, e insisti para que não cedesse. "Mas e se
ela não quiser mudar de idéia?", ele me perguntou. "E se ela
se recusar terminantemente?" Respondi que, se ela não
caísse na realidade, teria de arcar com as conseqüências.
Afirmei que ninguém podia obrigá-lo a fazer o que ele não
queria fazer. Disse-lhe que eu gostaria que algum homem
com autoridade me tivesse dito isso quando eu estava
prestes a cometer aquele exato erro. Insisti: "Quando a gente
vive num país como o nosso, com uma Constituição e uma
Declaração de Independência que dão tanta ênfase à questão
da emancipação, que garantem a liberdade individual,
quando a gente vive num sistema que é indiferente ao modo
como você age desde que você não esteja infringindo ne-
nhuma lei, quase todo o sofrimento que a gente acaba tendo
é culpa nossa. Seria diferente se você estivesse vivendo na
Europa ocupada pelos nazistas ou na Europa comunista ou
na China de Mao Tsé-tung. Lá eles fabricam o sofrimento
pra você; você não precisa fazer nada de errado pra não ter
vontade de sair da cama de manhã. Mas aqui, onde não há
totalitarismo, um homem como você tem que se virar pra
arranjar um motivo pra sofrer. Você, ainda por cima, é
inteligente, bonito, teve instrução, sabe falar bem — você
foi feito pra dar certo num país como este. O único tirano
que pode pegar você aqui são as convenções, e elas
realmente podem fazer um estrago. Leia Tocqueville, se
você ainda não leu. Ele não está ultrapassado, principalmen-
te quando fala em 'homens obrigados a passar pela mesma
peneira'. A questão é que você não deve achar que tem de
virar beatnik ou boêmio ou hippie num passe de mágica pra
escapar das garras das convenções. Pra conseguir isso, não é
preciso adotar um comportamento exagerado, nem se vestir
de modo estrambólico, coisas que não combinam com o seu
temperamento e com a educação que você teve. Nada disso.
A única coisa que você precisa fazer, Ken, é encontrar a sua
força. Você tem essa força, eu sei que você tem — ela só
está imobilizada porque você está se vendo numa situação
totalmente nova. Se você quer viver de modo inteligente
imune à chantagem dos slogans e das regras que as pessoas
seguem automaticamente, é só você encontrar a sua
própria..." Et cetera, et cetera. A Declaração de
Independência. A Carta dos Direitos. A Oração de
Gettysburg. A Proclamação de Emancipação. A Décima
Quarta Emenda. Todas as três emendas da Guerra da
Secessão. Eu falei sobre tudo. Peguei o Tocqueville para
mostrar a ele. Pensei: ele está com vinte e um anos,
finalmente podemos conversar. Banquei o Polônio de
Hamlet. O que eu estava dizendo a Kenny, afinal, não era
nada de tão extravagante, pois isso foi em 1979. E também
não teria sido tão extravagante se alguém tivesse tentado
enfiar isso na minha cabeça quando eu precisava ouvir essas
coisas. Uma nação concebida em liberdade — é só uma
questão de senso comum americano. Mas, quando terminei,
sabe o que ele fez? Começou a enumerar para mim as
qualidades da moça. Eu perguntei: "E as suas qualidades?"
Mas ele parecia não me ouvir, ele simplesmente começou a
dizer outra vez como ela era inteligente, como ela era
bonita, e engraçada, e como a família dela era fantástica, e
dois meses depois casou-se com ela.
Conheço todas as objeções que um rapaz puro e moralista é
capaz de levantar contra as afirmações de soberania pessoal.
Conheço todos os rótulos admiráveis que são dados às
pessoas que não afirmam sua soberania. Pois bem, o
problema de Kenny é que ele precisa ser admirável, custe o
que custar. Ele morre de medo de ouvir uma mulher lhe
dizer que ele não é admirável. "Egoísta" é a palavra que mais
lhe inspira pavor. Seu egoísta filho-da-puta. Ele tem pavor
de ser acusado disso, e por isso ele acusa os outros de
egoísmo. Pois é, Kenny sempre age de modo admirável,
qualquer que seja a situação, e foi por esse motivo que
quando o filho mais velho dele, Todd, entrou no colegial e a
minha nora disse que eles precisavam ter mais filhos, ele se
tornou pai mais três vezes nos seis anos seguintes.
Justamente quando ele já estava de saco cheio da mulher.
Como Kenny é um sujeito admirável, ele não pode largar a
mulher para ficar com a namorada, não pode largar a
namorada para ficar com a mulher, e, naturalmente, não
pode largar os filhos pequenos. E largar a mãe dele, Deus
nos livre. A única pessoa que Kenny pode largar sou eu.
Mas ele cresceu ouvindo uma lista de queixas a meu
respeito, e assim, depois que me divorciei, nos anos
seguintes, toda vez que eu estava com ele era necessário
defender minha posição — no jardim zoológico, no cinema,
no estádio de beisebol, eu tinha que demonstrar que não sou
o que a mãe dele diz que sou.
Desisti porque sou, sim, o que ela diz. Meu filho é o que sua
mãe fez dele, e quando chegou o momento de Kenny entrar
para a faculdade desisti de ficar disputando alguém em quem
eu causava engulhos. Desisti porque não estava disposto a
afetar aquela carência feminina contra a qual Kenny não
tem defesas. Aquela carência feminina patética da qual meu
filho se tornou totalmente dependente. Durante aqueles
anos em que ele viveu sozinho com a mãe, cultivando esse
vício arcaico — o qual, aliás, no tempo em que a mulher era
dependente, transformava os melhores homens em escravos
—, eu e ele sempre passávamos juntos duas semanas no
verão, no hotelzinho dos meus pais. Para mim, era um
alívio, porque meus pais assumiam o comando. Eles estavam
sempre morrendo de saudade de atividades familiares, e por
causa da nossa história comum eu e Kenny nem tentávamos
mais nos aproximar. Mas depois que os avós morreram,
depois que ele entrou na pós-graduação, já casado, já com
um filho... E, no entanto, ele sempre me telefonava quando
nascia mais um filho. Muito simpático da parte dele,
levando-se em conta seus sentimentos em relação a mim.
Sei que perdi, sei disso há muito tempo, é claro. Mas Kenny
perdeu também. As conseqüências de eu ser quem sou têm
efeitos prolongados. Essas catástrofes familiares são
dinásticas.
E, no entanto, de repente, uma vez por mês, uma vez a cada
seis semanas, ele vem me procurar para se esvaziar de tudo
que o está envenenando. Com os olhos cheios de medo, o
coração cheio de raiva, a voz exprimindo cansaço; até
mesmo as roupas elegantes dele já não lhe caem bem. A
esposa está infeliz e zangada por causa da namorada, a
namorada se queixa e se ressente da esposa, e os filhos têm
medo e choram no meio da noite. Quanto ao sexo conjugal,
um dever horrendo que ele cumpre estoicamente, nem
mesmo isso Kenny tem conseguido fazer. Multiplicam-se as
discussões, os problemas intestinais, os panos quentes, as
ameaças, as contra-ameaças. Mas quando pergunto: "Então
por que é que você não vai embora?", ele me diz que, se
fosse embora, sua família seria destruída. Ninguém
sobreviveria, todos entrariam em crise, o sofrimento geral
seria demais. Não, todo mundo tem que continuar grudado
em todo mundo.
O que fica implícito é que Kenny é um homem muito mais
honrado do que o pai, que o abandonou aos oito anos de
idade. A vida dele tem um significado que a minha não tem.
Esse é o trunfo dele. E aí que ele domina e é superior a
mim.
"Kenny", eu digo, "por que é que você não encara seu pai
finalmente como uma realidade? Você precisa encarar a pica
do seu pai. Essa é a realidade do pai. A gente mente pras
crianças sobre essas coisas. Não se pode ser franco com uma
criança a respeito da pica do pai. Que muitos pais não
conseguem se segurar num casamento — isso é uma coisa
que a gente tem mesmo que esconder dos pequeninos. Mas
você já é homem feito. Você já está sabendo das coisas.
Você conhece todos esses artistas. Conhece todos esses
marchands. Não é possível que não saiba como é que os
adultos vivem a vida deles. Será que isso ainda é o maior
escândalo imaginável?"
A gente só faz trocar acusações, ainda que não da maneira
tradicional. Fora das páginas de Dostoievski, a história
tradicional é justamente o contrário: o pai é a autoridade
repressora, o filho é incorrigível, e o castigo flui de cima
para baixo. No entanto, ele continua vindo aqui, e sempre
que ele toca a campainha eu o deixo entrar. "Quantos anos
tem a sua namorada?", pergunto. "E ela está tendo um caso
com um homem casado que tem quarenta e dois anos, que
tem quatro filhos e que é o patrão dela? Então ela também
não é nenhum modelo de virtude. O único modelo de
virtude é você. Você e a sua mãe." Só você ouvindo Kenny
falar sobre essa garota. Ela é química, mas também é
formada em história da arte. E toca oboé, ainda por cima.
Que maravilha, digo a ele. Até mesmo em matéria de
adultério você é melhor do que eu. Aliás, ele nem usa a
palavra "adultério". O adultério dele é diferente do das
outras pessoas. O grau de compromisso é tão elevado que
nem se pode chamar de adultério. E este o meu problema:
eu não me comprometo. Os meus adultérios não foram
sérios o bastante para ele.
Pois bem, nisso ele tem razão. Fiz questão de que eles não
fossem sérios. Mas, para ele, o adultério é uma maneira de
recrutar uma nova esposa. Kenny foi conhecer a família
dela. Era o que ele estava me dizendo agora mesmo, que ele
pegou o avião e foi com a namorada ontem conhecer a
família dela. "Você foi até a Flórida", perguntei a ele, "foi e
voltou no mesmo dia pra conhecer os pais dela? Mas isso é
adultério. O que é que os pais dela têm a ver com isso?" Ele
me disse que no início, no aeroporto, os pais dela foram
muito frios, muito desconfiados, mas quando todo mundo se
sentou em volta da mesa para jantar eles já estavam dizendo
que o adoravam. Como se ele fosse filho deles. Todo mundo
adora todo mundo. Valeu à pena a viagem. "E você
conheceu a irmã da sua namorada e os filhinhos lindos
dela?", perguntei. "Conheceu o irmão dela e os filhinhos
lindos dele?" Ah, Kenny vai trocar esse xilindró de delegacia
que é o casamento atual dele por uma penitenciária federal
de segurança máxima. Mais uma vez, está indo direto para a
gaiola. Eu lhe digo: "Kenny, você quer que eu lhe dê au-
torização e aprovação? Pois bem, eu lhe dou de bom grado
autorização e aprovação". Mas isso para ele não basta. Não é
o suficiente ele ter o único pai em todo esse país enorme
que aprova o que ele está fazendo, que é capaz até de ajudá-
lo a juntar os trapos com mais um rabo-de-saia que tem uma
família maravilhosa na Flórida. Além disso, é preciso que eu
reconheça a superioridade dele. "E tem também o oboé",
acrescentei. "Não é incrível? Aposto que nas horas vagas ela
escreve poesia. Aposto que os pais dela escrevem também."
Credenciais, credenciais, credenciais. Tem homem que não
consegue trepar se a mulher não estiver com um chicote na
mão, em cima dele. Tem homem que não consegue trepar
se a mulher não estiver com uniforme de camareira. Uns só
conseguem trepar com anãs, outros só com criminosas,
outros só com cabras. Meu filho só consegue trepar se a
mulher tiver as credenciais morais necessárias. Eu digo a ele:
isso é uma tara como outra qualquer, não é melhor nem pior
que as outras. Você tinha mais era que assumir isso e não
ficar se achando tão especial.
Tome aí. A carta que ele temia que tivesse se extraviado. A
data é a noite da semana passada em que ele me visitou.
Como se nesse último ano que passamos trocando insultos
eu já não tivesse recebido dez outras iguais a essa. "Você é
cem vezes pior do que eu pensava." Isso aí é só o começo.
Isso é só um aperitivo. Depois vem isto. Deixa que eu leio
para você. "Você insiste. E incrível. As coisas que você me
disse. Você tem necessidade de se afirmar o tempo todo, de
provar que a sua opção de vida foi correta e a minha foi um
ato de covardia, um ato grotesco, um erro. Eu venho
procurar você completamente consternado, e você me faz
uma agressão psicológica dessas. Os anos 60 — então tudo
que ele é hoje é porque levou Janis Joplin a sério. Sem Janis
Joplin ele não teria se tornado, aos setenta anos de idade, o
velho mais patético que se pode imaginar. Aquele cabelo
branco comprido, a papada de peru disfarçada pelo foulard
— quando é que o senhor vai começar a passar ruge nas
faces, Herr von Aschenbach? Você faz idéia da cara que
tem? Faz idéia? Toda aquela dedicação às Coisas Elevadas.
Defendendo a causa do belo na TV educativa. Lutando
sozinho em defesa dos padrões culturais numa sociedade de
massa. Mas e os padrões da decência? É claro que você não
teve coragem de permanecer na academia e se tornar um
homem sério; você nunca foi sério, nem por um minuto em
toda a sua vida. Onde estará Janie Wyatt agora? Quantos
casamentos fracassados? Quantas crises nervosas? Em que
hospital psiquiátrico ela estará internada há não sei quantos
anos? Essas garotas que estão na faculdade não deviam se
proteger de você? Você é um argumento vivo em favor da
necessidade de protegê-las. Eu tenho duas filhas, suas netas,
e se eu pensasse que as minhas filhas iam estudar numa
faculdade em que o professor era um homem como meu
pai..."
E por aí vai... até que... deixa eu ver... ah, sim, aqui ele é
mais forte. "Meus filhos estão assustados, gritando, porque
os pais deles estão discutindo e o pai deles está tão zangado
que vai embora da casa. Você sabe como eu me sinto ao ver
meus filhos, quando chego em casa à noite? Você sabe o
que é ouvir seus filhos chorando? Mas como você poderia
saber? E eu protegia você. Sim, eu protegia você. Eu tentava
não acreditar que minha mãe tinha razão. Eu defendia você,
brigava por você. Eu tinha que fazer isso, porque você era
meu pai. Na minha cabeça, eu tentava encontrar desculpas
para você, tentava compreendê-lo. Mas os anos 60? Aquela
explosão de infantilidade, aquela regressão coletiva, vulgar e
desmiolada, é isso que explica tudo e desculpa tudo? Será
que você não consegue encontrar um álibi melhor? Será que
seduzir alunas indefesas, colocar os interesses da sua própria
sexualidade à frente de todas as outras pessoas — será que
isso é mesmo necessário? Não, o que é necessário é
permanecer num casamento difícil e criar um filho e
enfrentar as responsabilidades da vida adulta. Todos aqueles
anos, eu pensava que minha mãe estava exagerando. Mas
não. Mal sabia eu, até hoje à noite, o que ela foi obrigada a
aturar. Você a fez sofrer tanto, e para quê? Os fardos que
você impôs a ela — e a mim, ainda menino, a obrigação de
ser tudo neste mundo para minha mãe —, e para quê? Para
você poder ser 'livre'? Eu não suporto você. Nunca
suportei."
Mês que vem ele volta para dizer que não me suporta. E no
mês seguinte também. E no outro mês também. No final das
contas, não perdi meu filho. O pai dele acabou finalmente se
tornando um recurso valioso. "Sou eu. Abre a porta, me
deixa entrar!" Kenny não consegue ver a situação em que
está com auto-ironia, mas acho que ele compreende mais do
que dá a entender. Então ele não compreende nada? Não é
possível. Burro ele não é. Não é possível que esteja até hoje
traumatizado pela infância sofrida. Ainda está, sim? E, pode
ser. Você provavelmente tem razão. Ele vai ficar fervendo
por causa disso o resto da vida. Mais uma entre tantas
ironias: um homem de quarenta e dois anos de idade, ainda
dependente da existência de um menino de treze, ainda
atormentado por isso. Talvez tudo continue tal como era no
dia daquela partida de beisebol. Ele morre de vontade de
pular fora. Morre de vontade de fugir da mãe, de ficar com o
pai, mas a única coisa que consegue fazer é vomitar as tripas.
Meu caso com Consuela durou pouco mais de um ano e
meio. Só voltamos a sair para jantar fora ou ir ao teatro umas
poucas vezes. Ela tinha medo da imprensa, medo de parar
na Page Six, e por mim tudo bem, porque sempre que eu a
via tinha vontade de comê-la na mesma hora, sem ter que
assistir a uma merda de uma peça antes. "Você sabe como é
a imprensa, sabe o que eles fazem com as pessoas, se eu for
lá com você..." "Tudo bem, não se preocupe", eu
concordava, atencioso, "a gente fica em casa." Ela acabava
dormindo aqui, e tomávamos o café-da-manhã juntos. Nós
nos víamos uma ou duas vezes por semana, mesmo depois
do incidente do tampão, Carolyn jamais ficou sabendo da
existência de Consuela. Ainda assim, eu nunca me sentia
tranqüilo com ela; nunca conseguia parar de pensar nos
cinco rapazes com quem ela havia trepado antes de mim,
dois dos quais, depois fiquei sabendo, eram irmãos — um foi
amante dela aos dezoito anos, o outro quando ela estava
com vinte; irmãos cubanos, filhos de uma família rica do
condado de Bergen, os Villareal, e mais uma causa para
sofrimento. Se não fosse a influência tranqüilizadora de
Carolyn e das noites maravilhosas que passávamos juntos,
não sei o que teria sido de mim.
A agitação de possuir Consuela — que revezava com a
agitação de não possuir Consuela — só terminou quando ela
concluiu o mestrado e deu uma festa em Nova Jersey, na
casa dos país. É claro que foi bom para nós dois o caso
acabar, mas não estava nos meus planos que acabasse, e
depois fiquei arrasado. Passei quase três anos entrando e
saindo da depressão. Por mais atormentado que eu estivesse
com ela, fiquei cem vezes mais atormentado por tê-la
perdido. Foi um período terrível, que não terminava nunca.
George O'Hearn foi fantástico. Era ele que ficava
conversando comigo durante as muitas noites em que mi-
nha depressão estava insuportável. Além disso, eu tinha o
piano, e foi ele que me salvou.
Já comentei que, ao longo dos anos, comprei muitas parti-
turas, literatura para piano, e assim eu tocava o tempo todo,
quando havia terminado meu trabalho. Toquei todas as
trinta e duas sonatas de Beethoven no decorrer daqueles
anos, nota por nota, para tirar Consuela da minha cabeça.
Ninguém deveria ser obrigado a ouvir uma gravação dessas
minhas interpretações, uma gravação, aliás, que não existe.
Algumas passagens eu tocava no andamento correto, mas a
maioria delas, não, porém eu seguia em frente assim mesmo.
Uma maluquice, mas foi assim. Quem toca música para
teclado tem a sensação de que está reproduzindo o que os
compositores fizeram, de modo que é como entrar na
cabeça deles, até certo ponto. Não na parte mais misteriosa,
onde a música tem origem, mas assim mesmo você não está
apenas absorvendo uma experiência estética de modo
passivo. Você, à sua maneira desajeitada, de algum modo
está produzindo essa experiência, e foi assim que tentei me
refugiar da perda de Consuela. Toquei as sonatas de Mozart.
Toquei a música para piano de Bach. Toquei essas músicas e
as conheço bem, o que não é a mesma coisa que dizer que
sei tocá-las bem. Toquei peças inglesas renascentistas de
Byrd e outros compositores da época. Toquei Purcell.
Toquei Scarlatti. Tenho todas as sonatas de Scarlatti — são
quinhentas e cinqüenta. Não vou dizer que toquei todas,
mas toquei uma boa parte delas. A música para piano de
Haydn. Agora eu a conheço de cor e salteado. Schumann.
Schubert. E tudo isso, veja lá, com um mínimo de formação
musical. Mas foi uma época terrível, uma época estéril, e as
opções eram estudar Beethoven e entrar na cabeça dele ou
então ficar dentro da minha própria cabeça, revivendo todas
as cenas de Consuela de que eu me lembrava — revivendo o
pior de tudo, a temeridade que foi não ir à comemoração do
mestrado dela.
Mas, você entende, é que jamais consegui me dar conta de
que ela era uma pessoa comum. Essa garota que tira o
tampão para mim — então ela não quer mais saber de mim
só porque não fui à comemoração do mestrado dela? Uma
coisa tão poderosa terminar assim, sem mais nem menos —
isso para mim é inacreditável. O modo abrupto como tudo
termina, eu fico revivendo isso, pensando que a explicação é
que Consuela não queria que a coisa continuasse. Por quê?
Porque ela não sentia desejo por mim, jamais sentiu, estava
só fazendo uma experiência comigo, só testando o poder de
seus seios. Mas Consuela não estava tendo o que ela queria.
E o que ela queria, quem lhe dava eram os irmãos Villareal.
Claro. Eles estavam todos na festa, reunidos em torno dela,
insistentes, morenos, belos, musculosos, educados, jovens, e
ela se deu conta: o que é que eu estou fazendo com esse
velho? Ou seja, eu tinha razão desde o início — e, portanto,
foi bom tudo ter terminado. Ela foi até onde queria ir. Se eu
tivesse insistido em tocar em frente, só ia conseguir me
torturar ainda mais. A coisa mais inteligente que fiz foi não
ir à festa. Porque eu estava cedendo, cedendo sem me dar
conta do que estava fazendo. O anseio jamais passava, nem
mesmo no tempo em que ela era minha. A emoção básica,
como já disse, era o anseio. Continua sendo anseio. Não há
como me livrar desse anseio, da sensação de que sou sempre
um suplicante. É isso: eu sinto anseio quando estou com ela,
e também quando estou sem ela. Então, quem foi que
terminou o caso? Fui eu, ao não ir à festa, ou ela,
aproveitando o fato de que não fui à festa? Era essa a
discussão infinita que não saía da minha cabeça, e era por
isso que, para não ficar o tempo todo pensando na perda de
Consuela — para não ficar dramatizando de modo falso
aquele único acontecimento, a festa, como a chave de tudo
que eu fizera errado —, que tantas vezes não havia outro
jeito senão me levantar no meio da noite e ficar tocando
piano até o dia nascer.
O que aconteceu foi que ela me convidou para ir a Nova
Jersey, para comemorar o mestrado dela, e fui obrigado a
dizer que ia; mas quando estava atravessando a ponte
pensei: os pais dela vão estar lá, os avós, os parentes
cubanos, todos os velhos amigos de infância vão estar lá,
aqueles irmãos vão estar lá, e eu vou ser apresentado a todos
como o professor que aparece naquele programa de
televisão. E seria simplesmente ridículo, depois de um ano e
meio, eu ter que fingir que era apenas um mentor simpático
para aquela moça, principalmente na presença daqueles
putos dos Villareal. Não, eu não tinha mais idade para essas
coisas, e por isso parei na ponte, já chegando a Nova Jersey,
e telefonei para ela, para dizer que meu carro havia pifado e
por isso eu não poderia ir. Uma mentira óbvia — meu carro
na época era um Porsche que ainda não tinha dois anos — e
assim, naquela mesma noite, lá de Nova Jersey, ela me
mandou um fax, usando o aparelho dc fax dos pais dela, uma
carta que não foi a mais explosiva que já recebi na minha
vida, mas assim mesmo eu jamais poderia imaginar Consuela
incontrolável daquele jeito.
O fato, porém, é que jamais consegui imaginar Consuela, de
jeito nenhum. Que outras coisas eu não saberia a respeito
dela por estar cego, cego de tanta obsessão? Ela gritava
comigo na carta: "Você está sempre bancando o velho sábio
que sabe tudo". Gritava: "Vi você hoje mesmo na televisão,
fazendo o papel daquele que sempre sabe tudo, sabe o que é
bom e o que não é bom em matéria de cultura, sabe o que as
pessoas devem ler e o que elas não devem ler, entende tudo
sobre música e arte, e então, para comemorar esse momento
importante da minha vida, eu dou uma festa, quero dar uma
festa maravilhosa, quero que você esteja comigo, você, que
é tudo para mim, e você não vem". E olhe que eu já havia
mandado um presente para ela, e flores também, mas ela
estava furiosa, indignada...
"Doutor Sabe-Tudo, a grande autoridade sobre todos
assuntos, tão arrogante, ensinando a todo mundo o que
pensar e o que fazer! Me dá asco!"
Foi assim que terminou a carta. Nunca antes, nem mesmo
de brincadeira, Consuela havia se dirigido a mim em
espanhol. Uma expressão comum, me dá asco.
Isso tudo foi há seis anos e meio. O mais estranho foi que
três meses depois recebi um cartão-postal dela, vindo de
algum país do Terceiro Mundo com um hotel de cinco
estrelas — Belize, Honduras, um lugar assim —, um cartão-
postal totalmente simpático. Depois, seis meses se passaram
e ela me telefonou. Estava se candidatando a um emprego
na área de publicidade, o tipo de emprego, disse ela, que eu
não gostaria que ela aceitasse, mas será que eu escreveria
uma carta de recomendação para ela assim mesmo? Como
ex-professor dela. Escrevi a carta. Depois recebi um cartão-
postal (um nu de Modigliani, do MOMA), dizendo que ela
conseguiu o emprego e que estava muito feliz. Depois disso,
nada. Uma noite encontrei o nome dela no novo catálogo
telefônico de Manhattan, com o endereço de um apar-
tamento no Upper East Side, que certamente o pai comprou
para ela. Mas voltar não era uma boa idéia, e resolvi não
tentar.
Entre outras coisas, porque George não me deixava. George
O'Hearn, embora fosse quinze anos mais moço do que eu,
era meu confessor e conselheiro para as coisas deste mundo.
Foi meu amigo mais próximo durante o ano e meio em que
estive com Consuela, e foi só depois que tudo terminou que
ele me disse o quanto estava preocupado, o quanto me
vigiava à medida que eu ia abrindo mão de meu realismo,
meu pragmatismo, meu ceticismo, não pensando em outra
coisa que não a possibilidade de perdê-la. Foi ele que não
me deixou responder ao cartão-postal, o que eu estava
morrendo de vontade de fazer, por imaginar que estava
sendo convidado a fazê-lo por aquela cintura fina e
cilíndrica, aquelas cadeiras largas, aquelas coxas de-
licadamente curvas, aquele fogo ardente que assinala os
pêlos da encruzilhada do púbis — por aquele nu que é a
marca registrada de Modigliani, aquela garota acessível e
longilínea que ele pintava ritualmente, e que Consuela
escolhera para me enviar, tão impudicamente, pelo correio.
Um nu cujos seios, fartos, caindo um pouco para os lados,
poderiam muito bem ter sido copiados dos dela. Um nu
representado de olhos fechados, protegido, tal como
Consuela, apenas por seu próprio poder erótico, ao mesmo
tempo, tal como Consuela, essencial e elegante. Uma
mulher nua de pele dourada, inexplicavelmente adormecida
sobre um abismo negro veludoso, o qual, no estado de es-
pírito em que me encontrava, associei ao túmulo. Uma linha
longa e ondulada, lá está ela, deitada, à sua espera, imóvel
como a morte.
George não queria nem mesmo que eu escrevesse a carta de
recomendação. "Com essa garota você sempre vai ser
indefeso. Você nunca vai poder dar as cartas. Tem alguma
coisa nela", disse George, "que enlouquece você, que
sempre vai enlouquecer você. Se não cortar essa ligação de
uma vez por todas, essa coisa vai acabar destruindo você.
Com ela, você não está mais satisfazendo uma necessidade
natural. Isso é patologia, na forma mais pura. Olha", disse-
me ele, "encare a coisa como um crítico, do ponto de vista
profissional. Você violou a lei do distanciamento estético.
Você sentimentalizou a experiência estética proporcionada
por essa garota — você personalizou, sentimentalizou a
experiência, perdeu o distanciamento que é essencial pra
você poder fruir. Você sabe quando foi que isso aconteceu?
Foi naquela noite em que ela tirou o tampão. O dis-
tanciamento estético necessário desabou não quando você
ficou vendo o sangue escorrer — até aí tudo bem, tudo
ótimo —, mas quando você não conseguiu se conter e se
ajoelhou diante dela. Mas por que diabo você foi fazer isso?
O que é que está por trás dessa comédia, uma garota cubana
pegar um sujeito como você, o professor do desejo, e fazer
você beijar a lona? Beber o sangue dela? Eu diria que foi aí
que você abriu mão de uma posição crítica independente,
Dave. Diz ela: você tem que me adorar, adorar o mistério da
deusa que sangra; e você vai e obedece. Você topa tudo.
Você lambe o sangue. Consome. Digere o sangue. Ela
penetra você. Depois disso, qual vai ser a próxima, hein,
David? Beber a urina dela? Daqui a quanto tempo você vai
estar implorando pelas fezes dela? Não sou contra isso por
não ser higiênico. Nem por ser nojento. Sou contra porque
isso é paixão, é amor. A única obsessão que todo mundo
quer ter: o 'amor'. As pessoas pensam que quando se
apaixonam elas se completam? A união platônica das almas?
Pois eu não concordo. Eu acho que você está completo
antes de se apaixonar. E o efeito do amor é fracionar você.
Antes você está inteiro, depois você racha ao meio. Ela era
um corpo estranho que havia se introduzido na sua
integridade. E que você passou um ano e meio tentando
incorporar. Mas você só vai conseguir ficar inteiro depois
que expelir esse corpo estranho. Ou bem você se livra dele
ou bem você o incorpora, distorcendo a si próprio. E foi isso
que você fez, e foi por isso que você enlouqueceu.
É difícil concordar com essas palavras, e não apenas por
causa das tendências mito-poéticas de George; é
simplesmente difícil atribuir tamanho potencial desastroso a
uma pessoa aparentemente tão pouco intimidadora quanto
Consuela, essa moça de boa família bem criada e protegida.
Mas George não arredava pé. "O compromisso é uma
desgraça, é o seu inimigo. Joseph Conrad: aquele que forma
um vínculo está perdido. E um absurdo você estar aí com a
cara que está. Você já provou. Não basta? A gente só faz
mesmo é provar, de tudo que existe, é ou não é? E só o que
a vida nos permite, é só isso que nós conhecemos da vida.
Só uma prova. Mais nada."
George tinha razão, é claro, e estava apenas repetindo o que
eu já sabia. Aquele que forma um vínculo está mesmo
perdido, o compromisso é mesmo meu inimigo, e assim
sendo recorri ao que Casanova denominava de "o remédio
dos estudantes": a masturbação. Eu me imaginava sentado ao
piano, com ela nua em pé ao meu lado. Uma vez
representamos ao vivo essa exata fantasia, de modo que eu
estava ao mesmo tempo relembrando e imaginando. Eu lhe
pedira que tirasse as roupas e me deixasse ficar olhando para
ela, tocando ao mesmo tempo a sonata em dó menor de
Mozart, e ela fez o que pedi. Não sei se toquei melhor do
que costumava tocar, mas a questão não era essa. Numa
outra fantasia recorrente, eu digo a ela: "Isto aqui é um
metrônomo. A luzinha pisca e ao mesmo tempo faz um ba-
rulho periódico. Só isso. Você ajusta o andamento tal como
você quer. Não são só amadores como eu, mas até mesmo
os profissionais, até mesmo os grandes concertistas, têm o
problema de correr demais". Mais uma vez, imagino
Consuela em pé ao lado do piano, as roupas caídas a seus
pés, tal como na noite em que, inteiramente vestido, toquei
a sonata em dó menor, o movimento lento, uma serenata à
nudez dela. (Às vezes ela me aparecia em sonhos
identificada apenas como "K. 457", como se fosse uma
espiã.) "Isto é um metrônomo de quartzo", explico. "Não é
aquela coisa triangular que você talvez já tenha visto, com
um pêndulo, um pêndulo com um peso na ponta, e uma
coluna de números. Os números são os mesmos que apa-
recem no pêndulo", e quando ela se aproxima para examinar
o aparelho, os seios dela cobrem minha boca e abafam por
um momento a pedagogia — a pedagogia que é meu maior
poder sobre Consuela. Meu único poder.
"São números padronizados", explico. "Se você ajustar para
sessenta, as batidas vão corresponder aos segundos. Isso
mesmo, como as batidas de um coração. Deixa eu sentir as
batidas do seu coração com a ponta da língua." Ela deixa que
eu faça isso, tal como deixa acontecer tudo que acontece
entre nós — sem comentário, quase sem cumplicidade. Eu
acrescento: "Aliás, antes de inventarem esse aparelho, por
volta de 1812 — quer dizer, aquele antigo —, não havia
números de andamento nas partituras. O que eles diziam
nos tratados gerais sobre andamento era que se devia tomar
o pulso como allegro. Diziam: 'Tome seu pulso e use-o
como andamento'. Deixa eu tomar seu pulso com a cabeça
do meu pau. Senta no meu pau, Consuela, e vamos brincar
com o tempo. Ah, não é um allegro muito rápido, não, não
é? Não. Pois bem, nenhuma peça de Mozart tem números
de andamento, e por quê, por quê? Como você se lembra,
quando Mozart morreu...". Mas neste momento atinjo o
orgasmo, a fantasia pedagógica termina, e pelo menos por
um momento não estou febril de desejo. É Yeats, não é?
"Consome meu coração; febril de desejo / E acorrentado a
um animal agonizante / Já não sabe o que é." Yeats. Isso
mesmo. "Aprisionado pela música sensual", e por aí vai.
Eu tocava Beethoven e me masturbava. Tocava Mozart e me
masturbava. Tocava Haydn, Schumann, Schubert, e me
masturbava com a imagem dela na cabeça. Porque não
conseguia esquecer os peitos, os peitos maduros, os
mamilos, esquecer o jeito dela de cobrir meu pau com os
peitos, e me acariciar assim. Mais um detalhe. Um último
detalhe, e depois eu paro. Esses detalhes estão ficando meio
técnicos, mas este é importante. Era este o detalhe que fazia
de Consuela uma obra-prima de volupté. Ela é uma das
poucas mulheres que já conheci que gozam fazendo a vulva
pulsar para fora, uma coisa involuntária, como se fosse o
corpo macio, íntegro, borbulhante, de um molusco. O que
me pegou de surpresa da primeira vez. Você sente isso, e
tem impressão de que é uma fauna de outro mundo, um ser
marítimo. Aparentada à ostra, ao polvo, à lula, uma criatura
que vive nas profundezas, de milênios atrás. Normalmente
você vê a vagina e pode abri-la com as mãos, mas no caso de
Consuela ela se abria em flor, a boceta emergia de seu
esconderijo ela própria. Os lábios internos são expelidos para
fora, inchados, é muito excitante, aquela forma untuosa,
inchada, é estimulante para o tato e excitante de se ver. O
segredo exposto num êxtase. Schiele daria o braço direito
para poder pintar aquilo. Picasso o transformaria num
violão.
Você quase goza só de vê-la gozar. Consuela olhava para o
outro lado quando isso acontecia com ela. Os olhos dela
reviravam, você só via o branco dos olhos, e isso também
era uma visão e tanto. Toda ela era uma visão e tanto. Por
mais que eu sofresse por ciúme, humilhação, insegurança
incessante, eu sempre me orgulhava quando fazia Consuela
gozar. Às vezes você nem se preocupa se a mulher goza ou
não: a coisa simplesmente acontece, a mulher parece fazer o
orgasmo acontecer sozinha, não é responsabilidade do
homem. Com outras mulheres, isso não é tão importante; já
basta a situação em si, a excitação da situação, isso não tem
importância. Mas com Consuela a responsabilidade era
claramente minha, e era sempre, sempre, uma coisa que me
dava orgulho.
Tenho um filho de quarenta e dois anos de idade que é
ridículo — que é ridículo porque é meu filho, preso naquele
casamento porque eu pulei fora do meu, por causa da
importância que isso teve para ele, e porque ele transformou
sua própria vida num protesto contra a minha. O ridículo é
o preço que ele paga por ter se tornado tão Telêmaco
quando ainda era tão pequeno, o heróico defensor da mãe
abandonada. No entanto, durante meus três anos de
depressão intermitente eu fui mil vezes mais ridículo do que
Kenny. O que é que quero dizer com ridículo? O que é
ridículo? E abrir mão da própria liberdade voluntariamente
— essa é a definição do ridículo. Se a sua liberdade é
arrancada à força, nem é preciso dizer que você não é
ridículo, só é ridículo para aquele que arrancou sua
liberdade. Mas todo aquele que dá sua liberdade de graça,
que está morrendo de vontade de dar sua própria liberdade,
penetra no reino do ridículo que traz à mente a peça mais
famosa de Ionesco, e que é uma fonte de comédia em toda a
literatura. A pessoa que é livre pode ser louca, burra,
repugnante, infeliz justamente por ser livre, mas não é
ridícula. Ela tem uma dimensão enquanto ser. Eu já era
ridículo quando estava com Consuela. Mas e nos anos em
que fui prisioneiro do monótono melodrama da perda? Meu
filho, cujo desprezo por mim o transformou num exemplo
para mim, decidido a ser responsável onde eu era relapso,
incapaz de se libertar de qualquer pessoa, principalmente de
mim — meu filho pode até nem querer outra coisa, mas eu
ando por aí dizendo para todos que não caio nessa, e mesmo
assim o corpo estranho se introduz. O ciúme se introduz. O
apego se introduz. O eterno problema do apego. Não, nem
mesmo uma foda pode permanecer totalmente pura e
protegida. E é nisso que eu fracasso. Eu, o grande
propagandista da foda, não consigo me sair melhor do que
Kenny. E claro que não existe a espécie de pureza com que
Kenny sonha, mas também não existe a pureza com que eu
sonho. Quando dois cachorros trepam, parece haver pureza.
Eis ali, pensamos, uma foda pura, entre animais. Mas, se
pudéssemos conversar com eles, provavelmente iríamos
acabar constatando que até mesmo entre os cães existem,
em forma canina, essas distorções malucas do anseio, do
enrabichamento, da possessividade, até mesmo do amor.
Essa necessidade. Essa confusão. Será que não pára nunca?
Depois de algum tempo, eu já nem sei mais qual é o objeto
desse anseio desesperado. Os peitos dela? A alma? A
juventude? A simplicidade mental dela? Talvez seja algo pior
do que isso — talvez agora, que estou chegando perto da
morte, eu esteja secretamente ansiando por não ser livre.
O tempo passa. O tempo passa. Tenho outras namoradas.
Namoradas que são alunas. Antigas namoradas que
aparecem, vinte, trinta anos depois. Algumas já passaram
por vários divórcios, e algumas se dedicaram tanto a suas
carreiras que nem tiveram oportunidade de se casar. As que
ainda estão sozinhas me telefonam para se queixar dos
encontros marcados com desconhecidos. Elas odeiam esses
encontros, acham os relacionamentos impossíveis, o sexo
um risco de vida. Os homens são narcisistas, desprovidos de
senso de humor, malucos, obsessivos, prepotentes,
grosseiros, ou então são lindos, viris e implacavelmente
infiéis, ou então são indefesos, ou são impotentes, ou são
apenas burríssimos. As que estão na faixa dos vinte não têm
esses problemas porque ainda recorrem às amizades do
tempo da faculdade, pois a escola, é claro, é o maior fator de
socialização, mas as mulheres um pouco mais velhas,
quando chegam aos trinta e tantos anos, estão tão ocupadas
com o trabalho que muitas delas, segundo me dizem,
apelam para casamenteiros profissionais na tentativa de
encontrar um homem. E a uma certa idade param de
conhecer pessoas novas. Disse-me uma das desiludidas:
"Quem são essas pessoas novas quando a gente finalmente
conhece uma delas? São as mesmas pessoas antigas com
máscaras. Elas não têm nada de novo. São pessoas".
Os casamenteiros cobram por um ano de filiação, e garan-
tem um certo número de encontros durante esse período.
Alguns cobram duzentos dólares, outros cobram dois mil
dólares, e falaram-me de um em particular, especializado em
"pessoas de qualidade", que promove encontros — até vinte
e cinco num período de dois anos — por nada menos do
que vinte e um mil dólares. Achei que tinha entendido mal
quando me disseram isso, mas não, o preço é mesmo vinte e
um mil dólares. E muito duro para uma mulher ter que se
submeter a uma transação como essa na tentativa de
encontrar um homem para se casar com ela e lhe dar filhos;
não admira que elas apareçam tarde da noite no apartamento
de seu velho ex-professor e às vezes, de tão solitárias que
estão, passem a noite com ele. Recentemente uma delas
esteve aqui tentando se recuperar do trauma de ter sido
abandonada no meio de uma refeição no primeiro encontro
com um homem que, segundo ela, era "um tipo chegado a
férias de alto risco, um superaventureiro desses que caçam
leões e praticam surfe radical". "A barra está pesada, David",
comentou ela. "O problema não são os encontros, é tentar
arrumar um encontro. Aceitei estoicamente o
casamenteiro", acrescentou, "mas nem isso dá certo."
Elena, a bondosa Elena Hrabovsky, que ficou grisalha
prematuramente, talvez por culpa desses encontros
arranjados. Disse-lhe eu: "Deve ser uma coisa muito tensa,
os homens desconhecidos, os silêncios, até mesmo a
conversa", e ela me perguntou: "Você acha que tem sentido
uma pessoa bem-sucedida como eu passar por uma coisa
dessas?". Elena é oftalmologista, uma mulher que veio de
baixo, que emergiu da classe operária graças a um esforço
sobre-humano. "A vida passa cada rasteira na gente", disse-
me ela, "que você acaba ficando sempre na defensiva, até
que um dia você diz: ah, chega. É uma pena, mas você não
tem mais gás. Alguns desses homens são mais atraentes do
que a média. Instruídos. A maioria ganha bem. E eu nunca
sinto atração por esse tipo de homem", diz ela. "Por que será
que eu acho esses caras tão chatos? Talvez porque eu seja
uma chata", disse ela. "Eles vêm me pegar de BMW. Com
música clássica tocando. Me levam nuns restaurantezinhos
muito legais, e eu fico o tempo todo pensando: Ah, meu
Deus, por favor, me leve logo pra casa. Eu quero filhos, eu
quero família, eu quero um lar", disse Elena, "mas embora
eu tenha resistência física e emocional pra passar seis, sete,
oito horas em pé na sala de operação, eu não agüento mais
essa humilhação. Tem uns que ficam bem impressionados
comigo, pelo menos isso." "E têm mais é que ficar, mesmo.
Você é uma especialista em retinas. Você é cirurgiã
oftalmologista. Graças a você, as pessoas não ficam cegas."
"Eu sei. Estou falando de rejeição clara", disse ela. "Isso eu
não tenho estrutura pra agüentar." "Ninguém tem", disse eu,
mas meu argumento não adiantou muito. "Eu já tentei e
tentei", prosseguiu ela, quase chorando, "não é, David?
Dezenove encontros?" "Meu Deus", concordei, "sem dúvida
você tentou."
Naquela noite Elena me deu muito trabalho. Ficou até o dia
nascer, quando saiu afobada para se aprontar lá mesmo no
hospital. Nem eu nem ela conseguimos dormir quase nada,
porque fiquei o tempo todo lhe passando um sermão sobre a
necessidade de desistir da idéia de formar um casal,
enquanto ela ficou o tempo todo escutando, tal como a
aluna aplicada e séria que era quando a conheci, tomando
nota de tudo que eu dizia em sala de aula. Mas se a ajudei ou
não, não sei. Elena é inteligente, competentíssima, mas para
ela o desejo de ter um filho é instintivo. F, isso, a idéia
desencadeia o instinto da propagação, e isso é que é o
patético da história. Mas continua sendo instintivo: sem
pensar, você dá o próximo passo. Uma coisa tão primitiva,
numa pessoa tão sofisticada. Mas foi assim que ela concebeu
a vida adulta há muitos, muitos anos, muito antes de se
tornar adulta, muito antes de se apaixonar a sério pelas
doenças da retina.
O que mais eu disse a ela? Por que você pergunta? Você
também está precisando ouvir meu sermão sobre a
infantilidade do desejo de formar um casal? É claro que é
uma infantilidade. A vida em família é infantil, hoje mais do
que nunca, quando o ethos é criado acima de tudo pelas
crianças. É pior ainda quando não há filhos. Porque aí o
adulto infantil substitui a criança. A vida em casal e a vida
em família ressaltam o lado infantil de todas as pessoas
envolvidas. Por que é que eles têm de dormir noite após
noite na mesma cama? Por que é que precisam telefonar um
para o outro cinco vezes por dia? Por que é que têm que
estar sempre um com o outro? Aquela deferência forçada
certamente é uma coisa infantil. Aquela deferência
antinatural. Numa dessas revistas, li outro dia um artigo
sobre um casal famoso, ligado à mídia, eles estão casados há
trinta e quatro anos, como era maravilhoso eles terem
aprendido a suportar um ao outro. Orgulhoso, o marido
disse ao repórter: "Eu e minha mulher costumamos dizer
que o sinal de um bom casamento é ter a língua cheia de
marcas de dentes". Quando estou com pessoas assim, me
pergunto: por que é que elas estão se punindo? Trinta e
quatro anos. É admirável o grau de rigor masoquista dessas
pessoas.
Tenho um amigo em Austin, um escritor de muito sucesso.
Casou-se jovem em meados dos anos 50, depois se
divorciou no início dos anos 70. Casou-se com uma mulher
decente, com quem teve três filhos decentes — e resolveu
pular fora. E não saiu num momento de histeria ou de
insensatez, não. Foi uma questão de direitos humanos.
Liberdade ou morte. Pois bem, depois do divórcio foi morar
sozinho, e em liberdade ficou extremamente infeliz. Assim,
logo em seguida se casou de novo, dessa vez com uma
mulher com quem não planejava ter filhos, uma mulher que
já tinha um filho na faculdade. Uma vida matrimonial sem
filhos. Pois bem, o sexo acabou, naturalmente, dois anos
depois, e, no entanto, esse homem tinha sido um adúltero
contumaz durante todo o primeiro casamento, e escrevia
muito sobre sexo. Sozinho ele poderia começar a aproveitar
abertamente tudo aquilo que era obrigado a fazer escondido
no tempo em que era casado. E, no entanto, quando se vê
livre das amarras matrimoniais, ele na mesma hora se sente
infeliz e acha que vai ficar infeliz pelo resto da vida. Está
livre, em pleno gozo de sua liberdade, e não faz idéia de
onde está. A única coisa que consegue fazer é voltar ao
estado que antes lhe parecia insuportável, muito embora
agora não esteja mais sob o efeito do imperativo lógico de
querer se casar para ter filhos, formar uma família, et cetera
e tal. A delícia da clandestinidade? Não é de se desprezar. O
melhor que se pode dizer do casamento é que ele é um
estimulante infalível para as emoções dos subterfúgios
sensuais. Mas meu amigo tinha necessidade de uma coisa
mais básica para a sua segurança do que o drama cotidiano
do adúltero, que é ter de atravessar um rio de mentiras. Não
foi para recuperar esse prazer que ele voltou a se casar,
muito embora tenha retomado os prazeres antigos logo que
voltou à condição de marido. O problema, em parte, é que a
condição do homem emancipado nunca teve um porta-voz
social nem um sistema educativo. É uma condição que não
tem status social porque as pessoas não querem que tenha.
No entanto, as circunstâncias desse sujeito tinham tudo para
que ele levasse suas prerrogativas até as últimas
conseqüências, mesmo que fosse só por uma questão de
dignidade. Mas ceder, ceder, ceder? Conciliar, conciliar,
conciliar? Sonhando pular fora todo dia? Não, isso não é
uma maneira digna de ser homem. Nem — disse eu a Elena
— de ser mulher.
Se consegui convencê-la? Não sei. Acho que não. E você, eu
convenci? Mas por quê, por que você está rindo? Qual é a
graça? Meu didatismo? Vá lá: todo mundo tem um lado
ridículo. Mas o que é que eu posso fazer? Eu sou crítico, sou
professor — o didatismo é o meu destino. Argumentos e
contra-argumentos — é assim que se faz a história. Ou bem
você impõe suas idéias ou bem aceita as idéias que lhe são
impostas. Queira ou não queira, o dilema é esse. Sempre
existem forças em oposição, e assim, a menos que você
goste muito de se subordinar, está sempre em guerra.
Veja bem, eu não sou um homem desses nossos tempos.
Isso está na cara. Isso você ouve na minha voz. Atingi
minha meta usando um instrumento grosseiro. Ataquei a
golpes de martelo a vida doméstica e aqueles que a
protegem. E também a vida de Kenny. Ninguém deve se
espantar se continuo martelando, e se a minha insistência
me transforma numa figura cômica, uma espécie de ateu da
aldeia, para você, que é um homem dos nossos tempos, que
não precisou brigar por nada do que estou dizendo.
Bom, vou esperar o riso terminar e vou continuar minha
aula. Porque se o prazer, a experiência e a idade não são
mais assuntos de interesse... ah, ainda são? Então pense de
mim o que você quiser, mas espere até eu terminar.
Foi agora no Natal. O Natal de 1999. Sonhei com Consuela
naquela noite. Eu estava sozinho, e sonhei que estava acon-
tecendo alguma coisa com Consuela, e resolvi telefonar para
ela. Mas quando consultei a lista telefônica não encontrei
mais seu nome lá, e porque George não me permitia voltar
àquela agitação que podia até acabar comigo, eu não havia
anotado o endereço no Upper East Side que tinha
encontrado no catálogo anos antes, logo depois que ela
conseguiu arranjar seu primeiro emprego. Pois bem, uma
semana depois, na noite de ano-novo, eu estava sozinho na
minha sala, sem nenhuma garota, sozinho por opção,
tocando piano, porque tinha decidido ignorar a
comemoração do milênio. Desde que você não esteja em
estado de anseio, a solidão às vezes é um prazer e tanto, e
era esse prazer que eu estava planejando para aquela noite.
Minha secretária eletrônica estava ligada, e mesmo em dias
normais não costumo atender quando o telefone toca: em
vez disso, fico ouvindo para saber quem é. Naquela noite
em particular, eu estava decidido a não ouvir ninguém que
viesse me falar sobre "a virada do milênio", e assim, quando
o telefone toca, eu continuo tocando tranqüilamente até
que me dou conta de que é a voz dela que estou ouvindo.
"Alô? David? Sou eu. Consuela. Faz muito tempo que a
gente não se fala, é estranho estar telefonando pra você, mas
quero te dizer uma coisa. E quero que você fique sabendo
por mim, antes que outra pessoa conte a você. Ou antes que
você fique sabendo e leve um susto. Eu vou telefonar de
novo. Mas vou deixar com você o número do meu celular."
Fiquei ouvindo a mensagem, petrificado. Não atendi o
telefone, e quando resolvi atender já era tarde, aí pensei: ah,
meu Deus, alguma coisa aconteceu com ela, sim. Foi por
causa da morte de George que fiquei pensando no pior. É,
George morreu. Você não leu o obituário no Times? George
O'Hearn morreu há cinco meses. Perdi meu amigo homem
mais próximo. Agora não tenho mais nenhum amigo
homem. Foi uma grande perda, aquela relação de
camaradagem com George. Tenho colegas, é claro, pessoas
que encontro no trabalho e com quem converso de
passagem, mas as vidas dessas pessoas se baseiam em pre-
missas tão opostas às premissas da minha vida que trocar
idéias é muito difícil para nós. Não temos uma linguagem
em comum para falar sobre a vida pessoal. George
representava para mim toda a comunidade masculina, talvez
porque o grupo de homens de que fazemos parte seja muito
pequeno. E um único companheiro de armas basta: um
homem não precisa que toda a sociedade esteja do seu lado.
Quase todos os outros homens que conheço —
principalmente se eles já me viram com uma das minhas
namoradas jovens — ou me julgam em silêncio ou me
pregam sermões abertamente. Sou "um homem limitado",
dizem eles — eles, que não são limitados. E os pregadores fi-
cam indignados quando não concordo que seus argumentos
sejam verdadeiros. Dizem que eu sou "autocomplacente" —
eles, que não são autocomplacentes. Os torturados, é claro,
de mim só querem distância. Sem dúvida, nenhum homem
casado jamais se abre comigo. Com eles não há nenhuma
afinidade. Talvez eles troquem confidências uns com os
outros, se bem que tenho lá minhas dúvidas — não sei até
onde vai a solidariedade masculina hoje em dia. O heroísmo
deles não se limita a suportar estoicamente suas renúncias
cotidianas, porém exige também que exibam uma imagem
falsa de suas vidas, do modo mais enfático. Suas vidas
verdadeiras, as vidas ocultas, só aparecem para seus
terapeutas. Não estou dizendo que todos eles estejam contra
mim e queiram ver minha caveira por eu levar a vida que
levo, mas creio que não há dúvida de que não sou
universalmente admirado. Agora que George morreu, só
encontro solidariedade em mulheres como Elena, que já
foram minhas namoradas. Elas não podem me oferecer o
que George me dava, mas ao que parece eu não exijo demais
da tolerância delas.
A idade dele? George estava com cinqüenta e cinco. Der-
rame. Teve um derrame. Eu estava presente quando a coisa
aconteceu. Eu e mais oitocentas pessoas. Foi no auditório da
Hebraica da 92a Street em setembro. Uma noite de sábado,
em setembro. Ele ia fazer uma leitura de poemas. Era eu que
o estava apresentando no palco. Ele estava sentado numa
cadeira nos bastidores, gostando da minha apresentação,
concordando com a cabeça. Com aquele seu terno apertado
de agente funerário, ele espichava as pernas compridas e
magras — George, aquele homem flexível, de terno, era
como um cabide de arame, aquele irlandês moreno de nariz
adunco. Pelo visto, teve o derrame naquele exato momento,
sentado com seus seis livros de poesia no colo, esperando a
hora em que seria chamado, com aquele terno preto
lúgubre, e deixaria a platéia siderada. Pois quando as pessoas
começaram a aplaudir e ele fez menção de se levantar, seu
corpo despencou da cadeira, que caiu por cima dele. Sua
obra ficou toda espalhada pelo chão. Os médicos achavam
que ele nem ia conseguir sair do hospital. Mas ele agüentou
firme, inconsciente, por uma semana, quando então a
família o levou para morrer em casa.
Em casa, também ficou inconsciente a maior parte do
tempo. O lado esquerdo paralisado. As cordas vocais
paralisadas. Um bom pedaço de seu cérebro simplesmente
fora para o espaço. O filho dele, Tom, é médico, e foi ele
que administrou a morte do pai, o que levou mais nove dias.
O filho tirou os tubos todos, o cateter, desligou tudo.
Sempre que George abria os olhos eles o recostavam na
cama e lhe davam água para beber, gelo para chupar.
Tentavam cercá-lo de todos os confortos possíveis,
enquanto ele agonizava num ritmo vagaroso, torturante.
Todas as tardes, ao final do meu dia, eu ia até Pelham visitá-
lo. George havia removido a família para Pelham a fim de
que, durante todos aqueles anos em que lecionava na New
School, pudesse ter liberdade em Manhattan. Às vezes havia
até cinco ou seis carros estacionados quando eu chegava lá.
Os filhos se revezavam, de vez em quando levando um ou
outro neto. Havia uma enfermeira e, já perto do final, uma
especialista em pacientes terminais. Kate, a mulher de
George, estava lá o tempo todo, naturalmente. Eu ia até o
quarto, onde haviam instalado uma cama de hospital, e
pegava na mão dele, a mão do lado em que ele ainda sentia
alguma coisa, e ficava quinze, vinte minutos sentado à seu
lado, mas ele estava sempre fora do ar. Respirando fundo.
Gemendo. A perna boa vez por outra estremecia um pouco,
mas era só isso. Eu passava a mão no cabelo dele, pegava-lhe
no rosto, apertava-lhe os dedos, mas nada. Ficava ali na
esperança de que talvez ele voltasse a si e me reconhecesse;
depois eu ia para casa. Então, uma tarde, cheguei lá e fui
informado de que finalmente ele estava acordado. Pode ir,
pode ir, me disseram.
Haviam recostado George nos travesseiros, e a cama estava
um pouco levantada. A filha dele, Betty, dava-lhe gelo.
Quebrava pequenos estilhaços de gelo com os dentes e os
inseria na boca do pai. George tentava mastigá-los no lado
da boca que ainda funcionava. Parecia já quase morto,
magérrimo, porém os olhos estavam abertos, e ele se
concentrava o quanto ainda lhe era possível concentrar-se
no ato de mastigar gelo. Kate estava parada à porta olhando
para ele, uma mulher imponente, de cabelo branco, quase
tão alta quanto George, porém mais volumosa do que da
última vez que eu a vira, e com um ar muito mais cansado.
Era rechonchuda, mas atraente, irônica, rija, e irradiava uma
espécie de cordialidade teimosa — assim era Kate, já
beirando a velhice. Uma mulher que jamais fugia da realida-
de, que agora parecia completamente exausta, como se
houvesse combatido em sua última batalha e tivesse sido
derrotada.
Tom trouxe um pano úmido do banheiro. "Quer se limpar,
pai?", disse ele. "Será que ele entende?", perguntei a Tom.
"Ele ainda entende alguma coisa?" "Tem horas", respondeu
Tom, "que ele parece entender. Mas depois passa." "Há
quanto tempo ele está acordado?" "Mais ou menos meia
hora. Vai. Fala com ele, David. Ele parece que curte ouvir
vozes."
Curtir? Uma palavra estranha. Mas Tom, em qualquer
situação, é sempre o médico jovial. Aproximei-me do lado
de
George que não estava paralisado enquanto Tom limpava
seu rosto com o pano úmido. George tirou o pano do filho
— para espanto geral, estendeu a mão boa, agarrou o pano e
o enfiou na boca. "Ele está muito seco", alguém observou.
George enfiou a ponta do pano na boca e começou a chupá-
la. Quando tirou, havia algo grudado nela. Parecia um
pedaço do palato mole. Betty sufocou um grito quando viu
aquilo, e a especialista em pacientes terminais, que também
estava no quarto, pôs a mão nas costas de Betty, dizendo:
"Não é nada. A boca dele está muito seca, é só um pouco de
carne ressecada".
A boca de George estava torta, aberta, aquela boca sofrida
dos moribundos, porém seus olhos estavam fixos, parecia
mesmo haver algo por trás deles, algo de George que ainda
resistia. Como aquela parede quebrada que permanece em
pé depois de uma explosão. Com a mesma força irritada com
que arrancara o pano de Tom, ele afastou o lençol que o
cobria e começou a puxar o fecho de velcro de sua fralda,
tentando arrancá-la, exibindo aqueles palitos melancólicos
que outrora tinham sido suas pernas. O filamento de
tungstênio quebrado dentro de uma lâmpada queimada —
era isso que as pernas dele pareciam. Tudo nele, tudo que
era de carne e osso, me fazia pensar em seres inanimados.
"Não, não", disse Tom, "deixa, pai. Está bem assim." Mas
George não parava. Continuava puxando, irritado, tentando
em vão arrancar a fralda. Não conseguindo, levantou a mão
e, meio que rosnando, apontou para Betty. "O quê?", ela
indagou. "Não entendi. O que é que você quer? O quê,
paizinho?" Os ruídos que George emitia eram indecifráveis,
mas seus gestos deixavam claro que ele queria que a filha se
aproximasse tanto quanto possível. Quando Betty obedeceu,
ele estendeu o braço, colocou-o nas costas dela e puxou-a
para a frente para poder beijá-la na boca. "Ah, sim, papai",
disse ela, "você é o melhor pai do mundo, sim, o melhor de
todos." O que causava espanto era aquela força toda brotar
de dentro de George depois de tantos dias que ele passara
deitado, inerte e descarnado, sobrevivendo sabe-se lá como,
aparentemente nas últimas — a força considerável com que
puxara Betty para junto de si e agora tentava falar. Talvez,
pensei, eles não devessem deixá-lo morrer. E se ainda restar
mais dele do que todo mundo pensa? E se for isso que ele
está querendo demonstrar? E se em vez de estar se
despedindo de todos, ele estiver dizendo: "Não me deixem
morrer. Façam tudo que vocês puderem para me salvar"?
Então George apontou para mim. "Oi, George", disse eu.
"Meu amigo. Sou eu, o David, George." E quando me
aproximei dele, ele me agarrou tal como havia agarrado
Betty e beijou a mim na boca. Não senti cheiro de cadáver,
nem fedor doentio, nenhum odor desagradável: apenas um
hálito quente, sem cheiro, o puro perfume do ser, e dois
lábios ressequidos. Era a primeira vez que George e eu nos
beijávamos. Mais uma vez, ele grunhiu, agora apontando
para Tom. Para Tom e depois para seus próprios pés, que
estavam descobertos sobre a cama. Quando Tom, pensando
que George quisesse que suas pernas fossem cobertas,
começou a ajeitar os lençóis, George começou a gemer mais
alto, apontando de novo para os pés. "Ele quer que você
segure", disse Betty. "Um deles ele nem sente", disse Tom.
"Segura o outro", ela insistiu. "Está bem, pai, entendi —
entendi." E Tom começou a acariciar pacientemente o pé
que seu pai ainda sentia.
Em seguida, George apontou para a porta, onde Kate estava
parada, assistindo a tudo. "Ele quer você, mãe", disse Betty.
Afastei-me e Kate se colocou no lugar onde eu estava, ao
lado da cama, e George estendeu o braço para ela, o braço
que ainda funcionava, puxando-a para si, e beijou-a de modo
tão enfático quanto beijara a Betty e a mim. Kate beijou-o
também. Então beijaram-se outra vez, agora um beijo
prolongado, realmente apaixonado. Kate chegou mesmo a
fechar os olhos. Ela é uma pessoa absolutamente livre de
sentimentalismo, uma pessoa bem pé-na-terra, e eu nunca a
vira agir daquele jeito, como uma menina.
Enquanto isso, a mão boa de George havia passado das cos-
tas de Kate para seu braço direito, e ele começou a mexer no
botão do punho da blusa. Estava tentando desabotoá-lo.
"George", Kate sussurrou baixinho. Parecia achar graça.
"Georgie, Georgie..." "Ajuda ele, mãe. Ele quer desabotoar."
Sorrindo ao ouvir tais instruções da filha emocionada, Kate
cedeu e abriu o botão, mas a essa altura George já estava
mexendo na outra manga, no botão, e assim ela também o
desabotoou. E o tempo todo ele a beijava. Kate acariciou o
rosto destruído, aquele rosto terrivelmente solitário e
cavernoso, beijando-lhe os lábios cada vez que ele os
oferecia, e em seguida a mão de George procurou os botões
da frente da blusa, tentando desabotoá-los.
O plano dele era evidente: estava tentando despi-la. Despir
aquela mulher que, como eu bem sabia, e como seus filhos
certamente sabiam, ele não tocava na cama havia anos. Que
ele raramente tocava em qualquer circunstância. "Deixa,
mãe", disse Betty, e Kate mais uma vez obedeceu à filha. Ela
própria ajudou George a desabotoar a blusa. Dessa vez,
quando se beijaram, a única mão boa de George estava
pegando no tecido do sutiã largo de Kate. Porém, de
repente, tudo terminou. A força esvaiu-se dele sem mais
nem menos, e George jamais chegou a tocar nos seios
caídos da mulher. Ainda levou mais doze horas para morrer,
mas quando se deixou cair sobre os travesseiros, a boca
entreaberta, os olhos fechados, ofegante como um corredor
que desaba no final da corrida, todos nós sabíamos que tí-
nhamos acabado de presenciar o último ato extraordinário
da vida de George.
Depois, quando fui até a porta para sair, Kate veio comigo
para a varanda, e então me acompanhou até o carro.
Segurando minhas mãos, me agradeceu por ter vindo.
Respondi: "Foi bom estar presente e assistir a tudo aquilo".
"É, foi mesmo um espanto, não foi?", disse Kate. Em
seguida, com seu sorriso cansado, acrescentou: "Sei lá quem
ele pensou que eu fosse".
Assim, George havia morrido apenas cinco meses antes, e
quando Consuela telefonou e deixou aquela mensagem —
"quero te dizer uma coisa. E quero que você fique sabendo
por mim, antes que outra pessoa conte a você" — bom,
como eu já disse, ouvi aquela mensagem pensando que
agora alguma coisa havia acontecido com ela. Uma coisa
desse tipo, um sonho premonitório seguido de sua
realização, já é desconcertante quando acontece num
sonho, quanto mais na vida real. Eu não sabia o que fazer.
Seria o caso de ligar para ela? Fiquei quinze minutos
pensando. Não liguei porque estava com medo. Por que será
que ela me telefonou? Por que motivo? Minha vida está
tranqüila e sob controle outra vez. Será que vou conseguir
resistir a Consuela e sua passividade agressiva? Não tenho
mais sessenta e dois anos — já estou com setenta. Será que
nessa idade vou conseguir suportar aquela insegurança
doentia? Será que tenho coragem de voltar àquele transe
frenético? Será que isso vai ser bom para a minha
longevidade?
Lembrei os três anos que se seguiram à perda de Consuela,
aquele tempo em que, mesmo quando me levantava à noite
para ir ao banheiro, eu só conseguia pensar nela: até mesmo
às quatro da madrugada, diante da privada, quase dormindo,
aquela fração de David Kepesh que estava acordada
começava a murmurar o nome dela. Normalmente, quando
um velho mija no meio da noite, a cabeça dele está
completamente vazia. Se ele consegue pensar em alguma
coisa, é só em voltar para a cama. Mas comigo, naquela
época, não era assim. "Consuela, Consuela, Consuela", cada
vez que me levantava para ir ao banheiro. E ela havia
conseguido fazer isso comigo, veja bem, sem usar palavras,
sem premeditação, sem astúcia, sem um pingo de malícia, e
sem se preocupar com causas e efeitos. Como um grande
atleta, ou uma escultura idealizada, ou um animal que a
gente vê de repente na floresta, como Michael Jordan,
como um Maillol, como uma coruja, um lince, ela
conseguira tudo isso através da simplicidade de seu
esplendor físico. Não havia o menor vestígio de sadismo em
Consuela. Nem mesmo o sadismo da indiferença, que
muitas vezes acompanha a perfeição naquele grau. Ela era
careta demais para ser cruel, bondosa demais. Mas imagine
só como ela não poderia ter feito gato-sapato de mim se não
fosse uma garota tão bem-educada que jamais se permitiria
explorar até os limites a força amazônica de seus dotes
físicos; imagine se ela tivesse também uma consciência
amazônica e compreendesse, de modo maquiavélico, o
impacto que tinha. Por sorte, Consuela, como a maioria das
pessoas, não tinha o hábito de pensar as coisas até as últimas
conseqüências, e, embora ela tivesse conseguido fazer
acontecer tudo o que houvera entre nós, jamais
compreendeu tudo o que havia acontecido. Se tivesse
compreendido, e se, além disso, tivesse a menor tendência a
gostar de atormentar um homem alucinado de paixão, eu
teria sido devastado, inteiramente posto a pique por minha
própria Baleia Branca.
E agora ela me telefonava outra vez. Não, de jeito nenhum!
Nunca mais, aquele ataque à minha paz de espírito!
Mas então pensei: ela está me procurando, ela precisa de
mim, e não como amante, não como professor, não para
retomar nossa novela erótica com mais um episódio. Assim,
liguei para seu celular e menti, dizendo que tinha saído para
comprar uma coisa e havia acabado de chegar em casa, e ela
disse: "Eu estou no carro. Eu estava na frente do seu prédio
quando gravei a mensagem". Perguntei: "O que é que você
está fazendo, andando de carro por Nova York na noite de
ano-novo?". "Eu nem sei o que estou fazendo", respondeu
ela. "Você está chorando, Consuela?" "Não, ainda não."
Então perguntei: "Você tocou a campainha?". E ela: "Não,
não toquei, porque não tive coragem". "Você pode tocar a
campainha sempre. Você sabe disso. O que foi que
aconteceu?" "Estou precisando de você agora." "Então vem
pra cá." "Você tem tempo?" "Eu sempre tenho tempo pra
você. Vem." "É uma coisa importante. Estou indo agora
mesmo."
Pus o fone no gancho. Eu não sabia o que fazer. Cerca de
vinte minutos depois, um carro parou, e assim que abri a
porta para ela me dei conta de que alguma coisa séria havia
acontecido. Porque ela estava de chapéu, um chapéu que
parecia um barrete de turco. O que não era o tipo de coisa
que ela usava. Consuela tem cabelo bem negro, lustroso,
sempre muito bem cuidado, sempre lavado, escovado,
penteado; ia ao cabeleireiro uma vez a cada quinze dias.
Porém agora estava com aquele barrete na cabeça. Estava
também com um casaco elegante, um casaco de lã persa
preta, com cinto, que chegava quase até o chão, e quando
ela abriu o cinto vi por baixo do casaco a blusa de seda
decotada, deixando à mostra o espaço entre os seios —
lindos. Assim, abracei-a, e ela me abraçou, deixando que eu
a ajudasse a tirar o casaco, e eu disse: "O seu chapéu? O
barrete?", e ela disse: "Melhor você não fazer isso. A
surpresa vai ser muito grande". Perguntei: "Por quê?" E ela
explicou: "Porque estou muito doente".
Fomos para a sala, e lá abracei-a outra vez, e ela apertou seu
corpo contra o meu, e mais uma vez senti os peitos, aqueles
peitos lindos, e por cima do ombro vi a bunda linda. Eu vejo
aquele corpo lindo. Agora ela está na faixa dos trinta, está
com trinta e dois anos, e não está menos bonita, e sim mais,
e o rosto, que parece de algum modo um pouco mais
alongado, está muito mais feminino — enquanto isso ela me
diz: "Eu não tenho mais cabelo. Em outubro fiquei sabendo
que estava com câncer. Estou com câncer de mama". E eu:
"E terrível, é horrível, como é que você se sente, como é
que se pode enfrentar uma coisa dessas?". A quimioterapia
havia começado no início de novembro, e em pouco tempo
ela perdera o cabelo. Ela disse: "Eu preciso contar toda a
história", e nos sentamos, e eu disse: "Me conta tudo".
"Bom, a minha tia, a irmã da minha mãe, já teve câncer de
mama, e foi tratada, e perdeu um seio. De modo que eu já
sabia que tem esse perigo na minha família. Eu sempre
soube disso, e sempre tive medo", e o tempo todo, enquanto
ela falava, eu pensava: você, com os peitos mais maravi-
lhosos do mundo. E ela: "Um dia eu estava no chuveiro e
senti uma coisa na axila, entendi que era uma coisa séria. Fui
ao médico e ele disse que provavelmente não era nada, que
era pra eu não me preocupar, e aí fui a um segundo médico
e a uma terceira médica, você sabe como é, e a terceira
médica disse que era pra eu me preocupar, sim". "E você
entrou em pânico?", perguntei. "Você ficou em pânico,
minha amiga belíssima?" Eu estava tão abalado que quem
estava entrando em pânico era eu. "Fiquei, sim", respondeu,
"pânico total." "Foi à noite?" "Foi, eu fiquei andando de um
lado pro outro no apartamento. Fiquei completamente
maluca." Comecei a chorar ao ouvir isso, e nos abraçamos
outra vez, e perguntei: "Por que é que você não me
telefonou? Por que é que você não me ligou nessa noite?". E
ela: "Não tive coragem". E eu: "Você pensou em telefonar
pra quem?" E ela: "Pra minha mãe, é claro. Mas eu sabia que
ela também ia ficar em pânico, porque eu sou filha dela, a
única filha dela, porque ela é muito emotiva, e porque todo
mundo morreu. David, todo mundo morreu". "Quem é que
morreu?" "Meu pai morreu." "Como?" "Desastre de avião.
Ele estava naquele avião que ia a Paris. Numa viagem de
negócios." "Não!" "Foi, sim." "E o avô que você gostava
tanto?" "Morreu. Faz seis anos. Foi a primeira perda.
Coração." "E a sua avó, a dos terços? A avó que era
duquesa?" "Morreu também. Depois dele. Ela estava velha e
morreu." "Mas o seu irmão mais moço...?" "Não, não, meu
irmão está bem. Mas eu não podia ligar pra ele, pra falar
sobre isso. Ele não ia conseguir segurar. Foi então que pen-
sei em você. Mas eu não sabia se você estava sozinho." "Isso
não tem nada a ver. Me promete uma coisa. Se você
começar a entrar em pânico no meio da noite, de dia,
qualquer hora, telefona pra mim. Me chama que eu vou.
Toma", disse eu, "escreve aqui o seu endereço. Todos os
seus telefones, trabalho, casa, tudo." E eu estava pensando:
ela está morrendo diante dos meus olhos, também ela está
morrendo agora. Bastou que a instabilidade entrasse na vida
tranqüila daquela família cubana com a morte previsível de
um avô adorado para que rapidamente tivesse início uma
sucessão de desgraças, culminando com o câncer.
Perguntei: "Você está com medo neste momento?". E ela:
"Muito. Muito medo. Eu fico bem uns dois minutos,
pensando em outra coisa, e de repente me dá aquele frio no
estômago e não consigo acreditar no que está acontecendo.
E uma montanha-russa, e não pára nunca. Só pára se o
câncer parar. Tenho sessenta por cento de chance de
sobreviver, quarenta de morrer". E então começou a dizer
que a vida vale a pena viver, e como ela tinha pena da mãe,
mais que de todo mundo — todas aquelas banalidades
inevitáveis. Eu queria fazer tantas coisas, eu tinha tantos
planos, e assim por diante. Começou a me dizer como
pareciam ridículas todas as pequenas ansiedades que ela
sentia poucos meses antes, as preocupações com o trabalho,
os amigos, as roupas, e como isso agora a fazia dar às coisas a
verdadeira importância que elas têm, e pensei: não, não há
nada que faça a gente dar às coisas a verdadeira importância
que elas têm.
Eu olhava para Consuela, escutava o que ela dizia, e quando
não consegui me conter mais perguntei: "Você se incomoda
se eu pegar nos seus seios?". Ela respondeu: "Não, pode
pegar". "Você não se incomoda mesmo?" "Não. Agora,
beijar você eu não quero, não. Porque não quero nada
sexual. Mas eu sei o quanto você gosta dos meus seios, então
pode pegar neles." Assim, toquei nos seios dela — e com
mãos trêmulas. E, naturalmente, de pau duro. Perguntei: "E
o esquerdo ou o direito?", e ela respondeu: "E o direito".
Então pus a mão no seio direito. Existe uma combinação de
erotismo com ternura que derrete a pessoa e ao mesmo
tempo excita, e era isso o que estava acontecendo. Você fica
de pau duro e derrete, as duas coisas ao mesmo tempo. Pois
então, estamos nós dois sentados, eu pegando no seio dela,
nós dois conversando, e então perguntei: "Você não se
incomoda?". E ela: "Eu quero até mais de você. Porque sei
que você adora meus seios". E eu: "O que é que você quer?".
"Quero que você apalpe o meu câncer." E eu: "Está bem.
Isso eu faço. Mas depois, isso a gente faz depois".
Era cedo demais. Eu não estava preparado para isso. Assim,
ficamos conversando, e ela começou a chorar, e tentei
confortá-la, e de repente ela parou de chorar e ficou cheia
de energia, muito decidida. E me disse: "David, na verdade
procurei você pra fazer um único pedido, fazer uma
pergunta só". E eu: "O que é?". E ela: "Depois de você, não
tive nenhum namorado nem amante que amasse meu corpo
tanto quanto você amou". "Você teve namorados?"
Lá ia eu outra vez. Esqueça os namorados. Mas eu não
conseguia. "Você teve, Consuela?" "Tive, sim, mas não
muitos." "Você transou com vários homens, regularmente?"
"Não. Regularmente, não." "E o seu trabalho, como era?
Ninguém lá se apaixonou por você?" "Todos eles se
apaixonaram por mim." "Compreendo perfeitamente. Mas
então", insisti, "eram todos gays? Você não conheceu
nenhum que não fosse gay?" "Conheci, sim, conheço, mas
com eles não é legal." "Por que é que não é legal?" "Eles só
sabem se masturbar em cima do meu corpo." "Isso é
lamentável. É uma burrice. E uma loucura." "Mas você
amava o meu corpo. E eu me orgulhava dele." "Mas você já
se orgulhava dele antes." "Sim e não. Você conheceu o meu
corpo quando ele estava no auge. Por isso quero que você o
veja agora, antes de ele ser estragado pelo que os médicos
vão fazer." "Não diz isso, tira isso da cabeça. Ninguém vai
estragar você. O que é que os médicos dizem que vão
fazer?" E ela: "Já fiz quimioterapia. Por isso que eu não tiro o
chapéu". "É claro. Mas com você eu suporto qualquer coisa.
Pode fazer o que você quiser." E ela: "Não, não quero
mostrar a você. Porque acontece uma coisa estranha com o
cabelo da gente. Depois da quimioterapia, ele começa a sair
aos punhados. E começa a nascer um cabelo que parece
cabelo de bebê. E muito estranho". E eu: "Os pêlos pubianos
também desaparecem?". "Não", respondeu ela, "não, esses
ficam. O que também é estranho." E eu: "Você perguntou à
médica?". "Perguntei", disse ela, "mas ela não soube explicar.
A única coisa que ela disse foi: 'Está aí uma boa pergunta'.
Olha os meus braços." Os braços dela são longos, esguios, a
pele branca, branca, e os pêlos finos dos braços, tão bonitos,
continuavam lá. "Olha", disse ela, "nos meus braços ainda
tem pêlo, mas a minha cabeça ficou lisa." "Ora", disse eu, "já
conheci homens carecas, porque é que eu não posso ver
uma mulher careca?" E ela: "Não. Não quero que você veja".
Então ela disse: "David, posso te pedir um grande favor?"
"Claro. Qualquer coisa." "Você podia se despedir dos meus
seios?" Eu: "Minha querida, minha queridíssima, eles não
vão destruir o seu corpo, não". "Bom, eu tenho sorte de ter
tanto peito, mas eles vão ter que tirar mais ou menos um
terço. Minha médica está tentando tudo pra que a cirurgia
seja mínima.
Ela é humana. Ela é maravilhosa. Não é uma carniceira. Não
é uma máquina desprovida de sentimentos. Primeiro ela está
tentando diminuir o câncer com a químio. Aí, quando eles
operarem, eles vão tirar o mínimo possível." "Mas eles
podem restaurar, refazer o que tirarem, não é?" "É, eles
podem botar silicone. Mas eu não sei se vou querer. Porque
isso aqui é o meu corpo, e o silicone não vai ser. Não vai ser
nada." "E como é que você quer que eu me despeça? O que
é que você quer? O que é que você está me pedindo,
Consuela?" E finalmente ela me disse.
Peguei minha câmara, uma Leica com zoom, e ela ficou em
pé. Fechamos as cortinas, acendemos todas as luzes, encon-
trei a música exata de Schubert e pus para tocar, e ela não
exatamente dançou, foi mais uma espécie de movimento
exótico, oriental, quando começou a se despir. Muito
elegante, e muito vulnerável. Fiquei sentado no sofá, e ela
em pé, tirando as roupas. E a maneira como ela tirava cada
peça que jogava no chão era mesmerizante. Mata Hari. A
espiã se despindo para o oficial. E o tempo todo, totalmente
vulnerável. Primeiro tirou a blusa. Depois os sapatos.
Extraordinário, tirar os sapatos nessa hora. Depois tirou o
sutiã. E foi como se um homem ao se despir tivesse
esquecido de tirar as meias, o que lhe dá um aspecto ligeira-
mente ridículo. Uma mulher de saia com os seios nus, para
mim, não é erótico. A saia de algum modo atrapalha. Seios
nus e calças formam uma imagem muito erótica, mas se for
uma saia não funciona. Melhor ficar de sutiã se estiver de
saia, porque saia e seios nus é para uma mulher que vai dar
de mamar.
Assim, ela se despiu para mim. Foi tirando tudo até ficar só
de calcinha. Disse: "Você podia tocar meus seios?". "E essa a
foto que você quer, eu pegando neles?" "Não, não. Primeiro
pega neles." Obedeci. Então ela disse: "Quero umas fotos de
frente para a câmara, e de perfil, e depois por baixo".
Tirei cerca de trinta fotos dela. Ela escolheu as poses, e
queria tudo. Com as mãos por baixo, levantando-os.
Apertando-os. Vistos da esquerda, da direita, fotografados
quando ela se debruçava. Por fim, tirou a calcinha, e vi que
os pêlos pubianos continuavam tal como sempre foram,
como já os descrevi: lisos, lustrosos. Asiáticos. De repente
pareceu ficar excitada por estar tirando a calcinha e eu a
olhá-la, inteiramente nua. Aconteceu de repente. Dava para
ver pelos mamilos que ela estava excitada. Se bem que, a
essa altura, eu não estava mais. Assim mesmo, perguntei-
lhe: "Você quer passar a noite aqui? Quer transar comigo?"
Ela: "Não. Não quero transar com você. Mas quero que você
me abrace". Eu estava totalmente vestido, tal como estou
agora. E ela sentou-se no sofá e eu a abracei, apertando-a, e
ela pegou meu pulso e colocou minha mão em sua axila para
que eu apalpasse o câncer. Parecia uma pedra. Uma pedra na
axila. Duas pedrinhas, uma maior do que a outra, o que
queria dizer que havia uma metástase originando-se no seio.
Mas não dava para sentir nada se eu pegasse no seio.
Perguntei: "Por que é que eu não consigo apalpar no seio?".
E ela: "Meus seios são muito grandes. Tem tanto tecido que
a gente não sente. Está lá no fundo do seio".
Eu não teria conseguido fazer amor com ela, nem mesmo
eu, que havia lambido seu sangue. Depois de tantos anos
pensando nela, já teria sido difícil mesmo ao vê-la em
circunstâncias normais, e não aquelas, terríveis e grotescas.
Não, eu não conseguiria fazer amor com ela, e, no entanto,
não conseguia parar de pensar nisso. Porque eles são tão
bonitos, os seios dela. Não canso de repetir. Era tão cruel,
tão degradante, aqueles seios, os seios dela — eu ficava só
pensando: eles não podem ser destruídos! Como já disse,
durante todos aqueles anos em que ficamos separados eu me
masturbava pensando nela, sem interrupção. Eu ia para a
cama com outras mulheres e pensava nela, nos seios dela, na
sensação de enterrar meu rosto entre eles. Pensava na sua
textura macia e lisa, pensava em sentir seu peso, aquele peso
suave, e isso enquanto minha boca beijava outra pessoa. Mas
naquele momento entendi que a vida dela não era mais
sexual. O que estava em jogo era outra coisa.
Assim, eu disse: "Quer que eu vá com você pro hospital? Eu
vou, se você quiser. Eu faço questão de ir. Você está
praticamente sozinha". Ela falou que ia pensar. Disse:
"Muito obrigada por se oferecer, mas ainda não sei. Não sei
se vou querer ver você logo depois que eu for operada". Ela
foi embora por volta de uma e meia; havia chegado em
torno das oito. Não perguntou o que eu ia fazer com as
fotografias que me pedira para tirar. Não me pediu que lhe
mandasse as cópias. Ainda não mandei revelar. Estou
curioso para vê-las. Vou ampliá-las. Vou mandar as cópias
para ela, é claro. Mas preciso encontrar uma pessoa em
quem eu confie para fazer a revelação. Há muitos anos, eu,
que gosto de fotografia, devia ter aprendido a revelar, mas
nunca aprendi. Seria útil.
Ela deve ir para o hospital a qualquer momento. Estou
aguardando um contato dela a qualquer hora, qualquer dia.
Desde aquele encontro há três semanas, não tive mais
notícia dela. Será que ela vai me procurar? O que você acha?
Ela me pediu para não entrar em contato com ela. Não quer
mais nada de mim — foi o que ela disse antes de ir embora.
Estou praticamente de plantão ao lado do telefone, com
medo de ele tocar e eu não estar aqui.
Desde que ela veio aqui, tenho telefonado para pessoas que
conheço, médicos que conheço, para me informar sobre o
tratamento do câncer de mama. Porque eu sempre soube
que nesse tipo de coisa primeiro se faz a cirurgia e depois a
quimioterapia. Estava preocupado com isso, no dia em que
ela veio aqui — eu pensava o tempo todo: tem alguma coisa
no caso dela que não estou conseguindo entender. Depois
fiquei sabendo que fazer químio antes da operação não é
uma coisa totalmente inaudita, que está até se tornando o
tratamento padrão quando o câncer de mama é localizado e
está avançado, mas a pergunta é: será que esse tratamento é
correto para o caso dela? O que ela quis dizer quando falou
em sessenta por cento de chance de sobrevivência? Por que
só isso? Foi alguém que disse isso a ela ou foi ela que leu em
algum lugar, ou então, num momento de pânico, inventou
esse número? Ou será que estão usando essa história de
sobrevivência para lidar com a vaidade dela? Talvez seja
apenas uma reação ao choque — uma reação bem típica,
aliás —, mas não consigo parar de pensar que tem alguma
coisa na história dela, ou que ela não me contou ou que não
contaram a ela... Enfim, a história é essa, tal como fiquei
sabendo através dela, e depois eu não soube mais nada.
Ela foi embora por volta de uma e meia da manhã, depois
que o ano-novo chegou em Chicago. Nós tomamos um chá.
Tomamos um copo de vinho. Porque ela me pediu, liguei a
televisão e vimos o replay do ano-novo começando na
Austrália e atravessando a Ásia e a Europa. Ela estava
ligeiramente sentimental. Contando histórias. Sobre a
infância dela. O pai levando-a à ópera, desde que ela era
pequena. Contou uma história sobre um florista. "Fui
comprar flores na Madison Avenue com minha mãe no
sábado", disse ela, "e o florista disse: 'Que lindo o seu
chapéu', e eu disse: 'O chapéu tem uma função', e ele
compreendeu, ficou vermelho e pediu desculpas e me deu
uma dúzia de rosas de graça. Pra você ver como as pessoas
reagem a um ser humano que está sofrendo. Elas não sabem
o que fazer. Ninguém sabe o que dizer nem o que fazer. Por
isso eu tenho muita gratidão por você", explicou-me.
Como é que eu me sentia? A maior dor que senti naquela
noite foi ao pensar nela sozinha em casa, entrando em
pânico, na cama. Entrando em pânico por causa da idéia da
morte. E o que vai acontecer agora? O que é que você acha?
Eu acho que ela não vai me pedir que lhe faça companhia
no hospital. Ela gostou de eu me oferecer, mas quando
chegar a hora vai para o hospital com a mãe. E possível que
ela tenha entrado em parafuso no ano-novo simplesmente
porque estava se sentindo infeliz demais, assustada demais,
para ir à festa para a qual a tinham convidado, e também
estava infeliz e assustada demais para ficar sozinha. Acho
que, quando entrar em pânico, Consuela não vai me
telefonar. Ela queria que eu me oferecesse, mas não vai me
ligar, não.
A menos que eu esteja enganado. A menos que daqui a dois
011 três meses ela venha me procurar dizendo que quer ir
para a cama comigo. Comigo, e não com um homem mais
moço, porque estou velho e estou longe da perfeição.
Comigo, porque, embora ainda não esteja mumificado, o
cadáver em decomposição em mim não está tão bem
disfarçado como está nos homens que freqüentam a minha
academia, que deram um jeito de nascer depois que
Roosevelt assumiu a presidência.
E será que vou conseguir? Em toda a minha vida, nunca
fiquei com uma mulher que tivesse passado por esse tipo de
mutilação. O único caso foi o de uma que conheci alguns
anos atrás; a caminho do meu apartamento ela disse: "Eu
preciso contar a você — eu fiz uma operação e só tenho um
seio. Então não quero que você fique chocado". Ora, por
mais durão que você se considere, se for realmente sincero
você tem que admitir que ver uma mulher com um seio só
não é uma coisa muito convidativa, é ou não é? Consegui
dar a impressão de que estava um pouco surpreso, mas não
por ela só ter um seio, e acho que não traí o nervosismo que
sentia enquanto tentava acalmá-la. "Ah, o que é isso; nós
não vamos pra cama. Nós somos apenas bons amigos, e acho
que devemos continuar a ser bons amigos." Uma vez transei
com uma mulher que tinha uma mancha escura, cor de
vinho, entre os seios, subindo um pouco pelos seios, uma
marca de nascença enorme. Essa mulher era também alta.
Um metro e noventa e cinco. A única mulher com quem
tive que ficar na ponta dos pés e espichar o pescoço para
beijar. Peguei um torcicolo só de beijá-la. Quando fomos
para a cama, ela começou a se despir tirando a saia e a
calcinha, coisa que as mulheres normalmente não fazem.
Elas costumam tirar primeiro a blusa, primeiro se despem da
cintura para cima. Mas essa ficou de suéter e sutiã.
Perguntei: "Você não vai tirar o sutiã e o suéter?". "Vou, mas
não quero que você leve um susto." Acrescentou: "Eu tenho
um defeito". Sorri, tentando levar a coisa na esportiva.
"Então me diz, qual é o defeito?" E ela: "Bom, é uma coisa
nos meus seios que vai assustar você". "Ah, não se
preocupe. Me mostra." E ela me mostrou. E eu comecei a
exagerar. Beijei o sinal. Peguei nele. Brinquei com ele. Esta-
va sendo educado. Fazendo com que ela achasse graça na
coisa. Dizendo que eu adorava aquilo. Essas coisas não são
fáceis de se encarar com tranqüilidade. Mas espera-se do
homem que assuma o comando, que não entre em parafuso,
que saiba enfrentar a situação com jeito. Que não recue de
nada que possa haver num corpo. Aquela mancha. Era uma
tragédia para ela. Um metro e noventa e cinco. Os homens
eram atraídos, como eu fui, por aquela altura extraordinária.
E, com cada homem, sempre a mesma história: "Eu tenho
um defeito".
As fotos. Nunca vou esquecer de Consuela me pedindo para
tirar aquelas fotos. Se houvesse algum voyeur espiando a
cena, ele ia achar que era uma coisa pornográfica. Porém era
o que pode haver de menos pornográfico no mundo. "Você
está com a sua câmara fotográfica?" "Estou", respondi. "Você
podia tirar umas fotos de mim? Porque eu queria ter fotos do
meu corpo tal como ele era quando você o conheceu. Tal
como você o viu. Não tem nenhuma outra pessoa a quem
eu possa pedir isso. Não posso pedir isso a nenhum outro
homem. Se pudesse, eu não ia incomodar você." "Claro",
disse eu, "a gente faz isso. Qualquer coisa. Me diz o que
você quer. Pode pedir o que você quiser. Você pode me
dizer qualquer coisa." "Dava pra você pôr uma música",
disse ela, "e então pegar a câmera?" "Que música você
quer?", perguntei. "Schubert. Alguma peça de câmara de
Schubert." "Está bem, está bem", respondi, mas não, pensei,
A morte e a donzela.
No entanto, ela não me pediu para mandar uma cópia. Não
esqueça que Consuela não é a garota mais brilhante do
mundo. Porque, se fosse, as fotos seriam outros quinhentos.
Nesse caso, haveria táticas em questão. A estratégia dela
seria algo a se pensar. Mas, em se tratando de Consuela, há
uma espontaneidade semi-consciente em tudo que ela faz,
uma integridade, ainda que ela não saiba exatamente o que
está fazendo, ou por quê. Procurar-me para que eu a
fotografasse é uma atitude muito próxima à natureza, a um
pensamento original que brota, à intuição, e não há nenhum
raciocínio deliberado por trás dela. Você poderia elaborar
um raciocínio, mas Consuela não seria capaz disso. Ela sente
que tem de fazer isso, diz ela, para documentar seu corpo
para mim, porque eu o amei tanto, amei sua perfeição. Mas
não era só isso, era muito mais que isso.
Já percebi que as mulheres, em sua maioria, se sentem
inseguras em relação a seus corpos, mesmo quando, como
no caso de Consuela, são de uma beleza absoluta. Nem todas
sabem que são belas. Só um certo tipo de mulher sabe disso.
Normalmente elas se queixam de algo de que não deviam se
queixar. Muitas vezes querem esconder os seios. Sentem
alguma vergonha cuja fonte jamais consigo identificar, e é
necessário que você fique um bom tempo convencendo-as
de que não há problema nenhum para que elas possam
exibi-los com prazer e realmente gostar de ser apreciadas.
Até mesmo as mais bem-dotadas. São poucas as que se
exibem sem problema, e hoje em dia, por causa de todas as
polêmicas, muitas vezes as que se exibem não são aquelas
cujos seios são do tipo que você teria inventado se pudesse.
Mas o poder erótico do corpo de Consuela — bom, isso
acabou. E verdade, naquela noite tive uma ereção, mas eu
não conseguiria mantê-la. Sou um sujeito de sorte por ainda
ter ereções e ter esses impulsos eróticos, mas, se ela tivesse
me pedido para ir para a cama com ela naquela noite, eu
teria ficado numa enrascada. Vai ser uma enrascada para
mim quando ela me ligar depois que se recuperar da
cirurgia. O que vai acontecer. Porque ela vai me ligar, não
vai? Vai querer experimentar primeiro com uma pessoa que
ela já conheça e que seja mais velha. Por uma questão de
autoconfiança, de orgulho, melhor comigo do que com
Carlos Alonso ou com os irmãos Villareal. A idade pode não
fazer a mesma coisa que o câncer, mas faz um bom estrago.
Capítulo dois. Daqui a três meses ela me telefona e diz:
"Vamos nos ver", e depois tira as roupas de novo. Será essa a
catástrofe que me aguarda?
Tem um quadro de Stanley Spencer lá na Tate Gallery, um
retrato em que aparecem o próprio pintor e a esposa, os dois
nus, já na faixa dos quarenta. O quadro exprime da maneira
mais direta a quintessência da vida a dois, da convivência
dos sexos ao longo do tempo. Eu tenho esse quadro num
dos meus livros de Spencer lá embaixo. Depois eu pego para
lhe mostrar. Spencer está sentado, meio de cócoras, ao lado
da mulher deitada. Ele olha para baixo, para ela, pensativo,
bem de perto, pelos óculos de aro de metal. Nós, por outro
lado, estamos olhando para eles de perto: dois corpos nus
bem na nossa cara, que é para vermos claramente que eles
não são mais jovens nem belos. Nenhum dos dois está
alegre. Há um passado pesado por trás desse presente. Para a
mulher, em particular, tudo começou a cair, engrossar, e
coisas piores do que estrias estão por vir.
Na beira de uma mesa, no primeiro plano do quadro, há dois
pedaços de carne, uma coxa de carneiro grande e uma
pequena costeleta. A carne crua é representada com uma
precisão fisiológica, o mesmo realismo cruel com que são
retratados os peitos caídos e o pênis pendente, flácido,
apenas uns poucos centímetros atrás da comida crua. E
como se você estivesse olhando pela vitrine de um açougue
e visse não apenas a carne, mas também a anatomia sexual
do casal. Toda vez que penso em Consuela, me lembro
daquela coxa de carneiro crua, que parece um porrete
primitivo, ao lado dos corpos deste marido e desta mulher,
exibidos do modo mais escancarado. A presença da carne
ali, tão perto do colchão onde está o casal, fica cada vez
menos incongruente quanto mais tempo você olha para o
quadro. Há uma resignação melancólica na expressão um
tanto aparvalhada da mulher, e há aquele pedaço de carne
cortado no açougue que já não tem mais nada em comum
com um carneiro vivo, e já faz três semanas, desde a visita
de Consuela, que não consigo tirar da cabeça essas duas
imagens.
Ficamos vendo o ano-novo chegar em todo o mundo,
aquela histeria coletiva sem sentido que foi a comemoração
da virada do milênio. Um espetáculo de luzes em cada fuso
horário, e nenhum deles provocado por Bin Laden.
Explosões de luz no céu noturno de Londres, mais
espetaculares do que qualquer coisa que já foi vista por lá
desde os esplendores de fumaça colorida do tempo da
Segunda Guerra. E a Torre Eiffel cuspindo fogo, a imagem
exata de um lança-chamas que Wernher von Braun poderia
ter projetado para o arsenal destruidor de Hitler — o
histórico míssil dos mísseis, o foguete dos foguetes, a bomba
das bombas, tendo a antiqüíssima Paris como plataforma de
lançamento e toda a humanidade como alvo. Ao longo de
toda aquela noite, em todas as estações do mundo, a paródia
do fim do mundo que estamos aguardando, nos nossos
abrigos de quintal, desde 6 de agosto de 1945. Como poderia
aquilo não acontecer? Até mesmo naquela noite,
especialmente naquela noite, as pessoas se preparando para
o pior como se a noite fosse um longo exercício de defesa
antiaérea. A espera pelo momento em que uma seqüência
de horrendas Hiroximas entrariam em cadeia sincronizada,
destruindo todas as civilizações sobreviventes do mundo. E
agora ou nunca. E acabou não acontecendo.
Talvez fosse isso que todos estavam comemorando — o fato
de que não aconteceu, acabou não acontecendo, que a
destruição final agora não vai acontecer nunca. Toda a
desordem não passa de desordem controlada, pontuada por
intervalos para vender automóveis. A televisão fazendo o
que ela faz melhor: a vitória da trivialização sobre a tragédia.
O Triunfo da Superfície, com Barbara Walters. Em vez da
destruição de cidades seculares, uma explosão internacional
de superficialidade, uma onda global de sentimentalismo,
algo que nem mesmo os americanos jamais tinham visto. De
Sydney a Belém à Times Square, a recirculação de clichês a
uma velocidade supersônica. Nenhuma bomba explode,
nenhum sangue se derrama — a próxima explosão que você
ouvir vai ser o boom da prosperidade, os mercados em alta.
O mínimo de lucidez a respeito do sofrimento banalizado
por essa nossa época sedada pela estimulação grandiosa da
maior de todas as ilusões. Ao testemunhar essa produção
exagerada de um pandemônio ensaiado, ocorre-me a ima-
gem de um mundo endinheirado entrando, entusiasmado,
numa próspera era das trevas. Uma noite de felicidade
humana para dar início à barbarie.com. Para dar as boas-
vindas à merda e ao kitsch do novo milênio. Uma noite para
ser não lembrada, e sim esquecida.
Menos no sofá, onde estou abraçado a Consuela, meus
braços envolvendo seu torso nu, aquecendo-lhe os seios
com as mãos enquanto vemos o ano-novo chegar em Cuba.
Nem eu nem ela esperávamos que aquilo aparecesse na tela,
mas eis que nos defrontamos com Havana. Num anfiteatro
em que mil turistas estão arrebanhados e que ostenta o
nome de boate, vemos uma versão embalsamada, estilo
estado policial, da espécie de espetáculo caribenho caliente
que atraía clientes endinheirados outrora, no tempo da
máfia. A Boate Tropicana do Hotel Tropicana. Não há
nenhum cubano ali, fora os artistas que estão tentando, sem
sucesso, divertir a platéia: um bando de jovens — noventa e
seis ao todo, segundo a rede ABC — com trajes brancos
ridículos, não exatamente dançando nem cantando, e sim
dando voltas no palco, urrando para os microfones que
levam nas mãos. As moças parecem travestis latinos do
West Village com pernas compridas, andando de um lado
para outro, todas melindrosas. Levam na cabeça uns abajures
avantajados — de um metro de altura, segundo a ABC. Um
abajur na cabeça e uma cascata de babados brancos nas
costas.
"Meu Deus", exclamou Consuela, e começou a chorar.
"Isto", disse ela, feroz, "é isto que ele mostra ao mundo. E
isto que ele mostra a todo mundo na noite de ano-novo."
"Realmente, é uma farsa grotesca. Quem sabe", acrescento,
"se o Fidel não está tentando fazer graça."
Será mesmo, me pergunto? Será que isso é uma auto-sátira
inconsciente — será que Fidel Castro está tão desconectado
da realidade — ou será uma sátira intencional, coerente com
o ódio que lhe inspira o mundo capitalista? Fidel Castro, que
nutria tanto desprezo pela corrupção de Batista, uma
corrupção que, era de se esperar, seria simbolizada para ele
pelas boates para turistas como essa Tropicana — e é isso
que ele mostra na virada do milênio? O papa não faria isso
— esse entende tudo de relações públicas. Só mesmo a
falecida União Soviética teria sido capaz de uma vulgaridade
assim, fidel Castro poderia ter escolhido tantas coisas, tantos
quadros tradicionais de realismo socialista: uma
comemoração num canavial, numa maternidade, numa
fábrica de charutos. Trabalhadores cubanos felizes fumando,
mães cubanas felizes sorrindo, recém-nascidos cubanos
felizes mamando... mas apresentar um espetáculo pega-
turista de merda como aquele? Seria de propósito, seria
burrice, seria uma tentativa de gozar toda essa comemoração
histérica de um momento absolutamente sem sentido na
História? Seja qual for o motivo, ele se recusa a gastar um
centavo. Recusa-se a parar para pensar um minuto. Por que
motivo Fidel Castro, o revolucionário, haveria de parar para
pensar — por que motivo qualquer um haveria de parar para
pensar numa coisa que nos dá a impressão de que estamos
compreendendo algo que não estamos compreendendo? A
passagem do tempo. Estamos nadando, afundando no
tempo, até que por fim nos afogamos e sumimos. Esse não-
evento é transformado num grande evento enquanto
Consuela, à meu lado, está sofrendo o pior evento de toda a
sua vida. O Grande Fim, embora ninguém saiba o que é, se é
que é alguma coisa, está chegando ao fim, e sem dúvida
ninguém sabe o que está começando. É uma comemoração
entusiástica de algo que não se sabe o que é.
Só Consuela sabe, porque agora conhece a ferida da idade.
Envelhecer é inimaginável para todos, menos os que estão
envelhecendo, mas agora para Consuela é diferente. Ela já
não mede o tempo como os jovens, contando para trás a
partir do momento em que tudo começou. O tempo para os
jovens é sempre composto do que passou, mas para
Consuela o tempo agora é o futuro que ainda lhe resta, e ela
crê que não lhe resta mais nada. Agora ela mede o tempo
contando para a frente, contando o tempo pela proximidade
da morte. Quebrou-se a ilusão, a ilusão metronômica, a idéia
tranqüilizadora de que, tique-taque, tudo acontece na hora
certa. Agora ela tem uma consciência do tempo idêntica à
minha, ainda mais acelerada e desesperada que a minha. Na
verdade ela me ultrapassou. Porque eu ainda posso dizer a
mim mesmo: "Não vou morrer daqui a cinco anos, talvez
até nem mesmo daqui a dez anos, estou em forma, estou
bem de saúde, posso até viver mais vinte", enquanto ela...
O mais belo dos contos de fada da infância é que tudo
acontece na ordem certa. Nossos avós morrem muito antes
dos nossos pais, e nossos pais morrem muito antes de nós.
Os que têm sorte acabam tendo mesmo essa experiência, as
pessoas vão envelhecendo e morrendo na ordem certa, de
modo que, no enterro, você aplaca sua dor pensando que
aquela pessoa teve uma longa vida. Nem por isso a morte se
toma uma coisa menos monstruosa, mas é esse o truque que
utilizamos para manter intacta a ilusão metronômica, e para
afastar de nós a tortura do tempo: "Fulano teve uma vida
bem longa". Mas Consuela não teve essa sorte, e assim, a
meu lado, condenada à morte, ela assiste àquela
comemoração que se prolonga por toda a noite na tela da
tevê, uma histeria infantil fabricada em torno do futuro
infinito, uma fantasia que os adultos maduros, com seu
conhecimento melancólico de que o futuro é muito
limitado, não podem nutrir. E nesta noite enlouquecida
ninguém tem um conhecimento mais melancólico do que
ela.
"Havana", diz ela, chorando cada vez mais, "eu achava que
um dia ia conhecer Havana." "Você vai conhecer Havana."
"Não vou, não. Ah, David, meu avô..." "Sim, o que tem o
seu avô? Pode falar, fala comigo, vamos." "Meu avô ficava
sentado na sala..." "Sim." Eu ainda a estava abraçando
quando ela começou a falar sobre si própria de uma maneira
como nunca havia falado antes, porque nunca havia
precisado, talvez porque antes não se conhecia como se
conhecia agora. "Com a tevê ligada na NewsHour, ou na
MacNeil-Lehrer NewsHour, e de repente", prosseguiu ela,
chorando copiosamente, "ele suspirava: 'Pobre Mama. Ela
tinha morrido em Havana sem ele. Porque a geração dela,
aquela geração, não foi embora. 'Pobre Mamá.' 'Pobre Papá.'
Eles ficaram lá. Ele tinha essa tristeza, essa saudade deles.
Um anseio terrível, terrível. E o que eu sinto também. Só
que é de mim mesma. Da minha vida. Eu apalpo meu corpo,
com minhas próprias mãos, e penso: Isto aqui é o meu
corpo! Ele não pode desaparecer! Isso não pode ser verdade!
Não pode estar acontecendo! Como é que ele pode
desaparecer? Eu não quero morrer! David, eu tenho medo
de morrer!" "Consuela, querida, você não vai morrer. Você
está com trinta e dois anos. Você não vai morrer tão cedo."
"Eu fui criada como uma exilada. Por isso tenho medo de
tudo. Você sabia que eu sou assim? Eu tenho medo de
tudo." "Ah, não. Não acredito. De tudo? Pode ser que você
esteja assim hoje, mas..." "Não é só hoje, é sempre. Eu não
queria ser exilada como a minha família. Mas a gente passa a
infância ouvindo dizer: Cuba, Cuba, Cuba, o tempo todo... E
olha só! Essa gente! Essa gente vulgar! Veja o que ele fez
com Cuba! Eu nunca vou conhecer Cuba. Nunca vou ver a
casa. Nunca vou ver a casa deles." "Vai, sim. Quando o Fidel
morrer..." "Eu vou morrer antes." "Não vai, não. Você vai
estar viva. Não entre em pânico. Não há motivo para entrar
em pânico. Tudo vai dar certo, você não vai morrer..."
"Você quer saber qual a imagem que eu tenho? De Cuba?
Que eu tive a vida toda? A minha imagem mental de Cuba?"
"Quero. Conta pra mim. Tenta ficar mais calma e me conta
tudo. Quer que eu desligue a tevê?" "Não — não. Eles vão
mostrar outra coisa. Eles têm que mostrar outra coisa." "Me
fala sobre a sua imagem mental, Consuela." "Não é a praia,
nada disso. Essa é a imagem dos meus pais. Eles sempre
falavam na praia, era tão divertido, as crianças correndo pela
areia, as pessoas sentadas em espreguiçadeiras, tomando
drinques. Eles alugavam uma casa na praia, e não sei que
mais, mas não era essa a lembrança que eu tinha, não. Era
diferente. Eu tenho ela desde menina. Ah, David — eles
enterraram Cuba muito antes de ser enterrados. Não tiveram
opção. Meu pai, meu avô, minha avó, todos eles sabiam que
nunca iam voltar. E não voltaram, mesmo. E agora eu não
vou, também não." "Você vai", insisti. "Qual é a imagem que
você tem desde menina? Me diz. Vamos", disse eu. "Eu
sempre achei que ia voltar. Só pra ver a casa. Que ela ia estar
lá." "A sua imagem mental é da casa?", perguntei. "Não. É
uma rua. El Malecón. Onde tem fotos de Havana sempre
tem uma de El Ma- lecón, essa rua linda à beira-mar. Tem
um muro, e em todas as fotos as pessoas estão sentadas nesse
muro, conversando. Você viu Buena Vista Social Club?" "Vi.
Por sua causa, é claro que vi. Pensei em você quando vi."
"Pois é aquela rua", disse ela, "onde as ondas quebram.
Aquele muro. Só aparece numa cena rápida. Era lá que eu
sempre me imaginava." "A rua do que podia ter sido", disse
eu. "Do que devia ter sido", Consuela corrigiu, e mais uma
vez começou a chorar de modo descontrolado enquanto na
tela da tevê, sob o peso daqueles abajures (cada um deles,
somos informados, pesa seis quilos), as garotas andam de um
lado do palco para o outro, sem rumo. Sim, não há dúvida: é
dessa maneira que Fidel Castro está mandando o século XX
se foder. Porque chegou ao fim a aventura dele na História,
também, a marca que ele deixou e não deixou no rol dos
eventos humanos. "Me diga uma coisa", disse eu. "Você
nunca me contou isso antes. Você não falava assim oito
anos atrás. Naquele tempo, você escutava. Minha aluna. Eu
nunca soube de nada disso. Continua. Me fala sobre o que
devia ter sido." "Aquele muro", disse ela, "e eu. Só isso. Eu
lá, conversando com as pessoas. É isso. Você está à beira-
mar mas está na cidade. É um ponto de encontro. E um
lugar pra se passear." "É, mas no filme parecia bem
maltratado", disse eu. "E verdade. Mas não é assim que eu
vejo aquela rua desde menina."
E então a dor, então o peso da tristeza, por tudo que sua
família havia perdido, pelo pai e os avós que morreram no
exílio, por ela própria, que estava prestes a morrer no exílio
(e um exílio que ela jamais vivenciara de modo tão cruel
quanto agora), por toda a Cuba dos Castillo que Fidel Castro
havia estragado, por tudo que ela tinha medo de ter que
abandonar — tudo aquilo era tão forte que, nos meus
braços, por uns bons cinco minutos, Consuela enlouqueceu.
Eu vi, externalizado, o terror que seu corpo estava sentindo.
"O que foi? Consuela, o que é que posso fazer por você? Me
diz que eu faço. O que é que está torturando tanto você?"
E eis o que ela me disse, quando conseguiu falar. Para minha
surpresa, foi isto que ela me disse, que era o que mais a
torturava. "Eu sempre respondia a meus pais em inglês. Ah,
meu Deus. Como eu me arrependo por não ter falado com
ele em espanhol." "Ele quem?" "Meu pai. Ele adorava
quando eu o chamava de 'pap'. Mas, depois que eu cresci
um pouco, eu não queria mais. Eu o chamava de 'dad'. Para
mim, era importante. Eu queria ser americana. Não queria
aquela tristeza toda deles." "Minha querida, agora não faz
mais diferença como você chamava o seu pai. Ele sabia que
você o amava. Ele sabia o quanto..." Mas era impossível
consolá-la. Eu nunca a ouvira falar daquele jeito, nem fazer
algo semelhante ao que ela fez depois disso. Em toda pessoa
tranqüila e razoável existe uma outra pessoa escondida, que
morre de medo da morte, mas para uma pessoa de trinta e
dois anos o tempo que separa o agora da hora da morte
normalmente é tão imenso, tão infinito, que no máximo
umas duas vezes por ano, e mesmo assim só por um
momento ou dois, tarde da noite, chegamos perto de
conhecer aquela outra pessoa escondida, no estado de
loucura que é a vida cotidiana daquela outra pessoa.
O que ela fez então foi tirar o chapéu. Jogou o chapéu longe.
O tempo todo ela estava com aquela espécie de barrete,
mesmo quando estava nua, quando eu fotografava seus
seios. Mas agora ela tirou o chapéu. Num assomo de loucura
de réveillon, jogou longe aquele chapéu de réveillon.
Primeiro, a farsa de Fidel Castro, aquele show de boate
pretensamente sexy, e agora a mortalidade de Consuela
totalmente exposta.
Era terrível vê-la sem o chapéu. Uma mulher tão jovem, tão
bela, com aquele cabelo ralo, pêlos muito curtos, finos, sem
cor, sem sentido — teria sido melhor vê-la careca, depois de
passar a navalha, do que com aquela penugem idiota na
cabeça. A transição que há entre pensar numa pessoa tal
como você sempre pensou nela — viva como você — e
alguma coisa que indique para você, como aquela penugem
indicou para mim, que a pessoa está próxima da morte, está
morrendo — isso para mim foi não apenas um choque, mas
também uma traição. Eu traía Consuela por absorver tão
rapidamente o choque e registrar o ocorrido. O momento
traumático da mudança chega quando você se dá conta de
que as expectativas do outro não podem mais ser como as
suas, e que, por melhor que você se comporte e continue a
se comportar, essa outra pessoa vai embora antes de você —
se você tiver sorte, muito antes.
O horror. Lá estava ele. Todo o horror naquela cabeça. A
cabeça de Consuela. Beijei-a e beijei-a. Que mais eu podia
fazer? O veneno da quimioterapia. Tudo que ele fizera em
seu corpo. Tudo que fizera em sua cabeça. Trinta e dois anos
de idade, e acha que está exilada de tudo, vivendo cada coisa
pela última vez. Mas e se não for verdade? E se...
Pronto! O telefone! Pode ser...! Que horas? São duas da
madrugada. Com licença!
Era, mesmo. Era ela. Ela me telefonando. Finalmente. Te-
nho que ir. Ela está em pânico. A cirurgia vai ser daqui a
duas semanas. Ela terminou a quimioterapia. Pediu para eu
falar sobre a beleza do corpo dela. Por isso demorei tanto.
Era isso que ela queria ouvir. Era sobre isso que ela ficou
falando quase uma hora. O corpo dela. Você acha que
depois da operação algum homem vai amar meu corpo? Essa
é a pergunta que ela faz sem parar. E que eles resolveram
tirar o seio inteiro. Antes planejavam cortar embaixo do seio
e tirar só um pedaço. Mas agora eles acham que a coisa é
muito séria. O jeito é tirar tudo. Há dez semanas disseram a
ela que só iam tirar uma parte, e agora disseram que vão ter
que tirar tudo. Veja bem, estou falando de um seio. Não é
uma coisa pequena. Hoje de manhã disseram a ela o que vai
acontecer; agora é noite, ela está sozinha, e só de pensar em
tudo isso... Tenho que ir. Ela me quer lá. Ela quer que eu
durma na cama dela, com ela. Ela passou o dia todo sem
comer. Ela precisa comer. Alguém tem que dar comida a
ela. E você? Pode ficar se quiser. Se quiser ficar, se quiser ir
embora... Olha, eu não tenho tempo, tenho que correr!
"Não."
O quê?
"Não vá."
Mas eu preciso. Alguém tem que ficar com ela.
"Ela vai encontrar alguém."
Ela está apavorada. Eu vou.
"Pensa bem. Pensa. Porque se você for, pra você é o fim."


 
 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
O Animal Agonizante - Philip Roth
 
 
links ao final da mensagem
 
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
Sinopse:
 
O Anila Agonizante é um monólogo de um homem inteligente movido por uma obsessão sexual, dirigido a um interlocutor que só no final se pronuncia. Apesar de alguns toques de humor, trata-se essencialmente de uma tragédia. Para Kepesh, sensualista assumido, o envelhecimento em si já é trágico: "ser velho significa também que, apesar e além de ter sido, você continua sendo [...] e a consciência de continuar sendo é tão avassaladora quanto a consciência de ter sido". Além disso, o envolvimento com Consuela compromete sua crença na possibilidade de desfrutar as mulheres.
 
 
 
 
 


PASTAS LANÇAMENTOS Genesis do Conhecimento:


http://rapidshare.com/users/KPGYUD

http://www.mediafire.com/?q6ebsi7j6b5cv






Este e-book representa uma contribuição do grupo Genesis do Conhecimento para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir, direta ou indiretamente, benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras



INFORMAÇÃO:
o Grupo Genesis do Conhecimento está de volta ao Google Groups

* Página inicial do grupo:
http://groups.google.com.br/group/genesis_do_conhecimento
* Endereço de e-mail do grupo:
genesis_do_conhecimento@googlegroups.com
Animacoes GRATUITAS para seu e-mail – do IncrediMail! Clique aqui!

0 comentários:

Postar um comentário

Vida de bombeiro Recipes Informatica Humor Jokes Mensagens Curiosity Saude Video Games Car Blog Animals Diario das Mensagens Eletronica Rei Jesus News Noticias da TV Artesanato Esportes Noticias Atuais Games Pets Career Religion Recreation Business Education Autos Academics Style Television Programming Motosport Humor News The Games Home Downs World News Internet Car Design Entertaimment Celebrities 1001 Games Doctor Pets Net Downs World Enter Jesus Variedade Mensagensr Android Rub Letras Dialogue cosmetics Genexus Car net Só Humor Curiosity Gifs Medical Female American Health Madeira Designer PPS Divertidas Estate Travel Estate Writing Computer Matilde Ocultos Matilde futebolcomnoticias girassol lettheworldturn topdigitalnet Bem amado enjohnny produceideas foodasticos cronicasdoimaginario downloadsdegraca compactandoletras newcuriosidades blogdoarmario arrozinhoii