sábado, 2 de abril de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> A Lista de Schindler.txt, Gulag, Uma história dos campos dos prisioneiros soviéticos - Anne Applebaum.txt e Miklos Nyiszli (Dr.) - Auschwitz, O Testemunho de um Médico (txt)(rev).txt

Dr. MIKLOS NYISZLI
AUSCHWITZ
O testemunho de um médico
PREFÁCIO
Foi COM ALGUMA hesitação que aceitei o convite para prefaciar este livro. Auschwitz é, fora de dúvida, um livro honesto e importante. Ele fala de acontecimentos
que, apesar de chocantes, precisam ser contados e recontados até que seu significado seja compreendido em nosso tempo. Não é um livro de penetração direta no significado
dos campos de extermínio, mas no destino do autor reside muito de sua significação. Além de tudo, apesar da alegação do autor, é o livro de um médico. Outros médicos
já escreveram outros livros sobre suas experiências nos campos de concentração: por exemplo, o psiquiatra Dr. Victor E. Frankl, que também escreveu sobre Auschwitz.
Mas Frankl não ajudou os SS em suas experiências com seres humanos; ele não aviltou sua profissão, unindo-se aos outros tão justamente chamados de doutores da infâmia.
Ao invés de ajudar os médicos SS a matar gente, sofreu como ser humano. Falando de suas experiências, ele cita Hebbel: "Existem coisas que devem causar a perda da
razão, ou então não se tem nenhuma para perder". Um dos colegas de profissão do Dr. Nyiszli perdeu a razão, e a descrição de como isso aconteceu não é apenas uma
das melhores partes do livro, é, principalmente, a mais reanimadora. Houve, e ainda há, gente que perde o juízo quando há razão suficiente para isso.
Outros não enlouqueceram porque, como o Dr. Franlcl e milhares de prisioneiros de outros campos de concentração, nunca aceitaram sua sorte, mas lutaram contra
ela. Muito justamente o Dr. Nyiszli dedica bastante do seu espaço aos homens do décimo-segundo Sonderkommando, prisioneiros encarregados das câmaras de gás. Únicos
de todos os kommandos, esses homens redescobriram a liberdade nos últimos dias de suas existências, e justo no último dia ganharam essa liberdade; portanto, eles
morreram como homens, não como cadáveres ambulantes. Bastaria o relato desse Sonderkommando para tornar esse livro um importante documento. Mas a sorte desse kommando
levanta ainda mais agudamente a questão: por que apenas um dos quatorze kommandos se rebelou? Por que todos os restantes marcharam submissos para a morte? Por que
milhões de prisioneiros fizeram o mesmo? Seguramente a história desses 800 homens é uma saga heróica dos campos de extermínio; é uma história que restaura nossa
confiança no ser humano. Eles fizeram o que se espera que todo ser humano faça: usar a sua morte, se não puder salvar a vida, para enfraquecer ou atrapalhar o inimigo,
o máximo possível; usar seus corpos condenados para tornar o extermínio mais difícil ou talvez impossível, mas não um processo suave e contínuo. A história deles,
assim, permanece numa dimensão humana. Se puderam fazê-lo, também os outros o poderiam. E por que não o fizeram? Por que atiraram fora suas vidas ao invés de tornar
as coisas mais difíceis para o inimigo? Por que presentearam os SS com suas vidas ao invés de fazê-lo a suas famílias, a seus amigos ou mesmo a seus companheiros
de cativeiro? Essa é a questão cruciante.
Em seus indícios para uma resposta está a importância desse livro. É uma história inacreditável, mas que todos nós sabemos ser verdadeira. Desejamos esquecê-la.
Ela simplesmente não se encaixa no nosso sistema de idéias e de valores. E pior do que reformá-la, nós queremos negar a história dos campos de extermínio nazistas.
Se pudéssemos, preferiríamos pensar que ela jamais aconteceu.
A história da Humanidade e, em particular, a do mundo Ocidental, está repleta de perseguições por motivos religiosos ou políticos. Milhares de pessoas foram
exterminadas em outros séculos também. A própria Alemanha foi despovoada pela Guerra dos Trinta Anos, durante a qual morreram milhões de civis. E se duas bombas
atômicas não tivessem sido suficientes, teríamos talvez outros tantos milhões exterminados no Japão. A guerra é horrível, e a crueldade do homem para com o próprio
homem o é ainda mais. Assim, a importância dos relatos sobre o que se passou nos campos de concentração reside, não nas histórias, que já nos são bem familiares,
mas em algo muito mais incomum e horrorizante. Está numa nova dimensão do homem, num aspecto que todos nós desejamos esquecer, mas esquecer por nossa própria conta.
Estranho como pode parecer, o extraordinário nos campos de extermínio não é o fato dos alemães terem matado milhões de pessoas, pois até isso nos é possível aceitar
pela imagem que temos do homem, embora por séculos nada semelhante tenha sido feito nessa proporção e nunca talvez com tamanha perversidade. O que é novo, singular
e terrificante, é que milhões de pessoas tenham marchado como carneirinhos para a morte. É isso que é inacreditável, é isso que nós temos de chegar a compreender.
Bastante estranho também é o fato de ter sido um austríaco quem construiu o instrumento para esse entendimento, c outro austríaco cujos atos forçaram uma
inelutável necessidade para compreendermos. Anos antes de Hitler enviar milhões de seres humanos para a câmara de gás, Freud afirmava que a vida humana é uma longa
batalha contra o que ele chamava de instinto de morte, e que nós precisávamos aprender a manter essa tendência destrutiva sob controle, caso contrário ela nos levaria
à destruição. O século XX acabou com as antigas barreiras que até então impediam nossas tendências destrutivas de correr à solta, não só na sociedade como também
em nós mesmos. Estado, família, igreja, sociedade, todos foram questionados e julgados carentes. Assim, seu poder para restringir ou canalizar nossas tendências
destrutivas foi enfraquecido. A reavaliação de todos os valores que Nietzsche (profeta de Hitler, apesar do "führer", como outros, não compreendê-lo nem um pouco)
prognosticava que seria exigida do homem ocidental, caso ele quisesse sobreviver à era da máquina, esta reavaliação ainda não havia sido conseguida. Os velhos meios
de controle do instinto de morte haviam perdido muito de sua força, e a nova e mais alta moralidade que deveria substituí-los ainda não havia surgido. Nesse interregno
entre a velha e a nova organização social — entre a obsoleta organização interna do homem e a nova estrutura ainda não alcançada — pouca coisa havia sido deixada
para controlar os instintos destruidores do homem. Nesse tempo, somente sua habilidade pessoal para controlar seu próprio instinto destruidor pode protegê-lo quando
as forças destrutivas de outros, como no caso de Hitler, correm à solta.
Esse não ser o dono de seu próprio instinto de morte pode assumir várias formas. A forma que tomou naqueles campos de extermínio, a de prisioneiros encaminhando-se
passivamente para as câmaras de gás, começou com a adesão deles à idéia de que os negócios devem continuar como de costume. Aqueles que tentaram servir seus carrascos,
continuando a fazer o que era antes sua ocupação civil, (nesse caso a medicina), estavam apenas continuando, senão negócios, pelo menos a vida como de costume.
Assim abriram as portas para a morte.
Muito diferente era a reação daqueles que interromperam os negócios costumeiros e não se juntaram aos SS nas experimentações e extermínios. Alguns desses,
que sobreviveram para contar suas experiências, faziam desesperadamente uma pergunta: Como era possível que as pessoas negassem a existência da câmara de gás quando
diariamente viam os fornos queimando e sentiam o cheiro da carne queimada? Como é que preferiam não acreditar no extermínio somente para evitar ter que lutar por
suas próprias vidas? Por exemplo, Lengyel (em Five Chimneys, a história de Auschwitz, Chicago: Ziff Davis, 1947) relata que, embora ela e seus companheiros
vivessem apenas a poucas dezenas de metros do crematório e das câmaras de gás, e soubessem do que se tratava, ainda assim, durante meses, muitos prisioneiros negaram
ter conhecimento deles. Os civis alemães negavam as câmaras de gás também, porém a negativa por parte deles não tinha o mesmo significado. Civis que enfrentaram
os fatos e se rebelaram estavam atraindo a morte. Os prisioneiros de Auschwitz já estavam condenados. A rebelião poderia somente ter salvo ou a vida que eles iriam
perder de qualquer maneira ou a de outros. Quando Lengyel e muitos outros prisioneiros foram selecionados para serem enviados para a câmara de gás, eles não tentaram
escapar como ela o fez e foi bem sucedida. Pior ainda, quando ela tentou escapar pela primeira vez, alguns dos prisioneiros selecionados com ela para a câmara
de gás chamaram os supervisores e contaram-lhes que Lengyel pretendia fugir. Lengyel não dá maior explicação para o fato, exceto que não viam com bons olhos qualquer
um que quisesse safar-se do destino comum, Porque eles não tinham coragem suficiente para se arriscar. Eu creio que agiam desta forma porque haviam aberto
mão do desejo de viver e, assim, permitido que seus instintos de morte dominassem a situação. O resultado disso é que eles agora se identificavam mais com os SS
que se devotavam a executar suas tendências destrutivas, do que com os prisioneiros que ainda se mantinham agarrados à vida e tentavam escapar da morte.
Mas, desistir da própria vida e não mais desafiar o instinto de morte, que em termos mais científicos é chamado o princípio da inércia, foi somente o último
passo. O primeiro foi dado muito tempo antes de entrarem nos campos da morte. Foi a inércia que levou milhões de judeus aos guetos que a SS criou para eles. Foi
a inércia que fez milhares de judeus ficarem sentados em casa, esperando por seus carrascos quando estavam sob prisão domiciliar. Aqueles que não se deixaram levar
pela inércia fizeram da imposição dessas restrições um aviso de que era chegada a hora de descer aos subterrâneos, juntar-se aos movimentos de resistência, conseguir
papéis forjados, etc, se ainda não o tivessem feito há mais tempo. A maioria sobreviveu. Por outro lado, a inércia entre os não judeus não era a mesma coisa. Não
era a morte certa que os encarava de frente, mas a opressão. A submissão e a negativa dos crimes da Gestapo eram, no caso deles, uma tentativa desesperada de sobreviver.
A margem deixada para a vida humana era mínima, mas ainda existia. Então o mesmo padrão de comportamento que em um caso o ajudava a sobreviver, no outro não adiantava.
Era um comportamento realista para os alemães, enquanto que os judeus e prisioneiros do campo, cuja maioria esmagadora era judia, estavam se enganando a si próprios.
Quando os prisioneiros começaram a servir seus executores, a ajudá-los a apressar a morte de seus companheiros, então as coisas passaram além da simples inércia.
Nesse momento, o instinto de morte, correndo livre, havia se aliado à inércia.
Lengyel também menciona o Dr. Mengele, um dos protagonistas de Auschwitz, como um típico exemplo da atitude de que apesar de tudo — os negócios devem continuar
como de costume —, pois possibilitava alguns prisioneiros e certamente os SS a manter o mínimo equilíbrio interno que fosse, apesar do que estavam fazendo. Ela descreve
como o Dr. Mengele tomava todas as precauções médicas corretas durante um parto; por exemplo, a observância rigorosa de todos os princípios higiênicos, o corte do
cordão umbilical com o maior cuidado, etc. Mas somente meia hora depois, ele enviava mãe e filho para serem queimados no crematório.
A mesma atitude — os-negócios-devem-continuar-como-de--costume —. que possibilitou ao Dr. Nyiszli funcionar como médico no campo e que o levou a voluntariamente
auxiliar os SS, possibilitou a milhões de judeus viverem nos guetos onde não só trabalhavam para os nazistas, como também selecionavam patrícios seus para irem para
as câmaras de gás. Foi a mesma inércia, senão também a atitude de que apesar de tudo os-negócios-devem-continuar-como-de-costume", que adiou o levante do gueto
de Varsóvia até que quase ninguém ou nenhuma força sobrasse para a luta, e certamente já eram muito poucos para abrir a brecha que poderia ter salvo milhares de
vidas. Tudo isso seria história passada não fosse pelo fato de que a mesmíssima atitude de — negócio-como-de-costume — está por trás da nossa tentativa de esquecer
duas coisas: que homens do século XX, como nós, enviaram milhões de pessoas para as câmaras de gás, e que milhões de pessoas como nós caminharam sem resistência
para a morte. Em Buchenwald, tive oportunidade de conversar com centenas de prisioneiros judeus-alemâes, que foram para ali levados no outono de 1938. Perguntei-lhes
por que não haviam deixado a Alemanha diante das condições degradantes e discriminatórias a que haviam sido submetidos. Sua resposta foi: como poderíamos partir?
Isso significaria abandonar nossas casas, nossos locais de trabalho. Suas propriedades terrenas tinham-se apropriado tanto deles que não podiam sair; ao invés
de usá-las eles estavam sendo usados por elas. Aliás, as leis discriminatórias contra os judeus tinham o objetivo de forçá-los a abandonar a Alemanha, deixando lá
a maior parte de seus bens. Por muito tempo, a intenção dos nazistas era forçar as minorias indesejáveis, tais como a dos judeus, a emigrar. Somente quando isso
não funcionou é que foi instituída a política de extermínio, seguindo também a lógica da ideologia racial nazista. Mas nós nos perguntamos se a idéia de que milhões
de judeus e, mais tarde, os naturais de países ocupados se submeteriam passivamente ao extermínio não viria da constatação de que estavam aceitando a degradação
sem se revoltar? A perseguição aos judeus foi-se acentuando gradativamente, quando nenhuma resistência violenta era oposta. Deve ter sido a aceitação judaica, sem
luta retaliatória, de uma discriminação e degradação cada vez maiores que deu à SS a idéia de que eles poderiam ser levados até o ponto de marchar, por sua própria
conta, para a câmara de gás. Muitos judeus da Polônia, que não acreditavam no "negócio-como-de-costume", sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. À medida que
os alemães se aproximavam, eles abandonaram tudo e fugiram para a Rússia. Muitos não confiavam no sistema soviético, mas se lá eram cidadãos de segunda categoria,
pelo menos eram vistos como seres humanos. Aqueles que ficaram e continuaram com seus negócios habituais atiraram-se nas garras da degradação e morreram. Então,
no fundo, o caminhar para a câmara de gás é somente a última conseqüência da filosofia do — "negócio-como-de-costume" É verdade que o mesmo comportamento
suicida tem outro significado. Significa que o homem pode ser levado até um certo ponto e não mais; que além desse ponto de prefere a morte a uma existência desumana.
Mas o passo inicial para essa terrível opção foi precedido pela inércia.
Talvez uma observação no sucesso universal do livro Diário de Atine Frank possa enfatizar o quanto todos nós desejamos subscrever a filosofia do — "negócio-como-de-costume
— e esquecer que ela apressa nossa destruição. É uma tarefa ingrata ter que criticar um relato tão humano, tão comovente que suscita compaixão pela doce
Anne Frank. Mas creio que o aplauso mundial à sua história só pode ser explicado se nós reconhecermos nosso desejo de esquecer as câmaras de gás e glorificar a atitude
de continuar com "os negócios de costume - mesmo em meio ao holocausto. Enquanto os Franks se preparavam passivamente para a deportação, milhares de judeus, na
Holanda e em outros lugares da Europa, estavam tentando escapar para o mundo livre, para melhor poder combater seus verdugos. Outros que não podiam fazê-lo foram
para a clandestinidade — não simplesmente para esconder-se dos SS, esperando passivamente, sem querer lutar, o dia em que sejam capturados — mas para lutar contra
os alemães, e pela Humanidade. Tudo que os Franks queriam era que a vida continuasse o máximo possível do jeito costumeiro. A pequena Anne também queria continuar
vivendo como de costume e ninguém pode culpá-la. Mas o que lhe aconteceu certamente não era seu destino necessário, muito menos heróico. Era um destino sem sentido.
Os Franks poderiam ter encarado os fatos e ter sobrevivido, como muitos outros judeus na Holanda. Anne poderia ter tido uma boa chance de sobreviver, como tiveram
muitas outras crianças judias na Holanda. Mas para isso, ela precisaria ter se separado de seus pais e ido morar com uma família holandesa como se fosse filha deles.
Todos que reconheciam o óbvio, sabiam que a maneira mais difícil de ir para a clandestinidade era fazê-lo em família; pois esconder-se em família aumentava as possibilidades
de localização por parte dos SS. Os Franks, que tinham excelentes amizades com famílias holandesas não-judias, poderiam ter levado uma boa vida, escondendo-se individualmente,
cada um em uma família diferente. Mas ao invés de planejarem algo desse tipo, seus planos giravam todos em torno de continuar o máximo possível com o tipo de vida
familiar a que estavam acostumados. Qualquer outro caminho não significaria simplesmente abrir mão da estimada família, mas também aceitar a realidade de crueldade
do homem para com o próprio homem. Mais do que tudo, isso os teria forçado a aceitar que a atitude de — "os-negócios-devem-continuar-como-de-costume» - não era um
valor absoluto mas podia às vezes, ser a mais destrutiva de todas as atitudes! Não há muita dúvida de que os Franks, que tinham condições de se proverem de tanta
coisa, poderiam ter conseguido um ou dois revólveres se o desejassem. Poderiam ter liquidado um ou dois dos SS que vieram à sua procura. Não havia um numero ilimitado
de SS. A morte de cada SS para um judeu preso teria danificado fatalmente a máquina policial. A sorte dos Franks não teria sido muito diferente, porque de qualquer
forma todos eles morreram, com exceção do pai de Anne, apesar de não ter pretendido comprar a sobrevivência com o extermínio de sua família Elas poderiam ter vendido
caro suas vidas ao invés de caminhar sem resistência para a morte
Há uma boa razão para o tão aclamado livro terminar com Anne manifestando a sua crença no que existe de bom em todo homem O que é negado é a importância
de se aceitar a realidade das ,das câmaras de gás para que elas nunca mais venham a existir. Se todos os homens são basicamente bons, se continuar com a vida íntima
em família, como se nada tivesse acontecido, é o que deve ser mais admirado, então, sem duvida devemos continuar levando a vida como sempre e esquecer Auschwitz.
Exceto que Anne Frank morreu porque seus pais não quiseram acreditar em Auschwitz. E a história da pequena Anne encontrou grande receptividade porque ela nega implicitamente
que Auschwitz tenha existido. Se todos os homens são bons, não pode haver Auschwitz.
Encontrei muitos judeus e não-judeus antinazistas que sobreviveram na Alemanha e nos países ocupados. Mas eram pessoas que perceberam que, quando o mundo
se está desintegrando, quando a desumanidade reina soberana, não se pode continuar vivendo como se nada tivesse acontecido Deve-se então, fazer uma reavaliação
radical de tudo que se fez. Resumindo, deve-se firmar pé na nova realidade, pisar de verdade e não se retirar para uma realidade idealizada.
Se hoje em dia os negros lutam na África contra as armas da Polícia que defende o apartheid — mesmo que centenas tombem feridos e alguns milhares vão parar
em campos de concentração — a sua revolta, a sua luta irão cedo ou tarde assegurar-lhes a chance de liberdade e de igualdade. Os judeus da Europa poderiam também
ter lutado como homens livres contra os SS, ao invés de rastejar e esperar serem arrebanhados e levados para as câmaras de gás. Sua passividade ao esperar que a
Polícia do Reich batesse à sua porta, sem antes empunhar uma arma para acertar pelo menos um SS antes de serem mortos, foi o primeiro passo na caminhada voluntária
para os crematórios do III Reich.
Enquanto todos os outros relatos de campos de concentração que chegaram às minhas mãos foram feitos por pessoas que nunca conscientemente ajudaram os SS,
o livro do Dr. Nyiszli foi o único relatório escrito por um prisioneiro de campo de concentração que voluntariamente se tornou um instrumento dos SS para permanecer
vivo. Ao fazer a sua opção, o que o Dr. Nyiszli fez, porém, na verdade, foi iludir-se constantemente para conseguir viver consigo mesmo e com sua experiência. E
aqui reside a verdadeira importância desse documento, pelo amparo que a compreensão dele pode oferecer. Porque mesmo no cenário opressivo de Auschwitz, certas defesas
ainda serviam à vida e não ao instinto de morte. Mais importante que tudo era a compreensão do que se estava passando dentro de si mesmo e por quê. Com suficiente
compreensão, o indivíduo não se enganaria tentando acreditar que salvar sua própria pele era salvar-se como pessoa. Ele seria capaz de reconhecer que muito do que
aparentemente parecia protetor era autodestrutivo.
Exemplo disso é o caso dos prisioneiros que se ofereciam para trabalhar nas câmaras de gás, pensando que isso lhes poderia salvar a vida. Todos eles foram
mortos depois de algum tempo. Mas a maioria morria mais cedo e após semanas de uma vida mais terrível do que se eles não se tivessem oferecido para colaborar.
Que o Dr. Nyiszli procurava se iludir, pode ser visto, por exemplo, nas suas referências constantes a seu trabalho como médico, embora trabalhasse como assistente
de um criminoso ignóbil. Ele fala do Instituto de Investigação de Raças, Biologia e Antropologia como "um dos mais qualificados centros médicos do III Reich", embora
o objetivo do instituto fosse provar mentiras deslavadas. Que o autor era médico não muda absolutamente o fato de que, assim como todos os prisioneiros que serviam
aos SS com mais devoção inclusive que alguns SS, foi um participante, um acessório para os crimes nazistas. Como, então, poderia ele fazer isso e sobreviver? Vangloriando-se
de sua capacidade profissional, sem ligar às finalidades para as quais era usada. Aqui e ali o orgulho em sua capacidade profissional é entremeado com o próprio
relato do seu sofrimento e dos outros prisioneiros. O ponto importante é que o Dr. Nyiszli, o Dr. Mengele e centenas de outros médicos muito mais ilustres, homens
treinados muito antes do advento de Hitler, participaram dessas experiências com seres humanos e das pesquisas pseudocientíficas que se seguiram. É esse orgulho
na capacidade e nos conhecimentos profissionais, independente das implicações morais, que é tão perigoso. Essa face da sociedade moderna, orientada para a competência
tecnológica, ainda está viva em nós, apesar de que os fornos crematórios, os campos de concentração e o extermínio de milhões por motivos raciais não mais existam.
Auschwitz se foi, mas enquanto esta atitude permanecer não estaremos a salvo da indiferença criminosa à vida na sua essência.
Recomendo a leitura cuidadosa da descrição de como a primeira tarefa de cada novo Sonderkommando era cremar os cadáveres do kommando anterior, exterminados
poucas horas antes. Recomendo para especulação do leitor a questão: por que, após o décimo-segundo Sonderkommando ter-se revoltado, o décimo-terceiro caminhou passivamente
para a morte sem nenhuma resistência?
Nesta única revolta do décimo-segundo Sonderkommando, setenta SS foram eliminados, incluindo um oficial graduado e dezessete oficiais não graduados; um dos
fornos foi totalmente destruído e o outro seriamente avariado. Todos os oitocentos e cinqüenta e três prisioneiros do kommando morreram, mas isso prova que a posição
do Sonderkommando deu aos prisioneiros uma chance em dez de destruir os SS, uma percentagem maior do que a que existia nos campos de concentração comuns. O Sonderkommando
que se revoltou e impôs aquelas severas baixas ao inimigo não morreu de maneira muito diferente de todos os outros Sonderkommandos. Por que, então, — e essa é a
pergunta que obceca todos que estudam os campos de extermínio — por que, então, milhões de pessoas caminharam calmamente, sem nenhuma resistência, para a morte,
quando bem diante delas havia o exemplo desse kommando que conseguiu destruir e danificar suas próprias câmaras da morte e matar dez por cento de seu próprio número
em SS? Por que tão poucos dos milhões de prisioneiros morreram como homens, como o fizeram os homens desse único kommando?
Talvez que comparando os relatos dos dois médicos que sobreviveram em Auschwitz possamos esboçar uma resposta.
O Dr. Frankl, que durante a prisão procurou continuamente o significado pessoal de sua experiência como prisioneiro de um campo de concentração, dessa forma
encontrou significação profunda de sua vida e da vida em geral. Outros prisioneiros que, como o Dr. Nyiszli, estavam somente preocupados com a simples sobrevivência
— mesmo que isso significasse auxiliar os médicos SS em seus nefandos experimentos com seres humanos — não tiraram conclusões mais profundas de sua horrível experiência.
E assim, eles sobreviveram em corpo, assaltados pelo remorso e pelas recordações dantescas.
Esse livro, pois, é antes de tudo uma fábula de advertência tão velha quanto a Humanidade. Aqueles que procuram proteger o corpo a todo custo, morrem muito
mais vezes. Aqueles que arriscam o corpo para sobreviver como homem têm uma boa chance de viver.
— BRUNO BETTELHEIM
Universidade de Chicago
Maio de 1960
NOTA SOBRE AS ILUSTRAÇÕES
A-s ILUSTRAÇÕES DESTE VOLUME, com três exceções (as de número 1, 2 e 14), foram cedidas pelo Comitê Internacional de Auschwitz, uma organização destinada
a ajudar os sobreviventes do Campo de Concentração de Auschwitz.
Têm particular interesse as fotografias de 5 a 12. O Comitê tem em seus arquivos cerca de 200 fotos, que foram descobertas no Museu Judaico, em Praga. Em
sua grande maioria, as fotografias foram tiradas na primavera ou no verão de 1944, durante a chegada de um comboio de judeus húngaros; em outras palavras, precisamente
o período descrito pelo Dr. Nyiszli em seu livro.
Até mesmo as fotos de Auschwitz na época da libertação são extremamente raras (uma pesquisa realizada nos arquivos da maior agência de fotografias revelou-se
infrutífera — nenhuma foto de Auschwitz) e naturalmente as que datam do período da guerra são ainda mais raras, uma vez que era terminantemente proibido a qualquer
um tirar fotos da rampa de chegada em Birkenau. No caso das fotografias de posse do Comitê Internacional de Auschwitz, no entanto, parece que um membro da SS recebeu
instruções especiais de um dos "Institutos de Pesquisa da Raça" para fotografar a chegada dos comboios na rampa.
Após a libertação da Tchecoslováquia, uma judia hospedou-se numa cidade da área dos sudetos, numa casa anteriormente habitada por um membro da SS — provavelmente
a mesma pessoa que tirou as fotos. Quando examinava as coisas abandonadas pelo ex-oficial nazista descobriu uma série de mais de 200 fotografias, algumas até emolduradas
e com legendas. Vendeu-as ao Museu Judaico de Praga, onde seu extraordinário valor documental permaneceu desconhecido até que um antigo prisioneiro de Auschwitz
apareceu e identificou-as sem qualquer dúvida.
INTRODUÇÃO
EM MEADOS DE MARÇO DE 1944, os alemães invadiram a Hungria. Todos os judeus foram imediatamente colocados sob prisão domiciliar; a deportação começou logo
depois. Em abril, junto com todos os outros judeus de sua cidade, o Dr. Miklos Nyiszli foi despachado para Auschwitz.
Assim que chegou, foi separado de sua mulher e filha, e escolhido pelo carrasco-chefe dos crematórios de Auschwitz, o Obersturmführer Dr. Mengele, para ficar
encarregado de todo o trabalho patológico levado a efeito no campo. Como tal, o Dr. Nyiszli tornou-se membro do Soriderkommando, um grupo de prisioneiros especialmente
qualificado e privilegiado, que trabalhava exclusivamente dentro dos crematórios. Esse Soriderkommando, também conhecido como o "hommando dos mortos-vivos", era
constituído de 860 prisioneiros do sexo masculino, escolhidos por sua capacidade profissional, sua força ou boa constituição física. Enquanto viviam, tinham uma
vida relativamente boa, porém viviam somente durante quatro meses a partir do dia em que entravam no crematório; no fim desse período, eram liquidados e substituídos
por novo grupo de prisioneiros.
Dessa forma, os nazistas esperavam manter longe dos olhos do mundo qualquer indício das ações perpetradas naquelas "fábricas da morte". Eles quase conseguiram:
dos vários relatos e documentos baseados na vida no KZ (os campos de concentração), nenhum, que eu saiba, contou com detalhes as condições dentro do crematório,
pela simples razão de que o portão de entrada para os crematórios era o portão da morte. Quase milagrosamente, o Dr. Miklos Nyiszli sobreviveu. Através de seus olhos,
nós revivemos não somente os horrores do dia-a-dia da vida no KZ, como também testemunhamos a lenta desintegração de um império que duraria mil anos. Da pena sem
estilo do Dr. Nyiszli, descortina-se o período que vai desde as organizadíssimas "seleções", passando pelos extermínios metódicos dos princípios de 1944, até o impressionante
êxodo que marcou o colapso germânico na primavera de 1945. Digo "pena sem estilo" porque ele próprio declara: "Quando vivi aqueles horrores que ultrapassavam qualquer
imaginação, eu era um médico e não um escritor. Hoje, escrevendo sobre eles, o faço não como um repórter, mas como médico". Aqueles que procuram uma narrativa bem
construída, um estilo literário elegante e expressivo, ficarão desapontados e talvez até irritados algumas vezes com o relato hiperbólico e impressionista da experiência
do autor. Mas num livro dessa natureza, a pedra bruta é o que importa.
_ Naquilo que o Dr. Nyiszli testemunhou poucos acreditarão ou desejarão acreditar, pois a mente humana procura fugir dos sofrimentos e do que lhe é repugnante.
Daí para negar que o tratamento e as torturas aqui descritos pudessem ter acontecido é um simples passo. Mas o fato permanece, eles realmente existiram.
Mas, perguntarão alguns, por que trazer ao público esse documento do sofrimento, por que remexer em velhas cinzas e avivar antigas animosidades? Não seria
melhor esquecer o passado? Belas perguntas, sem dúvida, e talvez fosse realmente melhor não reavivar essas lembranças. Aqueles que viveram nos campos de concentração
não falam abertamente de suas experiências. Eu, pessoalmente, encontrei vários que estiveram em Dachau, Bergen-Belsen e Auschwitz, e raramente ou nunca eles falaram
abertamente sobre esses anos trágicos. A maioria voltou para suas casas e trabalhou para reconstruir suas vidas da melhor maneira possível. Alguns morreram, meses
ou anos após sua libertação, das doenças contraídas no confinamento. Doenças, freqüentemente, tanto mentais quanto físicas: conheci uma menina que tinha dezesseis
anos quando foi libertada e suicidou-se em Paris, em 1954, quase dez anos após a libertação. Ela havia retornado à sociedade, casara-se, tinha um filhinho que adorava,
estava muito bem financeiramente e demonstrava ser uma pessoa de personalidade forte, completamente restabelecida. Seis meses antes de morrer, havia tido um colapso
nervoso e fora mantida sob constante vigilância; porém, seu estado piorava a passos largos, até que depois de várias tentativas o passado conseguiu vir à tona. Assim
como aqueles que tombaram diante das metralhadoras dos SS ou nas câmaras de gás, ela foi vítima tardia do KZ.
Não foi, porém, para condenar uma raça nem para angariar simpatia para aqueles que sofreram e ainda sofrem hoje em dia, que quisemos trazer esse documento
para os leitores. Fizemos isto porque Meyer Levin uma vez disse: "Essas vitimas das atrocidades nazistas deixaram registros fragmentários de suas experiências, elas
arranharam palavras nas paredes, e morreram na esperança de que o mundo viesse algum dia a saber, não por estatísticas, mas por compreensão. Nós temos obrigação
de ouvir"1. Além do mais, um livro como esse pode servir para nos lembrar, apesar da distância que nos separa da realidade dantesca que revela, do que os subprodutos
da guerra podem ser, do que, quando as sociedades se deixam bajular e conduzir por fórmulas baseadas no ódio e no desprezo, o homem é capaz de fazer ao seu semelhante.
Mesmo num mundo de "guerra fria" ou de guerrinhas setoriais quentes, o tratamento sórdido dispensado pelo homem ao seu semelhante nos horroriza e nos parece
inconcebível. Da Coréia, Indochina e Norte da África também nos chegam relatos tão sórdidos quanto esses que vocês vão ler. O turbilhão de acusações e contra-acusações
torna difícil estabelecer quem é o culpado e a qual dos lados cabe a responsabilidade. O que importa, porém, não é a censura aos perpetradores de atrocidades, mas
sim a contínua existência dessas atrocidades. "Não permita a nenhum homem pensar que ele ou sua raça é superior". Auschwitz relembra-nos constantemente, embora de
maneira indireta, esse pensamento. Porque sem a teoria da Raça Superior, os horrores dos campos de concentração nunca teriam acontecido. A teoria da supremacia ariana
foi mais que um simples pretexto para liquidar os judeus da Europa: muitos, mas muitos mesmo, foram seduzidos por essa infame propaganda e começaram a acreditar
ardentemente nela. Assim, meter uma bala na nuca de milhares de homens, ou atirar centenas de homens, mulheres e crianças numa câmara de gás, não precisava de maiores
justificativas. Como membros da Raça Superior, os oficiais nazistas estavam cumprindo sua tarefa sagrada.
O perigo é coletivo; a responsabilidade é individual. Mesmo aqueles que não participaram diretamente das atrocidades, mas tiveram conhecimento, embora vagamente,
de que elas existiam, são culpados. A suástica, assim como a cruz ardente, grassa num clima de medo e ódio. Mas conta com a apatia como seu principal aliado.
Agora, a suástica voltou a aparecer nas paredes dos templos em todo o mundo, lembrando-nos de que não foi totalmente erradicada, como inocentemente achávamos.
Se formos apáticos o bastante, se desculparmos isso como sendo trabalho de desordeiros irresponsáveis (Hitler e seus asseclas foram durante muito tempo "desculpados"
como desordeiros irresponsáveis"), assim como o câncer, poderá crescer e se disseminar. Se o presente documento dá uma contribuição mínima que seja para dissipar
essa apatia perigosa, já serviu a seu propósito.
Nós revelamos também o segredo do suicídio universal. Não é impossível que essa percepção tenha mantido o mundo numa paz relativa desde que Auschwitz foi
destruído há quinze anos. Não é impossível que essa percepção venha a manter o mundo em paz pelas décadas que se sucederão para que, desta forma, o homem possa dirigir
sua energia para o bem ao invés do mal, para dignificar a vida ao invés de destruí-la. Somente se isso acontecer é que os incontáveis milhões de seres humanos que
sofreram e padeceram durante essas guerras não terão morrido em vão.
— RlCHAHD SEAVER
Nova York
Abril de 1960
DECLARAÇÃO
Eu, ABAIXO ASSINADO, Dr. Miklos Nyiszli, médico, antigo prisioneiro dos campos de concentração nazistas, declaro que esse trabalho, que relata os dias mais
negros da História da Humanidade, retrata fielmente, sem o menor exagero, a realidade dos fatos; foi elaborado por mim na condição de testemunha ocular e participante
involuntário do trabalho nos crematórios de Auschwitz, em cujas chamas, milhões de chefes de família, mães e crianças desapareceram.
Como médico-chefe dos crematórios de Auschwitz, expedi numerosos atestados de dissecação e de descobertas em medicina legal, que assinei com meu número tatuado.
Enviei esses documentos pelo correio, endossados com a assinatura de meu superior, Dr. Mengele, para o Instituto de Pesquisa da Raça, Biologia e Antropologia, um
dos mais qualificados centros médicos do III Reich. E ainda deve ser possível encontrá-los lá, nos arquivos desse instituto.
Ao escrever esse trabalho, não objetivo nenhum sucesso literário. Quando passei por esses horrores, que estão além de qualquer imaginação, foi como médico
e não como escritor. Hoje, ao falar sobre eles, escrevo não como um repórter e sim como médico.
Escrito em Oradea-Nagyvarad, março de 1946.
Assinado:
Dr. MIKLOS NYISZLI
AUSCHWITZ
O testemunho ocular de um médico
Para minha esposa e filha
— que retornaram do Campo da Morte
I
MAIO DE 1944. Dentro de cada um dos vagões fechados, noventa pessoas se amontoavam. O fedor das latas de urina, que de tão cheias derramavam, era tão forte
que tornava o ar irrespirável.
O trem dos deportados. Durante quatro dias, quarenta vagões idênticos rodaram sem parar. Primeiro passaram pela Eslováquia, depois pelo território do Governo
Central, conduzindo-nos para um destino desconhecido. Nos éramos parte do primeiro grupo de mais de um milhão de judeus húngaros condenados à morte.
Deixando para trás Tatra, passamos pelas estações de Lublin e Krakau. Durante a guerra, essas duas cidades foram usadas como campos de reagrupamento ou,
para ser mais exato, campos de extermínio, pois ali eram jogados todos os anti-nazistas da Europa para serem eliminados.
Quase uma hora depois de Krakau, o trem fez uma parada diante de uma estação de alguma importância. Tabuletas em letras góticas anunciavam-na como sendo
Auschwitz , nome que nada significava para nós, pois nunca havíamos ouvido falar dele.
Espiando por uma rachadura na parede do vagão, notei um movimento incomum no trem. As tropas SS que até agora nos tinham acompanhado foram substituídas por
outras, o maquinista deixou o trem. Por trechos de conversas, ouvidas ao acaso, percebi que nossa jornada estava chegando ao fim.
Os vagões começaram novamente a rodar e vinte minutos depois parávamos com um prolongado e estridente apito da locomotiva. Pela rachadura pude ver um terreno
desértico: a terra era de argila amarelada igual à da Sibéria Oriental, ponteada aqui e ali por grupos de árvores verdes. Estacas de concreto enfileiravam-se até
a linha do horizonte e, passando por elas, linhas de arame farpado de cima a baixo. Tabuletas avisavam-nos que a cerca era eletrificada e com corrente de alta tensão.
Dentro das imensas praças cercadas pelas estacas estavam milhares de barracões cobertos de papel encerado verde, construídos de maneira a formar uma rede de ruas,
longa e retangular, que ia até onde a vista podia alcançar.
Figuras esfarrapadas, com o uniforme listrado dos prisioneiros, moviam-se no interior do campo. Alguns estavam carregando tábuas, outros balançavam pás e
picaretas e ainda havia aqueles que estavam colocando enormes caixotes em cima de caminhões.
A cerca de arame farpado era interrompida a cada vinte ou trinta metros por torres de observação, no topo da qual havia um SS com uma metralhadora de tripé.
Esse era o campo de concentração de Auschwitz, ou de acordo com os alemães, que adoram abreviar tudo, era o KZ, pronunciado "katset" Não era uma visão nada
estimulante, mas para o momento nossa curiosidade despertada ofuscou grande parte de nosso medo. Olhei em tomo para meus companheiros. Nosso grupo era formado
por vinte e seis médicos, seis farmacêuticos, seis mulheres, nossos filhos e algumas pessoas idosas de ambos os sexos — nossos pais e parentes. Sentados sobre suas
bagagens ou no chão, pareciam cansados e apáticos, seus rostos demonstravam um tipo de pressentimento que mesmo a excitação da chegada não conseguia dissipar. Várias
crianças estavam adormecidas. Outras ficavam catando os restos de comida que havia. O resto, não achando nada para comer, simplesmente tentava molhar os lábios ressecados
com a língua seca.
Do lado de fora, veio o som de passos pesados sobre a areia. Ordens gritadas quebraram a monotonia da espera. As trancas dos vagões foram tiradas. A porta
deslizou devagar e já podíamos ouvi-los dando-nos ordens.
— Saiam todos e tragam apenas a bagagem de mão. A bagagem pesada fica no vagão.
Pulamos para fora e, então, ajudamos a descer nossas mulheres e filhos, pois o chão do vagão ficava a uns dois metros do nível do solo. Os guardas nos alinharam
ao longo dos trilhos. Diante de nós estava um jovem oficial SS, com o uniforme impecável, uma roseta dourada enfeitando a lapela, as botas muito bem polidas. Apesar
de desconhecer as patentes da SS, supus, pela braçadeira, que era um médico. Mais tarde soube que era o médico-chefe do campo de concentração de Auschwitz. Como
"selecionador médico" para o campo, ele estava presente à chegada de todos os trens.
Nos momentos que se seguiram, presenciamos certas fases do que, em Auschwitz, era chamada "seleção". Todos sobreviveriam ou não a essas fases, de acordo
com a sua própria sorte.
Para começar, os SS dividiram-nos por sexo, deixando todas as crianças com menos de quatorze anos com suas mães. Assim, nosso grupo, que era unido, foi separado
em dois. Mas os guardas respondiam a nossas perguntas ansiosas num tom paternal, quase afável. Não precisávamos nos preocupar. Elas estavam sendo levadas para
um banho desinfetante, como de costume. Mais tarde nós nos reuniríamos às nossas famílias novamente. Enquanto nos selecionavam, tive chance de dar uma olhada em
volta. Sob a luz do poente, a imagem vista anteriormente através da fenda do vagão parecia ter mudado, estava mais assustadora e ameaçadora. Uma coisa imediatamente
chamou minha atenção: uma imensa chaminé quadrada, feita de tijolos vermelhos. Tinha o tamanho de um edifício de dois andares e parecia uma estranha chaminé de
fábrica. O que mais me impressionou foram as enormes línguas de fogo subindo pelas hastes colocadas nos quatro ângulos da boca da chaminé. Tentei imaginar que
diabólica comida deviam estar fazendo para precisar de tanto fogo. De repente me lembrei que estávamos na Alemanha, o país dos fornos crematórios. Eu havia passado
dez anos nesse país, primeiro como estudante, depois como médico, e sabia que até a menor cidade tinha seu forno crematório.
Então, a "fábrica" era um crematório. Um pouco mais adiante avistei uma segunda construção com sua chaminé; depois, quase escondida pelas árvores, uma terceira,
cuja chaminé soltava labaredas. Uma brisa suave trouxe a fumaça até nós. Meu nariz e minha garganta se encheram do odor nauseante de carne queimada e cabelo chamuscado.
Bastante comida, pensei. Mas enquanto isso, a segunda fase da seleção havia começado. Numa única fila, homens, mulheres, crianças e velhos tinham
de passar diante do comitê de seleção.
O Dr. Mengele, o "selecionador" médico, fez um sinal. Dividiram-nos novamente em dois grupos. A coluna da esquerda incluía os velhos, os aleijados, os doentes,
as mulheres e as crianças de menos de quatorze anos. A coluna da direita consistia somente de mulheres e homens de bom físico: aptos para o trabalho. Nesse último
grupo notei minha mulher e minha filha de quatorze anos. Não tínhamos mais nenhum jeito de conversar, apenas podíamos fazer sinais um para o outro.
Aqueles demasiado enfermos para andar, os velhos e os dementes, foram colocados em caminhões da Cruz Vermelha. Alguns dos médicos mais idosos do meu grupo
pediram também para ir nos caminhões. Os caminhões partiram e o grupo da esquerda, ladeado pelos SS, foi posto em marcha. Em alguns minutos eles se perderam de vista,
por trás de um grupo de árvores.
A coluna da direita permaneceu parada. O Dr. Mengele ordenou a todos os médicos que dessem um passo à frente; aproximou-se do novo grupo composto de uns
cinqüenta médicos e quis saber quem havia estudado em universidades alemãs, quem tinha bons conhecimentos de patologia e prática em medicina legal. Que desse um
passo à frente.
— Tenham cuidado — advertiu. — Você precisam servir direito para a tarefa, porque do contrário...
- Seu gesto de ameaça não deixou muito para a imaginação. Olhei de relance para os meus companheiros. Na certa estavam intimidados. Qual era a diferença?
Eu já havia me decidido.
Saí da fila e dei um passo à frente. Mengele interrogou-me sem pressa, perguntando onde havia estudado os nomes dos meus professores de patologia, como eu
havia conseguido meu diploma em medicina legal, quanto tempo tinha praticado, etc Aparentemente minhas respostas foram satisfatórias, pois ele imediatamente separou-me
dos outros e ordenou a meus colegas que voltassem a seus lugares. Pelo momento eles estavam livres. Porque eu devo dizer uma coisa agora que naquele momento naturalmente
ignorava, isto é que o grupo da esquerda e aqueles que seguiram nos caminhões passaram momentos depois pelos portões do crematório. Dos quais nunca ninguém voltou.
2
II
Ao ficar sozinho, um pouco afastado dos outros, comecei a pensar nos estranhos e intrincados caminhos do destino. Mas meu pensamento estava na Alemanha,
país onde passei os anos mais felizes da minha vida.
Agora, sobre minha cabeça, as estrelas pontilhavam o céu e a brisa fresca da noite seria muito reconfortante se, de tempos em tempos, não trouxesse o cheiro
dos corpos queimados nos fornos do Terceiro Reich.
Centenas de holofotes, colocados no alto das torres, varriam a escuridão. E já agora atrás da cadeia de luzes parecia que o ar tinha ficado mais denso, envolvendo
o campo num véu espesso através do qual só se viam as silhuetas dos barracões. Já então os carros haviam sido esvaziados. Alguns homens, vestidos com uniforme do
campo, chegaram e descarregaram a bagagem pesada que havíamos deixado, enchendo com elas alguns caminhões. Na escuridão da noite, os quarenta vagões iam lentamente
se afastando até que se fundiam na planície. O Dr. Mengele, tendo acabado de dar instruções às tropas SS, sentou-se ao volante de seu carro e ordenou-me que viesse
junto. Sentei-me no banco de trás, ao lado de um oficial SS, e partimos. O carro pulava loucamente naqueles caminhos de terra do campo, esburacado e cheio de poças
d'água feitas pelas chuvas de inverno. Os holofotes passavam por cima de nós sem cessar, até que paramos, finalmente, em frente a um portão blindado. Uma sentinela
SS veio correndo para dar passagem ao carro. Rodamos mais algumas centenas de metros pela estrada principal do campo, que era margeada de ambos os lados por fileiras
de barracões. Então paramos em frente a uma construção em melhor estado que as outras; pela placa na porta pude ver que se tratava do "Escritório do Campo" Do
lado de dentro, várias pessoas estavam trabalhando em suas mesas. Todos tinham olhar inteligente e expressão refinada. Estavam usando o uniforme de prisioneiros
e imediatamente a nossa chegada ergueram-se. O Dr. Mengele dirigiu-se a um deles um homem de seus cinqüentas anos e de cabeça raspada. Uma vez que eu estava atrás
do Obersturmführer, era-me impossível ouvir o que diziam. O Dr. Sentkeller prisioneiro, e como vim a saber mais tarde, médico do Campo F acenou com a cabeça em
assentimento. A seu pedido, eu me aproximei da mesa de outro prisioneiro. O funcionário mexeu em alguns cartões de arquivo e então fez uma série de perguntas sobre
mim; registrou as respostas primeiro no cartão, depois num livro enorme e entregou o cartão a um guarda SS. Então nós deixamos a sala. Ao passar em frente ao Dr
Mengele inclinei ligeiramente a cabeça. Observando isso, o Dr. Sentkeller não pode deixar de alterar a voz e dizer, mais ironicamente do que com
maldade que tais gentilezas não eram comuns ali e que eu faria bem em não querer bancar o gentleman do KZ.
Um guarda levou-me para outro barracão, em cuja entrada estava escrito "Banhos e Desinfecção", onde eu e meu cartão fomos para outro guarda. Um prisioneiro
aproximou-se de mim e tirou-me a maleta médica, revistou-me e ordenou que me despisse.
Um barbeiro aproximou-se e raspou primeiro a minha cabeça, depois o resto dos pêlos de todo o corpo e me mandou para o chuveiro. Esfregaram minha cabeça
com uma solução de cloreto de cálcio, que queimou tanto meus olhos que não pude abri-los durante vários minutos.
No outro quarto minhas roupas foram trocadas por um paletó pesadão, quase novo, e umas calças listradas. Devolveram-me os sapatos após terem-nos mergulhado
num tanque com a mesma solução de cloreto de cálcio. Experimentei minhas roupas novas e constatei que me serviam razoavelmente bem. (Pensei, quem teria sido o pobre
infeliz que as usara antes de mim?). Antes que pudesse ir adiante em meus pensamentos, veio outro prisioneiro, arregaçou a manga do meu paletó, conferiu o numero
do cartão que eu trazia e habilidosamente começou a fazer uma série de pequenas tatuagens no meu braço, usando uma agulha com um reservatório cheio de tinta azul.
Uma porção de pintinhas azuladas começaram a surgir quase que imediatamente.
— Seu braço inchará um pouco, — ele me explicou — mas daqui a uma semana vai sarar e o número surgirá bem visível.
E assim, eu, Dr. Miklos Nyiszli, tinha deixado de existir; dali por diante seria simplesmente prisioneiro do KZ. número A 8450.
Na mesma hora, outra cena me veio à mente. Quinze anos antes, o Reitor da Faculdade de Medicina da Universidade Friederick Wilhelm, de Breslau, apertava
minha mão e me desejava um brilhante futuro ao me entregar o diploma "com as congratulações do conselho".
III
POR ORA MINHA situação era tolerável. O Dr. Mengele naturalmente queria que eu trabalhasse como médico. Provavelmente seria mandado para alguma cidade alemã
onde o médico local deveria ter sido convocado para o serviço militar e cujas atribuições eram a medicina legal e a patologia. Além do mais, estava cheio de esperança,
pois, devido a ordens expressas do Dr. Mengele, não estava usando o uniforme grosseiro dos prisioneiros e, sim ótimas roupas civis.
Já era quase meia-noite, mas minha curiosidade impedia-me de dormir. Ouvia cada palavra do chefe do barracão. Ele conhecia a completa organização do KZ,
o nome dos comandantes SS de cada seção do campo, assim como o nome dos prisioneiros que ocupavam postos importantes. Fiquei sabendo que Auschwitz não era um campo
de trabalho e, sim, o maior campo de extermínio do III Reich. Ele também me contou da "seleção" que era feita diariamente nos barracões e hospitais. Centenas de
prisioneiros eram embarcados todos os dias em caminhões e levados para os crematórios, somente umas dezenas de metros adiante.
Por intermédio dele tomei conhecimento da vida nos barracões. De oitocentas a mil pessoas eram enfiadas nos compartimentos apertados dos barracões. Sem poder
se estirar completamente, elas dormiam tanto ao comprido quanto sentadas, com os pés de um no pescoço ou peito de outro. Despojadas de qualquer dignidade humana,
elas se chutavam, se mordiam e se empurravam, a fim de conseguir uns centímetros a mais para poder dormir com um pouco mais de conforto, pois não tinham muito tempo
para dormir: o toque de alvorada soava às três da manhã. Então, os guardas, armados com porretes de borracha, arrancavam os prisioneiros de suas "camas". Ainda meio
dormindo, eles eram jogados para fora dos barracões a cotoveladas e pontapés, e imediatamente alinhados. Começava a parte mais desumana do programa do KZ: a chamada.
Os prisioneiros ficavam em fileiras de cinco. Os encarregados colocavam-nos em ordem por altura, os mais altos na frente. Então um outro guarda chegava, o guarda
de serviço do dia para a seção, e, puxando o homem da frente, empurrava-o para trás, de onde trazia o menor da fila. Finalmente o chefe do barracão chegava, bem
vestido e bem alimentado. Ele também vestia o uniforme do campo, porém limpo e passado. Examinava pausadamente as filas para verificar se estava tudo em ordem. Naturalmente
não estava, então agitava os punhos cerrados para aqueles que usavam óculos e os arrastava para trás. Por quê? Ninguém sabia. Na verdade você nem pensa sobre isso,
pois você está no KZ, e aqui ninguém procura respostas racionais para as coisas.
Esse divertimento continuava por várias horas. Eles contavam as filas de homens mais de quinze vezes. De frente para trás, de trás para a frente e de qualquer
outra direção possível de se imaginar. Se uma fila não estivesse irrepreensivelmente reta, todos os outros teriam que ficar lá por mais uma hora — as mãos suspensas
sobre a cabeça e as pernas tremendo de cansaço e frio. Pois, mesmo durante o verão, as madrugadas de Auschwitz eram frias e o uniforme de tecido leve dos prisioneiros
não oferecia muita resistência à chuva e ao frio. No verão e no inverno, a chamada começava às 3 e terminava às 7 da manhã, quando chegavam os oficiais SS.
O chefe do barracão, um obsequioso servidor dos SS, era, na maioria das vezes, um criminoso comum, cuja insígnia verde o distinguia dos.outros prisioneiros.
Ele chamava a atenção e advertia a todos, passando em revista os homens sob seu comando. Depois era a vez dos SS inspecionarem as fileiras: contavam as colunas e
faziam anotações nos caderninhos. Se houvesse algum morto no barracão — e sempre havia geralmente cinco ou seis, às vezes até dez por dia — eles também tinham que
estar presentes, não somente em número, mas fisicamente presentes. Completamente nus, eram segurados por prisioneiros vivos até que a inspeção terminasse. Vivos
ou mortos, o número esperado de prisioneiros tinha que conferir. Acontecia, às vezes, quando havia excesso de trabalho, do kommando, cuja função era passar pelos
barracões recolhendo os mortos em carrinhos de mão, deixar de passar vários dias. Enquanto isso, cada dia os mortos tinham que se apresentar à chamada até que o
kommando os recolhesse e seus nomes pudessem finalmente ser riscados da lista.
Depois de tudo que aprendi, não estava arrependido por ter agido daquela maneira e tentado melhorar o meu lado. Ao ser recolhido no primeiro dia para trabalhar
como médico, pude escapar de me perder na massa e ser atirado na miséria do campo de quarentena 3.
Graças aos meus trajes civis, pude manter uma aparência humana e naquela noite iria dormir numa cama, no aposento médico do décimo-segundo barracão-"hospital".
As sete da manhã: a alvorada. Os médicos da minha seção, bem como todo o pessoal do hospital, enfileiraram-se em frente aos barracões para serem contados.
Isso levou de três a quatro minutos. Os acamados e os mortos também foram contados. Aqui também os mortos ficavam ao lado dos vivos.
Durante o café da manhã, que era feito em nossos quartos, fiquei conhecendo meus colegas. O médico-chefe do barracão-hospital no. 12 era o Dr. Levy, professor
da Universidade de Estrasburgo, e seu assistente, o Dr. Gras, professor da Universidade de Zagreb; ambos eram bem conhecidos por sua capacidade, em toda a Europa.
Com praticamente nenhum remédio, trabalhando com instrumentos deficientes e em lugares onde os princípios higiênicos e anti-sépticos eram inexistentes, indiferentes
à sua tragédia pessoal, sem ligar para o cansaço e o perigo, eles davam o melhor de si para minorar o sofrimento de seus semelhantes.
Nos campos de Auschwitz, o indivíduo mais são tinha três ou quatro semanas para morrer de fome, contaminação pela promiscuidade e trabalho insano. Como se
pode descrever o estado de alguém, que já chega organicamente enfermo ao campo? Naquelas circunstâncias era difícil esquecer-se que se tratava de um ser humano,
e os médicos exerciam sua profissão com a maior devoção. O exemplo deles era fielmente seguido pelos corpos médicos subalternos, compostos de seis médicos, todos
jovens gregos e franceses. Há três anos que comiam pão feito no KZ com castanha silvestre e polvilhado de serragem. Suas esposas, seus filhos, parentes e amigos
haviam sido liquidados desde a chegada. Se por acaso tivessem sido dirigidos para a coluna da direita, eles poderiam permanecer vivos por mais de dois ou três meses,
e depois, como os "escolhidos", iriam desaparecer nas chamas.
Assolados pelo desespero, resignados, apáticos, eles, no entanto, tentavam com a maior devoção ajudar aos mortos-vivos, cujos destinos estavam em suas mãos.
Pois os prisioneiros desse hospital eram mortos-vivos. Tinha-se que estar seriamente doente para ser admitido no hospital do KZ. A maior parte ficou transformada
em esqueletos ambulantes: desidratados, descarnados, os lábios rachados, os olhos saltados e uma disenteria incurável. Seus corpos estavam cobertos de enormes e
repulsivas feridas abertas e úlceras supuradas. Estes eram os doentes do KZ. Estes eram aqueles a quem devíamos tratar e confortar.
IV
EU AINDA NÃO TINHA uma função definida. Durante uma visita pelo campo em companhia de um médico francês, notei uma espécie de anexo ao lado de um barracão
do KZ. Do lado de fora parecia mais uma oficina. Dentro, porém, vi uma mesa da altura da cabeça de um homem, feita de tábuas grosseiras e desiguais; uma cadeira;
uma caixa de instrumentos de dissecação e, num canto, um balde. Perguntei ao meu colega qual era a finalidade daquela construção.
— É a única sala de dissecação do KZ — explicou-me. — Há tempos que não é usada. Aliás, não conheço nenhum especialista no campo habilitado para fazer dissecações
e não ficaria muito surpreso se viesse a saber que a sua presença aqui tem alguma coisa a ver com os planos de Mengele para reativar a sala.
Esse pensamento turvou meu espírito, porque tinha-me imaginado trabalhando numa moderna sala de dissecação e não nesse depósito do campo. No transcurso de
toda a minha carreira médica, nunca havia trabalhado com instrumentos tão deficientes e numa sala tão primitivamente montada. Mesmo quando era chamado para atender
a casos de assassinatos e suicídios no interior, e a autópsia tinha que ser feita no local, estive melhor equipado e instalado.
No entanto, resignei-me diante do inevitável e aceitei tal eventualidade, pois no KZ essa era uma posição privilegiada. Mas ainda não havia entendido por
que me haviam fornecido trajes civis quase novos se eu estava destinado a trabalhar num galpão sujo. Aquilo não fazia sentido. Decidi, porém, não perder tempo quebrando
a cabeça com essas aparentes contradições.
Ainda em companhia de meu colega francês, espiei através da cerca de arame farpado. Crianças nuas de pele mais escura estavam correndo e brincando. Mulheres
com feições latinas e roupas alegres e coloridas e homens seminus sentados no chão, em grupos, conversavam enquanto as crianças brincavam. Esse era o famoso "Campo
Cigano". Os experts em etnologia do III Reich haviam classificado os ciganos como raça inferior. Assim sendo, não só os da Alemanha como os de todos os territórios
ocupados deveriam ser confinados aqui. Por serem católicos lhes era permitido a graça de permanecerem em família.
Eram uns 4.500 ao todo. Não trabalhavam, mas sua função era policiar os campos judeus vizinhos, e exerciam esta autoridade com uma crueldade inimaginável.
O Campo Cigano oferecia uma curiosidade: os barracões experimentais. O diretor do Laboratório de Pesquisa, Dr. Epstein, foi professor na Universidade de
Praga, pediatra de renome internacional e prisioneiro do campo desde 1940. Seu assistente era o Dr. Bendel, da Faculdade de Medicina da Universidade de Paris.
Três categorias de experiência eram ali realizadas: a primeira consistia na pesquisa da origem dos nascimentos duplos, estudo esse que estava sendo empreendido
com renovado interesse desde o nascimento das quíntuplas Dionne, há dez anos. A segunda, uma investigação para descobrir as causas do nascimento de anões e gigantes.
E a terceira era o estudo das causas, e o tratamento de uma doença comumente chamada de "gangrena seca da face".
Essa terrível doença era excepcionalmente rara; na clinica diária um médico raramente se depara com ela. Mas aqui no Campo Cigano era muito comum nas crianças
e adolescentes. E, por isso, devido a seu alto grau de incidência, as pesquisas foram grandemente facilitadas e ótimos progressos foram obtidos no sentido de se
achar um método de tratamento eficiente para a moléstia.
De acordo com os conceitos médicos, a "gangrena seca da face" aparecia geralmente conjugada com sarampo, escarlatina e febre tifóide. Mas essas moléstias
e mais as deploráveis condições sanitárias do campo pareciam ser apenas fatores que favoreciam o desenvolvimento da "gangrena", uma vez que também existia nos campos
tchecos, poloneses e judeus. A incidência maior, porém, era entre as crianças ciganas, dai ter-se deduzido que sua presença estava relacionada diretamente com a
sífilis hereditária, pois a taxa de sífilis no campo cigano era extremamente alta.
Dessas observações foi elaborado e desenvolvido um novo tratamento que consistia numa combinação de vacinas de malária e doses de uma droga cujo nome comercial
era "Novar-senobenzol", que estava apresentando resultados promissores.
Diariamente o Dr. Mengele visitava o barracão experimental e participava ativamente de todas as fases da pesquisa. Ele trabalhava em colaboração com dois
prisioneiros-médicos e uma pintora chamada Dina, cuja habilidade artística era de grande importância para o empreendimento. Dina era natural de Praga e há três anos
prisioneira do KZ. Como assistente do Dr. Mengele, ela usufruía de certos privilégios completamente fora do alcance dos prisioneiros comuns.
V
DR. MENGELE era incansável no exercício de suas funções. Passava horas a fio em seus laboratórios, daí corria para as plataformas de desembarque, onde a
chegada diária de quatro ou cinco trens de deportados húngaros mantinha-o atarefado metade do dia.
Sem parar, os novos deportados marchavam em colunas de cinco, flanqueados pelos guardas SS. Observei um desses grupos descer e enfileirar-se. Embora onde
eu estava fosse um pouco longe da plataforma e as cercas de arame farpado me obstruíssem a visão, pude observar que tinham vindo de alguma cidade grande: suas roupas
eram bem confeccionadas, alguns estavam usando modernas capas de chuva e as valises que traziam eram de couro do mais caro. Nessa cidade, fosse qual fosse, eles
haviam conseguido criar para si uma vida agradável e requintada. E esse era o grande pecado pelo qual estavam agora pagando tão caro.
Apesar de suas várias funções, o Dr. Mengele ainda encontrava tempo para mim. Uma carroça puxada por prisioneiros parou em frente à sala de dissecação. Dois
corpos foram descarregados. Em seu peito viam-se as letras Z e S (Zur Sektion), escritas com um giz especial, indicando que deviam ser dissecados.
O chefe do barracão 12 indicou um inteligente prisioneiro para me ajudar. Juntos colocamos um dos cadáveres sobre a mesa de dissecação. Notei uma linha grossa
e escura em volta de seu pescoço. Enforcou-se ou foi enforcado. Dando uma rápida olhada para o segundo corpo, vi que sua morte havia sido causada por eletrocussão.
Isso podia ser deduzido das pequenas queimaduras superficiais e pelas manchas vermelho--amareladas à sua volta. Fiquei pensando se ele havia se atirado contra a
rede de alta tensão ou se tinha sido empurrado. Ambas as coisas eram normais em Auschwitz.
As formalidades eram as mesmas, tanto fosse suicídio como assassinato. De madrugada, na hora da chamada, seus nomes seriam riscados da lista e seus corpos
jogados nas carretas e transportados para o necrotério do campo. Ali um caminhão os pegaria, numa média de quarenta ou cinqüenta por dia, e os levaria até o crematório.
Os dois cadáveres que o Dr. Mengele havia enviado para mim eram os primeiros que me foram dados para examinar. No dia anterior, ele tinha me avisado para trabalhar
neles cuidadosamente e fazer um bom serviço. Eu planejava usar o máximo de minha habilidade para executar suas ordens.
Um carro parou em frente. A ordem de "atenção" foi gritada alto. O Dr. Mengele em pessoa e dois oficiais SS acabavam de chegar. Eles ouviram primeiro os
relatórios do chefe do barracão e do médico, e então foram direto para a sala de dissecação, seguidos pelos prisioneiros médicos do Campo F. Dispuseram-se num círculo
em volta da sala, como se aquilo fosse uma aula de patologia de algum importante centro médico e, no caso em questão, uma aula particularmente interessante. De repente,
percebi que ia ser examinado e aqueles eram os jurados diante de mim, um júri altamente importante e perigoso. Eu também sabia que meus colegas prisioneiros estavam
torcendo por mim.
Nenhum dos presentes sabia que eu havia passado três anos no Instituto de Medicina Legal de Boroslo, onde tivera a oportunidade de estudar toda e qualquer
forma possível de suicídio, sob a supervisão do Dr. Strasseman. Percebi que, para o bem do prisioneiro médico A 8450. eu deveria lembrar-me de tudo que o Dr. Miklos
Nyiszli tinha aprendido.
Comecei a dissecação. Primeiro abri o crânio, depois o tórax e a cavidade abdominal. Extraí todos os órgãos, registrei tudo que estivesse anormal e respondi
sem afobação a cada uma das dezenas de perguntas que me foram feitas. Seus rostos indicavam que sua curiosidade havia sido saciada e, pelos acenos de cabeça
e olhares, compreendi que tinha passado no exame. Após a segunda dissecação, o Dr. Mengele ordenou-me que fizesse um relatório das minhas conclusões. Alguém
passaria para apanhá-lo no dia seguinte. Depois que os oficiais SS saíram, pude conversar um pouco com meus colegas prisioneiros.
No dia seguinte, mais três cadáveres chegaram para dissecação. O mesmo público apareceu, mas dessa vez a atmosfera estava menos tensa, — eles já me conheciam
e tinham visto meu trabalho. Os presentes demonstraram um vivo interesse, fizeram muitos comentários astutos e provocativos, e houve ocasiões em que a discussão
ficou bastante animada.
Assim que os médicos SS partiram, fui visitado por vários colegas franceses e gregos que me pediram que lhes ensinasse a técnica das punturas lombares. Eles
também me pediram que lhes desse autorização para fazer a operação em alguns dos corpos que eu recebia, pedido esse que prontamente acolhi. Fiquei profundamente
emocionado em saber que, no interior das cercas de arame farpado, eles continuavam a manifestar interesse por sua profissão. Tentaram a puntura e depois de seis
ou sete tentativas conseguiram finalmente acertar e se retiraram, satisfeitos com o seu trabalho daquele dia.
VI
NOS TRÊS DIAS SEGUINTES não tive nada para fazer. Eu estava ainda auferindo da ração suplementar destinada aos médicos, mas passava a maior parte do tempo
estirado na cama ou então sentado nas arquibancadas do estádio, que não ficava muito distante do Campo F. Sim, é verdade, mesmo Auschwitz tinha seu estádio, mas
destinado, porém, aos prisioneiros alemães que trabalhavam como funcionários nas várias seções do Campo. Aos domingos o estádio se transformava num animado centro
de atividades esportivas, mas durante a semana ficava deserto. Somente uma cerca de arame farpado separava o estádio do crematório no.1. Eu gostaria muito de saber
o que se passava à sombra daquela imensa chaminé que não parava de cuspir línguas de fogo. De onde estava sentado, não podia ver muita coisa. E aproximar-se da cerca
não era uma atitude muito inteligente, pois as metralhadoras das torres de vigia varriam a área sem aviso para assustar quem quer que se aventurasse a perambular
por essa terra de ninguém.
Não obstante, vi que homens em trajes civis estavam formando no pátio do crematório, bem defronte à construção de tijolo vermelho: devia haver uns 200 ao
todo, com um SS à frente. Pareceu-me uma chamada e concluí que aquela era a mudança da guarda. A guarda da noite passava o serviço à guarda do dia, pois os crematórios
funcionavam em regime de 24 horas por dia. Mais tarde, vim a saber que o pessoal dos crematórios era chamado de Sonderkommando, que significava simplesmente kommandos
aos quais eram atribuídos trabalhos especiais. Eram bem alimentados e usavam roupas civis. Nunca lhes era permitido sair dos limites dos crematórios e a cada quatro
meses, quando já haviam aprendido demais para o seu próprio bem, eram sumariamente eliminados. Até o momento, aquela havia sido a sorte de todos os Sonderkommandos
desde a fundação do KZ, e isso explica por que ninguém escapou para contar ao mundo o que se vinha passando no lado de dentro daqueles muros há vários anos.
Voltei para o barracão 12 no exato momento da chegada do Dr. Mengele. Estacionou e foi recebido pelo chefe do barracão; depois mandou chamar-me e pediu-me
que fosse com ele no carro. Desta vez não havia nenhum guarda nos acompanhando. Partimos antes mesmo que pudesse me despedir dos meus colegas. Ele parou em frente
ao escritório e pediu ao Dr. Sentkeller que pegasse meu cartão; em seguida arrancou de novo pela estrada esburacada.
Durante cerca de doze minutos rodamos através do labirinto de arame farpado e entramos por portões muito bem guardados, passando de uma seção para outra.
Só então percebi a imensidão do KZ. Pouquíssimos tinham a possibilidade de verificar este fato, pois a maioria morria no exato lugar onde eram levados no momento
de sua chegada. Mais tarde soube que o campo de concentração de Auschwitz, em certos períodos, abrigava mais de 100.000 pessoas dentro de suas fronteiras de arame
eletrificado.4
O Dr. Mengele, de repente, interrompeu minhas meditações. Sem se voltar, disse:
— O lugar para onde o estou levando não é nenhum hospital, mas você irá verificar que as condições lá não são tão más.
Deixamos o campo e passamos pela rampa de desembarque de judeus. Diante de nós abriu-se um grande portão blindado. Entramos num pátio espaçoso, coberto de
grama verde. O gramado e a sombra dos pinheiros tornariam aquele lugar um recanto agradável se não fosse pela construção e pela chaminé de tijolos vermelhos sempre
com suas labaredas saltando ao espaço. Estávamos em um dos crematórios. Permanecemos no carro. Um SS correu em nossa direção e saudou o Dr. Mengele. Então saímos,
cruzamos o pátio e entramos no crematório.
— A sala está pronta? — o Dr. Mengele perguntou ao guarda.
— Sim, senhor. — Respondeu o SS.
Dirigimo-nos para lá, o Dr. Mengele à frente.
A sala em questão tinha sido toda pintada de branco e era bem iluminada por um janelão que, no entanto, era gradeado. A mobília, comparando-se com a dos
barracões, surpreendeu-me: uma cama branca, um armário também branco, uma mesa espaçosa e algumas cadeiras. Sobre a mesa, uma toalha de veludo vermelho. O chão de
concreto era forrado de bonitos tapetes. Tive a impressão de que me esperavam. Os homens do Sonderkommando haviam pintado e arrumado a sala. Passamos, então, por
um corredor escuro, e entramos em outra sala, uma completa e moderna sala de dissecação com duas janelas. O chão era de concreto vermelho; no centro da sala, montado
sobre pilastras de concreto, estava um tampo de mármore polido — uma mesa de dissecação, equipada com vários ralos. Na borda da mesa, uma bacia niquelada e, na parede,
três pias de porcelana. As paredes eram pintadas de verde-claro e os janelões gradeados, cobertos com telas de metal verde para impedir a entrada de moscas e mosquitos.
Deixamos a sala de dissecação e fomos para o aposento seguinte: a sala de trabalho. Ali havia cadeiras modernas e quadros na parede; no centro do quarto,
uma mesa coberta por um pano verde, e poltronas. Contei três microscópios sobre a mesa. Num canto do quarto erguia-se uma estante contendo os últimos e melhores
livros de medicina. No outro canto, um armário onde estavam guardados jalecos, aventais brancos, toalhas e luvas de borracha. Em suma, a réplica exata de qualquer
instituto de patologia de cidade grande.
De repente, compreendi tudo e fiquei paralisado de medo. Assim que chegara ao portão principal, percebera que estava no pátio da morte. Uma morte lenta,
abrindo suas garras sobre mim. Senti que estava perdido.
Agora entendia por que me deram roupas civis. Esse era o uniforme do Sonderkommando — o hommando dos mortos--vivos.
Meu chefe estava se preparando para sair; ele informou ao SS que, enquanto o "serviço" durasse, eu receberia ordens somente dele. O pessoal SS do crematório
não tinha jurisdição sobre mim. A cozinha deveria me fornecer a alimentação; eu poderia conseguir toda a roupa branca e roupas suplementares de que precisasse no
almoxarifado SS. Para a barba e cabelo, poderia usar a barbearia SS e também estava dispensado das chamadas da noite e da manhã.
Além do meu trabalho anatômico e de laboratório, eu ficava também responsável pela assistência médica a todo o pessoal SS dos crematórios, cerca de 120 homens,
e ainda dos 860 prisioneiros do Sonderkommando. Remédios, instrumentos médicos, roupas, tudo em quantidades suficientes, estavam à minha disposição. Para que eles
recebessem atenção médica, eu deveria visitar os doentes do crematório uma vez por dia e, às vezes, duas. Podia circular pelos quatro crematórios, de 7 da manhã
às 7 da noite. Minha obrigação era fazer um relatório diário ao comandante SS e ao Oberschaarführer Sonderkommando Mussfeld, relatando o número de doentes acamados
e pacientes do ambulatório.
Eu ouvia quase paralisado a lista das minhas obrigações e de meus direitos. Sob tais condições deveria ser a figura mais importante do KZ, se não estivesse
num Sonderkommando e se isso não se passasse no "Crematório Número Um".
O Dr. Mengele partiu sem dizer uma palavra. Nunca, por mais baixa que fosse sua patente, um SS poderia cumprimentar um prisioneiro do KZ. Tranquei a porta
da sala de dissecação, daquele momento em diante sob a minha responsabilidade.
Voltei ao meu quarto e sentei, procurando ordenar meus pensamentos. Não era fácil. Voltei onde tudo começara. A imagem de minha casa abandonada veio-me à
mente. Podia ver a pequena casinha impecável, com seu terraço ensolarado e os quartos agradáveis, quartos onde passara tantas horas difíceis com meus pacientes,
mas com a satisfação de saber que lhes estava dando conforto e forças. A mesma casa onde passara horas felizes com minha família.
Já fazia uma semana que estávamos separados. Onde deveriam estar, perdidas, na massa, anônimas como todos, engolidas por essa gigantesca prisão? Será que
minha filha conseguiu ficar com a mãe? Ou será que elas já foram separadas? O que terá acontecido com meus velhos pais, cujos últimos dias eu estava tentando tornar
mais felizes? O que teria sido de minha querida irmã mais nova, que eu praticamente criei como filha desde que nosso pai caiu doente? Fora uma felicidade amá-los
e ajudá-los. Não tinha dúvida sobre o seu destino. Eles certamente estariam a caminho, num trem que os descarregaria na rampa de Auschwitz e dali para a câmara da
morte. Com um gesto mecânico, o Dr. Mengele indicaria para eles a coluna da esquerda. E, na certa, minha irmã se juntaria a essa coluna, pois mesmo que lhe fosse
indicada a outra, ela se ajoelharia e imploraria para seguir com mamãe. Então eles a deixariam ir e ela agradeceria ardorosamente, com lágrimas nos olhos.
A notícia da minha chegada espalhou-se como fogo na mata por todo o crematório. Não só o pessoal SS que servia ali, como o Sonderkommando, vieram me visitar.
A porta foi aberta primeiro por dois suboficiais SS. Dois homens bastante altos, feições hieráticas, eram os Shaarführer. Eu sabia que a atitude que assumisse naquele
momento iria determinar a conduta deles em relação a mim dali por diante. Recordei a ordem de Mengele: eu ficara somente sob sua responsabilidade. Conseqüentemente,
devia considerar essa visita como mera cortesia, e permaneci sentado ao invés de levantar-me como era de praxe. Cumprimentei-os e pedi que se sentassem.
Pararam no meio do quarto e me examinaram. Senti toda a importância desse momento: era a primeira impressão que contava. Parecia-me que minha atitude era
a melhor que podia ter adotado, pois seus rígidos músculos faciais se relaxaram um pouco e, com um gesto de indiferença descontraída, eles se sentaram.
O assunto de nossa conversa era extremamente limitado. Como havia sido minha viagem? O que estava fazendo no KZ? Essas eram perguntas que eles não podiam
fazer, pois as respostas poderiam embaraçá-los. Da mesma forma, a política, a guerra, as condições no KZ eram assuntos que eu não podia abordar. Contudo, não me
atrapalhei — os anos que passara na Alemanha, antes da guerra, me forneceram bastante material para conversar. Os SS ficaram muito impressionados pelo fato de falar
a língua deles melhor do que eles ou, pelo menos, de uma maneira mais culta. Logo percebi que havia mesmo algumas expressões que não compreendiam, embora tentassem
com esforço não me deixar perceber isso. Conhecia bem o país deles, estava informado sobre suas cidades, sobre a vida doméstica de uma família alemã típica, sobre
a religião, a moral etc. Tive o pressentimento de que essa prova também foi um sucesso, pois eles sairam sorrindo.
Mais visitantes chegaram, homens em trajes civis, barbeados e bem vestidos. O kapo-em-chefe 5 e dois de seus homens entraram em meu quarto. Essa também era
uma visita de cortesia. Soube que tinham sido eles que pintaram e arrumaram o quarto. Ouviram falar da minha chegada e vieram convidar-me para jantar em sua companhia
e dos outros prisioneiros.
Aliás, já era quase hora do jantar. Segui-os escada acima até o segundo andar do crematório, onde viviam os prisioneiros: um quarto espaçoso, com beliches
encostados nas paredes. Os beliches eram feitos de madeira crua, mas sobre cada um havia colchas limpas e travesseiros bordados. A roupa de cama, colorida e cara,
estava em total desacordo com o ambiente. Aquilo não havia sido feito lá, fora deixado por gente de comboios anteriores, que trazia suas coisas para o cativeiro.
Ao Sonderkommando era permitido apanhar coisas assim dos depósitos e usá-las.
O aposento estava completamente banhado por uma luz forte, pois aqui não se economizava energia como nos barracões. Passamos pela longa fila de beliches.
Somente metade do kommando estava presente; a outra metade, cerca de 100 homens, trabalhava no turno da noite. Alguns dos que estavam presentes dormiam ainda, enquanto
outros liam. Havia muitos livros, pois nós, judeus, gostamos de ler. Cada prisioneiro sempre trazia livros; a quantidade e o tipo dependiam de seu nível intelectual
e formação. Ter livros e poder lê-los era ainda outro privilégio do Sonderkommando. No KZ, quem fosse apanhado lendo seria punido com um confinamento de vinte dias
na solitária, uma espécie de caixa de concreto com espaço suficiente para se ficar de pé. A menos que as pancadas recebidas antes não matassem o infrator.
A mesa que nos aguardava era coberta de um pesado tecido de seda brocada, finíssimos pratos de porcelana gravados com iniciais e talheres de prata: mais
objetos que um dia pertenceram aos deportados. A mesa estava atulhada dos mais variados pratos, tudo que um deportado podia trazer junto para um futuro incerto:
toda sorte de conservas, bacon, geléias, diversos tipos de salames, bolos e chocolate. Pelas etiquetas notei que parte daquela comida pertencera aos prisioneiros
húngaros. Tudo que fosse perecível passava a ser propriedade dos herdeiros legais — isto é, do Sonderhommando.
Sentados em volta da mesa estavam o kapo-em-chefe, o engenheiro, o chofer, o líder do kommando, os "arrancadores de dentes" e o chefe dos fundidores de ouro.
Suas boas-vindas não podiam ser mais cordiais. Ofereceram-me tudo que tinham, e havia abundância de tudo, porque os comboios húngaros continuavam a chegar sem parar
e traziam grande quantidade de comida.
Eu não conseguia engolir direito apesar disso. Não podia deixar de pensar em meus companheiros de infortúnio, que antes de iniciarem o êxodo haviam juntado
e preparado suas provisões. Passaram fome durante a viagem, porém refrearam a vontade de comer, pensando em guardar o pouco que traziam para seus filhos, seus pais
e para quando chegassem os tempos mais difíceis. Só que os tempos mais difíceis nunca chegaram: no salão do crematório a comida havia permanecido intacta.
Tomei um pouco de chá com rum. Depois de algumas xícaras, consegui relaxar. Minha mente clareou e libertou-se dos pensamentos trágicos que a estavam turvando.
Um calor agradável tomou conta de meu corpo: os efeitos voluptuosos do álcool agiam como uma carícia de mãe.
Os cigarros que estávamos fumando também haviam sido "importados da Hungria". No campo propriamente dito, um único cigarro valia toda uma ração de pão; ali
sobre a mesa estavam centenas de maços.
Nossa conversa tornou-se mais animada. A Polônia, a Grécia, a França, a Alemanha e a Itália estavam ali representadas. Uma vez que quase todos falavam alemão,
ele serviu de língua comum. Nessa conversa fiquei sabendo da história dos crematórios. Milhares de prisioneiros construíram-nos de pedra e concreto, terminando o
trabalho no meio de um inverno extremamente rigoroso. Cada pedra estava manchada com seu sangue. Trabalharam noite e dia, mesmo sem comer e beber, vestidos com uns
poucos trapos, para que essas infernais fábricas da morte, cujas primeiras vítimas seriam eles, pudessem ser terminadas a tempo.
Desde então, quatro anos se passaram. Milhares e milhares tinham descido dos vagões de carga e atravessado os portais do crematório. O atual Sonderhommando
era o décimo-segundo desde o começo do campo.
Conheci a história do 'reinado" de cada kommando anterior e fui relembrado de um fato que já sabia: que a duração da vida de um Sonderkommando era apenas
de alguns meses. Quem quer que ali praticasse a fé judaica poderia ir preparando, desde o dia de sua chegada, a cerimônia da purificação para a morte. Porque a morte
viria para ele tão certa como veio para todos os membros dos Sonderkommandos anteriores.
Era quase meia-noite. A turma, reunida em volta da mesa, estava fatigada pelo dia de trabalho e sonolenta devido ao. consumo de álcool da noite. Nossa conversa
ficava cada vez mais desinteressante. Um SS que fazia a ronda veio lembrar-nos que já era tarde e que devíamos ir dormir. Despedi-me de meus novos companheiros e
retirei-me para meu quarto. Graças ao rum e aos meus nervos exaustos, aquela noite transcorreu relativamente tranqüila.
Cópia fotostática da página de abertura da tese doutoral defendida pelo Dr. Nyiszli em Breslau, 1930. (Cortesia da senhora Nyiszli).
Cópia fotostática da confissão voluntária assinada por Rudolph Hess: o assassinato de dois milhões de pessoas durante seu período de dois anos e meio como
comandante de Auschwitz. (Cortesia da UF1)
Entrada do campo principal de Auschwitz, com uma tabuleta sobre o portão que dizia: O TRABALHO LIBERTA. À esquerda, em frente ao portão, está o quarteirão
onde ficavam os aposentos dos chefes.
Entrada do campo de Birkenau. Os trilhos conduzem diretamente aos crematórios.
Um novo comboio chega a Auschwitz e os prisioneiros saltam.
Alinhamento e seleção.
Obersturmführer SS dirige os fisicamente capazes - aqueles ainda aptos para o trabalho - para a direita ...
...enquanto as mulheres...
as crianças ...
... os velhos e aqueles julgados incapazes para o trabalho são enviados para a esquerda, que era o lado da morte.
A caminho das câmaras de gás. Sem suspeitar de nada às vitimas pensavam que iam para os banhos de desinfecção. Atrás, a cerca eletrificada de arame farpado.
Se as câmaras de gás estivessem lotadas, as vitimas eram levadas para uma floresta vizinha a fim de aguardarem sua vez.
Os fornos crematórios de Auschwitz.
Vista dos fornos crematórios de Weimar tirada por ocasião da libertação do campo. (Cortesia da UPl)
Cabelo humano exibido no Museu de Auschwitz. No momento da libertação do campo foram encontradas sete toneladas de cabelos.
Verdadeiras montanhas de sapatos, encontradas em Auschwitz
na hora da libertação.
Óculos dos prisioneiros
Prisioneiros após a libertação de Auschwitz, em 27 de janeiro de 1945..
VII
UM APITO ESTRIDENTE de um trem foi ouvido, vindo da plataforma de desembarque. Era ainda muito cedo. Aproximei-me da janela, de onde tinha uma visão perfeita
da linha e vi um longo comboio. Alguns segundos depois as portas correram e despejaram milhares e milhares de criaturas do povo escolhido de Israel. O alinhamento
e a seleção não levaram nem meia hora. A coluna da esquerda dirigiu-se lentamente para seu destino.
Ordens ríspidas cortaram o ar e o ruído de passos chegou imediatamente aos meus ouvidos. O barulho vinha das fornalhas do crematório: eles estavam se preparando
para dar as boas-vindas ao novo comboio. O rugir dos motores se fez ouvir. Tinham colocado enormes ventiladores para avivar as chamas, a fim de obter o grau desejado
dos fornos. Quinze ventiladores estavam trabalhando simultaneamente, um em frente de cada forno. A sala de incineração tinha mais ou menos uns 350 metros de comprimento:
era uma sala ensolarada, caiada, com chão de concreto e janelas gradeadas. Cada um desses quinze fornos estava instalado numa estrutura de tijolo vermelho. Imensas
portas de ferro, bem polidas e brilhando, alinhavam-se ao longo da parede. Em cinco ou seis minutos os deportados chegavam ao portão, cujas portas se abriam para
dentro. Em colunas de cinco, o grupo entrava no pátio; o mundo jamais soube o que se passava daí por diante, pois quem quer que soubesse algo sobre isso, depois
de ter feito o percurso da rampa até o centro do crematório, não voltava para contar a história. Aqueles que haviam sido selecionados para a coluna da esquerda tinham
o crematório como destino. E não, como os alemães mentiam para dissipar a ansiedade da coluna da direita, um campo de repouso para doentes e crianças.
Eles avançavam com passos lentos e cansados. As crianças tinham os olhos pesados de sono e se agarravam à roupa de suas mães. Em sua maioria os bebês eram
levados nos braços dos pais, ou então empurrados em seus carrinhos. Os guardas SS permaneciam do lado de fora do crematório, onde uma tabuleta advertia: "Entrada
Proibida Para Todos Aqueles Que Não Trabalham Aqui, Inclusive os SS".
Os deportados imediatamente notaram as mangueiras para regar o gramado, que estavam caídas no pátio. Começaram a tirar panelas e potes de sua bagagem para
enchê-los de água e sairam da formação, empurrando-se uns aos outros num esforço para chegar perto das mangueiras e encher os recipientes. Que estivessem impacientes
não era de se estranhar: durante os últimos cinco dias não tiveram nada para beber. Se por acaso tinham achado alguma água, esta era estagnada e não matara a sua
sede. Os guardas SS, que recebiam os comboios, estavam acostumados àquela cena. Esperavam pacientemente até que cada um matasse a sede e enchesse seus recipientes.
De qualquer forma, os guardas sabiam que, enquanto não tivessem bebido, não conseguiriam fazê-los voltar à formação. Lentamente eles voltavam a entrar nas filas.
Então caminhavam uns cem metros por um caminho cinzento ladeado de grama verde até uma rampa de ferro, da qual dez ou doze degraus de concreto levavam a um subterrâneo,
a uma sala enorme onde tabuletas escritas em francês, alemão, grego e húngaro diziam: "Sala de Banho e Desinfecção". O aviso era tranqüilizador e dissipava desconfianças
mesmo dos mais desconfiados dentre eles. Desceram os degraus quase com alegria.
A sala para onde os deportados iam tinha uns 200 metros de comprimento: suas paredes eram caiadas de branco e estava bem iluminada. No meio, uma fileira
de colunas; ao longo das paredes havia números e sob eles ganchos para pendurar roupas. Diversos avisos, em vários idiomas, advertiam a todos para o fato de que
deveriam amarrar as roupas e os sapatos juntos. Especialmente que não esquecessem o número do gancho onde haviam pendurado as roupas para evitar uma confusão desnecessária
quando voltassem do banho.
— Isso é que é organização, — comentavam alguns, que tinham inclinação para admirar os alemães.
Eles estavam certos. Aliás era por causa da organização que essas medidas tinham sido adotadas; para que milhares de bons sapatos, necessitados com urgência
pelo III Reich, não se misturassem. O mesmo quanto às roupas; assim, as populações das cidades bombardeadas poderiam facilmente fazer uso delas.
Havia 3.000 pessoas na sala, homens, mulheres e crianças. Alguns soldados chegaram e anunciaram que todos deveriam ficar completamente despidos em 10 minutos.
Os velhos, avós e avôs; as crianças; esposas e maridos; todos ficaram surpreendidos e chocados por essa ordem. Mulheres e mocinhas modestas entreolharam-se interrogativamente.
Talvez não tivessem entendido direito as palavras em alemão. Mas não tiveram muito tempo para pensar sobre isso, pois a ordem foi repetida e desta vez num tom mais
alto e mais ameaçador. Estavam perplexos; sua dignidade rebelava-se, porém, com a resignação peculiar à sua raça e tendo aprendido que as coisas iam até aonde deviam
ir, vagarosamente começaram a se despir. Os velhos, os paralíticos e os loucos foram ajudados pelos homens do Sonderkommando, que vieram especialmente para isso.
Em dez minutos todos estavam completamente nus, suas roupas penduradas e seus sapatos atados juntos pelos cordões. Os números de cada cabide foram cuidadosamente
guardados.
Abrindo caminho entre a multidão, um SS escancarou as portas de um largo portão no fundo da sala. Meus compatriotas passaram imediatamente desta sala para
a outra igualmente bem iluminada. Essa segunda sala era do mesmo tamanho que a primeira, só que não havia nem bancos nem ganchos. No centro, colunas que iam do chão
até o teto se alinhavam, com intervalos de cinco metros entre elas. Essas não eram colunas de sustentação, mas sim tubulões de ferro quadrados que continham várias
perfurações nos lados.
Todos haviam entrado. Uma voz metálica gritou:
— SS e Sonderkommando deixem a sala.
Eles obedeceram e saíram. As portas se fecharam e as luzes se apagaram.
Nesse mesmo instante, do lado de fora, chegava um carro: um modelo luxuoso, fornecido pela Cruz Vermelha Internacional. Um oficial SS e um SDG (Sanitãtsdienstgefreiter:
Oficial Chefe do Serviço de Saúde) saltaram do carro. O Chefe do Serviço de Saúde carregava três caixas metálicas verdes. Ele passou pelo gramado, de onde, a cada
dez metros, pequenas torres de concreto saiam do solo. Depois de colocar sua máscara, ele levantava a tampa de concreto de uma dessas torres e despejava o conteúdo
de uma das caixinhas — grãos cor de malva — dentro da abertura. A substância granulada caia até o fundo. O gás que produzia escapava pelas perfurações e, em poucos
segundos, inundava a sala onde os judeus estavam trancados. Em cinco minutos todos estavam mortos. Para cada comboio a mesma história. Carros da Cruz Vermelha traziam
o gás de fora. Nunca havia dessa substância no crematório. Essa precaução era escandalosa, porém ainda mais escandaloso era o fato do gás ser trazido num carro da
Cruz Vermelha Internacional.
A fim de assegurar a eficácia de seu trabalho, os dois verdugos esperavam mais cinco minutos. Aí então acendiam seus cigarros e partiam de carro. Eles tinham
acabado de matar três mil inocentes. Vinte minutos mais tarde os ventiladores elétricos eram ligados para dissipar o gás. As portas eram abertas, os caminhões chegavam
e um esquadrão do Sonderhommando carregava separadamente os caminhões com as roupas e os sapatos. Tudo aquilo ia para a desinfecção. Mas desta vez era desinfecção
real. Mais tarde seriam transportadores para diversas partes da Alemanha.
Os ventiladores da marca "Exhator" rapidamente expeliam o gás da sala, mas, nas fendas entre os corpos e nas rachaduras das portas, pequenas quantidades
ainda ficavam. Mesmo duas horas depois ele causava uma tosse sufocante. Por esse motivo o grupo do Sonderhommando que primeiro entrava na sala usava máscara contra
gases. Novamente a sala era fortemente iluminada, revelando a cena dantesca.
Os corpos não ficavam caídos aqui e acolá, estavam empilhados num monte até o teto. A razão disso é que o gás primeiro inundava as partes mais baixas e depois,
vagarosamente, subia até o teto. Isso forçava as vítimas a treparem umas por cima das outras numa tentativa desesperada de escapar ao gás que subia. Porém, alguns
centímetros a mais e ele os alcançava. Que luta deveria ser! Mesmo assim, aquilo era coisa de dois ou três minutos. Se tivessem condição de pensar no que estavam
fazendo, perceberiam que estavam subindo sobre os corpos de seus próprios filhos, de suas esposas e mães. Mas não podiam pensar. Suas ações não eram mais que reflexos
do instinto de autopreservação. Notei que os corpos das crianças, dos velhos e das mulheres estavam embaixo da pilha e no alto os mais fortes. Seus corpos, cobertos
de horríveis arranhões e hematomas devido à batalha travada, freqüentemente ficavam entrelaçados. Sangue escorria de suas bocas e de seus narizes. Seus rostos entumescidos
e azulados estavam tão deformados que era praticamente impossível reconhecê-los Não obstante, alguns homens do Sonderkommando às vezes reconheciam parentes e amigos.
O encontro não era fácil e eu mesmo o temia. Não tinha razão para estar lá e, no entanto lá estava eu entre os mortos. Senti que era meu dever para com meu povo
e para com o mundo ser capaz de fazer um relato pormenorizado do que tinha visto caso, graças a alguma circunstância miraculosa, eu viesse a sair vivo dali.
O esquadrão do Sonderkommando, equipado com botas de borracha, formou em frente à pilha humana e atirou poderosos jatos dágua sobre os corpos nus. Isto era
necessário porque o ato final daqueles que morrem afogados ou por gás é a defecação involuntária. Todos os corpos estavam sujos e tinham que ser lavados. Assim
que o "banho" dos mortos acabava — um trabalho que o Sonderkommando fazia num ato impessoal e num estado de comoção profunda —, começava a separação dos corpos emaranhados.
Era um trabalho penoso. Eles atavam correias que ficavam presas a manivelas aos pulsos dos mortos e então puxavam-nos para cima pelos elevadores até uma outra sala.
Quatro elevadores de carga estavam funcionando. Vinte a vinte e cinco corpos eram jogados no elevador. O soar de uma campainha era o sinal de que o elevador estava
carregado e podia subir O elevador parava na sala de incineração do crematório, onde as grandes portas corrediças se abriam automaticamente. O kommando que operava
os vagonetes estava a postos esperando. Novamente correias eram colocadas nos pulsos dos mortos e estes, atirados em rampas especialmente construídas
para despejá-los em frente às fornalhas. Os corpos jaziam em fileiras próximas uma das outras: os velhos, os jovens e as crianças. O sangue escorria de suas bocas,
narizes e também da pele — raspada pelo atrito - e se misturava com a água corrente das canaletas do chão de concreto.
Então uma nova fase de exploração e utilização dos cadáveres dos judeus tinha início. O Terceiro Reich já havia levado roupas e sapatos. O cabelo também
era um material precioso devido ao fato de que se distendia e se contraía de uma maneira uniforme, independente da umidade do ar. Cabelo humano era freqüentemente
usado na fabricação de bombas de ação retardada, onde suas qualidades particulares tornavam-no bastante útil para efeito de detonação. Por isso cortavam o cabelo
dos mortos.
Mas não era tudo. De acordo com os slogans que os alemães gritavam nos desfiles, em seu próprio pais e no estrangeiro, o Terceiro Reich não se baseava no
"padrão ouro" e sim no "padrão trabalho". Talvez quisessem dizer que tinham de trabalhar mais do que a maioria dos países para obter seu ouro. Os mortos eram
enviados depois para o kommando "arranca dentes", que formava em frente aos fornos. Esse kommando de oito homens era equipado com duas ferramentas,
ou, se quiserem, instrumentos. Numa mão uma alavanca, na outra um alicate para extrair dentes. Os corpos deitados de barriga para cima; os kommandos abriam-lhes
as mandíbulas cerradas com a alavanca e depois, com o alicate, tiravam ou quebravam todos os dentes, pontes ou obturações de ouro que tivessem. Todos os membros
dos kommandos eram ótimos estomatologistas e cirurgiões-dentistas. Quando o Dr. Mengele convocara candidatos capazes de realizar delicados trabalhos de estomatologia
e cirurgia dental, eles se apresentaram de boa fé, acreditando que poderiam exercer sua profissão no campo. Assim como eu acreditei.
Os dentes de ouro eram jogados dentro de recipientes cheios de um ácido que dissolvia o osso ou a carne que viesse agarrada a eles. Outros valores usados
pelos mortos, tais como pulseiras, anéis, alianças, eram jogados pela abertura de um cofre. O ouro é um metal pesado e calculo que de 6 a 8 quilos eram recolhidos
diariamente no crematório. Naturalmente que isso variava de um comboio para outro; enquanto uns eram relativamente ricos, outros vindos de localidades rurais eram
mais pobres. Os comboios húngaros chegavam quase sem nada. Mas os holandeses, tchecos e poloneses, mesmo depois de vários anos nos guetos, conseguiam guardar e trazer
suas jóias, seu ouro e seus dólares. Dessa forma, a Alemanha arrebanhava consideráveis tesouros.
Quando o último dente de ouro havia sido removido, os corpos iam para o kommando de incineração. Lá eram levados de três em três numa espécie de carrinho
de mão feito com uma folha de metal. As pesadas portas dos fornos se abriam automaticamente; o carrinho entrava na fornalha aquecida até a incandescência.
Os corpos eram cremados em vinte minutos. Cada crematório trabalhava com quinze fornos e havia quatro crematórios. Isso significava que vários milhares de
seres humanos poderiam ser cremados num só dia. Assim, durante semanas, meses — e anos — milhares de pessoas passavam diariamente pelas câmaras de gás e daí para
as fornalhas. Nada além de um monte de cinzas sobrava nos fornos. Os caminhões as levavam para o Vístula, onde eram despejadas nas águas agitadas do rio.
Depois de tanto sofrimento e horror ainda não havia paz nem para os mortos.
VIII
O LABORATÓRIO DE PATOLOGIA fora instalado por ordem do meu superior, o Dr. Mengele, para satisfazer suas ambições na área da pesquisa médica. Tinha recebido
os últimos retoques somente alguns dias antes. Tudo que estava faltando para que começasse a funcionar era um médico que assumisse a chefia. O KZ oferecia vastas
possibilidades para a pesquisa, primeiro no campo da medicina legal, devido à alta taxa de suicídios, e também na área da patologia, graças à taxa relativamente
alta de anões, gigantes e outras aberrações humanas. A abundância de cadáveres — sem igual em qualquer canto do mundo — e o fato de que se podia dispor livremente
deles — abria largos horizontes.
Eu sabia, por experiência, que as clínicas das maiores cidades do mundo conseguiam fornecer a seus institutos médicos legais de 100 a 150 corpos para pesquisa.
O KZ de Auschwitz estava capacitado a fornecer literalmente milhões. Qualquer um que tivesse transposto os portões do KZ era candidato à morte. Aquele que o destino
colocara na coluna da esquerda seria transformado em cadáver em menos de uma hora após sua chegada. Menos afortunado aquele que ia para a coluna da direita. Ele
ainda era candidato à morte, mas com uma diferença durante os três ou quatro meses, ou quanto mais tempo fosse que ele durasse, teria que se submeter a todos os
horrores que o KZ tinha para oferecer, até que sucumbisse por exaustão extrema. Sangraria pelas centenas de ferimentos. Seu estômago se contorceria de fome, seus
olhos ficariam esbugalhados e andaria a gemer como um demente. Iria arrastar seu corpo pelos campos gelados até que não pudesse mais. Cães treinados lhe morderiam
o corpo esfrangalhado e descarnado: então quando até mesmo os piolhos abandonassem seu corpo esquelético, aí a hora do alívio, a hora da redenção estava perto. Quem,
então, — de nossos pais, irmãos e filhos — era mais felizardo, aquele que ia para a esquerda ou o que ia para a direita?
Quando os trens chegavam, os soldados vasculhavam as fileiras formadas em frente aos vagões, à procura de gêmeos e anões. As mães, esperando que aquilo pudesse
representar tratamento especial para seus filhos, imediatamente os entregavam aos guardas. Gêmeos adultos, sabendo que eram foco de interesse científico, ofereciam-se
voluntariamente na esperança de um tratamento melhor. O mesmo acontecia com os anões. Eles eram separados do resto e mandados para a direita Permitiam-lhes ficar
com as roupas civis; os guardas conduziam-nos a barracões especiais, onde eram tratados com certas regalias. Sua alimentação era boa, suas camas confortáveis e
as condições de higiene muito mais humanas.
Ficavam acomodados no Barracão 14 do Campo F e lá escoltados pela guarda, iam para os barracões de experiências do Campo Cigano, e ali submetidos a todo
e qualquer exame que se possa fazer em seres humanos: exame de sangue, punções lombares, trocas de sangue entre irmãos gêmeos, assim como outros exames, todos fatigantes
e deprimentes. Dina, a pintora de Fraga, fazia o estudo comparativo da estrutura craniana dos gêmeos, bem como das orelhas, ouvidos, bocas, mãos e pés. Cada desenho
era classificado num arquivo feito para esse propósito, completado depois com todas as características individuais; desse arquivo também constaria o resultado final
da pesquisa. O mesmo era feito com os anões.
As experiências, em linguagem médica chamadas in vivo, isto é experiências realizadas em seres humanos vivos, estavam longe de esgotar as possibilidades
da pesquisa no estudo dos gêmeos Cheias de lacunas, só ofereciam resultados parciais O estudo m vivo era sucedido da fase mais importante do estudo dos gêmeos: o
exame comparativo do ponto de vista anatômico e patológico. Aqui o problema era de examinar os órgãos sadios e compará-los com aqueles de funcionamento anormal,
ou de comparar suas doenças. Para esse estudo, assim como para todos os estudos de natureza patológica, eram necessários cadáveres. Uma vez que era preciso proceder
à dissecação para a avaliação simultânea das anomalias, os gêmeos tinham de morrer ao mesmo tempo. E assim, eles encontravam a morte na seção B, em um dos barracões
de Auschwitz, pelas mãos do Dr. Mengele.
Esse fenômeno era único na história da ciência médica do mundo. Irmãos gêmeos morriam juntos, e era possível fazer a autópsia em ambos. Onde, em circunstâncias
normais, poder-se-ia achar irmãos gêmeos que morressem no mesmo lugar e ao mesmo tempo? Pois os gêmeos, como qualquer um, são separados por circunstâncias diversas.
Eles vivem afastados um do outro e rarissimamente morrem ao mesmo tempo. Um pode morrer com dez anos, outro com cinqüenta. Sob tais condições, a dissecação comparativa
é impossível. No campo de Auschwitz, porém, havia centenas de pares de gêmeos e, assim, muitas possibilidades de dissecação. Por esse motivo, na chegada dos
comboios, o Dr. Mengele sempre separava os gêmeos e anões dos demais prisioneiros. Por esse motivo, os dois grupos de especiais iam para a coluna da direita e dali
para os barracões Por esse motivo, eles recebiam melhor alimentação e condições higiênicas mais favoráveis — para que não se contaminassem um ao outro e não morresse
um antes do outro. Eles deveriam morrer juntos e com boa saúde.
O chefe do Sonderkommando veio me procurar dizendo que um soldado SS estava esperando por mim na porta do crematório com uma guarnição de transportadores
de cadáveres. Saí à procura deles, pois eram proibidos de entrar no pátio. Peguei os documentos relativos aos corpos da mão do SS. Continham as fichas de dois pequenos
gêmeos. A guarnição do hommando, formada inteiramente de mulheres, deixou o caixão tampado diante de mim. Levantei a tampa. Dentro estava um par de gêmeos de dois
anos de idade. Ordenei a dois de meus homens que levassem os corpos para a mesa de dissecação.
Abri as fichas e examinei-as. Exames clínicos minuciosos, acompanhados de raios X, descrições e desenhos, indicavam os diferentes aspectos, do ponto de vista
científico, desses dois pequenos seres. Somente o relatório patológico estava faltando, e era meu trabalho fornecê-lo. Os gêmeos haviam morrido ao mesmo tempo e
estavam, agora, deitados um ao lado do outro na mesa de dissecação. Eram eles — ou seus pequenos corpos— que deveriam resolver o segredo da reprodução da raça.
Dar um passo à frente para a revelação do segredo de multiplicar a raça dos seres superiores destinados a governar era uma meta nobre". No futuro, cada mãe alemã
deveria carregar em seu ventre tantos gêmeos quantos fossem possíveis! Esse projeto concebido pelos teóricos do III Reich, era completamente louco. E ao Dr. Mengele,
médico-chefe do KZ de Auschwitz, o notório "médico criminoso", é que essas experiências tinham sido confiadas.
Entre os malfeitores e criminosos, o tipo mais perigoso é o médico criminoso", especialmente quando investido de tão grandes poderes, tais como os do Dr.
Mengele. Ele enviou milhões para a morte, simplesmente porque, de acordo com sua teoria racial, eram seres inferiores e, portanto, conspurcadores da humanidade.
Esse mesmo médico assassino passava horas ao meu lado, ora no microscópio ou nos fornos de desinfecção, ora nos tubos de ensaio ou de pé, com a mesma paciência,
ao meu lado na mesa de dissecação, com seu avental todo manchado de sangue, suas mãos ensangüentadas, examinando e testando como um possesso. O objetivo imediato
era a produção de alemães puros para substituir os tchecos, húngaros e poloneses, todos condenados à destruição, mas que, no momento, estavam vivendo em territórios
ocupados e declarados vitais para o III Reich.
Terminei a dissecação dos pequenos gêmeos e fiz um relatório minucioso da dissecação. Trabalhei bem e meu chefe parecia satisfeito comigo. Porém ele teve
dificuldades para ler meu manuscrito, pois escrevi tudo em letras maiúsculas, um hábito que pegara na América 6. E então eu lhe disse que se ele quisesse uma cópia
limpa e clara teria que me fornecer uma maquina de escrever, pois era assim que eu estava acostumado a trabalhar.
— Que marca você usava? — perguntou-me.
— Olympia Elite — respondi.
— Muito bem, vou enviar-lhe uma. Amanhã você a terá aqui. Quero uma copia limpa, porque esse material vai para o Instituto de Pesquisa Racial, Biológica
e Evolutiva, em Berlim — Dahlem.
Então, fiquei sabendo que as pesquisas feitas aqui eram checadas por altas autoridades médicas num dos mais avançados institutos científicos do mundo.
No dia seguinte, um SS trouxe uma "Olympia". Mais corpos de gêmeos me foram enviados. Recebi quatro pares do Campo Cigano; todos tinham menos de dez anos.
Comecei a dissecação de uma das crianças e registrei cada fase de meu trabalho. Removi a calota craniana. Depois procedi à abertura do tórax e à remoção
do esterno. Em seguida, separei a língua por meio de uma incisão feita abaixo do queixo. Com a língua veio o esôfago, com as vias respiratórias vieram ambos
os pulmões. Lavei os órgãos para examiná-los mais detalhadamente. A mais débil mancha ou a menor diferença na cor poderia fornecer informações valiosas. Fiz uma
incisão transversal no pericárdio e removi o fluido. Tirei o coração e lavei-o. Com ele nas mãos, virei-o várias vezes para examiná-lo. No tampão exterior do ventrículo
esquerdo via-se uma pequena mancha avermelhada, causada por uma injeção bipodérmica, que pouco diferia do tecido em volta. Não podia haver engano. A injeção fora
dada com uma agulha muito pequena. Sem dúvida; uma agulha hipodérmica. Para que teria ele recebido uma injeção? Injeções no coração só podem ser dadas em casos
extremamente sérios, quando ele começa a falhar. Eu logo saberia. Abri o coração, começando pelo ventrículo. Normalmente o sangue contido no ventrículo esquerdo
é tirado e pesado. Esse método não podia ser empregado no presente caso porque o sangue estava coagulado numa massa compacta. Extraí o coágulo com um fórceps
e cheirei-o. Fui atingido pelo odor característico do clorofórmio. A vítima tinha recebido uma injeção de clorofórmio no coração, de forma que o sangue no ventrículo,
coagulando-se, iria se depositar nas válvulas e causaria a morte instantânea por colapso cardíaco. Minha descoberta do mais monstruoso segredo da ciência médica
do III Reich fez meus joelhos fraquejarem. Não somente matavam com gás, como também com injeções de clorofórmio no coração. Um suor frio começou a brotar em minha
testa. Felizmente eu estava sozinho. Se outros estivessem presentes seria muito difícil para mim dissimular meu estado. Terminei a dissecação e registrei as
diferenças encontradas. Mas o clorofórmio, o sangue coagulado no ventrículo esquerdo, a perfuração visível na capa externa do coração não figuravam entre minhas
descobertas. Era uma precaução útil de minha parte. Os registros do Dr. Mengele, no assunto dos gêmeos, estavam em minhas mãos. Eles continham exames precisos, chapas
de raios X, desenhos da já mencionada pintora, mas nenhuma referência à causa da morte. Nem tampouco preenchi essa lacuna no relatório de dissecação. Não era de
bom alvitre exceder as fronteiras autorizadas do conhecimento ou relatar tudo que se testemunhou. E aqui, menos do que em qualquer outro lugar. Eu não era temeroso
por natureza e meus nervos eram bons. Durante minha prática médica, trouxera à luz as causas das mortes. Tinha visto cadáveres de pessoas assassinadas por vingança,
por inveja ou para a obtenção de vantagens materiais, bem como de suicidas e de pessoas que morreram de morte natural. Estava acostumado ao estudo de obscuras causas
de morte. Em várias ocasiões ficara chocado com as minhas descobertas, mas agora uma onda de medo tomava conta de mim. Se o Dr. Mengele descobrisse que eu sabia
das injeções secretas, enviaria, em nome da política da SS, dez médicos para atestar a minha morte.
De acordo com as ordens que recebi, devolvi os corpos aos prisioneiros encarregados de queimá-los. Eles fizeram seu trabalho sem demora. Eu tinha que guardar
quaisquer órgãos que por acaso tivessem interesse científico para que o Dr. Mengele os examinasse. Aqueles que pudessem interessar ao Instituto Antropológico de
Berlim-Dahlem seriam conservados em álcool. Esses órgãos eram especialmente embalados para serem enviados pelo correio. Com a etiqueta de "Material de Guerra — Urgente",
a eles era dada a prioridade máxima de trânsito. No transcurso do meu trabalho no crematório, despachei um número considerável desses pacotes. Recebia em resposta
precisas informações científicas ou instruções. A fim de classificar essa correspondência, tive de organizar arquivos especiais Os diretores do Instituto Berlim-Dahlem
sempre agradeciam calorosamente por esse raro e precioso material.
Terminei de dissecar os três outros pares de gêmeos e maquinalmente registrei as anomalias encontradas. Em todos os três casos, a causa da morte fora a mesma:
uma injeção de clorofórmio no coração.
Dos quatro pares de gêmeos, três tinham globos oculares de cor diferente entre si. Um olho era azul e outro castanho.
Esse fenômeno é bastante raro em não-gêmeos. Mas no caso presente, notei que em 8 gêmeos isso ocorria seis vezes. Uma coleção de anomalias extremamente interessantes.
A ciência médica classifica-os como heterecromos, o que significa simplesmente de cores diferentes. Cortei os olhos e coloquei-os numa solução de formaldeído, anotando
pormenorizadamente suas características, a fim de não misturá-las. Durante o exame dos quatro pares de gêmeos, descobri outro fenômeno ainda mais curioso: ao remover
a pele do pescoço, notei imediatamente acima da extremidade do esterno um tumor do tamanho de uma pequena noz. Pressionando-o com o fórceps, vi que estava cheio
de pus. Essa rara manifestação, conhecida na ciência médica com o nome de tumor de DuBois, indicava a presença de sífilis hereditária. Observando mais, vi que ele
existia em todos os oito gêmeos. Seccionei o tumor, deixando-o cercado de tecido sadio, e mergulhei-o em outro vidro de formaldeido. Em dois pares de gêmeos descobri
também a evidência de uma ativa e cavernosa tuberculose. Registrei meus achados, mas deixei a cláusula "causa da morte" em branco.
Durante a tarde fui visitado pelo Dr. Mengele. Fiz um relato detalhado do meu trabalho de manhã e entreguei-lhe o relatório. Ele sentou-se e começou a ler
cada caso atenciosamente. Ficou muito interessado pela característica heterocromática dos olhos, porém ainda mais interessado na descoberta do tumor de DuBois. Deu-me
instruções para despachar aqueles órgãos e incluir meu relatório na remessa. Ordenou-me também que preenchesse o item "causa da morte". A escolha das causas ficava
a meu critério e discrição; a única recomendação era de que cada causa fosse diferente. Quase que se desculpando, quis fazer-me ver que aquelas crianças, como eu
mesmo pudera notar, eram tuberculosas e sifilíticas, e morreriam mais cedo ou mais tarde... Não tocou mais no assunto. Aquela tinha sido sua explicação para a morte
das crianças. Contive-me ao máximo para não fazer qualquer comentário. Mas aprendi mais uma coisa: aqui, tuberculose e sífilis não eram tratadas com remédios e,
sim, com injeções de clorofórmio no coração.
Fiquei estarrecido só de pensar o quanto tinha aprendido durante a minha curta estada aqui, e o quanto ainda teria que testemunhar sem protestar, até que
minha própria hora chegasse. No momento que entrara neste lugar tivera a exata sensação de que já era um morto-vivo. Mas agora, de posse de todos esses segredos
fantásticos, estava certo de que nunca mais sairia vivo dali. Como era possível que o Dr. Mengele ou o Instituto Berlim-Dahlem fossem permitir que eu deixasse com
vida este lugar?
IX
JÁ ERA TARDE E ESTAVA ficando escuro. O Dr. Mengele tinha saído e eu fiquei só com meus pensamentos. Mecanicamente, arrumei os instrumentos usados para as
autópsias e depois de lavar as mãos fui para a sala de trabalho e acendi um cigarro, pensando em ter um minuto de paz. De repente, ouvi um grito que me deu calafrios
na espinha. Imediatamente depois um baque que soou como um corpo caindo. Fiquei escutando, meus nervos ficaram tensos pelo que os próximos minutos trariam. Antes
que o minuto seguinte tivesse passado, ouvi outro grito seguido de um estampido e de um baque surdo. Contei setenta gritos, estampidos e baques. Percebi o ruído
de passadas pesadas se afastando e tudo ficou quieto.
A tragédia sangrenta que tinha acabado de acontecer passara-se no aposento contíguo à sala de dissecação. O corredor levava diretamente a ele. Era um lugar
mal iluminado, de chão de concreto e janelas gradeadas que davam para o pátio dos fundos. Eu o usava para guardar os corpos, mantendo-os ali até que chegasse a vez
de serem dissecados, devolvendo-os para lá até que fossem apanhados para serem queimados. Roupas surradas de mulher, sapatos gastos de madeira, óculos, pedaços de
pão dormido — o conjunto costumeiro de artigos femininos das mulheres do KZ — estavam caídos no chão, empilhados na entrada do quarto. Depois do que tinha ouvido,
estava preparado para qualquer coisa de extraordinário. Entrei no quarto e olhei rapidamente em volta. Uma cena dantesca gradualmente se descortinou: diante de
mim estavam esparramados os corpos nus de setenta mulheres. Contorcidas, banhadas em seu próprio sangue e no das outras, elas se misturavam num conjunto diabólico.
À medida que meus olhos ficavam mais acostumados à escuridão do quarto, fui descobrindo, para meu horror, que nem todas as vítimas estavam mortas. Algumas
ainda respiravam, movendo os braços e as pernas lentamente; com o olhar vidrado, tentavam levantar a cabeça ensangüentada. Ergui a cabeça de algumas delas, duas
ou três, que ainda viviam, e percebi que, além da morte por gás e injeções de clorofórmio, havia uma terceira maneira de matar aqui: uma bala na nuca. O ferimento
revelava que a bala era de 6 mm: não havia o buraco de saída. Dessas observações concluí que o material utilizado na bala foi chumbo macio, porque só esse tipo de
bala iria se alojar na estrutura craniana. Infelizmente, eu conhecia alguma coisa sobre o assunto e pude caracterizar a situação em todo seu horror. Não havia nada
de surpreendente que essas balas de pequeno calibre não causassem a morte instantânea em todos os casos, mesmo tendo sido o tiro desferido de uma distância de poucos
centímetros da medula espinhal, e as queimaduras de pólvora na pele provocavam isso. Parecia que, em alguns casos, a bala tinha-se desviado ligeiramente do seu caminho;
desta forma a morte não fora instantânea.
Registrei isso também, mas não pensei mais; temia ficar louco.
Saindo para o pátio, perguntei a um membro do Sonderkommando de onde tinham vindo as mulheres.
— Foram trazidas da Seção C — respondeu. — Toda noite um caminhão traz setenta delas. Todas recebem uma bala na nuca.
Com minha cabeça girando de terror, caminhei pelo caminho estreito que dividia o bem guardado gramado do pátio do crematório. Meu olhar perambulou pelo pátio
onde estava sendo feita a chamada do Sonderkommando. Naquela noite não houve mudança de guarda. O crematório no. 1 não estava trabalhando. Olhei na direção dos
nos. 2, 3 e 4: suas chaminés estavam cuspindo labaredas e fumaça — os negócios não podem parar.
Ainda era cedo para o jantar. Os homens do kommando organizaram uma partida de futebol. Os times formaram no gramado: "SS x SK". Num lado do campo os guardas
SS do crematório, no outro os homens do Sonderkommando Começou o jogo e gargalhadas sonoras encheram o pátio. Os espectadores tornaram-se torcedores entusiasmados,
gritavam e torciam pelo time de sua preferência, como se aquele fosse o campo de futebol de uma pacífica cidadezinha. Estupefato, também registrei isso mentalmente.
Sem esperar o fim do jogo, voltei para o meu quarto. Depois do jantar, engoli duas pílulas para dormir e caí no sono. Eu precisava desesperadamente dormir, pois
sentia que meus nervos estavam a ponto de estourar. Nesses casos, as pílulas para dormir eram o melhor remédio.
X
NA MANHÃ SEGUINTE, acordei com um tremendo mal-estar. Dirigi-me para o chuveiro no quarto ao lado e deixei as águas geladas do Vístula caírem sobre mim durante
uma meia hora. Aquilo refrescou meus nervos cansados e dissipou a sononlência causada pelas pílulas.
Como os alemães se preocupavam conosco! Construíram dez maravilhosos banheiros para uso exclusivo do Sonderkommando. Aqueles que lidam com cadáveres devem
se lavar constantemente, por isso o banho de chuveiro era obrigatório duas vezes por dia, um regulamento ao qual todos nós nos submetíamos alegremente.
Examinei o conteúdo de minha maleta médica. Encontrei um estetoscópio, aparelho de medir pressão, algumas boas seringas, um certo número de outros instrumentos,
remédios e varias ampolas para injeções de emergência. Estava satisfeito em ter tudo aquilo porque sabia que seria necessário durante as minhas visitas".
Aqui no Sonderkommando, «visitas" significavam fazer a ronda pelos quatro crematórios. Comecei em meu próprio crematório. Primeiro parei nos alojamentos SS planejando
examinar a todos que se apresentassem, pois havia sempre alguém. Nos crematórios, todos simulavam doença de tempos em tempos a fim de conseguir um descanso breve
daquele trabalho exaustivo e neurotizante. Surgiam também casos mais sérios algumas vezes, mas não havia problema para se cuidar deles quanto aos estoques
de remédios estávamos tão bem abastecidos quanto a maior farmácia de Berlim.
A um kommando especial era dada a incumbência de checar todas as bagagens deixadas na ante-sala da morte pelos deportados e recolher todos os remédios antes
que as roupas e bagagens fossem levadas. Esses remédios me eram entregues para que eu procedesse a uma classificação de acordo com o seu tipo e finalidade. Não era
um trabalho fácil porque os remédios que chegavam a Auschwitz pertenciam a pessoas vindas de todos os lugares da Europa. Desta forma, havia rótulos em holandês,
grego e polonês, e eu devia decifrar todos. Devo mencionar, de passagem, que, em geral, os remédios eram sedativos de diversas espécies. Sedativos para acalmar os
nervos dos judeus perseguidos na Europa.
Após minha visita aos SS, subi para o alojamento do Sonderkommando. Enquanto estava lá, tratava de alguns cortes e arranhões comuns entre os motoristas.
Os homens do kommando raramente sofriam de alguma enfermidade orgânica, pois eram muito bem alimentados, andavam muito limpos e a roupa de cama era sempre nova.
Além disso, eram, na maioria, jovens, escolhidos a dedo por sua força e constituição física. No entanto, a quase totalidade tinha uma tendência para distúrbios nervosos,
pois recebiam uma carga tremenda, sabendo que seus irmãos, esposas e pais — sua raça inteira — estavam sendo dizimados aqui. Dia após dia carregavam milhares e milhares
de cadáveres para os crematórios onde, com suas próprias mãos, os atiravam nos incineradores. O resultado era uma aguda depressão nervosa e, freqüentemente, neurastenia.
Todos aqui tinham um passado que relembrariam consternados e um futuro contemplado com desespero. O futuro do Sonderkommando estava firmemente circunscrito ao tempo.
A dolorosa experiência de quatro anos mostrava que esse tempo era de quatro meses. No fim desse período, uma companhia de SS chegava. O kommando inteiro era reunido
no pátio dos fundos do crematório. Uma metralhadora espocava. Meia hora depois um novo esquadrão de Sonderkommando chegava. Eles tiravam a roupa de seus companheiros
mortos, dos quais, alguns minutos depois, só cinzas restavam. A primeira tarefa de cada Sonderkommando era cremar seus predecessores. Durante as minhas visitas,
havia sempre alguém que me implorava um veneno rápido e indolor. Eu invariavelmente recusava. Hoje me arrependo disso. Estão todos mortos. Sua morte era rápida,
é verdade — não auto-administrada como eles teriam preferido, mas pelas mãos dos carrascos nazistas.
XI
MINHA VISITA SEGUINTE foi ao Crematório no. 2, que estava separado do n.° 1 por um caminho através de alguns campos e pela mesma plataforma de desembarque.
Ele fora construído segundo os mesmos padrões do número um. A única diferença que pude notar foi que a sala reservada para a dissecação no número 1 tinha sido ocupada
por uma fundição de ouro. Fora isso, o desenho da ante-sala da morte, da câmara de gás, dos incineradores e dos alojamentos dos SS e dos Sonderkommandos eram exatamente
iguais.
Era para essa fundição que todos os dentes, as pontes e obturações dos prisioneiros dos quatro crematórios eram levados. Também vinham todas as jóias, moedas
de ouro, pedras preciosas, jóias de platina, relógios, cigarreiras de ouro e qualquer outro objeto de metal precioso achado nas malas, valises, roupas ou nos corpos
das vítimas. Três ourives eram empregados lá. Primeiro eles desinfetavam as jóias, depois as separavam e classificavam. Removiam as pedras preciosas e enviavam os
engastes para a fundição. Os dentes de ouro e as jóias fornecidas cada dia pelos quatro crematórios produziam, uma vez fundidas, entre 30 e 40 quilos de ouro.
A fundição era feita num crisol de grafita com aproximadamente 5 cm de diâmetro. O peso do cilindro de ouro era de 140 gramas. Eu sabia esse peso com exatidão
porque pesei mais de um numa balança de precisão na sala de dissecação. Os dentistas que removiam os dentes de ouro não atiravam todo o metal precioso no vasilhame
de ácido — uma parte ia para o bolso dos SK na hora que esses mórbidos tesouros estavam sendo recolhidos. O mesmo acontecia com as jóias e pedras costuradas nas
barras das roupas e as moedas de ouro deixadas no vestiário. Em última instância, era o Sonderkommando encarregado de vasculhar a bagagem que lucrava. Aquilo era
um jogo extremamente perigoso, pois os SS tinham a estranha faculdade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo e mantinham uma vigilância rigorosa sobre essa
propriedade que, daí em diante, pertenceria ao III Reich. Nem é preciso dizer que eles mantinham um controle ainda mais rigoroso sobre as jóias.
A princípio eu não compreendia como é que, do ponto de vista judicial e moral, o Sonderkommando podia embolsar o ouro. Alguns dias mais tarde, quando consegui
perceber toda a situação, inclinei-me a admitir que se alguém devesse ser o herdeiro único e legal de todos os tesouros que ali chegavam, era o Sonderkommando.
Os homens do Sonderkommando também fundiam seu ouro. Apesar da estrita vigilância, havia sempre um jeito de levá-lo até os ourives e depois retomá-lo já
em forma de "moedas" de 140 gramas. Mas botar esse ouro para trabalhar, quer dizer, trocá-lo por mercadoria útil, essa era uma tarefa bem mais difícil. Eles não
sonhavam em acumular esse ouro, pois sabiam que dentro de quatro meses estariam mortos; embora, para nós, quatro meses fosse um longo tempo. Ser condenado à morte
e ainda por cima obrigado a fazer trabalhos tais como os que fazíamos todos os dias era para arrebentar o corpo e a alma dos mais fortes, e levar muitos às raias
da loucura. Era, pois, necessário tornar a vida mais fácil, mais suportável, ainda que fosse por algumas semanas. Com ouro isso era possível, mesmo nos crematórios.
Assim foi criada, no tempo do primeiro Sonderkommando, uma unidade de troca: o cilindro de ouro de 140 gramas. Essa mesma unidade estava ainda sendo usada
pelo décimo-segundo Sonderkommando. Os ourives não tinham nenhum crisol de diâmetro menor, assim não havia jeito de se fazer "moedas" menores.
No crematório, um objeto não tinha "valor" no sentido ordinário da palavra. Qualquer um que pagasse alguma coisa com ouro já tinha pago com sua vida na hora
em que entrara aqui. Mas a pessoa que dava algo em troca de ouro arriscava duplamente o pescoço; a primeira vez quando trazia os artigos que eram difíceis de passar,
pois desde o lado de fora havia barreiras de SS onde todos que passavam eram minuciosamente revistados; e depois, ao sair levando seu pagamento em ouro, pois também
passava por revista rigorosa.
Em seu caminho para fora, o ouro era carregado no bolso de um homem do Sonderkommando até o portão do crematório. Lá passava para outras mãos. O homem que
o carregava aproximava-se do guarda e trocava umas palavras com ele. Esse último virava-se e afastava-se do portão. Na seção da via férrea que passava em frente
ao "krema", um grupo de 20 a 25 poloneses trabalhava. A um sinal do homem do Sonderkommando, o seu chefe se aproximava com um saco dobrado e pegava o ouro, que estava
embrulhado em papel. Assim, o saco contendo os artigos desejados passava em segurança para dentro do crematório.
O homem do Sonderkommando entrava na casa da guarda, que ficava perto do portão, tirava cerca de cem cigarros e uma garrafa de brandy do saco. O soldado
SS entrava e imediatamente escondia os cigarros e a bebida. Evidente que ele ficava muitíssimo satisfeito, pois os SS recebiam apenas dois cigarros por dia e nenhuma
bebida alcoólica. E, no entanto, ambos eram indispensáveis aqui. Os SS bebiam e fumavam com sofreguidão, como também o faziam os homens do Sonderkommando.
Outros artigos indispensáveis tais como manteiga, ovos, bacon e cebolas eram contrabandeados por esse mesmo método. Porém, com os deportados comuns nada
disso acontecia. Uma vez que o ouro era obtido através de um esforço coletivo, a distribuição da mercadoria conseguida em sua troca era feita também coletivamente.
Assim, não só o pessoal do Sonderkommando como os soldados SS recebiam uma provisão considerável de alimentos, cigarros e bebidas. Todos fechavam os olhos àquele
tráfico, pois era vantajoso para todos que ele continuasse. Tomado individualmente, qualquer SS do crematório era subornável. Só não confiavam neles próprios, pois
sabiam que o Sonderkommando nunca traíra ninguém e nem nunca trairia. Por isso é que a comida, a bebida e os cigarros eram entregues aos SS por um "homem de confiança"
do Sonderkommando.
Pelo mesmo caminho "subterrâneo", o órgão oficial do III Reich, o Võotkischer Beobachter, era levado todos os dias ao crematório, cada vez por um trabalhador
diferente. Uma assinatura mensal custava um cilindro de 140 gramas. Qualquer um que arriscasse a vida trinta dias por mês, para trazer o jornal aos prisioneiros,
merecia o preço pago.
Desde minha chegada ao crematório, fui o primeiro a receber um exemplar. Li-o num lugar escondido e seguro, e depois relatei os principais acontecimentos
do dia a um dos prisioneiros-funcionários, que então passava a outro as notícias e assim sucessivamente, até que todos ficassem a par das ultimas notícias.
O Sonderkommando era um grupo de elite; suas vantagens e privilégios já foram contados. Em contraste com os prisioneiros do campo propriamente dito, que
minguavam em barracos infectos, lutando furiosamente por um naco de pão ou um pedaço de tomate, seu tratamento era relativamente bom. Consciente dessa situação de
desequilíbrio, o Sonderkommando distribuía comida e roupas aos seus companheiros menos afortunados sempre que podia.
Durante os últimos dias, um kommando feminino de cerca de 500 operárias esteve trabalhando duro, não muito longe dos portões do crematório. Eram vigiadas
por dois SS e quatro cães pastores. Alguns homens do Sonderkommando, com permissão dos seus superiores, aproximaram-se dos dois SS que guardavam as prisioneiras
e deram um maço de cigarros a cada um. Com isso o acordo estava selado. O trabalho das mulheres era carregar pedras para a construção de uma estrada. Então, algumas
delas, carregadas de pedras, aproximaram-se do nosso portão como se seu trabalho as tivesse levado lá, e imediatamente apanharam todas as roupas que tinham sido
juntadas para elas. Levaram também pão, bacon e cigarros. Depois saíram e vieram outras do kommando até que cada uma tivesse recebido sua parte. Não havia nunca
favoritismo por parte do Sonderkommando, pois nenhum de nós conhecia qualquer das mulheres pessoalmente. Radiantes com os presentes, elas voltaram ao trabalho. No
dia seguinte, outro grupo substituía o anterior e a mesma cena se repetia.
Os imensos armazéns dos crematórios possuíam uma quantidade enorme de roupas e sapatos, aguardando o embarque, e creio que vários milhares de mulheres foram
ajudadas pelo Sonderkommando dessa maneira. Eu também tentava dar a minha contribuição: enchia meus bolsos com vitaminas, tabletes de sulfa, vidros de iodo, esparadrapo
e tudo que considerava pudesse ser de utilidade, entregava às mulheres que passavam.
Quando meu estoque chegava ao fim, voltava ao quarto e enchia novamente os bolsos; para aqueles que recebiam esses medicamentos eles freqüentemente representavam
a diferença entre a vida e a morte. Pelo menos por algum tempo.
Depois de visitar o número 2, passei para o no. 3 e o no. 4 Enquanto o número 3 era composto, em sua grande maioria, de gregos e poloneses (notei também
cerca de cem húngaros), o número 4 era quase que totalmente de poloneses e franceses. Em todas essas fábricas da morte, o trabalho estava a todo vapor. Da plataforma
de desembarque de judeus, que era dividida em quatro grandes divisões (como dedos de uma mão), similares ao delta de algum rio, as vítimas eram despejadas para a
morte com uma fúria insana. Notei, horrorizado, com que ordem e automatismo os assassinos agiam, como se aquelas fabricas estivessem ali para durar toda a eternidade.
Se por um milagre eu conseguir sair vivo desse lugar pensei comigo mesmo, e tiver uma chance de contar tudo que testemunhei e pelo qual passei, quem acreditará
em mim? Palavras, descrições são totalmente impotentes para dar a quem quer que seja uma idéia exata do que seja isso aqui. Então meu esforço desesperado para tudo
gravar e registrar em minha mente e em vão.
Com esse pensamento desencorajador na cabeça, completei meu primeiro dia de ronda pelos quatro crematórios.
XII
CONSEGUI UM VOLUME do dicionário francês Petit Larousse. Com a ajuda de seus mapas, tentei localizar os nomes dos vários lugares mencionados nos jornais
que lia. Sozinho em meu quarto, estudei a situação militar ao longo das frentes oriental e sul. Passos pesados ressoaram no corredor. Imediatamente escondi o dicionário
e fiquei olhando impaciente para a porta. O comandante do crematório entrou para informar-me que uma importante comissão chegaria às duas horas da tarde, e que eu
deveria estar com a sala de dissecação pronta para recebê-la.
Antes da comissão chegar, entrou um caixão fechado, completamente enrolado em tecido negro. Dentro estava o corpo de um capitão SS. Coloquei-o sobre a mesa
de dissecação assim como me foi entregue.
A comissão, constituída de altos oficiais trajados impecavelmente, chegou com pontualidade: um coronel SS do Corpo Médico, um juiz, dois funcionários da
Gestapo e um relator da corte marcial. Alguns minutos depois, entrou o Dr. Mengele. Pedi-lhes que se sentassem. Teve lugar, então, uma pequena conferência, onde
os dois homens da Gestapo relataram com alguns detalhes as circunstâncias da morte de seu colega.
Os ferimentos, causados por arma de fogo, apontavam ou para assassinato premeditado ou crime comum; a hipótese do suicídio foi logo afastada, pois o revólver
do capitão ainda estava no coldre quando o cadáver foi encontrado. Pela hipótese do crime comum achavam que podia ter sido cometido por outro oficial ou então
por algum subalterno que tivesse algo contra ele. Mas a possibilidade do assassinato premeditado era mais aceitável: era comum haver crimes de morte na cidade polonesa
de Gleiwitz, onde havia atividade constante de grupos da Resistência.
O objetivo da autópsia era determinar se o tiro fora desferido pela frente ou pelas costas, qual o calibre e as características da arma usada e a distância
aproximada entre o atirador e a vítima. No momento não havia nenhum médico qualificado em Gleiwitz, que ficava a apenas quarenta quilômetros de Auschwitz, sendo
este o ponto mais próximo onde uma autópsia podia ser efetuada em condições satisfatórias.
No meu papel de observador, permaneci a uma distância respeitosa do grupo enquanto a conversa prosseguia e aguardei no paciente mutismo que é esperado de
todo prisioneiro do KZ, que o Dr. Mengele desse as ordens.
Nunca podia imaginar que a um judeu prisioneiro do KZ, como eu, fosse permitido sujar, com meu contato, o corpo de um oficial SS. Quanto a caber a mim fazer
a autópsia, nunca nem mesmo sonhara com isso, especialmente levando em conta, mesmo sendo chamado de cidadão livre, que as leis raciais me impediam de prestar qualquer
assistência médica aos cristãos, ou, mais exatamente, aos arianos. Por isso fiquei surpreso quando o Dr. Mengele me ordenou que prosseguisse com a autópsia.
A primeira tarefa, que não era nada fácil, foi tirar a roupa do morto. Somente para retirar as botas seriam necessários dois homens. Solicitei, ao Dr. Mengele
permissão para chamar dois assistentes. Enquanto o cadáver estava sendo despido, os membros da comissão empenharam-se numa discussão acalorada e praticamente não
prestaram atenção em mim e em meus auxiliares.
Ao fazer a primeira incisão comecei a defrontar-me com um ataque de medo e um absurdo sentimento de inferioridade. Cortei a pele do crânio e, com um movimento
rápido e preciso, puxei metade da pele do rosto e a outra metade até a nuca. O passo seguinte seria mais difícil: tratava-se de serrar o crânio e remover a calota
craniana. Quase mecanicamente procedi a essas operações.
Chegara a vez agora de examinar os dois ferimentos causados pela bala. Se ela tivesse atravessado o corpo, deveria haver naturalmente dois furos, um
na entrada e outro na saída . Na maioria dos casos, o médico não tem problema para apontar qual é qual: o ponto por onde a bala entra é sempre menor do que aquele
por onde sai. Neste caso, porém, havia dois orifícios exatamente do mesmo tamanho, um abaixo do mamilo esquerdo e o outro perto da face superior da omoplata.
O caso não estava nada claro e, por conseguinte, muito mais interessante. O que poderia ter causado a uniformidade desses dois ferimentos? O Dr. Mengele
era de opinião que tinha havido dois tiros, um pela frente e outro por trás. Esse poderia muito bem ser o caso, se o oficial tivesse caído após o primeiro tiro e
levado o segundo quando já estivesse no chão. Nenhuma das duas balas atravessara todo o corpo, e isso explicaria os dois ferimentos idênticos. Essa teoria parecia
bastante plausível, mas faltava ser verificada. Para tanto, eu teria de acompanhar o caminho que as balas haviam percorrido. Ao fazer isso, descobri que a bala que
entrara no corpo pelo mamilo esquerdo perfurara o coração, batera na extremidade esquerda da coluna vertebral e continuara a subir num ângulo de 35° até alcançar
a extremidade de cima da omoplata, onde batera e saíra do corpo. Não podia haver dúvidas quanto a isso; somente uma bala havia sido disparada pela frente, pois o
caminho por ela percorrido era ascendente, da frente para trás, num ângulo de 35°. A razão da existência de dois buracos do mesmo tamanho era que a bala havia raspado
a coluna vertebral e tirado um pedaço da omoplata; consideravelmente atenuada por esses obstáculos, a bala deixara o corpo depois de grande parte de seu impulso
ter-se perdido. Alem disso, é bastante duvidoso que alguém apontasse para baixo num ângulo de 35° ao atirar. Para fazer tal coisa, seria necessário que o assassino
erguesse seu braço bem acima da cabeça. Assim, parecia-me óbvio que a bala havia sido disparada de frente, e que a arma fora apontada um pouco acima da linha horizontal
no momento do tiro, que foi desferido de perto. Provavelmente o assassino fora impedido por algum obstáculo imprevisto de erguer um pouco mais a arma. Mas essa era
uma questão para o inquérito decidir.
Notei que minhas observações satisfizeram os membros da comissão, pois me comunicaram que, no futuro, todos os casos que exigissem autópsia seriam enviados
para cá. Eles acharam esse arranjo bastante satisfatório. Assim eu me tornei, com essa única autópsia, o médico-legista do KZ encarregado de todos os assuntos pertinentes
à medicina legal no distrito de Gleiwitz.
XIII
UMA MADRUGADA RECEBI um telefonema ordenando-me que fosse imediatamente à "pira" para trazer de volta ao crematório no. 1 todos os remédios e óculos que
haviam sido recolhidos lá. Depois de classificados, seriam remetidos para vários pontos da Alemanha.
A pira ficava localizada a uns quatrocentos ou quinhentos metros do crematório no. 4, bem atrás da pequena floresta de vidoeiros de Birkenau, numa clareira
cercada de pinheiros. Ficava do lado de fora da cerca eletrificada de arame farpado do KZ, entre a primeira e a segunda linha de guardas. Uma vez que eu não estava
autorizado a me afastar além dos limites do confinamento, requisitei permissão por escrito. Eles me forneceram um salvo-conduto para três pessoas, pois eu planejava
levar dois homens para que me ajudassem a carregar o material para fora do crematório.
Caminhamos em direção aos rolos espirais de fumaça grossa. Todos os infelizes que eram levados para lá viam aquelas colunas de fumaça, visíveis de qualquer
ponto do KZ. A qualquer hora do dia ou da noite podia-se vê-las, e desde o momento em que os prisioneiros eram despejados dos vagões de carga, aquela era uma das
visões para a qual tinha o olhar atraído. Durante o dia ela cobria o céu de Birkenau com uma nuvem espessa; à noite, toda a área ficava iluminada com aquela resplandescência
infernal.
Nosso caminho nos levou para além dos crematórios. Após mostrarmos aos guardas SS o salvo-conduto, passamos por uma abertura no arame farpado e alcançamos
uma estrada aberta. Os arredores — um terreno todo coberto de grama verdejante — espelhavam tranqüilidade. Porém, meus olhos observadores logo descobriram, a cerca
de uns cem metros, os guardas da segunda linha descansando sobre a grama ou sentados ao lado de suas metralhadoras e cães pastores.
Atravessamos a clareira e chegamos a uma pequena floresta de pinheiros. Novamente nosso caminho foi barrado por uma cerca e portão de arame farpado. Uma
grande tabuleta, igual às dos portões dos crematórios, estava pendurada lá:
A ENTRADA É ESTRITAMENTE PROIBIDA PARA TODOS QUE NÃO TRABALHAM AQUI. INCLUSIVE PARA O PESSOAL DA SS NÃO AUTORIZADO POR ESSE COMANDO.
Apesar do aviso, entramos sem que os guardas nos pedissem o passe. A razão era simples: os guardas SS de serviço eram do crematório e os sessenta homens
do Sonderkommando que trabalhavam na pira eram também do crematório no. 2; no momento, a troca do dia já tinha sido feita. Eles trabalhavam de 7 da manhã às 7 da
noite, quando eram substituídos pelo pessoal do turno da noite, que também se compunha de sessenta homens do crematório no. 4.
Depois de passar pelo portão, alcançamos um lugar aberto que parecia um pátio no meio do qual havia uma casa de telhado de palha, cujo reboco estava soltando.
Seu estilo era das típicas casas de campo alemãs e suas pequenas janelas estavam cobertas com tábuas. Aliás, não havia dúvida de que havia sido casa de campo durante
pelo menos cento e cinqüenta anos, a julgar pelo telhado de palha, que há muito tornara-se enegrecido, e pelas paredes várias vezes remendadas.
O Estado alemão havia expropriado toda a aldeia de Birkenau, perto de Auschwitz, a fim de estabelecer lá o KZ. Todas as casas, com exceção dessa, haviam
sido demolidas e a população removida.
Em que esta casa deveria estar sendo usada? Teria sido destinada a servir de habitação? Nesse caso, seu interior deveria ter sido dividido em quartos. Ou
teria sido ela originalmente um único e espaçoso aposento sem divisões, idealizada para ser usada como depósito? Eram as perguntas que fazia a mim mesmo e não conseguia
me dar uma resposta satisfatória. De qualquer modo, ela era agora usada como quarto de despir para aqueles que iam para a pira. Era aqui que depositavam suas roupas
surradas, seus óculos e seus sapatos.
Era para cá que vinha o "excedente" da "rampa dos judeus isto é, aqueles para quem não havia lugar nos quatro crematórios. A pior espécie de morte os aguardava.
Aqui não havia mangueiras d'água para saciar a sede de uma viagem de vários dias nem tabuletas mentirosas que alimentavam suas esperanças, nem câmara de gás, com
a qual os alemães pudessem enganá-los, fazendo-a passar por sala de desinfecção. Era somente uma casa de camponeses, algum dia pintada de amarelo e coberta de palha,
cujas janelas haviam sido fechadas com tábuas.
Atrás da casa, enormes colunas de fumaça subiam ao céu. espalhando o cheiro de carne queimada e cabelo chamuscado. No pátio, uma multidão aterrorizada de
cerca de 5.000 almas; por todos os lados, fileiras compactas de SS, segurando cães furiosos. Os prisioneiros eram levados em grupos de 300 ou 400 de cada vez para
se despirem. Lá, sob uma chuva de cacetadas, largavam suas roupas e saíam pela porta do lado dos fundos da casa, dando lugar aos que se seguiam. Uma vez do lado
de fora da porta, não tinham tempo nem mesmo de olhar em volta ou de perceber o horror de sua situação. O Sonder-kommando puxava-os pelos braços, conduzindo-os diante
de uma fileira dupla de SS, alinhados no caminho serpenteante que era ladeado por uma floresta. A pira, até então escondida pelas arvores, surgia à vista.
A pira era uma vala de uns quarenta metros de comprimento, cinco metros de largura e três de profundidade, uma caldeira de queimar corpos. Os soldados SS,
formados em intervalos de quatro metros uns dos outros, ao longo da vala, aguardavam suas vítimas. Eles usavam armas de pequeno calibre (seis milímetros) que, no
KZ, eram utilizadas para administrar uma bala na nuca dos condenados. No fim do caminho, dois homens do Sonderkommando arrastavam as vítimas pelo braço por uns vinte
metros até diante dos SS. Seus gritos de terror abafavam o estampido dos tiros. Um tiro e, imediatamente depois, mesmo antes de morrer, a vítima era atirada nas
chamas. Quatro metros adiante a mesma cena se repetia O Oberschmrführer Molle era o comandante desses carniceiros. Como médico, e como testemunha ocular, juro que
era o mais abjeto, diabólico e empedernido assassino do III Reich. Mesmo o Dr. Mengele mostrara uma vez ou outra sinais de que era humano. Durante as seleções na
rampa de desembarque, quando notava uma mulher jovem e saudável que se esforçava por juntar-se à sua mãe na coluna da esquerda, ele gritava e a xingava com violência,
ordenando que voltasse para a coluna da direita. Mesmo o animal do crematório no.1, o Oberschaarführer Mussfeld, dava um segundo tiro naqueles a quem o primeiro
não havia liquidado. Molle, no entanto, não perdia tempo com essas banalidades. Aqui, a maior parte dos homens era jogada com vida nas labaredas. E pobre de qualquer
Sonderkommando que, por qualquer motivo, interrompesse a corrente viva que se estendia da sala de despir até a pira, deixando algum membro do esquadrão de fuzilamento
parado por alguns segundos à espera de nova vitima.
Molle estava em todos os lugares ao mesmo tempo. Corria incansável de uma pira para outra, de lá para a casa e novamente para as piras. A maior parte das
vezes os condenados se deixavam levar sem resistência, o terror paralisava-os de tal modo que não percebiam o que estava prestes a lhes acontecer. Quase todos os
velhos e as crianças reagiam dessa forma. Havia, no entanto, muitos adolescentes que instintivamente tentavam resistir, com uma força nascida do desespero. Se acontecia
de Molle testemunhar uma tal cena, ele tirava sua arma do coldre. Um tiro, uma bala disparada geralmente a quarenta ou cinqüenta metros de distância, e a vítima,
que se debatia nos braços do Sonderkommando, caía morta.
Suas balas freqüentemente atravessavam os braços dos homens do Sonderkommando quando se mostrava insatisfeito com o trabalho deles. Nesses casos, apontava
para os braços sem, no entanto, manifestar sua insatisfação, mas também sem dar nenhum aviso prévio.
Quando duas piras estavam operando simultaneamente, a produção variava de quinhentos ou seiscentos mortos por dia. Ligeiramente melhor do que os crematórios,
mas aqui a morte era um milhão de vezes mais terrível, pois se morria duas vezes, primeiro de um tiro na nuca e depois pelo fogo.
Depois da morte por gás, por injeções de clorofórmio no coração e por uma bala na nuca, eu tinha agora visto esse quarto método "combinado".
Juntei os remédios e óculos abandonados pelas vítimas. Apavorado, com os joelhos ainda tremendo de emoção, voltei para casa, isto é, para o crematório no.1
que, no dizer do Dr. Mengele, "não era um hospital, mas um lugar onde se podia viver de maneira decente".
Depois de ter visto as piras, estava inclinado a concordar com ele.
Uma vez em casa, entrei em meu quarto, mas ao invés de arrumar os remédios e óculos, tomei um sedativo e caí na cama. A dose de hoje era de trinta centigramas,
suficiente para combater os efeitos das náuseas causadas pela pira funerária. Pelo menos, eu esperava.
XIV
NA MANHÃ SEGUINTE acordei imaginando que nova revelação esse dia traria, pois aqui cada dia tinha sua revelação, cada uma mais horripilante que qualquer
ser humano jamais pensou existir.
Soube através do Sonder, que invariavelmente conseguia ficar a par de todas as últimas informações, que o KZ estava em rigorosa prontidão. Isso significava
que ninguém podia deixar os barracões. Os soldados SS e seus cães estavam com toda corda. Hoje eles iriam liquidar o Campo Tcheco.
O Campo Tcheco era constituído de 15.000 deportados trazidos do gueto de Theresienstadt. Assim como o Campo Cigano, ele tinha um certo ar familiar. Os deportados
não haviam sido selecionados na hora da chegada, sendo enviados intactos para seus "aposentos". Todos, independente da idade ou compleição física, tiveram permissão
para viver juntos e continuar com sua própria roupa. Seu tratamento era duro, mas não insuportável. Ao contrário das outras seções, os prisioneiros tchecos não trabalhavam.
Assim eles viveram por dois anos, até que a hora do extermínio chegou, como cedo ou tarde chegava para todos no KZ. Em Auschwitz não era nunca uma questão
de se você iria viver ou não, mas simplesmente uma questão de tempo, de quando você iria morrer. Ninguém escapava. Os trens de deportados húngaros, ou como se costumava
dizer no KZ — os fretes — chegavam num fluxo constante, às vezes até dois num mesmo dia, e despejavam no campo seus infelizes ocupantes Para todos, o incansável
Dr. Mengele dispensava o mesmo tratamento de seleção. Ele permanecia lá, como uma estátua, seu braço sempre apontando numa direção: a esquerda. Assim, comboios inteiros
eram enviados para as câmaras de gás e para as piras.
O campo de quarentena, o Campo C, o Campo D e a seção F estavam superlotados, embora os prisioneiros fossem embarcados, as centenas, diariamente, para campos
mais distantes . NO Campo 1 checo, as crianças e os velhos estavam bastante enfraquecidos pelos dois anos de subalimentação: as crianças estavam praticamente em
pele e osso, e os prisioneiros mais velhos tão fracos que mal podiam caminhar. Ambos deveriam ceder lugar para os recém-chegados, que ainda tinham forças e podiam
trabalhar.
Mas algumas semanas antes a situação deles havia piorado ainda mais. Quando os primeiros trens húngaros começaram a chegar suas rações foram radicalmente
reduzidas. Depois alguns dias mais tarde, o fluxo da chegada de comboios atingiu o máximo e as autoridades do campo se defrontaram com o problema da escassez de
comida. Como sempre, a solução foi drástica e eficiente: praticamente foram suprimidas por completo as rações do Campo Tcheco.
A fome, então, reduziu os prisioneiros a uma multidão de loucos famintos. Em poucos dias, seus organismos enfraquecidos se desintegravam totalmente. Disenterias,
diarréias e tifo começaram a fazer seu trabalho mortal. Cinqüenta ou sessenta mortes por dia era normal. Seus últimos dias eram transcorridos num sofrimento indescritível,
até que, finalmente, vinha a morte para libertá-los.
O fechamento de todos os barracões foi ordenado ainda de madrugada. Centenas de SS cercaram a área e ordenaram que os cadáveres ambulantes se reunissem.
Seus gritos de terror ao serem embarcados nos caminhões eram tenebrosos de se ouvir, pois após dois anos de permanência no KZ, eles não tinham mais ilusões sobre
o destino que os aguardava. O "Dia do Extermínio" veio encontrar 12.000 prisioneiros no Campo Tcheco. Desse número, uns 1.500 homens e mulheres em condições físicas
razoáveis e oito médicos foram poupados. O resto foi enviado para os crematórios 2 e 3. No dia seguinte, o Campo Tcheco estava silencioso e deserto. Vi um caminhão
carregado de cinzas deixar o campo em direção às águas do Vístula.
Desta forma as folhas de chamada de Auschwitz ficaram reduzidas em mais de 12.000 "unidades", e mais uma página sangrenta foi adicionada aos arquivos do
KZ. A página continha somente uma breve inscrição: "A seção tcheca do Campo de Concentração de Auschwitz foi liquidada nessa data devido a um surto de tifo entre
os prisioneiros. Assinado: Dr. Mengele, Hauptsturmführer I Lageratz.
Os oito médicos do Campo Tcheco, que, graças à intervenção do Dr. Epstein, tinham sido poupados, foram enviados para os barracões hospitais do Campo F, devido
ao fato de estarem física e mentalmente exaustos depois do esforço sobre-humano de cuidar de seus companheiros ou por estarem com tifo.
No dia que se seguiu ao extermínio do Campo Tcheco, fiz uma visita oficial ao Campo F. Ali encontrei os oito médicos que haviam escapado da morte e tive
oportunidade de conversar com eles, em particular com o Dr. Heller, cujo nome era bem conhecido nos círculos médicos. De seus lábios trêmulos, ouvi a história do
sofrimento e da morte da elite judaica da Tcheco-Eslováquia. Desde aquela época, os oito já morreram. Eram médicos de verdade. Guardo a memória deles numa profunda
estima e consideração.
XV
O Campo C, que ficava perto do Campo Tcheco, era composto de mulheres judias húngaras, freqüentemente uma média de 60 000, apesar dos embarques diários
para outros campos mais distantes. Foi nesse super povoado campo que os médicos descobriram entre as prisioneiras sintomas de escarlatina. Por ordem do Dr. Mengele,
os barracões afetados e os em sua proximidade foram postos em quarentena que, por sinal, não durou muito: de manhã à noite, cerca de doze horas. A noitinha, os caminhões
chegaram para carregar as esqueléticas prisioneiras para os crematórios. Tais eram os métodos eficazes utilizados pelo Dr. Mengele para evitar o surto de moléstias
contagiosas. O Campo Tcheco e o Campo C já haviam sentido na pele os efeitos da batalha do Dr. Mengele contra as epidemias. Felizmente os médicos dos barracões
aprenderam logo o método do Dr. Mengele e, daí por diante, não revelaram nenhum caso de doença infecto-contagiosa às autoridades médicas SS. Sempre que possível,
isolavam a pessoa doente num canto do barracão e cuidavam dela o melhor que podiam com os ínfimos recursos de que dispunham. Evitavam a todo custo enviar os
doentes para os hospitais, pois os médicos SS examinavam os pacientes que ali chegavam e o sinal de uma moléstia contagiosa significava a destruição não só do barracão
de onde provinha o doente como também dos barracões vizinhos. Na linguagem médica dos SS. isso era "a luta intensa contra o surto de infecções". O resultado dessa
luta era um ou dois caminhões cheios de cinzas...
Depois dessas considerações, recebi dois cadáveres de mulheres, trazidos do hospital do Campo B, com ordens do Dr. Mengele para que procedesse à autópsia.
Como sempre, recebi as fichas contendo detalhadas informações sobre as mortas Na coluna reservada ao diagnóstico, notei respectivamente febre tifóide" e "colapso
cardíaco". As duas expressões eram seguidas de pontos de interrogação.
Não sou muito dado a pesar os prós e os contras antes de agir. Decido e ajo rapidamente, sobretudo quando se trata de tomar uma decisão importante. Os resultados
desse comportamento nem sempre eram brilhantes. O fato de ter acabado nesse crematório foi conseqüência de uma decisão instantânea.
Novamente decidi-me rapidamente. Não podia enviar meu diagnóstico ao Dr. Mengele, confirmando a febre tifóide. A descrição da enfermidade da vítima estava
cheia de lacunas. O diagnóstico estava seguido de um ponto de interrogação. O médico provavelmente ficara inseguro no assunto. A autópsia determinaria se seu julgamento
tinha sido ou não correto. Por essa razão os dois corpos me foram enviados.
Procedi à autópsia. O intestino delgado em ambos os corpos estava num estado de ulceração característico de uma tifóide de três semanas. O baço apresentava-se
também inchado. Sem nenhuma sombra de dúvida, ambas as mortas tinham sido vítimas de febre tifóide.
O Dr Mengele chegou, como de costume, às cinco da tarde. Estava de bom humor. Entrou e perguntou-me, cheio de curiosidade, sobre o resultado da autópsia.
Os dois cadáveres jaziam abertos sobre a mesa. Os intestinos grosso e delgado de ambos já haviam sido lavados e colocados num vidro, prontos para serem examinados.
Eu lhe dei o meu diagnóstico: inflamação do intestino delgado, com extensa ulceração. Expliquei-lhe como era o estado ulcerado dos intestinos delgados durante
uma terceira semana de febre tifóide e comparei-o com as ulcerações surgidas em conseqüência da inflamação desse órgão. Chamei a sua atenção para o fato de que a
inchação do baço freqüentemente acompanha uma inflamação do intestino e, conseqüentemente, isso não era um caso de febre tifóide e sim uma séria inflamação do intestino
delgado, causada por envenenamento alimentar.
O Dr. Mengele era um biólogo racial e não um patologista. Assim, não foi difícil convencê-lo da exatidão de meu diagnóstico. No entanto, ser enganado aborrecia-o;
ele virou-se para mim e disse:
— Se quer saber a minha opinião, pessoas capazes de cometer erros tão crassos seriam mais úteis ao KZ como trabalhadores braçais do que como médicos. Diagnósticos
falhos como estes podem causar um bom número de mortes desnecessárias.
Ele apanhou os atestados e as fichas, mas antes de colocá-los na pasta, anotou a seguinte frase na margem de um atestado: "Responsabilizar as médicas", que
li por cima de seu ombro. Fiquei profundamente arrependido de ter agido dessa forma com as minhas colegas, pois seus diagnósticos estavam certíssimos. Talvez agora
perdessem seus cargos e acabariam indo fazer trabalho pesado; se o Dr. Mengele cumprisse sua ameaça, eu teria sido o culpado.
Segundo o costume médico vigente do outro lado do arame farpado, eu agira totalmente contra a ética, e estava com plena consciência de minha culpa. Errei
contra dois ou três inocentes. Mas até onde teria o Dr. Mengele ido em sua luta contra as epidemias, e qual teria sido o número de vítimas se tivesse agido de outra
forma?
No dia seguinte recebi notícias animadoras com relação ao destino de minhas colegas. O Dr. Mengele as havia repreendido severamente, mas tinha deixado as
coisas como estavam. As médicas permaneceram em seu trabalho. Depois disso, muitos outros cadáveres me foram enviados juntamente com suas respectivas fichas, mas
a cláusula "diagnóstico" estava sempre em branco. Eu preferia assim. A indignação do Dr. Mengele em relação ao erro de diagnóstico continuou a martelar na minha
cabeça por vários dias. Tanto cinismo misturado a tanta maldade em um médico me surpreendia, mesmo estando no KZ. Ele não era um médico comum, era um criminoso,
ou melhor, um "médico criminoso".
XVI
UM DIA o DR . MENGELE ordenou-me que fosse falar imediatamente com o comandante do Campo F. Naturalmente, fiquei muito feliz com isso, porque assim poderia
escapar um pouco do ambiente deprimente dos crematórios, nem que fosse por algumas horas. Eu sabia que andar me faria bem porque tinha pouca oportunidade de me exercitar.
E depois do cheiro constante da sala de dissecação e das fornalhas, estava realmente precisando de um pouco de ar puro. Além disso, a visita me daria o ensejo de
conversar com meus colegas do Campo F, que me haviam recebido tão calorosamente quando eu chegara ao KZ. Preparei-me para a "viagem", enchendo meus bolsos com remédios
valiosos e vários maços de cigarros, pois não queria voltar de mãos vazias para a minha antiga "casa", isto é, o hospital-barracão 12.
Saí pelo portão de ferro do crematório, onde os guardas anotaram meu número. Depois dirigi-me para o Campo F, sem pressa, para melhor saborear este pequeno
passeio. Passei ao lado da cerca de arame farpado do campo das mulheres, o "FKL", onde milhares e milhares de prisioneiras andavam para cá e para lá no meio daqueles
miseráveis barracões. Todas elas se pareciam, e todas, com suas cabeças raspadas e roupas surradas, eram repulsivas. Pensei na minha mulher e na minha filha, com
aqueles seus cabelos cacheados, suas roupas elegantes e sua maneira graciosa de se vestir, e todas aquelas horas que elas passavam discutindo os tão importantes
problemas femininos. Já se haviam passado três meses desde a nossa separação na plataforma de desembarque. O que teria acontecido com elas? Estariam vivas? Juntas?
Será que ainda estavam na seção de mulheres do KZ ou foram, talvez, enviadas para algum campo mais distante no III Reich? Três meses é um bocado de tempo, principalmente
no KZ. No entanto, eu tinha o pressentimento de que elas ainda se achavam em Auschwitz. Mas onde? Nesse complicado labirinto de arame farpado, qual seria a cerca
delas? Para qualquer lugar que olhasse, só via uma vasta rede de arame farpado, torres de concreto e tabuletas proibindo a saída ou a entrada. O KZ era somente arame
farpado; toda a Alemanha estava cercada de arame farpado, o III Reich era, ele próprio, um enorme KZ. Cheguei ao portão do Campo F. A entrada era guardada pelo Blockführerstube.
Um soldado e um suboficial SS com cara de gorila estavam de serviço. Aproximei-me da janela da casinhola, puxei a manga de meu paletó e, de acordo com o regulamento,
anunciei meu número: A 8450. Quando puxei a manga do paletó, o relógio de pulso que o Dr. Mengele me autorizara a usar tornou-se visível. Possuir um tal objeto era
uma das mais hediondas ofensas no KZ. Com a velocidade e a fúria de um tigre raivoso, o SS ergueu-se e saiu correndo da casinhola.
— Que diabo pensa que é para usar relógio de pulso? — gritou com uma voz de possesso. — E o que veio fazer no Campo F?
Três meses de permanência nos crematórios foram para mim uma escola que havia deixado sua marca. Sem perder a calma, sem nem mesmo piscar, respondi numa
voz suave:
— Estou aqui porque o Dr. Mengele me enviou, mas se é impossível para mim chegar ao Campo F, então é melhor retornar ao crematório e avisar o Dr. Mengele
pelo telefone.
O nome "Dr. Mengele" funcionou como mágica. Somente a sua menção era suficiente para fazer a maioria das pessoas tremer. O meu suboficial ficou mansinho
em frações de segundo. De uma maneira quase amável, perguntou-me quanto tempo eu pretendia ficar no campo.
— Você sabe, não é, eu tenho que registrar a informação — ele falou, quase se desculpando.
Olhei para o meu relógio. Eram dez horas.
— Devo ficar até duas da tarde — respondi. — A essa hora meu negócio com o Dr. Mengele já terá certamente acabado.
Para acentuar minha frase, tirei um maço de cigarros do bolso e ofereci ao meu interlocutor. Obviamente satisfeito com o presente, ele falou comigo num tom
quase amigável, e chegou ao extremo de dizer que ficaria contente em ver-me da próxima vez que eu aqui viesse.
Não havia como negar, o nome "Dr. Mengele", o fato de haver mencionado o crematório e a ostentação dos cigarros impressionaram fortemente o escravo SS. Agora
tinha certeza de poder passar pelo menos uma hora ou duas com meus velhos amigos. Mas primeiro deveria descobrir por que o Dr. Mengele havia me enviado.
Entrei no barracão do comandante do campo e esperei no hall que um funcionário viesse me perguntar o que desejava. Disse-lhe. Ele apontou para a porta do
lado oposto do aposento. Dirigi-me para lá e entrei num escritório muito bem mobiliado. As paredes eram cobertas de gráficos e mapas que mostravam as variações da
população e a composição do campo durante os vários períodos de sua existência. Ostensivamente colocado numa moldura ornada, notei uma enorme fotografia de Himmler,
com seu pince-nez colocado delicadamente sobre o nariz.
Três pessoas estavam sentadas no aposento. O Dr. Mengele, o Hauptsturmführer Thilo, cirurgião-chefe do KZ, e o Obersturmführer Wolff, diretor do Serviço
Médico Geral. O Dr. Mengele informou ao Dr. Wolff, a quem eu não conhecia pessoalmente, que era eu que fazia as autópsias no crematório.
— Muito interessante — disse o Dr. Wolff, coçando o queixo. — O Dr. Mengele me falou de seu trabalho. Estou especialmente interessado em patologia, doutor,
e já teria dedicado alguma atenção a um de seus casos mais delicados se a falta de tempo não me tivesse impedido.
Esperei pelo que estava para vir.
— No momento, estou me dedicando a um estudo científico de alguma importância. Mas para resumir, devo dizer que vou precisar de sua ajuda. Foi por isso
que pedi ao Dr. Mengele que o enviasse aqui hoje — fez uma pausa e continuou: — Como o senhor sabe, a diarréia é extremamente comum no campo e em noventa por cento
dos casos ela é fatal. Eu conheço tudo que há para saber sobre a evolução da doença, pois já fiz milhares de exames e tenho tudo minuciosamente anotado. Mas meu
trabalho está incompleto porque além da observação clínica, um estudo científico requer relatórios patológicos de um número suficiente de casos de disenteria para
que seja conclusivo.
Comecei a compreender do que se tratava. O Dr. Wolff também estava se dedicando à pesquisa. No meio do fedor e da fumaça dos crematórios, ele também desejava
ter o seu quinhão nas centenas de milhares de cobaias disponíveis no KZ, a maioria das quais reduzida pela disenteria a um peso inacreditável. Através da dissecação
de um número considerável de cadáveres, ele desejava descobrir as manifestações internas de disenteria ainda desconhecidas da ciência médica.
O Dr. Mengele queria resolver o problema da multiplicação da raça pelo estudo do material humano — ou melhor, dos gêmeos — que ele tinha à sua disposição
na quantidade e à hora que desejasse. O Dr. Wolff procurava as causas da disenteria. No momento tais causas não eram difíceis de apontar, até mesmo um camponês saberia
dizer. A disenteria é causada pela aplicação da seguinte fórmula: pegue qualquer indivíduo — homem, mulher ou criança inocente — arranque-o de seu lar, ponha-o junto
com centenas de outros num vagão fechado no qual um balde de água foi anteriormente colocado de maneira estratégica, e os remeta, depois de terem passado seis semanas
num gueto, para Auschwitz. Ali empilhe-os aos milhares em barracões que não serviriam nem de estábulos. Como comida, dê-lhes uma ração de pão dormido feito de castanha
silvestre, uma espécie de margarina cujo ingrediente básico é linhita, trinta gramas de chouriço feito de carne de cavalo doente que, no total, não excederá a setecentas
calorias. Para ajudar a descer essa ração, meio litro de sopa feita de urtiga e ervas daninhas, sem nenhum sal, nenhuma gordura e nenhum cereal. Em quatro semanas
a disenteria invariavelmente aparecerá. Três ou quatro semanas mais tarde o paciente estará "curado", porque morrerá, apesar de qualquer tratamento que possa receber
dos médicos do campo.
Segundo o Dr. Wolff, seriam necessários pelo menos cento e cinqüenta cadáveres para o capítulo de seu estudo devotado ao aspecto patológico da questão. O
Dr. Mengele interrompeu a conversa:
— Fazendo sete autópsias por dia, você conseguirá acabar o número requisitado pelo Dr. Wolff em apenas três semanas.
Não concordei.
— Desculpem-me, cavalheiros, mas se querem um trabalho sério e bem feito, o que não tenho dúvida, então só poderei fazer três autópsias por dia.
Depois de alguma discussão, todos concordaram com meu ponto de vista e, com um sumário aceno de cabeça, fui dispensado.
Fiz uma visita aos meus colegas residentes no hospital-barracão no. 2. Exultaram ao receber os remédios que eu trouxe e com ar de satisfação fumaram os
cigarros que distribui. Seus rostos e palavras traíram o sentimento de extrema fadiga e o desânimo que se apossaram deles. O fim trágico e repentino do campo tcheco
teve um efeito bastante forte sobre eles. Pouco a pouco, desesperançados com a sua situação, iam-se entregando ao desespero. Eu também estava totalmente desesperançado,
mas com uma diferença: esse sentimento em mim não veio pouco a pouco, mas sim abruptamente, no momento em que cruzara os portões do crematório.
No entanto, fiz o melhor que pude para encorajá-los, exortando-os a perseverar. Descrevi-lhes o quadro da situação militar e mostrei como dia a dia a situação
estava caminhando para um fim que nos fosse favorável. Uma vez que eu lia o jornal todo dia, estava apto a respaldar as minhas afirmações em fatos concretos. Nós
nos despedimos com um caloroso aperto de mão. No KZ, a expressão "deixar um amigo é morrer um pouco" tinha uma segunda conotação.
Deixei-os com a sensação de que poderia dizer, sem medo de estar fazendo demagogia, que tenho um espírito forte, pois mesmo na situação em que me encontrava,
ainda conseguia encorajar outros a perseverar...
O Obersturmführer Wolff mandou todos os seus antigos pacientes, vitimas de disenteria, para serem autopsiados. Já tinha acabado as primeiras trinta autópsias
e estava anotando os resultados de minhas observações. Em todos os casos a mucosa estomacal estava inflamada, o que resultava numa queima, ou melhor, num ressecamento
das glândulas que secretam ácido clórico no estômago. A ausência de sucos gástricos torna a digestão impossível mas, por outro lado, aumenta proporcionalmente a
fermentação.
Minha segunda observação dizia respeito às condições inflamatórias em que se encontrava o intestino delgado, o que era acompanhado por um adelgaçamento das
paredes intestinais. Minha terceira observação concernia ao suco digestivo mais importante do intestino delgado, a bílis, que é indispensável para a assimilação
das gorduras. Abrindo o fígado, encontrei, ao invés da normal secreção amarelo-esverdeada, um líquido quase incolor, que mal afetava o material que ia parar no intestino
e que, de qualquer forma, era totalmente incapaz de realizar sua função digestiva.
Minha quarta observação dizia respeito à inflamação do intestino grosso, que resultou num ressecamento, num adelgaçamento e numa excessiva fragilidade das
paredes intestinais, que se apresentavam tão grossas e tão fortes quanto um papel de cigarro. Na verdade, não eram mais tubos digestivos e, sim, esgotos através
dos quais tudo fluía de um extremo a outro num espaço de poucos minutos.
Tais observações, em linhas gerais e reduzidas a uma linguagem que qualquer leigo entenda, foram as principais conclusões das autópsias. O trabalho que me
foi encomendado era, na realidade, bastante monótono e desprovido de qualquer interesse. Os testes bacteriológicos provavelmente estavam sendo efetuados na aldeia
de Risgau, situada a três quilômetros do crematório, no "Instituto do Exército SS de Higiene e Bacteriologia". Lá, o renomado professor Mansfeld, catedrático da
cadeira de Bacteriologia da Faculdade de Medicina de Pecs, estava encarregado do trabalho.
XVII
ESTAVA TIRANDO minha soneca da tarde quando o Oberschaarführer Mussíeld entrou no meu quarto empurrando três prisioneiros. Informou que o Dr. Mengele me
arranjara três assistentes; assim falando, lançou um olhar na direção dos homens, e sua expressão era uma mistura de cinismo e pena.
Eles, na verdade, inspiravam pena, ali em pés, esfarrapados, emudecidos pelo tratamento desumano a que haviam sido submetidos, morrendo de medo e com uma
sensação de desconforto e desconfiança pela mudança brusca de ambiente. Também haviam deixado a esperança do lado de fora dos portões do crematório. Cumprimentei-os
amigável e calorosamente. Nós nos apresentamos. O primeiro a apertar minha mão foi o Dr. Dênis Gorog, médico e patologista do Hospital Estadual de Szombathely.
Era de estatura baixa, esguio, cerca de 45 anos e usava óculos grossos. Tive uma impressão favorável dele e uma sensação de que nos tornaríamos bons amigos. O
segundo tinha 50 anos, baixo, encurvado quase ao ponto de parecer corcunda. Era barrigudo e tinha um rosto bem desagradável. Seu nome era Adolph Fischer. Durante
vinte anos havia sido assistente de laboratório do Instituto de Patologia de Praga. Aquele judeu tcheco tinha cinco anos de KZ. O terceiro recém-chegado era
o Dr. Joseph Kolner, de Nice, França, e há três anos prisioneiro do KZ. Era um homem ainda moço, de seus 32 anos, não muito loquaz, mas bastante competente.
O Dr. Mengele os pescara no Campo D e os enviara a mim para que o trabalho de dissecação não sofresse atrasos. Eu continuaria responsável pela pesquisa,
pelos arquivos e pelos relatórios de cada autópsia. Os dois médicos iriam me ajudar nas dissecações e o assistente de laboratório, de acordo com a sua profissão,
prepararia os corpos. Seu trabalho consistia em abrir os crânios, na retirada e preparação de certos órgãos para futuro exame. Depois da dissecação, ele retiraria
os corpos da mesa e seria o responsável pela limpeza da sala.
Assim, ganhei colaboradores competentes e qualificados que dividiriam comigo a pesada carga. Para mim isso representava um alívio imenso.
XVIII
No MEU PAPEL de médico do Sonderkommando, sai em campo para fazer a ronda matutina. Os quatro crematórios trabalhavam a todo vapor. Na noite anterior tinham
queimado os judeus gregos da ilha de Corfu, uma das mais antigas comunidades da Europa. As vítimas foram mantidas por vinte e sete dias sem comer ou beber, primeiro
nos lanchões, depois nos vagões selados. Quando chegaram à plataforma de desembarque em Auschwitz, as portas foram abertas, mas ninguém desceu para a fila de seleção.
Metade já havia morrido e a outra metade estava em estado de coma. Todo o comboio, sem exceção, foi enviado para o crematório no. 2.
O trabalho foi acelerado durante a noite, de maneira que, pela manhã, tudo que sobrou do comboio foi uma pilha de roupas sujas e rasgadas no pátio do crematório.
Olhei com profunda tristeza para aquela montanha de trapos, que pouco a pouco ia ficando molhada e empapada com a chuva do outono. Dirigindo o olhar para cima, notei
que os quatro pára-raios colocados nos cantos das chaminés dos crematórios estavam retorcidos e caídos, como resultado da alta temperatura da noite anterior.
Hoje, durante a ronda, um caso grave esperava por mim no crematório no. 4. Um dos motoristas do Sonderkommando tentara o suicídio, tomando uma dose excessiva
de pílulas para dormir. Esse era o método mais comum do suicídio em Auschwitz Os homens do Sonderkommando não tinham dificuldade em obter essas pílulas, pois encontravam
todos os dias um grande número delas entre os pertences dos mortos.
Ao aproximar-se da cama do suicida, fiquei emocionado e penalizado ao ver que o coitado não era outro senão o "capitão". Era assim que todos o tratavam,
porque ninguém sabia qual seu nome verdadeiro. Natural de Atenas, ele havia sido capitão do exército regular e tutor dos filhos da família real grega. Um homem educado,
inteligente, com três anos de KZ nas costas. Sua esposa e seus filhos foram para a câmara de gás assim que chegaram. Agora, inconsciente, ele dormia em paz. Provavelmente
tomara as pílulas várias horas antes e, no entanto, eu achava que, pelo menos no momento, não corria perigo mais sério. Os homens do Sonderkomimando, reunidos em
volta de sua cabeceira, me pediram, com brandura e resignação, para "deixar o capitão ir".
— Não o salve — um deles disse. — Só estará prolongando sua agonia. O senhor mesmo pode ver que ele quis sair disso agora, ao invés de esperar pelo pelotão
de fuzilamento daqui a algumas semanas.
Os outros argumentavam da mesma maneira, mas eu, silenciosamente, comecei a preparar meus instrumentos. Vendo que seus argumentos não tinham tido efeito
e que estava me preparando para injetar-lhe um antídoto, alguns dos homens perderam o controle e não me pouparam injúrias pelo que eu iria fazer. Não obstante, acabei
de aplicar as injeções e abandonei o quarto. A menos que contraísse pneumonia nos próximos cinco ou seis dias, o capitão iria viver. Por mais algumas semanas, ele
continuaria a alimentar as fornalhas com os corpos de milhares e milhares de seus semelhantes torturados e mortos pelo gás. Até que um dia, todo o Sonderkommando
seria alinhado nos fundos do crematório. Uma metralhadora iria matraquear e tudo estaria terminado. Ele e os outros cairiam com os olhos cheios de horror e pasmo.
Agora que não estava mais ao lado de sua cama, agora que seu rosto não mais estava diante do médico que existe em mim, o lado puramente humano de minha natureza
era forçado a admitir que os amigos do capitão estavam certos. Eu deveria tê-lo "deixado seguir o seu caminho", não em frente do cano frio de uma metralhadora, mas
na inebriante narcose que o envolvia, onde estava livre de todas as dores físicas e morais. Terminei minha ronda e voltei ao no.1. Olhei para dentro da sala de dissecação
e vi que meus novos colegas estavam atarefados, trabalhando com o zelo próprio dos neófitos nos corpos fornecidos pelo Dr. Wolff. Estavam limpos, barbeados, usavam
aventais imaculados, roupas novas e sapatos decentes. Pareciam humanos novamente. Vê-los em volta da mesa de dissecação com seus aventais brancos e luvas de borracha
poderia parecer a qualquer um não tão familiarizado com o trabalho que era levado a efeito aqui, que se tratava da sala de trabalho de algum instituto científico.
Mas eu, que trabalhava nesse lugar há três meses, sabia que não se tratava de um instituto de ciência, mas de uma pseudociência. Como os estudos etnológicos, como
as noções de raça superior, as pesquisas do Dr. Mengele sobre a origem dos nascimentos duplos não eram mais do que uma pseudociência, tão falsa quanto a teoria da
degeneração dos anões e aleijados enviados para o carrasco a fim de demonstrar a inferioridade da raça judaica. É claro que tudo isso não seria divulgado imediatamente,
pois o novo alemão ainda não estava pronto para engolir essa. Mas quando a raça dos super-homens conseguisse sua vitória final, depois de vencer a guerra e de ter
conquistado todo o território vital para suas necessidades, aí então os esqueletos desses aleijados e anões, que foram assassinados aqui, seriam colocados em exposição
num espaçoso hall de um grande museu, com uma plaqueta onde se leria seu nome, idade, nacionalidade, ocupação etc. No aniversário do Dia da Vitória, milhares de
estudantes desse III Reich, construído para durar mil anos, seriam conduzidos através dessas galerias por seus professores, para homenagear seus ilustres antepassados.
Esses antepassados que, com a sua vitória e a realização da sagrada missão que a História confiara à Raça Superior, escorraçavam os povos vizinhos — franceses, belgas.^
russos, poloneses — para uma posição correspondente à sua inferioridade. Melhor ainda, eles teriam aniquilado completamente um povo, os judeus, portadores de uma
longa história, uma história de 6.000 anos, mas que não tinha o direito de viver alguns séculos a mais. Por quê? Porque no decurso de sua longa história, a raça
judaica degenerou-se num povo de anões e aleijados. Ao se misturar com outras raças, haviam se conspurcado e ameaçavam contaminar com sua degeneração a única raça
pura: os arianos.
Por causa do seu sangue, os judeus eram nocivos à grande raça. Além do mais eram perigosos por causa de seus professores, artistas, comerciantes e financistas,
que se tornaram tão poderosos que ameaçavam escravizar toda a Europa. Ao destruir essa raça, o primeiro führer do III Reich elevara seu nome a uma dimensão imortal
e ganhara o respeito e a gratidão de todas as nações civilizadas do mundo.
Era com base nessa teoria insana que os nazistas moviam guerra contra o resto do mundo e destruíam, depois da deportação, todas as comunidades européias
de judeus, do mais velho ao recém-nascido.
Tudo na Alemanha era falso. Eles chamavam essa guerra de cruzada. Aos seus olhos toda a Rússia era uma estepe selvagem, povoada por bárbaros mongóis, que
representavam uma ameaça à civilização. A França era uma nação sifilítica, a caminho da dissolução Os ingleses, do Primeiro-Ministro para baixo, eram todos alcoólatras
incuráveis, a maior parte deles sofrendo de delirium tremem. Por outro lado, os japoneses, que a maioria classificaria como mongóis, eram considerados arianos respeitáveis,
pois as exigências do momento assim o determinavam.
Toda a sua visão de mundo era uma mentira. Suas filhas e as viúvas causadas pela guerra poderiam ser engravidadas por qualquer alemão e receberiam o agradecimento
do Estado por isso. As crianças nascidas dessa maneira poderiam receber o nome que suas mães escolhessem para elas entre os nomes daquele homens freqüentemente numerosos,
para quem elas se tinham dado. A multiplicação da raça exigia isso. Seu cinismo era completo e terrível. Detalhes como aquelas tabuletas do lado de fora das câmaras
de gás, que anunciavam em sete línguas, "BANHOS", onde na realidade existiam câmaras de morte;
as caixas de gás ciclon 7, que estavam rotuladas "VENENO: PARA A DESTRUIÇÃO DE PARASITAS", os parasitas eram, naturalmente, as incontáveis multidões de judeus
inocentes trucidados no espaço de alguns minutos. Quem pode dizer até onde ia a mentira? Talvez os próprios sinais nas cercas eletrificadas do KZ também fossem mentirosos
ou talvez houvesse realmente uma corrente de 6.000 volts eletrificando a cerca. Mas não, isso não era mentira, pois eu me lembro de ter visto uma vez o gigantesco
cachorro do Oberschaarführer Mussfeld correr de contra a cerca, num ponto não muito longe do portão do crematório, e morrer instantaneamente.
Ainda no assunto dos- avisos, não posso me esquecer de mencionar um especial, que era lido por todos os prisioneiros, pois estava colocado à entrada do campo.
Ele exortava-os com essas palavras: "LIBERDADE ATRAVÉS DO TRABALHO". Aqui temos um exemplo concreto do que essas palavras realmente significam. Um dia, um trem de
carga parou na plataforma de desembarque de Auschwitz. As portas se abriram e trezentos prisioneiros foram despejados. Sua pele tinha uma coloração esverdeada e
seu estado esquelético estava além de qualquer descrição. Quando entraram no pátio do crematório, aproveitei uma chance para conversar com alguns deles. Aqui esta
em resumo o que disseram:
- Há três meses fomos embarcados em Auschwitz para trabalhar em uma fábrica de ácido sulfúrico. Quando partimos éramos três mil, mas muitos morreram de
vários tipos de doenças. Agora, só trezentos estão de volta e estamos todos sofrendo de envenenamento sulfúrico.
Antes de serem enviados de volta, disseram para eles que viriam se curar e descansar. Meia hora depois eu vi seus cadáveres esquálidos sangrando em frente
aos fornos do crematório. "A liberdade através do trabalho!" "Campo de Repouso . Ate onde uma mente diabólica pode ir? E esses são apenas alguns dos muitos exemplos.
Só para citar mais alguns: durante os meses de junho e julho, milhares de cartões-postais foram distribuídos entre os prisioneiros dos barracões, com instruções
para que fossem enviados a seus parentes ou amigos. Foi rigorosamente especificado que os cartões, em nenhum circunstancia, deveriam conter o nome "Auschwitz" ou
"Birkenau , mas sim "Am Waldsee", que é uma cidade de veraneio localizada perto da fronteira suiça. Os cartões foram inocentemente enviados, e numerosas respostas
foram recebidas. Eu vi algumas dessas respostas serem queimadas, umas cinqüenta mil, segundo testemunhas fidedignas; queimadas numa fogueira montada no meio do pátio
do crematório. Entregar esses cartões de resposta aos remetentes estava totalmente fora de cogitação, pois os últimos tinham precedido os primeiros, isto é, os remetentes
foram queimados antes das cartas. Dessa forma é que a coisa foi feita.
O propósito desse pequeno esquema linha sido o de abrandar os temores crescentes do povo e colocar um ponto final nos rumores que estavam se espalhando a
respeito de campos como Auschwitz.
XIX
NA CÂMARA DE GÁS do crematório no. 1, mil e trezentos cadáveres estavam empilhados. O Sonderkommando já tinha, inclusive, começado a deslanchar os corpos
entrelaçados. O barulho dos elevadores e o ruído metálico do abrir e fechar das suas portas chegavam ao meu quarto. O trabalho estava sendo tocado com força redobrada.
A câmara de gás tinha que ser evacuada, pois outro comboio estava para chegar.
O chefe do Sonderkommando quase botou minha porta abaixo ao entrar como um furacão, sem fôlego, e com os olhos esbugalhados de surpresa e espanto.
— Doutor — disse ele, resfolegando — acabamos de achar no fundo da pilha de mortos uma menina ainda viva.
Agarrei minha maleta que estava sempre pronta e voei para a câmara de gás. Contra à parede semicoberta por outros corpos, vi uma menina presa de convulsões,
debatendo-se desesperadamente contra a morte. O kommando da câmara de gás à minha volta estava em estado de pânico. Nada desse gênero havia jamais acontecido ao
longo de sua terrível carreira.
Removemos o corpo ainda com vida de sob os corpos que a estavam imprensando. Peguei aquele corpinho miúdo de adolescente nos braços e o levei para o quarto
contíguo à câmara da morte, onde geralmente homens do kommando mudavam de roupa para trabalhar. Deitei o corpo num banco. Uma frágil jovenzinha, ela teria no máximo
quinze anos. Aprontei minha seringa e tomando seu braço — ela ainda não havia recobrado a consciência e respirava com dificuldade — apliquei-lhe três injeções intravenosas.
Meus companheiros trouxeram um casacão grosso para cobrir o seu corpo congelado. Outro foi até a cozinha e voltou correndo com um pouco de chá quente e uma sopa.
Todos queriam ajudar, como se se tratasse da própria filha.
A reação não se fez esperar. A jovem foi acometida por um acesso de tosse, que provocou o vômito de uma gosma grossa que veio dos pulmões. Abriu os olhos
e olhou fixamente para o teto. Fiquei atento a qualquer manifestação de vida. Sua respiração tomou-se mais funda e mais regular. Seus pulmões, torturados pelo gás,
inalavam avidamente o ar fresco. Seu pulso começou a tornar-se perceptível, como reação às injeções. Eu esperava impacientemente. As injeções ainda não haviam sido
completamente absorvidas, mas eu sabia que, dentro de alguns minutos, ela iria recobrar a consciência: sua circulação começou a trazer a cor para suas bochechas
e seu rosto delicado tornou-se outra vez humano.
Ela olhava em torno de si com espanto, e nos viu. Ainda não percebera o que lhe havia acontecido e estava incapaz de distinguir as coisas, de saber se estava
sonhando ou realmente acordada. Um véu de brumas obscurecia-lhe a mente. Talvez tivesse uma vaga lembrança de um trem, e da longa viagem que a trouxera até aqui.
Talvez também se lembrasse que entrara na forma para a seleção e antes que pudesse entender o que se passava, viu-se espremida na multidão afoita numa sala muito
iluminada. Tudo tinha acontecido tão depressa. É provável que se recordasse também que ordenaram que se despisse. Essa lembrança lhe era desagradável, mas como todo
mundo, ela submeteu-se resignadamente à ordem. E assim, nua, foi empurrada para outra sala. Esta segunda sala também era fortemente iluminada. Pasma, tinha deixado
seu olhar correr pela multidão espremida ali. Não encontrou ninguém de sua família. Uma angústia muda se apossara de todos. Espremida contra a parede pela massa,
aguardava, com o coração gelado, o que viria em seguida. De repente, as luzes se apagaram e ela foi envolvida numa escuridão absoluta. Alguma coisa havia atingido
seus olhos, agarrado sua garganta e a tinha sufocado. Desmaiou. Aqui sua memória interrompia-se.
Seus movimentos estavam tornando-se mais e mais animados, ela tentou mover as mãos, os pés, mexer a cabeça para um lado e para o outro. Seu rosto foi tomado
por um esgar convulsivo. De repente, agarrou o colarinho do meu casaco e o puxou convulsivamente, tentando com todas as forças erguer-se. Eu a coloquei deitada
várias vezes, mas continuava a repetir o mesmo movimento. Pouco a pouco, porém, foi-se acalmando e deitou-se, completamente exausta. Lágrimas brilhavam em seus olhos
e rolaram pelas maçãs do rosto. Ela não estava chorando. Recebi a primeira resposta às minhas perguntas. Não querendo fatigá-la, fiz-lhe poucas perguntas. Fiquei
sabendo que tinha dezesseis anos e que tinha vindo com os pais da Transilvânia para Auschwitz.
O kommando deu-lhe um pouco de sopa quente que ela bebeu com voracidade. Continuaram trazendo todo tipo de pratos, porém eu não podia permitir que lhe dessem
mais nada. Cobri-a com um cobertor e disse-lhe que deveria tentar dormir um pouco.
Meus pensamentos voaram loucamente. Voltei-me para meus companheiros na esperança de encontrar uma solução. Nós esquentamos a cabeça, pois estávamos diante
de um problema: o que fazer com a garota, agora que fora trazida de volta à vida? Sabíamos que não poderia ficar aqui por muito tempo.
O que poderíamos fazer com uma mocinha no Sonderhommando do crematório? Eu conhecia o passado histórico desse lugar: ninguém saía vivo daqui, nem Sonderkommandos
nem deportados.
Não houve mais tempo para reflexão. Mussfeld chegou, como de costume, para supervisionar o trabalho. Ao passar pela porta ele nos viu agrupados. Aproximou-se
e perguntou-nos o que estava acontecendo ali. Antes mesmo que pudéssemos responder, ele viu a mocinha deitada no banco.
Fiz um sinal para que meus companheiros se retirassem. Eu iria tentar algo que sabia de antemão estar fadado ao insucesso. Três meses no mesmo campo e no
mesmo meio havia criado, apesar de tudo, uma espécie de intimidade entre nós. Além do mais, os alemães geralmente apreciam gente capaz, e enquanto precisam dessa
gente de um certo modo eles os respeitam. Assim era com os alfaiates, sapateiros, carpinteiros e serralheiros. Dos nossos vários contatos, pude concluir que Mussfeld
me tinha em grande consideração pelas minhas dualidades profissionais. Ele sabia que o meu superior era o Dr. Mengele, a figura mais temida do KZ que, estimulado
pelo orgulho racial, tinha-se tornado uma das figuras mais representativas da ciência médica alemã. Ele considerava o envio de milhares e milhares de judeus para
as câmaras de gás como um dever patriótico.
O trabalho executado na sala de dissecação era o porvir da ciência médica do Reich dos Mil Anos. Como expert em patologia do Dr. Mengele, eu também tinha
uma participação nesse progresso e talvez daí viesse a explicação para um certo tipo de respeito que Mussfeld tinha por mim. Ele vinha me ver com freqüência na sala
de dissecação, onde conversávamos sobre política, a situação militar e vários outros assuntos. Parecia-me que o seu respeito também vinha do fato de que considerava
a minha tarefa de dissecar cadáveres e seu sangrento ofício de matar gente como trabalhos afins. Ele era o comandante e o melhor atirador do crematório no. 1. Três
outros SS atuavam como seus subalternos imediatos. Juntos, eles executavam com uma bala na nuca. Esse tipo de morte era reservada para aqueles escolhidos no campo,
ou então, enviados para o assim chamado "campo de repouso". Quando havia apenas uns quinhentos ou menos, eles eram liquidados com uma bala na nuca, pois a grande
fábrica da câmara de gás estava reservada para os números importantes. O mesmo gás necessário para eliminar quinhentos servia para três mil. Nem valia a pena chamar
o carro da Cruz Vermelha para trazer os carrascos do gás e as caixinhas. Nem mesmo era interessante mandar o caminhão recolher um punhado de trapos. Tais eram os
fatores que determinavam se o grupo iria morrer pelo gás ou pelo tiro dos SS.
E esse era o homem com o qual eu teria que "negociar", o homem ao qual eu deveria pedir para poupar uma única vida. Calmamente relatei o terrível caso com
o qual nos defrontávamos. Descrevi o que a menina deveria ter sofrido na sala de despir e as cenas horríveis que precediam a morte na câmara de gás. Quando a sala
ficou às escuras, ela respirou umas golfadas de ciclon. Somente poucas, pois seu corpo frágil sucumbiu sob a multidão, na enlouquecida luta pela vida. Por acaso,
ela caiu com o rosto num canto onde havia umidade. Essa pequena umidade a manteve viva, pois o ciclon não atua sob condições úmidas.
Estes eram os meus argumentos e lhe pedi que fizesse alguma coisa por ela. Ele me escutou em silêncio e então perguntou o que exatamente eu propunha fazer.
Notei, por sua expressão, que o havia colocado face a um problema praticamente insolúvel. Era óbvio que a moça não podia permanecer no crematório. Uma solução seria
colocá-la em frente ao portão do crematório. Um kommando de mulheres sempre trabalha ali. Ela nunca contaria o que lhe havia acontecido. A presença de uma cara nova
em meio a milhares de prisioneiras nunca seria notada, pois ninguém no campo conhecia todos os prisioneiros.
Se fosse uns três ou quatro anos mais velha, o plano poderia ter funcionado. Uma moça de vinte anos seria capaz de compreender claramente as circunstâncias
miraculosas de sua sobrevivência e teria bastante percepção para não falar a ninguém sobre essas circunstâncias. Esperaria por tempos melhores, como tantos milhares
estavam esperando para contar o que tinha passado. Mas Mussfeld achava que uma menina de dezesseis anos, em toda a sua vaidade, iria dizer à primeira pessoa que
encontrasse de onde tinha vindo, o que havia presenciado e pelo que havia passado. A notícia se espalharia como um rastilho de pólvora e todos nós teríamos que pagar
por isso com a própria vida.
— Não há como sair disso — concluiu ele — a menina deve morrer.
Meia hora depois, ela foi arrastada para a sala das fornalhas e aí Mussfeld enviou outro para fazer o trabalho. Uma bala na nuca.
XX
NA PORTA AO LADO do alojamento SS, no segundo andar do crematório no. 2, funcionava uma carpintaria onde três carpinteiros trabalhavam, atendendo a qualquer
ordem que lhes era dada. No momento, estavam cumprindo uma "ordem particular". Mussfeld havia ordenado aos carpinteiros que fizessem um sofá-cama. Ele deveria estar
pronto mais breve possível.
Não era um trabalho fácil, mas nos crematórios não havia a palavra "impossível" quando se tratava de cumprir uma ordem recebida. Os carpinteiros haviam juntado
suficiente madeira pelos arredores do crematório. As molas vieram de poltronas trazidas pelos deportados para tornar a viagem um pouco mais confortável para seus
pais idosos. Centenas dessas poltronas estavam abandonadas no pátio do crematório e nós as usávamos para sentar depois do trabalho, para descansar e respirar um
pouco de ar puro.
Assim, o sofá foi construído de acordo com as instruções. Para mim, ele havia se tornado um objeto de curiosidade. Eu acompanhava todas as fases de sua construção
até vê-lo acabado. Observei a instalação das molas e sua cobertura com finas tapeçarias Dois eletricistas franceses haviam instalado uma lâmpada de cabeceira e um
lugar para o rádio. Depois de envernizado, ficou bem elegante. Numa casinha burguesa em Mannheim, ele ficaria ainda melhor do que no sinistro ambiente do crematório.
Pois o sofá-cama deveria ser mandado até o fim de semana para a casa de Mussfeld, em Mannheim. Lá esperaria que o vitorioso Ober voltasse da guerra para descansar
os ossos cansados sobre suas molas.
Um dia, uma semana antes do embarque, estava eu no meu quarto e vi uma meia dúzia de pijamas de seda — um complemento natural para o sofá — esperando para
ser juntados à remessa. Eram de seda importada e sua obtenção seria certe-mente impossível lá fora, onde os bilhetes de rações eram necessários para os artigos mais
essenciais. O KZ também tinha seu sistema de rações, um sistema muito melhor do que o imposto em toda a Alemanha, pois fornecia aos que o utilizavam os artigos desejados.
Na sala de despir dos deportados, os artigos estavam à espera de quem os quisesse comprar. Custavam somente um ponto por artigo, um ponto de fogo do revólver do
Ober, quando mandava uma bala na nuca do proprietário.
Em troca desses "pontos", os oficiais SS recebiam jóias, casacos de pele, artigos de couro, sedas e sapatos finos. Não se passava uma semana sem que mandassem
alguns pacotes para casa.
Nos pacotes que enviavam, podiam ser encontrados também, além do já mencionado, chá, café, chocolate e milhares de comidas enlatadas, tudo possível de se
encontrar na antecâmara da morte. Assim, o Ober tivera a idéia de mandar fazer um sofá-cama e enviá-lo para casa.
À medida que eu observava, dia após dia, as fases da construção, uma idéia começou a tomar forma em.minha cabeça. Pouco a pouco transformou-se num projeto.
Em poucas semanas o Sonderkommando seria uma coisa do passado. Nós todos morreríamos e tínhamos plena consciência disso. Até mesmo já nos acostumáramos à idéia,
pois sabíamos que não havia outra saída. No entanto, uma coisa me aborrecia. O Sonderkommando onze também fora exterminado e levara consigo o segredo terrível dos
crematórios e dos carniceiros. Mesmo que nós não sobrevivêssemos, era nosso dever fazer com que o mundo tomasse conhecimento das inimagináveis crueldades e da sordidez
de um povo que fingia ser superior. Era uma necessidade imperiosa que uma mensagem dirigida ao mundo saísse daqui. Mesmo que só fosse descoberta daqui a alguns anos
ainda assim seria um terrível libelo. Essa mensagem seria assinada por todos os membros do Sonderkommando do crematório no. 1, totalmente consciente de sua morte
próxima. Levada para fora das cercas de arame farpado, no sofá-cama, ela ficaria na casa do Oberchaar-führer Mussfeld, em Mannheim.
A mensagem foi aprontada a tempo. Descrevia em suficientes detalhes os horrores perpetrados em Auschwitz, desde o dia de sua fundação até hoje. Os nomes
dos torturadores do campo também estavam incluídos, bem como a nossa estimativa do número de pessoas eliminadas, com uma descrição dos métodos e instrumentos utilizados
para isso.
A mensagem foi redigida em três grandes folhas de papel pergaminho. O editor do Sonderkommando, um pintor parisiense, copiou a mensagem maravilhosamente
em letras desenhadas, como era de costume nos manuscritos antigos, usando tinta da índia para que a cor da escrita não fenecesse. A quarta folha continha a assinatura
dos duzentos homens do Sonderkommando, As folhas foram amarradas juntas com um cordão de seda, depois enroladas, colocadas em um cilindro de zinco, feito especialmente
para esse fim e, finalmente, selado e soldado para proteger o manuscrito da umidade do ar. Nossos carpinteiros colocaram o tubo nas molas do sofá-cama, entre os
enchimentos do acolchoado.
Outra mensagem, exatamente igual à primeira, foi enterrada no pátio do crematório n° 2.
XXI
Eu HAVIA ME ACOSTUMADO a ver um caminhão passar pelo portão do crematório toda noite, por volta das sete horas, carregando setenta a oitenta homens e mulheres
para serem liquidados . Vindos das enfermarias, eram o resultado da seleção diária do KZ. Prisioneiros de vários anos ou de apenas algumas semanas, todos tinham
total consciência do destino que os aguardava. Quando o caminhão entrava no pátio, as paredes ressoavam com os gritos e urros dos infelizes. Sabiam que ao pé das
fornalhas toda esperança de fuga se dissipava.
Não querendo testemunhar a cena diária, eu geralmente me isolava no ponto mais distante do crematório, onde ficava sentado à sombra de umas árvores. O estampido
dos revólveres e os gritos lancinantes chegavam até mim já bastante atenuados.
Uma noite, porém, minha sorte acabou. De cinco horas. em diante tive que ficar trabalhando na sala de dissecação. Era preciso examinar um caso de suicídio
de um Oberschaar-führer SS, cujo corpo me havia sido enviado de Gleiwitz. Um capitão SS (um dos juizes da corte marcial) e um funcionário sentaram-se para assistir
à autópsia.
Por volta das sete horas, quando estava ditando o atestado para o funcionário SS, o caminhão carregado de prisioneiros entrou no pátio. Duas janelas gradeadas
e cobertas com tela contra mosquitos davam para o pátio dos fundos. Todos os ocupantes do caminhão estavam extremamente calmos. Por esse motivo deduzi que não haviam
sido selecionados nos barracões, mas sim nos hospitais. Estavam fracos e doentes demais para gritar ou mesmo para pular do caminhão.
Os guardas SS começaram a ficar nervosos e a gritar, incitando-os a descer. Ninguém se moveu. O motorista também começou a perder a paciência. Entrou novamente
no caminhão e ligou o motor. Pouco a pouco a imensa caçamba começou a se erguer e, de repente, toda aquela massa de infelizes foi atirada ao chão, uma massa agitada,
enlouquecida. Ao cair batiam com a cabeça, se socavam, batiam com os joelhos e rosto no chão de concreto. Finalmente, um grito coletivo de dor ecoou pelo pátio.
O juiz SS, levado pelos gritos e lamentos, interrompeu a investigação para me perguntar:
— O que está acontecendo lá fora?
Chegou até a janela e eu lhe expliquei o que estava acontecendo. Aparentemente não estava acostumado a tais cenas, pois virou-se e disse com ar de desaprovação:
— Mesmo assim, não deviam fazer isso!
O Sonderkommando tirou as roupas dos prisioneiros e amontoou os trapos no pátio. Às vítimas foram levadas até a sala das fornalhas e colocadas diante do
revólver do Oberschaar-führer. O assassino de serviço era Mussfeld. De pé, perto das fornalhas, usando luvas de borracha, ele segurava sua arma com a mão firme.
Um a um os corpos caíam, cada qual deixando seu lugar para o próximo da fila. Em poucos minutos ele havia "tombado" (esse era o termo comumente usado) os oitenta
homens. Meia hora depois todos haviam sido cremados.
Mais tarde, Mussfeld procurou-me para que lhe fizesse um check-up. Estava com problemas cardíacos e sofria de fortes dores de cabeça. Tirei a pressão arterial,
tomei o pulso e ascultei o coração com um estetoscópio. O pulso estava um pouco alto. Dei-lhe minha opinião: seu estado era, sem dúvida, resultante do "trabalhinho"
que havia feito na sala das fornalhas. Minha intenção era tranqüilizá-lo, mas o resultado foi exatamente o oposto. Ele ergueu-se indignado e falou:
— Seu diagnóstico está errado. Não me importa mais matar cinco ou quinhentos homens. Se estou indisposto é somente porque bebo muito.
E assim dizendo, virou-se e foi embora, vivamente contrariado.
XXII
ACABEI ADQUIRINDO O hábito de ler todas as noites na hora de dormir. Uma noite, quando fazia isso, as luzes se apagaram e a sirene começou a soar esganiçada.
Sempre que havia um alarme como esse, todo o Sonderkommando era reunido por guardas SS fortemente armados e levado para o abrigo, isto é, para a câmara de gás.
Cruzamos os portais da câmara de gás com o coração pesado. O kommando em peso estava presente, duzentos homens. Era uma sensação terrível ficar naquela sala,
sabendo que milhares e milhares de pessoas encontraram um fim doloroso lá. Além disso, sabíamos que a vida do Sonderkommando estava por um fio. Se esse fosse o caso,
os SS poderiam simplesmente fechar a porta e derramar quatro caixas de ciclon pelas chaminés, e estaríamos liquidados.
Aliás, tal atitude tinha um precedente. Uma parte do décimo primeiro Sonderkommando havia sido transferida dos alojamentos D para o barracão 13, e foi informado
que, de acordo com as ordens recebidas de cima, eles não ficariam mais nos crematórios e sim nos barracões. Continuariam a trabalhar nos fornos, porém iriam para
o crematório em dois grupos separados. Nessa mesma noite foram levados do alojamento D para tomarem banho e mudar de roupa. Depois do banho foram para outra sala
pegar roupas desinfetadas. Aquela era realmente uma sala de desinfecção e, como tal, tinha de ficar hermeticamente fechada. Normalmente era lá que ficavam as roupas
cheias de piolhos, recolhidas no campo, para serem desinfetadas. Quatrocentos homens do Sonderkommando haviam sido liquidados dessa maneira. De lá, os caminhões
tinham levado seus cornos para a pira funerária.
Assim, nossa ansiedade, enquanto o alarme não acabava, não era infundada. Durou três horas essa angústia. Afinal, saímos da escuridão e pudemos contemplar
a quilométrica cerca de arame farpado novamente iluminada pelos feixes de luz dos inquietos holofotes. Voltei para a cama e tentei dormir, mas o sono demorou bastante
a chegar.
No dia seguinte, ao fazer minha ronda pelo crematório no. 2 o chefe do Sonderkommando de lá me informou muito confidencialmente que, durante o alarme da
noite anterior, um grupo da Resistência entrara no campo. Num ponto distante eles haviam cortado o arame, e deixaram no pátio três metralhadoras e vinte granadas
de mão. Os homens do Sonderkommando descobriram as armas de madrugada e as esconderam num lugar seguro.
As notícias nos deram ligeira esperança para o futuro. Sabíamos que as mãos que nos forneceram essas armas não poderiam estar longe. A partir de uma série
de fatos, pude deduzir que eles estavam operando clandestinamente a uns vinte e cinco ou trinta quilômetros do campo. Tínhamos esperança de que, protegidos por novo
alarme, conseguiriam nos passar mais armas. Ultimamente tinha havido alarme quase todo dia. Mas para nós, os que realmente importavam eram os que ocorriam durante
a noite e duravam um tempo relativamente longo, pois só assim nossos devotados e anônimos amigos poderiam se aproximar do campo. Depois de uns três ou quatro desses
alarmes talvez tivéssemos armas suficientes para abrir caminho para a liberdade.
A organização dessa futura operação estava sendo coordenada pelo crematório no. 3, que mantinha contatos com todos os outros. A coisa estava sendo conduzida
com o máximo cuidado e sigilo absoluto. A morte, na forma das mortíferas metralhadoras dos guardas, rondava cada passo que dávamos Queríamos viver. Queríamos sair
dali. Mas mesmo se a maioria talhasse, mesmo se só um ou dois conseguissem escapar, ainda assim teríamos vencido, pois haveria alguém para contar ao mundo os negros
mistérios dessas fábricas da morte.
Quanto àqueles destinados a pagar com suas vidas, pelo menos não teriam morrido como vermes, esmagados pelas mãos sujas dos carniceiros. Ao contrário, seriam
os primeiros na história do KZ, apesar de estar totalmente em desvantagem numérica e de armas, a semear a morte e a destruição entre seus torturadores antes de morrer
orgulhosamente como homens.
XXIII
O DIA DO EXTERMÍNIO havia chegado para os 4.500 habitantes do Campo Cigano. As medidas tomadas foram idênticas às da liquidação do Campo Tcheco. Todos os
barracões foram postos de quarentena. Os guardas SS, com seus cães, invadiram os barracões e puseram todos para fora, obrigando-os a formar. Rações de pão e salame
foram distribuídas entre os prisioneiros. Aos ciganos foi dito que seriam levados para outro campo, e engoliram a história. Um meio muito fácil e eficaz de acalmar
os ânimos. Ninguém pensou nos crematórios, pois então para que teriam sido distribuídos o pão e o salame?
Essa estratégia da SS era ditada, não por pena nem por consideração aos condenados à morte, mas simplesmente para que pudessem despachar para a câmara de
gás um grupo numeroso, sem incidentes e retardamentos desnecessários, e guardados por uma patrulha relativamente pequena. A estratégia funcionou com perfeição. Tudo
correu como planejado. Durante toda a noite as chaminés do no. 1 e do 2 soltaram imensas labaredas, iluminando sinistramente todo o campo.
No dia seguinte, o Campo Cigano, que era tão agitado e barulhento, estava silencioso e deserto. O único e monótono som que se ouvia era o do arame farpado
roçando um contra o outro e o bater incessante de portas e janelas sob a força do vento das estepes da Volínia.
Mais uma vez os piromaníacos da Europa tinham organizado uma exibição de fogos de artifício. Mais uma vez o cenário fora o campo de concentração de Auschwitz.
Dessa vez, no entanto, as vitimas não foram os judeus, e sim os cristãos: ciganos católicos da Alemanha e da Áustria. Pela manhã, seus corpos haviam sido transformados
numa pilha prateada de cinzas, esperando ser recolhida no pátio do crematório. Os corpos de doze pares de gêmeos não foram entregues às chamas. Mesmo antes de enviá-los
para a câmara de gás, o Dr. Mengele já havia escrito ZS em seus peitos com giz especial.
Nessa coleção de corpos, havia gêmeos de várias idades, de recém-nascidos a adolescentes de dezesseis anos. No momento, eles estavam estendidos no chão do
"necrotério". Corpos de crianças morenas e de cabelos negros. O trabalho de classificá-los por pares era bastante cansativo. Eu precisava ter o cuidado para não
misturá-los, pois se algo acontecesse que tornasse esses raros espécimes imprestáveis para a pesquisa, o Dr. Mengele me faria pagar com a vida.
Dias antes, eu estava com ele examinando as anotações já feitas sobre os gêmeos quando notou uma pequena e tênue mancha de gordura na capa azul de um dos
livros. Eu freqüentemente manuseava os livros no decurso das dissecações, e provavelmente o manchara com um pingo de gordura. O Dr. Mengele lançou-me um olhar furioso
e disse muito sério:
— Como é que pode ser tão descuidado com esses registros que compilei com tanto amor? .
Ao ouvir a palavra "amor" pronunciada pelo Dr. Mengele fiquei estupefato, incapaz de pensar em uma resposta.
XXIV
Eu CONDUZIA o ESTUDO dos doze pares de gêmeos com o maior cuidado possível. Como todos sabem, existem duas espécies de gêmeos — de um óvulo e de dois óvulos.
Gêmeos nascidos do mesmo óvulo são sempre idênticos, não só em suas manifestações internas, como externas, e sempre são do mesmo sexo. São conhecidos também como
idênticos, uniovulares ou monozigóticos. Gêmeos nascidos de óvulos diferentes parecem-se em suas manifestações externas e internas, porém assim como irmãos e irmãs,
se parecem normalmente. Eles são conhecidos como fraternais, biovulares e dizigóticos.
Tais observações constituem, sob o ponto de vista médico, uma das leis básicas de hereditariedade concernente aos gêmeos. Essa lei tem sido utilizada por
aqueles que afirmam que os fatores ambientais, tais como educação, nutrição, as doenças que a pessoa sofreu etc, exercem influências ligeiras sobre a constituição
física, mental e temperamental do indivíduo, e que a hereditariedade tem um papel muito mais relevante. Se os traços que a pessoa herdou de seus antepassados ocorrerem
repetidamente por várias gerações, serão conhecidos como as características hereditárias dominantes.
Essas características hereditárias dominantes podem beneficiar ou prejudicar o indivíduo. Podem, por exemplo, causar uma saudável constituição dentária ou
uma cabeleira generosa que não rareia com o passar dos anos, como também uma hipertensão e, em algumas famílias, diabete. Entre as doenças mentais, a depressão nervosa.
Esses fenômenos hereditários, vantajosos ou não, freqüentemente se manifestam nos recém-nascidos: uma criança nascida com um número excessivo de dedos da
mão ou do pé é um exemplo. Outros fenômenos se desenvolvem mais tarde e se tornam moléstias crônicas, como por exemplo a epilepsia, a asma, a gota, certas formas
de hipertensão, alguns casos de câncer e a catarata, que ocorre somente dos sessenta anos em diante.
Entre esses fenômenos hereditários, geralmente se encontra a peculiaridade da ocorrência maior em um sexo do que em outro. O daltonismo ou a cegueira de
cor congênita e a anemia são duas manifestações mais freqüentes desse fenômeno hereditário definido pelo sexo. Ambas as doenças aparecem somente nos homens, nunca
nas mulheres. A anemia é o exemplo mais óbvio: a forma de anemia hereditária mais comum é aquela que passou de um avô anêmico, através de uma filha saudável, para
a metade dos netos homens. Os filhos homens nunca herdam diretamente do pai anêmico. Cada filho homem e todos seus descendentes permanecerão saudáveis, sejam eles
homens ou mulheres. Mas as filhas de um pai anêmico, embora saudáveis, carregarão com elas as sementes da anemia e cada uma transmitirá a anemia aos seus filhos
homens.
Eu tinha os corpos de um par de gêmeos de quinze anos diante de mim, sobre a mesa. Comecei uma dissecação paralela e comparativa nos dois corpos. Nada digno
de registro foi encontrado nas cabeças. A fase seguinte era a remoção do esterno. Aqui um fenômeno extremamente interessante surgiu: um timo persistente que continuava
á existir. Normalmente o timo é encontrado só em crianças. Ele vai da borda superior do esterno até o coração, cobrindo assim uma extensa área. Com a puberdade,
começa a encolher rapidamente e logo desaparece por completo. Assim que o indivíduo alcança a maturidade sexual, tudo que resta dele é uma pequenina bolsa de gordura
e as sobras de tecido fibroso da antiga glândula.
O timó exerce grande influência no crescimento. Quando murcha muito depressa, o crescimento do indivíduo será pouco, talvez até fique anão e, além disso,
seus ossos serão muito frágeis. Superdesenvolvimento e hipersecreção da glândula são também encontrados em autópsias de crianças que morreram de repente sem motivo
claro, sem terem estado doentes. A hipersecreção é encontrada também em gente jovem que se revelou muito vulnerável às moléstias infecciosas.
Por isso, a descoberta do timo nos gêmeos era de particular interesse, pois não somente estava existindo num jovem de quinze anos, quando deveria ter desaparecido
aos doze, como também era excepcionalmente grande. Dissequei outros dois pares de gêmeos, um de quinze e outro de dezesseis anos, e encontrei o timo murcho em ambos
os casos.
De cada um dos oito gêmeos idênticos, extraí a parte cervical da coluna. A quarta e a quinta vértebras apresentavam uma anomalia: não haviam se fechado na
idade de doze ou treze anos, mas permaneceram abertas, mesmo no caso dos gêmeos de quinze e dezesseis anos. Essa anomalia, chamada "spina bífede , é um estado patológico
cujas conseqüências podem ser extremamente sérias.
Um indivíduo desenvolve-se para ambas as direções da coluna, isto é, para cima, em direção ao crânio, e para baixo em direção a pelvis, ou melhor, aos ossos
caudais. O desenvolvimento e chamado caudal ou craniano, dependendo da tendência predominante. No caso presente, a tendência fora craniana em todos os gêmeos, uma
vez que a "spina bifide" e o osso transverso que permaneceu aberto eram fenômenos degeneratórios.
Outra anomalia que encontrei em em cinco pares de gêmeos foi a não fixação da décima costela. Normalmente essa costela é soldada ao esterno. O fato de estar «flutuando»
resultava de uma irregularidade do crescimento da coluna na direção da pélvis.
Passei essas observações para o papel de um modo mais precioso e científico do que usei para descrevê-las aqui. Mais tarde passei metade do dia numa discussão
com o Dr Mengele tentando esclarecer alguns pontos duvidosos. Na sala de dissecação e no laboratório eu deixava de ser um humilde prisioneiro do KZ e consequentemente
podia defender e explicar meus pontos de vista, como se aquilo fosse uma conferência médica da qual eu era membro. Contradisse o Dr. Mengele em várias ocasiões e
discordei de uma de suas hipóteses.
Conheço bem os homens. Parecia-me que minha atitude firme minhas frases medidas e mesmo meu silêncio eram as qualidades pelas quais conseguira fazer com
que o Dr. Mengele, que a todos fazia tremer, me oferecesse um cigarro durante uma discussão particularmente animada, esquecendo "por alguns momentos as circunstâncias
do nosso relacionamento.
XXV
UMA VEZ, quando dissecava o corpo de um homem já idoso, descobri umas maravilhosas pedras em sua vesícula. Sabendo que o Dr. Mengele era um ardoroso colecionador
de tais artigos, lavei as pedras, sequei-as e depois coloquei-as num vidro grande, que tampei com uma "rolha de vidro". Colei uma etiqueta no frasco, dizendo o nome
da pessoa, que tipo de pedras eram e suas características patológicas. Quando o Dr. Mengele voltou à minha sala, entreguei-lhe as pedras. Ele admirou os cristais.
Girando os frascos nas mãos, não deixava de admirar as pedras e, de repente, virando-se para mim, perguntou-me se conhecia a balada do guerreiro Wallenstein. Sua
pergunta estava completamente em desacordo com a situação e o ambiente, mas respondi:
— Conheço a história do guerreiro Wallenstein, mas não a balada.
Sorrindo, ele começou a recitar:
"Im Besitze der Familie Wallenstein
Ist merh Gallenstein, wie Edelstein."
o que, traduzido, seria mais ou menos assim:
"Na família Wallenstein
Existem mais cálculos renais do que pedras preciosas"
Meu superior recitou várias estrofes dessa balada cômica. Ele estava de tão bom humor que resolvi pedir-lhe um grande favor: que me deixasse ir procurar
minha mulher e minha filha. Somente depois de ter formulado o pedido, percebi o quanto de ousadia ele encerrava, mas já era tarde para retroceder. Ele encarou-me
cheio de surpresa.
— Você é casado e tem uma filha?
— Sim, capitão, sou casado e tenho uma filha de quinze anos — respondi com a voz embargada pela emoção.
— Acha que ainda estão vivas?
— Sim, capitão, pois quando de nossa chegada, há três meses, o senhor mandou-as para a fila da direita.
— Elas podem ter sido enviadas para outro campo — disse. De repente, meu pensamento se prendeu na fumaça do crematório: talvez já tenham sido despachadas
com essa fumaça para algum campo celestial. O Dr. Mengele permaneceu sentado, sua cabeça pendendo para a frente como se imerso em profundos pensamentos. Eu continuei
parado atrás dele.
— Vou lhe dar uma autorização para procurá-las, mas... — e colocando o dedo indicador sobre os lábios, me olhou ameaçadoramente.
— Entendi, capitão, muito obrigado.
O Dr. Mengele saiu. Voltei para meu quarto completamente eufórico, segurando firme a autorização com ambas as mãos. Uma vez no quarto, comecei a ler: "O
no. A 8450 está autorizado a circular livremente dentro do KZ de Auschwitz. Assinado, Dr. Mengele, SS Hauptsturmführer." Nunca, pelo que me constava, havia tal coisa
acontecido na história do campo. Eu realmente não sabia por onde começar. As mulheres ficavam confinadas nos Campos C, B3 e FK4. Pelo que sabia, a maioria das mulheres
húngaras estava no campo C. E decidi que seria por lá que a busca teria inicio.
No dia seguinte, acordei ainda cansado, pois não havia conseguido pregar olho a noite toda. Dúvidas terríveis me assaltavam. Aqui, três meses eram uma eternidade,
e uma infinidade de coisas poderia ter acontecido. Minha posição no KZ fez-me perceber muito bem o que acontecia no interior dessas paredes sangrentas.
Entrei no escritório da SS para comunicar minha partida e despedir-me de meus companheiros, que me desejaram toda a sorte do mundo. Embora ainda fosse bem
cedo, o sol do outono já estava queimando quando iniciei minha jornada de três quilômetros. Em linha reta, o Campo C ficava consideravelmente perto, mas tinha que
permanecer dentro dos limites das cercas, e por isso fui obrigado a dar diversas voltas. Com uma mistura de curiosidade e medo, entrei na zona neutra cercada de
arame eletrificado. Eles nunca atiram sem antes advertir, após se ter passado pelo arame farpado. Patrulhas de motociclistas com a plaqueta — "Lagerpolizei" (Policia
do Campo) — rondavam o campo. Encontrei várias dessas patrulhas durante minha caminhada, mas nenhuma molestou-me.
Ao chegar ao Campo C, avistei um imenso portão de ferro plantado à minha frente. Suas portas tinham vários isolantes de porcelana, reforçados com arame farpado.
Em frente ao portão, a inevitável casa da guarda. Alguns soldados SS estavam apanhando sol. Olharam-me de cima a baixo, pois eu era um hóspede incomum, porém nada
disseram. Não se intrometiam em negócios que só diriam respeito aos seus camaradas na casa da guarda. Aproximei-me e dei-lhes o número tatuado. Olharam-me cheios
de curiosidade. Tirei o passe do Dr. Mengele do bolso e entreguei a eles. Depois de examiná-lo, ordenaram aos outros soldados que abrissem o portão, e me perguntaram
por quanto tempo eu pretendia permanecer no campo, pois, como sempre, precisavam registrar a informação.
— Até o meio-dia — disse calmamente. Eu sabia que estava exagerando, mas o costumeiro suborno do maço de cigarros foi suficiente para conseguir seu assentimento.
Dei-lhes o maço e passei pela fronteira de arame.
A estrada principal do campo C, flanqueada por barracões esverdeados caindo aos pedaços, estava muito animada. Algumas mulheres estavam carregando um imenso
caldeirão de sopa, pois aqui o almoço era servido às dez horas. Outro grupo — um kommando de estrada — estava em plena atividade, carregando pedras para a reparação
das estradas do campo. Várias mulheres estavam estendidas ao sol, ao longo de ambos os lados da via principal. Tinham os corpos cobertos de trapos, as cabeças raspadas;
eram um triste espetáculo. Muitas estavam vestidas da maneira mais fantástica possível — uma usava uma camisola sem mangas — e estavam sentadas no chão, ocupadas
em catar seus próprios piolhos ou os da companheira. As partes expostas de seus corpos estavam cobertas de feridas, arranhões e hematomas. Era dessa seção que partiam
grupos de prisioneiras para campos mais distantes. Pelo que pude saber, as seleções eram feitas com muito rigor, pois todas que sobravam aqui pareciam ser as
mais combalidas. Felizardas eram aquelas enviadas para campos mais distantes, pois ainda tinham uma chance de sobreviver, enquanto o destino dessas estava selado,
um destino idêntico ao do Campo Cigano.
Caminhei em direção ao primeiro barracão. De repente me vi cercado de gritos e súplicas. Aqueles corpos que vi estendidos, cobertos de trapos ou arrastando-se
pelos cantos, ganharam vida e, deixando seus lugares, correram em minha direção. Fui reconhecido por cerca de vinte mulheres que me cercaram e suplicavam angustiadas
por notícias de seus maridos e filhos
Se me reconheceram foi porque eu tinha conseguido viver de modo a ainda parecer um ser humano. Para mim, era quase impossível reconhecê-las, de tanto que
haviam mudado. Minha situação no meio daquela multidão histérica estava começando a ficar embaraçosa. Cada vez, mais mulheres vinham se juntar à roda. Todas queriam
saber alguma coisa sobre suas famílias. Por três meses haviam vivido sob um regime implacável e um medo constante. Aqui, havia seleção uma vez por semana. Três meses
era tempo suficiente para que aprendessem a ter saudades do passado e a temer o futuro.
Muitas me perguntavam se era verdade o que tinham ouvido falar sobre os crematórios. O que era aquela fumaça saindo todos os dias das chaminés e as labaredas
que as substituíam à noite? Eu tentava acalmá-las, negando tudo.
—- Não, não é verdade — repeti depois de cada pergunta ou afirmação. — Além disso, a guerra está quase no fim e logo iremos para casa — disse, sem muita
convicção.
Deixei-as sem ter tido notícias de minha filha e de minha mulher. Entrei no primeiro barracão e pedi à supervisora, uma moça eslovaca, para chamar os nomes
de minha mulher e minha filha. Havia entre oitocentas e mil mulheres acotoveladas nos beliches ao longo das paredes. Uma só voz feminina chamando os nomes em meio
à incrível balbúrdia feita por todas aquelas infelizes não era nada fácil. A supervisora voltou minutos depois para me dizer que a busca tinha sido infrutífera.
Agradeci a sua gentileza e entrei no segundo barracão.
Aqui a situação não era muito diferente; a mesma cena se repetiu com o mesmo resultado negativo. No terceiro barracão fiquei parado no meio do salão. Novamente
recorri à supervisora e ela enviou duas mocinhas, uma para cada extremo do alojamento, para chamar os nomes que pedi. Em poucos minutos voltaram trazendo minha
filha e minha mulher!
Elas se aproximaram de mãos dadas, os olhos arregalados de medo, sabendo das prováveis conseqüências de chamadas pessoais. Mas no mesmo instante me reconheceram.
Pararam, perplexas, sem acreditar no que viam, fulminadas. Eu me aproximei delas, tomei-as nos braços e apertei seus corpos magros num longo abraço. Elas não foram
capazes de falar, mas se contentaram em chorar baixinho. Tentei consolá-las, tranqüilizá-las, mas novamente a multidão nos cercou. Naquelas circunstâncias, não era
possível conversar. Pedi à supervisora que nos deixasse usar seu quartinho por alguns minutos. Ai, finalmente, pudemos ficar a sós.
Contaram-me sobre sua triste experiência nos últimos três meses: as temidas seleções das quais até agora haviam escapado; porém cada vez que pensavam nisso
tremiam de pavor. Vestidas com trapos, sofriam perpetuamente de frio e de fome. Chovia dentro do barracão e suas roupas nunca chegavam a secar completamente. A comida
era intragável e o pior é que não podiam dormir. O lugar que lhes fora destinado havia sido concebido para alojar sete pessoas: doze estavam amontoadas lá. Mulheres
cujo nível social em suas antigas vidas era bem alto chutavam-se e empurravam-se para obter alguns centímetros a mais, esperando assim dormir menos mal, mesmo que
isso custasse o sacrifício de suas companheiras. Todas aqui haviam perdido sua antiga personalidade. Amigas ou estranhas, cada qual se preocupava única e exclusivamente
com seu próprio bem-estar, incapazes de fazer a mínima concessão. Minha filha informou-me que dormia no chão de concreto, pois ninguém lhe dava espaço no catre onde
sua mãe dormia. Minha esposa perguntou-me acerca do meu trabalho. Expliquei-lhe que era assistente do Dr. Mengele e, como tal, membro do Sonderkommando. Depois de
três meses de KZ, as duas haviam aprendido que Sonderkommando era o kommando dos mortos--vivos. Ambas olharam-me consternadas. Tranqüilizei-as o melhor que pude
e prometi voltar no dia seguinte.
A noticia do meu encontro com minha mulher e filha causou euforia no crematório. Peguei roupas quentes, meias e roupa de cama do departamento de roupas;
escovas de dentes, cortador de unhas e pentes da seção de artigos de toalete. Da farmácia consegui um estoque de vitaminas, lenimento para as feridas e tudo
mais que pudesse ser útil. Peguei o que podia levar, o que era muito mais do que as duas precisavam. Além disso, enchi minha sacola com açúcar, manteiga,
geléia e pão em quantidade suficiente para distribuir entre as outras prisioneiras. Assim parti lotado para o Campo C. Mas tudo que é bom dura pouco.
Durante três semanas, visitei-as diariamente. Um dia, o que temia finalmente aconteceu. Eu já havia chegado à conclusão de que depois do extermínio do Campo
Tcheco e do Campo Cigano, tudo era somente uma questão de tempo. Cedo ou tarde o fim viria para aqueles que passavam seus dias na miséria extrema do confinamento
de Auschwitz.
Uma tarde estava sentado em minha mesa de trabalho no laboratório. O Dr. Mengele e o Dr. Thilo estavam presentes discutindo problemas concernentes à administração
do KZ. O Dr. Mengele ergueu-se subitamente, como se tivesse tomado uma decisão, e falou para seu colega:
— Não estou mais disposto a aumentar as miseráveis do Campo C. Vou mandar exterminá-las nas próximas semanas.
Essas cenas quase sempre aconteciam na minha presença. Assuntos de natureza superconfidencial eram discutidos na minha frente como se eu não existisse. Afinal,
quem iria se preocupar com um morto-vivo, cuja presença era igual a nada?
Fiquei totalmente aturdido com aquela revelação, pois afetava não só a minha família como a milhares de compatriotas. Eu tinha que agir imediatamente.
Assim que o Df. Mengele e o Dr. Thilo deixaram o crematório, saí atrás deles e segui para o Campo D, onde estava instalada uma turma da SS que supervisionava
a incorporação de prisioneiros estrangeiros aos batalhões de trabalhos forçados. Nesse campo ficavam recolhidos os prisioneiros escolhidos para trabalhos forçados
em fábricas de toda a Alemanha. O chefe era um Oberschaarführer. Encontrei-o a sós em seu quarto. Apresentei-me e mostrei-lhe o passe do Dr. Mengele.
Expliquei que minha mulher e minha filha estavam no Campo C. Depois de tê-las encontrado com o auxilio do Dr. Mengele, estive fazendo tudo que podia por
elas. No entanto, sabia o destino que aguardava ó Campo C e por isso queria dar um jeito de mandar minha família para longe. Ele prometeu ajudar-me.
Naquela semana, 3.000 prisioneiras do Campo C iriam ser enviadas para as fábricas da Alemanha Ocidental.
— Essas fábricas são o que há de melhor — explicou. — O alojamento e a comida não são preparados para exterminar, mas para manter o bom estado físico a fim
de que se consiga o máximo de produtividade.
Deixei uma caixa com cem cigarros sobre sua mesa. Ele aceitou e prometeu que se minha mulher e minha filha se oferecessem como voluntárias, durante a seleção,
seriam encaixadas no primeiro ou no segundo comboio. Eu tinha conseguido o que queria. Corri para o Campo C, mas lá meu trabalho seria ainda mais difícil. Tive de
fazer minha família compreender a necessidade de sair dali. É claro, a verdade não poderia ser dita, pois iniciaria o pânico e isso seria fatal para todos. Usei
de todos os argumentos para fazê-las entender que, por mais doloroso que fosse para nós, teriam de partir. Elas teriam que renunciar à minha ajuda. De minha parte,
eu também teria que renunciar ao prazer de vê-las e ajudá-las. Em algum dia dessa semana iria haver uma seleção para o preenchimento de uma cota de comboio. Elas
deveriam se oferecer como voluntárias para um dos comboios, de preferência o primeiro. Expliquei à minha esposa que sérios motivos me obrigavam a avisá-las e pedi-lhe
que contasse a todas as suas conhecidas, mas não dissesse nada além disso.
Devo acrescentar que, durante a seleção para o preenchimento de cotas, os SS primeiro aceitavam as voluntárias e só usavam a incorporação arbitrária quando
o número de voluntárias não alcançava o previsto. Houve poucas voluntárias, uma vez que ninguém queria trocar as vantagens da presente situação — isto é, não trabalhar
— por outra. Poucas quiseram oferecer-se para os trabalhos forçados, mesmo sabendo que a comida no KZ era insuficiente para sustentar a vida. Pobres mulheres de
pouca visão! Se ao menos tivessem compreendido a mentalidade das autoridades do KZ, teriam percebido que quem não trabalha não vive.
Minha mulher e minha filha, no entanto, compreenderam as minhas razões para pedir-lhes que tomassem aquela atitude e prometeram se apresentar na convocação
inicial. Despedi-me delas, mas avisei que voltaria dai a dois dias para trazer agasalhos e comida para a viagem.
No fim de dois dias, voltei ao Campo C para me despedir e levei roupas e provisões. Mas não fui sozinho. Era possível encontrar alguns oficiais pela frente
e eles podiam ficar curiosos. Por isso pedi a um dos guardas SS do crematório, a quem eu havia tratado de pleurisia, para vir comigo e me ajudar a carregar os embrulhos.
Desta vez não as visitei no barracão, mas arranjei para que fossem me encontrar num ponto distante e deserto, num entroncamento da cerca de arame farpado. Foi lá
que conversamos. Jogamos os pacotes por cima da cerca. O lugar era tão distante que ninguém nos viu. Com o arame farpado separando-nos, era impossível nos beijarmos.
Nos poucos minutos que passamos juntos, minha esposa assegurou-me que tudo havia corrido como o planejado. Ela e nossa filha tinham sido aceitas no comboio
assim não precisei recorrer à ajuda do Oberschaarführer. Fiquei feliz em saber que muitas das outras mulheres do campo aceitaram o conselho de minha esposa e ofereceram-se
para ir no comboio.
XXVI
TRÊS DIAS MAIS TARDE voltei ao Campo C para verificar e ter certeza de que haviam partido. Obtive essa certeza; elas partiram no primeiro comboio. Eu não
sabia o que o futuro teria planejado para elas, mas de qualquer forma fiquei aliviado, pois ali a morte seria tão certa como dois e dois são quatro. Agora, com um
pouco de sorte poderiam escapar com vida. As indicações de que a guerra estava chegando ao fim ficavam cada vez mais evidentes. O túmulo do III Reich já estava sendo
cavado. Eu tinha o pressentimento de que, a essa altura do jogo, as chances de sobrevivência de um prisioneiro estavam em função da distância em que ele se achava
de campos de concentração do tipo de Auschwitz. O que significava que minhas próprias chances estavam ficando menores a cada dia que se passava. Qualquer que fosse
a minha sorte, eu agora estava tranqüilo, sabendo da distância que separava minha família das piras funerárias. Não era nem medo nem desespero que mantinha a idéia
da morte predominar na minha cabeça, mas sim a lembrança do sangrento fim do décimo-primeiro Sonderkommando, pressagiando o nosso, e ainda uma atitude fria e objetiva
desprovida de qualquer sentimentalidade.
Assim que sai do Campo C, deixei minha vista vaguear pelas fileiras de barracas. Foi com uma mistura de tristeza e compaixão que mais uma vez observei o
espetáculo grotesco de nossas mulheres e meninas: elas, que um dia foram atraentes, tão meticulosas em se maquilar e se arrumar, estavam agora carecas e cadavéricas,
vestidas com farrapos, despidas de qualquer dignidade humana, fantasmas de sua antiga figura.
Voltando ao crematório, de repente me encontrei tiritando de frio e percebi que o outono havia chegado: já estávamos no final de setembro. O vento norte,
que descia dos picos nevados das montanhas, cantava em meio ao arame farpado e batia as janelas diabolicamente. O único pássaro que habitava essa região esquecida
de Deus, o corvo, voava sob o céu de chumbo. Dos crematórios construídos para durar eternamente, o vento levava nuvens de fumaça e com elas o odor característico
de carne e cabelos queimados.
Meus dias transcorriam na indolência, minhas noites eram passadas em claro. Estava terrivelmente deprimido, toda a vontade de viver havia-me abandonado desde
a partida de minha família. A solidão me oprimia e minha própria inatividade me assombrava. Durante aqueles últimos dias, o silêncio e o tédio pairaram pesadamente
sobre Auschwitz. Um mau sinal — e minha intuição era simplesmente infalível — um presságio de que mais ações sangrentas estavam por vir. O décimo-segundo Sonderkommando
já tinha vivido seus quatro meses. As areias de nosso tempo restrito estavam escorrendo velozmente. Tínhamos somente mais alguns dias — no máximo uma semana ou duas
— para viver.
A decisão do Dr. Mengele de exterminar o Campo C foi levada adiante. Toda noite, cinqüenta caminhões traziam as vítimas (quatro mil por noite) para os crematórios.
Uma visão dantesca esses caminhões em caravana, seus faróis tateando a escuridão, cada um carregando sua carga humana de oitenta mulheres que, ou enchiam o ar com
seus gritos, ou ficavam sentadas, mudas, paralisadas de medo.
Num desfile lento, os caminhões chegavam e despejavam as mulheres, já totalmente despidas, ao pé da escadaria que conduzia à câmara de gás. Dali eram rapidamente
empurradas para baixo. Todas sabiam para onde estavam indo, mas os rigores desses quatro meses de cativeiro, os castigos corporais que sofreram e a desintegração
de seu sistema nervoso reduziram-nas a tal estado de penúria geral que elas não estavam mais em condições de opor nenhuma resistência nem de sentir dor. Elas se
deixavam passivamente conduzir para a câmara da morte. Exaustas de tanto serem perseguidas, de viver no medo constante, apalermadamente esperavam as mãos do médico
infalível — a morte. Para elas a vida havia perdido todo o significado e todo o propósito. Prolongá-la significava simplesmente prolongar o sofrimento.
E que longo caminho haviam percorrido para chegar até aqui. Como estava cheio de dor cada passo dessa estrada. Primeiro, seus lares aconchegantes e confortáveis
se viram invadidos e saqueados. Depois, juntamente com seus maridos, filhos e pais, transportadas até os fornos de cozer tijolos num ponto afastado da cidade, onde
por semanas foram obrigadas a viver e dormir nos lamaçais formados pelas chuvas da primavera. Aqueles eram os guetos, dos quais pequenos grupos eram levados todos
os dias para as câmaras de torturas especialmente preparadas com os mais recentes instrumentos para fazer "falar". Durante horas e dias foram interrogados, até confessarem
o esconderijo de seus bens ou com quem haviam ficado. Muitos morreram em conseqüência desses interrogatórios. Os que sobreviveram viram-se aliviados ao serem embarcados,
oitenta ou noventa de cada vez nos vagões selados, pois aquilo significava que estavam deixando as câmaras de tortura para trás.
Ou pelo menos assim pensavam. Durante cinco ou seis dias viveram naqueles vagões, observando os mortos se empilharem ao seu lado, até que, por fim, chegaram
à rampa de desembarque de judeus em Auschwitz.
Já sabemos o que lhes aconteceu aqui. Com o coração em pedaços ao verem-se separadas dos maridos e filhos, transidas de medo, mandadas na hora da seleção
para a coluna da direita, elas finalmente chegaram ao seu novo lar — o Campo C. Mas antes de entrar nos infectos barracões, eram obrigadas a passar por outra humilhação
degradante: os banhos.
Mãos brutais cortavam seus cabelos e lhes arrancavam as roupas. Depois dos banhos, recebiam trapos que nem o mais vil mendigo teria ao menos tocado. Nessas
"roupas" recebiam o primeiro dividendo do III Reich: piolhos.
Após essa recepção, começavam suas vidas no confinamento das cercas de arame farpado do KZ, a vida das mortas-vivas. A comida que recebiam era suficiente
para mantê-las com vida, mas insuficiente para fazê-las viver. A inexistência de albumina em seus sistemas fazia com que suas pernas pesassem como chumbo. A ausência
de gorduras provocava inchação nos corpos. A menstruação cessava. Como resultado disso, tornavam-se irritadiças e cada vez mais nervosas, tinham enxaquecas e hemorragias
nasais. A falta de vitamina B causava um entorpecimento perpétuo e amnésias parciais: freqüentemente não conseguiam mais se lembrar dos nomes das ruas onde moraram
ou do número de suas casas. Somente seus olhos ainda estavam vivos, mas mesmo neles a luz da inteligência não brilhava mais.
Sob essas circunstâncias é que se submetiam às chamadas diárias, que demoravam várias horas. Quando desmaiavam, eram acordadas com um balde de água gelada
no rosto, seus olhos invariavelmente viravam-se para as nuvens de fumaça que cobriam o campo ou para as labaredas que fugiam da boca das chaminés. Esses dois sinais,
fumaça e chamas, lembravam-nas dia e noite que estavam vivendo à portas de outro mundo.
As prisioneiras do Campo C viveram durante quatro meses à sombra dos portões dos crematórios; levou apenas dez dias para que quarenta e cinco mil corpos
atormentados passassem por eles e lá entregassem a alma. Sobre o Campo C, cujos arames tinham cercado tantas tragédias, desceu um silêncio sepulcral.
XXVII
O SONDERKOMMANDO estava só esperando o golpe final. Dias após dia, semana após semana, o terror vinha rondando nossas cabeças, sustentado por cordéis finíssimos.
E agora, em um dia ou dois, ele desceria fulminante, trazendo consigo a morte instantânea, deixando em sua esteira apenas um monte de cinzas prateadas. Nós estávamos
prontos para ele. A cada minuto esperávamos a chegada dos nossos executores SS.
Na madrugada de 6 de outubro de 1944, um tiro partiu de uma das torres de vigia, matando um prisioneiro que escapara da zona neutra para a área entre a primeira
e a segunda linha de guardas que cercavam o campo. O prisioneiro, um ex-oficial russo, fora mandado para cá por ter tentado escapar de um campo de prisioneiros de
guerra. Tudo indica que tentava fugir de novo quando um guarda o acertou.
Uma comissão política, chefiada pelo Dr. Mengele, saiu em campo para proceder às investigações de praxe. Se a vítima tivesse sido um judeu, seu corpo teria
sido embarcado diretamente para o necrotério e de lá para o crematório, e isso encerraria o caso. Mas uma vez que se tratava de um oficial russo cujo nome e dados
pessoais se achavam registrados nos livros de campo, tal norma não podia ser seguida. O laudo da autópsia seria necessário para explicar sua morte. O Dr. Mengele
mandou enviar seu corpo para o necrotério com ordens de que fosse feita a autópsia. O laudo deveria estar pronto às 14:30.
O Dr. Mengele viria pessoalmente apanhá-lo para conferir seus resultados com um exame que faria no corpo.
Eram nove horas da manhã quando o Dr. Mengele saiu da sala de dissecação. O corpo já estava estirado sobre a mesa e eu teria completado a autópsia em trinta
ou quarenta minutos se aquele não fosse o dia 6 de outubro de 1944, o penúltimo dia do tempo de vida destinado ao Sonderkommando. Não tínhamos certeza de nada, mas
eu sentia a iminência da morte.
Uma vez que estava incapaz de trabalhar, deixei a sala e fui para o meu quarto, planejando tomar uma dose reforçada de pílulas para dormir. Fumei um cigarro
atrás do outro, tinha os nervos completamente estraçalhados. Sem condições de ficar parado, saí caminhando e passei pela sala de incineração, onde um kommando trabalhava
sem muita pressa, apesar das pilhas de corpos amontoados em frente às fornalhas. Estavam reunidos em pequenos grupos e falavam aos sussurros. Subi para os alojamentos
dos kommandos e notei que algo não ia bem. Normalmente depois da chamada da manhã e do café, o turno da noite mudava, mas àquela hora, quase dez da manhã, todo mundo
ainda estava lá. Também notei que usavam suéteres e botas, embora o alojamento estivesse banhado pelo sol quente de outubro. Aqui muitos homens estavam reunidos,
enquanto outros moviam-se ativamente, arrumando e empacotando suas roupas em valises. Era óbvio que alguma espécie de trama estava sendo engendrada. Mas o quê?
Entrei na casinhola que servia de alojamento ao chefe do kommando e encontrei vários líderes do turno da noite sentados em torno da mesa: o engenheiro o mecânico,
o chefe dos motoristas e o chefe da câmara de gás' Nem bem eu me sentara, o chefe do kommando pegou uma garrafa quase vazia e encheu-me um copo de hrandy. Era uma
eau-de-vie polonesa, bastante forte. Esvaziei meu copo de um so gole. Agora, nas derradeiras horas dos quatro meses do Sonderkommando, a bebida não podia ser chamada
de elixir da longa vida, mas era, sem sombra de dúvida, um excelente remédio para disfarçar o medo da morte. Meus companheiros traçaram um panorama detalhado
de nossa situação. Tudo indicava que a liquidação do Sonderkommando não se daria antes do dia seguinte ou talvez mais tarde. Planos minuciosos haviam sido feitos
para os 860 homens do Sonderkommando abrirem caminho a bala para fora do campo. A revolta estava marcada para aquela noite.
Uma vez do lado de fora, iríamos em direção à curva do Vístula, dois quilômetros acima. Nessa época do ano, o no estava mais raso e poderia ser atravessado
facilmente. A oito quilômetros do Vístula existiam grandes florestas, que se estendiam até a fronteira polonesa, nas quais poderíamos viver durante semanas e, quem
sabe, até meses se necessário, em relativa segurança. Ou talvez encontrássemos algum grupo da Resistência pelo caminho. Nosso estoque de armas era suficiente. Durante
os últimos dias, centenas de caixas com explosivos chegaram ao campo vindas de uma fábrica de munição que empregava judeus poloneses como operários. Os alemães os
usavam para explodir estradas de ferro. Além desse material, tínhamos cinco metralhadoras e vinte granadas de mão.
— Isso deve bastar — disse um do grupo. — Com o elemento surpresa ao nosso lado, poderemos desarmar os guardas, usando somente nossas armas. Então pegaremos
os SS de surpresa nos dormitórios e os forçaremos a ir conosco até que nao precisemos mais deles.
O aviso para atacar seria dado por sinais de lanterna do crematório no. 1. O no. 2 imediatamente transmitiria o sinal ao no. 3, que por sua vez alertaria
o no. 4. O plano me parecia exeqüível pelo simples fato de que o único crematório de serviço era o no. 1. E mesmo ele pararia de trabalhar as dezoito horas, o que
significava que naquele dia o turno da noite não trabalharia. Sempre que isso acontecia os guardas tinham uma tendência para relaxar a vigilância. Havia três guardas
SS em cada crematório.
Suspendemos a reunião até a noite e a ordem era de que até o momento em que o sinal fosse dado todos deveriam continuar cumprindo suas tarefas como se nada
houvesse, evitando qualquer ato que pudesse provocar suspeitas.
Voltando para o quarto, passei novamente pela sala de incineração. Os homens pareciam estar trabalhando ainda mais lentamente que antes. Informei a meus
dois colegas sobre o que estava se passando, mas evitei falar com o assistente de laboratório Ele naturalmente seria arrastado junto quando a coisa começasse,
mas pelo momento não vi necessidade de informá-lo. O tempo movia-se lentamente. A hora do almoço finalmente chegou. Comemos devagar e depois fomos para o pátio nos
aquecer com o, cálidos raios do sol de outono. Notei que não havia guardas SS à vista. Mas provavelmente nada havia de incomum naquilo, pois não era a primeira
vez que acontecia. Sem dúvida estavam em seus alojamentos. Os portões estavam fechados. Do lado de fora do campo os guardas SS permaneciam em seus postos. Assim,
não dei importância à ausência dos SS dentro do pátio. Fumei meu cigarro em paz. Saber que dentro de algumas horas estaríamos do lado de fora desses arames farpados
e novamente livres, era o bastante para afastar a nuvem negra de minha mente, uma nuvem que havia se formado desde que entrara no KZ. Mesmo que tudo fracassasse,
eu não teria perdido nada.
Consultei meu relógio. Uma e meia da tarde. Subi e pedi a meus colegas que me auxiliassem na autópsia, pois o laudo deveria estar pronto quando o Dr. Mengele
viesse apanhá-lo Seguiram-me silenciosamente até a sala de dissecação, e começamos a autópsia imediatamente. Um dos meus colegas realizou a dissecação enquanto eu
ia datilografando suas descobertas.
Estávamos trabalhando há uns vinte minutos quando tremenda explosão sacudiu as paredes. No silêncio que se seguiu o matraquear das metralhadoras chegou
aos nossos ouvidos. Espiando através da tela verde que cobria as janelas, pude ver o telhado e as vigas do crematório no. 3 irem pelos ares, seguidos de uma imensa
língua de fogo e uma espiral de fumaça negra. Menos de um minuto depois o fogo das metralhadoras espocava bem em frente à porta da sala onde estávamos. Não tínhamos
a mínima idéia do que estava acontecendo. Nossos planos eram para aquela noite. Ocorreram-me duas possibilidades: ou alguém nos havia traído, possibilitando
assim aos SS entrar em ação e pôr abaixo a fuga planejada, ou uma considerável força de guerrilheiros da Resistência resolvera atacar o campo As sirenas dos crematórios
1 e 2 começaram a gritar As explosões tornavam-se cada vez mais persistentes. Logo em seguida pudemos ouvir os estampidos característicos das metralhadoras de chão.
Eu já havia decidido o que fazer. Fosse caso de traição ou ataque de fora, parecia melhor para o momento permanecer na sala de dissecação e ver quais os rumos dos
acontecimentos. Da janela vi chegarem uns oitenta a cem caminhões. O primeiro parou em frente ao portão do nosso crematório. Metade de uma companhia desceu e formou
em posição de batalha em frente às cercas de arame farpado.
Comecei a compreender o que tinha acontecido. Os homens do Sonderkommando haviam tomado o crematório no.1 e, de cada porta e janela, estavam rechaçando os
SS a rajadas de metralhadoras e granadas. Sua defesa parecia efetiva, pois vi vários SS tombarem, mortos ou feridos. Vendo isso, os alemães resolveram lançar mão
de métodos mais drásticos. Trouxeram cinqüenta cães bem treinados e os soltaram em direção ao Sonderhommando, entrincheirado atrás das paredes do crematório no.
1. Mas por alguma estranha razão esses cães, geralmente tão ferozes e obedientes, recusaram-se a atacar: orelhas abaixadas, rabo entre as pernas, eles se esconderam
atrás de seus donos. Talvez porque tivessem sido treinados para atacar prisioneiros enfraquecidos e desarmados, os cães estivessem momentaneamente assustados com
o cheiro de pólvora e de carne chamuscada, mais ainda o barulho e a confusão de uma batalha renhida. De qualquer modo, os SS imediatamente perceberam seu erro e,
sem parar de atirar, começaram a trazer algumas bazucas para a posição de tiro.
Era impossível o Sonderhommando resistir a essa vantagem numérica e material. Exultantes, irromperam pelos portões do crematório. Atirando sempre, escapuliram
por um buraco previamente aberto na cerca de arame farpado e rumaram para a curva do Vístula.
Durante dez minutos o tiroteio continuou. Aos violentos estampidos das metralhadoras pesadas das torres respondia o matraquear persistente das metralhadoras.
Em meio aos tiros irrompiam explosões de granadas de mão e dinamite. Então, como começou, de repente tudo ficou quieto.
Os SS que estavam diante do crematório avançaram carregando as bazucas que não haviam sido usadas. De baioneta calada, atacaram o edifício por todos os lados,
invadindo os quartos do térreo e do subsolo. Um grupo entrou na sala de dissecação. Com as armas apontadas para nós, eles nos cercaram e nos arrastaram sob uma chuva
de pancadas ate o pátio. Ali nos puseram deitados de braços. Uma ordem foi dada:
- Um só movimento e levam uma bala na nuca!
Alguns minutos mais tarde pude notar que, pelo som dos passos, os SS haviam capturado e trazido mais homens do Sonderhommando. Eles também foram obrigados
a se deitar de cara no chão ao nosso lado. Quantos seriam? Com a minha face enfiada no chão era impossível saber ao certo. Três ou quatro minutos mais tarde outro
grupo foi trazido e colocado na mesma posição.
Enquanto estávamos deitados, uma chuva de chutes e cacetadas caiu sobre nossas cabeças, costas e pernas. Pude sentir o sangue quente escorrendo pelo rosto
até que seu gosto salgado foi sentido pela minha língua. Mas somente as primeiras pancadas me machucaram. Com a cabeça girando, os ouvidos zumbindo, sobreveio-me
um vazio na mente. Não estava sentindo mais nada. Tinha a impressão de estar dormindo na indiferença que precede a morte.
Por uns vinte ou trinta minutos ficamos assim, esperando a bala dos SS na nuca. Nessa posição, eu sabia que era com uma bala na nuca que eles pretendiam
nos liquidar. A mais rápida das mortes e, naquelas circunstâncias, a menos terrível Em minha mente, imaginei minha cabeça recebendo o impacto de uma bala atirada
à queima-roupa, meu crânio explodindo em mu pedaços.
De repente, ouvi o som de um carro se aproximando. Deve ser o Dr. Mengele, pensei. Os SS políticos estavam só aguardando a sua chegada. Não ousei levantar
a cabeça, mas pude facilmente reconhecer sua voz. Uma ordem dos lábios de um SS:
— Os médicos, de pé!
Nós quatro nos levantamos, esperando pelo que viria O Dr. Mengele fez um sinal para que nos aproximássemos. Minha cara e minha camisa, cobertas de sangue,
meu corpo enlameado, assim fui diante dele. Três oficiais SS estavam ao seu Iado. O Dr. Mengele perguntou qual havia sido nossa participação em tudo aquilo.
— Nenhuma participação — respondi. — A não ser que cumprir as ordens do Hauptsturmführer possa ser considerado uma falta. Estávamos dissecando o corpo do
oficial russo quando o incidente ocorreu. Foi a explosão que interrompeu nosso trabalho. O relatório ainda está na minha máquina. Não abandonamos nossos postos e
estávamos lá quando nos encontraram.
O comandante SS confirmou o que eu disse. O Dr Mengele olhou-me duro e falou:
— Vá se lavar e volte para o seu trabalho.
Virei-me e saí, seguido por meus três colegas. Não havíamos dado nem vinte passos quando disparos de metralhadoras se fizeram ouvir. O Sonderkommando tinha
deixado de existir.
Não olhei para trás, pelo contrário, apressei o passo e voltei para meu quarto. Tentei enrolar um cigarro, mas minhas mãos estavam trêmulas demais, e não
conseguia deixar de rasgar o papel fino Finalmente, consegui enrolar um, acendi, tirei profundas baforadas; depois, com as pernas bambas, fui para a cama e me
deitei. Só então comecei a sentir as dores dos ferimentos e hematomas por todo o corpo.
Tanta coisa havia acontecido e ainda eram 3 horas da tarde. O fato de ter escapado com vida não me dava conforto nem alegria. Sabia que aquilo representava
somente uma trégua. Conhecia o Dr. Mengele e a mentalidade dos SS. Também tinha plena consciência da importância do meu trabalho; no momento, era indispensável.
Além de mim não havia outro médico no KZ capacitado para atender às necessidade do Dr. Mengele. E mesmo se houvesse, seria bastante cuidadoso para não se revelar
e tornar públicas suas habilidades profissionais, pois fazer isso representava cair nas mãos de Mengele e, por conseguinte, abreviar a vida: como todo membro do
Sonderkommando, eles também se achariam dentro do limite de quatro meses para viver.
Quando meus nervos se acalmaram, levantei-me e fui olhar em volta. Desejava saber exatamente o que havia sucedido essa tarde Será que realmente existia um
traidor entre nós? E os SS acabaram com a revolta ao liquidar o Sonderkommando? Mesmo que estivessem procurando um pretexto, não poderia haver melhor razão para
exterminar o kommando. Era muito provável que, por ser o último dia do período de quatro meses que nos concediam para viver, os SS tivessem recebido ordens para
nos liquidar. Eles, na certa, se preparavam para cumprir as ordens quando, para sua surpresa, descobriram que o décimo-segundo Sonderkommando não tinha intenção
de formar no pátio. Nem estava disposto a engolir que a reunião no pátio era para se fazer alguma proclamação ou chamada. Nosso kommando, consciente do fato dos
SS terem vindo para nos exterminar, aparentemente optara por morrer lutando.
Agora meus camaradas estavam deitados em longas fileiras, em frente às fornalhas do crematório. Um após outro, identifiquei os corpos daqueles que conhecia;
pelo menos morreram achando que a liberdade estava logo ao dobrar a esquina. Eles haviam sido trazidos de volta em carretas do lugar onde tombaram, algum ponto dentro
da linha externa de guardas. Aqueles que foram executados no pátio também ali estavam. Depois que toda a resistência havia cessado, os corpos foram removidos dos
crematórios nos. 2, 3 e 4 para o no. 1, que estava sendo operado por trinta novos homens de Sonderkommando, recrutados às pressas.
Encontrei-me ao lado de um oficial que estava atarefado, registrando os números tatuados dos mortos. Sem que lhe perguntasse, me informou que faltavam doze
homens. Dos outros, todos, menos sete, estavam mortos. Esses sete eram meus dois assistentes, o laboratorista, eu, o engenheiro encarregado dos dínamos e dos ventiladores,
o chefe dos motoristas e o "Pipel", isto é, o quebra-galhos encarregado de servir ao pessoal SS e cujas funções variavam desde tomar conta de suas roupas e botas
até cuidar da cozinha e atender o telefone. Foi ele que me fez um relato detalhado do que tinha acontecido. Não houve traição. Aqui vai a versão do "Pipel":
Às duas horas da tarde, um caminhão de SS políticos chegou ao crematório no. 3. O comandante ordenou que os homens do Sonderkommando se reunissem, mas ninguém
se moveu. Ele deve ter tido um vislumbre do que estava fermentando. De qualquer forma, preferiu achar que conseguiria melhores resultados se mentisse aos homens
e Deus sabe que os SS são mestres renomados na arte de mentir. De pé, no centro do pátio, ele disse:
— Homens, vocês trabalham aqui há bastante tempo. Por ordem de meus superiores, serão enviados para um campo de repouso. Lá receberão boas roupas, terão
uma alimentação farta e sua vida será bem mais fácil. Aqueles cujo número eu chamar dêem um passo à frente e entrem em forma.
Então, começou a chamada. Primeiro chamou os números dos húngaros do crematório n° 3, cem ao todo. Os mais "jovens" do KZ formaram sem protestar. Suas expressões
demonstravam mais medo do que coragem. Um destacamento SS imediatamente envolveu-os e marcharam para fora do pátio até o barracão 13 do Campo D, onde foram trancados.
Enquanto isso, a chamada continuava no crematório no. 3. Agora era a vez dos gregos, que não foram tão submissos em obedecer, mas de qualquer forma enfileiraram-se.
Em seguida, um grupo de poloneses. Grunhidos e protestos abafados encheram o ar. O SS chamou outro número. Silêncio, ninguém se moveu. Quando o oficial levantou
a cabeça e franziu o cenho, uma garrafa d'água mineral caiu aos seus pés e explodiu. A garrafa havia sido jogada por um dos poloneses. Os SS abriram fogo contra
os revoltosos, que recuaram e tomaram posição dentro do crematório. Assim protegidos, eles começaram a atirar garrafas cheias de explosivos no pátio. Uma rajada
de metralhadoras liquidou com os gregos que ainda estavam formados no pátio. Alguns tentaram escapar, mas foram derrubados antes de chegarem ao portão.
Sem parar de atirar, os SS avançaram em direção à entrada do crematório. Não foi um trabalho fácil para os poloneses sustentar aquela posição. Sua cascata
de garrafas explosivas conseguiu manter os soldados a uma distância respeitável. Somente então uma tremenda explosão sacudiu toda a área, derrubando todos os atacantes
que se aproximaram demais do edifício. O teto do crematório voou pelos ares, levando junto pedaços de madeiras, pedras e ferro retorcido em todas as direções, enquanto
que rolos de fumaça e labaredas subiam aos céus. Quatro enormes galões de gasolina haviam explodido reduzindo o edifício ao monte de escombros que soterrou os homens
do kommando. Os poucos que escaparam tentaram prosseguir a luta, mas as metralhadoras SS deram cabo deles. Outros, feridos mas ainda capazes de andar, saíram para
o pátio com as mãos na cabeça, mas outra rajada os liquidou sumariamente. Eles sabiam que isso iria acontecer; o fogo, porém, estava lavrando no interior do prédio
e escolheram a morte mais rápida. Ao mesmo tempo, às centenas, os húngaros foram trazidos rapidamente para o pátio e executados no local.
Assim foi que a revolta começou no no. 3. No no. 1, o trabalho continuava normalmente, até que se ouviu a explosão no no. 3. O barulho da explosão elevou
a tensão, que já estava alta, devido à espera, para um paroxismo. Ninguém sabia exatamente o que fazer durante os primeiros minutos. Os homens que trabalhavam nos
fornos abandonaram seus postos e foram espiar na janela que existia no fim da sala, para tentar descobrir o que estava se passando e que passos dar.
Não tiveram que pensar muito, pois um guarda SS chegou e, rispidamente, perguntou quem lhes dera permissão para abandonar os fornos. Aparentemente a resposta
do chefe do crematório não o satisfez porque ele deu-lhe uma cacetada na cabeça com a extremidade curva de sua bengala (cada SS carregava uma bengala para "encorajar"
os homens do kommando a trabalhar mais). Comenta-se também que um segundo homem do Sonderkommando teve sua cabeça aberta pela mesma bengala. Mas o chefe, o homem
mais duro de todo o kommando, ficou apenas tonto com a pancada. Seu rosto estava coberto de sangue, mas ele ainda estava de pé. Num piscar de olhos puxou uma faca
de dentro de sua bota e mergulhou-a no peito do SS. Assim que o guarda tombou, outros dois membros do kommando o agarraram, abriram a tampa do forno mais próximo
e o atiraram lá dentro, de cabeça.
Tudo aconteceu em segundos, mas outro SS entrou na sala a tempo de ver duas botas serem tragadas pelas chamas. Ele sabia que a vítima só podia ser ou um
kommando ou um SS, mas antes que pudesse chegar a qualquer conclusão, um dos homens derrubou-o com um poderoso murro e, com a ajuda de um companheiro, deu-lhe o
mesmo destino do anterior.
Depois disso, foram necessários apenas alguns segundos para aparecerem as metralhadoras, granadas e dinamites que estavam escondidas. A luta começou entre
os SS, num extremo do edifício, e os homens do Sonderhommando, em outro. Uma granada de mão, atirada no centro dos guardas, matou sete e deixou muitos outros feridos.
Vários homens do Sonderkommando foram também mortos ou feridos e a situação, para os sobreviventes, começou a ficar desesperadora. Porém, quando mais alguns SS tombaram,
os prisioneiros remanescentes, cerca de vinte, conseguiram escapar pela porta do crematório. Lá receberam reforços mais do que suficientes para virar a luta a seu
favor.
O resto era história. Sete ficaram no interior do crematório. Os doze fugitivos foram cercados e capturados à noite. Eles tinham conseguido cruzar o Vístula,
mas estavam esgotados e procuraram abrigo numa casa. O dono desta informou a uma patrulha SS, que vasculhava a área, e todos foram capturados.
Eu estava deitado, quase dormindo, quando uma nova rajada de metralhadora tirou-me do meu estado de semi-inconsciência. Poucos minutos depois, pesadas passadas
ressoaram no corredor. Minha porta se abriu e dois SS entraram, seus rostos cobertos de sangue.
Os doze prisioneiros tinham atacado a patrulha que os trazia de volta ao campo, num esforço desesperado para tomar-lhes as armas. Os prisioneiros tinham
apenas os punhos como armas; o resultado foi rápido e seguro: todos os doze foram imediatamente eliminados. Mas tinham conseguido fazer uns estragos nos guardas,
que agora me pediam que tratasse de seus ferimentos. Sem dizer uma palavra, obedeci.
A perda dos doze companheiros foi um golpe terrível para mim. Depois de tanto esforço e de tantas vidas perdidas, ninguém conseguira escapar para contar
ao mundo a história dessa diabólica prisão.
Mais tarde vim a saber que as notícias dessa revolta tinham chegado ao mundo exterior. Alguns dos prisioneiros do KZ contaram o caso para os civis que trabalhavam
com eles. Além disso, ao que tudo indica, parece que a língua de certos SS andou batendo nos dentes.
Aquilo foi, sem dúvida, um acontecimento histórico, o primeiro do gênero, desde a fundação do KZ. Oitocentos e cinqüenta e três prisioneiros e setenta SS
foram mortos, incluindo entre os últimos um Obersturmführer, dezessete Oberschaar-führer e Schãarführer e cinqüenta e dois Sturmmãnner. O crematório no. 3 ficou
completamente incendiado e o no. 4, em virtude dos sérios estragos em seu equipamento, ficou inutilizado.
XXVIII
Acordei deprimido após uma noite mal dormida. Meus nervos estavam em pior estado que nunca: mesmo as conversas sussurradas de meus colegas, o som de seus
passos, faziam-me terrível mal.
Eu estava num péssimo humor à medida que, junto com meus assistentes, caminhávamos em direção à sala de dissecação. No caminho tivemos que passar à sala
de incineração. Aquele chão de concreto frio e antipático, que se estendia até os fornos. Tinham acabado de queimar nossos colegas às doze horas da noite anterior.
Os fornos, ao esfriar, produziam uma quentura débil. O décimo-terceiro Sonderhommando, atingido pela tragédia que havia acabado de presenciar, estava sentado
ou deitado sobre as camas dos antigos kommandos, num silêncio tumular.
Mas essa situação durou pouco e logo a vida voltou ao seu ritmo normal, o que era evidenciado pelo desejo deles por boa comida e cigarros, e especialmente
pelo brandy, o remédio de todos os Sonderkomrnandos, a panacéia para a enfermidade do crematório. Depois da nudez deplorável nos barracões do KZ, estavam gozando
o conforto de roupas novas. A higiene pessoal era novamente uma realidade: chuveiros, sabonete, toalhas à vontade. Eu os observava como um velho sargento deve observar
um grupo de recrutas. Eles se acostumariam logo com tudo aquilo.
Na sala de dissecação, na falta de algo melhor para fazer, inventei alguns trabalhos para manter meus colegas ocupados. Pedi que limpassem os instrumentos
cirúrgicos até que ficassem brilhando como novos, depois que os separassem por tipo e os guardassem. A tela de mosquitos, depois da batalha do dia anterior, também
estava precisando de alguns reparos. Quanto a mim, sentei-me à mesa, com a cabeça cheia de esparadrapos, e comecei a preparar uma lista de reclamações e reivindicações
para entregar ao Dr. Mengele o mais cedo possível.
Planejava dizer-lhe que nenhum dos aposentos do crematório era adequado para uma sala de dissecação, pela simples razão de que não importava onde você estivesse
aqui dentro não conseguia deixar de ouvir os gritos lancinantes dos deportados em seu caminho para a morte, gritos que penetravam na medula dos ossos. Fosse a câmara
de gás ou uma bala na nuca, os gritos eram os mesmos. Tornava-se impossível para mim concentrar-me no trabalho. Desde o dia de minha chegada, quando soube do destino
dos onze kommandos anteriores, vinha vivendo num mundo de medo constante: quatro meses de tensão alucinante, esperando, dia após dia, pelo momento que o nosso kommando
teria o mesmo destino.
Também planejava pedir-lhe para ter mais paciência com meu trabalho no futuro, se algo não saísse perfeito. Por quê? Porque, há não muito tempo atrás, dia
6 de outubro de 1944, para ser mais exato, quando recebi ordens para fazer a autópsia no corpo de um oficial russo e preparar o laudo, o crematório no. 3 foi pelos
ares diante dos meus olhos e fomos atacados por um batalhão da SS. Bazucas foram trazidas e cães policiais açulados contra nós. Granadas de mão explodiram à nossa
volta. Soldados de baioneta calada irromperam por esse assim chamado instituto científico que eu supunha dirigir e nos puseram para fora aos chutes e cacetadas.
Fomos obrigados a nos deitar no chão lamacento. Por um triz eu não passei de dissecador a um objeto de dissecação. Era verdade que o Dr. Mengele me tinha livrado
desse destino e me resgatado das hostes dos condenados, mas somente para ser obrigado a voltar a essa casa de horrores para uma nova etapa de quatro meses. Eu
lhe perguntaria se ele não achava que a nossa situação era insustentável. Após o pior ter passado, fui obrigado a prestar os primeiros socorros a dois
SS, que horas antes haviam me espancado sem piedade e depois esperado, com a arma engatilhada e apontada para a minha nuca, a hora de puxar o gatilho.
Essas eram as reclamações que tinha a fazer ao meu chefe. Mas a minha maior reivindicação era para que transferisse a sala de dissecação para outro lugar
longe daqui.
No momento exato em que acabava de pensar isso, a porta se abriu e o próprio Dr. Mengele entrou. Como mandava o regulamento, eu me ergui e, em posição de
sentido, anunciei:
— Capitão, três médicos e um assistente de laboratório às ordens.
Ele olhou com ares de surpresa para minhas bandagens.
— O que foi que lhe aconteceu? — perguntou com um sorriso enigmático que parecia meio sério, meio brincalhão.
A natureza de sua pergunta deu-me a impressão de que ele preferiria que os acontecimentos do dia anterior nunca tivessem ocorrido. Assim sendo, não respondi.
Minha lista de reclamações murchou, porém uma reivindicação tinha de ser feita.
— Capitão, — disse sem muita convicção — esse lugar é altamente inadequado para a pesquisa científica. Não seria possível transferir a sala para um lugar
melhor?
Ele olhou-me fixamente, sua expressão endurecendo.
— O que há de errado? — disse friamente. — Está ficando sentimental?
Lamentei ter-me deixado levar. Ter abandonado a discrição que geralmente mantinha em sua presença. Ousara criticar o único lugar, o único ambiente no qual
meu superior se sentia em casa: o fulgor infernal das piras e a fumaça negra dos crematórios; o ar pesado com o cheiro de carne crestada; as paredes ressoando com
os gritos dos infelizes e o matraquear metálico das metralhadoras disparadas à queima-roupa; era para esse lugar que ele voltava depois de cada seleção, depois de
cada seção de fogos de artifício. Esse era o lugar onde passava todo seu tempo livre; aqui nesse inferno humano o carniceiro de Auschwitz obrigava-se a retalhar
centenas de cadáveres recentes, cuja carne era também usada para cultivar bactérias numa incubadora elétrica. Obcecado com a idéia de que havia sido escolhido para
descobrir a causa dos nascimentos múltiplos, o Dr. Mengele sentava-se durante horas ao microscópio.
Hoje, no entanto, notei que ele parecia cansado. Tinha acabado de chegar da plataforma de desembarque de judeus, onde permanecera horas sob a chuva, fazendo
a seleção dos habitantes do gueto de Riga. Como de costume, seleção não era bem o termo, pois todos tinham sido mandados para a esquerda. Os dois crematórios em
operação estavam cheios, assim como a imensa pira. Para lidar com esse acúmulo de serviço, as fileiras do novo Sonderkommando foram engrossadas com mais 460 homens.
O Dr. Mengele aproximou-se da mesa sem se preocupar em tirar a capa e o quepe, que estavam ensopados. Na verdade, nem parecia notá-los.
— Capitão, — falei — deixe-me levar seu quepe e o seu casaco para junto dos fornos. Logo estarão secos.
— Deixe para lá — respondeu — De qualquer forma, a água não passará de minha pele.
Pediu-me para ver o laudo da autópsia do oficial russo. Entreguei a pasta. Após ler quatro ou cinco linhas, ele a devolveu.
— Estou muito cansado, leia para mim. — No entanto, mal comecei a ler, ele me interrompeu. — Deixe para lá, não é necessário. — E seu olhar passeou, ausente,
pela sala.
O que poderia ter acontecido a esse homem? Seria possível que estivesse cansado desses horrores. Também era possível que a tensão dos meses anteriores tivesse
começado a deixar sua marca.
Durante nossos vários contatos e conversas, o Dr. Mengele nunca me proporcionou o que eu pudesse chamar de conversa particular. Mas agora, vendo-o tão deprimido,
criei coragem.
— Capitão, quando terminará toda essa destruição? Olhou-me e respondeu:
— Mein Freund! Es geht immer weiter, immer weiter! Meu amigol Isso vai continuar, e continuar...
Suas palavras pareciam trair uma nota de resignação. Levantou-se da cadeira e deixou o laboratório com a valise na mão. Acompanhei-o até o carro.
— Nos próximos dias, você terá um trabalho interessante — disse; depois, entrou no carro e partiu.
Dei de ombros com indiferença. Não há dúvida de que o "trabalho interessante" significava um novo grupo de gêmeos.
XXIX
OS CREMATÓRIOS estavam sendo reconstruídos. Os homens do Sonderkommando refaziam as superfícies refratárias das entradas das fornalhas, pintando as pesadas
portas de ferro e azeitando as dobradiças. Os dínamos e ventiladores voltaram a trabalhar vinte e quatro horas por dia. Um especialista garantiu que estavam funcionando
bem. A chegada do gueto de Litzmmanstadt tinha sido anunciada.
Esse gueto fora estabelecido pelos alemães em 1939. No começo abrigou 500.000 pessoas, que trabalhavam nas enormes fábricas de material bélico. Em troca
de seu trabalho eram pagos em "marcos de gueto", mas somente em quantidade suficiente para comprar uma ração magra de comida. Não é preciso dizer que a diferença
entre o grande esforço exigido no trabalho e a alimentação insuficiente era uma alta taxa de mortalidade. Numerosas epidemias também deixaram marcas profundas. Assim,
no outono de 1944, somente 70.000 dos 500.000 iniciais haviam sobrevivido.
E agora, a hora fatal para os remanescentes havia chegado. Eles desciam a rampa em grupos de 10.000. A seleção mandou 95% para a esquerda e somente 5% para
a direita.
Perseguidos e torturados, física e moralmente esfacelados por cinco anos de vida de gueto, atormentados pela consciência do trágico destino de sua raça,
envelhecidos pelos trabalhos forçados, chegavam completamente apáticos. Mesmo quando percebiam que ao cruzar os portais do crematório estavam queimando o último
cartucho de suas vidas, havia neles um ar de indiferença.
Desci à antecâmara. Suas roupas e sapatos estavam espalhados pelo chão. Naturalmente, seria muito difícil pendurar nos cabides aqueles restos de couro e
madeira que passavam por sapatos. Nem mesmo o número nos cabides, que deveriam guardar de memória, suscitou seu interesse. Eles deixavam a bagagem de mão em qualquer
lugar. Os homens do Sonderkommando, cujo serviço era separar os pertences abandonados, abriram alguns embrulhos e mostraram-me: uns biscoitos feitos de farinha de
milho e um quase nada de óleo de linhaça e, em alguns casos, alguns gramas de farinha de aveia, isso era tudo que tinham.
Quando os comboios chegaram, o Dr. Mengele percebera entre os deportados um homem corcunda de seus cinqüenta anos. Não estava sozinho. Ao seu lado, um rapaz
alto e simpático, de quinze ou dezesseis anos. O rapaz tinha um defeito no pé, que estava sendo corrigido por um aparelho formado de uma chapa de metal e uma bota
ortopédica. Eram pai e filho. O Dr. Mengele pensou ter descoberto, na figura do pai corcunda e do filho aleijado, um exemplo inconteste da degeneração da raça judaica.
Ordenou que os dois saíssem fora de forma imediatamente. Apanhou seu caderninho e escreveu nele qualquer coisa. Entregou dois pedaços de papel a um guarda SS e mandou
que levasse, juntamente com os dois deportados, para o crematório no. 1.
Era quase meio-dia. O n° 1 não estava trabalhando. Não tendo o que fazer, eu fiquei no meu quarto esperando o tempo passar. O SS de guarda veio me procurar
e pediu-me que fosse até o portão. O pai e o filho, acompanhados pelo SS, já estavam lá. Peguei o bilhete, que me era destinado, e li: "Sala de dissecação, crematório
no. 1, esses dois homens devem ser examinados sob o ponto de vista clínico; que sejam tiradas as medidas exatas deles; o relatório clínico deve incluir todos os
detalhes interessantes e mais especialmente aqueles relativos às causas que provocaram tais anomalias".
Um segundo bilhete era dirigido ao Oberschaarführer Mussfeld. Mesmo sem lê-lo eu sabia o que devia conter. Pedi a um Kommando que o entregasse.
Pai e filho, seus rostos expressando toda uma vida miserável de cinco anos de gueto. Cheios de maus pressentimentos, me olhavam interrogativamente. Levei-os
pelo pátio que, a essa hora, estava banhado pela luz do sol. A caminho do crema-tório, tranqüilizei-os com palavras amenas. Felizmente, não havia nenhum cadáver
sobre a mesa de dissecação; teria sido uma visão terrível para eles.
Para poupá-los um pouco, resolvi não fazer o exame na austera sala de dissecação constantemente impregnada com o cheiro do formaldeido e sim na agradável
e bem iluminada sala de estudo. Pela nossa conversa, fiquei sabendo que o pai tinha sido um respeitável cidadão de Litzmmanstadt, atacadista de roupas. Durante os
períodos de paz entre as guerras, ele, por várias vezes, levara o filho em suas viagens de negócios a Viena, onde o submetera a exames e tratamentos pelos maiores
especialistas.
Primeiro examinei o pai detalhadamente, sem omitir nada. O desvio de sua coluna vertebral era conseqüência de raquitismo retardado. E apesar de exames completos,
não descobri nenhum sintoma de outra doença.
Tentei consolá-lo dizendo que provavelmente ele seria enviado para um campo de trabalho.
Antes, de começar a examinar o rapaz, conversei longamente com ele. Tinha um olhar inteligente e uma aparência bastante agradável, mas seu moral estava abaixo
da crítica. Tremendo de medo, relatou-me, numa voz sem expressão, os tristes, penosos e, muitas vezes, terríveis acontecimentos que haviam marcado seus cinco anos
de gueto. Sua mãe, criatura frágil e sensível, não conseguira suportar por muito tempo as provações a que fora submetida. Tornou-se melancólica e deprimida. Por
semanas a fio ela quase não se alimentava para que seu marido e seu filho tivessem uma ração um pouco maior. Uma verdadeira esposa e mãe judia que amou os seus a
ponto de enlouquecer; morreu como mártir durante o primeiro ano de vida no gueto. E foi assim que viveram lá, o marido sem a esposa e o filho sem a mãe.
E agora, estavam no crematório no. 1. Mais uma vez eu tinha sido golpeado pela terrível ironia da situação. Eu, um médico judeu, tinha de examiná-los clinicamente
antes que morressem e depois, nos seus corpos ainda quentes, fazer a autópsia. Fiquei tão abalado com a situação que, de repente, me achei girando bem próximo da
loucura. Qual seria a origem de tanto mal, de tal sucessão de horrores que se abatera sobre o nosso infeliz povo? Seria a vontade de Deus? Não, não posso acreditar.
Com um esforço imenso, me contive e examinei o rapaz. Em seu pé direito notei uma deformação congênita: alguns músculos estavam faltando.
O termo médico para descrever tal deformação é hipomielia. Pude notar que mãos extremamente habilidosas tinham praticado várias operações naquele pé, mas
como resultado disso, um pé era menor que o outro. Mas, com uma bandagem e sapatos ortopédicos, ele podia andar perfeitamente bem. Não vi nenhuma outra enfermidade
que pudesse ser indicada.
Perguntei-lhes se desejavam comer alguma coisa.
— Não comemos nada há bastante tempo — responderam.
Chamei um homem do Sonderkommando e mandei que trouxessem comida para eles: bife e macarronada, um prato que não seria achado fora dos limites do Sonderkommando.
Começaram a comer com vontade, sem imaginar que era sua "Última Ceia".
Menos de meia hora mais tarde, Mussfeld apareceu com quatro homens do Sonderkommando. Eles levaram os prisioneiros para a sala das fornalhas e tiraram-lhes
as roupas. Aí o revólver do Ober disparou duas vezes. Pai e filho ficaram caídos no chão de concreto frio, banhados em sangue, mortos. O Oberschaarfükrer Mussfeld
tinha fielmente cumprido as ordens do Dr. Mengele.
Agora era a minha vez novamente. Os dois cadáveres foram trazidos de volta à sala de dissecação. Fiquei tão acabrunhado com o episódio que pedi aos meus
colegas que procedessem à autópsia, e me limitei a registrar o que iam encontrando. A autópsia não revelou nada além do que eu já havia constatado no exame in vivo.
Eram casos banais mas poderiam ser utilizados como propaganda para sustentar a teoria do III Reich da degeneração da raça judaica.
Quase à noitinha, depois de ter enviado pelo menos 10.000 pessoas para a morte, o Dr. Mengele chegou. Escutou atenciosamente meu relatório concernente aos
exames in vivo e post mortem feitos nas duas vítimas.
— Os cadáveres não serão cremados — disse. — Devem ser preparados para que os esqueletos sejam enviados para o Museu Antropológico de Berlim. Que sistemas
conhece para a preparação de esqueletos?
— Existem dois métodos — expliquei. — O primeiro consiste na imersão dos corpos em cloreto de cálcio, que consome todas as partes moles do corpo em duas
semanas. Depois, o que sobra é imerso em gasolina que dissolve toda a gordura e seca o esqueleto, deixando-o sem cheiro e branco. E existe um segundo método: o cozimento.
Que se faz jogando o corpo na água fervente até que a carne possa ser facilmente destacada dos ossos, depois o mesmo banho de gasolina faz o resto.
O Dr. Mengele me ordenou que usasse o método mais rápido, ou seja, o cozimento.
No KZ, as ordens eram sempre taxativas. Como os prisioneiros deveriam fazer para conseguir o material necessário para a execução da ordem não seria especificado.
A ordem tinha de ser cumprida e isso era tudo que se sabia. Eu estava, portanto, diante de um sério problema: onde acharia lugar para cozinhar os corpos? Expliquei
o caso ao Ober Mussfeld. Disse-lhe que tinha de cozinhar dois corpos mas não sabia como...
Até ele ficou horrorizado com a história. Pensou por um instante e se lembrou de dois caldeirões de ferro que estavam no pátio e que eram geralmente usados
na despensa. Mussfeld deixou-os à minha disposição e disse-me para colocá-los sobre tijolos e acender o fogo embaixo.
A base foi preparada e os dois caldeirões, com os corpos dentro, colocados sobre ela. Dois homens do Sonderhommando foram incumbidos de catar madeira para
o fogo e mantê-lo aceso. Depois de cinco horas, examinei os corpos e vi que as partes moles estavam agora facilmente destacáveis do corpo. Ordenei que o fogo fosse
apagado, mas os corpos não deviam ser retirados até que esfriassem.
Não tendo o que fazer, permaneci sentado à sombra de um arvoredo não muito longe dos caldeirões. Um profundo silêncio me envolveu. Alguns prisioneiros-pedreiros
estavam reconstruindo as chaminés do crematório. A noite vinha caindo. Os caldeirões já deviam estar frios a essa hora. Eu estava prestes a ir esvaziá-los quando
um de meus homens veio me avisar:
— Doutor, os poloneses estão comendo a carne dos caldeirõesl
Saí correndo o mais rápido que minhas pernas permitiam. Quatro homens vestidos com o uniforme listrado dos prisioneiros estavam ao lado dos caldeirões, traumatizados
de horror. Eram os pedreiros poloneses que eu havia notado antes. Tinham acabado seu trabalho e estavam esperando no pátio que os guardas viessem e os levassem de
volta para Auschwitz ! Esfomeados, estavam à cata de algo para mastigar quando deram com os caldeirões que, por azar, haviam ficado sem guarda por alguns minutos.
Pensando tratar-se da carne que o Sonde-kommando estava cozinhando, eles cheiraram primeiro e depois pegaram algumas partes que não estavam cobertas de pele; então
comeram-nas.
Não haviam ido muito longe, pois os dois homens do Sonderhommando encarregados de vigiar os caldeirões chegaram a tempo de ver o que ocorria.
Quando souberam que espécie de carne estavam comendo, os poloneses ficaram nauseados, horrorizados, petrificados...
Após o banho de gasolina, o assistente de laboratório juntou as partes do esqueleto e colocou-as sobre a mesa onde, na noite anterior, eu havia examinado
aqueles homens ainda vivos.
O Dr. Mengele estava satisfeito. Trouxe vários outros oficiais e, pomposamente, começaram a examinar certas partes dos esqueletos e a soltar altissonantes
termos científicos, falando como se as duas vítimas representassem um fenômeno médico extremamente raro. Eles se abandonaram totalmente à sua pseudociência.
E, no entanto, longe de ser uma anormalidade extraordinária, aquilo é comum a milhares de homens de todas as raças e climas. Mesmo um médico de clínica reduzida,
freqüentemente se depara com isso. Mas os dois casos, por sua própria natureza, poderiam ser explorados na propaganda. A máquina de propaganda nazista nunca hesitou
em mascarar suas mentiras monstruosas com uma face cientifica. O método sempre funcionara, pois aqueles a quem a propaganda era dirigida tinham pouca ou nenhuma
faculdade crítica, e aceitavam como fato consumado tudo que trazia o selo do regime.
Os esqueletos foram embrulhados em grandes sacos de papel resistente e endereçados a Berlim com o carimbo: — Urgente: defesa nacional. Fiquei aliviado por
estarem longe da minha vista, pois os dois homens me proporcionaram horas bastante amargas, não só quando vivos, como também depois de mortos. No fim da semana,
o extermínio do gueto de Litzmannstadt havia sido consumado. Uma chuva fria substituiu o sol que vinha aquecendo os dias de outubro. O nevoeiro envolveu os barracões
do KZ; meu passado e meu futuro também estavam se dissolvendo num mar de nevoeiro. A chuva continuou por vários dias e o frio úmido penetrou até a medula de meus
ossos, tornando minha amargura ainda mais aguda. Onde ia, para onde olhava só via cercas de arame farpado fazendo-me lembrar que toda esperança era vã.
No terceiro dia que se seguiu à liquidação do gueto de Litzmannstadt, o chefe do Sonderkommando trouxe uma mulher e duas crianças ensopadas até a alma e
tiritando de frio. Elas haviam escapado quando o último comboio foi enviado para a morte Pressentindo o que lhes estava reservado, esconderam-se atrás de uma pilha
de madeira que era usada para o aquecimento e que, por falta de um lugar melhor, ficava amontoada no pátio. Seu comboio havia desaparecido, engolido pela terra bem
diante de seus olhos. E ninguém jamais voltou. Tremendo de frio e medo, haviam esperado lá que alguma reviravolta miraculosa do destino viesse salvá-las. Mas nada
aconteceu. Por três dias, ela e as crianças ficaram escondidas na chuva e no trio, sem nada para comer e com seus trapos não lhes oferecendo nenhuma proteção contra
os elementos até que finalmente, o chefe do Sonderkommando, ao fazer sua ronda, deu com elas já quase inconscientes. Impotente para ajudá-las de qualquer forma,
levou-as ao Oberscharführer.
A mulher, que devia ter uns trinta anos, mas parecia ter cinqüenta, reuniu suas últimas forças e se atirou aos pés de Mussfeld, implorando que poupasse sua
vida e a dos seus filhos de dez e doze anos. Ela havia trabalhado durante cinco anos numa fabrica de roupas no gueto, explicou, fazendo uniformes para o exercito
alemão. Ainda podia trabalhar, fazer qualquer coisa, se eles apenas deixassem-na viver.
Tudo era inútil. Aqui não havia salvação. Mais uma vez o passado do KZ deve ter afetado o Ober; ele mandou outro em seu lugar para praticar o crime.
8
XXX
ESTE FOI OUTRO pequeno episódio que nós esquecemos, pois era absolutamente necessário esquecer, se não quiséssemos ficar loucos. Escuridão à frente e escuridão
atrás...
Como sempre, a bebida era uma grande ajuda, um alívio momentâneo, mas necessário. Quando pensava no passado tudo isso me parecia um terrível pesadelo. Meu
único desejo era não pensar em nada, esquecer tudo.
Estávamos em novembro de 1944. A neve caía em flocos pesados escondendo tudo com seu véu branco. Mal se viam as torres de vigia, vagos dedos cinzentos erguendo-se
sobre nós. O vento cantava cada vez mais forte por entre o arame farpado, e os únicos pássaros no céu ainda eram os corvos.
Saí para dar uma volta antes que a noite caísse completamente. O tempo não estava nada convidativo, mas o vento frio agia como estimulante, aliviando meus
nervos cansados. Dei várias voltas pelo pátio; meus pés me levaram até próximo das escadas que conduziam à câmara de gás. Parei lá por alguns segundos, lembrando-me
que era Dia de Todos os Santos. Um silêncio mortal reinava sobre Auschwitz. Os frios degraus de concreto desciam e se fundiam na escuridão. Esses mesmos degraus
onde quatro milhões de pessoas, que nenhum crime cometeram, se despediram da vida e desceram, sabendo que mesmo após a morte seus corpos torturados não teriam a
paz de um túmulo. Sozinho, senti que era meu dever parar e pensar neles por um momento com uma profunda compaixão, em nome de seus parentes e amigos, que talvez
estivessem bem e felizes em algum lugar do mundo.
Deixei aquele lugar abandonado por Deus e voltei para o meu quarto. Ao abrir a porta, notei que o quarto não estava, como de costume, muito bem iluminado
por uma lâmpada forte e sim mergulhado na luz bruxuleante de uma vela. Minha primeira impressão foi a de que devia ter havido alguma coisa errada com a eletricidade.
Aí percebi meu colega, ex-professor da Faculdade de Medicina de Szombathely, sentado com os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça entre as mãos, fitando a chama
com os olhos vazios, seus pensamentos a milhões de quilômetros de distância. Ele nem notou a minha presença. A luz fantasmagórica emprestava uma expressão sobrenatural
ao seu rosto. Toquei de leve seu ombro.
— Dênis — falei mansamente — em memória de quem acendeu esta vela?
Sua resposta foi confusa. Ele murmurou alguma coisa sobre seu sogro e sua sogra que, pelo que eu sabia, haviam morrido há uns quinze anos, e nem sequer mencionou
sua esposa e seu filho, que segundo os homens do Sonderkommando, tinham morrido aqui. Era fácil verificar que estava com todos os sintomas de melancolia depressiva
e amnésia regressiva.
Pegando-o pelos ombros, conduzi-o para a sua cama, e fiquei lá velando por ele.
Pobre amigo, excelente médico, meu companheiro amável e sensível ao invés de tratar e curar os doentes, você próprio caiu sob as garras da Morte e agora
pertencia ao seu reino. Por muitos meses presenciou horrores e sofrimentos que a mente humana nem pode conceber. Talvez seja até bom que seus nervos o tenham traído,
que o benevolente véu do esquecimento lhe tenha descido sobre a mente. Agora, pelo menos, não precisará mais se angustiar nem temer o que o futuro lhe reserva.
XXXI
APÓS VÁRIOS DIAS de silêncio, o barulho costumeiro dos crematórios recomeçou. Os motores dos gigantescos ventiladores giravam novamente reavivando as chamas
das fornalhas. A chegada do gueto de Theresienstadt havia sido anunciada.
Desde a fundação da República da Tcheco-Eslováquia, Theresienstadt tinha sido originalmente sede de uma guarnição militar. Os alemães mudaram completamente
a feição da cidade, a ponto de remover a população civil e instalar um gueto modelo. Esse gueto abrigava judeus deportados da Áustria, Holanda e da própria Tcheco-Eslováquia,
num total de 60.000. As condições de vida de seus habitantes eram relativamente boas. Podiam exercer livremente suas profissões, enviar e receber correspondência
e eram auxiliados pela Cruz Vermelha. Na verdade. equipes da Cruz Vermelha Internacional faziam visitas periódicas ao gueto e todas as vezes divulgavam relatórios
favoráveis concernentes às condições de vida e tratamento dos prisioneiros.
Assim, os alemães conseguiram o que queriam com a criação de um gueto modelo, pois tais relatórios da Cruz Vermelha Internacional tinham o efeito de neutralizar
ou, melhor ainda, de qualificar como calúnias maldosas os rumores sobre horrores dos KZ e dos crematórios.
Mas agora, às vésperas do colapso, o III Reich não mais se preocupava em abrandar a opinião pública mundial e rejeitava até mesmo a máscara de seu humanismo
duvidoso. Começou, então, a liquidar sem demora os judeus sob sua custódia. Assim, havia soado a hora do gueto-modelo de Theresienstadt Quando chegaram a Auschwitz,
os homens ainda saudáveis desse gueto traziam a seguinte nota de convocação:
COMITÊ GOVERNAMENTAL SS DO
REICH PARA O RECRUTAMENTO
E O EMPREGO DE TRABALHADORES
ESCRAVOS
Aviso: O judeu X Y, do protetorado do Reich, fica avisado de que, por ordem da supracitada autoridade, foi designado para o Serviço de Trabalho Obrigatório.
O convocado deve, antes de sua partida, depositar seus instrumentos, as ferramentas necessárias ao exercício de sua profissão, uma provisão de roupas de inverno
e comida suficiente para uma semana, com a autoridade representativa. A data da partida será anunciada publicamente.
THERESIENSTADT, DATA
Assinatura
Toda aquela história de trabalho obrigatório era, naturalmente, uma mentira deslavada, um mero pretexto para se proceder o extermínio sem maiores problemas
e ainda por cima conseguir algumas ferramentas de que a população alemã tanto necessitava Vinte mil homens, aptos para o trabalho e na flor da juventude, morreram
nas câmaras de gás e foram cremados nos fornos dos crematórios. Levaram 48 horas para exterminá-los. Por vários dias, novamente o silêncio reinou sobre os crematórios.
Duas semanas mais tarde, mais comboios começaram a chegar, um atrás do. outro. Milhares de mulheres e crianças foram cuspidas na rampa de desembarque. Não
houve seleção. Todas foram encaminhadas para a esquerda.
No chão da antecâmara estavam centenas de notificações que diziam:
COMITÊ GOVERNAMENTAL SS DO REICH
PARA O RECRUTAMENTO E EMPREGO
DE TRABALHADORES ESCRAVOS
Aviso: A supracitada autoridade autoriza esposa e filhos do judeu X Y, do protetorado do III Reich, convocado para o Trabalho Obrigatório, a se reunir ao
citado judeu e a morar com ele pela duração de seu emprego. Alojamentos adequados serão fornecidos. Roupas de inverno, roupa de cama e provisões para uma semana
serão fornecidas pelos viajantes.
THERESIENSTADT, DATA
Assinatura
Como resultado dessa trama diabolicamente concebida, vinte mil mulheres e crianças, que desejavam apenas ir ao encontro de seus maridos e pais, seguiram-nos
nas câmaras de gás e nos fornos dos crematórios.
XXXII
NA A MANHÃ DE 17 DE NOVEMBRO de 1944, um guarda SS veio ao meu quarto e me informou muito confidencialmente que ordens recebidas de altas autoridades especificavam
que, dali por diante, era expressamente proibido matar qualquer prisioneiro do KZ. Após ter testemunhado tantas mentiras, achei impossível acreditar no que dizia
e expressei minhas dúvidas sobre o assunto. Porém, me reafirmou vivamente que ele próprio havia recebido a notícia pelo rádio alguns instantes atrás. Logo veríamos
se era verdade ou não. Pessoalmente, temi que fosse apenas outro truque.
Antes do meio-dia, porém, tive ocasião de verificar a veracidade de sua afirmação. Um trem de cinco vagões, trazendo quinhentos prisioneiros doentes e debilitados
que pensavam estar sendo transferidos para um campo de repouso, parou entre os crematórios um e dois. Foram recebidos por SS políticos, que conversaram demoradamente
com o comandante e os guardas SS que acompanhavam os comboios. Finalmente, diante dos portões da morte, o trem voltou e seus ocupantes foram enviados para os hospitais
do Campo F.
Era a primeira vez, durante a minha estada nos crematórios, que um comboio enviado para o "campo de repouso" não era liquidado pelo gás ou pelo revólver
do Ober uma hora após sua chegada à rampa. Pelo contrário, o que aconteceu é que receberam cuidados médicos e lhes foi permitido repousar nas camas do barracão-hospital.
Menos de meia hora depois, outro trem chegou, trazendo 500 judeus eslovacos: um grupo de gente idosa, mulheres e crianças. Assim que saíram dos vagões, observei-os
atentamente para ver o que acontecia. A forma e a seleção constituíam os procedimentos normais na rampa dos judeus. Mas o que eu estava testemunhando era totalmente
fora do comum. Os viajantes, exaustos, desciam dos vagões carregando toda sua bagagem e seguiam em direção ao Campo D. Mães empurrando carrinhos de bebê e os mais
jovens ajudando os velhos a caminhar. Minha reação imediata foi de entusiasmo. Não podia haver mais dúvida: os portões dos crematórios tinham permanecido fechados
diante dos comboios enviados para a morte.
Para os prisioneiros do KZ, o acontecimento foi uma verdadeira dádiva, aumentando a esperança. Para os homens do Sonderkommando, no entanto, aquilo era um
mau presságio, pois significava que o fim estava próximo. Eu estava certo de que seríamos liquidados mesmo antes do período de quatro meses.
Uma nova vida começou no KZ. Não havia mais mortes violentas, mas o passado sangrento tinha de ser apagado. Os crematórios tinham que ser demolidos, as valas
cobertas de terra e quaisquer testemunhas ou participantes dos horrores ali perpetrados teriam que desaparecer. Totalmente conscientes do que nos aguardava, saudamos
a mudança com uma mistura de alegria e resignação. Dos quatro milhões de almas enviadas dos quatro cantos da Europa por ordem de um führer demente — o piromaníaco
do III Reich — para serem queimadas pelos carniceiros de Maydanek, Treblinka, Auschwitz, Birkenau, uns poucos milhares saíram com vida.
Sentindo-me angustiado, tornei a visitar, por volta do meio-dia, o SS que me havia informado da boa nova pela manhã. Queria saber que decisões tinham sido
tomadas no decorrer da manhã. Existia alguma coisa já deliberada sobre o Sonderkommando? Em caso afirmativo, o quê? Felizmente estava sozinho e pude falar com ele
livremente.
— O Sonderkommando? Ah, sim! — respondeu afável. — Em poucos dias vocês serão enviados para uma fábrica de guerra subterrânea, não muito longe de Breslau.
Não acreditei em nenhuma palavra do que disse. Pela primeira vez, porém, senti que suas mentiras não tinham a intenção de me impingir um falso senso de segurança:
Ele simplesmente queria me poupar das más noticias, pois não fazia muito tempo eu o tinha curado de uma moléstia grave.
XXXIII
O RELÓGIO MARCAVA duas horas da tarde. Tinha acabado de almoçar e estava sentado diante da janela do meu quarto, olhando o céu e as nuvens que traziam a
promessa de neve muito em breve, quando um grito estridente na sala de incineração veio quebrar o silêncio:
— Alie antreten, alie antreten!
Essa era uma ordem que estávamos acostumados a ouvir duas vezes por dia, uma de manhã e a outra à tarde, a chamada.
Vindo a essa hora, no entanto, ela na certa não significava nada de bom.
— Antreten, alie antreten! — a ordem foi repetida, desta vez mais persistente e impaciente que antes.
Passos pesados ressoaram junto à minha porta. Um SS abriu-a com estrondo e gritou:
— Antreten, antreten!
Com o coração apertado, fomos para o pátio do crematório, onde um grupo de SS bem armado cercou os homens que chegaram. Não houve surpresa nem protestos
de ninguém. Os SS, com as metralhadoras apontadas, esperaram pacientemente que os últimos retardatários chegassem e se reunissem ao grupo. Olhei em volta pela última
vez. Os pinheiros imóveis que formavam um túnel no fundo do pátio estavam agora cobertos de neve. Tudo estava quieto e em paz.
Em poucos minutos veio a ordem:
— Para a esquerda.
Saímos do pátio, e ao invés de seguirmos a estrada, os guardas nos mandaram ir na direção do crematório no. 2. Cruzamos o pátio, sabendo que esta seria nossa
última caminhada. Eles nos meteram dentro da sala de incineração, mas nenhum dos guardas permaneceu ali conosco. Espalharam-se, em círculo, em volta do crematório,
principalmente nas proximidades das janelas e portas, suas armas engatilhadas, prontas para atirar. As portas estavam trancadas e as janelas fechadas com pesados
suportes de ferro, impedindo, assim, qualquer possibilidade de fuga. Nossos companheiros do n9 2 também estavam presentes, e alguns minutos mais tarde abriram a
porta e entrou o kommando do n° 4. Ao todo eram 460 homens esperando a morte. A única coisa que não sabíamos com certeza era o método que seria usado para nos exterminar.
Éramos especialistas no assunto, tendo visto todos os métodos em operação. Seria na câmara de gás? Dificilmente, não com o Sonderkommando. Metralhadoras? Não muito
conveniente numa sala como esta. Era mais provável que quisessem matar dois coelhos com uma só cajadada, ou seja. dinamitar o crematório conosco dentro. Um plano
digno da SS. Ou talvez fossem jogar uma bomba de fósforo aqui dentro através das janelas. Esse também seria um meio eficiente e que já havia sido testado com sucesso
nos deportados do gueto de Milo. O que foi feito na ocasião foi colocar os deportados nos vagões caindo aos pedaços e depois jogar uma bomba lá dentro.
Os homens do Sonderkommando estavam no chão da sala das fornalhas, esperando pacientemente e em silêncio pelo próximo movimento.
De repente o silêncio foi quebrado. Um homem do kommando, magrinho e pálido, de seus trinta anos, cujos olhos estavam escondidos atrás de um par de lentes
grossas, ficou em pé de um salto e começou a falar numa voz suficientemente alta para que todos ouvissem. Era o Dayen rabino de uma sinagoga de uma pequena cidade
da Polônia. Um autodidata, cujos conhecimentos eram grandes não só no campo espiritual como no temporal, ele era o membro ascético do Sonderkommando. De conformidade
com os ditames de sua religião, aceitava apenas pão, margarina e cebolas da despensa bem provida do kommando. Tinha sido encarregado da cremação, mas devido ao seu
fanatismo religioso, eu próprio fui interceder junto ao Ober em seu favor para ver se o dispensava daquele tenebroso trabalho. O argumento que usei foi simplesmente
o de que aquele homem não iria servir muito no trabalho pesado do crematório, pois era fraco em conseqüência da dieta rigorosa a que se submetia.
— Além disso — argumentei — ele somente iria atrasar o trabalho, parando cada corpo para murmurar orações pela sua salvação. E teria freqüentemente milhares
de almas por dia para encomendar.
Tais foram meus argumentos e bastaram. Por estranho que pareça, o Ober designou-o para a queima da pilha de refugo que se acumulava infinitamente no pátio
do no. 2. O refugo, chamado de "Canadá" pelos SS, era composto de objetos que haviam pertencido aos deportados, objetos de tão pouco valor material que nem eram
considerados dignos de ser guardados: passaportes, certidões de casamento, condecorações militares, livros de orações, objetos religiosos e Bíblias que os deportados
traziam consigo para o cativeiro.
A pequena montanha chamada Canadá consumia diariamente centenas de milhares de fotografias — retratos de casamento de jovens casais, grupos de velhos amigos,
crianças encantadoras e moças bonitas — junto com os incontáveis livros de oração nos quais em muitos encontrei anotações de datas de acontecimentos importantes
— casamentos, mortes, nascimentos — nas vidas de várias famílias. Algumas vezes havia flores dos túmulos de entes queridos, vindas de todos os cemitérios da Europa,
amassadas entre as páginas e cuidadosamente conservadas. Rosários e toda sorte de miudezas amontoavam-se no Canadá.
Esse era o lugar onde Dayen trabalhava, ou melhor, não trabalhava, pois tudo que fazia resumia-se em observar a pilha queimar. Mesmo assim, sentia-se infeliz
porque suas crenças religiosas proibiam-no de queimar livros de oração ou objetos sacros. Eu sentia pena dele, mas não podia fazer nada para ajudá-lo. Era impossível
conseguir-lhe um trabalho mais fácil; afinal de contas, todos nós éramos apenas membros do kommando dos mortos-vivos.
Esse foi o homem que começou a falar:
— Camaradas judeus... Uma Vontade inescrutável enviou nosso povo para a morte; o destino nos reservou a mais ingrata das tarefas, aquela de participar de
nossa própria destruição, de testemunhar nosso próprio desaparecimento até as cinzas às quais seremos reduzidos. Em nenhum momento os céus se abriram para enviar
a chuva que apagaria as chamas das piras funerárias. Nós devemos aceitar, rcsignadamente, como Filhos de Israel que somos, o caminho que as coisas devem seguir.
Deus assim ordenou. Por quê? Não cabe a nós, miseráveis mortais, responder a essa pergunta. Esse é o destino que caiu sobre nossas cabeças. Não temam a morte. Do
que valeria a vida, mesmo se por algum estranho milagre conseguíssemos sair daqui? Voltaríamos às nossas cidades para encontrar o frio je as nossas casas saqueadas.
Em cada quarto, em cada canto, a memória daqueles que desapareceram estaria presente espreitando nossos olhos cheios de lágrimas. Sem parentes, sem família, perambularíamos
como incansáveis sombras de nossas antigas figuras, de nossos passados, sem encontrar paz ou descanso.
Seus olhos faiscavam, sua face estava transfigurada. Talvez enquanto falava já estivesse em contato com o além. Um silêncio sepulcral encheu a sala, interrompido
apenas pelo ruído de riscar de fósforos para acender cigarros. Aqui e ali um suspiro pesado expressava o último adeus de alguns de nós ao mundo dos vivos.
As portas maciças abriram-se de repente. O Oberschaar-(ührer Steinberg entrou, acompanhado de dois guardas armados de metralhadora.
— Ârtze heraus. Todos os médicos para fora! — gritou, com impaciência.
Meus dois colegas, o assistente de laboratório e eu levantamo-nos e saímos da sala. Steinberg e os dois SS pararam no meio do caminho entre os dois crematórios.
O Ober deu-me umas folhas de papel nas quais havia várias colunas de números. Ordenou-me que procurasse meu número e os de meus colegas, e passasse um traço em volta.
O papel continha os números de todos os homens do Sonderkommando. Peguei minha caneta e, depois de procurar um pouco, achei os números e cerquei-os. Isso feito,
ele nos levou até o portão no. 1 e ordenou que fôssemos para o quarto e dali não saíssemos sob hipótese alguma. Fizemos como ele ordenou.
Na manhã seguinte, um comboio de cinco caminhões chegou ao pátio do crematório e despejou sua carga de cadáveres — os do décimo-terceiro Sonderkommando.
Um novo grupo de trinta homens carregou-os para a sala de incineração, onde os corpos ficaram espalhados em frente aos fornos. Estavam cobertos de queimaduras terríveis.
Rostos e roupas estavam tão carbonizados que era impossível qualquer reconhecimento, especialmente devido ao desaparecimento dos números tatuados.
Depois da morte na câmara de gás, com injeções de clorofórmio, com uma bala na nuca, com bombas de fósforo, agora eu conhecia a sexta modalidade de matar.
De noite, nossos companheiros tinham sido levados para uma floresta perto do campo e assassinados com lança-chamas. O fato de nós quatro estarmos vivos não
significava de modo algum que eles pretendiam poupar-nos, mas simplesmente que ainda lhes éramos indispensáveis. Ao nos permitir continuar vivendo, o Dr. Mengele
tinha somente nos concedido outro adiamento. Mais uma vez esse pensamento não nos trouxe nem conforto nem alegria.
XXXIV
O Sonderkommando — o décimo-terceiro na história dos crematóríos — foi assim aniquilado. Agora nossos dias transcorriam em silêncio e monotonia. Desarvorados,
perambulava-nos pelos corredores frios, pelos muros proibidos. O som dos meus passos no silêncio era profundamente doloroso aos meus ouvidos. Não tínhamos ordem
alguma, nada para fazer. À noite deitávamos na cama, incapazes de dormir. Só nós quatro ficamos no edifício. Os trinta homens que trabalhavam no crematório não eram
Sonderkommandos, e sim prisioneiros comuns do KZ que aqui vinham todos os dias para cremar os corpos daqueles que morriam no hospital.
Mudos, introspectivos, prostrados pela dor, aguardávamos o nosso fim. Era um mau sinal o fato de Mussfeld, como se se tivesse tornado uma pessoa diferente,
deliberadamente evitar de nos encontrar. Talvez sentisse que o espetáculo havia chegado ao fim: a tragédia sangrenta terminara e logo chegaria a vez do destino que
acompanha os portadores de segredos proibidos se abater também sobre ele. Durante dias a fio, permaneceu trancado em seu quarto, bebendo com uma sede aparentemente
insaciável para esquecer o passado e o obscuro futuro.
Um dia o Dr. Mengele chegou inesperadamente e veio à nossa procura no quarto, pois devia saber que não estávamos na sala de dissecação, agora que os negócios
andavam parados. Anunciou que, de acordo com ordens recebidas de cima, Auschwitz devia ser totalmente destruído. Não, no momento não se referia aos prisioneiros
e sim à própria instituição. Dois crematórios seriam demolidos, o terceiro serviria temporariamente para cremar os mortos dos hospitais. A sala de dissecação, e
nos com ela seria transferida para o número quatro, que continuaria em operação. Os números um e dois seriam destruídos imediatamente. O número três já estava destruído
desde a revolta de outubro.
Foi um momento histórico e de felicidade quando, na manhã seguinte, um kommando chegou ao pátio, dividiu-se em dois grupos e começou a demolição dos prédios.
Ao ver as paredes de tijolos vermelhos caírem uma após a outra tive a sensação de estar presenciando a própria demolição do III Reich. Os judeus as tinham erguido,
os judeus as estavam derrubando. Nunca eu tinha visto prisioneiros do KZ trabalharem com tanta tenacidade como a que vi nos rostos daqueles homens, cujas expressões
refletiam as esperanças de uma vida melhor.
Na sala de dissecação tudo que fosse removível estava sendo empacotado. Quanto à mesa de dissecação, somente as lajes de mármore foram desmanteladas e substituídas
por suportes de concreto. A mudança terminou em poucas horas e passamos a noite no no. 4. Depois de arrumar a mesa — colocar os pedestais e os coletores em posição
- a sala de dissecação estava novamente pronta para funcionar.
Por dez dias nada aconteceu. Nossa vida indolente continuou Cada vez mais nossos guardas SS buscavam refugio na bebida. Era muito raro eles ficarem sóbrios
mais que alguns minutos por dia.
Uma noite, enquanto jantávamos, Mussfeld entrou cambaleando, debruçou-se sobre a mesa e disse: - Guten abend _ Gutert abend Jungs... Ihr werdet bald alie
kepieren, nachne aber kommen wir (Boa noite, crianças, logo vocês irão morrer mas depois nossa vez chegará..) Por essas palavras saídas dos lábios de um bêbado,
fiquei conhecendo a verdade que já suspeitava. Nossos guardas iriam sumir conosco.
Ofereci uma xícara de chá com rum ao Ober que a esvaziou tão rápido quanto eu a enchi, com uma satisfação infantil. Sentou-se em nossa mesa e, como se quisesse
descontar seu silêncio passado, começou a falar. Contou-nos como sua mulher havia morrido durante um raid aéreo e que seu filho estava na frente russa.
— Está tudo acabado — disse. — Os russos estão a menos de 40 quilômetros de Auschwitz. A Alemanha inteira está em êxodo pelas estradas. Todos estão abandonando
as áreas fronteiriças para buscar refúgio a oeste.
Suas palavras nos fizeram um bem enorme. E vendo o desespero do Ober, um raio de esperança começou a brilhar dentro de mim. Talvez, apesar de tudo, conseguíssemos
sair vivos daqui.
XXXV
CONDENADOS ÀQUELA região situada entre a esperança e o desespero, chegamos a 1º. de janeiro de 1945. A neve cobria a paisagem até onde a vista podia alcançar.
Saí do crematório para dar um pequeno passeio pelo pátio.
De repente, o barulho de um potente motor alcançou meus ouvidos e um minuto mais tarde um enorme caminhão marrom apareceu. Usado para transportar prisioneiros,
esse caminhão era chamado de "Brown Toni" (Toni Marrom) pelos deportados, porque era pintado todo de marrom-escuro. Um oficial grandalhão saltou de dentro dele.
Não podia deixar de reconhecer o Dr. Klein, major SS, um dos mais sanguinários carrascos do KZ. Fiquei em posição de sentido e saudei-o como de costume. Ele havia
trazido uns 100 prisioneiros do barracão no. 10, isto é, da prisão.
— Aqui está algum trabalho para começar o Ano Novo — disse ele, dirigindo-se ao Ober que se apressara a vir saudá-lo.
O Ober estava tão bêbado que mal se agüentava de pé. Aparentemente tinha celebrado demais o Ano Novo. Quem sabe, se não estava tentando fugir do fim iminente
que o aguardava? De qualquer forma, era evidente que não ficou nada satisfeito ao saber que tinha de sujar as mãos de sangue logo no primeiro dia do ano. Cem prisioneiros
poloneses, cristãos, trazidos para cá para serem assassinados. Guardas SS os levaram para a sala das fornalhas e ordenaram que se despissem imediatamente.
O Dr. Klein e o Ober, enquanto isso, davam um passeio pelo pátio.
Corri até a sala onde estavam os prisioneiros e comecei a perguntar-lhes sobre os motivos de suas prisões. Um deles disse-me que havia dado abrigo a um parente
em Krakau. A Gestapo acusou-o de ajudar a Resistência e levou-o a julgamento pela Corte Marcial. Enquanto aguardava a sentença, foi enviado para o barracão n» 10.
Embora ainda não soubesse, a Corte já o havia condenado à morte. Por isso ele estava ali. Sua impressão, no entanto, era de que tinha sido trazido para tomar um
banho de chuveiro antes de ser enviado para os trabalhos forçados.
Um outro foi preso por haver estimulado a inflação. Uma falta grave, sem dúvida. Mas o que exatamente ele fez? Simplesmente comprou um pouco de manteiga
no mercado negro. Um terceiro foi preso por estar perambulando pela zona proibida. Acusaram-no de ser espião da Resistência. E a história se repetia a todas as minhas
perguntas: pequenos deslizes transformados em crimes sem perdão.
Agora que não havia mais Sonderkommando, os guardas SS conduziram os prisioneiros para diante do revólver do Ober.
Novamente o barulho do Brow Toni. Cem novas vítimas chegavam, todas mulheres bem vestidas. Foram enviadas para a mesma_ sala onde, minutos antes, os homens
tinham se despido. Então, uma a uma as mulheres foram levadas para o revólver do Ober. Elas também eram polonesas c cristãs; elas também pagaram com a vida por infrações
insignificantes.
Assim que se certificou que o trabalho havia sido executado, o Dr. Klein deixou o crematório. Não havia nada de contraditório entre a ordem de 17 de novembro
proibindo a prática da morte violenta e o extermínio de hoje. Ao contrário, tudo que os SS fizeram foi cumprir as sentenças ditadas por um tribunal.
XXXVI
MEUS DIAS TRANSCORRIAM calmamente sem interrupção. Ouvi rumores de que o Dr. Mengele havia abandonado Auschwitz. O KZ tinha um novo médico e, o que era mais
importante, de agora em diante o local não seria mais chamado de KZ, mas sim de Arbeitslager isto é, Campo de Trabalho. Tudo estava desmoronando e caindo aos pedaços.
No dia l de janeiro chegou-me às mãos, casualmente, um jornal que noticiava o começo da ofensiva russa. O barulho da artilharia estremecia as janelas; a
linha de fogo ia ficando cada vez mais próxima. A 17 de janeiro, fui mais cedo para a cama, embora não estivesse cansado. Queria ficar sozinho com meus pensamentos.
Aquecido pelo calor agradável do fogão de lenha, eu logo adormeci.
Devia ser meia-noite quando fui acordado por uma série de violentos estrondos, rajadas de metralhadoras e clarões estonteantes. Ouvi o barulho de portas
batendo e de correrias nas corredores. As luzes da sala de incineração estavam acesas e as portas dos alojamentos SS escancaradas, testemunhando a rapidez de sua
partida.
Os pesados portões do crematório também estavam abertos. Nenhum guarda à vista. Olhei rapidamente para as torres de vigia. Pela primeira vez em meses estavam
vazias. Corri de volta para avisar meus companheiros. Vestimo-nos apressadamente e nos preparamos para a grande jornada. Os SS haviam fugido. Não ficaríamos aqui
nem mais um minuto, aqui onde durante oito meses a morte rondara nossas cabeças a cada minuto, a cada hora. Não devíamos esperar pelos russos, uma vez que os SS
da retaguarda poderiam nos encontrar e não hesitariam em matar-nos. Felizmente, tínhamos excelentes roupas — suéteres, capas, sapatos — que eram de grande valia,
pois a temperatura lá fora descia a pelo menos 10 abaixo de zero. Cada um levou algumas latas de comida e enchemos os bolsos de cigarros e remédios.
Partimos sentindo a sensação febricitante da liberdade. Direção: o KZ de Birkenau a dois quilômetros dos crematórios. Labaredas dançavam no horizonte, à
altura de Birkenau. Provavelmente o KZ estava em chamas.
Cruzando a sala de incineração, passamos em frente à sala onde era guardado todo o ouro do KZ. Caixas contendo fortunas incalculáveis ainda permaneciam lá,
mas nem mesmo pensamos em parar para pegar alguma coisa. De que servia o dinheiro quando a própria vida estava em jogo? Nós aprendemos que tudo é efêmero e que nenhum
valor é absoluto. A única exceção à regra: a liberdade.
Saímos pelo portão principal. Ninguém nos deteve. A mudança abrupta parecia inacreditável. Nosso caminho nos conduzia através da pequena floresta de Birkenau,
cujas árvores estavam cobertas por uma grossa camada de neve. O mesmo caminho que conduzira milhões para a morte... Passamos ao lado da rampa dos judeus, enterrada
sob a neve. Daqui eles desciam dos vagões para a seleção... A imagem das duas colunas, a da esquerda e a da direita, separadas para sempre, veio imediatamente aos
meus olhos. Mas para todos eles, a questão tinha sido simplesmente de ordem cronológica: agora estavam todos mortos.
Sim, o KZ de Birkenau estava em chamas. Alguns dos aposentos dos SS, onde eram guardados os registros e documentos, estavam pegando fogo. Uma multidão de
talvez umas três mil pessoas foi reunida em frente ao campo e esperava pela ordem de iniciar a marcha. Sem pensar duas vezes, juntei-me a eles. Ninguém me conhecia.
Aqui eu não era mais o portador de segredos mortais, não era mais um membro do Sonderkommando e, conseqüentemente, não tinha obrigatoriamente que morrer. Aqui eu
era apenas outro prisioneiro perdido na multidão. Parecia-me ser esta a melhor solução. Meus colegas concordaram com minha decisão. Todos estavam fugindo de Birkenau,
mas eu achava muito improvável que conseguissem nos levar muito longe. Em um dia ou dois, os russos nos alcançariam. Antes, porém, que isso acontecesse os SS iriam
desertar. Enquanto isso, o melhor que tínhamos a fazer era caminhar com os outros entre as duas linhas de fogo.
Era uma hora da manhã. O último SS tinha abandonado o campo. Ele fechou os portões de ferro e cortou a luz. Birlkenau, o enorme cemitério do judaísmo europeu,
mergulhou nas trevas. Meus olhos percorreram por um longo momento as linhas de arame farpado do campo e as silhuetas dos barracões. Adeus cemitério de milhões, cemitério
sem um único túmulo!
Iniciamos a marcha ladeados por uma companhia de SS. Discutimos com nossos amigos recentes tudo que estava acontecendo, e o que poderia acontecer agora,
tentando desvendar o que o futuro nos traria. Conseguiriam os SS nos levar para nova prisão? Ou, como esperávamos, desertariam no meio do caminho?
Tínhamos caminhado aproximadamente cinco quilômetros quando nosso flanco esquerdo tornou-se alvo de um fogo mortal. A guarda avançada russa nos vira e, tomando-nos
por uma coluna militar, abrira fogo. Estavam usando submetralhadoras e o apoio de um tanque leve. Os SS responderam ao fogo, e gritaram para que nos jogássemos ao
chão. Rastejamos até umas valas no outro lado da estrada. A fuzilaria estava pesada de ambos os lados. Então, num instante, tudo se aquietou novamente e continuamos
nossa jornada através da terra estéril e coberta de neve da Silésia.
Pouco a pouco o sol começou a aparecer. Calculei que tínhamos percorrido uns 15 quilômetros durante a noite. Mas ainda marchávamos sobre a neve mole. Por
todo o caminho notei vasilhas, lençóis, sapatos de madeira, abandonados pelas mulheres que nos haviam precedido.
Alguns quilômetros adiante, deparamos com uma visão muito mais consternadora: de dez em dez metros, um corpo ensangüentado jazia na vala ao lado da estrada.
Durante quilômetros e quilômetros a cena se repetia: um rastro de cadáveres. Exaustos, ficaram incapazes de dar sequer um passo a mais; quando se afastavam das fileiras,
os SS os despachavam com uma bala na cabeça.
Assim, eu infelizmente não deixara os crimes e a violência para trás. Ao que parecia os SS tinham ordens de não deixar ninguém para trás com vida. Um pensamento
desencorajador.
A visão daqueles corpos impressionou profundamente a todos nós, e apressamos o passo. Caminhar significava viver.
Agora os primeiros tiros começaram a se ouvir no nosso comboio também. Os corpos de dois companheiros de sofrimento caíram nas valas. Impotentes para dar
sequer um passo, eles haviam se sentado: uma bala na nuca. Não se passavam dez minutos sem que se repetisse a cena.
Por volta de meio-dia, alcançamos Plesow, onde fizemos nossa primeira parada. Passamos uma hora num estádio de futebol. Todos que tinham algo para comer,
comeram um pouco. Fumamos um cigarro e então retomamos a marcha através da estrada nevada, sentindo-nos bastante revigorados. Uma semana se passou, duas semanas
se passaram, mas ainda caminhávamos. Durante vinte dias andamos até que, finalmente, alcançamos uma estação ferroviária. Ao todo, havíamos coberto mais de duzentos
quilômetros, não tendo praticamente nada para comer nessas três semanas. À noite, dormíamos ao relento, sob o frio cortante. Quando chegamos a Ratibor, somente dois
mil de nós foram contados. Aproximadamente mil tinham sido fuzilados ao longo do caminho. Por isso todos nos sentimos muito aliviados ao ver os vagões à nossa espera.
Subimos para os vagões e depois de uma noite inteira de espera começamos a rodar. A viagem durou cinco dias. Não contei o número de companheiros que morreram
congelados. O que sei é que somente mil e quinhentos chegaram ao destino — o KZ Mauthausen. Alguns dos quinhentos que faltavam não estavam mortos, pois houve alguns
que, tirando partido da situação escaparam do comboio.
XXXVII
O KZ DE MAUTHAUSEN ficava no topo de uma colina, dominando a cidade do mesmo nome. Esse campo de extermínio, que parecia uma cidade fortificada, foi feito
com blocos de granito. Com seus bastiões, suas torres e vigias, parecia mais um castelo medieval.
Aquela teria sido uma imagem rara e maravilhosa se as pedras estivessem cobertas com líquens centenários ou acinzentadas pelo embate constante do vento,
da chuva e da neve através dos anos. Mas não, sua fachada era de um branco ofuscante que destoava da paisagem em redor, composta de florestas escuras. Pois o "castelo"
tinha sido construído há pouco tempo, e suas paredes ainda não estavam marcadas com a austera beleza das antigas construções. O III Reich mandara construí-lo para
servir de KZ. Quarenta mil republicanos espanhóis, refugiados na França, para aqui haviam sido trazidos depois da ocupação, assim como centenas de milhares de judeus
alemães. Foram eles que trabalharam nas pedreiras de Mauthausen, cortando os blocos de granito. Foram eles que carregaram as pedras, depois de cortadas, pelos sete
quilômetros montanha acima, onde antes somente carneiros selvagens pastavam. E foram eles que construíram as poderosas paredes que circundavam sua casa de penitência
composta de barracões de madeira. Eles terminaram o castelo ao preço de um sofrimento inacreditável. Sob o peso dessa grande massa de pedra e concreto, todos acabaram
perecendo, como os escravos do Antigo Egito.
O campo, porém, não permaneceu desocupado por muito tempo. Milhares dos que lutaram na Resistência Iugoslava assim como os membros de todos os movimentos
de Resistência da Europa —7 e naturalmente a raça condenada, os judeus, — foram confinados aqui, abarrotando os barracões da imensa fortaleza. Aqui viveram durante
o breve período que precedeu a sua morte.
Agora, outro comboio, dizimado pela longa viagem e pelo frio insuportável, vagarosamente subia o árduo caminho coberto de neve, montanha acima. Estávamos
já sem forças, mas finalmente transpusemos os portões do KZ e formamos sob a tênue luz do poente no "Appelplatz".
Olhei em volta à procura de meus companheiros. Fisher, o assistente de laboratório, não estava presente. Não o tinha mais visto desde Plesow. Lá, ainda o
vira deitado na neve, completamente exausto. Pela sua contraída expressão facial, suspeitei que seu fim estava próximo. Ele tinha cinqüenta e cinco anos e passara
cinco no KZ, assim, não era de admirar que seu organismo não suportasse a longa caminhada e o frio. O Dr. Korner estava em bom estado, mas por outro lado, o Dr.
Gorog parecia-me em estado crítico. Seus problemas mentais haviam-se agravado, e mesmo nos dias de crematório, manter sua condição em segredo tinha sido fonte constante
de preocupação para mim. Fiz o que pude para evitar que seu estado chegasse ao conhecimento do Dr. Mengele. Mussfeld também chegou perto. Se qualquer um dos dois
percebesse o que se passava com ele, sua vida não valeria um centavo.
Antes de sairmos do crematório, ele me informara de seus últimos desejos.
— Nicholas, — falou — você é um homem forte e um dia vai conseguir sair daqui com vida. Quanto a mim, sei que estou acabado. — Tentei protestar, mas ele
não prestou atenção a minhas palavras de encorajamento, e prosseguiu: — Tenho provas de que minha mulher e minha filha morreram na câmara de gás. Mas meu filho de
doze anos ficou bem guardado com os monges do mosteiro de Koszeg. Se um dia você voltar para casa, procure-o e cuide dele como se fosse seu. Estou dizendo isso de
posse completa de todas as minhas faculdades mentais, com a consciência de que não viverei muito.
Prometi fazer tudo que me pediu no caso de escapar e ele não.
Agora, felizmente, ele havia deixado o local da morte certa para trás. Morrer agora, tão perto do fim do caminho, no momento em que a esperança de liberdade
enchia nossos corações, seria realmente trágico demais.
Depois da tradicional chamada, fomos enviados através de um caminho tortuoso para os banhos. Lá encontramos grupos de recém-chegados de outros campos: devia
haver aproximadamente uns dez mil amontoados naquele pequeno espaço. Um vento forte assoviava entre os muros do castelo. A montanha na qual o campo estava encravado
assinalava o começo dos Alpes e os invernos aqui eram extremamente rigorosos. Soubemos que seriamos levados para os banhos em grupos de quarenta. De qualquer modo,
calculei que levaria no mínimo três dias para todos tomarem banho.
Os guardas que serviam aqui tinham sido recrutados entre os criminosos alemães, homens que cumpriam pena por assassinato, assaltos e coisas do gênero. Nem
era preciso dizer que eram servidores fiéis dos SS. Agora, seu trabalho consistia em agrupar os deportados para o banho. Os prisioneiros arianos eram os primeiros.
Na verdade, aqui havia tantos arianos que cheguei a pensar que os judeus não se banhariam antes do terceiro dia. Esperar tanto tempo tornou-se caso de vida ou morte,
pois um prisioneiro não podia entrar nos barracões ou ser inscrito na lista dos que receberiam rações sem primeiro passar pelo banho. Para uma pessoa que já estava
exausta, uma espera de dois dias sem comida significaria praticamente morte certa, pois ou suas pernas fraquejariam ou seus olhos se fechariam de sono e ele afundaria
na neve fofa para nunca mais se levantar. Dezenas de prisioneiros já estavam estirados na neve à minha volta. Ninguém lhes prestava a mínima atenção pois cada um
estava fazendo o possível e o impossível para continuar vivo. Esta era a nossa última arrancada em direção à meta final — a Vida.
Refletindo sobre a minha situação, decidi que não podia passar a noite ao relento sem colocar em jogo minhas já precárias chances de sobrevivência. Tinha
que ir aos banhos naquele dia. Pobre Dênis, vagava sem rumo, sem o chapéu, sem os óculos, como um sonâmbulo. Seu olhar estava parado e murmurava palavras ininteligíveis
à medida que cambaleava sobre a neve. Peguei-o pelo braço e arrastei-o comigo, na esperança de que, de alguma maneira, conseguíssemos chegar aos banhos. Mas antes
que tivéssemos avançado alguns passos, nós no perdemos um do outro na incrível massa de deportados.
Chamei-o pelo nome, gritando com todas as forças dos pulmões, sem resultado. O vento estava tão forte que eu mal ouvia minha própria voz. Pressentindo o
perigo, abri caminho no meio da multidão e aproximei-me dos degraus que conduziam aos banheiros. Finalmente, consegui atingir a fileira da frente. Vários SS, armados
de cassetetes de borracha, estavam guardando a entrada. Um grupo de quarenta pessoas aguardava para entrar. Eram todos arianos.
Novamente tomei uma decisão instantânea. Saindo do meio da massa humana, aproximei-me de um Oberschaarfuhrer e dirigi-me a ele no tom de voz mais firme que
consegui arranjar:
— Her Oberschaarfuhrer, sou o médico do comboio de Auschwitz. Deixe-me entrar.
Olhou-me de cima a baixo. Minhas roupas respeitáveis, talvez minha maneira determinada de falar ou mais ainda meu perfeito domínio do alemão pareceram causar
uma forte impressão nele. Virou-se para seus colegas postados mais próximos à entrada, e falou:
— Deixem entrar o doutor.
Desci sozinho, precedendo o primeiro grupo de quarenta que esperava no alto da escada para entrar. Salvo! E como fora fácil! Às vezes vale muito mais a pena
decidir as coisas em meio ao turbilhão dos acontecimentos.
O ar quente dos banhos logo veio trazer novas forças para as minhas pernas quase congeladas. Após dias e dias de frio intenso, enfim um lugar quente! O banho
em si me fez um tremendo bem. Nossas roupas foram consideradas contaminadas e, por isso, tivemos de abandoná-las. Senti muito ter de largar meu casaco, minha camisa
e a suéter de lã mas, pelo menos, fiquei feliz em constatar que podia ficar com os sapatos. Um bom par de sapatos poderia facilmente ser a diferença entre a vida
e a morte no KZ.
Calcei novamente os sapatos e juntei-me ao grupo que havia acabado de tomar banho. Ainda despido, voltamos pelo caminho que nos conduziu aos chuveiros e
esperamos durante meia hora até que houvesse gente suficiente para encher todo um barracão. Depois de um banho quente, permanecer sob aquele vento gelado, com a
temperatura beirando o zero, era flertar com a morte.
Logo em seguida, outro grupo de quarenta juntou-se a nós e então pudemos partir para o barracão. Os guardas SS obrigaram-nos a marchar acelerado, mas apenas
trinta metros depois chegamos ao barracão trinta e três do campo de quarentena.
Um prisioneiro, usando o distintivo verde dos criminosos comuns, estava colocado em frente à porta de entrada: era o chefe do nosso barracão. Entregou a
cada um pequeno pedaço de pão; um pouco adiante, outro funcionário passou um punhado de margarina feita de gordura de carne sobre o nosso naco de pão. Recebemos
também um golinho de café quente.
Após dez dias de privações, aquilo parecia um banquete real. De posse da comida, procurei um lugar para ficar e finalmente me ajeitei num canto onde achei
que minhas chances de ser pisoteado seriam menores. Deitei no chão, pois não havia camas no campo de quarentena. Apesar de tudo, dormi pesadamente até a alvorada.
Ao acordar, meus primeiros pensamentos foram para aqueles que provavelmente ainda estavam do lado de fora, congelando-se e aguardando pelos banhos.
Permanecemos no barracão durante três dias, sem ter nada que fazer. A comida não era tão má e, de certa forma, tínhamos condições de nos recuperar da penosa
marcha de três semanas.
No terceiro dia de nossa estada, chegou um oficial SS acompanhado de um general. Visitaram o barracão e ordenaram a todos que tinham pertencido ao KZ de
Auschwitz que dessem um passo à frente.
Meu sangue congelou-se nas veias. Os alemães eram uma gente metódica e, sem dúvida, tinham uma lista contendo o nome e o número daqueles que trabalharam
em Auschwitz. Pareceu-me provável. E assim, pensando sobre isso, cheguei à conclusão de que se tratava simplesmente de um ardil para tentar destacar da massa aqueles
capazes de revelar os sórdidos mistérios dos crematórios. Se realmente tivessem uma lista, tudo que precisavam fazer era conferir com os números tatuados. Ninguém
me conhecia aqui. Esperei, o sangue latejando nas minhas orelhas; fez-se o silêncio total no barracão. Depois de alguns segundos, eles partiram. Eu havia vencido
outra vez. Novamente a foice da morte passara sobre a minha cabeça sem me atingir.
Naquela noite, recebemos o uniforme listrado dos prisioneiros e fomos levados pelo caminho da montanha para a estação de Mauthausen. Lá, fomos empacotados
nos inevitáveis vagões, sete mil almas ao todo, e enviados para o campo de concentração de Melk an der Donau. Desta vez, o trajeto era curto e, para variar, fomos
imprensados como sardinha mas apesar disso havia espaço para sentar. Três horas depois de termos subido nos vagões, o trem parou e nós descemos.
O KZ de Melk, assim como o de Mauthausen, ficava no alto de uma colina, dominando a povoação do lugar. Originalmente fora um presídio comum, com o nome de
Freiherr Von Birabo, e seus imensos alojamentos eram suficientes para acomodar quinze mil criminosos de uma só vez. A beleza da paisagem minimizou nossa dor e desconforto:
o enorme mosteiro barroco, encravado na rocha, e o curso sinuoso do Danúbio formavam um quadro de inesquecível beleza. O Danúbio era o rio que associávamos com nossos
lares, nossas pátrias. Ao vê-lo agora, uma sensação de proximidade se apoderou de todos nós.
XXXVIII
A PRIMAVERA DE 1945 chegou mais cedo. Estávamos no começo de abril e as árvores que flanqueavam as valas em frente as cercas de arame farpado já estavam
totalmente verdes. Nos bancos do Danúbio, um tapete verde substituiu a neve da qual somente pequenas manchas sobraram para nos relembrar o rigoroso inverno que havíamos
enfrentado.
Oito semanas se passaram desde que cheguei ao KZ e períodos bons e maus se alternaram, mas essa experiência solapou minhas forças, deixou-me cansado e fraco.
Somente a esperança da libertação próxima impediu-me de cair num estado de letargia e indiferença.
Aqui tudo era desintegrador. A fase final do colapso do III Keich estava se desenrolando diante de nossos olhos. Exércitos derrotados passavam em colunas
intermináveis em direção ao interior do país, já reduzido a ruínas carbonizadas. No Danúbio, cujas águas voltaram a fluir depois de derretido o gelo, centenas de
barcos e barcaças desciam, transportando os habitantes das cidades que estavam sendo evacuadas. O sonho do Reich, de mil anos, estava desmoronando. A convicção de
um povo nascido para comandar de que era a Raça Superior estava se desvanecendo amargamente. Os povos da Europa ávidos de liberdade, não mais viviam sob o medo de
que sua cidade ou aldeia pudesse, por um simples capricho do conquistador, ser varrida do mapa. Não havia mais o perigo de ver suas casas saqueadas, de se verem
a si próprios despojados de seus pertences, de sentir a ponta fina da agulha tatuar números em seus braços, de serem embarcados para os campos de trabalhos forçados
e guardados por cães policiais e tropas SS.
Os piromanícos do III Reich estavam agora interpretando a cena final no palco do mundo: eles, que haviam incendiado o mundo, estavam sucumbindo sob suas
próprias chamas. O homem vaidoso, cujas palavras Deutschland Über Alies tinham sido ouvidas nos mais distantes confins do planeta, estava agora tremendo em seu bunker
subterrâeno. O orgulho incomensurável do III Reich tinha sido quebrado pela colaboração dos povos não ávidos de conquista, mas sim de liberdade.
A sete de abril de 1945, a cadeia de luzes que, do alto dos postes, iluminava o KZ, não foi acesa ao cair da noite. A escuridão e o silêncio envolveram todo
o lugar. O campo foi abandonado e o portão fechado. Os sete mil prisioneiros tinham sido levados para o interior do país, primeiro em barcos, depois pelas estradas
junto com os refugiados. Durante sete longos dias e noites, viajamos até que, finalmente, chegamos a nosso destino, o campo de concentração de Ebensee, o quarto
KZ cujos portões eu atravessei.
Logo após a chegada, a inevitável e interminável chamada. Depois os banhos. E então, novamente, o campo de quarentena, com suas barracas imundas, seus guardas
armados de cassetetes de borracha e o chão duro. Indiferentemente submeti-me a essas três fases costumeiras. Durante a chamada soprou um vento frio, caindo uma chuva
torrencial que empapou minhas roupas. A amargura tomou conta de mim. Sabia que era somente questão de dias até que fôssemos libertados, porém, no momento, ainda
estávamos vivendo num mundo de confusão e indecisão. E assim, quando o momento da decisão finalmente chegasse, seria talvez uma hora dolorosa para todos nós. O fim
de nosso cativeiro poderia muito bem se transformar numa tragédia sangrenta: eles certamente nos matariam antes que a hora H chegasse.
Após doze meses de prisão, num tempo em que todas as leis deixaram de existir, um tal fim estaria, sem dúvida, coerente com os costumes do Terceiro Reich.
Mas esse não foi o caso. A 5 de maio, uma bandeira branca tremulou na torre de vigia de Ebensee. Estava tudo acabado. Eles haviam deposto as armas. O sol
brilhava no alto quando, às nove horas, um tanque leve americano, dirigido por três soldados, chegou e tomou posse do campo.
Nós estávamos livres.
EPÍLOGO
DOENTE DO CORAÇÃO e fisicamente enfermo, iniciei a longa viagem de volta a casa. Não foi nada agradável: para onde quer que olhasse, via lugares que antes
eram cidades florescentes e que agora não passavam de ruínas fumegantes, e túmulos coletivos pontilhados de dezenas de cruzes brancas.
Temia a verdade, apavorava-me a idéia de retornar a um lar vazio, a uma casa despojada, a uma casa onde nem pai, nem esposa, nem filha, nem irmã estariam
esperando para saudar-me com carinho e afeição. Perseguição e dor, os horrores do crematório e das piras funerárias, meus oito meses no kommando dos mortos-vivos,
tudo isso havia embrutecido meu senso do bom e do mau.
Senti que precisava repousar, tentar recuperar as forças. Mas continuava a me perguntar, para quê? Por um lado, as enfermidades me corroiam o corpo, por
outro meu passado sangrento me congelava o coração. Meus olhos tinham seguido um número incontável de almas inocentes em seu caminho para as câmaras de gás, testemunharam
o espetáculo inacreditável das piras funerárias. E eu mesmo, executando as ordens de um médico demente, havia dissecado centenas de corpos para que uma ciência,
baseada em falsas teorias, pudesse se beneficiar com as mortes daqueles milhões de vítimas. Eu havia retalhado a carne de jovens saudáveis e preparado alimento para
as culturas bacteriológicas daquele louco. Havia mergulhado os corpos de anões e aleijados em cloreto de cálcio ou então colocara-os a cozinhar para que os esqueletos,
cuidadosamente preparados, pudessem chegar aos museus do III Reich para justificar, para futuras gerações, a destruição de toda uma raça. E mesmo que tudo isso agora
fizesse parte de um passado, eu ainda teria que conviver com esses fantasmas nos meus pensamentos, nos meus sonhos. Jamais conseguiria apagar essas lembranças da
minha memória.
Pelo menos duas vezes havia sentido as asas da morte roçarem em mim: uma vez prostrado no chão, em companhia de SS treinados na arte da execução sumária,
prontos para executarem seu trabalho, escapei ileso. Três mil de meus companheiros, que também tinham conhecimento dos terríveis segredos do crematório, não tiveram
a mesma sorte. Marchei por centenas de quilômetros através de campos de neve, lutando contra o frio, a fome e meu próprio cansaço, simplesmente para chegar a outro
campo de concentração. A estrada que percorri, sem dúvida, foi bastante longa.
Agora, de volta a casa, nada. Vagava sem rumo pelos aposentos silenciosos. Livre, mas não do meu passado sangrento, não do luto profundo que enchia minha
mente e ameaçava minha sanidade. E o futuro parecia da mesma forma tão obscuro. Perambulei como meu próprio fantasma, uma figura penada nas ruas uma vez tão familiares.
As únicas vezes que algo conseguiu sacudir-me de meu estado de letargia e depressão, foi quando, por engano, pensei ter visto, por um breve segundo, algum conhecido
ou membro de minha família.
Uma tarde, várias semanas após meu retorno, sentia muito frio e, por isso, sentei perto da lareira, esperando usufruir do pequeno conforto que o calor alegre
das brasas emprestava ao aposento. Estava ficando tarde; a noite já caía. A campainha da porta arrancou-me de meus pensamentos. Antes que pudesse levantar-me, minha
esposa e minha filha irromperam pela sala!
Estavam com boa saúde e tinham sido libertadas de Bergen--Belsen, um dos campos de extermínio mais famosos do III Reich. Mas aquilo foi tudo que conseguiram
me dizer antes de cair num choro convulso. Durante horas e horas soluçaram incontrolavelmente. Eu me contentei simplesmente em tê-las nos braços, enquanto a torrente
de sua dor fluía de suas mentes e de seus corações torturados. Pouco a pouco, sobrevieram os soluços, uma linguagem que me era muito familiar.
Tínhamos muito que fazer, muito para contar, muito para reconstruir. Sabia que levaria muito tempo e uma paciência infinita antes que pudéssemos retornar
ao que se chama de vida normal. Mas tudo que importava era que estávamos vivos... e juntos novamente. A vida havia de repente readquirido significação. Eu voltaria
a clinicar, sem dúvida... Mas jurei que, enquanto vivesse, jamais abriria um corpo.
3 . O campo de quarentena era uma área na qual os prisioneiros selecionados para a coluna da direita eram primeiramente mandados. Ficavam lá até que tomassem
banho, fossem desinfetados e raspados. Depois de trocar as roupas civis pelo uniforme de prisioneiro eram enviados às várias seções do campo.
4 Rudolf Hess, comandante do campo, testemunhando em Nuremberg, declarou que o campo chegava a ter 140.000 prisioneiros, sendo essa sua capacidade máxima.
5 Kapo é a abreviatura de Kamaradaschafs Polizei. O frapo-em-chefe era geralmente um prisioneiro alemão cumprindo pena por algum delito não-político.
Poucos tentavam abrandar o sofrimento de seus companheiros de prisão, mas a maioria era servidora fiel dos SS.
6 O Dr. Nyiszli foi para os Estados Unidos no verão de 1939 e ficou até fevereiro de 1940, como membro da delegação romena para a Feira Mundial. Ele pretendia levar
toda sua família e estabelecer-se nos Estados Unidos. Mas durante sua estada, estourou a guerra e teve de voltar para junto da família. Uma vez de volta, foi impossível
deixar o país. Como resultado, Auschwitz.
7 Em resposta ao inquérito concernente à origem e composição do gás ciclon, o Dr. Nyiszli escreveu que ele era fabricado, durante a guerra, pela I. G.
Farben Co., e que, embora fosse classificado como gucheim-mittel, isto é, confidencial ou secreto, ele conseguiu descobrir que o nome "ciclon" vem da abreviatura
de seus elementos essenciais: cíanido, cloro e nitrogênio. Durante o julgamento de Nuremberg, a Farben alegou que o gás era fabricado somente como desinfetante.
Mas o Dr. Nyiszli fez questão de realçar em seu testemunho que havia dois tipos de ciclon, o tipo A e o tipo B. Eles vinham em caixas idênticas, somente as letras
A e B os diferenciavam. O tipo A era desinfetante e o B usado para exterminar milhões.Suas localizações eram um segredo, mas o medo que despertavam era bem conhecido por russos, lituanos, poloneses, armênios e outros tantos que viveram sob a influência
da antiga União Soviética. Os campos de concentração do Gulag - literalmente acrônimo para Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou "Administração Central dos Campos", palavra
que por fim passou a descrever todo o sistema soviético de punição e trabalhos forçados voltado a prisioneiros criminais e políticos, crianças e mulheres - espalhavam-se
por todo o país, da gélida Sibéria às inóspitas regiões da Ásia Central, passando pelas florestas dos Urais e os subúrbios de Moscou. Eles surgiram antes mesmo de
seus infames contrapartes nazistas como Auschwitz, Sobibor e Treblinka, e continuaram a crescer muito tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas só agora,
após o colapso do comunismo, a história desse sistema de repressão e punição que aterrorizou milhões vem à luz com toda a sua força.
Embora a existência desses campos já fosse conhecida no Ocidente graças a clássicos como Um dia na vida de Ivan Denisovitch e Arquipélago Gulag, do dissidente Alexander
Soljenitsin, é com esse premiado trabalho de Anne Applebaum que temos o primeiro retrato completo e acurado de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade.
Longe de se limitar à frieza dos documentos oficiais, finalmente acessíveis, Applebaum enriquece a história com entrevistas e relatos de sobreviventes, que se sobressaem
não só pela força da prosa, mas também pela capacidade de sondar abaixo da superfície do horror cotidiano.
Anne Applebaum
Este livro é dedicado àqueles que descreveram o que aconteceu.
Nos anos pavorosos do terror de Yezhov, passei dezessete meses esperando na fila do lado de fora da prisão de Leningrado. Um dia, alguém na multidão me identificou.
Em pé atrás de mim, estava uma mulher, de lábios azulados de frio, que, é claro, nunca antes me ouvira ser chamada pelo nome. Agora, ela de repente saía de nosso
torpor habitual e me perguntava num sussurro (ali, todo o mundo sussurrava): "A senhora consegue descrever isto?"
Respondi que conseguia.
Nisto, algo semelhante a um sorriso passou rapidamente pelo que um dia fora seu rosto...
Atina Akhmatova, "À guisa de prefácio: réquiem, 1935-40"
Introdução
E o destino fez todos iguais
Fora dos limites da lei,
Filho de kulak ou comandante vermelho,
Filho de sacerdote ou comissário...
Aqui as classes eram todas igualadas,
Todos os homens eram irmãos, todos companheiros de campo,
Todos tachados de traidor...
Alexander Tvardovsky, "Por direito de memória"
Esta é uma história do Gulag - uma história da vasta rede de campos de trabalhos forçados que outrora se espalhavam por todo o comprimento e toda a largura da URSS,
das ilhas do mar Branco às costas do mar Negro, do Círculo Ártico às planícies da Ásia central, de Murmansk a Vorkuta e ao Cazaquistão, do centro de Moscou à periferia
de Leningrado. A palavra Gulag é um acrônimo de Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou Administração Central dos Campos. Com o tempo, passou também a indicar não só a administração
dos campos de concentração, mas também o próprio sistema soviético de trabalho escravo, em todas as suas formas e variedades: campos de trabalhos forçados, campos
punitivos, campos criminais e políticos, campos femininos, campos infantis, campos de trânsito. De modo ainda mais amplo, Gulag veio a significar todo o sistema
repressivo soviético, o conjunto de procedimentos que os presos outrora denominaram "o moedor de carne": as prisões, os interrogatórios, o traslado em vagões de
gado sem aquecimento, o trabalho forçado, a destruição de famílias, os anos de degredo, as mortes prematuras e desnecessárias.
O Gulag tinha precedentes na Rússia czarista, nas turmas de trabalho forçado que operaram na Sibéria desde o século XVII até o início do século XX. Quase imediatamente
após a Revolução Russa, ele assumiu sua forma moderna e mais familiar, tornando-se parte integral do sistema soviético. O terror em massa contra oponentes reais
ou pretensos foi parte da Revolução desde o começo - no verão de 1918, Lênin, o líder revolucionário, já exigira que "elementos indignos de confiança" fossem encarcerados
em campos de concentração fora das cidades principais. Uma enfiada de aristocratas, negociantes e outras pessoas definidas como "inimigos" em potencial foi devidamente
aprisionada. Em 1921, já havia 84 campos de concentração em 43 províncias, a maioria destinada a "reabilitar" esses primeiros inimigos do povo.
A partir de 1929, os campos adquiriram nova importância. Naquele ano, Stalin resolveu usar o trabalho forçado tanto para acelerar a industrialização da URSS quanto
para explorar os recursos naturais no extremo norte, quase inabitável, do país. Também naquele ano, a polícia secreta soviética começou a assumir o controle do sistema
penal soviético, lentamente arrebatando ao Judiciário todos os campos e prisões. Com o impulso das prisões em massa de 1937 e 1938, os campos entraram num período
de rápida expansão. No final da década de 1930, podiam ser encontrados em cada um dos doze fusos horários da URSS.
Ao contrário da idéia corrente, o Gulag não parou de crescer quando chegou o final dos anos 1930; ao invés disso, continuou a expandir-se durante toda a Segunda
Guerra Mundial e a década de 1940, atingindo seu apogeu no começo dos anos 50. Nessa época, os campos já desempenhavam papel crucial na economia soviética. Produziam
um terço do ouro do país, boa parte de seu carvão e madeira e muito de quase tudo o mais. No decorrer da existência da URSS, surgiram pelo menos 476 complexos distintos
de campos, consistindo em milhares de campos individuais, cada um dos quais tendo de algumas centenas a muitos milhares de pessoas. Os presos trabalhavam em quase
todas as atividades imagináveis - derrubada e corte de árvores, transporte dessa madeira, mineração, construção civil, manufatura, agropecuária, projeto de aviões
e peças de artilharia - e, na realidade, viviam num Estado dentro do Estado, quase numa civilização em separado. O Gulag tinha suas próprias leis, seus próprios
costumes, sua própria moralidade, até sua própria gíria. Gerou sua própria literatura, seus próprios vilões, seus próprios heróis, e deixou sua marca em todos os
que passaram por ele, fosse como presos, fosse como guardas. Anos depois de libertados, os habitantes do Gulag muitas vezes eram capazes de reconhecer ex-condenados
na rua, simplesmente pelo "olhar".
Tais encontros se mostravam freqüentes, pois a rotatividade nos campos era grande. Embora as prisões fossem constantes, as solturas também o eram. Presos eram libertados
porque cumpriam as sentenças, porque se deixava que fossem para o Exército Vermelho, porque eram inválidos ou mães com filhos pequenos, porque haviam sido promovidos
de cativos a guardas. Em conseqüência, o número total de prisioneiros nos campos costumava girar em torno de 2 milhões, mas o número total de cidadãos soviéticos
que tiveram alguma vivência dos campos, na condição de presos políticos ou comuns, é muito maior. De 1929, quando o Gulag iniciou sua maior expansão, a 1953, quando
Stalin morreu, as melhores estimativas indicam que cerca de 18 milhões de pessoas passaram por esse enorme sistema. Aproximadamente mais 6 milhões sofreram o degredo,
desterrados para os desertos cazaques ou as florestas siberianas. Legalmente obrigados a permanecer em suas aldeias de degredo, também eles eram galés, mesmo que
não tivessem de viver atrás do arame farpado.
Como sistema de trabalho forçado em massa que envolveu milhões de pessoas, os campos desapareceram com a morte de Stalin. Embora ele houvesse acreditado a vida toda
que o Gulag era essencial ao crescimento econômico soviético, seus herdeiros políticos bem sabiam que os campos, na realidade, eram um dos motivos para o atraso
nacional e a política de investimento deturpada. Dias após a morte de Stalin, seus sucessores começaram a desmantelá-los. Três grandes rebeliões, mais um sem-número
de incidentes menores porém não menos perigosos, ajudaram a acelerar o processo.
No entanto, os campos não desapareceram por completo. Em vez disso, eles evoluíram. Durante toda a década de 1970 e o começo da década de 80, alguns foram reformulados
e usados como cárcere para uma nova geração de ativistas democráticos, de nacionalistas anti-soviéticos - e de criminosos. Graças à rede de dissidentes soviéticos
e ao movimento internacional de direitos humanos, notícias sobre esses campos pós-stalinistas chegavam regularmente ao Ocidente. Aos poucos, elas começaram a desempenhar
um papel na diplomacia da Guerra Fria. Mesmo nos anos 1980, o presidente americano, Ronald Reagan, e seu equivalente soviético, Mikhail Gorbatchev, ainda discutiam
os campos da URSS. Gorbatchev - ele próprio neto de prisioneiros do Gulag - só começaria a dissolver os campos políticos em 1987.
Contudo, embora tenham durado tanto quanto a URSS e milhões de pessoas tenham passado por eles, a verdadeira história dos campos de concentração da União Soviética
não era de modo algum bem conhecida até recentemente. Mesmo os fatos concisos até aqui relacionados, ainda que já sejam familiares à maioria dos estudiosos ocidentais
da história soviética, não penetraram na consciência popular ocidental. "O conhecimento humano", escreveu Pierre Rigoulot, historiador francês do comunismo, "não
se acumula como os tijolos de uma parede, que se eleva gradualmente, acompanhando o trabalho do pedreiro. Seu desenvolvimento, mas também sua estagnação ou recuo,
depende da estrutura social, cultural e política."
Poder-se-ia dizer que, até agora, não existia a estrutura social, cultural e política para o conhecimento do Gulag.
A primeira vez que percebi esse problema foi vários anos atrás, quando caminhava pela Karluv Most, a ponte Carlos, grande atração turística em Praga, cidade que
acabava de redemocratizar-se. Ao longo da ponte, havia músicos de rua e garotas de programa, e mais ou menos a cada cinco metros alguém vendia exatamente o que se
esperaria encontrar à venda num cartão-postal tão perfeito. Expunham-se pinturas de ruas adequadamente bonitinhas, junto com pechinchas de bijuteria e com chaveiros
com a palavra "Praga". Em meio ao bricabraque, podia-se comprar parafernália militar soviética (quepes, insígnias, fivelas) e pequenos buttons, as imagens de Lênin
e Brejnev que os escolares soviéticos outrora prendiam nos uniformes.
A cena me pareceu estranha. A maioria dos que compravam esses objetos era de americanos ou europeus-ocidentais. Todos eles ficariam enojados com a idéia de usar
uma suástica. No entanto, ninguém ali fazia objeções a ostentar a foice e o martelo numa camiseta ou num boné. Foi um episódio menor, mas às vezes é justamente por
coisas assim que se observa melhor o clima cultural. Pois ali a lição não poderia ter sido mais clara: se o símbolo de uma matança nos enche de horror, o de outra
nos faz rir.
Se entre os turistas em Praga havia falta de sensibilidade sobre o stalinismo, isso em parte se explicava pela escassez de imagens sobre o tema na cultura popular
ocidental. A Guerra Fria produziu James Bond e thrillers, mais os russos de gibi do tipo que aparecem nos filmes de Rambo; nada, porém, tão ambicioso quanto A lista
de Schindler ou A escolha de Sofia. Steven Spielberg, provavelmente o principal diretor de Hollywood (gostem disso ou não), preferiu fazer filmes sobre campos de
concentração japoneses (Império do sol) e sobre campos de concentração nazistas, mas não sobre campos de concentração stalinistas. Esses últimos não conquistaram
da mesma maneira a imaginação de Hollywood.
A cultura dita elevada não se tem mostrado muito mais aberta ao sistema. A reputação do filósofo alemão Martin Heidegger foi profundamente prejudicada pelo breve
apoio explícito ao nazismo, um entusiasmo que se desenvolveu antes de Hitler ter cometido suas maiores atrocidades. Por outro lado, a reputação do filósofo francês
Jean-Paul Sartre não sofreu nada com o vigoroso apoio ao stalinismo durante todos os anos do pós-guerra, quando provas abundantes das atrocidades de Stalin estavam
disponíveis para qualquer interessado. "Já que não éramos membros do Partido", registrou Sartre, "não era obrigação nossa escrever sobre os campos soviéticos de
trabalhos forçados; desde que nenhum fato de importância sociológica tivesse ocorrido, estávamos livres para permanecer distantes das desavenças sobre a natureza
do sistema." Em outra ocasião, ele disse a Albert Camus: "Assim como você, acho esses campos execráveis, mas acho igualmente execrável o uso que todos os dias se
faz deles na imprensa burguesa".
Algumas coisas mudaram desde o colapso soviético. Em 2002, por exemplo, o romancista britânico Martin Amis sentiu-se afetado o suficiente pela questão de Stalin
e do stalinismo para dedicar a ela um livro inteiro. Seu trabalho levou outros autores a indagar por que tão poucos membros da direita política e literária mencionam
o tema. De outra parte, algumas coisas não mudaram. Para um acadêmico americano, (ainda) é possível publicar um livro que dê a entender que os expurgos dos anos
1930 foram úteis porque promoveram a mobilidade social e, assim, estabeleceram as bases para a perestroika. Para um editor de página literária britânica, (ainda)
é possível rejeitar um artigo porque este é "demasiado anti-soviético". Muito mais comum, entretanto, é a reação de fastio ou indiferença em face do terror stalinista.
A resenha (de resto franca) de um livro que escrevi nos anos 1990 sobre as repúblicas ocidentais da antiga URSS continha o seguinte trecho: "Ali ocorreu a fome da
década de 1930, na qual Stalin matou mais ucranianos do que Hitler assassinou judeus. No entanto, quanta gente no Ocidente se lembra disso? Afinal, a matança foi
tão... tão... maçante, aparentemente nada dramática".
São todas coisas pequenas: a compra de bugigangas, a reputação de um filósofo, a presença ou ausência de filmes de Hollywood. Mas junte-as todas e terá uma história.
Intelectualmente, americanos e europeus-ocidentais sabem o que aconteceu na URSS. Em 1962-3, Um dia na vida de Ivan Denisovich, o aclamado romance de Alexander Soljenitsin
sobre a vida nos campos, foi publicado no Ocidente em diversas línguas. Em 1973, Arquipélago Gulag, a história oral dos campos que Soljenitsin escreveu, tornou-se
motivo de muito comentário quando lançado, de novo em vários idiomas. De fato, Arquipélago Gulag causou uma pequena revolução intelectual em alguns países, sobretudo
na França, convertendo a uma posição anti-soviética segmentos inteiros da esquerda daquele país. Durante a década de 1980 - os anos da glasnost -, fizeram-se muito
mais revelações sobre o Gulag, e também elas receberam a devida publicidade no exterior.
Para muitas pessoas, porém, os crimes de Stalin não inspiram a mesma reação visceral que os de Hitler. Certa vez, o ex-parlamentar britânico Ken Livingstone, hoje
prefeito de Londres, forcejou para explicar-me a diferença. E, os nazistas eram "perversos". Mas a URSS fora "desvirtuada". Essa visão reflete o sentimento de muitas
pessoas, mesmo daquelas que não são esquerdistas à moda antiga: de alguma forma, a URSS simplesmente deu errado, mas ela não era fundamentalmente errada da maneira
que a Alemanha de Hitler o era.
Até recentemente, era possível explicar essa ausência de sentimento popular a respeito da tragédia do comunismo europeu como o resultado lógico de uma série específica
de circunstâncias. O passar do tempo é parte disso: com o decorrer dos anos, os regimes comunistas se tornaram mesmo menos repreensíveis. Ninguém ficava muito apavorado
com o general Jaruzelski, ou mesmo com Brejnev, embora ambos fossem responsáveis por um bocado de destruição. A falta de informações sólidas, embasadas em pesquisa
arquivai, também era claramente uma daquelas circunstâncias. Durante muito tempo, a escassez de trabalhos acadêmicos sobre o tema se deveu à escassez de fontes.
Arquivos estavam fechados aos interessados. O acesso aos locais dos campos era proibido. Nenhuma câmera de cinema ou TV jamais filmou os campos soviéticos nem as
vítimas deles, ao contrário do que os cinegrafistas tinham feito na Alemanha no fim da Segunda Guerra Mundial. Não dispor de nenhuma imagem correspondia a ter menos
entendimento da questão.
Mas a ideologia também distorceu o modo pelo qual compreendemos a história da URSS e da Europa oriental. A partir dos anos 1930, uma parte pequena da esquerda ocidental
deu duro para explicar e às vezes exculpar os campos e o terror que os criou. Em 1936, quando milhões de lavradores soviéticos já trabalhavam nos campos ou viviam
em degredo, os socialistas britânicos Sidney e Beatrice Webb publicaram um vasto levantamento sobre a URSS, o qual explicava, entre outras coisas, que "o oprimido
camponês soviético vai aos poucos adquirindo a sensação de liberdade política". Na época dos grandes julgamentos de Moscou, enquanto Stalin arbitrariamente condenava
aos campos milhares de membros inocentes do Partido, o dramaturgo Bertold Brecht disse ao filósofo Sidney Hook que, "quanto mais inocentes eles são, mais merecem
morrer".
Mesmo na década de 1980, ainda havia acadêmicos que continuavam a descrever as vantagens do sistema de saúde alemão-oriental ou das iniciativas de paz polonesas;
ainda havia ativistas que se aborreciam com o fuzuê criado por causa dos dissidentes que estavam nos campos de prisioneiros da Europa oriental. Isso talvez se devesse
ao fato de que os filósofos fundadores da esquerda ocidental (Marx e Lênin) eram os mesmos da URSS. Parte da linguagem também era compartilhada: as massas, a luta,
o proletariado, os exploradores e os explorados, a propriedade dos meios de produção. Condenar a URSS com demasiada veemência seria condenar parte do que alguns
na esquerda ocidental também haviam prezado.
Não foi apenas a extrema esquerda, nem apenas os comunistas ocidentais, os que ficaram tentados a arranjar para os crimes de Stalin desculpas que nunca teriam apresentado
para os de Hitler. Os ideais comunistas - justiça social, igualdade para todos - são simplesmente muito mais atraentes para a maioria das pessoas no Ocidente do
que a defesa nazista do racismo e do triunfo do mais forte. Mesmo que na prática a ideologia comunista significasse algo muito diferente, era mais difícil aos descendentes
intelectuais da Guerra de Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa condenarem um sistema que, pelo menos, parecia semelhante ao deles próprios. Talvez
isso ajude a explicar por que, desde o começo, relatos em primeira mão sobre o Gulag eram freqüentemente repudiados ou depreciados pelas mesmíssimas pessoas que
jamais teriam colocado em dúvida o testemunho do Holocausto escrito por Primo Levi ou Eli Wiesel. Desde a Revolução Russa, informações oficiais sobre os campos soviéticos
também estavam acessíveis de imediato para qualquer interessado - o mais famoso relato soviético sobre um dos primeiros campos, o do Canal do Mar Branco, foi até
publicado em inglês. A ignorância, por si só, não basta para explicar por que os intelectuais ocidentais preferiram evitar o assunto.
A direita ocidental, por outro lado, realmente forcejou para condenar os crimes soviéticos, mas às vezes usou métodos que prejudicavam sua causa. O homem que mais
danos causou ao anticomunismo foi certamente o senador americano Joe McCarthy. Documentos recentes que mostram que algumas de suas acusações eram verdadeiras não
modificam o impacto que teve seu excesso de entusiasmo na perseguição aos comunistas na vida pública americana: os "julgamentos" públicos que ele realizou de simpatizantes
do comunismo acabariam por macular com patriotada e intolerância a causa do anticomunismo. No fim das contas, as ações de McCarthy não fizeram mais pela causa da
pesquisa histórica neutra do que as dos oponentes daquele senador.
Entretanto, nem todas as nossas atitudes para com o passado soviético se relacionam à ideologia política. Na realidade, muitas delas estão mais para um subproduto
desvanecente de nossas lembranças da Segunda Guerra Mundial. No momento, temos a firme convicção de que aquela foi uma guerra absolutamente justa, e poucos desejam
abalar tal convicção. Rememoramos o Dia D, a libertação dos campos de concentração nazistas, as crianças que, eufóricas, davam as boas-vindas aos pracinhas americanos
nas ruas. Ninguém quer saber que a vitória Aliada teve outro lado, mais sombrio, ou que os campos de Stalin, nosso aliado, se expandiam justamente quando os de Hitler,
nosso inimigo, eram libertados. A certeza moral de nossas recordações daqueles tempos ficaria solapada se reconhecêssemos que os Aliados Ocidentais, ao mandarem
milhares de russos para a morte certa quando os repatriaram à força após a guerra, ou ao condenarem milhões de pessoas ao domínio soviético em Yalta, podem ter ajudado
outros a cometerem crimes contra a humanidade. Ninguém quer concluir que derrotamos um chacinador com a ajuda de outro. Ninguém quer lembrar quanto esse outro chacinador
se dava bem com estadistas ocidentais. "Eu gosto realmente de Stalin", disse a um amigo o então ministro do Exterior britânico, Anthony Eden. "Ele nunca faltou com
a palavra." Há muitas fotos, muitas mesmo, de Stalin com Churchill e Roosevelt, todos juntos, todos sorridentes.
Por fim, a propaganda soviética não deixou de fazer efeito. Tiveram certo impacto, por exemplo, as tentativas soviéticas de semear a dúvida sobre os escritos de
Soljenitsin, pintando-o como demente, anti-semita ou bêbado. A pressão soviética sobre acadêmicos e jornalistas ocidentais também ajudou a enviesar o trabalho deles.
Na década de 1980, quando eu estudava história russa nos Estados Unidos, conhecidos me diziam para não continuar com essa matéria no curso de graduação, pois haveria
dificuldades demais: naquele tempo, quem escrevia "favoravelmente" sobre a URSS ganhava mais acesso a arquivos, mais acesso a informações oficiais, vistos para permanências
mais longas naquele país. Quem não o fazia arriscava-se a ser expulso e encontrar dificuldades profissionais em conseqüência. Desnecessário dizer, é claro, que a
ninguém de fora se permitia o acesso a qualquer material sobre os campos de Stalin ou sobre o sistema prisional pós-stalinista. O assunto simplesmente não existia,
e os que metiam demais o bedelho perdiam o direito de ficar naquele país.
Outrora, todas essas explicações em conjunto tinham certo sentido. Quando comecei a ponderar seriamente o tema (em 1989, época em que o comunismo entrava em colapso),
até vi a lógica por trás delas: parecia natural e óbvio que eu devesse saber muito pouco sobre a União Soviética de Stalin, cuja história secreta a tornava ainda
mais fascinante. Mais de uma década depois, meus sentimentos são muito diferentes. Agora, a Segunda Guerra Mundial pertence a uma geração anterior. A Guerra Fria
também já acabou, e as alianças e dissensões internacionais que ela produziu mudaram de vez. Hoje, a esquerda e a direita ocidentais competem entre si a respeito
de outras questões. Ao mesmo tempo, o surgimento de novas ameaças terroristas à civilização ocidental torna ainda mais necessário o estudo da velha ameaça comunista
a essa mesma civilização.
Em outras palavras, a "estrutura social, cultural e política" mudou - e o mesmo vale para nosso acesso a informações sobre os campos. No final da década de 1980,
na URSS de Mikhail Gorbatchev, começou a aparecer uma enxurrada de documentos a respeito do Gulag. Pela primeira vez, jornais publicavam histórias da vida nos campos
de concentração soviéticos. Novas revelações faziam as revistas esgotarem-se. Ressurgiam velhas discussões estatísticas - quantos mortos, quantos presos. Após o
trabalho pioneiro da Sociedade Memorial de Moscou, historiadores e associações historiográficas da Rússia passaram a publicar monografias, histórias de campos e
indivíduos específicos, estimativas e listas de nomes de mortos. Esse esforço repercutiu e se ampliou entre historiadores nas ex-repúblicas soviéticas e nos países
do antigo Pacto de Varsóvia e, posteriormente, entre historiadores ocidentais.
Apesar de muitos percalços, essa investigação do passado soviético continua. Ê bem verdade que a primeira década do século XXI se mostra muito diferente das décadas
finais do século XX e que a busca pela história já não é mais parte destacada do discurso público soviético, nem é mais tão dramática quanto pareceu em certo período.
A maior parte do trabalho que vem sendo realizado por estudiosos, russos ou não, é verdadeiramente monótona, implicando esquadrinhar milhares de documentos e passar
horas em arquivos gelados e cheios de correntes de ar, ou dias à procura de fatos e números. Mas isso está começando a dar frutos. Devagar, pacientemente, a Memorial
não só alinhavou o primeiro guia dos nomes e localizações de todos os campos de que se tem registro, mas também publicou uma série inovadora de livros de história
e compilou enorme arquivo de narrativas orais e escritas de sobreviventes. Junto com o Instituto Sakharov e a editora Vozvrashchenie (nome que significa "Regresso"),
ela colocou parte dessas memórias em circulação pública. Jornais acadêmicos russos e publicações internacionais também começaram a imprimir monografias baseadas
em novos documentos, assim como coletâneas desses próprios documentos. Trabalho semelhante está sendo executado em outros lugares, sobretudo pela Fundacja Karta,
na Polônia; por museus históricos na Lituânia, Letônia, Estônia, Romênia e Hungria; e por um punhado de estudiosos americanos e europeu-ocidentais que dispuseram
de tempo e energia para trabalhar nos arquivos soviéticos.
Enquanto fazia pesquisas para este livro, tive acesso ao trabalho deles, assim como a dois outros tipos de fonte que não estariam disponíveis dez anos atrás. O primeiro
foi a enxurrada de novas memórias que começaram a ser publicadas nos anos 1980 na Rússia, Estados Unidos, Israel, Europa oriental e outros lugares. Ao escrever este
livro, fiz amplo uso delas. No passado, alguns estudiosos da URSS relutavam em confiar nesse material sobre o Gulag, argumentando que os memorialistas soviéticos
tinham motivos políticos para distorcer suas histórias; que a maioria escrevera muitos anos após a soltura; e que muitos tomavam histórias emprestadas uns dos outros
quando a lembrança lhes falhava. Não obstante, após ter lido centenas de reminiscências dos campos e entrevistado umas duas dúzias de sobreviventes, julguei ser
possível filtrar o que parecia implausível, plagiado ou politizado. Também concluí que, embora as memórias não fossem confiáveis no referente a nomes, datas e números,
elas ainda assim constituíam fonte inestimável de outros tipos de informação, em especial aspectos cruciais da vida nos campos: os relacionamentos entre presos,
os conflitos entre grupos, o comportamento de guardas e administradores, o papel da corrupção, até a presença de amor e entusiasmo. De modo consciente, fiz muito
uso de apenas um autor (Variam Shalamov) que escreveu versões ficcionalizadas de sua vida nos campos, e isso porque suas histórias se baseiam em acontecimentos reais.
Tanto quanto possível, também respaldei as memórias com ampla utilização de arquivos - outra fonte que, paradoxalmente, nem todo mundo gosta de empregar. Conforme
ficará claro no decorrer do livro, o poder da propaganda na URSS era tal que ele freqüentemente modificava as percepções da realidade. Por isso, os historiadores
outrora tinham razão em não confiar nos documentos oficiais que o governo soviético trazia a público, pois estes muitas vezes tinham o propósito de obscurecer a
verdade. Mas documentos secretos - os documentos hoje conservados em arquivos - têm função diferente. A fim de gerir os campos, a administração do Gulag precisava
manter certos tipos de registro. Moscou necessitava saber o que estava acontecendo nas províncias, as províncias tinham de receber instruções da administração central,
era preciso preservar estatísticas. Isso não significa que tais arquivos sejam de todo confiáveis - burocratas tinham suas razões para distorcer até os fatos mais
comezinhos -, mas, se usados com critério, podem explicar algumas coisas sobre a vida nos campos que as memórias não elucidam. Sobretudo, ajudam a explicar por que
se construíram os campos - ou, pelo menos, o que o regime stalinista acreditava que eles viriam a alcançar.
Também é verdade que os arquivos são muito mais variados do que muitos previam; e que eles contam a história dos campos de muitas perspectivas diferentes. Tive acesso,
por exemplo, ao arquivo da administração do Gulag, com relatórios de fiscais, registros contábeis, cartas de diretores de campos a seus supervisores em Moscou, relatos
de tentativas de fuga e listas de montagens musicais nos teatros dos campos, tudo isso mantido no Arquivo Estatal Soviético em Moscou. Também consultei atas de reuniões
do Partido e documentos reunidos numa parte do osobaya papka de Stalin, seu "arquivo especial". Com a ajuda de outros historiadores russos, pude utilizar não só
alguns documentos dos arquivos militares soviéticos, mas também os arquivos dos guardas dos comboios, os quais contêm coisas como listas do que os presos podiam
ou não levar consigo. Fora de Moscou, tive ainda acesso a alguns arquivos locais (em Petrozavodsk, Arcangel, Syktyvkar e Vorkuta e nas ilhas Solovetsky) onde se
registraram acontecimentos cotidianos dos campos, assim como ao arquivo do Dmitlag (o campo que construiu o canal Moscou - Volga), que fica em Moscou. Todos contêm
registros do dia-a-dia nos campos, formulários de requisição, históricos de presos. Em certa altura, trouxeram-me parte considerável do arquivo de Kedrovyi Shor
(uma pequena subdivisão de Inta, campo de mineração ao norte do Círculo Ártico) e educadamente me perguntaram se eu gostaria de comprá-la.
Juntas, essas fontes possibilitam que se escreva sobre os campos de maneira nova. Neste livro, não mais precisei comparar as "alegações" de um punhado de dissidentes
com as "alegações" do governo soviético. Não tive de pesquisar um meio-termo entre os relatos dos refugiados soviéticos e os relatos das autoridades soviéticas.
Em vez disso, para descrever o que aconteceu, pude utilizar a linguagem de muitos tipos diferentes de pessoa - guardas, policiais, diferentes tipos de presos cumprindo
diferentes tipos de pena em diferentes épocas. Nem as emoções nem a política que por muito tempo cercaram a historiografia dos campos de concentração soviéticos
estão no cerne deste livro. Tal espaço é reservado, isto sim, às vivências das vítimas.
Esta é uma história do Gulag. Com isso, quero dizer que é uma história dos campos de concentração soviéticos: suas origens na Revolução Bolchevique, seu desenvolvimento
até se tornarem parte importante da economia, seu desmantelamento após a morte de Stalin. Também é um livro sobre a herança do Gulag: sem nenhuma dúvida, os regimes
e rituais que podiam ser encontrados nos campos de prisioneiros dos anos 1970 e 80 evoluíram diretamente daqueles criados numa era anterior, e, por esse motivo,
achei que cabiam no mesmo livro.
Ao mesmo tempo, este é um livro sobre a vida no Gulag e, por tal razão, conta a história dos campos de duas maneiras. A primeira e a terceira parte do livro são
cronológicas. Descrevem de modo narrativo a evolução dos campos e de sua administração. A segunda parte disserta sobre a vida nos campos e o faz tematicamente. Embora
a maioria das citações nessa parte central se refira aos anos 1940, a década do apogeu dos campos, eu também remeto - a-historicamente - a períodos anteriores e
posteriores. Certos aspectos da vida nos campos se desenvolveram com o passar do tempo, e julguei importante explicar como isso aconteceu.
Tendo dito o que este livro é, eu também gostaria de dizer o que ele não é: não é uma história da URSS, nem dos expurgos, nem da repressão em geral. Não é uma história
do reinado de Stalin, nem de seu Politburo, nem de sua polícia secreta, cuja complexa história política procurei, de caso pensado, simplificar o máximo possível.
Embora eu realmente utilize os escritos de dissidentes soviéticos, muitas vezes produzidos sob grande tensão e com muita coragem, este livro não contém uma história
completa do movimento soviético pelos direitos humanos. Da mesma forma, ele tampouco faz justiça às histórias de nações e grupos de prisioneiros específicos - entre
eles, poloneses, baltas, ucranianos, tchetchenos e prisioneiros de guerra alemães e japoneses -, que sofreram com o regime soviético, tanto dentro quanto fora dos
campos da URSS. Não explora por completo as matanças de 1937-8, que ocorreram principalmente fora dos campos, nem o massacre de milhares de oficiais poloneses em
Katyn e outros lugares. Por ser um livro destinado ao público geral, e não pressupor nenhum conhecimento especializado da história soviética, todos esses acontecimentos
e fenômenos serão mencionados. Entretanto, teria sido impossível fazer justiça a todos num único volume.
Talvez o mais importante: este livro não faz justiça à história dos "degredados especiais", os milhões de indivíduos que freqüentemente eram arrebanhados ao mesmo
tempo e pelas mesmas razões que os presos do Gulag, mas que então eram enviados não para campos, e sim para longínquas aldeias de degredo, onde muitos milhares morreram
de inanição, frio e excesso de trabalho. Uns foram degredados por motivos políticos, como os kulaks (camponeses ricos), nos anos 1930. Outros o foram por causa de
sua etnia, como poloneses, baltas, ucranianos, alemães do Volga e tchetchenos, só para citar alguns, nos anos 1940. Tiveram destinos os mais diversos no Cazaquistão,
na Ásia central e na Sibéria - diversos demais para que se possa abrangê-los num relato sobre o sistema de campos. Optei por mencioná-los, de modo talvez idiossincrático,
quando as vivências deles me pareceram especialmente próximas ou relevantes na comparação com as dos presos do Gulag. Mas, embora a história desses degredados esteja
estreitamente ligada à do Gulag, contá-la por inteiro exigiria outro livro com a extensão deste. Espero que alguém o escreva em breve.
Ainda que esta seja uma obra sobre os campos de concentração soviéticos, é impossível tratá-los como fenômeno isolado. O Gulag cresceu e se desenvolveu numa época
e num lugar específicos, em conjunto com outros acontecimentos - e especialmente em três contextos. Para sermos exatos, o Gulag pertence à história da URSS; à história
tanto russa quanto internacional das prisões e degredos; e ao ambiente intelectual próprio da Europa continental em meados do século XX, que também produziu na Alemanha
os campos de concentração nazistas.
Com "pertence à história da URSS", refiro-me a algo muito específico: o Gulag não surgiu prontinho do nada; em vez disso, refletiu os padrões gerais da sociedade
ao redor. Se os campos eram imundos, se os guardas eram brutais, se as turmas de trabalho eram desleixadas, isso em parte se devia ao fato de que a imundície, a
brutalidade e o desleixo eram bem abundantes em outras esferas da vida soviética. Se a vida nos campos era horrível, insuportável, desumana, se a mortalidade era
alta, isso tampouco chegava a ser surpresa: em certos períodos, a vida na URSS também era horrível, insuportável e desumana, e a mortalidade se mostrava tão elevada
fora quanto dentro dos campos.
Por certo, tampouco é coincidência que os primeiros campos soviéticos tenham sido estabelecidos imediatamente após a sangrenta, violenta e caótica Revolução Russa.
No decorrer da Revolução, do terror imposto depois dela e da subseqüente Guerra Civil, pareceu a muitos na Rússia que a própria civilização fora destruída de modo
permanente. "Sentenças de morte eram impostas arbitrariamente", escreveu o historiador Richard Pipes, "pessoas eram fuziladas sem motivo ou soltas de modo igualmente
imprevisível." A partir de 1917, todo o conjunto de valores de uma sociedade ficou de pernas para o ar: a riqueza e a experiência acumuladas durante uma vida inteira
se tornavam uma desvantagem, o roubo era glamorizado como "nacionalização", o assassínio virava parte aceite da luta em prol da ditadura do proletariado. O aprisionamento
inicial de milhares de pessoas por Lênin, simplesmente porque antes tinham riqueza ou títulos aristocráticos, nem chegava a parecer estranho ou despropositado.
Da mesma forma, as altas taxas de mortalidade nos campos de prisioneiros em certos anos eram, em parte, reflexo de acontecimentos que se desenrolavam por todo o
país. Dentro dos campos, elas se elevaram no começo da década de 1930, quando a fome assolou a URSS inteira. Tornaram a subir durante a Segunda Guerra Mundial: a
invasão alemã provocou não apenas milhões de mortes em combate, mas também epidemias de disenteria e tifo, assim como fome, o que afetou as pessoas tanto fora quanto
dentro dos campos. No inverno de 1941-2, quando um quarto da população do Gulag pereceu de inanição, talvez 1 milhão de habitantes de Leningrado tenham também morrido
de inanição, isolados pelo bloqueio alemão. Lidiya Ginzburg, uma cronista desse bloqueio, descreveu a fome de então como "um estado permanente [...] ela sempre
estava presente e sempre se fazia sentir [...] durante o processo de consumir alimento, o mais desesperador e excruciante era que a comida acabava com terrível rapidez
sem produzir nenhuma saciedade". Conforme o leitor verá, as palavras de Lidiya lembram, de modo estranho e inquietante, as utilizadas por ex-condenados.
Claro, é bem verdade que os moradores de Leningrado morriam em casa, ao passo que o Gulag destroçava vidas, destruía famílias, arrancava os filhos dos pais e condenava
milhões a viverem em ermos a milhares de quilômetros de seus familiares. Ainda assim, as vivências medonhas dos presos podem com justiça ser comparadas às terríveis
lembranças de cidadãos soviéticos "livres" como Elena Kozhina, que foi evacuada de Leningrado em fevereiro de 1942. Durante a jornada, ela viu o irmão, a irmã e
a avó morrerem de inanição. Enquanto os alemães se aproximavam, Elena e a mãe atravessaram a estepe a pé, deparando com "cenas de derrocada e caos desenfreados [...].
O mundo se despedaçava. Tudo estava permeado de fumaça e um cheiro horrível de queimado; a estepe era claustrofóbica e sufocante, como se espremida num punho quente
e fuliginoso". Embora nunca tenha vivido nos campos de prisioneiros, Elena conheceu o frio, a fome e o pavor atrozes antes mesmo de ter completado dez anos de idade,
e as lembranças disso a assombrariam pelo resto da vida. Nada, ela escreveu, "conseguiria apagar minha lembrança de quando levaram o corpo de Vadik, com um cobertor
por cima; de quando Tanya sufocou, agonizante; de quando mamãe e eu, as que sobraram, caminhamos com dificuldade pela estepe em chamas, através da fumaça e dos estrondos".
A população do Gulag e a população do resto da URSS compartilhavam muitas outras coisas além do sofrimento. Dentro e fora dos campos, era possível encontrar as mesmas
técnicas de trabalho desleixadas, a mesma burocracia criminosamente estúpida, o mesmo descaso sombrio pela vida humana. Quando redigia este livro, descrevi a um
amigo polonês o sistema de tufta (a burla com relação às normas de trabalho) que os prisioneiros soviéticos desenvolveram, o qual será descrito mais adiante. Meu
amigo caiu na gargalhada: "Você acha que foram prisioneiros que inventaram isso?! O bloco soviético inteiro praticava a tufta". Na URSS de Stalin, a diferença entre
a vida nos campos e a vida fora deles era apenas de grau. Talvez por isso, o Gulag foi muitas vezes descrito como a quintessência do sistema soviético. Mesmo na
gíria dos presos, o mundo fora do arame farpado era não a "liberdade", e sim a bolshaya zona, a "zona prisional grande", maior e menos letal que a "zona pequena"
do Gulag, mas não mais humana - e certamente não mais humanitária.
Todavia, se o Gulag não pode ser de todo apartado da experiência de vida no resto da URSS, tampouco pode a história dos campos ser de todo separada da história longa,
multinacional e transcultural das prisões, degredos, encarceramentos e campos de concentração. O degredo em lugares distantes, onde os prisioneiros podem "pagar
a dívida para com a sociedade", tornar-se úteis e não contaminar outros com suas idéias ou sua criminalidade, é prática tão antiga quanto a própria civilização.
Os governantes da Roma e da Grécia antigas mandavam os dissidentes para colônias longínquas. Sócrates preferiu a morte em Atenas ao tormento do exílio. O poeta Ovídio
foi desterrado para um porto infecto no mar Negro. A Grã-Bretanha georgiana despachava seus punguistas e ladrões para a Austrália. A França oitocentista enviava
condenados para a Guiana. Portugal mandava seus indesejáveis para Moçambique.
Em 1917, a nova liderança da Rússia não precisou inspirar-se em precedentes de outros países. Desde o século XVII, o país tinha um sistema próprio: na legislação
russa, a primeira menção de degredo é de 1649. Na época, ele era considerado uma forma nova e mais humana de punição judiciária - muitíssimo preferível à pena de
morte, ou à mutilação e às marcas a fogo -, e era aplicada numa gama enorme de delitos de menor e maior gravidade, desde o consumo de rapé e a prática da adivinhação
até o homicídio.23 Grande número de intelectuais e escritores russos, entre eles Pushkin, sofreu alguma forma de degredo, ao passo que a simples possibilidade já
atormentava outros: em 1890, no auge da fama literária, Anton Tchekhov surpreendeu todos os seus conhecidos quando foi visitar as colônias penais na ilha de Sacalina,
ao largo da costa russa do Pacífico. Antes de ter partido, escreveu a seu perplexo editor, explicando-lhe os motivos:
Permitimos que milhões de pessoas apodreçam nas prisões, sem nenhum propósito, sem nenhuma consideração, barbaramente; conduzimos gente por dezenas de milhares de
verstas no frio, acorrentadas; nós as infectamos com a sífilis, as pervertemos, multiplicamos o número de criminosos [...], mas nada disso tem nada que ver conosco;
simplesmente não é algo interessante [...].
Em retrospecto, é fácil achar na história do sistema prisional czarista muitos antecedentes de práticas adotadas no Gulag. Assim como esse último, o degredo siberiano,
por exemplo, nunca se destinou exclusivamente a criminosos. Uma lei de 1736 declarava que, se uma aldeia decidisse que algum de seus habitantes fosse uma má influência,
os líderes locais podiam repartir as posses do infeliz e mandar que se mudasse para outro lugar. Caso ele não conseguisse achar outra morada, o Estado podia degredá-lo.
(Aliás, essa lei seria citada por Khrutchev em 1948, como parte de sua - bem-sucedida - argumentação para que se degredassem os membros das fazendas coletivas que
fossem considerados insuficientemente entusiásticos e trabalhadores.)
A prática de degredar pessoas que simplesmente não se ajustavam continuou por todo o século XIX. Em seu livro A Sibéria e o sistema de degredo, George Kennan (tio
do estadista americano homônimo) descreveu o sistema de "processo administrativo" que ele observou na Rússia em 1891:
A pessoa inconveniente pode não ser culpada de crime nenhum [...], mas, se na opinião das autoridades locais sua presença em determinado lugar é "nociva à ordem
pública" ou "incompatível com a tranqüilidade pública", ela pode ser detida sem mandado, mantida de duas semanas a dois anos na prisão, removida à força para qualquer
outro lugar dentro dos limites do Império e ali ser colocada sob vigilância policial por um a dez anos.
O degredo administrativo - que não exigia julgamento nem sentença - era punição ideal não apenas para os encrenqueiros propriamente ditos, mas também para os opositores
políticos do regime. Nos primórdios, muitos desses opositores eram aristocratas poloneses contrários à ocupação de seu território e suas propriedades pelos russos.
Posteriormente, incluíram-se entre os degredados os dissidentes religiosos e os membros de grupos "revolucionários" e sociedades secretas, como os bolcheviques.
Embora não fossem degredados administrativos (pois foram julgados e sentenciados), os mais tristemente célebres "colonos forçados" da Sibéria oitocentista também
eram prisioneiros políticos: os dezembristas, um grupo de aristocratas de alto escalão que encetaram uma débil rebelião contra o czar Nicolau I em 1825. Numa desforra
que chocou toda a Europa da época, o Czar sentenciou cinco dezembristas à morte. Os outros ele privou de seus títulos e mandou, acorrentados, para a Sibéria; as
esposas de alguns, excepcionalmente corajosas, também foram para lá, a fim de reunir-se aos maridos. Só uns poucos viveram o suficiente para ser perdoados por Alexandre
II (o sucessor de Nicolau), trinta anos depois, e reinstalar-se em São Petersburgo, quando já eram idosos. Fiodor Dostoievski, condenado em 1849 a quatro anos de
servidão penal, foi outro prisioneiro político famoso. Após ter retornado do degredo siberiano, escreveu Recordações da casa dos mortos, ainda hoje o relato mais
lido sobre a vida no sistema prisional czarista.
Assim como o Gulag, o sistema czarista de degredo não foi criado apenas como forma de punição. Os governantes da Rússia também queriam que os degredados, tanto criminais
quanto políticos, resolvessem um problema econômico que incomodara durante muitos
séculos:### a baixa densidade demográfica do extremo leste e extremo norte da Rússia
e a conseqüente incapacidade do Império para explorar seus recursos naturais. Tendo isso em mente, o Estado russo começou, já no século XVIII, a sentenciar alguns
presos aos trabalhos forçados - modalidade de punição que se tornou conhecida como katorga, do verbo grego kateirgon (forçar). A katorga tinha velhos antecedentes
na Rússia. No começo do século XVIII, Pedro, o Grande, utilizara condenados e servos para construir estradas, fortalezas, fábricas, navios e a própria cidade de
São Petersburgo. Em 1722, o mesmo czar promulgou uma diretiva mais específica, mandando criminosos para o degredo, com as mulheres e filhos, perto das minas de prata
de Daurya, na Sibéria oriental.
Na época, o uso do trabalho forçado por Pedro foi considerado um grande êxito econômico e político. Aliás, a história das centenas de milhares de servos cujas vidas
se consumiram na construção de São Petersburgo teria enorme impacto sobre as gerações seguintes. Muitos morreram durante as obras - e, no entanto, a cidade se tornou
símbolo de progresso e europeização. Os métodos eram cruéis - e mesmo assim a nação saía ganhando. O exemplo de Pedro provavelmente ajuda a explicar a pronta adoção
da katorga pelos sucessores daquele czar. E não há nenhuma dúvida de que Stalin era grande admirador dos métodos de construção de Pedro.
No século XIX, todavia, a katorga foi uma forma de punição relativamente rara. Em 1906, só uns 6 mil condenados por esse sistema cumpriam pena; em 1916, às vésperas
da Revolução, eram apenas 28.600. Importância econômica muitíssimo maior tinha outro tipo de prisioneiro: os colonos forçados, sentenciados ao degredo, mas não
à prisão, em regiões subpovoadas do país, escolhidas por causa do potencial econômico. Somente entre 1824 e 1889, cerca de 720 mil colonos forçados foram mandados
para a Sibéria. Muitos estavam acompanhados das famílias. Eles, e não os condenados agrilhoados, povoaram aos poucos os ermos da Rússia ricos em minerais.
As sentenças desses colonos não eram necessariamente leves, e alguns deles achavam sua sina pior que a dos prisioneiros em regime de katorga. Designados para áreas
remotas, de solos pobres e vizinhos escassos, muitos morreram de inanição durante os longos invernos, ou se mataram de tanto beber por causa do tédio. Havia poucas
mulheres (cujo número nunca passou dos 15%), ainda menos livros e nenhum entretenimento.
Em sua viagem pela Sibéria até Sacalina, Tchekhov conheceu e descreveu alguns desses colonos degredados:
A maioria é financeiramente pobre, tem pouca força física e pouco preparo prático e não possui nada senão a capacidade de escrever, que freqüentemente não é de nenhuma
utilidade para ninguém. Alguns começam vendendo, peça por peça, suas camisas de linho holandês, seus lençóis, suas echarpes e lenços de bolso, e, depois de dois
ou três anos, acabam morrendo numa penúria medonha [...].
Mas nem todos os degredados eram infelizes e degenerados. A Sibéria ficava muito longe da Europa, e no leste as autoridades eram mais lenientes, e a aristocracia,
muito menos presente. Dentre os degredados e ex-presos, os mais abonados às vezes construíam grandes propriedades. Os mais instruídos se tornavam médicos e advogados
ou administravam escolas. A princesa Maria Volkonskaya, esposa do dezembrista Sergei Volkonsky, patrocinou a construção de um teatro e sala de concertos em Irkutsk;
embora ela, assim como o marido, houvesse sido privada do título nobiliárquico, os convites para seus saraus e jantares eram muito cobiçados, sendo comentados até
em Moscou e São Petersburgo.
No começo do século XX, o sistema já abandonara parte de seu rigor. A moda da reforma carcerária que se disseminara pela Europa no século anterior finalmente chegara
também à Rússia. Os regimes prisionais se tornaram mais brandos, e o policiamento, mais indulgente. De tato, em contraste com o que viria depois, a rota para a
Sibéria agora parecia, se não exatamente aprazível, pelo menos não uma punição pesada para o pequeno grupo de homens que lideraria a Revolução
Russa. Na prisão, os bolcheviques, por serem condenados presos políticos e não criminosos, usufruíam tratamento relativamente benévolo e podiam ter livros e material
de escrita. Grigory Ordzhonikidze, um dos chefes bolcheviques, mencionaria que leu Adam Smith, David Ricardo, Plekhanov, William James, Frederick W. Taylor, Dostoievski
e Ibsen (entre outros autores) quando preso na fortaleza Schlüsselberg, em São Petersburgo. Pelos padrões posteriores, os bolcheviques também estavam bem alimentados,
bem trajados e até muito bem penteados. Uma foto de Trotski quando prisioneiro na fortaleza de Pedro e Paulo, em 1906, mostra-o de óculos, terno, gravata e camisa
de colarinho admiravelmente alvo. A vigia na porta atrás dele é a única pista do lugar onde se encontrava. Outra foto, tirada no degredo na Sibéria oriental, em
1900, mostra Trotski de capote e gorro de pele, rodeado por outros homens e mulheres, também de botas e peles. Meio século depois, todos esses itens seriam luxos
raros no Gulag.
E, quando a vida no degredo czarista se tornava insuportavelmente desagradável, havia sempre a opção de fugir. O próprio Stalin foi preso e degredado quatro vezes.
Escapou três vezes, uma da província de Irkutsk e duas da de Vologda - região que depois ficaria salpicada de campos do Gulag. Em conseqüência, adquiriu um desdém
ilimitado pela "moleza" do regime czarista. Dimitri Volkogonov, seu biógrafo russo, caracterizou assim a opinião de Stalin: "A gente não precisa trabalhar, pode
ler quanto quiser e pode até fugir, bastando ter vontade".
Desse modo, a vivência siberiana proporcionou aos bolcheviques um modelo anterior que eles poderiam aperfeiçoar - e uma lição sobre a necessidade de regimes punitivos
excepcionalmente severos.
Se o Gulag é parte integral da história russa e soviética, também é indissociável da história européia: no século XX, a URSS não foi o único país do continente a
ter desenvolvido uma ordem social totalitária, nem a ter erigido um sistema de campos de concentração. Embora não seja a intenção deste livro comparar e contrastar
os campos soviéticos com os nazistas, o assunto tampouco pode ser comodamente deixado de lado. Os dois sistemas foram construídos mais ou menos na mesma época. Hitler
sabia do Gulag, e Stalin sabia do Holocausto. Houve prisioneiros que vivenciaram e descreveram os campos de ambos os sistemas. Num nível muito profundo, os dois
eram aparentados.
Antes de tudo, eram aparentados porque tanto o nazismo quanto o comunismo surgiram da experiência brutal da Primeira Guerra Mundial e, logo na seqüência, da Guerra
Civil Russa. Na época, os métodos de "guerra industrializada" amplamente utilizados durante tais conflitos geraram enorme reação intelectual e artística. Menos notado
- exceto, é claro, pelos milhões de vítimas - foi o uso generalizado de métodos igualmente "industrializados" de encarceramento. A partir de 1914, os dois lados
construíram pela Europa afora campos de internamente e campos de prisioneiros de guerra. Em 1918, havia 2,2 milhões de prisioneiros de guerra em território russo.
A nova tecnologia - a produção em massa de armas de fogo, tanques e até arame farpado - possibilitou esses e os campos posteriores. De fato, alguns dos primeiros
campos soviéticos foram construídos sobre campos de prisioneiros da Primeira Guerra Mundial.
Os campos soviéticos e nazistas também são aparentados porque, juntos, se inserem na história mais ampla dos campos de concentração, a qual começou em fins do século
XIX. Com o termo "campos de concentração", refiro-me a campos construídos para encarcerar pessoas não pelo que elas fizeram, mas pelo que elas eram. Diferentemente
dos campos de criminosos condenados e dos campos de prisioneiros de guerra, os de concentração foram criados para um tipo específico de prisioneiro civil não-criminoso,
membro de um grupo "inimigo" ou, pelo menos, de uma categoria de pessoa que, pela raça ou suposta tendência política, era considerada perigosa ou estranha à sociedade.
Segundo tal definição, os primeiros campos de concentração modernos foram estabelecidos não na Alemanha, nem na Rússia, mas na Cuba colonial, em 1895. Naquele ano,
num esforço para pôr fim a uma série de insurreições locais, o poder imperial espanhol começou a preparar uma política destinada a tirar os camponeses cubanos da
terra e "reconcentrá-los" em campos, assim privando os insurgentes de alimento, abrigo e apoio. Em 1900, a palavra espanhola reconcentración já fora traduzida para
o inglês e estava sendo usada para descrever um projeto britânico parecido, iniciado por motivos semelhantes, durante a Guerra dos Bôeres, na África do Sul: os civis
daquele povo eram concentrados" em campos, de modo a negar guarida e amparo aos combatentes bôeres.
A partir de então, a idéia se disseminou ainda mais. Um exemplo: parece que o termo konstlager surgiu em russo como tradução do inglês concentration camp, provavelmente
graças à familiaridade de Trotski com a história da Guerra dos Bôeres. Em 1904, colonizadores alemães no Sudoeste Africano também adotaram o modelo britânico -
com uma variação. Em vez de simplesmente aprisionarem os habitantes nativos da região (uma tribo chamada herero), eles os fizeram realizar trabalhos forçados para
a colônia alemã.
Há vários vínculos estranhos e inquietantes entre esses primeiros campos de trabalhos forçados germano-africanos e os construídos na Alemanha nazista três décadas
depois. Por exemplo, foi graças a tais campos de trabalho no sul da África que a palavra Konzentrationslager (campo de concentração) apareceu pela primeira vez na
língua alemã, em 1905. O primeiro comissário imperial do Sudoeste Africano Alemão foi um certo dr. Heinrich Göring, pai do Hermann que, em 1933, estabeleceria os
primeiros campos nazistas. Também foi naqueles campos africanos que se realizaram as primeiras experiências médicas alemãs com cobaias humanas: Theodor Mollison
e Eugen Fischer, dois dos professores de Joseph Mengele, fizeram pesquisas com os hereros; Fischer o fez na tentativa de corroborar suas teorias sobre a superioridade
da raça branca. As crenças desses acadêmicos não eram nada incomuns. Em 1912, um best-seller teutônico, o livro O pensamento alemão no mundo, afirmava que nada poderá
convencer pessoas racionais de que a preservação de uma tribo de pretos da África meridional é mais importante para o futuro da humanidade do que a expansão das
grandes nações européias e da raça branca em geral [...] só quando os povos nativos aprendem a produzir algo de valor a serviço da raça superior [...] é que se pode
dizer que eles têm um direito moral de existir.
Embora essa teoria raramente fosse enunciada com tanta clareza, sentimentos parecidos muitas vezes jaziam logo abaixo da superfície da prática colonial. Com certeza,
algumas formas de colonialismo tanto reforçavam o mito da superioridade racial branca quanto legitimavam o uso da violência contra outra raça. Por conseguinte, pode-se
argumentar que a vivência corruptora de alguns colonizadores ajudou a abrir caminho para o totalitarismo europeu no século XX. E não apenas europeu: a Indonésia
é um exemplo de Estado pós-colonial cujos governantes começaram aprisionando seus críticos em campos de concentração, tal qual os colonizadores haviam feito.
O Império Russo, que com muito sucesso conquistara seus próprios povos nativos na marcha para o leste, não era exceção. Durante um dos jantares festivos que acontecem
no romance Ana Karenina, de Tolstoi, o marido da protagonista (o qual tinha algumas responsabilidades oficiais sobre "tribos nativas") pontifica acerca da necessidade
de que as culturas superiores absorvam as inferiores. Em algum grau, os bolcheviques, assim como todos os russos instruídos, deviam estar cientes de que o Império
dizimara os quirguizes, buriatas, tungúsios e outros. O fato de que isso não interessasse particularmente a esses revolucionários - logo eles, de resto tão preocupados
com o destino dos oprimidos - já indica algo de seus pressupostos tácitos.
Por outro lado, para desenvolver os campos de concentração europeus, dificilmente se faria necessário ter total ciência da história da África meridional ou da Sibéria
oriental: no início do século XX, a idéia de que alguns tipos de pessoa são superiores a outros já era bastante comum na Europa. E isso, enfim, é o que liga no sentido
mais profundo os campos soviéticos e nazistas: em parte, ambos os regimes se legitimavam pelo estabelecimento de categorias de "inimigos" e "subumanos" aos quais
perseguiam e destruíam em escala maciça.
Na Alemanha nazista, os primeiros alvos foram os aleijados e os retardados. Posteriormente, os nazistas se concentraram nos ciganos, nos homossexuais e, sobretudo,
nos judeus. Na URSS, as vítimas foram primeiro a "gente de antes" (supostos partidários do antigo regime) e depois os "inimigos do povo", termo vago que viria a
abranger não apenas os pretensos opositores políticos do regime, mas também certos grupos nacionais e étnicos, caso eles parecessem (por motivos igualmente vagos)
ameaçar o Estado soviético ou o poder stalinista. Em épocas diferentes, Stalin procedeu a prisões em massa de poloneses, baltas, tchetchenos, tártaros e (às vésperas
da morte) judeus.
Embora tais categorias nunca fossem inteiramente arbitrárias, elas também nunca foram inteiramente estáveis. Meio século atrás, Hannah Arendt escreveu que tanto
o regime nazista quanto o bolchevique criaram "opositores objetivos" ou "inimigos objetivos", cuja "identidade muda conforme as circunstâncias predominantes - de
modo que, tão logo uma categoria é liqüidada, se pode declarar guerra a outra". Da mesma forma, ela acrescentava, "a função da polícia totalitária não é descobrir
crimes, e sim estar à mão quando o governo resolve prender determinada categoria da população". Mais uma vez, as pessoas eram aprisionadas não pelo que tinham feito,
mas pelo que eram.
Em ambas as sociedades, a criação dos campos de concentração foi, na realidade, o estágio final num longo processo de desumanização desses inimigos objetivos - processo
que teve início com a retórica.
Na autobiografia Minha luta, Hitler explicou como ele de súbito percebera que os judeus eram responsáveis pelos problemas da Alemanha e que, na vida em sociedade,
"todo empreendimento escuso, toda forma de infâmia", estava ligado aos judeus: "ao examinar-se aquele tipo de abscesso com o bisturi, descobria-se de imediato, qual
larva num corpo putrescente, um judeuzinho que muitas vezes ficava ofuscado pela brusquidão da luz".
Lênin e Stalin também começaram culpando "inimigos" pelos inumeráveis fracassos econômicos da URSS: tratava-se de "destruidores", "sabotadores", agentes de potências
estrangeiras. A partir do final dos anos 1930, à medida que a onda de prisões começava a expandir-se, Stalin levava essa retórica a novos extremos, acusando publicamente
seus opositores de serem uma "imundície" que precisava "submeter-se a limpeza contínua" - tal qual a propaganda nazista identificaria os judeus a imagens de bichos
nocivos, parasitas, doenças infecciosas.
Uma vez demonizado o inimigo, o isolamento legal dele começava para valer. Antes que tivessem sido arrebanhados e deportados para os campos de concentração nazistas,
os judeus foram privados da condição de cidadãos alemães. Viram-se proibidos de trabalhar no funcionalismo público, na advocacia, na magistratura; proibidos de desposar
arianos; proibidos de freqüentar escolas arianas; proibidos de ostentar a bandeira alemã; forçados a usar estrelas de Davi amarelo-ouro; e sujeitos a espancamentos
e humilhações na rua. Antes que se tivesse chegado a prendê-los na URSS de Stalin, os "inimigos" também eram rotineiramente humilhados em assembléias públicas,
demitidos de seus empregos, expulsos do Partido Comunista, abandonados pelos cônjuges indignados e publicamente acusados pelos filhos furiosos.
Dentro dos campos, o processo de desumanização se aprofundava e radicalizava, ajudando tanto a intimidar as vítimas quanto a reforçar a crença dos vitimadores na
legitimidade do que estavam fazendo. Em seu livro-entrevista com Franz Stangl (o comandante de Treblinka), a escritora Gitta Sereny lhe perguntou por que os prisioneiros
do campo, antes de serem mortos, eram também espancados, humilhados e privados das roupas. Stangl respondeu: "Para condicionar quem tinha de levar as ações a cabo.
Para possibilitar que eles fizessem o que faziam". Em A ordem do terror: o campo de concentração, o sociólogo alemão Wolfgang Sofsky também demonstrou de que maneira
a desumanização dos prisioneiros nos campos nazistas era metodicamente inserida em todos os aspectos da vida ali, desde os uniformes rotos e idênticos até a expectativa
constante da morte, passando pela abolição da privacidade e pelo regulamento severíssimo.
Veremos que, no sistema soviético, o processo de desumanização também começava no momento da prisão, quando os presos eram privados das roupas e da própria identidade,
viam-lhes negado o contato com gente de fora e eram torturados, interrogados e submetidos a julgamentos farsescos, isso quando chegavam de fato a ser julgados. Numa
peculiaridade tipicamente soviética do processo, os prisioneiros eram, de maneira proposital, "excomungados" da vida social, proibidos de chamarem uns aos outros
de "camarada" e, a partir de 1937, proibidos de receber o cobiçado título de "trabalhador de choque", não importando quão bem se comportassem ou quão duro trabalhassem.
Segundo muitos relatos de prisioneiros, os retratos de Stalin, que eram expostos nos lares e repartições por toda a URSS, quase nunca apareciam no interior dos campos
e prisões.
Nada disso significa que os campos soviéticos e nazistas fossem idênticos. Conforme qualquer leitor com algum conhecimento geral do Holocausto descobrirá no decorrer
deste livro, a vida no sistema de campos soviético diferia de muitas maneiras (quer sutis, quer óbvias) da vida no sistema de campos nazista. Havia diferenças na
organização do cotidiano e do trabalho, diferentes tipos de guardas e punições, diferentes tipos de propaganda. O Gulag durou muitíssimo mais e passou por ciclos
de relativa crueldade e relativa humanidade. A história dos campos nazistas é mais curta e apresenta menos variações: eles simplesmente se tornaram cada vez mais
cruéis, até serem destruídos pelos alemães em retirada ou libertados pelos Aliados. O Gulag também continha variedade maior de campos, desde as letais minas auríferas
da região de Kolyma até os "luxuosos" institutos secretos nas cercanias de Moscou, onde cientistas aprisionados projetavam armas para o Exército Vermelho. Embora
existissem diferentes espécies de campo no sistema nazista, a gama era muitíssimo menor.
Sobretudo, duas diferenças entre os sistemas me parecem fundamentais. Em primeiro lugar, a definição de "inimigo" na URSS sempre foi muito mais vaga que a de "judeu"
na Alemanha nazista. Nesta, com número muito pequeno de exceções incomuns, nenhum judeu podia alterar sua condição, nenhum judeu preso num campo podia ter esperança
racional de escapar à morte, e todos os judeus estavam cientes disso o tempo todo. Embora milhões de prisioneiros soviéticos temessem pela própria vida - e milhões
deles tenham realmente morrido -, não havia nenhuma categoria de prisioneiro cuja morte estivesse absolutamente garantida. Por vezes, certos presos podiam melhorar
sua situação em postos de trabalho relativamente confortáveis, como os de engenheiro ou geólogo. Em cada campo, havia uma hierarquia de prisioneiros, na qual alguns
eram capazes de subir à custa (ou com a ajuda) de outros. Outras vezes - quando o Gulag se via sobrecarregado de mulheres, crianças e idosos, ou quando se necessitava
de soldados para a frente de batalha -, os presos era soltos graças a anistias maciças. Em certos momentos, acontecia que categorias inteiras de "inimigo" se beneficiavam
subitamente de uma mudança de condição. Em 1939, por exemplo, no começo da Segunda Guerra Mundial, Stalin prendeu centenas de milhares de poloneses - e depois, em
1941, ele os libertou de chofre, quando a Polônia e a URSS se tornaram temporariamente aliadas. O oposto também se aplicava: na URSS, os próprios opressores podiam
virar vítimas. Guardas e administradores do Gulag e até altos funcionários da polícia secreta também podiam ser aprisionados e condenados aos campos. Em outras palavras,
nem todas as "víboras" conseguiam manter as presas - e não havia nenhum grupo específico de prisioneiros soviéticos que vivesse na expectativa constante da morte.
Em segundo lugar (conforme, mais uma vez, ficará claro no decorrer do livro), o propósito primordial do Gulag, segundo tanto a linguagem privada quanto a propaganda
pública daqueles que o fundaram, era econômico. Isso não significa que o sistema fosse humanitário. Nele, os prisioneiros eram tratados como gado, ou melhor, como
pedaços de minério de ferro. Os guardas os faziam ir para lá e para cá a seu bel-prazer, embarcando-os e desembarcando-os de vagões de gado, pesando-os e medindo-os,
alimentando-os se parecia que poderiam vir a ser úteis, deixando-os à míngua quando não o eram. Para usarmos a linguagem marxista, os prisioneiros eram explorados,
reificados e mercantilizados. A menos que fossem produtivos, suas vidas não valiam nada para seus senhores.
Sua vivência, porém, era muito diferente daquela dos judeus e dos outros prisioneiros que os nazistas enviavam para um grupo especial de campos que se chamavam não
Konzentrationslager, mas Vernichtungslager - campos que não era realmente "campos de trabalhos forçados", e sim usinas da morte. Havia quatro deles: Belzec, Chelmno,
Sobibor e Treblinka. Já Majdanek e Auschwitz continham tanto campos de trabalhos forçados quanto campos de extermínio. Ao entrarem nesses campos, os prisioneiros
passavam por uma "seleção". Um número ínfimo era designado para algumas semanas de trabalhos forçados. O restante era mandado direto para as câmaras de gás, onde
os assassinavam e então cremavam de imediato.
Até onde pude comprovar, essa forma específica de homicídio, praticada no auge do Holocausto, não teve equivalente na URSS. É bem verdade que esse último país encontrou
outras maneiras de chacinar centenas de milhares de cidadãos. Geralmente, eles eram conduzidos à noite para uma floresta, alinhados, baleados na nuca e enterrados
em sepulturas coletivas antes mesmo de chegarem perto de um campo de concentração - modalidade de homicídio não menos "industrializada" e anônima que a usada pelos
nazistas. Há mesmo histórias de que a polícia secreta soviética usou gás de escapamento (uma forma primitiva de gás venenoso) para matar prisioneiros, da mesma forma
que os nazistas fizeram no começo. No Gulag, os prisioneiros também morriam, em geral graças não à eficiência dos captores, e sim à incompetência e à negligência
crassas. Em certos campos soviéticos em determinadas épocas, a morte era praticamente certa no caso dos escolhidos para cortar árvores nas florestas hibernais ou
trabalhar nas piores minas auríferas de Kolyma. Prisioneiros também eram trancados em celas punitivas até morrerem de frio ou inanição, largados sem tratamento em
hospitais subaquecidos ou simplesmente baleados por "tentativa de fuga" quando dava na telha dos guardas. Entretanto, o sistema soviético de campos como um todo
não era propositalmente organizado para produzir cadáveres em escala industrial - mesmo que às vezes o resultado fosse esse.
São distinções sutis, mas importantes. Embora o Gulag e Auschwitz realmente pertençam à mesma tradição intelectual e histórica, eles ainda assim são fenômenos separados
e diferentes, tanto um do outro quanto dos sistemas de campos estabelecidos por outros regimes. A idéia de campo de concentração talvez seja genérica o bastante
para que a usem em culturas e situações muito diversas, mas até um estudo superficial da história transcultural desse tipo de campo revela que os detalhes específicos
- como se organizava a vida, como o estabelecimento se desenvolvia no decorrer do tempo, quão rígido ou desorganizado se tornava, quão cruel ou liberal permanecia
- dependiam do país, do regime político e da cultura. Para quem estava encurralado atrás do arame farpado, esses detalhes eram cruciais para a vida, a saúde e a
sobrevivência.
Na realidade, lendo os relatos daqueles que sobreviveram a ambos os sistemas de campos, impressionam mais as diferenças entre as vivências das vítimas do que as
diferenças entre os dois sistemas de campos. Cada história tem suas características próprias, cada campo apresentava tipos diferenciados de horror para pessoas de
caráter diferente. Na Alemanha, podia-se morrer pela crueldade; na Rússia, pela desesperança. Em Auschwitz, podia-se morrer na câmara de gás; em Kolyma, congelar
na neve até a morte. Podia-se morrer numa floresta alemã ou num ermo siberiano, num acidente de mineração ou num vagão de gado. Mas, ao fim e ao cabo, cada um tinha
sua história de vida.
Parte I - AS ORIGENS DO GULAG (1917-39)
1. PRIMÓRDIOS BOLCHEVIQUES
Teu espinhaço foi esmagado,
Minha época bela e lastimável,
E, com sorriso inane,
Olhas para trás, cruel e fraca,
Tal qual bicho que já passou do apogeu,
Para as marcas de suas patas.
Osip Mandelstam, "Vek"
Um de meus objetivos é destruir o mito de que a fase mais cruel da repressão começou em 1936-7. Penso que, no futuro, as estatísticas mostrarão que a onda de prisões,
condenações e degredos já se iniciara no começo de 1918, antes mesmo da declaração oficial, naquele outono, do "Terror Vermelho". A partir daquele momento, a onda
simplesmente ficou cada vez maior, até a morte de Stalin.
Dmitrii Likhachev, Vospominaniya
No ano de 1917, duas ondas revolucionárias cobriram a Rússia, varrendo a sociedade imperial como se esta fosse um castelo de cartas. Depois que o czar Nicolau abdicou
(em fevereiro), tornou-se extremamente difícil que alguém conseguisse deter ou controlar os acontecimentos. Alexander Kerensky, o líder do primeiro governo provisório
pós-revolucionário, escreveria que, no vácuo subseqüente ao colapso do antigo regime, "todos os programas políticos e táticos existentes, não importando quão ousados
e bem concebidos, pareciam flutuar no espaço, sem rumo e sem utilidade".
Mas, embora o governo provisório fosse fraco, embora o descontentamento popular fosse generalizado, embora a raiva com a carnificina causada pela Primeira Guerra
Mundial fosse grande, poucos contavam que o poder caísse nas mãos dos bolcheviques, um dos vários partidos socialistas radicais que agitavam a favor de mudanças
ainda mais rápidas. Fora do país, eles eram muito pouco conhecidos. Uma narrativa apócrifa ilustra muito bem a atitude estrangeira: consta que, em 1917, um burocrata
entrou às pressas no gabinete do ministro do Exterior austríaco, gritando: "Excelência, houve uma revolução na Rússia!" O ministro riu com desdém: "Quem conseguiria
fazer uma revolução lá? Com certeza não esse inofensivo herr Trotski, lá no Café Central?"
Se o caráter dos bolcheviques era um mistério, seu líder, Vladimir Iliich Ulianov (o homem que o mundo viria a conhecer pelo pseudônimo revolucionário "Lênin"),
o era ainda mais. Durante seus muitos anos de revolucionário refugiado no exterior, Lênin fora reconhecido por conta de seu brilhantismo, mas também antipatizado
por causa de sua imoderação e seu sectarismo. Vivia arrumando briga com outros líderes socialistas e tinha o pendor de transformar em grandes polêmicas as discordâncias
menores sobre questões dogmáticas aparentemente irrelevantes.
Nos primeiros meses após a Revolução de Fevereiro, Lênin esteve muito longe de ocupar uma posição de autoridade inconteste, mesmo dentro de seu próprio partido.
Ainda em meados de outubro de 1917, um punhado de lideranças bolcheviques se opunha a seu plano de desfechar um golpe de Estado contra o governo provisório; argumentavam
que o Partido não estava pronto para tomar o poder e nem sequer tinha apoio popular. Lênin, porém, ganhou a discussão, e, em 25 de outubro, ocorreu o golpe. Sob
a influência da agitação promovida por Lênin, uma turba saqueou o Palácio de Inverno. Os bolcheviques prenderam os ministros do governo provisório. Num período de
horas, Lênin se tornara o líder do país, que ele rebatizou de Rússia Soviética.
No entanto, embora Lênin houvesse logrado tomar o poder, seus críticos bolcheviques não estavam de todo errados. Os bolcheviques estavam mesmo muitíssimo despreparados.
Em conseqüência, a maioria das decisões iniciais deles, aí incluída a criação do Estado unipartidário, foi tomada para atender às necessidades do momento. O apoio
popular aos bolcheviques era realmente fraco, e quase de imediato eles começaram a travar uma sangrenta Guerra Civil, apenas para que pudessem permanecer no poder.
A partir de 1918, quando o Exército Branco (dos partidários do antigo regime) se reagrupou para combater o recém-criado Exército Vermelho (liderado pelo "herr Trotski"
do "Café Central"), ocorreram nas regiões rurais da Rússia alguns dos combates mais brutais e encarniçados já vistos na Europa. E nem toda a violência se limitava
aos campos de batalha. Os bolcheviques se desdobravam para suprimir todo tipo de oposição intelectual e política, atacando não apenas os representantes do antigo
regime, mas também outros socialistas - mencheviques, anarquistas, social-revolucionários. Só em 1921 o novo Estado soviético conheceria relativa paz.
Nesse contexto de improvisação e violência, nasceram os primeiros campos soviéticos de trabalhos forçados. Assim como muitas outras instituições da URSS, foram criados
de modo contingencial, às pressas, como medida de emergência no calor da Guerra Civil. Isso não significa que a idéia já não se mostrara atraente. Três semanas antes
da Revolução de Outubro, o próprio Lênin esboçava um plano (vago, é verdade) para organizar um "serviço laborai obrigatório", destinado a capitalistas ricos. Em
janeiro de 1918, irado com a intensidade da resistência antibolchevique, ele foi ainda mais veemente, escrevendo que veria com bons olhos "a prisão desses sabotadores
bilionários que viajam em vagões de primeira classe. Sugiro sentenciá-los a seis meses de trabalhos forçados nas minas".
A visão de Lênin dos campos de trabalhos forçados como forma especial de punição para certo tipo de "inimigo" burguês se coadunava com outras crenças suas sobre
o crime e os criminosos. Por um lado, o primeiro líder soviético era ambivalente no que se referia ao encarceramento e punição dos criminosos tradicionais (ladrões,
punguistas, homicidas), os quais considerava aliados em potencial. Na perspectiva de Lênin, a causa básica dos "excessos sociais", ou seja, da criminalidade, era
"a exploração das massas". A eliminação dessa causa, acreditava ele, "levará ao esvanecimento dos excessos". Assim, não era necessário impor nenhuma punição especial
para deter os criminosos: com o tempo, a própria Revolução os faria desaparecer. Por isso, parte da linguagem no primeiro Código Penal bolchevique teria reconfortado
os reformadores penais mais radicais e progressistas do Ocidente. Entre outras coisas, o Código estabelecia que "não existe culpa individual" e que a punição "não
deve ser encarada como vingança".
Por outro lado, Lênin - assim como os teóricos jurídicos bolcheviques que o seguiram - também supunha que a criação do Estado soviético daria origem a um novo tipo
de inimigo: o "inimigo de classe". Este se opunha à Revolução e trabalhava às claras (ou, mais freqüentemente, às escondidas) para destruí-la. O inimigo de classe
era mais difícil de identificar que o inimigo comum, e muito mais difícil de regenerar. Diferentemente do que acontecia com o criminoso comum, nunca se podia confiar
no inimigo de classe para cooperar com o regime soviético, e ele exigia punição mais severa que a dada ao homicida ou ladrão comum. Em maio de 1918, por conseguinte,
o primeiro "decreto da propina" promulgado pelos bolcheviques determinava:
Se o culpado de receber ou oferecer propina pertencer às classes ricas e usá-la para conservar ou adquirir privilégios relacionados aos direitos de propriedade,
ele deverá ser condenado aos trabalhos forçados mais severos e rudes, e todas as suas posses deverão ser confiscadas.
Em outras palavras, desde os primeiros dias do Estado soviético, as pessoas seriam condenadas a cumprir pena não pelo que fizessem, mas pelo que fossem.
Infelizmente, ninguém jamais forneceu uma explicação clara do que exatamente era um "inimigo de classe". Como conseqüência, o número de detenções de todo tipo aumentou
em grau enorme após o golpe bolchevique. A partir de novembro de 1917, tribunais revolucionários, compostos de "partidários" da Revolução escolhidos de modo aleatório,
começaram a condenar de maneira também aleatória "inimigos" da Revolução. Penas de prisão, de trabalhos forçados e até de morte se aplicavam arbitrariamente a banqueiros,
esposas de comerciantes, "especuladores" (com o que se referiam a qualquer pessoa dedicada à atividade econômica independente), ex-carcereiros czaristas e todo o
mundo que parecesse suspeito.
A definição do que e de quem não era "inimigo" também variava de um lugar para outro, às vezes coincidindo com a de "prisioneiro de guerra". Ao ocupar uma cidade,
o Exército Vermelho, de Trotski, freqüentemente fazia reféns burgueses, que poderiam ser fuzilados caso o Exército Branco voltasse, como muitas vezes acontecia ao
longo das linhas cambiantes da frente de batalha. Nesse ínterim, tais reféns podiam ser postos para fazer trabalhos forçados, com freqüência abrindo trincheiras
e construindo barricadas. A distinção entre presos políticos e criminosos comuns era igualmente arbitrária. Membros sem instrução das comissões e tribunais revolucionários
temporários poderiam, por exemplo, resolver de súbito que um homem que fora apanhado ao viajar de trem sem ter pago passagem cometera delito contra a sociedade e
condená-lo por crimes políticos. No fim das contas, muitas de tais decisões eram deixadas aos policiais ou soldados que faziam as prisões. Feliks Dzerzhinsky, fundador
da Cheka (a polícia secreta de Lênin, antecessora da KGB), mantinha um caderninho preto no qual anotava os nomes e endereços de "inimigos" com os quais deparava
aleatoriamente ao fazer seu trabalho.
Essas distinções continuariam vagas até o próprio colapso da URSS, oitenta anos depois. No entanto, a existência de duas categorias de presos - "político" e "comum"
- teve profundo efeito sobre a formação do sistema penal soviético. Durante a primeira década de domínio bolchevique, as penitenciárias soviéticas até se cindiram
em dois tipos, um para cada categoria. A divisão surgiu espontaneamente, como resposta ao caos do sistema prisional existente. Logo nos primeiros dias da Revolução,
todos os prisioneiros eram encarcerados sob a jurisdição de alguma autoridade "tradicional" (primeiro o Comissariado da Justiça, depois o Comissariado do Interior)
e colocados no sistema prisional "comum". Ou seja, eram jogados nos remanescentes do sistema czarista, em geral nas prisões de pedra, sujas e sombrias, que ocupavam
localização central em todos os grandes centros. Nos anos revolucionários de 1917 a 1920, essas instituições ficaram em total confusão. Turbas tinham invadido as
cadeias, comissários autodesignados haviam demitido os guardas, prisioneiros tinham recebido amplas anistias ou simplesmente ido embora.
Quando os bolcheviques assumiram o controle, as poucas prisões que continuavam funcionando eram superlotadas e inadequadas. Já algumas semanas após a Revolução,
o próprio Lênin exigia "medidas extremas para melhoria imediata do abastecimento de alimentos às prisões de Petrogrado". Alguns meses depois, um integrante da Cheka
de Moscou visitou a prisão Taganskaya e relatou "um frio e uma sujeira terríveis", assim como tifo e fome. A maioria dos detentos não podia cumprir suas penas de
trabalhos forçados porque não tinha roupas. Uma matéria de jornal alegava que a prisão Batyrka, também em Moscou, projetada para abrigar mil presos, já tinha 2.500.
Outro jornal se queixava de que os Guardas Vermelhos "prendem assistematicamente centenas de pessoas todos os dias e não sabem o que fazer com elas".
A superlotação suscitava soluções "criativas". Na falta de coisa melhor, as novas autoridades encarceravam presos em porões, sótãos, palácios vazios e velhas igrejas.
Um sobrevivente recordaria que foi colocado no porão de uma casa abandonada, num único cômodo com cinqüenta pessoas, nenhuma mobília e pouca comida: quem não recebia
alimento das próprias famílias simplesmente morria de inanição. Em dezembro de 1917, uma comissão da Cheka discutiu o destino de 56 presos diversos ("ladrões, bêbados
e 'políticos' variados") que estavam sendo mantidos no porão do Instituto Smolny, o quartel-general de Lênin em Petrogrado.
Nem todos sofriam com as condições caóticas. Em 1918, Robert Bruce Lockhart, diplomata britânico acusado de espionagem (com justiça, aliás), foi aprisionado num
porão do Kremlin. Ele se ocupava jogando paciência e lendo Tucídides e Carlyle. De tempos em tempos, um ex-serviçal imperial lhe trazia chá quente e jornais.
Mas, mesmo nas cadeias tradicionais remanescentes, o regime prisional era imprevisível, e os carcereiros, inexperientes. Na cidade de Vyborg, no norte da Rússia,
um preso descobriu que, no bagunçado mundo pós-revolucionário, seu antigo motorista se tornara guarda de prisão. O homem ficou encantado em ajudar o ex-patrão a
ir para uma cela melhor (mais seca) e, por fim, a escapar. Um coronel do Exército Branco também lembraria que, em dezembro de 1917, na prisão de Petrogrado, os
detentos entravam e saíam à vontade e os sem-teto dormiam nas celas durante a noite. Recordando aquele tempo, um alto funcionário soviético diria que "só os muito
preguiçosos não fugiam".
A confusão obrigou a Cheka a apresentar soluções novas - os bolcheviques não podiam permitir que seus "verdadeiros" inimigos ficassem no sistema prisional comum.
Cadeias caóticas e guardas indolentes podiam servir para punguistas e delinqüentes juvenis; mas, para os sabotadores, parasitas, especuladores, oficiais do Exército
Branco, padres, capitalistas burgueses e outros que tanto assomavam na imaginação bolchevique, eram necessárias soluções mais criativas.
Uma delas foi encontrada já em 4 de junho de 1918, quando Trotski requereu que um grupo de prisioneiros tchecos refratários fosse pacificado, desarmado e colocado
num konstlager - campo de concentração. Doze dias depois, num memorando endereçado ao governo soviético, Trotski tornou a falar em campos de concentração, prisões
ao ar livre nas quais
a burguesia das cidades e vilarejos [...] deverá ser mobilizada e organizada em batalhões de retaguarda para fazer serviço braçal - limpar casernas, acampamentos
e ruas, cavar trincheiras etc. Quem se recusar deverá ser multado e mantido na cadeia até pagar a multa.
Em agosto, Lênin também se utilizou do termo konstlager. Num telegrama aos comissários de Penza (local de um levante antibolchevique), ele demandou que se empregasse
"terror em massa contra os kulaks, padres e Guardas Brancos" e que os "elementos indignos de confiança" fossem "aprisionados num campo de concentração fora da cidade".
As instalações já existiam: durante o verão de 1918 – na seqüência do Tratado de Brest-Litovsk, que pôs fim à participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial -,
o regime libertou 2 milhões de prisioneiros de guerra, e os campos vazios foram de imediato transferidos para a Cheka.
Na época, a Cheka certamente pareceu a entidade ideal para assumir a tarefa de encarcerar "inimigos" em "campos" especiais. Organização totalmente nova, foi concebida
para ser "a espada e o escudo" do Partido Comunista, não se subordinando ao governo soviético oficial nem a nenhum departamento deste. Não tinha nenhuma tradição
de legalidade, nenhuma obrigação de respeitar o Estado de direito, nenhuma necessidade de consultar a polícia, os tribunais ou o comissário da Justiça. O próprio
nome indicava sua condição especial: a Comissão Extraordinária de Combate à Contra-revolução e à Sabotagem, ou (usando as iniciais russas de "Comissão Extraordinária")
Ch-K, Cheka. Era "extraordinária" justamente porque existia fora da legalidade "ordinária".
Quase tão logo foi criada, a Cheka recebeu uma dessas tarefas extraordinárias. Em 5 de setembro de 1918, Dzerzhinsky foi instruído a implementar a política do Terror
Vermelho, de Lênin. Lançada após um atentado contra a vida desse último, era uma onda de terror (detenções, encarceramentos, assassínios) mais organizada que o terror
aleatório dos meses anteriores. Na realidade, tratava-se de um componente importante da Guerra Civil, sendo dirigido contra os suspeitos de atuarem para destruir
a Revolução na "frente interna". O Terror Vermelho foi sangrento, impiedoso e cruel - tal qual pretendiam seus perpetradores. A Krasnaya Gazeta, órgão do Exército
Vermelho, o descreveu:
Sem piedade, sem moderação, mataremos nossos inimigos às centenas e mais centenas. Ou melhor, aos milhares - deixemos que se afoguem no próprio sangue. Pelo sangue
de Lênin [...], deixemos que corram rios de sangue da burguesia - o máximo possível [...].
A política do Terror Vermelho foi crucial na luta de Lênin pelo poder. Os campos de concentração, os chamados "campos especiais", foram cruciais para o Exército
Vermelho. Eram mencionados já no primeiro decreto do Terror Vermelho, que determinava não apenas a captura e encarceramento de "representantes importantes da burguesia,
proprietários de terras, industriais, comerciantes, padres contra-revolucionários, oficiais anti-soviéticos", mas também o "isolamento deles em campos de concentração".
Embora não existam dados confiáveis sobre o número de prisioneiros, havia 21 campos registrados na Rússia no final de 1919. No fim do ano seguinte, eram 107 - cinco
vezes mais.
Naquele estágio, contudo, o objetivo dos campos permanecia ambíguo. Os prisioneiros deveriam trabalhar - mas com que propósito? O trabalho se destinava a reabilitá-los?
A humilhá-los? Ou a ajudar a construir o Estado soviético? Diferentes líderes e instituições tinham diferentes respostas. Em fevereiro de 1919, o próprio Dzerzhinsky
fez um discurso eloqüente para defender o papel dos campos na reabilitação ideológica da burguesia. Os novos campos
utilizarão a mão-de-obra dos detidos; dos senhores que vivem sem ter ocupação; e dos que só trabalham quando forçados. Tal punição deveria ser aplicada àqueles que
atuam em instituições soviéticas e demonstram atitudes inconscienciosas no que se refere ao trabalho, à pontualidade etc. [...] Dessa maneira, criaremos escolas
de trabalho.
Mas na primavera de 1919, quando se publicaram os primeiros decretos sobre os campos especiais, prioridades ligeiramente diferentes pareceram assumir a precedência.
Os decretos (uma lista surpreendentemente longa de normas e recomendações) sugeriam que cada capital regional estabelecesse um campo, para não menos que trezentas
pessoas, "no limite da cidade, ou em construções próximas como mosteiros, grandes propriedades, fazendas etc.". Estipulavam uma jornada de trabalho de oito horas;
horas extras e atividade noturna só seriam autorizadas quando "seguissem a lei trabalhista". Os presos ficavam proibidos de receber comida de fora. Permitiam-se
visitas de familiares imediatos, mas só nos domingos e feriados. Os presos que tentassem fugir uma vez teriam as penas multiplicadas por dez; os que tentassem de
novo seriam punidos com a morte - procedimentos extremamente severos se comparados com a leniente legislação czarista, que os bolcheviques conheciam tão bem. O mais
importante: os decretos também deixavam claro que o trabalho dos presos se destinava não apenas a reabilitá-los, mas também a pagar pela manutenção dos campos. Presos
com alguma incapacidade física deveriam ser mandados para outro lugar. Os campos deveriam ser auto-sustentáveis. De maneira otimista, os fundadores do sistema acreditavam
que ele se pagaria.
Graças ao fluxo irregular de fundos estatais, quem administrava os campos logo se interessou pela idéia de autofinancia-se ou, pelo menos, fazer algum uso prático
dos prisioneiros. Em setembro de 1919, um relatório secreto apresentado a Dzerzhinsky se queixava de que as condições sanitárias num campo de trânsito estavam "abaixo
da crítica", em grande parte porque deixavam tanta gente doente e incapaz para o trabalho: "Na umidade do outono, não serão lugares para reunir pessoas e empregar
sua mão-de-obra, mas viveiros de epidemias e outras enfermidades". Entre outras coisas, o autor propunha que os incapacitados de trabalhar deveriam ser enviados
para outro local, assim tornando o campo mais eficiente - tática que depois seria muitas vezes utilizada pela liderança do Gulag. Já naquela época, os responsáveis
pelos campos se preocupavam com a doença e a fome só na medida em que presos doentes e famintos não eram presos úteis. A dignidade e a humanidade deles, para nem
falar de sua sobrevivência, praticamente não interessavam aos encarregados.
Na prática, aliás, nem todos os comandantes se preocupavam com a reabilitação ou o autofinanciamento. Preferiam, isto sim, punir os ex-abonados, humilhando-os, dando-lhes
um gostinho do sofrimento dos trabalhadores. Um relatório da cidade ucraniana de Poltava, redigido por uma comissão de inquérito do Exército Branco após a recaptura
temporária do lugar, observava que os burgueses aprisionados durante a ocupação bolchevique haviam recebido tarefas que
se destinavam a escarnecer deles, tentando aviltá-los. Um detento, por exemplo [...], foi obrigado a limpar com as mãos uma grossa crosta de terra num chão imundo.
Mandaram outro limpar um sanitário e [...] lhe deram uma toalha de mesa para fazer o serviço.
É bem verdade que essas sutis diferenças de intenção provavelmente faziam pouca diferença para as muitas dezenas de milhares de presos, muitos dos quais consideravam
humilhação suficiente o simples fato de terem sido aprisionados por nenhum motivo. Elas provavelmente também não afetavam as condições de vida dos detentos, as quais
eram horrorosas em toda a parte. Um padre enviado para um campo na Sibéria se recordaria da sopa de tripa, dos alojamentos sem eletricidade e do aquecimento praticamente
inexistente no inverno. Aleksandr Izgoev, político de destaque no período czarista, foi mandado para um campo ao norte de Petrogrado. No caminho, seu grupo de prisioneiros
parou na cidade de Vologda. Em vez de encontrarem a comida quente e as acomodações aquecidas que lhes haviam sido prometidas, os presos foram conduzidos a pé de
um lugar para outro, em busca de abrigo. Não se preparara nenhum campo de trânsito para eles. Por fim, foram alojados no que fora uma escola, "com bancos compridos
e paredes nuas". Quem tinha dinheiro acabou comprando a própria comida na cidade.
Todavia, esses tipos de maus-tratos caóticos não eram reservados apenas aos prisioneiros. Em momentos decisivos da Guerra Civil, as necessidades emergenciais do
Exército Vermelho e do Estado soviético se sobrepunham a tudo o mais, da reabilitação à vingança, passando pelas considerações referentes ao que fosse justo ou injusto.
Em outubro de 1918, o comandante da frente setentrional solicitou à comissão militar de Petrogrado oitocentos trabalhadores, urgentemente necessários para abrir
estradas e trincheiras. Gomo conseqüência, "vários cidadãos das antigas classes mercantis foram convidados a comparecer ao quartel-general soviético, supostamente
para serem registrados para possíveis funções de trabalho em alguma data futura. Quando esses cidadãos apareceram para fazer tal registro, foram presos e mandados
ao quartel Semenovsky, onde esperariam até ser despachados para a frente de batalha". Quando nem isso resultou em número suficiente de trabalhadores, o soviete (conselho
governante local) de Petrogrado simplesmente cercou parte da Nevsky Prospekt (a principal rua comercial da cidade), prendeu todos os que não tinham carteirinha do
Partido nem atestado de que trabalhavam para uma instituição do governo e os fez marchar para um quartel ali perto. Mais tarde, liberaram-se as mulheres, mas os
homens foram despachados para o norte; "nenhum dos que foram mobilizados dessa maneira estranha pôde antes resolver seus assuntos de família, despedir-se dos parentes
ou obter trajes e calçados adequados".
Embora certamente horrível para os pedestres assim detidos, esse episódio pareceria menos esquisito aos trabalhadores de Petrogrado - porque, mesmo naquele estágio
inicial da história soviética, a distinção entre "trabalhos forçados" e trabalho comum era pouco clara. Trotski falava abertamente em transformar o país inteiro
num "exército de trabalhadores" ao estilo do Exército Vermelho. Desde cedo, os trabalhadores foram obrigados a registrar-se em repartições centrais do trabalho,
de onde podiam ser enviados para qualquer parte do país. Aprovaram-se decretos especiais que proibiam certos tipos de trabalhador (os mineiros, por exemplo) de largar
seus empregos. Nesse período de caos revolucionário, os trabalhadores livres tampouco desfrutavam condições de vida muito melhores que as dos presos. Olhando de
fora, nem sempre teria sido fácil dizer qual era o local de trabalho e qual era o campo de concentração.
Mas também isso era um prenúncio: durante a maior parte da década seguinte, as definições de "prisão", "campo" e "trabalhos forçados" estariam permeadas de confusão.
O controle das instituições penais continuaria mudando constantemente de mãos. Os departamentos responsáveis seriam rebatizados e reorganizados sem cessar, à medida
que diferentes comissários e outros burocratas tentavam assumir o controle do sistema.
No entanto, evidencia-se que, no final da Guerra Civil, já se estabelecera um padrão. A URSS desenvolvera dois sistemas prisionais, com regras, tradições e ideologias
distintas. O Comissariado da Justiça (e depois o Comissariado do Interior) administrava o sistema "regular", que lidava principalmente com o que o regime soviético
denominava "criminosos". Ainda que esse sistema também fosse caótico na prática, seus presos eram mantidos em prisões tradicionais, e os objetivos declarados de
seus administradores, conforme apresentados num memorando interno, seriam perfeitamente compreensíveis em países "burgueses": regenerar os criminosos pelo trabalho
correcional - "os presos devem trabalhar para aprender habilidades que possam utilizar a fim de levar vida honesta" - e impedir que cometessem mais crimes.
Ao mesmo tempo, a Cheka (depois rebatizada GPU, OGPU, NKVD, MGB e, por fim, KGB) controlava outro sistema prisional, que de início era conhecido como sistema de
"campos especiais", ou "campos extraordinários". Embora a Cheka usasse neles parte da mesma retórica de "reabilitação" e "regeneração", esses campos não se destinavam
mesmo a parecer instituições penais comuns. Estavam fora da jurisdição das outras instituições soviéticas e não eram visíveis ao público. Tinham normas especiais,
penalidades mais duras para quem tentava fugir, regimes mais severos. Seus presos não haviam necessariamente sido condenados por tribunais comuns - se é que algum
tribunal os condenara. Tais campos, estabelecidos como medida emergencial, acabaram por tornar-se maiores e mais poderosos, à medida que se ampliava a definição
de "inimigo" e aumentava o poder da Cheka. E, quando os dois sistemas penais, o ordinário e o extraordinário, enfim se juntaram, eles o fizeram sob as regras do
segundo. A Cheka devorou seus rivais.
Desde o início, o sistema prisional "especial" se destinava a lidar com prisioneiros especiais: padres, antigos altos funcionários czaristas, especuladores burgueses,
inimigos da nova ordem. Mas uma categoria de presos políticos em particular interessava às autoridades mais que as outras. Tratava-se de membros dos partidos socialistas
revolucionários não-bolcheviques, sobretudo os anarquistas, a esquerda e a direita social-revolucionárias, os mencheviques e todos os outros que haviam lutado pela
Revolução, mas que não tiveram o tino de unir-se à facção bolchevique, de Lênin, e não tomaram parte por completo no golpe de outubro de 1917. Como ex-aliados no
combate revolucionário contra o regime czarista, mereciam tratamento especial. O Comitê Central do Partido Comunista debateria repetidas vezes o destino deles, até
o final dos anos 1930, quando a maioria dos que continuavam vivos foi presa ou fuzilada.
Em parte, essa categoria específica de prisioneiro incomodava Lênin porque, assim como todos os líderes de seitas exclusivistas, ele reservava aos apóstatas o maior
ódio de que era capaz. Durante um colóquio típico, chamou um de seus críticos socialistas de "escroque", "cãozinho cego", "adulador da burguesia" e "lacaio de sanguessugas
e canalhas", que só servia para o "esgoto dos renegados". Aliás, muito antes da Revolução, Lênin já sabia o que faria com aqueles correligionários socialistas que
se opunham a ele. Um de seus companheiros revolucionários recordou uma conversa sobre o assunto:
Eu lhe disse: "Vladimir Iliich, se você chegar ao poder, vai começar a enforcar os mencheviques no mesmo dia". Ele me deu uma olhadela e respondeu: "Só depois que
tivermos enforcado o último social-revolucionário". Aí, franziu as sobrancelhas e deu uma risada.
Contudo, os presos que pertenciam a essa categoria especial também eram bem mais difíceis de controlar. Muitos haviam passado anos em prisões czaristas e sabiam
como montar greves de fome, como pressionar seus carcereiros, como estabelecer comunicação entre as celas para trocar informações, como organizar protestos em conjunto.
O mais importante: sabiam como contatar o exterior - e quem contatar por lá. A maior parte dos partidos socialistas russos não-bolcheviques ainda tinha diretórios
de exilados (geralmente em Berlim ou Paris) cujos membros podiam causar grandes prejuízos à imagem mundial dos bolcheviques. Em 1921, no III Congresso da Internacional
Comunista, representantes do diretório externo dos social-revolucionários, o partido ideologicamente mais próximo dos bolcheviques (durante breve período, alguns
de seus membros até chegaram a trabalhar em coalizão com esses últimos), leram em voz alta uma carta de seus camaradas encarcerados na Rússia. A carta provocou sensação
no congresso, em grande parte porque afirmava que as condições prisionais na Rússia revolucionária eram piores que nos tempos do czar. "Nossos camaradas estão semimortos
de fome", proclamava. "Muitos deles se encontram presos há meses, sem visita de parentes, sem correspondência, sem exercício físico."
Os socialistas exilados tinham condições de agitar em favor dos prisioneiros, e o faziam, tal qual antes da Revolução. Imediatamente após o golpe bolchevique, vários
revolucionários célebres, aí incluídas Vera Figner (autora de memórias sobre a vida em prisões czaristas) e Ekaterina Peshkova (mulher do escritor Máximo Gorki),
ajudaram a restabelecer a Cruz Vermelha Política, uma organização de auxílio a presos que atuara clandestinamente antes da Revolução. Ekaterina conhecia bem Dzerzhinsky
e se correspondia com ele de modo regular e cordial. Graças aos contatos e ao prestígio dela, a Cruz Vermelha Política recebeu o direito de visitar locais de encarceramento,
falar com presos políticos, enviar-lhes remessas e até requerer a soltura daqueles que estavam enfermos - privilégios que a organização manteve durante boa parte
da década de 1920. Posteriormente, essas atividades pareceriam tão inverossímeis ao escritor Lev Razgon, aprisionado em 1937, que ele ouvia as histórias da Cruz
Vermelha Política contadas pela esposa (o pai dela fora um dos presos socialistas) como se fossem "contos de fadas".
A má publicidade gerada pelos socialistas ocidentais e pela Cruz Vermelha Política incomodava um bocado os bolcheviques. Muitos tinham vivido anos no exílio e, por
conseguinte, eram sensíveis às opiniões de seus antigos camaradas internacionais. Muitos também ainda acreditavam que a Revolução poderia propagar-se para o Ocidente
a qualquer momento e não queriam que o progresso do comunismo fosse retardado pelas notícias negativas. Em 1922, as matérias da imprensa ocidental já os preocupavam
o bastante para lançarem a primeira do que seriam muitas tentativas de disfarçar o terror comunista atacando o "terror capitalista". Com esse propósito, criaram
uma associação "alternativa" de auxílio a prisioneiros: a Sociedade Internacional de Ajuda às Vítimas da Revolução (MOPR, conforme seu acrônimo russo), que supostamente
trabalharia para assistir aos "100 mil presos do capitalismo".
Embora a seção berlinense da Cruz Vermelha Política tenha de
imediato atacado a MOPR por tentar "silenciar os gemidos daqueles que estão morrendo nas prisões, campos de concentração e locais de degredo da Rússia", outros engoliram
a história. Em 1924, a MOPR afirmava ter 4 milhões de membros e até organizou sua primeira conferência internacional, com representantes do mundo inteiro. A propaganda
deixou sua marca. Quando pediram ao escritor francês Romain Rolland que comentasse a publicação de uma coletânea de cartas de socialistas encarcerados na Rússia,
ele respondeu afirmando o seguinte:
Há coisas quase idênticas acontecendo nas prisões da Polônia; nós as temos nas prisões da Califórnia, onde estão martirizando os trabalhadores da IWW; nós as temos
nos calabouços ingleses das ilhas Andaman [...].
A Cheka também procurou amenizar as notícias negativas, mandando os socialistas encrenqueiros para mais longe de seus contatos. Alguns foram enviados por decreto
administrativo para o degredo em regiões longínquas, tal qual o regime czarista fizera. Outros foram mandados para campos remotos perto da cidade boreal de Arcangel
e, em especial, para um campo estabelecido no antigo mosteiro de Kholmogory, centenas de quilômetros ao norte de Petrogrado, próximo ao mar Branco. Todavia, mesmo
os desterrados para os locais mais distantes acabavam achando meios de comunicar-se. De Narim, longínqua região da Sibéria, um pequeno grupo de presos políticos
num minúsculo campo de concentração conseguiu mandar carta para um jornal socialista no exílio, queixando-se de que estavam "tão categoricamente isolados do resto
do mundo que apenas cartas referentes à saúde de parentes ou à nossa própria podem ter a esperança de chegar aos destinatários. Nenhum outro tipo de mensagem [...]
nos chega". Esses presos assinalavam que, entre eles, encontrava-se Olga Romanova, anarquista de dezoito anos que fora despachada para um lugar particularmente remoto
da região, "onde a fizeram passar três meses a pão e água".
Tampouco o degredo distante garantia sossego para os carcereiros. Em quase toda a parte, os presos socialistas, acostumados ao tratamento privilegiado outrora dado
aos prisioneiros políticos nas cadeias czaristas, exigiam jornais, livros, caminhadas, o direito ilimitado a correspondência e, sobretudo, o direito de escolherem
os próprios porta-vozes ao lidarem com as autoridades. Quando os agentes locais da Cheka não entendiam e se negavam a conceder essas coisas (eles decerto não sabiam
a diferença entre anarquista e baderneiro), os socialistas protestavam, às vezes com violência. Segundo uma descrição do campo de Kholmogory, um grupo de prisioneiros
descobriu que
era necessário travar uma lula pelas coisas mais elementares, como a concessão aos socialistas e anarquistas dos direitos comuns dos presos políticos. Nessa luta,
eram submetidos a todos os castigos conhecidos, como confinamento solitário, espancamento, fome, disparos concertados do destacamento militar contra o edifício etc.
Basta dizer que, no final do ano, a maioria dos detentos de Kholmogory podia acrescentar a seu histórico greves de fome que duravam de trinta a 35 dias [...].
Esse mesmo grupo de presos acabou sendo transferido de Kholmogory para outro campo, em Petrominsk, também um mosteiro. De acordo com a petição que enviariam às autoridades,
foram recebidos ali com "gritos e ameaças grosseiras", trancafiados seis de uma vez em minúsculas celas de monge e proibidos de praticar exercício ou ter acesso
a livros ou material de escrita. O camarada Bachulis, comandante de Petrominsk, tentou quebrar o ânimo dos presos privando-os de luz e calor .- e, de tempos em
tempos, atirando contra as janelas deles. Os presos reagiram lançando outra rodada interminável de greves de fome e cartas de protesto. No fim das contas, exigiram
ser tirados do próprio campo, o qual afirmavam ser malárico.
Outros chefes de campo também reclamavam de tais prisioneiros. Em carta a Dzerzhinsky, um deles escreveu que em seu campo "os Guardas Brancos que se julgam presos
políticos" se organizaram numa "turma enérgica", impossibilitando que os guardas trabalhassem: "eles difamam a administração, caluniam-lhe o nome [...] desprezam
o nome bom e honesto do trabalhador soviético". Alguns guardas resolviam as coisas eles mesmos. Em abril de 1921, um grupo de prisioneiros de Petrominsk se recusou
a trabalhar e exigiu mais rações de comida. Fartas dessa insubordinação, as autoridades de Arcangel ordenaram que todos os 540 fossem condenados à morte. Foram devidamente
fuzilados.
Em outros lugares, as autoridades tentavam manter a paz pelo caminho oposto, atendendo a todas as reivindicações dos socialistas. Berta Babina, membro dos social-revolucionários,
recordaria sua chegada à "ala socialista" da prisão de Butyrka (em Moscou) como um reencontro jubiloso com amigos, gente "da clandestinidade em São Petersburgo,
dos meus anos de estudante e das muitas cidades e lugares menores onde morei durante minhas erranças". Os presos podiam fazer o que quisessem na prisão. Organizavam
sessões matinais de ginástica, fundaram uma orquestra e um coro, criaram um "grêmio" que dispunha de periódicos estrangeiros e boa biblioteca. Conforme a tradição
(remontando aos tempos pré-revolucionários), todo preso deixava seus livros quando era solto. Um conselho dos prisioneiros designava celas para todos, algumas das
quais eram muitíssimo bem supridas de tapetes no chão e tapeçarias nas paredes. Outro preso lembraria que "flanávamos pelos corredores como se fossem bulevares".
Para Berta, a vida na prisão parecia inverossímil: "Será que eles não conseguem nos prender a sério?"
A liderança da Cheka se fazia a mesma pergunta. Num relatório a Dzerzhinsky datado de janeiro de 1921, um irado fiscal das prisões se queixou de que, na Butyrka,
"homens e mulheres caminham juntos, e slogans anarquistas e contra-revolucionários ficam expostos nas paredes das celas". Dzerzhinsky recomendou regime mais severo
- mas, quando este foi instituído, os presos tornaram a protestar.
O idílio da Butyrka terminou logo depois. Em abril de 1921, segundo carta que um grupo de social-revolucionários escreveu às autoridades, "entre três e quatro horas
da manhã, um grupo de homens armados entrou nas celas e começou o ataque [...] mulheres foram arrastadas pelos braços, pernas e cabelos para fora das celas; outras
foram espancadas". A Cheka, em seus relatórios posteriores, descreveu esse "incidente" como uma rebelião que ficara fora de controle - e ela resolveu que nunca mais
deixaria tantos presos políticos se acumularem em Moscou. Em fevereiro de 1922, a "ala socialista" da prisão de Butyrka já fora dissolvida.
A repressão não funcionara. As concessões não haviam funcionado. Mesmo em seus campos especiais, a Cheka não conseguia controlar os presos especiais. Tampouco conseguia
impedir que notícias deles chegassem ao exterior. Era evidente que outra solução se fazia necessária, tanto para eles quanto para todos os outros contra-revolucionários
insubordinados que haviam sido reunidos no sistema prisional especial. Na primavera de 1923, já se encontrara a solução: Solovetsky.
2. "O PRIMEIRO CAMPO DO GULAG"
Há monges e padres,
Prostitutas e ladrões.
Aqui há príncipes e barões -
Mas suas coroas lhes foram tomadas...
Nesta ilha, os ricos não têm casa,
Nem castelo, nem palácio...
Poema anônimo escrito por um prisioneiro
nas ilhas Solovetsky, 1926
Olhando do alto do campanário na ponta do antigo mosteiro de Solovetsky, mesmo hoje se vêem os contornos do campo de concentração. Um espesso muro de pedras ainda
circunda o kremlin, o conjunto central de igrejas e construções do mosteiro, que remontam ao século XV e depois abrigaram a administração principal e a prisão central
do campo. Imediatamente a oeste, ficam as docas, agora lar de alguns barcos pesqueiros, outrora apinhadas com os presos que chegavam toda semana, e às vezes todo
dia, durante a curta temporada de navegação no extremo norte. Para além delas, estende-se a vastidão plana do mar Branco. Dali, o barco leva várias horas para chegar
a Kem, o campo de trânsito no continente, de onde os presos embarcavam com destino a Solovetsky. Chegar a Arcangel, capital regional e maior porto do mar Branco,
leva a noite toda.
Olhando para o norte, talvez se vislumbre de modo muito vago a Sekirka, a igreja que, no alto de um morro, continha as infames celas punitivas de Solovetsky. A leste,
ergue-se a usina de força construída pelos prisioneiros, ainda hoje em plena operação. Logo atrás, o terreno onde costumava ficar o jardim botânico. Ali, nos primeiros
tempos do campo, alguns dos prisioneiros cultivavam plantas experimentais, procurando determinar se poderiam semear alguma coisa com proveito no extremo norte.
Por fim, para além do jardim botânico, as outras ilhas do arquipélago de Solovetsky. Espalhadas pelo mar Branco, estão Bolshaya Muksalma, onde os presos criavam
raposas-prateadas para tirar-lhes a pele; Anzer, lugar de campos especiais para inválidos, para mulheres com filhos pequenos e para ex-monges; e Zayatsky Ostrov,
local do campo punitivo feminino. Não foi por acaso que Soljenitsin escolheu a metáfora do "arquipélago" para descrever o sistema soviético de campos de concentração.
Solovetsky, o primeiro a ter sido planejado e construído para durar, desenvolveu um verdadeiro arquipélago, expandindo-se de ilha a ilha, ocupando à medida que crescia
as velhas igrejas e construções monásticas da antiga comunidade de monges.
O complexo monástico já servira de prisão. Desde o século XVI, os monges de Solovetsky, fiéis servidores do czar, tinham ajudado a encarcerar os opositores políticos
dele (entre os quais padres refratários e um ou outro aristocrata rebelde). O isolamento, os altos muros, os ventos gelados e as gaivotas que antes atraíam certo
tipo de monge solitário também empolgavam a imaginação bolchevique. Já em maio de 1920, um artigo na edição de Arcangel do jornal governamental Izvestiya descrevia
as ilhas como lugar perfeito para um campo de trabalho: "o ambiente inóspito, o regime laborai, a luta contra as forças da natureza serão boa escola para todos os
elementos criminosos". O primeiro punhado de presos começou a chegar naquele verão.
Outros, mais acima na cadeia de comando, também estavam interessados nas ilhas. O próprio Dzerzhinsky parece ter convencido o governo soviético a transferir o mosteiro
confiscado, mais aqueles mosteiros de Petrominsk e Kholmogory, para a Cheka (então rebatizada GPU, depois OGPU, ou Administração Política Estatal Unificada) em 13
de outubro de 1923. Juntos, esses locais foram designados "Campos de Importância Especial". Posteriormente, seriam conhecidos como "Campos Setentrionais de Importância
Especial", ou Severnye Lagery Osobogo Naznacheniya, a rede Slon. Em russo, slon é "elefante". O nome se tornaria humorístico, irônico e ameaçador.
No folclore dos sobreviventes, Solovetsky seria sempre lembrado como "o primeiro campo do Gulag". Embora estudiosos tenham mais recentemente assinalado que já existia
uma ampla gama de campos e prisões, fica evidente que Solovetsky desempenhou papel especial não apenas nas lembranças dos sobreviventes, mas também na memória da
polícia secreta soviética. Solovetsky pode não ter sido a única prisão da URSS nos anos 1920, mas era a prisão deles, a prisão da OGPU, onde essa polícia aprendeu
a usar trabalho escravo com fins lucrativos. Em 1945, numa palestra sobre a história dos campos, o camarada Nasedkin, então principal administrador do sistema, afirmou
não só que este teve origem em Solovetsky na década de 1920, mas também que todo o aparelho soviético de "trabalhos forçados como método de reabilitação" se iniciou
ali em 1926.
O arquipélago de Solovetsky, no mar Branco
A primeira vista, essa declaração parece estranha, considerando que na URSS os trabalhos forçados já eram reconhecidos como forma de punição desde 1918. No entanto,
ela se assemelhará menos estranha se virmos de que maneira o conceito de trabalhos forçados evoluiu na própria Solovetsky. Isso porque, nos primórdios, embora nas
ilhas todos trabalhassem, os presos não estavam organizados em nada remotamente similar a um "sistema". Tampouco há provas de que o trabalho deles fosse rentável
de algum modo.
Antes de tudo, uma das duas categorias de presos em Solovetsky nem sequer trabalhava no começo. Eram os Cerca de trezentos presos políticos socialistas, que na realidade
tinham começado a chegar à ilha principal em junho de 1923. Mandados do campo de Petrominsk, assim como da Butyrka e de outras prisões de Moscou e Petrogrado, foram
de imediato levados para o Savvatvevo, um mosteiro menor, vários quilômetros ao norte do principal complexo monástico. Ali, os guardas de Solovetsky tinham como
garantir que ficassem isolados dos outros presos e não os contaminassem com aquele seu entusiasmo pelos protestos e greves de fome.
De início, concederam-se aos socialistas os "privilégios" de presos políticos que eles exigiam havia tanto tempo: jornais, livros e, dentro daquele cercado de arame
farpado, liberdade de movimento e de trabalho. Cada um dos principais partidos políticos - a esquerda e a direita social-revolucionárias, os anarquistas, os social-democratas
e depois os social-sionistas - escolhia seu próprio líder e ocupava recintos em sua própria ala do velho mosteiro.
Para Elinor Olitskaya, jovem social-revolucionária de esquerda presa em 1924, o Sawatyevo no começo "não se parecia em nada com uma prisão" e foi um susto após os
meses passados na sombria prisão de Lubyanka, em Moscou. O quarto de Elinor, uma antiga cela de monge no que se tornara a seção feminina da ala dos social-revolucionários,
era
claro, limpo e recém-lavado, com duas janelas abertas, grandes e largas. A cela era cheia de luz e ar. Nas janelas, não havia barras, é claro. No meio da cela, tinha-se
uma pequena mesa, coberta com uma toalha branca. Junto à parede, quatro camas, com lençóis arrumados com capricho. Ao lado de cada uma, um pequeno criado-mudo. Neste,
viam-se livros, cadernos e canetas.
Enquanto Elinor se admirava com o local, com o chá servido em bules e com o açúcar num açucareiro, suas companheiras de cela lhe explicavam que as presas haviam
criado aquele ambiente agradável de caso pensado: "queremos viver como seres humanos". Elinor logo descobriu que, embora sofressem de tuberculose e outras doenças
e raramente tivessem comida bastante, os presos políticos de Solovetsky se mostravam extraordinariamente bem organizados, estando o "decano" de cada célula partidária
responsável pelos serviços de almoxarifado, cozinha e distribuição de alimentos. Dado que ainda tinham status político especial, também podiam receber remessas tanto
de parentes quanto da Cruz Vermelha Política. Embora essa última começasse a encontrar dificuldades (em 1922, seus escritórios sofreram batidas, e suas posses foram
confiscadas), Ekaterina Peshkova, a bem relacionada líder da organização, ainda tinha autorização pessoal para mandar auxílio a presos políticos. Em 1923, ela despachou
um vagão inteiro de víveres para aqueles presos do Sawatyevo. Um carregamento de roupas seguiu para o norte em novembro do mesmo ano.
Era esta, portanto, a solução para o problema de relações públicas criado pelos presos políticos: dar-lhes mais ou menos o que pediam, mas colocá-los tão longe do
resto das pessoas quanto fosse possível. Tal solução não duraria: o sistema soviético não toleraria exceções por muito tempo. Entrementes, era fácil desmascarar
a ilusão - pois em Solovetsky havia outro grupo de prisioneiros, muitíssimo maior. "Ao desembarcarmos no chão de Solovetsky, todos sentíamos que estávamos entrando
numa fase nova e estranha da vida", escreveu um preso político. "Pelas conversas com os criminosos, ficamos sabendo do regime terrível que a direção lhes aplicava."
Com muito menos pompa e circunstância, a prisão principal do kremlin de Solovetsky também ia sendo rapidamente lotada com presos cuja situação não era tão garantida.
De umas poucas centenas de detentos em 1923, os números subiram para 6 mil em 1925. Entre eles, havia oficiais e simpatizantes do Exército Branco, "especuladores",
ex-aristocratas, marinheiros que haviam lutado no levante de Kronstadt e verdadeiros criminosos comuns. Para esses presos, era muito mais difícil ter chá em bules
e açúcar em açucareiros. Ou melhor, difícil para alguns, mais fácil para outros - pois o que caracterizava a vida na prisão criminal do campo especial de Solovetsky
naqueles primeiros tempos era sobretudo uma irracionalidade e uma imprevisibilidade que se iniciavam já no momento do desembarque. O memorialista e ex-condenado
Boris Shiryaev escreve que, na primeira noite no campo, ele e os outros recém-chegados foram recebidos pelo camarada A. P. Nogtev, o primeiro comandante de Solovetsky.
"Eu lhes dou as boas-vindas", disse-lhes Nogtev, com o que Shiryaev descreveu como "ironia". "Como vocês sabem, aqui não há autoridade soviética, apenas a autoridade
de Solovetsky. Podem ir esquecendo qualquer direito que tenham tido antes. Aqui, temos leis próprias." A frase "não há autoridade soviética, apenas a autoridade
de Solovetsky", seria usada inúmeras outras vezes, conforme atestam muitos memorialistas. Nos dias e semanas seguintes, a maioria dos presos vivenciaria a autoridade
de Solovetsky" como combinação de negligência criminosa com crueldade fortuita. As condições de vida nas igrejas e celas
monásticas adaptadas eram precárias, e pouca atenção se deu a melhorá-las. Na primeira noite na prisão de Solovetsky, o escritor OlegVolkov recebeu um lugar nos
sploshnye nary, leitos que na realidade era pranchas largas (das quais voltaremos a falar) onde vários homens dormiam enfileirados. No que Volkov se deitou, os percevejos
começaram a atacá-lo, "um depois do outro, como formigas; não consegui dormir". Ele saiu e foi de imediato envolvido por "nuvens de mosquitos [...] olhei com inveja
para aqueles que dormiam profundamente, cobertos de parasitas".
Fora do complexo principal do kremlin, as coisas não eram melhores. Oficialmente, a Slon compreendia nove campos distintos no arquipélago, cada um deles dividido
em batalhões. Mas também se mantinham alguns presos em condições ainda mais primitivas, nas matas, perto dos locais de atividade madeireira. Dmitrii Likhachev,
que depois se tornaria um dos mais famosos críticos literários da URSS, considerava-se privilegiado por não ter sido designado para um dos muitos campos anônimos
na floresta. Ao visitar um, "fiquei doente com a visão daquele horror: pessoas dormiam em valas que tinham cavado, às vezes com as mãos nuas, durante o dia".
Nas ilhas periféricas, a administração central dos campos exercia ainda menos controle sobre a conduta dos guardas e encarregados. Um preso, certo Kiselev, descreveu
em suas memórias certo campo em Anzer, uma das ilhas menores. Comandado por Vanka Potapov (outro integrante da Cheka), o campo consistia de três alojamentos e um
quartel de guardas, instalado numa antiga igreja. Os presos trabalhavam no corte de árvores, sem pausa, sem descanso e com pouca alimentação. Desesperados por conseguir
alguns dias de folga, decepavam as próprias mãos e pés. Segundo Kiselev, Potanov conservava essas "pérolas" numa grande pilha e as mostrava aos visitantes, para
os quais também se vangloriava de ter matado mais de quatrocentas pessoas com as próprias mãos. "Ninguém voltava de lá", escreveu Kiselev a respeito de Anzer. Mesmo
que seu relato seja exagerado, ele indica o verdadeiro terror que os campos periféricos representavam para os presos.
Em todas as ilhas, as catastróficas condições de higiene, o excesso de trabalho e a alimentação ruim levavam naturalmente à doença, sobretudo ao tifo. Dos 6 mil
prisioneiros a cargo da Slon em 1925, cerca de um quarto morreria no inverno de 1925-6, em conseqüência de uma epidemia particularmente grave. De acordo com algumas
estimativas, os números permaneceram altos: a cada ano, de um quarto a metade dos presos pode ter perecido de tifo, inanição e outras epidemias. No inverno de 1929-30,
um documento registra 25.552 casos de tifo na Slon (rede que então já era muito maior).
Para alguns presos, porém, Solovetsky representava algo pior que o desconforto e a doença. Nas ilhas, eram submetidos ao tipo de sadismo e tortura despropositada
que se encontrava mais raramente no Gulag em anos posteriores, quando, segundo Soljenitsin, "a capatazia de escravos já se tornara um sistema planejado". Embora
muitas memórias descrevam esses atos, a relação mais completa se acha no relatório de uma comissão de inquérito que seria enviada de Moscou mais para o final da
década de 1920. No decorrer da investigação, essas horrorizadas autoridades moscovitas descobriram que, no inverno, os guardas de Solovetsky regularmente deixavam
prisioneiros nus nos velhos campanários da igreja maior, sem nenhum aquecimento, tendo mãos e pés alados às costas com um único pedaço de corda. Também colocavam
presos "no assento", significando que os obrigavam a sentar em mastros por até dezoito horas sem se mexer, às vezes com pesos amarrados às pernas e pés, sem tocar
o chão, numa posição que com toda a certeza os deixaria aleijados. De quando em quando, faziam os presos irem nus para o banho, até a dois quilômetros de distância,
numa temperatura de congelar. Ou lhes davam de propósito carne podre. Ou lhes negavam socorro médico. Outras vezes, os prisioneiros recebiam tarefas despropositadas
e inúteis - deslocar enormes quantidades de neve de um lugar para outro, por exemplo, ou pular de pontes tão logo os guardas mandassem.
Outra forma de tortura própria das ilhas, sendo mencionada tanto em arquivos quanto em memórias, era ser mandado "aos pernilongos". A. Klinger, oficial do Exército
Branco que depois realizaria uma das poucas fugas bem-sucedidas de Solovetsky, escreveu que uma vez vira essa tortura ser aplicada a um preso que se queixara porque
uma remessa de gêneros destinada a ele fora confiscada. Guardas irados reagiram tirando-lhe todas as roupas, inclusive as de baixo, e amarrando-o a um mastro nas
matas, as quais, no verão boreal, estavam infestadas de mosquitos. "Passada meia hora, todo o seu corpo infeliz estava coberto de inchaços provocados pelas picadas",
escreveu Klinger. O homem acabou desfalecendo com a dor e a perda de sangue.
Execuções em massa pareciam ocorrer de modo quase aleatório, e muitos prisioneiros lembram-se de ter vivido aterrorizados com a perspectiva da morte arbitrária.
Likhachev afirma ter escapado por pouco a uma chacina no final de outubro de 1929. Documentos de arquivo realmente indicam que cerca de cinqüenta pessoas (e não
trezentas, número registrado por Likhachev) foram executadas na época, tendo sido acusadas de tentar organizar uma rebelião.
Quase tão ruim quanto uma execução direta era a sentença de envio para a Sekirka, a igreja cujos porões haviam se tornado as celas punitivas de Solovetsky. De fato,
embora se contassem muitas histórias sobre o que acontecia nos porões da igreja, tão poucos homens voltavam da Sekirka que fica difícil ter certeza de quais eram
realmente as condições ali. Mas uma testemunha chegou mesmo a ver as turmas sendo conduzidas ao trabalho: "uma fila de pessoas aterrorizadas, com olhar inumano,
algumas trajadas com sacas, todas descalças, rodeadas por uma guarda cerrada".
Segundo rezava a legenda de Solovetsky, a longa escadaria de 365 degraus de madeira que desciam a íngreme colina dessa igreja também desempenhava um papel nas matanças.
Em certo momento, quando as autoridades do campo proibiram que se atirasse contra os presos da Sekirka, os guardas começaram a providenciar "acidentes" - jogando
os detentos escadaria abaixo. Há poucos anos, descendentes de presos de Solovetsky ergueram uma cruz de madeira no pé da escadaria, para marcar o lugar onde esses
antepassados teriam morrido. Hoje, é um lugar sossegado e bem bonito - tanto que, no final da década de 1990, o museu de história local de Solovetsky imprimiu um
cartão de Natal que mostrava a Sekirka, a escadaria e a cruz.
Embora o clima reinante de irracionalidade e imprevisibilidade significasse que milhares morreriam na Slon na primeira metade da década de 1920, a mesma irracionalidade
e a mesma imprevisibilidade também ajudavam outros não apenas a sobreviver, mas também a cantar e dançar - literalmente. Em 1923, um punhado de presos já começara
a organizar o primeiro teatro do campo. De início, os "atores", muitos dos quais passavam dez horas cortando madeira nas florestas antes de ir ensaiar, não tinham
texto, de modo que encenavam os clássicos de memória. O teatro melhorou muitíssimo em 1924, quando chegou um grupo inteiro de ex-atores profissionais - todos condenados
como membros do mesmo movimento contra-revolucionário. Naquele ano, montaram Tio Vanya, de Tchekhov, e Os filhos do sol, de Gorki.
Posteriormente, encenaram-se óperas e operetas no teatro de Solovetsky, o qual também apresentava filmes e exibições acrobáticas. Certo sarau musical abrangia uma
peça orquestral, um quinteto, um coro e árias de uma ópera russa. A programação de março de 1924 incluía uma peça de Leonid Andreev (cujo filho, Danil, também escritor,
seria preso do Gulag), uma peça de Gogol e uma noite dedicada à memória de Sarah Bernhardt.
Tampouco era o teatro a única forma de cultura disponível. Solovetsky tinha uma biblioteca (que chegaria a possuir 30 mil livros) e o jardim botânico (onde os presos
faziam experiência com plantas do Ártico). Os cativos, muitos deles ex-cientistas de São Petersburgo, também organizaram um museu da flora, fauna, arte e história
locais. Alguns dos prisioneiros mais privilegiados faziam uso de um "clube" que, pelo menos nas fotos, parece verdadeiramente burguês. As imagens mostram piano,
parquete e retratos de Marx, Lênin e Lunacharsky (o primeiro ministro soviético da Cultura), tudo muito aconchegante.
Usando o velho equipamento litográfico dos monges, os presos de Solovetsky também produziam jornais e mensários que traziam cartuns, poesia extremamente saudosa
e ficção surpreendentemente franca. Na edição de dezembro de 1925 da Solovetskie Ostrova (nome que significa "ilhas Solovetsky"), um conto falava de uma ex-atriz
que chegara à ilha principal, fora obrigada a trabalhar como lavadeira e não se acostumara à nova vida. A história termina com esta frase: "Solovetsky é amaldiçoada".
Em outro conto, um ex-aristocrata que freqüentara "noitadas íntimas no Palácio de Inverno" consola-se com a nova situação só quando visita outro aristocrata e fala
dos velhos tempos. Pelo visto, os clichês do realismo socialista ainda não eram obrigatórios. Nem todas essas narrativas têm o final feliz que depois seria obrigatório,
e nem todos os prisioneiros ficcionais se adaptavam alegremente à realidade soviética.
Os periódicos de Solovetsky também continham artigos mais eruditos, indo desde a análise de Likhachev sobre as regras de etiqueta dos criminosos na jogatina até
trabalhos sobre a arte e a arquitetura das ruínas de igrejas de Solovetsky. Entre 1926 e 1929, a gráfica da Slon conseguiu lançar 29 edições do trabalho da Associação
de Estudos Locais de Solovetsky. Esta conduzia pesquisas sobre a flora e a fauna do arquipélago, concentrando-se em determinadas espécies (os cervos-boreais, as
plantas locais) e publicava artigos sobre olaria, correntes eólicas, minerais úteis e criação de animais de pele. Alguns presos ficaram tão interessados neste último
tema que, em 1927, quando a atividade econômica do arquipélago estava no auge, um grupo deles importou algumas raposas-prateadas "reprodutoras" para melhorar a qualidade
dos rebanhos locais. Entre outras coisas, a associação executou um levantamento geológico, o qual o diretor do museu de história das ilhas ainda usa.
Esses mesmos presos privilegiados também participavam dos novos ritos e comemorações soviéticos, eventos dos quais uma geração posterior de detentos dos campos seria
propositalmente excluída. Na edição de setembro de 1925 da Solovetskie Ostrova, um artigo descreve a comemoração do 1º de maio nas ilhas. Infelizmente, o tempo estava
ruim:
No 1° de maio, flores se abrem por toda a União Soviética, mas, em Solovetsky, o mar ainda está cheio de gelo, e há muita neve. Apesar disso, estamos nos preparando
para comemorar o feriado proletário. Desde manhã cedo, há agitação nos alojamentos. Alguns se lavam. Outros fazem a barba. Um remenda as roupas. Outro engraxa as
botas [...].
Ainda mais surpreendente (da perspectiva dos anos posteriores) era a grande persistência das cerimônias religiosas nas ilhas. Alexander V. A. Kazachkov, um ex-condenado,
lembrou a "grandiosa" Páscoa de 1926.
Não muito antes do feriado, o novo chefe da divisão exigiu que todos os que quisessem ir à igreja lhe apresentassem uma declaração. De início, quase ninguém o fez
- as pessoas tinham medo das conseqüências. Mas, pouco antes da Páscoa, um número enorme apresentou suas declarações [...]. Ao longo da estrada para a igreja Onufrievskaya,
a capela do cemitério, seguia uma grande procissão, com as pessoas caminhando em várias fileiras. Claro que nem todos coubemos na capela. Houve gente que ficou em
pé no lado de fora, e os que chegaram atrasados nem conseguiam ouvir o ofício.
Até a edição de maio de 1924 do Solovetskoi Lageram (outro periódico prisional) trazia um editorial cauteloso, mas positivo, a respeito da Páscoa, "um antigo feriado
que comemora a chegada da primavera", o qual, "sob o estandarte vermelho, ainda se pode celebrar".
Junto com os feriados religiosos, uns poucos dentre os monges que outrora habitavam o lugar também sobreviviam (para espanto de muitos presos) até bem depois de
1925. Serviam na condição de "monges-instrutores", supostamente transmitindo aos presos as habilidades necessárias para tocar os empreendimentos rurais e pesqueiros
de lá, antes bem-sucedidos (o arenque de Solovetsky costuma ir à mesa do czar), assim como os segredos do complexo sistema de canais que os religiosos haviam utilizado
durante séculos para ligar as igrejas da ilha principal. Com o passar dos anos, juntaram-se aos monges dezenas de outros padres soviéticos e membros da hierarquia
eclesiástica, tanto ortodoxa quanto católica, que tinham se oposto ao confisco das propriedades da Igreja ou violado o "decreto sobre a separação entre Igreja e
Estado". O clero, de certa maneira como os presos políticos socialistas, estava autorizado a viver à parte, num alojamento específico do kremlin, e também tinha
permissão para realizar ofícios religiosos na capelinha do antigo cemitério, e isso até 1930-31. Aos outros presos, tal luxo só era concedido em ocasiões especiais.
Esses privilégios parecem ter causado algum ressentimento, e havia tensões ocasionais entre os clérigos e os presos comuns. Uma detenta, removida para uma colônia
materna especial na ilha de Anzer após ter dado à luz, recordou que as freiras dali "mantinham-se afastadas de nós, as descrentes [...], eram bravas, não gostavam
das crianças e nos detestavam". Outros clérigos, conforme repetem várias memórias, tinham justamente a atitude oposta, dedicando-se à evangelização e às obras sociais
ativas, tanto entre os criminosos como entre os presos políticos.
Para quem o tinha, o dinheiro também podia comprar a dispensa do trabalho nas florestas e servir de seguro contra a tortura e a morte. Solovetsky contava com um
restaurante que podia atender (ilegalmente) os presos. Quem tinha condições de pagar o suborno necessário também trazia de fora a própria comida. Em certa altura,
a administração do campo até estabeleceu "lojas" nas quais os presos podiam adquirir itens de vestuário a preços duas vezes mais altos que nos estabelecimentos soviéticos
normais. Uma pessoa que teria conseguido livrar-se do sofrimento pagando era o "conde Violaro", uma figura de aventureiro cujo nome aparece (com ampla variedade
de grafias) em várias memórias. O conde, em geral descrito como o "embaixador mexicano no Egito", cometera o erro de, logo após a Revolução, ter ido visitar a família
da mulher na Geórgia soviética. Tanto ele quanto a esposa foram presos e deportados para o extremo norte. Embora de início ficassem encarcerados (com a condessa
tendo de trabalhar como lavadeira), a lenda do campo conta que, pela quantia de 5 mil rublos, o conde comprou o direito de morarem numa casa em separado, com cavalo
e serviçal. Outros se recordam da presença de um rico comerciante indiano de Bombaim, o qual depois foi embora com a ajuda do consulado britânico em Moscou. Posteriormente,
as memórias desse indiano seriam publicadas pela imprensa dos exilados.
Esses e outros exemplos de presos ricos que viviam bem (e se iam embora logo) eram tão notáveis que, em 1926, um grupo de detentos menos privilegiados escreveu carta
ao Presidium do Comitê Central do Partido Comunista, denunciando "o caos e a violência que dominam o campo de concentração de Solovetsky". Usando frases que pretendiam
influenciar a liderança comunista, queixavam-se de que "quem tem dinheiro consegue arranjar-se, dessa maneira jogando todas as dificuldades nos ombros dos operários
e camponeses sem tostão". Alegavam que, enquanto os ricos compravam tarefas mais fáceis, "os pobres trabalham de catorze a dezesseis horas por dia". No fim das
contas, não seriam eles os únicos descontentes com as práticas irregulares dos comandantes de campo de Solovetsky.
Se a violência fortuita e o tratamento injusto incomodavam os presos, quem estava em escalões mais altos da hierarquia soviética se inquietava com questões um tanto
diferentes. Na metade da década de 1920, já ficara claro que a Slon, assim como o sistema prisional "comum", não conseguira atingir a mais importante das metas estabelecidas
para os campos: que eles se tornassem auto-sustentáveis. Na realidade, não apenas os campos de concentração soviéticos - tanto os "especiais" quanto os comuns -
não vinham dando lucro, como também seus comandantes ficavam requerendo mais fundos o tempo todo.
Nisso, Solovetsky se assemelhava às outras prisões soviéticas da época. No arquipélago, os extremos de crueldade e conforto eram provavelmente mais flagrantes que
em outros lugares, devido à natureza especial dos presos e dos guardas; contudo as mesmas irregularidades caracterizavam outros campos e prisões pela URSS daquele
tempo. Em teoria, o sistema prisional comum também consistia em "colônias" de trabalho ligadas a fazendas, oficinas e fábricas, e sua atividade econômica era igualmente
mal organizada e não-lucrativa. Em 1928, o relatório de um inspetor sobre um desses campos, na região rural da Carélia (59 presos, sete cavalos, dois porcos e 21
cabeças de gado), se queixava de que apenas metade dos presos tinha cobertor; de que os cavalos estavam em mau estado (um deles tendo sido vendido, sem autorização,
a um cigano); de que outros cavalos eram regularmente usados para fazer servicinhos para os guardas; de que, quando libertaram o ferreiro do campo, ele foi embora
levando todas as suas ferramentas; de que nenhuma das construções do campo dispunha de aquecimento ou mesmo isolamento térmico, exceção feita à residência do administrador.
Pior: esse mesmo administrador-chefe passava três ou quatro dias por semana fora do campo; freqüentemente soltava presos antes de cumpridas as sentenças, sem autorização
para tanto; "recusava-se teimosamente" a ensinar agronomia aos presos; e afirmava abertamente sua crença na "inutilidade" do processo de reabilitação. Algumas das
mulheres dos presos moravam no campo; outras vinham para visitas demoradas e sumiam no mato com os maridos. Os guardas se permitiam "bebedeiras e rixas mesquinhas".
Não admira que, em 1929, autoridades mais altas tenham repreendido o governo da Carélia por "não se dar conta da importância nem dos trabalhos forçados como medida
de defesa social, nem do caráter vantajoso deles para o Estado e a sociedade".
Fica claro que tais campos não eram rentáveis, tendo sido assim desde o início, conforme mostram os registros. Já em julho de 1919, os líderes da Cheka em Gomei,
na Bielo-Rússia, enviaram carta a Dzerzhinsky requerendo um subsídio urgente de 500 mil rublos: a construção do campo local se interrompera por falta de recursos.
Na década subseqüente, os diferentes ministérios e instituições que disputavam o direito de controlar os campos prisionais continuaram a discutir por causa tanto
de financiamento quanto de poder. Para aliviar o sistema prisional, decretavam-se anistias periódicas, culminando numa bem grande no outono de 1927, no décimo aniversário
da Revolução de Outubro. No sistema prisional comum, soltaram-se mais de 50 mil pessoas, em grande parte pela urgência de aliviar a superlotação e economizar dinheiro.
Em 10 de novembro de 1925, a necessidade de "fazer melhor uso dos presos" já era reconhecida no mais alto escalão. Naquela data, G. L. Pyatakov, bolchevique que
tinha uma série de cargos econômicos importantes, escreveu a Dzerzhinsky:
Cheguei à conclusão de que, para criar as condições mais elementares de uma cultura laborai, terão de estabelecer-se colônias de trabalhos forçados em certas regiões.
Tais colônias poderiam aliviar a superlotação nos locais de encarceramento. Dever-se-ia ordenar à GPU que estudasse a questão.
Pyatakov então relacionava quatro regiões que precisavam ser desenvolvidas urgentemente, todas as quais - a ilha de Sacalina, no Extremo Oriente; as terras em torno
da foz do rio Ienissei, no extremo norte; a estepe cazaque; e as imediações da cidade siberiana de Nerchinsk - depois se tornariam campos de concentração. Dzerzhinsky
aprovou o memorando e o enviou a dois outros colegas para que o elaborassem mais.
De início, nada aconteceu, talvez porque o próprio Dzerzhinsky tenha morrido logo em seguida. Apesar disso, o memorando pressagiou mudanças. Até meados da década
de 1920, a liderança soviética ainda não deixara claro se suas prisões e campos de concentração se destinavam primordialmente a reabilitar os presos, puni-los ou
obter lucros para o regime. Agora, as muitas instituições com interesse no destino dos campos estavam chegando lentamente a um consenso: as prisões tinham de ser
auto-sustentáveis. No final da década, o mundo desordenado das prisões pós-revolucionárias estaria transformado, e um novo sistema surgiria do caos. Solovetsky se
tornaria não apenas um empreendimento econômico organizado, mas também um campo-modelo, exemplo a ser clonado muitos milhares de vezes ao longo da URSS.
Mesmo que na época ninguém estivesse consciente disso, a importância de Solovetsky ficaria bem clara em retrospecto. Posteriormente, reportando-se a um encontro
do Partido em Solovetsky, um comandante local chamado camarada Uspensky declararia que "a experiência de trabalho do campo de Solovetsky convenceu o Partido e o
governo de que o sistema prisional da União Soviética precisa ser substituído por um sistema de campos de trabalhos forçados correcionais."
No mais alto escalão, algumas dessas mudanças eram previstas desde o início, como mostra o memorando a Dzerzhinsky. Entretanto, as técnicas do novo sistema - os
novos métodos de administrar os campos, de organizar os presos e seu regime de trabalho - foram criadas no próprio arquipélago. Em meados da década de 1920, o caos
pode até ter reinado em Solovetsky, mas desse caos surgiu o futuro sistema do Gulag.
Pelo menos parte da explicação de como e por que a Slon mudara gira em torno da personalidade de Naftaly Aronovich Frenkel, um preso que foi sendo promovido até
se tornar um dos mais influentes comandantes de Solovetsky. Por um lado, Soljenitsin afirma em Arquipélago Gulag que o próprio Frenkel concebeu o sistema de alimentar
os presos segundo o trabalho produzido. Esse sistema fatal, que em questão de semanas destruía presos mais fracos, depois causaria incontáveis mortes, conforme veremos.
Por outro lado, uma ampla gama de historiadores russos e ocidentais contesta a importância de Frenkel e descarta como mera lenda as muitas histórias sobre a onipotência
dele.
De fato, Soljenitsin provavelmente atribui peso demasiado a Frenkel: prisioneiros de campos bolcheviques anteriores, pré-Solovetsky, também mencionam ter recebido
comida a mais pelo trabalho extra; e, de qualquer modo, a idéia, em certo sentido, é mesmo óbvia e não precisa necessariamente ter sido concebida por um único homem.
Não obstante, arquivos recém-abertos, em especial os arquivos regionais da Carélia (a república soviética à qual Solovetsky pertencia então), realmente deixam clara
a importância de Frenkel. Mesmo que não tenha inventado cada aspecto do sistema, ele encontrou um jeito de transformar um campo prisional numa entidade econômica
aparentemente rentável, e o fez numa época, num lugar e de uma maneira que podem muito bem ter chamado a atenção de Stalin para a idéia.
Mas a confusão tampouco é surpreendente. O nome de Frenkel aparece em muitas das memórias escritas sobre os primeiros tempos do sistema de campos, e por elas fica
claro que, mesmo em vida, a identidade daquele homem já estava envolta em mito. Fotos oficiais mostram um indivíduo de aparência calculadamente sinistra, usando
boné de couro e bigode muito bem aparado; um memorialista recorda que Frenkel "se trajava como um dândi". Um de seus colegas da OGPU, o qual o admirava muitíssimo,
surpreendia-se com sua memória infalível e sua aptidão para fazer contas de cabeça: "Ele nunca punha nada no papel". Depois, a propaganda soviética também se desfaria
em eloqüentes elogios à "incrível memória" dele e falaria de seus "excelentes conhecimentos do trabalho madeireiro e florestal em geral", sua perícia em matéria
de agricultura e engenharia e sua excelente cultura geral:
Certo dia, por exemplo, ele entabulou conversa com dois trabalhadores do truste que fabrica sabonetes, perfumes e cosméticos. Logo os reduziu ao silêncio, pois exibiu
enorme conhecimento sobre perfumaria e até se revelou perito no mercado mundial e nas preferências e aversões olfativas dos habitantes do arquipélago Malaio!
Outros o odiavam e temiam. Em 1928, numa série de reuniões especiais da célula do Partido em Solovetsky, os colegas de Frenkel o acusaram de organizar uma rede própria
de espiões, "de modo que ele, antes dos outros, sabe tudo sobre todos". Em 1927, histórias a seu respeito chegavam até Paris. Num dos primeiros livros sobre Solovetsky,
um anticomunista francês escreveu que, "graças às iniciativas pavorosamente insensíveis [de Frenkel], milhões de infelizes se vêem oprimidos por terríveis trabalhos
forçados, por sofrimentos atrozes".
Os contemporâneos de Frenkel não se mostram claros a respeito das origens dele. Soljenitsin o chama de "judeu turco nascido em Constantinopla". Outro o descreveu
como "industrial húngaro". Shiryaev alegava que Frenkel era oriundo de Odessa, ao passo que outros diziam que viera da Áustria, ou da Palestina, ou que trabalhara
na fábrica da Ford nos Estados Unidos. A história fica um tanto mais clara quando se lê seu registro de preso, que informa que ele nasceu em Haifa em 1883, época
em que a Palestina era parte do Império Otomano. De lá, ele provavelmente seguiu (talvez por Odessa, talvez pela Áustria-Hungria) para a URSS, onde se descreveu
como "comerciante". Em 1923, as autoridades o prenderam por "ter atravessado fronteiras ilegalmente", o que podia significar que era um comerciante que se permitia
fazer algum contrabando, ou que era apenas um comerciante que se tornara demasiado bem-sucedido para o gosto soviético. Foi condenado a dez anos de trabalhos forçados
em Solovetsky.
Também permanece um mistério o modo exato pelo qual Frenkel se metamorfoseou de preso em comandante de campo. A lenda diz que, ao chegar lá, ele ficou tão horrorizado
com a má organização, com o desperdício puro e simples de dinheiro e mão-de-obra, que sentou e escreveu uma carta muito ao ponto, descrevendo de maneira precisa
o que estava errado com cada uma das atividades econômicas locais, entre elas a silvicultura, a agropecuária e a olaria. Pôs a carta na "caixa de reclamações" dos
presos, onde ela chamou a atenção de um administrador, que, por sua vez, a enviou como curiosidade para Genrikh Yagoda, o chekista que então subia rapidamente na
burocracia da polícia secreta e acabaria por tornar-se o líder dela. Consta que Yagoda teria exigido conhecer de imediato o autor da carta. De acordo com um contemporâneo
(e com Soljenitsin, que não explicita nenhuma fonte), o próprio Frenkel afirmou que, em certa altura, foi levado às pressas para Moscou, onde teria discutido suas
idéias também com Stalin e um dos sequazes deste, Kaganovich. É aí que a lenda fica mais nebulosa: embora os registros realmente mostrem que Frenkel se encontrou
com Stalin nos anos 1930, e embora tenha sido protegido por esse último durante os expurgos no Partido, ainda não se achou nenhuma comprovação de uma visita na década
anterior. Isso não quer dizer que ela não tenha acontecido - pode muito ser que os registros não tenham perdurado.
Algumas provas circunstanciais corroboram tais histórias. Naftaly Frenkel foi, por exemplo, promovido de preso a guarda em surpreendentemente pouco tempo, até pelos
padrões caóticos da Slon. Em novembro de 1924, quando estava no campo havia menos de um ano, a administração da Slon já solicitara sua soltura antecipada. O requerimento
foi aprovado em 1927. Entrementes, a administração do campo apresentara regularmente declarações à OGPU que descreviam Frenkel nos termos mais elogiosos: "no campo,
ele se portou como trabalhador tão excepcionalmente talentoso que ganhou a confiança da administração da Slon e é tratado como autoridade [...] é um dos raros trabalhadores
responsáveis".
Sabemos ainda que Frenkel organizou e administrou o Departamento Econômico-comercial (Ekonomicheskaya Kommercheskaya Chast) da Slon e, nessa condição, procurou tornar
os campos de Solovetsky não apenas auto-sustentáveis, conforme requerido pelos decretos sobre os campos de concentração, mas também realmente lucrativos - a ponto
de terem começado a tirar trabalho de outros empreendimentos. Embora estes fossem estatais, e não privados, ainda havia elementos de concorrência econômica na URSS
dos anos 1920, e Frenkel se aproveitou disso. Em setembro de 1925, com o Departamento Econômico-comercial sob sua direção, a Slon já conquistara o direito de cortar
130 mil metros cúbicos de madeira na Carélia, tendo oferecido condições comerciais melhores que as de determinada empresa civil. A Slon também se tornara cotista
no Banco Comunal da Carélia e disputava o direito de construir uma estrada que iria de Kem à cidade de Ukhta, no extremo norte.
Desde o começo, as autoridades da Carélia ficaram enervadas com toda essa atividade, em especial porque inicialmente haviam se oposto a própria construção do campo.
Depois, suas queixas foram aumentando de intensidade. Numa assembléia convocada para discutir a expansão da Slon, autoridades locais reclamaram de que o campo tinha
acesso injusto à mão-de-obra barata e, portanto, deixava sem trabalho os madeireiros comuns. Posteriormente, o clima nessas reuniões mudou, e os presentes levantaram
objeções mais sérias. Em fevereiro de 1926, numa assembléia do Conselho Careliano de Comissários do Povo (o governo da República Careliana), vários líderes locais
atacaram a Slon por exagerar nos preços cobrados a eles e exigir dinheiro demais para construir a estrada de Kem a Ukhta. "Fica claro", resumiu um irado camarada
Yuzhnev, que "a Slon é um kommersant, um comerciante com mãos grandes e ávidas, e que seu objetivo básico é o lucro."
A estatal mercantil da Carélia também ficou em pé de guerra contra a decisão da Slon de abrir uma loja própria em Kem. A estatal não tinha recursos para estabelecer
negócio semelhante, mas a Slon, que podia exigir dos presos jornadas de trabalho mais longas e pagar-lhes bem menos (na realidade, nada), conseguiu fazê-lo. Pior:
as autoridades protestavam que os vínculos especiais da Slon com a OGPU lhes permitiam desconsiderar as leis locais e não contribuir para o orçamento da região.
A discussão sobre a lucratividade, eficiência e justiça da mão-de-obra prisional continuaria pelo quarto de século seguinte (e voltará a ser abordada mais adiante,
de modo mais completo). Contudo, em meados da década de 1920, as autoridades locais da Carélia não estavam levando a melhor no debate. Em seus relatórios de 1925
sobre as condições econômicas no campo de Solovetsky, o camarada Fyodor Eichmanns (na época o segundo de Nogtev, embora depois viesse a comandar o campo) se gabava
das realizações econômicas da Slon, afirmando que a olaria, antes em "estado deplorável", agora prosperava; que o corte de madeira já superava a meta anual; que
a usina elétrica fora concluída; e que a produção de pescado dobrara. Versões desses relatórios seriam publicadas para consumo popular tanto nos periódicos de Solovetsky
quanto em órgãos de outras regiões da URSS. Traziam cálculos cuidadosos: um relatório estimava em 29 copeques (centavos de rublo) o custo médio diário das rações
e em 34,57 rublos o custo anual da indumentária. Constava que o gasto total com cada preso, aí incluídos o traslado e a assistência médica, era de 211,67 rublos
por ano. Embora em 1929 o campo apresentasse um déficit de 1,6 milhão de rublos (bem possivelmente porque a OGPU estava afanando dinheiro do caixa), o suposto
êxito econômico de Solovetsky ainda era muito alardeado.
Tal êxito logo se tornou o principal argumento para que se reestruturasse todo o sistema prisional soviético. Se isso se fizesse ao custo de piores rações e condições
de vida para os presos, ninguém se importaria muito. Se o preço fosse o azedamento das relações com as autoridades locais, tampouco alguém se incomodaria.
No próprio campo, poucos tinham dúvidas sobre quem seria o responsável por esse pretenso sucesso. Todos identificavam peremptoriamente Frenkel com a mercantilização
do campo, e muitos o odiavam de modo igualmente peremptório por isso. Em 1928, numa rancorosa reunião do Partido Comunista de Solovetsky (tão rancorosa que parte
das atas foi declarada secreta demais para ser arquivada e, por isso, não está disponível), o camarada Yashenko, um comandante de campo, reclamou de que o Departamento
Econômico-comercial da Slon se tornara influente demais: "tudo é competência deles". Também atacou Frenkel, "um ex-condenado que foi solto após três anos de trabalhos
porque na época não havia gente suficiente [guardas] para operar o campo". Yashenko (cuja linguagem tem forte odor anti-semita) se queixou de que Frenkel ficara
tão importante que, "quando correu o boato de que iria embora, as pessoas disseram que não poderiam trabalhar sem ele".
Yashenko confessou que odiava tanto Frenkel que até pensara em matá-lo. Outros perguntavam por que Frenkel, um ex-condenado, tinha prioridade no atendimento e pagava
preços baixos nos estabelecimentos comerciais da Slon - como se fosse o dono. Outros ainda diziam que a Slon se tornara tão comercial que esquecera suas outras funções:
interrompera-se todo o trabalho de reabilitação nos campos, e os presos estavam sendo submetidos a exigências de trabalho injustas. Quando eles se mutilavam para
fugir às condições laborais, seus casos não eram apurados.
Mas, assim como a Slon ganharia a discussão contra as autoridades da Carélia, assim também Frenkel (talvez graças a seus contatos em Moscou) venceria o debate na
Slon acerca do tipo de campo que Solovetsky deveria tornar-se, de como os prisioneiros trabalhariam ali e de como eles seriam tratados.
Como já mencionei, o provável é que Frenkel não tenha inventado o tristemente célebre critério do "coma pelo que trabalha", conforme o qual os presos recebiam rações
segundo o trabalho produzido. Frenkel, porém, de fato presidiu ao desenvolvimento e florescimento desse sistema, que evoluiu de um arranjo atamancado, em que às
vezes se "pagava" o trabalho com comida, para um método muito preciso e regulado, pelo qual eram distribuídos os alimentos, e organizados os presos.
Na realidade, o sistema de Frenkel era bem simples. Ele dividia os presos da Slon em três grupos, consoante a aptidão física: os considerados capazes de trabalho
pesado; os capazes de serviços leves; e os inválidos. Cada grupo recebia uma série diferente de tarefas e metas. Eram então alimentados de acordo - e as diferenças
entre as rações se mostravam bem drásticas. Uma tabela, elaborada entre 1928 e 1932, destinava oitocentos gramas de pão e oitenta gramas de carne aos integrantes
do primeiro grupo; quinhentos de pão e quarenta de carne aos do segundo; e quatrocentos de pão e quarenta de carne aos do terceiro. Em outras palavras, a categoria
de trabalhador mais baixa recebia o equivalente a apenas metade do que comia a mais alta.
Na prática, o sistema dividia bem depressa os presos entre os que iriam e os que não iriam sobreviver. Os fortes, sendo relativamente bem alimentados, ficavam mais
fortes. Os mais fracos, estando privados de comida, se enfraqueciam e acabavam adoecendo ou morrendo. O processo se tornava mais rápido e mais radical porque as
metas de trabalho eram com freqüência muito elevadas - absurdamente elevadas para alguns presos, em especial a gente da cidade que nunca trabalhara escavando turfa
ou cortando árvores. Em 1928, as autoridades centrais puniram um grupo de guardas de campo porque eles, a fim de cumprir a meta, haviam forçado 128 pessoas a trabalhar
a noite inteira na floresta em pleno inverno. Um mês depois, 75% desses presos ainda estavam com graves queimaduras de frio.
No regime de Frenkel, mudou também a natureza do trabalho da Slon: ele não estava interessado em bobagens como a criação de animais de pele ou o cultivo de plantas
árticas exóticas. Em vez disso, mandava os presos para abrir estradas e cortar árvores, aproveitando-se da mão-de-obra gratuita e não-qualificada que a Slon possuía
em abundância. A natureza do trabalho logo mudou o caráter do campo, ou antes dos campos, pois agora a Slon começava a expandir-se para muito além do arquipélago
de Solovetsky. Sobretudo, Frenkel já não ligava se os presos eram mantidos num ambiente prisional, em cadeias ou atrás de arame farpado. Ele despachou turmas de
seus trabalhadores braçais para toda a República Careliana, para a região de Arcangel na República Russa e para onde mais fossem necessários, a milhares de quilômetros
de Solovetsky.
Tal qual um consultor administrativo que assume uma companhia em dificuldades, Frenkel "racionalizou" outros aspectos da vida no campo, descartando aos poucos tudo
o que não contribuísse para a produtividade econômica. Bem depressa, renunciou-se a toda pretensão de reabilitar. Como se queixavam os detratores de Frenkel, ele
fechara os jornais e outros periódicos do campo e suspendera as reuniões da Associação de Estudos Locais de Solovetsky. O museu e o teatro continuaram a existir,
mas só para impressionar os maiorais que chegavam de visita.
Ao mesmo tempo, a violência aleatória se tornava menos comum. Em 1930, a Comissão Shanin (uma delegação especial da OGPU) chegou à ilha para averiguar rumores de
maus-tratos aos presos. Seus relatórios confirmaram as alegações de tortura e espancamentos excessivos. Numa sensacional reversão da política anterior, a Shanin
condenou e executou dezenove dos responsáveis entre os membros da OGPU. Agora, tais condutas não eram tidas como condizentes com uma instituição que valorizava
acima de tudo a idéia de trudosposobnost - "capacidade de trabalho".
Por fim, sob a liderança de Frenkel, o conceito de "preso político" mudou em definitivo. No outono de 1925, abandonaram-se as distinções artificiais que se haviam
traçado entre quem fora condenado por atividades criminais e quem fora condenado por atividades anti-revolucionárias, uma vez que ambos os grupos eram mandados juntos
ao continente para trabalhar nos enormes projetos de abate de árvores e processamento de madeira na Carélia. A Slon já não reconhecia o status de preso privilegiado;
em vez disso, via todos os prisioneiros como trabalhadores braçais em potencial.
Os residentes socialistas do alojamento do Sawatyevo representavam um problema maior. Ficava claro que esses presos políticos não se encaixavam em nenhuma idéia
de eficiência econômica, pois se negavam, por princípio, a realizar qualquer tipo de trabalho forçado. Recusavam-se até a cortar a própria lenha. "Estamos em degredo
administrativo", reclamou um deles, "e a administração está obrigada a suprir todas as nossas necessidades." Não chega a surpreender que tal atitude começasse a
causar ressentimento na administração do campo. O comandante Nogtev, em especial, embora houvesse negociado pessoalmente com os presos políticos de Petrominsk na
primavera de 1923, e lhes tivesse prometido um regime mais livre em Solovetsky se concordassem em ir para lá pacificamente, parece ter-se melindrado com as intermináveis
exigências deles. Tinha de discutir com eles por causa da liberdade de movimentos, do acesso aos médicos, do direito de corresponderem-se com o mundo lá fora. Finalmente,
em 19 de dezembro de 1923, no auge de uma altercação particularmente azeda a respeito do toque de recolher, os soldados que guardavam o alojamento do Sawatyevo abriram
fogo contra um grupo de presos políticos, matando seis.
O episódio causou furor no estrangeiro. A Cruz Vermelha Política contrabandeou para fora do país informes sobre a fuzilaria. Surgiram relatos na imprensa ocidental
antes mesmo que na Rússia, e houve apressada troca de telegramas entre a ilha e a liderança do Partido Comunista. De início, as autoridades do campo defenderam os
disparos, afirmando que os presos haviam desobedecido ao toque de recolher e que os soldados tinham dado três advertências antes de atirar.
Depois, em abril de 1924, embora não chegasse a reconhecer que os soldados não tinham dado nenhuma advertência (e o consenso entre os presos é de que não deram mesmo),
a administração do campo forneceu uma análise mais detalhada do que ocorrera. Os presos políticos, explicava o relatório, eram uma "classe diferente" daquela à qual
pertenciam os soldados designados para guardá-los. Os presos passavam o tempo lendo livros e jornais; os soldados não tinham livros nem jornais. Os presos consumiam
pão branco, manteiga e leite; os soldados não recebiam nada disso. Era uma "situação anormal". Acumulara-se um ressentimento natural, dos trabalhadores para com
os não-trabalhadores; e, quando os presos desafiaram o toque de recolher, foi inevitável que houvesse derramamento de sangue.83 Numa reunião do Comitê Central do
Partido Comunista, em Moscou, os administradores do campo, para corroborar essas conclusões, leram em voz alta cartas dos presos: "Estou bem disposto e bem alimentado
[...] por ora, não precisam mandar roupas nem alimentos". Outras missivas descreviam as lindas vistas. Depois, quando algumas dessas cartas foram publicadas na
imprensa soviética, presos insistiram em que haviam escrito tais descrições idílicas da vida na ilha só para tranqüilizar os parentes.
Indignado, o Comitê Central resolveu agir. Uma comissão chefiada por Gleb Boky (o maioral da OGPU que estava encarregado dos campos) fez uma visita aos campos de
Solovetsky e ao estabelecimento prisional de trânsito de Kem. Em outubro de 1924, seguiu-se uma série de artigos no Izvestiya. "Quem acredita que Solovetsky seja
uma prisão deprimente e sombria, onde as pessoas ficam inativas, perdendo o tempo em celas superlotadas, está muito enganado", escreveu N. Krasikov. "O campo inteiro
consiste numa enorme organização econômica de 3 mil trabalhadores braçais, atuando nos mais diversos tipos de produção." Tendo entoado loas à indústria e à agricultura
do lugar, Krasikov passava a descrever a vida no alojamento dos socialistas no Sawatyevo:
A vida que levam pode ser caracterizada como anarcointelectual, com todos os aspectos negativos dessa forma de existência. A contínua ociosidade, a insistência nas
mesmas dissensões políticas, as brigas de família, as disputas sectárias e, sobretudo, uma atitude agressiva e hostil para com o governo, em geral, e a administração
local e os guardas do Exército Vermelho, em particular [...], tudo isso combinado faz que aquelas trezentas pessoas (mais ou menos) se mostrem refratárias a toda
medida e toda tentativa das autoridades locais para introduzir regularidade e organização em suas vidas.
Em outro periódico, as autoridades soviéticas afirmavam que os presos socialistas usufruíam rações melhores que as do Exército Vermelho. Ainda mais: tais presos
tinham liberdade para encontrar-se com parentes (de que outra maneira poderiam contrabandear informações para fora?) e dispunham de médicos à vontade, muito mais
do que o normal nas aldeias de trabalhadores. Desdenhosamente, o artigo também alegava que eles exigiam "medicamentos raros e caros", assim como coroas e pontes
de ouro nos dentes.
Era o começo do fim. Após uma série de discussões, durante as quais o Comitê Central ponderou e rejeitou a idéia de mandar esses presos para o exílio no exterior
(preocupava-se com o impacto disso sobre os socialistas ocidentais - especialmente, por alguma razão, sobre o Partido Trabalhista britânico), tomou-se uma decisão.
Ao amanhecer de 17 de junho de 1925, soldados cercaram o mosteiro de Sawatyevo. Deram duas horas para que os presos fizessem as malas. Em seguida, conduziram-nos
marchando para o porto, obrigaram-nos a embarcar e os despacharam para longínquas prisões na Rússia central, de regime realmente fechado - Tobolsk, na Sibéria ocidental,
e Verkhneuralsk, nos Urais -, onde os presos encontraram condições muito piores que as do Sawatyevo. Um deles escreveu:
celas trancadas, o ar contaminado pelo velho e fétido balde sanitário, os presos políticos isolados uns dos outros [...] nossas rações são piores que em Solovetsky.
A administração se nega a reconhecer nosso starosta [líder de grupo]. Não há nem hospital nem assistência médica. A prisão compreende dois pisos. As celas do térreo
são úmidas e escuras. Nelas ficam os camaradas doentes, alguns dos quais tísicos [...].
Embora continuassem lutando por seus direitos, enviando cartas para o exterior, telegrafando mensagens uns para os outros pelas paredes das prisões e organizando
greves de fome, a propaganda bolchevique seguia sufocando os protestos dos socialistas. Em Berlim, Paris e Nova York, as antigas associações de auxílio aos presos
começaram a encontrar maior dificuldade para coletar fundos. "Quando se deram os acontecimentos de 9 de setembro", escreveu um prisioneiro a um amigo que estava
fora da Rússia, referindo-se aos seis presos que haviam morrido baleados em 1923, "achamos subjetivamente que haveria uma convulsão no mundo - nosso mundo socialista.
Mas parece que ele não notou os acontecimentos de Solovetsky, e aí um som de risada adentrou na tragédia."
No final dos anos 1920, os presos socialistas já não tinham status diferenciado. Compartilhavam suas celas com bolcheviques, trotskistas e criminosos comuns. Na
década seguinte, os presos políticos (ou melhor, "contra-revolucionários") seriam considerados não uns privilegiados, mas elementos inferiores, ficando abaixo dos
criminosos na hierarquia dos campos. Não mais sendo cidadãos com direitos do tipo que os antigos presos políticos haviam defendido, eles interessavam a seus carcereiros
apenas na medida em que se mostravam aptos para o trabalho. E só quando trabalhavam recebiam comida suficiente para permanecer vivos.
3. 1929: A GRANDE GUINADA
Quando os bolcheviques chegaram ao poder, eram moles e bonzinhos com os inimigos deles [...] começamos cometendo um erro. A indulgência para com tal força foi um
crime contra as classes laboriosas. Isso logo ficou evidente [...].
Josef Stalin
Em 20 de junho de 1929, o navio Gleb Boky atracou no pequeno porto atrás do kremlin de Solovetsky. Bem acima, presos acompanhavam a cena com grande expectativa.
Em vez dos condenados emaciados e calados que costumavam desembarcar do Gleb Boky, um saudável e enérgico grupo de homens, e uma mulher, conversava e gesticulava
enquanto caminhava. Nas fotos tiradas naquele dia, a maioria parece estar de uniforme: entre eles, havia vários chekistas de destaque, inclusive o próprio Gleb Boky.
Um deles, mais alto que os restantes, dono de um basto bigode, estava trajado com mais simplicidade, usando sobretudo comum e boné de trabalhador. Era o romancista
Máximo Gorki.
Dmitrii Likhachev era um dos presos que assistiam da janela, e ele também se recordaria de alguns dos outros passageiros:
Dava para ver o morrote onde Gorki ficou muito tempo, em pé, junto com uma pessoa de aparência esquisita que usava jaqueta de couro, culotes também de couro, botas
de cano alto e quepe de couro. Era a nora de Gorki, a mulher de seu filho Maxim. Ficava evidente que, na opinião dela, estava vestida como uma autêntica chekista.
O grupo então subiu a uma carruagem do mosteiro, puxada por "um cavalo que só Deus sabe de onde veio", e partiu numa excursão pela ilha.
Como Likhachev bem sabia, Gorki estava longe de ser um visitante comum. Naquela altura da vida, ele era o mui enaltecido e mui homenageado filho pródigo dos bolcheviques.
O escritor, um socialista militante que fora íntimo de Lênin, nem por isso deixara de opor-se ao golpe bolchevique de 1917. Em artigos e discursos posteriores, continuara
a denunciar com veemência sincera o golpe e o terror subseqüente, falando das "políticas doidas" de Lênin e da "cloaca" em que Petrogrado se transformara. Em 1921,
ele finalmente emigrou, trocando a Rússia por Sorrento, onde, de início, continuou a lançar missivas condenatórias e iradas para seus amigos na pátria.
Com o tempo, seu tom mudou, tanto que, em 1928, ele resolveu voltar, por motivos que não estão de todo claros. Soljenitsin, de maneira um tanto mesquinha, afirma
que Gorki retornou porque não se tornara tão famoso quanto esperava no Ocidente e então sentia-se muito infeliz no desterro e não suportava a companhia de outros
exilados russos, a maioria dos quais era muito mais fanaticamente anticomunista do que ele. Qualquer que tenha sido a motivação, Gorki, uma vez tomada a decisão
de voltar, parecia determinado a ajudar o regime soviético o máximo possível. Quase de imediato, partiu numa série de viagens triunfais pela URSS e, de caso pensado,
incluiu Solovetsky no itinerário. Seu duradouro interesse por prisões remontava ao próprio passado de delinqüente juvenil.
Numerosos memorialistas recordam a ocasião da visita de Gorki a Solovetsky, e todos concordam que se fizeram extensos preparativos de antemão. Alguns lembram que
as normas do campo foram alteradas para aquela data e que os maridos se viram autorizados a ver as esposas, sendo de supor que isso se destinava a deixar todo o
mundo com ar mais alegre. Likhachev escreveu que se transplantaram árvores adultas em torno da colônia de trabalho, para dar-lhe aspecto menos desolador, e que
se removeram presos dos alojamentos, a fim de que parecessem menos apinhados. Mas os memorialistas se mostram divididos a respeito do que Gorki realmente fez quando
chegou. De acordo com Likhachev, o escritor percebeu todas as tentativas de lográ-lo. Enquanto lhe mostravam a enfermaria do hospital, onde toda a equipe médica
usava aventais novos, Gorki soltou um desdenhoso "Não gosto de desfiles" e foi-se embora. Passou meros dez minutos na colônia de trabalho e aí se fechou com um preso
de catorze anos, a fim de ouvir a "verdade". Quarenta minutos depois, saiu chorando. Tudo isso segundo Likhachev.
Por outro lado, Oleg Volkov, que também estava em Solovetsky quando da visita de Gorki, afirma que o escritor "só olhou para o que o mandaram olhar". E, embora
a história do menino de catorze anos apareça em outros relatos (conforme uma versão, ele foi fuzilado tão logo Gorki partiu), outros alegam que todos os presos que
tentaram aproximar-se do escritor acabaram repelidos. Parece certo que cartas de presos a Gorki foram depois interceptadas, e, de acordo com uma fonte, pelo menos
um dos missivistas foi subseqüentemente executado. V. E. Kanen, um agente da OGPU que tinha caído em desgraça e sido aprisionado, diz até que Gorki visitou as celas
punitivas da Sekirka e ali assinou o livro-diário da prisão. Um dos chefes da OGPU de Moscou que estava com Gorki teria escrito: "tendo visitado a Sekirka, encontrei
tudo em ordem, exatamente como seria de esperar". Abaixo disso, segundo Kanen, Gorki acrescentou: "Eu diria que [a prisão] é excelente".
Mas, embora não possamos ter certeza do que de fato ele fez ou viu na ilha, podemos ler o ensaio que escreveu depois, o qual assumiu a forma de impressões de viagem.
Ali, Gorki enalteceu a beleza natural das ilhas e descreveu as construções pitorescas e seus igualmente pitorescos habitantes. Na viagem de barco para a ilha, ele
até conheceu alguns dos antigos monges de Solovetsky. "E como a administração os trata?", pergunta-lhes. "A administração quer que todos trabalhem", respondem. "E
nós trabalhamos."
Gorki também escreve com admiração sobre as condições de trabalho, claramente pretendendo que seus leitores entendam que um campo soviético de galés não era de modo
algum a mesma coisa que um campo capitalista (ou czarista) de galés, e sim um tipo completamente novo de instituição. Em alguns dos cômodos, afirma, viu
quatro ou seis leitos, cada um deles adornado com objetos pessoais [...] há flores nos peitoris. Não se tem nenhuma impressão de que a vida seja regulada em excesso.
Não, não existe nenhuma semelhança com uma prisão. Em vez disso, é como se esses cômodos fossem habitados por passageiros resgatados de um navio que naufragou.
Indo aos locais de trabalho, ele depara com "rapazes saudáveis" que usam botas resistentes e camisas de linho. Encontra poucos presos políticos e, quando o faz,
descreve-os com desdém como "contra-revolucionários, tipos exaltados, monarquistas". Quando lhe contam que foram presos injustamente, ele presume que estejam mentindo.
Em certa altura, parece aludir ao legendário encontro com o menino de catorze anos. Escreve que, durante sua visita a um grupo de delinqüentes juvenis, um deles
lhe traz uma nota de protesto. Em resposta, ouvem-se "gritos agudos" dos outros menores, que chamam o rapaz de "dedo-duro".
Mas não eram apenas as condições de vida que, na descrição de Gorki, faziam de Solovetsky um novo tipo de campo. Os detentos, esses "passageiros resgatados", não
apenas eram felizes e sadios, como também desempenhavam papel vital num experimento grandioso: a transformação de personalidades criminosas e associais em cidadãos
soviéticos úteis. Gorki estava reavivando a idéia de Dzerzhinsky de que os campos deveriam ser não meras penitenciárias, mas "escolas do labor", especialmente concebidas
para moldar o tipo de trabalhador requerido pelo novo sistema soviético. A seu ver, a meta definitiva do experimento era assegurar a "abolição das prisões" - e ele
estava conseguindo. "Se alguma das supostas sociedades cultas da Europa se arrojasse a realizar uma experiência como a dessa colônia", concluía Gorki, "e se semelhante
experiência rendesse frutos como os que a nossa rendeu, tal país faria soar todas as trombetas e se vangloriaria de seu feito." Gorki imaginava que só a "modéstia"
dos líderes soviéticos os impedira de ter a mesma atitude.
Consta que, posteriormente, Gorki disse que nem uma única frase de seu ensaio sobre Solovetsky ficara "intocada pela pena do censor". Na realidade, não sabemos se
ele escreveu o que escreveu por ingenuidade, por um desejo calculado de enganar os leitores ou por imposição dos censores. Quaisquer que tenham sido suas motivações,
esse ensaio de 1929 sobre Solovetsky se tornaria uma pedra fundamental para firmar as atitudes tanto públicas quanto oficiais em face do novo e muitíssimo mais extenso
sistema de campos que estava sendo gestado naquele mesmo ano. A propaganda bolchevique anterior defendera a violência revolucionária como um mal necessário, ainda
que temporário, uma força depuradora transitória. Gorki, ao contrário, fez a violência institucionalizada dos campos de Solovetsky parecer um componente lógico e
natural da nova ordem e ajudou a levar o público a resignar-se ao poder crescente e totalitário do Estado.
Ao fim e ao cabo, 1929 seria lembrado por causa de muitas outras coisas além do ensaio de Gorki. Naquele ano, a Revolução já amadurecera. Quase uma década se passara
desde o fim da Guerra Civil. Lênin morrera havia muito. Experimentos econômicos de vários tipos - a Nova Política Econômica, o comunismo de guerra - tinham sido
testados e abandonados. Da mesma forma que o desconjuntado campo de concentração do arquipélago de Solovetsky se tornara a rede de campos conhecida como Slon, o
terror aleatório dos primeiros anos da URSS amainara, sendo substituído por uma perseguição mais sistemática àqueles que o regime considerava seus opositores.
Em 1929, a Revolução também já adquirira um tipo muito diferente de líder. No decorrer dos anos 1920, Josef Stalin suplantara ou eliminara primeiro os inimigos dos
bolcheviques e depois os inimigos dele próprio, em parte encarregando-se das decisões do Partido sobre pessoal, em parte fazendo pródigo uso de informações secretas
reunidas para seu benefício pela polícia secreta, na qual ele tinha particular interesse. Stalin lançou uma série de expurgos, que de início significavam a expulsão
do Partido, e providenciou para que eles fossem anunciados em assembléias de massa exaltadas e recriminatórias. Em 1937 e 1938, esses expurgos se tornariam letais:
à expulsão do partido freqüentemente se seguia uma pena de prisão - ou a morte.
Com extraordinária astúcia, Stalin também acabou com Leon Trotski, seu mais importante rival na luta pelo poder. Primeiro, desacreditou Trotski; depois, o desterrou
em uma ilha ao largo da Turquia; em seguida, usou-o para estabelecer um precedente. Depois que Yakov Blyumkin, agente da OGPU e ardoroso partidário de Trotski, visitou
seu herói no exílio turco (e voltou de lá com uma mensagem de Trotski a seus seguidores), Stalin fez que Blyumin fosse condenado e executado. Dessa maneira, demonstrou
que o Estado se dispunha a usar todo o poder de seus órgãos repressivos não apenas contra membros de outros partidos socialistas e o antigo regime, mas também contra
dissidentes dentro do próprio Partido Bolchevique.
Em 1929, porém, Stalin ainda não era o ditador que se tornaria no final da década seguinte. É mais exato dizer que, naquele ano, Stalin estabeleceu as políticas
que acabariam por consagrar o poder dele e, simultaneamente, transformar a economia e a sociedade soviéticas de tal maneira que elas ficariam irreconhecíveis. Historiadores
ocidentais deram a essas políticas o nome "Revolução de Cima Para Baixo" ou "Revolução Stalinista". Stalin as denominou a "Grande Guinada".
No cerne dessa revolução de Stalin estava um novo programa de industrialização extremamente - quase histericamente - rápida. Ao mesmo tempo, a Revolução Soviética
ainda não acarretara melhoria material real na vida da maior parte das pessoas. Pelo contrário: os anos da Revolução, da Guerra Civil e da experimentação econômica
haviam provocado maior empobrecimento. Então, talvez percebendo o crescente descontentamento popular com a Revolução, Stalin partiu para mudar as condições de vida
do povo comum - radicalmente.
Com esse objetivo, o governo soviético aprovou em 1929 um novo "Plano Qüinqüenal", um programa econômico que almejava um aumento anual de 20% na produção da indústria.
Reinstaurou-se o racionamento de comestíveis. Durante algum tempo, abandonou-se a semana de cinco dias úteis. Em vez disso, o trabalho se baseou em turnos, para
que as fábricas não parassem em momento algum. Em projetos de alta prioridade, não se desconheciam turnos de 36 horas, e alguns operários ficavam no trabalho uma
média de trezentas horas por mês. O espírito da época, imposto de cima mas entusiasticamente adotado embaixo, era uma forma de competição permanente, na qual burocratas
e diretores de fábrica, operários e escriturários disputavam uns com os outros para cumprir as metas do Plano Qüinqüenal, superá-las ou, pelo menos, propor maneiras
mais novas e mais rápidas de superá-las. Simultaneamente, a ninguém se permitia duvidar da sensatez do Plano. Isso valia para os mais altos escalões: líderes do
Partido que punham em dúvida o valor da industrialização apressada não ficavam muito tempo no cargo. Valia também para os escalões mais baixos. Um sobrevivente daqueles
tempos lembrou que, no jardim-de-infância, marchava pela sala de aula carregando um pequeno estandarte e cantando:
Cinco em quatro,
Cinco em quatro,
Cinco em quatro,
E não em cinco!
Infelizmente, o significado dessa frase - que o Plano Qüinqüenal seria completado em quatro anos - escapava inteiramente ao menino.
Como seria o caso com todas as grandes iniciativas soviéticas, o início da industrialização maciça criou categorias inteiramente novas de criminosos. Em 1926, o
Código Penal fora reescrito para incluir, entre outras coisas, uma definição ampliada do artigo 58, que definia crimes "contra-revolucionários". Tendo tido antes
apenas um ou dois parágrafos, o artigo 58 agora continha dezoito incisos - e a OGPU se utilizava de todos, sobretudo para prender especialistas técnicos. Como seria
de prever, não se conseguia acompanhar o ritmo acelerado da mudança. Tecnologia primitiva, aplicada com demasiada pressa, causava erros. Alguém precisava levar a
culpa. Donde as prisões dos "destruidores" e "sabotadores", cujos propósitos malévolos impediam a economia soviética de corresponder ao que a propaganda alardeava.
Alguns dos primeiros grandes julgamentos públicos - o de Shakhty, em 1928; o do Partido Industrial, em 1920 - eram na realidade processos contra engenheiros e integrantes
da intelligentsia técnica. O mesmo ocorria com o processo Metro-Vickers, de 1933, que atraiu muita atenção externa porque entre os réus estavam tanto russos como
britânicos, todos acusados de "espionagem e sabotagem" em favor da Grã-Bretanha.
Mas haveria outras fontes de presos. Isso porque, em 1929, o regi-|me soviético também acelerou o processo de coletivização forçada da agricultura, uma vasta convulsão
que, em certos sentidos, foi mais profunda que a própria Revolução Russa. Num período incrivelmente pequeno, os comissários rurais obrigaram milhões de camponeses
a abrir mão de suas pequenas propriedades e ingressar em fazendas coletivas, muitas vezes expulsando-os de terras que as famílias desses lavradores cultivavam fazia
séculos. A transformação enfraqueceu a agricultura soviética de maneira permanente e criou as condições para as terríveis e devastadoras fomes que ocorreriam na
Ucrânia e na Rússia meridional em 1932 e 1934 - e que matariam entre 6 milhões e 7 milhões de pessoas. A coletivização também destruiu - para sempre - a percepção
russa de continuidade com o passado.
Milhões resistiram à coletivização, escondendo cereais nos porões ou se negando a cooperar com as autoridades. Esses refratários eram tachados de kulaks (camponeses
ricos), um termo que (de modo muito semelhante à definição de "sabotador") era tão vago que quase todo o mundo se encaixava nele. Ter uma vaca ou um quarto extras
já bastava para qualificar como kulaks até camponeses que era visivelmente pobres; a acusação de algum vizinho invejoso tinha o mesmo efeito. Para quebrar a resistência
dos kulaks, o regime, na prática, ressuscitou a velha tradição czarista do degredo administrativo. De um dia para o outro, caminhões e vagões simplesmente chegavam
a uma aldeia e levavam embora famílias inteiras. Alguns kulaks foram fuzilados; outros, presos e condenados aos campos de concentração. Ao fim e ao cabo, porém,
o regime degredou a maioria deles. Entre 1930 e 1933, mais de 2 milhões de kulaks foram desterrados para a Sibéria, o Cazaquistão e outras regiões subpovoadas da
URSS, onde passaram o resto da vida como "degredados especiais", proibidos de sair das aldeias que lhes couberam. Outros 100 mil foram presos e mandados para o Gulag.
À medida que se instalava a fome (ajudada pela falta de chuva), seguiam-se mais prisões. Todo cereal disponível foi tirado das aldeias e propositalmente negado aos
kulaks. Os que eram pegos furtando quantidades ínfimas, mesmo que para alimentar os filhos, também acabavam na prisão. Uma lei de 7 de agosto de 1932 impunha a pena
de morte, ou uma longa pena nos campos de concentração, para todos esses "crimes contra a propriedade estatal". Logo depois, apareceram nos campos de concentração
as "respigadoras": camponesas que, para sobreviver, pegavam restos de cereal deixados na terra após a colheita. A elas se juntaram outros, como os famintos que recebiam
penas de dez anos por terem furtado meio quilo de batata ou algumas maçãs. Tais leis explicam por que os camponeses constituíam a imensa maioria dos presos nos
campos de concentração soviéticos durante toda a década de 1930; e por que eles continuariam a ser parte substancial da população carcerária até a morte de Stalin.
Nos campos de concentração, o impacto dessas prisões maciças foi enorme. Quase tão logo as novas leis entraram em vigor, os administradores dos campos começaram
a exigir uma reforma rápida e radical de todo o sistema. O sistema prisional "comum", que ainda estava a cargo do Comissariado do Interior - e continuava muito maior
que Solovetsky, o qual era administrado pela OGPU -, permanecera superlotado, desorganizado e deficitário durante toda a década anterior. No país inteiro, a situação
era tão ruim que, em certa altura, o Comissariado do Interior procurou reduzir o número de detentos condenando mais gente aos "trabalhos forçados sem privação da
liberdade", ou seja, designando-lhes tarefas sem encarcerá-los, o que aliviava a pressão sobre os campos.
A medida que aumentavam o ritmo da coletivização e a força da repressão, porém, milhões de kulaks sofriam despejo, e aquelas soluções começaram a parecer politicamente
inoportunas. Mais uma vez, as autoridades determinaram que criminosos tão perigosos - inimigos do grande impulso de Stalin à coletivização -, exigiam forma mais
segura de encarceramento, e a OGPU se preparou para estabelecer uma.
Em 1928, sabendo que o sistema prisional se deteriorava tão depressa quanto aumentava o número de presos, o Politburo do Partido Comunista criou uma comissão para
lidar com o problema. Na aparência, a comissão era neutra e incluía representantes tanto do Comissariado do Interior e do Comissariado da Justiça quanto da OGPU.
O camarada
Yanson, comissário da Justiça, seria o presidente da comissão. A tarefa desta era criar "um sistema de campos de concentração, organizados à maneira dos campos da
OGPU", e as deliberações se davam dentro de limites bem claros. Não obstante as frases líricas de Máximo Gorki sobre o valor dos trabalhos forçados na regeneração
de criminosos, todos os participantes da comissão empregavam a dura linguagem da economia. Todos expressavam as mesmas preocupações com a "rentabilidade" e falavam
freqüentemente do "uso racional da mão-de-obra".
É bem verdade que a ata redigida após a reunião de 15 de maio de 1929 registra algumas objeções práticas à criação de um sistema maciço de campos: estes seriam demasiado
difíceis de estabelecer, não havia estradas que levassem ao extremo norte, e assim por diante. O Comissariado do Trabalho achava errado submeter quem cometera crimes
de menor gravidade ao mesmo castigo destinado a reincidentes. Tolmachev, comissário do Interior, lembrou que o sistema seria visto de maneira negativa no exterior:
os "Guardas Brancos exilados" e a imprensa burguesa estrangeira afirmariam que, "em vez de construirmos um sistema penitenciário para regenerar os presos pelo trabalho
correcional, estabelecemos fortalezas chekistas".
No entanto, Tolmachev estava argumentando que o sistema pareceria mau, e não que seria ruim. Nenhum dos presentes objetou alegando que campos "ao estilo de Solovetsky"
fossem cruéis ou mortíferos. Tampouco alguém mencionou as teorias alternativas de justiça criminal das quais Lênin tanto gostara, aquela idéia de que o crime desapareceria
junto com o capitalismo. Por certo ninguém falou em reabilitação dos presos, na "transformação da natureza humana" que Gorki enaltecera em seu ensaio sobre Solovetsky
e que seria tão importante quando se apresentasse ao público a primeira série de campos. Em vez disso, Genrikh Yagoda, o representante da OGPU na comissão, expressou
com muita clareza os verdadeiros interesses do regime:
Já é tanto possível quanto absolutamente necessário remover de locais de confinamento na Rússia 10 mil presos cuja mão-de-obra poderia ser mais bem organizada e
mais bem utilizada. Ademais, fomos informados de que os campos e cadeias da República Ucraniana estão igualmente superlotados. E óbvio que a política soviética não
permitirá a construção de novas prisões. Ninguém dará dinheiro para isso. Por outro lado, construir grandes campos - que farão uso racional da mão-de-obra - é coisa
diferente. Temos muita dificuldade para atrair trabalhadores para o norte. Se mandarmos milhares de presos para lá, poderemos explorar os recursos setentrionais
[...] a experiência de Solovetsky demonstra o que é possível realizar nessa área.
Yagoda então explicou que a recolocação seria permanente. Após a soltura, os presos permaneceriam: "com diversas medidas administrativas e econômicas, poderemos
obrigar os presos a ficar no norte assim povoando nossas regiões mais distantes".
A idéia de que presos devessem tornar-se colonos - tão similar ao modelo czarista - não era nada que só houvesse ocorrido depois. Enquanto a Comissão Yanson deliberava,
uma comissão governamental distinta também começara a averiguar a crise de mão-de-obra no extremo norte, propondo saídas variadas, como enviar os desempregados,
ou imigrantes chineses. Ambas as comissões procuravam soluções para o mesmo problema ao mesmo tempo, e esse interesse não era de admirar. A fim de cumprir o Plano
Qüinqüenal de Stalin, a URSS precisaria de imensas quantidades de carvão, gás, petróleo e madeira, tudo isso disponível na Sibéria, no Cazaquistão e no extremo norte.
O país também necessitava de ouro para comprar maquinaria nova no exterior, e os geólogos haviam recentemente descoberto esse metal na região de Kolyma, no extremo
nordeste. Apesar das temperaturas baixíssimas, das condições de vida precárias e da inacessibilidade, tais recursos tinham de ser explorados com vertiginosa rapidez.
No espírito de competição interministerial (então acirrada), Yanson de início propôs que seu próprio comissariado assumisse o sistema e estabelecesse uma série de
campos florestais, com o objetivo de aumentar as exportações soviéticas de madeira, importante fonte de divisas externas. O projeto foi posto de lado, provavelmente
porque nem todo o mundo queria que o camarada Yanson e sua burocracia judiciária o controlassem. Em vez disso, quando o projeto foi subitamente ressuscitado, na
primavera de 1929, as conclusões da Comissão Yanson foram um tanto diferentes. Em 13 de abril, a comissão propôs instalar um novo sistema de campos, agora unificado,
que eliminaria a distinção entre os campos "comuns" e os "especiais". Algo mais importante: a comissão entregou esse sistema diretamente à OGPU.
A OGPU assumiu com assustadora celeridade o controle sobre a população prisional da URSS. Em dezembro de 1927, o Departamento Especial da OGPU tinha a seu cargo
30 mil detentos (cerca de 10% do número de presos do país), a maioria deles nos campos de Solovetsky.
O departamento empregava não mais que mil pessoas, e seu orçamento mal excedia 0,05% dos gastos estatais. Para comparação, o sistema prisional do Comissariado do
Interior mantinha 150 mil detentos e consumia 0,25% do orçamento estatal. Contudo, entre 1928 e 1930, a situação se inverteu. À medida que outras instituições estatais
iam gradualmente abrindo mão de seus presos, de seus cárceres, de seus campos e dos empreendimentos industriais ligados a eles, o número de presos sob a jurisdição
da OGPU inflou de 30 mil para 300 mil. Em 1931, a polícia secreta também assumiu o controle sobre milhões de "degredados especiais" (a maioria kulaks desterrados),
que na prática eram galés, pois estavam proibidos de sair das colônias e locais de trabalho que lhes tinham sido designados, sob pena de morte ou detenção. Em meados
da década de 1930, a OGPU teria sob seu domínio toda a vasta força de trabalho representada pelos presos da URSS.
A fim de dar conta das novas responsabilidades, a OGPU reorganizou aquele seu Departamento Especial e o rebatizou Administração Central dos Campos de Trabalho Correcional
e das Colônias de Trabalho. Esse título canhestro acabaria sendo encurtado para Administração Central dos Campos, ou, em russo, Glavnoe Upravlenie Lagerei. Donde
o acrônimo pelo qual o departamento, e por fim o próprio sistema, seria conhecido: Gulag.
Desde que os campos de concentração soviéticos surgiram em larga escala, seus detentos e seus cronistas discutem os motivos por trás da criação desses estabelecimentos.
Será que apareceram por acaso, como efeito colateral da coletivização, da industrialização e de outros processos que ocorriam no país? Ou será que Stalin tramou
o crescimento do Gulag com cuidado, planejando de antemão prender milhões de pessoas?
No passado, alguns historiadores afirmaram que não havia nenhum grande projeto subjacente à fundação dos campos. Um desses historiadores, James Harris, argumentou
que líderes locais, e não burocratas moscovitas, deram o impulso para que se construíssem novos campos na região dos Urais. Estando obrigadas a cumprir as exigências
impossíveis do Plano Qüinqüenal, por um lado, e enfrentando grave escassez de mão-de-obra, por outro, as autoridades dali aceleraram o ritmo e a crueldade da coletivização
para achar a quadratura do círculo: toda vez que tiravam um kulak das terras dele, criavam mais um trabalhador escravo. Outro historiador, Michael Jakobson, concluiu,
seguindo vim pensamento semelhante, que as origens do sistema prisional soviético tinham sido "banais":
Os burocratas perseguiam metas inalcançáveis de auto-sustentabilidade das prisões e de reabilitação dos presos. As autoridades queriam mão-de-obra e fundos, expandiam
suas burocracias e tentavam cumprir metas irreais. Os administradores e carcereiros aplicavam regras e regulamentos. Os teóricos racionalizavam e justificavam. Depois
tudo acabava revertido, modificado ou abandonado.
De fato, se as origens do Gulag houvessem sido acidentais, isso não teria sido surpreendente. Durante toda a primeira metade da década de 1930, a liderança soviética
em geral, e Stalin em particular, mudava constantemente de rumo, implementava políticas e então as revertia, fazendo pronunciamentos públicos para ocultar propositalmente
a verdade. Quando se lê a história daquela era, não é fácil detectar um grandioso plano maligno que tenha sido concebido por Stalin ou por quem quer que fosse.
Um exemplo: o próprio Stalin lançou a coletivização e então, assim parece, mudou de idéia, em março de 1930, quando atacou autoridades rurais excessivamente zelosas
que estavam "embriagadas pelo sucesso". (Qualquer que tenha sido a intenção desse pronunciamento, ele teve pouco efeito prático, e a destruição dos kulaks continuou
na mesma marcha durante anos.)
No começo, os burocratas e os secretas da OGPU que planejaram a expansão do Gulag também não parecem ter sido mais claros no que se refere a seus objetivos finais.
A própria Comissão Yanson tomou decisões e depois as reverteu. A OGPU também executava políticas que pareciam contraditórias. Durante todos os anos 1930, por exemplo,
ela com freqüência decretou anistias, destinadas a acabar com a superlotação nas prisões e campos. Invariavelmente, as anistias eram seguidas de novas ondas de repressão,
e novas ondas de construção de campos, como se Stalin e seus sequazes nunca soubessem ao certo se queriam ou não que o sistema crescesse - ou como se diferentes
pessoas estivessem dando diferentes ordens em diferentes momentos.
De modo semelhante, o sistema de campos passaria por muitos ciclos: ora mais repressivo, ora menos, ora mais repressivo de novo. Mesmo depois de 1929, quando os
campos já haviam sido colocados firmemente no rumo da eficiência econômica, subsistiam algumas anomalias no sistema. Em 1937, por exemplo, muitos presos políticos
ainda eram mantidos em celas, explicitamente proibidos de trabalhar - uma prática que pareceria contradizer o impulso geral de eficiência. Diversas mudanças burocráticas
tampouco eram lá muito significativas. Embora a divisão formal entre campos da polícia secreta e campos da polícia comum tenha mesmo chegado ao fim na década de
1930 continuou a haver uma divisão residual entre os campos, que supostamente se destinavam aos criminosos e elementos políticos mais perigosos, e as "colônias",
que seriam para os contraventores com penas mais curtas. Na prática, porém, a organização do trabalho, da alimentação e do cotidiano era muito parecida tanto nos
campos quanto nas colônias.
E no entanto... Hoje, há também um consenso crescente de que o próprio Stalin tinha, se não um plano cuidadosamente preparado, pelo menos uma crença muito grande
nas enormes vantagens da mão-de-obra prisional, crença em que ele se manteve até o fim da vida. Por quê?
Alguns, como Ivan Chukhin - historiador do sistema inicial de campos e ex-membro da polícia secreta - especulam que Stalin fomentou as primeiras e superambiciosas
obras de construção dos campos para reforçar seu prestígio pessoal. Na época, ele ainda estava apenas surgindo como líder do país, após uma longa e renhida luta
pelo poder. Talvez tenha imaginado que novas façanhas na frente industrial, realizadas com uso da mão-de-obra escrava do sistema prisional, o ajudassem a consolidar
sua autoridade.
Stalin pode também ter-se inspirado em precedentes históricos mais antigos. Robert Tucker, entre outros, já demonstrou fartamente o interesse obsessivo de Stalin
por Pedro, o Grande - mais um governante russo que empregou de maneira maciça a mão-de-obra de servos e condenados para realizar enormes feitos de engenharia e construção.
Em 1928, num discurso ao plenário do Comitê Central, feito justamente quando se preparava para lançar seu programa industrial, Stalin observou com admiração:
Quando Pedro, o Grande, fazendo negócios com os países do Ocidente, mais avançados, freneticamente construía fábricas para suprir o Exército e fortalecer as defesas
do país, tratava-se de um esforço especial para dar um salto à frente e livrar-se das restrições do atraso.
O grifo é meu, para enfatizar o vínculo entre a "Grande Guinada" de Stalin e as políticas de seu antecessor setecentista. Na tradição histórica russa, Pedro é lembrado
como líder tão grande quanto cruel, e não se acha que isso constitua contradição. Afinal, ninguém recorda quantos servos morreram durante a construção de São Petersburgo
mas todo o mundo admira a beleza da cidade. Stalin pode muito bem ter levado a peito o exemplo de Pedro.
Entretanto, o interesse de Stalin em campos de concentração nem precisa ter tido uma causa racional: o fato de ser obcecado por gigantescos programas de obras e
por turmas de galés mourejadores se relacionava, de algum modo, a seu tipo especial de loucura megalomaníaca. Certa vez, Mussolini disse de Lênin que este era "um
artista que trabalhou os homens como outros trabalharam o mármore ou o metal". Talvez a descrição se aplicasse melhor a Stalin, que gostava mesmo de ver grande
número de corpos humanos marcharem ou dançarem em perfeita sincronia. Ficava encantado com o balé, com as exibições orquestradas de ginástica e com os desfiles
em que apareciam gigantescas pirâmides construídas de figuras humanas anônimas e contorcidas. Ele, assim como Hitler, também era obcecado pelo cinema, em especial
pelos musicais de Hollywood, com seus enormes elencos de cantores e dançarinos em uníssono. É possível que ele tenha fruído um prazer diferente, mas correlato, ante
o espetáculo das vastas turmas de presos que escavavam canais e construíam ferrovias a uma ordem sua.
Qualquer que tenha sido a inspiração dele, política, histórica ou psicológica, fica claro que, desde os primeiros tempos do Gulag, Stalin demonstrou profundo interesse
pessoal pelos campos e exerceu enorme influência no desenvolvimento destes. Um exemplo: a decisão crucial de transferir todos os campos e prisões para a OGPU, tirando-os
do âmbito do sistema judiciário comum, quase certamente se deu a mando de Stalin. Em 1929, ele já se interessava muitíssimo pela polícia secreta. Acompanhava as
carreiras dos chefes da OGPU e supervisionava a construção de residências confortáveis para eles e suas famílias. Em contraste, a administração prisional do Comissariado
do Interior não lhe despertava interesse algum: seus líderes haviam apoiado os oponentes de Stalin nas implacáveis lutas internas do Partido à época.
Todos os que participaram da Comissão Yanson deviam conhecer muito bem esses detalhes, o que já deve ter sido suficiente para convencê-los a colocar as prisões nas
mãos da OGPU. Mas Stalin também interveio diretamente nas decisões da comissão. Em certa altura daquelas confusas deliberações, o Politburo chegou a reverter a própria
determinação original, declarando o propósito de tirar da polícia secreta o sistema prisional e tornar a entregá-lo ao Comissariado do Interior. Essa perspectiva
deixou Stalin indignado. Numa carta de 1930 a Vyacheslav Molotov (um colaborador muito próximo), atacou a idéia qualificando-a de "intriga" orquestrada pelo comissário
do Interior, que "é totalmente podre". Stalin mandou o Politburo implementar a resolução original e pôs fim ao Comissariado do Interior. A decisão de Stalin de
dar os campos à OGPU determinou o futuro caráter deles. Tirou-os da supervisão judiciária comum e os colocou firmemente nas mãos da burocracia de urna polícia secreta
cujas origens remontavam ao mundo obscuro e extralegal da Cheka.
Embora haja menos indícios sólidos para corroborar essa teoria, pode ser que também tenha vindo de Stalin a ênfase constante na necessidade de construir "campos
ao estilo de Solovetsky". Como já mencionamos, os campos de Solovetsky nunca foram rentáveis, nem em 1929, nem nunca. No ano administrativo que foi de junho de 1928
a junho de 1929, a Slon ainda recebia do orçamento estatal um subsídio de 1,6 milhão de rublos. Não obstante a Slon talvez ter parecido mais bem-sucedida que outras
empresas locais, qualquer um que entendesse de economia sabia que ela estava longe de oferecer concorrência justa. Um exemplo: os campos madeireiros que se utilizavam
de presos pareciam sempre mais produtivos que os empreendimentos comuns do setor só porque os camponeses empregados por esses últimos trabalhavam apenas no inverno,
quando ficavam impossibilitados de praticar a agricultura.
Apesar disso, achava-se que os campos de Solovetsky fossem rentáveis - ou pelo menos Stalin achava que fossem. Ele também acreditava que fossem rentáveis justamente
por causa dos métodos "racionais" de Frenkel - a distribuição de rações conforme o trabalho produzido pelo preso, a eliminação de "supérfluos". A prova de que o
sistema de Frenkel ganhara o beneplácito dos mais altos escalões está nos resultados: não apenas esse sistema se viu rapidamente copiado no resto do país, mas o
próprio Frenkel foi encarregado de chefiar a construção do Canal do Mar Branco, o primeiro grande projeto do Gulag na era stalinista, um cargo extremamente alto
para um ex-condenado. Depois, como veremos, Frenkel foi protegido da prisão e possível execução graças à intervenção do primeiríssimo escalão.
Indícios de que Stalin preferia a mão-de-obra prisional à comum também se acham no contínuo interesse dele pelas minúcias da administração dos campos. Durante toda
a vida no poder, ele exigiu informes regulares sobre a "produtividade por detento" nos campos, freqüentemente requerendo estatísticas específicas: quanto carvão
e petróleo os campos tinham produzido, quantos prisioneiros empregavam, quantas medalhas seus administradores haviam recebido. Estava particularmente interessado
na minas auríferas da Dalstroi, o complexo de campos na região de Kolyma, no extremo nordeste, e exigia informações regulares e precisas sobre a geologia de Kolyma,
a tecnologia mineira da Dalstroi e a exata qualidade e quantidade do ouro produzido. Para garantir que suas determinações pessoais fossem cumpridas mesmo nos campos
mais longínquos, enviava equipes de inspeção e, muitas vezes, mandava que os administradores viessem a Moscou.
Quando algum projeto lhe interessava em especial, ele às vezes se envolvia ainda mais. Os canais, por exemplo, cativavam sua imaginação, e de quando em quando parecia
que queria construí-los a torto e a direito. Certa feita, Yagoda foi obrigado a escrever a Stalin, objetando polidamente ao desejo irrealista de abrir um canal,
usando trabalho escravo, no centro de Moscou. A medida que Stalin assumia maior controle sobre os órgãos do poder, ele também forçava os colegas a focalizarem a
atenção nos campos. Em 1940, o Politburo discutia este ou aquele projeto do Gulag quase toda semana.
Contudo o interesse de Stalin não era apenas teórico. Também tinha interesse direto pelos seres humanos envolvidos no trabalho dos campos: quem fora detido, onde
fora condenado, o que seria feito de tal e tal pessoa. Lia, e comentava, ele mesmo as petições de soltura que lhe eram enviadas pelos presos ou pelas esposas destes,
freqüentemente respondendo com uma ou duas palavras ("Mantenha-o trabalhando" ou "Solte-o"). Numa fase posterior, exigiria com regularidade informações sobre presos
ou grupos de presos que lhe interessavam, como os nacionalistas da Ucrânia ocidental.
Também há indícios de que a curiosidade de Stalin por determinados presos nem sempre era puramente política e de que ela não se voltava apenas para seus inimigos
pessoais. Já em 1931, antes de consolidado seu poder, Stalin fez o Politburo aprovar uma resolução que lhe dava enorme influência pessoal sobre a prisão de certas
categorias de especialistas técnicos. E o padrão das detenções de engenheiros e especialistas naqueles primeiros tempos faz mesmo pensar em algum nível superior
de planejamento. Talvez também não tenha sido apenas coincidência que o primeiríssimo grupo de presos mandados para os novos campos nas jazidas auríferas de Kolyma
abrangesse sete conhecidos peritos em mineração, dois peritos em organização do trabalho e um experiente engenheiro hidráulico. E pode não ter sido mero acaso que
a OGPU haja prendido um dos principais geólogos da URSS às vésperas de uma expedição para, como veremos, construir um campo perto das reservas petrolíferas da República
Komi. Tais coincidências não podem ter sido planejadas por chefes regionais do Partido que apenas reagiam às pressões do momento.
Por fim, uma prova totalmente circunstancial, mas ainda assim interessante, sugere que as detenções em massa no final dos anos 1930 e nos anos 40 talvez também
tenham sido ordenadas, em certa medida, para saciar o desejo de Stalin por mão-de-obra escrava, e não - ao contrário do que a maioria sempre supôs - para punir seus
pretensos ou potenciais inimigos. Os autores da mais fidedigna história dos campos que até hoje se escreveu em russo assinalam a "relação positiva entre o sucesso
da atividade econômica nos campos e o número de presos enviados para lá". Eles argumentam que não deve ter sido por acaso que as penas para crimes de pouca gravidade
se tornaram muito mais severas justamente quando os campos se expandiam e, por isso, precisavam com urgência de mais trabalhadores.
Alguns documentos catados em arquivos aqui e ali fazem pensar o mesmo. Em 1934, por exemplo, Yagoda escreveu uma carta a seus subordinados na Ucrânia, requerendo
de 15 mil a 20 mil presos, todos "aptos para o trabalho": eram necessários com urgência para concluir as obras do canal Volga-Moscou. A carta estava datada de 17
de março, e nela Yagoda também exigia que os chefes locais da OGPU tomassem "medidas adicionais" para garantir que os detentos chegassem até 1º de abril. Todavia,
não ficava claro de onde deveriam aparecer esses 15 mil a 20 mil presos. Teriam sido detidos para atender à requisição de Yagoda? Ou - como acredita o historiador
Terry Martin - Yagoda estava simplesmente batalhando a fim de garantir um afluxo cômodo e regular de mão-de-obra para seu sistema de campos, uma meta que, na realidade,
ele nunca atingiu?
Se as detenções se destinavam a povoar os campos, então elas o fizeram com uma ineficiência quase ridícula. Martin e outros também assinalaram que toda onda de prisões
em massa parece ter pegado totalmente de surpresa os comandantes de campo, dificultando-lhes obter até mesmo um simulacro de eficiência econômica. Os policiais que
faziam as prisões tampouco escolhiam suas vítimas de maneira racional: em vez de restringirem-se aos varões jovens e saudáveis que teriam dado os melhores trabalhadores
braçais no extremo norte, também aprisionavam grande número de mulheres, crianças e idosos. A flagrante falta de lógica das detenções em massa parece contradizer
a idéia de que se planejou cuidadosamente a formação de uma força de trabalho escrava - o que leva muitos a concluir que as capturas se destinavam antes de tudo
a eliminar os que eram considerados inimigos de Stalin, e só depois a encher os campos.
Mas, ao fim e ao cabo, essas explicações para a expansão dos campos tampouco chegam a ser de todo mutuamente exclusivas. Stalin pode muito bem ter pretendido que
as capturas tanto eliminassem inimigos quanto criassem trabalhadores escravos. Pode ter sido motivado tanto pela própria paranóia quanto pelas necessidades de mão-de-obra
dos líderes regionais. Talvez o melhor seja formular tudo isso em termos simples: Stalin propunha o "modelo de Solovetsky" a sua polícia secreta, Stalin selecionava
as vítimas - e seus subordinados não deixavam passar a chance de obedecer a ele.
4. O CANAL DO MAR BRANCO
Onde antes água e penhascos limosos dormiam,
Ali, graças à força do trabalho,
Fábricas serão construídas,
E cidades crescerão.
Chaminés se erguerão
Sob os céus do norte,
E edifícios brilharão com as luzes
De bibliotecas, teatros e clubes.
Medvedkov, preso do Canal do Mar Branco, 1934.
No fim das contas, apenas uma das objeções levantadas durante as reuniões da Comissão Yanson viria a causar preocupação. Embora estivessem certos de que a grande
nação soviética superaria a falta de estradas, e embora sentissem poucos remorsos de usar presos como trabalhadores escravos, Stalin e seus sequazes continuaram
extremamente sensíveis à linguagem que os estrangeiros utilizavam no exterior para descrever os campos prisionais da URSS.
De fato, os estrangeiros daquele tempo, ao contrário do que reza a crença popular, descreviam com bastante freqüência esses campos de concentração. No Ocidente do
final dos anos 1920, sabia-se geralmente um bocado a respeito deles, talvez mais do que no final dos anos 40. Extensos artigos sobre as prisões da URSS haviam sido
publicados na imprensa alemã, francesa, britânica e norte-americana, sobretudo nos periódicos de esquerda, que tinham amplos contatos com socialistas russos aprisionados.
Em 1927, um escritor francês chamado Raymond Duguet publicou Uma colônia penal na Rússia Vermelha (Un bagne en Russie Rouge), livro surpreendentemente preciso sobre
Solovetsky, descrevendo tudo, desde a personalidade de Naftaly Frenkel até os horrores da tortura dos mosquitos. Em 1926, o georgiano S. A. Malsagov, oficial do
Exército Branco que conseguira fugir de Solovetsky e cruzar a fronteira, publicou Inferno na ilha, outro relato acerca das ilhas, em Londres. Como resultado de rumores
generalizados sobre os abusos da mão-de-obra prisional pelos soviéticos, a seção britânica da Sociedade Anti-escravagista até lançou uma investigação e escreveu
um relatório que deplorava os indícios de escorbuto e maus-tratos. Baseando-se no testemunho de refugiados russos, um senador francês escreveu um artigo, muito
citado, comparando a situação na URSS às descobertas do inquérito da Sociedade das Nações sobre a escravidão na Libéria.
Entretanto, após a expansão dos campos em 1929 e 1930, o interesse estrangeiro por eles se modificou, afastando-se do destino dos presos socialistas e enfocando
então a ameaça econômica que os campos pareciam representar para os interesses econômicos ocidentais. Empresas ameaçadas, e sindicatos idem, começaram a organizar-se
Sobretudo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, aumentou a pres. são a favor de um boicote aos artigos soviéticos supostamente produzidos por galés. Paradoxalmente,
o movimento pelo boicote obscureceu toda a questão aos olhos da esquerda ocidental, que ainda apoiava a Revolução Russa, em especial na Europa, mesmo se muitos líderes
se sentiam pouco à vontade com o destino de seus irmãos socialistas. O Partido Trabalhista britânico, por exemplo, opôs-se a uma proibição de importar artigos soviéticos
porque suspeitava da motivação das companhias que a promoviam.
Nos Estados Unidos, porém, os sindicatos (especialmente a American Federation of Labor, AFL) saíram em apoio a um boicote. Por um curto período, tiveram sucesso.
Lá, o Tariff Act, de 1930, determinava que "todos os artigos [...] minerados, produzidos ou manufaturados [...] pelo trabalho de condenados e/ou pelo trabalho forçado
[...] não poderão ser admitidos em nenhum dos portos dos Estados Unidos". Com base nisso, o Departamento do Tesouro proibiu a importação de fósforos e madeira para
papel soviéticos.
Embora o Departamento de Estado não tenha apoiado a proibição (que durou apenas uma semana), o debate continuou. Em janeiro de 1931, a comissão orçamentária do
Congresso dos Estados Unidos se reuniu para considerar projetos de lei "relativos à proibição de artigos produzidos pelo trabalho de condenados na Rússia". Em 18,
19 e 20 de maio de 1931, o Times de Londres publicou uma série de artigos surpreendentemente detalhados a respeito dos trabalhos forçados na URSS, concluindo com
um editorial que condenava a recente decisão britânica de dar reconhecimento diplomático à URSS. Emprestar dinheiro à Rússia, escreviam os editorialistas, colocaria
"mais poder nas mãos daqueles que estão abertamente trabalhando [...] para destruir o Império Britânico".
O canal do mar Branco, Rússia setentrional, 1932-3
O regime soviético levou mesmo muito a sério a ameaça de boicote, e tomaram-se diversas medidas a fim de impedir que algo assim interrompesse o fluxo de moeda forte
para o país. Algumas foram cosméticas: por exemplo, a Comissão Yanson finalmente eliminou de todas as suas declarações públicas a palavra kontslager (campo de concentração).
A partir de 7 de abril de 1930, todos os documentos oficiais passaram a descrever os campos de concentração soviéticos como ispravitelno-trudovye lagerya (ITL),
ou "campos de trabalho correcional". Só esse termo viria a ser usado.
As autoridades dos campos fizeram outras mudanças cosméticas em nível local, sobretudo na indústria madeireira. Em certa altura, a OGPU alterou seu contrato com
a Karellis, o conglomerado madeireiro da Carélia, de modo a parecer que não mais se utilizavam presos. Naquela época, 12.090 detentos foram oficialmente "removidos"
dos campos da OGPU. Na realidade, continuaram trabalhando, mas sua presença era disfarçada pelos ardis burocráticos. Mais uma vez, a maior preocupação da liderança
soviética era com as aparências, não com a realidade.
Em outros lugares, presos que trabalhavam nos campos madeireiros foram efetivamente substituídos por trabalhadores livres - ou, mais freqüentemente, "colonos" degredados,
kulaks que não tinham mais voz ativa que os presos. Segundo alguns memorialistas, essa troca às vezes acontecia de um dia para o outro. George Kitchin, negociante
finlandês que passou quatro anos em campos da OGPU antes de ter sido libertado com a ajuda de seu governo, escreveria que, imediatamente antes da visita de uma delegação
estrangeira,
recebeu-se do escritório central em Moscou um telegrama secreto, em código, instruindo-nos a liqüidar nosso campo por completo, em três dias, e fazê-lo de tal maneira
que não ficasse nenhum vestígio. [...] Enviaram-se telegramas a todos os postos, os quais deviam cessar as operações em 24 horas, reunir os presos em centros de
evacuação e apagar as marcas dos campos penais, tais como cercas de arame farpado, torres de vigia e placas de sinalização; todos os principais encarregados deviam
vestir trajes civis, desarmar os guardas e aguardar novas instruções.
Kitchin, junto com vários milhares de outros presos, foi levado a pé pela floresta afora. Ele acreditava que mais de 1.300 detentos tivessem morrido nessa e em outras
evacuações-relâmpago.
Em março de 1931, Molotov, então presidente do Conselho dos Comissários do Povo, sentiu-se confiante de que não houvesse mais presos na indústria madeireira soviética
(pelo menos não visíveis) e convidou todos os estrangeiros interessados a visitarem e verificarem por si mesmos. Alguns já tinham vindo: em 1929, os arquivos do
Partido Comunista na Carélia registram a presença de dois jornalistas americanos, "o camarada Durant e o camarada Wolf", que escreviam para a Tass, a agência de
notícias soviética, e para "jornais radicais". Os dois foram recebidos com uma execução da Internacional, o hino operário, e o camarada Wolf prometeu "contar aos
trabalhadores da América como os trabalhadores da União Soviética vivem e criam uma vida nova". Não seria a última dessas encenações.
No entanto, embora a pressão por um boicote houvesse soçobrado em 1931, a campanha ocidental contra o trabalho escravo soviético não deixara de ter algum resultado:
a URSS era, e continuaria sendo, muito zelosa de sua imagem no exterior, mesmo sob o comando de Stalin. Alguns, dentre eles o historiador Michael Jakonson, agora
especulam que a ameaça de um boicote pode até ter sido importante fator por trás de outra mudança de diretrizes, esta maior. O negócio madeireiro, que demandava
grande quantidade de trabalho não-especializado, fora a maneira ideal de utilizar os presos. Mas as exportações de madeira, uma das principais fontes de moeda forte
da URSS, não podiam correr o risco de novo boicote. Os presos precisavam ser mandados para outro lugar - de preferência, algum onde sua presença pudesse ser comemorada,
e não escondida. Possibilidades não faltavam, mas uma em especial seduziu Stalin: construir um grande Canal do Mar Branco ao mar Báltico, atravessando terreno que,
em grande parte, era puro granito.
No contexto da época, o Canal do Mar Branco em russo, Belomorkanal, abreviado para Belomor - não era único. No momento em que se iniciou sua construção, a URSS já
começara a executar vários projetos que, de forma semelhante, eram grandiosos e faziam uso intensivo de trabalho braçal; entre eles, incluíam-se a maior siderúrgica
do mundo, em Magnitogorsk, gigantescas fábricas de tratores e automóveis e imensas "cidades socialistas" plantadas no meio de pântanos. Apesar disso, mesmo dentre
as outras crias da mania de gigantismo dos anos 1930, o Canal do Mar Branco se destacava.
Para começo de conversa, o canal representava, como sabiam muitos russos, a realização de um sonho bem antigo. Os primeiros projetos haviam sido elaborados no século
XVIII, quando os mercadores czaristas procuravam uma maneira de mandar das águas frias do mar Branco aos portos comerciais do Báltico navios carregados de madeira
e minerais, sem fazer a viagem de uns setecentos quilômetros pelo oceano Ártico e, depois, ainda descer a extensa costa da Noruega.
Também era um projeto de ambição extrema, até temerária, e talvez por isso ninguém houvesse tentado realizá-lo antes. O canal requeria 227 quilômetros de escavação,
mais cinco diques e dezenove eclusas. Os planejadores soviéticos pretendiam construí-lo utilizando a tecnologia menos sofisticada possível, numa região pré-industrial
do extremo norte, que nunca fora adequadamente desbravada e que, nas palavras de Máximo Gorki, era "hidrologicamente terra incógnita". Tudo isso, porém, pode até
ter sido parte do atrativo do projeto para Stalin. Ele queria um triunfo tecnológico - um que o antigo regime nunca conseguira -, e o queria o mais depressa possível.
Exigiu não apenas que construíssem o canal, mas também que o fizessem em vinte meses. Quando pronto, levaria o nome de Stalin.
Stalin foi o maior fomentador do Canal do Mar Branco - e desejava especificamente que o abrissem com o trabalho de presos. Antes de iniciadas as obras, condenou
com a maior violência quem indagava se um projeto tão caro era mesmo necessário, dado o volume relativamente pequeno de tráfego no mar Branco. "Disseram-me", escreveu
a Molotov, "que Rykov e Kviring querem pôr fim à idéia do canal do Norte, contrariando as decisões do Politburo. Eles deveriam ser colocados no devido lugar e receber
uns cascudos." Durante uma sessão do Politburo em que se discutiu o canal, Stalin também escreveu uma nota irritada, rabiscada às pressas, que falava de sua crença
no trabalho de presos:
Quanto ao trecho norte do canal, tenho em mente confiar na GPU [com mão-de-obra prisional]. Ao mesmo tempo, devemos designar alguém para calcular outra vez as despesas
da construção desse trecho. [...] O que me apresentam é caro demais.
As preferências de Stalin tampouco eram segredo. Depois que o canal ficou pronto, o principal administrador louvou Stalin tanto pela "bravura" em ter-se disposto
a construir aquele "gigante hidrotécnico" quanto pelo "fato maravilhoso de que esse trabalho não foi completado com mão-de-obra comum". Também se pode ver a influência
de Stalin na rapidez com que se partiu para as obras. A decisão de iniciá-las foi tomada em fevereiro de 1931, e elas começaram em setembro do mesmo ano, após meros
sete meses de projeto e levantamento topográfico.
Administrativa, física e até psicologicamente, os primeiros campos de prisioneiros associados ao Canal do Mar Branco brotaram da Slon. Os campos do canal se organizavam
com base no modelo da Slon, usavam equipamento dela e eram operados por quadros também seus. Tão logo as obras se iniciaram, os encarregados transferiram muitos
presos dos campos da Slon nas ilhas Solovetsky e no continente para trabalharem no novo projeto. Por algum tempo, a velha burocracia da Slon e a nova burocracia
do Canal do Mar Branco podem até ter competido pelo controle do projeto - mas o canal ganhou. Ao fim e ao cabo, a Slon deixaria de ser entidade independente. O kremlin
de Solovetsky foi designado prisão de segurança máxima, e o arquipélago se tornou simplesmente mais uma divisão do Campo de Trabalhos Correcionais Belomor - Baltiiskii
(mar Branco-Báltico), conhecido como Belbaltlag. Certo número de guardas e de destacados administradores da OGPU também foi transferido da Slon para o canal. Dentre
eles, como se observou, estava Naftaly Frenkel, que gerenciou desde novembro de 1931 até o término das obras o dia-a-dia do projeto.
Nas memórias dos sobreviventes, o caos que acompanhou a construção adquire natureza quase mitológica. A necessidade de economizar acarretava que os presos usassem
madeira, areia e pedra em vez de metal e cimento. Cortavam-se custos sempre que possível. Após muita discussão o canal foi escavado com profundidade de apenas quatro
metros, que mal era suficiente para embarcações da Marinha de Guerra. Já que a tecnologia moderna ou era cara demais, ou não estava disponível, os planejadores empregaram
enormes quantidades de mão-de-obra não-qualificada. Os cerca de 170 mil presos e "degredados especiais" que trabalharam no projeto ao longo dos 21 meses de construção
usaram pás de madeira, mais serras, picaretas e carrinhos de mão muito rústicos, para escavar o canal e construir seus grandes diques e eclusas.
Nas fotos da época, essas ferramentas decerto parecem muito primitivas, mas só um olhar mais atento revela quanto. Algumas ainda estão expostas em Medvezhegorsk,
outrora o portão de entrada do canal e a "capital" do Belbaltlag. Hoje uma aldeia esquecida da Carélia, Medvezhegorsk sobressai apenas pelo enorme hotel, vazio e
infestado de baratas, e pelo pequeno museu de história local. As picaretas em exibição ali são, na verdade, pedaços de metal mal afiados que foram amarrados com
couro ou barbante a hastes de madeira. As serras consistem em folhas planas de metal grosseiramente dentadas. Em vez de usarem dinamite, os presos quebravam grandes
pedras usando "martelos" - pedaços de metal parafusados a cabos de madeira - para inserir nelas barras de ferro.
Tudo, desde os carrinhos de mão até os andaimes, era feito à mão. Um preso recordou que
não havia absolutamente nenhuma tecnologia. Até automóveis comuns eram raridade. Tudo se fazia à mão, por vezes com ajuda de cavalos. Escavávamos a terra com as
mãos e a retirávamos em carrinhos de mão; também escavávamos através dos morros com as mãos e levávamos embora as pedras com a força dos braços.
Até a propaganda soviética se gabava de que as pedras eram removidas em "Fords Belomor": "carretas pesadas com quatro rodas de madeira sólida, feitas de tocos de
árvores".
As condições de vida não eram menos capengas, apesar dos esforços de Genrikh Yagoda, o chefe da OGPU, que tinha a responsabilidade política pelo projeto. Ele parecia
realmente acreditar que deviam dar condições decentes de vida aos presos caso se quisesse terminar o canal a tempo; e com freqüência doutrinava os comandantes dos
campos para tratarem melhor os detentos e "tomarem o máximo cuidado a fim de garantir que eles estejam alimentados, vestidos e abrigados de maneira adequada". Em
seguida, os comandantes fizeram o mesmo, assim corno o chefe da divisão Solovetsky do projeto do canal em 1933. Dentre outras coisas, esse último dirigente instruiu
seus subordinados a eliminar as filas para comida à noite, acabar com o furto nas cozinhas e restringir a contagem noturna dos presos a uma hora. Em geral, as normas
oficiais sobre alimentação eram mais responsáveis do que viriam a ser alguns anos depois, com salsicha e chá entre os produtos recomendados. Em teoria, os presos
recebiam um novo conjunto de roupas de trabalho a cada ano.
No entanto, a pressa extrema e a falta de planejamento criaram inevitavelmente muito sofrimento. A medida que as obras progrediam, era preciso construir novos acampamentos
ao longo do trajeto. Em cada um deles, os presos e degredados chegavam para as obras - e não encontravam nada. Antes de começarem a trabalhar, tinham de construir
os próprios barracões de madeira e organizar o suprimento de comida. Entrementes, às vezes acontecia de serem mortos pelo frio congelante do inverno careliano antes
de concluírem a tarefa. Conforme alguns cálculos, morreram mais de 25 mil presos, e esse número não inclui os que, soltos devido a doenças ou acidentes, pereceriam
logo depois. Escrevendo à esposa, o preso A. F. Losev afirmou que preferiria voltar para os porões da prisão moscovita de Butyrka, pois no canal tinha de dormir
em estrados tão apinhados que, "se durante a noite você rolar de um lado para o outro, pelo menos outras quatro ou cinco pessoas vão rolar também". Ainda mais desesperado
é o testemunho de um menino, filho de kulaks degredados, que foi deportado junto com toda a família para uma das povoações que acabavam de ser construídas ao longo
do canal:
Fomos morar num barracão com duas séries de estrados. Já que havia crianças pequenas, deram um dos estrados inferiores a nossa família. Os barracões eram compridos
e frios. Como a lenha era abundante na Carélia, os fogões ficavam acesos 24 horas por dia. [...] Nosso pai, e principal fonte de comida, recebia em nome de todos
nós um terço de balde de uma sopa esverdeada, em cuja água escura boiavam dois ou três tomates verdes ou um pepino e alguns pedaços de batata congelada, misturados
com cem ou duzentos gramas de cevada ou grão-de-bico.
O menino recordou que o pai, o qual trabalhava construindo casas para os colonos, recebia seiscentos gramas de pão. A irmã, quatrocentos gramas. Isso tinha de bastar
para todos os nove membros da família.
Na época, assim como mais tarde, alguns dos problemas se refletiam nos relatórios oficiais. Em agosto de 1932, numa reunião da célula partidária do Belbaltlag, houve
reclamações sobre a mal organizada distribuição de comida, as cozinhas sujas e o número cada vez maior de casos de escorbuto. Pessimista, o secretário da célula
escreveu: "não tenho dúvida de que o canal não será construído a tempo".
Para a maioria, não havia a opção de duvidar. Mas as cartas e os relatórios escritos pelos administradores do canal no período das obras tinham um tom de pânico
total. Stalin decretara que o canal seria construído em vinte meses, e os construtores compreendiam muito bem que seu padrão de vida, e possivelmente até sua própria
vida, dependia de completá-lo em vinte meses. Para acelerarem o serviço, os comandantes dos campos começaram a adotar práticas já em uso no mundo do trabalho "livre",
como as "competições socialistas" -disputas entre turmas de trabalho para ver quem cumpria metas, movia pedras ou cavava um buraco primeiro -, e as "investidas",
que atravessavam a noite inteira e nas quais os prisioneiros faziam "voluntariamente" jornadas de 24 ou 48 horas. Um preso se lembrou de quando instalaram luzes
elétricas ao redor do canteiro de obras, para que a atividade pudesse continuar 24 horas por dia. Outro preso ganhou dez quilos de farinha branca e cinco quilos
de açúcar como prêmio por bom desempenho. Levou a farinha aos padeiros do campo, e estes fizeram para ele vários pães brancos grandes, que o preso comeu todos de
uma vez, sozinho.
Além das competições, as autoridades aderiram ao culto do udarnik (trabalhador-padrão). Depois, os trabalhadores-padrão seriam renomeados "stakhanovistas", em homenagem
a Aleksei Stakhanov, um mineiro absurdamente superprodutivo. Os udarniki e stakhanovistas eram presos que haviam superado as metas e, por isso, recebiam comida adicional
e privilégios especiais, aí incluído o direito, impensável em anos posteriores, a um novo terno a cada ano e um novo conjunto de roupas de trabalho a cada seis meses.
Os trabalhadores de melhor desempenho também ganhavam alimentação consideravelmente melhor. Nos refeitórios, ficavam a mesas separadas, abaixo de cartazes que proclamavam:
"Para os melhores trabalhadores, a melhor comida", lá seus inferiores sentavam abaixo de cartazes com estes dizeres: "Aqui, os refratários, malandros e preguiçosos
têm comida pior". Os trabalhadores de melhor desempenho também eram soltos mais cedo: para cada três dias de trabalho em que se cumprisse 100% da meta, subtraía-se
um dia da pena. Em agosto de 1933, quando enfim o canal foi completado (no prazo), libertaram-se 12.484 presos. Inúmeros outros ganharam medalhas e prêmios. Um
comemorou a soltura antecipada numa cerimônia em que houve até as tradicionais boas-vindas russas com pão e sal, enquanto os circunstantes gritavam: "Vivam os construtores
do canal!" No calor do momento, o preso começou a beijar uma desconhecida. Os dois acabaram passando a noite às margens dó canal, juntos.
A construção do Canal do Mar Branco foi notável por muitos aspectos: o caos acabrunhante, a pressa extrema e a importância da obra para Stalin. Mas a retórica usada
para descrever o projeto era realmente única: o Canal do Mar Branco foi o primeiro, o último e o único projeto do Gulag que se expôs plenamente às luzes da propaganda
soviética, tanto no país quanto no exterior. E o homem escolhido para explicar, promover è justificar o canal na URSS e no resto do mundo foi ninguém menos que Máximo
Gorki.
Não se tratava de uma escolha surpreendente. Na época, Gorki era total e verdadeiramente parte da hierarquia stalinista. Depois que, em agosto de 1933, Stalin fez
uma triunfante viagem de vapor pelo canal pronto, Gorki levou numa expedição semelhante 120 redatores e escritores soviéticos. Estes estavam, ou pelo menos diziam
estar, tão empolgados com a viagem que mal conseguiam segurar as cadernetas de anotações: seus dedos "tremiam de assombro". Aqueles que decidiram escrever um livro
sobre a construção do canal também receberam farto encorajamento material, como o "esplêndido almoço à americana no Astoria" (grandioso hotel da era czarista em
Leningrado) para comemorar a participação deles no projeto.
Até para os baixos padrões do realismo socialista, o livro que emergiu desses esforços, O canal chamado Stalin (Kanal imeni Stalina), constitui extraordinário testemunho
da corrupção dos escritores e intelectuais nas sociedades totalitárias. Da mesma forma que o ensaio de Gorki sobre Solovetsky, o livro justifica o injustificável,
pretendendo não apenas documentar a transformação de presos em magníficos exemplos do Homo sovieticus, mas também criar um novo tipo de literatura. Embora O canal
tenha sido prefaciado e concluído por Gorki, a responsabilidade pela maior parte da obra foi atribuída não a um indivíduo, mas a um coletivo de 36 escritores. Usando
linguagem exuberante, hipérbole e suave maquiagem dos fatos, eles se esforçaram para captar o espírito da nova era. Uma das fotos do livro resume o tema: uma mulher,
em uniforme de presa, empunha uma broca com grande determinação. Abaixo, a legenda: "Ao mudar a natureza, o homem muda a si mesmo". O contraste com a linguagem desapiedada
da Comissão Yanson e com as prioridades econômicas da OGPU não poderia ser mais flagrante.
Para quem não está familiarizado com o gênero, alguns aspectos do realismo socialista de O canal chamado Stalin podem parecer um tanto surpreendentes. Para começo
de conversa, o livro não tenta disfarçar de todo a verdade, já que descreve os problemas criados pela falta de tecnologia e de especialistas. Em certa altura, cita-se
Matvei Berman, então comandante do Gulag. Berman diz a um subordinado seu da OGPU:
"Vocês receberão mil homens saudáveis. Eles foram condenados pelo governo soviético a vários períodos de prisão. E com essas pessoas que vocês devem cumprir a tarefa."
"Mas, permita-me perguntar, onde estão os guardas?", replica o homem da OGPU.
"Vocês deverão organizar os guardas no próprio local. Vocês mesmos os selecionarão."
"Muito bem, mas eu não entendo nada de petróleo e derivados." "Pegue o preso-engenheiro Dukhanovich para que seja seu assistente." "De que adianta isso? A especialidade
dele é a forja a frio."
"Você quer o quê? Será que devemos condenar aos campos de concentração os mestres universitários que você exige? Esse artigo não existe no Código Penal. E não somos
a empresa petrolífera."
Com essas palavras, Berman manda o agente da OGPU fazer o trabalho. "Uma coisa doida", observam os autores. Entretanto, em "um ou dois meses", o homem da OGPU e
seus colegas já se gabam uns para os outros das façanhas que realizaram com seu grupo mambembe de presos. "Tenho um coronel que é o melhor lenhador de todo o campo",
alardeia um deles. "Pois eu tenho um engenheiro militar cavando buracos - antes, havia sido condenado por desfalque", diz outro.
A mensagem é clara: as condições materiais eram difíceis, e o material humano era bruto - mas, embora isto pareça inacreditável, a onisciente e infalível polícia
política conseguiu transformá-los em bons cidadãos soviéticos. Desse modo, os fatos - a tecnologia primitiva, a falta de especialistas competentes - foram empregados
para dar verossimilhança a um retrato da vida nos campos que, de resto, era fantasioso.
Boa parte do livro é gasta com histórias comoventes e quase religiosas de presos que se regeneraram pelo trabalho no canal. Muitos dos assim renascidos eram criminosos,
mas nem todos. Ao contrário do ensaio de Gorki sobre Solovetsky, que negava ou minimizava a presença de presos políticos, Um canal chamado Stalin apresentava alguns
astros da conversão política. Ainda apegado ao "preconceito de casta, o engenheiro Maslov, ex-sabotador", tenta "cobrir com ferro os sombrios e profundos processos
de deturpação da consciência que se reiniciam continuamente em seu íntimo". O engenheiro Zubrik, outro ex-sabotador, mas oriundo da classe trabalhadora, "ganhou
honestamente o direito de retornar ao seio da classe em que nasceu".
O canal não foi de modo algum a única obra literária da época a louvar os poderes reabilitativos dos campos. Uma peça de Nikolai Pogodin, Aristocratas (Aristokraty,
comédia sobre o Canal do Mar Branco), é outro exemplo notável, até porque retoma um tema bolchevique anterior: quanto os ladrões podem ser "adoráveis". Encenada
pela primeira vez em dezembro de 1934, a peça - que viria a tornar-se um filme chamado Prisioneiros - ignora os kulaks e os presos políticos que constituíam o grosso
dos condenados do canal; em vez disso, mostra as alegres travessuras dos bandidos do campo de concentração (os "aristocratas" do título), usando uma forma muito
branda de gíria de meliantes. E verdade que há um ou dois momentos sinistros na peça. Num deles, um criminoso "ganha" uma garota num jogo de cartas, significando
que o perdedor deve capturá-la e obrigá-la a submeter-se ao outro. Na peça, a garota escapa; na vida real, provavelmente não teria tanta sorte.
No final, porém, todos confessam seus crimes anteriores, regeneram-se e começam a trabalhar com entusiasmo. Entoa-se uma canção:
Eu era um bandido cruel, sim,
Eu furtava as pessoas, detestava trabalhar,
Minha vida era negra como a noite.
Mas aí eles me trouxeram para o canal,
E tudo o que passou parece não ter sido mais que um sonho ruim.
É como se eu tivesse renascido.
Quero trabalhar, e viver, e cantar...
Na época, coisas desse gênero eram saudadas como uma forma nova e radical de teatro. Jerzy Gliksman, socialista polonês que assistiu a uma apresentação de Aristocratas
em Moscou em 1935, descreveu a experiência:
Em vez de ficar no lugar de costume, o palco foi construído no centro do edifício, com a platéia sentada em círculo ao redor. O objetivo do diretor foi trazê-la
para mais perto da ação, a fim de vencer a distância entre ator e espectador. Não havia cortinas, e os cenários eram extremamente simples, quase como no teatro elisabetano.
[...] O tema - a vida num campo de trabalho - já empolgava de per si.
Fora dos campos, esse tipo de literatura tinha dupla função. Por um lado, desempenhava um papel na incessante campanha para justificar a uma opinião pública estrangeira
cética o rápido crescimento dos campos prisionais. Por outro, servia provavelmente para acalmar os cidadãos soviéticos, inquietos com a violência da coletivização
e da industrialização, ao prometer-lhes um final feliz: até as vítimas da revolução stalinista teriam a chance de refazer a vida nos campos de trabalho.
A propaganda funcionou. Depois de ter visto Aristocratas, Gliksman pediu para visitar um campo de verdade. Um tanto surpreso, foi logo levado ao "campo-vitrine"
de Bolshevo, não longe de Moscou. Posteriormente, recordaria "boas camas e lençóis brancos, ótimos banheiros, tudo imaculado". Também se encontrou com um grupo de
presos mais jovens que lhe contaram as mesmas histórias edificantes que Pogodin e Gorki. Conheceu um ladrão que no momento estudava para tornar-se engenheiro; e
um desordeiro que se deu conta de que agira mal e agora administrava o almoxarifado. "Como o mundo poderia ser belo!", sussurrou ao ouvido de Gliksman um cineasta
francês. Infelizmente para Gliksman, cinco anos depois ele se viu no chão de um vagão de gado superlotado, em companhia de presos muito diferentes daqueles da peça
de Pogodin, indo para um campo que não tinha nenhuma semelhança com Bolshevo.
Nos campos, uma propaganda semelhante também desempenhava seu papel. Publicações do campo e "jornais murais" - folhas afixadas a quadros de avisos para que os presos
as lessem - continham apenas com ligeiras diferenças de ênfase, o mesmo tipo de história e poema que era apresentado a quem vinha de fora do país. Típico disso era
o jornal Perekovka ("Regeneração"), escrito e produzido pelos presos do Canal Moscou-Volga, projeto iniciado na esteira do "sucesso" do Canal do Mar Branco. Cheio
de elogios aos trabalhadores-padrão e de descrições de seus privilégios ("Eles não precisam ficar em filas, pois garçonetes lhes levam a comida diretamente à mesa!"),
o Perekovka gastava menos tempo que os autores de O canal chamado Stalin cantando loas às vantagens da transformação espiritual, e mais expondo os privilégios tangíveis
que os presos poderiam ganhar se dessem mais duro.
Também não havia tanta empulhação a respeito da superioridade moral da Justiça soviética. A edição de 18 de janeiro de 1933 reproduziu um discurso feito por Lazar
Kogan, um dos chefes do campo:
Não podemos julgar se alguém foi preso justa ou injustamente. Isso é o trabalho do promotor. [...] Vocês têm a obrigação de criar algo de valor para o Estado com
seu trabalho, e nós temos a obrigação de fazer de vocês pessoas de valor para o Estado.
No Perekovka, também era notável a seção de "reclamações", aberta e bastante franca. Os presos escreviam para reclamar das "brigas e palavrões" nos alojamentos femininos,
por um lado, e da "ladainha de hinos religiosos", por outro; das metas impossíveis; da escassez de calçados ou roupas de baixo limpas; do açoitamento desnecessário
dos cavalos; da feira do mercado negro no centro de Dmitrov, a sede do campo; e do mau uso da maquinaria ("não há máquinas ruins, apenas administradores ruins").
Posteriormente, desapareceria esse tipo de franqueza sobre os problemas dos campos, banido para a correspondência privada entre os inspetores dos campos e seus superiores
em Moscou. No início da década de 1930, porém, tal glasnost era bastante comum, tanto fora quanto dentro dos campos. Fazia parte natural do esforço urgente e frenético
para melhorar as condições de vida, melhorar os padrões de trabalho e - acima de tudo - acompanhar as exigências febris da liderança stalinista.
Caminhando hoje pelas margens do Canal do Mar Branco, é difícil imaginar aquela atmosfera quase histérica. Visitei-o num dia pachorrento de agosto de 1999, na companhia
de vários historiadores locais. Em Povenets, paramos rapidamente para olhar o pequeno monumento às vítimas, que traz uma inscrição curta: "Aos inocentes que morreram
na construção do Canal do Mar Branco, 1931-1933". Enquanto estávamos ali, um de meus companheiros insistiu em fumar ritualmente um cigarro Belomor. Explicou que
a marca, antes das mais populares na URSS, fora durante décadas o único outro monumento aos construtores do canal.
Ali perto, ficava uma velha trudposelok (colônia de degredados), agora praticamente vazia. As casas, grandes e outrora sólidas, feitas de madeira ao estilo da Carélia,
tinham as portas e as janelas cobertas por tábuas. Várias dessas residências já começavam a desabar. Um morador, que viera originariamente da Bielo-Rússia (até falava
um pouco de polonês), nos contou que tentara comprar uma delas alguns anos antes, mas que o governo local se recusara a vender. "Agora, está caindo aos pedaços",
disse ele. Numa pequena horta atrás da casa, plantava abóbora, pepino e amora. Ofereceu-nos licor caseiro. Com a horta e a aposentadoria de 550 rublos (na época,
cerca de 22 dólares por mês), disse ter o suficiente para ir vivendo. Naturalmente, não havia trabalho no Canal do Mar Branco.
Não era de espantar: ao longo do canal, meninos nadavam e atiravam pedras. Vacas vadeavam a água escura e rasa, e o mato crescia nas trincas do concreto. Junto a
uma das eclusas, numa cabine de cortinas cor-de-rosa (ainda com as colunas stalinistas originais do lado de fora), a mulher solitária que controlava a subida e a
descida das águas nos contou que, por dia, talvez passassem sete embarcações, quando muito; freqüentemente, eram apenas três ou quatro. Isso era mais do que Soljenitsin
tinha visto em 1966, quando permaneceu um dia inteiro ao lado do canal e contou só duas barcaças, ambas transportando lenha. Então como hoje, a maioria das mercadorias
seguia de trem - e, como um trabalhador do canal contou a Soljenitsin, a hidrovia é tão rasa que "nem submarinos conseguem passar com propulsão própria; têm de ser
carregados em barcaças".
No fim das contas, a rota de navegação do Báltico ao mar Branco parecia não ter sido tão urgentemente necessária.
5. OS CAMPOS SE EXPANDEM
Avançamos, e atrás de nós
Toda a brigada de trabalho caminha alegremente conosco.
A nossa frente, a vitória dos stakhanovistas
Abre um novo caminho...
Pois não conhecemos mais o velho caminho.
De nossas masmorras atendemos ao chamado
Pelo caminho do triunfo stakhanovista.
Ao acreditarmos, caminhamos para uma vida de liberdade...
Do periódico Kuznitsa, impresso no Sazlag, 1936.
Politicamente, o Canal do Mar Branco foi o projeto mais importante do Gulag na época. Graças ao envolvimento pessoal de Stalin, não se pouparam em sua construção
os recursos existentes. Uma propaganda exuberante também garantiu que o término bem-sucedido da obra fosse amplamente alardeado. No entanto, o canal não era representativo
dos novos projetos do Gulag, dos quais não seria nem o primeiro, nem o maior.
De fato, mesmo antes de iniciada a construção do canal, a OGPU já começara em silêncio a implementar o trabalho prisional por todo o país, com muito menos estardalhaço
e propaganda. Em meados de 1930, o sistema Gulag já tinha à disposição 300 mil presos, espalhados por cerca de uma dúzia de complexos de campos e algumas instalações
menores. Puseram-se 15 mil pessoas para trabalhar no Dallag, um novo campo no Extremo Oriente. Mais de 20 mil estavam construindo e operando indústrias químicas
no Vishlag, um campo organizado na sede da divisão Vishersky da Slon, no lado oeste dos montes Urais. No Siblag, no oeste da Sibéria, os detentos construíam as ferrovias
para o norte, faziam tijolos e derrubavam árvores. Os 40 mil presos da Slon, por sua vez, trabalhavam abrindo estradas, cortando madeira para exportação e processando
40% do pescado do mar Branco.
Diferentemente do que ocorrera com o Canal do Mar Branco, esses novos campos não eram para propaganda. Embora decerto tivessem maior importância econômica para a
URSS, nenhuma equipe de redatores foi despachada para descrevê-los. A existência deles não era (ainda) completamente secreta, mas tampouco se fazia publicidade:
as "reais" conquistas do Gulag não eram para consumo externo, nem mesmo para consumo interno.
À medida que os campos se expandiam, a natureza da OGPU também mudava. Assim como antes, a polícia secreta soviética continuava a espionar os inimigos do regime,
interrogar suspeitos de dissidências e desmascarar "complôs" e "conspirações". A partir de 1929, ela também assumiu parte da responsabilidade pelo desenvolvimento
econômico da URSS. Ao longo da década seguinte, seria até uma espécie de colonizadora, não raro organizando a busca e a exploração dos recursos naturais da URSS.
Planejou e equipou expedições geológicas que prospectaram carvão, petróleo, ouro, níquel e outros minerais que jaziam embaixo da tundra congelada nas regiões árticas
e subárticas do extremo norte soviético. Decidia quais das enormes florestas seriam as próximas a ser abatidas e transformadas em valiosas exportações de madeira
bruta. A fim de transportar esses recursos para as principais cidades e centros industriais da URSS, estabeleceu uma vasta rede de conexões rodoviárias e ferroviárias,
criando um sistema rudimentar de transportes através de milhares de quilômetros de áreas selvagens e desabitadas. De quando em quando, seus membros até participavam
desses empreendimentos, marchando pela tundra, trajados com pesados casacos de peles e espessas botas, informando suas descobertas por telegrama a Moscou.
Os presos, assim como seus captores, ganharam novos papéis. Durante toda a primeira metade da década de 1930, embora alguns continuassem a penar atrás do arame farpado,
minerando carvão ou cavando fossas, os condenados também remavam em canoas por rios ao norte do Círculo Ártico, carregavam o equipamento para as pesquisas geológicas
e abriam o chão para novas minas de carvão e poços de petróleo. Em novos campos, erguiam os alojamentos, desenrolavam o arame farpado e levantavam as torres de vigia.
Construíam as refinarias necessárias para o processamento dos recursos naturais, assentavam as estacas para as ferrovias e despejavam o cimento para as estradas.
Acabavam também se estabelecendo nos territórios recém-explorados, povoando os ermos virgens.
Depois, historiadores soviéticos designariam liricamente esse episódio da história de seu país como "o desbravamento do extremo norte, e é verdade que ele de fato
representou uma verdadeira ruptura com o passado. Mesmo nas últimas décadas do governo czarista, quando uma revolução industrial tardia enfim pipocava pela Rússia,
ninguém tentara explorar e povoar com aquela intensidade as regiões do extremo norte. O clima era rigoroso demais; o sofrimento humano potencial, grande demais;
a tecnologia russa, primitiva demais. O regime soviético ligava muito menos para essas preocupações. Embora sua tecnologia não fosse muito melhor, ele tinha pouca
consideração pela vida das pessoas que enviava para fazer o "desbravamento". Se algumas morressem... bem, podiam-se achar outras.
As tragédias eram muitas, sobretudo no início dessa nova época. Há pouco tempo, a veracidade de um episódio particularmente horripilante, que durante muito tempo
fora parte do folclore dos sobreviventes dos campos, viu-se confirmada por um documento encontrado nos arquivos de Novossibirsk. Assinado por um funcionário do Comitê
do Partido em Narym, na Sibéria ocidental, e enviado à atenção pessoal de Stalin em maio de 1933, descreve com precisão a chegada à ilha de Nazino, no rio Ob, de
um grupo de camponeses desterrados, descritos como "elementos retrógrados". Os camponeses eram degredados, e, como tais, esperava-se que se estabelecessem na terra
e, presumivelmente, a lavrassem:
O primeiro comboio trazia 5.070 pessoas, e o segundo, 1.044. Ao todo, 6.114. As condições de transporte eram chocantes: a pouca comida disponível não estava em condições
de consumo, e os deportados ficavam apinhados em espaços nos quais o ar quase não circulava. [...] O resultado foi uma mortalidade diária de 35 a quarenta pessoas.
Contudo, essas condições de vida eram luxuosas se comparadas ao que aguardava os deportados em Nazino. [....] A ilha é um lugar totalmente desabitado, desprovido
de povoações de qualquer tipo. [...] Não havia ferramentas, sementes nem comida. Foi assim que começou a nova vida deles. Em 19 de maio, no dia seguinte à chegada
do primeiro comboio, recomeçou a nevar, e o vento ficou mais forte. Famintos, emaciados após meses de alimentação insuficiente, sem abrigo e sem ferramentas [...],
estavam presos numa armadilha. Nem sequer conseguiam acender fogueiras para espantar o frio. Começaram a morrer em número cada vez maior. [...]
No primeiro dia, enterraram-se 295 pessoas. Foi somente no quarto ou quinto dia depois da chegada do comboio à ilha que as autoridades enviaram de barco um pouco
de farinha, não mais que algumas libras por cabeça. Depois de recebida a mísera ração, as pessoas corriam para a margem e tentavam misturar um pouco da farinha com
água, usando seus chapéus, suas calças ou seus casacos. A maioria simplesmente tentou comê-la assim mesmo, e alguns engasgaram até a morte. Essa minúscula quantidade
de farinha foi a única comida que os deportados receberam durante toda a estada na ilha. [...]
O funcionário do Partido contava que, três meses depois, em 20 de agosto já haviam perecido quase 4 mil dos 6.114 "colonos" originais. Os sobreviventes só não tiveram
o mesmo destino porque comeram a carne dos mortos. Segundo um preso que encontrou alguns desses sobreviventes na prisão de Tomsk, eles pareciam "cadáveres ambulantes",
e todos estavam detidos - acusados de canibalismo.
Mesmo quando a mortandade não era tão horripilante, as condições de vida em muitos daqueles projetos iniciais do Gulag mais conhecidos podiam ser quase tão atrozes.
O Bamlag, um campo organizado para a construção de uma ferrovia do lago Baikal ao rio Amur, no Extremo Oriente russo (parte do sistema da Transiberiana), era exemplo
notável de quanto as coisas podiam dar errado por simples falta de planejamento. Assim como no Canal do Mar Branco, a ferrovia se construiu muito às pressas, sem
nenhum preparativo. Os planejadores do campo fizeram o desbravamento, o projeto e a construção ao mesmo tempo; as obras começaram antes de concluído o levantamento
topográfico. Os desbravadores foram obrigados a elaborar em menos de quatro meses seu relatório sobre aquela rota de 2 mil quilômetros, sem calçados, sem trajes
e sem instrumentos adequados. Os mapas existentes eram precários, e, como resultado, cometeram-se erros dispendiosos. De acordo com um sobrevivente, "dois grupos
de trabalhadores [cada um fazendo o levantamento de um trecho diferente da linha] descobriram que não poderiam encontrar-se e terminar o trabalho, porque os dois
rios ao longo dos quais estavam caminhando só se encontravam nos mapas: na realidade, ficavam longe um do outro".
Tão logo se iniciou o trabalho, comboios começaram a chegar sem intervalo à sede do campo, na cidade de Svobodny, nome que significa "Liberdade". Entre janeiro de
1933 e janeiro de 1936, o número de presos subiu de uns poucos milhares para mais de 180 mil. Muitos já estavam fracos na chegada, descalços e inadequadamente vestidos,
sofrendo de escorbuto, sífilis, disenteria; entre eles, havia sobreviventes das epidemias de fome que tinham varrido a zona rural da URSS no início da década de
1930. O campo estava totalmente despreparado. Os ocupantes de qualquer comboio que chegasse eram postos em alojamentos frios e escuros e recebiam pão coberto de
poeira. Os comandantes do Bamlag não conseguiam enfrentar o caos, conforme reconheciam em relatórios que mandavam a Moscou, e estavam particularmente mal equipados
para lidar com presos debilitados. Como resultado, os demasiado enfermos para trabalhar eram simplesmente alimentados com rações "disciplinares" e deixados para
morrer de inanição. Todos os integrantes de um comboio de 29 pessoas morreram num período de 37 dias após a chegada. Até a conclusão da ferrovia, é bem possível
que tenham morrido dezenas de milhares de presos.
Histórias semelhantes se repetiam por todo o país. Em 1929, no canteiro de obras ferroviárias do Gulag no Sevlag (a nordeste de Arcangel), os engenheiros determinaram
que o número de presos designados para o projeto precisaria ser multiplicado por seis. Entre abril e outubro daquele ano, comboios de cativos começaram a chegar
conforme o combinado - e não encontraram nada. Um preso recordou:
Não existia alojamento nem vila. Havia tendas, ao lado, para os guardas e o equipamento. Não eram muitas pessoas, talvez umas 1.500. Na maioria, camponeses de meia-idade,
antigos kulaks. E criminosos. Não havia ninguém que parecesse ser da intelligentsia.
Mas, embora todos os complexos de campos criados no início da década de 1930 fossem, só para começo de conversa, desorganizados - e todos estivessem despreparados
para receber os presos debilitados que chegavam das áreas assoladas pela fome -, nem todos decaíram no caos assassino. Para alguns, havendo o conjunto certo de circunstâncias
(condições relativamente favoráveis no local, combinadas com apoio forte de Moscou), foi possível crescer. Com rapidez surpreendente, desenvolveram estruturas burocráticas
mais estáveis, construíram edificações mais permanentes e até deram origem a uma elite local da NKVD. Uns poucos acabariam ocupando enormes faixas de território,
transformando regiões inteiras do país em vastas prisões. Dos campos fundados naquela época, dois - a Expedição Ukhtinskaya e o Truste Dalstroi - alcançariam o tamanho
e o status de impérios industriais. Suas origens merecem exame mais detalhado.
A um passageiro desatento, a viagem de automóvel pela estrada de concreto caindo aos pedaços que vai desde Syktyvkar, capital administrativa da República Komi, até
Ukhta, um dos principais centros industriais daquela república, pareceria não oferecer muita coisa de interessante. Essa estrada de duzentos quilômetros, cujo estado
de conservação piora em alguns trechos, atravessa infindáveis pinheirais e banhados. Embora se cruzem alguns rios, a paisagem não é, em geral, digna de nota: trata-se
da taiga, a impressionantemente monótona paisagem subártica pela qual Komi (e de fato todo o norte da Rússia) é mais conhecida.
Ainda que a paisagem não seja espetacular, uma visão mais aproximada revela algumas coisas estranhas. Em certos lugares, caso se saiba para onde olhar, há indentações
no terreno logo à beira da estrada. São os únicos vestígios do campo que outrora acompanhava toda a estrada e dos grupos de presos que a construíram. Já que os canteiros
de obras eram temporários, os presos ficavam abrigados não em alojamentos, mas em zemlyanki, buracos feitos na terra - donde aquelas marcas no chão.
Em outro trecho da estrada, estão os restos de um tipo mais substancial de campo, antes ligado a uma pequena jazida petrolífera. Mato e ervas daninhas cobrem hoje
o local, mas é fácil afastá-los para deixar à mostra tábuas apodrecidas (possivelmente preservadas pelo petróleo que saía das botas dos presos) e pedaços de arame
farpado. Aqui não há nenhum monumento, embora exista um mais adiante na estrada, em Bograzdino, campo de trânsito que chegou a acomodar 25 mil pessoas. Dele não
ficou nenhum vestígio. Em outro ponto ainda à margem da estrada, atrás de um moderno posto de gasolina da Lukoil, uma empresa russa da atualidade, ergue-se uma velha
torre de vigia de madeira, cercada de sucata e pedaços de arame enferrujado.
Prossiga para Ukhta na companhia de alguém que conheça bem a cidade, e assim a história oculta da cidade logo se revelará. Todas as estradas que levam a Ukhta foram
construídas por presos, tal qual todos os prédios de escritórios e de apartamentos da região central. No próprio coração da cidade, há um parque planejado e construído
por arquitetos aprisionados; um teatro onde atores presos se apresentavam; e sólidas casas de madeira onde viveram os comandantes do campo. Hoje, os executivos da
Gazprom (outra nova companhia russa) moram em edifícios modernos na mesma rua arborizada.
Mas Ukhta não é um caso único na República Komi. Embora a principio seja difícil vê-los, indícios do Gulag podem ser achados por toda Komi, essa vasta região de
taiga e tundra que fica a nordeste de São Petersburgo e a oeste dos Urais. Presos planejaram e erigiram todas as principais cidades da república - não apenas Ukhta,
mas também Syktyvkar, Pechora, Vorkuta e Inta. Presos construíram as fer-rovias e estradas de Komi, bem como sua primeira infra-estrutura industrial. Para os condenados
que lá eram enviados nas décadas de 1940 e 50, Komi parecia ser tão-somente um vasto campo de concentração - e era mesmo. Muitas de suas aldeias ainda são chamadas
localmente pelos nomes da era stalinista: "Chinatown", por exemplo, onde se manteve um grupo de presos chineses; ou "Berlim", antes habitada por prisioneiros de
guerra alemães.
As origens dessa vasta república de prisões remontam a uma das primeiras expedições da OGPU, a Ukhtinskaya, que partiu em 1929 para explorar o que era um ermo. Pelos
padrões soviéticos, a Expedição Ukhtinskaya foi relativamente bem preparada. Tinha uma pletora de especialistas, a maioria dos quais já era prisioneira do sistema
Solovetsky: só em 1928, 68 peritos em mineração haviam sido enviados a Slon, vítimas das campanhas daquele ano contra os "destruidores" e "sabotadores" que supostamente
entravavam o esforço de industrialização da URSS.
Em novembro de 1928, numa coincidência misteriosamente feliz, a OGPU também prendeu o destacado geólogo N. Tikhonovich. Depois que o jogaram na prisão moscovita
de Butyrka, não conduziram um interrogatório comum. Em vez disso, o levaram a uma reunião de planejamento. Tikhonovich recordaria que,, sem perder tempo com preâmbulos,
um grupo de oito pessoas (ninguém lhe disse quem eram) lhe perguntou à queima-roupa como preparar uma expedição a Komi. Que indumentária ele levaria se fosse lá?
Quantas provisões? Que ferramentas? Que transporte? Tikhonovich, que estivera pela primeira vez na região em 1900, propôs duas rotas. Os geólogos poderiam ir por
terra, a pé e a cavalo, sobre a lama e as florestas da taiga desabitada, até a aldeia de Syktyvkar, na época a maior da região. Ou poderiam ir de barco, saindo do
porto de Arcangel, no mar Branco, navegando ao longo da costa norte até a foz do Pechora e continuando para o interior pelos afluentes desse rio. Tikhonovich recomendou
a segunda rota, salientando que os barcos poderiam transportar mais equipamento pesado. Seguindo suas recomendações, a expedição seguiu por mar. Tikhonovich, ainda
preso, tornou-se seu geólogo-chefe.
Não se perdeu tempo nem se poupou despesa, pois a liderança soviética considerava a expedição uma prioridade urgente. Em maio, a administração do Gulag em Moscou
nomeou dois chefes de alto escalão da polícia secreta para liderarem o grupo: E. P. Skaya, ex-responsável pela segurança no Instituto Smolny - primeiro quartel-general
de Lênin durante a Revolução - e depois responsável pela segurança no próprio Kremlin; e S. F. Sidorov, o mais importante planejador econômico da OGPU. Quase ao
mesmo tempo, esses líderes selecionaram sua "mão-de-obra": 139 dos detentos mais fortes e saudáveis do campo de trânsito da Slon em Kem, entre eles presos políticos,
kulaks e criminosos. Após mais dois meses de preparativos, estavam prontos. Em 5 de julho de 1929, às sete da manhã, os presos começaram a embarcar equipamento no
Gleb Boky, o vapor da Slon. Zarparam menos de 24 horas depois.
Não é de surpreender que a expedição náutica tenha encontrado muitos obstáculos. Vários dos guardas parecem ter fraquejado, e um até fugiu durante uma escala em
Arcangel. Pequenos grupos de presos também conseguiram escafeder-se em vários pontos ao longo do trajeto. Quando a expedição enfim chegou à foz do Pechora, foi difícil
achar guias locais. Mesmo se fossem pagos, os nativos de Komi não queriam ter nada que ver com os presos nem com a polícia secreta e se negaram a ajudar o vapor
a navegar rio acima. Apesar disso, passadas sete semanas, o navio alcançou seu destino. Em 21 de agosto, a expedição estabeleceu seu acampamento-base na aldeia de
Chibyu - depois rebatizada Ukhta.
Após a extenuante viagem, o estado de espírito geral deve ter sido excepcionalmente sombrio. Eles haviam viajado uma grande distancia - e aonde chegaram? Chibyu
oferecia pouco em matéria de conforto. Um dos presos especialistas, um geógrafo chamado Kulevsky, lembrou sua primeira visão do lugar:
O coração se apertava ao ver a paisagem selvagem e vazia; a torre de vigia absurdamente grande, negra, solitária; as duas miseráveis caba-nas; a taiga; a lama.
Kulevsky teria pouca folga para poder refletir mais. No final de agosto, sopros do outono já estavam no ar. Havia pouco tempo disponível. Tão logo chegaram, os presos
começaram a labutar doze horas por dia, construindo o acampamento e os locais de trabalho. Os geólogos partiram a fim encontrar os melhores lugares para procurar
petróleo. No outono, chegaram mais especialistas. Também chegaram novos comboios de presos, primeiro uma vez por mês e depois uma vez por semana, durante toda a
"temporada" de 1930. Ao final do primeiro ano da expedição, o número de presos aumentara para quase mil.
Apesar do planejamento prévio, as condições naqueles primeiros tempos, tanto para os presos quanto para os degredados, eram horrendas, como o eram em toda a parte.
A maioria tinha de viver em tendas pois não havia barracões. Tampouco havia roupas e botas de inverno suficientes, e a comida estava longe de ser bastante. Chegavam
farinha e carne em quantidades menores do que haviam sido pedidas, e o mesmo acontecia com os remédios. O número de presos doentes e enfraquecidos aumentou, como
reconheceram os líderes da expedição num relatório que enviaram depois. O isolamento não era menos difícil de suportar. Esses novos campos ficavam tão longe da civilização
- tão longe de estradas, para nem falarmos de ferrovias -, que não se usou arame farpado em Komi até 1937. Fugir era considerado inútil.
No entanto, continuavam chegando presos, e expedições suplementares continuavam partindo do acampamento-base em Ukhta. Se tivesse sucesso, cada uma delas fundava,
por sua vez, outro acampamento-base (lagpunkt), às vezes em lugares que eram bastante remotos, a vários dias ou semanas de caminhada de Ukhta. A partir dali, estabeleciam-se
novos subcampos, para construir estradas ou fazendas coletivas que atendessem às necessidades dos presos. Dessa forma, os campos se espalharam com rapidez, como
erva daninha, pelas florestas vazias de Komi.
Algumas das expedições se mostraram apenas temporárias. Foi esse o destino de uma das primeiras, que, no verão de 1930, partiu de Ukhta para a ilha de Vaigach, no
oceano Ártico. Expedições geológicas anteriores já haviam encontrado depósitos de chumbo e zinco na ilha, embora a Expedição Vaigach, como viria a ser conhecida,
também estivesse bem suprida de presos-geólogos. Alguns destes tiveram desempenho tão exemplar que a OGPU os recompensou: receberam permissão para trazer as esposas
e filhos para ficar com eles em Vaigach. O lugar era tão remoto que os comandantes do campo pareciam não se preocupar com fugas e permitiam que os presos andassem
por onde quisessem, na companhia de outros condenados ou de trabalhadores livres, sem necessidade de permissões ou passes especiais. A fim de encorajar o "trabalho-padrão
no Ártico", Matvei Berman, então o chefe do Gulag, concedeu aos presos de Vaigach dois dias comutados das penas para cada dia de trabalho. Em 1934, porém, a mina
se encheu de água, e no ano seguinte a OGPU retirou da ilha os presos e o equipamento.
Outras expedições se revelariam mais permanentes. Em 1931, um grupo de 23 partiu de Ukhta para o norte, pelos rios do interior, a fim de iniciar as escavações numa
enorme jazida de carvão - a bacia carbonífera de Vorkuta -, que, no ano anterior, fora descoberta na tundra ártica do norte de Komi. Como em todas essas expedições,
os geólogos mostraram o caminho, os presos tripularam os barcos, e um pequeno contingente da OGPU comandou a operação, remando e marchando através dos enxames de
insetos que habitam a tundra nos meses de verão Passaram as primeiras noites em campo aberto; depois, de algum modo montaram acampamento, sobreviveram ao inverno
e construíram, na primavera seguinte, uma minara Rudnik 1.
Ukhtpechlag, República Komi, 1937
A rota da Expedição Ukhtinskaya, República Komi, 1929
Usando picaretas, pás e carroças de madeira, sem nenhum equipamento mecanizado, os presos começaram a extrair carvão. Em apenas seis anos, a Rudnik 1 cresceria até
se tornar a cidade de Vorkuta e a sede do Vorkutlag, um dos maiores e mais duros campos de todo o sistema Gulag. Em 1938, o Vorkutlag já contava 15 mil presos e
produzira 188.206 toneladas de carvão.
Em termos estritos, nem todos os novos habitantes de Komi eram presos. A partir de 1929, as autoridades também começaram a enviar "degredados especiais" para a região.
De início, eram quase todos kulaks, que chegavam com as mulheres e filhos, e esperava-se que começassem a viver da terra. O próprio Yagoda declarara que se deveria
conceder aos degredados "tempo livre" para que cultivassem hortas, criassem porcos, pescassem e construíssem suas casas: "De início, viverão das rações de nosso
campo; depois, à própria custa". Na realidade, embora tudo isso pareça bem róseo, quase 5 mil dessas famílias de degredados (mais de 16 mil pessoas) chegaram em
1930 e, como de hábito, não encontraram quase nada. Até novembro daquele ano, construíram-se 268 barracões, quando pelo menos setecentos teriam sido necessários.
Três ou quatro famílias dividiam cada cômodo. Não havia quantidade suficiente nem de comida, nem de roupas, nem de botas de inverno. As aldeias dos degredados não
tinham banhos, estradas, serviços postais nem cabos telefônicos.
Embora alguns tenham morrido e muitos outros tenham tentado fugir (344 já no final de julho), os degredados de Komi se tornaram extensão permanente do sistema de
campos da região. Posteriormente, ondas repressivas levaram mais deles para lá, em especial poloneses e alemães. Donde as referências locais a algumas das aldeias
de Komi como "Berlim". Os degredados não viviam cercados pelo arame farpado, mas tinham as mesmas tarefas que os presos, às vezes nos mesmos lugares. Em 1940, um
campo madeireiro foi transformado em aldeia de degredo - prova de que, de certa maneira, os dois grupos eram intercambiáveis. Muitos degredados também acabariam
trabalhando como guardas ou administradores dos campos.
Com o tempo, esse crescimento geográfico se refletiria na nomenclatura dos campos. Em 1931, a Expedição Ukhtinskaya foi rebatizada Campo de Trabalho Correcional
Ukhto-Pechorsky, ou Ukhtpechlag. Ao longo das duas décadas subseqüentes, o próprio Ukhtpechlag seria rebatizado (e reorganizado e dividido) muitas vezes mais, para
refletir sua geografia mutável e seu império e burocracia crescentes. Aliás, no final da década, o Ukhtpechlag não seria mais um mero campo prisional. Ele dera origem
a toda uma rede de campos, duas dúzias ao todo, incluindo o Ukhtpechlag e o Ukhtizhemlag (petróleo e carvão), o Ustvymlag (madeira), Vorkuta e Inta (mineração de
carvão) e o Sevzheldorlag (ferrovia).
No decorrer dos anos seguintes, o Ukhtpechlag e seus descendentes também se tornaram mais densos, adquirindo novas instituições e novos edifícios de acordo com suas
necessidades sempre maiores. Precisando de hospitais, os administradores dos campos os construíam e ainda implantavam sistemas para treinar presos como farmacêuticos
e enfermeiros. Precisando de comida, estabeleciam suas fazendas coletivas, seus armazéns e seus sistemas de distribuição. Precisando de eletricidade, instalavam
usinas de força. Precisando de material de construção, criavam olarias.
Precisando de trabalhadores qualificados, treinaram os que tinham. Boa parte da mão-de-obra que fora kulak era analfabeta ou semi-alfabetizada, o que acarretava
enormes problemas quando se lidava com projetos de relativa complexidade técnica. Assim, a administração montou escolas técnicas, que por sua vez exigiam novos edifícios
e novos quadros: professores de matemática e física, bem como "instrutores políticos" para supervisionar o trabalho desses docentes. Na década de 1940, Vorkuta
- uma cidade construída sobre o permafrost, onde todo ano as estradas tinham que ser repavimentadas e as tubulações, consertadas - já ganhara um instituto geológico,
uma universidade, teatros e cinemas, teatros de marionetes, piscinas e creches.
No entanto, se a expansão do Ukhtpechlag não era muito divulgada, tampouco se fazia a esmo. Sem dúvida, os comandantes do campo desejavam que o projeto crescesse,
e seu prestígio pessoal junto com ele. A necessidade premente, e não o planejamento central levava à criação de muitos novos departamentos no campo. Mas havia clara
simbiose entre as necessidades do governo soviético (um lugar onde despejar seus inimigos) e as necessidades da região (mais gente para cortar árvores). Em 1930,
por exemplo, quando Moscou escreveu oferecendo-se para enviar colonos degredados, os líderes locais adoraram. O destino do campo também foi discutido nos escalões
mais altos. Vale a pena observar que, em novembro de 1932, o Politburo (com Stalin presente) dedicou a maior parte de uma sessão a discutir o estado corrente e os
planos futuros para o Ukhtpechlag, debatendo com surpreendente minúcia as perspectivas e o abastecimento do campo. A julgar pela ata da sessão, parece que o Politburo
tomava todas as decisões, ou pelo menos aprovava tudo o que fosse de alguma importância: quais minas o campo devia explorar, quais ferrovias devia construir, de
quantos tratores, carros e barcos precisava, quantas famílias de degredados conseguia absorver. O Politburo também alocou recursos para construir o campo: mais de
26 milhões de rublos.
Não pode ter sido por acaso que, nos três anos após essa decisão, o número de presos tenha quase quadruplicado, dos 4.797 de meados de 1930 para os 17.852 de meados
de 1933. No primeiríssimo escalão da hierarquia soviética, alguém queria muito que o Ukhtpechlag crescesse. Considerando o poder e o prestígio desse alguém, só
podia tratar-se do próprio Stalin.
Da mesma maneira que, na memória popular, Auschwitz se tornou o campo que simboliza todos os outros campos nazistas, a palavra "Kolyma" veio a significar as mais
severas agruras do Gulag. Um historiador escreveu: "Kolyma é um rio, uma cadeia de montanhas, uma região e uma metáfora". Rica em minerais (e sobretudo rica em
ouro), a vasta região de Kolyma, no extremo nordeste da Sibéria, junto ao Pacífico, é provavelmente a mais inóspita da Rússia. Kolyma é mais fria que Komi (no inverno,
as temperaturas regularmente caem abaixo de 49 graus Celsius negativos, o que a torna ainda mais remota). Para chegarem aos campos de Kolyma, os presos percorriam
de trem toda a extensão da URSS (às vezes, a viagem durava três meses), até Vladivostok. O resto do trajeto se fazia de barco, seguindo para o norte ao largo do
Japão, atravessando o mar de Okhotsk e aportando em Magadan, porta de entrada para o vale do rio Kolyma.
O primeiro comandante de Kolyma foi uma das figuras mais exuberantes da história do Gulag. Eduard Berzin, um velho bolchevique, comandara a Primeira Divisão de Fuzileiros
Letões, que guardava o Kremlin em 1918. Depois, ajudara a esmagar os social-revolucionários (opositores socialistas de Lênin) e a desmascarar o "complô britânico"
de Bruce Lockhart. Em 1926, Stalin incumbiu Berzin de organizar o Vishlag, um dos primeiros campos em larga escala. Ele desempenhou sua tarefa com enorme entusiasmo,
inspirando um historiador do Vishlag a falar de seu reinado ali como o auge do "período romântico" do Gulag.
A OGPU construiu o Vishlag ao mesmo tempo que o Canal do Mar Branco, e Berzin parece ter aprovado totalmente as idéias de Gorki sobre a reabilitação de presos (ou
pelo menos ter-lhes dado entusiástico apoio da boca para fora). Resplandecente de boa vontade paternalista, Berzin oferecia a seus presos cinemas, clubes de debates,
bibliotecas e refeitórios "ao estilo restaurante". Plantou jardins, inclusive com chafarizes e um pequeno zoológico. Também pagava salários regulares aos presos
e implementava a mesma política de "soltura antecipada por bom trabalho" que fora adotada pelos comandantes do Canal do Mar Branco. Nem todos aproveitavam esses
benefícios: os presos que fossem considerados trabalhadores medíocres, ou que simplesmente não tivessem sorte, podiam ser enviados para um dos muitos lagpunkts madeireiros
do Vishlag na taiga, onde as condições eram ruins, as taxas de mortalidade se mostravam mais altas e presos acabavam torturados e até assassinados sem alarde.
Ainda assim, pelo menos a intenção de Berzin era que seu campo parecesse uma instituição honrada. À primeira vista, tudo isso o tornava uma escolha estranha para
tornar-se o primeiro chefe da Administração de Construção do Extremo Norte (Dalstroi), o "traste", ou pseudo-sociedade anônima, que desenvolveria a região de Kolyma,
pois não havia nada de especialmente romântico nem idealista na fundação da Dalstroi. O interesse de Stalin na região datava de 1926, quando mandou um engenheiro
aos Estados Unidos para estudar técnicas de mineração. Depois, entre 20 de agosto de 1931 e 16 de março de 1932, o Politburo discutiu a geologia e a geografia de
Kolyma nada menos que onze vezes - com a freqüente participação de Stalin nas discussões. Assim como as deliberações da Comissão Yanson quando se organizara o Gulag,
o Politburo conduziu esses debates, nas palavras do historiador David Nordlander, "não com a retórica idealista da construção do socialismo, e sim com a linguagem
prática da prioridade e do retorno financeiros". Stalin dedicou sua correspondência posterior com Berzin a discutir a produtividade prisional, as cotas e a produção,
nunca mencionando os ideais de reabilitação dos detentos.
Kolyma, 1937
Por outro lado, o talento de Berzin para criar uma imagem pública auspiciosa pode ter sido exatamente o que a liderança soviética queria pois, embora a Dalstroi
viesse a ser diretamente absorvida pela administração do Gulag, no início o truste sempre era mencionado, em público, como entidade distinta, uma espécie de conglomerado
comercial, que nada tinha que ver com o Gulag. Sem alarde, as autoridades fundaram o Sewostlag, um campo do Gulag que "alugava" condenados para o Truste Dalstroi.
Na prática, as duas instituições nunca concorreram entre si. O chefe da Dalstroi era também o chefe do Sewostlag, e ninguém tinha dúvidas quanto a isso. No papel,
porém, mantinham-se separados; e, em público, pareciam ser entidades diferentes.
Havia certa lógica nesse arranjo. Para começo de conversa, a Dalstroi precisava atrair voluntários, em especial engenheiros e mulheres casadouras - sempre havia
escassez de uma e outra coisa em Kolyma -, e Berzin promoveu muitas campanhas de recrutamento, tentando convencer "trabalhadores livres" a emigrarem para a região
e até montando escritórios em Moscou, Leningrado, Odessa, Rostov e Novossibirsk. Essa talvez já fosse razão suficiente para Stalin e Berzin terem desejado evitar
uma identificação muito próxima de Kolyma com o Gulag, temendo que a ligação pudesse afugentar potenciais recrutas. Embora disto não haja nenhuma prova direta, tais
maquinações podem também se ter destinado a consumo externo. Assim como a madeira soviética, o ouro de Kolyma seria vendido direto ao Ocidente, em troca de tecnologia
e máquinas de que se necessitava desesperadamente. Trata-se de uma circunstância que pode ajudar a explicar por que a liderança soviética queria fazer que as minas
de ouro de Kolyma parecessem, tanto quanto possível, um empreendimento econômico "normal". Um boicote ao ouro teria sido muito mais danoso do que um boicote à madeira.
Em todo o caso, o envolvimento pessoal de Stalin com Kolyma foi bastante intenso desde o início. Em 1932, ele chegou a exigir relatórios diários sobre a produção
de ouro; e, como já observamos, interessava-se pessoalmente pelos detalhes dos projetos de exploração (e do cumprimento de cotas) da Dalstroi. Mandava inspetores
para fiscalizar os campos e exigia que os líderes da Dalstroi viajassem com fre-qúencia para Moscou. Quando o Politburo alocava fundos ao truste, Stalin também dava
instruções precisas de como gastá-los, tal como fazia com o Ukhtpechlag.
No entanto, a "independência" da Dalstroi não era de todo fictícia. Embora se reportasse a Stalin, Berzin também conseguiu deixar sua marca em Kolyma, tanto que
a "era Berzin" seria depois lembrada com alguma nostalgia. Ele parece ter compreendido sua missão de maneira muito simples: tinha por tarefa fazer os presos extraírem
tanto ouro quanto possível. Não estava interessádo em matá-los de inanição assassiná-los nem puni-los - só os números da produção importavam Portanto, sob a administração
do primeiro chefe da Dalstroi, as condições não eram nem de longe tão duras quanto viriam a tornar-se, e os presos não passavam tanta fome. Em parte como resultado
disso, a produção aurífera de Kolyma aumentou oito vezes nos primeiros dois anos de operação da Dalstroi.
E verdade que os primeiros anos foram repletos do mesmo caos e da mesma desorganização que predominavam em outros lugares. Em 1932, estavam trabalhando na região
quase 10 mil presos - dentre eles, o grupo de engenheiros e especialistas cujas qualificações combinavam tão maravilhosamente com a tarefa -, junto com mais de 3
mil voluntários, ou "trabalhadores livres" (trabalhadores do campo que não eram presos). Esses números elevados se faziam acompanhar de elevada taxa de mortalidade.
Dos 16 mil presos que viajaram para Kolyma no primeiro ano de Berzin, apenas 9.928 chegaram vivos a Magadan. O resto foi atirado, com roupas e proteção insuficientes,
às tempestades de inverno: os sobreviventes do primeiro ano afirmariam que só metade do contingente original não perecera.
Entretanto, assim que passou o caos inicial, a situação de fato melhorou aos poucos. Berzin trabalhou duro para amenizar as condições, ao que parece acreditando,
não sem razão, que os presos precisavam estar aquecidos e bem alimentados para extrair grandes quantidades de ouro. Como resultado, Thomas Sgovio, um sobrevivente
americano de Kolyma, escreveu que os "veteranos" do campo falavam com entusiasmo do reinado de Berzin:
quando a temperatura caía abaixo de quinze graus negativos, não eram mandados ao trabalho. Tinham três dias de descanso por mês. A comida era adequada e nutritiva.
Os zeks [presos] recebiam roupas quentes: gorros de pele e botas de feltro.
Variam Shalamov, outro sobrevivente - cujos Contos de Kolyma são dos mais amargos de toda a literatura dos campos -, também escreveu sobre o período Berzin como
época
de excelente comida; uma jornada de trabalho de quatro a seis horas no inverno e dez no verão; e salários colossais para os condenados, o que lhes possibilitava
retornar para casa como homens de posses quando as penas terminavam. [...] Os cemitérios que datam daquela época são tão poucos que os primeiros moradores de Kolyma
pareciam imortais àqueles que vieram posteriormente.
Se as condições de vida eram melhores do que seriam depois, o comando do campo também tratava com mais humanidade os presos. Na época, não era nítida a linha que
separava dos prisioneiros os trabalhadores livres voluntários. Os dois grupos se associavam normalmente; às vezes se permitia que os presos mudassem dos barracões
para morar nas vilas dos trabalhadores livres; e os detentos podiam ser promovidos a guardas armados, assim como a geólogos e engenheiros. Mariya Ioffe, degredada
em Kolyma em meados da década de 1930, obteve permissão para ter livros e papel; e lembrou que as famílias de degredados, na maioria, estavam autorizadas a ficar
juntas.
Os presos também podiam participar, até certo ponto, dos acontecimentos políticos de seu tempo. Assim como no Canal do Mar Branco, Kolyma promovia seus próprios
trabalhadores-padrão e stakhanovistas. Um preso chegou a tornar-se o "instrutor de métodos stakhanovistas de trabalho" da Dalstroi, e os condenados que tivessem
bom desempenho recebiam um pequeno distintivo, de "trabalhadores-padrão de Kolyma".
Da mesma maneira que no Ukhtpechlag, a infra-estrutura de Kolyma logo ficou mais sofisticada. Nos anos 1930, os presos construíram não apenas as minas, mas também
as docas e os quebra-mares do porto de Magadan, bem como a única estrada importante da região, a rodovia de Kolyma, que vai de Magadan para o norte. A maioria dos
lagpunkts do Sewostlag se localizava ao longo dessa estrada e, aliás, era comumente batizada de acordo com a distância de Magadan ("Campo do Quilômetro 47", por
exemplo). Os presos também construíram a própria Magadan, que tinha 15 mil habitantes em 1936 e continuaria a crescer. Ao voltar à cidade em 1947, depois de sete
anos servidos nos campos mais remotos, Evgeniya Ginzburg conta ter "quase desmaiado de surpresa e admiração" com a rapidez do crescimento de Magadan. "Só algumas
semanas depois percebi que se contavam nos dedos os edifícios grandes. Naquele primeiro momento, foi mesmo uma grande metrópole para mim."
Aliás, Evgeniya foi uma das poucas prisioneiras que perceberam um paradoxo curioso. Era estranho, mas verdadeiro: em Kolyma, assim como em Komi, o Gulag estava lentamente
trazendo para os ermos remotos a "civilização" (se assim podemos chamá-la). Abriam-se estradas onde houvera apenas florestas; construíam-se casas nos pântanos As
populações nativas iam sendo afastadas a fim de abrir caminho para cidades, fábricas e ferrovias. Anos depois, uma mulher cujo pai fora o cozinheiro de um distante
posto do Lokchimlag, um dos campos madeireiros de Komi, recordou para mim como era a vida ali quando o campo ainda funcionava: "Ah, tínhamos um depósito inteiro
cheio de hortaliças, mais campos repletos de abóboras - não era tudo estéril como hoje". Ela agitava o braço, desgostosa, na direção do minúsculo vilarejo que agora
ocupava o lugar e das antigas celas punitivas, ainda habitadas. "Também havia luz elétrica de verdade, e os chefes entravam e saíam em seus carrões quase todos os
dias."
Evgeniya Ginzburg fez, de modo mais eloqüente, a mesma observação:
Como é estranho o coração dos homens! Minha alma inteira amaldiçoava aqueles que haviam pensado na idéia de construir uma cidade nesse permafrost, descongelando
o chão com o sangue e as lágrimas de inocentes. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha consciência de uma espécie de orgulho ridículo... Como a nossa Magadan crescera e ficara
bonita durante minha ausência de sete anos! Estava irreconhecível. Eu admirava cada poste de luz, cada trecho de asfalto, até o cartaz que anunciava que a Casa da
Cultura estava apresentando a opereta A princesa dos dólares. Damos valor a todos os fragmentos de nossa vida, até aos mais amargos.
Em 1934, a expansão do Gulag em Kolyma, em Komi, na Sibéria, no Cazaquistão e em todas as outras partes da URSS seguira o mesmo padrão que em Solovetsky. Nos primeiros
dias, a negligência, o caos e a desordem causavam muitas mortes desnecessárias. Mesmo sem sadismo ostensivo, a crueldade irrefletida dos guardas, que tratavam seus
presos como animais domésticos, causou muito sofrimento.
Apesar disso, com o passar do tempo, o sistema parecia entrar precariamente nos eixos. As taxas de mortalidade, tendo atingido o ápice em 1933, caíam à medida que
a fome recuava pelo país e o Gulag se tornava mais organizado. Em 1934, segundo as estatísticas oficiais, elas giravam em torno de 4%. O Ukhtpechlag estava produzindo
petróleo; Kolyma, ouro; os campos da região de Arcangel, madeira. Abriam-se estradas através da Sibéria. Erros e acidentes não faltavam, mas isso valia para qualquer
lugar da URSS. A rapidez da industrialização, a falta de planejamento e a escassez de especialistas bem treinados tornavam inevitáveis os acidentes e os gastos excessivos,
como bem deviam saber os encarregados dos grandes projetos.
Apesar dos reveses, a OGPU depressa se tornava um dos agentes econômicos mais importantes do país. Em 1934, o Dmitlag, o campo que construiu o canal Moscou-Volga,
utilizava quase 200 mil presos, mais do que se empregara no Canal do Mar Branco. O Siblag também crescera, contando com 63 mil presos em 1934; e o Dallag mais do
que triplicara seus efetivos nos quatro anos desde a fundação, tendo 50 mil presos em 1934. Outros campos haviam sido fundados por toda a URSS: no Sazlag, no Uzbequistão,
onde os presos trabalhavam em fazendas coletivas; no Svirlag, perto de Leningrado, onde eles derrubavam árvores e preparavam produtos de madeira para a cidade; e
no Karlag, no Cazaquistão, que empregava presos como agricultores, operários e até pescadores.
Foi também em 1934 que se reorganizou e se rebatizou a OGPU, em parte para refletir o novo status e as responsabilidades ampliadas da organização. Naquele ano, a
polícia secreta se tornou oficialmente o Comissariado do Povo Para Assuntos Internos, passando a ser conhecida por outra sigla: NKVD. Sob a nova denominação, controlava
agora o destino de mais de 1 milhão de presos. Mas a calma relativa não duraria. O sistema estava prestes a virar a si mesmo pelo avesso, abruptamente, numa revolução
que destruiria tanto senhores quanto escravos.
6. O GRANDE TERROR E O PERÍODO SUBSEQÜENTE
Foi um tempo em que só os mortos
Conseguiam sorrir, livres de suas agruras,
E o lamento, a alma de Leningrado,
Pendia do lado de fora de sua prisão;
E os regimentos dos condenados,
Tocados como gado nos pátios das estações,
Encolhiam-se com o apito da locomotiva,
Que cantava: "Fora, párias!"
A estrela da morte pairava sobre nós.
E a Rússia, inocente, adorada, retorcida
Sob botas manchadas de sangue,
Sob as rodas de camburões.
Anna Akhmatova, Réquiem 1935-1940.
Em termos objetivos, os anos de 1937 e 1938 - que seriam lembrados como o Grande Terror - não foram os de maior mortalidade na história dos campos de concentração,
nem marcaram a maior expansão deles: os números de presos seriam muito maiores na década seguinte e atingiriam o máximo em 1952, muito depois do período que geralmente
se recorda. Embora as estatísticas disponíveis sejam incompletas, ainda fica claro que as taxas de mortalidade nos campos foram maiores tanto no auge da fome na
zona rural (1932 e 1933) como no pior momento da Segunda Guerra Mundial (1942 e 1943), quando o número total de pessoas mandadas para campos de trabalhos forçados,
prisões e campos de prisioneiros de guerra girou em torno de 4 milhões.
Gomo foco de interesse histórico, pode-se também argumentar que a importância de 1937 e 1938 foi exagerada. Até Soljenitsin reclamou que aqueles que condenaram os
abusos do stalinismo "insistem em apegar-se a 37 e 38, aqueles anos que estão entalados em nossas gargantas"; e, de certa forma, o escritor tem razão. Afinal, o
Grande Terror seguiu-se a duas décadas de repressão. Desde 1918, ocorriam regularmente prisões e deportações em massa, primeiro de políticos oposicionistas, no início
dos anos 20, e depois de kulaks, no início dos anos 30 Todos esses episódios de prisões em massa se fizeram acompanhar da captura regular dos responsáveis pela "desordem
social".
Ao Grande Terror também se seguiram ainda mais prisões e deportações: de poloneses, ucranianos e baltas dos territórios invadidos em 1939; de "traidores" do Exército
Vermelho capturados pelo inimigo; de pessoas comuns que ficaram do lado errado da frente de combate após a invasão nazista, em 1941. Depois, em 1948, haveria novas
prisões de antigos presos; e ainda depois, imediatamente antes da morte de Stalin, prisões em massa de judeus. Por isso, embora as vítimas de 1937 e 1938 talvez
fossem mais conhecidas, e embora jamais se repetisse nada tão espetacular quanto os julgamentos públicos daqueles anos, as prisões do Grande Terror seriam mais bem
descritas não como o auge da repressão, e sim como uma das ondas de repressão mais incomuns que varreram p país durante o reinado de Stalin: ela afetou mais a elite
- velhos bolcheviques, membros destacados do Exército e do Partido -; e, no geral, abrangeu maior variedade de pessoas e resultou em um número de execuções mais
alto que o costumeiro.
Mas, na história do Gulag, 1937 foi mesmo um divisor de águas. Naquele ano, os campos soviéticos se transformaram temporariamente de prisões administradas com negligência,
onde as pessoas morriam por acidente, em autênticos campos de extermínio - onde, de caso pensado, presos eram obrigados a trabalhar até a morte ou acabavam de fato
assassinados, em números muito maiores que antes. Embora essa mudança estivesse longe de ser sistemática, e embora em 1939 a natureza propositalmente mortífera dos
campos tenha amainado de novo - até a morte de Stalin, em 1953, as taxas de mortalidade cairiam e subiriam conforme o vaivém bélico e ideológico -, o Grande Terror
deixou sua marca na mentalidade tanto dos guardas quanto dos presos.
Assim como o resto do país, os habitantes do Gulag devem ter visto os primeiros sinais que os alertavam do terror vindouro. Após o ainda misterioso assassínio de
Sergei Kirov, o popular líder do Partido em Leningrado, em dezembro de 1934, Stalin forçou uma série de decretos que davam à NKVD poderes ainda maiores para prender,
julgar e executar "inimigos do povo". Em poucas semanas, dois importantes bolcheviques, Kamenev e Zinoviev, ambos antigos opositores de Stalin, já haviam se tornado
vítimas dos decretos: foram presos, junto com milhares de seus seguidores e supostos seguidores, muitos deles de Leningrado. Seguiram-se expulsões em massa do Partido
Comunista, embora de início elas não tenham sido muito mais amplas que as já ocorridas naquela década.
Aos poucos, o expurgo ficou mais sangrento. Durante toda a primavera e o verão de 1936, os interrogadores de Stalin trabalharam em Kamenev, em Zinoviev e num grupo
de ex-admiradores de Leon Trotski, preparando-os para "confessar" seus crimes num grande julgamento público, que ocorreu logo na seqüência, em agosto. Todos foram
depois executados, junto com muitos parentes. Em seguida, ocorreram outros julgamentos de bolcheviques proeminentes, dentre eles o carismático Nikolai Bukharin.
Suas famílias também sofreram.
A mania de prisões e execuções se espalhou pela hierarquia do Partido abaixo e por toda a sociedade. Era promovida de cima, por Stalin, que a utilizava para eliminar
seus inimigos, criar uma nova classe de líderes leais, aterrorizar a população soviética - e encher os campos de concentração. A partir de 1937, assinou ordens que
foram enviadas aos chefes regionais da NKVD, listando cotas de indivíduos que deveriam ser presos em determinadas áreas - não se deu nenhum motivo para as detenções.
Alguns deveriam ser condenados à "primeira categoria" punitiva (a morte) e outros à "segunda categoria" - o confinamento em campos de concentração por períodos que
variavam de oito a dez anos. Nessa última, os elementos mais "nocivos" deveriam ser colocados em prisões políticas especiais, sendo de supor que para impedi-los
de contaminar outros presos nos campos. Alguns estudiosos especulam que a NKVD, ao determinar cotas para diferentes partes do país, o fazia de acordo com sua percepção
de quais regiões tinham maior concentração de "inimigos". Mas, por outro lado, pode não ter havido nenhuma relação entre uma coisa e outra.
Ler essas ordens se assemelha muito a ler as ordens de um burocrata que elaborasse a última versão do Plano Qüinqüenal. Aqui está, por exemplo, uma datada de 30
de julho de 1937:
REPÚBLICA PRIMEIRA CATEGORIA SEGUNDA CATEGORIA TOTAL
Armênia 500 1.000 1.500
Azerbaijão 1.500 3.750 5.250
Basquíria 500 1.500 2.000
Bielo-Rússia 2.000 10.000 12.000
Buriato-Mongólia 350 1.500 1.850
Calmúquia 100 300 400
Carélia 300 700 1.000
Criméia 300 1.200 1.500
Daguestão 500 2.500 3.000
Geórgia 2.000 3.000 5.000
Kabardino-Balkar 300 700 1.000
Komi 100 300 400
Mari 300 1.500 1.800
Quirguízia 250 500 750
Tadjiquistão 500 1.300 1.800
Turcomenistão 500 1.500 2.000
Uzbequistão 750 4.000 4.750
Etc.
Fica claro que o expurgo não foi de forma alguma espontâneo: já se haviam até preparado novos campos para mais presos. O expurgo tampouco enfrentou muita resistência:
a administração da NKVD em Moscou esperava que seus subordinados nas províncias demonstrassem entusiasmo, e eles o fizeram. Em setembro de 1937, por exemplo, a NKVD
da Armênia pediu a Moscou: "Solicitamos permissão para fuzilar mais setecentos membros dos bandos do Dashnak e outros elementos anti-soviéticos". Stalin deferiu
pessoalmente um pedido semelhante: "Elevo para 6.600 o número de presos da primeira categoria na região de Krasnoyarsk". Muitas outras solicitações do mesmo tipo
foram assinadas por Stalin ou por Molotov. Em fevereiro de 1938, numa sessão do Politburo, concedeu-se permissão à NKVD da Ucrânia para prender mais 30 mil "kulaks
e outros elementos anti-soviéticos".
Parte da opinião pública soviética aprovou as novas detenções: a súbita revelação da existência de uma quantidade enorme de "inimigos , muitos deles nos escalões
mais altos do Partido, certamente explicava por que a URSS - apesar da Grande Guinada, apesar da coletivização, apesar do Plano Qüinqüenal - ainda era tão pobre
e atrasada. A maioria das pessoas, porém, ficou demasiado aterrorizada e confusa com o espetáculo de revolucionários famosos que confessavam, e de vizinhos que desapareciam
de noite, para expressar alguma opinião sobre o que acontecia.
No Gulag, o expurgo deixou suas marcas primeiro nos comandantes dos campos - ao eliminar muitos deles. Se em todo o resto do país o ano de 1937 seria lembrado como
aquele em que a Revolução devorou seus filhos, nos campos de concentração ele seria lembrado como aquele em que o Gulag consumiu seus fundadores, começando bem pelo
alto: Genrikh Yagoda, o chefe da polícia secreta que tinha a maior responsabilidade pela expansão do sistema, foi julgado e fuzilado em 1938, após ter implorado
pela vida numa carta ao Soviete Supremo. "É difícil morrer", escreveu o homem que mandara tantos outros para a morte. "Ajoelho-me perante o Povo e o Partido e peço-lhes
que me perdoem, que salvem minha vida."
Seu substituto, o diminuto Nikolai Yezhov (tinha só 1,52 metro), começou de imediato a livrar-se dos amigos e subordinados de Yagoda na NKVD. Também golpeou a família
de Yagoda - assim como golpearia as de outros -, prendendo-lhe a mulher e os pais, mais irmãs, sobrinhos e sobrinhas. Uma dessas últimas lembrou a reação da avó,
mãe de Yagoda, no dia em que ela e toda a família foram mandadas para o exílio:
"Se pelo menos Gena [Yagoda] pudesse ver o que estão fazendo conosco", alguém disse baixinho.
De repente, vovó, que nunca levantava a voz, virou-se para o apartamento vazio e gritou bem alto: "Malditos sejam!" Atravessou a porta de entrada e a bateu com força.
O som reverberou na escadaria, como o eco daquela maldição de mãe.
Muitos dos chefes e administradores, preparados e promovidos por Yagoda, tiveram o mesmo destino. Junto com centenas de milhares de outros cidadãos soviéticos, foram
acusados de grandes conspirações, aprisionados e interrogados em processos complexos, que podiam envolver centenas de pessoas. Um dos mais importantes foi o de Matvei
Berman, chefe do Gulag de 1932 a 1937. Seus anos de serviço ao Partido (ele se filiara em 1917) não lhe adiantaram de nada. Em dezembro de 1938, a NKVD acusou Berman
de ter liderado uma "organização direitista e trotskista de terrorismo e sabotagem", a qual criara "condições privilegiadas" para presos nos campos, enfraquecera
de propósito a "prontidão militar e política" dos guardas (donde o grande número de fugas) e sabotara os projetos de construção do Gulag (donde o lento progresso
deste).
Berman não caiu sozinho. Por toda a URSS, descobriu-se que comandantes e altos administradores dos campos do Gulag pertenciam à mesma "organização direitista e trotskista",
e eles foram condenados de um só golpe. Os autos de seus processos são um tanto surreais: era como se todas as frustrações dos anos anteriores - as metas não-alcançadas,
as estradas mal construídas, as fábricas que, tendo sido erguidas por presos, praticamente não conseguiam funcionar - houvessem atingido algum tipo de clímax insano.
Aleksandr Izrailev, por exemplo, vice-chefe do Ukhtpechlag, recebeu condenação por "ter obstruído o crescimento da mineração de carvão". Aleksandr Polisonov, coronel
que trabalhara na divisão de guardas armados do Gulag, viu-se acusado de ter criado "condições absurdas" para esses seus homens. Mikhail Goskin, chefe do departamento
de construção ferroviária do Gulag, teria "elaborado planos irrealistas" para a linha Volochaevka-Komsomolets. Isaak Ginzburg, chefe da divisão médica do Gulag,
foi considerado responsável pelas altas taxas de mortalidade prisional e acusado de ter fomentado condições especiais para outros presos contra-revolucionários,
permitindo que, por motivo de doença, fossem libertados antes do tempo. A maioria desses homens da NKVD acabou condenada à morte -embora as sentenças de vários tenham
sido comutadas para o confinamento nas prisões ou nos campos, e uns poucos até tenham sobrevivido, vindo a ser reabilitados em 1955.
Um número impressionante dos primeiros administradores do Gulag teve o mesmo destino. Fyodor Eichmanns, ex-chefe da Slon e depois do Departamento Especial da OGPU,
foi fuzilado em 1939. Izrail Pliner, o sucessor de Berman na chefia do Gulag, durou só um ano no cargo e foi fuzilado em 1939. Era como se o sistema precisasse
de uma explicação do porquê de vir funcionando tão mal - como se precisasse de pessoas para culpar. Ou talvez "sistema" seja uma expressão enganosa: talvez fosse
o próprio Stalin quem precisava explicar por que seus projetos de trabalho escravo, tão maravilhosamente planejados, avançavam tão devagar e apresentavam resultados
tão ambíguos.
Houve algumas curiosas exceções à destruição generalizada, pois Stalin não apenas tinha controle sobre quem era preso como às vezes também decidia quem não devia
sê-lo. E curioso que Naftaly Frenkel, apesar das mortes de quase todos os seus antigos colegas, tenha conseguido escapar à bala do carrasco. Em 1937, era o chefe
do Bamlag, na ferrovia Baikal-Amur, um dos mais caóticos e mortíferos campos do Extremo Oriente. No entanto, quando 48 "trotskistas" foram presos no Bamlag, em 1938,
Frenkel, de algum modo, não estava entre eles.
Sua ausência na lista de presos se mostra ainda mais estranha quando se sabe que o jornal do campo o atacara, acusando-o abertamente de sabotagem. Apesar disso,
o processo de Frenkel ficou misteriosamente retido em Moscou. O promotor local do Bamlag, que vinha conduzindo as investigações a respeito de Frenkel, achou a demora
incompreensível. "Não entendo por que essa investigação foi colocada sob 'decreto especial', nem quem expediu esse 'decreto especial'", escreveu a Andrei Vyshinsky,
o promotor-chefe da URSS. "Se não vamos prender espiões trotskistas diversionários, então quem devemos prender?" Stalin, ao que parece, ainda era perfeitamente capaz
de proteger seus amigos.
Talvez a saga mais dramática de um chefe de campo em 1937 tenha sido uma que ocorreu mais para o fim daquele ano, em Magadan, e que começou com a prisão de Eduard
Berzin, o chefe da Dalstroi. Na condição de subordinado direto de Yagoda, Berzin devia ter pressentido que sua carreira seria logo encurtada. Também devia ter ficado
desconfiado quando, em dezembro, recebeu todo um novo grupo de "lugares-tenentes" da NKVD, dentre eles o major Pavlov, oficial de posto mais alto que o próprio Berzin.
Ainda que Stalin com freqüência apresentasse dessa maneira os funcionários que logo cairiam em desgraça aos sucessores deles, Berzin não deu mostras de suspeitar
de nada. Quando entrou na baía de Nagaevo o navio com o agourento nome Nikolai Yezhov, trazendo a nova equipe de Berzin, este providenciou uma banda de música para
dar as boas-vindas. Em seguida, passou vários dias mostrando as operações e ensinando os macetes a sua nova "equipe" - embora ela praticamente não lhe desse atenção
-, antes de ter ele próprio embarcado no Nikolai Yezhov.
Em Vladivostok, tomou bem calmamente o Expresso Transiberiano para Moscou. Mas, embora Berzin tenha saído de Vladivostok como passageiro da primeira classe, chegaria
a seu destino como detento. No meio da noite de 19 de dezembro de 1937, o trem parou na cidade de Aleksandrov. Berzin foi preso na plataforma (ainda a setenta quilômetros
de Moscou, para não causar nenhum fuzuê no centro da capital) e levado para interrogatório na Lubyanka, a prisão central de Moscou. Rapidamente o indiciaram por
"atividades contra-revolucionárias de sabotagem e destruição". A NKVD o acusou de montar uma "organização de espionagem e diversionismo trotskista em Kolyma", a
qual supostamente enviava ouro para o governo do Japão e tramava a ocupação do Extremo Oriente soviético por aquele país. Também o acusaram de espionar para a Inglaterra
e a Alemanha. Obviamente, o chefe da Dalstroi andara mesmo muito ocupado. Acabaria fuzilado em agosto de 1938, no porão da Lubyanka.
O absurdo das acusações não afetou os prazos do processo. No final de dezembro, Pavlov, agindo com celeridade, já prendera a maioria dos subordinados de Berzin.
Sob tortura, I. G. Filippov, chefe do Sewostlag, fez uma confissão detalhada que implicava praticamente todos eles. Declarando ter "recrutado" Berzin em 1934, ele
reconheceu que sua "organização anti-soviética" planejara depor o governo do país mediante a "preparação de um levante armado contra o poder soviético em Kolyma,
[...] a preparação e execução de atos terroristas contra os líderes do Partido Comunista e do governo soviético, [...] o incitamento da população nativa [...] e
o encorajamento a atos generalizados de destruição", dentre outras coisas. Lev Epshtein, principal lugar-tenente de Berzin, depois confessou ter "reunido informações
secretas para a França e o Japão enquanto realizava sabotagem, diversionismo e atos de destruição". O médico-chefe da policlínica de Magadan foi acusado de "ligações
com traidores e elementos estrangeiros". Quando tudo terminou, centenas de pessoas ligadas a Berzin, desde geólogos até burocratas e engenheiros, estavam ou mortas,
ou presas.
Se olharmos em perspectiva, veremos que a elite de Kolyma não foi a única rede poderosa a ter sido eliminada em 1937-8. No final daquele período, Stalin já expurgara
do Exército Vermelho grande número de notáveis, aí incluídos o marechal Tukhachevsky, vice-comissário da Defesa, Ion Yakir, comandante de exército, seu colega Uborevich
e outros, junto com as mulheres e filhos; a maioria foi fuzilada, mas alguns terminaram em campos. O Partido Comunista conheceu destino semelhante. O expurgo atingiu
não apenas os inimigos potenciais de Stalin na liderança, mas também a elite partidária nas províncias, os primeiros-secretários, os chefes dos conselhos locais
e regionais e os diretores de importantes fábricas e instituições.
Em certos lugares e em certa classe social, conforme escreveria Yelena Sidorkina, ela mesma presa em novembro de 1937, a onda de prisões foi tão completa que
ninguém sabia o que aconteceria no dia seguinte. As pessoas tinham medo de conversar ou se encontrar umas com as outras, em especial com famílias nas quais o pai
ou a mãe já tivesse sido "isolado". Os raros indivíduos tolos o suficiente para manter-se leais àqueles presos acabavam automaticamente indicados para o "isolamento".
Mas nem todo mundo morreu, e nem todo campo foi aniquilado. Em geral, os chefes de campo mais obscuros até se saíram ligeiramente melhor que a média dos oficiais
da NKVD, como ilustra o caso de V. A. Barabanov, um protegido de Yagoda. Em 1935, quando era vice-comandante do Dmitlag, Barabanov foi preso, junto com um colega,
por ter chegado ao campo "em estado de embriaguez". Como resultado, perdeu o emprego, recebeu uma pena leve de prisão e, em 1938, estava trabalhando num longínquo
campo do extremo norte quando ocorreram as prisões em massa dos sequazes de Yagoda. Por volta de 1954, seu amor ao álcool já tendo sido perdoado, ele tornara a subir
na hierarquia e era o vice-comandante de todo o sistema Gulag.
Mas, na memória popular dos campos, 1937 não seria lembrado apenas como o ano do Grande Terror; também foi o ano em que finalmente se deixou de cantar loas à reabilitação
de criminosos, junto com qualquer apoio hipócrita àquele ideal. Em parte, isso talvez tenha se devido à morte e ao encarceramento das figuras mais intimamente relacionadas
com a campanha. Yagoda, ainda ligado na mente do público ao Canal do Mar Branco, já se fora. Máximo Gorki morrera repentinamente em junho de 1936. I. L. Averbakh,
colaborador de Gorki em O canal chamado Stalin e autor de do crime ao trabalho (volume subseqüente dedicado ao canal Moscou-Volga), foi denunciado como trotskista
e preso em abril de 1937. O mesmo ocorreu com muitos outros integrantes do coletivo que, sob a coordenação de Gorki, redigira O canal chamado Stalin. Mas a mudança
também tinha origens mais profundas. À medida que a retórica política ficava mais radical e a caçada aos criminosos políticos se intensificava, o status dos campos
onde esses perigosos criminosos políticos estavam também se modificava. Num país tomado pela paranóia e pela mania de procurar e delatar espiões, a própria existência
de campos para "inimigos" e "sabotadores" se tornou, se não exatamente segredo - na década de 1940, presos trabalhando na construção de estradas e prédios de apartamentos
eram espetáculo comum em muitas grandes cidades -, pelo menos assunto que nunca se discutia em público. Aristocratas, a peça de Nikolai Pogodin, foi banida em 1937
(sendo revivida, ainda que só por breve período, em 1956, bem depois da morte de Stalin). O canal chamado Stalin, organizado por Gorki, também acabou na lista de
livros proibidos, por motivos ainda incertos. Talvez os novos chefes da NKVD não tivessem mais estômago para agüentar os fátuos elogios a Yagoda, caído em desgraça.
Ou talvez aquele radiante retrato da exitosa reabilitação de "inimigos" não tivesse mais sentido numa época em que novos inimigos apareciam o tempo todo, e em que
centenas de milhares deles não eram recuperados mas executados. Por certo, as histórias sobre chekistas afáveis e oniscientes se tornavam difíceis de conciliar com
os expurgos maciços na NKVD.
Não desejando parecer frouxos na tarefa de isolar os inimigos do regime, os comandantes do Gulag em Moscou também impuseram novas normas internas de sigilo, que
acarretaram imensos custos adicionais. Agora, toda correspondência devia ser enviada por mensageiro especial. Só em 1940, os mensageiros da NKVD tiveram de entregar
25 milhões de itens de correspondência secreta. Doravante, quem escrevia cartas para os campos o fazia exclusivamente para caixas postais, já que os endereços se
tornaram secretos. Os campos também desapareceram dos mapas. Até a correspondência interna da NKVD se referia a eles eufemisticamente como "objetos especiais" (spetsobekty)
ou "subseções" (podrazdeleniya), de modo a ocultar as reais atividades de tais lugares.
Para referências mais específicas tanto aos campos quanto às atividades de seus habitantes, a NKVD criou um código complicado que podia ser usado em telegramas abertos.
Um documento de 1940 listava esses codinomes, alguns dos quais eram de uma criatividade grotesca. As grávidas deveriam ser chamadas "livros", e as mulheres com filhos,
"recibos". Já os homens eram "contas" (no sentido contábil). Degredados eram "lixo", e detidos para investigação, "envelopes". Campos de concentração eram "trustes",
e divisões de campo, "fábrica". Um campo recebeu o codinome "Livre".
A linguagem usada nos campos também mudou. Até o outono de 1937, documentos e cartas oficiais freqüentemente se referiam aos presos pela profissão - por exemplo,
simplesmente "lenhadores". Mas, em 1940, um preso já não era lenhador; era apenas preso, um zaklyuchennyi, ou, na maioria dos documentos, z/k (pronuncia-se "zek").
Um grupo de presos se tornava kontingent ("contingente" ou "cota"), termo burocrático e despersonalizado. Os presos tampouco podiam ganhar o cobiçado título de stakhanovista:
o administrador de um campo mandou carta indignada a seus subordinados, ordenando que se referissem a detentos que trabalhavam duro por circunlóquios como "presos
que atuam à maneira dos trabalhadores de choque" ou "presos que trabalham segundo os métodos stakhanovistas".
Naturalmente, todo uso positivo do termo "preso político" já desaparecera havia muito. Os privilégios concedidos aos presos políticos socialistas tinham terminado
em 1925, quando esses detentos foram transferidos de Solovetsky para prisões na Rússia central. Agora, o termo "preso político" sofria completa transformação, abrangendo
qualquer um condenado segundo o infame artigo 58 do Código Penal - que englobava todos os crimes "contra-revolucionários" - e tendo conotações totalmente negativas.
Cada vez mais, referiam-se aos criminosos políticos (às vezes chamados KRs, de "contra-revolucionários"; kontras; ou kontriks) como vragi naroda (inimigos do povo).
Esse termo, um epíteto jacobino que Lênin utilizara pela primeira vez em 1917, foi revivido por Stalin em 1927 para descrever Trotski e seus seguidores. Começou
a ter sentido mais amplo em 1936, depois que uma carta secreta - "da autoria de Stalin", na opinião de Dmitri Volkogonov, seu biógrafo russo - foi enviada do Comitê
Central às organizações do Partido nas regiões e repúblicas. Conforme a carta explicava, um inimigo do povo, ainda que pudesse "parecer manso e inofensivo", faria
todo o possível para "esgueirar-se sorrateiramente para dentro do socialismo", embora "secretamente não o aceitasse". Em outras palavras, os inimigos não podiam
mais ser identificados por opiniões expressas abertamente. Lavrenty Beria, chefe posterior da NKVD, também citaria Stalin com freqüência, observando que "um inimigo
do povo é não apenas quem comete sabotagem, mas também quem duvida da justeza das determinações do Partido". Portanto "inimigo" podia significar qualquer um que
se opusesse ao poder de Stalin, por qualquer motivo, ainda que aparentasse não fazê-lo.
Agora, nos campos de concentração, "inimigo do povo" se tornara termo oficial, usado em documentos. Aprisionavam-se mulheres como "esposas de inimigos do povo",
depois que um decreto da NKVD de 1937 autorizou tais capturas; e o mesmo se aplicava aos filhos. Uns e outros recebiam sentenças como ChSVR, "familiares de um inimigo
da Revolução". Muitas das esposas foram encarceradas juntas no campo de Temnikovsky, também conhecido como Temlag, na Mordóvia (uma república da Rússia central).
Anna Larina, mulher de Bukharin, o líder soviético caído em desgraça, lembraria que lá "nos tornamos iguais em nosso infortúnio - os Tukachevsky e os Yakir, os Bukharin
e os Radek, os Uborevich e os Gamarnik. Como diz o ditado, a desgraça compartilhada já é só meia desgraça".
Galina Levinson, outra sobrevivente do Temlag, recordou que o regime do campo era relativamente liberal, talvez porque "não tínhamos sentenças, éramos apenas esposas".
A maioria delas, observou Galina, eram pessoas que até então haviam sido "totalmente soviéticas" e ainda estavam convencidas de que seu encarceramento se devia às
maquinações de alguma organização fascista secreta dentro do Partido. Várias ocupavam o tempo escrevendo cartas diárias a Stalin e ao Comitê Central, nas quais reclamavam,
iradas, do complô que se armava contra elas.
Em 1937, "inimigo do povo", além dos usos oficiais, já virara ofensa. Desde o tempo de Solovetsky, os fundadores e planejadores dos campos haviam organizado o sistema
em torno da idéia de que os presos não eram humanos, mas "unidades de trabalho": mesmo na época da construção do Canal do Mar Branco, Máximo Gorki descrevera os
kulaks como "meio animais". Agora, porém, a propaganda descrevia os "inimigos" como algo inferior até a essa espécie de gado bípede. A partir do final dos anos
1930, Stalin começou a referir-se publicamente aos "inimigos do povo" como "praga", "poluição", "imundície" ou, às vezes, simplesmente "erva daninha", que precisava
ser arrancada.
A mensagem era clara: os zeks não eram mais considerados cidadãos plenos da URSS, se é que de alguma maneira podiam ser considerados pessoas. Um preso observou que
estavam sujeitos a "uma espécie de excomunhão da vida política e não tinham permissão para participar das liturgias e rituais sagrados de tal vida". Depois de 1937,
nenhum guarda usava a palavra tovarishch (camarada) para dirigir-se aos presos, e estes podiam ser espancados por utilizá-la quando se dirigiam aos guardas, os quais
tinham de tratar por grazhdanin (cidadão). Fotos de Stalin e outros líderes nunca apareciam nas paredes dos campos e prisões. Uma visão relativamente comum em meados
da década de 1930 - um trem carregando presos, tendo os vagões cobertos com retratos de Stalin e com faixas que declaravam serem seus ocupantes stakhanovistas -
já se tornara impensável depois de 1937. O mesmo ocorreu com as celebrações do 1º de maio, como aquelas outrora realizadas no kremlin de Solovetsky.
Muitos estrangeiros ficavam surpresos com o forte efeito que essa "excomunhão" da sociedade soviética tinha sobre os presos. Um prisioneiro francês, Jacques Rossi
- autor do Manual do Gulag, um guia enciclopédico da vida nos campos -, escreveu que a palavra "camarada" conseguia eletrizar presos que havia muito tempo não a
ouviam:
Uma turma que acabara de completar um turno de onze horas e meia concordou em ficar e trabalhar o turno seguinte apenas porque o engenheiro-chefe [...] disse aos
presos: "Peço-lhes que façam isso, camaradas"
À desumanização dos "criminosos políticos" seguiu-se uma mudança bem nítida (e em alguns lugares drástica) nas condições de vida deles. O Gulag dos anos 1930 fora
geralmente desorganizado, freqüentemente cruel e ocasionalmente mortal. Mas, em alguns lugares e em alguns momentos durante aquela década, oferecera-se até aos presos
políticos a oportunidade da redenção. Os trabalhadores do canal Moscou-Volga podiam ler o jornal Perekovka, cujo nome já significava "Regeneração". O final da peça
Aristocratas, de Pogodin, mostrava a "conversão" de um ex-sabotador. Em 1934, Flora Leipman (filha de uma escocesa que casara com um russo, mudara para São Petersburgo
e logo fora presa como espiã) visitou a mãe num campo madeireiro do norte e descobriu que "ainda havia um elemento de humanidade entre os guardas e os presos, pois
a [NKVD] ainda não era tão sofisticada e tão psicologicamente orientada como viria a ser alguns anos depois". Flora sabia do que estava falando, já que ela mesma
se tornou prisioneira "alguns anos depois". Depois de 1937, as atitudes realmente mudaram, sobretudo em relação àqueles presos condenados pelo artigo 58.
Nos campos, os presos políticos eram retirados dos postos de trabalho que haviam ocupado em planejamento ou engenharia e forçados a retornar ao "trabalho geral",
ou seja, ao trabalho braçal não-especializado em minas ou florestas: não se podia mais permitir que os "inimigos" tivessem qualquer posição de importância, por medo
de que se dedicassem à sabotagem. Pavlov, o novo chefe da Dalstroi, assinou pessoalmente a ordem que obrigava um preso-geólogo, I. S. Davidenko, a "ser utilizado
como trabalhador comum e em hipótese nenhuma ter autorização para conduzir trabalhos independentes. As tarefas de Davidenko devem ser controladas com cuidado e sujeitas
a observação diária". Num relatório arquivado em fevereiro de 1939, o comandante do Belbaltlag também alegava ter "escorraçado todos os trabalhadores indignos de
confiança política" e, sobretudo, "todos os ex-presos condenados por crimes contra-revolucionários". Ele asseverava que, dali em diante, as funções administrativas
e técnicas deveriam ser reservadas para "comunistas, membros do Komsomol [a Juventude Comunista] e especialistas de confiança". Fica claro que a produtividade econômica
já não era a maior prioridade dos campos.
Em todo o sistema Gulag, os regimes prisionais ficaram mais duros, tanto para os criminosos comuns como para os presos políticos. No começo dos anos 1930, as rações
de pão para o "trabalho geral" podiam chegar a um quilo por dia - mesmo para aqueles que não cumprissem 100% da meta -, e atingir até dois quilos para os stakhanovistas.
Nos principais lagpunkts do Canal do Mar Branco, servia-se carne doze dias por mês. No final da década, a ração garantida caíra a menos da metade, para entre quatrocentos
e 450 gramas de pão, e os que conseguiam cumprir 100% da meta de trabalho ganhavam duzentos gramas mais. A ração punitiva se reduziu para trezentos gramas. Falando
daqueles tempos em Kolyma, Variam Shalamov escreveu que:
Para tornar-se "baixa", um homem jovem e saudável, começando a carreira na mina de ouro no ar límpido e frio, só precisava de um período de vinte a trinta dias de
dezesseis horas de trabalho, sem folgas, combinados com a inanição sistemática, as roupas em farrapos, as noites a quinze graus negativos numa tenda de lona cheia
de furos [...] nas brigadas de trabalho que iniciavam a temporada de mineração, só sobreviviam o próprio encarregado, seu assistente e uns poucos dos amigos pessoais
do encarregado.
As condições também pioraram porque o número de presos aumentou, em alguns lugares com rapidez espantosa. E verdade que o Politburo tentara preparar-se com antecedência
para o influxo, instruindo o Gulag em 1937 a iniciar a construção de cinco novos campos madeireiros na região de Komi, bem como mais alguns "em áreas remotas do
Cazaquistão". A fim de apressar as obras, o Gulag até recebera um "adiantamento de 10 milhões de rublos" para organizar esses novos campos. Ademais, o Comissariado
da Defesa, o da Saúde e o dos Recursos Florestais receberam ordem de achar - imediatamente -240 comandantes e trabalhadores políticos, 150 médicos, quatrocentos
auxiliares médicos, dez eminentes especialistas em silvicultura e "cinqüenta formados pela Academia de Tecnologia Florestal de Leningrado", todos para trabalhar
no Gulag.
Entretanto, os campos já existentes estavam outra vez transbordando de novos presos, e repetia-se a superlotação do início da década de 1930. Num lagpunkt construído
para 250 a trezentas pessoas no Siblag (o campo madeireiro da Sibéria), um sobrevivente deduziu que o número de presos em 1937 passava de 17 mil. Ainda que o número
real tenha sido apenas um quarto disso, a estimativa exagerada indica quão amontoadas as pessoas deviam sentir-se ali. Na falta de alojamento, os presos construíam
zemlyanki, buracos na terra; mesmo estes eram tão apinhados que ficava "impossível mover-se sem pisar na mão de alguém". Os presos se recusavam a sair, por medo
de perder o lugar no chão. Não se dispunha de pratos nem de colheres, e havia longas filas para a comida. Teve início uma epidemia de disenteria, e os presos morreram
rapidamente.
Numa reunião posterior do Partido, até a administração do Siblag lembrou solenemente as "terríveis lições de 1938"; quanto mais não fosse, pelo "número de dias de
trabalho perdidos" durante a crise. No sistema de campos como um todo, o número oficial de mortes dobrou do ano de 1937 para o de 1938. Não se dispõe de estatísticas
para todos os locais, mas presume-se que as taxas de mortalidade tenham sido muito mais altas nos campos do extremo norte - Kolyma,Vorkuta, Norilsk -, para onde
os presos políticos eram enviados em grande número.
Mas os presos não morriam apenas de inanição e excesso de trabalho. No novo ambiente soviético, o encarceramento de inimigos logo começou a parecer insuficiente:
era melhor que deixassem de existir por completo. Em 30 de julho de 1937, a NKVD emitiu ordem para que se reprimissem "ex-kulaks, ladrões e outros elementos anti-soviéticos"
- ordem que continha cotas de execução também para presos do Gulag. Em 25 de agosto, Yezhov assinou mais uma ordem para a execução de detentos nas prisões políticas
de segurança máxima. A NKVD, disse ele, deve "concluir em dois meses a operação para reprimir os elementos contra-revolucionários mais ativos [...] aqueles condenados
por espionagem, diversionismo, terrorismo, atividades revolucionárias e banditismo, bem como os condenados por pertencerem a partidos anti-soviéticos".
Aos presos políticos ele acrescentou os "bandidos e elementos criminosos" atuantes em Solovetsky, que naquela altura também fora convertido em prisão política de
segurança máxima. Determinou-se a cota para Solovetsky: deveriam ser fuzilados 1.200 presos. Uma testemunha recordou o dia em que alguns foram levados:
Inesperadamente, forçaram todos a sair das celas abertas do kremlin para uma chamada geral. Nela, leram uma lista enorme de nomes -várias centenas - que seriam levados
para transporte. Foram-lhes dadas duas horas para preparar-se, e eles deveriam então reunir-se na mesma praça central. Seguiu-se uma confusão terrível. Algumas pessoas
correram para pegar suas coisas; outras, para dizer adeus aos amigos. Em duas horas, a maior parte daqueles que deveriam ser transportados estava em seus lugares
[...] colunas de presos marcharam para fora com malas e mochilas. [...]
Ao que parece, alguns também carregavam facas, que depois usaram para atacar aqueles que os fuzilariam, perto da aldeia de Sandormokh (norte da Carélia), ferindo-os
gravemente. (Após esse episódio, a NKVD passou a deixar todos os presos em roupas de baixo antes de atirar neles.) Posteriormente, o homem da NKVD a cargo da operação
foi recompensado com o que os arquivos descrevem apenas como um "valioso presente" pela bravura demonstrada no cumprimento da tarefa. Dali a alguns meses, ele também
foi fuzilado.
Em Solovetsky, a seleção de presos a assassinar parece ter sido feita ao acaso. Em alguns campos, porém, a administração aproveitava a oportunidade para livrar-se
de detentos especialmente difíceis. Esse pode ter sido o caso em Vorkuta, onde muitos dentre os selecionados eram antigos trotskistas - ou seja, autênticos seguidores
de Trotski, alguns dos quais envolvidos em greves nos campos e outras rebeliões. Uma testemunha ocular lembrou que, no início do inverno de 1937-8, a administração
de Vorkuta colocara cerca de 1.200 prisioneiros - sobretudo trotskistas, mais outros presos políticos e um punhado de criminosos - numa olaria abandonada e numa
série de tendas grandes e apinhadas, "transbordantes". Não se dava nenhuma comida quente aos presos: "a ração diária consistia apenas de quatrocentos gramas de pão
meio ressequido". Ficaram ali até o final de março, quando chegou de Moscou um novo grupo de oficiais da NKVD. Os oficiais formaram uma "comissão especial" e chamaram
os presos em lotes de quarenta. Disseram-lhes que partiriam num transporte. Cada um recebeu um pedaço de pão. Os presos na tenda os ouviram ir embora marchando -
"e, depois, escutaram o som de tiros".
O ambiente nas tendas ficou tétrico. Um camponês, preso pelo crime de "especulação" (vendera o próprio leitão numa feira), ficou deitado em seu estrado, de olhos
abertos, sem reagir a nada. "O que eu tenho que ver com vocês, presos políticos?", resmungava periodicamente. "Vocês lutavam por poder, por posição, e eu só quero
saber de tocar a vida." Segundo a testemunha, outro homem se suicidou. Dois enlouqueceram. Por fim, quando só haviam sobrado umas cem pessoas, os fuzilamentos pararam,
tão abrupta e inexplicavelmente como haviam começado. Os oficiais da NKVD tinham retornado para Moscou. Os presos restantes voltaram às minas. Em todo o campo, haviam
sido mortos cerca de 2 mil detentos.
Stalin e Yezhov nem sempre mandavam forasteiros de Moscou para executar essas tarefas. A fim de acelerar o processo em todo o país, a NKVD também organizava tróicas,
operando tanto dentro quanto fora dos campos. Uma tróica era exatamente o que o nome sugere: três homens, no mais das vezes o chefe regional da NKVD, o secretário-chefe
do Partido na província e um representante da promotoria ou do governo local. Juntos, tinham o direito de passar sentenças in absentia, sem direito a juiz, júri,
advogado ou mesmo julgamento.
Uma vez constituídas, as tróicas agiram rápido. Em 20 de setembro de 1937, um dia razoavelmente típico, a tróica da República Careliana condenou 231 presos do Belbaltlag.
Presumindo-se um dia de trabalho de dez horas, sem intervalos, teriam gasto menos de três minutos para considerar o destino de cada preso. A maioria dos condenados
recebera suas sentenças originais muito antes, no início da década. Agora, eram acusados de novos crimes, em geral, ligados ao mau comportamento ou à atitude insatisfatória
ante a vida nos campos. Dentre eles, havia antigos presos políticos (mencheviques, anarquistas, social-democratas); uma ex-freira que "se recusava a trabalhar para
as autoridades soviéticas"; e um kulak que fora cozinheiro no campo. Esse último se viu acusado de estimular a insatisfação entre os trabalhadores stakhanovistas.
Segundo alegaram as autoridades, o cozinheiro propositalmente provocara "longas filas para aqueles trabalhadores, tendo antes dado comida aos presos comuns".
A histeria não durou. Em novembro de 1938, os fuzilamentos em massa terminaram de modo repentino, tanto nos campos como no resto do país. Talvez o expurgo tivesse
ido longe demais, até para o gosto de Stalin. Talvez o expurgo já tivesse simplesmente cumprido a finalidade que deveria cumprir. Ou talvez estivesse causando danos
demais a uma economia ainda frágil. Fosse qual fosse a razão, Stalin disse ao Congresso do Partido Comunista em março de 1939 que o expurgo se fizera acompanhar
de "mais erros do que se podia ter esperado".
Ninguém pediu desculpas ou se penitenciou, e quase ninguém jamais foi punido. Apenas alguns meses depois, Stalin enviou circular a todos os chefes da NKVD, cumprimentando-os
por "terem infligido uma derrota esmagadora aos agentes subversivos e espiões de serviços estrangeiros de informações" e "terem expurgado o país de quadros voltados
para a subversão, a insurreição e a espionagem". Só então apontou algumas das "deficiências" da operação, corno os "procedimentos simplificados de investigação",
a falta de testemunhas e de provas que corroborassem as acusações.
Tampouco se interrompeu por completo o expurgo da própria NKVD. Em novembro de 1938, Stalin removeu de seu posto o suposto autor de todos esses "erros", Nikolai
Yezhov - e o sentenciou à morte. A execução ocorreu em 1940, depois de Yezhov ter implorado pela vida, da mesma forma que Yagoda antes dele. "Digam a Stalin que
morrerei com o nome dele nos lábios."
Os protegidos de Yezhov caíram junto, tal qual os asseclas de Yagoda alguns anos antes. Em sua cela na prisão, Evgeniya Ginzburg notou um dia que os regulamentos
colados na parede haviam sido removidos. Quando os recolocaram, o espaço no canto superior esquerdo, onde antes estava escrito "aprovado, Yezhov, comissário-geral
de Segurança do Estado", fora coberto com papel branco. Mas as mudanças não pararam aí:
Primeiro o nome de Weinstock [o comandante da prisão] foi coberto com tinta e substituído pelo de Antonov. Depois Antonov saiu, e em seu lugar se lia: "Administração
Central da Prisão". Rimos: "Isso lhes poupará o trabalho de trocar de novo".
A produtividade do sistema Gulag continuava a despencar. No Ukhtpechlag, entre 1936 e 1937, os fuzilamentos em massa, o número aumentado de presos enfermos e debilitados
e a perda de especialistas aprisionados haviam causado uma queda vertiginosa da produção. Em julho de 1938, convocou-se uma comissão especial do Gulag para discutir
o vasto déficit do Ukhtpechlag. A produtividade das minas auríferas de Kolyma também caiu. Nem o enorme influxo de novos presos conseguiu elevar a níveis comparáveis
aos do passado o total de ouro extraído. O próprio Yezhov, antes de ter sido deposto, pedira mais dinheiro para atualizar a antiquada tecnologia mineira da Dalstroi
- como se fosse esse o verdadeiro problema.
Enquanto isso, o comandante do Belbaltlag - aquele que tanto se gabara de seu sucesso em livrar de presos políticos o pessoal administrativo do campo - reclamava
da "urgente necessidade de pessoal administrativo e técnico". O expurgo decerto tornara o pessoal técnico politicamente "mais sadio" (escrevia de maneira cautelosa),
mas também aumentara "as deficiências dele". Na 14ª divisão do campo, por exemplo, havia 12.500 prisioneiros, dos quais só 657 não eram presos políticos. Desses
657, a maioria recebera sentenças criminais muito severas, o que também os desqualificava como especialistas e administradores, e 184 eram analfabetos - sobrando
apenas setenta que poderiam ser aproveitados como escriturários ou engenheiros.
Segundo as estatísticas oficiais, a receita da NKVD como um todo caiu de 3,5 bilhões de rublos em 1936 para 2 bilhões em 1937. O valor da produção industrial bruta
dos campos também caiu, de 1,1 bilhão de rublos para 945 milhões.
A ausência de lucratividade e a enorme desorganização da maioria dos campos, mais o crescente número de presos doentes e moribundos, não passaram despercebidas em
Moscou, onde, durante reuniões da célula central do Partido Comunista na administração do Gulag, ocorreram discussões extremamente francas sobre a economia do campos.
Numa reunião em abril de 1938, um burocrata reclamou do "caos e desordem" nos campos de Komi. Ele também acusou os comandantes do campo de Norilsk de terem criado
uma usina de níquel "mal projetada" e desperdiçado assim uma quantia enorme. Outro administrador se queixou de que, considerando-se o dinheiro gasto para estabelecer
novos campos madeireiros, "poderíamos esperar mais. Nossos campos estão organizados de forma nada sistemática. Grandes edifícios foram construídos na lama, e agora
é preciso sair deles e arranjar outros".
Em abril de 1939, as reclamações já haviam aumentado. Nos campos do norte, ocorria uma "situação particularmente difícil com relação ao suprimento de comida", o
que provocava "enorme porcentagem de trabalhadores enfraquecidos, enorme porcentagem de presos inaptos para trabalhar e alta taxa de mortalidade e doença". Naquele
mesmo ano, o Conselho dos Comissários do Povo reconheceu que até 60% dos presos dos campos sofriam de pelagra ou outras doenças relacionadas à desnutrição.
E claro que o Grande Terror não foi responsável por todos esses problemas. Como se observou, nem mesmo os campos madeireiros de Frenkel, tão admirados por Stalin,
jamais deram lucro. O trabalho de presos sempre fora (e sempre seria) muito menos produtivo do que o trabalho de indivíduos livres. Mas essa lição ainda não fora
aprendida. Em novembro de 1938, quando Yezhov foi removido do poder, seu substituto como chefe da NKVD, Lavrenty Beria, quase de imediato começou a alterar os regimes
dos campos, mudando as regras, racionalizando os procedimentos, tudo para recolocar o Gulag onde Stalin o queria: no coração da economia soviética.
Beria não concluíra - ainda - que o próprio sistema de campos era por natureza improdutivo e propenso ao desperdício. Em vez disso, ele parecia acreditar que os
encarregados do sistema de campos haviam sido incompetentes. Beria estava determinado a transformar os campos numa parte verdadeiramente rentável da economia soviética,
dessa vez para valer.
Nem então nem depois Beria libertou dos campos um número grande de presos injustamente acusados - embora a NKVD tenha soltado alguns das prisões. Os campos também
não se tornaram, e não se tornariam, nem um pouco mais humanos. A desumanização dos "inimigos" continuou a permear a linguagem dos guardas e administradores até
a morte de Stalin. Prosseguiram os maus-tratos aos presos políticos (aliás, a todos os presos): em 1939, sob o olhar vigilante de Beria, os primeiros detentos começaram
a trabalhar nas minas de urânio de Kolyma, praticamente sem nenhuma proteção contra a radiação. Beria mudou apenas um aspecto do sistema: ordenou aos comandantes
dos campos que mantivessem vivos mais presos e os utilizassem melhor.
Na prática, embora tal política nunca tenha sido clara, ele também suspendeu a proibição de "contratar" presos políticos com qualificações em engenharia, ciências
ou tecnologia para trabalharem em funções técnicas nos campos. Em nível local, os comandantes dos campos ainda estavam receosos de usar presos políticos como "especialistas",
e isso continuaria até o desmantelamento do Gulag, em meados da década de 1950. Mesmo em 1948, diferentes setores dos serviços de segurança ainda discutiam se presos
políticos deveriam ser proibidos de trabalhar como especialistas, com alguns argumentando que seria politicamente muito perigoso e outros alegando que seria muito
difícil fazer os campos funcionar sem eles. Apesar de Beria nunca ter resolvido esse dilema, ele estava por demais determinado a tornar a NKVD uma parte produtiva
da economia soviética para permitir que todos os cientistas e engenheiros mais importantes do Gulag perdessem os membros do corpo por congelamento no extremo norte.
Em setembro de 1938, começou a organizar oficinas e laboratórios especiais, conhecidos pelos presos como sharashki, para cientistas aprisionados. Soljenitsin, que
trabalhara numa sharashka, descreveu uma delas - "um estabelecimento de pesquisas secretíssimo, oficialmente designado apenas por um número de código" - no romance
O primeiro círculo:
Uma dúzia de presos foi trazida dos campos para essa velha mansão campestre nos arredores de Moscou, que fora devidamente cercada de arame farpado [...] naquela
ocasião, os presos não sabiam exatamente que tipo de pesquisa haviam sido trazidos a Mavrino para fazer. Estavam ocupados abrindo pilhas de caixotes que dois trens
de carga especiais haviam entregado, garantindo cadeiras e mesas confortáveis para si e separando equipamento.
De início, as sharashki foram batizadas "Departamentos Especiais de Construção". Depois, ficaram conhecidas coletivamente como "Quarto Departamento Especial" da
NKVD, e cerca de mil cientistas acabariam trabalhando nelas. Em alguns casos, o próprio Beria localizava cientistas talentosos e ordenava que fossem trazidos de
volta a Moscou. Os agentes da NKVD lhes proporcionavam um banho, um corte de cabelo, um barbear e um longo descanso - e os mandavam para trabalhar em laboratórios-prisões.
Entre os "achados" mais importantes de Beria, estava o projetista aeronáutico Tupolev, que chegou a sua sharashka carregando um saco com um pedaço de pão e alguns
torrões de açúcar (o projetista se recusou a abrir mão deles, mesmo depois de informado de que a comida melhoraria).
Tupolev, por sua vez, deu a Beria uma lista de outros que deveriam ser chamados de volta, entre os quais Valentin Glushko, o mais importante projetista de motores
de foguetes da URSS; e Sergei Korolev, que depois seria o pai do Sputnik, o primeiro satélite artificial - aliás, o pai de todo o programa espacial soviético. Korolev
retornou para a prisão de Lubyanka após ter passado dezessete meses em Kolyma e perdido muitos dentes por causas do escorbuto, parecendo "faminto e exausto", nas
palavras de seus companheiros de prisão. Contudo, num relatório preparado em agosto de 1944, Beria listaria vinte importantes itens de tecnologia militar inventados
em seus sharashki e discorreria sobre as muitas maneiras pelas quais esses estabelecimentos haviam sido úteis à indústria bélica durante a Segunda Guerra Mundial.
Em certos aspectos, o reinado de Beria pareceria melhor também para os zeks comuns. No geral, a alimentação de fato melhorou temporariamente. Conforme Beria assinalou
em abril de 1938, a norma de 2 mil calorias diárias para a dieta nos campos fora estabelecida para pessoas sedentárias em cadeias, e não para quem fazia trabalho
braçal. Dado que o furto, a fraude e as punições por mau desempenho no trabalho reduziam em até 70% aquela quantidade já escassa de comida, grande número de presos
estava morrendo de inanição. Beria lamentava isso, não porque se apiedasse, mas porque as taxas mais altas de mortalidade e doença impediam que a NKVD cumprisse
suas metas de produção para 1939. Ele requisitou a elaboração de novas normas nutricionais, a fim de que "a capacidade física da mão-de-obra dos campos possa ser
utilizada ao máximo em qualquer atividade".
Embora essas normas tenham sido melhoradas, o regime de Beria dificilmente indicava que se redescobriria a humanidade dos presos. Ao contrário, avançara várias etapas
a transformação deles de seres humanos em unidades de trabalho. Os presos ainda podiam ser condenados à morte nos campos - mas não por meras tendências contra-revolucionárias.
Agora, aqueles que se recusassem a trabalhar ou fomentassem a desorganização no trabalho deveriam ser submetidos a "um regime de campo mais severo, celas punitivas,
rações e condições de vida pioradas e outras medidas disciplinares". Os "preguiçosos" também receberiam novas sentenças, inclusive a de morte.
De imediato, os promotores locais iniciaram investigações sobre essa "malandragem". Em agosto de 1939, por exemplo, um preso foi fuzilado não apenas por ter-se recusado
a trabalhar, mas também por ter encorajado outros a não trabalharem. Em outubro, três presas, aparentemente freiras ortodoxas, foram acusadas tanto de se recusar
a trabalhar quanto de cantar hinos contra-revolucionários no campo de concentração; duas foram fuziladas, e a terceira recebeu uma pena adicional.
Os anos do Grande Terror também deixaram sua marca de outra forma. Nunca mais o Gulag trataria presos como seres plenamente dignos de redenção. Dissolveu-se o sistema
de "solturas antecipadas" por bom comportamento. O próprio Stalin, em sua única intervenção pública conhecida no operação cotidiana do Gulag, acabara com essas solturas,
argumentando que elas afetavam as atividades econômicas dos campos. Em 1938, falando numa sessão do Presidium do Soviete Supremo, ele perguntou:
Não poderíamos pensar em alguma outra forma de recompensar o trabalho deles - com medalhas ou algo assim? Estamos agindo incorretamente, perturbando o trabalho do
campo. Soltar essas pessoas pode ser necessário, mas, do ponto de vista da economia nacional, é um erro [...] soltaremos os melhores e deixaremos os piores.
Em junho de 1939, publicou um decreto que acabava com aquele procedimento. Alguns meses depois, outro decreto eliminou a liberdade condicional também para os inválidos.
O número de presos doentes aumentou na mesma proporção. Então, para os presos que davam duro, o maior incentivo seria a melhoria "das provisões e da comida" - e
as medalhas que Stalin pensava serem tão atraentes. Em 1940, mesmo a Dalstroi já começara a distribuí-las.
Várias dessas iniciativas contrariavam as leis da época e até encontraram resistência. Tanto o promotor-chefe, Vyshinsky, quanto o comissário da Justiça, Richkov,
opuseram-se ao fim da soltura antecipada, assim como à pena de morte para os acusados de "desorganizar a vida nos campos". Mas Beria, como Yagoda antes dele, tinha
claramente o apoio de Stalin e venceu todas as batalhas. A partir de 1º de janeiro de 1940, a NKVD ganhou até o direito de reaver uns 130 mil presos que tinham sido
"emprestados" a outros ministérios. Beria estava decidido a fazer que o Gulag se tornasse verdadeiramente rentável.
Com surpreendente rapidez, as mudanças de Beria tiveram mesmo impacto. Nos últimos meses antes da Segunda Guerra Mundial, a atividade econômica da NKVD voltou a
crescer. Em 1939, sua receita foi de 4,2 bilhões de rublos. Em 1940, de 4,5 bilhões. Durante os anos de guerra, à medida que mais presos começassem a fluir para
os campos, essas cifras aumentariam ainda mais depressa. Segundo as estatísticas oficiais, o número de mortes nos campos também caiu à metade entre 1938 e 1939,
indo de 5% para 3% do total de presos, muito embora o número destes continuasse a aumentar.
Agora, também havia muito mais campos, e eles eram muito maiores do que no início da década de 1930. A população de presos quase duplicara entre 1º de janeiro de
1935 e 1º de janeiro de 1938, tendo passado de 950 mil para 1,8 milhão, com aproximadamente mais 1 milhão de degredados. Os campos de concentração, que antes continham
nada mais que algumas tendas e um pouco de arame farpado, haviam se tornado verdadeiros gigantes industriais. O Sewostlag, o principal campo da Dalstroi, contava
quase 200 mil presos em 1940. O Vorkutlag, o campo de mineração que se desenvolvera do Rudnik 1, no Ukhtpechlag, tinha 15 mil presos em 1938; em 1951, já seriam
mais de 70 mil.
Dentre os campos da nova geração, talvez o mais sombrio fosse o Norillag, em geral conhecido como Norilsk. Localizado ao norte do Círculo Ártico (como Vorkuta e
Kolyma), ficava bem em cima de uma enorme jazida de níquel, provavelmente a maior do mundo. Os presos de Norilsk não apenas escavavam o níquel, mas também construíram
as próprias minas, a usina de processamento do metal e as usinas de força. Em seguida, ergueram uma cidade (Norilsk) para abrigar os homens da NKVD que administravam
as minas e as fábricas. Da mesma maneira que seus predecessores, o campo de Norilsk cresceu rapidamente. Em 1935, tinha 1.200 presos; em 1940, já eram 19.500. No
auge, em 1952, havia 68.849 pessoas aprisionadas ali.
Em 1937, a NKVD também fundou o Kargopollag, na região de Arcangel, seguido em 1938 do Vyatlag, na Rússia central, e do Kraslag, na Sibéria setentrional (na região
administrativa de Krasnoyarsk). Todos eram essencialmente campos madeireiros que assumiram atividades adicionais - olaria, processamento de madeira, movelaria. Todos
duplicariam ou triplicariam de tamanho na década de 1940, quando já continham uns 30 mil presos cada um.
Outros campos abriam, fechavam ou se reorganizavam com tanta freqüência que se torna difícil obter números precisos para qualquer ano em especial. Alguns eram bem
pequenos, construídos para atender às necessidades de determinada fábrica ou projeto de construção. Outros eram temporários, estabelecidos para servir as obras de
uma rodovia ou ferrovia e depois abandonados. A direção do Gulag, a fim de gerenciar os enormes números e os complexos problemas do sistema, acabou criando subdivisões:
uma Administração Central dos Campos Industriais, uma Administração Central da Construção de Estradas, uma Administração Central dos Trabalhos Florestais e assim
por diante.
Mas não fora apenas o tamanho dos campos o que mudara. A partir do final da década de 1930, todos os novos campos tinham caráter puramente industrial, sem os chafarizes
e "jardins" do Vishlag, sem a propaganda idealista que acompanhara a construção de Kolyma, sem os presos-especialistas presentes em todos os níveis da vida do campo.
OlgaVasileevna, administradora que trabalhou como engenheira e inspetora no Gulag e em outros canteiros de obras no final dos anos 1930 e nos 40, recordou que de
início "havia menos guardas, menos administradores, menos funcionários. [...] Na década de 1930, os presos eram designados para todo tipo de trabalho, como escriturários,
barbeiros, guardas". Na década de 40, porém, isso já acabara: "Tudo começou a adquirir caráter mais massificado [...] as coisas ficaram mais duras [...] à medida
que os campos se expandiam, o regime se tornava mais cruel".
O Gulag no apogeu, 1939-53
Na realidade, poder-se-ia dizer que, no final dos anos 1940, os campos de concentração soviéticos haviam adquirido sua forma definitiva. Nessa época, já tinham penetrado
em quase todas as regiões da URSS, em todos os seus doze fusos horários e na maioria das repúblicas. De Aktyubinsk a Yakutsk, não havia um único centro populacional
importante que agora não tivesse seu próprio campo ou colônia penal. Utilizava-se o trabalho de presos para construir de tudo, desde brinquedos infantis até aviões
militares. Em muitos lugares da URSS, já era difícil encontrar quem se dedicasse a seus afazeres cotidianos sem esbarrar em presos.
E o mais importante: os campos tinham evoluído. Eram não mais um grupo de locais de trabalho administrados de forma idiossincrática, e sim um verdadeiro "complexo
prisional-industrial", com práticas habituais, regras internas, sistemas especiais de distribuição, hierarquias. Uma vasta burocracia, também com sua cultura específica,
gerenciava de Moscou o imenso império do Gulag. Esse centro despachava regularmente ordens para os campos locais, fixando tudo, desde a política geral até detalhes
secundários. Embora os campos locais nem sempre seguissem (ou conseguissem seguir) a letra da lei, nunca mais se restabeleceu a natureza ad hoc dos primeiros tempos
do Gulag.
O destino dos presos ainda flutuava, conforme a política soviética, a economia e, acima de tudo, o rumo da Segunda Guerra Mundial. Mas a era da experimentação acabara.
O sistema estava estabelecido. No início dos anos 1940, já se consagrara o conjunto de procedimentos que os presos denominavam "moedor de carne" - os métodos de
captura, interrogatório, traslado, alimentação e trabalho. Na essência, ele mudaria muito pouco até a morte de Stalin.
PARTE II
A VIDA E O TRABALHO NOS CAMPOS
7. A DETENÇÃO
Quando ouvíamos falar da mais recente prisão, nunca perguntávamos: "Por que ele foi preso?" Mas éramos exceção. A maioria das pessoas, alucinada de medo, fazia aquela
pergunta apenas para dar a si mesmas um pouco de esperança; se outros foram presos por este ou aquele motivo, elas não o seriam, porque não tinham feito nada de
errado. Competiam umas com as outras afim de conceber razões inventivas para justificar cada detenção: "Bem, você sabe, ela é mesmo contrabandista", "De fato, ele
foi longe demais", "Já era de esperar, é um sujeito terrível", "Sempre achei que alguma coisa ali não cheirava bem", "Ele não é mesmo como a gente"...
Foi por isso que banimos a pergunta "Por que ele foi preso?".
"Por quê?!", Akhmatova gritava, indignada, sempre que alguma pessoa de nosso círculo, tomada pelo clima predominante, fazia a pergunta.
"O que é que você quer dizer com 'Por quê?'? Você já deveria ter entendido que prendem as pessoas por nada!"
Nadezhda Mandelstam, Contra toda esperança.
A poeta Anna Akhmatova (citada acima pela viúva de outro poeta) estava certa e errada ao mesmo tempo. Por um lado, desde meados da década de 1920 - época em que
a máquina de repressão soviética já se estabelecera -, o governo não mais pegava gente na rua e a punha na cadeia sem motivo e sem explicação: havia detenções, inquéritos,
julgamentos e sentenças. Por outro lado, os "crimes" pelos quais se detinham, julgavam e sentenciavam as pessoas eram absurdos, e os procedimentos de inquérito e
condenação se mostravam disparatados e até surreais.
Em retrospecto, eis um dos aspectos excepcionais do sistema soviético de campos de concentração: no mais das vezes, os detentos chegavam por obra de um sistema legal,
ainda que nem sempre se tratasse do sistema judicial comum. Ninguém julgava e sentenciava os judeus na Europa ocupada pelos nazistas, mas a imensa maioria dos presos
nos campos soviéticos fora interrogada (mesmo que às pressas), julgada (mesmo que de maneira farsesca) e considerada culpada (mesmo que em menos de um minuto). Não
há dúvida de que a convicção de estar agindo conforme a lei era parte do que motivava quem trabalhava nos serviços de segurança, assim como os guardas e administradores
que depois controlavam a vida dos presos nos campos.
Mas repito: o fato de que o sistema repressivo era legalizado não significa que fosse também lógico. Pelo contrário: em 1947, não era mais fácil que em 1917 prever
com alguma certeza quem seria preso. É bem verdade que se tornara possível adivinhar quem provavelmente o seria. Em especial durante ondas de terror, o regime parece
ter escolhido esta ou aquela vítima porque elas, de alguma maneira, haviam chamado a atenção da polícia secreta - um vizinho as escutara contar uma piada infeliz,
um chefe as vira adotar comportamento dúbio -; e, o mais importante, porque pertenciam a categorias populacionais que no momento estavam sob suspeita.
Algumas dessas categorias eram relativamente específicas - engenheiros e especialistas no final da década de 1920, kulaks em 1931, poloneses ou baltas nos territórios
ocupados durante a Primeira Guerra Mundial -, e algumas eram mesmo muito vagas. Durante todos os anos 1930 e 40, por exemplo, os "estrangeiros" se mostravam sempre
suspeitos. Por "estrangeiros", refiro-me a pessoas que de fato eram cidadãs de outros países; pessoas que podiam ter contatos no exterior; ou pessoas que podiam
ter algum vínculo, real ou imaginário, com outro país. Não importando o que houvessem feito, eram sempre candidatas à prisão - e estrangeiros que sobressaíssem de
qualquer maneira, por qualquer razão, encaravam probabilidade particularmente alta de ser encarcerados. Robert Robinson, um dos vários negros que se mudaram dos
Estados Unidos para Moscou nos anos 1930, depois escreveria: "Todo negro americano que conheci no começo da década de 30 e que se tornou cidadão soviético sumiu
de Moscou num período de sete anos".
Diplomatas não estavam isentos. Por exemplo, Alexander Dolgun, cidadão americano e funcionário de baixo escalão da embaixada dos Estados Unidos em Moscou, descreve
em suas memórias o modo pelo qual o apanharam na rua em 1948 e o acusaram, injustamente, de espionagem; em parte, a suspeita recaiu sobre ele porque Dolgun tinha
uma satisfação juvenil em evadir-se à vigilância da polícia secreta e porque era perito em convencer os motoristas da embaixada a emprestar-lhe carros, levando a
polícia secreta soviética a desconfiar de que ele fosse mais importante do que o cargo indicava.
Dolgun passaria oito anos nos campos; depois, só voltaria para os Estados Unidos em 1971.
Comunistas estrangeiros eram alvos freqüentes. Em fevereiro de 1937, Stalin, de modo alarmante, disse a Giorgi Dmitrov, secretário-geral da Internacional Comunista
(o Comintern, a organização dedicada a fomentar a revolução mundial), que "todos vocês do Comintern fazem o jogo do inimigo". Dos 394 membros da Comissão Executiva
do Comintern em janeiro de 1936, apenas 171 permaneciam em abril de 1938. Os restantes haviam sido fuzilados ou mandados para o Gulag, dentre eles pessoas de muitas
nacionalidades - alemães, austríacos, iugoslavos, italianos, búlgaros, finlandeses, até ingleses e franceses. Os judeus parecem ter sofrido de modo desproporcional.
Ao fim e ao cabo, Stalin matou mais integrantes do Politburo do PC alemão pré-1933 do que Hitler: dos 68 líderes que fugiram para a URSS após a tomada do poder pelos
nazistas, 41 morreram, por execução ou nos campos. O PC polonês talvez tenha sido ainda mais dizimado. Segundo uma estimativa, executaram-se 5 mil comunistas poloneses
na primavera e no verão de 1937.
Mas não era necessário pertencer a um partido comunista de outras terras: Stalin também visava meros simpatizantes estrangeiros, dos quais os 25 mil "fino-americanos"
eram provavelmente os mais numerosos. Tratava-se de pessoas de língua finlandesa (algumas imigrantes nos Estados Unidos, as outras já nascidas naquele país) que
foram para a URSS na década de 1930, os anos da Grande Depressão. Na maioria, eram operários fabris, a maior parte desempregada na América. Estimulados pela propaganda
soviética - recrutadores percorriam as colônias finlandesas nos Estados Unidos falando das maravilhosas condições de vida e oportunidades de trabalho na URSS -,
eles acorreram para a República Careliana, onde se falava o finlandês. Quase de imediato, criaram problemas para as autoridades soviéticas. A Carélia não se revelou
muito parecida com os Estados Unidos. Muitos assinalaram ruidosamente isso a quem quisesse ouvir e então tentaram voltar. Em vez disso, acabaram no Gulag no final
dos anos 1930.
Cidadãos soviéticos com vínculos externos não eram menos suspeitos. Os mais visados pertenciam às "diásporas": os poloneses, alemães e fino-carelianos que tinham
parentes e contatos além-fronteiras, assim como os baltas, gregos, iranianos, coreanos, afegãos, chineses e romenos espalhados pela URSS. Entre julho de 1937 e novembro
de 1938, conforme os próprios arquivos da NKVD, ela condenou 335.513 pessoas nessas operações "nacionais" (ou seja, referentes a nacionalidades). Veremos que ações
semelhantes se repetiriam durante e após a guerra.
Entretanto, para levantar suspeitas, nem era preciso falar uma língua estrangeira. Qualquer um com ligações além-fronteiras era suspeito de espionagem: filatelistas,
entusiastas do esperanto, toda pessoa que escrevesse para o exterior ou tivesse parentela fora da URSS. A NKVD também prendeu todas as pessoas que haviam trabalhado
na Ferrovia Oriental Chinesa - que atravessava a Manchúria e cujas origens remontavam aos tempos czaristas - e as acusou de espionagem para o Japão. Nos campos,
eram conhecidas como Kharbintsy, por causa da cidade manchu de Harbin (para os russos, Kharbin), onde muitas tinham morado. Robert Conquest descreve a detenção
de uma cantora de ópera que dançara com o embaixador japonês num baile oficial e a de um veterinário que cuidava de cães pertencentes a estrangeiros.
No final da década de 1930, a maioria dos soviéticos comuns já percebera o padrão e não queria absolutamente nenhum contato com estrangeiros. Karlo Stajner, comunista
croata casado com russa, lembrou que "só raramente os russos se atreviam a ter qualquer relacionamento com estrangeiros [...]. Os parentes de minha mulher continuaram
a ser praticamente estranhos para mim. Nenhum deles ousava visitar-nos. Quando souberam de nossa idéia de casar, todos eles advertiram Sonia disso". Mesmo em meados
dos anos 1980, quando visitei a URSS pela primeira vez, muitos russos se mantinham distantes dos estrangeiros, não lhes dando atenção ou se negando a encará-los
nas ruas.
E ainda assim... Nem todo estrangeiro era detido pela polícia, e nem todo acusado de ter vínculos externos os tinha. Também acontecia de pessoas serem presas por
motivos muito mais idiossincráticos. Em conseqüência, indagar "Por quê?" - a pergunta que Anna Akhmatova tanto detestava - produz uma gama verdadeiramente espantosa
de explicações alegadas.
Por exemplo, Osip Mandelstam (o marido de Nadezhda), foi preso em razão deste ataque poético a Stalin:
Vivemos sem sentir a terra debaixo dos pés.
Falamos, e ninguém nos ouve a dez passos.
Mas, onde houver uma conversa, mesmo que sussurrada,
O embusteiro, assassino e mata-campônios do Kremlin será mencionado.
Seus dedos, gordos como larvas, são untuosos.
Suas palavras, como pesos de chumbo, são finais.
Seu bigode de barata desdenha. As bordas de suas botas brilham.
E, em volta dele, uma panelinha de líderes frouxos,
Apenas meio humanos, serve-lhe de brinquedo.
Um choraminga, outro arrulha, outro geme.
Só ele berra e aponta,
Lançando decretos como se fossem ferraduras,
Acertando uma virilha, uma cabeça, um olho...
Toda sentença de morte é doce
Para o osseto de peito largo.
Embora se apresentassem diferentes razões oficiais, Tatyana Okunevskaya, uma das mais populares atrizes soviéticas do cinema, acreditava ter sido presa porque se
recusara a dormir com Viktor Abakumov, o chefe da contra-espionagem da URSS durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo Tatyana, para assegurarem-na de que esse era
o verdadeiro motivo, foi-lhe mostrado um mandado de prisão com a assinatura de Abakumov. Os quatro irmãos Starostin, todos excepcionais jogadores de futebol, viram-se
presos em 1942. Sempre acreditaram que isso se devia ao fato de seu time, o Spartak, ter tido o azar de derrotar o Dynamo - pelo qual Lavrenty Beria torcia - por
um placar demasiado elástico.
Tampouco se fazia necessário nada fora do comum. Lyudmila Khachatryan foi presa por ter-se casado com um estrangeiro, soldado iugoslavo. Lev Razgon narrou a história
de um camponês, Seryogin, que, ao saber que alguém matara Kirov, retrucou: "Como se eu desse a mínima!" Seryogin nunca ouvira falar de Kirov e presumiu que se tratasse
de alguém que morrera na aldeia vizinha. Pelo equívoco, recebeu pena de dez anos. Em 1939, contar (ou ouvir) uma piada sobre Stalin; atrasar-se para o trabalho;
ter a infelicidade de que um amigo aterrorizado ou um vizinho invejoso o denunciasse como "conjurado" num complô inexistente; possuir quatro vacas numa aldeia onde
a maioria tmha uma só; furtar um par de sapatos; ser primo da mulher de Stalin; afanar caneta e papel do escritório para dá-los a um escolar carente -tudo isso,
nas circunstâncias certas, acarretava pena de prisão num campo soviético. Por uma lei de 1940, parentes de quem houvesse tentado atravessar ilegalmente a fronteira
soviética estavam sujeitos a prisão, não importando se sabiam ou não da tentativa de fuga. Veremos que as leis dos tempos de guerra - sobre o atraso no trabalho
e a proibição de mudar de emprego - adicionariam ainda mais "criminosos" aos campos.
Se os motivos para detenção se revelavam muitos e variados, os métodos também o eram. Alguns presos tinham sido mais do que avisados. Durante semanas antes de sua
captura, em meados da década de 1930, AlexanderWeissberg fora seguidamente chamado para interrogatório por um agente da polícia secreta, perguntando-lhe repetidas
vezes como ele virara "espião": quem o recrutara? Quem ele recrutara? Para que organização estrangeira trabalhava? "Fez as mesmíssimas perguntas de novo e de novo,
e sempre lhe dei as mesmas respostas."
Mais ou menos na mesma época, Galina Serebryakova, autora de A juventude de Marx e mulher de um alto funcionário público, também foi "convidada" à Lubyanka todas
as noites, obrigada a esperar até as duas ou três da manhã, interrogada e liberada às cinco, quando voltava para seu apartamento. Agentes cercavam o prédio, e um
carro preto seguia Galina quando ela saía de casa. Ficou tão certa de que seria presa que tentou matar-se. No entanto, suportou vários meses dessa perseguição até
ser de fato presa.
Durante grandes ondas de prisões - de kulaks em 1929 e 1930, de ativistas do partido em 1937 e 1938, de ex-presos em 1948 -, muitos sabiam que sua vez se aproximava
porque simplesmente todos em volta estavam sendo capturados. Em 1937, Elinor Lipper (comunista holandesa que viera para Moscou naquela década) estava morando no
Lux, um hotel especial para revolucionários estrangeiros: "toda noite, mais algumas pessoas sumiam do hotel [...] de manhã, apareciam grandes lacres vermelhos nas
portas de mais alguns quartos".
Em épocas de verdadeiro terror, alguns até encaravam a detenção com uma espécie de alívio. Nikolai Starostin, um daqueles azarados astros do futebol, foi seguido
por agentes durante várias semanas; ficou tão incomodado com isso que finalmente foi até um deles e exigiu uma explicação: "Se vocês querem alguma coisa de mim,
chamem-me à sua repartição". Em conseqüência, no momento da prisão, ele sentiu não "espanto e medo", mas "curiosidade".
Outros, porém, eram pegos totalmente de surpresa. O escritor polonês Aleksander Wat, que então morava em Lvov (ocupada pelos soviéticos), foi convidado a uma festa
num restaurante, com um grupo de literatos. Perguntou ao anfitrião o que se comemorava. "Você verá", foi a resposta. Encenou-se uma briga, e ele foi preso ali mesmo.
Alexander Dolgun, o já citado funcionário da embaixada norte-americana, foi saudado na rua por um homem que acabou revelando-se um secreta. Dolgun recordaria que,
quando o homem o chamou pelo nome, "fiquei completamente aturdido; imaginei se não seria algum doido". Tatyana Okunevskaya, a atriz, estava de cama, muito resfriada,
quando vieram prendê-la; requereu que a polícia voltasse outro dia; mostraram-lhe o mandado de prisão (aquele com a assinatura de Abakumov) e a arrastaram escada
abaixo. Soljenitsin repete a história (provavelmente apócrifa) da mulher que foi ao Bolshoi com o namorado, interrogador profissional, que, por sua vez, a levou
direto do teatro para a Lubyanka. A sobrevivente e memorialista Nina Gagen-Torn conta o episódio de uma mulher que fora detida quando apanhava roupa no varal num
pátio de Leningrado; estava de roupão de banho e deixara o bebê sozinho no apartamento, achando que voltaria em poucos minutos; implorou para que a deixassem ir
pegá-lo, mas não permitiram.
Na realidade, tem-se a impressão de que as autoridades variavam propositalmente de tática, capturando algumas pessoas em casa, outras no trabalho; algumas na rua,
outras no trem. Um memorando de Stalin a Viktor Abakumov, datado de 17 de julho de 1947, confirma essa suspeita, observando que os visados eram rotineiramente "surpreendidos
pela polícia" para evitai que escapassem, resistissem ou alertassem outros em suas "conspirações" contra-revolucionárias. Em certos casos, continuava o documento,
"realiza-se uma detenção às escondidas na rua".
Entretanto, a captura mais comum era a que ocorria na casa da pessoa, no meio da noite. Em períodos de prisões em massa, difundiu-se muito o medo da "batida na porta"
à meia-noite. Há uma velhíssima piada soviética sobre o susto terrível que marido e mulher tiveram quando ouviram a batida na porta - e sobre o alívio que sentiram
quando souberam que era apenas o vizinho, avisando que o prédio estava pegando fogo. Um provérbio soviético também diz que "os ladrões, as prostitutas e a NKVD trabalham
mais à noite". Em geral, essas detenções noturnas se faziam acompanhar de uma busca, ainda que as táticas para essa última variassem com o passar do tempo. Osip
Mandelstam foi preso duas vezes, em 1934 e em 1938, e sua mulher descreveria as diferenças entre os dois procedimentos:
Em 1938, não perderam tempo procurando nem examinando papéis - de fato, os agentes da polícia não pareciam nem saber a ocupação do homem que tinham vindo prender
[...] simplesmente viraram todos os colchões, enfiaram os papéis dele num saco, fuçaram um pouquinho e sumiram, levando M. [Mandelstam] consigo. A operação toda
não durou mais que vinte minutos. Mas, em 1934, eles haviam ficado a noite toda, até a madrugada.
Durante a batida anterior, a polícia secreta, que obviamente sabia o que estava fazendo, passara um pente-fino na papelada de Mandelstam, deixando de lado manuscritos
antigos e procurando versos novos. Também se assegurara de que testemunhas "civis" estivessem presentes, assim como um "amigo" dos Mandelstam que estava a soldo
da polícia; tratava-se de um crítico literário, que recebera ordens de aparecer lá antes da chegada dos agentes, para garantir que a família não começasse a queimar
papéis tão logo ouvisse a batida na porta. Na batida de 1938, a polícia não se preocupou com tais detalhes.
Prisões em massa de grupos nacionais específicos, como as que ocorreram no que fora a Polônia oriental e os Estados bálticos - territórios tomados pelo Exército
Vermelho entre 1939 e 1941 -, costumavam ter caráter ainda mais aleatório. Janusz Bardach, adolescente judeu na localidade polonesa de Wlodzimierz-Wolynski, viu-se
obrigado a servir de "testemunha" civil durante uma dessas capturas. Na noite de 5 de dezembro de 1939, acompanhou um grupo de facínoras bêbados da NKVD que foram
de casa em casa, arrebanhando pessoas que seriam presas ou deportadas. Às vezes, atacavam os cidadãos mais ricos e mais bem relacionados, cujos nomes eram registrados
numa lista; outras vezes, simplesmente carreavam "refugiados" - em geral judeus que tinham fugido da Polônia ocidental, ocupada pelos nazistas, para a oriental,
ocupada pelos soviéticos -, sem se preocupar em anotar seus nomes. Numa casa, alguns refugiados tentaram resguardar-se lembrando a NKVD de que haviam sido membros
do Bund, o movimento socialista judaico. Apesar disso, ao saber que essas pessoas vinham de Lublin (cidade que, na época, ficava do outro lado da fronteira), Gennady,
o líder da patrulha da NKVD, começou a gritar:
"Seus refugiados sujos! Espiões nazistas!" As crianças caíram no choro, o que irritou Gennady ainda mais. "Façam-nas calar a boca! Ou vocês querem que eu mesmo cuide
disso?"
A mãe as puxou para junto de si, mas elas não conseguiam parar de chorar. Gennady agarrou as mãos [de um] menininho, arrancou-o dos braços da mãe e o jogou no chão.
"Cale a boca, eu já disse!" A mãe berrou. O pai tentou dizer alguma coisa, mas só conseguiu arfar. Gennady pegou o menino e o segurou por um instante, encarando-o
de perto; depois, atirou-o com força contra a parede.
Mais tarde, os homens destruíram a casa de amigos de infância de Bardach:
Ao lado, ficava o escritório do dr. Schechter. Sua escrivaninha escura de mogno estava no meio, e Gennady foi direto para ela. Passou a mão pela madeira lisa e então,
num momento de raiva inesperada, a golpeou com um pé-de-cabra. "Porcos capitalistas! Parasitas filhos da puta! Precisamos achar esses exploradores capitalistas!"
Cada vez com mais força, seguiu golpeando a mesa, sem parar, fazendo vários buracos na madeira.
Não tendo conseguido localizar os Schechter, os homens estupraram e mataram a mulher do jardineiro.
Nesses territórios recém-ocupados, quem executava tais operações, freqüentemente guardas de comboio (soldados que controlavam os trens de deportados) e não a NKVD,
recebera muito menos treinamento que os secretas que realizavam as detenções "normais" de criminosos também "normais". E provável que a violência não fosse cometida
a mando do Estado, mas, já que se tratava de soldados soviéticos prendendo "capitalistas" no Ocidente rico, a bebedeira, a baderna e até o estupro parecem ter sido
tolerados, como o seriam depois, na fase final da Segunda Guerra, durante o avanço do Exército Vermelho através da Polônia e da Alemanha.
No entanto, certos aspectos da conduta desses homens eram severamente impostos de cima. Em novembro de 1940, em Moscou, a Administração dos Guardas de Comboio determinou
que os seus homens, ao realizar as prisões, deveriam mandar os detidos trazerem roupas quentes e objetos pessoais em quantidade suficiente para três anos, pois naquele
momento a URSS sofria escassez desses produtos. Esperava-se que os detentos vendessem seus pertences. Antes, os soldados costumavam receber ordem de não dizer nada
aos presos sobre o lugar para onde iam, ou quanto tempo ficariam lá. A fórmula aceite era: "Por que se preocuparem? Por que carregarem o que quer que seja? Só vamos
levar vocês para uma conversinha". Às vezes, diziam aos deportados que estes estavam apenas sendo transferidos para outra área, mais longe das fronteiras, "para
a própria proteção de vocês". A idéia era impedir que os detidos se apavorassem, reagissem ou fugissem. O resultado era que se privavam as pessoas dos instrumentos
básicos de que precisariam para sobreviver num clima rude, com o qual não estavam familiarizadas.
Homem entra em sua primeira cela. Desenho de Thomas Sgovio, completado após a soltura do artista
Embora se possa relevar a ingenuidade de camponeses poloneses que deparavam com o regime soviético pela primeira vez e acreditavam nessas mentiras, a mesmíssima
fórmula também funcionava bem no caso dos intelectuais de Moscou e Leningrado e dos apparatchiki do Partido, freqüentemente tomados pela convicção da própria inocência.
Quando prenderam Evgeniya Ginzburg (na época funcionária do Partido em Kazan), disseram-lhe que ficaria fora "quarenta minutos, talvez uma hora". Em conseqüência,
ela não teve chance de despedir-se dos filhos. Yelena Sidorkina, filiada ao Partido, desceu a rua para a prisão "conversando tranqüilamente" com o policial, certa
de que logo estaria em casa.
Sofia Aleksandrovna, ex-mulher do chekista Gleb Boky, viu-se desestimulada a levar consigo um casaco leve quando a NKVD veio buscá-la ("a noite está quente, e voltaremos
no máximo em uma hora"). Isso fez seu genro, o escritor Lev Razgon, ponderar a estranha crueldade do sistema: "Para que mandar para a prisão uma mulher de meia-idade,
com saúde não muito boa, sem nem mesmo o saquinho de roupas de baixo e itens de higiene que, desde os tempos dos faraós, os detidos sempre foram autorizados a trazer
consigo?"
A mulher do ator Georgii Zhenov pelo menos teve o bom senso de começar a acondicionar as roupas do marido. Quando lhe disseram que Zhenov retornaria rapidamente,
ela rebateu: "Quem cai nas mãos de vocês não volta logo". Era verdade: na maioria das vezes, quando um detido adentrava os pesados portões de ferro de uma prisão
soviética, passavam-se muitos anos antes que tornasse à casa.
Se às vezes o método soviético de captura parece ter sido quase aleatório, os rituais que se seguiam já eram praticamente imutáveis nos anos 1940. Não importando
por que se detivera uma pessoa, os acontecimentos seguiam curso muito previsível tão logo ela chegava à prisão local. Como regra geral, os detidos eram registrados
e fotografados e tinham suas impressões digitais recolhidas bem antes de serem informados de por que haviam sido presos e de qual seria seu destino. Durante as primeiras
horas, e às vezes durante os primeiros dias, não topavam com ninguém de mais autoridade que os carcereiros, os quais não ligavam a mínima para o que seria feito
deles, não tinham a menor idéia dos crimes que podiam ter cometido e respondiam a todas as perguntas com um dar de ombros indiferente.
Muitos ex-condenados acreditam que as primeiras horas de cativeiro se destinavam a atordoá-los de propósito, para que ficassem incapazes de racionar com coerência.
Inna Shikheeva-Gaister, presa por ser filha de um inimigo do povo, sentiu isso acontecer com ela depois de poucas horas na Lubyanka, a cadeia central de Moscou:
Aqui na Lubyanka, você já não é uma pessoa. E não há gente a seu redor. Conduzem você por um corredor, fotografam-na, despem-na, revistam-na mecanicamente. Tudo
se faz de maneira totalmente impessoal. Você procura um olhar humano - não falo nem de uma voz humana, só mesmo de um olhar -, mas não o acha. Você fica em pé, desgrenhada,
diante do fotógrafo. Tenta de algum modo ajeitar-se nas roupas, e lhe mostram com o dedo onde sentar. Uma voz vazia diz "De frente'' e "De perfil". Não a vêem como
ser humano! Você se tornou um objeto.
Caso fossem levados para interrogatório numa das prisões centrais urbanas - e não colocados imediatamente em trens, como o eram os degredados -, os detidos se submetiam
a uma revista minuciosa, em várias etapas. Um documento de 1937 instruía os carcereiros especificamente a não esquecer que "o inimigo não interrompe a luta depois
da detenção" e que ele podia suicidar-se para ocultar suas atividades criminosas. Em conseqüência, os detentos eram privados de botões, cintos, suspensórios, cadarços,
ligas, elásticos de roupas de baixo e tudo o mais que pudessem pensar em usar para matar-se. Muitos se sentiam humilhados com esse procedimento. Nadezhda Joffe,
filha de um destacado bolchevique, viu-se despojada do cinto, da liga, dos cadarços e dos grampos de cabelo:
Lembro-me de como fiquei impressionada com a degradação e o absurdo que tudo aquilo representava. O que uma pessoa poderia lazer com grampos de cabelo? Mesmo se
alguém tivesse a idéia despropositada de enforcar-se com os cadarços, como é que se faria isso? Eles simplesmente tinham de colocar a pessoa numa posição asquerosa
e humilhante, em que as saias caíam, as meias arriavam e os pés se arrastavam.
A revista corporal que vinha a seguir era pior. No romance O primeiro círculo, Alexander Soljenitsin descreve a detenção de Innokenty, um diplomata soviético. Poucas
horas depois da chegada à Lubyanka, um carcereiro examina cada orifício do corpo de Innokenty:
Da mesma maneira que um negociante de cavalos, com seus dedos sujos cutucando dentro da boca de Innokenty, esticando uma bochecha e depois a outra, puxando para
baixo as pálpebras inferiores, o carcereiro se convenceu de que não havia nada escondido nos olhos nem na boca; empurrou a cabeça para trás, de modo que as narinas
ficaram iluminadas; em seguida, examinou ambas as orelhas, puxando-as para trás, e mandou Innokenty esticar as mãos, para mostrar que não havia nada entre os dedos,
e balançar os braços, para mostrar que não havia nada sob as axilas. No mesmo tom monótono e peremptório, ordenou:
"Pegue o pênis na mão. Puxe o prepúcio. Mais. Certo, já basta. Mova o pênis do alto para a direita, do alto para a esquerda. Certo, pode largar. Fique de costas
para mim. Abra bem as pernas. Mais. Incline-se e toque o chão. Com as pernas mais abertas. Abra as nádegas com as mãos. Certo. Agora, de cócoras. Depressa! De novo!"
Tendo cogitado sobre a detenção antes de ocorrida, Innokenty se imaginara num duelo de obstinação até a morte. Para tanto estava preparado, pronto para uma defesa
íntegra de sua vida e de suas convicções. Nunca presumira algo tão simples, tão deprimente e tão imperioso como aquela realidade. As pessoas que o haviam recepcionado
eram mesquinhas - pequenas autoridades, tão desinteressadas em sua personalidade quanto no que ele fizera.
Para as mulheres, o choque de tais revistas podia ser pior. Uma se recordaria de que o carcereiro que fazia a revista
tirou nossos sutiãs, nossas cintas-ligas e algumas outras partes de nossa lingerie que eram essenciais a uma mulher. Seguiu-se um exame ginecológico rápido e repulsivo.
Fiquei quieta, mas senti que me privavam de toda a dignidade humana.
Em 1941, durante uma estada de doze meses na prisão Aleksandrovsky Tsentral, a memorialista T. P. Milyutina foi revistada repetidas vezes. As mulheres das celas
eram levadas, cinco de cada vez, a uma escada sem aquecimento. Ali, recebiam ordem de despir-se por inteiro, colocar as roupas no chão e levantar os braços. Mãos
se metiam "em nossos cabelos, nossas orelhas, debaixo de nossas línguas, também entre nossas pernas", com as prisioneiras tanto em pé quanto sentadas. A memorialista
escreve que, após a primeira dessas revistas, "muitas caíram em lágrimas, e muitas ficaram histéricas".
Em seguida à revista, alguns presos iam para a solitária. "As primeiras horas de prisão", continua Soljenitsin, "destinam-se a subjugar o preso isolando-o do contato
com outros detentos, para que ninguém possa animá-lo, para que sinta que toda a força daquele aparato vasto e ramificado se exerce sobre ele, e apenas sobre ele."
A cela do diplomata soviético Evgenii Gnedin, filho de revolucionários, continha apenas uma pequena mesa, afixada ao piso, e duas banquetas, também afixadas ao piso.
A cama dobradiça na qual os presos dormiam à noite era presa à parede. Tudo, inclusive as paredes, banquetas, cama e teto, era pintado de azul-claro. "Tinha-se a
impressão de estar dentro de um camarote esquisito de navio", escreveria Gnedin em suas memórias.
Durante as primeiras horas de detenção, ou mesmo por alguns dias, também era bastante comum ser posto (a exemplo do que aconteceu a Alexander Dolgun) num bok, uma
cela "de mais ou menos 1,20 por 0,90 metro; uma caixa vazia com um banco comprido". O cirurgião polonês Isaac Vogelfanger viu-se numa cela com janelas abertas no
meio do inverno. Outros, corno Lyubov Bershadskaya - uma sobrevivente que depois ajudaria a liderar uma greve de presos em Vorkuta -, ficavam isolados durante todo
o período de interrogatório. Lyubov passou nove meses na solitária e escreveu que até ansiava por ser interrogada, só para ter alguém com quem falar.
Contudo, para o recém-chegado, uma cela superlotada podia ser ainda mais horripilante. Na descrição de Olga Adamova-Sliozberg, sua primeira cela parece um quadro
de Hieronymus Bosch:
A cela era enorme. As paredes abobadadas pingavam. De ambos os lados, deixando apenas uma passagem estreita, havia pranchas baixas que serviam de camas e estavam
apinhadas de corpos. Por cima, em varais, secavam andrajos diversos. O ar se espessava com a fumaça nojenta de fumo forte e barato e se enchia com o alarido de bate-bocas,
gritos e soluços.
Outro memorialista também procurou exprimir a sensação de susto:
Era uma visão tão terrível, homens de cabelo comprido, barbados, o cheiro de suor, nenhum lugar para sentar ou descansar. É preciso usar a imaginação para tentar
compreender o tipo de lugar em que eu estava.
A finlandesa Aino Kuusinen, mulher de Oleg Kuusinen (o líder do Comintern), acreditava que, na primeira noite, fora proposital-mente colocada onde pudesse ouvir
os presos que iam sendo interrogados:
Mesmo hoje, passados trinta anos, mal consigo descrever o horror daquela primeira noite na Lefortovo [prisão moscovita que leva o nome do bairro onde fica]. De minha
cela, dava para ouvir todo e qualquer ruído que se fazia do lado de fora. Depois descobri que, perto dela, ficava o "departamento de interrogatórios", uma estrutura
separada que, na realidade, era uma sala de torturas. Durante toda a noite, escutei urros atrozes e o repetido som de chibata. Um animal desesperado e torturado
dificilmente produziria berros tão medonhos quanto os das vítimas que, durante horas, eram atingidas por ameaças, golpes e xingamentos.
Mas, não importando onde se encontrassem na primeira noite de detenção - fosse numa antiga cadeia czarista, fosse num xadrez de estação ferroviária, fosse numa igreja
ou num mosteiro adaptados -, todos os presos encaravam uma tarefa urgente e imediata: recuperar-se do susto, ajustar-se às regras específicas da vida prisional -
e lidar com o interrogatório. A velocidade com que conseguissem fazer essas coisas ajudaria a determinar quão bem, ou quão mal, eles se sairiam ali na detenção e,
por fim, nos campos.
De todas as etapas pelas quais os presos passavam no caminho para o gulag, o interrogatório talvez seja aquela com a qual os ocidentais estão mais familiarizados.
Descreveram-se interrogatórios não apenas nos livros de história, mas também na literatura do Ocidente (por exemplo. no clássico Do zero ao infinito, de Arthur Koestler),
em filmes de guerra e em outras formas de cultura popular ou elevada. A Gestapo, assim como a Inquisição espanhola, contava com interrogadores tristemente célebres.
Suas táticas entraram para o imaginário popular. "Temos meios de fazê-lo falar" é uma frase que as crianças ainda usam quando brincam de guerra.
É claro que interrogatórios de presos também ocorrem em sociedades democráticas e respeitadoras do Estado de direito, às vezes seguindo a lei, às vezes não. A pressão
psicológica e até a tortura estão longe de ser exclusivas da URSS. A dobradinha "polícia bonzinho e polícia malvado" (na qual o primeiro, simpático e cortês, faz
perguntas e se alterna com o segundo, irado) se incorporou não apenas a vários idiomas, mas também a manuais de polícia americanos (hoje ultrapassados). Durante
interrogatório, em uma ou outra época, presos se viram pressionados em muitos países, quando não na maioria deles; aliás, tal pressão levou a Suprema Corte dos Estados
Unidos, no caso Miranda versus Arizona (1966), a determinar que os suspeitos de atos criminosos devem ser informados, entre outras coisas, de seu direito a permanecer
calados e contatar advogado.
Ainda assim, as "investigações" realizadas pela polícia secreta soviética eram únicas, se não nos métodos, pelo menos no caráter "maciço". Em alguns períodos, os
"casos" envolviam rotineiramente centenas de pessoas, que eram capturadas em toda a URSS. Típico de sua época era um relatório elaborado pelo departamento regional
da NKVD em Orenburg sobre "Providências operacionais para a liqüidação de grupos clandestinos de trotskistas e bukharinistas, assim como de outros grupos contra-revolucionários,
tomadas de 1º de abril a 18 de setembro de 1937". Segundo o relatório, a NKVD local prendera 420 membros de uma conspiração "trotskista"; 120 "direitistas"; mais
de 2 mil integrantes de uma "organização militar nipo-cossaca de direita"; mais de 1.500 oficiais e funcionários públicos czaristas degredados de São Petersburgo
em 1935; uns 250 poloneses indiciados como parte de um processo contra "espiões polacos"; 95 pessoas que haviam trabalhado na Ferrovia Oriental Chinesa e eram consideradas
espiões japoneses; 3.290 ex-kulaks; e 1.300 "elementos criminosos".
No todo, a NKVD de Orenburg detivera mais de 7.500 pessoas num período de cinco meses, o que não deixava muito tempo para um exame cuidadoso das provas. Isso nem
importava, pois, na realidade, os inquéritos sobre cada uma dessas conspirações haviam sido iniciados em Moscou. A NKVD estava apenas cumprindo obrigação, preenchendo
as cotas de presos que lhe tinham sido impostas de cima.
Por causa do grande volume de detenções, foi preciso estabelecer procedimentos especiais. Estes nem sempre acarretavam mais crueldade. Pelo contrário: às vezes,
o grande número de presos levava a NKVD a reduzir ao mínimo o trabalho de real investigação. O acusado era interrogado às pressas e condenado igualmente às pressas,
por vezes com uma audiência judicial extremamente rápida. O general Aleksander Gorbatov recordaria que sua audiência demorou "quatro ou cinco minutos" e consistiu
na confirmação de detalhes pessoais e numa única pergunta: "Por que você não confessou seus crimes durante o inquérito?" Em seguida, recebeu sentença de quinze anos
de prisão.
Outros nem sequer tinham julgamento: eram condenados in absentia, procedimento realizado ou por uma osoboe soveshchanie (comissão especial), ou por uma tróica de
altos funcionários. Foi o caso de Thomas Sgovio, cujo inquérito se mostrou inteiramente superficial. Nascido em Buffalo (estado de Nova York), Sgovio chegara à URSS
em 1935 como refugiado político, sendo filho de um comunista ítalo-americano que, por causa de suas atividades políticas, fora deportado dos Estados Unidos para
lá. Durante os três anos em que morou em Moscou, Sgovio foi aos poucos se desiludindo, até procurar reaver seu passaporte norte-americano (abrira mão dele quando
entrara na URSS), a fim de poder voltar para casa. Em 12 de março de 1938, foi preso ao sair a pé da embaixada americana.
O registro do inquérito subseqüente - que Sgovio, décadas depois, fotocopiou num arquivo de Moscou e doou à Hoover Institution - é sumário, no que, aliás, corresponde
à lembrança que o próprio acusado tem dos acontecimentos. Entre as provas contra ele, inclui-se uma lista do que se achou durante a revista corporal; entre outras
coisas, sua caderneta sindical, sua agenda de endereços e telefones, seu cartão de biblioteca, uma folha de papel ("com texto escrito em língua estrangeira"), sete
fotos, um canivete e um envelope com selos estrangeiros. Há uma declaração do camarada Sorokin, capitão da Segurança do Estado, atestando que o acusado entrara a
pé na embaixada dos Estados Unidos em 12 de março de 1938. Há também uma declaração de testemunha, atestando que ele deixara a embaixada às 13h15. O prontuário ainda
compreende as minutas do inquérito inicial e os dois breves interrogatórios, tendo sido cada página assinada por Sgovio e pelo interrogador. A declaração inicial
de Sgovio está transcrita assim: "Eu queria recuperar minha cidadania americana. Três meses atrás, fui à embaixada americana pela primeira vez e solicitei minha
cidadania de volta. Hoje voltei lá [...] a recepção me disse que o funcionário americano encarregado de meu caso tinha ido almoçar, e mandaram que eu retornasse
em uma ou duas horas".
Durante a maior parte do interrogatório subseqüente, pediram repetidamente a Sgovio os detalhes da visita à embaixada. Só uma vez lhe disseram: "Fale-nos de suas
atividades de espionagem". Depois que replicou que "Vocês sabem que não sou espião", eles parecem não tê-lo pressionado mais, embora o interrogador brincasse com
uma mangueira de borracha (do tipo em geral usado para espancar presos) de modo vagamente ameaçador.
A NKVD, ainda que não estivesse muito interessada no caso, não parece jamais ter duvidado do desfecho. Alguns anos depois, Sgovio requereu revisão do processo; a
promotoria cumpriu as formalidades e resumiu os fatos da seguinte maneira: "Sgovio não nega que fez uma solicitação na embaixada americana. Portanto creio não haver
motivo para revermos o processo". Fatalmente complicado pelo fato de que confessara ter entrado na embaixada americana (e ter desejado sair da URSS), Sgovio recebeu
de uma das "comissões especiais" a pena de cinco anos de trabalhos forçados, condenado como "elemento socialmente perigoso". Seu processo fora considerado de rotina.
Na onda de prisões da época, os investigadores só haviam feito o mínimo exigido.
Outros eram condenados com ainda menos provas, após inquéritos ainda mais superficiais. Dado que despertar suspeita já era considerado sinal de culpa, os presos
raramente eram soltos sem haver cumprido pelo menos uma pena parcial. Lev Finkelstein, judeu russo aprisionado no final da década de 1940, teve a impressão de que,
embora ninguém houvesse conseguido imputar-lhe culpa plausível, ele recebera uma pena curta de prisão nos campos simplesmente para mostrar que os órgãos de captura
nunca erravam. S. G. Durasova, outro ex-preso, até afirma que um de seus interrogadores lhe dissera especificamente que "nunca prendemos ninguém que não seja culpado.
E, mesmo se você não for culpado, não poderemos soltá-lo, porque aí as pessoas diriam que estamos pegando inocentes".
Por outro lado, quando a NKVD tinha algum interesse mais - e, ao que parece, quando o próprio Stalin demonstrava esse interesse -, a atitude dos investigadores para
com aqueles apanhados durante períodos de prisões em massa podia rapidamente passar de apática a sinistra. Em certas circunstâncias, a NKVD chegava a exigir que
os investigadores forjassem provas em larga escala - como aconteceu durante o inquérito de 1937 sobre o que Nikolai Yezhov denominou "a mais poderosa e provavelmente
mais importante rede diversionária da espionagem polaca na URSS". Se o interrogatório de Sgovio representa um extremo (o do desinteresse), a operação maciça contra
essa suposta rede de espiões representa o outro: os suspeitos eram interrogados com a determinação de fazê-los confessar.
A operação se iniciou com a ordem 00485 da NKVD, que estabeleceu o padrão para prisões em massa posteriores. Ela listava claramente o tipo de pessoa que se deveria
capturar: todos os prisioneiros de guerra poloneses remanescentes da Guerra Polaco-bolchevique de 1920; todos os refugiados e imigrantes poloneses na URSS; todo
mundo que houvesse sido membro de algum partido político polonês; e todos os "ativistas anti-soviéticos" das regiões de língua polonesa na URSS. Na prática,
qualquer indivíduo de origem polonesa que morasse em território soviético - e havia muitos, em especial nas regiões de fronteira da Ucrânia e da Bielo-Rússia
- tornava-se suspeito. A operação foi tão completa e minuciosa que o cônsul da Polônia em Kiev produziu um relatório secreto do que estava acontecendo, observando
que, em algumas aldeias, "todos cuja origem fosse polonesa, e até todos cujo nome parecesse polonês", tinham sido presos, não importando se eram diretores de fábrica
ou simples camponeses.
Mas as capturas eram só o começo. Já que não havia nada para incriminar alguém culpado de ter sobrenome polaco, a ordem 00485 instava os chefes regionais da NKVD
a "iniciar investigações simultaneamente às detenções. O objetivo básico da investigação deve ser o total desmascaramento dos organizadores e líderes do grupo diversionário,
a fim de revelar essa rede".
Na prática, isso significava (como em tantos outros casos) que os próprios detidos seriam obrigados a fornecer as provas com as quais se constituiria o processo
contra eles. O sistema era simples. Os poloneses detidos eram primeiro interrogados sobre sua participação na rede de espionagem. Aí, quando alegavam não saber nada
a respeito disso, eram espancados ou torturados de outras maneiras até "se lembrarem". Visto que o próprio Yezhov estava interessado no sucesso dessa iniciativa,
ele até comparecia a algumas das sessões de tortura. Quando os presos prestavam oficialmente queixa do tratamento, Yezhov ordenava a seus subordinados que não dessem
atenção àquilo e "continuassem na mesma linha". Após os presos terem confessado, exigia-se deles que denunciassem seus "conjurados". O ciclo então se reiniciava,
com o que a "rede de espionagem" crescia cada vez mais.
Dois anos após ter sido lançada, a chamada "linha polonesa de investigação" já resultara na captura de mais de 140 mil pessoas, o que, segundo algumas estimativas,
corresponderia a quase 10% de todos os presos durante o Grande Terror. Mas a operação também ficou tão tristemente célebre pelo uso indiscriminado de tortura e confissões
falsas que, em 1939, durante a curta reação violenta contra as prisões em massa, a própria NKVD iniciou um inquérito sobre os "equívocos" cometidos. Um policial
envolvido lembraria que "não era preciso ser delicado - não se necessitava de autorização especial para bater na cara das pessoas, para espancá-las sem restrições".
Aos que demonstravam certos pruridos (e parece ter havido alguns elementos assim), dizia-se explicitamente que era decisão de Stalin e do Politburo "bater nos polacos
até não mais poder".
De fato, embora Stalin depois denunciasse os "procedimentos simplificados de investigação" da NKVD, há indícios de que ele aprovava tais métodos. Naquele memorando
que Abakumov lhe enviou em 1947, por exemplo, observa-se especificamente que a função primordial do interrogador é tentar obter do detido uma "confissão verdadeira
e franca, para não apenas estabelecer a culpa dele, mas também desmascarar aqueles aos quais esteja ligado e aqueles que dirigem a atividade criminosa do detido
e os planos do inimigo".61 Abakumov evita a questão dos espancamentos e da tortura física, mas escreve que os investigadores recebem ordem de "estudar o caráter
do detido" e, com base nisso, determinar o regime prisional que lhe será imposto (se severo ou brando) e a melhor maneira de aproveitar-se de suas
convicções religiosas, vínculos familiares e pessoais, amor-próprio, vaidade etc. [...] Por vezes, a fim de sobrepujar em astúcia o detido e criar a impressão de
que os órgãos da MGB [sucessora da NKVD] sabem tudo a respeito dele, o investigador pode lembrá-lo de detalhes íntimos e variados de sua vida pessoal, segredos que
ele esconde daqueles a sua volta etc.
Os motivos pelos quais a polícia secreta soviética se mostrava tão obcecada por confissões continuam a dar pano para manga. Já se apresentou ampla gama de explicações.
Alguns acreditam que tal política emanava do alto. Roman Brackman, autor de uma biografia heterodoxa, O dossiê secreto de Joseph Stalin (The secret file of Joseph
Stalin), acredita que o líder soviético tinha a obsessão neurótica de fazer outros confessarem tipos de crime que ele próprio cometera: segundo o autor, Stalin fora
agente da polícia secreta czarista antes da Revolução e, por isso, sentia uma necessidade particular de ver pessoas confessarem ter sido traidoras. Robert Conquest
também acredita que Stalin estava interessado em obrigar pelo menos aqueles que conhecera pessoalmente a confessar: "ele queria não apenas matar seus antigos oponentes,
mas também destruí-los moral e politicamente", embora isso, é claro, se aplicasse apenas a alguns indivíduos dentre os milhões de detidos.
Mas as confissões também eram importantes para os agentes da NKVD que realizavam os interrogatórios. Talvez extraí-las os ajudasse a sentir confiança na legitimidade
de seus atos: isso fazia a loucura das prisões arbitrárias em massa parecer mais humana, ou pelo menos submetida à lei. Como no caso dos "espiões polacos", a confissão
ainda fornecia as provas necessárias para que se prendessem outros. O sistema político e econômico soviético também estava obcecado por resultados (cumprir planos
e metas), e as confissões eram a "prova" concreta de um interrogatório bem-sucedido. Nas palavras de Conquest, "estabelecera-se o princípio de que uma confissão
seria o melhor resultado alcançável. Quem conseguia obtê-la era considerado um agente de sucesso, e na NKVD os agentes de mau desempenho tinham expectativa de vida
reduzida".
Quaisquer que tenham sido os motivos da fixação da NKVD nas confissões, os interrogadores da polícia não costumavam buscá-las nem com a obstinação demonstrada no
caso dos "espiões polacos", nem tampouco com o desinteresse exibido com relação a Thomas Sgovio. Em geral, os presos vivenciavam uma mistura das duas atitudes extremas.
De um lado, a NKVD exigia que confessassem e incriminassem a si e a outros. De outro lado, ela parecia ter uma desleixada falta de interesse pelo desfecho do processo.
Esse sistema um tanto surreal já estava estabelecido na década de 1920, nos anos anteriores ao Grande Terror, e continuou presente muito tempo depois que esse último
amainara. Já em 1931, o policial que investigou Vladimir Tchernavin (cientista acusado de "destruição" e sabotagem) o ameaçou de morte caso não confessasse. Em outro
momento, disse-lhe que pegaria uma pena mais "leve" nos campos se confessasse. No fim das contas, até implorou a Tchernavin que apresentasse uma confissão falsa.
Rogando-lhe, disse: "Muitas vezes, nós, os investigadores, também somos obrigados a mentir; também dizemos coisas que não podem ser registradas e que nunca autenticaríamos".
Quando o desfecho tinha mais importância para a NKVD, recorria-se à tortura. No período anterior a 1937, os espancamentos parecem ter sido proibidos. Um ex-funcionário
do Gulag confirma que eles com certeza eram ilegais na primeira metade da década de 1930. Mas, conforme aumentou a pressão para fazer membros destacados do Partido
confessarem, passou-se a utilizar a tortura física, provavelmente em 1937 (embora ela tenha voltado a ser banida em 1939). O líder soviético Nikita Khrutchev reconheceria
publicamente isso em 1956:
Como é possível que uma pessoa confesse crimes que não cometeu? Só há um jeito: aplicando métodos físicos de pressão - torturas -levando a pessoa a um estado de
inconsciência, privando-a de raciocínio, tirando-lhe a dignidade humana. Era dessa maneira que se obtinham "confissões".
No período do Grande Terror, o uso da tortura se tornou tão disseminado (e despertou dúvidas tão freqüentes) que, no começo de 1939, o próprio Stalin mandou memorando
aos chefes regionais da NKVD, confirmando que, "a partir de 1937, o uso da pressão física [sobre os presos] foi autorizado pelo Comitê Central no âmbito da NKVD".
Stalin explicava que tal uso era permitido
apenas com referência a inimigos manifestos do povo que se aproveitam dos métodos humanos de interrogatório para negar-se desavergonhadamente a denunciar conspiradores;
que não depõem durante meses e tentam impedir o desmascaramento dos conspiradores ainda à solta.
Prosseguia dizendo que considerava a pressão física "um método absolutamente correto e humano", embora reconhecesse que de quando em quando a tivessem aplicado para
"encarcerar acidentalmente pessoas honestas". O que esse memorando tristemente célebre deixa claro é que Stalin sabia quais métodos haviam sido usados durante os
interrogatórios e os autorizara pessoalmente.
Por certo é verdade que, nesse período, inúmeros presos relatam ter sido chutados e espancados, ficando com o rosto arrebentado e órgãos rompidos. Evgenii Gnedin
descreve como foi golpeado na cabeça por dois homens ao mesmo tempo, um à esquerda e o outro à direita, e depois espancado com um cassetete de borracha. Isso ocorreu
no gabinete particular de Beria, em sua presença, na prisão Sukhanovka. A NKVD também empregava métodos de tortura conhecidos de outras polícias secretas em outras
eras, como acertar o estômago com sacos de areia, quebrar mãos ou pés ou amarrar os braços e as pernas às costas e suspender a vítima no ar. Um dos relatos de tortura
mais nauseantes foi escrito pelo diretor teatral Vsevelod Meyerhold, cuja queixa formal, uma carta, ainda consta de seu prontuário.
Os investigadores começaram a usar da força comigo, um enfermo de 65 anos. Fizeram-me deitar de rosto e golpearam-me nas solas dos pés e na espinha com uma correia
de borracha. Sentaram-me numa cadeira e me bateram mais nos pés, com força considerável [...]. Nos dias seguintes, quando aquelas partes de minhas pernas estavam
cobertas por grandes hematomas, eles tornaram a bater com a correia de borracha nas feridas, que estavam rubras, azuladas e amareladas; a dor era tão intensa que
senti como se água fervente estivesse sendo derramada nessas áreas sensíveis. Urrei e chorei de dor. Bateram em minhas costas com a mesma correia de borracha e me
esmurraram na cara, deixando que seus punhos se abatessem de bem alto [...].
Em certa altura, eu tremia de modo tão incontrolável que o guarda que me escoltava à saída do interrogatório perguntou: "Você sofre de maleita?" Quando me deitei
e adormeci no catre, após dezoito horas de interrogatório, só para voltar a ele dali a uma hora, fui acordado por meus próprios gemidos e espasmos, como um paciente
em estágio terminal de febre tifóide.
Embora esse tipo de espancamento viesse a ser oficialmente proibido em 1939, a mudança de política não fez necessariamente que o processo de investigação se tornasse
mais humano. Durante todos os anos 1920, 30 e 40, muitas centenas de milhares de presos foram torturadas não com espancamentos, nem com agressões, mas com o tipo
de suplício psicológico a que Abakumov alude no memorando de 1947 a Stalin. Quem teimava em não confessar podia, por exemplo, ser aos poucos privado de confortos
- primeiro as caminhadas, em seguida as remessas ou os livros, depois a comida. Podia ser colocado numa cela punitiva particularmente escabrosa, muito quente ou
muito gelada. Foi o caso do memorialista Hava Volovich, o qual seu interrogador também privava de sono:
Nunca esquecerei aquele primeiro gosto do frio na prisão. Não sou capaz de descrevê-lo; não consigo fazê-lo. O sono me empurrava numa direção; o frio, em outra.
Eu me levantava de um pulo e corria pela cela, adormecendo em pé e caindo de novo na cama, onde o frio logo me obrigava a levantar de novo.
Outros eram acareados com "testemunhas", como aconteceu a Evgeniya Ginzburg, que assistiu enquanto sua amiga de infância Nalya "dizia falas decoradas, feito um papagaio",
acusando-a de pertencer ao movimento secreto trotskista. Outros ainda viam as famílias serem ameaçadas; ou, após longos períodos de solitária, eram colocados em
celas com informantes, aos quais ficavam mais do que satisfeitos em desabafar. Mulheres eram violadas ou ameaçadas de estupro. Uma memorialista polonesa contaria
a seguinte história:
De súbito, sem motivo aparente, meu interrogador ficou muitíssimo insinuante. Levantou-se da escrivaninha e veio sentar-se a meu lado no sofá. Fiquei em pé e fui
tomar água. Ele me seguiu e se pôs atrás de mim. Habilmente, escapei e voltei para o sofá. Ele veio sentar-se comigo outra vez. E outra vez me levantei e fui beber
água. Esse tipo de manobra se prolongou por algumas horas. Senti-me humilhada e indefesa.
Também havia formas de tortura física menos diretas que os espancamentos; a partir dos anos 1920, foram usadas regularmente. Desde logo, Tchernavin foi submetido,
ainda que por pouco tempo, ao "teste vertical" (mandava-se que o preso permanecesse de pé, voltado para a parede, sem se mexer). Alguns de seus companheiros de cela
sofreram mais:
Um, o gravurista E, corpulento, com mais de cinqüenta anos de idade, ficara em pé por seis dias e meio. Não lhe deram nada para comer nem beber, e não permitiram
que dormisse; fora levado ao sanitário só uma vez por dia. Mas ele não "confessou". Depois dessa provação, não conseguiu caminhar para a cela, e o guarda teve de
arrastá-lo escada acima [...]. Outro, o artesão B., de uns 35 anos, que tivera a perna amputada acima do joelho e substituída por um membro artificial, ficou em
pé quatro dias e não "confessou".
Entretanto, o mais comum era simplesmente privar a pessoa de sono. Essa modalidade de tortura enganadoramente simples cujo emprego parece não ter necessitado de
nenhum tipo de autorização prévia era conhecida dos presos como "a esteira rolante" e podia estender-se por muitos dias ou até semanas. O método era prosaico: interrogavam
o preso a noite inteira e depois o proibiam de dormir durante o dia. Era acordado pelos guardas o tempo todo e ameaçado com a cela punitiva ou coisa pior se não
conseguisse ficar desperto. Uma das melhores descrições da esteira rolante, e de seus efeitos físicos, foi fornecida por Alexander Dolgun, o preso americano do Gulag.
Durante seu primeiro mês na Lefortovo, viu-se praticamente privado de sono, podendo dormir só uma hora, ou menos, por dia. "Em retrospecto, parece que uma hora era
muito; talvez tenham sido não mais que alguns minutos por noite." O resultado foi que sua cabeça começou a pregar-lhe peças:
Havia períodos em que, de repente, eu me dava conta de que não lembrava nada do que ocorrera nos minutos anteriores [...]. Brancos totais [...].
Depois, é claro, comecei a tentar dormir em pé, para ver se meu corpo conseguia aprender a manter-se ereto. Achei que, se isso desse certo, eu talvez pudesse escapar
à vigilância nas celas alguns minutos de cada vez, porque, pela viseira da porta, o guarda não acharia que eu estava dormindo se eu permanecesse em pé.
E assim eu ia levando, afanando dez minutos aqui, meia hora ali, às vezes um pouco mais se Sidorov desse a coisa por encerrada antes das seis da manhã e os guardas
me deixassem em paz até o toque de alvorada. Mas era muito pouco e tarde demais. Sentia que estava decaindo, ficando menos alerta e menos disciplinado a cada dia.
Tinha quase mais medo de ficar doido - não, tinha mesmo mais medo disso - do que de morrer.
Por muitos meses, Dolgun não confessou, um fato que lhe deu algo de que orgulhar-se pelo resto de seu encarceramento. Mas, muitos meses depois, quando o trouxeram
de volta a Moscou de um campo na cidade cazaque de Dzhezkazgan e tornaram a espancá-lo, ele assinou uma confissão, pensando: "Que diabo! Eles já me pegaram mesmo.
Por que foi que não fiz isso muito tempo atrás e evitei todo aquele sofrimento?"
E, por quê? Era uma pergunta que muitos se faziam, com respostas variadas. Alguns - ao que parece, uma porcentagem particularmente alta dos memorialistas - não confessavam
ou por princípio, ou pela crença equivocada de que, assim, evitariam a condenação. "Prefiro morrer a difamar meu nome", dizia o general Gorbatov a seu interrogador,
mesmo quando estava sendo torturado (o general não específica que tipo de tortura).
E, corno assinalam Soljenitsin, Gorbatov e outros, muitos acreditavam que uma confissão ridiculamente longa criaria um clima de absurdo tal que nem mesmo a NKVD
poderia deixar de notar. Gorbatov escreveu de seus companheiros de prisão:
Eles me davam a impressão de ser pessoas cultas e sérias. Por isso, fiquei ainda mais horrorizado ao saber que, durante seus respectivos interrogatórios, cada um
deles escrevera puro lixo, confessando crimes imaginários e incriminando outras pessoas [...]. Alguns tinham até a estranha teoria de que, quanto mais pessoas fossem
presas, mais cedo se perceberia que tudo aquilo era absurdo e prejudicial ao Partido.
Mas nem todo mundo achava que se deveria censurar tais pessoas. Lev Razgon, em suas memórias, responde a Gorbatov, a quem chama de "arrogante e imoral":
É errado transferir a culpa dos torturadores para as vítimas. Gorbatov teve sorte, e só. O interrogador dele ou era preguiçoso, ou não recebera ordens explícitas
para "pressionar" o interrogado. Os médicos, psicólogos e psiquiatras ainda não pesquisaram o suficiente para poder afirmar se a tortura consegue fazer um indivíduo
prestar falso testemunho contra si mesmo. No entanto, o século XX forneceu enorme quantidade de demonstrações disso. É claro que ela consegue.
Em retrospecto, também há opiniões muito variadas sobre se se negar a confessar realmente tinha importância. Susanna Pechora, interrogada durante mais de um ano
no começo dos anos 1950 - era membro de um minúsculo grupo de jovens que, quixotescamente, fora fundado para resistir a Stalin -, diria depois que "agüentar" não
valeu a pena. Para ela, recusar-se a confessar simplesmente prolongava o interrogatório. Ao fim e ao cabo, a maioria era condenada do mesmo jeito.
Todavia, o conteúdo do prontuário de Thomas Sgovio mostra claramente que decisões posteriores (sobre soltura antecipada, anistia etc.) eram de fato tomadas com base
no que constava do dossiê do preso, aí incluída a confissão. Em outras palavras, se a pessoa conseguira resistir, tinha uma chance muito pequena, ínfima mesmo, de
conseguir uma revisão positiva da sentença. Até os anos 1950, todos esses procedimentos judiciais, não importando quão surreais, eram levados bem a sério.
No final das contas, a maior importância do interrogatório estava na marca psicológica que ele deixava nos presos. Mesmo antes de se submeterem às longas viagens
para o leste, mesmo antes de chegarem a seus primeiros campos, eles já haviam, em alguma medida, sido "preparados" para a nova vida de trabalhador escravo. Já sabiam
que não tinham nenhum direito humano, nenhuma prerrogativa de receber um julgamento ou mesmo uma audiência justos. Já sabiam que o poder da NKVD era absoluto e que
o Estado podia fazer com eles o que bem entendesse. Se haviam confessado um crime que não cometeram, já se tinham em mais baixa conta. Mas, mesmo que não houvessem
confessado, já lhes fora roubado todo resquício de esperança, de convicção de que a injustiça de seu encarceramento seria logo desfeita.
8. A CADEIA
Uma cigana leu nas cartas... Uma estrada distante,
Uma estrada distante... E uma cadeia.
Talvez a velha cadeia central
Aguarde-me, moço outra vez...
Tradicional canção de cadeia na Rússia
A detenção e o interrogatório desgastavam os presos; os aturdiam para que se submetessem; os confundiam e desorientavam. Mas o próprio sistema das cadeias soviéticas,
onde se mantinham os presos antes, durante e com freqüência muito tempo após o interrogatório, também exercia enorme influência sobre o estado de espírito deles.
Num contexto internacional, não havia nada de excepcionalmente cruel nas prisões ou no regime prisional da URSS. Os cárceres soviéticos eram com certeza mais duros
que a maioria das prisões ocidentais e mais duros que as prisões czaristas. Por outro lado, na China ou em outras partes do Terceiro Mundo em meados do século XX,
as cadeias também eram extremamente desagradáveis. Todavia, componentes da vida prisional soviética continuaram sendo específicos da URSS. Alguns aspectos do cotidiano
dos cárceres, como o próprio processo de interrogatório, até parecem ter sido concebidos já pensando em preparar os presos para sua nova vida no Gulag.
Por certo, as atitudes oficiais para com as prisões refletiam mudanças nas prioridades de quem dirigia os campos de concentração. Em agosto de 1935, por exemplo,
justamente quando começavam a multiplicar-se as detenções de presos políticos, Genrikh Yagoda emitiu uma ordem que deixava claro que o "sentido" mais importante
de uma captura - se é que se pode dizer que aquelas detenções tinham algum "sentido" na acepção normal da palavra - era o de alimentar a demanda cada vez mais frenética
de confissões. A ordem de Yagoda colocava diretamente nas mãos dos homens da NKVD que investigavam os casos não apenas os "privilégios" dos presos, mas também as
mais elementares condições de vida desses últimos. Desde que o preso colaborasse (o que em geral significava confessar), ele ficaria autorizado a receber cartas,
remessas de comida, jornais, livros e visitas mensais de familiares e ter uma hora de exercícios por dia. Se não colaborasse, podia ser privado de todas essas coisas
e ainda perder a ração de comida.
Em contraste, em 1942 - três anos depois que Lavrenty Beria assumiu, prometendo transformar o Gulag numa máquina econômica eficiente -, as prioridades de Moscou
já haviam mudado. Os campos se tornavam importante fator na produção bélica, e os comandantes haviam começado a reclamar do grande número de presos que chegavam
sem nenhuma condição de trabalhar. Famintos, imundos e privados de exercício, eles simplesmente não conseguiam extrair carvão nem cortar árvores no ritmo necessário.
Por conseguinte, Beria estabeleceu novos procedimentos de interrogatório em maio daquele ano, exigindo que os diretores das carceragens respeitassem "as mínimas
condições de saúde" e restringissem o controle dos interrogadores sobre o dia-a-dia dos presos.
Conforme a nova ordem de Beria, os detentos fariam uma caminhada diária de "não menos que uma hora" - com a notável exceção daqueles que aguardavam o cumprimento
da pena de morte, cuja qualidade de vida não importava muito para as cifras de produção da NKVD. Os administradores prisionais também deviam assegurar-se de que
seus estabelecimentos possuíssem um pátio concebido especialmente para aquele propósito: "Nem um único preso permanecerá nas celas durante tais caminhadas [...]
os presos fracos e idosos devem ser auxiliados por seus companheiros de cela". Aos carcereiros se ordenava que garantissem que os detentos (menos aqueles diretamente
em interrogatório) tivessem oito horas de sono; que aqueles com diarréia recebem vitaminas extras e comida melhor; e que os parashi (os baldes que serviam de sanitário
nas celas) fossem consertados caso vazassem. Esse último tópico era considerado tão crucial que até se especificava o tamanho de um parasha: nas celas masculinas,
deviam ter de 55 a sessenta centímetros de altura; nas femininas, de trinta a 35 - e, para cada pessoa na cela, o balde deveria oferecer um volume de 750 mililitros.
Apesar desses regulamentos absurdamente específicos, os cárceres continuaram a diferir muitíssimo uns dos outros. Em parte, isso se devia às localizações. Gomo regra
geral, as prisões de província eram mais sujas e mais lenientes; as de Moscou, mais limpas e mais mortíferas. Entretanto, mesmo as três principais carceragens moscovitas
tinham caráter ligeiramente distinto. A infame Lubyanka, que ainda domina uma praça no centro da capital - e ainda serve de sede da FSB, a sucessora da NKVD, da
MGB e da KGB -, era usada para receber e interrogar os presos políticos cujos crimes eram considerados mais sérios. Havia relativamente poucas celas - um documento
de 1936 fala em 118 -, e 94 delas eram muito pequenas, podendo abrigar de um a quatro detentos. Na Lubyanka, antes o prédio de escritórios de uma seguradora, algumas
das celas tinham parquete, que os presos eram obrigados a lavar todos os dias. Anna Mikhailovna Garaseva, anarquista que depois seria secretária de Soljenitsin,
ficou presa na Lubyanka em 1926; ela recordaria que a comida ainda era servida por garçonetes uniformizadas.
Em contraste, a Lefortovo, também usada para interrogatório, fora uma prisão militar no século XIX. Suas celas, que nunca se destinaram a receber grande número de
presos, eram mais escuras, mais sujas e mais apinhadas. A Lefortovo tem o formato de um K, e no centro do conjunto, segundo o memorialista Dmitri Panin, "um auxiliar
se mantém em pé, de bandeira de sinalização na mão, orientando o fluxo de presos que entram e saem de interrogatório". No final dos anos 1930, a Lefortovo ficou
tão superlotada que a NKVD abriu um "anexo" no mosteiro Sukhanovsky, fora de Moscou. Oficialmente denominado "Objeto 110", e conhecido dos presos como "Sukhanovka",
o anexo ganhou fama apavorante por causa da tortura: "Não havia regulamento interno, nem tampouco normas de conduta para os investigadores". O próprio Beria tinha
um gabinete ali e supervisionava pessoalmente sessões de tortura.
A Butyrka, a mais antiga das três prisões, fora construída no século XVIII para ser um palácio, embora logo a tivessem transformado em cárcere. Entre seus detentos
oitocentistas célebres, estava Feliks Dzerzhinsky, junto com outros revolucionários poloneses e russos. Em geral utilizada para acomodar presos cujo interrogatório
terminava e que aguardavam traslado para os campos, a Butyrka também era apinhada e suja, mas mais leniente. Anna Garaseva lembra que, se na Lubyanka os guardas
obrigavam os presos a "exercitar-se" caminhando num círculo fechado, "na Butyrka a gente podia fazer o que quisesse". Anna, assim como outros, também menciona a
excelente biblioteca, cujo acervo se constituíra graças a gerações de presos, os quais deixavam os livros quando eram transferidos.
As prisões também diferiam de um período a outro. No começo da década de 1930, grande número de presos era condenado a meses ou até anos de isolamento celular. Para
manter a sanidade durante dezesseis meses de solitária, o russo Boris Chetverikov lavava as roupas, o piso e as paredes - e entoava todas as canções e árias de ópera
que conhecia. O americano Alexander Dolgun também foi mantido em solitária durante seu interrogatório; a fim de não enlouquecer, ele andava: contou os passos na
cela, calculou quantos dariam um quilômetro e começou a "caminhar", atravessando primeiro Moscou, até a embaixada dos Estados Unidos - "eu respirava aquele ar límpido,
frio e imaginário e me encolhia no casaco" -, depois a Europa e por fim o Atlântico, de volta para casa.
Evgeniya Ginzburg passou quase dois anos na prisão de isolamento celular de Yaroslavl, na Rússia central, a maior parte do tempo totalmente sozinha: "Até hoje, se
fecho os olhos, consigo ver cada calombo e risco naquelas paredes, pintadas até meia altura na cor favorita da prisão, um castanho-avermelhado, e dali para cima
num branco encardido". Entretanto, mesmo essa prisão "especial" começou a lotar, e Evgeniya ganhou uma companheira de cela. No final, a maioria dos tyurzeks (prisioneiros
de cela) foi transferida para os campos. Escreve Evgeniya: "Simplesmente não era factível manter tais multidões em celas por dez ou vinte anos; isso não se coadunava
com o ritmo e a economia da época".
Nos anos 1940, à medida que aumentava o número e a freqüência das capturas, tornava-se muito mais difícil isolar alguém, até presos novos, mesmo que por algumas
horas. Em 1947, Lev Finkelstein foi primeiro jogado numa vokzal (literalmente, "estação ferroviária"), uma "enorme cela comum onde os detentos ficam de início, sem
nenhuma comodidade. Eles aos poucos eram separados por grupos e mandados aos banhos e, depois, às celas". Na realidade, a superlotação atroz era experiência muito
mais comum que a solitária. Dois exemplos escolhidos ao acaso: a cadeia central de Arcangel, com capacidade para 740 presos, tinha entre 1.661 e 2.380 em 1941; a
de Kotlas, na Rússia setentrional, com capacidade para trezentos, abrigava até 460.
Em províncias mais distantes, os cárceres podiam ser piores. Em 1940, o de Stanislawwow, na recém-ocupada Polônia oriental, continha 1.700 pessoas, bem acima de
sua capacidade (472), e dispunha de apenas 150 jogos de roupa de cama. Em fevereiro de 1941, as cadeias da República Tártara (Tartarstão), com capacidade para 2.710
presos, continham 6.353. Em maio de 1942, as da República de Tashkent, na Ásia Central, com capacidade para 960, abrigavam 2.754." Esse apinhamento tinha efeito
particularmente severo sobre quem estava em interrogatório, cujas vidas inteiras eram submetidas a uma inquirição intensa e hostil todas as noites, e cujos dias
precisavam ainda se passar na companhia de outras pessoas. Um preso descreveu as conseqüências:
O processo inteiro de desintegração da personalidade ocorria à vista de todos na cela. Ali, um homem não conseguia esconder-se nem por um instante; até para evacuar,
tinha de usar o balde aberto, bem dentro do recinto. Quem queria chorar o fazia na frente de todo inundo, e a sensação de vergonha aumentava o tormento. Quem queria
matar-se - à noite, debaixo da coberta, tentando rasgar as veias do braço com os dentes - logo era descoberto por um dos insones da cela e impedido de terminar o
serviço.
Margarete Buber-Neumann também escreveu que a superlotação fazia as detentas voltarem-se umas contra as outras. Quando eram acordadas, às quatro e meia da manhã,
o efeito sobre nós era como se houvessem derrubado um formigueiro. Todo o mundo pegava suas coisas de higiene para, se possível, ser o primeiro, porque, é claro,
o sanitário nem de longe era suficiente para todas. No recinto onde nos lavávamos, havia cinco vasos e dez torneiras. Digo "vasos", mas, na realidade, eram cinco
buracos no chão, nada mais que isso. De imediato, formavam-se filas diante dos cinco buracos e das dez torneiras. Imagine ir ao sanitário de manhã com pelo menos
uma dúzia de pessoas observando e com outras esperando impacientes na fila, gritando e apressando você...
Talvez porque estivessem cientes do apinhamento, as autoridades prisionais se empenhavam muito em acabar com qualquer simulacro de solidariedade entre os presos.
Aquela ordem de Yagoda de 1935 já os proibia de conversar, gritar, cantar, escrever nas paredes, deixar marcas ou sinais em qualquer lugar da prisão, ficar em pé
às janelas ou tentar comunicar-se de toda e qualquer maneira com os ocupantes de outras celas. Quem violasse as regras podia ser castigado com a privação de exercício
ou correspondência ou com a ida para uma cela punitiva especialmente construída. O silêncio obrigatório é mencionado pelos encarcerados dos anos 1930 com freqüência:
"Ninguém falava alto, e algumas se faziam entender por meio de sinais", escreveu Margarete Buber-Neumann sobre a Butyrka, onde "os corpos semi-despidos da maioria
das mulheres tinham um tom peculiar, cinza-azulado, devido ao longo confinamento sem luz e sem ar".
Em alguns cárceres, a lei do silêncio permaneceria absoluta até quando a década seguinte já estava bem adiantada; em outros, menos Um ex-preso escreve do "completo
silêncio" na Lubyanka em 1949; em comparação com isso, "a cela 106 da Butyrka parecia uma feira, depois que se tivesse ido a uma lojinha". Outro, numa prisão da
República Tártara, lembra que, quando os presos começavam a cochichar, "a portinhola pela qual se passava a comida era aberta com estrondo e alguém sibilava um Psiu!".
Muitos memorialistas também descreveriam como os guardas, ao transferir os presos de cela ou levá-los para interrogatório, agitavam as chaves, estalavam os dedos
ou faziam algum outro ruído, para alertar aqueles mais adiante no corredor. Caso se desse um encontro de presos ali, um era rapidamente levado por outro corredor,
ou colocado num cubículo especial. Certa vez, V. K. Yasnyi, antes tradutor de literatura espanhola, ficou duas horas num cubículo assim, de meio metro quadrado,
na Lubyanka. Tais espaços parecem ter sido muito utilizados: o porão da antiga sede da NKVD em Budapeste (hoje um museu) tem um desses cubículos. O objetivo era
evitar que os presos encontrassem outros que pudessem estar implicados no mesmo "caso", assim como mantê-los longe de irmãos ou outros familiares que estivessem
detidos.
O silêncio obrigatório tornava aflitiva até a caminhada para as salas de interrogatório. Alexander Dolgun se recorda de ter andado pelos corredores atapetados da
Lubyanka:
Enquanto nos movíamos, o único som era o estalar da língua do guarda [...] todas aquelas portas de metal eram cinza-naval, e se revelava opressivo e desanimador
o efeito da penumbra, do silêncio e das portas cinzentas, que se repetiam pelo corredor até se fundirem às sombras.
A fim de impedir que presos de uma cela soubessem os sobrenomes daqueles em outras, eles eram chamados, para interrogatório ou transferência, não pelo nome, mas
por uma letra. O guarda gritava "G!", por exemplo, e todos os presos cujo sobrenome começava por essa letra se punham de pé e diziam o primeiro nome e o patronímico.
Mantinha-se a ordem - tal qual se faz na maioria das prisões -pela rígida regulação do cotidiano. Zayara Vesyolaya, filha de um famoso escritor russo que se tornara
"inimigo do povo", descreveu em suas memórias um dia típico na Lubyanka. Ele começava com a opravka, a ida ao sanitário. "Preparem-se para o sanitário!", berravam
os guardas, e as mulheres se alinhavam em silêncio, aos pares. Quando chegavam ao sanitário, tinham cerca de dez minutos - não apenas para fazer suas necessidades,
mas também para lavarem a si mesmas e às roupas que pudessem. À opravka seguia-se o desjejum: água quente, talvez com algo semelhante a chá ou café, mais a ração
diária de pão e dois ou três torrões de açúcar. Após o desjejum, vinha um guarda, que recebia as solicitações das que queriam ver o médico; depois, a "atividade
central do dia", uma caminhada de vinte minutos num "pequeno pátio fechado andando em círculos e em fila única junto ao muro". Só uma vez se perturbou essa ordem.
Certa noite, embora nunca lhe tenham contado por quê, Zayara foi levada ao telhado da Lubyanka depois que as detentas já haviam sido mandadas dormir. Dado que a
Lubyanka fica no centro de Moscou, Zayara conseguia ver, se não a cidade, pelo menos as luzes da cidade - as quais, nas circunstâncias, bem podiam ser de outro país.
Normalmente, o resto do dia era uma repetição: no almoço, sopa de cadeia, feita de vísceras, cereal ou repolho podre; no jantar, o mesmo. A noite, havia outra ida
ao sanitário. Nesse meio-tempo, as detentas sussurravam umas para as outras, ficavam sentadas nos catres e às vezes liam livros. Zayara recorda que lhe permitiam
um livro por semana, mas as regras variavam de prisão para prisão, assim como a qualidade das bibliotecas, que, como já se disse, às vezes eram excelentes. Em alguns
cárceres, os presos estavam autorizados a adquirir comestíveis do "comissário" quando os parentes lhes mandavam dinheiro.
Mas havia outras torturas além do tédio e da comida ruim. Todos os presos, e não apenas aqueles em processo de interrogatório, ficavam proibidos de dormir durante
o dia. Os carcereiros mantinham vigilância constante, espiando pelo "buraco de Judas" (a viseira na porta da cela) para garantir que se cumprisse a norma. Lyubov
Bershadskaya lembra que, "embora nos acordassem às seis, não nos permitiam sequer sentar na cama até as onze da noite. Tínhamos ou de ficar em pé, ou de sentar na
baqueta, sem poder encostar na parede".
A noite não era melhor. O sono era dificultado, quando não impossibilitado, pelas lâmpadas fortes das celas, que nunca se apagavam, e pela regra que proibia os presos
de dormir com as mãos debaixo da coberta. Zayara Vesyolaya começava tentando obedecer: "Era uma coisa canhestra e desconfortável, e ficava difícil pegar no sono
[...] mas, tão logo cochilava, eu instintivamente puxava o cobertor para o queixo. A chave rangia na fechadura, e o guarda vinha sacudir minha cama: 'As mãos!'"
Margarete Buber-Neumann escreveu que, "até a pessoa se acostumar, a noite era pior que o dia. Tente dormir à noite debaixo de lâmpadas fortes - as detentas estavam
proibidas de cobrir o rosto -, em pranchas nuas sem nem mesmo um travesseiro ou um saco de palha, talvez "até sem cobertor, espremida de ambos os lados contra as
outras detentas".
Talvez a ferramenta mais eficaz para impedir que os presos ficassem muito à vontade fosse a presença de informantes - que podiam ser igualmente encontrados em todas
as esferas da vida soviética. Eles também desempenhavam papel importante nos campos de concentração, mas ali era menos difícil evitá-los. Na cadeia, não se conseguia
fugir tão facilmente deles, o que obrigava as pessoas a medirem bem as palavras. Margarete Buber-Neumann recordaria que, com um única exceção, "nunca ouvi nenhuma
crítica ao regime soviético durante todo o tempo que fiquei na Butyrka".
Entre os presos, o consenso era de que havia no mínimo um informante por cela. Quando duas pessoas dividiam cela, uma desconfiava da outra. Em celas maiores, o informante
era freqüentemente identificado e evitado pelos outros detentos. Quando Olga Adamova-Sliozberg chegou à Butyrka, notou que, junto à janela, tinham deixado livre
um espaço de dormir. Disseram-lhe que poderia ficar com ele, mas que "a vizinhança não era das melhores". Revelou-se que a mulher que dormia sem ninguém perto dela
era uma informante, a qual ficava o tempo inteiro "escrevendo declarações que denunciavam todos na cela", e por isso ninguém falava com ela.
Nem todos os informantes eram tão fáceis de identificar, e a paranóia era tão grande que qualquer comportamento diferente já despertava hostilidade. A própria Olga
Adamova-Sliozberg achava que uma de suas companheiras de cela era com certeza espiã, tendo visto "a esponja com cara de artigo importado com que se lavava e a lingerie
rendada que usava". Depois, passou a considerar a mulher uma amiga. O escritor Variam Shalamov também escreveu que ser transferido de cela "não é experiência muito
agradável. Os novos companheiros de cela sempre ficam com um pé atrás e desconfiam que o preso transferido seja informante"
Não há dúvida de que o sistema era rígido, inflexível e desumano. Mas ainda assim... Quando podiam, os presos reagiam, contra o tédio, contra as pequenas humilhações
constantes, contra as tentativas de dividi-los e isolá-los. Mais de um ex-preso escreveu que a solidariedade entre eles era maior nas cadeias do que seria depois,
nos campos de concentração. Tão logo os presos chegavam aos campos, as autoridades podiam com muito mais facilidade dividir para reinar. A fim de fazer que os presos
se estranhassem, elas os tentavam prometendo posição mais cômoda na hierarquia do campo, comida melhor ou trabalho menos pesado.
Nas carceragens, em contraste, todos eram mais ou menos iguais. Embora houvesse incentivos para que colaborassem, estes eram menos numerosos. Para muitos presos,
os dias ou meses passados numa cela, antes do traslado, até constituíam uma espécie de curso de introdução a técnicas elementares de sobrevivência - e, apesar de
todo o empenho dos administradores, a primeira experiência deles de união contra a autoridade.
Alguns detentos simplesmente aprendiam com outros as maneiras básicas de conservar a higiene e a dignidade. Na cadeia, Inna Shikheeva-Gaister aprendeu a usar pão
mastigado para fazer botões que lhe segurassem as roupas, a confeccionar agulhas de costura com espinhas de peixe, a usar fios soltos para remendar os rasgos feitos
em suas vestes durante a revista; adquiriu ainda muitas outras habilidades que se mostrariam igualmente úteis nos campos. Dmitrii Bystrolev (ex-espião soviético
no Ocidente) descobriu como fazer "linha" com meias velhas: desmanchavam-se estas, e aguçavam-se as pontas dos fios com sabão. No campo, tal linha - assim como as
agulhas que Bystrolev aprendeu a fazer com fósforos - podia depois ser negociada por comida. Ensinaram Susanna Pechora, a jovem anti-stalinista, "a dormir sem que
percebessem, a costurar com palitos de fósforo e a andar sem cinto".
Os presos também preservavam algum controle sobre suas vidas graças à instituição do starosta, o líder de cela. Por um lado, nas cadeias, nos vagões e nos alojamentos
dos campos, o starosta era figura oficialmente reconhecida, com atribuições descritas em documentos oficiais. Por outro lado, suas muitas obrigações - que iam de
manter a cela limpa a garantir a ordem nas filas para o sanitário - acarretavam que a autoridade dele fosse aceita por todos. Por isso, os informantes e outros
favorecidos pelos carcereiros não eram necessariamente os melhores candidatos a starosta. Alexander Weissberg escreveria que, nas celas maiores, onde podia haver
duzentos ou mais presos, "a vida normal não era possível sem um responsável que organizasse a distribuição de comida, as disposições para os exercícios etc". Contudo,
já que a polícia secreta se negava a reconhecer toda e qualquer organização de presos - "a lógica era simples: uma organização de contra-revolucionários era uma
organização de contra-revolucionários" -, encontrou-se uma clássica solução soviética, segundo Weissberg: o starosta era eleito "ilegalmente" pelos presos; o diretor
da prisão ficava sabendo disso pelos informantes e então nomeava oficialmente o escolhido dos detentos.
Nas celas mais apinhadas, a principal função do starosta era receber os novos presos e assegurar que todos tivessem onde dormir. De maneira quase universal, mandava-se
que os detentos recém-chegados fossem dormir ao lado do parasha, o balde sanitário; depois, à medida que ganhavam tempo de cela, eles iam avançando dali para as
janelas. "Não se abre nenhuma exceção para os enfermos nem para os idosos", observou Elinor Lipper. O starosta também resolvia brigas e, em geral, mantinha a ordem
na cela, tarefa que estava longe de ser fácil. O detento polonês Kazimierz Zarod lembraria que, quando serviu como starosta, "os guardas me ameaçavam o tempo todo
com punições se eu não exercesse algum tipo de controle sobre os indisciplinados, em especial após as nove da noite; havia urna lei do silêncio depois do 'toque
de recolher'". Zarod acabou indo para uma cela punitiva por não ter conseguido manter a ordem. Mas, por outros relatos, tem-se a impressão de que as decisões do
starosta costumavam ser respeitadas.
Sem dúvida, os presos aplicavam a máxima engenhosidade para superar a regra mais severa: a estrita proibição de comunicarem-se, tanto entre as celas quanto com o
mundo lá fora. A despeito da séria ameaça de punição, eles deixavam recados para outros presos no sanitário ou arremessavam mensagens por cima dos muros. Lev Finkelstein
tentou jogar um pedaço de carne, um tomate e um pedaço de pão para outra cela: "quando nos levavam ao sanitário, eu procurei abrir a janela e passar a comida por
ali". Foi pego e posto numa cela punitiva. Presos subornavam guardas para que estes levassem mensagens, embora às vezes o fizessem por iniciativa própria. De vez
em quando, um carcereiro da prisão de Stravropol transmitia recados verbais à mulher de Lev Razgon.
Num testemunho apresentado ao governo polonês no exílio, um ex-detento, encarcerado catorze meses em Vilna depois que os soviéticos ocuparam essa cidade (antes sob
domínio da Polônia), descreveu como os componentes do sistema prisional anterior haviam aos poucos se dissolvido. Os presos foram perdendo seus "privilégios" um
a um: o direito de receber e mandar cartas, o uso da biblioteca da prisão, a posse de papel e lápis, o recebimento de remessas. Introduziram-se novos regulamentos,
do tipo comum à maioria das prisões soviéticas: as luzes tinham de ficar acesas nas celas a noite toda, e as janelas, tapadas por fora com folha-de-flandres. De
modo imprevisto, essa última medida criou uma oportunidade para comunicação entre as celas:
Eu abria a janela e, pondo a cabeça contra as grades, falava com meus vizinhos. Mesmo que a sentinela no pátio ouvisse a conversa, não conseguiria saber de onde
vinha a voz, pois, graças à folha-de-flandres, era impossível flagrar uma janela aberta.
Mas talvez a forma mais complexa de comunicação proibida fosse o "código Morse" dos presos, que se utilizavam das paredes ou dos encanamentos para "telegrafar".
O código fora concebido nos tempos czaristas - Variam Shalamov atribui sua autoria a um dos dezembristas. Elinor Olitskaya o aprendera com colegas social-revolucionários,
muito antes de 1924, quando foi aprisionada. A revolucionária russa Vera Figner já descrevera o código em suas memórias, que foi onde Evgeniya Ginzburg leu sobre
ele. Enquanto estava em fase de interrogatório, Evgeniya se recordou o suficiente para usá-lo na comunicação com uma cela vizinha. O código era relativamente simples;
o alfabeto cirílico se dispunha em cinco fileiras horizontais de seis letras:
Cada letra era então designada por um par de batidas, a primeira indicando a fileira, e a segunda, a posição na fileira:
1,1 1,2 1,3 1,4 1,5 1,6
2,1 2,2 2,3 2,4 2,5 2,6
3,1 3,2 3,3 3,4 3,5 3,6
4,1 4,2 4,3 4,4 4,5 4,6
5,1 5,2 5,3 5,4 5,5 5,6
Às vezes, mesmo quem não lera sobre o código nem o aprendera com outras pessoas acabava entendendo-o, pois havia métodos padronizados de ensiná-lo. Quem o conhecia
às vezes telegrafava o alfabeto, repetidamente, junto com uma ou duas perguntas simples, na esperança de que a pessoa que estava invisível do outro lado pegasse
o sentido. Foi assim que Alexander Dolgun aprendeu o código na Lefortovo, decorando-o com a ajuda de fósforos. Quando enfim conseguiu "falar" com um preso na cela
seguinte e entendeu que ele indagava "Quem é você?", sentiu "uma súbita torrente de puro amor por um homem que, havia três meses, perguntava quem eu era".
O código não esteve difundido em todos os períodos. Em 1949, Zayara Vesyolaya não conseguiu "achar ninguém que conhecesse o 'alfabeto da cadeia'" na Butyrka e inferiu
que a tradição só podia ter-se extinguido. Posteriormente, concluiu estar equivocada, tanto porque outros lhe contaram tê-lo usado na época quanto porque, certa
vez, um guarda irrompeu na cela quando ouviu som de batidas, querendo saber de onde vinha o ruído. Existiam variações. O escritor e poeta russo Anatolii Zhigulin
afirma ter inventado um código, também alfabético, que ele e um grupo de amigos (haviam sido todos detidos de uma vez só) utilizaram para comunicar-se durante o
inquérito.
Em determinados lugares e épocas, os métodos de auto-organização dos presos assumiam formas mais complexas. Uma delas é descrita no conto "Comitês dos Pobres", de
Variam Shalamov, e mencionada por outros. Suas origens se devem a uma norma injusta: em certa altura, no final dos anos 1930, as autoridades de repente resolveram
que presos submetidos a interrogatório não poderiam receber nenhuma remessa de seus familiares, com base na idéia de que até "dois pãezinhos franceses, cinco maçãs
e umas calças velhas já bastavam para levar qualquer comunicação à cadeia". Só se poderia mandar dinheiro, e apenas em quantias redondas, a fim de que as somas não
pudessem ser usadas para passar "mensagens". Entretanto, nem todas as famílias de presos enviariam dinheiro. Algumas eram demasiado pobres; outras, demasiado distantes;
e outras ainda podem até ter participado da delação dos parentes detidos. Isso tudo significava que, embora alguns presos tivessem acesso semanal ao comissário da
prisão - para adquirir manteiga, queijo, salsicha, fumo, pão branco, cigarros -, outros tinham de sobreviver apenas com a fraca dieta da cadeia e, o mais importante,
sentiam-se "deslocados no feriado geral" que era o "dia do comissário".
Para resolverem esse problema, os presos da Butyrka ressuscitaram um termo dos primeiros tempos da Revolução e organizaram "Comitês dos Pobres". Cada detento doava
10% de seu dinheiro ao comitê. Este, por sua vez, adquiria comestíveis para os presos que não tinham dinheiro nenhum. O sistema se manteve durante alguns anos, até
que as autoridades decidiram eliminar os comitês, prometendo a alguns presos "recompensas" de vários tipos se eles se negassem a participar. As celas, porém, reagiram,
condenando os refratários ao ostracismo dentro das próprias celas. E quem, pergunta Shalamov, "se arriscaria a colocar-se em oposição ao grupo inteiro, a pessoas
com as quais se está 24 horas por dia, onde apenas o sono pode salvar-nos da mirada hostil de nossos companheiros de cárcere?".
Curiosamente, esse conto é um dos poucos na extensa obra de Shalamov que termina em tom positivo: "À diferença do mundo 'livre' lá fora, ou dos campos de concentração,
a sociedade das celas está sempre unida. Nos comitês, ela encontrou uma maneira de afirmar o direito de todo homem a viver a própria vida".
Shalamov, um escritor tão pessimista, encontrara um fio de esperança nessa única forma organizada de solidariedade entre os presos. O trauma do traslado para os
campos, e o terror dos primeiros dias de perplexidade ali, logo destruía essa esperança.
9. TRANSLADO, CHEGADA, SELEÇÃO
Lembro-me do porto de Vanino
E do clamor do navio sombrio
Enquanto seguíamos pela prancha
Para o porão frio e escuro.
Os zeks sofriam com o balanço das águas,
O mar profundo uivava à volta deles...
E à frente se estendia Magadan,
A capital da terra de Kolyma.
Não brados, mas gemidos lastimáveis,
Saíram de cada peito
Quando disseram adeus à terra firme.
O navio jogava, forcejava, rangia...
Canção de presos soviéticos
Em 1827, a princesa Maria Volkonskaya, esposa do rebelde dezembrista Sergei Volkonsky, deixou a família, o filho e a vida segura em São Petersburgo para juntar-se
ao marido no degredo siberiano. O biógrafo da princesa descreveu a viagem, que, na época, foi considerada um sofrimento quase insuportável:
Dia após dia, o trenó avançava, célere, rumo ao horizonte infinito. Como se presa numa cápsula do tempo, Maria estava numa euforia febril. Havia um quê de irreal
na viagem, com a escassez de sono e de alimento. Parava apenas aqui e ali, para a troca de cavalos, e aí tomava um copo de chá quente com limão, feito no onipresente
samovar de bronze. A arrebatadora velocidade do trenó, puxado por três cavalos resfolegantes, ia devorando a galope aquelas distâncias ermas. "Em sempre! Em frente!",
gritavam os condutores, chispando enquanto grandes tufos de neves eram levantados pelos cascos dos cavalos e os sinos dos arreios tilintavam sem cessar, alertando
outros para a aproximação do veículo.
Mais de um século depois, a companheira de cela de Evgeniya Ginzburg leu uma descrição semelhante da viagem de uma aristocrata pelos Urais, e suspirou de inveja:
"E eu que sempre pensei que as mulheres dos dezembristas haviam encarado os sofrimentos mais atrozes..."
No século XX, nem cavalos nem trenós levavam presos com "arrebatadora velocidade" pela neve siberiana, e não havia chá quente com limão, feito em samovares de bronze,
para tomar nas escalas. A princesa Volkonskaya pode ter chorado durante sua jornada, mas os prisioneiros que vieram depois dela não podiam nem ouvir a palavra étap
- o jargão prisional para "traslado de presos" - sem sentir medo, até pavor. Toda viagem era um salto desolador no desconhecido, uma mudança para longe dos companheiros
e dos arranjos que tinham nas celas, com os quais, não importando quão ruins, já estavam acostumados. Pior: o processo de transferir presos dos cárceres para os
campos de trânsito e dali para os campos de concentração, ou de transferi-los de um campo para outro no sistema Gulag, era fisicamente acachapante e descaradamente
cruel. Em certo sentido, era o aspecto mais inexplicável da vida no Gulag.
Para aqueles que sofriam essa provação pela primeira vez, o fato era prenhe de simbolismo. A detenção e o interrogatório haviam sido uma iniciação no sistema, mas
a viagem de trem pela Rússia representava tanto uma ruptura geográfica com a vida pregressa quanto o começo de uma nova existência. As emoções sempre estavam à flor
da pele nas composições que saíam de Moscou e Leningrado, no rumo norte e leste. Thomas Sgovio, o americano que não conseguiu recuperar seu passaporte, recordaria
o que aconteceu quando partiu para Kolyma:
Nosso trem deixou Moscou na noite de 24 de junho. Era o começo de uma jornada para o leste que duraria um mês. Nunca conseguirei esquecer aquele momento. Setenta
homens [...] começaram a chorar.
Na maioria das vezes, viagens longas desse tipo se realizavam em etapas. Se os zeks estavam sendo mantidos em grandes prisões urbanas, eles eram primeiro levados
aos trens em caminhões cujo próprio desenho já apontava a obsessão de sigilo da NKVD. Do lado de fora, os "corvos pretos", como eram apelidados, pareciam ser
caminhões comuns para carga pesada, fechados. Nos anos 1930, tinham com freqüência a palavra PÃO pintada dos lados; depois, porém, usaram-se logros mais sofisticados.
Um preso, detido em 1948, lembraria ter viajado num caminhão com os dizeres COSTELETAS DE MOSCOU e em outro com a indicação HORTALIÇAS E FRUTAS.
Do lado de dentro, os caminhões às vezes se dividiam em "duas fileiras de minúsculas jaulas, asfixiantes e escuras como breu", na descrição de um preso. Outros
desses veículos, seguindo um desenho de 1951, simplesmente tinham dois longos bancos, nos quais os presos se espremiam. Os camponeses, e os desterrados no início
das deportações em massa dos Estados bálticos e da Polônia oriental, encaravam condições ainda mais rudes. Com freqüência, seguiam apinhados em caminhões comuns,
"como sardinhas", conforme me disse certa vez um lituano idoso: o primeiro preso sentava e abria as pernas, o segundo sentava entre elas e abria as suas próprias,
e assim por diante, até o caminhão lotar. Tais arranjos eram especialmente desconfortáveis quando era preciso ir pegando muita gente, e nesses casos a ida à estação
podia levar o dia inteiro. Em fevereiro de 1940, durante as deportações que ocorreram nos antigos territórios poloneses em pleno inverno, crianças morriam congeladas
antes mesmo de chegar aos trens, e adultos sofriam graves queimaduras provocadas pelo frio, das quais seus braços e pernas nunca se recuperavam.
Nas cidades de província, as normas de sigilo eram menos rigorosas, e os presos às vezes marchavam pelas localidades até a estação ferroviária, uma experiência que
freqüentemente lhes proporcionava o derradeiro vislumbre da vida civil - e que proporcionava aos civis um dos poucos vislumbres dos presos. Janusz Bardach rememoraria
a surpresa que sentiu ante a reação dos moradores de Petropavlovsk quando viram presos caminharem pelas ruas:
Ao redor, a maioria eram mulheres envoltas em xales e longos e pesados casacos de feltro. Para meu espanto, começaram a gritar com os guardas: "Fascistas... Assassinos...
Por que não vão lutar na frente de batalha?..." Aí, passaram a atirar bolas de neve neles. Dispararam-se vários tiros para o ar, e as mulheres recuaram uns bons
passos, mas continuaram a xingar e a nos seguir. Lançavam à coluna pacotes de comida, pães grandes, batatas e pedaços de toucinho. Uma mulher tirou o xale e o casaco
pesado e os deu a um homem que não tinha nenhum agasalho. Peguei um par de mitenes de lã.
Tais reações tinham muita tradição na Rússia: Dostoievski escreveu sobre as donas-de-casa que, nas festas natalinas, enviavam "pães finos da melhor farinha" para
os detentos das prisões czaristas. Nos anos 1940, porém, essas atitudes eram relativamente raras. Em muitos lugares - entre os quais Magadan era notória -, o espetáculo
de presos nas ruas era tão corriqueiro que não despertava reação alguma.
Fosse a pé, fosse de caminhão, os presos acabavam chegando à estação ferroviária. Às vezes, eram estações comuns; às vezes, eram especiais - "um pedaço de terra
cercado com arame farpado", na lembrança de Lev Finkelstein. Ele também recordaria que os presos se submetiam a uma série de rituais especiais antes de poderem embarcar:
Há uma longa coluna de prisioneiros. Você é contado, recontado e contado outra vez. O trem está lá [...] e então chega a ordem: "De joelhos!" O embarque é um momento
delicado: alguém pode começar a correr. Por isso, asseguram-se de que todos fiquem de joelhos. E é melhor você não se levantar, porque nessa hora eles são rápidos
no gatilho. Depois, fazem a contagem, põem as pessoas no vagão e as trancam. O trem nem se mexe - fica-se ali, em pé, horas a fio. Aí, de repente, "Estamos partindo!",
e começamos a nos mover.
Do lado de fora, os vagões pareciam absolutamente comuns - a não ser pelo fato de que eram mais bem protegidos que a maioria. Edward Buca, que fora aprisionado na
Polônia, observou seu vagão com o olhar cuidadoso de um homem que tinha esperança de escapar. Lembraria que "cada vagão estava envolto em muito arame farpado; do
lado de fora, havia plataformas de madeira para os guardas; tinham-se instalado lâmpadas elétricas no topo e na barriga de cada vagão; e as janelinhas exibiam grossas
barras de ferro". Mais tarde, Buca foi olhar embaixo do vagão para ver se havia espigões de ferro. Sim, havia. Finkelstein também se recorda de que, "toda manhã,
ouvia-se aquele martelar - os guardas tinham martelos de madeira e sempre ficavam batendo nos vagões, para garantir que ninguém tentasse fugir abrindo um buraco".
Muito raramente, faziam-se arranjos fora do habitual para presos especiais. Anna Larina, mulher do líder soviético Nikolai Bukharin, não viajou com outros presos;
foi colocada no compartimento dos guardas do trem. Contudo a imensa maioria dos presos e degredados viajava junta, num de dois tipos de trem. O primeiro eram os
Stolypinki, "vagões Stolypin" - batizados, ironicamente, com o nome . de um dos mais vigorosos e reformistas primeiros-ministros do czar, no inicio do século XX,
o qual teria introduzido esses carros. Eram vagões comuns que haviam sido adaptados para o traslado de presos. Podiam ser enfileirados numa enorme composição própria;
ou ser engatados, um ou dois de cada vez, a trens comuns. Um ex-passageiro os descreveu assim:
Um Slolypinka se assemelha a um vagão russo de terceira classe, excetuado o fato de que tem um monte de grades de ferro. As janelas, é claro, têm barras. Os compartimentos
individuais são separados por alambrados em vez de paredes, como gaiolas, e uma cerca comprida de ferro os aparta do corredor. Esse arranjo permite que os guardas
fiquem sempre de olho em todos os presos.
Os vagões Stolypin também eram apinhadíssimos:
Em cada um dos dois beliches de cima, deitavam-se dois homens, com os pés virados um para a cabeça do outro. Nos dois beliches do meio, havia sete, com as cabeças
voltadas para a porta e um atravessado aos pés dos outros. Sob cada um dos beliches inferiores, tinha-se um homem, com mais catorze empoleirados nos beliches e nas
trouxas de pertences amontoados no chão entre os beliches e a porta. A noite, todos aqueles ao rés-do-chão davam algum jeito de deitar-se um ao lado do outro:
Havia outra desvantagem, esta mais importante: dentro dos vagões Stolypin, os guardas tinham condições de vigiar os presos o tempo todo e, portanto, controlar o
que comiam, ouvir o que conversavam - e decidir quando e como podiam fazer suas necessidades. Praticamente todo memorialista que descreve os trens menciona os horrores
relacionados a elas. Uma, às vezes duas e às vezes nenhuma vez por dia, os guardas levavam presos ao sanitário, ou então paravam o trem para que os passageiros pudessem
descer:
O pior acontece quando, após um longo regateio com os guardas, deixam que saíamos dos vagões e todo o mundo procura um lugarzinho onde possa aliviar-se debaixo do
trem, sem se preocupar com a platéia que assiste de todos os lados.
Por mais constrangedoras que fossem essas paradas, os presos com distúrbios estomacais ou outros problemas de saúde estavam em muito pior situação, como recordariam:
Os que não conseguiam segurar-se sujavam, lamurientos, as próprias calças e freqüentemente os presos próximos a eles. Mesmo quando se compartilhavam os sofrimentos,
era difícil para alguns não odiarem os infelizes que faziam aquilo.
Por tal motivo, alguns presos realmente preferiam a outra forma de traslado prisional - os vagões de gado. Estes eram o que sugerem: vagões vazios, não necessariamente
equipados para seres humanos, às vezes dotados de beliches e às vezes aquecidos com um fogareiro no meio. Embora mais rudimentares que os vagões Stolypin, os de
gado não se dividiam em compartimentos, e havia mais espaço para movimentação. Também tinham "sanitários" (buracos no piso), mitigando a necessidade de precisar
implorar aos guardas.
Todavia, os vagões abertos também tinham seus tormentos específicos. Às vezes, por exemplo, os buracos no piso ficavam bloqueados. No trem de Buca, o buraco acabou
tapado pelo gelo. "Então o que fazíamos? Mijávamos por um fenda entre o piso e a parede e cagávamos num pedaço de pano, fazendo depois uma trouxinha e esperando
que o trem parasse em algum lugar e abrisse as portas, para que pudéssemos jogar aquilo fora." Nos trens cheios de deportados, em que adultos e crianças de ambos
os sexos eram jogados juntos, os buracos no piso criavam outros problemas. Uma degredada, desterrada como filha de kulak nos anos 1930, lembraria que as pessoas
ficavam "terrivelmente envergonhadas" por terem de urinar na frente umas das outras e era grata por poder fazê-lo escondida pelas saias da mãe.
Contudo o verdadeiro suplício não era a lotação, o sanitário nem o constrangimento. Era a falta de alimento - e, especialmente, de água. Às vezes, dependendo da
rota e do tipo de trem, servia-se comida quente aos presos. As vezes, não. Em geral, as "rações secas" para o traslado se constituíam unicamente de pão - o qual
era distribuído ou em pedaços pequenos, de trezentos gramas por dia, ou em quantidades maiores, de dois quilos mais ou menos, que deviam durar uma viagem de 34 dias.
Junto com o pão, os presos costumavam receber peixe seco - cujo resultado era deixá-los sedentos ao extremo. No entanto, era raro ganharem mais que uma caneca de
água por dia, mesmo no verão. Essa pratica predominava tanto que sempre emergem histórias da sede pavorosa experimentada pelos presos. "Uma vez, ficamos três dias
sem receber água, e, na véspera do ano-novo de 1939, em algum lugar perto do lago Baikal, tivemos de lamber o gelo preto que pendia dos vagões", escreveu um ex-zek.
Numa viagem de 28 dias, outra pessoa se lembra de terem-lhe dado água três vezes; de quando em quando, o trem parava "para retirarem os cadáveres".
Mesmo quem recebia aquela caneca diária sofria tormentos. Evgeniya Ginzburg recordaria a decisão excruciante a que tinham de chegar: tomar a caneca inteira de manhã
ou procurar poupar água.
"Quem bebericava de vez em quando e fazia a água durar o dia inteiro nunca tinha um instante de sossego. Pessoas ficavam de olho em nossas canecas o dia inteiro,
como gaviões." Isso, é claro, se os presos tinham canecas: até o fim da vida, uma prisioneira lembraria o momento trágico em que lhe roubaram o bule de chá que
ela conseguira levar consigo. O bule não deixava derramar a água, possibilitando que bebericasse pelo dia todo. Sem ele, não tinha onde guardar a água e foi supliciada
pela sede.
Piores eram as lembranças de Nina Gagen-Torn, que esteve num trem de traslado que, no meio do verão, permaneceu três dias parado nas imediações de Novossibirsk.
A cadeia onde os presos ficavam em trânsito na cidade estava lotada: "Era julho. Uma canícula. Os tetos dos vagões Stolypin começaram a brilhar, e nos púnhamos nos
beliches tal qual bolinhos no forno". O vagão de Nina decidiu fazer greve de fome, embora os guardas os ameaçassem com novas sentenças, mais longas. "Não queremos
pegar disenteria", as presas gritavam para eles. "Faz quatro dias que estamos sentadas na nossa própria merda." Com relutância, os guardas enfim as deixaram beber
um pouco de água e lavar-se.
Uma presa polonesa também se viu num trem que precisou ficar parado - mas na chuva. Como era natural, as prisioneiras tentavam coletar a água que vinha do teto.
Mas, "quando estendíamos nossas canecas entre as barras das janelas, o guarda que estava no teto gritou que atiraria, porque aquilo era proibido".
As viagens de inverno não eram necessariamente melhores. Outra polonesa desterrada lembraria que, na viagem de trem para o leste, só consumiram "gelo e pão congelado".
No verão ou no inverno, outros deportados viviam tormentos específicos. Quando um trem de degredados parou numa estação comum (coisa excepcional), os presos saíram
correndo para comprar alimentos da gente do lugar. "Nossos judeus chisparam atrás dos ovos", recordaria um passageiro polonês. "Preferiam morrer de fome a comer
algo que não fosse kosher."
Os muito idosos e muito novos eram os que mais sofriam. Barbara Armonas, lituana casada com americano, foi deportada junto com um grande grupo de conterrâneos, adultos
e crianças de ambos os sexos. Entre eles, estava uma mulher que dera à luz quatro horas antes, assim como uma paralítica de 83 anos que não conseguia limpar-se -"logo,
tudo a seu redor fedia, e ela estava coberta de feridas abertas". Havia também três bebês:
Os pais deles tinham grande problema com as fraldas, pois era impossível lavá-las regularmente. Às vezes, quando o trem parava depois da chuva, as mães saltavam
para lavá-las nas valas. Irrompiam brigas por causa dessas valas, já que alguns queriam lavar louça, outros o rosto e outros as fraldas sujas, tudo ao mesmo tempo
[...] os pais envidavam todos os esforços para manter os filhos limpos. As fraldas sujas eram deixadas para secar e então sacudidas. Rasgavam-se lençóis e camisas
para improvisar fraldas, e às vezes os homens amarravam as fraldas no pulso, tentando fazê-las secar mais depressa.
As crianças pequenas não passavam melhor:
Alguns dias eram escaldantes, o fedor nos vagões se tornava insuportável, e várias pessoas adoeciam. No nosso, um menino de dois anos estava com febre alta e chorava
o tempo todo por causa da dor. O único socorro que os pais conseguiram foi um pouco de aspirina que alguém lhes deu. O menino ficou cada vez pior e acabou morrendo.
Na parada seguinte, numa floresta desconhecida, os soldados tiraram seu cadáver do trem e, imagino, o enterraram. O pesar e a raiva impotente dos pais eram de partir
o coração. Em circunstâncias normais, com cuidados médicos, ele não teria morrido. Agora, nem se sabia ao certo onde fora enterrado.
Para os inimigos do povo - diferenciando-se dos deportados -, tomavam-se às vezes providências especiais, que não melhoravam necessariamente as coisas. Mariya Sandratskaya,
detida dois meses após ter dado à luz, foi colocada num trem lotado de mães que amamentavam. Durante dezoito dias, 65 mulheres e 65 bebês viajaram em dois vagões
de gado, cujo único aquecimento vinha de dois fogões muito pequenos e muito fumacentos. Não havia rações especiais, nem água quente para banhar as crianças ou lavar
as fraldas, que então ficavam "verdes de sujeira". Duas das mulheres se suicidaram, cortando a garganta com vidro. Outra enlouqueceu. As demais se encarregaram dos
três bebês. Mariya "adotou" um deles. Até o fim da vida, teve a convicção de que só o leite materno salvara seu bebê, que contraiu pneumonia. Desnecessário dizer
que não se dispunha de nenhum medicamento.
Ao chegarem à cadeia de Tomsk, onde ficariam até voltar a seguir viagem, a situação praticamente não mudou. A maioria das crianças ficou doente. Duas morreram. Mais
duas mães tentaram suicidar-se, mas foram impedidas. Outras realizaram uma greve de fome. No quinto dia da greve, foram visitadas por uma comissão da NKVD; uma das
mulheres atirou o filho contra eles. Só quando chegaram ao Temlag - o campo feminino, destinado sobretudo às "esposas" presas - Mariya Sandratskaya conseguiu organizar
um jardim-de-infância; depois, convenceu parentes a virem e levarem o bebê.
Por mais grotesca e desumana que a história de Mariya possa parecer, não era única. Uma ex-médica de campo também descreveu como fora colocada num "traslado de crianças",
junto com quinze mães que amamentavam, mais 25 outras crianças e duas "babás". Todas haviam marchado em comboio para a estação; sido postas não num trem comum, mas
num vagão Stolypin com grades nas janelas; e sido privadas de alimentação adequada.
De tempos em tempos, todos os trens de traslado faziam paradas, mas estas não ofereciam necessariamente algum alívio. Os presos eram desembarcados, colocados em
caminhões e levados para cadeias, onde ficariam em caráter provisório. O regime em tais lugares era semelhante ao das detenções onde se realizavam interrogatórios;
só que os carcereiros tinham ainda menos interesse pelo bem-estar dos presos, os quais provavelmente não tornariam a ver. Em conseqüência, o regime prisional era
absolutamente imprevisível.
Karol Harenczyk, polonês trasladado da Ucrânia ocidental para Kolyma no início da Segunda Guerra, lembraria os méritos relativos das muitas prisões transitórias
em que ficou. Num questionário que preencheu por solicitação do Exército polonês, observou que a cadeia de Lvov não tinha umidade, contava com "bons chuveiros" e
era "bastante limpa". Em contraste, a de Kiev era "superlotada, indescritivelmente suja" e infestada de piolhos. Em Kharkov, a cela de 96 metros quadrados onde o
puseram estava apinhada com 387 pessoas e milhares de piolhos. Em Aremovsk, a prisão ficava "quase completamente às escuras", e não se permitiam caminhadas; "não
se limpava o chão, de cimento, e os restos de peixe eram deixados ali. A sujeira, o cheiro e a falta de ar provocavam dor de cabeça e tontura", tanto que os presos
andavam de quatro. Em Voroshilovgrad, a cadeia também era "bastante limpa", e os presos podiam fazer as necessidades fora da cela, duas vezes por dia. No campo de
trânsito de Starobelsk, tinham permissão para caminhar só uma vez por semana, durante meia hora.
Talvez as mais primitivas dessas prisões transitórias fossem as do litoral do Pacífico, onde os presos permaneciam antes do embarque em navios para Kolyma. De início,
nos anos 1930, só existia uma: Vtoraya Rechka, perto de Vladivostok. No entanto, era tão superlotada que, em 1938, se construíram mais dois campos de trânsito: Bukhta
Nakhodka e Vanino. Mesmo então, não havia alojamento suficiente para os milhares de detentos que aguardavam os navios. Um preso esteve em Bukhta Nakhodka no final
de julho de 1947: "Mantinham 20 mil pessoas a céu aberto. Não se dizia nem uma palavra sequer sobre construir alguma coisa - eles sentavam, deitavam e viviam no
chão".
Quanto à água, a situação tampouco melhorava muito se comparada ao que vigorava nos trens, apesar do fato de que os presos ainda sobreviviam à base principalmente
de peixe seco, no auge do verão:
Por todo o campo, lia-se este aviso: "Não beba água sem ferver". E entre nós grassavam duas epidemias - tifo e disenteria. Mas os presos não davam atenção aos avisos
e bebiam a água que pingava aqui e ali [...] qualquer pessoa consegue entender quanto estávamos desesperados por um gole de água para matar a sede.
Para presos que viajavam fazia muitas semanas - e memorialistas relatam jornadas ferroviárias de até 47 dias para Bukhta Nakhodka -, as condições nos campos de
trânsito do Pacífico eram quase insuportáveis. Um deles registra que, quando o trem chegou a Bukhta Nakhodka, 70% de seus companheiros tinham cegueira noturna (efeito
colateral do escorbuto) e diarréia. Não havia muita assistência médica disponível. Em outubro de 1938, sem medicamentos e sem cuidados adequados, o poeta russo
Osip Mandelstam morreu em Vtoraya Rechka, paranóico e delirante.
Para quem não estava demasiado incapacitado, era possível ganhar um pouquinho de pão extra nos campos de trânsito do Pacífico. Os presos podiam carregar baldes de
cimento, descarregar mercadorias de vagões e cavar latrinas. Aliás, alguns se lembram de Bukhta Nakhodka como "o único campo onde os prisioneiros imploravam para
trabalhar". Uma polonesa recordaria que "eles só alimentavam quem podia trabalhar, mas, como havia mais presos do que trabalho, alguns morriam de fome [...]. A prostituição
florescia, como as íris nas campinas siberianas".
Thomas Sgovio lembraria que outros sobreviviam de trocas:
Existia um espaço grande e aberto que denominavam a feira. Ali, os presos se reuniam e praticavam o escambo [...]. O dinheiro de nada valia. A maior procura era
por pão, fumo e pedaços de jornal, usados para fazer cigarro. Havia presos não-políticos que cumpriam pena como pessoal de manutenção e serviço. Trocavam pão e fumo
pelas roupas dos recém-chegados; depois as revendiam para cidadãos do lado de fora, recebendo em rublos e acumulando assim uma soma para o dia em que, soltos, voltariam
ao mundo soviético. Durante o dia, a feira era o lugar mais concorrido do campo. Naquele buraco comunista, presenciei o que, na realidade, era a forma mais crua
de sistema de livre iniciativa.
No entanto, para esses presos, os horrores da viagem não acabavam nos trens nem nos campos de trânsito. A viagem para Kolyma tinha de completar-se de barco - tal
como no caso dos prisioneiros que subiam o rio Ienissei, de Krasnoyarsk a Norilsk, ou que, nos primeiros tempos, atravessavam o mar Branco em barcaças, de Arcangel
a Ukhta. Era raro o preso que, em especial quando embarcando nos navios para Kolyma, não sentia que fazia uma jornada rumo ao abismo, navegando pelo Estige para
longe do mundo conhecido. Muitos nunca haviam entrado num barco antes."
As embarcações em si não tinham nada de extraordinário. Velhos cargueiros a vapor holandeses, suecos, ingleses e americanos - que de modo algum haviam sido projetados
para o transporte de passageiros - faziam regularmente a rota para Kolyma. Tinham recebido nova designação, para adequar-se à nova tarefa, mas as mudanças eram sobretudo
cosméticas. As letras DS (de "Dalstroi") foram pintadas nas chaminés; instalaram-se ninhos de metralhadores nas cobertas; e construíram-se rústicos beliches de madeira
nos porões de carga, compartimentados por grades de ferro. O maior navio da Dalstroi, originaria-mente destinado a carregar enormes quantidades de cabo, foi de início
batizado Nikolai Yezhov. Depois que Yezhov caiu em desgraça, o barco foi rebatizado Feliks Dzerzhinsky - o que exigiu dispendiosa alteração no registro internacional.
Faziam-se poucas concessões à carga humana, que era obrigada a ficar fora das cobertas na primeira parte da viagem, quando os navios passavam perto do litoral japonês.
Durante esses poucos dias, a escotilha que levava da coberta ao porão ficava muito bem trancada, para a eventualidade de que aparecesse algum pesqueiro japonês.
De fato, essas viagens eram consideradas tão secretas que, em 1939, quando o Indigirka - um navio da Dalstroi com 1.500 passageiros, na maioria presos que retornavam
para o sul - se chocou contra um recife ao largo da ilha japonesa de Hokkaido, a tripulação preferiu deixar a maior parte dos passageiros morrer a pedir socorro.
Não havia aparato salva-vidas, e os tripulantes, não querendo revelar o verdadeiro conteúdo de seu "cargueiro", não solicitaram o auxílio de outras embarcações,
embora muitas estivessem disponíveis na área. Uns poucos pescadores japoneses vieram ajudar, por conta própria, mas não puderam fazer nada: mais de mil pessoas morreram
no desastre.
Mesmo quando não acontecia nenhuma catástrofe, os presos sofriam com o sigilo, que requeria o confinamento forçado. Os guardas jogavam a comida no porão e deixavam
que os cativos a disputassem. Os presos recebiam água em baldes, baixados lá de cima. Tanto a comida quanto a água eram escassas - e o mesmo valia para o ar. A anarquista
Elinor Olitskaya recordaria que as pessoas começavam a vomitar tão logo embarcavam. Descendo ao porão, Evgeniya Ginzburg também passou mal na mesma hora: "Se continuei
de pé, foi só porque não havia espaço para cair". Uma vez dentro do porão,
era impossível mexer-se; nossas pernas adormeciam, a fome e o ar marinho nos deixavam tontas, e todas estávamos mareadas [...] apinhadas às centenas, mal conseguíamos
respirar; sentávamos ou deitávamos no piso sujo ou uma sobre a outra, abrindo as pernas para acomodar quem estava na frente.
Depois que se passava a costa japonesa, os presos eram às vezes autorizados a subir à coberta para usar os poucos sanitários do navio, que de jeito nenhum bastavam
para milhares de passageiros. Memorialistas rememoram esperas de duração variada para usá-los: "duas horas", "sete ou oito horas", "o dia inteiro". Sgovio assim
descreveu esses sanitários:
Uma armação semelhante a uma caixa, improvisada com tábuas, era fixada ao costado do navio [...] da coberta do navio, que jogava, era bem complicado subir à amurada
e dali passar à tal caixa. Os presos que eram mais idosos e os que nunca haviam estado no mar tinham medo de entrar lá. Um cutucão do guarda, mais a necessidade
de aliviar-se, acabava por fazê-los superar a relutância. Dia e noite, durante toda a viagem, havia uma longa fila na escada. Na caixa, só deixavam entrar dois homens
de cada vez.
Entretanto, os suplícios físicos da vida a bordo eram superados pelas torturas inventadas pelos próprios presos - ou melhor, pelos criminosos entre eles. Isso era
especialmente verdadeiro no final dos anos 1930 e começo dos 40, quando a influência da bandidagem no sistema de campos estava no auge e os presos políticos e comuns
ficavam misturados de maneira indiscriminada. Alguns presos políticos já haviam topado com criminosos nos trens. A finlandesa Aino Kuusinen relembraria que "o pior
da viagem eram os menores delinqüentes, que ficavam com os leitos de cima e cometiam todo tipo de indecência - cuspir, lançar xingamentos obscenos e até urinar nos
presos adultos". Nos navios, a situação era pior. Elinor Lipper, que fez a viagem para Kolyma no final dos anos 1930, descreveu como as presas políticas
deitavam-se espremidas no piso alcatroado do porão, pois as criminosas tinham se apossado da plataforma de pranchas. Se alguma de nós se atrevesse a erguer a cabeça,
seria saudada com uma chuva de vísceras e cabeças de peixe. Quando alguma das criminosas mareadas vomitava, aquilo caía direto sobre nós.
Os presos polacos e baltas, que tinham melhor vestuário e pertences mais valiosos do que os de seus equivalentes soviéticos, eram ainda mais visados. Em certa ocasião,
um grupo de criminosos apagou as luzes do navio e atacou presos poloneses, matando alguns e assaltando o resto. "Os polacos que sobreviveram", escreveu um deles,
"souberam pelo resto da vida o que era estar no inferno."
Os resultados da mistura de homens com mulheres podiam ser muito piores até que os da mistura de presos políticos com criminosos. Estritamente falando, isso era
proibido: os dois sexos viajavam separados nos navios. Mas, na prática, podiam-se subornar os guardas para deixar homens entrarem no porão das mulheres, com conseqüências
terríveis. O "bonde de Kolyma" - os bandos de estupradores a bordo - era tema de conversa em todo o sistema de campos. Elena Glink, uma sobrevivente, descreveu esses
homens:
Eles estupravam conforme mandava o "condutor" do bonde [...] depois, à ordem Konchai bazar ["Acabou a festa"], eles se desembaraçavam, relutantemente, e davam vez
aos seguintes, que haviam ficado esperando em pé, prontinhos [...] as mortas eram arrastadas pelas pernas até a porta e empilhadas na soleira. As que permaneciam
eram trazidas de volta à consciência (jogava-se água nelas), e a fila recomeçava. Em maio de 1951, a bordo do Minsk [famoso em toda a região Kolyma por seu "bonde
grande"], os cadáveres das mulheres eram atirados ao mar. Os guardas nem sequer anotavam o nome das mortas.
Pelo que Elena sabia, ninguém jamais era punido pelo crime de estupro nesses navios. O adolescente polonês Janusz Bardach, que se viu num navio para Kolyma em 1942,
tinha a mesma opinião. Bardach esteve presente quando um grupo de criminosos planejou uma investida ao porão das mulheres; ele observou enquanto esses homens abriam
um buraco na grade de ferro que separava os dois sexos:
Tão logo passaram pelo buraco e viram as mulheres, os homens rasgaram as roupas delas. Vários atacavam uma mulher de cada vez. Eu podia ver os corpos alvos das vítimas
se retorcerem, as pernas chutarem energicamente, as mãos arranharem o rosto dos homens. As mulheres mordiam, choravam e gemiam. Os estupradores reagiam, esbofeteando-as
[...] quando acabaram as mulheres, alguns dos mais corpulentos se voltaram para os leitos, à cata de rapazes. Esses adolescentes foram acrescidos ao massacre; jaziam
ali, imóveis, de barriga, sangrando e chorando no chão.
Nenhum dos outros presos tentou deter os estupradores: "centenas de homens ficaram assistindo à cena de seus leitos, mas nenhum procurou intervir". Segundo Bardach,
o ataque só terminou quando os guardas na coberta superior varreram o porão com água. Em seguida, um punhado de mortas e feridas foi arrastado para fora. Ninguém
recebeu punição.
Conforme escreveu uma sobrevivente, "qualquer um que tenha visto o inferno de Dante diria que ele era fichinha se comparado ao que acontecia naquele navio".
Há muito mais histórias sobre os traslados, algumas delas tão trágicas que mal se consegue repeti-las. De fato, essas viagens eram tão horríveis que, na memória
coletiva dos sobreviventes, elas se tornaram um enigma tão difícil de compreender quanto os próprios campos. Aplicando psicologia humana mais ou menos normal, é
possível explicar a crueldade dos comandantes de campo, eles próprios sob pressão para cumprir normas e metas, como veremos. É até possível explicar as ações dos
interrogadores, cujas vidas dependiam do sucesso em obter confissões e que às vezes eram selecionados por serem sádicos. No entanto, é muito mais difícil explicar
por que um guarda comum de comboio se recusava a dar água a presos que estavam a ponto de morrer de sede; a arranjar aspirina para uma criança febril; ou a proteger
Mulheres de serem curradas até a morte.
Decerto não há prova de que os guardas de comboio fossem explicitamente instruídos a torturar os presos em traslado. Pelo contrário: existiam normas minuciosas de
proteção a esses traslados, e a ira oficial se desencadeava quando não eram cumpridas, o que acontecia com freqüência. Um decreto de dezembro de 1941, "sobre o aprimoramento
da organização do traslado de presos", descrevia com indignação a "irresponsabilidade" e o comportamento às vezes "criminoso" de alguns dos guardas e funcionários
de comboio do Gulag: "Como resultado, presos têm chegado famélicos aos lugares a eles designados e, por conseguinte, ficam certo tempo sem poder ser postos para
trabalhar". Em 25 de fevereiro de 1940, uma agastada ordem oficial reclamava não só de que se colocara em trens para os campos setentrionais um determinado número
de presos enfermos e incapacitados, coisa que, em si, já era proibida, mas também de que muitos mais não tinham recebido alimento nem água, não tinham sido providos
no caminho de trajes adequados para o inverno e não vinham acompanhados de suas fichas pessoais, que portanto deviam ter desaparecido. Em outras palavras, presos
entravam em campos onde ninguém sabia dos crimes nem das sentenças deles. Em 1939, de 1.900 prisioneiros num traslado para o extremo norte, 590 apresentavam "limitada
capacidade de trabalho" ao chegar, estando ou muito debilitados, ou muito doentes. A alguns faltavam poucos meses para cumprir suas penas; outros já as haviam cumprido
por completo. A maioria estava "mal calçada" e não tinha agasalho. Em novembro de 1939, outros 272 presos, nenhum dos quais tinha capotes para o inverno, foram levados
em caminhões abertos por uma distância de quinhentos quilômetros; como resultado, muitos adoeceram, e alguns vieram a morrer. Relataram-se todos esses fatos, com
a devida indignação e ira, e puniram-se guardas negligentes.
Numerosas instruções também regulavam as prisões onde os presos ficavam em caráter transitório. Em 26 de junho de 1940, por exemplo, uma ordem descreveu a organização
desses estabelecimentos, exigindo peremptoriamente que seus diretores construíssem cozinhas, banhos e sistemas de desinfestação. Não menos importante era a segurança
das embarcações prisionais da Dalstroi. Em dezembro de 1947, quando explodiu dinamite em dois navios ancorados em Magadan, redundando em 97 mortes e 224 hospitalizações,
Moscou acusou o porto de "negligência criminosa". Os responsabilizados foram a julgamento e receberam sentenças criminais.
Em Moscou, os chefões do Gulag estavam bem cientes dos horrores dos navios prisionais. Em 1943, um relatório da promotoria de Norilsk queixava-se de que os presos
que aportavam ali (eles subiam o Ienissei em barcaças) estavam
com freqüência, em más condições físicas [...] dos 14.125 presos que vieram para Norilsk em 1943, cerca de quinhentos foram hospitalizados em Dudinka [o porto de
Norilsk] no primeiro ou segundo dia após a chegada; até mil ficaram temporariamente inaptos para o trabalho, pois haviam sido privados de alimento.
Apesar de todo o escarcéu, o sistema de traslado mudou muito pouco no decorrer do tempo. Davam-se ordens, apresentavam-se queixas. No entanto, em 24 dezembro de
1944, um comboio adentrou a estação de Komsomolsk (no Extremo Oriente) no que até o promotor-assistente do sistema Gulag considerou condições abomináveis. Seu relatório
oficial do destino da SK 950 - essa composição de 51 vagões - só pode indicar uma espécie de nadir, mesmo na história horripilante dos traslados do Gulag:
Chegaram em vagões sem aquecimento que não tinham sido preparados para o transporte de presos. Em cada carro, havia entre dez e doze beliches, nos quais não podiam
caber mais que dezoito pessoas; apesar disso, contavam-se até 48 pessoas por carro. Os vagões não estavam providos de latões de água em número suficiente, de modo
que ocorriam interrupções no suprimento, às vezes por dias e noites inteiros. Deu-se pão congelado aos presos, e durante dez dias eles não receberam nem isso. Os
presos chegaram trajados com uniforme de verão, sujos, cobertos de piolhos, com sinais evidentes de ulceração pelo frio [...] os presos enfermos tinham sido largados
no piso dos vagões, sem socorro médico, e morreram ali mesmo. Mantiveram-se os cadáveres nos vagões por longos períodos [...].
Das 1.402 pessoas enviadas na composição SK 950, chegaram 1.291; 53 haviam morrido na viagem, e 66 haviam sido deixadas em hospitais pelo caminho. Na chegada, mais
335 foram hospitalizadas com queimaduras de frio de terceiro ou quarto grau, pneumonia e outras doenças. Ao que parecia, o comboio viajara sessenta dias, em 24 dos
quais ficara parado em vias laterais, "por causa da má organização". Contudo, mesmo nesse caso extremo de negligência, o responsável pela composição, um certo camarada
Khabarov, não recebeu mais que uma "repreensão com advertência".
Muitos sobreviventes de traslados semelhantes procurariam explicar esses grotescos maus-tratos sofridos pelos prisioneiros nas mãos de guardas de comboio jovens
e inexperientes, os quais estavam longe de ser os matadores treinados destacados para o sistema prisional. Nina Gagen-Torn especularia que "aquilo era prova não
de maldade, mas simplesmente de total indiferença. Não nos viam como pessoas. Éramos apenas carga viva". Antoni Ekart, polonês preso após a invasão soviética de
1939, também achava que
a privação de água não era proposital, para torturar-nos; antes, devia-se ao fato de que a escolta tinha de despender esforço extra para trazer água e só o faria
caso recebesse ordens. O comandante da escolta não estava nem um pouco interessado, e os guardas não se dispunham a escoltar os presos várias vezes por dia até os
poços ou torneiras das estações, correndo o risco de que houvesse fugas.
Contudo alguns presos relatam mais que indiferença:
De manhã, o chefe do comboio apareceu no corredor [...] em pé, de rosto para a janela e de costas para nós, gritou insultos e xingamentos: "Vocês me cansam!"
O tédio - ou melhor, o tédio misturado com a raiva de ter de executar trabalho tão degradante - também era a explicação de Soljenitsin para esse comportamento tão
difícil de explicar. Soljenitsin até procurou imaginar-se no lugar dos guardas de comboio. Lá estavam eles, já tão ocupados e assoberbados e mesmo assim tendo de
"carregar água em baldes - era preciso buscá-la longe, ainda por cima, e aquilo era uma ofensa: por que um soldado soviético deveria carregar água feito um burro
para os inimigos do povo?". Pior:
Tomava muito tempo distribuir aquela água. Os zeks não tinham canecas. Os que tinham acabavam sendo privados dela - de modo que, no fim das contas, era preciso dar-lhes
uma das duas canecas regulamentares e, enquanto bebiam, ficar lá de pé, esperando e esperando, pondo água e mais água, distribuindo e distribuindo...
Mas os guardas poderiam ter agüentado tudo isso, pegar a água e distribuí-la, se aqueles cachorros, depois de terem sorvido ruidosamente a água, não pedissem para
ir ao banheiro. Então, as coisas funcionam assim: se a gente não lhes dá água, eles não pedem para ir ao banheiro. É dar água uma vez, e eles vão ao banheiro uma
vez; duas vezes, e eles, vão duas vezes. Por isso, o bom senso, pura e simplesmente, é não dar nada para beberem.
Qualquer que fosse a motivação dos guardas - indiferença, tédio, raiva, orgulho ferido -, o efeito nos presos era devastador. Em geral, eles chegavam aos campos
não apenas desorientados e aviltados pela experiência do cárcere e do interrogatório, mas também fisicamente exauridos - prestes a encarar o estágio seguinte de
sua jornada para o Gulag: a entrada no campo.
Se não estava escuro, se não se encontravam doentes e se demonstravam interesse em olhar, a primeira coisa que os presos viam na chegada era o portão do campo. No
mais das vezes, o portão exibia um slogan. Da entrada de um dos lagpunkts, "pendia um arco-íris de compensado com uma faixa por cima, na qual se lia que 'Na URSS,
o trabalho é questão de honestidade, honra, bravura e heroísmo!'". Numa colônia de trabalho nos subúrbios de Irkutsk, Barbara Armonas foi acolhida com esta faixa:
"Com trabalho honesto, saldarei meu débito para com a pátria". Chegando em 1933 a Solovetsky (que se tornara prisão de segurança máxima), outro preso viu um aviso
que dizia: "Com mão de ferro, conduziremos a humanidade à felicidade!" Yurii Chirkov, detido aos catorze anos, também deparou com um aviso em Solovetsky: "Por meio
do trabalho, a liberdade!", slogan que é tão constrangedoramente parecido quanto possível com o Arbeit macht frei ("O trabalho liberta") que se via sobre os portões
de Auschwitz.
Assim como a chegada à cadeia, a chegada de um étap ao campo se fazia acompanhar de rituais: os detentos, exaustos pelo traslado, agora tinham de ser transformados
em zeks funcionais. O preso polonês Karol Colonna-Czosnowski lembraria:
Na chegada ao campo, ficamos um tempão sendo contados [...]. Naquela noite específica, parecia que isso não acabaria nunca. Inúmeras vezes, tivemos de nos alinhar
em fileiras de cinco, e a cada uma delas se ordenava que desse três passos à frente, e vários funcionários da NKVD, com ar preocupado, contavam em voz alta - Odin,
dva, tri - e registravam minuciosamente cada total em suas grandes pranchetas. Era de presumir que o número de vivos, acrescido ao número daqueles que tinham sido
fuzilados no caminho, não correspondia ao esperado.
Em seguida à contagem, tanto homens quanto mulheres eram levados aos banhos e tinham o corpo rapado - por inteiro. Esse procedimento, realizado segundo ordem oficial,
por motivos de higiene - presumia-se, em geral com razão, que os presos que chegavam das cadeias soviéticas estariam cobertos de piolhos -, também tinha grande
importância ritual. As mulheres o descrevem com especial horror e aversão, o que não é de admirar. Em muitas ocasiões, precisavam despir-se e, nuas diante dos soldados,
esperar a vez de serem rapadas. "Pela primeira vez", recordaria Elinor Olitskaya, que participou dessa cerimônia ao chegar a Kolyma, "ouvi prantos de protesto -
mulher é mulher..." Olga Adamova-Sliozberg sofrera a mesma coisa numa das prisões transitórias em que se ficava no trajeto para os campos:
Nós nos despimos e entregamos nossas roupas para serem tratadas. Já estávamos subindo para o lavatório quando percebemos que a escada eslava tomada por guardas de
alto a baixo. Envergonhadas, baixamos a cabeça e nos juntamos. Então ergui o olhar e acabei encarando o oficial encarregado. Ele me olhou carrancudo e berrou: "Vamos,
vamos! Mexa-se!"
De repente, fiquei aliviada, e a situação até me pareceu bem cômica.
"Para o diabo com eles", pensei. "Não são mais homens do que o Vaska, o touro que me assustava quando eu era menina."
Tão logo os presos estavam lavados e rapados, a segunda etapa do processo de transformar homens e mulheres em zeks anônimos era a distribuição de trajes. As normas
mudavam conforme a época e o campo; os presos podiam ou não usar as próprias roupas. Na prática, a decisão parece ter ficado a cargo dos responsáveis locais. "Em
alguns lagpunkts, a gente usava a roupa que tinha trazido; em outros, não", lembraria Galina Smirnova, prisioneira no Ozerlag no começo da década de 1950. Isso
nem sempre importava: quando se chegava aos campos, os trajes de muitos presos estavam em farrapos, se já não houvessem sido furtados.
Quem não tinha roupa usava os uniformes dos campos, que eram invariavelmente velhos, rotos, malfeitos e canhestros. Para algumas pessoas, em especial mulheres, às
vezes parecia que os trajes que lhes davam eram parte de uma tentativa de humilhá-las. Anna Andreevna, mulher do escritor espírita Danil Andreev, foi de início mandada
para um campo onde se podia usar as próprias roupas. Depois, em 1948, transferiram-na para um campo onde isso não era permitido. Ela achou a mudança bastante insultante:
"Eles haviam nos privado de tudo, de nossos nomes, de todas as coisas que são parte da personalidade, e nos feito usar - eu nem consigo descrever aquilo - um vestido
amorfo".
Não se fazia nenhum esforço para garantir que a numeração das roupas batesse com a dos presos. Janusz Bardach escreveu:
Cada um de nós recebeu ceroulas, túnica preta, calças e casaco acolchoados, boné de feltro com orelheiras, botas com solado de borracha e mitenes infestadas de piolhos.
Esses itens eram distribuídos sem nenhum critério, e cabia a nós achar a numeração certa. Tudo era grande demais, e passei horas trocando trajes com as pessoas para
conseguir o que me servisse melhor.
Igualmente contundente no que se referia à moda nos campos, uma presa escreveu que lhes foram dados
casacos curtos acolchoados, meias acolchoadas que iam até os joelhos e calçados de cortiça de bétula. Parecíamos bichos do outro mundo. Quase nada que era nosso
nos fora deixado. Tudo fora vendido às condenadas, ou melhor, trocado por pão com elas. Echarpes e meias de seda despertavam tal admiração que nos víamos obrigadas
a vendê-las. Teria sido muito perigoso recusar.
Visto que as roupas rotas pareciam destinar-se a privá-los de dignidade, muitos presos depois se empenhavam para melhorá-las. Uma prisioneira recordaria que, de
início, não se importava com os trajes "muito velhos e estragados" que lhe tinham dado. Mas, posteriormente, começou a efetuar remendos, colocar bolsos e aprimorar
as roupas, "como outras mulheres faziam"; desse modo, sentia-se menos aviltada. Em geral, as prisioneiras que sabiam costurar também conseguiam rações extras de
pão, pois até as mínimas melhorias no uniforme-padrão eram concorridíssimas: a capacidade de destacar-se, de ter aparência ligeiramente melhor que as outras pessoas,
estava, como veremos, relacionada a posições hierárquicas melhores, saúde melhor, privilégios maiores. Variam Shalamov entendia bem a importância dessas pequenas
mudanças:
Nos campos, há roupa de baixo "individual" e "comum"; é um exemplo das pérolas encontradas no discurso oficial. A "individual" é mais nova e um pouquinho melhor,
sendo reservada tanto para os presos de confiança que atuam como capatazes quanto para outros privilegiados [...] a "comum" é para todo mundo. É entregue no lavatório
logo após o banho, sendo trocada pela roupa de baixo suja, que antes é juntada e contada. Não há chance de escolher nada conforme o tamanho. Roupa de baixo limpa
é pura loteria, e senti um dó estranho e terrível ao ver homens crescidos chorarem por causa da injustiça de terem recebido roupa limpa e gasta em troca de roupa
suja e boa. Nada consegue fazer o ser humano deixar de pensar nas coisas desagradáveis que compõem a existência.
Ainda assim, o choque de ser banhado, rapado e trajado como zek era apenas a primeira etapa de uma longa iniciação. Imediatamente depois, os presos se submetiam
a um dos procedimentos mais cruciais de sua vida: a seleção - e a diferenciação em categorias de trabalho. Esse processo afetaria tudo, desde o status do preso no
campo até o tipo de alojamento onde ficaria, passando pela espécie de serviço que faria. Tudo isso, por sua vez, determinaria se ele conseguiria sobreviver. E preciso
registrar que não encontrei nenhum registro que descrevesse "seleções" do tipo que ocorria nos campos de extermínio alemães. Ou seja, não deparei com seleções regulares
em que os presos debilitados fossem postos à parte e fuzilados. Atrocidades desse tipo certamente aconteciam - um memorialista de Solovetsky afirma ter sobrevivido
a uma -, mas a prática costumeira, pelo menos no final dos anos 1930 e começo dos 40, era diferente. Os presos enfraquecidos não eram assassinados ao chegarem a
alguns dos campos mais distantes; em vez disso, ficavam de "quarentena", tanto para garantir que nenhuma doença que porventura tivessem se espalhasse, quanto para
permitir que "cevassem", a fim de recuperar a saúde após longos meses de cadeia e de viagens terríveis. Ex-presos confirmam que os chefes dos campos parecem ter
levado essa prática a sério.
Alexander Weissberg, por exemplo, recebeu boa alimentação e pôde descansar antes de o mandarem para as minas. Após um demorado traslado para o Ukhtizhemlag, proporcionaram
três dias de descanso a Jerzy Gliksman - o socialista polonês que tanto apreciara a apresentação da peça Aristocratas, de Pogodin, em Moscou -, período durante o
qual ele e os outros recém-chegados foram tratados como "hóspedes". Pyotr Yakir, filho do general soviético Ion Yakir, ficou catorze dias em quarentena no Sevurallag.
Evgeniya Ginzburg lembraria seus primeiros dias em Magadan, principal cidade de Kolyma, como um "redemoinho de dor, surtos de esquecimento e um abismo negro de inconsciência.
Ela, assim como outras, fora trazida direto do navio Dzhurma e colocada num hospital, onde se recuperou plenamente após dois meses. Algumas se mostravam céticas.
"Uma ovelha para o matadouro", disse Liza Sheveleva, outra presa. "Posso perguntar para quem você está se recuperando? Tão logo saia daqui, irá direto para os trabalhos
forçados e, em uma semana, voltará a ser o mesmo cadáver que era a bordo do Dzhurma."
Uma vez recuperados, caso lhes permitissem isso, e trajados, caso lhes tivessem dado novas roupas, a seleção e diferenciação dos presos começavam para valer. Em
princípio, era um processo extremamente regulamentado. Já em 1930, o Gulag emitiu ordens muito severas e complicadas sobre a classificação de presos. Teoricamente,
as tarefas designadas para eles deviam refletir dois conjuntos de critérios: a "origem social" e condenação; e a saúde. Naqueles primeiros tempos, os presos se distribuíam
em três categorias: "trabalhadores" que não haviam sido condenados por crimes anti-revolucionários, com penas não superiores a cinco anos; "trabalhadores" que também
não haviam sido condenados por crimes anti-revolucionários, com penas superiores a cinco anos; e condenados por crimes anti-revolucionários.
A cada uma dessas categorias se atribuía então um regime prisional: privilegiado; brando; e pesado, ou "de primeira ordem". Em seguida, os presos deviam ser examinados
por uma junta médica, que determinava se podiam realizar trabalho pesado ou apenas brando. Após ter levado em conta todos esses critérios, a administração do campo
determinava um serviço para cada preso. Conforme cumprissem as normas e metas de suas atribuições, os presos se enquadravam num dos quatro tipos de ração: básica;
de trabalho; "reforçada"; ou "disciplinar". Todas essas categorias mudaram muitas vezes. As ordens que Beria deu em 1939, por exemplo, dividiam os presos entre
"capazes de trabalho pesado", "capazes de trabalho leve" e "inválidos" - categorias às vezes denominadas respectivamente grupo A, grupo B e grupo C -, e seus efetivos
eram monitorados regularmente pela administração central do sistema, em Moscou, que desaprovava de modo severo os campos com "inválidos" em demasia.
O processo estava longe de ser ordeiro. Tinha tanto aspectos formais, impostos pelos comandantes de campo, quanto informais, na medida em que os presos se ajustassem
e fizessem acertos entre si. "ara a maioria, o primeiro gosto da classificação nos campos era relativamente grosseiro. George Bien, jovem húngaro preso em Budapeste
no fim da Segunda Guerra Mundial, comparou a uma feira de escravos o processo seletivo a que o submeteram em 1946:
Mandavam todo mundo para um pátio, onde nos diziam para despir-nos. Quando chamavam nosso nome, nós nos apresentávamos a uma junta de saúde, para exame médico. Este
consistia em puxar a pele das nádegas para determinar a quantidade de músculos. Avaliavam a força pela massa muscular, e, se passávamos, éramos aceitos e tínhamos
nossa documentação colocada numa pilha à parte. Isso era feito por mulheres de jaleco branco, e elas tinham pouco o que escolher naquele grupo de mortos-vivos. Selecionavam
os presos mais jovens independentemente da massa muscular.
Jerzy Gliksman também usou a expressão "feira de escravos" para descrever o processo de diferenciação que ocorria em Kotlas, o campo de trânsito que supria de presos
os campos setentrionais de Arcangel. Ali, os guardas acordaram os presos durante a noite e os mandaram reunir-se e apresentar-se pela manhã, com todos os seus pertences.
Cada um dos presos, até os gravemente enfermos, viu-se obrigado a comparecer. Depois, todos foram levados a pé para a floresta, fora do campo. Uma hora mais tarde,
chegaram a uma grande clareira, onde se alinharam em fileiras de dezesseis.
O dia todo, reparei que superiores desconhecidos, tanto de uniforme quanto à paisana, zanzavam entre os presos, ordenando a alguns que tirassem os casacos, apalpando-lhes
os braços e as pernas, olhando-lhes a palma das mãos, dizendo para outros se inclinarem. De quando em quando, mandavam um preso abrir a boca e lhe espiavam os dentes,
como negociantes de cavalos numa feira da roça [...] alguns procuravam engenheiros, torneiros ou chaveiros com prática; outros talvez necessitassem de carpinteiros;
e todos sempre precisavam de homens fisicamente fortes para trabalhar na derrubada de árvores, na agricultura, nas minas de carvão e nos poços de petróleo.
Gliksman percebeu que, para quem fazia essa inspeção, o mais importante era "não comprar gato por lebre, não levando aleijados, inválidos ou doentes - em suma, pessoas
que só serviam para comer. Era por essa razão que, de tempos em tempos, se enviavam representantes especiais para selecionar entre os presos os tipos adequados".
Desde o início, também ficou claro que as regras estavam lá para ser desobedecidas. Em 1947, Nina Gagen-Torn passou por uma seleção particularmente humilhante no
campo de Temnikovsky, a qual, porém, teve um resultado positivo. Quando chegou ao campo, o comboio de Nina foi de imediato mandado para os chuveiros, e as roupas,
colocadas numa câmara de desinfecção. Em seguida, foram conduzidas a um recinto, ainda molhadas e nuas; disseram-lhes que haveria "uma inspeção de saúde". "Médicos"
iriam examiná-las, e eles de fato fizeram isso - junto com o gerente de produção e os guardas do campo.
O major caminhou ao longo da fila, examinando rapidamente os corpos. Estava escolhendo mercadoria - para a produção! Para a oficina de costura! Para a fazenda coletiva!
Para a zona prisional! Para o hospital! O gerente de produção escreveu os sobrenomes.
Quando ouviu seu sobrenome, o major olhou para ela e perguntou:
"Qual o seu parentesco com o professor Gagen-Torn?"
"Sou filha dele."
"Ponham-na no hospital. Ela tem sarna, está com marcas vermelhas na barriga."
Como não tinha nenhuma marca vermelha na barriga, Nina presumiu - corretamente, como viria a descobrir - que o homem conhecera e admirara seu pai e a estava poupando,
ao menos por enquanto, do trabalho pesado.
Nos primeiros dias de vida nos campos, a conduta dos presos, durante e após o processo seletivo, podia ter profundas conseqüências para o destino deles. Em seus
três dias de repouso depois que chegou ao Kargopollag, por exemplo, o romancista polonês Gustav Herling avaliou a situação e, por novecentos gramas de pão, vendeu
suas botas de oficial, de cano alto, a um urka (preso comum) da turma de carregadores da ferrovia. Em retribuição, o criminoso usou seus contatos na administração
do campo para ajudar a garantir para Herling um serviço de carregador no centro de distribuição de alimentos. Era trabalho duro, disseram a Herling, mas pelo menos
ele poderia furtar rações extras - como acabou mesmo acontecendo. E, logo de cara, concederam-lhe um "privilégio". O comandante do campo o mandou
apresentar-se no armazém do campo para pegar bushlat [jaqueta acolchoada], boné com orelheira, calças acolchoadas, luvas impermeáveis de tecido de vela e valenki
[botas de feltro] da melhor qualidade, ou seja, novas ou pouco usadas - uma indumentária que, em geral, só davam às melhores turmas de presos "stakhanovistas".
A esperteza também assumia outras formas. Chegando ao Ukhtizhemlag, Gliksman imediatamente percebeu que o título de "especialista" que lhe haviam conferido no campo
de trânsito de Kotlas - foi classificado como economista formado - não tinha nenhum significado no campo de concentração. Entrementes, notou que, durante os primeiros
dias ali, seus conhecidos russos, mais descolados, não se preocupavam com as formalidades oficiais:
A maioria dos "especialistas" usava os três dias de folga para visitar os escritórios do campo, procurando antigos conhecidos aonde quer que fossam e realizando
negociações suspeitas com alguns dos superiores do campo. Estavam todos agitados e preocupados. Cada um tinha seus próprios segredos e temia que alguém viesse a
estragar suas chances e pegar o serviço mais confortável no qual estava de olho. Bem depressa, a maior parte dessas pessoas já sabia aonde ir, em qual porta bater
e o que dizer.
Em conseqüência, mandaram um médico polonês de elevada qualificação cortar árvores na floresta, enquanto um cafetão ganhava o cargo de contador num escritório, "embora
não tivesse absolutamente nenhuma noção de contabilidade e, no mais, fosse semi-analfabeto".
Os presos que assim conseguiam evitar o trabalho braçal haviam de fato estabelecido os fundamentos de uma estratégia de sobrevivência - mas só os fundamentos. Agora,
tinham de aprender as estranhas normas que regiam o cotidiano dos campos.
10. A VIDA NOS CAMPOS
O som de um sino distante
Entra na cela com a alvorada.
Ouço o sino me chamar:
"Onde estás? Onde estás?"
"Eis-me aqui!... "Então, saúdo com lágrimas,
Lágrimas amargas do cativeiro...
Não por Deus,
Mas por ti, Rússia.
SimeonVilensky, 1948.
Entre 1929 e 1953, segundo a mais precisa das estimativas disponíveis, houve 476 complexos de campos no universo do Gulag. Mas esse número engana. Na prática, cada
um daqueles complexos continha dezenas, ou mesmo centenas, de unidades menores. Essas unidades (lagpunkts) ainda não foram contabilizadas, e provavelmente nem podem
sê-lo, pois eram algumas temporárias, algumas permanentes e algumas oficialmente parte de campos diferentes em épocas distintas. Tampouco se pode afirmar muito sobre
os costumes e práticas dos lagpunkts que se aplique inquestionavelmente a todos eles. Mesmo durante o reinado de Beria - período que se estendeu de 1939 à morte
de Stalin, em 1953 -, as condições de vida e de trabalho no Gulag continuaram a variar enormemente, tanto de ano para ano quanto de lugar para lugar, até num mesmo
complexo.
"Cada campo é um mundo à parte, uma cidade distinta, outro país", escreveu a atriz soviética Tatyana Okunevskaya - e cada campo tinha caráter próprio. A vida num
dos grandes campos industriais do extremo norte era bem diferente daquela num campo agrícola da Rússia meridional. Durante a fase mais intensa da Segunda Guerra
Mundial, quando um em cada quatro zeks morria por ano, a vida em qualquer campo era bem diferente daquela no início dos anos 1950, quando as taxas de mortalidade
eram mais ou menos as que prevaleciam no resto do país. Campos dirigidos por comandantes relativamente liberais não eram a mesma coisa que campos dirigidos por sádicos.
Os lagpunkts também variavam amplamente em tamanho - com populações que iam de algumas dúzias a vários milhares de presos - e longevidade. Alguns perduraram dos
anos 1920 aos 80, quando ainda funcionavam como penitenciárias. Outros, como aqueles estabelecidos para construir rodovias e ferrovias na Sibéria, não duraram mais
que um verão.
Contudo, às vésperas da guerra, certos elementos da vida e do trabalho eram comuns à grande maioria dos campos. O ambiente ainda variava de lagpunkt a lagpunkt,
mas interromperam-se as enormes oscilações de prática nacional que haviam caracterizado a década de 1930. Assim, a mesma burocracia inerte que acabaria por deitar
suas mãos mortas sobre praticamente todos os aspectos da vida soviética foi aos poucos se apossando também do Gulag.
Nesse sentido, são notáveis as diferenças entre as normas e regulamentos um tanto vagos instituídos para os campos em 1930 e as regras mais detalhadas impostas em
1939, depois que Beria assumiu. Tais diferenças parecem refletir uma mudança na relação entre os órgãos de controle central (a direção do Gulag em Moscou) e os comandantes
dos campos. Durante a primeira década do Gulag, um período experimental, as ordens documentadas não procuravam ditar a aparência dos campos e quase nem tratavam
do comportamento dos presos. Elas esboçavam um esquema geral e deixavam que os comandantes locais preenchessem as lacunas.
Em contraste, as ordens posteriores eram mesmo muito específicas e muito detalhadas, fixando praticamente quase todos os aspectos da vida nos campos, desde o método
de construção dos alojamentos até o cotidiano dos presos, seguindo as novas metas do Gulag. Parece que, a partir de 1939, Beria - presumivelmente com o apoio de
Stalin - já não queria que os campos do Gulag fossem campos de extermínio (coisa que alguns, na prática, tinham sido em 1937 e 1938). Isso não queria dizer que agora
os administradores dos campos estivessem mais preocupados em preservar vidas, para nem falarmos em respeitar a dignidade humana. De 1939 em diante, as principais
preocupações de Moscou eram econômicas: os presos deviam encaixar-se nos planos de produção dos campos qual engrenagens numa máquina.
Com esse fim, as ordens que emanavam de Moscou determinavam controle rigoroso sobre os prisioneiros, a ser obtido mediante a manipulação das condições de vida deles.
Em princípio, como vimos, o campo classificava todo zek de acordo com a pena, a profissão e a trudosposobnost (capacidade de trabalho). Em princípio, o campo designava
para todo zek uma função e um conjunto de normas e metas. Em princípio, o campo provia todo zek com os requisitos básicos da existência - alimentação, indumentária,
habitação, espaço - segundo ele cumprisse aquelas normas e metas. Em princípio, todos os aspectos da vida nos campos eram concebidos para aumentar as cifras de produção
- até os departamentos "culturais e educacionais" existiam sobretudo porque os maiorais do Gulag acreditavam que isso poderia convencer os presos a darem mais duro.
Em princípio, as equipes de inspeção estavam lá para garantir que todos esses aspectos da vida nos campos funcionassem em harmonia. Em princípio, todo zek tinha
até direito de reclamar (ao comandante do campo, a Moscou, a Stalin) se os campos não operassem conforme as regras.
E no entanto... Na prática, as coisas eram muito diferentes. Pessoas não são máquinas, os campos não eram fábricas limpas nem funcionais, e o sistema nunca funcionou
como se pretendia. Guardas eram corruptos, administradores furtavam, e presos desenvolviam maneiras de combater ou subverter as normas dos campos. Nestes, os presos
também conseguiam estabelecer suas próprias hierarquias extra-oficiais, que às vezes se harmonizavam, e às vezes colidiam, com as hierarquias criadas pela administração.
Apesar das visitas regulares de inspetores de Moscou, freqüentemente seguidas de reprimendas e cartas iradas da capital, poucos campos correspondiam ao modelo teórico.
Apesar da aparente seriedade com que se tratavam as queixas dos presos - comissões inteiras existiam para analisá-las -, elas raramente resultavam em mudanças reais.
Esse choque entre o que a direção do Gulag em Moscou achava que os campos deviam ser e o que eles eram de fato - o choque entre as regras escritas e os procedimentos
efetivamente adotados - era o que dava à vida no Gulag seu sabor único e surreal. Em teoria, a direção moscovita determinava os aspectos mais ínfimos da vida dos
presos. Na prática, todos esses aspectos eram também influenciados pelas relações dos presos com aqueles que os controlavam - e uns com os outros.
A ZONA PRISIONAL: ATRÁS DO ARAME FARPADO
Por definição, a ferramenta mais importante à disposição dos administradores dos campos era o controle do espaço em que os presos viviam - a "zona", do termo "zona
prisional". Por lei, a zona se inscrevia num quadrado ou retângulo. "A fim de assegurar melhor vigilância", não se permitiam formatos de terreno orgânicos nem irregulares.
Nesse quadrado ou retângulo, não havia muito o que atraísse o olhar. A maioria das construções num lagpunkt típico era extraordinariamente parecida. Fotos tiradas
por administradores de Vorkuta, e conservadas em arquivo em Moscou, mostram um conjunto de construções rudimentares de madeira, diferenciadas apenas pelas legendas,
que descreviam uma como "cela punitiva" e outra como "refeitório". Em geral, perto do portão, havia um grande espaço aberto no centro do campo; ali, os presos se
perfilavam duas vezes por dia para ser contados. Do lado de fora, costumava haver alguns alojamentos de guardas e casas de administradores, também de madeira, bem
junto ao portão principal.
O que distinguia a zona prisional de qualquer outro local de trabalho era, claro, a cerca que a rodeava. No Manual do Gulag, Jacques Rossi escreve que a cerca
era geralmente feita de estacas de madeira, enterradas até um terço do comprimento. Dependendo das condições locais, variavam de 2,5 a seis metros de altura. Entre
os postos, colocados a intervalos de cerca de seis metros, estendiam-se horizontalmente sete a quinze fieiras de arame farpado. Diagonalmente, entre cada par de
estacas, estendiam-se mais duas fieiras.
Caso o campo ou colônia se localizasse no perímetro ou nas proximidades de um centro urbano, a cerca de arame farpado costumava ser substituída por um muro de tijolos
ou uma cerca de madeira, para que ninguém que se aproximasse conseguisse ver o lado de dentro. Esses cercados eram bem construídos: em Medvezhegorsk, por exemplo,
sede do Canal do Mar Branco, uma cerca alta de madeira, erguida no começo dos anos 1930 para guardar os presos, ainda estava de pé quando visitei o lugar em 1998.
Para atravessar a cerca, tanto presos quanto guardas tinham de passar pela vakhta (guarita). Durante o dia, os guardas da vakhta controlavam todos os que entravam
e saíam, verificando os passes dos trabalhadores livres que adentravam o campo e dos guardas de comboio que escoltavam presos para fora. No campo Perm 36 - que foi
restaurado para ficar com a aparência original -, a vakhta contém uma passagem bloqueada por dois portões. Os presos caminhavam pelo primeiro; paravam no pequeno
espaço que ali havia, para ser vistoriados; e só então eram autorizados a atravessar o segundo portão. Basicamente, era o mesmo sistema que se encontra na entrada
dos bancos sicilianos.
Mas o arame farpado e os muros não eram os únicos a definir os limites da zona prisional. Na maioria dos campos, guardas armados vigiavam os presos de altas torres
de madeira. Às vezes, cães também davam a volta aos campos, presos por correntes a um arame que se estendia por todo o perímetro da zona prisional. Esses cães, a
cargo de tratadores especiais entre os guardas, eram adestrados para latir para presos que se aproximassem e farejar e perseguir qualquer um que tentasse escapar.
Assim, os presos eram coibidos não apenas por arame farpado e tijolos, mas também por controles visuais, auditivos e olfativos. Também eram tolhidos pelo medo, que
às vezes bastava para mantê-los em campos que não tinham nenhuma cerca. Margarete Buber-Neumann ficou num campo de segurança mínima que permitia que se movessem
"à vontade até oitocentos metros além do perímetro; ultrapassada aquela marca, os guardas atiravam sem cerimônia". Mas esse arranjo era incomum: na maioria dos
campos, os guardas atiravam "sem cerimônia" muito antes de se chegar tão longe. Nos regulamentos que impôs em 1939, Beria ordenava a todos os comandantes de campo
que deixassem junto às cercas uma "terra de ninguém", uma faixa não inferior a cinco metros de largura. No verão, regularmente, os guardas passavam o ancinho nessa
terra; e, no inverno, a deixavam coberta de neve; tudo para que sempre ficassem visíveis as pegadas de presos em fuga. O começo da terra de ninguém também era marcado,
às vezes por arame farpado, às vezes por avisos em que se lia Zapretnaya zona ("Zona proibida"). A terra de ninguém também era ocasionalmente chamada "zona da morte",
pois os guardas tinham permissão de atirar para matar em qualquer um que entrasse nela."
E mesmo assim... As cercas, muros, cães e barreiras que rodeavam os lagpunkts não eram de todo impenetráveis. Se os campos de concentração alemães eram selados por
completo - "hermeticamente fechados", na descrição de um perito -, o sistema soviético se mostrava diferente nesse sentido.
Para começo de conversa, ele classificava os presos em konvoinyi (sob guarda) e beskonvoinyi (sem guarda), e a pequena minoria dos segundos estava autorizada a atravessar
sem vigia os limites da zona prisional, fazer pequenos serviços externos para os guardas, trabalhar durante o dia num trecho de ferrovia não-guardado e até morar
em alojamentos privados fora da zona prisional. Esse último privilégio fora estabelecido já no início da história dos campos, durante os tempos (mais caóticos) da
primeira metade da década de 1930. Embora depois viesse a ser categoricamente proibido várias vezes, ele persistiu. Um conjunto de regras escritas em 1939 lembrava
os comandantes de campo de que "todos os presos, sem exceção, estão proibidos de morar fora da zona prisional, em aldeias, aposentos particulares ou casas pertencentes
ao campo". Em teoria, os campos precisavam obter autorização especial até para deixar os presos morarem em acomodações guardadas, caso estas ficassem fora da zona
prisional. Na prática, tais normas eram com freqüência desrespeitadas. Apesar da imposição de 1939, relatórios de inspetores escritos muito após aquela data listam
ampla variedade de violações. Um inspetor se queixou de que, na cidade de Ordzhonikidze, os presos andavam pelas ruas, iam às feiras, entravam em residências particulares,
bebiam e roubavam. Numa colônia penal de Leningrado, permitira-se que um preso usasse um cavalo, com o qual fugiu. Na colônia de trabalho 14, em Voronezh, um guarda
armado deixou 38 presos esperando na rua enquanto ele entrava num estabelecimento comercial.
A promotoria de Moscou mandou carta a outro campo, perto da cidade siberiana de Komsomolsk, acusando comandantes de terem permitido que não menos que 1.763 presos
obtivessem o status de "sem guarda". Em conseqüência, escreviam irados os promotores, "é sempre possível deparar com presos em qualquer parte da cidade, em qualquer
instituição e em moradias particulares". Também acusavam outro campo de deixar 150 presos morarem em acomodações privadas, uma violação do regime prisional, o que
provocara "incidentes de bebedeira, vandalismo e até assalto contra a população local".
Nos campos, os presos tampouco eram privados de toda a liberdade de movimento. Pelo contrário, tratava-se de uma das idiossincrasias dos campos de concentração,
uma das maneiras pelas quais eles se diferenciam do regime celular: quando não estavam trabalhando nem dormindo, os presos, em sua maioria, podiam entrar e sair
dos alojamentos à vontade. Quando não estavam trabalhando, também podiam, dentro de certos limites, determinar como usariam seu tempo. Só os presos em regime de
katorga (instituído em 1943) ou em "campos de regime especial" (criados em 1948) ficavam trancados nos alojamentos à noite, circunstância da qual se ressentiam amargamente
e contra a qual viriam a rebelar-se.
Chegando das claustrofóbicas cadeias soviéticas aos campos, os condenados muitas vezes se surpreendiam e se mostravam aliviados com a mudança. Um zek descreveu assim
seu ingresso no Ukhtpechlag:
"Tão logo saíamos para o ar livre, nosso estado de ânimo ficou maravilhoso". Olga Adamova-Sliozberg recordaria que, ao chegar a Magadan, falou "de
manhãzinha à noite sobre as vantagens do campo de concentração se comparado à cadeia":
A população do campo (cerca de mil mulheres) nos pareceu enorme: tanta gente, tantas possibilidades de conversa, tantas amizades em potencial! E havia a natureza.
Dentro do complexo, que era cercado com arame farpado, podíamos andar à vontade, admirar o céu e os montes distantes, ir às árvores mirradas e tocá-las com as mãos.
Respirávamos o ar marinho úmido, sentíamos a garoa de agosto no rosto, sentávamos na grama molhada e deixávamos a terra escorrer entre os dedos. Durante quatro anos,
vivêramos sem fazer nada disso, que agora descobríamos ser essencial à nossa existência: sem aquilo, deixávamos de sentir-nos pessoas normais.
Lev Finkelstein concorda:
Era-se trazido, saía-se do camburão e ficava-se surpreendido com várias coisas. Em primeiro lugar, os presos andavam sem guarda - estavam indo a algum lugar para
cumprir suas obrigações, ou coisa assim. Em segundo lugar, pareciam completamente diferentes de nós. O contraste se assemelharia ainda maior quando eu já estava
no campo e traziam novos presos. Estes tinham todos a cara esverdeada - por causa da falta de ar puro, por causa da comida lastimável, por causa de tudo aquilo.
Nos campos, os presos tinham tez mais ou menos normal. Ali, nós nos víamos entre gente relativamente livre, relativamente bem-apessoada.
Com o passar do tempo, a aparente "liberdade" da vida nos campos costumava esvanecer-se. O preso polonês Kazimierz Zarod escreveu que, nas celas das prisões, ainda
era possível acreditar que ocorrera um erro, que a soltura não demoraria. Afinal, "ainda estávamos rodeados pela aparência de civilização - fora dos muros da prisão,
havia uma grande cidade". No campo de concentração, porém, Zarod se viu circulando livremente em meio a
uma estranha diversidade de homens [.,.] suspendia-se toda sensação de normalidade. A medida que passaram os dias, fui tomado por uma espécie de pânico que, devagar,
se tornou desesperança. Tentei reprimir esse sentimento, empurrá-lo para as profundezas do consciente, mas aos poucos comecei a dar-me conta de que eu fora apanhado
num ato cínico de injustiça do qual parecia não haver escapatória.
Pior: essa liberdade de movimento podia fácil e rapidamente transformar-se em anarquia. De dia, os guardas e as autoridades dos campos eram bastante numerosos dentro
do lagpunkt; à noite, entretanto, desapareciam por completo. Um ou dois permaneciam na vakhta, mas o resto se retirava para o outro lado da cerca. Só se achavam
que suas vidas corriam perigo, os presos iam pedir ajuda aos guardas na vakhta, e nem isso era certeza. Um memorialista recorda que, após um arranca-rabo entre presos
políticos e presos comuns - fenômeno corriqueiro no pós-guerra, como veremos -, os bandidos, que levaram a pior, "correram para a vakhta", pedindo socorro. No dia
seguinte, foram levados para outro lagpunkt, pois a administração do campo preferiu evitar uma carnificina. Também uma mulher, sentindo-se ameaçada de estupro e
talvez morte nas mãos de um preso comum, "entregou-se" na vakhta e pediu para ser colocada na cela punitiva do campo, durante a noite, a fim de ficar protegida.
Contudo a vakhta não era confiável como zona de segurança. Os guardas que ali ficavam não atendiam necessariamente aos rogos dos prisioneiros. Informados de alguma
ofensa cometida por um grupo de presos contra outro, eles podiam muito bem rir e não ligar a mínima. Tanto em memórias quanto em documentos oficiais, há relatos
de guardas armados que não deram importância a casos de homicídio, tortura e estupro entre presos. Descrevendo uma curra que ocorreu à noite num dos lagpunkts do
Kargopollag, Gustav Herling conta que a vítima
soltou um grito curto, do fundo da garganta, lacrimoso e abafado pela saia. Da torre de vigia, uma voz sonolenta gritou: "Vamos lá, rapazes, o que estão fazendo?
Vocês não têm vergonha?" Os oito homens puxaram a garota para trás das latrinas e continuaram.
Em teoria, as normas eram severas: os presos tinham de ficar na zona prisional. Na prática, desrespeitavam-se as regras. E a conduta que não parecesse excessiva
aos guardas, não importando quão violenta ou nociva, não era punida.
Rezhim: normas de Vida
A zona prisional controlava a movimentação dos presos no espaço. Mas era o rezhim - o "regime", como se costuma traduzir o termo -, o que controlava o tempo deles.
Em termos simples, o regime era o conjunto de normas e procedimentos conforme os quais o campo funcionava. Se arame farpado limitava à "zona" a liberdade de movimento
dos zeks, una série de ordens e sirenes regulava as horas que eles passavam ali.
O regime variava em severidade de lagpunkt a lagpunkt, segundo tanto prioridades cambiantes quanto o tipo de preso. Em épocas diversas, houve campos de regime brando,
para inválidos; de regime comum ("ordinário"); de regime especial; e de regime disciplinar. Mas o sistema básico se manteve o mesmo. O regime prisional determinava
como e quando o preso devia acordar; como devia ser conduzido ao trabalho; como e quando devia ser alimentado; como e por quanto tempo devia dormir.
Na maioria dos campos, o dia dos presos começava oficialmente com o razvod, o procedimento que organizava os presos em turmas e os fazia marchar para o trabalho.
Um toque de sirene, ou outro sinal, os despertava. Outro toque de sirene avisava que o desjejum acabara e que o trabalho estava para começar. Os presos então se
alinhavam em frente aos portões do campo para a contagem matinal. Valerii Frid, roteirista de filmes soviéticos e autor de uma memória de vivacidade pouco comum,
descreveu a cena:
As turmas de trabalho se organizavam em frente ao portão. O encarregado segurava uma tabuleta estreita e bem ordenada; nela, estavam escritos o número das turmas
e o número de trabalhadores (havia escassez de papel, e os números eram apagados da tabuleta [...] e reescritos no dia seguinte). O guarda e o distribuidor de tarefas
verificavam se todos estavam no lugar; em caso afirmativo, eram levados para o trabalho lá fora. Se estivesse faltando alguém, todos tinham de esperar enquanto procuravam
o folgado.
De acordo com instruções de Moscou, isso não podia tomar mais que quinze minutos. É claro que, conforme escreve Kazimierz Zarod, freqüentemente demorava muito mais,
mesmo com mau tempo:
Às 3h30, devíamos estar no meio do pátio, em pé em fileiras de cinco, esperando para ser contados. Muitas vezes, os guardas erravam na contagem, e aí era preciso
fazer outra. Nas manhãs em que nevava, isso era um processo demorado, gelado e aflitivo. Caso os guardas estivessem bem despertos e concentrados, a contagem levava
em geral trinta minutos; mas, se errassem, ficávamos até uma hora em pé ali.
Alguns campos adotavam contramedidas para "animar os presos" durante esse processo. Eis o que diz Frid: "Nosso razvod acontecia ao som de sanfona. Um preso, livre
de todas as outras obrigações de trabalho, tocava melodias alegres". Zarod também recorda a esquisitice que era ter uma bandinha matinal, constituída de músicos
presos tanto profissionais quanto amadores:
Toda manhã, a "banda" se punha próximo ao portão, tocando música marcial, e éramos exortados a marchar "com vigor e alegria" para nosso dia de trabalho. Tendo tocado
até que o fim da coluna houvesse passado pelo portão, os músicos deixavam os instrumentos e, unindo-se ao final da coluna, juntavam-se aos trabalhadores que caminhavam
para a floresta.
Dali, os presos eram conduzidos, marchando, ao trabalho. Os guardas gritavam as ordens diárias ("Um passo para a esquerda, ou a esquerda, será considerado tentativa
de fuga... A guarda disparará sem aviso... Marchem!"), e os presos marchavam, ainda em fileira de cinco. Se a distância era grande, iam acompanhados de guardas e
cães. Para o retorno ao campo à noitinha, o procedimento era bem parecido. Após uma hora para o jantar, os presos de novo formavam fileiras. E, de novo, os guardas
os contavam só uma vez (se os presos tivessem sorte) ou mais de uma (se não tivessem). As instruções de Moscou reservavam mais tempo para a contagem noturna (de
trinta a quarenta minutos), sendo de presumir que agissem assim porque o mais provável seriam as tentativas de fuga fora do campo, no local de trabalho. Depois,
a sirene soava outra vez, e era hora de dormir.
Essas normas e escalas de horário não eram imutáveis. Pelo contrário: o regime prisional mudou com o tempo, em geral ficando mais severo. Jacques Rossi escreve que
"o principal traço do sistema penitenciário soviético é sua sistemática intensificação, com a gradual elevação do puro e arbitrário sadismo à condição de lei", e
há alguma verdade nisso. Por toda a década de 1940, o regime prisional foi ficando mais rigoroso; as jornadas de trabalho, mais longas; os dias de descanso, menos
freqüentes. Em 1931, os presos da Expedição Vaigach (parte da Expedição Ukhtinskaya) faziam jornadas de seis horas, em três turnos. No começo dos anos 1930, na região
de Kolyma, os trabalhadores também seguiam jornadas normais, mais curtas no inverno e mais longas no verão. Naquela mesma década, porém, a jornada dobraria em extensão.
No final dos anos 1930, as mulheres na oficina de costura de Elinor Olitskaya trabalhavam "doze horas num salão sem ventilação", e a jornada de Kolyma também se
estendera a doze horas. Depois, Elinor trabalharia numa turma de construção: jornadas de catorze a dezesseis horas, com intervalos de cinco minutos às dez da manhã
e quatro da tarde e com uma hora de almoço ao meio-dia.
O caso de Elinor tampouco era único. Em 1940, a jornada no Gulag foi aumentada oficialmente para onze horas, ainda que até esse limite fosse desrespeitado e excedido
com freqüência. Em março de 1942, a direção do Gulag, em Moscou, despachou carta furiosa a todos os comandantes de campo, lembrando-os da regra de que "se devem
conceder aos presos não menos que oito horas de sono". A carta explicava que muitos comandantes não acatavam tal norma e só permitiam que os prisioneiros dormissem
quatro ou cinco horas por noite. O Gulag se queixava de que, em conseqüência, "os presos estão perdendo a capacidade de trabalho; tornam-se "trabalhadores fracos
e inválidos".
O desrespeito à norma continuou, em especial durante os anos de guerra, quando se acelerou a demanda produtiva. Em setembro de 1942, a direção do Gulag estendeu
oficialmente para doze horas a jornada dos presos que construíam instalações aeroportuárias, com uma hora de almoço. O padrão era o mesmo por toda a URSS. No Vyatlag,
durante a guerra, registraram-se jornadas de dezesseis horas. Em Vorkuta, no verão de 1943, houve jornadas de doze horas, embora elas fossem de novo reduzidas para
dez horas em março de 1944 - provavelmente por causa das elevadas taxas de mortalidade e doença. Sergei Bondarevskii, prisioneiro durante a guerra numa sharashka
(um daqueles laboratórios especiais para cientistas presos), também recordaria jornadas de onze horas, com intervalos. Num dia típico, Bondarevskii trabalhava das
oito às catorze; das dezesseis às dezenove; e das vinte às 22.
Em todos os casos, as normas eram violadas com freqüência. Os zeks designados para as turmas de trabalho que garimpavam ouro em Kolyma tinham de peneirar 150 carrinhos
de terra por dia. Quem não terminara essa quantidade ao fim da jornada simplesmente continuava trabalhando até cumprir a cota - por vezes já à meia-noite. Depois,
ia para o alojamento, tomava sua sopa e acordava às cinco para recomeçar o trabalho. A administração do campo de Norilsk aplicava principio semelhante no final
da década de 40; um homem que nessa época estava preso lá, escavando alicerces para novas construções no perma-frost, relataria: "Após doze horas de trabalho, eles
nos içavam do buraco, mas só se tivéssemos concluído o serviço. Do contrário, éramos simplesmente deixados ali".
Tampouco se concediam muitos intervalos durante o dia, como depois explicaria um preso dos tempos da guerra, designado para uma unidade têxtil:
Às seis da manhã, tínhamos de estar na fabrica. Às dez, havia intervalo de cinco minutos para um cigarrinho, com o que precisávamos correr para um porão a uns duzentos
metros de distância, o único lugar nas instalações da fábrica onde se permitia fumar. Infringir a norma acarretava mais dois anos de pena. À uma da tarde, tinha-se
meia hora de almoço. De cuia de cerâmica na mão, era necessário disparar freneticamente para a cantina, entrar numa fila comprida, receber uns grãos de soja nojentos
que faziam mal à maioria das pessoas - e estar impreterivelmente na fábrica quando os motores começavam a funcionar. Então, sem sairmos de nossos lugares, ficávamos
ali até as sete da noite".
O número de dias de folga também era determinado por lei. Os presos em regime comum tinham uma por semana; e aqueles em regimes mais severos, duas por mês. Mas,
na prática, essa norma também variava. Já em 1933, a direção do Gulag em Moscou emitiu ordem que lembrava os comandantes de campo da importância que tinham os dias
de descanso, muitos dos quais vinham sendo cancelados na corrida louca para cumprir as metas do Plano Qüinqüenal. Uma década depois, quase nada mudara. Durante
a guerra, Kazimierz Zarod tinha um dia de folga a cada dez. Outro preso se recordaria de ter um por mês. Gustav Herling lembraria que os dias livres eram ainda
mais infreqüentes:
Pelos regulamentos, os presos tinham direito a um dia inteiro de descanso a cada dez de trabalho. Na prática, entretanto, mesmo um dia de folga por mês ameaçava
diminuir a produção do campo, e, por isso, tornou-se costume anunciar cerimoniosamente a concessão de um dia livre sempre que o campo superasse suas metas de produção
para determinado trimestre... Naturalmente, não tínhamos nenhuma oportunidade de verificar as cifras nem o planejamento produtivo, de modo que esse acerto era uma
ficção que acabava nos deixando totalmente à mercê das autoridades do campo.
Mesmo nos raros dias de folga, acontecia às vezes que os presos fossem obrigados a fazer trabalho de manutenção dentro do campo, limpando os alojamentos, os sanitários,
a neve no inverno. Tudo isso torna especialmente patética uma ordem emitida por Lazar Kogan, o comandante do Dmitlag. Incomodado pelos muitos casos de cavalos que
desabavam de exaustão na lida do campo, Kogan começava observando que "o crescente número de cavalos doentes ou exauridos tem várias causas, inclusive o excesso
de carga, as condições difíceis das estradas e a ausência de descanso pleno e completo para que eles recuperem as forças".
Kogan então continuava, dando novas instruções:
1. A jornada de trabalho dos cavalos do campo não deve ser superior a dez horas, sem contar o intervalo obrigatório de duas horas para descanso e alimentação.
2. Na média, os cavalos não devem percorrer mais que 32 quilômetros por dia.
3. Aos cavalos se deve conceder um dia regular de descanso a cada oito, e esse descanso deve ser completo.
Sobre a necessidade de que os presos tivessem um dia de folga a cada oito, não se fazia, infelizmente, nenhuma menção.
Babaki: a morada
Na maioria dos campos, a maior parte dos presos ficava em barracões. Contudo, raros eram os campos cujos alojamentos já estivessem prontos quando os primeiros presos
chegavam. Aqueles presos que tinham o azar de ser enviados para construir um campo moravam em tendas, ou nem isso. Uma canção de prisioneiros dizia:
Seguíamos rápido pela tundra Quando, de súbito, o trem parou. Em volta, só floresta e lama... E ali construiríamos o canal.
Ivan Sulimov, prisioneiro em Vorkuta nos anos 1930, foi deixado, junto com um grupo de detentos, num "lote quadrado na tundra polar"; receberam ordem de armar tendas,
fazer uma fogueira e começar a erguer barracões e "uma cerca de lajes e arame farpado". O polonês Janusz Sieminski, prisioneiro em Kolyma após a guerra, também
participou de uma equipe que, em pleno inverno, construiu um lagpunkt "a partir do zero". A noite, os presos dormiam ao relento. Muitos morreram, sobretudo os que
perderam a batalha para ver quem dormiria perto do fogo. Em dezembro de 1940, presos que chegavam ao campo de Prikaspiiskii, no Azerbaijão, também dormiam, nas
palavras de um irritado inspetor da NKVD, "sob as estrelas, no chão úmido". E essas situações tampouco eram necessariamente temporárias. Mesmo em 1955, presos ainda
moravam em tendas em alguns campos.
Se e quando os presos erguiam barracões, estes sempre eram construções de madeira extremamente simples. Moscou determinava o projeto deles, e, por conseguinte, as
descrições são um tanto repetitivas: todo preso menciona os barracões compridos e retangulares de madeira, as paredes sem reboco, as lendas tapadas com barro, o
espaço interno tomado por fileiras e mais fileiras de beliches de madeira igualmente precários. Às vezes, havia uma mesa rústica; às vezes, não. Às vezes, havia
bancos compridos; às vezes, não. Em Kolyma e outras regiões onde a madeira era escassa, os prisioneiros construíam alojamentos de pedra, também baratos e apressados.
Quando não se dispunha de isolamento térmico, usavam-se outros métodos. Fotos dos alojamentos de Vorkuta tiradas no inverno de 1945 os fazem parecer quase invisíveis:
os telhados haviam sido construídos em ângulo agudo, mas muito perto do chão, de maneira que a neve que se acumulasse ao redor ajudasse a isolá-los do frio.
Com freqüência, os alojamentos nem sequer chegavam a ser construções, e sim zemlyanki (abrigos de trincheira). No começo dos anos 1940, A. P. Evstonichev ficou num
na Carélia:
No alojamento. Detentos ouvem músico prisioneiro. Desenho de Benjamin Mkrtchyan. Ivdel, 1953
Um zemlyanka era um espaço do qual se retiravam a neve e a camada superior de terra. As paredes e o teto eram feitos com toras redondas e não-desbastadas. A estrutura
toda era coberta com outra camada de terra e neve. A entrada do abrigo recebia uma porta de lona [...] num canto, havia um barril de água. No meio do abrigo, um
fogão de metal, com chaminé metálica saindo pelo teto, e um barril de querosene.
Nos lagpunkts construídos nos canteiros de obras de rodovias e ferrovias, sempre havia zemlyanki. Conforme exposto no capítulo 4, seus vestígios ainda marcam os
caminhos construídos por presos no extremo norte, assim como as margens do rio perto das áreas mais antigas da cidade de Vorkuta. Às vezes, os presos também ficavam
em tendas. Uma memória dos primeiros tempos do Vorkutlag descreve a armação, num período de três dias, de "quinze tendas com beliches triplos" para cem presos cada
uma, assim como de uma zona prisional com cerca de arame farpado e quatro torres de vigia.
Mesmo os verdadeiros barracões raramente correspondiam aos já baixos padrões que Moscou estabelecera. Quase sempre, eram terrivelmente superlotados, até depois que
já amainara o caos do fim dos anos 1930. Um relatório de inspeção de 23 campos, escrito em 1948, observava com raiva que, na maioria deles, "os presos não tinham
mais que um a 1,5 metro quadrado por pessoa", e mesmo esse espaço estava em condições insalubres: "os prisioneiros não têm lugar determinado para dormir, nem lençóis
e cobertores individuais". Por vezes, havia ainda menos espaço. Margarete Buber-Neumann registra que, na chegada ao campo, não se dispunha de nenhum espaço para
dormir nos barracões, e ela foi obrigada a passar as primeiras noites no chão do lavatório.
Os presos em regime "ordinário" deviam ter leitos, chamados vagonki, nome oriundo dos beliches encontrados nos vagões de passageiros. Eram beliches duplos, com espaço
para dois detentos em cada leito. Em muitos campos, os presos dormiam nos sploshnye nary, ainda menos sofisticados. Estes eram compridas prateleiras de madeira que
serviam de leito, não estando nem sequer divididas em beliches separados. Os presos simplesmente deitavam um ao lado do outro, numa longa fileira. Dado que esses
leitos comunais eram considerados anti-higiênicos, os inspetores dos campos também viviam denunciando-os. Em 1948, a direção do Gulag emitiu diretiva que exigia
que todos os sploshnye nary fossem substituídos por vagonki. Todavia, Anna Andreevna, prisioneira na Mordóvia no final dos anos 1940 e começo dos 50, dormia em
sploshnye nary; ela também lembra que muitas presas ainda dormiam no chão, debaixo dessas prateleiras.
As dotações de roupa de cama e banho também eram arbitrárias e variavam muito de campo para campo, apesar de mais regras severas (e um tanto modestas) instituídas
por Moscou. Os regulamentos determinavam que todos os presos recebessem uma toalha nova a cada ano; uma fronha a cada quatro anos; lençóis a cada dois; e um cobertor
a cada cinco. Na prática, "para cada leito, vinha um pretenso colchão de palha", escreveria Elinor Lipper:
Nele não havia nenhuma palha, e raramente tinha feno, pois não se dispunha de forragem suficiente para o gado; em vez dessas coisas, o colchão continha raspagem
de madeira ou roupas extras, se a prisioneira ainda possuísse roupas extras. Havia ainda um cobertor de lã e uma fronha que a gente podia encher com o que tivesse,
pois não existiam travesseiros.
Outros não dispunham de absolutamente nada. Mesmo em 1950, Isaak Filshtinskii, especialista em árabe aprisionado em 1948, ainda dormia coberto apenas pelo casaco,
usando trapos como travesseiro, no Kargopollag.
Aquela diretiva de 1948 também instruía que se cobrisse com piso de madeira o chão nu dos alojamentos. Mas, quando já se estava nos anos 1950, Irena Arginskaya morava
num barracão cujo piso não se podia limpar direito, pois era de argila. Mesmo quando os pisos eram de madeira, freqüentemente não se conseguia limpá-los por falta
de vassouras. Descrevendo sua vivência do Gulag a uma comissão no pós-guerra, uma polonesa explicou que, no campo onde estivera, um grupo de prisioneiras sempre
permanecia "de serviço" à noite, limpando os barracões e sanitários enquanto outras dormiam: "A lama no piso do barracão tinha de ser tirada a faca. As russas ficavam
alucinadas porque não conseguíamos fazê-lo e nos perguntavam como vivíamos em nossas casas. Nem sequer lhes ocorria que mesmo o chão mais sujo pode ser varrido e
escovado".
Com freqüência, o aquecimento e a iluminação eram igualmente primitivos, mas, também nisso, as circunstâncias variavam muito de campo para campo. Um preso lembraria
que os barracões ficavam praticamente às escuras: "as lâmpadas elétricas tinham brilho branco-amarelado, quase imperceptível, e os lampiões de querosene soltavam
fumaça e um cheiro repugnante". Outros se queixavam do problema oposto: as luzes costumavam ficar acesas a noite toda. Nos campos da região de Vorkuta, alguns
presos não tinham nenhum problema de aquecimento, visto que podiam trazer pedras de carvão das minas; mas Susanna Pechora, num lagpunkt perto das minas carboníferas
de Inta, recordaria que, dentro dos barracões, "fazia tanto frio no inverno que nossos cabelos congelavam e se grudavam à cama e a água de beber congelava nas canecas".
No alojamento de Susanna, tampouco havia água corrente, só a trazida em baldes pela dezhurnaya - mulher mais velha, já incapacitada para o trabalho mais pesado -,
que, durante o dia, limpava o barracão e cuidava dele.
Pior: "um mau cheiro terrível" permeava o alojamento, por causa das enormes quantidades de roupas sujas e mofadas que eram postas para secar na beira dos beliches
e das mesas ou em qualquer lugar onde fosse possível pendurar algo. Nos alojamentos dos campos especiais, onde as portas eram trancadas à noite e as janelas tinham
grades, o fedor tornava "quase impossível respirar".
A qualidade do ar não melhorava com a ausência de sanitários. Nos campos onde os presos ficavam trancados nos alojamentos à noite, os zeks tinham de usar o parasha
(balde sanitário), tal como nas cadeias. Um preso escreveu que, de manhã, era impossível carregar o parasha, "de modo que o arrastavam por aquele piso escorregadio;
o conteúdo invariavelmente entornava". Galina Smirnova, detida no começo dos anos 1950, lembraria que, "se a coisa era séria, a gente esperava até de manhã; do
contrário, o fedor era horrível".
Os sanitários eram casinhas, e estas ficavam a alguma distância dos alojamentos, o que era uma provação no frio do inverno. "As latrinas eram de madeira, ao ar livre",
disse Galina a respeito de outro campo, "e tinha-se de usá-las mesmo quando fazia trinta ou quarenta graus abaixo de zero." Thomas Sgovio escreveu sobre as conseqüências:
Do lado de fora, em frente a cada alojamento, puseram um mastro, que, congelando, se fixou no solo. Mais uma ordem! Estávamos proibidos de urinar em qualquer outro
lugar do campo que não fossem as casinhas ou aquele mastro, com o trapo branco amarrado no alto. Quem quer que fosse apanhado desrespeitando a ordem passaria dez
noites na cela punitiva [...]. A ordem foi dada porque, à noite, havia presos que, não querendo andar a longa distância até as casinhas, urinavam em cima das trilhas
de neve, já bem batidas. O chão estava coberto de pontos amarelos. No final da primavera, quando a neve derretesse, o fedor seria terrível [...] duas vezes por mês,
cortávamos essas pirâmides de urina congelada e, de carrinho, levávamos os pedaços para fora da zona.
Contudo, a sujeira e o apinhamento não eram apenas problemas estéticos, nem questão de desconforto relativamente menor. Os beliches superlotados e a falta de espaço
também podiam ser mortíferos, em especial nos campos que trabalhavam em esquema de 24 horas por dia. Sobre um desses campos, onde os presos trabalhavam em três turnos,
dia e noite, um memorialista escreveu que
havia gente dormindo no alojamento a qualquer hora do dia. Brigar para conseguir dormir era brigar pela vida. Discutindo por conta do sono, as pessoas se xingavam,
lutavam entre si, até se matavam umas às outras. No alojamento, o rádio estava no volume máximo o tempo todo e, por isso, era detestado.
Justamente porque a questão de onde dormir era tão crucial, o sono sempre constituía importantíssima ferramenta de controle sobre os presos, e a administração dos
campos o usava assim, de caso pensado. No arquivo central em Moscou, o Gulag conservava cuidadosamente fotos de diferentes tipos de alojamentos, para diferentes
tipos de presos. Os barracões dos otlichniki - os "ótimos", ou "trabalhadores de choque" - tinham camas individuais com colchões e cobertores, assoalho de madeira
e quadros nas paredes. Os presos, se não chegavam a sorrir para os fotógrafos, pelo menos liam jornais e pareciam bem nutridos. Já os barracões de rezhim - os alojamentos
punitivos para trabalhadores ineficazes ou refratários - não tinham camas, mas pranchas sobre suportes rústicos de madeira. Mesmo nessas fotos propagandísticas,
os presos na categoria rezhim não possuem colchões e dividem cobertores.
Em alguns campos, a etiqueta referente ao sono se tornava bastante complexa. O espaço era tão escasso que ele, e a privacidade, era considerado grande privilégio,
concedido apenas aos que estavam incluídos na aristocracia dos campos. Com freqüência, permitia-se que presos de posição mais elevada - chefes de turmas de trabalho
e outros - dormissem em barracões menores, com menos pessoas. Solienitsin, tendo de início sido designado "gestor de trabalhos" ao chegar a um campo em Moscou, ganhou
lugar num alojamento onde,
em vez de beliches múltiplos, havia catres comuns e um criado-mudo para cada duas pessoas, e não para toda uma turma de trabalho. Durante o dia, a porta ficava trancada,
e podíamos deixar nossas coisas lá. Por fim, havia uma chapa elétrica, semi-legal, e não era necessário apinhar-se em volta do grande fogão comunal no pátio.
Tudo isso era considerado um grande luxo. Era verdade que trabalhos mais desejáveis (marcenaria, ou reparo de ferramentas) também vinham com o cobiçadíssimo direito
a dormir na oficina. Anna Rozina pernoitava no trabalho quando foi sapateira no campo de Temnikovsky e tinha também o "direito" de ir mais vezes aos banhos, coisas
que constituíam grandes privilégios.
Em quase todo campo, os médicos, mesmo os aprisionados, também podiam dormir à parte, prerrogativa que refletia o status especial desses profissionais. O cirurgião
Isaac Vogelfanger sentia-se privilegiado porque o deixavam dormir num catre numa "salinha anexa à recepção" da enfermaria do campo. "A lua parecia sorrir para mim
quando eu ia dormir." Junto dele, dormia o feldsher (assistente médico) do campo, o qual tinha o mesmo privilégio.
Às vezes, providenciavam-se condições especiais para inválidos. A atriz Tatyana Okunevskaya conseguiu ser mandada para um campo de inválidos na Lituânia, onde "os
alojamentos eram compridos, com muitas janelas, iluminados, limpos, sem beliches sobre nossas cabeças". Os presos enviados para o trabalho nos sharashki de Beria
- os "departamentos especiais" para engenheiros e técnicos de talento -ganhavam as melhores entre todas as acomodações. Em Bolshevo (sharashka nas imediações de
Moscou), os alojamentos eram "grandes, iluminados, limpos e aquecidos com panelões de ferro", e não com fogões de metal. Os leitos tinham travesseiro e roupa de
cama, as luzes se apagavam à noite, e havia chuveiro individual. Os prisioneiros que moravam nessas acomodações especiais sabiam, é claro, que elas poderiam ser-lhes
tiradas facilmente, o que aumentava o interesse deles em dar duro.
Extra-oficialmente, também havia outra hierarquia nos alojamentos. Na maioria destes, as decisões cruciais sobre quem dormiria e onde dormiria eram tomadas pelos
grupos que eram mais fortes e mais unidos nos campos. Até o final da década de 1940 - quando ficariam mais poderosos os grandes grupos nacionais de presos, como
ucranianos, baltas, tchetchenos e poloneses -, os mais organizados, como veremos, costumavam ser os criminosos condenados. Por conseguinte eles em geral dormiam
nos beliches superiores, mais arejados e espaçosos, golpeando e chutando os que se opunham a isso. Quem dormia nos beliches inferiores tinha menos ascendência. E
quem dormia no chão - os presos de status mais baixo no campo - sofria mais que todos, conforme lembraria um preso:
Esse nível era denominado "setor colcoz" , e era para lá que os bandidos baniam os kolkhozniki - ou seja, diversos padres e intelectuais idosos e até alguns deles
mesmos, que haviam desrespeitado o código de honra da bandidagem. Sobre esses não caíam apenas coisas dos beliches superiores e inferiores: os bandidos também despejavam
restos, água, a sopa do dia anterior. E o setor colcoz tinha de agüentar tudo isso, porque, se reclamasse, seria alvo de ainda mais sujeira [...] pessoas adoeciam,
sufocavam, perdiam a consciência, enlouqueciam, morriam de tifo ou disenteria, suicidavam-se.
Não obstante, os presos, mesmo os políticos, podiam melhorar suas condições de vida. Trabalhando como feldsher, o preso político polonês Karol Colonna-Czosnowski,
colocado num alojamento extremamente apinhado, caiu nas boas graças de Grisha, o "chefão" criminoso do campo:
Ele deu um majestoso pontapé num de seus cortesãos, que interpretou aquilo como ordem para arrumar espaço para mim e deixou seu lugar na mesma hora. Fiquei constrangido
e aleguei que preferia não sentar tão perto do fogo, mas isso não estava em conformidade com os desejos de meu anfitrião, como descobri quando um dos asseclas de
Grisha me deu um tremendo empurrão.
Quando Colonna-Czosnowski recuperou o equilíbrio, viu-se sentado aos pés de Grisha. "Aparentemente, era ali que ele queria que eu permanecesse." Colonna-Czosnowski
não discutiu. Ainda que por poicas horas, o lugar onde alguém sentava, ou pousava a cabeça, era coisa importantíssima.
Bahya: os banhos
A sujeira, a superlotação e a falta de higiene causavam uma praga de percevejos e piolhos. Nos anos 1930, um desenho "humorístico" do Perekovka (o jornal do canal
Moscou-Volga) mostrava um zek ao qual entregavam trajes novos. A legenda: "Eles lhe dão roupas 'limpas', mas estão empiolhadas". Outro cartum dizia: "Enquanto a
gente dorme no alojamento, os percevejos picam feito paguros". O problema não diminuiu com o passar dos anos. Um preso polonês recorda que, durante a guerra, seu
companheiro de campo ficou obcecado por esses bichos: "Como biólogo, interessava-se em saber quantos piolhos podiam subsistir em determinado espaço. Contando-os
na camisa, achou sessenta e, uma hora depois, outros sessenta".
Na década de 1940, os chefes do Gulag já tinham reconhecido havia muito tempo o perigo mortal do tifo transmitido por piolhos e, oficialmente, travavam uma batalha
constante contra os parasitas. Os banhos eram supostamente obrigatórios de dez em dez dias. Toda a roupa devia ser fervida em unidades de desinfecção, primeiro quando
se ingressava no campo e depois a intervalos regulares, para destruir todos os organismos nocivos. Como já vimos, os barbeiros dos campos rapavam o corpo inteiro
de homens e mulheres já na chegada; depois, também lhes rapavam regularmente as cabeças. O sabão, mesmo que em quantidades ínfimas, era com freqüência incluído na
lista de produtos a distribuir aos presos; em 1944, por exemplo, seriam duzentos gramas mensais de sabão para cada prisioneiro. Mulheres, presos hospitalizados e
filhos de presos recebiam mais cinqüenta gramas; adolescentes, mais cem; e presos que realizavam "serviços especialmente sujos", mais duzentos. Essas minúsculas
lascas de sabão se destinavam tanto à higiene pessoal quanto à lavagem da indumentária e da roupa de cama e banho. (Dentro ou fora dos campos, o sabão não ficou
menos escasso. Mesmo em 1991, mineiros de carvão entraram em greve porque, entre outras coisas, não tinham sabão.)
Entretanto, nem todo mundo estava convencido da eficácia dos processos de espiolhação adotados nos campos. Na prática, escreveria um preso, "os banhos pareciam aumentar
o vigor sexual dos piolhos".
Varlam Shalamov iria além: "Não apenas a espiolhação era absolutamente inútil como também nenhum piolho morria na câmara de desinfecção. Era apenas uma formalidade,
e o procedimento todo fora criado para atormentar ainda mais o condenado".
Estritamente falando, Shalamov estava errado. Não se criara o procedimento para atormentar os condenados - como eu disse, a direção do Gulag, em Moscou, de fato
estabelecera diretivas muito severas, instruindo os comandantes de campo a guerrearem contra os parasitas, e incontáveis relatórios de inspeção denunciam a negligência
em fazê-lo. Uma descrição de 1933 sobre as condições no Dmitlag se queixa iradamente dos alojamentos femininos, que eram "sujos, sem lençóis e cobertores; as mulheres
reclamam da enorme quantidade de percevejos, os quais a Divisão Sanitária não está combatendo". Um inquérito de 1940 sobre as condições num grupo de campos setentrionais
falava com raiva dos "piolhos e percevejos, que têm impacto negativo sobre as possibilidades de descanso dos presos" num lagpunkt; já o campo de trabalho correcional
de Novossibirsk tinha "100% de incidência de piolhos entre os presos [...] em conseqüência das más condições sanitárias, é alto o índice de doenças dermatológicas
e distúrbios estomacais [...] fica então claro que as condições anti-higiênicas no campo nos causam enormes prejuízos". Entrementes, houvera dois surtos
de tifo em outro lagpunkt; e, em outros mais, os presos estavam "pretos de sujeira", continuava o relatório, com muita inquietação.
Queixas referentes a piolhos, e ordens iradas para eliminá-los, figuram ano após ano nos relatórios de inspeção apresentados pela promotoria do Gulag. Depois de
outra epidemia de tifo no Temlag, em 1937, o diretor do lagpunkt e o vice-diretor do departamento médico do campo foram demitidos, indiciados por "negligência e
inércia criminosas" e levados a julgamento. Usavam-se não só punições, como também recompensas: em 1933, os ocupantes de um alojamento do Dmitlag ganharam dias
de folga do trabalho como prêmio por terem eliminado os percevejos em todos os leitos.
A recusa de banhar-se era igualmente levada muito a sério. Irena Arginskaya, que no começo dos anos 1950 estava num campo especial para presos políticos em Kengir,
se recordaria de uma seita religiosa feminina que, por motivos conhecidos apenas das praticantes, se negava a tomar banho:
Um dia, eu ficara no alojamento porque estava doente e, assim, fora liberada do trabalho. Contudo um guarda entrou e nos disse que todas as presas adoentadas teriam
de ajudar a lavar as "freiras". A cena foi esta: uma carroça foi puxada até a parte dos alojamentos onde elas ficavam, e precisamos carregá-las para fora e colocá-las
na carroça. Elas chiaram, nos chutaram, nos golpearam etc. Mas, quando enfim as pusemos no carroção, ficaram quietas e não tentaram fugir. Aí, puxamos a carroça
até os banhos, onde as levamos para dentro, as despimos - e então entendemos por que a administração do campo não podia permitir que elas deixassem de tomar banho:
quando lhes tiramos as roupas, caíram mancheias de piolhos. Colocamos as mulheres debaixo da água e as lavamos. Enquanto isso, as roupas delas eram fervidas para
matar os piolhos.
Irena também lembra que, "em princípio, era possível ir ao banho quantas vezes se quisesse" lá em Kengir, onde não havia restrições ao uso da água. De modo semelhante,
Leonid Sitko, ex-prisioneiro de guerra na Alemanha, avaliaria que os campos soviéticos tinham menos piolhos que os campos alemães. Sitko esteve preso tanto no Steplag
quanto no Minlag, onde "podíamos tomar quantos banhos desejássemos [...] podíamos até lavar nossas roupas". Certas fábricas e locais de trabalho tinham chuveiros
próprios, como Isaak Filshtinskii descobriu no Kargopollag, onde os presos podiam usá-los durante o dia, muito embora outros detentos sofressem com a falta de água.
Entretanto, Variam Shalamov não estava de todo errado em sua descrição cética do sistema de higiene. Pois, mesmo os administradores locais dos campos sendo instruídos
a levar essas medidas sanitárias a sério, muitas vezes acontecia que eles simplesmente, cumpriam os rituais de espiolhação e banho, sem parecer dar grande importância
aos resultados. Ou não se dispunha de carvão suficiente para manter quente o bastante o dispositivo de desinfecção; ou os encarregados não se preocupavam em executar
direito o procedimento; ou não se distribuíam rações de sabão durante meses; ou essas rações eram surrupiadas. Nos dias de banho no lagpunkt de Dizelny, em Kolyma,
"davam a cada preso uma lasquinha de sabão e um canecão de água morna, despejavam cinco ou seis desses canecos numa cuba, e isso bastava para todo mundo, para banhar
e enxaguar cinco ou seis pessoas". No lagpunkt de Sopka,
a água, assim como outras cargas, era trazida pela ferrovia de bitola estreita e pela estradinha. No inverno, obtinham-na da neve, embora ali não se acumulasse muita,
já que o vento a dispersava [...]. Os trabalhadores voltavam da mina cobertos de poeira, e não havia pias onde se lavarem.
Com freqüência, os guardas se cansavam do processo de banhar os presos e concediam-lhes só uns poucos minutos no banho, por pura formalidade. Em 1941, no lagpunkt
do Siblag, um inspetor indignado descobriu que "os presos não tomam banho há dois meses", por conta pura e simplesmente do desinteresse dos guardas. E, nos piores
campos, a flagrante negligência para com a condição humana dos presos transformava os banhos em verdadeira tortura. Muitos descrevem o caráter hediondo do processo,
mas ninguém tão bem quanto, de novo, Variam Shalamov, o qual dedicou um conto inteiro aos horrores do banho em Kolyma. Os presos, embora exaustos, tinham de esperar
horas pela vez de lavarem-se:
As sessões na sala de banhos ocorriam antes ou depois do trabalho. Após muitas horas de serviço no frio (e no verão não era mais fácil), quando todos os pensamentos
e expectativas se concentravam no desejo de chegar ao beliche e à comida para poder cair no sono o quanto antes, a demora na sala de banhos era quase insuportável.
Primeiro, os zeks ficavam em filas, do lado de fora, no frio; depois, eram arrebanhados para vestiários superlotados, construídos para acomodar quinze pessoas mas
abrigando até cem. Durante todo esse meio-tempo, eles sabiam que os alojamentos estavam sendo limpos e revistados. Seus parcos pertences - aí incluídos os utensílios
de louça e os panos com que envolviam os pés - estavam sendo jogados na neve:
É característico do homem, seja mendigo, seja ganhador do Nobel, logo adquirir coisinhas de uso pessoal. O mesmo vale para o condenado. Afinal, é um homem em atividade
e precisa de agulha e material para remendos, talvez de uma cuia extra. Tudo isso é jogado fora e deve ser novamente acumulado depois de cada dia nos banhos, a menos
que tenha sido escondido bem fundo em algum lugar na neve.
Uma vez dentro da casa de banhos, havia freqüentemente tão pouca água que era impossível ficar limpo. Dava-se aos presos "uma bacia de madeira com água não muito
quente [...] não havia água além daquela, e ninguém conseguia comprar nenhuma mais". Tampouco as salas de banho eram aquecidas: "A sensação de frio aumentava com
as mil correntes de ar que entravam por baixo das portas, pelas frestas. As salas não eram de todo aquecidas; havia frestas nas paredes". Dentro, tinha-se também
"uma zoeira constante, acompanhada de fumaça, apinhamento e gritaria. Existia até uma expressão comum: 'berrar como nos banhos' ".
Thomas Sgovio também descreve essa cena dantesca, escrevendo que às vezes era preciso espancar os presos de Kolyma para fazê-los ir aos banhos:
Era preciso esperar do lado de fora, no gelo, até que saíssem os que estavam lá dentro... Depois era entrar no vestiário, onde fazia frio... Seguiam-se as desinfecções
e fumigações compulsórias, em que nossos andrajos eram jogados numa pilha... Nunca se conseguia recuperar aquelas roupas que tinham sido nossas... Vinham os arranca-rabos
e xingamentos - "Seu filho da puta, esse é meu casaco"... Então, a escolha da roupa de baixo, úmida, coletiva, repleta de ovos de piolho nas costuras... A remoção
de todos os pêlos do corpo pelo barbeiro do campo... Aí, quando por fim era nossa vez de entrar, pegávamos uma cuba, recebíamos uma caneca de água quente, uma caneca
de água fria e um pedacinho de sabão preto e fedorento...
E, depois que tudo acabava, recomeçava o mesmo processo humilhante de distribuição das roupas, escreve Shalamov, sempre obcecado pela roupa de baixo:
Tendo-se lavado, os homens se juntam no guichê muito antes de realmente começar-se a distribuir a roupa de baixo. Repetidas vezes, discutem em detalhe a que lhes
foi dada na última vez, a roupa de baixo recebida cinco anos antes no Bamlag.
Como era inevitável, o direito a banhar-se com relativo conforto também estava intimamente relacionado ao sistema de privilégios. No Temlag, por exemplo, os que
realizavam determinados serviços tinham a prerrogativa de tomar banho com mais freqüência. A própria função de atendente nas salas de banho, que acarretava tanto
o acesso a água limpa quanto o direito de permitir ou negar a outros tal acesso, costumava ser um dos trabalhos mais cobiçados do campo. No final das contas, apesar
das mais estritas, severas e drásticas ordens de Moscou, o conforto, a higiene e a saúde dos presos dependiam totalmente de caprichos e circunstâncias locais.
Assim, outro aspecto da vida normal era virado do avesso, deixando de ser um singelo prazer e transformando-se no que Shalamov denomina "um acontecimento negativo,
uma canga na vida do condenado [...] um testemunho daquela inversão de valores que é o principal atributo que o campo de concentração instila nos detentos".
Stolovaya: o refeitório
A vasta literatura sobre o Gulag contém muitas e variadas descrições dos campos e reflete a vivência de ampla gama de personalidades. Mas um aspecto da vida ali
permanece constante de campo a campo, ano após ano, memória após memória: a descrição da balanda, a sopa que serviam aos presos uma ou duas vezes ao dia.
Todos os ex-prisioneiros concordam em que o sabor daquele meio litro de sopa de cadeia, não importando se servido uma ou duas vezes por dia, era repugnante; a consistência
era aguada, e os ingredientes, suspeitos. Galina Levinson escreveu que era feita "com repolho e batata estragados e, de vez em quando, um pouco de banha de porco
ou cabeças de arenque". Barbara Armonas se recordaria de sopa de "peixe ou pulmão de boi com um pouco de batata". Leonid Sitko descreveria a sopa dizendo que "nunca
tinha absolutamente nenhuma carne".
Outro preso se lembraria de sopa de carne de cachorro, a qual um de seus colegas de trabalho, um francês, não conseguia tomar; "o homem dos países ocidentais nem
sempre se mostra capaz de superar uma barreira psicológica, mesmo quando está para morrer de fome", concluiria o memorialista. Até Lazar Kogan, o comandante do
Dmitlag, se queixou certa vez de que "alguns cozinheiros agem como se estivessem preparando não refeições soviéticas, mas lavagem; por causa dessa atitude, a comida
que fazem é imprópria, freqüentemente sem paladar e sem graça".
Contudo, a fome era poderoso motivador: a sopa podia ser intragável em circunstâncias normais, mas nos campos, onde a maioria das pessoas estava sempre faminta,
os presos a tomavam com gosto. Essa fome tampouco era casual: mantinham-se os presos naquele estado porque regular a comida era, depois da regulação do tempo e do
espaço, a mais importante ferramenta de controle de que a administração dos campos dispunha.
Por esse motivo, a distribuição de alimento aos presos foi tornando-se uma ciência bem complexa. As normas exatas para categorias específicas de presos e trabalhadores
livres eram estabelecidas em Moscou e modificadas com freqüência. A direção do Gulag vivia calibrando os números, calculando e recalculando a quantidade mínima de
comida necessária para que os prisioneiros continuassem trabalhando. Amiúde, enviavam-se aos comandantes de campo novas ordens que discriminavam o tamanho das rações.
Tais ordens acabaram transformando-se em documentos longos e complexos, escritos em monótona linguagem burocrática.
Era típica, por exemplo, a ordem emitida em 30 de outubro de 1944. Ela estipulava para a maioria dos presos uma ração diária básica, ou "garantida"; seriam 550 gramas
de pão, oito gramas de açúcar e uma série de produtos, teoricamente destinados à feitura da balanda (a sopa do meio-dia) e da kasha (o mingau do desjejum); incluía-se
também o jantar: 75 gramas de trigo-sarraceno ou sopa de macarrão, quinze gramas de carne ou derivados, 55 gramas de peixe ou derivados, dez gramas de banha ou óleo,
quinhentos gramas de batata ou hortaliças, quinze gramas de sal e dois gramas de "chá ersatz".
A essa lista, anexavam-se algumas observações. Os comandantes de campo ficavam instruídos a reduzir em cinqüenta gramas a ração de pão dos presos que cumprissem
apenas 75% das metas de trabalho; e em cem gramas a daqueles que cumprissem só 50%. Por outro lado, quem superasse as metas receberia mais cinqüenta gramas de trigo-sarraceno,
25 gramas de carne e 25 gramas de peixe, entre outras coisas. Em comparação, estipulara-se em 1942 - ano bem mais famélico em toda a URSS - que os guardas de campo
deveriam receber setecentos gramas de pão, quase um quilo de hortaliças frescas e 75 gramas de carne, com suplementos especiais para aqueles que se encontravam muito
acima do nível do mar. Os presos que trabalhavam nos sharashki durante a guerra eram ainda mais bem alimentados, em teoria recebendo oitocentos gramas de pão e
cinqüenta gramas de carne - quando os outros presos do sistema eram aquinhoados com quinze gramas desse último item. Ademais, recebiam fósforos e quinze cigarros
por dia. Grávidas, adolescentes, prisioneiros de guerra, trabalhadores livres e crianças residentes nas creches dos campos ganhavam rações ligeiramente melhores.
Alguns campos fizeram experiências que introduziram distinções ainda mais sutis. Em julho de 1933, o Dmitlag emitiu ordem em que se relacionavam diferentes rações
para presos que cumpriam até 79% da meta de trabalho; de 80% a 89% da meta; de 90% a 99%; de 100% a 109%; de 110% a 124%; e a partir de 125%.
Como se pode imaginar, a necessidade de distribuir essas quantidades exatas de comida às pessoas certas - quantidades que às vezes variavam diariamente - exigia
vasta burocracia, e muitos campos achavam difícil seguir as determinações. Tinham de manter à mão arquivos inteiros cheios de instruções, enumerando quais presos
em qual situação deviam receber o quê. Mesmo os menores lagpunkts mantinham copiosos registros, listando o desempenho diário de cada preso e a conseqüente quantidade
de alimento devida a ele. Em 1943, por exemplo, no pequeno lagpunkt de Kedrovyi Shor (fazenda coletiva que era divisão do Intlag), havia pelo menos treze categorias
diferentes de ração. O contador do campo, provavelmente um preso, precisava determinar qual delas se aplicava a cada um dos mil detentos. Em longas folhas de papel,
ele primeiro traçava as linhas a lápis e depois escrevia os nomes e números a caneta, cobrindo páginas e páginas com cálculos.
Em campos maiores, a burocracia era ainda pior. A. S. Narinskii, ex-contador-chefe do Gulag, contou como os administradores de um campo, dedicando-se a construir
uma das linhas férreas do extremo norte, tiveram a idéia de distribuir cupons de comida aos presos, para garantir que recebessem a ração correta todos os dias. Mas,
num sistema assolado por severa escassez de papel, até a feitura dos cupons impunha dificuldades. Incapazes de arranjar solução melhor, aqueles administradores resolveram
usar passes de ônibus, que demoraram três dias para chegar. Esse problema "vivia ameaçando desorganizar todo o esquema alimentar".
No inverno, transportar alimentos a lagpunkts longínquos também era problema, em especial para os campos que não tinham padaria própria. "Até pão que ainda estava
quente", escreve Narinskii, "quando transportado em vagão de carga por quatrocentos quilômetros a mais de 50 graus abaixo de zero, fica tão congelado que não presta
nem como alimento, nem como combustível." Apesar das complexas instruções para armazenagem das raras hortaliças e batatas disponíveis no norte durante o inverno,
grandes quantidades congelavam e ficavam incomíveis. No verão, ao contrário, a carne, o peixe e outros alimentos estragavam. Depósitos mal administrados eram destruídos
pelo fogo ou ficavam infestados de ratos.
Muitos campos estabeleciam seus próprios colcozes (fazendas coletivas) ou lagpunkts dedicados à produção de laticínios, mas tais lugares freqüentemente funcionavam
mal. Um relatório sobre um desses colcozes listava, entre outros problemas, a falta de pessoal técnico; de peças de reposição para o trator; de estábulo para o gado
leiteiro; de providências para a colheita.
Em conseqüência, os presos quase sempre sofriam de carência vitamínica, mesmo quando não chegavam a definhar de fome. Era um problema que, em maior ou menor grau,
as autoridades dos campos levavam a sério. Na ausência de comprimidos de vitaminas, muitos obrigavam os presos a tomar khvoya, uma beberagem horrorosa, feita com
agulhas de pinheiro, cujo eficácia era duvidosa. Em comparação, as normas para "oficiais das Forças Armadas" estimulavam expressamente o consumo de vitamina C e
frutas secas para compensar a falta de vitaminas nas rações regulares. Além disso, os generais e almirantes tinham direito a queijo, caviar, peixe enlatado e ovos.
Mesmo o próprio processo de distribuir sopa, com ou sem vitaminas, podia mostrar-se difícil no frio do extremo norte, sobretudo quando a serviam ao meio-dia, no
local de trabalho. Em 1939, um médico de Kolyma chegou a apresentar queixa formal ao chefe do campo, observando que os presos estavam sendo obrigados a comer ao
ar livre e que a refeição congelava enquanto era consumida. A superlotação era outro problema: um preso recordaria que, no lagpunkt adjacente à mina de Maldyak
(em Magadan), um único guichê de comida servia mais de setecentas pessoas.
A distribuição de alimento também podia ser perturbada por acontecimentos alheios aos campos; durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, ela com freqüência era
interrompida de todo. Os piores anos foram 1942 e 1943, quando grande parte da região ocidental da URSS estava ocupada pelas tropas alemãs e grande parte do resto
do país estava ocupada combatendo-as. A fome grassava por toda a parte - e o Gulag não era prioridade. Vladimir Petrov, prisioneiro em Kolyma, lembra-se de um período
de cinco dias em que não se recebeu nenhum alimento em seu campo: "Na mina, irrompeu a fome de verdade. Cinco mil homens hão tinham nem sequer um pedaço de pão".
Havia também constante escassez de talheres e vasilhas. Petrov escreve que "sopa ainda quente quando recebida ficava coberta de gelo durante o tempo que um homem
tinha de esperar até que outro terminasse de tomá-la e lhe passasse a colher. Isso provavelmente explica por que a maioria deles preferia não usar colher". Uma
prisioneira acreditava que só permanecera viva porque "trocara pão por um cuia esmaltada de meio litro [...]. Se tínhamos nossa própria cuia, pegávamos as primeiras
porções - lembrando que a gordura fica toda por cima. As outras precisavam esperar até liberarmos nossa cuia. Tomávamos a sopa e a passávamos para outra, que a passava
para outra".
Na cozinha do campo. Presos fazem fila para a sopa. Desenho de Ivan Sykahnov. Temirtau, 1935-7
Outros presos entalhavam em madeira os próprios talheres e vasilhas. O pequeno museu instalado na sede da Sociedade Memorial, em Moscou, exibe vários desses itens
estranhamente tocantes. Como sempre, a direção do Gulag tinha total ciência daquela escassez e, de quando em quando, procurava fazer alguma coisa a respeito: em
certa ocasião, as autoridades parabenizaram um campo por ter feito uso inteligente, justamente com esse propósito, de latas que sobravam. Entretanto, mesmo quando
se dispunha de talheres e vasilhas, freqüentemente não havia maneira de lavá-los - e uma ordem do Dmitlag proibia "categoricamente" os cozinheiros de servir comida
em recipientes sujos.
Por todos esses motivos, os regulamentos de Moscou sobre as rações alimentares - já calculadas tendo em vista só o mínimo necessário à sobrevivência - não constituem
indicação confiável do que os presos comiam. E não precisamos nos guiar só pelas memórias dos presos para saber que os detentos dos campos de concentração soviéticos
passavam muita fome. A própria direção do Gulag realizava inspeções periódicas dos campos e mantinha registros do que os presos comiam de fato, em contraste com
o que deveriam comer. Mais uma vez, é assustadora a discrepância surreal entre as bem ordenadas listas de ração elaboradas em Moscou e os relatórios dos inspetores.
Em 1942, por exemplo, um inquérito sobre o campo em Volgostroi observava que, num lagpunkt, havia oitenta casos de pelagra, doença causada pela desnutrição. "Pessoas
estão perecendo de fome", dizia sem rodeios o relatório. No Siblag (um grande campo na Sibéria Ocidental), um promotor-assistente descobriu que, no primeiro trimestre
de 1941, as normas alimentares haviam sido "sistematicamente desrespeitadas: carne, peixe, banha e óleo são distribuídos com extrema infreqüência [...] açúcar nunca
é distribuído". Em 1942, na região de Sverdlovsk, a comida nos campos do Gulag não continha "nem banha, nem óleo, nem peixe, nem carne; e, muitas vezes, nenhuma
hortaliça". Também em 1942, no Vyatlag, "a comida em julho era ruim, quase incomível mesmo, e pobre em vitaminas. Isso por causa da falta de lipídios, carne, peixe,
batata [...] toda a alimentação se baseia em farinha e derivados de cereais".
Parece que alguns presos eram privados de comida porque os campos não recebiam as entregas certas. Era um problema permanente: em Kedrovyi Shor, os contadores do
lagpunkt mantinham uma lista de todos os comestíveis que podiam substituir aqueles que os presos não recebiam, embora devessem. Entre os sucedâneos, estavam o queijo,
os biscoitos secos, os cogumelos silvestres e as amoras silvestres, que substituíam, respectivamente, o leite, o pão, a carne e o açúcar. Não chega a surpreender
que, em conseqüência, a dieta dos presos parecesse bem diferente do que constava da papelada em Moscou. Em 1940, uma inspeção no Birlag verificou que "o almoço dos
zeks que trabalham consiste em água com 130 gramas de cereal e em cerca de cem gramas de pão preto. No desjejum e no jantar, eles requentam o mesmo tipo de sopa".
Numa conversa com o cozinheiro do campo, o inspetor também foi informado de que as "normas oficiais nunca são cumpridas" e de que não ocorriam entregas de peixe,
carne, hortaliças, banha nem óleo. O relatório concluía que o campo "não tem dinheiro para comprar comestíveis nem vestuário [...] e, sem dinheiro, nenhum órgão
de abastecimento quer cooperar". Em conseqüência, registravam-se mais de quinhentos casos de escorbuto.
Com a mesma freqüência, porém, a comida que chegava aos campos era surrupiada de imediato. Os furtos se davam em quase todos os níveis. Em geral, os gêneros alimentícios
eram afanados quando estavam sendo preparados, e os ladrões eram as pessoas que trabalhavam na cozinha ou nas despensas. Por esse motivo, os presos procuravam funções
que lhes propiciassem o acesso à comida - preparo de alimentos, lavagem de louça, trabalho de armazenagem -, de modo a poder furtá-la. Certa vez, Evgeniya Ginzburg
"salvou-se" graças ao trabalho de lavar louça no refeitório masculino. Ali, não só podia "tomar um autêntico consome de carne e comer excelentes bolinhos de massa
fritos em óleo de girassol", mas também descobria que outros presos lhe demonstravam grande respeito e admiração. Falando com Evgeniya, a voz de um homem tremeu
"de extrema inveja e humilde veneração, ante alguém que ocupava posição tão excelsa - 'Lá onde fica a comida!'".
Até tarefas como descascar batatas, ou participar da colheita nas fazendas dos campos de concentração, eram muito cobiçadas, e os presos pagavam suborno a fim de
obtê-las, simplesmente para poder furtar alimento. Numa fase posterior de sua carreira no Gulag, Evgeniya Ginzburg também trabalhou cuidando das galinhas que seriam
comidas pelos chefes do campo. Ela e sua colega de serviço tiravam o máximo proveito da situação:
banhávamos a semolina do campo de concentração com o óleo de fígado de bacalhau que "pegávamos emprestado" das galinhas. Fazíamos kissel com farinha de aveia. Também
dividíamos três ovos por dia - púnhamos um na sopa, e ficávamos com um cada uma, para comê-lo cru, como iguaria. (Não pegávamos mais ovos porque não ousávamos diminuir
o índice de produtividade das galinhas, pelo qual se avaliava nosso trabalho.)
A gatunice também ocorria em escala muito maior, sobretudo nas cidades do extremo sul que tinham campos do Gulag, nas quais a escassez de gêneros alimentícios entre
presos, trabalhadores livres e guardas fazia o furto valer a pena para todo mundo. Ano após ano, cada campo elaborava relatórios dos itens perdidos. Os relatórios
do lagpunkt de Kedrovyi Shor mostram que, só no último trimestre de 1944, ocorreram perdas de mais de 200 mil rublos em artigos e dinheiro.
Em nível nacional, as cifras eram bem maiores. Um relatório de promotoria referente a 1947, por isso, listava muitos casos de furto, entre eles um no Vyatlag, onde
doze pessoas (aí incluído o chefe do depósito) tinham surrupiado 170 mil rublos em hortaliças e mais gêneros alimentícios. Outro relatório daquele mesmo ano calculava
que, só no segundo trimestre de 1946, em 34 campos investigados, haviam-se furtado 70 mil quilos de pão, 132 mil quilos de batata e 17 mil quilos de carne. O inspetor
que escrevia o relatório concluía que "o complicado sistema de alimentação dos presos propicia a facilidade para que se furtem pão e outros produtos". O inspetor
também culpava o "sistema de vales-refeição para os trabalhadores livres", tanto quanto as equipes internas de fiscalização dos campos, cujos integrantes eram totalmente
corruptos.
Em alguns casos, o sistema de inspeção tinha de fato algum efeito: certos campos, com medo de encrencar-se, esforçavam-se para cumprir a letra, se não o espírito,
da lei. Exemplo: um preso, no final do mês, recebia meio copo de açúcar, que ele engolia puro; era assim que a chefia do campo se assegurava de que o prisioneiro
recebesse a quantidade estipulada pela burocracia de Moscou. Ele e seus companheiros comemoravam a ocasião como "dia do açúcar".
No fim das contas, nem todo mundo passava fome. Isso porque, se a maior parte dos comestíveis sumia antes de chegar à sopa, havia um alimento básico que costumava
estar disponível: o pão. Assim como a sopa, já se descreveu muitas vezes o pão do Gulag. De quando em quando, alguém recorda que não era assado direito; um preso
diz que era tão duro que "parecia tijolo", e tão pequeno que se podia comê-lo "em dois bocados"; outro preso escreve que era "literalmente pão 'preto', pois o farelo
[de cereal] o empretecia e lhe dava textura bem ordinária"; o mesmo prisioneiro dizia que assavam esse pão com muita água, de modo que ele "era úmido e pesado, e
assim, na prática, acabávamos recebendo menos do que os setecentos gramas de rigor".
Outros se recordam de que presos brigavam para ficar com as pontas dos pães inteiros, que eram mais secas, ou menos aguadas. Em "Licor de cereja", conto de Variam
Shalamov que é uma descrição fictícia do fim de Osip Mandelstam, a morte iminente do poeta vai assinalada pela perda de interesse por tais coisas: "Ele já não ficava
de olho na ponta do pão, nem chorava quando não a conseguia. Já não enfiava o pão na boca com dedos trêmulos".
Nos campos onde se passava mais fome, nos anos de maior míngua, o pão adquiria status quase sagrado, e surgiu uma etiqueta especial para seu consumo. Embora os ladrões
dos campos afanassem com impunidade quase tudo o mais, o furto de pão era considerado especialmente hediondo e imperdoável. Na longa viagem de trem para Kolyma,
Vladimir Petrov descobriu que "furtar era permitido e se aplicava a tudo o que estivesse dentro da capacidade e da sorte do ladrão, mas havia uma exceção - o pão.
Este era sacrossanto e inviolável, acima de quaisquer diferenças entre os ocupantes do vagão". Aliás, Petrov fora escolhido starosta do vagão e, nessa qualidade,
viu-se encarregado de surrar um ladrãozinho que surrupiara pão. Thomas Sgovio também escreveria que a lei implícita dos criminosos nos campos de Kolyma era: "Afane
tudo - menos o sagrado quinhão de pão". Sgovio viu "mais de um preso ser espancado até a morte por ter desrespeitado aquela tradição sacrossanta". De modo semelhante,
Kazimierz Zarod lembraria que
Se um preso furtava roupas, fumo ou quase tudo o mais e era descoberto, podia esperar uma coça dos outros prisioneiros; mas a lei implícita do campo - e homens de
outros campos me disseram que ela era a mesma em toda a parte - rezava que o preso que fosse apanhado furtando o pão de outro merecia a pena de morte.
Nas memórias de Dmitri Panin (amigo íntimo de Soljenitsin), descreve-se com exatidão como se executava tal sentença:
O transgressor apanhado no ato de furtar pão era jogado para cima pelos outros presos, que o deixavam arrebentar-se no chão; isso se repetia várias vezes, lesando-lhe
os rins. Aí, atiravam-no para fora do alojamento, como lixo.
Panin, assim como muitos outros sobreviventes dos campos que passaram pelos anos de fome da Segunda Guerra Mundial, também escreveu eloqüentemente sobre os rituais
individualizados com que alguns presos comiam o pão. Quando os prisioneiros recebiam pão só pela manhã, eles tinham de tomar uma decisão aflitiva: comer tudo de
uma vez ou deixar um pouco para a tarde. Guardando, corria-se o risco de perder ou ver furtado aquele precioso quarto de pão. Por outro lado, um pedaço de pão era
algo para antegozar-se durante o dia. A advertência de Panin contra esse segundo procedimento deve constituir um testemunho incomparável da ciência de evitar a fome:
Quando se recebe a ração, tem-se uma vontade irresistível de esticar o prazer de comê-la, dividindo o pão por igual em pedacinhos ínfimos, fazendo bolinhas com as
migalhas. Com gravetos e barbante, improvisa-se uma balança e pesa-se cada pedaço. Dessa maneira, tenta-se prolongar por três horas ou mais o ato de comer. Só que
isso equivale ao suicídio!
Jamais, em nenhuma circunstância, demore mais que meia hora para consumir sua ração. Cada bocado de pão deve ser mastigado por completo, para que o estômago o digira
tão facilmente quanto possível e assim ele proporcione ao organismo o máximo de energia [...] você estará acabado se sempre dividir a ração e deixar uma parte de
lado para a tardinha. Coma tudo de uma só sentada. Por outro lado, se engolir tudo rápido demais, conforme as pessoas famintas muitas vezes fazem em circunstâncias
normais, você também acabará abreviando sua vida.
Os zeks não eram os únicos habitantes da URSS que ficavam obcecados pelo pão e pelas muitas maneiras de consumi-lo. Mesmo hoje, um russo meu conhecido abomina pão
de centeio, porque só tinha isso para comer quando menino, no Cazaquistão, durante a guerra. E Susanna Pechora, prisioneira no Minlag nos anos 1950, uma vez ouviu
esta conversa entre duas presas - camponesas russas que sabiam o que era a vida sem, o pão de cadeia:
Uma delas segurava e afagava um pedaço de pão. "Ah, minha khlebushka" ["pãozinho", apelido que se podia dar a uma criança], comentou, agradecida, "eles nos dão você
todos os dias." A outra arrematou: "Podíamos deixar o pão secar e mandá-lo para as crianças - afinal, estão passando fome. Mas acho que eles não vão deixar..."
Susanna me contou que, depois disso, pensava duas vezes antes de reclamar da falta de comida nos campos de concentração.
11. O TRABALHO NOS CAMPOS
Quem está doente, imprestável,
Fraco demais para as minas,
E demovido, mandado
Ao campo mais abaixo
Para abater as árvores de Kolyma.
Parece muito simples
No papel. Mas não consigo esquecer
A fieira de trenós na neve
E as pessoas, arreadas.
Forcejando, os peitos cavados, elas puxam os trenós.
Ou param para descansar,
Ou vacilam nas encostas íngremes...
Aquele enorme peso rola abaixo
E, a qualquer momento,
As fará tropeçar.
Quem já não viu cavalo que tropica?
Mas nós... Nós vimos gente com arreios...
Elena Vladimirova, "Kolyma".
Rabochaya zoha: a zona de trabalho
O trabalho era a função primordial da maioria dos campos soviéticos. Era a principal ocupação dos presos e a principal preocupação dos administradores. O cotidiano
girava em torno do trabalho, e o bem-estar dos presos dependia de quão bem trabalhassem. No entanto, é difícil fazer generalizações sobre o que era o trabalho nos
campos: a imagem do preso na tempestade de neve, minerando ouro ou carvão com uma picareta, é apenas estereótipo. Havia muitos de tais prisioneiros - milhões, como
os números dos campos de Kolyma e Vorkuta deixam claro -, mas agora sabemos que também existiam campos no centro de Moscou onde presos projetavam aviões; campos
na Rússia central onde presos construíam e operavam reatores nucleares; campos pesqueiros no litoral do Pacífico; campos no sul do Uzbequistão que eram fazendas
coletivas. Os arquivos do Gulag em Moscou estão entupidos de fotos de presos com seus camelos.
Cavando sepultura. Desenho de Benjamin Mkrtchyan. Ivdel, 1953
Sem nenhuma dúvida, a gama de atividades econômicas do Gulag era tão ampla quanto a de atividades econômicas da URSS. Um rápido olhar pelo Guia do sistema de campos
de trabalhos correcionais da URSS - a mais abrangente lista dos campos elaborada até hoje - revela a existência de campos organizados em razão de minas de ouro,
carvão, níquel; da abertura de rodovias e ferrovias; de fabricas de armamento, produtos químicos e produtos metalúrgicos; de usinas elétricas; da construção de aeroportos,
prédios residenciais e sistemas de saneamento; da extração de turfa e madeira; do enlatamento de pescado. Os próprios administradores do Gulag conservavam um álbum
fotográfico dedicado tão-somente aos bens que os detentos produziam. Entre outras coisas, havia fotos de mísseis, minas explosivas e outros aparatos militares; autopeças,
fechaduras e botões; toras boiando rios abaixo; artigos de madeira, inclusive cadeiras, armários, barris e cabines telefônicas; calçados, cestas e têxteis (com amostras
anexas); tapetes, couros, gorros de pele e casacos de carneiro; copos, lâmpadas e frascos de vidro; sabão e velas; até brinquedos (tanques de guerra de madeira,
minúsculos moinhos de vento, coelhos mecânicos que tocavam tambor).
O trabalho variava dentro dos campos e entre eles. E verdade que, nos campos madeireiros, muitos presos não faziam nada senão derrubar árvores. Presos que cumpriam
pena de três anos ou menos trabalhavam em "colônias de trabalho correcional", campos de regime brando que em geral operavam em função de uma única fábrica ou atividade.
Em contrapartida, campos maiores podiam englobar vários ramos: minas, olaria e usina elétrica, assim como canteiros de obras de residências e estradas. Em tais campos,
presos descarregavam os trens que diariamente traziam mercadorias; dirigiam caminhões; colhiam hortaliças; trabalhavam em cozinhas, hospitais e creches. Extra-oficialmente,
presos também serviam de domésticos, babás e alfaiates para os guardas e comandantes dos campos e suas esposas.
Presos que cumpriam penas longas freqüentemente ocupavam ampla variedade de funções, mudando de trabalho ao sabor da sorte Em quase duas décadas de carreira nos
campos, Evgeniya Ginzburg cortou árvores, cavou valas, limpou a casa de hóspedes do campo, lavou louça, cuidou de galinhas, foi lavadeira para esposas de comandantes
de campo e olhou filhos de presas. Por fim, tornou-se enfermeira. Outro preso político, Leonid Sitko, durante os onze anos que passou nos campos, foi soldador,
trabalhador de pedreira, operário de uma turma de construção civil, carregador num depósito ferroviário, mineiro de carvão e marceneiro numa fábrica de móveis, produzindo
mesas e estantes.
Mas, embora os empregos pudessem ser tão variados no sistema de campos quanto o eram no mundo extramuros, os prisioneiros que trabalhavam costumavam dividir-se em
duas categorias: os presos designados para obshchya raboty (serviços gerais) e os presos de confiança, chamados pridurki (monitores). Veremos que esses últimos tinham
status de casta à parte. Os serviços gerais, sina da imensa maioria dos prisioneiros, eram trabalho braçal, sem qualificação, extenuante. "O primeiro inverno ali,
em 1949-50, foi especialmente difícil para mim", escreveu Isaak Filshtinskii. "Eu não tinha um ofício que pudesse ser de utilidade nos campos, e fui forçado a ir
de um lugar para outro, fazendo diversos tipos de serviço geral, serrando, carregando, puxando, empurrando etc. - em outras palavras, indo aonde desse na veneta
do distribuidor de tarefas me mandar."
A exceção daqueles que haviam tido sorte logo na primeira distribuição de trabalhos - em geral os que eram engenheiros civis ou outros membros de profissões úteis
nos campos ou que, então, já tinham se estabelecido como informantes -, os zeks eram designados para os serviços gerais tão logo findava a semana (ou coisa parecida)
de quarentena. Também eram designados para uma turma de trabalho, grupo que variava de quatro a quatrocentos zeks, os quais trabalhavam e comiam juntos e, em geral,
dormiam nos mesmos alojamentos. Cada turma, ou "brigada", era comandada por um "brigadeiro", um preso de confiança que tinha status elevado e era encarregado de
distribuir tarefas, supervisionar o trabalho e, sobretudo, garantir que a turma cumprisse as metas de produção. A importância do brigadeiro, cujo status se situava
entre o de preso e o de administrador, não escapava às autoridades dos campos, Em 1933, o chefe do Dmitlag enviou ordem a todos os seus subordinados, lembrando-os
da necessidade de "identificar entre nossos trabalhadores de choque aquelas pessoas capazes que são tão necessárias a nosso trabalho", pois "o brigadeiro é o elemento
mais importante e relevante nos canteiros de obras". Do ponto de vista dos outros presos, a relação corri o brigadeiro era mais que apenas importante: podia determinar
qual seria a qualidade de vida deles e até se viveriam ou morreriam. Um preso escreveu:
A vida da pessoa depende muito da brigada e do brigadeiro, dado que se passa todos os dias e noites na companhia deles. No trabalho, no refeitório e nos beliches
- sempre os mesmos rostos. Os integrantes da brigada podem trabalhar ou todos juntos, ou em grupos, ou individualmente. Podem nos ajudar a sobreviver - ou ajudar
a nos destruir. Trata-se ou de compaixão e auxílio, ou de hostilidade e indiferença. O papel do brigadeiro não é menos importante. Também importa quem ele é e o
que pensa de suas próprias tarefas e obrigações: servir a chefia à nossa custa e em benefício dele mesmo, tratando os integrantes da brigada como subalternos, serviçais
e lacaios -ou ser nosso companheiro nas agruras e fazer todo o possível para tornar a vida mais fácil para a brigada.
Alguns brigadeiros realmente ameaçavam e intimidavam sua força de trabalho. No primeiro dia nas minas de Karaganda, Alexander Weissberg fraquejou de fome e cansaço.
Com bramidos de touro alucinado, o brigadeiro então se voltou contra mim, golpeando-me com cada grama de sua compleição vigorosa, chutando, esmurrando e, por fim,
dando-me tamanha pancada na cabeça que me estatelei, meio grogue, coberto de machucaduras, com sangue escorrendo pela cara.
Em outros casos, o brigadeiro deixava que a própria turma de trabalho funcionasse como grupo paritário organizado, pressionando os Presos a dar mais duro mesmo quando
não era essa vontade deles. Em certa altura do romance Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Soljenitsin, o protagonista reflete que uma brigada dos campos
não é como uma turma de trabalho lá fora, onde fulano e sicrano ganham cada um seu salário. Nos campos, as coisas se dispõem de tal modo que o zek é mantido na linha
não pelas chefias, mas pelos outros membros da turma. Ou todos ganham um prêmio extra, ou todos morrem juntos.
Verno Kress, outro preso de Kolyma, era alvo de gritos e pancadas de seus camaradas de brigada por não conseguir acompanhar o ritmo deles; acabaria sendo mandado
para uma brigada "fraca", cujos membros nunca recebiam a ração integral. Yuri Zorin também passou pela experiência de ser parte de uma brigada realmente esforçada,
na maioria composta de lituanos que não admitiam mandriões em suas fileiras: "Não dá nem para imaginar a vontade e o desvelo com que eles trabalhavam [...] se achavam
que você não trabalhava direito, eles o chutavam para fora da brigada lituana".
Caso se tivesse o azar de terminar numa brigada "ruim" e não se conseguisse subornar alguém ou se livrar daquilo, podia-se morrer de inanição. Uma vez, M. B. Mindlin
(depois um dos fundadores da Sociedade Memorial) foi designado para uma brigada de Kolyma que se constituía sobretudo de georgianos e era liderada por um brigadeiro
dessa nacionalidade. Mindlin logo percebeu que o grupo tinha tanto medo do brigadeiro quanto dos guardas do campo; e que ele, Mindlin, "o único judeu numa brigada
de georgianos", não poderia contar com nenhum favor especial. Certo dia, ele trabalhou com especial afinco, na tentativa de ganhar a ração de nível mais alto (1.200
gramas de pão). O brigadeiro se negou a reconhecer aquele esforço e determinou que Mindlin recebesse só setecentos gramas. Apelando para o suborno, Mindlin trocou
de brigada e encontrou ambiente completamente diverso: o novo brigadeiro se preocupava de fato com os subalternos e até lhes concedia alguns dias de trabalho
mais leve no início, para que recuperassem as forças. "Todos os que entraram na brigada dele se consideravam afortunados e salvaram-se da morte." Posteriormente,
o próprio Mindlin virou brigadeiro e tomou a iniciativa de distribuir suborno, para garantir que todos os integrantes de sua turma de trabalho conseguissem o melhor
acerto possível com os cozinheiros, cortadores de pão e outras pessoas importantes no campo.
A atitude dos brigadeiros importava porque, na maior parte das vezes, os serviços gerais não se destinavam a ser uma impostura ou não ter propósito. Se nos campos
alemães o trabalho era "principalmente meio de tortura e maus-tratos" - nas palavras de um destacado estudioso -, os presos soviéticos, ao contrário, deviam cumprir
este ou aquele aspecto do esquema de produção do campo. E verdade que havia exceções à regra. Por vezes, guardas néscios ou sádicos impunham de fato tarefas despropositadas.
Susanna Pechora se recordaria de ter sido designada para carregar baldes de argila de um lado para outro, "um serviço absolutamente sem sentido". Um dos capatazes
encarregados de seu local de trabalho lhe disse especificamente: "Não preciso do seu trabalho, preciso é do seu sofrimento", frase que teria sido familiar aos presos
de Solovetsky em 1926. Na década de 1940, como veremos, também surgiria um sistema de campos disciplinares, cujo objetivo prioritário não era econômico, mas punitivo.
Mesmo neles, porém, esperava-se que os presos produzissem alguma coisa.
Durante a maior parte do tempo, não se pretendia que os presos sofressem - ou talvez fosse mais exato dizer que ninguém se importava se eles sofriam ou não. Era
muitíssimo mais importante que se encaixassem no esquema produtivo do campo e cumprissem uma meta de trabalho. Esta podia ser qualquer coisa: certo número de metros
cúbicos de madeira por cortar, de valas por cavar, de carvão por carregar. E tais normas eram levadas muitíssimo a sério. Os campos estavam cobertos de cartazes
que exortavam os presos a cumpri-las. Todo o aparato "cultural e educacional" do Gulag se votava à mesma mensagem. Os refeitórios ou pátios centrais de alguns campos
ostentavam enormes quadros-negros relacionando todas as turmas de trabalho e os mais recentes resultados de produção de cada uma delas.
As metas eram calculadas com muito cuidado e arrazoado cientifico pelo normirovshik, funcionário cujo trabalho acreditavam exigir grande perícia. Jacques Rossi menciona,
por exemplo, que quem varria neve recebia diferentes metas, dependendo do tipo de neve: fresca; leve; ligeiramente compactada; compactada (exigindo pressão do pé
na pá); muito compactada; ou congelada (exigindo uso de picareta), depois disso tudo, "uma série de coeficientes levava em conta o peso da neve, a distância a que
a atiravam etc.".
Mas, apesar de teoricamente científico, o processo de estabelecer metas de trabalho, e determinar quem as cumpriria, estava permeado de corrupção, irregularidade
e incoerência. Para começo de conversa, os presos geralmente recebiam metas que correspondiam àquelas dos trabalhadores livres - deviam produzir o mesmo que lenhadores
ou mineiros profissionais. Contudo, no mais das vezes, eles não eram lenhadores nem mineiros de ofício; com freqüência, tinham muito pouca noção do que deviam fazer;
e, após longas estadas na cadeia e viagens aflitivas em vagões de gado sem aquecimento, tampouco estavam nas condições físicas da média dos trabalhadores livres.
Quanto mais inexperiente e exausto, mais o preso sofria. Evgeniya Ginzburg deixou uma descrição clássica sobre duas mulheres - ambas intelectuais não-afeitas ao
trabalho braçal, ambas enfraquecidas por anos no cárcere - que tentavam cortar árvores:
Durante três dias, Galya e eu tentamos o impossível. Coitadas das árvores, como devem ter sofrido ao ser mutiladas por nossas mãos inábeis! Nós mesmas já estávamos
meio mortas e, completamente sem qualificação, não tínhamos como dar conta delas. O machado escorregava e nos atirava uma chuva de lascas na cara. Serrávamos freneticamente,
aos trancos, no íntimo acusando a outra de inépcia - mas sabendo que não podíamos nos dar ao luxo de brigar. Repetidas vezes, a serra emperrava. Todavia, o momento
mais apavorante foi aquele em que a árvore enfim ficou a ponto de cair - só que não sabíamos para qual lado. Em certa altura, Galya foi atingida na cabeça, mas o
enfermeiro se recusou até a passar iodo no corte, dizendo: "Ah-ah, esse truque é velho! Você está tentando ser dispensada do trabalho já no primeiro dia?!
Ao fim do dia, o brigadeiro declarou que Evgeniya e Galya haviam cumprido 18% da meta e lhes "pagou" pelo mau desempenho: "No dia seguinte, tendo recebido o pedacinho
de pão que correspondia a nosso rendimento, fomos reconduzidas a nosso local de trabalho, literalmente cambaleantes". Entrementes, o brigadeiro ficava repetindo
que "não pretendia desperdiçar comida valiosa com traidoras que não conseguiam cumprir a norma".
Nos campos do extremo norte - em especial os de Kolyma, assim como os de Vbrkuta e Norilsk, localizados acima do Círculo Polar -, clima e o terreno agravavam as
dificuldades. Com freqüência, ao contrário do que reza a crença popular, o verão dessas regiões árticas não era mais suportável que o inverno. Mesmo lá, as temperaturas
podem subir acima de trinta graus Celsius. Quando vem o degelo, a tundra vira um lamaçal, dificultando a caminhada, e os mosquitos parecem deslocar-se em nuvens
cinzentas, fazendo tanto ruído que é impossível ouvir outra coisa. Um preso se recordaria deles:
Enfiavam-se pelas mangas e pelas calças. A cara estourava de tantas picadas. O almoço nos era trazido ao local de trabalho, e, enquanto tomávamos a sopa, os mosquitos
enchiam a cuia [...]. Eles nos cobriam os olhos e nos tapavam o nariz e a garganta, e tinham gosto adocicado, como o de sangue. Quanto mais nos mexíamos e os espantávamos,
mais nos atacavam. O melhor era não ligar para eles, pôr roupa mais leve e, em vez de chapéu com mosquiteiro, usar um festão de grama ou de cortiça de bétula.
Os invernos, é claro, eram muitíssimo gelados. As temperaturas podiam cair a 35, quarenta, 45 graus abaixo de zero. Memorialistas, poetas e romancistas tiveram grande
dificuldade para descrever como era trabalhar nesse gelo. Um relatou que fazia tanto frio que "mesmo o mais simples e abrupto movimento de mão no ar causava um silvo
extraordinário". Outro contou que, numa manhã de véspera de Natal, ele acordou e descobriu que não conseguia mexer a cabeça.
Ao despertar, o que primeiro me ocorreu foi que ela, de algum modo, se prendera às tabuas do beliche durante a noite. Mas, quando tentei me erguer para sentar, vi
que fora puxado o material que eu enrolara em volta da cabeça e das orelhas antes de ter ido dormir. Apoiado num cotovelo, fazendo força para levantar, dei um puxão
no material e percebi que ele congelara e se grudara à madeira. Minha respiração e a respiração de todos os homens na cabana estavam suspensas no ar, como se fossem
fumaça.
Outro ainda escreveu que
era perigoso parar de mexer-se. Durante a contagem dos presos, nós pulávamos, corríamos sem sair do lugar e dávamos tapas no corpo para nos mantermos aquecidos.
Eu não parava de massagear os dedos dos pés, e os das mãos estavam sempre crispados [...] se tocássemos ferramentas de metal com a mão nua, a pele podia ser arrancada,
e as idas ao banheiro eram perigosíssimas. Uma crise de diarréia podia deixar a pessoa para sempre na neve.
Em conseqüência, alguns presos simplesmente sujavam as calças: "Trabalhar junto deles era desagradável, e de volta à tenda, quando começávamos a nos aquecer, o fedor
se tornava insuportável. Quem fazia nas calças era muitas vezes espancado e posto para fora".
No que se referia ao clima, certos serviços gerais eram piores que outros. Nas minas carboníferas do Ártico, conforme um preso, o ar subterrâneo era mais quente,
mas a água gelada vivia pingando nos trabalhadores: "O mineiro se transforma numa espécie de gigantesco pingente de gelo, e seu organismo começa a congelar-se num
período longo e estável. Depois de três ou quatro meses dessa labuta infernal, os presos passam a ter doenças generalizadas".
Isaak Filshtinskii também acabou designado para um dos mais desagradáveis serviços de inverno no Kargopollag, separando toras que seriam processadas. Tinha-se de
ficar em pé na água o dia inteiro, e, embora a água fosse morna (vinha bombeada da usina de força), o ar não o era:
Naquele inverno, dado que na região de Arcangel o frio se mantinha estável em quarenta, 45 graus abaixo de zero, uma névoa espessa pairava o tempo todo sobre a água.
Era simultaneamente muito gelado e muito molhado [...] o trabalho não era muito difícil, mas, após trinta ou quarenta minutos, o corpo inteiro ficava permeado e
envolto pela umidade; o queixo, os lábios e as pestanas, cobertos de gelo; e o frio penetrava até os ossos, atravessando a lastimável indumentária do campo.
No inverno, os piores serviços eram nas florestas. Isso porque, nessa estação, a taiga é não apenas gelada mas também periodicamente varrida por tempestades de inverno,
chamadas burany oupurgai, que são violentas e imprevisíveis. Dmitrii Brystoletov, preso no Siblag, foi apanhado por uma delas:
Naquele instante, o vento começou a uivar de modo furioso e apavorante, e tivemos de nos prostrar. A neve redemoinhava no ar; tudo sumiu - as luzes do campo, as
estrelas, a aurora boreal -, e ficamos sozinhos numa névoa branca. Abrindo bem os braços, escorregando e tropeçando desajeitadamente, caindo e nos apoiando uns aos
outros, tentamos achar o caminho de volta quanto antes. De repente, um trovão ribombou acima de nós. Eu mal conseguira segurar-me a um companheiro quando uma violenta
enxurrada de gelo, neve e pedra começou a nos atingir no rosto. A neve rodopiante não nos permitia respirar nem enxergar.
Janusz Bardach, quando trabalhava numa pedreira em Kolyma, também se viu numa dessas tempestades. Ele e os outros presos, junto com os guardas, voltaram para o campo
seguindo os cães de guarda, ligados uns aos outros por uma corda:
Eu não enxergava nada para além das costas de Yuri e me aferrava à corda como se ela fosse um bote salva-vidas [...] Depois que os referenciais de sempre sumiram,
eu já não fazia idéia de quanto ainda precisávamos percorrer, e tinha certeza de que nunca conseguiríamos voltar. Pisei em alguma coisa mole - um preso que soltara
a corda. "Parem!", berrei. Mas ninguém parou. Ninguém conseguia ouvir minha voz. Eu me inclinei e puxei o braço dele para a corda. "Aqui!" Tentei fazer que sua mão
se agarrasse à corda. "Segure-se!" Não adiantou nada. O braço do homem despencou quando o soltei. A ordem severa de Yuri, que mandava seguir em frente, me fez continuar.
Quando a turma de trabalho de Bardach retornou ao campo, faltavam três presos. Em geral, "os corpos dos prisioneiros que se perdiam só eram encontrados na primavera,
muitas vezes a menos de cem metros da zona prisional".
A indumentária regulamentar destinada aos presos lhes proporcionava pouca proteção contra as intempéries. Em 1943, por exemplo, a direção central do Gulag ordenou
que eles recebessem, entre outras coisas, camisa de verão, para durar duas estações; calças de verão, também para duas estações; casaco de inverno, acolchoado, de
algodão, para dois anos; calças de inverno, acolchoadas, para dezoito meses; botas de feltro, para dois anos; e roupa de baixo, para nove meses. Na prática, nunca
havia quantidade suficiente desses itens, já em si parcos. Em 1948, uma inspeção de 23 campos relatou que o abastecimento de "indumentária, roupa de baixo e calçado
é insatisfatório". Esse "insatisfatório" parece ter sido eufemismo. Num campo em Krasnoyarsk, menos de metade dos prisioneiros estava calçado. Em Norilsk, no extremo
norte, só 75% tinham botas quentes, e só 86% estavam agasalhados. Em Vorkuta, também no extremo norte, apenas 25% a 30% dos presos possuíam roupa de baixo, e somente
48% contavam com botas quentes.
Na falta de calçado, os presos improvisavam. Faziam botas de cortiça de bétula, trapos, pneus velhos. No melhor dos casos, essas soluções eram desajeitadas e duras,
em especial na neve profunda. No pior, não eram herméticas, praticamente garantindo que o usuário sofreria queimaduras de frio. Elinor Lipper descreveria suas botas
caseiras, que no campo onde ela estava tinham o apelido Che-Te-Ze, abreviação russa de "Fábrica de Pneus de Chelyabinsk":
Eram de aniagem levemente acolchoada, com cano alto e largo, que chegava ao joelho; o calçado em si era reforçado com encerado ou couro sintético no dedão e no calcanhar.
A sola era feita de três seções transversais de borracha, tiradas de pneus carecas. A coisa toda era amarrada ao pé com barbante; também se usava barbante para amarrá-las
abaixo do joelho, a fim de que a neve não entrasse [...] depois de um dia de uso, ficavam totalmente retorcidas, e as solas, fraquinhas, entortavam-se de todos os
jeitos. Essas botas absorviam umidade com inacreditável rapidez, sobretudo quando os sacos de aniagem de que eram feitas tinham sido empregados para acondicionar
sal.
Outro preso descreve uma improvisação parecida: "Os lados eram abertos, de modo que os dedos ficavam expostos ali. Não se conseguia amarrar bem o pano que envolvia
os pés, e assim os dedos também ficavam suscetíveis ao congelamento". Como resultado do uso desse calçado, o preso ganhou mesmo queimaduras de frio - o que, entretanto,
ele acreditava ter-lhe salvado a vida, pois ficou dispensado de trabalhar.
Diferentes prisioneiros tinham diferentes teorias de como lidar com o frio. Para recuperarem-se do congelamento ao fim do dia, por exemplo, alguns corriam aos alojamentos
e se apinhavam em volta do fogareiro, chegando tão perto que às vezes as roupas pegavam fogo: "O cheiro repugnante de trapos queimando nos chegava às narinas".
Outros consideravam esse procedimento uma insensatez. Prisioneiros mais experientes disseram a Isaak Filshtinskii que se juntar em volta do fogareiro ou da fogueira
do campo era perigoso porque a súbita mudança de temperatura causava pneumonia: "O organismo humano é constituído de maneira tal que, não importando quão baixa a
temperatura, o corpo se ajusta e se acostuma. Sempre segui essa sábia norma no campo, e nunca sequer me resignei".
As autoridades dos campos estavam obrigadas a fazer algumas concessões por causa do frio. Pelas regras, os presos de certos campos setentrionais recebiam rações
adicionais. Mas estas, segundo documentos de 1944, podiam corresponder a não mais que cinqüenta gramas de pão extra por dia, o que nem de longe bastava para contrabalançar
o frio extremo. Em teoria, quando fazia frio demais, ou quando uma tempestade se aproximava, os presos nem deveriam trabalhar. Vladimir Petrov afirmaria que, durante
a administração de Eduard Berzin em Kolyma, os prisioneiros largavam o serviço quando as temperaturas desciam a quinze graus negativos. No inverno de 1938-9, após
a destituição de Berzin, elas tinham de cair a cinqüenta graus negativos antes que se interrompesse o trabalho. Petrov escreve que nem mesmo tal determinação era
sempre seguida, pois a única pessoa que tinha termômetro naquela jazida de ouro era o comandante do campo. Em conseqüência, "só três dias daquele inverno foram de
folga ocasionada pelas baixas temperaturas; no inverno de 1937-8, haviam sido quinze".
Kazimierz Zarod, outro memorialista, registraria que a temperatura de interrupção do trabalho em seu campo, durante a Segunda Guerra Mundial, era de 49 graus negativos;
ele recordaria uma ocasião em que sua turma de lenhadores recebeu ordens de voltar ao campo durante o dia porque o termômetro indicava 53 graus negativos. "Com que
rapidez juntamos o equipamento, formamos coluna e iniciamos o regresso ao campo!" Bardach lembra que em Kolyma, durante os anos de guerra, a norma eram cinqüenta
graus negativos, "embora nunca levassem em conta a sensibilidade térmica".
Mas o clima não era o único obstáculo ao cumprimento das metas. Em muitos campos, elas eram absurdamente elevadas. Em parte, isso era conseqüência indireta da lógica
do planejamento central soviético, a qual impunha que as empresas aumentassem a produção todo ano. Elinor Olitskaya recordaria que suas companheiras forcejavam para
cumprir as metas numa oficina de costura, querendo manter-se naquele trabalho aquecido, em recinto fechado. Mas, como elas as cumpriam, a administração do campo
vivia elevando as metas, até que se tornaram inatingíveis.
As metas também ficavam mais exigentes porque tanto presos quanto normirovshiki mentiam, exagerando o trabalho que fora ou seria realizado. Com o tempo, o resultado
era que, às vezes, elas se tornavam estratosféricas. Alexander Weissberg recordaria que, mesmo em funções supostamente mais fáceis, as metas desafiavam a credulidade:
"Todos pareciam às voltas com urna tarefa praticamente impossível. Os dois encarregados da lavanderia tinham de lavar as roupas de oitocentos homens em dez dias".
Não que superar as metas acarretasse necessariamente as vantagens esperadas. Antoni Ekart se lembraria de quando se rompeu o gelo do rio próximo de seu campo e houve
ameaça de enchente: 'Várias brigadas, constituídas dos presos mais fortes, aí incluídos todos os 'trabalhadores de choque', labutaram como loucos durante dois dias,
praticamente sem intervalo. Pelo que realizaram, receberam um arenque para cada dois homens e um pacote de makhorka [fumo cru] para cada quatro".
Em tais condições - com jornadas longas, poucos dias de folga e pouco descanso durante o dia -, os acidentes eram freqüentes. No inicio dos anos 1950, mandaram um
grupo de prisioneiras inexperientes apagar um incêndio no mato perto do Ozerlag. Só naquela ocasião, lembraria uma das condenadas, "várias pessoas queimaram até
a morte". Também com freqüência, a exaustão e o clima se revelavam uma combinação mortífera, conforme atesta Alexander Dolgun:
Dedos enregelados e adormecidos não conseguiam segurar alças, alavancas, vigas e caixotes, e ocorriam muitos acidentes, amiúde fatais Um homem foi esmagado quando
rolávamos toras de um vagão-plataforma, usando duas como rampa. Ficou soterrado quando vinte toras ou mais se soltaram de uma vez e ele não se afastou rápido o bastante.
Os guardas empurraram o corpo de lado, na plataforma, e aquela massa coberta de sangue coagulado nos aguardava para ser levada para casa quando a noite caísse.
Moscou compilava estatísticas de acidentes, e de vez em quando elas provocavam altercações entre inspetores e comandantes de campo. Uma dessas compilações, referente
ao ano de 1945, discriminava 7.124 acidentes nas minas carboníferas de Vorkuta, dos quais 482 haviam resultado em lesões sérias e 137 em óbitos. Os inspetores punham
a culpa na escassez de lanternas de mineiro, em falhas elétricas e na inexperiência e freqüente rotação dos operários. Furiosos, esses inspetores calcularam o número
de homens/dia perdidos em decorrência de acidentes: 61.492.
Organização absurdamente ruim e gestão desleixada também dificultavam o trabalho. Embora seja importante observar que mesmo os locais de trabalho comuns eram mal
administrados na URSS, a situação era pior no Gulag, onde a vida e a saúde dos trabalhadores não eram consideradas importantes e a chegada regular de peças de reposição
para o equipamento encontrava problemas por causa do clima e das enormes distâncias. O caos reinava no Gulag desde os tempos do Canal do Mar Branco, e essa situação
continuou pela década de 1950, mesmo depois que se mecanizaram muito mais locais de trabalho no país. Para quem fazia trabalho madeireiro, "não havia motosserras,
nem tratores para levantar toras, nem carregadores mecânicos". Quem trabalhava em indústrias têxteis recebia "ferramentas que eram ou muito poucas, ou muito inadequadas".
Segundo um testemunho, isso significava que "todas as costuras precisavam ser passadas com um ferro enorme, que pesava dois quilos. Tinha-se de passar 426 calças
durante o turno; as mãos adormeciam com o peso, e as pernas inchavam e doíam".
A maquinaria também vivia quebrando, fator que não era necessariamente levado em conta quando se calculavam as metas. Na mesma unidade têxtil, "chamavam-se os mecânicos
de manutenção o tempo todo Eram na maioria mulheres condenadas. Os consertos demoravam horas, pois elas não tinham qualificação. Ficava impossível realizar a quantidade
obrigatória de trabalho, e, como resultado, não recebíamos nenhum pão".
O tema da maquinaria quebrada e dos técnicos de manutenção inábeis surge repetidas vezes nos anais da administração do Gulag. Em 1934, administradores regionais
de campos que compareceram à Conferência Partidária do Extremo Oriente, em Khabarovsk, queixaram-se de que as constantes interrupções na provisão de equipamento
e a pouca qualificação dos técnicos implicavam que não conseguissem cumprir as metas de produção de ouro. Uma carta de 1938 ao vice-ministro do Interior encarregado
do Gulag afirma que "de 40% a 50% dos tratores estão quebrados". Mas até métodos de trabalho mais primitivos também falhavam com freqüência. Uma carta do ano anterior
observava que dos 36.491 cavalos disponíveis no Gulag, 25% não estavam em condições de uso.
As empresas do Gulag se ressentiam igualmente da falta de engenheiros e gestores. Poucos técnicos qualificados se apresentavam de livre e espontânea vontade para
trabalhar em projetos do Gulag, e os que de fato se ofereciam não tinham necessariamente as habilidades requeridas. No decorrer dos anos, envidaram-se muitos esforços
para atrair trabalhadores livres para os campos, e davam-se enormes incentivos. Já em meados da década de 1930, recrutadores da Dalstroi faziam campanha pelo país,
oferecendo privilégios especiais a qualquer um que assinasse contrato de trabalho de dois anos. Entre os atrativos, incluíam-se salário 20% superior à média soviética
por aqueles dois primeiros anos e 10% superior pelos anos seguintes, assim como férias remuneradas, acesso a comestíveis e suprimentos especiais e uma aposentadoria
generosa.
Os campos do extremo norte também eram descritos com muito alarde e entusiasmo na imprensa soviética. Um exemplo clássico desse tipo de propaganda apareceu em inglês,
na Sonetland, revista escrita para estrangeiros. Num artigo de abril de 1939 dedicado a Magadan, entoavam-se loas ao mágico atrativo da cidade:
O mar de luzes que é Magadan à noite constitui espetáculo dos mais arrebatadores e cativantes. Trata-se de uma cidade que está viva e buliçosa em todos os minutos
do dia e da noite. Ela fervilha de pessoas cujas vidas são reguladas por rigoroso cronograma de trabalho. Exatidão e prontidão implicam celeridade, e celeridade
implica trabalho fácil e prazeroso.
Não se faz nenhuma menção ao fato de que as pessoas cujas vidas estavam "reguladas por rigoroso cronograma de trabalho" eram prisioneiras.
Não que isso importasse: tais esforços não conseguiram mesmo atrair o número necessário de especialistas, restando ao Gulag depender de presos. Um deles relataria
que, junto com uma brigada de construção, foi enviado seiscentos quilômetros ao norte de Magadan para erguer uma ponte. Quando chegaram, perceberam que ninguém na
brigada construíra pontes antes. Um dos presos, um engenheiro, viu-se encarregado do projeto, ainda que pontes não fossem sua especialidade. A ponte foi construída.
Também foi levada de roldão na primeira enchente.
Esse, porém, foi um desastre menor se comparado a alguns outros. Houve projetos inteiros do Gulag, empregando milhares de pessoas e enormes recursos, que se revelaram
espetacularmente anti-econômicos e mal concebidos. Talvez o mais famoso tenha sido a tentativa de construir urna ferrovia da região de Vorkuta à foz do Ob, no oceano
Ártico. A decisão de iniciar as obras foi tomada pelo governo soviético em abril de 1947. Um mês depois, o desbravamento, o levantamento topográfico e a construção
tiveram início simultâneo. Prisioneiros também começaram a construir um novo porto de mar no cabo Kamenny, onde o Ob se alarga rumo ao mar.
Como de hábito, houve complicações: não se dispunha de tratores em número suficiente, de modo que os presos usaram velhos tanques de guerra. Os planejadores compensaram
a falta de máquinas sobrecarregando os prisioneiros. Jornadas de onze horas eram normais, e às vezes, durante os longos dias de verão, até trabalhadores livres ficavam
nas obras das nove da manhã à meia-noite. No final do ano, as complicações se tornaram mais sérias. A equipe topográfica determinara que o cabo Kamenny era má localização
para o porto: não havia calado-d'água suficiente para navios de porte, e o solo era instável demais para indústrias pesadas. Em janeiro de 1949, Stalin convocou
uma reunião, altas horas da noite, em que a liderança soviética resolveu mudar não só o local da obra, mas também a ferrovia: agora, a linha ligaria o Ob não com
a região de Vorkuta (a oeste), mas com o rio Ienissei (a leste). Construíram-se mais dois campos: o canteiro de obras 501 e o canteiro de obras 503. Ambos começaram
a assentar os trilhos ao mesmo tempo. A idéia era encontrarem-se no meio do traje-to. A distância entre eles era de 1.300 quilômetros.
As obras continuavam. No auge do projeto, segundo uma fonte, eram 80 mil pessoas trabalhando; segundo outra, eram 120 mil. O projeto ficou conhecido como "Estrada
da Morte". A construção se revelou quase impossível na tundra ártica. Quando o permafrost de inverno se transformava rapidamente em lama de verão, tinha-se de lutar
o tempo todo para impedir que os trilhos se retorcessem ou afundassem. Mesmo com esse esforço, os vagões freqüentemente descarrilavam. Por problemas de abastecimento,
os presos começaram a usar madeira em lugar de aço na construção ferroviária - uma decisão que veio selar o fracasso do projeto. Em 1953, à época da morte de Stalin,
haviam-se construído quinhentos quilômetros de um dos extremos, duzentos do outro. O porto existia apenas no papel. Semanas após o funeral de Stalin, o projeto inteiro,
que custara 40 bilhões de rublos e dezenas de milhares de vidas, foi abandonado de vez.
Em escala menor, tais histórias se repetiam todos os dias, por todo o Gulag. No entanto, apesar do clima, da inexperiência e da má gestão, a pressão sobre os administradores
dos campos, e sobre os presos, nunca amainava. As chefias eram submetidas a infindáveis inspeções e programas de fiscalização e viviam sendo exortadas a melhorar
o desempenho. Os resultados, por mais que fossem fictícios, tinham importância. Por mais ridículo que possa ter parecido aos prisioneiros - os quais sabiam perfeitamente
quanto o trabalho era acochambrado -, a brincadeira era terrivelmente séria. Muitos dos presos não sobreviveriam a ela.
KVCh: o Departamento de Cultura e Educação
Caso não estivesse claramente indicado que elas pertenciam ao arquivo da NKVD, o observador casual poderia ser desculpado se achasse que as fotos do Bogoslovlag
- que aparecem num álbum cuidadosamente conservado, datado de 1945 - não eram de um campo de concentração. As imagens mostram jardins bem plantados, flores, arbustos,
um chafariz e um quiosque em que os presos podiam sentar e conversar. A entrada do campo é marcada por uma estrela vermelha e um slogan: "Votamos todas as nossas
forças para o poderio futuro da pátria!"
As fotos de presos que adornam outro álbum, arquivado ali perto, são igualmente difíceis de conciliar com a imagem popular que se tem dos detentos do Gulag. Há um
homem que, contente, segura uma abóbora; vacas puxam arado; um sorridente comandante de campo colhe uma maçã. Ao lado das imagens, vêem-se gráficos. Um mostra a
produção planejada do campo; o outro, o cumprimento da meta.
Todos esses álbuns - montados, colados e etiquetados com o mesmo zelo que as crianças demonstram quando elaboram um trabalho para apresentação em classe - foram
produzidos por uma só instituição: o Departamento de Cultura e Educação do Gulag (Kolturno-vospitatelnaya Chast, ou KVCh, como era mais conhecido dos presos). Ele,
ou algum equivalente, existia desde o início do Gulag. Em 1924, a primeira edição do Slon, o periódico da prisão de Solovetsky, continha um artigo sobre o futuro
dos estabelecimentos prisionais no país: "A política de trabalho correcional da Rússia precisa reabilitar os presos acostumando-os a participar do trabalho produtivo
organizado".
Na maioria das vezes, porém, o verdadeiro objetivo da propaganda dos campos era aumentar as cifras de produção. Foi esse o caso até durante a construção do Canal
do Mar Branco, quando, como já vimos, a propaganda de "reabilitação" teve sua fase mais ostensiva e, talvez, mais sincera. Naquela época, o culto nacional do trabalhador
de choque estava no auge. No campos, artistas pintavam retratos dos melhores operários do canal, e atores e músicos montavam espetáculos e concertos especiais para
eles. Os trabalhadores de choque eram até convidados a enormes assembléias, nas quais se cantava e discursava. Uma delas, realizada em 21 de abril de 1933, foi seguida
de uma "investida de trabalho": durante 48 horas, nenhum dos 30 mil trabalhadores de choque deixou o local de serviço.
Esse tipo de atividade foi abandonado sem nenhuma cerimônia no final dos anos 1930, quando os presos se tornaram "inimigos do povo" e já não podiam simultaneamente
ser "trabalhadores de choque". Mesmo assim, depois que Beria assumiu os campos (1939), a propaganda foi aos poucos retornando. Embora nunca mais tivesse havido outro
Canal do Mar Branco - um projeto do Gulag cujo "êxito" fora alardeado para o mundo -, a linguagem da reabilitação voltou aos campos. Em teoria, na década de 1940,
todo campo tinha um instrutor do KVCh, assim como uma pequena livraria e um "clube" do KVCh, onde se organizavam concertos e exibições teatrais e ocorriam palestras
e debates políticos. Thornas Sgovio se recordaria de um desses clubes:
O recinto principal, acomodando cerca de trinta pessoas, tinha paredes de madeira pintadas em cores vistosas. Havia algumas mesas, em princípio para leitura. Contudo
não existiam livros, jornais nem outros periódicos. E como poderia ler sido diferente? Os jornais valiam seu peso em ouro - nós os usávamos para fazer cigarros.
A partir dos anos 30, os presos com ficha criminal eram supostamente os principais "clientes" do KVCh. Assim como não estava claro se presos políticos seriam autorizados
a ocupar cargos de especialistas, tampouco estava claro se valeria a pena tentar reabilitá-los. Em 1940, uma diretiva da NKVD sobre o trabalho cultural e educacional
nos campos afirmou categoricamente que quem cometera crimes anti-revolucionários não era material adequado para reabilitação. Nas montagens teatrais dos campos,
esses elementos podiam tocar instrumentos, mas não falar nem cantar.
Como em tantas outras situações, tais ordens eram mais desconsideradas do que obedecidas. E, também como em tantas outras situações, a verdadeira função do KVCh
na vida dos campos diferia daquilo que os poderosos do Gulag haviam tido em mente para o departamento. Se Moscou pretendia que o KVCh obrigasse os presos a darem
mais duro, os presos então usavam o KVCh a seu próprio modo: para obter apoio moral - e para sobreviver.
Em vista disso, parece que os instrutores culturais e educacionais nos campos procuravam difundir entre os presos o valor do trabalho, de maneira bem semelhante
àquela com que representantes do Partido Comunista procuravam fazê-lo fora do mundo prisional. Nos campos maiores, o KVCh produzia jornais locais. Às vezes eram
jornais de verdade, com reportagens e longos artigos sobre os êxitos do campo, assim como com "autocríticas" - comentários sobre o que estava errado no estabelecimento
-, as quais eram de rigor na imprensa soviética. Afora um breve período no começo da década de 1930, esses jornais se destinavam sobretudo aos administradores e
aos trabalhadores livres.
Para os presos, também havia jornais murais (afinal, ocorria escassez de papel). Um prisioneiro descreveu os jornais murais como "um atributo do modo de vida soviético
- ninguém os lia, mas eles apareciam regularmente". Com freqüência, tinham "seções humorísticas":
Obviamente, presumiam que trabalhadores que estavam morrendo de inanição leriam aquilo, dariam uma gostosa gargalhada e, por fim, chamariam à razão os folgados que
não queriam saldar através do trabalho honesto a dívida com a pátria.
Por mais risíveis que os jornais murais pudessem parecer a muitos, a direção do Gulag, em Moscou, os levava muito a sério. Esses jornais, ordenava uma diretiva,
devem "ilustrar os melhores exemplos de trabalho, popularizar os trabalhadores de choque, condenar os refratários e mandriões". Não se permitiam imagens de Stalin
- afinal, aqueles eram criminosos, não "camaradas", e continuavam "excomungados" da vida soviética, proibidos até de contemplar o rosto do líder Ademais, a freqüentemente
absurda atmosfera de sigilo que se abatera sobre os campos em 1937 perdurou por toda a década de 40: jornais que eram impressos nos campos não podiam sair dali.
Além de pôr jornais em paredes, o KVCh exibia filmes. Gustav Herling assistiu a um musical americano, "cheio de mulheres de corpete e homens de plastrom e paletó
acinturado", e a um filme de propaganda que concluía com "o triunfo da virtude": "Os desajeitados universitários ficavam em primeiro lugar na competição laborai
socialista e, com olhos chamejantes, faziam um discurso que enaltecia o Estado no qual o trabalho manual fora elevado à mais excelsa posição".
Entrementes, alguns presos comuns se aproveitavam das salas escuras onde se projetavam os filmes para matar outros, por vingança ou não. "Ao fim de uma dessas exibições,
lembro-me de ter visto o corpo de um morto passar numa maca", disse-me uma pessoa que estivera aprisionada no Gulag.
O KVCh também promovia partidas de futebol ou xadrez, concertos e apresentações que eram solenemente denominadas "atividades criativas autodidáticas". Um documento
de arquivo relaciona o seguinte repertório, de um conjunto de canto e dança da NKVD que fazia turnê pelos campos:
1. "A balada de Stalin"
2. "A meditação cossaca sobre Stalin"
3. "A canção de Beria"
4. "A canção da pátria"
5. "A luta pela pátria"
6. "Tudo pela pátria"
7. "A canção dos guerreiros da NKVD"
8. "A canção dos chekistas"
9. "A canção do longínquo posto de fronteira"
10. "A marcha dos Guardas de Fronteiras"
Ainda havia números mais ligeiros, como "Vamos fumar" e "Canção do Dnieper", que pelo menos celebrava um rio, e não uma instituição da polícia secreta. No repertório
teatral, também se incluíam algumas peças de Tchekhov. Mas, pelo menos em teoria, o grosso dos esforços artísticos se destinava à educação, e não ao entretenimento,
dos presos. Em 1940, uma ordem de Moscou declarava: "Toda apresentação deve educar os presos, ensinando-os a valorizar mais o trabalho". Como veremos, os presos
também aprendiam a usar essas apresentações para ajudá-los a sobreviver.
Mas as "atividades criativas autodidáticas" não eram a única preocupação do Departamento de Cultura e Educação - nem eram o único caminho para uma carga de trabalho
mais branda. O KVCh era igualmente responsável por reunir sugestões de como melhorar ou "racionalizar" o trabalho dos presos, tarefa que o departamento levava muito
a sério. No relatório semestral a Moscou, um campo em Nizhne-Amursk afirmava, sem ironia, ter obtido 302 racionalizações, das quais 157 haviam sido postas em prática,
tendo-se economizado assim 812.332 rublos.
Isaak Filshtinskii também observa, com muita ironia, que alguns presos se tornavam peritos em distorcer essa política em proveito próprio. Um deles, ex-motorista,
garantia saber como construir um mecanismo que possibilitaria aos carros usarem oxigênio como combustível. Os chefes do campo, empolgados com a perspectiva de descobrir
uma "racionalização" realmente importante, deram-lhe um laboratório onde pudesse desenvolver a idéia.
Não sei dizer se acreditavam nele ou não. Estavam simplesmente cumprindo determinações do Gulag. Em todo campo, pessoas deviam trabalhar como racionalizadores e
inventores [...] e - quem sabe? - talvez Vdovin acabasse descobrindo alguma coisa, e aí todos ganhariam o Prêmio Stalin!
Vdovin foi enfim desmascarado no dia em que voltou do laboratório com um gigantesco objeto feito de sucata, cujo propósito ele se mostrou incapaz de explicar.
Assim como no mundo extramuros, os campos de concentração continuavam a realizar "competições socialistas", nas quais os presos deviam concorrer uns contra os outros
para elevar a produção. Os campos também homenageavam seus trabalhadores de choque pela suposta capacidade de triplicar ou quadruplicar as metas de produção. No
capítulo 4, já descrevi a primeiras dessas campanhas, que começou nos anos 1930, mas elas continuaram pelos 40 - com entusiasmo sensível-mente menor e exagero sensivelmente
mais absurdo. Os presos que participavam podiam ganhar muitos tipos diferentes de prêmio. Alguns recebiam maiores rações ou melhores condições de vida. Outros, gratificações
mais intangíveis. Em 1942, por exemplo, o prêmio pelo bom desempenho podia abranger uma knizhka otlichnika, a caderneta concedida àqueles que alcançavam o status
de trabalhadores "ótimos". Ela compreendia um pequeno calendário, com espaço para registrar em porcentagem o cumprimento das metas diárias; um espaço em branco para
sugerir "racionalizações"; uma lista dos direitos do detentor da caderneta - a prerrogativa de ficar com o melhor lugar no alojamento, ter os melhores uniformes,
receber remessas externas sem restrições etc.; e uma citação de Stalin: "A pessoa esforçada sente-se um cidadão livre de seu país, uma espécie de ativista social.
E, se ela der duro, e der o que puder à sociedade, será um herói do trabalho".
Nem todos levavam esse prêmio muito a sério. O preso polonês Antoni Ekart também descreveria uma de tais campanhas:
Pendurava-se um Quadro de Honra (feito de compensado), no qual se indicavam os resultados das Competições dos Trabalhadores Socialistas à medida que eram anunciados.
Às vezes, exibia-se um retrato tosco do "trabalhador de choque" que estava na frente, dando detalhes dos recordes quebrados. Expunham-se números quase inacreditáveis,
mostrando uma produção 500% ou até 1.000% acima do normal. Isso se referia a cavar buracos com pás. Até os presos menos atilados sabiam ser impossível conseguir
cavar cinco ou dez mais do que o padrão.
Mas, no fim das contas, os instrutores do KVCh também tinham a responsabilidade de convencer os "folgados" de que era do interesse deles trabalhar, e não ficar em
celas punitivas, nem tentar sobreviver com rações pequenas. Fica claro que não muitos instrutores levavam tais palestras a sério - havia tantas outras maneiras de
persuadir os presos a trabalhar! Todavia, uns poucos as levavam, para júbilo dos maiorais do Gulag, em Moscou. Estes, aliás, consideravam importantíssima aquela
função do KVCh e até promoviam conferências periódicas de instrutores, para debater temas como "Quais as motivações básicas daqueles que se recusam a trabalhar?"
e "Quais os resultados práticos da eliminação do dia livre dos presos?".
Numa dessas reuniões, durante a Segunda Guerra Mundial, os organizadores trocaram impressões. Um deles reconheceu que alguns "folgados" não conseguiam trabalhar
porque estavam fracos demais para conseguir manter-se com a quantidade de alimento que recebiam. Ainda assim, alegou que mesmo os famintos podiam ser motivados:
ele dissera a um refratário que o comportamento deste era "como uma faca cravada nas costas de teu irmão, que está na frente de batalha". Tinha sido o suficiente
para fazer o homem esquecer a fome e dar mais duro. Outro dos instrutores presentes afirmou ter mostrado a alguns refratários fotos de "Leningrado em batalha", depois
do que todos eles foram de imediato para o trabalho. Outro ainda disse que, em seu campo, as melhores brigadas podiam decorar os respectivos alojamentos; e que os
melhores trabalhadores eram estimulados a plantar flores em vasos individuais, deles próprios. Nas atas da reunião (conservadas em arquivo), alguém fez uma anotação
ao lado desse último comentário: Korosho! ("Excelente!").
Compartilhar experiências dessa maneira era considerado tão importante que, no auge da guerra, o Departamento de Cultura e Educação do Gulag em Moscou se deu ao
trabalho de imprimir um folheto sobre o assunto. O título - com conotações claramente religiosas - era Retorno à vida. O autor, certo camarada Loginov, descreve
uma série de relacionamentos que teve com presos "mandriões". Utilizando astutas táticas psicológicas, converteu cada um deles para a crença no valor do trabalho
duro.
As histórias que Loginov conta são bem previsíveis. Numa delas, por exemplo, explica a Ekaterina Sh. (esposa instruída de um condenado à morte por espionagem em
1937) que a vida dela, embora arruinada, podia voltar a ter sentido no contexto do Partido Comunista. Loginov também expõe ao preso Samuel Goldshtein as "teorias
raciais" de Hitler e esclarece o que a "Nova Ordem" nazista na Europa acarretaria para ele, Goldshtein. O prisioneiro, de tão inspirado com esse surpreendente (na
URSS) apelo a sua judaicidade, quer partir na mesma hora para a frente de batalha. Loginov lhe diz que, "hoje, tua arma é teu trabalho"; e o convence a dar mais
duro no campo de concentração. "Tua pátria precisa de teu trabalho - e de ti", diz a outro preso ainda, que, com lágrimas nos olhos, volta ao serviço ao ouvir tais
palavras.
Fica evidente que o camarada Loginov se orgulha de sua função e se dedica a ela com muita energia. O entusiasmo dele era real. As recompensas que recebeu por seu
trabalho, também: V. G. Nasedkin então chefe de todo o sistema Gulag, mostrou-se tão satisfeito com o empenho de Loginov que premiou o autor com uma gratificação
de mil rublos e ordenou que o panfleto fosse enviado a todos os campos do sistema.
Está menos claro se Loginov e seus mandriões acreditavam de fato no que ele dizia. Não sabemos, por exemplo, se Loginov entendia em alguma medida que muitas das
pessoas que ele estava tentando "trazer de volta à vida" eram inocentes de todo e qualquer crime. Tampouco sabemos se pessoas como Ekaterina Sh., caso tenha existido,
realmente se reconverteram aos valores soviéticos; ou se de repente perceberam que, aparentando ter-se convertido, talvez recebessem melhor comida, melhor tratamento,
trabalho mais fácil. As duas possibilidades nem chegam a ser mutuamente excludentes. Para pessoas aturdidas e desorientadas com a rápida transição de cidadãos úteis
a prisioneiros desprezados, "ver a luz" e regressar à sociedade soviética pode não só tê-las ajudado a restabelecer-se psicologicamente, mas também ter-lhes proporcionado
a melhoria de condições que lhes salvou a vida.
Aliás, a pergunta "Será que eles acreditavam no que estavam fazendo?" é parte pequena de uma questão muito maior, a qual vai ao fundo do caráter da URSS: será que
algum dos líderes daquele país chegou a acreditar no que eles próprios estavam fazendo? A relação entre a propaganda e a realidade soviéticas sempre foi estranha:
as fábricas mal conseguem funcionar, não há nada para comprar no comércio, velhinhas não têm condições de aquecer seus apartamentos - e, nas ruas lá fora, faixas
proclamam o "triunfo do socialismo" e as "heróicas realizações da pátria soviética".
Nos campos do Gulag, tais paradoxos não eram diferentes. Stephen Kotkin, em sua obra sobre a história de Magnitogorsk, assina-la que, no jornal da colônia de trabalho
correcional dessa cidade fabril stalinista, os perfis dos condenados regenerados eram escritos numa "linguagem que lembrava muito o que se podia ouvir a respeito
de operários-padrão fora da colônia: eles davam duro, estudavam, sacrificavam-se e procuravam aprimorar-se".
Não obstante, havia nos campos um nível extra de singularidade. Se no mundo extramuros a enorme disparidade entre esse tipo de propaganda e a realidade soviética
já parecia risível a muitos, no Gulag o absurdo dava a impressão de alcançar novas culminâncias. Nos campos, onde os presos viviam sendo chamados de "inimigos",
estando categoricamente proibidos de tratarem-se por "camarada" e contemplarem o retrato de Stalin, eles mesmo assim deviam trabalhar pela glória da pátria socialista,
tal qual os homens e mulheres livres - e ainda participar de "atividades criativas autodidáticas" como se o fizessem por puro e simples amor à arte. O despropósito
ficava bastante claro para todos. Em certa altura de sua carreira no Gulag, Anna Andreevna se tornou "artista" do campo, significando que era empregada para pintar
aqueles slogans. Esse serviço, leve pelos padrões dos campos, lhe salvou certamente a saúde e possivelmente a vida. Mas, entrevistada anos depois, Anna afirmou nem
sequer se lembrar dos dizeres. Disse achar que "a chefia os concebia. Algo como 'Dedicamos todas as nossas forças ao trabalho' ou coisa assim [...]. Eu os pintava
muito depressa e, estritamente falando, muito bem, mas esqueci por completo o que escrevia. Isso aconteceu por alguma espécie de mecanismo de autodefesa".
Também chamou a atenção de Leonid Trus (prisioneiro no começo dos anos 1950) o despropósito dos slogans que estavam fixados por todas as construções do campo e que
eram repetidos pelos alto-falantes:
Havia um sistema de rádio do campo, que regularmente transmitia informações sobre nossos êxitos no trabalho e ralhava com quem não trabalhava direito. Essas transmissões
eram muito canhestras, mas me faziam lembrar as que eu ouvira em liberdade. Acabei convencendo-me de que a única diferença era que, em liberdade, as pessoas eram
mais talentosas e sabiam descrever tudo aquilo de modo mais bonitinho [...] em geral, o campo era igual à liberdade - os mesmos cartazes, os mesmos slogans -, só
que [no Gulag] as frases soavam mais absurdas. "Pegaram o serviço e o concluíram", por exemplo. Ou "Na URSS, o trabalho é questão de honestidade, honra, bravura
e heroísmo" - palavras de Stalin. Ou todos os outros slogans, como "Somos pela paz" ou "Desejamos a paz para o mundo inteiro".
Os estrangeiros que não estavam acostumados a slogans e faixas achavam o trabalho dos "reeducadores" ainda mais esquisito. O polonês Antoni Ekart descreveria uma
típica sessão de doutrinação política:
O método utilizado era o seguinte: um homem do KVCh, um agitador profissional com a mentalidade de uma criança de seis anos, falava aos presos sobre a nobreza de
envidarem todos os seus esforços no trabalho. Dizia-lhes que pessoas nobres eram patriotas; que todos os patriotas amavam a Rússia Soviética, o melhor país do mundo
para os trabalhadores; que os cidadãos soviéticos se orgulhavam de pertencer a um país assim etc. etc., durante duas horas inteiras - e isso tudo para um público
cuja própria aparência era testemunho do absurdo e da hipocrisia de tais afirmações. Mas o orador não se incomodava com a fria acolhida e continuava falando. Por
fim, prometia a todos os "trabalhadores de choque" mais gratificação, maiores rações e melhores condições. Pode-se imaginar o efeito disso em quem estava submetido
à disciplina da fome.
Um polonês desterrado teve a mesma reação a uma palestra propagandística a que assistiu num campo de concentração siberiano.
Durante horas e horas, o palestrante não parou de falar, tentando provar que Deus não existia, que Ele era apenas uma invenção burguesa. Devíamos nos considerar
afortunados por estarmos na URSS, o país mais perfeito do mundo. Ali no campo, aprenderíamos a trabalhar e enfim ser pessoas dignas. De quando em quando, ele procurava
nos instruir: assim, contava-nos que "a Terra é redonda" e que ele estava absolutamente convencido de que não sabíamos nada disso; de que também ignorávamos, por
exemplo, que Creta era "peninsular", ou que Roosevelt era ministro de algum país estrangeiro. Comunicava verdades desse tipo com uma confiança inabalável em nossa
total falta de conhecimento, pois como podíamos nós, criados num Estado burguês, esperar ter o benefício da educação mais elementar que fosse? [...] com muita satisfação,
enfatizava que não poderíamos sequer sonhar em recuperar a liberdade, pois a Polônia jamais se reergueria.
Infelizmente para o coitado do palestrante, todo o seu trabalho não adiantou de nada, segundo o polonês: "Quanto mais ele arengava, mais nos rebelávamos intimamente,
mantendo a esperança apesar de tudo. Os rostos se endureceram de obstinação".
Gustav Herling, outro polonês, descreveria as atividades culturais de seu campo de concentração como
vestígios dos regulamentos elaborados em Moscou nos tempos em que os campos realmente se destinavam a ser instituições correcionais e educacionais. Gogol teria detectado
aquela obediência cega a uma ficção oficial, mesmo que contraditória com a prática geral no campo - era como educar "almas mortas".
Tais opiniões não são casos isolados: encontram-se na imensa maioria dos registros, que ou nem mencionam o KVCh, ou o ridicularizam. Por esse motivo, é difícil,
quando se escreve sobre a função da propaganda no Gulag, avaliar a importância dela para a direção do sistema. Por um lado, pode-se muito bem argumentar - e muitos
o fazem - que a propaganda nos campos, assim como toda a propaganda soviética, era pura farsa; que ninguém lhe dava crédito; que era produzida pela administração
dos campos só para iludir os prisioneiros de maneira bastante pueril e óbvia.
Por outro lado, se a propaganda, os cartazes e as sessões de doutrinação política eram completamente ridículos - e se ninguém acreditava neles de jeito nenhum -,
então por que se desperdiçava tanto tempo e tanto dinheiro com aquilo? Tomando como amostra só os registros da administração do Gulag, há centenas e mais centenas
de documentos que atestam o trabalho intensivo do Departamento de Cultura e Educação. Por exemplo, no primeiro trimestre de 1943, quando a guerra estava no auge,
os campos e Moscou trocavam telegramas frenéticos, pois comandantes tentavam desesperadamente obter instrumentos musicais para os presos. Ao mesmo tempo, os campos
promoviam um concurso cujo tema era "A grande guerra patriótica do povo soviético contra os ocupantes fascistas alemães" e do qual participavam cinqüenta pintores
e oito escultores. Num tempo de escassez nacional de mão-de-obra, os órgãos centrais também recomendavam que todo campo empregasse um bibliotecário; um projetista
para exibir filmes de propaganda; e um kulturorganizator, prisioneiro que servia de assistente ao instrutor cultural e ajudava a travar a "batalha" pela limpeza,
a organizar as atividades artísticas, a elevar o nível cultural dos presos - e a ensiná-los a "entender corretamente as questões da política contemporânea".
Os instrutores culturais dos campos ainda apresentavam relatórios semestrais ou trimestrais sobre seu trabalho, muitas vezes arrolando com grande minúcia suas realizações.
Também em 1943, o instrutor cultural no Vosturallag (na época um campo para 13 mil presos) enviou um desses relatórios. Com 21 páginas, começava reconhecendo que,
no primeiro semestre daquele ano, as metas industriais do campo "não foram cumpridas". No segundo semestre, porém, tomaram-se providências. O Departamento de Cultura
e Educação ajudara a "mobilizar os presos para cumprirem e superarem as metas de produção estabelecidas pelo camarada Stalin", a "restabelecer a saúde dos presos
e fazer os preparativos para o inverno" e a "eliminar deficiências no trabalho cultural e educacional". Em seguida, o chefe do KVCh no campo listava os métodos
que empregava. Assinalava grandiosamente que, naquele segundo semestre, fizeram-se 762 discursos políticos, aos quais assistiram mais de 70 mil presos (é de supor
que muitos tenham ido mais de uma vez). Ao mesmo tempo, o KVCh promovera 444 palestras de informação política, com presença de 82.400 presos; imprimira 5.046 jornais
murais, lidos por 350 mil pessoas; apresentara 232 concertos e peças; exibira 69 filmes; e organizara 38 grupos de teatro. Um desses últimos até compusera uma canção,
citada com orgulho no relatório:
A brigada é simpática,
O dever nos chama,
O canteiro de obra nos aguarda,
A frente de batalha precisa de nosso trabalho.
Pode-se tentar aventar explicações para esse enorme esforço. Na burocracia do Gulag, talvez o Departamento de Cultura e Educação fosse o derradeiro bode expiatório:
se as metas não estavam sendo cumpridas, a culpa não era da má organização, nem da desnutrição, nem das práticas de trabalho estupidamente cruéis, nem da falta de
botas de feltro - era, isto sim, da propaganda insuficiente.
Talvez o motivo fosse a rígida burocracia do sistema: tão logo a cúpula decidia que precisava haver propaganda, todos tentavam obedecer à ordem sem questionar se
era ou não absurda.
Talvez a liderança moscovita estivesse tão isolada dos campos que realmente acreditasse que 444 palestras e 762 discursos políticos fariam homens e mulheres famélicos
trabalharem com mais afinco (ainda que isso pareça improvável, dadas as informações também disponíveis para essa mesma liderança nos relatórios dos inspetores dos
campos).
Ou talvez não haja nenhuma boa explicação. Vladimir Bukovsky, o dissidente soviético que depois também foi prisioneiro, dava de ombros quando lhe perguntavam sobre
isso. Segundo Bukovsky, aquele paradoxo era o que tornava o Gulag excepcional:
Em nossos campos, esperava-se não apenas que fossemos trabalhadores escravos, mas que também cantássemos e sorríssemos enquanto trabalhávamos. Não queriam só nos
oprimir - queriam que lhes agradecêssemos por isso.
12. PUNIÇÃO E RECOMPENSA
Quem ainda não esteve lá, estará.
Quem já esteve, nunca esquecerá.
Provérbio soviético acerca das prisões.
Shizo: as celas punitivas
Muito poucos campos de concentração soviéticos chegaram ao presente intactos, ou mesmo em ruínas. Por isso, é curioso que bom número de shtrafnye izolyhateri (celas
de isolamento, ou, no inevitável acrônimo, Shizo) continue de pé. Do lagpunkt 7 do Ukhtpechlag, só resta o pavilhão de celas punitivas, agora a oficina de um mecânico
de autos armênio. Ele deixou as grades nas janelas tal qual estavam, na esperança, segundo ele, de que "Soljenitsin compre meu imóvel". Do lagpunkt agrícola de Aizherom,
no Lokchimlag, não resta nada - exceto, mais uma vez, as celas punitivas, hoje transformadas na residência de várias famílias. Uma das idosas que moram ali elogia
a solidez de uma das portas. Esta ainda tem no meio um grande "buraco de Judas", pelo qual os guardas outrora espiavam os presos e lhes atiravam rações de pão.
A longevidade desses pavilhões é testemunho da robustez de sua construção. Sendo freqüentemente as únicas obras de alvenaria num campo de madeira, eram a zona prisional
dentro da zona prisional. Entre suas paredes, tinha-se o rezhim dentro do rezhim. "Uma edificação sombria de pedra" foi como um preso descreveu o pavilhão punitivo
em seu campo. "Portões externos, portões internos, sentinelas armadas a toda volta."
Na década de 1940, Moscou já emitira instruções minuciosas, descrevendo tanto a construção das celas punitivas quanto as normas para os condenados a viver ali. Cada
lagpunkt (ou grupo de lagpunkts, no caso dos menores) tinha um pavilhão punitivo, em geral logo do lado de fora da zona prisional, ou, se ficasse do lado de dentro,
"cercado por uma cerca intransponível", a alguma distância das outras edificações do campo. De acordo com um preso, essa restrição talvez não fosse necessária, já
que muitos prisioneiros procuravam evitar a cela punitiva "circundando-a à distância, nem sequer olhando na direção daquelas paredes de pedra cinzenta, interrompidas
por abertura que pareciam exalar um vazio escuro e gelado".
Todo complexo de campos devia também ter um pavilhão central de celas punitivas perto da sede (Magadan, Vorkuta, Norilsk). Na realidade, esse pavilhão central era
muitas vezes uma cadeia enorme, que conforme as normas, "deve estar em local o mais distante possível das regiões habitadas e das vias de transporte, ser bem guardado
e assegurar completo isolamento. A guarda deve compor-se apenas dos atiradores mais confiáveis, disciplinados e experientes, selecionados dentre os trabalhadores
livres". Tais cadeias centrais continham tanto celas comuns quanto solitárias. Essas últimas tinham de ficar numa construção especial, à parte, e eram reservadas
a "elementos particularmente nocivos". Os presos mantidos em isolamento não eram levados para trabalhar. Ademais, ficava-lhes vedado todo tipo de exercício, além
de fumo, papel e fósforo. Isso vinha acrescer-se às restrições "ordinárias" que se aplicavam a quem estava nas celas comuns: nada de cartas, nada de remessas de
fora, nada de visitas de familiares.
A primeira vista, a existência das celas punitivas parece contradizer os princípios econômicos gerais em que se baseava o Gulag. Manter edificações especiais e guardas
adicionais era caro. Manter detentos longe do trabalho era desperdício. Todavia, do ponto de vista da administração dos campos, as celas eram não uma forma extra
de tortura, e sim parte integral do vasto esforço para fazer os presos darem mais duro. Junto com as rações reduzidas, o regime punitivo se destinava a (1) intimidar
os otkazchiki, os que se recusavam a trabalhar; e (2) castigar os perpetradores de algum crime no campo, como homicídio ou tentativa de fuga.
Dado que esses dois tipos de delito tendiam a ser cometidos por diferentes tipos de preso, as celas punitivas, em alguns campos, tinham ambiente esquisito. De um
lado, estavam repletas de bandidos profissionais, mais propensos a matar e escapar. De outro lado, porém, outra categoria começou a lotá-las: os presos religiosos,
tanto homens quanto mulheres, as monashki, "freiras" que, por princípio, também se negavam a trabalhar para o Satã soviético. A finlandesa Aino Kuusinen, por exemplo,
estava num lagpunkt de Potma cujo comandante construiu um barracão punitivo só para mulheres profundamente religiosas que "se recusavam a trabalhar na lavoura e
passavam o tempo rezando em voz alta e entoando hinos". Elas não comiam com as outras prisioneiras; em vez disso, recebiam rações disciplinares naquele barracão.
Duas vezes ao dia, guardas armados as acompanhavam à latrina. "De tempos em tempos, o comandante as visitava de rebenque na mão, e gritos agudos de dor ressoavam
no barracão; elas costumavam ser despidas antes de açoitadas, mas nenhuma crueldade conseguia fazê-las desistir das preces e dos jejuns." Acabaram sendo levadas
embora. Aino acreditava que houvessem sido fuziladas.
Outros tipos de "refratários" inveterados também iam parar em celas punitivas. Aliás, a própria existência dessas celas impunha uma escolha aos presos: podiam ou
trabalhar, ou ficar alguns dias ali, virando-se com rações menores, sofrendo frio e desconforto, mas não se estafando nas florestas e outros locais de trabalho.
Lev Razgon narra a história do conde Tyszkiewicz, aristocrata polonês que, vendo-se num campo madeireiro siberiano, calculou que não sobreviveria com as rações fornecidas
e simplesmente se negou a trabalhar. Estimou que assim pouparia as forças, mesmo recebendo apenas a ração disciplinar.
Toda manhã, antes que as colunas de zeks se alinhassem no pátio e os presos fossem conduzidos marchando para fora do campo, dois carcereiros tiravam Tyszkiewicz
da cela punitiva. Pêlos curtos e grisalhos lhe cobriam o rosto e a cabeça rapada, e ele trajava os restos de um antigo capote, mais polainas. O oficial encarregado
da segurança do campo dava início à reprimenda didática de todos os dias: "Pois bem, seu conde de m..., seu m... estúpido, vai ou não vai trabalhar?"
"Não, senhor, não posso trabalhar", respondia o conde com voz muito firme.
"Ah, não pode, não é, seu m...?"
O oficial então explicava publicamente ao conde o que pensava deste e de seus parentes próximos e distantes e o que faria com ele logo, logo. Esse espetáculo diário
era fonte de satisfação geral para os outros detentos.
Mas, embora Razgon conte a história com humor, tal estratégia era muito arriscada, pois o regime punitivo não era concebido para ser aprazível. Oficialmente, as
rações disciplinares diárias para presos que não cumpriam as metas eram de 300 gramas de "pão preto de centeio", 5 gramas de farinha, 25 gramas de trigo-sarraceno
ou macarrão, 27 gramas de carne e 170 gramas de batata. Se bem que essa já fosse uma quantidade ínfima de comida, os presos que ficavam nas celas punitivas recebiam
ainda menos: 300 gramas daquele pão preto ao dia, mais
água quente e "alimento líqüido quente" (ou seja, sopa) só uma vez a cada três dias.
Contudo, para a maioria dos presos, o aspecto mais desagradável do regime punitivo estava não no sofrimento físico - a edificação isolada, a comida ruim -, mas nos
outros suplícios que dessem na veneta do comando local. Os beliches compartilhados, por exemplo, podiam ser substituídos por um simples banco. Ou o pão podia ser
feito com cereal não-processado. Ou então o "alimento líqüido quente" podia ser mesmo bem aguado. Janusz Bardach foi posto numa cela punitiva cujo piso ficava coberto
de água e cujas paredes eram encharcadas e cobertas de limo:
Minha roupa de baixo já estava molhada, e eu tremia. Sentia rigidez e cãibras no pescoço e nos ombros. A madeira do banco, bruta e ensopada, estava apodrecendo,
principalmente nas beiradas [...] o banco era tão estreito que eu não conseguia deitar de costas, e, quando ficava de lado, as pernas pendiam da beirada; tinha de
mantê-las dobradas o tempo todo. Difícil mesmo era resolver de que lado deitar: de um lado, a cara ficava espremida contra a parede; de outro, as costas ficavam
molhadas.
A umidade era comum, assim como o frio. Embora as normas determinassem que a temperatura nas celas punitivas não podia ser inferior a dezesseis graus, o aquecimento
era com freqüência negligenciado. Gustav Herling lembraria que, em seu pavilhão punitivo, "as janelas das pequenas celas não tinham nem vidraças nem tábuas, de modo
que a temperatura nunca era mais alta que lá fora". Herling descreveria outras maneiras pelas quais as celas eram concebidas para criar desconforto:
Minha cela era tão baixa que eu conseguia tocar o teto com a mão [...] era impossível sentar no beliche de cima sem dobrar as costas contra o teto; só se podia entrar
no de baixo com um movimento de mergulho, e para sair era preciso alçar-se da madeira, como um nadador num banco de areia. A distância entre a beirada do beliche
e o balde sanitário na porta era de menos que uma passada normal.
Os comandantes de campo também estavam autorizados a decidir se os presos usariam roupa na cela (muitos eram mantidos só de roupa de baixo) e se os mandariam para
o trabalho. Quando os presos não trabalhavam, permaneciam no frio das celas o dia todo, sem exercício. Quando trabalhavam, passavam muita fome. Nadezhda Ulyanovskaya
ficou um mês à base de rações disciplinares, mas ainda assim a fizeram trabalhar. "Vivia com vontade de comer", escreveria. "Comecei a falar só de comida." Por
causa das mudanças freqüentemente inesperadas no regime punitivo, os presos morriam de medo de ser mandados para as celas. "Ali, presos choravam feito crianças,
prometendo ser bonzinhos só para sair", escreveria Herling.
Nos complexos maiores, havia tipos diversos de tormento: não apenas celas punitivas, mas também barracões e até lagpunkts punitivos. Em 1933, o Dmitlag, campo que
construiu o Canal Moscou-Volga, estabeleceu um "lagpunkt de regime estrito" para "refratários ao trabalho, fujões, larápios e outros". A fim de garantir a segurança,
a chefia do campo prescreveu que o novo lagpunkt tivesse cerca dupla de arame farpado; que guardas adicionais conduzissem os presos ao trabalho; e que os presos
fizessem trabalho braçal pesado em locais de onde fosse difícil escapar.
Mais ou menos na mesma época, a Dalstroi criou um lagpunkt disciplinar, que, no final dos anos 1930, se tornaria um dos mais infames do Gulag: Serpantinnaya (ou
Serpantinka), na encosta setentrional dos montes logo acima de Magadan. Cuidadosamente situado para receber muito pouco sol, mais frio e mais escuro que os outros
campos do complexo (localizados no vales e já bem frios e escuros durante grande parte do ano), o campo punitivo da Dalstroi era mais fortificado que outros lagpunkts
e também serviu de local de execução em 1937 e 1938. Seu nome era usado para amedrontar os presos, que igualavam a ida para Serpantinka à sentença de morte. Um
dos pouquíssimos sobreviventes descreveria o alojamento como "tão superlotado que os prisioneiros se revezavam para sentar no chão, enquanto todos os restantes permaneciam
de pé. Pela manhã, a porta se abria, e chamavam de dez a doze presos pelo nome. Ninguém respondia. Aí, os primeiros que estavam à mão eram arrastados para fora e
fuzilados".
Na realidade, sabe-se muito pouco sobre Serpantinka, em boa parte porque sobrou tão pouca gente para dizer como era o campo. Sabe-se ainda menos sobre lagpunkts
punitivos estabelecidos em outros lugares; por exemplo, o de Iskitim (do complexo do Siblag), construído numa pedreira de calcário. Ali, os presos trabalhavam sem
maquinaria e sem equipamento, escavando com as mãos. Cedo ou tarde, a poeira matava muitos, em decorrência de doenças pulmonares e outros problemas respiratórios.
Anna Larina, a jovem esposa de Bukharin, ficou encarcerada lá durante breve período. A maior parte dos outros prisioneiros (e mortos) de Iskitim continua anônima.
Não foram, porém, esquecidos de todo. O sofrimento dos cativos afetou tão profundamente a imaginação do povo de Iskitim que, muitas décadas depois, o surgimento
de uma nova fonte de água numa colina ao lado do antigo campo seria saudada como um milagre. Dado que o barranco abaixo da fonte era, segundo a tradição local, lugar
de execuções em massa de prisioneiros, os habitantes acreditavam que a água santa era a maneira pela qual Deus decidira manter viva a lembrança daqueles mortos.
Num dia silencioso e gelado no final do inverno siberiano, quando o solo ainda estava coberto por um metro de neve, pude ver grupos de fiéis subirem o morro até
a fonte, encherem garrafas e canecas de plástico com a água límpida e a bebericarem reverentemente - às vezes olhando, de modo solene, para o barranco lá embaixo.
POCHTOVYI YASHCHIK: A CAIXA DO CORREIO
A Shizo era a máxima punição do sistema penal. Entretanto, o Gulag também fazia agrados aos detentos - contrabalançando castigos com recompensas. Junto com a comida,
o sono e o trabalho, o campo controlava o contato dos presos com o mundo extramuros. Ano após ano, os administradores do Gulag em Moscou enviavam instruções, fixando
quantas cartas e remessas de gêneros ou dinheiro os detentos podiam receber e quando e como os familiares podiam visitá-los.
Assim como as instruções referentes às celas punitivas, as normas que regiam esses contatos variaram com o tempo. Ou talvez seja mais exato dizer que, de modo geral,
os contatos foram ficando mais limitados com o passar dos anos. As instruções que descreviam em termos genéricos o regime prisional de 1930, por exemplo, estipulavam
apenas que os presos podiam enviar e receber um número ilimitado de cartas e remessas. Também se permitiam as visitas de familiares, sem restrições específicas,
embora o número de visitas (o qual não vinha determinado nas instruções) dependesse do bom comportamento do preso.
Contudo, em 1939, as instruções já eram muito mais detalhadas. Afirmavam especificamente que apenas os presos que cumprissem as metas de produção poderiam encontrar-se
com os parentes, e mesmo assim só de seis em seis meses. Quem excedesse as metas teria direito a uma visita por mês. As remessas de fora também se tornaram mais
limitadas: os presos em geral podiam receber somente uma por mês, e os condenados por crimes anti-revolucionários, uma a cada três meses.
Em 1939, já surgiram igualmente inúmeras regras para o envio e recebimento de cartas. Alguns presos políticos podiam receber cartas uma vez por mês; outros, apenas
a cada três meses. Ademais, os censores dos campos proibiam categoricamente os presos de escrever sobre certos assuntos: não podiam indicar o número de detentos
em seu respectivo campo, discutir detalhes do regime prisional, mencionar guardas pelo nome ou dizer que tipo de trabalho se realizava ali. Cartas que continham
tais detalhes eram não apenas confiscadas por aqueles censores, mas também cuidadosamente registradas na ficha do preso - sendo de supor que se fazia isso para usá-las
como prova de "espionagem".
Todos esses regulamentos eram sempre modificados, emendados e adaptados às circunstâncias. Durante a guerra, por exemplo, suspenderam-se todas as restrições ao número
de remessas de alimentos recebidas - as autoridades dos campos parecem ter tido a esperança de que os familiares simplesmente ajudassem a alimentar os presos, tarefa
que, na época, era difícil ao extremo para a NKVD. Por outro lado, depois da guerra, prisioneiros em campos disciplinares especiais para criminosos violentos - bem
como em campos especiais para presos políticos - viam diminuir outra vez o direito ao contato com o mundo extramuros. Estavam autorizados a escrever só quatro vezes
por ano e receber cartas apenas de parentes próximos (pais, irmãos, cônjuges e filhos).
Justamente porque os regulamentos eram tão variados e complexos, e porque eles mudavam com tanta freqüência, os contatos externos acabavam ficando (mais uma vez)
ao bel-prazer dos comandantes de campo. Cartas e remessas certamente nunca chegavam às celas, alojamentos ou lagpunkts punitivos. Tampouco chegavam a presos do quais
as autoridades, por alguma razão, não gostassem. Além disso, havia campos que simplesmente eram demasiado isolados e, por conseguinte, não recebiam nenhuma correspondência.
E existiam campos tão desorganizados que nem se preocupavam em distribuir a correspondência. Um desgostoso fiscal da NKVD escreveu que, num deles, "cartas e remessas
de gêneros e de dinheiro não são entregues aos presos e jazem aos milhares em depósitos e guaritas". Em grande numero de campos, as cartas eram recebidas com atraso
de meses. Isso quando eram: muitos presos só souberam anos depois que inúmeras cartas e remessas suas haviam sumido, e ninguém sabia informar se tinham sido roubadas
ou perdidas. Na situação inversa, presos que haviam sido categoricamente proibidos de receber cartas acabavam recebendo-as mesmo assim, apesar do empenho dos administradores
de campos.
De outra parte, alguns censores não somente cumpriam sua obrigação e distribuíam as cartas, como até deixavam algumas passar invioladas. Dmitrii Bystroletov se recordaria
de uma censora que se portava assim, uma konsomolka (membro da Juventude Comunista) que entregava aos presos cartas que não haviam sido nem abertas. "Ela estava
arriscando não um mero pedaço de pão, mas a própria liberdade: podia ser condenada a dez anos."
Havia, é claro, maneiras de burlar tanto a censura quanto as restrições ao número de cartas. Certa vez, Anna Razina recebeu do marido uma carta dentro de um bolo
(naquele momento, o marido já fora executado). Ela também viu cartas levadas para fora do Gulag às escondidas, enfiadas em solas de sapatos ou costuradas em roupas
de presos que estavam sendo libertados. Num campo de regime brando, Barbara Armonas mandava cartas clandestinamente por intermédio de presos que trabalhavam sem
guarda fora da zona prisional.
O general Gorbatov também descreve como, de dentro de um trem de traslado, enviou à esposa uma carta não-censurada, usando um método mencionado por muitos outros.
Primeiro, comprou de um dos presos um toco de lápis:
Dei o fumo cru ao condenado, peguei o lápis com ele e, quando o trem voltou a mover-se, escrevi uma carta nos papéis de cigarro [de enrolar], numerando cada folha.
Em seguida, fiz um envelope com o invólucro do fumo e o fechei com miolo de pão úmido. Para que o vento não levasse minha carta para os arbustos junto aos trilhos,
eu a lastreei com um pedaço de pão, que amarrei usando fios puxados de minha toalha. Entre o envelope e o pão, enfiei uma nota de um rublo e quatro papéis de cigarro,
cada um deles com esta mensagem: "Peço a quem encontrar este envelope que o sele e o ponha no correio". Fui à janela quando estávamos passando por uma grande estação
e deixei a carta cair.
Não muito depois, a mulher de Gorbatov a recebeu.
As instruções oficiais não mencionavam algumas dificuldades para a escrita de cartas. Mesmo que fosse permitido redigi-las, por exemplo -nem sempre era muito fácil
achar papel e lápis ou caneta.
"No campo, o papel constituía artigo de grande valor, pois os presos recisavam muito dele, mas era impossível obtê-lo", escreveria Bystroletov. "Que significa o
grito de 'Hoje é dia de mandar cartas! Passem-nas!' quando não há nada em que escrever, ou quando apenas uns poucos afortunados sabem escrever e os restantes, desalentados,
têm de permanecer nos beliches?"
Um preso se recordaria de trocar pão por duas páginas arrancadas de A questão do leninismo (livro cujo autor era Stalin). Nas entrelinhas, ele redigiu uma carta
à família. Em lagpunkts menores, até os administradores precisavam idear soluções criativas. Em Kedrovyi Shor, por exemplo, um contador usava papel de parede velho
para elaborar documentos oficiais.
As normas para o recebimento de remessas de gêneros eram ainda mais complexas. As instruções enviadas a cada comandante de campo ordenavam expressamente que os presos
abrissem todas as remessas na presença de um guarda, o qual então confiscaria qualquer item proibido. De fato, muitas vezes, esse recebimento se fazia acompanhar
de todo um ritual. Primeiro, o preso era avisado de sua boa sorte. Em seguida, guardas o escoltavam para o depósito, onde ficavam trancados os pertences pessoais
dos detentos. Depois que o preso abria a remessa, os guardas cortavam ou revolviam cada item (cada cebola, cada lingüiça) para assegurar-se de que não continha mensagens
secretas. Se tudo passasse pela inspeção, o preso seria autorizado a pegar alguma coisa da remessa. O resto permaneceria no depósito, à espera da próxima visita
autorizada do preso. Quem estivesse nas celas punitivas - ou houvesse caído em desfavor de alguma outra forma - ficaria proibido, é claro, de receber comestíveis
remetidos de casa.
Havia variações nesse sistema. Um preso logo percebeu que, se deixasse suas remessas no depósito, parte delas não demoraria a sumir, furtada pelos guardas. Por conseguinte,
arrumou um jeito de pendurar no cinto uma garrafa que recebera, cheia de manteiga, escondendo-a nas calças. "Com o calor do corpo, a manteiga estava sempre líqüida."
No final do dia, passava-a no pão. Dmitrii Brystoletov, num lagpunkt que não tinha nenhum depósito, precisou ser ainda mais criativo.
Na época, eu trabalhava na tundra, no canteiro de obras de uma fábrica, e morava num alojamento de operários onde era impossível deixar o que quer que fosse, e de
onde era impossível levar algo para a obra: as sentinelas à entrada do campo confiscavam e comiam tudo o que encontravam, e tudo o que ficasse no alojamento era
surrupiado e comido pelo dnevalni [o preso designado para limpar e vigiar o lugar]. Tinha-se de comer tudo de uma vez. Tirei um prego dos beliches, fiz dois buracos
numa lata de leite condensado e comecei a sugá-lo debaixo da coberta. Entretanto, eu estava tão exausto que caí no sono e aquele líqüido inestimável ficou pingando
inutilmente no imundo colchão de palha.
Também havia complicadas questões morais envolvendo as remessas, já que nem todos as recebiam. Deviam compartilhá-las? Em caso afirmativo, seria melhor fazê-lo apenas
com os amigos? Ou com os potenciais protetores? Na cadeia, pudera-se organizar "Comitês dos Pobres"; nos campos, porém, isso era impossível. Alguns davam a todos,
por bondade ou pelo desejo de granjear boa vontade. Outros só davam a pequenos círculos de amigos. E às vezes, conforme recordaria um preso, "acontecia de comermos
os biscoitos doces na cama, à noite, porque era desagradável fazê-lo na frente dos outros".
Durante os piores anos da guerra, nos campos setentrionais mais duros, as remessas podiam constituir a diferença entre a vida e a morte. Um memorialista, o diretor
de cinema Georgii Zhenov, afirma ter sido literalmente salvo por duas remessas. A mãe as mandara de Leningrado em 1940, e ele as recebeu três anos depois, "no momento
mais crucial, quando eu, faminto e tendo perdido toda a esperança, estava lentamente morrendo de escorbuto".
Na época, Zhenov trabalhava na casa de banhos de um lagpunkt, pois estava fraco demais para a lida na floresta. Ao ser informado de que recebera as duas remessas,
ele de início nem acreditou. Depois, convencido de que era verdade, pediu ao responsável pelos banhos permissão para caminhar os dez quilômetros até a administração
central do campo, onde ficava o depósito. Após duas horas e meia, voltou: "Com dificuldade, só conseguira caminhar um quilômetro". Aí, vendo um grupo de capatazes
da NKVD num trenó, "urna idéia extravagante me passou pela cabeça: e se eu pedisse para ir com eles?". Concordaram, e o que aconteceu em seguida "pareceu um sonho":
Zhenov entrou no trenó; percorreu os dez quilômetros; desceu com muita dificuldade, ajudado por aqueles capatazes; solicitou suas remessas, velhas de três anos;
e as abriu.
Tudo o que fora posto no pacote - açúcar, lingüiça, banha, confeito, cebola, alho, biscoito doce, biscoito salgado, cigarro, chocolate, junto com os papéis em que
se embrulhara cada uma dessas coisas - se misturara, como numa máquina de lavar roupa, enfim se transformando numa única massa dura, com um odor adocicado de podridão,
mofo, fumo e confeito.
Fui até a mesa, cortei um pedaço a faca e, na frente de todos, quase sem mastigar, engoli apressadamente, sem distinguir sabor nem cheiro - temendo, em suma, que
alguém me interrompesse ou tomasse aquilo de mim.
DOM SVIDAHII: A CASA DE VISITAS
No entanto, não eram cartas e remessas o que evocava entre os presos a maior das emoções, ou a maior das agonias. Muito mais dolorosos eram os encontros com os familiares,
em geral o cônjuge ou a mãe. Só os presos que haviam cumprido as metas e seguido obedientemente as normas tinham permissão para receber visitas - documentos oficiais
as descrevem, com clareza, como recompensa pelo "bom trabalho, zeloso e acelerado". E a promessa de visita de um familiar era mesmo fortíssimo estímulo à boa conduta.
Desnecessário dizer que nem todos estavam em posição de receber visitas. Para começo de conversa, as famílias precisavam ter suficiente coragem moral para manter
contato com um parente que era "inimigo do povo". Viajar para o Cazaquistão, Kolyma, Vorkuta ou Norilsk, mesmo como cidadão livre, também exigia coragem física.
O visitante teria não apenas de suportar uma longa jornada ferroviária para uma cidade longínqua e primitiva, mas também de andar, ou pegar carona e fazer um percurso
sacolejante na traseira de um caminhão, até o lagpunkt. Depois disso, talvez precisasse esperar dias ou mais, implorando a desdenhosos comandantes de campo a autorização
para ver o preso - autorização que podia muito bem ser negada sem nenhuma justificação. Em seguida, o familiar encarava outra longa viagem, agora de retorno, pela
mesma rota enfadonha.
Além do desconforto físico, o desgaste psicológico desses encontros podia ser terrível. Segundo escreveria Herling, as mulheres que chegavam para visita
sentiam o sofrimento ilimitado de seus cônjuges, sem entendê-lo por completo ou ser capaz de ajudar de algum modo; os longos anos de separação haviam eliminado muito
da afeição pelos maridos [...] o campo, distante e vedado às visitantes, ainda assim as ameaça de modo sombrio. Não são prisioneiras, mas têm parentesco com aqueles
inimigos do povo.
Esses sentimentos ambíguos não se limitavam às esposas. Um preso conta a história de uma mulher que trouxera a filha de dois anos para ver o pai. Ao chegarem, ela
disse à menina: "Vá dar um beijo no papai". A criança correu para o guarda e o beijou no pescoço. A filha do cientista espacial soviético Sergei Korolev ainda se
recorda de ter sido levada para ver o pai quando ele estava num sharashka. Antes, vinham dizendo à menina que ele estava fora, combatendo na Força Aérea. Ao entrar
na prisão, ela ficou surpresa com as pequenas dimensões do pátio e perguntou à mãe: "Onde é que o papai aterrissa com o avião?".
Nas cadeias (e também em certos campos), tais encontros eram invariavelmente breves e costumavam ocorrer na presença de um guarda, uma regra que também causava enorme
desgaste. "Eu queria falar, dizer um bocado, contar tudo o que acontecera naquele ano", lembraria um preso, referindo-se à única vez em que lhe permitiram receber
a visita da mãe. Não só era difícil achar palavras, mas também, "se alguém começava a falar, a descrever alguma coisa, o guarda, sempre vigilante, interrompia e
dizia: 'Isso é proibido!'".
Ainda mais trágica é a história contada por Brystoletov, ao qual concederam em 1941 uma série de visitas da mulher - todas com a presença de um guarda. A esposa
viera de Moscou para despedir-se: após a prisão do marido, contraíra tuberculose e estava às portas da morte. Dando-lhe o último adeus, ela esticou a mão e o tocou
no pescoço, o que não era permitido (as visitas não podiam ter contato físico com os presos). O guarda afastou bruscamente o braço da mulher de Brystoletov, e ela
caiu no chão, tossindo sangue. Brystoletov escreve que "perdeu a cabeça" e passou a bater no guarda, o qual começou a sangrar. O preso só foi salvo de severíssima
punição pela guerra, que irrompeu naquele mesmo dia; no caos subseqüente, esqueceu-se a agressão ao guarda. Brystoletov nunca mais reviu a mulher.
Contudo os guardas nem sempre estavam presentes. Aliás, nos lagpunkts maiores, dos campos mais amplos, às vezes se permitiam visitas de vários dias, sem nenhum guarda.
Na década de 1940, essas visitas em geral aconteciam numa dom svidanii (casa de visitas), especialmente construída para esse propósito no limite do campo. Herling
descreve uma delas:
A casa em si, quando vista da estrada que levava da aldeia à cidade, causava boa impressão. Era construída de toras de pinho bruto, com interstícios calafetados
e bom telhado. [...] A porta que ficava fora da zona prisional só podia ser usada por visitantes livres; chegava-se a ela por alguns degraus de madeira sólida. Cortinas
de algodão cobriam as janelas, e os peitoris eram cobertos de longas floreiras. Cada cômodo era mobiliado com duas camas bem arrumadas, uma mesa grande, dois bancos,
uma bacia e uma jarra de água, um guarda-roupa e um fogareiro de ferro; a luz era até de abajur. O que mais poderia desejar dessa modelar habitação pequeno-burguesa
um preso que passara anos compartilhando beliches num alojamento imundo? Nossos sonhos de vida em liberdade se inspiravam naquele cômodo.
E no entanto... Com freqüência, quem aguardara ansiosamente aquele "sonho de liberdade" sentia-se muito pior quando o encontro acabava mal, como muitas vezes acontecia.
Temendo ficarem aprisionados pelo resto da vida, alguns presos já iam ordenando aos familiares que não voltassem nunca mais. "Esqueça-se deste lugar", um deles disse
ao irmão, que viajara muitos dias, em temperaturas baixíssimas, para encontrar-se com ele por vinte minutos. "Para mim, é mais importante que tudo fique bem com
você." Homens que reviam as esposas pela primeira vez em anos sentiam-se repentinamente tomados de nervosismo sexual, conforme lembra Herling:
Anos de trabalho pesado lhes haviam solapado a virilidade, e agora, antes de um encontro íntimo com uma mulher quase estranha, sentiam, além da agitação nervosa,
o medo e a desesperança sem solução. Várias vezes, após visitas, ouvi homens se gabarem de suas proezas, mas em geral essas coisas eram motivo de humilhação, sendo
respeitadas em silêncio por todos os presos.
As esposas em visita tinham os próprios problemas para discutir. No mais das vezes, haviam sofrido um bocado com o encarceramento dos maridos. Não conseguiam emprego,
não podiam estudar e, com freqüência, tinham de esconder de vizinhos curiosos o fato de serem casadas. Algumas chegavam para informar que pretendiam divorciar-se.
Em O primeiro círculo, Soljenitsin narra, com surpreendente compaixão, uma de tais conversas, baseada num diálogo real que tivera com a própria esposa, Natasha.
No livro, Nadya (mulher do preso Gerasi-movich) está a ponto de perder tanto o emprego num albergue de estudantes quanto a possibilidade de concluir sua tese acadêmica,
tudo porque o marido é detento. Ela sabe que o divórcio é a única maneira de "ter alguma chance de voltar a viver":
Nadya baixou o olhar. "Eu queria dizer... Não fique chateado, está bem?... Uma vez, você disse que devíamos nos divorciar..." Ela falou bem baixinho...
E, tinha havido época em que ele insistira nisso. Mas agora estava atônito. Só naquele momento reparou que a aliança de casada, que ela sempre usara, já não estava
no dedo.
"Ah, claro", ele concordou, aparentando total alegria.
"Então você não vai se opor se... se eu... tiver de fazer isso?" Com grande esforço, ela o encarou, os olhos arregalados. Os pontinhos em suas pupilas se iluminavam,
rogando por perdão e compreensão. "Seria... só para constar", acrescentou, arfando mais do que pronunciando a frase.
Tais encontros podiam ser piores que nenhum. Izrail Mazus, encarcerado nos anos 1950, conta a história de um preso que cometeu o erro de informar aos companheiros
que a mulher chegara. Enquanto se submetia à rotina exigida de todo detento que estava para receber visita - foi aos banhos, ao barbeiro e ao depósito, para reaver
algumas roupas adequadas -, os outros presos piscavam para ele e o cutucavam sem cessar, com provocações sobre a cama rangente da casa de visitas. Mas, no fim das
contas, nem sequer lhe permitiram ficar a sós com a esposa no quarto. Que tipo de "gostinho da liberdade" era aquele?
Contatos com o mundo lá fora se mostravam sempre complicados - pela expectativa ou pelo desejo. E de novo Herling quem escreve:
Qualquer que tivesse sido o motivo do desapontamento - a liberdade, usufruída por três dias, ou não correspondera à idealização, ou fora breve demais, ou, desaparecendo
tal qual um sonho interrompido, só deixara um vazio renovado em que não havia mais nada a esperar -, os presos ficavam invariavelmente taciturnos e irritadiços depois
das visitas. E isso para nem falarmos daqueles cujas visitas haviam se transformado na trágica formalidade da separação e do divórcio. Krestynski [...] tentou enforcar-se
duas vezes após uma conversa com a mulher, a qual lhe pedira o divórcio e a autorização para colocar os filhos num internato municipal.
O polonês Herling, que, na condição de estrangeiro, "jamais esperara receber ninguém" na casa de visitas, ainda assim percebia com mais clareza que muitos escritores
soviéticos a importância daquele lugar: "Cheguei à conclusão de que, se a esperança é com freqüência o único significado que resta na vida, dar-se conta disso pode
às vezes ser um tormento insuportável".
13. OS GUARDAS
Aos chekistas
Uma tarefa de grandiosa responsabilidade
Foi-te conferida por Lênin.
O rosto do chekista é marcado por inquietações
Que ninguém mais consegue compreender.
No rosto do chekista se estampa a coragem.
Ele está pronto a lutar, mesmo hoje,
Pelo bem e felicidade de todos.
Ele luta pelos trabalhadores.
Muitos tombaram em batalha,
E surgiram tantos túmulos de irmãos nossos.
Mas ainda restam muitos
Combatentes honrados e vigorosos.
Tremei, inimigos, tremei!
Logo, logo, vosso fim chegará!
Tu, chekista, estás sempre de guarda,
E em batalha liderarás no tropel.
Mikhail Panchenko, inspetor no sistema prisional soviético;
o poema foi conservado no mesmo dossiê que descreve a
expulsão de Panchenko do Partido e da NKVD.
Por estranho que possa parecer, nem todas as normas dos campos eram escritas pelos comandantes. Havia também regras tácitas - sobre como obter status, ganhar privilégios,
viver um pouco melhor que os outros -, bem como uma hierarquia extra-oficial. Quem seguia essas regras e aprendia a subir na hierarquia descobria ser muito mais
fácil sobreviver assim.
No topo, estavam os comandantes, os supervisores, os carcereiros e os guardas. Usei de propósito a expressão "no topo", em vez de "acima ou "para além" da hierarquia,
porque no Gulag os administradores e guardas não constituíam uma casta à parte, distanciada dos presos. Ao contrário dos guardas da SS nos campos nazistas, não eram
considerados imutável e racialmente superiores aos prisioneiros, de cuja etnia eles com freqüência partilhavam. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, havia
centenas de milhares de presos ucranianos nos campos, assim como um número extraordinário de guardas da mesma nacionalidade.
Tampouco guardas e presos habitavam esferas sociais inteiramente distintas. Alguns guardas e administradores faziam complexas negociatas de mercado negro com os
presos. Alguns se embriagavam com eles. Muitos "co-habitavam" - o eufemismo do Gulag para relações sexuais. De modo mais relevante, muitos eram ex-presos. No começo
dos anos 1930, considerava-se perfeitamente normal que detentos de boa conduta se "qualificassem" como guardas - e às vezes como elementos de posto ainda mais alto
na hierarquia. A carreira de Naftaly Frenkel talvez represente a transformação mais extraordinária, mas havia outros indivíduos com histórico parecido.
A trajetória de Yakov Kuperman, por exemplo, mostrou-se menos augusta que a de Frenkel, mas foi mais típica. Kuperman - que depois doaria suas memórias, não-publicadas,
à Sociedade Memorial de Moscou - foi detido na década de 1930 e condenado a sete anos. Cumpriu pena em Kem (a prisão onde se ficava em trânsito antes de seguir definitivamente
para Solovetsky) e depois foi trabalhar na divisão de planejamento das obras do Canal do Mar Branco. Em 1932, o caso de Kuperman foi revisto, e sua situação legal
se modificou: ele passou de preso para degredado. Acabou obtendo soltura e assumiu um cargo na ferrovia Baikal-Amur (o Bamlag), experiência que recordaria "com satisfação"
até o fim da vida. Sua biografia não era incomum. Em 1938, mais de metade dos administradores e quase metade dos guardas armados do Belbaltlag (o campo que construiu
o Canal do Mar Branco) eram antigos ou atuais presos.
No entanto, podia-se tanto perder quanto ganhar status. Assim como era relativamente fácil para o prisioneiro tornar-se carcereiro, também era relativamente fácil
para o carcereiro tornar-se prisioneiro. Administradores e comandantes de campo do Gulag estavam entre os milhares de homens da NKVD detidos nos expurgos de 1937
e 1938. Em anos posteriores, funcionários e guardas graduados do Gulag seriam freqüentemente presos por colegas suspeitosos. Nos lagpunkts isolados, a fofoca e a
maledicência eram comuns: dossiês inteiros dos arquivos do Gulag se dedicam a denúncias e refutações, cartas furiosas sobre deficiências dos campos, queixas de falta
de apoio da liderança central e de más condições de trabalho - e subseqüentes solicitações de que os culpados, ou desafetos, fossem encarcerados.
Administradores e guardas armados eram volta e meia aprisionados por deserção, bebedeira, furto, perda das armas e até maus-tratos aos detentos. Os registros do
campo de trânsito do porto de Vanino, por exemplo, contêm descrições dos casos de V N. Sadovnikov, guarda armado que matou uma enfermeira do campo (ele pretendera
mesmo era matar a esposa); de I. M. Soboleev, que afanou 300 rublos de um grupo de presos, embebedou-se e deixou sumir a carteirinha do Partido; de V. D. Suvorov,
que organizou uma bebedeira e depois arrumou briga com um grupo de oficiais; e de outros que "beberam até desmaiar", ou que estavam embriagados demais para exercer
suas funções. Na papelada pessoal de Georgi Malenkov, um dos lugar-tenentes de Stalin, inclui-se o relatório do caso de dois administradores de campo que, durante
uma bebedeira, assassinaram dois colegas, entre eles uma médica com dois filhos pequenos. Em carta a Moscou, um administrador de campo se queixou de que a vida
nos postos mais longínquos era tão enfadonha que a falta de entretenimento levava "muitos dos rapazes a desertar, desrespeitar a disciplina, embebedar-se e se meter
com o carteado - atitudes que com freqüência acabam levando à prisão".
Para alguns, era possível, e até comum, cumprir o ciclo completo: oficiais da NKVD tornavam-se prisioneiros e depois de novo carcereiros, iniciando sua segunda carreira
na administração do Gulag. Muitos ex-presos escrevem da rapidez com que oficiais da NKVD caídos em desgraça se reerguiam nos campos e obtinham posições de real poder.
Lev Razgon, em suas memórias, narra o encontro com certo Korabelnikov, funcionário de baixo escalão da NKVD que ele conheceu durante a viagem de Moscou para o campo
de concentração. Korabelnikov lhe contou que fora detido porque tagarelara com o melhor amigo sobre uma das amantes dos chefes, pegando "cinco anos como Elemento
Socialmente Perigoso - e sendo transportado para o campo junto com o resto". Mas Korabelnikov não era exatamente como o resto. Alguns meses depois, Razgon voltou
a encontrá-lo. Dessa vez, Korabelnikov envergava um uniforme do campo, limpo e bem cortado. Usara de astúcia para arrumar uma "boa" ocupação, administrando o lagpunkt
punitivo do Ustvymlag.
A narrativa de Razgon reflete uma realidade que os arquivos registram. De fato, um número enorme de administradores e guardas do Gulag tinha ficha criminal. Aliás,
parece que, na NKVD, o Gulag funcionava explicitamente como local de exílio, a derradeira chance do secreta degradado. Depois de mandados para os limites mais longínquos
do império do Gulag, esses homens raramente podiam voltar a qualquer outro departamento da NKVD, para nem falarmos de Moscou. Em sinal de sua situação diferenciada,
os funcionários do Gulag usavam uniformes também diferentes e tinham um sistema ligeiramente diverso de insígnias e postos hierárquicos. Nas conferências do Partido,
os oficiais do Gulag se queixavam de seu status inferior. "O Gulag é visto como uma administração da qual se pode exigir tudo e não dar nada em troca", reclamava
um oficial. "Esse modo de pensar excessivamente simplório - a idéia de que somos piores que todo o mundo - está errado e possibilita que se perpetuem injustiças
em termos de soldo, habitação etc." Posteriormente, em 1946, quando a NKVD foi dividida e de novo rebatizada, o Gulag passou para o controle do Ministério do Interior
(MVD), e quase todas as outras funções mais interessantes, em especial a espionagem e contra-espionagem, foram para o Ministério da Segurança do Estado (MGB, depois
KGB), mais prestigioso. O MVD, que administraria o sistema prisional até o funda URSS, continuaria sendo uma burocracia menos influente.
Desde o início, aliás, os comandantes de campo tinham status relativamente baixo. Numa carta que se conseguiu fazer sair às escondidas de Solovetsky no começo dos
anos 1920, um preso escreveu que a administração do campo se compunha inteiramente de chekistas caídos em desgraça, que tinham sido "condenados por especulação,
extorsão, agressão ou algum outro delito especificado no Código Penal Ordinário". Nas década de 1930 e 40, o Gulag se transformou no destino final de autoridades
da NKVD cujo currículo não correspondia aos pré-requisitos: aqueles cuja proveniência social não era proletária o bastante, ou cuja condição de judeus, poloneses
ou baltas os tornava suspeitos em períodos nos quais esses grupos étnicos estavam sendo reprimidos com vigor. O Gulag também constituía o último refúgio daqueles
que simplesmente eram néscios, incompetentes ou beberrões. Em 1937, Izrail Pliner, então chefe do Gulag, queixou-se:
Deixam-nos as sobras das outras seções; mandam-nos gente com base no princípio de que "Vocês podem ficar com aquilo de que não precisamos". A nata dessa turma são
os bêbados incorrigíveis; tão logo um homem dá para beber, é despejado no Gulag. [...] Do ponto de vista do aparato da NKVD, se alguém comete um delito, o maior
castigo possível é mandá-lo trabalhar num dos campos.
Em 1939, outra autoridade do Gulag descreveu os guardas dos campos como "gente não de segunda, mas de quarta classe, o próprio rebotalho". Em 1945,Vasily Chernyshev,
na época o chefe do Gulag, enviou memorando a todos os comandantes de campo e diretores regionais da NKVD para manifestar seu horror ante a baixa qualidade dos guardas
armados dos campos, entre os quais se haviam constatado elevados índices de "suicídio, deserção, perda e furto de armamento, embriaguez e outros atos amorais", assim
como freqüente "desrespeito às leis revolucionárias". Já em 1952, quando se descobriu corrupção nos escalões mais altos da polícia secreta, a primeira reação de
Stalin foi "exilar" um dos principais transgressores, que de imediato se tornou vice-comandante do campo de Bazhenovsky, nos Urais.
Os próprios arquivos do Gulag também confirmam a crença, expressa por um ex-preso, de que tanto administradores quanto guardas eram, "no mais das vezes, pessoas
muito limitadas". Por exemplo, dos onze homens que, entre 1930 e 1960, detiveram o título de "comandante do Gulag" (o chefe de todo o sistema de campos), apenas
cinco possuíam algum tipo de educação superior; três não tinham ido além do primário. E raramente os que ocupavam aquele cargo o mantinham por muito tempo: num período
de trinta anos, só dois homens - Matvei Berman e Viktor Nasedkin - ficaram mais de cinco anos na posição. Izrail Pliner durou apenas um ano (1937-8); Gleb Filaretov,
três meses (1938-9).
No ponto mais baixo da hierarquia da NKVD, os registros pessoais dos funcionários do serviço prisional mostram, a partir da década de 1940, que até os carcereiros
mais graduados - membros ou aspirantes à condição de membros do Partido - vinham quase inteiramente de famílias camponesas, possuindo instrução mínima. Poucos tinham
cinco anos de escolaridade, e alguns haviam completado apenas três. Em abril de 1945, perto de 75% dos administradores do Gulag não tinham nenhuma instrução além
do primário, uma porcentagem quase duas vezes maior que no resto da NKVD.
Os guardas armados dos campos - os voenizirovannaya okhrana, termo cujo acrônimo, Vokhr, dava nome à corporação deles, seguindo o hábito soviético - eram ainda menos
instruídos. Esses eram os homens que patrulhavam o perímetro dos campos, que faziam os presos marchar para o trabalho, que guardavam os trens de traslado, freqüentemente
tendo apenas uma vaga idéia dos motivos de suas funções. Conforme um relatório sobre o Kargopollag, "parece que os guardas não sabem os nomes de membros do Politburo,
nem de líderes do Partido". Outro relatório lista uma série de incidentes envolvendo guardas que haviam usado armamento de modo impróprio. Um desses indivíduos
feriu três presos "em conseqüência de não saber como sua arma funcionava". Outro, "embriagado em serviço, feriu o cidadão Timofeev".
Em reuniões, comandantes de divisão se queixavam de que
Os guardas não sabem lubrificar, limpar nem manter suas armas. [...] Uma mulher que serve como guarda cumpriu turno tendo um trapo enfiado no cano da arma. [...]
Alguns guardas pegam os fuzis de outros, deixando os seus em casa porque são demasiado preguiçosos para limpá-los sempre.
Constantes cartas de Moscou instavam os comandantes locais a passarem mais tempo entre os guardas, em "trabalho cultural e educacional".
No entanto, até as "sobras" e os "bêbados incorrigíveis" de outros departamentos da NKVD conseguiam atender aos pré-requisitos de trabalho no Gulag. A maioria das
instituições soviéticas se ressentia da falta crônica de pessoal, e o Gulag sofria em especial. Nem mesmo a NKVD foi capaz de arranjar número suficiente de delinqüentes
para, transformando-os em funcionários, suprir o aumento de 1.800% nos efetivos entre 1930 e 1939, ou fornecer o contingente de 150 mil pessoas que foi preciso contratar
em 1939-41, ou atender à enorme expansão do pós-guerra. Em 1947, com 157 mil indivíduos servindo apenas nas unidades de vigilância armada dos campos, o Gulag ainda
achava que precisava de mais 40 mil guardas.
Até a dissolução final do sistema, esse dilema nunca deixou de atormentar a administração do Gulag. Excetuados os cargos de máximo escalão, o trabalho nos campos
de concentração não era considerado prestigioso nem atraente, e as condições de vida estavam longe de ser confortáveis, sobretudo nos locais mais acanhados e isolados
do extremo norte. A escassez generalizada de alimentos fazia que guardas e administradores recebessem víveres racionados, em quantidades atribuídas de acordo com
o posto hierárquico. Retornando de uma viagem de inspeção aos campos setentrionais da região de Vorkuta, certo inspetor do Gulag reclamou da má qualidade de vida
dos guardas armados, os quais trabalhavam de catorze a dezesseis horas por dia nas "difíceis condições climáticas do norte", muitas vezes não tinham indumentária
nem calçado adequados e habitavam casernas imundas. Alguns, tal qual os presos, sofriam de escorbuto, pelagra e demais doenças causadas pela deficiência vitamínica.
Outro inspetor escreveu que, no Kargopollag, 26 membros da Vokhr tinham sido processados e condenados como criminosos, muitos deles por terem adormecido em serviço.
No verão, cumpriam turnos de treze horas - e, quando estavam de folga, não dispunham de nenhum entretenimento. Quem tinha família ficava em situação particularmente
difícil, pois muitas vezes não contava com acomodações próprias e era obrigado a morar na caserna.
Quem queria dar baixa descobria que isso não era fácil, nem mesmo nos escalões mais altos. Os arquivos da NKVD contêm a carta lastimosa do promotor público de Norilsk,
o qual implorava que o tirassem da "região ártica", pois estava estafado e tinha saúde ruim: "Se não for possível transferir-me para o cargo de promotor em outro
campo de trabalho correcional, eu gostaria de ser colocado num cargo de retaguarda ou ser dispensado da promotoria". Em resposta, ofereceram-lhe uma transferência
para Krasnoyarsk, o que ele recusou, já que as condições ali (Krasnoyarsk, embora se localize ao sul de Norilsk, ainda fica na Sibéria setentrional) eram quase as
mesmas.
Após a morte de Stalin, ex-autoridades dos campos freqüentemente defenderam seu ganha-pão anterior descrevendo as dificuldades daquele trabalho. Quando conheci Olga
Vasileevna - antiga inspetora de campos na divisão de obras viárias do Gulag -, ela me regalou com histórias da vida dura dos funcionários do sistema. Durante nossa
conversa (no apartamento moscovita com que um Partido agradecido a presenteou), Olga me contou que uma vez, quando visitava um campo distante, foi convidada a dormir
na casa do comandante, na cama que era do filho dele. A noite, sentiu calor e coceiras. Achando que talvez estivesse doente, acendeu a luz. "O cobertor militar cinzento
parecia vivo, estando infestado de piolhos. Não eram só os presos que tinham piolhos. As chefias também." Por via de regra, quando voltava para casa de uma viagem
de inspeção, Olga tirava toda a roupa antes de entrar, para deixar os parasitas do lado de fora.
Na visão de Olga Vasileevna, o trabalho de comandante de campo era dificílimo. "Não era brincadeira. Ficava-se encarregado de centenas, milhares de presos. Havia
reincidentes e assassinos, os condenados por crimes graves, pessoas das quais se podia esperar tudo. Com isso, era preciso estar em guarda o tempo todo." Os comandantes,
embora pressionados a trabalhar tão eficientemente quanto possível, descobriam que também precisavam resolver todo tipo de problema:
Chefe de um projeto de construção, era igualmente chefe do campo e passava pelo menos 60% do tempo não nas obras, tomando decisões de engenharia, mas no campo, lidando
com dificuldades. Alguém adoecia, uma epidemia podia ter irrompido ou um acidente acontecia e aí alguém tinha de ser levado para o hospital, e alguém precisava de
um carro, cavalo ou carroça.
Olga também disse que os "patrões" não necessariamente comiam bem em Moscou, sobretudo durante a guerra. No refeitório da sede do Gulag, serviam-se repolho, sopa
e kasha. "Não me lembro de haver carne. Nunca vi nenhuma." Enquanto Stalin viveu, os funcionários do Gulag na capital soviética trabalhavam das nove da manhã às
duas ou três da madrugada, todos os dias. Olga só via o filho aos domingos. Todavia, após a morte de Stalin, as coisas melhoraram. S. N. Kruglov, então chefe da
NKVD, emitiu ordem que concedia uma hora de almoço aos funcionários comuns da direção geral. Em 1963, Olga e o marido também receberam um apartamento muito grande
no centro de Moscou, o mesmo onde ela morava em 1998, quando a conheci.
Enquanto Stalin era vivo, porém, o trabalho no Gulag era menos recompensado, cabendo à direção geral resolver de diferentes maneiras o problema da falta de atrativos
do emprego. Em 1930, quando o sistema ainda era visto como parte da expansão econômica daquela época, a OGPU realizava campanhas de publicidade interna, solicitando
entusiastas para atuar no que então eram os novos campos do extremo norte:
A dedicação e a energia dos chekistas criaram e fortaleceram os campos de Solovetsky, desempenhando papel amplo e positivo no desenvolvimento industrial e cultural
do setentrião europeu de nosso território. Os novos campos, assim como Solovetsky, devem exercer função reformadora na economia e na cultura das regiões mais longínquas.
Para tal responsabilidade [...], necessitamos de chekistas especialmente rijos, voluntários à cata de trabalho duro.
A eles se ofereciam, dentre outras coisas, salário até 50% maior, férias anuais de dois meses e, após três anos, um abono correspondente a três meses de salário,
mais três meses de férias. Além disso, os administradores do primeiro escalão receberiam rações mensais gratuitas e teriam acesso a "rádio e instalações esportivas
e culturais".
Posteriormente, quando desapareceu de vez o entusiasmo sincero (se é que este algum dia existira), os incentivos se tornaram mais sistemáticos. Os campos eram classificados
de acordo com a distância e o rigor das condições locais. Quanto mais longínquos e mais duros eles eram, mais se pagava aos elementos da NKVD para trabalhar lá.
Alguns campos se preocupavam em organizar esportes e outras atividades recreativas para seus funcionários. A NKVD também construiu spas especiais na região do mar
Negro (em Sochi e Kislovodsk), de modo que os oficiais de maior patente pudessem passar suas longas férias com conforto, ao sol.
A direção geral criou ainda escolas onde os oficiais do Gulag pudessem aprimorar suas qualificações, para assim subir na hierarquia. À guisa de exemplo, uma delas,
estabelecida em Kharkov, dava cursos não só de "História do Partido" e "História da NKVD" (disciplinas obrigatórias), mas também de direito penal, normas e técnicas
de administração dos campos, contabilidade e assuntos militares. Quem se dispunha a trabalhar para a Dalstroi, na distante Kolyma, podia até ter a prole reclassificada
como "filhos de trabalhadores", o que lhes garantia tratamento preferencial na admissão aos estabelecimentos de ensino superior; esse se revelou um estímulo popularíssimo.
O dinheiro e os benefícios decerto bastavam para atrair alguns funcionários também nos escalões mais baixos. Muitos consideravam o Gulag simplesmente a menos ruim
das escolhas possíveis. Na URSS de Stalin (uma terra de guerra e fome), o emprego de carcereiro ou guarda prisional podia significar imensurável ascensão social.
Susanna Pechora, prisioneira no começo dos anos 1950, se recordaria de ter conhecido uma carcereira que trabalhava no campo de concentração porque era a única maneira
de fugir à penúria extrema da fazenda coletiva onde nascera. "Com o salário, alimentava os sete irmãos e irmãs." Outro memorialista conta a história de Maria Ivanova,
moça que viera trabalhar voluntariamente num campo em 1948. Esperando dessa maneira escapar à vida numa fazenda coletiva e, mais ainda, arrumar marido, Maria tornou-se,
isto sim, amante de uma série de autoridades de posto hierárquico sempre mais baixo. Acabou morando num quartinho com a mãe e os dois filhos ilegítimos.
Mas nem sempre a perspectiva de salário elevado, férias longas e ascensão social bastava para trazer trabalhadores para o sistema, em especial nos escalões mais
baixos. Em épocas de muita escassez de pessoal, as comissões soviéticas de mão-de-obra simplesmente despachavam trabalhadores para onde eram requisitados, sem necessariamente
informá-los de onde iam. Zoya Eremenko, ex-enfermeira do Gulag, foi mandada direto do curso profissionalizante para um emprego que, disseram-lhe, seria num canteiro
de obras. Quando chegou, descobriu que se tratava de um campo prisional, o Krasnoyarsk 26. "Ficamos surpresas e assustadas, mas, quando nos familiarizamos com o
local, constatamos que ali as pessoas e o trabalho clínico eram os mesmos que nossos estudos nos haviam levado a esperar."
Particularmente trágicos eram os casos das pessoas obrigadas a trabalhar nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial. Milhares de ex-soldados do Exército Vermelho
que haviam combatido no avanço para a Alemanha -assim como civis que, na condição de deportados ou refugiados, tinham "morado no exterior" durante a guerra - foram
detidos ao retornar para a URSS e confinados a "campos de triagem", onde seriam minuciosamente interrogados para ver se caíam em contradição. Às vezes, os que não
eram presos acabavam sendo enviados de imediato para trabalhar no serviço de guarda prisional. No começo de 1946, havia 31 mil pessoas nessa última situação, e em
alguns campos elas correspondiam a 80% dos guardas. Tampouco podiam ir-se embora com facilidade. Muitas haviam sido privadas de sua documentação (passaporte, licença
de moradia, certificado de reservista). Sem ela, não tinham como deixar os campos, nem como procurar emprego. Entre trezentos e quatrocentos desses indivíduos se
suicidavam a cada ano. Um que tentou fazê-lo explicou o motivo: "Já estou no serviço há muito tempo, ainda não me deram a licença de moradia, quase todo dia chega
um polícia com ordem de sairmos do apartamento, e todo santo dia isso causa brigas lá em casa".
Outros simplesmente se degeneravam. Karlo Stajner, comunista iugoslavo que esteve preso em Norilsk durante e após a guerra, recordaria que tais guardas eram "extraordinariamente
diferentes daqueles que não haviam lutado no conflito":
Para começo de conversa, mostravam sinais claros de desmoralização. Podia-se ver isso na disposição a serem subornados pelas prisioneiras, tornarem-se clientes das
mais bonitinhas ou permitirem que criminosos saíssem das turmas de trabalho para invadir alguma moradia e depois dividir com eles o produto do furto. Esses guardas
não temiam a severa punição que sofreriam caso seus superiores descobrissem tais delitos.
Uns poucos, muito poucos, protestavam. Os arquivos registram, por exemplo, o caso de certo Danilyuk, recruta refratário, que se negou terminantemente a ir para a
guarda prisional armada, alegando o seguinte: "De jeito nenhum quero servir nos órgãos do Ministério do Interior". Não arredou pé dessa posição, apesar daquilo que
os arquivos denominam "sessões de tratamento", que por certo eram longos períodos de intimidação e talvez incluíssem até espancamentos. Danilyuk acabou sendo dispensado.
Pelo menos no caso dele, premiou-se a recusa sistemática e persistente em trabalhar para o Gulag.
Entretanto, no final das contas, o sistema realmente gratificava seus membros mais afortunados e leais, alguns dos quais obtinham mais do que melhores rações ou
mera ascensão social: quem fazia seus trabalhadores cativos renderem grandes quantidades de ouro ou madeira para o Estado seria mesmo recompensado ao fim e ao cabo.
E, embora a média dos lagpunkts mineiros ou madeireiros nunca oferecesse boas condições de vida (nem mesmo para os que os dirigiam), as sedes de alguns dos campos
maiores se tornaram de fato muito confortáveis com o passar do tempo.
Nos anos 1940, as cidades que ficavam no centro dos complexos maiores (Magadan,Vorkuta, Norilsk, Ukhta) já eram grandes e movimentadas, tendo lojas, cinemas, teatros
e parques. Desde a fase pioneira do Gulag, as oportunidades para desfrutar a vida haviam se ampliado bastante. Nos campos maiores, o primeiro escalão recebia salários
mais elevados, abonos e benefícios melhores e férias mais longas que no mundo do trabalho comum. Também tinham mais acesso a comestíveis e bens de consumo que estavam
em falta nos demais lugares. "Em Norilsk, a vida era melhor que em qualquer outro lugar da União Soviética", lembraria Andrei Cheburkin, capataz e depois burocrata
ali:
Em primeiro lugar, todos os chefes dispunham de empregadas - prisioneiras. Em segundo lugar, a comida era impressionante. Havia peixes de todo tipo. Podia-se sair
para apanhá-los nos lagos. E, se no resto da União Soviética havia cartões de racionamento, aqui vivíamos praticamente sem eles. Carne. Manteiga. Caso se quisesse
champanhe, por que não pegar também siri? Havia tanto! Caviar? Eram barris cheios. Estou falando dos chefes, claro, não dos trabalhadores. Mas, também, os trabalhadores
eram prisioneiros. [...]
O dinheiro era bom. [...] Quando se era brigadeiro [na hierarquia dos oficiais], podia-se receber 6 mil, 8 mil rublos. Na Rússia central, não se conseguia mais que
1.200. Vim para Norilsk para trabalhar como supervisor de trabalho num departamento especial da NKVD que prospectava urânio. Deram-me salário de supervisor: primeiro
recebia 2.100 rublos; depois, a cada seis meses, tinha aumento de 10%; era cerca de cinco vezes mais do que ganhava na vida civil normal.
O primeiro argumento de Cheburkin ("todos os chefes dispunham de empregadas") é fundamental, pois, na realidade, aplicava-se não só às chefias, mas a todo o mundo.
Estritamente falando, era proibido usar presos como domésticos. Mas a prática estava disseminada, conforme as autoridades bem sabiam; e, apesar das freqüentes tentativas
de eliminá-la, ela persistiu. Em Vorkuta, Konstantin Rokossovsky (oficial do Exército Vermelho que se tornaria general, depois marechal e depois ministro da Defesa
da Polônia stalinista) serviu de criado para um "carcereiro boçal chamado Buchko, e suas funções consistiam em trazer as refeições do sujeito, arrumar e aquecer
o chalé dele, e assim por diante". Em Magadan, Evgeniya Ginzburg trabalhou durante algum tempo como lavadeira para a mulher de um administrador do campo.
Em Kolyma, Thomas Sgovio também foi criado pessoal de um guarda graduado, preparando-lhe a comida e tentando providenciar bebida alcoólica para ele. O homem passou
a confiar em Sgovio. "Thomas, meu garoto", ele dizia, "lembre-se de uma única coisa: cuide da minha carteirinha do Partido. Quando eu ficar bêbado, certifique-se
de que eu não a perca. Você é meu criado - e, se eu vier a perdê-la, terei de matá-lo como a um cão... e não quero fazer isso."
Para os verdadeiros maiorais, a criadagem era só o começo. Ivan Nikishov, que se tornou chefe da Dalstroi em 1939, após os expurgos, e se manteve no cargo até 1948,
ficou tristemente célebre por ter acumulado riqueza em meio à pobreza extrema. Pertencia a uma geração diferente daquela de seu predecessor, Berzin; a de Nikishov
já estava muito distante dos tempos da Revolução e da Guerra Civil - que tinham sido anos de muita escassez e, contudo, de mais ardor. Talvez como resultado disso,
Nikishov não tinha pruridos de usar sua posição para viver bem. Dotou-se de "um grande contingente de seguranças, mais automóveis de luxo, gabinetes amplos e uma
magnífica dacha com vista para o Pacífico". Segundo relatos de presos, essa última teria tapetes orientais, peles de urso e candelabros de cristal. Consta que,
na luxuosa sala de jantar, ele e a segunda mulher (Gridasova, jovem e ambiciosa comandante de campo) consumiam carne de urso, vinho do Cáucaso, frutas trazidas do
sul por via aérea, tomates e pepinos frescos cultivados em estufas particulares.
Nikishov não era o único a usufruir uma vida de luxos. Lev Razgon, em sua inesquecível descrição do coronel Tarasyuk (comandante do Ustvymlag durante a guerra),
registra excessos semelhantes:
Ele vivia como um romano que houvesse sido designado governador de alguma província bárbara recém-conquistada. Hortaliças, frutas e flores bastante estranhas ao
norte eram cultivadas para ele em estufas especiais. Para fazer sua mobília, procuraram-se os melhores marceneiros. Os mais famosos costureiros do passado recente
vestiam sua esposa, extravagante e voluntariosa. Quando não se sentia bem, ele não era examinado por nenhum doutorzinho que, como profissional livre, se vendera
ao Gulag [...]. Não, senhor: Tarasyuk era tratado por catedráticos que haviam dirigido as maiores clínicas de Moscou e agora cumpriam longas penas nas enfermarias
de remotos campos na floresta.
Com freqüência, exigia-se dos presos que ajudassem a satisfazer tais caprichos. Isaac Vogelfanger, médico prisioneiro de campo de concentração, via-se constantemente
sem álcool medicinal porque seu farmacêutico o usava para fazer bebida. O comandante do campo então a servia a dignitários em visita: "Quanto mais álcool consomem,
melhor conceito têm do trabalho no Sevurallag". Vogelfanger também viu um cozinheiro do campo preparar um "banquete" para visitantes, usando coisas que economizara
para a ocasião: "caviar, enguia defumada, pãezinhos quentes feitos com massa francesa e cogumelo, salmão ártico com galantina de limão, ganso e leitão assados".
Foi também nesse período, os anos 1940, que chefes como Nikishov principiaram a considerar-se mais que simples carcereiros. Alguns até começaram a competir entre
si, numa versão grotesca das disputas de prestígio entre vizinhos. Almejavam ter os melhores grupos teatrais de presos, as melhores orquestras de presos, as melhores
obras artísticas de presos. Lev Kopelev estava no Unzhlag em 1946, época em que o comandante selecionava, tão logo os presos chegavam nos trens, "os atores, músicos
e artistas mais gabaritados, aos quais dava os melhores serviços, de faxineiros e zeladores no hospital". O campo ficou conhecido como "refúgio de artistas". A
Dalstroi também possuía uma trupe de detentos, o Sewostlag Club, que se apresentava em Magadan e alguns dos campos periféricos da região mineira, beneficiando-se
dos muitos cantores e dançarinos famosos encarcerados em Kolyma. Lev Razgon descreve ainda o comandante do Ukhtizhemlag, que "mantinha uma verdadeira companhia
de ópera em Ukhta", dirigida por um célebre ator soviético. "Empregava" igualmente uma famosa bailarina do Bolshoi, assim como cantores e músicos conhecidos:
Às vezes, o chefe do Ukhtizhemlag fazia uma visita a seus colegas da vizinhança. Embora o propósito oficial fosse "trocar experiências", essa descrição chã esconde
os complexos preparativos e protocolo, que mais se assemelhavam à visita de um chefe de Estado estrangeiro. Os chefes vinham acompanhados de amplo entourage de diretores
de seção; preparavam-se acomodações especiais de hotel para eles; os percursos eram minuciosamente planejados; e traziam-se presentes. [...] O chefe do Ukhtizhemlag
também trazia consigo seus melhores artistas, de modo que os anfitriões pudessem ver que lá a cultura florescia tanto quanto ali, se não mais.
Até hoje, o velho teatro do Ukhtizhemlag - uma vasta construção branca e colunar, com símbolos cênicos no frontão - é um dos edifícios mais notáveis da cidade de
Ukhta. Dele, pode-se ir a pé para a antiga residência do comandante do campo, uma espaçosa casa de madeira à beira de um parque.
Entretanto, não só aqueles com gostos artísticos procuravam satisfazer caprichos próprios. Quem preferia os esportes tinha igualmente a oportunidade de fundar times
de futebol, que competiam uns com os outros de modo bastante renhido. Nikolai Starostin, o craque que fora encarcerado porque sua equipe tivera o azar de ganhar
daquela pela qual torcia Beria, também foi mandado para Ukhta, onde o aguardavam já na estação. Foi levado para conhecer o técnico do time local, que o tratou com
polidez e lhe disse que o chefe do campo solicitara especialmente a presença dele, Starostin: "o coração do general está no futebol. Foi ele quem trouxe você para
cá". Starostin passaria grande parte de sua carreira no Gulag servindo de técnico de times para a NKVD, indo de campo em campo para atender às solicitações dos comandantes
que o queriam como treinador.
Muito de vez em quando, a notícia de tais excessos despertava alarme, ou no mínimo interesse, de Moscou. Em certa ocasião, Beria, talvez respondendo a queixas, ordenou
um inquérito secreto sobre o suntuoso estilo de vida de Nikishov. O relatório resultante confirma, entre outras coisas, que em determinada vez Nikishov gastou 15
mil rublos (na época uma quantia imensa) num banquete para comemorar a visita da Companhia de Opereta de Khabarovsk. O relatório também condena a "atmosfera de
servilismo" em torno de Nikishov e da esposa, Gridasova: "A influência de Gridasova é tão grande que até os auxiliares imediatos de Nikishov atestam que só conseguirão
exercer suas funções enquanto ela os vir com bons olhos". Entretanto, não se tomou nenhuma medida. Gridasova e Nikishov continuaram a reinar em paz.
Nos últimos anos, virou moda assinalar que, ao contrário do alegado por eles após a guerra, poucos alemães eram forçados a atuar nos campos de concentração ou nos
esquadrões de extermínio. Há pouco tempo, um estudioso afirmou que a maioria o fizera voluntariamente - conclusão que despertou certa controvérsia. No caso da Rússia
e dos outros Estados pós-soviéticos, a questão precisa ser examinada de maneira diversa. Com muita freqüência, os funcionários dos campos, bem como a maior parte
dos outros cidadãos soviéticos, tinham pouca escolha. Uma comissão de mão-de-obra simplesmente lhes designava um local de trabalho, e eles eram obrigados a ir para
lá. A falta de opção estava embutida no próprio sistema econômico soviético.
Todavia, não é exato dizer, como tentaram alguns, que os oficiais e guardas armados da NKVD "não estavam melhor que os presos que eles comandavam", ou que eram vítimas
do mesmo sistema. Pois, embora talvez houvessem preferido trabalhar em outro lugar, os funcionários do Gulag, tão logo ingressavam no sistema, realmente tinham opções,
muito mais do que seus equivalentes nazistas, cujas atribuições eram definidas de modo mais rígido. No Gulag, podiam escolher entre a brutalidade e a bondade. Podiam
escolher entre fazer os presos trabalharem até a morte e manter tantos deles vivos quanto fosse possível. Podiam escolher entre demonstrar compaixão pelos presos,
de cuja sina talvez já houvessem partilhado, e aproveitar-se de uma maré temporária de sorte e oprimir seus antigos e futuros companheiros de sofrimento.
No histórico pregresso desses indivíduos, nada necessariamente indicava qual opção fariam, pois tanto os administradores quanto os guardas comuns provinham de etnias
e ambientes os mais diversos, tal qual os presos. Aliás, quando lhes pedem que descrevam o caráter dos guardas, os sobreviventes do Gulag sempre respondem que ele
variava bastante. Solicitei a mesma coisa a Galina Smirnova, a qual lembrou que "eles, assim como todo mundo, eram diferentes uns dos outros". Anna Andreevna me
contou que "havia sádicos doentios e pessoas absolutamente boas e normais". Anna também recordou o dia, logo após a morte de Stalin, em que o contador-chefe do campo
correu de repente para o escritório de contabilidade em que presas trabalhavam, deu vivas, abraçou-as e, gritando, deu a entender que elas recuperariam a liberdade.
Irena Arginskaya me disse que seus guardas não apenas eram "pessoas de tipos muitos diferentes", mas também mudavam com o passar do tempo. Os soldados conscritos,
em especial, portavam-se "como animais" quando eram novos no serviço, pois haviam sido intoxicados pela propaganda; contudo, "depois de algum tempo, eles -não todos,
mas grande parte - começavam a entender as coisas e freqüentemente mudavam".
É bem verdade que as autoridades soviéticas exerciam alguma pressão tanto sobre os administradores quanto sobre os guardas, desencorajando-os de demonstrar bondade
para com os presos. O arquivo da inspetoria-geral do Gulag registra o caso do chefe da divisão de suprimentos do Dmitlag, Levin, que em 1937 sofreu vigorosa investigação
por causa de sua leniência. O crime de Levin foi ter permitido que um preso se encontrasse com o irmão, também preso - no sistema prisional, os parentes eram normalmente
mantidos bem longe uns dos outros. Levin também foi acusado de ser demasiado amistoso com os zeks em geral, e com um grupo de supostos mencheviques em especial.
Levin (ele próprio ex-prisioneiro no Canal do Mar Branco) contra-argumentou que não sabia que eram mencheviques. Dado que o ano era 1937, Levin foi condenado assim
mesmo.
No entanto, tais imposições não eram aplicadas com rigor. Aliás, vários comandantes até ficaram famosos pela brandura para com os presos. O historiador e publicista
dissidente Roy Medvedev, em Que a história julgue (seu ataque ao stalinismo), descreve um comandante de campo, VA. Kundush, que levou muito a sério as exigências
de aumento de produção durante a guerra. Kundush colocou os presos mais instruídos em funções administrativas e passou a tratar bem os detentos, até providenciando
a soltura antecipada para alguns deles. Na época, o empreendimento que ele dirigia recebeu o "Estandarte Vermelho da Boa Gestão". Mas, quando a guerra acabou, Kundush
também foi aprisionado, talvez por causa da mesma atitude humana que tanto expandira a produção em seu campo.
Lev Razgon fala da prisão transitória incomum pela qual ele e a mulher, Rika, passaram em Georgievsk:
As celas eram não apenas varridas, mas também lavadas, o piso tanto quanto as tábuas dos leitos. A comida era tão substanciosa que saciava até a fome constante dos
prisioneiros em trânsito. Podíamos realmente ficar limpos na casa de banhos. Havia até um recinto especial, completamente equipado, onde as mulheres podiam empetecar-se
(e isso, mais do que qualquer outra coisa, espantou Rika).
Existiam outros administradores assim. Em certa altura de sua vida no Gulag, Genrikh Gorchakov, judeu russo aprisionado em 1945, foi designado para um campo de inválidos
no complexo do Siblag. Fazia pouco tempo, a direção do campo fora assumida por um novo comandante, um ex-oficial de linha de frente que não conseguira arrumar nenhum
outro emprego após a guerra. Levando o cargo a sério, ele construiu novos alojamentos, cuidou para que os presos tivessem colchões e até lençóis e reorganizou o
sistema de trabalho, transformando o campo por completo.
Outro ex-zek, Aleksei Pryadilov, encarcerado aos dezesseis anos, foi enviado para um campo agrícola nos montes Altai. Ali, o comandante "administrava o campo como
uma organização econômica e tratava os presos não como criminosos e inimigos que precisava 'reabilitar', mas como trabalhadores. Ele estava convencido de que não
havia lógica em tentar fazer que gente faminta produzisse trabalho decente". Por vezes, até os inspetores do Gulag descobriam bons comandantes. Em 1942, um fiscal
visitou o Birlag e constatou que "os presos dessa fábrica faziam excelente trabalho porque as condições deles também eram excelentes". Os alojamentos eram limpos,
e todos os presos tinham lençóis e cobertores próprios, além de boas roupas e calçados.
Havia também formas mais diretas de bondade. A memorialista Galina Levinson se recordaria de um comandante de campo que dissuadiu uma prisioneira de abortar. "Quando
você sair do campo, estará sozinha", ele lhe disse. "Pense no quanto será bom ter um filho." A mulher lhe seria grata até o fim da vida. Anatolii Zhigulin também
escreveria sobre o "bom" comandante de campo que "salvou centenas da morte", chamava aqueles a seu cargo de "camaradas prisioneiros", desafiando as ordens, e mandava
o cozinheiro alimentá-los melhor. Segundo Zhigulin, era óbvio que "ele ainda não conhecia as normas". Mariya Sandratskaya, encarcerada por ser esposa de um "inimigo
do povo", também conta de um comandante que dava especial atenção às mulheres com filhos, assegurando-se de que a creche fosse bem administrada, as lactantes recebessem
comida suficiente e as mães não trabalhassem demais.
Na realidade, a bondade era possível. Em todos os níveis, sempre havia uns poucos que resistiam à propaganda que tachava todos os presos de inimigos; sempre havia
uns poucos que compreendiam a verdadeira situação. E um número surpreendente de memorialistas registra algum episódio de benevolência de um guarda. "Não duvido",
escreveu Evgenii Gnedin, "de que no enorme exército de administradores dos campos houvesse trabalhadores íntegros que ficassem angustiados com seu papel de feitores
de pessoas completamente inocentes". Mas, ao mesmo tempo, a maioria dos memorialistas também se admira de quanto tal compreensão era fora do comum. Isso porque,
apesar de uns poucos exemplos do contrário, prisões limpas não eram a regra; a vida em muitos campos equivalia a uma sentença de morte; e, sobretudo, a maior parte
dos guardas tratava os detentos com indiferença, na melhor das hipóteses, ou rematada crueldade, na pior.
Repito: em lugar algum se exigia crueldade. Ao contrário: quando proposital, esta era oficialmente desaprovada pela liderança central. Guardas e administradores
que se mostravam desnecessariamente severos com os presos podiam ser punidos, e muitas vezes o eram. Os arquivos do Vyatlag contêm informes sobre guardas castigados
por "espancarem sistematicamente zeks", furtar pertences dos detentos e estuprar prisioneiras. Os arquivos do Dmitlag assinalam as condenações penais impostas a
administradores que haviam sido acusados de, estando embriagados, terem surrado presos. Os arquivos centrais do Gulag também registram punições a comandantes de
campo que espancavam presos, os torturavam durante investigações ou os trasladavam sem indumentária de inverno adequada.
Contudo a crueldade persistia. Por vezes, era verdadeiramente sádica. Viktor Bulgakov, prisioneiro nos anos 1950, se recordaria de um guarda, um cazaque analfabeto,
que parecia ter prazer em obrigar os presos a ficar parados, congelando aos poucos, na neve; e de outro que gostava de "exibir força e surrar detentos" sem nenhum
motivo. Os arquivos do Gulag também trazem, entre muitos outros registros semelhantes, o relato sobre o camarada Reshetov, chefe de um dos lagpunkts da Volgostroi
o qual punia zeks colocando-os em celas geladas e mandava presos enfermos trabalharem a temperaturas baixíssimas, o que causava a morte de muitos em serviço.
Com maior freqüência, a crueldade não se devia tanto ao sadismo quanto ao egoísmo. Guardas que atiravam em presos fujões recebiam gratificação financeira e podiam
até ganhar férias em casa. Por isso, ficavam tentados a estimular tais "fugas". Zhigulin descreve o resultado:
O guarda gritava para alguém na coluna: "Você aí, traga-me aquela tábua!"
"Mas está do outro lado da cerca!"
"Não interessa - vá buscar!"
O preso ia e era abatido por uma rajada de metralhadora.
Esses episódios eram comuns - conforme os arquivos mostram. Em 1938, quatro guardas da Vokhr que trabalhavam no Vyatlag foram condenados pelo homicídio de dois presos
que eles tinham "incitado" a fugir. Na seqüência, descobriu-se que o comandante da divisão e seu assistente também haviam se apossado de pertences dos presos. O
escritor Boris Dyakov, em suas memórias "pró-soviéticas" do Gulag (publicadas na URSS em 1964), menciona igualmente a prática de provocar fugas.
Assim como nos trens de traslado, a crueldade nos campos parecia derivar da raiva ou do tédio de precisar realizar uma atividade servil. Quando trabalhava como enfermeira
num hospital de Kolyma, a comunista holandesa Elinor Lippe passou uma noite à cabeceira de um paciente que estava com pleurisia e febre alta. Além disso, um carbúnculo
que ele tinha nas costas estourara por causa do guarda que o trouxera ao hospital:
Com voz entrecortada e dolorida, contou-me que o guarda quisera concluir aquela marcha inconveniente o quanto antes. Por isso, durante horas, usara de pauladas para
forçar o preso, enfermo e febril, a seguir adiante. No final da marcha, ameaçara quebrar-lhe todos os ossos se dissesse no hospital que o guarda o espancara.
Apavorado até o fim, o homem se negou a repetir a história na presença de não-prisioneiros. "Nós o deixamos morrer em paz", escreveria Elinor, "e o guarda continuou
a surrar presos sem ser incomodado."
Na maioria das vezes, porém, a crueldade dos guardas de campo soviéticos era irrefletida, néscia e preguiçosa, do tipo que se poderia demonstrar para com bois ou
ovelhas. Se não se ordenava explicitamente aos guardas que maltratassem os prisioneiros, eles tampouco eram instruídos a considerá-los plenamente humanos, em especial
no caso dos presos políticos. Pelo contrário: envidavam-se grandes esforços para cultivar o ódio pelos detentos, sempre descritos como "criminosos perigosos", "espiões
e sabotadores que tentavam destruir o povo soviético". Tal propaganda tinha enorme efeito sobre pessoas que já estavam amarguradas pelo infortúnio, pelo emprego
indesejado, pelas más condições de vida. Também moldava a visão dos empregados livres do Gulag - os moradores locais que trabalhavam nos campos e não eram funcionários
da NKVD - tanto quanto dos guardas, como recordaria um preso:
Em geral, éramos separados dos trabalhadores livres por um muro de desconfiança mútua. [...] Para eles, nossos vultos cinzentos, conduzidos em turmas e às vezes
guardados por cães, provavelmente constituíam algo muito desagradável, em que era melhor não pensar.
Isso já era verdade nos anos 1920, quando os guardas de Solovetsky faziam prisioneiros enregelados pular de pontes. As coisas ficaram piores, é claro, no final da
década de 30, com a redução dos presos políticos a "inimigos do povo" e o endurecimento do regime prisional nos campos. Em 1937, ao saber que um grande contingente
de trotskistas estava a caminho de Kolyma, o chefe do campo, Eduard Berzin, disse a um grupo de colegas que, "se esses cachorros [...] cometeram sabotagem por lá,
vamos garantir que aqui eles trabalhem pela União Soviética; temos meios de fazê-los trabalhar".
Mesmo depois de terminado o Grande Terror, a propaganda nunca chegou a arrefecer. Durante toda a década de 1940 e parte da década de 50, os presos eram regularmente
descritos como colaboracionistas e criminosos de guerra, traidores e espiões. Dentre os diferentes epitetos para aqueles nacionalistas ucranianos que começaram a
derramar-se nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial, incluíam-se "cães servis e traiçoeiros dos sicários nazistas", "fascistas germano-ucranianos" e "agentes
da espionagem estrangeira". Nikita Khrutchev, então líder soviético da Ucrânia, declarou numa plenária do Comitê Central que os nacionalistas ucranianos haviam se
suicidado "ao tentar agradar a seu amo, Hitler, e pegar uma pequena parcela do butim por seus vis serviços". Durante a guerra, os guardas chamavam quase todos os
presos políticos de "fascistas", "hitleristas" ou "vlasovistas" (seguidores do general soviético Vlasov, que desertara do Exército Vermelho e apoiara Hitler).
Isso era especialmente doloroso para os judeus, para os veteranos que haviam combatido com bravura os alemães e para os comunistas estrangeiros que haviam fugido
do fascismo em seus próprios países. "Não somos fascistas; na maioria, somos ex-membros do Partido", disse indignado o iugoslavo Karlo Stajner a um grupo de detentos
com ficha criminal, que, zombeteiros, tinham lançado o insulto "fascista" a uma turma de trabalho constituída de presos políticos. Margarete Buber-Neumann, comunista
alemã que foi transferida diretamente do Gulag para o campo de concentração nazista de Ravensbruck, também escreveu que antes sé referiam repetidamente a ela como
"a fascista alemã". E, quando o judeu Mikhail Shreider, oficial preso da NKVD, disse que não poderia ser acusado de colaborar com Hitler, seu interrogador retrucou
que Shreider não era judeu, e sim "alemão disfarçado de judeu".
Esses insultos não eram só uma atitude juvenil e despropositada. Ao definirem os presos como "inimigos" ou "subumanos", os guardas se reasseguravam da legitimidade
dos próprios atos. Aliás, a "retórica dos inimigos" era apenas uma parte da ideologia dos quadros do Gulag. A outra parte - vamos denominá-la "retórica da submissão
total ao Estado" - insistia o tempo todo na importância do trabalho e das cifras de produção sempre crescentes, as quais eram necessárias para a continuidade da
URSS. Para sermos bem diretos: podia-se justificar tudo que proporcionasse resultados. Essa tese foi maravilhosamente sintetizada por Aleksei Loginov, diretor aposentado
de produção e de campos prisionais de Norilsk, numa entrevista que deu a um documentarista britânico:
Desde o início, sabíamos perfeitamente que o mundo exterior nunca deixaria nossa Revolução Soviética em paz. Não era só Stalin que percebia isso - todo comunista
comum, toda pessoa comum, todos nós percebíamos que precisávamos não apenas construir, mas construir sabendo plenamente que logo estaríamos em guerra. Assim, na
minha área, a busca por todas as fontes de matéria-prima - cobre, níquel, alumínio, ferro etc. - era incrivelmente intensa. Sempre tínhamos estado cientes dos enormes
recursos de Norilsk - mas como explorá-los no Ártico? Por isso, o empreendimento inteiro foi posto nas mãos da NKVD, o Ministério do Interior. Quem mais conseguiria
fazer aquilo? Você já sabe quantas pessoas tinham ido para a prisão. E lá precisávamos de dezenas de milhares...
Loginov falava em 1990, quase meio século depois que Norilsk deixara de ser um vasto complexo prisional. Mas as palavras dele ecoam as de Anna Zakharova, mulher
de um comandante de campo, escrevendo em 1964 ao jornal governamental Izvestiya - a carta não foi publicada, mas depois seria veiculada pela imprensa clandestina.
Anna, assim como Loginov, falava dos sacrifícios que o marido fizera para maior glória da pátria:
A saúde dele já se dilapidou pelo trabalho com criminosos, porque aqui toda essa atividade desgasta os nervos. Gostaríamos de mudar, pois meu marido já cumpriu seu
tempo de serviço, mas não querem deixá-lo ir. Comunista e oficial, ele submete-se às exigências do dever.
Opiniões semelhantes me foram apresentadas por uma administradora do Gulag que preferiu permanecer anônima. Com orgulho, falou-me do trabalho que seus presos tinham
feito pela URSS durante a guerra: "Todos, absolutamente todos, pagavam suas expensas com o próprio trabalho e davam tudo o que podiam para a frente de combate".
Nesse quadro mais amplo da lealdade para com a URSS e seus objetivos econômicos, a crueldade cometida em nome das cifras de produção parecia admirabilíssima a seus
perpetradores. A verdadeira natureza da crueldade, assim como a verdadeira natureza dos campos, podia ocultar-se atrás do economês. Após ter entrevistado em 1991
um ex-administrador do Karlag, o jornalista americano Adam Hochschild se queixou:
Pela conversa do coronel, não se saberia que se tratava de uma prisão, porque ele falou quase exclusivamente do papel do Karlag na economia soviética. Ele parecia
um orgulhoso chefe regional do partido. "Tínhamos nossa própria estação agrícola experimental. A pecuária também era avançada: criamos uma raça especial, a Estepe
Vermelha, assim como o gado cazaque..."
Nos escalões mais altos, os administradores freqüentemente descreviam os presos como se fossem máquinas ou ferramentas, necessárias para concluir o trabalho e nada
mais. De maneira explícita, os prisioneiros eram considerados mão-de-obra barata e cômoda - um insumo, tal qual os suprimentos de aço ou cimento. Mais uma vez, é
Loginov, o comandante de Norilsk, quem expressa isso melhor:
Se houvéssemos mandado civis [para Norilsk], primeiro teríamos precisado construir casas para eles. E como civis conseguiriam viver ali? Com os presos, é fácil -
necessita-se apenas de um barracão e um fogão com chaminé, e eles se viram. Depois, talvez um lugar para comerem. Em resumo: nas circunstâncias daquela época, os
presos eram as únicas pessoas que podíamos usar em escala tão grande. Se houvéssemos tido tempo, provavelmente não teríamos feito daquele jeito.
Ao mesmo tempo, o economês tornava possível aos comandantes de campo justificarem qualquer coisa, mesmo a morte: tudo era pelo bem comum. Por vezes, esse argumento
era levado a verdadeiros extremos. Lev Razgon, por exemplo, relata uma conversa entre o coronel Tarasyuk, então comandante do Ustvymlag, e um médico do campo, Kogan,
que cometera o erro de gabar-se ao coronel de quantos pacientes "salvara das garras da pelagra", doença causada pela inanição e conseqüente falta de proteínas. Segundo
Razgon, seguiu-se este diálogo:
Tarasyuk: O que estão dando a eles?
Kogan: Todos estão recebendo a ração antipelagra determinada pelo Departamento de Saúde e Saneamento do Gulag.
Então, Kogan especificou em calorias a quantidade de proteínas.
Tarasyuk: Quantos deles vão poder trabalhar na floresta? E quando será isso?
Kogan: Bem, está claro que nenhum deles vai poder trabalhar na floresta. Nunca mais. Mas agora vão sobreviver, e será possível usá-los para serviços leves no perímetro
no campo.
Tarasyuk: Pare de lhes dar rações antipelagra. Pode anotar: essas rações são para aqueles que trabalham na floresta. Os outros presos devem receber rações de inválidos.
Kogan: Mas camarada coronel! E óbvio que eu não me expliquei direito. Essas pessoas só vão sobreviver se tiverem rações especiais. Um preso inválido recebe 400 gramas
de pão. Com essa ração, vão morrer em dez dias. Não podemos fazer uma coisa dessas!
Tarasyuk olhou para o médico, que estava transtornado. Havia até certa expressão de curiosidade no rosto do coronel.
"Qual é o problema? A sua ética médica o impede de fazer isso?" "Mas é claro que impede..."
"Bem, eu não ligo a mínima para a sua ética", disse Tarasyuk, calmamente, sem dar nenhuma indicação de estar irado. "Você já anotou? Agora, tratemos dos outros assuntos..."
Passado um mês, todos os 246 enfermos já haviam morrido.
Os registros mostram que conversas desse tipo não eram excepcionais nem apócrifas. Relatando as condições dos presos na Volgostroi durante a guerra, um inspetor
reclamou de que a administração do campo estava "interessada exclusivamente em produzir madeira [...] e não demonstrava o mínimo interesse em alimentar e vestir
os presos, mandando-os trabalhar sem considerar a aptidão física, jamais se preocupando em saber se estavam sadios, trajados e nutridos". E, durante uma reunião
de oficiais do Vyatlag em janeiro de 1943, o camarada Avrutsky, falando na linguagem absolutamente neutra da estatística, fez o seguinte comentário: "Dispomos de
100% de nossa força de trabalho, mas não podemos cumprir nosso programa, pois o grupo B continua a crescer. Mas, se a alimentação que destinamos ao grupo B fosse
direcionada a outro contingente, já não teríamos grupo B e cumpriríamos a meta". Naturalmente, a expressão "grupo B" se referia a presos mais fracos, que de fato
deixariam de existir caso não recebessem alimento. Os comandantes de campo podiam dar-se ao luxo de tomar tais decisões a grande distância das pessoas que seriam
afetadas por elas; entretanto, no caso daqueles que se encontravam mais abaixo na hierarquia, a proximidade não necessariamente despertava mais compaixão. O preso
polonês Kasimierz Zarod estava numa coluna de presos que marchava para o local de um novo campo. Praticamente não tendo recebido comida, começaram a enfraquecer-se.
Por fim, um deles caiu e não conseguiu mais se levantar. Um dos guardas apontou a arma para ele. Outro ameaçou atirar:
"Pelo amor de Deus", ouvi o homem gemer, "se vocês me deixarem descansar um pouco, eu consigo alcançá-los."
"Você ou anda, ou morre", respondeu o primeiro guarda...
Eu o vi erguer e apontar o fuzil - não pude acreditar que ele fosse atirar. Nesse momento, os homens na coluna atrás de mim já haviam se reagrupado, e minha visão
do que acontecia foi obstruída. De repente, porém, ressoou um disparo, seguido de outro, e percebi que o homem morrera.
Contudo Zarod relata que nem todos os que desabavam durante a marcha eram fuzilados. Caso aqueles exaustos demais para continuar andando fossem jovens, eram apanhados
e postos numa carroça, onde
jaziam tal qual sacas até se recuperarem. [...] Pelo que consegui entender, o raciocínio era que os jovens podiam recobrar-se e trabalhar, mas que os velhos não
valia a pena salvar. Com certeza, aqueles jogados como trouxas de roupas velhas nas carroças de suprimentos não o eram por nenhuma razão humanitária. Os guardas,
embora jovens, já haviam feito aquele caminho antes e aparentemente estavam desprovidos de qualquer sentimento humano.
Ainda que não haja memórias para documentar isto, tal atitude certamente afetava até aqueles que ocupavam cargos no topo do sistema de campos. Nos capítulos anteriores,
citei freqüentemente relatórios encontrados nos arquivos da inspetoria-geral do Gulag, que fazia parte da promotoria soviética. Esses relatórios, redigidos com grande
precisão e regularidade, são extraordinários pela honestidade. Referem-se a epidemias de tifo, falta de alimentos, escassez de itens de vestuário. Denunciam campos
onde a taxa de mortalidade é "demasiado alta". Irados, acusam certos comandantes de campo de criar más condições de vida para os prisioneiros. Calculam o número
de homens/dia perdidos por conta de doenças, acidentes e óbitos. Lendo-os, não se tem nenhuma dúvida de que os maiorais do Gulag em Moscou sabiam - real e verdadeiramente
- como era a vida nos campos de concentração. Estava tudo lá, numa linguagem não menos franca do que a utilizada por Alexander Soljenitsin e Variam Shalamov.
E no entanto, embora às vezes se fizessem mudanças e se impusessem penas judiciais a comandantes, o que impressiona nos relatórios é a própria repetitividade: eles
fazem lembrar a cultura absurda das inspeções fajutas que Gogol descreveu de maneira tão maravilhosa. Era como se respeitassem as formalidades, produzissem os relatórios,
expressassem a ira que era de rigor - e não ligassem para os reais efeitos nos seres humanos. Comandantes viviam sendo repreendidos por não melhorarem as condições
de vida nos campos, estas continuavam a não melhorar, e a conversava acabava por aí.
Ao fim e ao cabo, ninguém obrigava os guardas a salvar os jovens e assassinar os velhos. Ninguém obrigava os comandantes de campo a matar os enfermos. Ninguém obrigava
a direção geral do Gulag, em Moscou, a não atentar para o que os relatórios dos inspetores indicavam. Ainda assim, tais decisões eram tomadas abertamente, todos
os dias, por guardas e administradores que pareciam convencidos do direito de tomá-las.
Tampouco a ideologia da submissão total ao Estado era exclusiva dos amos do Gulag. Os presos também eram estimulados a cooperar -e alguns o faziam.
14. Os Presos
O homem é uma criatura que consegue acostumar-se a tudo,
e creio ser essa a melhor definição dele.
Dostoievski, Recordações da casa dos mortos.
Urki: a bandidagem
Para o preso político inexperiente, para a jovem camponesa presa por ter roubado um pão, para o deportado polonês despreparado, o primeiro contato com os urki (a
casta criminosa da URSS) era desnorteante e aterrador. Evgeniya Ginzburg topou pela primeira vez com criminosas quando embarcou no navio para Kolyma:
Eram a nata da bandidagem: assassinas, sádicas, versadas em todos os tipos de perversão sexual [...] sem perderem tempo, já foram aterrorizando e oprimindo as "senhoras"
e ficavam encantadas em descobrir que as "inimigas do povo" eram seres ainda mais desprezados e marginalizados do que elas próprias [...]. Apossavam-se de nossos
pedacinhos de pão, roubavam nossos últimos trapos e pertences, empurravam-nos dos lugares que tínhamos conseguido arranjar.
Viajando pela mesma rota, Aleksander Gorbatov - o general Gorbatov, herói de guerra soviético, que dificilmente poderia ser considerado covarde - teve as botas roubadas
quando estava no porão do vapor Dzhurma, atravessando o mar de Okhotsk:
Um deles me golpeou com força no peito e depois na cabeça e disse, desdenhoso: "Olhem para ele - me vendeu as botas já faz dias, pegou o dinheiro e não quis mais
saber de entregar!" Foram-se com o produto do roubo, rindo-se o mais que podiam e só parando para bater em mim outra vez, quando, por puro e simples desespero, fui
atrás deles e pedi as botas de volta.
Dezenas de outros memorialistas descrevem cenas semelhantes. Os criminosos de carreira se lançavam sobre os outros presos com o que parecia ser uma fúria louca,
atirando-os para fora dos beliches nos trens e alojamentos; roubando as roupas que lhes restavam; berrando, maldizendo e xingando. Para pessoas comuns, a aparência
e o comportamento dos bandidos se afiguravam estranhíssimos. O preso polonês Antoni Ekart ficou horrorizado com a "absoluta falta de inibição da parte dos urki,
que satisfaziam à vista de todos as suas necessidades naturais, aí incluído o onanismo. Isso os tornava extraordinariamente similares aos macacos, com os quais pareciam
ter mais em comum que com os humanos" Mariya Ioffe, mulher de um bolchevique famoso, também escreveu que os bandidos faziam sexo às claras, andavam nus pelos alojamentos
e não tinham nenhum sentimento uns pelos outros: "Neles, só o corpo vivia".
Apenas depois de semanas ou meses nos campos, os não-inicia-dos começavam a entender que o inundo da criminalidade não era uniforme, que ele tinha uma hierarquia
própria e que, na realidade, havia muitos tipos diferentes de bandido. Lev Razgon explicou: "Eles se dividiam em castas e comunidades, cada uma com a própria disciplina
férrea, tendo muitas regras e costumes. Casos estes fossem desrespeitados, o castigo era severo: na melhor das hipóteses, o indivíduo era expulso do grupo; na pior,
assassinado".
O preso polonês Karol Colonna-Czosnowski, que se viu na situação de ser o único preso político num campo madeireiro setentrional habitado por bandidos, também observou
tais diferenças:
Naquele tempo, os criminosos russos tinham muita consciência de classe. Para eles, aliás, a classe era tudo. Em sua hierarquia, os peixes grandes, como os assaltantes
de trem ou de banco, eram membros da classe alta. Grisha Tchorny, chefe da máfia do campo, era um desses. No extremo oposto da escala social, ficava a arraia-miúda,
como os punguistas. Eram usados como criados e mensageiros pessoais pelos maiorais e tratados com muito pouco respeito. Todos os outros criminosos juntos compunham
o grosso da classe média, mas mesmo ali havia distinções.
De muitas maneiras, essa estranha sociedade era uma réplica caricaturesca do mundo normal. Nela, podíamos localizar o equivalente de cada nuance de virtude ou defeito
humano. Conseguíamos sem esforço identificar, por exemplo, o ambicioso em ascensão, o alpinista social, o embusteiro, assim como o íntegro e generoso.
Bem no topo daquela hierarquia, dando ordens a todos os outros, estavam os chefões. Os criminosos profissionais russos, conhecidos como urki, blatoi ou, caso estivessem
na elite mais exclusivista da bandidagem, vory v zakone - expressão que se poderia traduzir por "mafiosos" -, viviam segundo regras e costumes que precediam o Gulag
e que durariam mais que ele. Esses indivíduos não tinham absolutamente nada que ver com a vasta maioria dos presos do Gulag, aqueles com condenações por "crimes"
contra o socialismo. Os chamados "criminosos ordinários" - pessoas condenadas por pequenos furtos eventuais, infrações das normas de trabalho ou outros crimes não-políticos
- odiavam os mafiosos com a mesma veemência com que odiavam os presos políticos.
E não era de admirar: os mafiosos possuíam cultura muito diversa daquela do cidadão soviético médio. Esse universo criminoso tinha raízes profundas na bandidagem
da Rússia czarista, nas corporações de larápios e mendigos que, naquele tempo, controlavam os crimes de pouca monta. No entanto, essa cultura se disseminou muitíssimo
mais durante as primeiras décadas do regime soviético, graças às centenas de milhares de órfãos - vítimas diretas da Revolução, da Guerra Civil e da coletivização
- que haviam sobrevivido primeiro como crianças de rua e depois como bandidos. No final da década de 1920, quando os campos começaram a expandir-se em escala maciça,
os criminosos de carreira já haviam se tornado uma comunidade totalmente à parte, tendo até um rigoroso código de conduta que os proibia de manter toda e qualquer
relação com o Estado soviético. O verdadeiro mafioso se recusava a trabalhar, possuir documentos e cooperar de que modo fosse com as autoridades, só o fazendo para
explorá-las: os "aristocratas" da peça homônima de Nicolai Pogodin, de 1944, já eram identificáveis como "mafiosos" que, por princípio, se negavam a realizar qualquer
trabalho.
Aliás, os programas de doutrinação e reabilitação do começo dos anos 1930 estavam, na maior parte, voltados mais para os mafiosos que para os presos políticos. Presumia-se
que os bandidos, sendo sotsialnoblizkii - "socialmente próximos", ao contrário dos presos políticos, que eram sotsialnoopasnyi, "socialmente perigosos" -, pudessem
regenerar-se. Mas, no fim da década de 1930, as autoridades pareciam ter desistido da idéia de recuperar os criminosos de carreira. Em vez disso, resolveram usar
os mafiosos para controlar e intimidar outros presos, em especial "contra-revolucionários", os quais os bandidos abominavam com muita naturalidade.
Não se tratava de um desdobramento inteiramente novo. Um século antes, criminosos que cumpriam sentença na Sibéria já odiavam os presos políticos. Em Recordações
da casa dos mortos, as memórias bastante romanceadas de seus cinco anos na prisão, Dostoievski relata as observações de outro detento: "Não, eles não gostam de detentos
afidalgados, sobretudo dos presos políticos; bem gostariam de matá-los, o que não é de admirar. Para começo de conversa, vocês são um tipo diferente de pessoa, não
são como eles".
Na URSS, desde mais ou menos 1937 até o final da guerra, a administração dos campos começou a utilizar abertamente pequenos grupos de criminosos profissionais para
controlar outros presos. Durante aquele período, os mafiosos de mais alto coturno não trabalhavam; em vez disso, asseguravam-se de que outros o fizessem. Lev Razgon
assim descreveu:
Não trabalhavam, mas recebiam ração completa; extorquiam um tributo em dinheiro de todos os "camponeses", ou seja, de quem realmente trabalhava; pegavam metade das
remessas de alimento recebidas pelos detentos, mais metade do que estes compravam do empório do campo; e roubavam descaradamente os novos contingentes de presos,
apossando-se de todas as melhores roupas dos recém-chegados. Em suma, eram extorsionários, gângsteres, membros de uma pequena máfia. Todos os "criminosos ordinários"
do campo - e eles constituíam a maioria - os detestavam intensamente.
Alguns presos políticos descobriam maneiras de dar-se bem com os mafiosos, em especial após a guerra. Certos chefões gostavam de ter presos políticos como mascotes
ou sombras. Num campo onde os presos ficavam de passagem até o destino final, Alexander Dolgun ganhou o respeito de um chefão ao espancar um criminoso de menor posição.
Em parte porque também derrotara um criminoso numa briga de socos, Marlen Korallov (jovem preso político, depois um dos fundadores da Sociedade Memorial de Moscou)
foi notado pelo manda-chuva dos criminosos do pampo, Nikola, o qual autorizou Korallov a pôr-se perto dele no alojamento. Essa decisão alterou o status de Korallov
no campo, onde de imediato passou a ser considerado "protegido" de Nikola e obter muito mais vantagens na hora de arrumar lugar para dormir. "O campo entendeu: se
eu era parte da tróica em torno de Nikola, então era parte da elite [...] todas as atitudes para comigo se modificaram na mesma hora."
Na maior parte das vezes, porém, o domínio dos bandidos sobre os presos políticos era absoluto. O status superior dos criminosos ajudava a explicar por que eles,
nas palavras de um criminologista, se sentiam "em casa" nos campos de concentração: passavam melhor que outros presos e desfrutavam um nível de poder real que não
tinham fora dali. Korallov explica, por exemplo, que Nikola ficava na "única cama de ferro" do alojamento, a qual havia sido ajeitada num canto Ninguém mais dormia
nela, e um bando de asseclas a rondava para garantir que as coisas continuassem assim. Eles também faziam um cortinado de cobertores nos leitos ao redor, a fim de
impedir que outros espiassem o que faziam. O acesso ao espaço em torno do líder era controlado com zelo. Tais presos até consideravam suas longas condenações com
uma espécie de orgulho viril. Korallov observa que
havia alguns jovens que, para reforçar sua autoridade, procuravam escapar - uma tentativa inútil - e então recebiam mais 25 anos de pena, e talvez outros tantos
por sabotagem. Aí, quando apareciam num novo campo e diziam às pessoas que tinham sido condenados a cem anos, isso, seguindo a moralidade dos campos, os transformava
em figurões.
O status mais elevado aumentava o atrativo da bandidagem para os presos mais jovens, que às vezes eram introduzidos na fraternidade mediante complexos rituais de
iniciação. De acordo com relatos compilados por secretas e administradores prisionais nos anos 1950, os novos membros do clã tinham de fazer juramento, prometendo
ser "bandidos de valor" e aceitar as normas severas daquela vida. Outros mafiosos então recomendavam o noviço, talvez elogiando-o por "ter desafiado a disciplina
do campo" e dando-lhe um apelido. A notícia dessa "coroação" se disseminava por todo o sistema de campos, através da rede de contatos dos criminosos, de modo que,
se o novo mafioso fosse transferido para outro lagpunkt, seu status se conservaria.
Esse era o sistema que Nikolai Medvedev (o qual não tem nenhum parentesco com aqueles intelectuais de Moscou) encontrou em 1946. Aprisionado na adolescência por
ter furtado cereal numa fazenda coletiva, Medvedev já. ficou debaixo da asa de um dos principais chefões mafiosos quando ainda estava em traslado; então, aos poucos,
iniciaram-no na bandidagem. Ao chegarem a Magadan, Medvedev foi posto para trabalhar como os outros presos; viu-se encarregado de limpar o refeitório, o que não
era uma tarefa muito árdua. Seu mentor, porém, gritou para que parasse. "E, assim, não trabalhei, da mesma maneira todos os outros bandidos." Outros presos é que
se incumbiam do trabalho para ele.
Conforme Medvedev, a administração do campo não se preocupava com o fato de certos detentos não trabalharem. "Para ela, só interessava uma coisa: que a mina produzisse
ouro - tanto ouro quanto possível - e que o campo permanecesse em ordem." E, escreve ele de modo abonador, os bandidos realmente garantiam a ordem. O que os campos
perdiam em homens/hora (pelos criminosos que deixavam de trabalhar) ganhavam em disciplina. Medvedev explica que, "se alguém ofendia alguém, levava-se a queixa às
autoridades da bandidagem", não às do campo. Esse sistema, afirma Medvedev, mantinha baixo o nível de desavença e violência, o qual, do contrário, teria sido inconvenientemente
elevado.
A avaliação positiva que Nikolai Medvedev faz do domínio da bandidagem nos campos é incomum, em parte porque descreve de dentro o mundo dos mafiosos (muitos dos
urki eram analfabetos, e quase nenhum escreveu memórias), mas sobretudo porque lança sobre eles uma luz favorável. A maioria dos cronistas "clássicos" do Gulag,
testemunhas do terror, dos assaltos e dos estupros que os bandidos infligiam aos outros habitantes dos campos, os odiava com ardor. "Os criminosos não são humanos",
escreveu Variam Shalamov, sem meias palavras. "Os atos de perversidade que cometeram nos campos são inumeráveis." Soljenitsin escreveu que "era exatamente esse
mundo universalmente humano, o nosso mundo, com sua moral, seus costumes e suas relações mútuas, o que se mostrava mais odioso e mais merecedor de desdém para os
bandidos, pois se contrapunha da forma mais nítida possível a seu kubla (clã) anti-social e anticívico". De modo vivido, Anatolii Zhigulin descreveu como de fato
funcionava a ordem que os bandidos impunham. Certo dia, enquanto estava sentado num refeitório praticamente vazio, Zhigulin ouviu dois presos brigarem por causa
de uma colher. De súbito, Dezemiya, o principal lugar-tenente do maior chefão do campo, irrompeu pela porta e perguntou:
"Que barulho é esse? Por que o bate-boca? Vocês não podem perturbar a paz no refeitório."
"Olhe, ele pegou a minha colher e a trocou. Eu lhe dei uma inteira, e ele me devolveu uma quebrada..."
"Vou castigar e reconciliar os dois", disse Dezemiya, rindo à socapa. Nisto, executou dois rápidos movimentos em direção aos brigões: rápido como um raio, furou
um olho de cada um deles com seu picão.
A influência dos bandidos sobre a vida dos campos era decerto profunda. Sua gíria, tão distinta do russo comum que quase se torna um idioma à parte, tornou-se o
mais importante meio de comunicação no Gulag. Embora esse calão fosse célebre pelo enorme e complexo vocabulário de imprecações, uma lista de palavras compiladas
nos anos 1980 - muitas das quais ainda eram as mesmas usadas nos 1940 -também abrange centenas de termos para objetos comuns (aí incluídos utensílios, vestimentas
e partes do corpo) que são bem diversos das palavras russas usuais. Para objetos de particular interesse (dinheiro, prostitutas, bandidos e furto), há dúzias de
sinônimos. E, assim como termos genéricos para "crime" - entre eles po muzike khodit, "dançar conforme a música" -, existem muitos termos específicos para "furto"
e afins: derzhatsadku (furtar em estação ferroviária), marku derzhat (furtar em trem), idti na shalynuyu (furto não-planejado) denmik (furto à luz do dia) e klyusvennik
(ladrão de igreja), entre outros.
Aprender a falar blatnoe slovo - "língua de bandido", às vezes chamada blatnaya muzyka, "música de bandido" - era um ritual de iniciação a que muitos presos se submetiam,
não necessariamente de boa vontade. Alguns nunca se acostumavam. Uma prisioneira política escreveria:
Em tais campos, o mais difícil de agüentar são os constantes vitupérios [...] os palavrões que as prisioneiras usam são tão obscenos que se tornam insuportáveis,
e elas só parecem conseguir falar umas com as outras no linguajar mais reles e vulgar. Quando começavam com aqueles xingamentos e impropérios, ficávamos com tanta
raiva que costumávamos dizer entre nós: "Se uma delas estivesse morrendo aqui do meu lado, eu não lhe daria nem uma gota de água".
Outros tentavam analisar essa gíria. Já em 1925, um preso de Solovetsky especulava as origens daquele vocabulário num artigo que escreveu para a Solovetskie Ostrova
(uma das revistas do campo). Observava que algumas das palavras simplesmente refletiam a moralidade dos bandidos: a linguagem a respeito das mulheres era em parte
obscena, em parte melosamente sentimental. Algumas das palavras surgiam do contexto: os presos usavam stukat (bater) em vez de govorit (falar) porque batiam nas
paredes para comunicar-se uns com os outros. Outro ex-preso comentou o fato de que várias palavras, como shmon (para "busca"), musor (para "policial") e fraier
(para "não-criminoso", podendo traduzir-se também por "otário"), pareciam originar-se do hebraico ou do iídiche. Isso talvez seja evidência do papel que o porto
de Odessa - uma cidade em grande parte judaica, outrora a capital do contrabando na Rússia - desempenhou no desenvolvimento da cultura da bandidagem. De tempos em
tempos, a administração dos campos até procurava eliminar o calão. Em 1933, o comandante do Dmitlag ordenou a seus subordinados que "tomassem as devidas medidas"
para fazer os presos, assim como os guardas e administradores, pararem de utilizar o linguajar criminoso, o qual agora era "de uso geral, mesmo em cartas e discursos
oficiais". Não há nenhum indício de que a medida tenha surtido efeito.
Os mafiosos de mais alta posição pareciam e soavam diferentes dos outros presos. A indumentária e a moda estranha, talvez até mais que o calão, os estabeleciam como
casta identificável e distinta, o que reforçava ainda mais o poder de intimidação que exerciam sobre os demais prisioneiros. Nos anos 1940, segundo Shalamov, todos
os chefões mafiosos de Kolyma usavam cruzes de alumínio ao pescoço, sem nenhuma conotação religiosa ("Era uma espécie de símbolo"). Mas as modas mudavam:
Na década de 1920, os mafiosos usavam bonés de operário; antes ainda, a voga eram os quepes de oficial. Nos anos 40, durante os invernos, usavam bonés de couro sem
aba, dobravam o alto das botas de feltro e tinham ao pescoço um crucifixo. Este era em geral liso, mas, se houvesse algum artista à mão, eles o obrigavam a usar
uma agulha para pintar na cruz os motivos mais diversos: um coração, cartas de baralho, uma crucificação, uma mulher nua.
Georgii Feldgun, também prisioneiro nos campos na década de 1940, lembraria que os bandidos tinham um andar diferenciado, "de passadas curtas, com as pernas ligeiramente
abertas"; nos dentes, ostentavam coroas de ouro ou prata, uma espécie de moda:
Normalmente, o vor de 1943 circulava num costume azul-marinho de três peças, com as calças enfiadas dentro das botas. A túnica ficava debaixo do colete, com a fralda
para fora. Havia também o boné, cobrindo os olhos. E tatuagens, em geral sentimentais: "Nunca esquecerei minha querida mãezinha", "A vida desconhece a felicidade".
Essas tatuagens, mencionadas por muitos outros, também ajudavam a distinguir os mafiosos dos outros criminosos e a identificar o papel de cada chefão no mundo da
bandidagem. De acordo com um historiador dos campos, existiam diferentes tatuagens para homossexuais, viciados, condenados por estupro e condenados por homicídio.
Soljenitsin é mais explícito:
Cediam sua pele brônzea para a tatuagem e, dessa maneira, gradualmente satisfaziam suas necessidades artísticas, eróticas e até morais: nos peitos, barrigas e costas
uns dos outros, podiam admirar águias poderosas que se empoleiravam em desfiladeiros ou cruzavam os céus; ou uma grande marreta; ou o sol, dardejando raios em todas
as direções; ou homens e mulheres em cópula; ou os órgãos de seu desfrute sexual; e, bem de repente, Lênin, Stalin ou talvez ambos apareciam ao lado de seus corações
[...]. Por vezes, riam com a figura do foguista galhofeiro que lhes jogava carvão no orifício traseiro, ou com um macaco que se masturbava. E, na pele uns dos outros,
liam slogans que, mesmo se já familiares, eles adoravam repetir - "Vou f... todas as minas na boca!" [,..]. Ou, na barriga da namorada de um chefão, podia haver
um "Eu morro por uma boa f...!".
Sendo artista profissional, Thomas Sgovio logo foi tragado pelo ramo da tatuagem. Certa vez, pediram-lhe que desenhasse o rosto de Lênin no peito de alguém: entre
os bandidos, havia a crença comum de que nenhum pelotão de fuzilamento dispararia num retrato de Lênin ou Stalin.
Os mafiosos também se distinguiam de outros presos na maneira de se divertir. Complexos rituais cercavam seu carteado, o qual acarretava enorme risco, tanto do próprio
jogo, em que as apostas eram altas, quanto das autoridades, que puniam todos os apanhados em jogatina. Entretanto, o risco era provavelmente parte do atrativo para
pessoas acostumadas ao perigo: Dmitrii Likhachev, o crítico literário encarcerado em Solovetsky, observou que muitos bandidos "comparam as emoções do carteado às
da consecução de um crime".
Aliás, os criminosos anularam todas as tentativas da NKVD de pôr fim ao carteado. Buscas e apreensões não adiantavam de nada. Entre os bandidos, "peritos" se especializavam
em produzir baralhos, procedimento que, nos anos 1940, já se tornara extremamente sofisticado. Primeiro, o expert cortava quadrados de papel com lâmina de barbear.
Para assegurar-se de que as cartas fossem rijas o bastante, ele sobrepunha cinco ou seis desses quadrados, usando a "cola" que se fazia esfregando pão molhado contra
um lencinho. Depois, deixava as cartas amanhecerem debaixo dos beliches, para endurecê-las. Quando ficavam prontas, estampava as figuras e números, usando um carimbo
que fora entalhado do fundo de uma caneca. Para as cartas pretas, utilizava cinzas escuras. Caso se dispusesse de estreptomicina - se o médico da cadeia ou do campo
a tivesse e pudesse ser subornado ou ameaçado para entregar alguma -, podia também fazer as cartas vermelhas.
Os rituais do carteado eram outra parte do terror que os bandidos impunham aos presos políticos. Quando os criminosos jogavam uns com os outros, apostava-se dinheiro,
pão e indumentária. Se perdiam essas coisas, apostavam as de outros presos. Gustav Herling testemunhou pela primeira vez um desses episódios quando estava num vagão
Stolypin rumo à Sibéria. Viajava com outro polonês, o coronel Shklovski. No mesmo vagão, três urki, entre eles "um gorila com cara achatada de mongol", jogavam cartas.
[...] de repente, o gorila largou as cartas com brusquidão, levantou-se do banco num salto e veio para cima de Shklovski.
"Me dá o casaco!", berrou. "Eu o perdi no jogo!"
Shklovski abriu os olhos e, sem se mexer do assento, deu de ombros.
"Me dá!", rugiu o gorila, furioso. "Me dá! Senão, glaza vykolu, eu arranco os teus olhos!"
O coronel se ergueu devagar e entregou o casaco.
Só depois, no campo de trabalhos forçados, compreendi o significado daquela cena esdrúxula. Apostar nas cartas os pertences de outros presos é uma das diversões
prediletas dos urki, e o principal atrativo disso está no fato de que o perdedor é obrigado a tirar à força da vítima o item previamente acordado.
Uma prisioneira estava num alojamento feminino que fora todo "perdido" num jogo de cartas. Após terem ficado sabendo da notícia, as mulheres passaram dias numa espera
angustiada, "incrédulas". Até que, uma noite, ocorreu o ataque. "O alvoroço foi terrível: as mulheres berraram como loucas até que homens vieram em nosso socorro
[...] ao fim e ao cabo, só roubaram algumas trouxas de roupas, e a starosta foi apunhalada."
O carteado, porém, podia ser não menos perigoso para os próprios criminosos de carreira. Em Kolyma, o general Gorbatov encontrou um bandido que tinha apenas dois
dedos na mão esquerda. O homem explicou:
Estava jogando cartas e perdi. Não tinha dinheiro e, por isso, apostei um terno de boa qualidade - não meu, é claro, mas de um [preso] político. Eu pretendia pegar
o terno de noite, quando o preso, recém-chegado, o tivesse tirado para dormir. Eu precisava entregá-lo antes das oito da manhã, mas acabaram levando o político para
outro campo naquele mesmo dia. Nosso conselho de chefes se reuniu para determinar meu castigo. A parte queixosa queria que me cortassem todos os dedos da mão esquerda.
Os chefes propuseram dois. Pechincharam um pouco e fecharam em três. Assim, pus a mão na mesa, e o homem para o qual eu tinha perdido pegou um picão e, com cinco
golpes, arrancou meus três dedos.
Quase com orgulho, o homem concluiu: "Também temos as nossas leis, só que mais duras que as de vocês. Quando se falha com os companheiros, é preciso responder por
isso". E os rituais judiciais dos mafiosos eram tão complexos quanto suas cerimônias de iniciação, demandando um "tribunal", um julgamento e uma sentença, a qual
podia significar surra, humilhação ou até morte. Colonna-Czosnowski presenciou uma longa e renhida partida de cartas entre dois mafiosos de alto escalão, que só
terminou quando um deles já perdera todos os seus pertences. Em vez de um braço ou perna, o ganhador exigiu como penalidade uma humilhação medonha: mandou o "artista"
do alojamento tatuar na cara do perdedor um pênis enorme, apontado para a boca. Minutos depois de pronta a tatuagem, o perdedor pressionou um atiçador em brasa contra
o próprio rosto, apagando-a e desfigurando-se pelo resto da vida. Anton Antonov-Ovseenko, filho de um destacado bolchevique, também afirmaria ter conhecido nos
campos um "surdo-mudo" que perdera nas cartas e, por isso, fora proibido de usar a voz durante três anos. Mesmo quando era transferido de campo, não se atrevia a
violar a condenação, pois todos os urki locais estavam cientes dela. "O desrespeito ao acertado seria punido com a morte. Ninguém escapa à lei dos bandidos."
As autoridades sabiam desses rituais e, de quando em quando, procuravam intervir, nem sempre com sucesso. Num episódio em 1951, um tribunal mafioso condenou à morte
um bandido chamado Yurilkin. As autoridades do campo souberam da sentença e transferiram Yurilkin, primeiro para outro campo, depois para uma prisão transitória,
em seguida para um terceiro campo, numa região completamente diferente do país. Ainda assim, dois mafiosos enfim localizaram o condenado e o mataram - passados quatro
anos. Depois, foram julgados e executados por homicídio na Justiça soviética, mas nem mesmo tal castigo se mostrava necessariamente coibitivo. Em 1956, a promotoria-geral
da URSS fez circular um memorando em que, com frustração, se queixava de que "essa formação criminosa existe em todos os campos de trabalho correcional, e com freqüência
a decisão do grupo de matar este ou aquele preso que se encontra em outro campo é ali executada sem discussão".
Os tribunais mafiosos também eram capazes de impor punições a quem não pertencia à bandidagem, o que talvez explique por que inspiravam tanto terror. Lev Finkelstein,
preso político no começo dos anos 1950, recordaria um desses assassínios motivados pela vingança:
Pessoalmente, vi um só homicídio, mas esse foi bem espetacular. Sabe esses espetos de papel metálicos? Quando bem afiados, são uma arma extremamente mortífera. [...]
Tínhamos um naryadchik, o homem designado para distribuir tarefas aos presos - do que ele era culpado, disso não sei. Mas os mafiosos resolveram que devia ser morto.
Aconteceu quando ele estava de pé na contagem dos presos, antes de irem para o trabalho. Cada turma estava em posição de sentido, separada das outras. O naryadchik
se encontrava à frente. O nome dele era Kazakhov, um homem pesadão, com uma bela pança. Um dos bandidos saiu chispando da formação e enfiou o espeto na barriga dele.
Provavelmente, era um assassino experiente. Foi pego de imediato - mas tinha 25 anos de pena. Eles o julgaram outra vez, é claro, e lhe deram outros 25. Assim, a
sentença se prolongaria mais alguns anos - e quem se importava?
Contudo era um tanto raro que os bandidos voltassem sua "justiça" contra quem administrava os campos. No geral, se não eram exatamente leais cidadãos soviéticos,
pelos menos ficavam satisfeitos -satisfeitíssimos - em cooperar na única tarefa que as autoridades da URSS lhes destinavam: dominar os presos políticos, aqueles
elementos que, para de novo citarmos Evgeniya Ginzburg, eram ainda mais desprezados e marginalizados do que eles.
KONTRIKI E BYTOVYE: OS PRESOS POLÍTICOS E OS PRESOS ORDINÁRIOS
Com seu calão especial, sua indumentária característica e sua cultura rígida, os criminosos de carreira eram fáceis de identificar e de descrever. Sobre o resto
dos presos, que constituíam a mão-de-obra do Gulag, torna-se muito mais difícil fazer generalizações, pois eram pessoas oriundas de todos os estratos da sociedade
soviética. Aliás, durante tempo demasiado longo, nossa compreensão de quem era exatamente a maioria dos prisioneiros nos campos se viu enviesada pela dependência
forçada que tínhamos em relação às memórias escritas, sobretudo às publicadas fora da URSS. Seus autores eram em geral intelectuais, com freqüência estrangeiros
e quase universalmente presos políticos.
Mas, desde a glasnost de Gorbatchev, disponibilizou-se uma variedade maior de material memorialístico, junto com alguns dados arquivais. Segundo esses últimos -
que devem ser tratados com um bocado de cautela -, parece que a imensa maioria dos presos não era de modo algum composta de intelectuais. Ou seja, não eram pessoas
da intelligentsia técnica e acadêmica da Rússia, a qual, na prática, formava uma classe social à parte, mas operários e camponeses. Alguns números referentes aos
anos 1930, quando o grosso dos presos do Gulag eram kulaks, são particularmente reveladores. Em 1934, só 0,7% da população dos campos de concentração tinha instrução
superior; já 39,1% possuíam apenas escolaridade primária. Na mesma época, 42,6% eram descritos como "semi-alfabetizados", e 12% eram totalmente analfabetos. Mesmo
em 1938, o ano em que o Grande Terror assolou a intelectualidade de Moscou e Leningrado, quem tinha instrução superior ainda correspondia a apenas 1,1% da população
do Gulag, ao passo que mais de metade do total fizera somente o primário e um terço era semi-alfabetizado.
Estatísticas comparáveis sobre a proveniência social dos detentos não parecem estar disponíveis, mas vale a pena notar que, em 1948, menos de um quarto deles eram
presos políticos - aqueles condenados por crimes "contra-revolucionários", conforme o artigo 58 do Código Penal. Isso seguia um padrão preexistente. Os presos políticos
corresponderam a apenas 12%-18% da população prisional nos anos de terror de 1937 e 1938; ficaram em 30%-40% durante a guerra; subiram para quase 60% em 1946, em
conseqüência da anistia concedida a presos criminais após a vitória; e então permaneceram numa porcentagem estável, entre um quarto e um terço de todos os presos,
pelo restante do reinado de Stalin. Dada a elevada rotatividade de presos não-polí-ticos - estes freqüentemente estavam condenados a penas mais curtas e tinham
mais chance de atender aos requisitos para a liberação antecipada -, é seguro dizer que a grande maioria dos que passaram pelo sistema Gulag nas décadas de 1930
e 40 se constituía de pessoas com sentenças criminais e, portanto, com maior probabilidade de serem operários e camponeses.
Esboço de retrato de dois zeks. Desenho de Sergei Reikhenberg. Magadan, data desconhecida
No entanto, embora esses números possam ajudar a corrigir impressões anteriores, eles também enganam. Analisando o novo material memorialístico acumulado na Rússia
desde o colapso da URSS, fica igualmente claro que muitos dos presos políticos não se enquadravam na definição que hoje damos ao termo. Nos anos 1920, os campos
realmente continham membros dos partidos antibolchevique, indivíduos que de fato se designavam "presos políticos". Nos anos 30, também havia alguns verdadeiros trotskistas
- pessoas que tinham mesmo apoiado Trotski contra Stalin. Nos anos 40, após as prisões em massa na Ucrânia, nos Estados bálticos e na Polônia, uma onda de guerrilheiros
e ativistas verdadeiramente anti-soviéticos fluiu para o Gulag. E, no começo da década de 50, prendeu-se um punhado de estudantes anti-stalinistas.
Todavia, entre as centenas de milhares de pessoas que eram denominadas presos políticos nos campos, a imensa maioria se compunha não de dissidentes, nem de padres
que diziam missa às escondidas, nem mesmo de maiorais do Partido. Era, isto sim, de pessoas comuns, levadas de roldão durante detenções em massa, não tendo necessariamente
posições políticas fortes em nenhum sentido. Olga Adamova-Sliozberg, outrora funcionária de um dos ministérios industriais em Moscou, escreveria: "Antes de minha
prisão, eu levava vida bastante comum, típica de uma profissional liberal soviética que não pertencesse ao Partido. Dava duro, mas não tinha nenhuma participação
especial na política nem nas questões públicas. Meus verdadeiros interesses eram o lar e a família".
Se os presos políticos não eram necessariamente políticos, a esmagadora maioria dos presos criminais tampouco era necessariamente de criminosos. No Gulag, embora
houvesse alguns criminosos de carreira e, durante o conflito mundial, alguns verdadeiros colaboracionistas e criminosos de guerra, a maior parte dos demais fora
condenada por crimes "ordinários" ou não-políticos que, em outras sociedades, nunca seriam considerados delitos. Por duas vezes, o pai do general e político russo
Alexsander Lebed se atrasara dez minutos para o trabalho numa fábrica, pelo que o sentenciaram a cinco anos no Gulag. No campo de Polyansky, situado perto do Krasnoyarsk
26 (local de um dos reatores nucleares da URSS) e habitado majoritariamente por criminosos, os arquivos registram um preso "criminal" que pegou seis anos pelo furto
de um único pé de galocha numa feira; outro, dez anos pelo furto de dez pães; outro (caminhoneiro que criava sozinho os dois filhos), sete anos pelo furto de três
garrafas do vinho que estava entregando; e outro, cinco anos por "especulação", significando que comprara cigarros num lugar e os vendera em outro. Antoni Ekart
conta a história de uma mulher que foi presa porque pegou um lápis do escritório onde trabalhava; era para o filho, que não podia fazer o dever de casa porque não
tinha com o que escrever.
No mundo às avessas do Gulag, a probabilidade de presos criminais serem de fato criminosos equivalia à de presos políticos serem mesmo opositores ativos do regime.
Em outras palavras, os criminosos nem sempre eram gente que cometera crimes de verdade. E era ainda mais raro que um preso político houvesse cometido um delito de
natureza política. Isso, porém, não impedia o sistema judiciário soviético de classificá-los zelosamente. Como grupo, os contra-revolucionários tinham status ainda
mais baixo que os criminosos; como já dissemos, eram considerados "socialmente perigosos", menos compatíveis com a sociedade soviética que os criminosos, "socialmente
próximos". Mas os presos políticos também se classificavam segundo o parágrafo do artigo 58 do Código Penal pelo qual houvessem sido condenados. Evgeniya Ginzburg
observou que, dentre os presos políticos, era muitíssimo "melhor" ter sido condenado conforme o parágrafo 10, por "agitação anti-soviética" (ASA). Eram os "tagarelas":
haviam contado alguma piada infeliz a respeito do Partido ou deixado escapar alguma crítica a Stalin ou ao chefe partidário local - ou então sido acusados disso
por algum vizinho invejoso. Até as autoridades dos campos reconheciam tacitamente que os "tagarelas" não haviam cometido crime nenhum, e assim os condenados por
ASA descobriam que, no caso deles, às vezes era mais fácil ser designado para trabalho mais leve.
Abaixo deles, estavam os condenados por "atividades contra-revolucionárias" (KDR). Mais abaixo ainda, havia os condenados por "atividades terroristas contra-revolucionárias"
(KRTD). Em alguns campos, o T adicional podia significar que o preso estava proibido de realizar outro trabalho que não os "serviços gerais" mais pesados (cortar
árvores, cavar nas minas, construir estradas), em especial se a KRTD acarretara pena de dez ou quinze anos ou mais.
E era possível descer ainda mais. Abaixo da KRTD, havia outra categoria: as KRTTD, que eram não qualquer atividade terrorista, mas sim as "atividades terroristas
trotskistas contra-revolucionárias". "Sei de casos", escreve Lev Razgon, "em que esse T extra aparecia na documentação do preso nos campos por causa de alguma discussão,
durante a contagem dos prisioneiros, com o distribuidor de tarefas ou com o chefe desse serviço, ambos os quais eram criminosos." Uma mudancinha como essa podia
ser a diferença entre a vida e a morte, pois nenhum capataz designaria um preso KRTTD para outra coisa senão a labuta mais pesada.
Tais regras nem sempre eram nítidas. Na prática, os presos viviam sopesando o valor das diferentes sentenças judiciais, procurando calcular que influência elas teriam
em suas vidas. Variam Shalamov relata que, após haver sido selecionado para fazer um curso de paramédico que lhe teria permitido tornar-se feldsher (assistente médico,
um dos serviços mais prestigiosos e confortáveis no campo), ficou preocupado com o efeito que sua sentença teria em suas possibilidades de concluir o curso: "Será
que aceitariam presos políticos condenados pelo artigo 58? Só os que o tivessem sido pelo parágrafo 10? E o homem que estava comigo na traseira do caminhão? Ele
também era ASA, agitação anti-soviética".
As sentenças oficiais, por si sós, não determinavam o lugar dos presos políticos na hierarquia dos campos. Embora não tivessem um código de conduta rígido como o
dos bandidos, nem um linguajar uniformizador, eles realmente acabavam segregando-se em grupos. Esses clãs políticos se mantinham unidos pela camaradagem, pela necessidade
de defender-se ou pela visão de mundo que compartilhavam. Não ficavam à parte - tinham elementos de contato uns com os outros e com os clãs de presos não-políticos
-, nem existiam em todos os campos. Mas, nas circunstâncias certas, podiam ser cruciais para a sobrevivência do prisioneiro.
Dos clãs políticos, os mais fundamentais, e, no final das contas, mais poderosos, se constituíam em torno da nacionalidade ou do lugar de origem. Esses se tornaram
mais importantes durante e após a Segunda Guerra Mundial, quando o número de presos estrangeiros aumentou enormemente. Surgiam de modo bem natural: o novo prisioneiro
chegava e de imediato procurava nos alojamentos seus patrícios estonianos, ucranianos ou (num número ínfimo de casos) americanos, por exemplo. Walter Warwick, um
dos fino-americanos que acabaram no Gulag nos anos 1930, descreve, num manuscrito que elaborou para a família, como os falantes do finlandês em seu campo se aglutinavam
especificamente para proteger-se dos roubos e abusos da bandidagem: "Chegamos à conclusão de que, se quiséssemos um pouco de sossego, precisaríamos formar uma gangue.
Assim, organizamos nossa própria turma, para nos ajudarmos uns aos outros. Éramos seis: dois fino-americanos [...], dois finlandeses da própria Finlândia [...] e
dois finlandeses da região de Leningrado".
Nem todo clã baseado na nacionalidade exibia o mesmo caráter. Há opiniões discordantes, por exemplo, sobre se os prisioneiros judeus tinham mesmo uma rede própria
ou se, ao contrário, fundiam-se na população geral russa - ou, no caso do grande número de judeus polacos, na grande população geral polonesa. Parece que a resposta
variava conforme a época e que muito dependia das atitudes individuais. Muitos dos judeus aprisionados no final dos anos 1930, durante a repressão contra os primeiros
escalões da nomenklatura e das Forças Armadas, parecem ter-se considerado primeiro comunistas e só depois judeus. Segundo um preso, nos campos "todo o mundo virava
russo -fossem caucásios, fossem tártaros, fossem judeus".
Posteriormente, à medida que mais judeus chegavam com os poloneses durante a guerra, eles parecem ter formado redes étnicas reconhecíveis. Ada Federolf - que escreveu
memórias junto com Ariadna Efron, filha de Maria Tsvetaeva - descreveu um campo no qual a oficina de costura (pelos padrões locais, um lugar luxuoso para trabalhar)
ficava a cargo de um homem chamado Lieberman. Sempre que chegava um contingente de prisioneiros, ele percorria a multidão, gritando: "Quem é judeu? Quem é judeu?"
Quando os localizava, providenciava para que viessem trabalhar consigo na oficina, poupando-os do trabalho braçal na floresta. Lieberman também ideou planos engenhosos
para salvar rabinos, os quais, por dever de ofício, precisavam rezar o dia todo. Construiu um cubículo especial para certo rabino, ocultando o religioso a fim de
que ninguém soubesse que ele não estava trabalhando. Lieberman também inventou para outro rabino o cargo de "controlador de qualidade". Isso possibilitava que o
homem percorresse o dia inteiro as fileiras de costureiras, sorrindo para elas e orando de mansinho.
No começo dos anos 1950, quando o anti-semitismo oficial soviético começou a fortalecer-se - estimulado pela obsessão de Stalin com os médicos judeus que, achava
ele, estavam tentando matá-lo -, voltou a ficar difícil ser judeu. Entretanto, mesmo dessa vez, o grau de anti-semitismo parecia variar de campo para campo. Ada
Purizhinskaya, aprisionada no auge do "Complô dos Médicos" (o irmão fora julgado e executado por "ter conspirado para matar Stalin"), não se recordaria de "nenhum
problema em especial por ser judia". Mas Leonid Trus, outro judeu encarcerado na mesma época, pensaria de modo diferente. Certa vez, disse ele, um zek mais velho
o salvou de um anti-semita furibundo, que fora aprisionado por comércio de ícones. (O zek mais velho gritou para o vendilhão que este, homem que "comprava e vendia
imagens de Cristo", devia envergonhar-se.)
Trus, porém, não tentava esconder o fato de que era judeu. Pelo contrário: nas botas, pintou uma estrela-de-davi, em boa parte para impedir que as roubassem. Em
seu campo, "os judeus, assim como os russos, não se organizam num grupo". Isso o deixava sem companhia evidente. "Para mim [...] o pior era a solidão, a sensação
de ser judeu em meio a russos, o fato de que todos tinham amigos de sua terra, ao passo que eu estava completamente só."
Por causa de seu pequeno número, os europeus-ocidentais e os norte-americanos que acabavam nos campos também tinham dificuldade para formar redes fortes. Dificilmente
estavam em situação de ajudar-se uns aos outros: muitos estavam de todo desorientados pela vida no Gulag, não falavam russo e achavam o rancho incomível e as condições
de vida insuportáveis. Após ter visto todo um grupo de alemãs morrer na prisão transitória de Vladivostok, apesar de autorizadas a beber água fervida, a prisioneira
russa Nina Gagen-Torn escreveu, só em parte com ironia, que, "se os alojamentos estiverem repletos de cidadãos soviéticos, acostumados à comida, eles suportarão
o peixe salgado mesmo se estragado; mas, quando chega um grande transporte de presos da Terceira Internacional, eles todos pegam disenteria do tipo mais grave".
Lev Razgon também se compadecia dos estrangeiros, lembrando que "não conseguiam nem entender nem se assimilar; não tentavam adaptar-se e sobreviver; apenas se juntavam
instintivamente".
Mas os ocidentais - grupo que englobava poloneses, tchecos e outros leste-europeus - também tinham algumas vantagens. Eram motivo de especial fascínio e interesse,
o que às vezes lhes rendia contatos, dádivas de alimento, um tratamento mais gentil. Antoni Ekart, polonês educado na Suíça, conseguiu vaga no hospital graças a
um enfermeiro chamado Ackerman, oriundo da Bessarábia. "O fato de que eu provinha do Ocidente simplificava as coisas": todos estavam interessados no ocidental e
queriam salvá-lo. A escocesa Flora Leipman, cujo padrasto (russo) convencera a família dela a mudar-se para a URSS, usava sua nacionalidade para entreter as companheiras
de cativeiro:
Eu levantava a saia, para que parecesse um kilt, e baixava as meias, para que dessem a impressão de ir só até os joelhos. Jogava o cobertor sobre os ombros, como
um manto escocês, e pendurava o chapéu na cintura, como um sporran. Minha voz se elevava orgulhosamente, cantando "Annie-Laurie" e "Ye banks and braes o'boonie Doon",
sempre concluindo com o "God save the King" - sem traduzir a letra.
Ekart também descreveria a sensação de ser "objeto de curiosidade" para os intelectuais russos:
Em encontros especialmente organizados e cuidadosamente ocultos que tive com alguns dos mais confiáveis entre eles, falei de minha vida em Zurique, Varsóvia, Viena
e outras cidades do Ocidente. Meu paletó esporte de Genebra e minhas camisas de seda eram examinados com todo o zelo, pois eram a única prova concreta do alto padrão
de vida existente fora do mundo comunista. Alguns se mostravam visivelmente incrédulos quando eu dizia que podia comprar todos aqueles artigos com meu salário mensal
de engenheiro júnior numa fábrica de cimento.
"Quantos ternos você tem?", perguntou um dos agrônomos. "Seis ou sete."
"Você está mentindo!", protestou um homem de não mais que 25 anos. Depois, voltou-se para os outros e disse: "Por que é que temos de tolerar essas histórias absurdas?
Para tudo há limite; não somos criancinhas".
Eu encontrava dificuldade para esclarecer que, no Ocidente, uma pessoa comum que se preocupasse um pouco com a aparência procuraria ter vários ternos, pois as roupas
duram mais quando podemos tirá-las de tempos em tempos. Para um membro da intelligentsia russa, o qual raramente possuía mais de um terno, era difícil entender isso.
John Noble, americano pego em Dresden, também se tornou um "VIP de Vorkuta" e regalava os companheiros de campo com histórias sobre a vida nos Estados Unidos, as
quais eles consideravam inacreditáveis. "Johnny", disse-lhe um deles, "você vai querer nos fazer acreditar que os trabalhadores americanos têm carro próprio."
Mas, embora esses estrangeiros despertassem admiração, isso também os impedia de estabelecer os contatos estreitos que sustinham tantos prisioneiros nos campos.
Flora Leipman escreveria que "até minhas novas 'amigas' do campo tinham medo de mim, já que era estrangeira mesmo para elas". Antoni Ekart, quando se viu como único
preso não-russo num lagpunkt, sofreu porque os cidadãos soviéticos não gostavam dele e porque o sentimento era recíproco. "Estava envolto pelo cheiro de aversão,
quando não de ódio [...] ressentiam-se do fato de que eu não era como eles. A cada momento, eu percebia a desconfiança, a estultice, a má vontade, a vulgaridade
inata. Tive de ficar muitas noites sem dormir, para proteger a mim e a meus pertences."
Mais uma vez, os sentimentos de Ekart evocam uma época anterior. A descrição de Dostoievski do relacionamento entre criminosos polacos e russos no século XIX faz
pensar que os ancestrais de Ekart tinham vivenciado a mesma coisa:
Os poloneses (falo apenas dos presos políticos) tinham para com eles uma espécie de polidez refinada e insultante; eram extremamente fechados e não conseguiam de
modo algum esconder dos condenados a repulsa que sentiam por eles; os condenados, por sua vez, percebiam isso muitíssimo bem e pagavam na mesma moeda.
Em posição ainda mais delicada, estavam os muçulmanos e outros presos da Ásia central e de algumas das repúblicas do Cáucaso. Sofriam com o mesmo desnorteamento
que os ocidentais, mas em geral não conseguiam entreter nem interessar os russos. Conhecidos como natsmeny - acrônimo do termo russo para "minorias nacionais" -,
eram parte da vida no Gulag desde o final dos anos 1920. Grande número deles fora aprisionado durante a pacificação (e sovietização) da Ásia central e do Cáucaso
setentrional e mandado para trabalhar no Canal do Mar Branco, onde um coetâneo escreveu que, "para eles, tudo é difícil de entender: as pessoas que os dirigem, o
canal que estão construindo, a comida que estão consumindo". A partir de 1933, muitos trabalharam também no Canal Moscou-Volga, onde os chefes do campo parecem
ter-se compadecido deles. Em certa altura, ordenaram a seus subordinados que estabelecessem alojamentos e turmas de trabalho distintos para esses presos, de modo
que pudessem pelo menos cercar-se de patrícios. Posteriormente, Gustav Herling toparia com eles num campo madeireiro do norte. Lembrar-se-ia de vê-los toda noitinha
na enfermaria do campo, esperando para ser atendidos pelo médico do campo:
Mesmo na sala de espera, ficavam segurando a barriga, com dor, e, tão logo iam para a consulta, irrompiam em lamúrios aflitos, nos quais os gemidos se misturavam
de maneira indistinta com o precário e curioso russo que falavam. Não havia remédio para a doença deles [...] estavam simplesmente perecendo de fome, de frio, da
monótona brancura da neve, das saudades da terra natal. Seus olhos repuxados, desacostumados à paisagem setentrional, estavam sempre lacrimejantes, e suas pestanas
ficavam coladas uma à outra por uma pequena crosta amarela. Nos raros dias em que ficavam livres do trabalho, os uzbeques, turcomanos e quirguizes se juntavam num
canto do alojamento e punham suas roupas de festa - longos e coloridos mantos de seda e barretes bordados. Era impossível adivinhar do que falavam com tanta animação
e entusiasmo, gesticulando, berrando uns com os outros e balançando tristemente as cabeças, mas eu tinha certeza de que não era a respeito do campo.
A vida não se mostrava muito melhor para os coreanos - em geral cidadãos soviéticos daquela origem -, nem para os japoneses -dos quais espantosos 600 mil chegaram
ao Gulag e aos campos de prisioneiros de guerra no fim do conflito mundial. Os japoneses sofriam em especial com a comida, que lhes parecia não apenas escassa, mas
também estranha e praticamente inconsumível. Em conseqüência, catavam e consumiam coisas que se assemelhavam igualmente incomestível aos outros presos: ervas silvestres,
insetos, besouros, cobras e cogumelos que nem os russos comiam. De vez em quando, essas iniciativas acabavam mal: há registros de prisioneiros japoneses que morreram
da ingestão de ervas ou capins venenosos. Uma indicação de quão isolados eles se sentiam aparece nas memórias de um preso russo que, numa biblioteca de campo, encontrou
um folheto em japonês -tratava-se de um discurso do bolchevique Zhdanov. O russo o levou a um japonês seu conhecido, prisioneiro de guerra. "Pela primeira vez, eu
o vi feliz de verdade. Mais tarde, disse-me que lia o folheto todos os dias, apenas para ter contato com o idioma natal."
Algumas das outras nacionalidades do Extremo Oriente se adaptavam com mais facilidade. Vários memorialistas mencionam a forte organização dos chineses. Destes, alguns
eram "soviéticos", nascidos na URSS; outros, trabalhadores que haviam imigrado legalmente nos anos 1920; e outros ainda, desafortunados que, por acidente ou capricho,
haviam atravessado a longa fronteira sino-soviética. Um preso se recordaria de que um chinês lhe contou que ele, assim como muitos outros, fora aprisionado porque
atravessara o rio Amur a nado, atraído pela vista do lado soviético:
O verde e o dourado das árvores [e] as estepes pareciam tão belas! E, em nossa região, nenhum dos que cruzavam o rio jamais voltava. Pensávamos que isso só podia
significar que a vida era boa do lado de cá e, assim, resolvíamos atravessar. No instante em que chegávamos, éramos detidos e acusados segundo o artigo 58, parágrafo
6º Espionagem. Pena de dez anos.
Dmitri Panin - um dos companheiros de campo de Soljenitsin - lembraria que, no Gulag, os chineses "só se comunicavam entre si; à guisa de resposta a qualquer de
nossas perguntas, faziam cara de incompreensão". Karlo Stajner recordaria que eles eram ótimos na hora de arrumar bons trabalhos uns para os outros: "Em toda a
Europa, os chineses são famosos malabaristas, mas, nos campos, eram usados na lavanderia. Não me lembro de ter visto algum trabalhador não-chinês nas lavanderias
dos campos pelos quais passei".
No Gulag, os grupos étnicos mais influentes eram, de longe, os baltas e os oeste-ucranianos que haviam sido varridos em massa para os campos de concentração durante
e após a guerra (ver capítulo 20).
Menos numerosos, mas também influentes, eram os poloneses, sobretudo os guerrilheiros anticomunistas, que igualmente apareceram nos campos na segunda metade da década
de 1940 - assim como os tchetchenos, os quais Soljenitsin descreveria como "a única nação que se recusava a desistir e a adquirir os hábitos mentais da submissão"
e que, de diversas maneiras, sobressaía entre os outros caucásios. A força desses grupos étnicos específicos estava nos números e na clara oposição à URSS, cuja
invasão de seus respectivos países eles consideravam ilegal. Os poloneses, baltas e ucranianos do pós-guerra também tinham experiência militar e guerrilheira, e,
em alguns casos, suas organizações de luta clandestina se mantiveram nos campos. Logo depois da guerra, o estado-maior geral do Exército Rebelde Ucraniano - UPA,
um dos vários grupos que combatiam pelo controle da Ucrânia naquela época -, divulgou um comunicado a todos os compatriotas que haviam sido degredados ou mandados
para o Gulag: "Onde quer que estejais, nas minas, nas florestas ou nos campos de concentração, sempre permanecei o que fostes, continuai sendo ucranianos fiéis e
prossegui nossa luta".
Nos campos, ex-guerrilheiros se ajudavam conscientemente e cuidavam dos recém-chegados. Adam Galinski, que lutara no Exército da Pátria, a guerrilha anticomunista
da Polônia, durante e após a guerra, escreveria: "Zelávamos especialmente pela mocidade do Exército da Pátria e mantínhamos seu moral, que era o mais elevado na
degradante atmosfera de declínio espiritual que prevalecia entre os diversos grupos nacionais aprisionados em Vorkuta".
Em anos posteriores, quando adquiririam mais poder para influenciar o andamento das coisas nos campos, os poloneses, baltas e ucranianos - assim como os georgianos,
armênios e tchetchenos -, também formavam suas próprias turmas de trabalho, dormiam à parte em alojamentos dispostos conforme a etnia e organizavam comemorações
de seus feriados nacionais. Às vezes, esses grupos poderosos cooperavam uns com os outros. O autor polonês Aleksander Wat escreveria que, nas prisões soviéticas,
os polacos e ucranianos - inimigos figadais durante a guerra, quando seus movimentos guerrilheiros se confrontaram em cada centímetro do território da Ucrânia ocidental
- se relacionavam "com reticência, mas com incrível lealdade. 'Somos inimigos, mas não aqui"'.
De outras vezes, esses grupos étnicos competiam tanto entre si quanto com os russos. Lyudmila Khachatryan, aprisionada por ter-se apaixonado por um soldado iugoslavo,
recordaria que os ucranianos de seu campo se recusavam a trabalhar com os russos. Os movimentos nacionais de resistência, escreveria outro observador, "caracterizam-se,
de um lado, pela hostilidade ao regime e, de outro, pela hostilidade aos russos". Edward Buca se lembraria de uma hostilidade mais generalizada - "era incomum um
preso dar qualquer assistência a alguém de outra nacionalidade" -, embora Pavel Negretov, o qual estava em Vorkuta à mesma época que Buca, achasse que a maioria
das nacionalidades só não se dava bem quando sucumbia às "provocações" da administração - "por meio de seus informantes, ela tentava [...] fazer que brigássemos".
No final dos anos 1940, quando os vários grupos étnicos assumiram o papel da bandidagem como policiais de facto nos campos, eles às vezes lutavam entre si pelo controle.
Marlen Korallov recordaria que "começaram a disputar o poder, e este significava muito: controlar o refeitório, por exemplo, importava bastante, pois o cozinheiro
trabalharia diretamente para quem fosse seu senhor". Naquele tempo, segundo Korallov, o equilíbrio entre os diversos grupos era delicadíssimo e podia ser abalado
pela chegada de um novo contingente de presos. Quando, por exemplo, um grupo de tchetchenos veio para o lagpunkt de Korallov, eles entraram nos alojamentos, "jogaram
suas coisas nos beliches mais próximos do chão [naquele campo, os leitos "aristocráticos" eram os mais baixos] e instalaram-se ali com todas as suas posses".
No final dos anos 1940, Leonid Sitko - que ficara num campo de prisioneiros de guerra alemão e depois fora novamente preso quando voltou para a Rússia - testemunhou
uma batalha muito mais séria entre tchetchenos, russos e ucranianos. A discussão começou com uma disputa pessoal entre "brigadeiros" e foi aumentando - "virou guerra,
uma guerra total". Os tchetchenos organizaram um ataque a um alojamento russo, e muitos foram feridos. (Mais tarde, todos os cabeças acabaram indo para uma cela
punitiva.) Sitko explicaria que, embora as disputas fossem por influência nos campos, elas tinham origem em sentimentos nacionais mais profundos: "Os baltas e os
ucranianos achavam que russos e soviéticos eram a mesma coisa. Embora não faltassem russos no campo, isso não os impedia de ver esses últimos como invasores e ladrões".
Certa vez, o próprio Sitko foi abordado no meio da noite por um grupo de oeste-ucranianos:
"Seu nome é ucraniano", disseram-me. "Você é o quê? Algum traidor?"
Expliquei que fora criado no norte do Cáucaso, numa família que falava russo, e que não sabia por que tinha nome ucraniano. Ficaram um pouco e depois partiram. Podiam
ter-me matado - estavam com uma faca.
Uma prisioneira e recordaria de que as diferenças nacionais não eram "nada lá muito importantes", mas também brincaria comentando que isso só não se aplicava aos
ucranianos, os quais simplesmente "odiavam todos os demais".
Na maioria dos campos, por estranho que possa parecer, não havia nenhum clã para os russos, o grupo étnico que, segundo as próprias estatísticas do sistema, constituiu
a clara maioria dos prisioneiros durante toda a existência do Gulag. E bem verdade que os russos se associavam segundo a cidade ou região de que viessem. Moscovitas
descobriam outros moscovitas; leningradenses, outros leningradenses; e assim por diante. Em certa altura, Vladimir Petrov foi ajudado por um médico que lhe perguntou:
"Antes você fazia o quê?" "Estudava em Leningrado."
"Ah, então somos conterrâneos - ótimo!", disse o médico, dando-me tapinhas nas costas.
Com freqüência, os oriundos de Moscou eram particularmente poderosos e organizados. Leonid Trus, aprisionado quando ainda era estudante, recordaria que, no campo,
os moscovitas mais velhos formavam uma rede forte, da qual ele ficou de fora. Em certa ocasião, quando quis pegar emprestado um livro da biblioteca do campo, precisou
primeiro convencer o bibliotecário, membro daquele clã, de que podiam confiar-lhe o exemplar.
No mais das vezes, porém, esses laços eram fracos, proporcionando ao preso não mais que a companhia de pessoas que se lembravam da rua em que morara ou da escola
que freqüentara. Enquanto outros grupos étnicos formavam redes completas de auxílio mútuo - achando lugar para os recém-chegados nos alojamentos, ajudando-os a obter
tarefas mais leves -, os russos não o faziam. Ariadna Éfron escreveria que, ao chegar a Turukhansk, para onde fora banida com outras prisioneiras quando terminou
de cumprir sua pena no Gulag, outros degredados que já moravam ali vieram receber o trem:
Um judeu separou as judias em nosso grupo, deu-lhes pão, explicou como deviam portar-se e o que deviam fazer. Então, um grupo de georgianas foi recepcionada por
um patrício... E, depois de algum tempo, só restávamos nós, as russas, talvez dez ou quinze. Ninguém veio até nós, ofereceu-nos pão nem nos aconselhou.
Ainda assim, havia algumas distinções entre os detentos russos - distinções baseadas mais na ideologia que na etnia. Nina Gagen-Torn registraria que "a clara maioria
das mulheres dos campos considerava aquela sina e aquele sofrimento um infortúnio acidental, sem procurar os motivos". Contudo, para as que "descobriam por si mesmas
algum tipo de explicação para o que acontecia e passavam a acreditar nele, as coisas ficavam mais fáceis". Entre as que tinham uma explicação, estavam principalmente
as comunistas; ou seja, as prisioneiras que continuavam a alegar inocência, professar lealdade à URSS e acreditar, contra todos os indícios, que todas as demais
eram de fato inimigas e deviam ser evitadas. Anna Andreevna se recordaria de que as comunistas se procuravam umas às outras. "Elas se localizavam mutuamente e se
mantinham juntas. Eram gente limpa, soviética, e achavam que todas as restantes eram criminosas." Chegando ao Minlag no começo dos anos 1950, Susanna Pechora conta
que as viu "sentadas num canto e dizendo umas às outras: 'Somos boas soviéticas, viva Stalin, não somos culpadas, e nosso Estado nos livrará da companhia de todas
essas inimigas"'.
Tanto Susanna Pechora quanto Irena Arginskaya (prisioneira em Kengir na mesma época) lembram que a maioria das integrantes desse grupo pertencia ao mesmo segmento
de membros de alto escalão do Partido presos em 1937 e 1938. Na maior parte, eram pessoas mais velhas; Irena lembra que eram freqüentemente agrupadas nos campos
para inválidos, lugares que ainda continham muita gente aprisionada durante o Grande Terror. Anna Larina, mulher do líder soviético Nikolai Bukharin, foi desses
indivíduos que, encarcerados naquela fase anterior, de início se mantiveram fiéis à Revolução. Quando ainda estava na detenção, escreveu um poema para comemorar
o aniversário da Revolução de Outubro:
Embora esteja atrás das grades,
Sentindo a angústia dos condenados,
Ainda assim celebro este dia
Junto com minha feliz pátria.
Hoje tenho uma nova crença:
Retornarei à vida
E de novo marcharei com minha seção do Konsomol,
Ombro a ombro, pela praça Vermelha!
Posteriormente, Anna viria a considerar tais versos "os delírios de uma lunática". Na época, entretanto, ela os recitou para as esposas encarceradas dos velhos bolcheviques,
e estas "reagiram com lágrimas e aplausos comovidos".
Em Arquipélago Gulag, Soljenitsin dedica um capítulo aos comunistas, a quem denomina (de modo não muito generoso) "duplipensantes". O escritor se admirava com a
capacidade desses indivíduos para explicar até a detenção, tortura e reclusão deles próprios como "obra muito astuciosa dos serviços estrangeiros de espionagem",
"sabotagem em enorme escala", "complô da NKVD local" ou "traição". Alguns vinham com uma explicação ainda mais magistral: "Essa repressão é uma necessidade histórica
no desenvolvimento de nossa sociedade". Depois, alguns daqueles legalistas também escreveriam memórias, de bom grado publicadas pelo regime soviético. Em 1964,
por exemplo, Uma história de sobrevivência, romance curto de Boris Dyakov, foi veiculado pelo periódico Oktyabr com a seguinte introdução: "A força da narrativa
de Dyakov reside no fato de que trata de autênticos soviéticos, autênticos comunistas. Em circunstâncias difíceis, eles nunca perderam a humanidade, mantiveram-se
fiéis a seus ideais do Partido e dedicaram-se à pátria". Todorsky, um dos heróis de Dyakov, conta como ajudou um tenente da NKVD a redigir um discurso sobre a história
do Partido. Em outra ocasião, diz ao oficial de segurança do campo que, apesar de seu injusto encarceramento, ele se considera um verdadeiro comunista: "Não sou
culpado de nenhum crime contra a autoridade soviética. Portanto sou, e permanecerei, comunista". O oficial, major Yakovlev, o aconselha a não fazer alarde: "Por
que ficar berrando isso? Você acha que todo mundo aqui no campo adora os comunistas?".
E de fato não adoravam: os abertamente comunistas eram muitas vezes suspeitos de trabalhar, às escondidas ou não, para as autoridades dos campos. Escrevendo sobre
Dyakov, Soljenitsin observa que as memórias dele parecem deixar de fora algumas coisas. Em troca de quê, pergunta, o oficial de segurança Sokovikov concordava em
postar secretamente as cartas de Dyakov, driblando o censor do campo? "Esse tipo de amizade... tinha origem em quê?" Na realidade, os arquivos hoje mostram que
Dyakov fora agente da polícia secreta a vida toda (com o codinome "Pica-pau") e continuara a ser informante no Gulag.
O único grupo que superava os comunistas em matéria de fé absoluta eram os cristãos da Igreja Ortodoxa, assim como os seguidores das várias seitas protestantes que
também sofriam perseguição política na URSS: batistas, testemunhas-de-jeová e variantes russas dessas doutrinas. Eram presença particularmente forte nos campos femininos,
onde as conheciam pela expressão coloquial monashki (freiras). Anna Andreevna recordaria que, no final dos anos 1940, no campo feminino da Mordóvia, "a maioria das
prisioneiras eram devotas" que se organizavam de modo que, "nos dias santos, as católicas trabalhassem para as ortodoxas, e vice-versa".
Como já observamos, algumas dessas seitas se negavam totalmente a cooperar com o Satã soviético, e seus membros não trabalhavam nem assinavam nenhum documento oficial.
Nina Gagen-Torn descreve uma devota que foi libertada por motivo de saúde, mas que se recusou a deixar os campos. "Não reconheço vossa autoridade", disse ao guarda
que se prontificou a dar-lhe os documentos necessários e mandá-la para casa. "Vosso poder é ilegítimo, o anticristo aparece em vossos salvo-condutos [...] Se eu
sair, vós me prendereis outra vez. Não há razão para partir. A finlandesa Aino Kuusinen estava num campo com um grupo de prisioneiras que se recusavam a usar números
de identificação nas roupas; em vista disso, "os números lhes eram marcados na própria pele", e essas mulheres eram obrigadas a comparecer nuas em pêlo às chamadas
da manhã e da noite.
Soljenitsin conta a história (repetida de variadas formas por outros) de um grupo de membros de uma seita que foram levados para Solovetsky em 1930. Rejeitavam tudo
o que viesse do "anticristo", negando-se a usar o dinheiro ou os salvo-condutos soviéticos. Como punição, foram mandados para uma pequena ilha daquele arquipélago,
onde lhes disseram que só receberiam alimento se concordassem em assinar a documentação necessária. Negaram-se a fazê-lo. Dali a dois meses, haviam todos morrido
de inanição. Segundo uma testemunha ocular, o barco seguinte para a ilha "só encontrou cadáveres bicados pelos pássaros".
Mesmo os devotos que trabalhavam não necessariamente se misturavam com os outros presos; às vezes, até se recusavam a falar o que fosse com eles. Aglutinavam-se
nos alojamentos, observando absoluto silêncio ou então entoando suas preces e cânticos nos horários de rigor:
Fiquei atrás das grades
Lembrando como Cristo
Humilde e mansamente carregou Sua pesada Cruz,
Com penitência, até o Gólgota.
Os mais extremados tendiam a despertar sentimentos conflitantes nos outros presos. De modo jocoso, Irena Arginskaya, prisioneira indiscutivelmente laica, lembraria
que "todas as abominávamos", em especial aquelas que, por motivo religiosos, se negavam a tomar banho. Segundo Nina Gagen-Torn, outras prisioneiras se queixavam
daquelas que se recusavam a trabalhar: "A gente trabalha, e elas não! E comem o pão do mesmo jeito!"
Num sentido, porém, os homens e mulheres que chegavam a um campo e na mesma hora se integravam num clã ou seita se mostravam afortunados. Para quem era membro, as
gangues, as nacionalidades mais militantes, os comunistas fiéis e as seitas religiosas proporcionavam de imediato comunidades, redes de auxílio mútuo, companhia.
Já a maior parte dos presos políticos, e a maior parte dos criminosos "ordinários" - a imensa maioria dos habitantes do Gulag -, não se ajustava tão facilmente a
este ou aquele grupo. Então, constatava que assim era mais difícil aprender a sobreviver no campo, a lidar com a moralidade e a hierarquia dali. Sem forte rede de
contatos, essas pessoas tinham de descobrir por si mesmas as regras para melhorar de situação.
15. AS MULHERES E AS CRIANÇAS
A prisioneira que era a enfermeira do alojamento me saudou com um grito: "Corra para ver o que está debaixo do seu travesseiro!"
Meu coração deu um pulo: talvez eu enfim houvesse conseguido minha ração de pão!
Corri para a cama e afastei bruscamente o travesseiro. Debaixo dele, havia três cartas de casa - três cartas inteiras! Fazia seis meses que eu não recebia nenhuma
correspondência.
Minha primeira reação foi de profundo desapontamento. E depois... de horror.
No que eu me transformara se agora um pedaço de pão era mais importante que cartas de minha mãe, meu pai, meus filhos?... Esqueci totalmente o pão e chorei.
Olga Adamova-Sliozberg, Minha jornada.
Cumpriam as mesmas metas de produção e tomavam a mesma sopa aguada. Habitavam o mesmo tipo de alojamento e viajavam nos mesmos vagões de gado. Suas roupas eram quase
idênticas, e seu calçado, igualmente inadequado. Sob interrogatório, não recebiam tratamento diferente. E no entanto... A experiência de homens e mulheres nos campos
não era exatamente a mesma.
Por certo, muitas sobreviventes estão convencidas de que havia muitas vantagens em ser mulher no Gulag. As mulheres eram melhores quando se tratava de tomar cuidados
consigo mesmas, de manter as roupas remendadas e o cabelo limpo. Pareciam mais capazes de subsistir com pouca quantidade de alimento e não sucumbiam tão facilmente
à pelagra e a outras doenças da inanição. Formavam amizades fortes e se ajudavam umas às outras de maneiras que os homens presos não conseguiam reproduzir. Margarete
Buber-Neumann registra que uma das mulheres detidas com ela na prisão Butyrka viera usando um vestido leve de verão que logo ficou em farrapos. As outras detentas
na cela resolveram confeccionar um novo:
Fizeram uma vaquinha e compraram meia dúzia de toalhas de linho russo cru. Mas como cortar o vestido sem tesouras? Um pouco de engenhosidade resolveu o problema.
O molde foi marcado com pontas de fósforo queimado; o tecido foi dobrado seguindo as linhas assim marcadas; e um fósforo aceso foi rapidamente passado pelas dobras.
Quando se desdobrou o tecido, o fogo já o cortara o suficiente nas dobras. Conseguiu-se algodão para linha tirando cuidadosamente fios soltos de outras roupas [...].
Esse vestido feito de toalha (ele se destinava a uma letã gorda) passou de mão em mão e ganhou maravilhosos bordados na gola, nas mangas e na barra. Quando enfim
ficou pronto, foi umedecido e dobrado com esmero. Naquela noite, a feliz proprietária dormiu sobre ele [para "passá-lo"]. Acredite se quiser, mas, quando ela o mostrou
de manhã, estava realmente lindo; não teria envergonhado a vitrine de uma loja da moda.
Contudo, entre muitos ex-presos do sexo masculino, prevalece o ponto de vista oposto: moralmente, as mulheres decaíam mais depressa que os homens. Graças ao sexo,
dispunham de oportunidades especiais para obter melhor classificação laborai, ganhando trabalho mais fácil e, com isso, status superior nos campos. Em conseqüência,
desorientavam-se, perdendo o rumo no mundo áspero do Gulag. Gustav Herling escreve, por exemplo, sobre uma "cantora da Opera de Moscou, de cabelos negros", que foi
presa por "espionagem". Dada a severidade da sentença, designaram-na para o trabalho na floresta tão logo chegou ao Kargopollag.
Infelizmente para ela, foi desejada por Vanya, o urka [mafioso] baixinho que estava encarregado de sua turma de trabalho. Foi posta para descascar troncos com um
machado enorme, que ela mal conseguia levantar. À noite, tendo ficado muito atrás dos vigorosos lenhadores, chegou à zona prisional quase sem forças para arrastar-se
até a cozinha e pegar sua "primeira caldeirada" [a ração de sopa mais fraca] [...] era óbvio que estava febril, mas o enfermeiro era amigo de Vanya e não quis liberá-la
do trabalho.
Ela acabou cedendo, primeiro para Vanya e finalmente para "algum chefe do campo" que a "trouxe do monturo e a colocou atrás de uma escrivaninha no escritório da
contabilidade".
Havia sinas piores, como Herling também descreve. Ele fala, por exemplo, de uma moça polonesa à qual um "júri informal de urki" deu nota bem alta. De início,
ela saía para trabalhar de cabeça erguida c, com olhar dardejante de Cúria, repelia todo homem que se aventurasse perto dela. A noitinha, voltava mais humilde do
trabalho, mas ainda intocável e recatadamente altiva. Ia direto da guarita de entrada para a cozinha, a fim de buscar sua porção de sopa, e não tornava a sair do
alojamento das mulheres durante a noite. Por conseguinte, parecia que não seria logo vítima das caçadas noturnas na zona prisional.
Contudo, esse esforço inicial foi inútil. Após semanas de zelosa vigilância de seu supervisor, que a proibia de furtar uma cenoura ou batata podre que fosse no armazém
onde ela trabalhava, a moça desistiu. Uma noite, o homem entrou n,o alojamento de Herling e, "sem dizer palavra, atirou em meu beliche uma calcinha rasgada". Foi
o começo da transformação:
A partir daquele momento, a moça sofreu uma mudança completa. Já não se apressava para ir pegar a sopa na cozinha; após o retorno do trabalho, vagava pela zona prisional
até tarde da noite, como uma gata no cio. Quem quisesse a possuía, no beliche, debaixo do beliche, nos cubículos à parte dos especialistas técnicos, no depósito
de roupas. Sempre que topava comigo, ela olhava para o outro lado e franzia convulsivamente os lábios. Certa vez, ao entrar no depósito de batatas no centro do campo,
eu a surpreendi numa pilha de batatas com o corcunda Levkovich, o mestiço que era chefe de turma da 56a; a moça teve um acesso de choro, e quando voltou para a zona
prisional à noite estava segurando as lágrimas, com as mãozinhas crispadas.
Essa é a versão de Herling para uma história contada com freqüência - uma história que, é preciso dizer, sempre parece um tanto diferente quando narrada do ponto
de vista da mulher. Outra versão é contada, por exemplo, por Tamara Ruzhnevits, cujo "romance" no campo começou com uma carta -"uma carta-padrão de amor, uma carta
tipicamente dos campos" -, de Sasha, jovem com o confortável trabalho de sapateiro, o que o transformava em parte da aristocracia do lugar. Era uma carta curta e
direta: "Vamos morar juntos, e aí eu ajudo você". Alguns dias depois de enviá-la, Sasha puxou Tamara de lado, querendo saber a resposta. "Você vai ou não vai morar
comigo?", perguntou. A reposta foi negativa. Ele a espancou com um bastão de metal. Depois, carregou-a para o hospital, onde o status especial de sapateiro lhe dava
influência, e mandou a equipe médica cuidar bem de Tamara. Ela ficou ali vários dias, recuperando-se dos ferimentos. Ao receber alta, tendo tido bastante tempo para
pensar no assunto, voltou para Sasha. Do contrário, ele a teria espancado de novo.
"Assim começou minha vida doméstica", escreveria Tamara. Os benefícios foram imediatos. "Ganhei saúde, passei a usar bons sapatos, já não precisava mais vestir sabe-se
lá que trapos - tinha casaco novo, calças novas [...] até chapéu novo." Muitas décadas depois, descreveria Sasha como "meu primeiro verdadeiro amor". Infelizmente,
ele logo foi mandado para outro campo, e Tamara nunca mais o viu. Pior: o homem responsável pela transferência de Sasha também desejava Tamara. Já que "não havia
saída", ela começou a dormir com ele também. Embora não descreva nenhum sentimento amoroso pelo homem, Tamara recorda que esse arranjo tinha igualmente suas vantagens:
ganhou passe para deslocar-se fora do campo sem guarda e teve um cavalo só para si.
O relato de Tamara Ruzhnevits, da mesma maneira que o de Gustav Herling, pode ser considerado uma história de degradação moral. Ou, então, de sobrevivência.
Do ponto de vista dos administradores, nada disso devia acontecer. Em princípio, homens e mulheres nem podiam estar juntos no mesmo campo, e há presos que dizem
não ter posto os olhos numa mulher durante anos e anos. Tampouco os comandantes de campo tinham alguma vontade especial de contar com prisioneiras. Fisicamente mais
fracas, eram suscetíveis a tornar-se um peso morto quando se tratava de cumprir as metas produtivas, e, por isso, alguns comandantes tentavam rejeitá-las. Em certa
altura, em fevereiro de 1941, a direção do Gulag até mandou carta a toda a liderança da NKVD e todos os comandantes de campo, instruindo-os severamente a aceitar
comboios de prisioneiras e arrolando todas as atividades em que as mulheres poderiam atuar com proveito. A carta menciona a indústria leve e a indústria têxtil;
a carpintaria e a metalurgia; certos tipos de serviço madeireiro; a carga e descarga de mercadorias.
Talvez por causa das objeções dos comandantes dos campos, o número de mulheres que eram de fato enviadas para lá sempre permaneceu relativamente baixo (tal qual,
aliás, o número de mulheres executadas durante os expurgos de 1937-8). Segundo as estatísticas oficiais, em 1942, por exemplo, só uns 13% da população do Gulag eram
mulheres. Em 1945, essa proporção se elevou a 30%, em parte devido ao enorme contingente de presos do sexo masculino que foram convocados e mandados para a frente
de batalha; e em parte devido às leis que proibiam os operários fabris de largar seus empregos - e que causaram a prisão de muitas jovens. Em 1948, as mulheres
eram 22%, tornando depois a cair, agora para 17%, em 1951 e 1952. E mesmo esses números não refletem a verdadeira situação, pois as mulheres tinham muito mais probabilidade
de cumprir pena nas "colônias" de trabalho leve. Nos grandes campos industriais do extremo norte, elas eram ainda menos numerosas, e sua presença, ainda mais rara.
No entanto, o número menor implicava que as mulheres - assim como o alimento, o vestuário e outros pertences - estavam quase sempre em falta. Por isso, embora talvez
apresentassem pouco valor econômico para quem compilava as estatísticas de produção dos campos, elas tinham outro tipo de valor para os presos, os guardas e os trabalhadores
livres do Gulag. Nos campos em que os contatos entre presos de ambos os sexos eram mais ou menos livres - ou nos lugares em que, na prática, certos homens tinham
acesso aos campos femininos -, as mulheres com freqüência ouviam cantadas, sofriam abordagens atrevidas ou, mais comumente, recebiam propostas de alimento e trabalho
fácil em troca de favores sexuais. Isso talvez não fosse característica exclusiva do Gulag. Em 1999, por exemplo, um relatório da Anistia Internacional sobre presidiárias
americanas revelou casos de guardas e presos que estupravam detentas; de presos que subornavam guardas para ter acesso a elas; de mulheres que sofriam revistas íntimas
de guardas do sexo masculino. No entanto, as estranhas hierarquias sociais do Gulag levavam mulheres a ser estupradas e humilhadas num grau incomum até para o mundo
das prisões.
Para começo de conversa, o destino da prisioneira dependia muito de seu status e posição nos vários clãs do campo. Dentre a bandidagem, as mulheres se submetiam
a um sistema de normas e rituais complexos e eram tratadas com muito pouco respeito. Segundo Variam Shalamov, "o criminoso de terceira ou quarta geração aprende
desde a infância a ver as mulheres com desprezo [...] a mulher, ser inferior, fora criada apenas para satisfazer o apetite animal do criminoso, para ser o alvo de
piadas grosseiras e a vítima de surras públicas quando o bandido resolvesse 'agitar um pouco'". Na prática, as prostitutas "pertenciam" a chefões e podiam ser trocadas,
mercadejadas e até herdadas por algum irmão ou amigo do criminoso, caso este fosse morto ou transferido para outro campo. Quando ocorria uma troca de donos, "em
geral as partes interessadas não caíam no tapa, e a prostituta sujeitava-se a dormir com o novo amo. Na bandidagem, não havia nenhum ménage à trois em que dois homens
compartilhassem a mesma mulher Tampouco era possível a uma bandida viver com alguém que não fosse criminoso".
As mulheres não eram os únicos alvos. Entre os criminosos de carreira, o homossexualismo parece ter-se organizado segundo regras igualmente brutais. Na corte de
alguns chefões, havia efebos, junto com as "esposas" que o criminoso possuía no campo, ou mesmo no lugar delas. Thomas Sgovio cita um chefe de turma de trabalho
que tinha por "mulher" um rapaz que recebia comida extra em troca de seus favores. Todavia, é difícil descrever as normas que regiam a homossexualidade masculina
nos campos, já que os memorialistas só mencionam o tema muito raramente - talvez porque, na cultura russa, o homossexualismo continue em parte a ser tabu e as pessoas
prefiram não escrever sobre ele. Ademais, no Gulag, o homossexualismo parece ter-se restringido sobretudo aos bandidos - e poucos destes nos legaram memórias.
Entretanto, sabemos que, nos anos 1970 e 80, os criminosos soviéticos desenvolveram complicadíssimas regras de etiqueta homossexual. Os "passivos" eram condenados
ao ostracismo pelo resto da sociedade prisional, comendo em mesas separadas e não dirigindo a palavra aos outros homens. Regras semelhantes, embora raras vezes
descritas, parecem ter existido em alguns lugares já no final dos anos 30, quando PyotrYakir (então com quinze anos) testemunhou fenômeno análogo numa cela para
menores delinqüentes. De início, ficou estarrecido ao ouvir os demais garotos falarem de suas experiências sexuais e achou que estivessem exagerando,
mas estava enganado. Um dos rapazes guardara a ração de pão até a noite, quando perguntou a Mashka (que não comera nada o dia todo): "Você quer uma mordida?"
"Quero", respondeu Mashka.
"Então abaixe as calças."
A coisa aconteceu num canto, o qual era difícil de enxergar pela vigia da porta, mas à vista de todos na cela. Ninguém se surpreendeu, e fingi não estranhar nada
daquilo. Houve muitos outros episódios desse tipo enquanto estive ali; os passivos eram sempre os mesmos garotos. Eram tratados como párias; não podiam beber da
caneca coletiva e constituíam alvo de humilhações.
Nos campos, curiosamente, o lesbianismo era mais franco ou, pelo menos, mais amiúde citado. Entre as criminosas, também era muitíssimo ritualizado. As lésbicas eram
designadas pelo pronome neutro (ono) e se dividiam entre as mais femininas ("éguas") e as mais masculinas ("maridos"). Segundo uma descrição, as primeiras eram às
vezes "verdadeiras escravas", fazendo a limpeza para os "maridos" e cuidando deles, os quais adotavam apelidos masculinos e quase sempre fumavam. Falavam abertamente
do lesbianismo e até o cantavam:
Ah, obrigada, Stalin,
Você fez de mim uma baronesa.
Sou tanto vaca quanto touro,
Fêmea e macho.
Também se identificavam pela indumentária e pelo comportamento. Uma polonesa escreveria:
Todo o mundo sabe de casais assim, e elas não fazem nenhuma tentativa de ocultar seus hábitos. Em geral, quem faz o papel de homem usa roupas masculinas, corta o
cabelo bem curto e fica com as mãos nos bolsos. Quando um desses casais é repentinamente tomado pela paixão, as duas se levantam correndo de seus assentos, largam
as máquinas de costura, correm uma atrás da outra e, em meio a beijos desvairados, jogam-se no chão.
Valerii Frid menciona criminosas encarceradas que, vestidas de homem, faziam-se passar por hermafroditas. Uma "tinha cabelo curto, era bonitinha e usava calças de
oficial"; outra parece ter mesmo tido uma deformação genital. Outra prisioneira ainda descreveria o "estupro" lésbio: viu um casal perseguir uma "mocinha quieta
e recatada" atrás dos beliches, onde lhe romperam o hímen. Já nos círculos intelectuais, o lesbianismo parece ter sido visto com menos benevolência. Uma ex-prisioneira
política o lembraria como "prática absolutamente revoltante". Mas, embora costumasse ser mais disfarçado no ambiente das "políticas", também existia entre estas,
freqüentemente entre mulheres que tinham maridos e filhos em liberdade. Susanna Pechora me contou que, no Minlag, campo predominantemente habitado por presos políticos,
as relações lésbicas "ajudavam algumas pessoas a sobreviver".
Voluntários ou forçados, homossexuais ou heterossexuais, os relacionamentos carnais nos campos compartilhavam, na maioria dos casos, o mesmo ambiente quase sempre
brutal. Forçosamente, ocorriam com uma sem-cerimônia que muitos presos achavam escandalosa. Casais "arrastavam-se por baixo do arame farpado e faziam amor no chão,
junto à latrina", disse um ex-prisioneiro. "O beliche coletivo segregado das mulheres vizinhas por uma cortina de trapos era cena clássica nos campos", escreve
Soljenitsin. Uma vez, Isaak Filshtinskii acordou no meio da noite e deparou com uma mulher que dormia no leito ao lado do seu. Ela pulara o muro de fininho para
ter relações com o cozinheiro do campo. "Afora eu, ninguém dormira naquela noite: tinham ficado ouvindo tudo com a maior atenção." A prisioneira Hava Volovich conta
que "coisas que uma pessoa em liberdade pensaria cem vezes antes de fazer aconteciam ali com a mesma naturalidade que entre gatos de rua". Outro preso lembra que
o amor, em especial entre os bandidos, era "animalesco".
De fato, o sexo era tão público que o tratavam com certa apatia: para alguns, o estupro e a prostituição se tornaram parte da rotina diária. Numa ocasião, Edward
Buca estava trabalhando numa serraria junto com uma turma feminina quando chegou um grupo de bandidos condenados. Eles "agarraram as mulheres que queriam e as deitaram
na neve, ou as possuíram contra uma pilha de toras. As mulheres pareciam acostumadas e não ofereceram resistência. Tinham sua própria chefe de turma, mas ela não
objetava a essas interrupções, que, aliás, se afiguravam quase parte do trabalho". Lev Razgon também conta a história de uma moça loura, muito nova, com a qual
por acaso deparou quando ela varria o pátio de uma unidade médica de campo de concentração. Na época, Razgon era trabalhador livre, em visita a um médico seu conhecido;
e, embora não estivesse com fome, ofereceram-lhe um lauto almoço. Ele deu a comida à moça, que "comeu em silêncio, com asseio e educação, podendo-se ver que fora
criada em família". De fato, fez Razgon lembrar-se da própria irmã.
A mocinha acabou de comer e empilhou os pratos direitinho na bandeja de madeira. Depois, ergueu o vestido, tirou a calcinha e, segurando-a, voltou-se para mim sem
sorrir.
"No chão ou em outro lugar", perguntou.
De início sem entender minha reação, e depois amedrontada com esta, a jovem se justificou, outra vez sem sorrir de modo algum: "As pessoas não me dão comida de outro
jeito..."
Em alguns campos, também acontecia de certos alojamentos femininos se tornarem pouco menos que bordéis escancarados. Soljenitsin descreve um que era
insuperavelmente sujo e dilapidado. Havia um cheiro opressivo, e os beliches não tinham roupa de cama. Existia uma proibição oficial de que homens entrassem ali,
mas ela não era levada em conta, e ninguém a impunha. Lá, havia não só homens adultos, mas também adolescentes, meninos de doze a treze anos que afluíam para aprender
[...]. Tudo ocorria muito sem cerimônia, como na natureza, à vista de todos e em vários lugares ao mesmo tempo. Para as mulheres de lá, as únicas defesas possíveis
eram a velhice e a feiúra evidentes - nada mais.
Ainda assim... Em muitas memórias, indo diretamente contra os relatos de vulgaridade e sexo brutal, vêem-se histórias igualmente incríveis de amor nos campos, algumas
das quais surgiram simplesmente da vontade das mulheres de protegerem-se. Conforme as normas idiossincráticas da vida no Gulag, mulheres que tinham um "marido dos
campos" costumavam ser deixadas em paz pelos outros homens, num sistema que Gustav Herling denomina "o peculiar jus primae noctis do campo de concentração". Não
eram necessariamente "casamentos" de iguais: por vezes, mulheres respeitáveis viviam com bandidos. Tampouco se davam necessariamente de livre e espontânea vontade,
como bem mostra o exemplo de Tamara Ruzhnevits. Apesar disso, não seria rigorosamente correto defini-los como prostituição. Antes, escreve Valerii Frid, eram braki
po raschetu, casamentos de interesse, "que às vezes eram também por amor". Mesmo se tais relacionamentos surgiam por motivos tão-somente práticos, os detentos os
levavam a sério. "O zek se referia à amásia mais ou menos permanente como 'minha esposa' ", relata Frid. "E ela o chamava de 'meu marido'. Não se dizia isso de gozação:
os relacionamentos no campo humanizavam nossas vidas."
E, por estranho que possa talvez parecer, presos que não estavam demasiado exaustos ou emaciados realmente procuravam o afeto amoroso. Nas memórias de Anatolii Zhigulin,
inclui-se a descrição do romance que manteve com uma alemã, prisioneira política, a "boa e alegre Marta, de olhos cinzentos e cabelos louros". Posteriormente, Zhigulin
soube que ela tivera um filho, o qual ganhou o nome Anatolii. (Isso foi no outono de 1951; dado que à morte de Stalin se seguiria uma anistia geral para os presos
estrangeiros, Zhigulin presumia que "Marta e o menino, desde que não tivesse ocorrido algum infortúnio, houvessem voltado para casa".) Por vezes, as memórias de
Isaac Vogelfanger, médico de campo de concentração, parecem uma ficção romântica em que o herói pisa em ovos entre os perigos do affaire com a esposa de um administrador
e as alegrias do verdadeiro amor.
Fome de amor. Pela cerca, presos espiam o setor feminino do campo. Desenho de Yula-Imar Sooster. Karaganda, 1950
Pessoas privadas de tudo ansiavam tão desesperadamente por vínculos sentimentais que algumas mergulhavam fundo em platônicos amores epistolares. Isso se aplica em
particular ao final da década de 1940, nos campos especiais para presos políticos, onde homens e mulheres eram mantidos rigorosamente separados. No Minlag (um de
tais campos), prisioneiros e prisioneiras trocavam bilhetes por intermédio de colegas no hospital, que era compartilhado pelos dois sexos. Os presos também organizaram
uma "caixa de correio" secreta no setor ferroviário onde as turmas femininas trabalhavam. De poucos em poucos dias, uma mulher empregada ali fingia ter esquecido
um casaco ou outro objeto, ia até a caixa e pegava e deixava cartas. Mais tarde, um dos homens ia apanhá-las e depositar outras. Também existiam outros métodos:
"Num horário específico, uma pessoa escolhida numa das zonas prisionais atirava cartas dos homens para as mulheres, ou das mulheres para os homens. Eram os 'Correios'".
Segundo Leonid Sitko, tais cartas eram escritas em minúsculos pedaços de papel, com letra ínfima. Todos as assinavam com nome falso: Sitko era "Hamlet", e a namorada,
"Marsianka". Tinham sido "apresentados" por outras mulheres, as quais disseram a Sitko que ela estava deprimidíssima, pois seu bebê pequeno lhe fora tirado após
a prisão. Sitko começou a escrever para ela, e uma vez até conseguiram encontrar-se, dentro de uma mina abandonada.
Na busca por alguma espécie de intimidade, outros elaboravam métodos ainda mais surreais. No campo especial de Kengir, havia pessoas - quase na totalidade presos
políticos, completamente privados de contato com os amigos, a família e os cônjuges que haviam deixado em casa - que desenvolviam complexas relações com gente que
nunca tinham visto. Um muro separava o campo feminino do masculino, mas alguns pares até casavam sem nunca se terem encontrado. A mulher ficava de um lado do muro
e o homem, do outro; trocavam-se votos, e um padre encarcerado registrava a cerimônia num pedaço de papel.
Esse tipo de amor persistia, mesmo depois que a administração do campo ergueu ainda mais o muro, cobriu-o com arame farpado e proibiu os presos de aproximar-se dele.
Ao descrever tais matrimônios realizados às escuras, até Soljenitsin abre temporariamente mão do ceticismo com que encara quase todos os outros relacionamentos nos
campos: "Nesse matrimônio com uma pessoa desconhecida do outro lado do muro [...] ouço um coro de anjos. E como a contemplação pura e abnegada de corpos celestes.
É também algo demasiado sublime para estes tempos de calculismo egoísta".
Se amor, sexo, estupro e prostituição eram parte da vida no Gulag, segue-se que gravidez e parto também o eram. Junto com minas e canteiros de obras, turmas madeireiras
e celas punitivas, alojamentos de presos e vagões de gado, havia maternidades e campos para grávidas - assim como berçários.
Nem todas as crianças que apareciam nessas instituições eram nascidas nos campos. Algumas haviam sido "presas" com as mães. As normas que regiam essa prática sempre
foram pouco claras. A ordem operacional de 1937 que determinava a detenção de esposas e filhos de "inimigos do povo" proibia categoricamente a captura de grávidas
e lactantes. Por outro lado, uma ordem de 1940 dizia que as mães podiam ficar com os bebês por um ano e meio, "até eles não precisarem mais de leite materno", quando
então seriam colocados em orfanatos ou entregues a parentes.
Na prática, tanto grávidas quanto lactantes eram freqüentemente encarceradas. Ao fazer exames de rotina num comboio de presos recém-chegado, um médico de campo deparou
com uma grávida que já sentia as contrações. Fora detida no sétimo mês. Outra, Natalya Zaporozhets, foi colocada num traslado de presos quando estava no oitavo
mês: após sofrer trancos em trens e carrocerias de caminhão, daria à luz um nati-morto. A artista e memorialista Evfrosiniya Kersnovskaya ajudou no parto de bebê
que nasceu num trem de traslado.
Já dissemos que crianças pequenas eram "presas" com os pais. Uma detenta, encarcerada nos anos 1920, escreveu uma ácida carta de protesto a Dzerzhinsky, agradecendo-lhe
ter "prendido" seu filho de três anos: a prisão, dizia, era preferível ao orfanato, que ela chamava de "fábrica de anjinhos". Centenas de milhares de crianças foram,
para todos os fins e efeitos, aprisionadas junto com os pais durante as duas grandes ondas de deportação, a primeira a dos kulaks, no começo da década de 1930, a
outra a das etnias e nacionalidades "inimigas" durante e após a Segunda Guerra Mundial.
Para essas crianças, o choque da nova situação permaneceria com elas pelo resto da vida. Uma prisioneira polonesa recordaria que uma mulher em sua cela estava acompanhada
do filho de três anos: "O menino, apesar de bem-comportado, era frágil e macambúzio. Nós o entretínhamos o melhor que podíamos, com histórias e contos de fada, mas
ele nos interrompia de tempos em tempos, perguntando: 'Estamos na cadeia, né?'"
Muitos anos depois, um filho de kulaks degredados se lembraria de sua provação nos vagões de gado: "As pessoas ficavam tresloucadas [...]. Não faço idéia de quantos
dias viajamos. No vagão, sete pessoas morreram de fome. Chegamos a Tomsk, e nos tiraram para fora, diversas famílias. Também descarregaram vários cadáveres - crianças,
jovens, idosos".
Apesar das privações, havia mulheres que, de modo proposital e até cínico, engravidavam nos campos de concentração. Em geral, eram as criminosas profissionais ou
as condenadas por delitos de pouca monta as que desejavam engravidar para ser dispensadas do trabalho pesado, receber alimentação ligeiramente melhor e talvez beneficiar-se
das anistias periodicamente concedidas a mães com filhos pequenos. Tais anistias (houve uma em 1945 e outra em 1948, por exemplo) em geral não se aplicavam às condenadas
por crimes contra-revolucionários. "A vida ficava mais fácil quando a pessoa engravidava", disse-me Lyudmila Khachatryan, para explicar por que as mulheres dormiam
de bom grado com seus carcereiros.
Outra se recordaria de ter ouvido o rumor de que todas as mulheres com filhos pequenos (as mamki, na gíria prisional) seriam soltas. Ela então ficou grávida de caso
pensado. Nadezhda Joffe, prisioneira que engravidara do marido após haver recebido autorização para um encontro com ele, escreveria que suas companheiras no "alojamentos
das amas-de-leite" de Magadan simplesmente "não tinham nenhum instinto maternal" e largavam seus bebês tão logo podiam.
De modo talvez nada surpreendente, nem todas as mulheres que descobriam ter engravidado nos campos queriam levar a gestação adiante. O comando geral do Gulag parece
ter sido ambivalente no que se referia ao aborto, por vezes permitindo-o e por vezes acrescentando outra condenação à pena das mulheres que tentavam praticá-lo.
Tampouco está muito claro quão freqüentes eram essas interrupções forçadas da gravidez, pois só muito raramente são mencionadas: em dúzias de entrevistas e memórias,
ouvi ou li apenas dois relatos. Numa entrevista, Anna Andreevna me falou da mulher que "enfiou pregos em si mesma, sentou-se e trabalhou à máquina de costura; por
fim, começou a sangrar bastante". Outra mulher descreveu de que modo um médico de seu campo procurou pôr fim à gravidez dela:
Imaginem a cena. É noite. Está escuro... Andrei Andreevich tenta me fazer abortar, sem nenhum instrumento, usando só as mãos, cobertas de iodo. Mas está tão nervoso
que não sai nada. Sinto tanta dor que nem consigo respirar, mas agüento sem dar um pio, para que ninguém nos ouça. Aí, a dor se torna insuportável, e eu grito: "Pare!"
O procedimento inteiro fica interrompido durante dois dias. Enfim, sai tudo - o feto e um bocado de sangue. Por isso nunca fui mãe.
Mas havia as que queriam os filhos, e muitas vezes a tragédia era sua sina. Indo contra tudo o que se escreveu sobre o egoísmo e a venalidade das mulheres que engravidavam
no Gulag, sobressai a história de Hava Volovich. Prisioneira política encarcerada em 1937, era extremamente solitária nos campos e resolveu ficar grávida e dar à
luz.
Embora Hava não sentisse nenhum amor em especial pelo pai da criança, esta, uma menina chamada Eleonora, nasceu em 1942, num campo sem instalações especiais para
mães.
Ali, havia três mães, e nos deram um cômodo minúsculo no alojamento. Das paredes e do teto, os percevejos se derramavam como areia; passávamos a noite toda afastando-os
dos bebês. De dia, precisávamos sair para o serviço e confiávamos as crianças a qualquer velha que encontrássemos que houvesse sido dispensada do trabalho; então,
essas mulheres serviam-se calmamente do alimento que tínhamos deixado para os pequenos.
No entanto, escreve Hava,
Toda noite, um ano inteiro, fiquei junto ao berço, catando percevejos e fazendo orações. Rezava para que Deus prolongasse meu tormento por cem anos se isso garantisse
que eu não me separaria de minha filha. Rezava para que me visse libertada com ela, mesmo que eu me tornasse apenas uma indigente ou aleijada. Rezava para que eu
conseguisse criá-la até a idade adulta, mesmo que eu precisasse rastejar aos pés das pessoas e implorar-lhes esmolas. Mas Deus não atendeu a minhas preces. Meu bebê
mal começara a andar, eu mal ouvira suas primeiras palavras, a maravilhosa e alentadora palavra "Mamãe", quando fomos todas trajadas com farrapos (apesar do inverno
gelado), amontoadas num vagão de carga e transferidas para o "campo das mães". E ali o meu anjinho rechonchudo de cachos dourados se tornou um fantasma pálido com
sombras azuladas debaixo dos olhos e feridas nos lábios inteiros.
Hava foi colocada para trabalhar primeiro numa turma madeireira e depois numa serraria. A noite, levava para o campo um pequeno feixe de lenha, que dava às babás
no berçário. Em troca, deixavam-na às vezes ficar com a filha fora dos horários de visita.
Eu via as babás acordarem as crianças pela manhã. Elas as obrigavam a sair das camas geladas com safanões e pontapés [...] empurrando-as aos murros e xingando-as
de modo pesado, tiravam-lhe os camisolões e as lavavam na água gelada. Os bebês não ousavam nem chorar. Davam fungadelas, como velhos, e soltavam pios baixinhos.
Aqueles pios medonhos vinham dos berços durante dias, sem parar. Crianças já com idade suficiente para sentar ou engatinhar ficavam deitadas de costas, pressionando
os joelhinhos contra a barriga, fazendo aqueles sons esquisitos, semelhantes a arrulhos abafados.
Uma babá tinha a seu cargo dezessete crianças e, com isso, mal dispunha de tempo para manter todas trocadas e alimentadas, para nem falarmos de devidamente cuidadas.
A babá trazia da cozinha uma tigela de mingau fumegante e a repartia entre vários pratos. Apanhava o bebê mais próximo, forçava-lhe os bracinhos para trás, amarrava-os
com uma toalha de banho e começava a enfiar colheradas de mingau quente goela abaixo da criança, não lhe dando tempo de engolir, exatamente como se estivesse alimentando
um peru.
Eleonora começou a definhar.
Em algumas de minhas visitas, achei machucaduras em seu corpinho. Nunca me esquecerei de como ela se agarrava a meu pescoço com as mãos magrinhas e gemia: "Mamãe,
quero casa!" Ela não se esquecera do muquifo onde viera à luz e onde ficara com a mãe o tempo todo...
A pequena Eleonora, que agora tinha quinze meses, logo percebeu que seus rogos de "casa" eram inúteis. Parou de esticar os braços para mim quando a visitava; dava-me
as costas, em silêncio. No último dia de vida, quando a levantei (deixaram que eu a amamentasse), ela ficou olhando para longe, de olhos arregalados, e então começou
a bater com suas mãozinhas crispadas em meu rosto e a arranhar e morder meu seio. Em seguida, apontou para o berço, querendo voltar a ele.
À noite, quando voltei com o feixe de lenha, seu berço estava vazio. Eu a encontrei no necrotério, onde jazia nua entre os cadáveres dos presos adultos. Ela passara
um ano e quatro meses neste mundo e morrera em 3 de março de 1944. [...] Essa é a história de como, ao ter dado uma única vez à luz, cometi o pior dos crimes.
Nos arquivos do Gulag, conservaram-se fotos do tipo de berçário descrito por Hava Volovich. Um dos álbuns fotográficos se inicia com a seguinte introdução:
O sol brilha sobre a pátria stalinista desses pequenos. A nação está repleta de amor pelos líderes, e nossas maravilhosas crianças são felizes tal qual toda a juventude
do país. Aqui, em leitos amplos e aconchegantes, dormem os novos cidadãos de nosso país. Tendo sido alimentados, repousam tranqüilos e, com certeza, têm bons sonhos.
As fotos desmentem as legendas. Numa delas, uma enfiada de lactantes, com os rostos cobertos por máscaras brancas - prova das práticas higiênicas no campo -, senta-se
num banco com olhar sério sem nenhum sorriso, segurando seus bebês. Em outra, todas as crianças estão indo para a caminhada da noitinha. Enfileiradas, não parecem
mais espontâneas que as mães.
Em muitas fotos, as crianças estão de cabelo rapado, presumivelmente para evitar piolhos, e o efeito disso era que ficavam parecendo pequenos presos, coisa que,
na prática, eram consideradas mesmo. "O berçário também era parte do complexo do campo", escreveria Evgeniya Ginzburg. "Tinha sua própria guarita, seus próprios
portões, seus próprios barracões, seu próprio arame farpado."
Em algum nível, a direção do Gulag em Moscou deve ter estado ciente de quão terrível era a vida nos campos para as crianças que viviam ali. No mínimo, sabemos que
os inspetores transmitiam a informação: um relatório de 1949 sobre a condição das mulheres nos campos assinalava de maneira desaprovadora que, das 503 mil prisioneiras
do sistema, 9.300 estavam grávidas e outras 23.790 se viam acompanhadas de filhos pequenos. "Levando em conta a influência negativa sobre a saúde e a educação das
crianças", o relatório argumentava em favor da soltura antecipada das mães, assim como das mulheres que haviam deixado filhos em casa, num total (quando excetuadas
as reincidentes e as prisioneiras políticas contra-revolucionárias) de umas 70 mil mulheres.
De tempos em tempos, realizavam-se tais anistias. Contudo, pouco melhorava a vida das crianças que ficavam. Pelo contrário: dado que não contribuíam com nada para
a produtividade do campo, sua saúde e seu bem-estar estavam bem embaixo na lista de prioridade dos comandantes, e elas habitavam as construções mais precárias, geladas
e velhas. Um inspetor verificou que, no berçário de um campo, a temperatura nunca se elevava acima dos onze graus; outro descobriu um berçário em que a tinta das
paredes estava descascada e não havia absolutamente nenhuma iluminação, nem mesmo a querosene. Um relatório do Siblag de 1933 dizia que no campo seriam necessários
mais setecentos pares de calçado infantil, mais setecentos casacos infantis compridos e mais novecentos conjuntos de talheres. E quem trabalhava ali não era necessariamente
qualificado. Ao contrário: os serviços de berçário eram para aquelas "prisioneiras de confiança" e, assim, costumavam ser atribuídos a criminosas. Nadezhda Joffe
escreve que, "por hora a fio, ficavam debaixo da escada com os 'maridos'; ou, então, simplesmente saíam, enquanto as crianças, sem alimento e sem cuidados, adoeciam
e começavam a morrer".
Tampouco as mães, cuja gravidez já custara um bocado ao campo, costumavam ser autorizadas a compensar tal negligência - supondo-se que elas realmente desejassem
isso. Faziam-nas voltar ao trabalho tão logo era possível, e só de má vontade lhes davam folga para amamentar. Em geral, eram simplesmente liberadas do trabalho
de quatro em quatro horas e, ainda com as mesmas roupas sujas, tinham quinze minutos com os filhos, sendo depois mandadas de volta; o resultado era que as crianças
continuavam com fome. Às vezes, não se permitia nem isso. Um inspetor do Gulag citou o caso de uma mulher que, por causa de suas obrigações no trabalho, chegara
alguns minutos atrasada para amamentar o bebê; negaram-lhe acesso a ele. Numa entrevista, a ex-supervisora do berçário de um campo me disse (fazendo pouco caso)
que as crianças que não conseguiam mamar o que deviam nessa (segundo ela) meia hora recebiam das babás o resto de alguma mamadeira.
A mesma mulher também confirmou descrições que prisioneiras fizeram de outro tipo de crueldade: tão logo acabavam de amamentar, as mulheres eram freqüentemente proibidas
de manter qualquer outro contato com as crianças. A ex-supervisora contou que, em seu campo, proibira pessoalmente todas as mães de caminharem com os filhos, alegando
que elas, sendo mulheres condenadas, poderiam machucá-los. Afirmou ter visto uma mãe dar ao filho açúcar com fumo, para assim envenená-lo. Outra, ainda segundo ela,
tirara de propósito os sapatos do filho na neve. "Eu era responsável pelas taxas de mortalidade infantil no campo", disse-me, explicando por que tomara medidas para
manter as mães à distância. "Aquelas crianças eram um ônus para elas, que assim desejavam matá-las." A mesma lógica talvez tenha levado outros comandantes a proibir
mães de verem os filhos. No entanto, é igualmente possível que tais normas fossem outro produto da crueldade irrefletida dos administradores: providenciar para que
as mães vissem os filhos representava um incômodo, e, por isso, proibia-se tal prática.
Eram previsíveis as conseqüências de separar dos pais crianças em tão tenra idade. Havia incontáveis epidemias entre elas. As taxas de mortalidade infantil eram
extremamente altas - tanto que, conforme também registram os relatórios de inspeção, elas muitas vezes eram deliberadamente ocultadas. Mas mesmo as crianças que
sobreviviam à primeira idade tinham pouca chance de levar uma existência normal nos berçários. Algumas talvez tivessem a sorte de ser tratadas pelo tipo mais bondoso
de prisioneira transformada em babá. Outras não. A própria Evgeniya Ginzburg trabalhou num berçário do Gulag e descobriu, ao chegar lá, que nem as crianças mais
velhas sabiam falar:
Só algumas das que tinham quatro anos conseguiam articular umas poucas palavras, esparsas e desarticuladas. Gemidos, mímica e socos eram os principais meios de comunicação.
"Como se pode esperar que falem? Quem estava lá para ensiná-los?", explicou Anya, sem alterar-se. "No grupo dos mais novos, passam o tempo todo deitados nos berços.
Ninguém os tira de lá, mesmo quando se esgoelam de tanto chorar. É proibido, a menos que seja para trocar as fraldas - quando há fraldas secas, é claro."
Quando Evgeniya tentou ensinar algo às crianças sob seus cuidados, ela constatou que apenas uma ou duas - aquelas que haviam mantido algum contato com as mães -
se mostravam capazes de aprender alguma coisa. E mesmo a experiência dessas poucas crianças era limitadíssima:
"Olhe", eu disse a Anastas, mostrando-lhe a casinha que eu desenhara. "O que é isso?"
"Alojamento", respondeu o menininho, de modo bem claro.
Com algumas caneladas, pus um gato ao lado da casa. Mas ninguém, nem mesmo Anastas, reconheceu o bicho. Nunca tinham visto aquele animal raro. Aí, desenhei uma cerca
rústica, tradicional, em volta da casa.
"E o que é isso?"
"A zona prisional!", gritou Vera, encantada.
Normalmente, as crianças eram transferidas de tais berçários para orfanatos quando faziam dois anos. Algumas mães viam isso com bons olhos, pois era uma oportunidade
para as crianças escaparem do Gulag. Outras protestavam, sabendo que elas próprias podiam ser proposital ou acidentalmente transferidas para outros campos, longe
dos filhos, cujos nomes podiam então ter sido mudados ou esquecidos, impossibilitando que se estabelecesse relacionamento ou mesmo contato.
Isso às vezes acontecia. Valentina Yurganova, filha de kulaks da etnia alemã do Volga, foi colocada num orfanato onde algumas das crianças eram demasiado pequenas
para recordar-se dos próprios nomes e as autoridades, demasiado desorganizadas para lembrar-se deles. Valentina me disse que uma das crianças fora simplesmente rebatizada
"Kashtanova" ("Castanheira"), dado que havia tantas dessas árvores no parque atrás do orfanato.
Anos depois, outra dessas crianças escreveria uma pungente descrição da malsucedida busca que, durante a vida inteira, fez para descobrir o verdadeiro nome dos pais:
não havia registro de nenhuma menina nascida na região da mulher com o nome que aparecia em seu salvo-conduto, e a criança, muito pequena, ainda não aprendera o
nome deles. Mesmo assim, lembrar-se-ia de fragmentos de seu passado: "Mamãe na máquina de costura, eu pedindo agulha e linha... Eu num jardim... Aí, depois... O
recinto é escuro, a cama à direita está vazia, alguma coisa acontece. De algum modo, fico sozinha. Estou apavorada".
Não admira que algumas mães "chorassem, berrassem ou até enlouquecessem e fossem trancadas em depósitos, para se acalmarem", quando os filhos eram levados embora.
Depois que eles se afastavam, era pequena a probabilidade de reencontrarem as mães.
Extramuros, a vida das crianças nascidas nos campos não necessariamente melhorava. Elas se juntavam ao enorme contingente de outra categoria de vítima infantil -
as crianças que haviam sido transferidas direto para os orfanatos após o encarceramento dos pais. Em regra, os orfanatos estatais não tinham funcionários suficientes
e eram superlotadíssimos, sujos e com freqüência mortíferos. Uma ex-prisioneira recordaria as emoções e esperanças com que seu campo enviou para um orfanato urbano
um grupo de filhos de presos - e o horror sentido quando se soube que todas aquelas crianças tinham morrido numa epidemia. Já em 1931, no auge da coletivização,
diretores de orfanatos nos Urais escreviam cartas desesperadas às autoridades regionais, implorando ajuda para cuidar dos milhares de crianças que acabavam de ficar
órfãs de kulaks:
Num cômodo de doze metros quadrados, há trinta meninos. Para 38 crianças, há sete leitos, onde dormem os "reincidentes". Dois rapazes de dezoito anos destruíram
a instalação elétrica, assaltaram o empório e bebem com o diretor [...] crianças dormem, jogam cartas (que confeccionam com retratos rasgados do "Líder"), fumam,
quebram as grades das janelas e pulam os muros com a intenção de fugir.
Em outro orfanato para filhos de kulaks,
as crianças dormem no chão, e não há calçados em quantidade suficiente [...] às vezes, falta água por dias a fio. Comem mal; afora água e batata, não têm almoço.
Não há pratos nem cuias; elas comem direto de conchas. Para 140 pessoas, dispõe-se de uma única caneca, e não existem colheres suficientes; revezam-se para comer,
ou comem com a mão. Não há iluminação, só um lampião para o orfanato inteiro, e o querosene está em falta.
Em 1933, um orfanato perto de Smolensk enviou o seguinte telegrama à comissão infantil em Moscou: "Abastecimento alimentos orfanato interrompido. Cem crianças passando
fome. Organização recusa fornecer rações. Não há nenhum socorro. Tomar medidas urgentes". As coisas não mudaram muito com o passar do tempo. Em 1938, uma ordem
da NKVD descrevia um orfanato onde duas meninas de oito anos haviam sido estupradas por alguns dos garotos mais velhos; e outro onde 212 crianças compartilhavam
doze colheres e vinte pratos e, por falta de roupa de dormir, iam para a cama com a indumentário com que haviam passado o dia, aí incluídos os calçados. Em 1940,
Savelyeva Leonidovna foi "seqüestrada" de seu orfanato (os pais tinham sido aprisionados) e adotada por uma família que pretendia usá-la como doméstica. Assim, viu-se
separada da irmã, a qual nunca mais tornaria a ver.
Filhos de presos políticos, em especial, passavam maus bocados nessas instituições; com freqüência, recebiam tratamento pior que o conferido aos órfãos dali. Diziam-lhes
- como o fizeram a Svetlana Kogteva, então com dez anos -, que "esquecessem os pais, já que estes eram inimigos do povo". Os homens da NKVD que eram responsáveis
por tais lares tinham ordem de manter vigilância especial e atentar para os filhos de contra-revolucionários, a fim de garantir que não recebessem tratamento privilegiado
de nenhuma espécie. Graças a essa norma, PyotrYakir, após a detenção dos pais, ficou exatos três dias num desses orfanatos. Durante esse período, adquiriu "fama
de cabecilha dos filhos dos 'traidores'" e foi de imediato preso. Tinha catorze anos. Foi transferido para uma cadeia e acabou sendo mandado para o Gulag.
Mais freqüentemente, os filhos de presos políticos sofriam provocação e exclusão. Um preso recordaria que se recolhiam as impressões digitais desses menores quando
chegavam ao orfanato. Todos os professores e todos os outros funcionários temiam demonstrar demasiada afeição por eles, pois não queriam ser acusados de ter simpatia
por "inimigos do povo". Os filhos de presos políticos eram impiedosamente provocados por serem "inimigos", conforme conta Valentina Yurganova, que, em conseqüência,
esqueceu de propósito o idioma alemão (sua língua natal).
Em ambientes desse tipo, até filhos de pais instruídos logo adquiriam hábitos da bandidagem. Vladimir Glebov, filho do destacado bolchevique Lev Kamenev, era uma
dessas crianças. O pai foi preso quando Glebov tinha quatro anos, e o menino foi "degredado" para um orfanato especial na região oeste da Sibéria. Ali, cerca de
40% das crianças eram filhas de "inimigos do povo", cerca de 40% eram menores delinqüentes, e cerca de 20% eram crianças ciganas, detidas pelo crime de nomadismo.
Glebov explicaria ao escritor Adam Hochschild que, menos para os filhos de presos políticos, havia vantagens no contato precoce com jovens criminosos:
Meu chapa me ensinou coisas que, depois, me ajudaram bastante na hora de proteger-me. Aqui eu tenho uma cicatriz, e aqui outra [...] quando se é atacado a facadas,
é preciso saber reagir. O principal é reagir antes, para não se deixar atingir. Era assim a nossa feliz meninice soviética!
Algumas crianças ficavam permanentemente afetadas pela vivência em orfanatos. Uma mãe voltou do degredo e reuniu-se à filha. A menina, de oito anos de idade, mal
sabia falar, comia com as mãos e se comportava como o bicho-do-mato que o orfanato a ensinara a ser. Outra mãe, solta após cumprida uma pena de oito anos, foi pegar
os filhos no orfanato e ali descobriu que eles não desejavam ir com ela. Tinham-lhes ensinado que os pais eram inimigos do povo que não mereciam nenhum afeto. Os
filhos haviam sido especificamente instruídos a negar-se a ir embora "caso sua mãe um dia venha buscar vocês", e nunca mais quiseram morar com os pais.
Não era de surpreender que crianças de tais orfanatos fugissem - em grande número. Quando se viam nas ruas, caíam bem depressa no submundo criminal. E quando se
tornavam parte desse submundo, o ciclo vicioso se renovava: cedo ou tarde, provavelmente seriam encarceradas também.
A primeira vista, o relatório anual de 1944-5 da NKVD sobre um grupo de oito campos na Ucrânia não revela nada fora do comum. Arrolam-se quais dos campos cumpriram
as metas do Plano Qüinqüenal e quais não o fizeram. Louvam-se os presos que são trabalhadores de choque.
Observa-se com severidade que, na maioria daqueles campos, a dieta é ruim e monótona. De modo mais abonador, nota-se que, no período em questão, só num dos campos
ocorreu um surto epidêmico - e isso depois que cinco detentos haviam sido transferidos para lá do superlotado cárcere de Kharkov.
No entanto, alguns detalhes do relatório servem para ilustrar a verdadeira natureza desses oito campos ucranianos. Um inspetor se queixa, por exemplo, de que num
deles faltam "livros didáticos, lápis, cadernos, canetas". Há também um reparo severo sobre a propensão de certos detentos a apostar o alimento, às vezes perdendo
antecipadamente meses de ração de pão - ao que parece, os elementos mais jovens dos campos são demasiado inexperientes para jogar cartas com os mais velhos.
Os oito campos eram as colônias de menores. Isso porque nem todos os menores sob jurisdição do Gulag eram filhos de prisioneiros. Parte deles trilhara seu próprio
caminho para os campos. Cometeram delitos e foram apanhados e mandados a campos especiais para menores delinqüentes. Tais estabelecimentos não só eram administrados
pelos mesmos burocratas que geriam os campos para adultos, como também se pareciam com estes de muitas maneiras.
Na origem, os "campos infantis" foram organizados para os besprizornye, os órfãos, enjeitados e pequenos moradores de rua que haviam se perdido ou fugido dos pais
durante os anos da Guerra Civil, da fome, da coletivização e das prisões em massa. No início da década de 1930, essas crianças de rua já eram espetáculo comum nas
estações ferroviárias e nos parques públicos da URSS. O escritor russo Victor Serge as descreveu nestes termos:
Eu as vi em Leningrado e Moscou, morando nos esgotos, debaixo dos outdoors, nas criptas dos cemitérios, lugares dos quais eram as senhoras imperturbadas; realizando
conferências noturnas em mictórios públicos; viajando em cima ou embaixo dos vagões. Emergiam, irritantes, pretas de suor, para pedir uns copeques aos viajantes
e ficar à espreita da oportunidade de roubar alguma bagagem.
Esses menores eram tão numerosos e problemáticos que, em 1934, o Gulag estabeleceu nos campos para adultos os primeiros berçários destinados a filhos de presos,
objetivando impedir que tais crianças ficassem vagando pelas ruas. Pouco depois, em 1935, o Gulag também resolveu instalar colônias especiais de menores. Estes
eram capturados em grandes batidas nas ruas e depois mandados àquelas colônias, a fim de educar-se e preparar-se para ingressar na força de trabalho.
Em 1935, as autoridades soviéticas também aprovaram uma lei, tristemente célebre, que baixava para doze anos a maioridade penal. Depois disso, camponesas adolescentes
detidas pelo furto de alguns grãos de trigo, ou filhos de "inimigos do povo" suspeitos de colaboração com os pais, iriam para a prisão juvenil junto com as menores
prostitutas, os jovens punguistas, os meninos de rua e outros. Nos anos 1930, segundo um relatório interno, agentes da NKVD detiveram uma tártara de doze anos que
não falava russo e fora separada da mãe numa estação ferroviária. Deportaram-na, sozinha, para o extremo norte.
Os menores delinqüentes da URSS eram tantos que, em 1937, a NKVD criou orfanatos de regime especial para quem desrespeitava sistematicamente as normas nos orfanatos
comuns. Em 1939, os simplesmente órfãos já não eram mandados aos campos de menores: esses lugares agora estavam reservados aos meninos e meninas que de fato tinham
sido condenados pelos tribunais ou pela osoboe soveshchanie (comissão especial).
Apesar da ameaça de punição mais dura, o número de menores delinqüentes continuava a aumentar. A guerra não produziu apenas órfãos: havia também os que fugiam de
casa; ou crianças que eram largadas à própria sorte porque o pai estava na frente de batalha e a mãe fazia turno de doze horas na fábrica; ou uma categoria inteiramente
nova de criminoso, os menores operários que escapuliam de seus empregos fabris - às vezes depois que as fábricas haviam sido evacuadas para leste, longe de suas
famílias - e, assim, desrespeitavam uma lei dos tempos de guerra - "Do abandono não-autorizado do trabalho nos empreendimentos militares".
De acordo com as estatísticas da própria NKVD, os "centros de recepção" de menores recolheram em 1943-45 o extraordinário contingente de 842.144 crianças sem teto.
A maioria foi mandada de volta aos pais, aos orfanatos ou às escolas profissionalizantes. Mas um número considerável (pelos registros, 52.830) foi designado para
"colônias de trabalho educacional". Esse termo era nada mais que uma descrição palatável para campos de concentração infantis.
De muitas maneiras, o tratamento dos menores em tais campos pouco diferia daquele conferido a seus pais. Os menores eram detidos e trasladados segundo as mesmas
normas - com duas exceções: deviam ficar apartados dos adultos e não podiam ser alvejados caso tentassem fugir. Eram mantidos no mesmo tipo de cárcere que os maiores
de idade; suas celas eram separadas destes, mas se revelavam igualmente precárias. A descrição que um inspetor do Gulag faz de uma delas é deprimentemente familiar:
"As paredes estão sujas; nem todos os presos têm beliches ou colchões. Não têm lençóis, fronhas nem cobertores. Na cela 5, por falta de vidraça, a janela está tapada
com um travesseiro; e, na cela 14, uma janela não fecha de jeito nenhum". Outro relatório diz que os cárceres de menores são "inaceitavelmente insalubres", com
falta de água quente e de itens tão elementares como canecas, cuias e banquinhos.
Alguns menores também eram interrogados como maiores. Após ter ficado detido no orfanato, Pyotr Yakir (que, vimos, tinha então catorze anos) foi primeiro colocado
numa cadeia comum e depois submetido a um interrogatório completo, do mesmo tipo a que se submetiam os adultos. Seu interrogador o acusou de "ter organizado um bando
de cavalaria anarquista, cujo objetivo era atuar atrás das linhas do Exéreito Vermelho", citando como prova o fato de Yakir adorar montar. Em seguida, Yakir foi
condenado pelo crime de ser "elemento socialmente perigoso". Jerzy Kmiecik, polonês de dezesseis anos capturado ao tentar atravessai a fronteira soviética rumo
à Hungria (isso foi em 1939, na seqüência da invasão soviética da Polônia), também foi interrogado como maior. Eles o mantiveram em pé, ou sentado num banquinho
sem encosto, por horas a fio; ainda o alimentaram com sopa salgada e lhe negaram água. Os interrogadores queriam saber, entre outras coisas, "quanto o sr. Churchill
pagou a você para fornecer-lhe informações". Kmiecik não sabia quem era Churchill e pediu que lhe explicassem a pergunta.
Os arquivos também conservam os registros de interrogatório de Vladimir Moroz, quinze anos, acusado de ter exercido "atividades contra-revolucionárias" no orfanato.
A mãe e um irmão mais velho, de dezessete anos, já haviam sido aprisionados. O pai, fuzilado. Moroz mantivera um diário, encontrado pela NKVD, no qual execrava as
"mentiras e calúnias" que diziam a seu redor: "Se alguém houvesse caído num sono profundo há doze anos e acordasse de repente agora, ficaria aturdido com as mudanças
que ocorreram nesse período". Embora condenado a três anos no Gulag, Moroz morreria na cadeia em 1939.
Esses não eram casos isolados. Em 1939, quando a imprensa soviética relatou alguns casos de oficiais da NKVD detidos por terem extraído confissões falsas, um jornal
siberiano contou a história de 160 menores, a maioria com idade entre doze e catorze anos, mas alguns até de dez anos. Quatro oficiais da NKVD e os promotores dos
processos foram condenados a penas de cinco a dez anos por terem interrogado aqueles menores. O historiador Robert Conquest escreve que as confissões foram obtidas
"com relativa facilidade": "Um menino de dez anos cedeu após uma única noite de interrogatório e reconheceu ser membro de uma organização fascista desde os sete
anos".
Os menores aprisionados tampouco eram poupados das implacáveis exigências do sistema de trabalho escravo. Embora as colônias de menores não fossem, como regra, instaladas
no âmbito dos campos madeireiros ou mineiros setentrionais, onde as condições eram bem mais severas, havia nos anos 1940 um lagpunkt no campo de Norilsk, no extremo
norte. Alguns dos mil presos desse lagpunkt foram trabalhar na olaria de Norilsk; os outros foram postos para limpar neve. Entre eles, estavam algumas crianças de
doze, treze e catorze anos, mas a maioria tinha quinze ou dezesseis - os mais velhos que isso já haviam sido transferidos para o campo dos adultos. Muitos inspetores
reclamaram das condições no campo de menores de Norilsk, e ele acabou sendo deslocado para uma região mais meridional da URSS - não antes que muitos de seus detentos
houvessem sucumbido às mesmas doenças que seus homólogos adultos contraíam por conta do frio e da desnutrição.
Mais típico é o relatório ucraniano que explica que presos das colônias de trabalho de menores na Ucrânia receberam funções de marcenaria, metalurgia e costura.
Kmiecik, o qual esteve numa dessas colônias, perto de Zhitomir, trabalhou numa fábrica de móveis. Ainda assim, tais colônias seguiam muitas das práticas dos campos
para maiores. Havia metas de produtividade a atingir, metas e normas individuais a cumprir, um regime prisional a obedecer. Em 1940, uma ordem da NKVD estipulava
que os menores de doze a dezesseis anos trabalhassem quatro horas por dia e passassem outras quatro horas em atividades escolares. A mesma ordem determinava que
os menores de dezessete a dezoito anos trabalhassem oito horas por dia e dedicassem duas à escola. No campo de Norilsk, não se observava esse regime, pois não havia
nenhuma escola ali.
No campo de menores em que Kmiecik ficou, as aulas eram apenas à noite. Entre outras coisas, ensinaram-lhe que "a Inglaterra é uma ilha na Europa ocidental [...].
E governada por lordes que usam becas vermelhas de gola branca. São donos dos trabalhadores, que dão duro para eles e aos quais pagam muito pouco". Não que os menores
estivessem ali primordialmente para ser educados: em 1944, Beria informou com orgulho a Stalin que os campos de menores do Gulag haviam contribuído de modo notável
para o esforço de guerra, produzindo granadas, minas explosivas e outros itens no valor total de 150 milhões de rublos."
No Gulag, os menores também se submetiam ao mesmo tipo de propaganda que os adultos. Jornais dos campos publicados em meados dos anos 1930 falam de stakhanovistas
juvenis e cantam loas aos "de 35" - os meninos de rua colocados ali pela lei daquele ano -, enaltecendo os que tinham se regenerado pelo trabalho físico. Os mesmos
jornais atacam os menores que não haviam entendido que "precisam abandonar seu passado, pois é hora de começar vida nova [...]. Carteado, bebedeira, vandalismo,
malandragem, ladroeira etc. são vícios disseminados entre eles". Para combater esse "parasitismo" juvenil, os menores deviam participar do mesmo tipo de concerto
cultural e educacional que os adultos, entoando as mesmas canções stalinislas.
Por fim, eram submetidos às mesmas pressões psicológicas que os adultos. Outra diretiva da NKVD, esta de 1941, requeria a organização de uma agenturno-operativnoe
obsluzhwanie (rede de informantes) em suas colônias e centros de recepção de menores. Tinham se espalhado rumores de que, nesses campos, havia sentimento contra-revolucionário
tanto entre os funcionários quanto entre os detentos, em especial os filhos de contra-revolucionários. Em certo campo, os menores até haviam encetado uma mini-revolta:
tomaram e arrebentaram o refeitório e atacaram os guardas, ferindo seis destes.
Só num aspecto os detentos dos campos de menores eram afortunados: ao contrário de outros de sua idade, não tinham sido mandados para os campos de concentração comuns,
onde ficariam rodeados de criminosos adultos. De fato, assim como as onipresentes prisioneiras grávidas, o número sempre crescente de menores nos campos para adultos
constituía eterna dor de cabeça para os comandantes. Em outubro de 1935, Yagoda escreveu a todos os comandantes de campo para dizer que, "a despeito de minhas instruções,
menores presos não estão sendo mandados às colônias de trabalho especiais; em vez disso, misturam-se com adultos na cadeia". Pela contagem mais recente, afirmava
Yagoda, ainda havia 4.305 menores nas prisões comuns. Treze anos depois, em 1948, investigadores da promotoria-geral continuavam a queixar-se de que havia menores
demais nos campos comuns, onde eram corrompidos pelos presos adultos. Até mesmo as autoridades de um campo perceberam quando um preso, o chefão da bandidagem ali,
transformou um ladrãozinho de dezoito anos em matador de aluguel. Os maloletki (menores delinqüentes) despertavam pouca compaixão entre os outros presos. "A fome
e o horror do que acontecera os privara de todas as defesas", escreve Lev Razgon, o qual observou que os menores se aproximavam naturalmente dos indivíduos que pareciam
ser os mais fortes. Esses últimos eram os criminosos de carreira, que faziam dos garotos "serviçais, escravos mudos, bufões, reféns e tudo mais" e convertiam menores
de ambos os sexos à prostituição. No entanto, essas vivências apavorantes não suscitavam muita piedade. Pelo contrário: na memorialística do Gulag, algumas das
invectivas mais duras são dirigidas a tais adolescentes. Razgon diz que, não importando sua origem, todos os menores aprisionados logo "manifestavam uma crueldade
assustadora e incorrigivelmente vingativa, sem freio e sem responsabilidade". Pior:
Não temiam nada nem ninguém. Os guardas e capatazes dos campos morriam de medo de entrar nos alojamentos separados onde ficavam os menores. Era ali que ocorriam
os atos mais vis, mais impudentes e mais cruéis. Se um dos chefes da bandidagem jogava e perdia tudo após ter apostado até a vida, os garotos o matavam por uma ração
diária de pão ou, simplesmente, "pela diversão". As garotas se gabavam de conseguir satisfazer uma turma inteira de lenhadores. Não restara nada de humano nesses
menores, e era impossível achar que pudessem retornar ao mundo normal e tornar-se seres humanos comuns outra vez.
Soljenitsin tem a mesma impressão:
Na consciência deles, não havia nenhuma linha demarcatória entre o que era e o que não era permissível, nenhum conceito de certo e errado. Para eles, tudo o que
desejassem era bom, e tudo o que os atrapalhasse era mau. Adquiriam aquele comportamento descarado e insolente porque se tratava da conduta mais vantajosa no campo.
O preso holandês Johan Wigmans também escreve sobre jovens que "provavelmente não chegavam a incomodar-se por estar nesses campos. Oficialmente, deviam trabalhar;
na prática, porém, era a última coisa que faziam. Ao mesmo tempo, beneficiavam-se de 'proventos' regulares e de amplas oportunidades de aprenderem com seus cupinchas".
Havia exceções. Aleksander Klein conta a história de dois meninos de treze anos, capturados como guerrilheiros anti-soviéticos, que foram condenados a vinte anos
no Gulag. Os dois permaneceram dez anos nos campos, conseguindo manter-se juntos declarando greve de fome sempre que alguém os separava. Por causa da idade, as pessoas
se apiedavam deles, dando-lhes serviço leve e comida extra. Os dois se matricularam em cursos técnicos no Gulag, vindo a ser profissionais competentes antes de serem
libertados numa das anistias que se seguiram à morte de Stalin. Se não houvesse sido pelos campos, escreve Klein, "quem teria ajudado esses camponeses semi-analfabetos
a tornar-se pessoas instruídas, bons especialistas?"
Mas, no final dos anos 1990, quando comecei a procurar memórias escritas por pessoas que tinham sido menores prisioneiros, encontrei muita dificuldade para achar
alguma. Só temos as memórias de Yakir e Kmiecik e um punhado de outras, reunidas pela Sociedade Memorial e outras organizações. Contudo houvera milhares e milhares
de tais menores, e muitos ainda deviam estar vivos. Até sugeri a uma amiga russa que puséssemos anúncio em jornal, na tentativa de localizar alguns desses sobreviventes
para entrevistá-los. "Não faça isso", ela me recomendou. "Todos sabemos o que aquele tipo de gente virou." Décadas de propaganda, de cartazes ostentados nas paredes
de orfanatos para agradecer a Stalin "a nossa feliz meninice", não tinham conseguido convencer o povo soviético de que as crianças do Gulag, as crianças das ruas
e as crianças dos orfanatos houvessem se tornado outra coisa senão membros de carteirinha da grande e onipresente classe criminosa da URSS.
1. Do alto para baixo, da esquerda para a direita:
Vasily Ziiurid;
Aleksadr Petlosy;
Grigori Maifer;
Arnold Karro;
Valentina Orlova
ANOS 20
2a. Presos chegam a Kem, o campo de trânsito para Solovetsky
2b. Catadoras de trufa. Solovetsky, 1928
3a. Máximo Goro (centro), de casaco, gravata e boné de pano, visita Solovetsky com o filho, a nora e comandantes do campo. Ao fundo, a Sekirka, Igreja que servia
de cárcere punitivo. 1929.
3c. Naftaly Frenkel
3b. O mosteiro de Solovetski. Foto atual.
ANOS 30
4a. Presos quebram pedras com ferramentas improvisadas.
4b. "Tudo se fazia à mão [...]. Escavávamos a terra com as mãos e a retirávamos em carrinhos de mão; também escavávamos através dos morros com as mãos".
5ª. "Os melhores trabalhadores de choque": esse cartaz ficava em lugar de honra.
5b. Stalin e Yasgoda visitam o Canal do Mar Branco para comemorar o término da obra
OS CARCEREIROS
6a. "Erradicaremos os espiões e diversionistas, agentes dos fascistas trotskistas e bukharinistas!" Pôster da NKVD, 1937.
6b. Prisão de um inimigo do povo no local de trabalho. Pintura soviética, 1937
7ª. Quatro comandantes de campo. A Filha de um preso escreveu "Assassinos!" sobre a foto. Kolyma, 1950.
7b. Guardas armados, acompanhados de cães.
OS DEGREDADOS
8a. Ao lado do túmulo da avó.
8b. Na Ásia central.
8c. Do lado de fora de um Zemlyanka (abrigo cavado na terra).
9a. Paisagem de Kolyma.
9b. Entrada de Lagpunkt em Vorkuta. O aviso diz: "Na URSS, o trabalhador é questão de honra".
O TRABALHO
10a. Serrando toras.
10b. Arrastando troncos.
11a. Escavando o Canal de Fergana.
11b. Extraindo carvão.
A VIDA
12a. "Se tínhamos nossa própria cuia, pegávamos as primeiras porções".
12b. "Cediam sua pele brônzea para a tatuagem e, dessa maneira, gradualmente satisafaziam suas necessidades artísticas, eróticas e até morais."
13a. "Pegávamos uma cuba, regeríamos uma caneca de Água quente, uma caneca de água fria e um pedacinho de sabão preto e fedorento".
13b. "Internados com sintomas de desnutrição em estágio avançado, a maioria morria no hospital"
AS MULHERES E CRIANÇAS
14a e 14b. Crianças polonesas fotografadas logo após anistia. 1941.
15a. Maternidade de campo de concentração: prisioneira amamenta filho recém-nascido.
15b. Creche de campo de concentração: decorando árvore para festas.
16a. Alojamento lotado.
16b. ...E solitária.
11. O TRABALHO NOS CAMPOS
Quem está doente, imprestável,
Fraco demais para as minas,
E demovido, mandado
Ao campo mais abaixo
Para abater as árvores de Kolyma.
Parece muito simples
No papel. Mas não consigo esquecer
A fieira de trenós na neve
E as pessoas, arreadas.
Forcejando, os peitos cavados, elas puxam os trenós.
Ou param para descansar,
Ou vacilam nas encostas íngremes...
Aquele enorme peso rola abaixo
E, a qualquer momento,
As fará tropeçar.
Quem já não viu cavalo que tropica?
Mas nós... Nós vimos gente com arreios...
Elena Vladimirova, "Kolyma".
Rabochaya zoha: a zona de trabalho
O trabalho era a função primordial da maioria dos campos soviéticos. Era a principal ocupação dos presos e a principal preocupação dos administradores. O cotidiano
girava em torno do trabalho, e o bem-estar dos presos dependia de quão bem trabalhassem. No entanto, é difícil fazer generalizações sobre o que era o trabalho nos
campos: a imagem do preso na tempestade de neve, minerando ouro ou carvão com uma picareta, é apenas estereótipo. Havia muitos de tais prisioneiros - milhões, como
os números dos campos de Kolyma e Vorkuta deixam claro -, mas agora sabemos que também existiam campos no centro de Moscou onde presos projetavam aviões; campos
na Rússia central onde presos construíam e operavam reatores nucleares; campos pesqueiros no litoral do Pacífico; campos no sul do Uzbequistão que eram fazendas
coletivas. Os arquivos do Gulag em Moscou estão entupidos de fotos de presos com seus camelos.
Cavando sepultura. Desenho de Benjamin Mkrtchyan. Ivdel, 1953
Sem nenhuma dúvida, a gama de atividades econômicas do Gulag era tão ampla quanto a de atividades econômicas da URSS. Um rápido olhar pelo Guia do sistema de campos
de trabalhos correcionais da URSS - a mais abrangente lista dos campos elaborada até hoje - revela a existência de campos organizados em razão de minas de ouro,
carvão, níquel; da abertura de rodovias e ferrovias; de fabricas de armamento, produtos químicos e produtos metalúrgicos; de usinas elétricas; da construção de aeroportos,
prédios residenciais e sistemas de saneamento; da extração de turfa e madeira; do enlatamento de pescado. Os próprios administradores do Gulag conservavam um álbum
fotográfico dedicado tão-somente aos bens que os detentos produziam. Entre outras coisas, havia fotos de mísseis, minas explosivas e outros aparatos militares; autopeças,
fechaduras e botões; toras boiando rios abaixo; artigos de madeira, inclusive cadeiras, armários, barris e cabines telefônicas; calçados, cestas e têxteis (com amostras
anexas); tapetes, couros, gorros de pele e casacos de carneiro; copos, lâmpadas e frascos de vidro; sabão e velas; até brinquedos (tanques de guerra de madeira,
minúsculos moinhos de vento, coelhos mecânicos que tocavam tambor).
O trabalho variava dentro dos campos e entre eles. E verdade que, nos campos madeireiros, muitos presos não faziam nada senão derrubar árvores. Presos que cumpriam
pena de três anos ou menos trabalhavam em "colônias de trabalho correcional", campos de regime brando que em geral operavam em função de uma única fábrica ou atividade.
Em contrapartida, campos maiores podiam englobar vários ramos: minas, olaria e usina elétrica, assim como canteiros de obras de residências e estradas. Em tais campos,
presos descarregavam os trens que diariamente traziam mercadorias; dirigiam caminhões; colhiam hortaliças; trabalhavam em cozinhas, hospitais e creches. Extra-oficialmente,
presos também serviam de domésticos, babás e alfaiates para os guardas e comandantes dos campos e suas esposas.
Presos que cumpriam penas longas freqüentemente ocupavam ampla variedade de funções, mudando de trabalho ao sabor da sorte Em quase duas décadas de carreira nos
campos, Evgeniya Ginzburg cortou árvores, cavou valas, limpou a casa de hóspedes do campo, lavou louça, cuidou de galinhas, foi lavadeira para esposas de comandantes
de campo e olhou filhos de presas. Por fim, tornou-se enfermeira. Outro preso político, Leonid Sitko, durante os onze anos que passou nos campos, foi soldador,
trabalhador de pedreira, operário de uma turma de construção civil, carregador num depósito ferroviário, mineiro de carvão e marceneiro numa fábrica de móveis, produzindo
mesas e estantes.
Mas, embora os empregos pudessem ser tão variados no sistema de campos quanto o eram no mundo extramuros, os prisioneiros que trabalhavam costumavam dividir-se em
duas categorias: os presos designados para obshchya raboty (serviços gerais) e os presos de confiança, chamados pridurki (monitores). Veremos que esses últimos tinham
status de casta à parte. Os serviços gerais, sina da imensa maioria dos prisioneiros, eram trabalho braçal, sem qualificação, extenuante. "O primeiro inverno ali,
em 1949-50, foi especialmente difícil para mim", escreveu Isaak Filshtinskii. "Eu não tinha um ofício que pudesse ser de utilidade nos campos, e fui forçado a ir
de um lugar para outro, fazendo diversos tipos de serviço geral, serrando, carregando, puxando, empurrando etc. - em outras palavras, indo aonde desse na veneta
do distribuidor de tarefas me mandar."
A exceção daqueles que haviam tido sorte logo na primeira distribuição de trabalhos - em geral os que eram engenheiros civis ou outros membros de profissões úteis
nos campos ou que, então, já tinham se estabelecido como informantes -, os zeks eram designados para os serviços gerais tão logo findava a semana (ou coisa parecida)
de quarentena. Também eram designados para uma turma de trabalho, grupo que variava de quatro a quatrocentos zeks, os quais trabalhavam e comiam juntos e, em geral,
dormiam nos mesmos alojamentos. Cada turma, ou "brigada", era comandada por um "brigadeiro", um preso de confiança que tinha status elevado e era encarregado de
distribuir tarefas, supervisionar o trabalho e, sobretudo, garantir que a turma cumprisse as metas de produção. A importância do brigadeiro, cujo status se situava
entre o de preso e o de administrador, não escapava às autoridades dos campos, Em 1933, o chefe do Dmitlag enviou ordem a todos os seus subordinados, lembrando-os
da necessidade de "identificar entre nossos trabalhadores de choque aquelas pessoas capazes que são tão necessárias a nosso trabalho", pois "o brigadeiro é o elemento
mais importante e relevante nos canteiros de obras". Do ponto de vista dos outros presos, a relação corri o brigadeiro era mais que apenas importante: podia determinar
qual seria a qualidade de vida deles e até se viveriam ou morreriam. Um preso escreveu:
A vida da pessoa depende muito da brigada e do brigadeiro, dado que se passa todos os dias e noites na companhia deles. No trabalho, no refeitório e nos beliches
- sempre os mesmos rostos. Os integrantes da brigada podem trabalhar ou todos juntos, ou em grupos, ou individualmente. Podem nos ajudar a sobreviver - ou ajudar
a nos destruir. Trata-se ou de compaixão e auxílio, ou de hostilidade e indiferença. O papel do brigadeiro não é menos importante. Também importa quem ele é e o
que pensa de suas próprias tarefas e obrigações: servir a chefia à nossa custa e em benefício dele mesmo, tratando os integrantes da brigada como subalternos, serviçais
e lacaios -ou ser nosso companheiro nas agruras e fazer todo o possível para tornar a vida mais fácil para a brigada.
Alguns brigadeiros realmente ameaçavam e intimidavam sua força de trabalho. No primeiro dia nas minas de Karaganda, Alexander Weissberg fraquejou de fome e cansaço.
Com bramidos de touro alucinado, o brigadeiro então se voltou contra mim, golpeando-me com cada grama de sua compleição vigorosa, chutando, esmurrando e, por fim,
dando-me tamanha pancada na cabeça que me estatelei, meio grogue, coberto de machucaduras, com sangue escorrendo pela cara.
Em outros casos, o brigadeiro deixava que a própria turma de trabalho funcionasse como grupo paritário organizado, pressionando os Presos a dar mais duro mesmo quando
não era essa vontade deles. Em certa altura do romance Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Soljenitsin, o protagonista reflete que uma brigada dos campos
não é como uma turma de trabalho lá fora, onde fulano e sicrano ganham cada um seu salário. Nos campos, as coisas se dispõem de tal modo que o zek é mantido na linha
não pelas chefias, mas pelos outros membros da turma. Ou todos ganham um prêmio extra, ou todos morrem juntos.
Verno Kress, outro preso de Kolyma, era alvo de gritos e pancadas de seus camaradas de brigada por não conseguir acompanhar o ritmo deles; acabaria sendo mandado
para uma brigada "fraca", cujos membros nunca recebiam a ração integral. Yuri Zorin também passou pela experiência de ser parte de uma brigada realmente esforçada,
na maioria composta de lituanos que não admitiam mandriões em suas fileiras: "Não dá nem para imaginar a vontade e o desvelo com que eles trabalhavam [...] se achavam
que você não trabalhava direito, eles o chutavam para fora da brigada lituana".
Caso se tivesse o azar de terminar numa brigada "ruim" e não se conseguisse subornar alguém ou se livrar daquilo, podia-se morrer de inanição. Uma vez, M. B. Mindlin
(depois um dos fundadores da Sociedade Memorial) foi designado para uma brigada de Kolyma que se constituía sobretudo de georgianos e era liderada por um brigadeiro
dessa nacionalidade. Mindlin logo percebeu que o grupo tinha tanto medo do brigadeiro quanto dos guardas do campo; e que ele, Mindlin, "o único judeu numa brigada
de georgianos", não poderia contar com nenhum favor especial. Certo dia, ele trabalhou com especial afinco, na tentativa de ganhar a ração de nível mais alto (1.200
gramas de pão). O brigadeiro se negou a reconhecer aquele esforço e determinou que Mindlin recebesse só setecentos gramas. Apelando para o suborno, Mindlin trocou
de brigada e encontrou ambiente completamente diverso: o novo brigadeiro se preocupava de fato com os subalternos e até lhes concedia alguns dias de trabalho
mais leve no início, para que recuperassem as forças. "Todos os que entraram na brigada dele se consideravam afortunados e salvaram-se da morte." Posteriormente,
o próprio Mindlin virou brigadeiro e tomou a iniciativa de distribuir suborno, para garantir que todos os integrantes de sua turma de trabalho conseguissem o melhor
acerto possível com os cozinheiros, cortadores de pão e outras pessoas importantes no campo.
A atitude dos brigadeiros importava porque, na maior parte das vezes, os serviços gerais não se destinavam a ser uma impostura ou não ter propósito. Se nos campos
alemães o trabalho era "principalmente meio de tortura e maus-tratos" - nas palavras de um destacado estudioso -, os presos soviéticos, ao contrário, deviam cumprir
este ou aquele aspecto do esquema de produção do campo. E verdade que havia exceções à regra. Por vezes, guardas néscios ou sádicos impunham de fato tarefas despropositadas.
Susanna Pechora se recordaria de ter sido designada para carregar baldes de argila de um lado para outro, "um serviço absolutamente sem sentido". Um dos capatazes
encarregados de seu local de trabalho lhe disse especificamente: "Não preciso do seu trabalho, preciso é do seu sofrimento", frase que teria sido familiar aos presos
de Solovetsky em 1926. Na década de 1940, como veremos, também surgiria um sistema de campos disciplinares, cujo objetivo prioritário não era econômico, mas punitivo.
Mesmo neles, porém, esperava-se que os presos produzissem alguma coisa.
Durante a maior parte do tempo, não se pretendia que os presos sofressem - ou talvez fosse mais exato dizer que ninguém se importava se eles sofriam ou não. Era
muitíssimo mais importante que se encaixassem no esquema produtivo do campo e cumprissem uma meta de trabalho. Esta podia ser qualquer coisa: certo número de metros
cúbicos de madeira por cortar, de valas por cavar, de carvão por carregar. E tais normas eram levadas muitíssimo a sério. Os campos estavam cobertos de cartazes
que exortavam os presos a cumpri-las. Todo o aparato "cultural e educacional" do Gulag se votava à mesma mensagem. Os refeitórios ou pátios centrais de alguns campos
ostentavam enormes quadros-negros relacionando todas as turmas de trabalho e os mais recentes resultados de produção de cada uma delas.
As metas eram calculadas com muito cuidado e arrazoado cientifico pelo normirovshik, funcionário cujo trabalho acreditavam exigir grande perícia. Jacques Rossi menciona,
por exemplo, que quem varria neve recebia diferentes metas, dependendo do tipo de neve: fresca; leve; ligeiramente compactada; compactada (exigindo pressão do pé
na pá); muito compactada; ou congelada (exigindo uso de picareta), depois disso tudo, "uma série de coeficientes levava em conta o peso da neve, a distância a que
a atiravam etc.".
Mas, apesar de teoricamente científico, o processo de estabelecer metas de trabalho, e determinar quem as cumpriria, estava permeado de corrupção, irregularidade
e incoerência. Para começo de conversa, os presos geralmente recebiam metas que correspondiam àquelas dos trabalhadores livres - deviam produzir o mesmo que lenhadores
ou mineiros profissionais. Contudo, no mais das vezes, eles não eram lenhadores nem mineiros de ofício; com freqüência, tinham muito pouca noção do que deviam fazer;
e, após longas estadas na cadeia e viagens aflitivas em vagões de gado sem aquecimento, tampouco estavam nas condições físicas da média dos trabalhadores livres.
Quanto mais inexperiente e exausto, mais o preso sofria. Evgeniya Ginzburg deixou uma descrição clássica sobre duas mulheres - ambas intelectuais não-afeitas ao
trabalho braçal, ambas enfraquecidas por anos no cárcere - que tentavam cortar árvores:
Durante três dias, Galya e eu tentamos o impossível. Coitadas das árvores, como devem ter sofrido ao ser mutiladas por nossas mãos inábeis! Nós mesmas já estávamos
meio mortas e, completamente sem qualificação, não tínhamos como dar conta delas. O machado escorregava e nos atirava uma chuva de lascas na cara. Serrávamos freneticamente,
aos trancos, no íntimo acusando a outra de inépcia - mas sabendo que não podíamos nos dar ao luxo de brigar. Repetidas vezes, a serra emperrava. Todavia, o momento
mais apavorante foi aquele em que a árvore enfim ficou a ponto de cair - só que não sabíamos para qual lado. Em certa altura, Galya foi atingida na cabeça, mas o
enfermeiro se recusou até a passar iodo no corte, dizendo: "Ah-ah, esse truque é velho! Você está tentando ser dispensada do trabalho já no primeiro dia?!
Ao fim do dia, o brigadeiro declarou que Evgeniya e Galya haviam cumprido 18% da meta e lhes "pagou" pelo mau desempenho: "No dia seguinte, tendo recebido o pedacinho
de pão que correspondia a nosso rendimento, fomos reconduzidas a nosso local de trabalho, literalmente cambaleantes". Entrementes, o brigadeiro ficava repetindo
que "não pretendia desperdiçar comida valiosa com traidoras que não conseguiam cumprir a norma".
Nos campos do extremo norte - em especial os de Kolyma, assim como os de Vbrkuta e Norilsk, localizados acima do Círculo Polar -, clima e o terreno agravavam as
dificuldades. Com freqüência, ao contrário do que reza a crença popular, o verão dessas regiões árticas não era mais suportável que o inverno. Mesmo lá, as temperaturas
podem subir acima de trinta graus Celsius. Quando vem o degelo, a tundra vira um lamaçal, dificultando a caminhada, e os mosquitos parecem deslocar-se em nuvens
cinzentas, fazendo tanto ruído que é impossível ouvir outra coisa. Um preso se recordaria deles:
Enfiavam-se pelas mangas e pelas calças. A cara estourava de tantas picadas. O almoço nos era trazido ao local de trabalho, e, enquanto tomávamos a sopa, os mosquitos
enchiam a cuia [...]. Eles nos cobriam os olhos e nos tapavam o nariz e a garganta, e tinham gosto adocicado, como o de sangue. Quanto mais nos mexíamos e os espantávamos,
mais nos atacavam. O melhor era não ligar para eles, pôr roupa mais leve e, em vez de chapéu com mosquiteiro, usar um festão de grama ou de cortiça de bétula.
Os invernos, é claro, eram muitíssimo gelados. As temperaturas podiam cair a 35, quarenta, 45 graus abaixo de zero. Memorialistas, poetas e romancistas tiveram grande
dificuldade para descrever como era trabalhar nesse gelo. Um relatou que fazia tanto frio que "mesmo o mais simples e abrupto movimento de mão no ar causava um silvo
extraordinário". Outro contou que, numa manhã de véspera de Natal, ele acordou e descobriu que não conseguia mexer a cabeça.
Ao despertar, o que primeiro me ocorreu foi que ela, de algum modo, se prendera às tabuas do beliche durante a noite. Mas, quando tentei me erguer para sentar, vi
que fora puxado o material que eu enrolara em volta da cabeça e das orelhas antes de ter ido dormir. Apoiado num cotovelo, fazendo força para levantar, dei um puxão
no material e percebi que ele congelara e se grudara à madeira. Minha respiração e a respiração de todos os homens na cabana estavam suspensas no ar, como se fossem
fumaça.
Outro ainda escreveu que
era perigoso parar de mexer-se. Durante a contagem dos presos, nós pulávamos, corríamos sem sair do lugar e dávamos tapas no corpo para nos mantermos aquecidos.
Eu não parava de massagear os dedos dos pés, e os das mãos estavam sempre crispados [...] se tocássemos ferramentas de metal com a mão nua, a pele podia ser arrancada,
e as idas ao banheiro eram perigosíssimas. Uma crise de diarréia podia deixar a pessoa para sempre na neve.
Em conseqüência, alguns presos simplesmente sujavam as calças: "Trabalhar junto deles era desagradável, e de volta à tenda, quando começávamos a nos aquecer, o fedor
se tornava insuportável. Quem fazia nas calças era muitas vezes espancado e posto para fora".
No que se referia ao clima, certos serviços gerais eram piores que outros. Nas minas carboníferas do Ártico, conforme um preso, o ar subterrâneo era mais quente,
mas a água gelada vivia pingando nos trabalhadores: "O mineiro se transforma numa espécie de gigantesco pingente de gelo, e seu organismo começa a congelar-se num
período longo e estável. Depois de três ou quatro meses dessa labuta infernal, os presos passam a ter doenças generalizadas".
Isaak Filshtinskii também acabou designado para um dos mais desagradáveis serviços de inverno no Kargopollag, separando toras que seriam processadas. Tinha-se de
ficar em pé na água o dia inteiro, e, embora a água fosse morna (vinha bombeada da usina de força), o ar não o era:
Naquele inverno, dado que na região de Arcangel o frio se mantinha estável em quarenta, 45 graus abaixo de zero, uma névoa espessa pairava o tempo todo sobre a água.
Era simultaneamente muito gelado e muito molhado [...] o trabalho não era muito difícil, mas, após trinta ou quarenta minutos, o corpo inteiro ficava permeado e
envolto pela umidade; o queixo, os lábios e as pestanas, cobertos de gelo; e o frio penetrava até os ossos, atravessando a lastimável indumentária do campo.
No inverno, os piores serviços eram nas florestas. Isso porque, nessa estação, a taiga é não apenas gelada mas também periodicamente varrida por tempestades de inverno,
chamadas burany oupurgai, que são violentas e imprevisíveis. Dmitrii Brystoletov, preso no Siblag, foi apanhado por uma delas:
Naquele instante, o vento começou a uivar de modo furioso e apavorante, e tivemos de nos prostrar. A neve redemoinhava no ar; tudo sumiu - as luzes do campo, as
estrelas, a aurora boreal -, e ficamos sozinhos numa névoa branca. Abrindo bem os braços, escorregando e tropeçando desajeitadamente, caindo e nos apoiando uns aos
outros, tentamos achar o caminho de volta quanto antes. De repente, um trovão ribombou acima de nós. Eu mal conseguira segurar-me a um companheiro quando uma violenta
enxurrada de gelo, neve e pedra começou a nos atingir no rosto. A neve rodopiante não nos permitia respirar nem enxergar.
Janusz Bardach, quando trabalhava numa pedreira em Kolyma, também se viu numa dessas tempestades. Ele e os outros presos, junto com os guardas, voltaram para o campo
seguindo os cães de guarda, ligados uns aos outros por uma corda:
Eu não enxergava nada para além das costas de Yuri e me aferrava à corda como se ela fosse um bote salva-vidas [...] Depois que os referenciais de sempre sumiram,
eu já não fazia idéia de quanto ainda precisávamos percorrer, e tinha certeza de que nunca conseguiríamos voltar. Pisei em alguma coisa mole - um preso que soltara
a corda. "Parem!", berrei. Mas ninguém parou. Ninguém conseguia ouvir minha voz. Eu me inclinei e puxei o braço dele para a corda. "Aqui!" Tentei fazer que sua mão
se agarrasse à corda. "Segure-se!" Não adiantou nada. O braço do homem despencou quando o soltei. A ordem severa de Yuri, que mandava seguir em frente, me fez continuar.
Quando a turma de trabalho de Bardach retornou ao campo, faltavam três presos. Em geral, "os corpos dos prisioneiros que se perdiam só eram encontrados na primavera,
muitas vezes a menos de cem metros da zona prisional".
A indumentária regulamentar destinada aos presos lhes proporcionava pouca proteção contra as intempéries. Em 1943, por exemplo, a direção central do Gulag ordenou
que eles recebessem, entre outras coisas, camisa de verão, para durar duas estações; calças de verão, também para duas estações; casaco de inverno, acolchoado, de
algodão, para dois anos; calças de inverno, acolchoadas, para dezoito meses; botas de feltro, para dois anos; e roupa de baixo, para nove meses. Na prática, nunca
havia quantidade suficiente desses itens, já em si parcos. Em 1948, uma inspeção de 23 campos relatou que o abastecimento de "indumentária, roupa de baixo e calçado
é insatisfatório". Esse "insatisfatório" parece ter sido eufemismo. Num campo em Krasnoyarsk, menos de metade dos prisioneiros estava calçado. Em Norilsk, no extremo
norte, só 75% tinham botas quentes, e só 86% estavam agasalhados. Em Vorkuta, também no extremo norte, apenas 25% a 30% dos presos possuíam roupa de baixo, e somente
48% contavam com botas quentes.
Na falta de calçado, os presos improvisavam. Faziam botas de cortiça de bétula, trapos, pneus velhos. No melhor dos casos, essas soluções eram desajeitadas e duras,
em especial na neve profunda. No pior, não eram herméticas, praticamente garantindo que o usuário sofreria queimaduras de frio. Elinor Lipper descreveria suas botas
caseiras, que no campo onde ela estava tinham o apelido Che-Te-Ze, abreviação russa de "Fábrica de Pneus de Chelyabinsk":
Eram de aniagem levemente acolchoada, com cano alto e largo, que chegava ao joelho; o calçado em si era reforçado com encerado ou couro sintético no dedão e no calcanhar.
A sola era feita de três seções transversais de borracha, tiradas de pneus carecas. A coisa toda era amarrada ao pé com barbante; também se usava barbante para amarrá-las
abaixo do joelho, a fim de que a neve não entrasse [...] depois de um dia de uso, ficavam totalmente retorcidas, e as solas, fraquinhas, entortavam-se de todos os
jeitos. Essas botas absorviam umidade com inacreditável rapidez, sobretudo quando os sacos de aniagem de que eram feitas tinham sido empregados para acondicionar
sal.
Outro preso descreve uma improvisação parecida: "Os lados eram abertos, de modo que os dedos ficavam expostos ali. Não se conseguia amarrar bem o pano que envolvia
os pés, e assim os dedos também ficavam suscetíveis ao congelamento". Como resultado do uso desse calçado, o preso ganhou mesmo queimaduras de frio - o que, entretanto,
ele acreditava ter-lhe salvado a vida, pois ficou dispensado de trabalhar.
Diferentes prisioneiros tinham diferentes teorias de como lidar com o frio. Para recuperarem-se do congelamento ao fim do dia, por exemplo, alguns corriam aos alojamentos
e se apinhavam em volta do fogareiro, chegando tão perto que às vezes as roupas pegavam fogo: "O cheiro repugnante de trapos queimando nos chegava às narinas".
Outros consideravam esse procedimento uma insensatez. Prisioneiros mais experientes disseram a Isaak Filshtinskii que se juntar em volta do fogareiro ou da fogueira
do campo era perigoso porque a súbita mudança de temperatura causava pneumonia: "O organismo humano é constituído de maneira tal que, não importando quão baixa a
temperatura, o corpo se ajusta e se acostuma. Sempre segui essa sábia norma no campo, e nunca sequer me resignei".
As autoridades dos campos estavam obrigadas a fazer algumas concessões por causa do frio. Pelas regras, os presos de certos campos setentrionais recebiam rações
adicionais. Mas estas, segundo documentos de 1944, podiam corresponder a não mais que cinqüenta gramas de pão extra por dia, o que nem de longe bastava para contrabalançar
o frio extremo. Em teoria, quando fazia frio demais, ou quando uma tempestade se aproximava, os presos nem deveriam trabalhar. Vladimir Petrov afirmaria que, durante
a administração de Eduard Berzin em Kolyma, os prisioneiros largavam o serviço quando as temperaturas desciam a quinze graus negativos. No inverno de 1938-9, após
a destituição de Berzin, elas tinham de cair a cinqüenta graus negativos antes que se interrompesse o trabalho. Petrov escreve que nem mesmo tal determinação era
sempre seguida, pois a única pessoa que tinha termômetro naquela jazida de ouro era o comandante do campo. Em conseqüência, "só três dias daquele inverno foram de
folga ocasionada pelas baixas temperaturas; no inverno de 1937-8, haviam sido quinze".
Kazimierz Zarod, outro memorialista, registraria que a temperatura de interrupção do trabalho em seu campo, durante a Segunda Guerra Mundial, era de 49 graus negativos;
ele recordaria uma ocasião em que sua turma de lenhadores recebeu ordens de voltar ao campo durante o dia porque o termômetro indicava 53 graus negativos. "Com que
rapidez juntamos o equipamento, formamos coluna e iniciamos o regresso ao campo!" Bardach lembra que em Kolyma, durante os anos de guerra, a norma eram cinqüenta
graus negativos, "embora nunca levassem em conta a sensibilidade térmica".
Mas o clima não era o único obstáculo ao cumprimento das metas. Em muitos campos, elas eram absurdamente elevadas. Em parte, isso era conseqüência indireta da lógica
do planejamento central soviético, a qual impunha que as empresas aumentassem a produção todo ano. Elinor Olitskaya recordaria que suas companheiras forcejavam para
cumprir as metas numa oficina de costura, querendo manter-se naquele trabalho aquecido, em recinto fechado. Mas, como elas as cumpriam, a administração do campo
vivia elevando as metas, até que se tornaram inatingíveis.
As metas também ficavam mais exigentes porque tanto presos quanto normirovshiki mentiam, exagerando o trabalho que fora ou seria realizado. Com o tempo, o resultado
era que, às vezes, elas se tornavam estratosféricas. Alexander Weissberg recordaria que, mesmo em funções supostamente mais fáceis, as metas desafiavam a credulidade:
"Todos pareciam às voltas com urna tarefa praticamente impossível. Os dois encarregados da lavanderia tinham de lavar as roupas de oitocentos homens em dez dias".
Não que superar as metas acarretasse necessariamente as vantagens esperadas. Antoni Ekart se lembraria de quando se rompeu o gelo do rio próximo de seu campo e houve
ameaça de enchente: 'Várias brigadas, constituídas dos presos mais fortes, aí incluídos todos os 'trabalhadores de choque', labutaram como loucos durante dois dias,
praticamente sem intervalo. Pelo que realizaram, receberam um arenque para cada dois homens e um pacote de makhorka [fumo cru] para cada quatro".
Em tais condições - com jornadas longas, poucos dias de folga e pouco descanso durante o dia -, os acidentes eram freqüentes. No inicio dos anos 1950, mandaram um
grupo de prisioneiras inexperientes apagar um incêndio no mato perto do Ozerlag. Só naquela ocasião, lembraria uma das condenadas, "várias pessoas queimaram até
a morte". Também com freqüência, a exaustão e o clima se revelavam uma combinação mortífera, conforme atesta Alexander Dolgun:
Dedos enregelados e adormecidos não conseguiam segurar alças, alavancas, vigas e caixotes, e ocorriam muitos acidentes, amiúde fatais Um homem foi esmagado quando
rolávamos toras de um vagão-plataforma, usando duas como rampa. Ficou soterrado quando vinte toras ou mais se soltaram de uma vez e ele não se afastou rápido o bastante.
Os guardas empurraram o corpo de lado, na plataforma, e aquela massa coberta de sangue coagulado nos aguardava para ser levada para casa quando a noite caísse.
Moscou compilava estatísticas de acidentes, e de vez em quando elas provocavam altercações entre inspetores e comandantes de campo. Uma dessas compilações, referente
ao ano de 1945, discriminava 7.124 acidentes nas minas carboníferas de Vorkuta, dos quais 482 haviam resultado em lesões sérias e 137 em óbitos. Os inspetores punham
a culpa na escassez de lanternas de mineiro, em falhas elétricas e na inexperiência e freqüente rotação dos operários. Furiosos, esses inspetores calcularam o número
de homens/dia perdidos em decorrência de acidentes: 61.492.
Organização absurdamente ruim e gestão desleixada também dificultavam o trabalho. Embora seja importante observar que mesmo os locais de trabalho comuns eram mal
administrados na URSS, a situação era pior no Gulag, onde a vida e a saúde dos trabalhadores não eram consideradas importantes e a chegada regular de peças de reposição
para o equipamento encontrava problemas por causa do clima e das enormes distâncias. O caos reinava no Gulag desde os tempos do Canal do Mar Branco, e essa situação
continuou pela década de 1950, mesmo depois que se mecanizaram muito mais locais de trabalho no país. Para quem fazia trabalho madeireiro, "não havia motosserras,
nem tratores para levantar toras, nem carregadores mecânicos". Quem trabalhava em indústrias têxteis recebia "ferramentas que eram ou muito poucas, ou muito inadequadas".
Segundo um testemunho, isso significava que "todas as costuras precisavam ser passadas com um ferro enorme, que pesava dois quilos. Tinha-se de passar 426 calças
durante o turno; as mãos adormeciam com o peso, e as pernas inchavam e doíam".
A maquinaria também vivia quebrando, fator que não era necessariamente levado em conta quando se calculavam as metas. Na mesma unidade têxtil, "chamavam-se os mecânicos
de manutenção o tempo todo Eram na maioria mulheres condenadas. Os consertos demoravam horas, pois elas não tinham qualificação. Ficava impossível realizar a quantidade
obrigatória de trabalho, e, como resultado, não recebíamos nenhum pão".
O tema da maquinaria quebrada e dos técnicos de manutenção inábeis surge repetidas vezes nos anais da administração do Gulag. Em 1934, administradores regionais
de campos que compareceram à Conferência Partidária do Extremo Oriente, em Khabarovsk, queixaram-se de que as constantes interrupções na provisão de equipamento
e a pouca qualificação dos técnicos implicavam que não conseguissem cumprir as metas de produção de ouro. Uma carta de 1938 ao vice-ministro do Interior encarregado
do Gulag afirma que "de 40% a 50% dos tratores estão quebrados". Mas até métodos de trabalho mais primitivos também falhavam com freqüência. Uma carta do ano anterior
observava que dos 36.491 cavalos disponíveis no Gulag, 25% não estavam em condições de uso.
As empresas do Gulag se ressentiam igualmente da falta de engenheiros e gestores. Poucos técnicos qualificados se apresentavam de livre e espontânea vontade para
trabalhar em projetos do Gulag, e os que de fato se ofereciam não tinham necessariamente as habilidades requeridas. No decorrer dos anos, envidaram-se muitos esforços
para atrair trabalhadores livres para os campos, e davam-se enormes incentivos. Já em meados da década de 1930, recrutadores da Dalstroi faziam campanha pelo país,
oferecendo privilégios especiais a qualquer um que assinasse contrato de trabalho de dois anos. Entre os atrativos, incluíam-se salário 20% superior à média soviética
por aqueles dois primeiros anos e 10% superior pelos anos seguintes, assim como férias remuneradas, acesso a comestíveis e suprimentos especiais e uma aposentadoria
generosa.
Os campos do extremo norte também eram descritos com muito alarde e entusiasmo na imprensa soviética. Um exemplo clássico desse tipo de propaganda apareceu em inglês,
na Sonetland, revista escrita para estrangeiros. Num artigo de abril de 1939 dedicado a Magadan, entoavam-se loas ao mágico atrativo da cidade:
O mar de luzes que é Magadan à noite constitui espetáculo dos mais arrebatadores e cativantes. Trata-se de uma cidade que está viva e buliçosa em todos os minutos
do dia e da noite. Ela fervilha de pessoas cujas vidas são reguladas por rigoroso cronograma de trabalho. Exatidão e prontidão implicam celeridade, e celeridade
implica trabalho fácil e prazeroso.
Não se faz nenhuma menção ao fato de que as pessoas cujas vidas estavam "reguladas por rigoroso cronograma de trabalho" eram prisioneiras.
Não que isso importasse: tais esforços não conseguiram mesmo atrair o número necessário de especialistas, restando ao Gulag depender de presos. Um deles relataria
que, junto com uma brigada de construção, foi enviado seiscentos quilômetros ao norte de Magadan para erguer uma ponte. Quando chegaram, perceberam que ninguém na
brigada construíra pontes antes. Um dos presos, um engenheiro, viu-se encarregado do projeto, ainda que pontes não fossem sua especialidade. A ponte foi construída.
Também foi levada de roldão na primeira enchente.
Esse, porém, foi um desastre menor se comparado a alguns outros. Houve projetos inteiros do Gulag, empregando milhares de pessoas e enormes recursos, que se revelaram
espetacularmente anti-econômicos e mal concebidos. Talvez o mais famoso tenha sido a tentativa de construir urna ferrovia da região de Vorkuta à foz do Ob, no oceano
Ártico. A decisão de iniciar as obras foi tomada pelo governo soviético em abril de 1947. Um mês depois, o desbravamento, o levantamento topográfico e a construção
tiveram início simultâneo. Prisioneiros também começaram a construir um novo porto de mar no cabo Kamenny, onde o Ob se alarga rumo ao mar.
Como de hábito, houve complicações: não se dispunha de tratores em número suficiente, de modo que os presos usaram velhos tanques de guerra. Os planejadores compensaram
a falta de máquinas sobrecarregando os prisioneiros. Jornadas de onze horas eram normais, e às vezes, durante os longos dias de verão, até trabalhadores livres ficavam
nas obras das nove da manhã à meia-noite. No final do ano, as complicações se tornaram mais sérias. A equipe topográfica determinara que o cabo Kamenny era má localização
para o porto: não havia calado-d'água suficiente para navios de porte, e o solo era instável demais para indústrias pesadas. Em janeiro de 1949, Stalin convocou
uma reunião, altas horas da noite, em que a liderança soviética resolveu mudar não só o local da obra, mas também a ferrovia: agora, a linha ligaria o Ob não com
a região de Vorkuta (a oeste), mas com o rio Ienissei (a leste). Construíram-se mais dois campos: o canteiro de obras 501 e o canteiro de obras 503. Ambos começaram
a assentar os trilhos ao mesmo tempo. A idéia era encontrarem-se no meio do traje-to. A distância entre eles era de 1.300 quilômetros.
As obras continuavam. No auge do projeto, segundo uma fonte, eram 80 mil pessoas trabalhando; segundo outra, eram 120 mil. O projeto ficou conhecido como "Estrada
da Morte". A construção se revelou quase impossível na tundra ártica. Quando o permafrost de inverno se transformava rapidamente em lama de verão, tinha-se de lutar
o tempo todo para impedir que os trilhos se retorcessem ou afundassem. Mesmo com esse esforço, os vagões freqüentemente descarrilavam. Por problemas de abastecimento,
os presos começaram a usar madeira em lugar de aço na construção ferroviária - uma decisão que veio selar o fracasso do projeto. Em 1953, à época da morte de Stalin,
haviam-se construído quinhentos quilômetros de um dos extremos, duzentos do outro. O porto existia apenas no papel. Semanas após o funeral de Stalin, o projeto inteiro,
que custara 40 bilhões de rublos e dezenas de milhares de vidas, foi abandonado de vez.
Em escala menor, tais histórias se repetiam todos os dias, por todo o Gulag. No entanto, apesar do clima, da inexperiência e da má gestão, a pressão sobre os administradores
dos campos, e sobre os presos, nunca amainava. As chefias eram submetidas a infindáveis inspeções e programas de fiscalização e viviam sendo exortadas a melhorar
o desempenho. Os resultados, por mais que fossem fictícios, tinham importância. Por mais ridículo que possa ter parecido aos prisioneiros - os quais sabiam perfeitamente
quanto o trabalho era acochambrado -, a brincadeira era terrivelmente séria. Muitos dos presos não sobreviveriam a ela.
KVCh: o Departamento de Cultura e Educação
Caso não estivesse claramente indicado que elas pertenciam ao arquivo da NKVD, o observador casual poderia ser desculpado se achasse que as fotos do Bogoslovlag
- que aparecem num álbum cuidadosamente conservado, datado de 1945 - não eram de um campo de concentração. As imagens mostram jardins bem plantados, flores, arbustos,
um chafariz e um quiosque em que os presos podiam sentar e conversar. A entrada do campo é marcada por uma estrela vermelha e um slogan: "Votamos todas as nossas
forças para o poderio futuro da pátria!"
As fotos de presos que adornam outro álbum, arquivado ali perto, são igualmente difíceis de conciliar com a imagem popular que se tem dos detentos do Gulag. Há um
homem que, contente, segura uma abóbora; vacas puxam arado; um sorridente comandante de campo colhe uma maçã. Ao lado das imagens, vêem-se gráficos. Um mostra a
produção planejada do campo; o outro, o cumprimento da meta.
Todos esses álbuns - montados, colados e etiquetados com o mesmo zelo que as crianças demonstram quando elaboram um trabalho para apresentação em classe - foram
produzidos por uma só instituição: o Departamento de Cultura e Educação do Gulag (Kolturno-vospitatelnaya Chast, ou KVCh, como era mais conhecido dos presos). Ele,
ou algum equivalente, existia desde o início do Gulag. Em 1924, a primeira edição do Slon, o periódico da prisão de Solovetsky, continha um artigo sobre o futuro
dos estabelecimentos prisionais no país: "A política de trabalho correcional da Rússia precisa reabilitar os presos acostumando-os a participar do trabalho produtivo
organizado".
Na maioria das vezes, porém, o verdadeiro objetivo da propaganda dos campos era aumentar as cifras de produção. Foi esse o caso até durante a construção do Canal
do Mar Branco, quando, como já vimos, a propaganda de "reabilitação" teve sua fase mais ostensiva e, talvez, mais sincera. Naquela época, o culto nacional do trabalhador
de choque estava no auge. No campos, artistas pintavam retratos dos melhores operários do canal, e atores e músicos montavam espetáculos e concertos especiais para
eles. Os trabalhadores de choque eram até convidados a enormes assembléias, nas quais se cantava e discursava. Uma delas, realizada em 21 de abril de 1933, foi seguida
de uma "investida de trabalho": durante 48 horas, nenhum dos 30 mil trabalhadores de choque deixou o local de serviço.
Esse tipo de atividade foi abandonado sem nenhuma cerimônia no final dos anos 1930, quando os presos se tornaram "inimigos do povo" e já não podiam simultaneamente
ser "trabalhadores de choque". Mesmo assim, depois que Beria assumiu os campos (1939), a propaganda foi aos poucos retornando. Embora nunca mais tivesse havido outro
Canal do Mar Branco - um projeto do Gulag cujo "êxito" fora alardeado para o mundo -, a linguagem da reabilitação voltou aos campos. Em teoria, na década de 1940,
todo campo tinha um instrutor do KVCh, assim como uma pequena livraria e um "clube" do KVCh, onde se organizavam concertos e exibições teatrais e ocorriam palestras
e debates políticos. Thornas Sgovio se recordaria de um desses clubes:
O recinto principal, acomodando cerca de trinta pessoas, tinha paredes de madeira pintadas em cores vistosas. Havia algumas mesas, em princípio para leitura. Contudo
não existiam livros, jornais nem outros periódicos. E como poderia ler sido diferente? Os jornais valiam seu peso em ouro - nós os usávamos para fazer cigarros.
A partir dos anos 30, os presos com ficha criminal eram supostamente os principais "clientes" do KVCh. Assim como não estava claro se presos políticos seriam autorizados
a ocupar cargos de especialistas, tampouco estava claro se valeria a pena tentar reabilitá-los. Em 1940, uma diretiva da NKVD sobre o trabalho cultural e educacional
nos campos afirmou categoricamente que quem cometera crimes anti-revolucionários não era material adequado para reabilitação. Nas montagens teatrais dos campos,
esses elementos podiam tocar instrumentos, mas não falar nem cantar.
Como em tantas outras situações, tais ordens eram mais desconsideradas do que obedecidas. E, também como em tantas outras situações, a verdadeira função do KVCh
na vida dos campos diferia daquilo que os poderosos do Gulag haviam tido em mente para o departamento. Se Moscou pretendia que o KVCh obrigasse os presos a darem
mais duro, os presos então usavam o KVCh a seu próprio modo: para obter apoio moral - e para sobreviver.
Em vista disso, parece que os instrutores culturais e educacionais nos campos procuravam difundir entre os presos o valor do trabalho, de maneira bem semelhante
àquela com que representantes do Partido Comunista procuravam fazê-lo fora do mundo prisional. Nos campos maiores, o KVCh produzia jornais locais. Às vezes eram
jornais de verdade, com reportagens e longos artigos sobre os êxitos do campo, assim como com "autocríticas" - comentários sobre o que estava errado no estabelecimento
-, as quais eram de rigor na imprensa soviética. Afora um breve período no começo da década de 1930, esses jornais se destinavam sobretudo aos administradores e
aos trabalhadores livres.
Para os presos, também havia jornais murais (afinal, ocorria escassez de papel). Um prisioneiro descreveu os jornais murais como "um atributo do modo de vida soviético
- ninguém os lia, mas eles apareciam regularmente". Com freqüência, tinham "seções humorísticas":
Obviamente, presumiam que trabalhadores que estavam morrendo de inanição leriam aquilo, dariam uma gostosa gargalhada e, por fim, chamariam à razão os folgados que
não queriam saldar através do trabalho honesto a dívida com a pátria.
Por mais risíveis que os jornais murais pudessem parecer a muitos, a direção do Gulag, em Moscou, os levava muito a sério. Esses jornais, ordenava uma diretiva,
devem "ilustrar os melhores exemplos de trabalho, popularizar os trabalhadores de choque, condenar os refratários e mandriões". Não se permitiam imagens de Stalin
- afinal, aqueles eram criminosos, não "camaradas", e continuavam "excomungados" da vida soviética, proibidos até de contemplar o rosto do líder Ademais, a freqüentemente
absurda atmosfera de sigilo que se abatera sobre os campos em 1937 perdurou por toda a década de 40: jornais que eram impressos nos campos não podiam sair dali.
Além de pôr jornais em paredes, o KVCh exibia filmes. Gustav Herling assistiu a um musical americano, "cheio de mulheres de corpete e homens de plastrom e paletó
acinturado", e a um filme de propaganda que concluía com "o triunfo da virtude": "Os desajeitados universitários ficavam em primeiro lugar na competição laborai
socialista e, com olhos chamejantes, faziam um discurso que enaltecia o Estado no qual o trabalho manual fora elevado à mais excelsa posição".
Entrementes, alguns presos comuns se aproveitavam das salas escuras onde se projetavam os filmes para matar outros, por vingança ou não. "Ao fim de uma dessas exibições,
lembro-me de ter visto o corpo de um morto passar numa maca", disse-me uma pessoa que estivera aprisionada no Gulag.
O KVCh também promovia partidas de futebol ou xadrez, concertos e apresentações que eram solenemente denominadas "atividades criativas autodidáticas". Um documento
de arquivo relaciona o seguinte repertório, de um conjunto de canto e dança da NKVD que fazia turnê pelos campos:
1. "A balada de Stalin"
2. "A meditação cossaca sobre Stalin"
3. "A canção de Beria"
4. "A canção da pátria"
5. "A luta pela pátria"
6. "Tudo pela pátria"
7. "A canção dos guerreiros da NKVD"
8. "A canção dos chekistas"
9. "A canção do longínquo posto de fronteira"
10. "A marcha dos Guardas de Fronteiras"
Ainda havia números mais ligeiros, como "Vamos fumar" e "Canção do Dnieper", que pelo menos celebrava um rio, e não uma instituição da polícia secreta. No repertório
teatral, também se incluíam algumas peças de Tchekhov. Mas, pelo menos em teoria, o grosso dos esforços artísticos se destinava à educação, e não ao entretenimento,
dos presos. Em 1940, uma ordem de Moscou declarava: "Toda apresentação deve educar os presos, ensinando-os a valorizar mais o trabalho". Como veremos, os presos
também aprendiam a usar essas apresentações para ajudá-los a sobreviver.
Mas as "atividades criativas autodidáticas" não eram a única preocupação do Departamento de Cultura e Educação - nem eram o único caminho para uma carga de trabalho
mais branda. O KVCh era igualmente responsável por reunir sugestões de como melhorar ou "racionalizar" o trabalho dos presos, tarefa que o departamento levava muito
a sério. No relatório semestral a Moscou, um campo em Nizhne-Amursk afirmava, sem ironia, ter obtido 302 racionalizações, das quais 157 haviam sido postas em prática,
tendo-se economizado assim 812.332 rublos.
Isaak Filshtinskii também observa, com muita ironia, que alguns presos se tornavam peritos em distorcer essa política em proveito próprio. Um deles, ex-motorista,
garantia saber como construir um mecanismo que possibilitaria aos carros usarem oxigênio como combustível. Os chefes do campo, empolgados com a perspectiva de descobrir
uma "racionalização" realmente importante, deram-lhe um laboratório onde pudesse desenvolver a idéia.
Não sei dizer se acreditavam nele ou não. Estavam simplesmente cumprindo determinações do Gulag. Em todo campo, pessoas deviam trabalhar como racionalizadores e
inventores [...] e - quem sabe? - talvez Vdovin acabasse descobrindo alguma coisa, e aí todos ganhariam o Prêmio Stalin!
Vdovin foi enfim desmascarado no dia em que voltou do laboratório com um gigantesco objeto feito de sucata, cujo propósito ele se mostrou incapaz de explicar.
Assim como no mundo extramuros, os campos de concentração continuavam a realizar "competições socialistas", nas quais os presos deviam concorrer uns contra os outros
para elevar a produção. Os campos também homenageavam seus trabalhadores de choque pela suposta capacidade de triplicar ou quadruplicar as metas de produção. No
capítulo 4, já descrevi a primeiras dessas campanhas, que começou nos anos 1930, mas elas continuaram pelos 40 - com entusiasmo sensível-mente menor e exagero sensivelmente
mais absurdo. Os presos que participavam podiam ganhar muitos tipos diferentes de prêmio. Alguns recebiam maiores rações ou melhores condições de vida. Outros, gratificações
mais intangíveis. Em 1942, por exemplo, o prêmio pelo bom desempenho podia abranger uma knizhka otlichnika, a caderneta concedida àqueles que alcançavam o status
de trabalhadores "ótimos". Ela compreendia um pequeno calendário, com espaço para registrar em porcentagem o cumprimento das metas diárias; um espaço em branco para
sugerir "racionalizações"; uma lista dos direitos do detentor da caderneta - a prerrogativa de ficar com o melhor lugar no alojamento, ter os melhores uniformes,
receber remessas externas sem restrições etc.; e uma citação de Stalin: "A pessoa esforçada sente-se um cidadão livre de seu país, uma espécie de ativista social.
E, se ela der duro, e der o que puder à sociedade, será um herói do trabalho".
Nem todos levavam esse prêmio muito a sério. O preso polonês Antoni Ekart também descreveria uma de tais campanhas:
Pendurava-se um Quadro de Honra (feito de compensado), no qual se indicavam os resultados das Competições dos Trabalhadores Socialistas à medida que eram anunciados.
Às vezes, exibia-se um retrato tosco do "trabalhador de choque" que estava na frente, dando detalhes dos recordes quebrados. Expunham-se números quase inacreditáveis,
mostrando uma produção 500% ou até 1.000% acima do normal. Isso se referia a cavar buracos com pás. Até os presos menos atilados sabiam ser impossível conseguir
cavar cinco ou dez mais do que o padrão.
Mas, no fim das contas, os instrutores do KVCh também tinham a responsabilidade de convencer os "folgados" de que era do interesse deles trabalhar, e não ficar em
celas punitivas, nem tentar sobreviver com rações pequenas. Fica claro que não muitos instrutores levavam tais palestras a sério - havia tantas outras maneiras de
persuadir os presos a trabalhar! Todavia, uns poucos as levavam, para júbilo dos maiorais do Gulag, em Moscou. Estes, aliás, consideravam importantíssima aquela
função do KVCh e até promoviam conferências periódicas de instrutores, para debater temas como "Quais as motivações básicas daqueles que se recusam a trabalhar?"
e "Quais os resultados práticos da eliminação do dia livre dos presos?".
Numa dessas reuniões, durante a Segunda Guerra Mundial, os organizadores trocaram impressões. Um deles reconheceu que alguns "folgados" não conseguiam trabalhar
porque estavam fracos demais para conseguir manter-se com a quantidade de alimento que recebiam. Ainda assim, alegou que mesmo os famintos podiam ser motivados:
ele dissera a um refratário que o comportamento deste era "como uma faca cravada nas costas de teu irmão, que está na frente de batalha". Tinha sido o suficiente
para fazer o homem esquecer a fome e dar mais duro. Outro dos instrutores presentes afirmou ter mostrado a alguns refratários fotos de "Leningrado em batalha", depois
do que todos eles foram de imediato para o trabalho. Outro ainda disse que, em seu campo, as melhores brigadas podiam decorar os respectivos alojamentos; e que os
melhores trabalhadores eram estimulados a plantar flores em vasos individuais, deles próprios. Nas atas da reunião (conservadas em arquivo), alguém fez uma anotação
ao lado desse último comentário: Korosho! ("Excelente!").
Compartilhar experiências dessa maneira era considerado tão importante que, no auge da guerra, o Departamento de Cultura e Educação do Gulag em Moscou se deu ao
trabalho de imprimir um folheto sobre o assunto. O título - com conotações claramente religiosas - era Retorno à vida. O autor, certo camarada Loginov, descreve
uma série de relacionamentos que teve com presos "mandriões". Utilizando astutas táticas psicológicas, converteu cada um deles para a crença no valor do trabalho
duro.
As histórias que Loginov conta são bem previsíveis. Numa delas, por exemplo, explica a Ekaterina Sh. (esposa instruída de um condenado à morte por espionagem em
1937) que a vida dela, embora arruinada, podia voltar a ter sentido no contexto do Partido Comunista. Loginov também expõe ao preso Samuel Goldshtein as "teorias
raciais" de Hitler e esclarece o que a "Nova Ordem" nazista na Europa acarretaria para ele, Goldshtein. O prisioneiro, de tão inspirado com esse surpreendente (na
URSS) apelo a sua judaicidade, quer partir na mesma hora para a frente de batalha. Loginov lhe diz que, "hoje, tua arma é teu trabalho"; e o convence a dar mais
duro no campo de concentração. "Tua pátria precisa de teu trabalho - e de ti", diz a outro preso ainda, que, com lágrimas nos olhos, volta ao serviço ao ouvir tais
palavras.
Fica evidente que o camarada Loginov se orgulha de sua função e se dedica a ela com muita energia. O entusiasmo dele era real. As recompensas que recebeu por seu
trabalho, também: V. G. Nasedkin então chefe de todo o sistema Gulag, mostrou-se tão satisfeito com o empenho de Loginov que premiou o autor com uma gratificação
de mil rublos e ordenou que o panfleto fosse enviado a todos os campos do sistema.
Está menos claro se Loginov e seus mandriões acreditavam de fato no que ele dizia. Não sabemos, por exemplo, se Loginov entendia em alguma medida que muitas das
pessoas que ele estava tentando "trazer de volta à vida" eram inocentes de todo e qualquer crime. Tampouco sabemos se pessoas como Ekaterina Sh., caso tenha existido,
realmente se reconverteram aos valores soviéticos; ou se de repente perceberam que, aparentando ter-se convertido, talvez recebessem melhor comida, melhor tratamento,
trabalho mais fácil. As duas possibilidades nem chegam a ser mutuamente excludentes. Para pessoas aturdidas e desorientadas com a rápida transição de cidadãos úteis
a prisioneiros desprezados, "ver a luz" e regressar à sociedade soviética pode não só tê-las ajudado a restabelecer-se psicologicamente, mas também ter-lhes proporcionado
a melhoria de condições que lhes salvou a vida.
Aliás, a pergunta "Será que eles acreditavam no que estavam fazendo?" é parte pequena de uma questão muito maior, a qual vai ao fundo do caráter da URSS: será que
algum dos líderes daquele país chegou a acreditar no que eles próprios estavam fazendo? A relação entre a propaganda e a realidade soviéticas sempre foi estranha:
as fábricas mal conseguem funcionar, não há nada para comprar no comércio, velhinhas não têm condições de aquecer seus apartamentos - e, nas ruas lá fora, faixas
proclamam o "triunfo do socialismo" e as "heróicas realizações da pátria soviética".
Nos campos do Gulag, tais paradoxos não eram diferentes. Stephen Kotkin, em sua obra sobre a história de Magnitogorsk, assina-la que, no jornal da colônia de trabalho
correcional dessa cidade fabril stalinista, os perfis dos condenados regenerados eram escritos numa "linguagem que lembrava muito o que se podia ouvir a respeito
de operários-padrão fora da colônia: eles davam duro, estudavam, sacrificavam-se e procuravam aprimorar-se".
Não obstante, havia nos campos um nível extra de singularidade. Se no mundo extramuros a enorme disparidade entre esse tipo de propaganda e a realidade soviética
já parecia risível a muitos, no Gulag o absurdo dava a impressão de alcançar novas culminâncias. Nos campos, onde os presos viviam sendo chamados de "inimigos",
estando categoricamente proibidos de tratarem-se por "camarada" e contemplarem o retrato de Stalin, eles mesmo assim deviam trabalhar pela glória da pátria socialista,
tal qual os homens e mulheres livres - e ainda participar de "atividades criativas autodidáticas" como se o fizessem por puro e simples amor à arte. O despropósito
ficava bastante claro para todos. Em certa altura de sua carreira no Gulag, Anna Andreevna se tornou "artista" do campo, significando que era empregada para pintar
aqueles slogans. Esse serviço, leve pelos padrões dos campos, lhe salvou certamente a saúde e possivelmente a vida. Mas, entrevistada anos depois, Anna afirmou nem
sequer se lembrar dos dizeres. Disse achar que "a chefia os concebia. Algo como 'Dedicamos todas as nossas forças ao trabalho' ou coisa assim [...]. Eu os pintava
muito depressa e, estritamente falando, muito bem, mas esqueci por completo o que escrevia. Isso aconteceu por alguma espécie de mecanismo de autodefesa".
Também chamou a atenção de Leonid Trus (prisioneiro no começo dos anos 1950) o despropósito dos slogans que estavam fixados por todas as construções do campo e que
eram repetidos pelos alto-falantes:
Havia um sistema de rádio do campo, que regularmente transmitia informações sobre nossos êxitos no trabalho e ralhava com quem não trabalhava direito. Essas transmissões
eram muito canhestras, mas me faziam lembrar as que eu ouvira em liberdade. Acabei convencendo-me de que a única diferença era que, em liberdade, as pessoas eram
mais talentosas e sabiam descrever tudo aquilo de modo mais bonitinho [...] em geral, o campo era igual à liberdade - os mesmos cartazes, os mesmos slogans -, só
que [no Gulag] as frases soavam mais absurdas. "Pegaram o serviço e o concluíram", por exemplo. Ou "Na URSS, o trabalho é questão de honestidade, honra, bravura
e heroísmo" - palavras de Stalin. Ou todos os outros slogans, como "Somos pela paz" ou "Desejamos a paz para o mundo inteiro".
Os estrangeiros que não estavam acostumados a slogans e faixas achavam o trabalho dos "reeducadores" ainda mais esquisito. O polonês Antoni Ekart descreveria uma
típica sessão de doutrinação política:
O método utilizado era o seguinte: um homem do KVCh, um agitador profissional com a mentalidade de uma criança de seis anos, falava aos presos sobre a nobreza de
envidarem todos os seus esforços no trabalho. Dizia-lhes que pessoas nobres eram patriotas; que todos os patriotas amavam a Rússia Soviética, o melhor país do mundo
para os trabalhadores; que os cidadãos soviéticos se orgulhavam de pertencer a um país assim etc. etc., durante duas horas inteiras - e isso tudo para um público
cuja própria aparência era testemunho do absurdo e da hipocrisia de tais afirmações. Mas o orador não se incomodava com a fria acolhida e continuava falando. Por
fim, prometia a todos os "trabalhadores de choque" mais gratificação, maiores rações e melhores condições. Pode-se imaginar o efeito disso em quem estava submetido
à disciplina da fome.
Um polonês desterrado teve a mesma reação a uma palestra propagandística a que assistiu num campo de concentração siberiano.
Durante horas e horas, o palestrante não parou de falar, tentando provar que Deus não existia, que Ele era apenas uma invenção burguesa. Devíamos nos considerar
afortunados por estarmos na URSS, o país mais perfeito do mundo. Ali no campo, aprenderíamos a trabalhar e enfim ser pessoas dignas. De quando em quando, ele procurava
nos instruir: assim, contava-nos que "a Terra é redonda" e que ele estava absolutamente convencido de que não sabíamos nada disso; de que também ignorávamos, por
exemplo, que Creta era "peninsular", ou que Roosevelt era ministro de algum país estrangeiro. Comunicava verdades desse tipo com uma confiança inabalável em nossa
total falta de conhecimento, pois como podíamos nós, criados num Estado burguês, esperar ter o benefício da educação mais elementar que fosse? [...] com muita satisfação,
enfatizava que não poderíamos sequer sonhar em recuperar a liberdade, pois a Polônia jamais se reergueria.
Infelizmente para o coitado do palestrante, todo o seu trabalho não adiantou de nada, segundo o polonês: "Quanto mais ele arengava, mais nos rebelávamos intimamente,
mantendo a esperança apesar de tudo. Os rostos se endureceram de obstinação".
Gustav Herling, outro polonês, descreveria as atividades culturais de seu campo de concentração como
vestígios dos regulamentos elaborados em Moscou nos tempos em que os campos realmente se destinavam a ser instituições correcionais e educacionais. Gogol teria detectado
aquela obediência cega a uma ficção oficial, mesmo que contraditória com a prática geral no campo - era como educar "almas mortas".
Tais opiniões não são casos isolados: encontram-se na imensa maioria dos registros, que ou nem mencionam o KVCh, ou o ridicularizam. Por esse motivo, é difícil,
quando se escreve sobre a função da propaganda no Gulag, avaliar a importância dela para a direção do sistema. Por um lado, pode-se muito bem argumentar - e muitos
o fazem - que a propaganda nos campos, assim como toda a propaganda soviética, era pura farsa; que ninguém lhe dava crédito; que era produzida pela administração
dos campos só para iludir os prisioneiros de maneira bastante pueril e óbvia.
Por outro lado, se a propaganda, os cartazes e as sessões de doutrinação política eram completamente ridículos - e se ninguém acreditava neles de jeito nenhum -,
então por que se desperdiçava tanto tempo e tanto dinheiro com aquilo? Tomando como amostra só os registros da administração do Gulag, há centenas e mais centenas
de documentos que atestam o trabalho intensivo do Departamento de Cultura e Educação. Por exemplo, no primeiro trimestre de 1943, quando a guerra estava no auge,
os campos e Moscou trocavam telegramas frenéticos, pois comandantes tentavam desesperadamente obter instrumentos musicais para os presos. Ao mesmo tempo, os campos
promoviam um concurso cujo tema era "A grande guerra patriótica do povo soviético contra os ocupantes fascistas alemães" e do qual participavam cinqüenta pintores
e oito escultores. Num tempo de escassez nacional de mão-de-obra, os órgãos centrais também recomendavam que todo campo empregasse um bibliotecário; um projetista
para exibir filmes de propaganda; e um kulturorganizator, prisioneiro que servia de assistente ao instrutor cultural e ajudava a travar a "batalha" pela limpeza,
a organizar as atividades artísticas, a elevar o nível cultural dos presos - e a ensiná-los a "entender corretamente as questões da política contemporânea".
Os instrutores culturais dos campos ainda apresentavam relatórios semestrais ou trimestrais sobre seu trabalho, muitas vezes arrolando com grande minúcia suas realizações.
Também em 1943, o instrutor cultural no Vosturallag (na época um campo para 13 mil presos) enviou um desses relatórios. Com 21 páginas, começava reconhecendo que,
no primeiro semestre daquele ano, as metas industriais do campo "não foram cumpridas". No segundo semestre, porém, tomaram-se providências. O Departamento de Cultura
e Educação ajudara a "mobilizar os presos para cumprirem e superarem as metas de produção estabelecidas pelo camarada Stalin", a "restabelecer a saúde dos presos
e fazer os preparativos para o inverno" e a "eliminar deficiências no trabalho cultural e educacional". Em seguida, o chefe do KVCh no campo listava os métodos
que empregava. Assinalava grandiosamente que, naquele segundo semestre, fizeram-se 762 discursos políticos, aos quais assistiram mais de 70 mil presos (é de supor
que muitos tenham ido mais de uma vez). Ao mesmo tempo, o KVCh promovera 444 palestras de informação política, com presença de 82.400 presos; imprimira 5.046 jornais
murais, lidos por 350 mil pessoas; apresentara 232 concertos e peças; exibira 69 filmes; e organizara 38 grupos de teatro. Um desses últimos até compusera uma canção,
citada com orgulho no relatório:
A brigada é simpática,
O dever nos chama,
O canteiro de obra nos aguarda,
A frente de batalha precisa de nosso trabalho.
Pode-se tentar aventar explicações para esse enorme esforço. Na burocracia do Gulag, talvez o Departamento de Cultura e Educação fosse o derradeiro bode expiatório:
se as metas não estavam sendo cumpridas, a culpa não era da má organização, nem da desnutrição, nem das práticas de trabalho estupidamente cruéis, nem da falta de
botas de feltro - era, isto sim, da propaganda insuficiente.
Talvez o motivo fosse a rígida burocracia do sistema: tão logo a cúpula decidia que precisava haver propaganda, todos tentavam obedecer à ordem sem questionar se
era ou não absurda.
Talvez a liderança moscovita estivesse tão isolada dos campos que realmente acreditasse que 444 palestras e 762 discursos políticos fariam homens e mulheres famélicos
trabalharem com mais afinco (ainda que isso pareça improvável, dadas as informações também disponíveis para essa mesma liderança nos relatórios dos inspetores dos
campos).
Ou talvez não haja nenhuma boa explicação. Vladimir Bukovsky, o dissidente soviético que depois também foi prisioneiro, dava de ombros quando lhe perguntavam sobre
isso. Segundo Bukovsky, aquele paradoxo era o que tornava o Gulag excepcional:
Em nossos campos, esperava-se não apenas que fossemos trabalhadores escravos, mas que também cantássemos e sorríssemos enquanto trabalhávamos. Não queriam só nos
oprimir - queriam que lhes agradecêssemos por isso.
12. PUNIÇÃO E RECOMPENSA
Quem ainda não esteve lá, estará.
Quem já esteve, nunca esquecerá.
Provérbio soviético acerca das prisões.
Shizo: as celas punitivas
Muito poucos campos de concentração soviéticos chegaram ao presente intactos, ou mesmo em ruínas. Por isso, é curioso que bom número de shtrafnye izolyhateri (celas
de isolamento, ou, no inevitável acrônimo, Shizo) continue de pé. Do lagpunkt 7 do Ukhtpechlag, só resta o pavilhão de celas punitivas, agora a oficina de um mecânico
de autos armênio. Ele deixou as grades nas janelas tal qual estavam, na esperança, segundo ele, de que "Soljenitsin compre meu imóvel". Do lagpunkt agrícola de Aizherom,
no Lokchimlag, não resta nada - exceto, mais uma vez, as celas punitivas, hoje transformadas na residência de várias famílias. Uma das idosas que moram ali elogia
a solidez de uma das portas. Esta ainda tem no meio um grande "buraco de Judas", pelo qual os guardas outrora espiavam os presos e lhes atiravam rações de pão.
A longevidade desses pavilhões é testemunho da robustez de sua construção. Sendo freqüentemente as únicas obras de alvenaria num campo de madeira, eram a zona prisional
dentro da zona prisional. Entre suas paredes, tinha-se o rezhim dentro do rezhim. "Uma edificação sombria de pedra" foi como um preso descreveu o pavilhão punitivo
em seu campo. "Portões externos, portões internos, sentinelas armadas a toda volta."
Na década de 1940, Moscou já emitira instruções minuciosas, descrevendo tanto a construção das celas punitivas quanto as normas para os condenados a viver ali. Cada
lagpunkt (ou grupo de lagpunkts, no caso dos menores) tinha um pavilhão punitivo, em geral logo do lado de fora da zona prisional, ou, se ficasse do lado de dentro,
"cercado por uma cerca intransponível", a alguma distância das outras edificações do campo. De acordo com um preso, essa restrição talvez não fosse necessária, já
que muitos prisioneiros procuravam evitar a cela punitiva "circundando-a à distância, nem sequer olhando na direção daquelas paredes de pedra cinzenta, interrompidas
por abertura que pareciam exalar um vazio escuro e gelado".
Todo complexo de campos devia também ter um pavilhão central de celas punitivas perto da sede (Magadan, Vorkuta, Norilsk). Na realidade, esse pavilhão central era
muitas vezes uma cadeia enorme, que conforme as normas, "deve estar em local o mais distante possível das regiões habitadas e das vias de transporte, ser bem guardado
e assegurar completo isolamento. A guarda deve compor-se apenas dos atiradores mais confiáveis, disciplinados e experientes, selecionados dentre os trabalhadores
livres". Tais cadeias centrais continham tanto celas comuns quanto solitárias. Essas últimas tinham de ficar numa construção especial, à parte, e eram reservadas
a "elementos particularmente nocivos". Os presos mantidos em isolamento não eram levados para trabalhar. Ademais, ficava-lhes vedado todo tipo de exercício, além
de fumo, papel e fósforo. Isso vinha acrescer-se às restrições "ordinárias" que se aplicavam a quem estava nas celas comuns: nada de cartas, nada de remessas de
fora, nada de visitas de familiares.
A primeira vista, a existência das celas punitivas parece contradizer os princípios econômicos gerais em que se baseava o Gulag. Manter edificações especiais e guardas
adicionais era caro. Manter detentos longe do trabalho era desperdício. Todavia, do ponto de vista da administração dos campos, as celas eram não uma forma extra
de tortura, e sim parte integral do vasto esforço para fazer os presos darem mais duro. Junto com as rações reduzidas, o regime punitivo se destinava a (1) intimidar
os otkazchiki, os que se recusavam a trabalhar; e (2) castigar os perpetradores de algum crime no campo, como homicídio ou tentativa de fuga.
Dado que esses dois tipos de delito tendiam a ser cometidos por diferentes tipos de preso, as celas punitivas, em alguns campos, tinham ambiente esquisito. De um
lado, estavam repletas de bandidos profissionais, mais propensos a matar e escapar. De outro lado, porém, outra categoria começou a lotá-las: os presos religiosos,
tanto homens quanto mulheres, as monashki, "freiras" que, por princípio, também se negavam a trabalhar para o Satã soviético. A finlandesa Aino Kuusinen, por exemplo,
estava num lagpunkt de Potma cujo comandante construiu um barracão punitivo só para mulheres profundamente religiosas que "se recusavam a trabalhar na lavoura e
passavam o tempo rezando em voz alta e entoando hinos". Elas não comiam com as outras prisioneiras; em vez disso, recebiam rações disciplinares naquele barracão.
Duas vezes ao dia, guardas armados as acompanhavam à latrina. "De tempos em tempos, o comandante as visitava de rebenque na mão, e gritos agudos de dor ressoavam
no barracão; elas costumavam ser despidas antes de açoitadas, mas nenhuma crueldade conseguia fazê-las desistir das preces e dos jejuns." Acabaram sendo levadas
embora. Aino acreditava que houvessem sido fuziladas.
Outros tipos de "refratários" inveterados também iam parar em celas punitivas. Aliás, a própria existência dessas celas impunha uma escolha aos presos: podiam ou
trabalhar, ou ficar alguns dias ali, virando-se com rações menores, sofrendo frio e desconforto, mas não se estafando nas florestas e outros locais de trabalho.
Lev Razgon narra a história do conde Tyszkiewicz, aristocrata polonês que, vendo-se num campo madeireiro siberiano, calculou que não sobreviveria com as rações fornecidas
e simplesmente se negou a trabalhar. Estimou que assim pouparia as forças, mesmo recebendo apenas a ração disciplinar.
Toda manhã, antes que as colunas de zeks se alinhassem no pátio e os presos fossem conduzidos marchando para fora do campo, dois carcereiros tiravam Tyszkiewicz
da cela punitiva. Pêlos curtos e grisalhos lhe cobriam o rosto e a cabeça rapada, e ele trajava os restos de um antigo capote, mais polainas. O oficial encarregado
da segurança do campo dava início à reprimenda didática de todos os dias: "Pois bem, seu conde de m..., seu m... estúpido, vai ou não vai trabalhar?"
"Não, senhor, não posso trabalhar", respondia o conde com voz muito firme.
"Ah, não pode, não é, seu m...?"
O oficial então explicava publicamente ao conde o que pensava deste e de seus parentes próximos e distantes e o que faria com ele logo, logo. Esse espetáculo diário
era fonte de satisfação geral para os outros detentos.
Mas, embora Razgon conte a história com humor, tal estratégia era muito arriscada, pois o regime punitivo não era concebido para ser aprazível. Oficialmente, as
rações disciplinares diárias para presos que não cumpriam as metas eram de 300 gramas de "pão preto de centeio", 5 gramas de farinha, 25 gramas de trigo-sarraceno
ou macarrão, 27 gramas de carne e 170 gramas de batata. Se bem que essa já fosse uma quantidade ínfima de comida, os presos que ficavam nas celas punitivas recebiam
ainda menos: 300 gramas daquele pão preto ao dia, mais
água quente e "alimento líqüido quente" (ou seja, sopa) só uma vez a cada três dias.
Contudo, para a maioria dos presos, o aspecto mais desagradável do regime punitivo estava não no sofrimento físico - a edificação isolada, a comida ruim -, mas nos
outros suplícios que dessem na veneta do comando local. Os beliches compartilhados, por exemplo, podiam ser substituídos por um simples banco. Ou o pão podia ser
feito com cereal não-processado. Ou então o "alimento líqüido quente" podia ser mesmo bem aguado. Janusz Bardach foi posto numa cela punitiva cujo piso ficava coberto
de água e cujas paredes eram encharcadas e cobertas de limo:
Minha roupa de baixo já estava molhada, e eu tremia. Sentia rigidez e cãibras no pescoço e nos ombros. A madeira do banco, bruta e ensopada, estava apodrecendo,
principalmente nas beiradas [...] o banco era tão estreito que eu não conseguia deitar de costas, e, quando ficava de lado, as pernas pendiam da beirada; tinha de
mantê-las dobradas o tempo todo. Difícil mesmo era resolver de que lado deitar: de um lado, a cara ficava espremida contra a parede; de outro, as costas ficavam
molhadas.
A umidade era comum, assim como o frio. Embora as normas determinassem que a temperatura nas celas punitivas não podia ser inferior a dezesseis graus, o aquecimento
era com freqüência negligenciado. Gustav Herling lembraria que, em seu pavilhão punitivo, "as janelas das pequenas celas não tinham nem vidraças nem tábuas, de modo
que a temperatura nunca era mais alta que lá fora". Herling descreveria outras maneiras pelas quais as celas eram concebidas para criar desconforto:
Minha cela era tão baixa que eu conseguia tocar o teto com a mão [...] era impossível sentar no beliche de cima sem dobrar as costas contra o teto; só se podia entrar
no de baixo com um movimento de mergulho, e para sair era preciso alçar-se da madeira, como um nadador num banco de areia. A distância entre a beirada do beliche
e o balde sanitário na porta era de menos que uma passada normal.
Os comandantes de campo também estavam autorizados a decidir se os presos usariam roupa na cela (muitos eram mantidos só de roupa de baixo) e se os mandariam para
o trabalho. Quando os presos não trabalhavam, permaneciam no frio das celas o dia todo, sem exercício. Quando trabalhavam, passavam muita fome. Nadezhda Ulyanovskaya
ficou um mês à base de rações disciplinares, mas ainda assim a fizeram trabalhar. "Vivia com vontade de comer", escreveria. "Comecei a falar só de comida." Por
causa das mudanças freqüentemente inesperadas no regime punitivo, os presos morriam de medo de ser mandados para as celas. "Ali, presos choravam feito crianças,
prometendo ser bonzinhos só para sair", escreveria Herling.
Nos complexos maiores, havia tipos diversos de tormento: não apenas celas punitivas, mas também barracões e até lagpunkts punitivos. Em 1933, o Dmitlag, campo que
construiu o Canal Moscou-Volga, estabeleceu um "lagpunkt de regime estrito" para "refratários ao trabalho, fujões, larápios e outros". A fim de garantir a segurança,
a chefia do campo prescreveu que o novo lagpunkt tivesse cerca dupla de arame farpado; que guardas adicionais conduzissem os presos ao trabalho; e que os presos
fizessem trabalho braçal pesado em locais de onde fosse difícil escapar.
Mais ou menos na mesma época, a Dalstroi criou um lagpunkt disciplinar, que, no final dos anos 1930, se tornaria um dos mais infames do Gulag: Serpantinnaya (ou
Serpantinka), na encosta setentrional dos montes logo acima de Magadan. Cuidadosamente situado para receber muito pouco sol, mais frio e mais escuro que os outros
campos do complexo (localizados no vales e já bem frios e escuros durante grande parte do ano), o campo punitivo da Dalstroi era mais fortificado que outros lagpunkts
e também serviu de local de execução em 1937 e 1938. Seu nome era usado para amedrontar os presos, que igualavam a ida para Serpantinka à sentença de morte. Um
dos pouquíssimos sobreviventes descreveria o alojamento como "tão superlotado que os prisioneiros se revezavam para sentar no chão, enquanto todos os restantes permaneciam
de pé. Pela manhã, a porta se abria, e chamavam de dez a doze presos pelo nome. Ninguém respondia. Aí, os primeiros que estavam à mão eram arrastados para fora e
fuzilados".
Na realidade, sabe-se muito pouco sobre Serpantinka, em boa parte porque sobrou tão pouca gente para dizer como era o campo. Sabe-se ainda menos sobre lagpunkts
punitivos estabelecidos em outros lugares; por exemplo, o de Iskitim (do complexo do Siblag), construído numa pedreira de calcário. Ali, os presos trabalhavam sem
maquinaria e sem equipamento, escavando com as mãos. Cedo ou tarde, a poeira matava muitos, em decorrência de doenças pulmonares e outros problemas respiratórios.
Anna Larina, a jovem esposa de Bukharin, ficou encarcerada lá durante breve período. A maior parte dos outros prisioneiros (e mortos) de Iskitim continua anônima.
Não foram, porém, esquecidos de todo. O sofrimento dos cativos afetou tão profundamente a imaginação do povo de Iskitim que, muitas décadas depois, o surgimento
de uma nova fonte de água numa colina ao lado do antigo campo seria saudada como um milagre. Dado que o barranco abaixo da fonte era, segundo a tradição local, lugar
de execuções em massa de prisioneiros, os habitantes acreditavam que a água santa era a maneira pela qual Deus decidira manter viva a lembrança daqueles mortos.
Num dia silencioso e gelado no final do inverno siberiano, quando o solo ainda estava coberto por um metro de neve, pude ver grupos de fiéis subirem o morro até
a fonte, encherem garrafas e canecas de plástico com a água límpida e a bebericarem reverentemente - às vezes olhando, de modo solene, para o barranco lá embaixo.
POCHTOVYI YASHCHIK: A CAIXA DO CORREIO
A Shizo era a máxima punição do sistema penal. Entretanto, o Gulag também fazia agrados aos detentos - contrabalançando castigos com recompensas. Junto com a comida,
o sono e o trabalho, o campo controlava o contato dos presos com o mundo extramuros. Ano após ano, os administradores do Gulag em Moscou enviavam instruções, fixando
quantas cartas e remessas de gêneros ou dinheiro os detentos podiam receber e quando e como os familiares podiam visitá-los.
Assim como as instruções referentes às celas punitivas, as normas que regiam esses contatos variaram com o tempo. Ou talvez seja mais exato dizer que, de modo geral,
os contatos foram ficando mais limitados com o passar dos anos. As instruções que descreviam em termos genéricos o regime prisional de 1930, por exemplo, estipulavam
apenas que os presos podiam enviar e receber um número ilimitado de cartas e remessas. Também se permitiam as visitas de familiares, sem restrições específicas,
embora o número de visitas (o qual não vinha determinado nas instruções) dependesse do bom comportamento do preso.
Contudo, em 1939, as instruções já eram muito mais detalhadas. Afirmavam especificamente que apenas os presos que cumprissem as metas de produção poderiam encontrar-se
com os parentes, e mesmo assim só de seis em seis meses. Quem excedesse as metas teria direito a uma visita por mês. As remessas de fora também se tornaram mais
limitadas: os presos em geral podiam receber somente uma por mês, e os condenados por crimes anti-revolucionários, uma a cada três meses.
Em 1939, já surgiram igualmente inúmeras regras para o envio e recebimento de cartas. Alguns presos políticos podiam receber cartas uma vez por mês; outros, apenas
a cada três meses. Ademais, os censores dos campos proibiam categoricamente os presos de escrever sobre certos assuntos: não podiam indicar o número de detentos
em seu respectivo campo, discutir detalhes do regime prisional, mencionar guardas pelo nome ou dizer que tipo de trabalho se realizava ali. Cartas que continham
tais detalhes eram não apenas confiscadas por aqueles censores, mas também cuidadosamente registradas na ficha do preso - sendo de supor que se fazia isso para usá-las
como prova de "espionagem".
Todos esses regulamentos eram sempre modificados, emendados e adaptados às circunstâncias. Durante a guerra, por exemplo, suspenderam-se todas as restrições ao número
de remessas de alimentos recebidas - as autoridades dos campos parecem ter tido a esperança de que os familiares simplesmente ajudassem a alimentar os presos, tarefa
que, na época, era difícil ao extremo para a NKVD. Por outro lado, depois da guerra, prisioneiros em campos disciplinares especiais para criminosos violentos - bem
como em campos especiais para presos políticos - viam diminuir outra vez o direito ao contato com o mundo extramuros. Estavam autorizados a escrever só quatro vezes
por ano e receber cartas apenas de parentes próximos (pais, irmãos, cônjuges e filhos).
Justamente porque os regulamentos eram tão variados e complexos, e porque eles mudavam com tanta freqüência, os contatos externos acabavam ficando (mais uma vez)
ao bel-prazer dos comandantes de campo. Cartas e remessas certamente nunca chegavam às celas, alojamentos ou lagpunkts punitivos. Tampouco chegavam a presos do quais
as autoridades, por alguma razão, não gostassem. Além disso, havia campos que simplesmente eram demasiado isolados e, por conseguinte, não recebiam nenhuma correspondência.
E existiam campos tão desorganizados que nem se preocupavam em distribuir a correspondência. Um desgostoso fiscal da NKVD escreveu que, num deles, "cartas e remessas
de gêneros e de dinheiro não são entregues aos presos e jazem aos milhares em depósitos e guaritas". Em grande numero de campos, as cartas eram recebidas com atraso
de meses. Isso quando eram: muitos presos só souberam anos depois que inúmeras cartas e remessas suas haviam sumido, e ninguém sabia informar se tinham sido roubadas
ou perdidas. Na situação inversa, presos que haviam sido categoricamente proibidos de receber cartas acabavam recebendo-as mesmo assim, apesar do empenho dos administradores
de campos.
De outra parte, alguns censores não somente cumpriam sua obrigação e distribuíam as cartas, como até deixavam algumas passar invioladas. Dmitrii Bystroletov se recordaria
de uma censora que se portava assim, uma konsomolka (membro da Juventude Comunista) que entregava aos presos cartas que não haviam sido nem abertas. "Ela estava
arriscando não um mero pedaço de pão, mas a própria liberdade: podia ser condenada a dez anos."
Havia, é claro, maneiras de burlar tanto a censura quanto as restrições ao número de cartas. Certa vez, Anna Razina recebeu do marido uma carta dentro de um bolo
(naquele momento, o marido já fora executado). Ela também viu cartas levadas para fora do Gulag às escondidas, enfiadas em solas de sapatos ou costuradas em roupas
de presos que estavam sendo libertados. Num campo de regime brando, Barbara Armonas mandava cartas clandestinamente por intermédio de presos que trabalhavam sem
guarda fora da zona prisional.
O general Gorbatov também descreve como, de dentro de um trem de traslado, enviou à esposa uma carta não-censurada, usando um método mencionado por muitos outros.
Primeiro, comprou de um dos presos um toco de lápis:
Dei o fumo cru ao condenado, peguei o lápis com ele e, quando o trem voltou a mover-se, escrevi uma carta nos papéis de cigarro [de enrolar], numerando cada folha.
Em seguida, fiz um envelope com o invólucro do fumo e o fechei com miolo de pão úmido. Para que o vento não levasse minha carta para os arbustos junto aos trilhos,
eu a lastreei com um pedaço de pão, que amarrei usando fios puxados de minha toalha. Entre o envelope e o pão, enfiei uma nota de um rublo e quatro papéis de cigarro,
cada um deles com esta mensagem: "Peço a quem encontrar este envelope que o sele e o ponha no correio". Fui à janela quando estávamos passando por uma grande estação
e deixei a carta cair.
Não muito depois, a mulher de Gorbatov a recebeu.
As instruções oficiais não mencionavam algumas dificuldades para a escrita de cartas. Mesmo que fosse permitido redigi-las, por exemplo -nem sempre era muito fácil
achar papel e lápis ou caneta.
"No campo, o papel constituía artigo de grande valor, pois os presos recisavam muito dele, mas era impossível obtê-lo", escreveria Bystroletov. "Que significa o
grito de 'Hoje é dia de mandar cartas! Passem-nas!' quando não há nada em que escrever, ou quando apenas uns poucos afortunados sabem escrever e os restantes, desalentados,
têm de permanecer nos beliches?"
Um preso se recordaria de trocar pão por duas páginas arrancadas de A questão do leninismo (livro cujo autor era Stalin). Nas entrelinhas, ele redigiu uma carta
à família. Em lagpunkts menores, até os administradores precisavam idear soluções criativas. Em Kedrovyi Shor, por exemplo, um contador usava papel de parede velho
para elaborar documentos oficiais.
As normas para o recebimento de remessas de gêneros eram ainda mais complexas. As instruções enviadas a cada comandante de campo ordenavam expressamente que os presos
abrissem todas as remessas na presença de um guarda, o qual então confiscaria qualquer item proibido. De fato, muitas vezes, esse recebimento se fazia acompanhar
de todo um ritual. Primeiro, o preso era avisado de sua boa sorte. Em seguida, guardas o escoltavam para o depósito, onde ficavam trancados os pertences pessoais
dos detentos. Depois que o preso abria a remessa, os guardas cortavam ou revolviam cada item (cada cebola, cada lingüiça) para assegurar-se de que não continha mensagens
secretas. Se tudo passasse pela inspeção, o preso seria autorizado a pegar alguma coisa da remessa. O resto permaneceria no depósito, à espera da próxima visita
autorizada do preso. Quem estivesse nas celas punitivas - ou houvesse caído em desfavor de alguma outra forma - ficaria proibido, é claro, de receber comestíveis
remetidos de casa.
Havia variações nesse sistema. Um preso logo percebeu que, se deixasse suas remessas no depósito, parte delas não demoraria a sumir, furtada pelos guardas. Por conseguinte,
arrumou um jeito de pendurar no cinto uma garrafa que recebera, cheia de manteiga, escondendo-a nas calças. "Com o calor do corpo, a manteiga estava sempre líqüida."
No final do dia, passava-a no pão. Dmitrii Brystoletov, num lagpunkt que não tinha nenhum depósito, precisou ser ainda mais criativo.
Na época, eu trabalhava na tundra, no canteiro de obras de uma fábrica, e morava num alojamento de operários onde era impossível deixar o que quer que fosse, e de
onde era impossível levar algo para a obra: as sentinelas à entrada do campo confiscavam e comiam tudo o que encontravam, e tudo o que ficasse no alojamento era
surrupiado e comido pelo dnevalni [o preso designado para limpar e vigiar o lugar]. Tinha-se de comer tudo de uma vez. Tirei um prego dos beliches, fiz dois buracos
numa lata de leite condensado e comecei a sugá-lo debaixo da coberta. Entretanto, eu estava tão exausto que caí no sono e aquele líqüido inestimável ficou pingando
inutilmente no imundo colchão de palha.
Também havia complicadas questões morais envolvendo as remessas, já que nem todos as recebiam. Deviam compartilhá-las? Em caso afirmativo, seria melhor fazê-lo apenas
com os amigos? Ou com os potenciais protetores? Na cadeia, pudera-se organizar "Comitês dos Pobres"; nos campos, porém, isso era impossível. Alguns davam a todos,
por bondade ou pelo desejo de granjear boa vontade. Outros só davam a pequenos círculos de amigos. E às vezes, conforme recordaria um preso, "acontecia de comermos
os biscoitos doces na cama, à noite, porque era desagradável fazê-lo na frente dos outros".
Durante os piores anos da guerra, nos campos setentrionais mais duros, as remessas podiam constituir a diferença entre a vida e a morte. Um memorialista, o diretor
de cinema Georgii Zhenov, afirma ter sido literalmente salvo por duas remessas. A mãe as mandara de Leningrado em 1940, e ele as recebeu três anos depois, "no momento
mais crucial, quando eu, faminto e tendo perdido toda a esperança, estava lentamente morrendo de escorbuto".
Na época, Zhenov trabalhava na casa de banhos de um lagpunkt, pois estava fraco demais para a lida na floresta. Ao ser informado de que recebera as duas remessas,
ele de início nem acreditou. Depois, convencido de que era verdade, pediu ao responsável pelos banhos permissão para caminhar os dez quilômetros até a administração
central do campo, onde ficava o depósito. Após duas horas e meia, voltou: "Com dificuldade, só conseguira caminhar um quilômetro". Aí, vendo um grupo de capatazes
da NKVD num trenó, "urna idéia extravagante me passou pela cabeça: e se eu pedisse para ir com eles?". Concordaram, e o que aconteceu em seguida "pareceu um sonho":
Zhenov entrou no trenó; percorreu os dez quilômetros; desceu com muita dificuldade, ajudado por aqueles capatazes; solicitou suas remessas, velhas de três anos;
e as abriu.
Tudo o que fora posto no pacote - açúcar, lingüiça, banha, confeito, cebola, alho, biscoito doce, biscoito salgado, cigarro, chocolate, junto com os papéis em que
se embrulhara cada uma dessas coisas - se misturara, como numa máquina de lavar roupa, enfim se transformando numa única massa dura, com um odor adocicado de podridão,
mofo, fumo e confeito.
Fui até a mesa, cortei um pedaço a faca e, na frente de todos, quase sem mastigar, engoli apressadamente, sem distinguir sabor nem cheiro - temendo, em suma, que
alguém me interrompesse ou tomasse aquilo de mim.
DOM SVIDAHII: A CASA DE VISITAS
No entanto, não eram cartas e remessas o que evocava entre os presos a maior das emoções, ou a maior das agonias. Muito mais dolorosos eram os encontros com os familiares,
em geral o cônjuge ou a mãe. Só os presos que haviam cumprido as metas e seguido obedientemente as normas tinham permissão para receber visitas - documentos oficiais
as descrevem, com clareza, como recompensa pelo "bom trabalho, zeloso e acelerado". E a promessa de visita de um familiar era mesmo fortíssimo estímulo à boa conduta.
Desnecessário dizer que nem todos estavam em posição de receber visitas. Para começo de conversa, as famílias precisavam ter suficiente coragem moral para manter
contato com um parente que era "inimigo do povo". Viajar para o Cazaquistão, Kolyma, Vorkuta ou Norilsk, mesmo como cidadão livre, também exigia coragem física.
O visitante teria não apenas de suportar uma longa jornada ferroviária para uma cidade longínqua e primitiva, mas também de andar, ou pegar carona e fazer um percurso
sacolejante na traseira de um caminhão, até o lagpunkt. Depois disso, talvez precisasse esperar dias ou mais, implorando a desdenhosos comandantes de campo a autorização
para ver o preso - autorização que podia muito bem ser negada sem nenhuma justificação. Em seguida, o familiar encarava outra longa viagem, agora de retorno, pela
mesma rota enfadonha.
Além do desconforto físico, o desgaste psicológico desses encontros podia ser terrível. Segundo escreveria Herling, as mulheres que chegavam para visita
sentiam o sofrimento ilimitado de seus cônjuges, sem entendê-lo por completo ou ser capaz de ajudar de algum modo; os longos anos de separação haviam eliminado muito
da afeição pelos maridos [...] o campo, distante e vedado às visitantes, ainda assim as ameaça de modo sombrio. Não são prisioneiras, mas têm parentesco com aqueles
inimigos do povo.
Esses sentimentos ambíguos não se limitavam às esposas. Um preso conta a história de uma mulher que trouxera a filha de dois anos para ver o pai. Ao chegarem, ela
disse à menina: "Vá dar um beijo no papai". A criança correu para o guarda e o beijou no pescoço. A filha do cientista espacial soviético Sergei Korolev ainda se
recorda de ter sido levada para ver o pai quando ele estava num sharashka. Antes, vinham dizendo à menina que ele estava fora, combatendo na Força Aérea. Ao entrar
na prisão, ela ficou surpresa com as pequenas dimensões do pátio e perguntou à mãe: "Onde é que o papai aterrissa com o avião?".
Nas cadeias (e também em certos campos), tais encontros eram invariavelmente breves e costumavam ocorrer na presença de um guarda, uma regra que também causava enorme
desgaste. "Eu queria falar, dizer um bocado, contar tudo o que acontecera naquele ano", lembraria um preso, referindo-se à única vez em que lhe permitiram receber
a visita da mãe. Não só era difícil achar palavras, mas também, "se alguém começava a falar, a descrever alguma coisa, o guarda, sempre vigilante, interrompia e
dizia: 'Isso é proibido!'".
Ainda mais trágica é a história contada por Brystoletov, ao qual concederam em 1941 uma série de visitas da mulher - todas com a presença de um guarda. A esposa
viera de Moscou para despedir-se: após a prisão do marido, contraíra tuberculose e estava às portas da morte. Dando-lhe o último adeus, ela esticou a mão e o tocou
no pescoço, o que não era permitido (as visitas não podiam ter contato físico com os presos). O guarda afastou bruscamente o braço da mulher de Brystoletov, e ela
caiu no chão, tossindo sangue. Brystoletov escreve que "perdeu a cabeça" e passou a bater no guarda, o qual começou a sangrar. O preso só foi salvo de severíssima
punição pela guerra, que irrompeu naquele mesmo dia; no caos subseqüente, esqueceu-se a agressão ao guarda. Brystoletov nunca mais reviu a mulher.
Contudo os guardas nem sempre estavam presentes. Aliás, nos lagpunkts maiores, dos campos mais amplos, às vezes se permitiam visitas de vários dias, sem nenhum guarda.
Na década de 1940, essas visitas em geral aconteciam numa dom svidanii (casa de visitas), especialmente construída para esse propósito no limite do campo. Herling
descreve uma delas:
A casa em si, quando vista da estrada que levava da aldeia à cidade, causava boa impressão. Era construída de toras de pinho bruto, com interstícios calafetados
e bom telhado. [...] A porta que ficava fora da zona prisional só podia ser usada por visitantes livres; chegava-se a ela por alguns degraus de madeira sólida. Cortinas
de algodão cobriam as janelas, e os peitoris eram cobertos de longas floreiras. Cada cômodo era mobiliado com duas camas bem arrumadas, uma mesa grande, dois bancos,
uma bacia e uma jarra de água, um guarda-roupa e um fogareiro de ferro; a luz era até de abajur. O que mais poderia desejar dessa modelar habitação pequeno-burguesa
um preso que passara anos compartilhando beliches num alojamento imundo? Nossos sonhos de vida em liberdade se inspiravam naquele cômodo.
E no entanto... Com freqüência, quem aguardara ansiosamente aquele "sonho de liberdade" sentia-se muito pior quando o encontro acabava mal, como muitas vezes acontecia.
Temendo ficarem aprisionados pelo resto da vida, alguns presos já iam ordenando aos familiares que não voltassem nunca mais. "Esqueça-se deste lugar", um deles disse
ao irmão, que viajara muitos dias, em temperaturas baixíssimas, para encontrar-se com ele por vinte minutos. "Para mim, é mais importante que tudo fique bem com
você." Homens que reviam as esposas pela primeira vez em anos sentiam-se repentinamente tomados de nervosismo sexual, conforme lembra Herling:
Anos de trabalho pesado lhes haviam solapado a virilidade, e agora, antes de um encontro íntimo com uma mulher quase estranha, sentiam, além da agitação nervosa,
o medo e a desesperança sem solução. Várias vezes, após visitas, ouvi homens se gabarem de suas proezas, mas em geral essas coisas eram motivo de humilhação, sendo
respeitadas em silêncio por todos os presos.
As esposas em visita tinham os próprios problemas para discutir. No mais das vezes, haviam sofrido um bocado com o encarceramento dos maridos. Não conseguiam emprego,
não podiam estudar e, com freqüência, tinham de esconder de vizinhos curiosos o fato de serem casadas. Algumas chegavam para informar que pretendiam divorciar-se.
Em O primeiro círculo, Soljenitsin narra, com surpreendente compaixão, uma de tais conversas, baseada num diálogo real que tivera com a própria esposa, Natasha.
No livro, Nadya (mulher do preso Gerasi-movich) está a ponto de perder tanto o emprego num albergue de estudantes quanto a possibilidade de concluir sua tese acadêmica,
tudo porque o marido é detento. Ela sabe que o divórcio é a única maneira de "ter alguma chance de voltar a viver":
Nadya baixou o olhar. "Eu queria dizer... Não fique chateado, está bem?... Uma vez, você disse que devíamos nos divorciar..." Ela falou bem baixinho...
E, tinha havido época em que ele insistira nisso. Mas agora estava atônito. Só naquele momento reparou que a aliança de casada, que ela sempre usara, já não estava
no dedo.
"Ah, claro", ele concordou, aparentando total alegria.
"Então você não vai se opor se... se eu... tiver de fazer isso?" Com grande esforço, ela o encarou, os olhos arregalados. Os pontinhos em suas pupilas se iluminavam,
rogando por perdão e compreensão. "Seria... só para constar", acrescentou, arfando mais do que pronunciando a frase.
Tais encontros podiam ser piores que nenhum. Izrail Mazus, encarcerado nos anos 1950, conta a história de um preso que cometeu o erro de informar aos companheiros
que a mulher chegara. Enquanto se submetia à rotina exigida de todo detento que estava para receber visita - foi aos banhos, ao barbeiro e ao depósito, para reaver
algumas roupas adequadas -, os outros presos piscavam para ele e o cutucavam sem cessar, com provocações sobre a cama rangente da casa de visitas. Mas, no fim das
contas, nem sequer lhe permitiram ficar a sós com a esposa no quarto. Que tipo de "gostinho da liberdade" era aquele?
Contatos com o mundo lá fora se mostravam sempre complicados - pela expectativa ou pelo desejo. E de novo Herling quem escreve:
Qualquer que tivesse sido o motivo do desapontamento - a liberdade, usufruída por três dias, ou não correspondera à idealização, ou fora breve demais, ou, desaparecendo
tal qual um sonho interrompido, só deixara um vazio renovado em que não havia mais nada a esperar -, os presos ficavam invariavelmente taciturnos e irritadiços depois
das visitas. E isso para nem falarmos daqueles cujas visitas haviam se transformado na trágica formalidade da separação e do divórcio. Krestynski [...] tentou enforcar-se
duas vezes após uma conversa com a mulher, a qual lhe pedira o divórcio e a autorização para colocar os filhos num internato municipal.
O polonês Herling, que, na condição de estrangeiro, "jamais esperara receber ninguém" na casa de visitas, ainda assim percebia com mais clareza que muitos escritores
soviéticos a importância daquele lugar: "Cheguei à conclusão de que, se a esperança é com freqüência o único significado que resta na vida, dar-se conta disso pode
às vezes ser um tormento insuportável".
13. OS GUARDAS
Aos chekistas
Uma tarefa de grandiosa responsabilidade
Foi-te conferida por Lênin.
O rosto do chekista é marcado por inquietações
Que ninguém mais consegue compreender.
No rosto do chekista se estampa a coragem.
Ele está pronto a lutar, mesmo hoje,
Pelo bem e felicidade de todos.
Ele luta pelos trabalhadores.
Muitos tombaram em batalha,
E surgiram tantos túmulos de irmãos nossos.
Mas ainda restam muitos
Combatentes honrados e vigorosos.
Tremei, inimigos, tremei!
Logo, logo, vosso fim chegará!
Tu, chekista, estás sempre de guarda,
E em batalha liderarás no tropel.
Mikhail Panchenko, inspetor no sistema prisional soviético;
o poema foi conservado no mesmo dossiê que descreve a
expulsão de Panchenko do Partido e da NKVD.
Por estranho que possa parecer, nem todas as normas dos campos eram escritas pelos comandantes. Havia também regras tácitas - sobre como obter status, ganhar privilégios,
viver um pouco melhor que os outros -, bem como uma hierarquia extra-oficial. Quem seguia essas regras e aprendia a subir na hierarquia descobria ser muito mais
fácil sobreviver assim.
No topo, estavam os comandantes, os supervisores, os carcereiros e os guardas. Usei de propósito a expressão "no topo", em vez de "acima ou "para além" da hierarquia,
porque no Gulag os administradores e guardas não constituíam uma casta à parte, distanciada dos presos. Ao contrário dos guardas da SS nos campos nazistas, não eram
considerados imutável e racialmente superiores aos prisioneiros, de cuja etnia eles com freqüência partilhavam. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, havia
centenas de milhares de presos ucranianos nos campos, assim como um número extraordinário de guardas da mesma nacionalidade.
Tampouco guardas e presos habitavam esferas sociais inteiramente distintas. Alguns guardas e administradores faziam complexas negociatas de mercado negro com os
presos. Alguns se embriagavam com eles. Muitos "co-habitavam" - o eufemismo do Gulag para relações sexuais. De modo mais relevante, muitos eram ex-presos. No começo
dos anos 1930, considerava-se perfeitamente normal que detentos de boa conduta se "qualificassem" como guardas - e às vezes como elementos de posto ainda mais alto
na hierarquia. A carreira de Naftaly Frenkel talvez represente a transformação mais extraordinária, mas havia outros indivíduos com histórico parecido.
A trajetória de Yakov Kuperman, por exemplo, mostrou-se menos augusta que a de Frenkel, mas foi mais típica. Kuperman - que depois doaria suas memórias, não-publicadas,
à Sociedade Memorial de Moscou - foi detido na década de 1930 e condenado a sete anos. Cumpriu pena em Kem (a prisão onde se ficava em trânsito antes de seguir definitivamente
para Solovetsky) e depois foi trabalhar na divisão de planejamento das obras do Canal do Mar Branco. Em 1932, o caso de Kuperman foi revisto, e sua situação legal
se modificou: ele passou de preso para degredado. Acabou obtendo soltura e assumiu um cargo na ferrovia Baikal-Amur (o Bamlag), experiência que recordaria "com satisfação"
até o fim da vida. Sua biografia não era incomum. Em 1938, mais de metade dos administradores e quase metade dos guardas armados do Belbaltlag (o campo que construiu
o Canal do Mar Branco) eram antigos ou atuais presos.
No entanto, podia-se tanto perder quanto ganhar status. Assim como era relativamente fácil para o prisioneiro tornar-se carcereiro, também era relativamente fácil
para o carcereiro tornar-se prisioneiro. Administradores e comandantes de campo do Gulag estavam entre os milhares de homens da NKVD detidos nos expurgos de 1937
e 1938. Em anos posteriores, funcionários e guardas graduados do Gulag seriam freqüentemente presos por colegas suspeitosos. Nos lagpunkts isolados, a fofoca e a
maledicência eram comuns: dossiês inteiros dos arquivos do Gulag se dedicam a denúncias e refutações, cartas furiosas sobre deficiências dos campos, queixas de falta
de apoio da liderança central e de más condições de trabalho - e subseqüentes solicitações de que os culpados, ou desafetos, fossem encarcerados.
Administradores e guardas armados eram volta e meia aprisionados por deserção, bebedeira, furto, perda das armas e até maus-tratos aos detentos. Os registros do
campo de trânsito do porto de Vanino, por exemplo, contêm descrições dos casos de V N. Sadovnikov, guarda armado que matou uma enfermeira do campo (ele pretendera
mesmo era matar a esposa); de I. M. Soboleev, que afanou 300 rublos de um grupo de presos, embebedou-se e deixou sumir a carteirinha do Partido; de V. D. Suvorov,
que organizou uma bebedeira e depois arrumou briga com um grupo de oficiais; e de outros que "beberam até desmaiar", ou que estavam embriagados demais para exercer
suas funções. Na papelada pessoal de Georgi Malenkov, um dos lugar-tenentes de Stalin, inclui-se o relatório do caso de dois administradores de campo que, durante
uma bebedeira, assassinaram dois colegas, entre eles uma médica com dois filhos pequenos. Em carta a Moscou, um administrador de campo se queixou de que a vida
nos postos mais longínquos era tão enfadonha que a falta de entretenimento levava "muitos dos rapazes a desertar, desrespeitar a disciplina, embebedar-se e se meter
com o carteado - atitudes que com freqüência acabam levando à prisão".
Para alguns, era possível, e até comum, cumprir o ciclo completo: oficiais da NKVD tornavam-se prisioneiros e depois de novo carcereiros, iniciando sua segunda carreira
na administração do Gulag. Muitos ex-presos escrevem da rapidez com que oficiais da NKVD caídos em desgraça se reerguiam nos campos e obtinham posições de real poder.
Lev Razgon, em suas memórias, narra o encontro com certo Korabelnikov, funcionário de baixo escalão da NKVD que ele conheceu durante a viagem de Moscou para o campo
de concentração. Korabelnikov lhe contou que fora detido porque tagarelara com o melhor amigo sobre uma das amantes dos chefes, pegando "cinco anos como Elemento
Socialmente Perigoso - e sendo transportado para o campo junto com o resto". Mas Korabelnikov não era exatamente como o resto. Alguns meses depois, Razgon voltou
a encontrá-lo. Dessa vez, Korabelnikov envergava um uniforme do campo, limpo e bem cortado. Usara de astúcia para arrumar uma "boa" ocupação, administrando o lagpunkt
punitivo do Ustvymlag.
A narrativa de Razgon reflete uma realidade que os arquivos registram. De fato, um número enorme de administradores e guardas do Gulag tinha ficha criminal. Aliás,
parece que, na NKVD, o Gulag funcionava explicitamente como local de exílio, a derradeira chance do secreta degradado. Depois de mandados para os limites mais longínquos
do império do Gulag, esses homens raramente podiam voltar a qualquer outro departamento da NKVD, para nem falarmos de Moscou. Em sinal de sua situação diferenciada,
os funcionários do Gulag usavam uniformes também diferentes e tinham um sistema ligeiramente diverso de insígnias e postos hierárquicos. Nas conferências do Partido,
os oficiais do Gulag se queixavam de seu status inferior. "O Gulag é visto como uma administração da qual se pode exigir tudo e não dar nada em troca", reclamava
um oficial. "Esse modo de pensar excessivamente simplório - a idéia de que somos piores que todo o mundo - está errado e possibilita que se perpetuem injustiças
em termos de soldo, habitação etc." Posteriormente, em 1946, quando a NKVD foi dividida e de novo rebatizada, o Gulag passou para o controle do Ministério do Interior
(MVD), e quase todas as outras funções mais interessantes, em especial a espionagem e contra-espionagem, foram para o Ministério da Segurança do Estado (MGB, depois
KGB), mais prestigioso. O MVD, que administraria o sistema prisional até o funda URSS, continuaria sendo uma burocracia menos influente.
Desde o início, aliás, os comandantes de campo tinham status relativamente baixo. Numa carta que se conseguiu fazer sair às escondidas de Solovetsky no começo dos
anos 1920, um preso escreveu que a administração do campo se compunha inteiramente de chekistas caídos em desgraça, que tinham sido "condenados por especulação,
extorsão, agressão ou algum outro delito especificado no Código Penal Ordinário". Nas década de 1930 e 40, o Gulag se transformou no destino final de autoridades
da NKVD cujo currículo não correspondia aos pré-requisitos: aqueles cuja proveniência social não era proletária o bastante, ou cuja condição de judeus, poloneses
ou baltas os tornava suspeitos em períodos nos quais esses grupos étnicos estavam sendo reprimidos com vigor. O Gulag também constituía o último refúgio daqueles
que simplesmente eram néscios, incompetentes ou beberrões. Em 1937, Izrail Pliner, então chefe do Gulag, queixou-se:
Deixam-nos as sobras das outras seções; mandam-nos gente com base no princípio de que "Vocês podem ficar com aquilo de que não precisamos". A nata dessa turma são
os bêbados incorrigíveis; tão logo um homem dá para beber, é despejado no Gulag. [...] Do ponto de vista do aparato da NKVD, se alguém comete um delito, o maior
castigo possível é mandá-lo trabalhar num dos campos.
Em 1939, outra autoridade do Gulag descreveu os guardas dos campos como "gente não de segunda, mas de quarta classe, o próprio rebotalho". Em 1945,Vasily Chernyshev,
na época o chefe do Gulag, enviou memorando a todos os comandantes de campo e diretores regionais da NKVD para manifestar seu horror ante a baixa qualidade dos guardas
armados dos campos, entre os quais se haviam constatado elevados índices de "suicídio, deserção, perda e furto de armamento, embriaguez e outros atos amorais", assim
como freqüente "desrespeito às leis revolucionárias". Já em 1952, quando se descobriu corrupção nos escalões mais altos da polícia secreta, a primeira reação de
Stalin foi "exilar" um dos principais transgressores, que de imediato se tornou vice-comandante do campo de Bazhenovsky, nos Urais.
Os próprios arquivos do Gulag também confirmam a crença, expressa por um ex-preso, de que tanto administradores quanto guardas eram, "no mais das vezes, pessoas
muito limitadas". Por exemplo, dos onze homens que, entre 1930 e 1960, detiveram o título de "comandante do Gulag" (o chefe de todo o sistema de campos), apenas
cinco possuíam algum tipo de educação superior; três não tinham ido além do primário. E raramente os que ocupavam aquele cargo o mantinham por muito tempo: num período
de trinta anos, só dois homens - Matvei Berman e Viktor Nasedkin - ficaram mais de cinco anos na posição. Izrail Pliner durou apenas um ano (1937-8); Gleb Filaretov,
três meses (1938-9).
No ponto mais baixo da hierarquia da NKVD, os registros pessoais dos funcionários do serviço prisional mostram, a partir da década de 1940, que até os carcereiros
mais graduados - membros ou aspirantes à condição de membros do Partido - vinham quase inteiramente de famílias camponesas, possuindo instrução mínima. Poucos tinham
cinco anos de escolaridade, e alguns haviam completado apenas três. Em abril de 1945, perto de 75% dos administradores do Gulag não tinham nenhuma instrução além
do primário, uma porcentagem quase duas vezes maior que no resto da NKVD.
Os guardas armados dos campos - os voenizirovannaya okhrana, termo cujo acrônimo, Vokhr, dava nome à corporação deles, seguindo o hábito soviético - eram ainda menos
instruídos. Esses eram os homens que patrulhavam o perímetro dos campos, que faziam os presos marchar para o trabalho, que guardavam os trens de traslado, freqüentemente
tendo apenas uma vaga idéia dos motivos de suas funções. Conforme um relatório sobre o Kargopollag, "parece que os guardas não sabem os nomes de membros do Politburo,
nem de líderes do Partido". Outro relatório lista uma série de incidentes envolvendo guardas que haviam usado armamento de modo impróprio. Um desses indivíduos
feriu três presos "em conseqüência de não saber como sua arma funcionava". Outro, "embriagado em serviço, feriu o cidadão Timofeev".
Em reuniões, comandantes de divisão se queixavam de que
Os guardas não sabem lubrificar, limpar nem manter suas armas. [...] Uma mulher que serve como guarda cumpriu turno tendo um trapo enfiado no cano da arma. [...]
Alguns guardas pegam os fuzis de outros, deixando os seus em casa porque são demasiado preguiçosos para limpá-los sempre.
Constantes cartas de Moscou instavam os comandantes locais a passarem mais tempo entre os guardas, em "trabalho cultural e educacional".
No entanto, até as "sobras" e os "bêbados incorrigíveis" de outros departamentos da NKVD conseguiam atender aos pré-requisitos de trabalho no Gulag. A maioria das
instituições soviéticas se ressentia da falta crônica de pessoal, e o Gulag sofria em especial. Nem mesmo a NKVD foi capaz de arranjar número suficiente de delinqüentes
para, transformando-os em funcionários, suprir o aumento de 1.800% nos efetivos entre 1930 e 1939, ou fornecer o contingente de 150 mil pessoas que foi preciso contratar
em 1939-41, ou atender à enorme expansão do pós-guerra. Em 1947, com 157 mil indivíduos servindo apenas nas unidades de vigilância armada dos campos, o Gulag ainda
achava que precisava de mais 40 mil guardas.
Até a dissolução final do sistema, esse dilema nunca deixou de atormentar a administração do Gulag. Excetuados os cargos de máximo escalão, o trabalho nos campos
de concentração não era considerado prestigioso nem atraente, e as condições de vida estavam longe de ser confortáveis, sobretudo nos locais mais acanhados e isolados
do extremo norte. A escassez generalizada de alimentos fazia que guardas e administradores recebessem víveres racionados, em quantidades atribuídas de acordo com
o posto hierárquico. Retornando de uma viagem de inspeção aos campos setentrionais da região de Vorkuta, certo inspetor do Gulag reclamou da má qualidade de vida
dos guardas armados, os quais trabalhavam de catorze a dezesseis horas por dia nas "difíceis condições climáticas do norte", muitas vezes não tinham indumentária
nem calçado adequados e habitavam casernas imundas. Alguns, tal qual os presos, sofriam de escorbuto, pelagra e demais doenças causadas pela deficiência vitamínica.
Outro inspetor escreveu que, no Kargopollag, 26 membros da Vokhr tinham sido processados e condenados como criminosos, muitos deles por terem adormecido em serviço.
No verão, cumpriam turnos de treze horas - e, quando estavam de folga, não dispunham de nenhum entretenimento. Quem tinha família ficava em situação particularmente
difícil, pois muitas vezes não contava com acomodações próprias e era obrigado a morar na caserna.
Quem queria dar baixa descobria que isso não era fácil, nem mesmo nos escalões mais altos. Os arquivos da NKVD contêm a carta lastimosa do promotor público de Norilsk,
o qual implorava que o tirassem da "região ártica", pois estava estafado e tinha saúde ruim: "Se não for possível transferir-me para o cargo de promotor em outro
campo de trabalho correcional, eu gostaria de ser colocado num cargo de retaguarda ou ser dispensado da promotoria". Em resposta, ofereceram-lhe uma transferência
para Krasnoyarsk, o que ele recusou, já que as condições ali (Krasnoyarsk, embora se localize ao sul de Norilsk, ainda fica na Sibéria setentrional) eram quase as
mesmas.
Após a morte de Stalin, ex-autoridades dos campos freqüentemente defenderam seu ganha-pão anterior descrevendo as dificuldades daquele trabalho. Quando conheci Olga
Vasileevna - antiga inspetora de campos na divisão de obras viárias do Gulag -, ela me regalou com histórias da vida dura dos funcionários do sistema. Durante nossa
conversa (no apartamento moscovita com que um Partido agradecido a presenteou), Olga me contou que uma vez, quando visitava um campo distante, foi convidada a dormir
na casa do comandante, na cama que era do filho dele. A noite, sentiu calor e coceiras. Achando que talvez estivesse doente, acendeu a luz. "O cobertor militar cinzento
parecia vivo, estando infestado de piolhos. Não eram só os presos que tinham piolhos. As chefias também." Por via de regra, quando voltava para casa de uma viagem
de inspeção, Olga tirava toda a roupa antes de entrar, para deixar os parasitas do lado de fora.
Na visão de Olga Vasileevna, o trabalho de comandante de campo era dificílimo. "Não era brincadeira. Ficava-se encarregado de centenas, milhares de presos. Havia
reincidentes e assassinos, os condenados por crimes graves, pessoas das quais se podia esperar tudo. Com isso, era preciso estar em guarda o tempo todo." Os comandantes,
embora pressionados a trabalhar tão eficientemente quanto possível, descobriam que também precisavam resolver todo tipo de problema:
Chefe de um projeto de construção, era igualmente chefe do campo e passava pelo menos 60% do tempo não nas obras, tomando decisões de engenharia, mas no campo, lidando
com dificuldades. Alguém adoecia, uma epidemia podia ter irrompido ou um acidente acontecia e aí alguém tinha de ser levado para o hospital, e alguém precisava de
um carro, cavalo ou carroça.
Olga também disse que os "patrões" não necessariamente comiam bem em Moscou, sobretudo durante a guerra. No refeitório da sede do Gulag, serviam-se repolho, sopa
e kasha. "Não me lembro de haver carne. Nunca vi nenhuma." Enquanto Stalin viveu, os funcionários do Gulag na capital soviética trabalhavam das nove da manhã às
duas ou três da madrugada, todos os dias. Olga só via o filho aos domingos. Todavia, após a morte de Stalin, as coisas melhoraram. S. N. Kruglov, então chefe da
NKVD, emitiu ordem que concedia uma hora de almoço aos funcionários comuns da direção geral. Em 1963, Olga e o marido também receberam um apartamento muito grande
no centro de Moscou, o mesmo onde ela morava em 1998, quando a conheci.
Enquanto Stalin era vivo, porém, o trabalho no Gulag era menos recompensado, cabendo à direção geral resolver de diferentes maneiras o problema da falta de atrativos
do emprego. Em 1930, quando o sistema ainda era visto como parte da expansão econômica daquela época, a OGPU realizava campanhas de publicidade interna, solicitando
entusiastas para atuar no que então eram os novos campos do extremo norte:
A dedicação e a energia dos chekistas criaram e fortaleceram os campos de Solovetsky, desempenhando papel amplo e positivo no desenvolvimento industrial e cultural
do setentrião europeu de nosso território. Os novos campos, assim como Solovetsky, devem exercer função reformadora na economia e na cultura das regiões mais longínquas.
Para tal responsabilidade [...], necessitamos de chekistas especialmente rijos, voluntários à cata de trabalho duro.
A eles se ofereciam, dentre outras coisas, salário até 50% maior, férias anuais de dois meses e, após três anos, um abono correspondente a três meses de salário,
mais três meses de férias. Além disso, os administradores do primeiro escalão receberiam rações mensais gratuitas e teriam acesso a "rádio e instalações esportivas
e culturais".
Posteriormente, quando desapareceu de vez o entusiasmo sincero (se é que este algum dia existira), os incentivos se tornaram mais sistemáticos. Os campos eram classificados
de acordo com a distância e o rigor das condições locais. Quanto mais longínquos e mais duros eles eram, mais se pagava aos elementos da NKVD para trabalhar lá.
Alguns campos se preocupavam em organizar esportes e outras atividades recreativas para seus funcionários. A NKVD também construiu spas especiais na região do mar
Negro (em Sochi e Kislovodsk), de modo que os oficiais de maior patente pudessem passar suas longas férias com conforto, ao sol.
A direção geral criou ainda escolas onde os oficiais do Gulag pudessem aprimorar suas qualificações, para assim subir na hierarquia. À guisa de exemplo, uma delas,
estabelecida em Kharkov, dava cursos não só de "História do Partido" e "História da NKVD" (disciplinas obrigatórias), mas também de direito penal, normas e técnicas
de administração dos campos, contabilidade e assuntos militares. Quem se dispunha a trabalhar para a Dalstroi, na distante Kolyma, podia até ter a prole reclassificada
como "filhos de trabalhadores", o que lhes garantia tratamento preferencial na admissão aos estabelecimentos de ensino superior; esse se revelou um estímulo popularíssimo.
O dinheiro e os benefícios decerto bastavam para atrair alguns funcionários também nos escalões mais baixos. Muitos consideravam o Gulag simplesmente a menos ruim
das escolhas possíveis. Na URSS de Stalin (uma terra de guerra e fome), o emprego de carcereiro ou guarda prisional podia significar imensurável ascensão social.
Susanna Pechora, prisioneira no começo dos anos 1950, se recordaria de ter conhecido uma carcereira que trabalhava no campo de concentração porque era a única maneira
de fugir à penúria extrema da fazenda coletiva onde nascera. "Com o salário, alimentava os sete irmãos e irmãs." Outro memorialista conta a história de Maria Ivanova,
moça que viera trabalhar voluntariamente num campo em 1948. Esperando dessa maneira escapar à vida numa fazenda coletiva e, mais ainda, arrumar marido, Maria tornou-se,
isto sim, amante de uma série de autoridades de posto hierárquico sempre mais baixo. Acabou morando num quartinho com a mãe e os dois filhos ilegítimos.
Mas nem sempre a perspectiva de salário elevado, férias longas e ascensão social bastava para trazer trabalhadores para o sistema, em especial nos escalões mais
baixos. Em épocas de muita escassez de pessoal, as comissões soviéticas de mão-de-obra simplesmente despachavam trabalhadores para onde eram requisitados, sem necessariamente
informá-los de onde iam. Zoya Eremenko, ex-enfermeira do Gulag, foi mandada direto do curso profissionalizante para um emprego que, disseram-lhe, seria num canteiro
de obras. Quando chegou, descobriu que se tratava de um campo prisional, o Krasnoyarsk 26. "Ficamos surpresas e assustadas, mas, quando nos familiarizamos com o
local, constatamos que ali as pessoas e o trabalho clínico eram os mesmos que nossos estudos nos haviam levado a esperar."
Particularmente trágicos eram os casos das pessoas obrigadas a trabalhar nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial. Milhares de ex-soldados do Exército Vermelho
que haviam combatido no avanço para a Alemanha -assim como civis que, na condição de deportados ou refugiados, tinham "morado no exterior" durante a guerra - foram
detidos ao retornar para a URSS e confinados a "campos de triagem", onde seriam minuciosamente interrogados para ver se caíam em contradição. Às vezes, os que não
eram presos acabavam sendo enviados de imediato para trabalhar no serviço de guarda prisional. No começo de 1946, havia 31 mil pessoas nessa última situação, e em
alguns campos elas correspondiam a 80% dos guardas. Tampouco podiam ir-se embora com facilidade. Muitas haviam sido privadas de sua documentação (passaporte, licença
de moradia, certificado de reservista). Sem ela, não tinham como deixar os campos, nem como procurar emprego. Entre trezentos e quatrocentos desses indivíduos se
suicidavam a cada ano. Um que tentou fazê-lo explicou o motivo: "Já estou no serviço há muito tempo, ainda não me deram a licença de moradia, quase todo dia chega
um polícia com ordem de sairmos do apartamento, e todo santo dia isso causa brigas lá em casa".
Outros simplesmente se degeneravam. Karlo Stajner, comunista iugoslavo que esteve preso em Norilsk durante e após a guerra, recordaria que tais guardas eram "extraordinariamente
diferentes daqueles que não haviam lutado no conflito":
Para começo de conversa, mostravam sinais claros de desmoralização. Podia-se ver isso na disposição a serem subornados pelas prisioneiras, tornarem-se clientes das
mais bonitinhas ou permitirem que criminosos saíssem das turmas de trabalho para invadir alguma moradia e depois dividir com eles o produto do furto. Esses guardas
não temiam a severa punição que sofreriam caso seus superiores descobrissem tais delitos.
Uns poucos, muito poucos, protestavam. Os arquivos registram, por exemplo, o caso de certo Danilyuk, recruta refratário, que se negou terminantemente a ir para a
guarda prisional armada, alegando o seguinte: "De jeito nenhum quero servir nos órgãos do Ministério do Interior". Não arredou pé dessa posição, apesar daquilo que
os arquivos denominam "sessões de tratamento", que por certo eram longos períodos de intimidação e talvez incluíssem até espancamentos. Danilyuk acabou sendo dispensado.
Pelo menos no caso dele, premiou-se a recusa sistemática e persistente em trabalhar para o Gulag.
Entretanto, no final das contas, o sistema realmente gratificava seus membros mais afortunados e leais, alguns dos quais obtinham mais do que melhores rações ou
mera ascensão social: quem fazia seus trabalhadores cativos renderem grandes quantidades de ouro ou madeira para o Estado seria mesmo recompensado ao fim e ao cabo.
E, embora a média dos lagpunkts mineiros ou madeireiros nunca oferecesse boas condições de vida (nem mesmo para os que os dirigiam), as sedes de alguns dos campos
maiores se tornaram de fato muito confortáveis com o passar do tempo.
Nos anos 1940, as cidades que ficavam no centro dos complexos maiores (Magadan,Vorkuta, Norilsk, Ukhta) já eram grandes e movimentadas, tendo lojas, cinemas, teatros
e parques. Desde a fase pioneira do Gulag, as oportunidades para desfrutar a vida haviam se ampliado bastante. Nos campos maiores, o primeiro escalão recebia salários
mais elevados, abonos e benefícios melhores e férias mais longas que no mundo do trabalho comum. Também tinham mais acesso a comestíveis e bens de consumo que estavam
em falta nos demais lugares. "Em Norilsk, a vida era melhor que em qualquer outro lugar da União Soviética", lembraria Andrei Cheburkin, capataz e depois burocrata
ali:
Em primeiro lugar, todos os chefes dispunham de empregadas - prisioneiras. Em segundo lugar, a comida era impressionante. Havia peixes de todo tipo. Podia-se sair
para apanhá-los nos lagos. E, se no resto da União Soviética havia cartões de racionamento, aqui vivíamos praticamente sem eles. Carne. Manteiga. Caso se quisesse
champanhe, por que não pegar também siri? Havia tanto! Caviar? Eram barris cheios. Estou falando dos chefes, claro, não dos trabalhadores. Mas, também, os trabalhadores
eram prisioneiros. [...]
O dinheiro era bom. [...] Quando se era brigadeiro [na hierarquia dos oficiais], podia-se receber 6 mil, 8 mil rublos. Na Rússia central, não se conseguia mais que
1.200. Vim para Norilsk para trabalhar como supervisor de trabalho num departamento especial da NKVD que prospectava urânio. Deram-me salário de supervisor: primeiro
recebia 2.100 rublos; depois, a cada seis meses, tinha aumento de 10%; era cerca de cinco vezes mais do que ganhava na vida civil normal.
O primeiro argumento de Cheburkin ("todos os chefes dispunham de empregadas") é fundamental, pois, na realidade, aplicava-se não só às chefias, mas a todo o mundo.
Estritamente falando, era proibido usar presos como domésticos. Mas a prática estava disseminada, conforme as autoridades bem sabiam; e, apesar das freqüentes tentativas
de eliminá-la, ela persistiu. Em Vorkuta, Konstantin Rokossovsky (oficial do Exército Vermelho que se tornaria general, depois marechal e depois ministro da Defesa
da Polônia stalinista) serviu de criado para um "carcereiro boçal chamado Buchko, e suas funções consistiam em trazer as refeições do sujeito, arrumar e aquecer
o chalé dele, e assim por diante". Em Magadan, Evgeniya Ginzburg trabalhou durante algum tempo como lavadeira para a mulher de um administrador do campo.
Em Kolyma, Thomas Sgovio também foi criado pessoal de um guarda graduado, preparando-lhe a comida e tentando providenciar bebida alcoólica para ele. O homem passou
a confiar em Sgovio. "Thomas, meu garoto", ele dizia, "lembre-se de uma única coisa: cuide da minha carteirinha do Partido. Quando eu ficar bêbado, certifique-se
de que eu não a perca. Você é meu criado - e, se eu vier a perdê-la, terei de matá-lo como a um cão... e não quero fazer isso."
Para os verdadeiros maiorais, a criadagem era só o começo. Ivan Nikishov, que se tornou chefe da Dalstroi em 1939, após os expurgos, e se manteve no cargo até 1948,
ficou tristemente célebre por ter acumulado riqueza em meio à pobreza extrema. Pertencia a uma geração diferente daquela de seu predecessor, Berzin; a de Nikishov
já estava muito distante dos tempos da Revolução e da Guerra Civil - que tinham sido anos de muita escassez e, contudo, de mais ardor. Talvez como resultado disso,
Nikishov não tinha pruridos de usar sua posição para viver bem. Dotou-se de "um grande contingente de seguranças, mais automóveis de luxo, gabinetes amplos e uma
magnífica dacha com vista para o Pacífico". Segundo relatos de presos, essa última teria tapetes orientais, peles de urso e candelabros de cristal. Consta que,
na luxuosa sala de jantar, ele e a segunda mulher (Gridasova, jovem e ambiciosa comandante de campo) consumiam carne de urso, vinho do Cáucaso, frutas trazidas do
sul por via aérea, tomates e pepinos frescos cultivados em estufas particulares.
Nikishov não era o único a usufruir uma vida de luxos. Lev Razgon, em sua inesquecível descrição do coronel Tarasyuk (comandante do Ustvymlag durante a guerra),
registra excessos semelhantes:
Ele vivia como um romano que houvesse sido designado governador de alguma província bárbara recém-conquistada. Hortaliças, frutas e flores bastante estranhas ao
norte eram cultivadas para ele em estufas especiais. Para fazer sua mobília, procuraram-se os melhores marceneiros. Os mais famosos costureiros do passado recente
vestiam sua esposa, extravagante e voluntariosa. Quando não se sentia bem, ele não era examinado por nenhum doutorzinho que, como profissional livre, se vendera
ao Gulag [...]. Não, senhor: Tarasyuk era tratado por catedráticos que haviam dirigido as maiores clínicas de Moscou e agora cumpriam longas penas nas enfermarias
de remotos campos na floresta.
Com freqüência, exigia-se dos presos que ajudassem a satisfazer tais caprichos. Isaac Vogelfanger, médico prisioneiro de campo de concentração, via-se constantemente
sem álcool medicinal porque seu farmacêutico o usava para fazer bebida. O comandante do campo então a servia a dignitários em visita: "Quanto mais álcool consomem,
melhor conceito têm do trabalho no Sevurallag". Vogelfanger também viu um cozinheiro do campo preparar um "banquete" para visitantes, usando coisas que economizara
para a ocasião: "caviar, enguia defumada, pãezinhos quentes feitos com massa francesa e cogumelo, salmão ártico com galantina de limão, ganso e leitão assados".
Foi também nesse período, os anos 1940, que chefes como Nikishov principiaram a considerar-se mais que simples carcereiros. Alguns até começaram a competir entre
si, numa versão grotesca das disputas de prestígio entre vizinhos. Almejavam ter os melhores grupos teatrais de presos, as melhores orquestras de presos, as melhores
obras artísticas de presos. Lev Kopelev estava no Unzhlag em 1946, época em que o comandante selecionava, tão logo os presos chegavam nos trens, "os atores, músicos
e artistas mais gabaritados, aos quais dava os melhores serviços, de faxineiros e zeladores no hospital". O campo ficou conhecido como "refúgio de artistas". A
Dalstroi também possuía uma trupe de detentos, o Sewostlag Club, que se apresentava em Magadan e alguns dos campos periféricos da região mineira, beneficiando-se
dos muitos cantores e dançarinos famosos encarcerados em Kolyma. Lev Razgon descreve ainda o comandante do Ukhtizhemlag, que "mantinha uma verdadeira companhia
de ópera em Ukhta", dirigida por um célebre ator soviético. "Empregava" igualmente uma famosa bailarina do Bolshoi, assim como cantores e músicos conhecidos:
Às vezes, o chefe do Ukhtizhemlag fazia uma visita a seus colegas da vizinhança. Embora o propósito oficial fosse "trocar experiências", essa descrição chã esconde
os complexos preparativos e protocolo, que mais se assemelhavam à visita de um chefe de Estado estrangeiro. Os chefes vinham acompanhados de amplo entourage de diretores
de seção; preparavam-se acomodações especiais de hotel para eles; os percursos eram minuciosamente planejados; e traziam-se presentes. [...] O chefe do Ukhtizhemlag
também trazia consigo seus melhores artistas, de modo que os anfitriões pudessem ver que lá a cultura florescia tanto quanto ali, se não mais.
Até hoje, o velho teatro do Ukhtizhemlag - uma vasta construção branca e colunar, com símbolos cênicos no frontão - é um dos edifícios mais notáveis da cidade de
Ukhta. Dele, pode-se ir a pé para a antiga residência do comandante do campo, uma espaçosa casa de madeira à beira de um parque.
Entretanto, não só aqueles com gostos artísticos procuravam satisfazer caprichos próprios. Quem preferia os esportes tinha igualmente a oportunidade de fundar times
de futebol, que competiam uns com os outros de modo bastante renhido. Nikolai Starostin, o craque que fora encarcerado porque sua equipe tivera o azar de ganhar
daquela pela qual torcia Beria, também foi mandado para Ukhta, onde o aguardavam já na estação. Foi levado para conhecer o técnico do time local, que o tratou com
polidez e lhe disse que o chefe do campo solicitara especialmente a presença dele, Starostin: "o coração do general está no futebol. Foi ele quem trouxe você para
cá". Starostin passaria grande parte de sua carreira no Gulag servindo de técnico de times para a NKVD, indo de campo em campo para atender às solicitações dos comandantes
que o queriam como treinador.
Muito de vez em quando, a notícia de tais excessos despertava alarme, ou no mínimo interesse, de Moscou. Em certa ocasião, Beria, talvez respondendo a queixas, ordenou
um inquérito secreto sobre o suntuoso estilo de vida de Nikishov. O relatório resultante confirma, entre outras coisas, que em determinada vez Nikishov gastou 15
mil rublos (na época uma quantia imensa) num banquete para comemorar a visita da Companhia de Opereta de Khabarovsk. O relatório também condena a "atmosfera de
servilismo" em torno de Nikishov e da esposa, Gridasova: "A influência de Gridasova é tão grande que até os auxiliares imediatos de Nikishov atestam que só conseguirão
exercer suas funções enquanto ela os vir com bons olhos". Entretanto, não se tomou nenhuma medida. Gridasova e Nikishov continuaram a reinar em paz.
Nos últimos anos, virou moda assinalar que, ao contrário do alegado por eles após a guerra, poucos alemães eram forçados a atuar nos campos de concentração ou nos
esquadrões de extermínio. Há pouco tempo, um estudioso afirmou que a maioria o fizera voluntariamente - conclusão que despertou certa controvérsia. No caso da Rússia
e dos outros Estados pós-soviéticos, a questão precisa ser examinada de maneira diversa. Com muita freqüência, os funcionários dos campos, bem como a maior parte
dos outros cidadãos soviéticos, tinham pouca escolha. Uma comissão de mão-de-obra simplesmente lhes designava um local de trabalho, e eles eram obrigados a ir para
lá. A falta de opção estava embutida no próprio sistema econômico soviético.
Todavia, não é exato dizer, como tentaram alguns, que os oficiais e guardas armados da NKVD "não estavam melhor que os presos que eles comandavam", ou que eram vítimas
do mesmo sistema. Pois, embora talvez houvessem preferido trabalhar em outro lugar, os funcionários do Gulag, tão logo ingressavam no sistema, realmente tinham opções,
muito mais do que seus equivalentes nazistas, cujas atribuições eram definidas de modo mais rígido. No Gulag, podiam escolher entre a brutalidade e a bondade. Podiam
escolher entre fazer os presos trabalharem até a morte e manter tantos deles vivos quanto fosse possível. Podiam escolher entre demonstrar compaixão pelos presos,
de cuja sina talvez já houvessem partilhado, e aproveitar-se de uma maré temporária de sorte e oprimir seus antigos e futuros companheiros de sofrimento.
No histórico pregresso desses indivíduos, nada necessariamente indicava qual opção fariam, pois tanto os administradores quanto os guardas comuns provinham de etnias
e ambientes os mais diversos, tal qual os presos. Aliás, quando lhes pedem que descrevam o caráter dos guardas, os sobreviventes do Gulag sempre respondem que ele
variava bastante. Solicitei a mesma coisa a Galina Smirnova, a qual lembrou que "eles, assim como todo mundo, eram diferentes uns dos outros". Anna Andreevna me
contou que "havia sádicos doentios e pessoas absolutamente boas e normais". Anna também recordou o dia, logo após a morte de Stalin, em que o contador-chefe do campo
correu de repente para o escritório de contabilidade em que presas trabalhavam, deu vivas, abraçou-as e, gritando, deu a entender que elas recuperariam a liberdade.
Irena Arginskaya me disse que seus guardas não apenas eram "pessoas de tipos muitos diferentes", mas também mudavam com o passar do tempo. Os soldados conscritos,
em especial, portavam-se "como animais" quando eram novos no serviço, pois haviam sido intoxicados pela propaganda; contudo, "depois de algum tempo, eles -não todos,
mas grande parte - começavam a entender as coisas e freqüentemente mudavam".
É bem verdade que as autoridades soviéticas exerciam alguma pressão tanto sobre os administradores quanto sobre os guardas, desencorajando-os de demonstrar bondade
para com os presos. O arquivo da inspetoria-geral do Gulag registra o caso do chefe da divisão de suprimentos do Dmitlag, Levin, que em 1937 sofreu vigorosa investigação
por causa de sua leniência. O crime de Levin foi ter permitido que um preso se encontrasse com o irmão, também preso - no sistema prisional, os parentes eram normalmente
mantidos bem longe uns dos outros. Levin também foi acusado de ser demasiado amistoso com os zeks em geral, e com um grupo de supostos mencheviques em especial.
Levin (ele próprio ex-prisioneiro no Canal do Mar Branco) contra-argumentou que não sabia que eram mencheviques. Dado que o ano era 1937, Levin foi condenado assim
mesmo.
No entanto, tais imposições não eram aplicadas com rigor. Aliás, vários comandantes até ficaram famosos pela brandura para com os presos. O historiador e publicista
dissidente Roy Medvedev, em Que a história julgue (seu ataque ao stalinismo), descreve um comandante de campo, VA. Kundush, que levou muito a sério as exigências
de aumento de produção durante a guerra. Kundush colocou os presos mais instruídos em funções administrativas e passou a tratar bem os detentos, até providenciando
a soltura antecipada para alguns deles. Na época, o empreendimento que ele dirigia recebeu o "Estandarte Vermelho da Boa Gestão". Mas, quando a guerra acabou, Kundush
também foi aprisionado, talvez por causa da mesma atitude humana que tanto expandira a produção em seu campo.
Lev Razgon fala da prisão transitória incomum pela qual ele e a mulher, Rika, passaram em Georgievsk:
As celas eram não apenas varridas, mas também lavadas, o piso tanto quanto as tábuas dos leitos. A comida era tão substanciosa que saciava até a fome constante dos
prisioneiros em trânsito. Podíamos realmente ficar limpos na casa de banhos. Havia até um recinto especial, completamente equipado, onde as mulheres podiam empetecar-se
(e isso, mais do que qualquer outra coisa, espantou Rika).
Existiam outros administradores assim. Em certa altura de sua vida no Gulag, Genrikh Gorchakov, judeu russo aprisionado em 1945, foi designado para um campo de inválidos
no complexo do Siblag. Fazia pouco tempo, a direção do campo fora assumida por um novo comandante, um ex-oficial de linha de frente que não conseguira arrumar nenhum
outro emprego após a guerra. Levando o cargo a sério, ele construiu novos alojamentos, cuidou para que os presos tivessem colchões e até lençóis e reorganizou o
sistema de trabalho, transformando o campo por completo.
Outro ex-zek, Aleksei Pryadilov, encarcerado aos dezesseis anos, foi enviado para um campo agrícola nos montes Altai. Ali, o comandante "administrava o campo como
uma organização econômica e tratava os presos não como criminosos e inimigos que precisava 'reabilitar', mas como trabalhadores. Ele estava convencido de que não
havia lógica em tentar fazer que gente faminta produzisse trabalho decente". Por vezes, até os inspetores do Gulag descobriam bons comandantes. Em 1942, um fiscal
visitou o Birlag e constatou que "os presos dessa fábrica faziam excelente trabalho porque as condições deles também eram excelentes". Os alojamentos eram limpos,
e todos os presos tinham lençóis e cobertores próprios, além de boas roupas e calçados.
Havia também formas mais diretas de bondade. A memorialista Galina Levinson se recordaria de um comandante de campo que dissuadiu uma prisioneira de abortar. "Quando
você sair do campo, estará sozinha", ele lhe disse. "Pense no quanto será bom ter um filho." A mulher lhe seria grata até o fim da vida. Anatolii Zhigulin também
escreveria sobre o "bom" comandante de campo que "salvou centenas da morte", chamava aqueles a seu cargo de "camaradas prisioneiros", desafiando as ordens, e mandava
o cozinheiro alimentá-los melhor. Segundo Zhigulin, era óbvio que "ele ainda não conhecia as normas". Mariya Sandratskaya, encarcerada por ser esposa de um "inimigo
do povo", também conta de um comandante que dava especial atenção às mulheres com filhos, assegurando-se de que a creche fosse bem administrada, as lactantes recebessem
comida suficiente e as mães não trabalhassem demais.
Na realidade, a bondade era possível. Em todos os níveis, sempre havia uns poucos que resistiam à propaganda que tachava todos os presos de inimigos; sempre havia
uns poucos que compreendiam a verdadeira situação. E um número surpreendente de memorialistas registra algum episódio de benevolência de um guarda. "Não duvido",
escreveu Evgenii Gnedin, "de que no enorme exército de administradores dos campos houvesse trabalhadores íntegros que ficassem angustiados com seu papel de feitores
de pessoas completamente inocentes". Mas, ao mesmo tempo, a maioria dos memorialistas também se admira de quanto tal compreensão era fora do comum. Isso porque,
apesar de uns poucos exemplos do contrário, prisões limpas não eram a regra; a vida em muitos campos equivalia a uma sentença de morte; e, sobretudo, a maior parte
dos guardas tratava os detentos com indiferença, na melhor das hipóteses, ou rematada crueldade, na pior.
Repito: em lugar algum se exigia crueldade. Ao contrário: quando proposital, esta era oficialmente desaprovada pela liderança central. Guardas e administradores
que se mostravam desnecessariamente severos com os presos podiam ser punidos, e muitas vezes o eram. Os arquivos do Vyatlag contêm informes sobre guardas castigados
por "espancarem sistematicamente zeks", furtar pertences dos detentos e estuprar prisioneiras. Os arquivos do Dmitlag assinalam as condenações penais impostas a
administradores que haviam sido acusados de, estando embriagados, terem surrado presos. Os arquivos centrais do Gulag também registram punições a comandantes de
campo que espancavam presos, os torturavam durante investigações ou os trasladavam sem indumentária de inverno adequada.
Contudo a crueldade persistia. Por vezes, era verdadeiramente sádica. Viktor Bulgakov, prisioneiro nos anos 1950, se recordaria de um guarda, um cazaque analfabeto,
que parecia ter prazer em obrigar os presos a ficar parados, congelando aos poucos, na neve; e de outro que gostava de "exibir força e surrar detentos" sem nenhum
motivo. Os arquivos do Gulag também trazem, entre muitos outros registros semelhantes, o relato sobre o camarada Reshetov, chefe de um dos lagpunkts da Volgostroi
o qual punia zeks colocando-os em celas geladas e mandava presos enfermos trabalharem a temperaturas baixíssimas, o que causava a morte de muitos em serviço.
Com maior freqüência, a crueldade não se devia tanto ao sadismo quanto ao egoísmo. Guardas que atiravam em presos fujões recebiam gratificação financeira e podiam
até ganhar férias em casa. Por isso, ficavam tentados a estimular tais "fugas". Zhigulin descreve o resultado:
O guarda gritava para alguém na coluna: "Você aí, traga-me aquela tábua!"
"Mas está do outro lado da cerca!"
"Não interessa - vá buscar!"
O preso ia e era abatido por uma rajada de metralhadora.
Esses episódios eram comuns - conforme os arquivos mostram. Em 1938, quatro guardas da Vokhr que trabalhavam no Vyatlag foram condenados pelo homicídio de dois presos
que eles tinham "incitado" a fugir. Na seqüência, descobriu-se que o comandante da divisão e seu assistente também haviam se apossado de pertences dos presos. O
escritor Boris Dyakov, em suas memórias "pró-soviéticas" do Gulag (publicadas na URSS em 1964), menciona igualmente a prática de provocar fugas.
Assim como nos trens de traslado, a crueldade nos campos parecia derivar da raiva ou do tédio de precisar realizar uma atividade servil. Quando trabalhava como enfermeira
num hospital de Kolyma, a comunista holandesa Elinor Lippe passou uma noite à cabeceira de um paciente que estava com pleurisia e febre alta. Além disso, um carbúnculo
que ele tinha nas costas estourara por causa do guarda que o trouxera ao hospital:
Com voz entrecortada e dolorida, contou-me que o guarda quisera concluir aquela marcha inconveniente o quanto antes. Por isso, durante horas, usara de pauladas para
forçar o preso, enfermo e febril, a seguir adiante. No final da marcha, ameaçara quebrar-lhe todos os ossos se dissesse no hospital que o guarda o espancara.
Apavorado até o fim, o homem se negou a repetir a história na presença de não-prisioneiros. "Nós o deixamos morrer em paz", escreveria Elinor, "e o guarda continuou
a surrar presos sem ser incomodado."
Na maioria das vezes, porém, a crueldade dos guardas de campo soviéticos era irrefletida, néscia e preguiçosa, do tipo que se poderia demonstrar para com bois ou
ovelhas. Se não se ordenava explicitamente aos guardas que maltratassem os prisioneiros, eles tampouco eram instruídos a considerá-los plenamente humanos, em especial
no caso dos presos políticos. Pelo contrário: envidavam-se grandes esforços para cultivar o ódio pelos detentos, sempre descritos como "criminosos perigosos", "espiões
e sabotadores que tentavam destruir o povo soviético". Tal propaganda tinha enorme efeito sobre pessoas que já estavam amarguradas pelo infortúnio, pelo emprego
indesejado, pelas más condições de vida. Também moldava a visão dos empregados livres do Gulag - os moradores locais que trabalhavam nos campos e não eram funcionários
da NKVD - tanto quanto dos guardas, como recordaria um preso:
Em geral, éramos separados dos trabalhadores livres por um muro de desconfiança mútua. [...] Para eles, nossos vultos cinzentos, conduzidos em turmas e às vezes
guardados por cães, provavelmente constituíam algo muito desagradável, em que era melhor não pensar.
Isso já era verdade nos anos 1920, quando os guardas de Solovetsky faziam prisioneiros enregelados pular de pontes. As coisas ficaram piores, é claro, no final da
década de 30, com a redução dos presos políticos a "inimigos do povo" e o endurecimento do regime prisional nos campos. Em 1937, ao saber que um grande contingente
de trotskistas estava a caminho de Kolyma, o chefe do campo, Eduard Berzin, disse a um grupo de colegas que, "se esses cachorros [...] cometeram sabotagem por lá,
vamos garantir que aqui eles trabalhem pela União Soviética; temos meios de fazê-los trabalhar".
Mesmo depois de terminado o Grande Terror, a propaganda nunca chegou a arrefecer. Durante toda a década de 1940 e parte da década de 50, os presos eram regularmente
descritos como colaboracionistas e criminosos de guerra, traidores e espiões. Dentre os diferentes epitetos para aqueles nacionalistas ucranianos que começaram a
derramar-se nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial, incluíam-se "cães servis e traiçoeiros dos sicários nazistas", "fascistas germano-ucranianos" e "agentes
da espionagem estrangeira". Nikita Khrutchev, então líder soviético da Ucrânia, declarou numa plenária do Comitê Central que os nacionalistas ucranianos haviam se
suicidado "ao tentar agradar a seu amo, Hitler, e pegar uma pequena parcela do butim por seus vis serviços". Durante a guerra, os guardas chamavam quase todos os
presos políticos de "fascistas", "hitleristas" ou "vlasovistas" (seguidores do general soviético Vlasov, que desertara do Exército Vermelho e apoiara Hitler).
Isso era especialmente doloroso para os judeus, para os veteranos que haviam combatido com bravura os alemães e para os comunistas estrangeiros que haviam fugido
do fascismo em seus próprios países. "Não somos fascistas; na maioria, somos ex-membros do Partido", disse indignado o iugoslavo Karlo Stajner a um grupo de detentos
com ficha criminal, que, zombeteiros, tinham lançado o insulto "fascista" a uma turma de trabalho constituída de presos políticos. Margarete Buber-Neumann, comunista
alemã que foi transferida diretamente do Gulag para o campo de concentração nazista de Ravensbruck, também escreveu que antes sé referiam repetidamente a ela como
"a fascista alemã". E, quando o judeu Mikhail Shreider, oficial preso da NKVD, disse que não poderia ser acusado de colaborar com Hitler, seu interrogador retrucou
que Shreider não era judeu, e sim "alemão disfarçado de judeu".
Esses insultos não eram só uma atitude juvenil e despropositada. Ao definirem os presos como "inimigos" ou "subumanos", os guardas se reasseguravam da legitimidade
dos próprios atos. Aliás, a "retórica dos inimigos" era apenas uma parte da ideologia dos quadros do Gulag. A outra parte - vamos denominá-la "retórica da submissão
total ao Estado" - insistia o tempo todo na importância do trabalho e das cifras de produção sempre crescentes, as quais eram necessárias para a continuidade da
URSS. Para sermos bem diretos: podia-se justificar tudo que proporcionasse resultados. Essa tese foi maravilhosamente sintetizada por Aleksei Loginov, diretor aposentado
de produção e de campos prisionais de Norilsk, numa entrevista que deu a um documentarista britânico:
Desde o início, sabíamos perfeitamente que o mundo exterior nunca deixaria nossa Revolução Soviética em paz. Não era só Stalin que percebia isso - todo comunista
comum, toda pessoa comum, todos nós percebíamos que precisávamos não apenas construir, mas construir sabendo plenamente que logo estaríamos em guerra. Assim, na
minha área, a busca por todas as fontes de matéria-prima - cobre, níquel, alumínio, ferro etc. - era incrivelmente intensa. Sempre tínhamos estado cientes dos enormes
recursos de Norilsk - mas como explorá-los no Ártico? Por isso, o empreendimento inteiro foi posto nas mãos da NKVD, o Ministério do Interior. Quem mais conseguiria
fazer aquilo? Você já sabe quantas pessoas tinham ido para a prisão. E lá precisávamos de dezenas de milhares...
Loginov falava em 1990, quase meio século depois que Norilsk deixara de ser um vasto complexo prisional. Mas as palavras dele ecoam as de Anna Zakharova, mulher
de um comandante de campo, escrevendo em 1964 ao jornal governamental Izvestiya - a carta não foi publicada, mas depois seria veiculada pela imprensa clandestina.
Anna, assim como Loginov, falava dos sacrifícios que o marido fizera para maior glória da pátria:
A saúde dele já se dilapidou pelo trabalho com criminosos, porque aqui toda essa atividade desgasta os nervos. Gostaríamos de mudar, pois meu marido já cumpriu seu
tempo de serviço, mas não querem deixá-lo ir. Comunista e oficial, ele submete-se às exigências do dever.
Opiniões semelhantes me foram apresentadas por uma administradora do Gulag que preferiu permanecer anônima. Com orgulho, falou-me do trabalho que seus presos tinham
feito pela URSS durante a guerra: "Todos, absolutamente todos, pagavam suas expensas com o próprio trabalho e davam tudo o que podiam para a frente de combate".
Nesse quadro mais amplo da lealdade para com a URSS e seus objetivos econômicos, a crueldade cometida em nome das cifras de produção parecia admirabilíssima a seus
perpetradores. A verdadeira natureza da crueldade, assim como a verdadeira natureza dos campos, podia ocultar-se atrás do economês. Após ter entrevistado em 1991
um ex-administrador do Karlag, o jornalista americano Adam Hochschild se queixou:
Pela conversa do coronel, não se saberia que se tratava de uma prisão, porque ele falou quase exclusivamente do papel do Karlag na economia soviética. Ele parecia
um orgulhoso chefe regional do partido. "Tínhamos nossa própria estação agrícola experimental. A pecuária também era avançada: criamos uma raça especial, a Estepe
Vermelha, assim como o gado cazaque..."
Nos escalões mais altos, os administradores freqüentemente descreviam os presos como se fossem máquinas ou ferramentas, necessárias para concluir o trabalho e nada
mais. De maneira explícita, os prisioneiros eram considerados mão-de-obra barata e cômoda - um insumo, tal qual os suprimentos de aço ou cimento. Mais uma vez, é
Loginov, o comandante de Norilsk, quem expressa isso melhor:
Se houvéssemos mandado civis [para Norilsk], primeiro teríamos precisado construir casas para eles. E como civis conseguiriam viver ali? Com os presos, é fácil -
necessita-se apenas de um barracão e um fogão com chaminé, e eles se viram. Depois, talvez um lugar para comerem. Em resumo: nas circunstâncias daquela época, os
presos eram as únicas pessoas que podíamos usar em escala tão grande. Se houvéssemos tido tempo, provavelmente não teríamos feito daquele jeito.
Ao mesmo tempo, o economês tornava possível aos comandantes de campo justificarem qualquer coisa, mesmo a morte: tudo era pelo bem comum. Por vezes, esse argumento
era levado a verdadeiros extremos. Lev Razgon, por exemplo, relata uma conversa entre o coronel Tarasyuk, então comandante do Ustvymlag, e um médico do campo, Kogan,
que cometera o erro de gabar-se ao coronel de quantos pacientes "salvara das garras da pelagra", doença causada pela inanição e conseqüente falta de proteínas. Segundo
Razgon, seguiu-se este diálogo:
Tarasyuk: O que estão dando a eles?
Kogan: Todos estão recebendo a ração antipelagra determinada pelo Departamento de Saúde e Saneamento do Gulag.
Então, Kogan especificou em calorias a quantidade de proteínas.
Tarasyuk: Quantos deles vão poder trabalhar na floresta? E quando será isso?
Kogan: Bem, está claro que nenhum deles vai poder trabalhar na floresta. Nunca mais. Mas agora vão sobreviver, e será possível usá-los para serviços leves no perímetro
no campo.
Tarasyuk: Pare de lhes dar rações antipelagra. Pode anotar: essas rações são para aqueles que trabalham na floresta. Os outros presos devem receber rações de inválidos.
Kogan: Mas camarada coronel! E óbvio que eu não me expliquei direito. Essas pessoas só vão sobreviver se tiverem rações especiais. Um preso inválido recebe 400 gramas
de pão. Com essa ração, vão morrer em dez dias. Não podemos fazer uma coisa dessas!
Tarasyuk olhou para o médico, que estava transtornado. Havia até certa expressão de curiosidade no rosto do coronel.
"Qual é o problema? A sua ética médica o impede de fazer isso?" "Mas é claro que impede..."
"Bem, eu não ligo a mínima para a sua ética", disse Tarasyuk, calmamente, sem dar nenhuma indicação de estar irado. "Você já anotou? Agora, tratemos dos outros assuntos..."
Passado um mês, todos os 246 enfermos já haviam morrido.
Os registros mostram que conversas desse tipo não eram excepcionais nem apócrifas. Relatando as condições dos presos na Volgostroi durante a guerra, um inspetor
reclamou de que a administração do campo estava "interessada exclusivamente em produzir madeira [...] e não demonstrava o mínimo interesse em alimentar e vestir
os presos, mandando-os trabalhar sem considerar a aptidão física, jamais se preocupando em saber se estavam sadios, trajados e nutridos". E, durante uma reunião
de oficiais do Vyatlag em janeiro de 1943, o camarada Avrutsky, falando na linguagem absolutamente neutra da estatística, fez o seguinte comentário: "Dispomos de
100% de nossa força de trabalho, mas não podemos cumprir nosso programa, pois o grupo B continua a crescer. Mas, se a alimentação que destinamos ao grupo B fosse
direcionada a outro contingente, já não teríamos grupo B e cumpriríamos a meta". Naturalmente, a expressão "grupo B" se referia a presos mais fracos, que de fato
deixariam de existir caso não recebessem alimento. Os comandantes de campo podiam dar-se ao luxo de tomar tais decisões a grande distância das pessoas que seriam
afetadas por elas; entretanto, no caso daqueles que se encontravam mais abaixo na hierarquia, a proximidade não necessariamente despertava mais compaixão. O preso
polonês Kasimierz Zarod estava numa coluna de presos que marchava para o local de um novo campo. Praticamente não tendo recebido comida, começaram a enfraquecer-se.
Por fim, um deles caiu e não conseguiu mais se levantar. Um dos guardas apontou a arma para ele. Outro ameaçou atirar:
"Pelo amor de Deus", ouvi o homem gemer, "se vocês me deixarem descansar um pouco, eu consigo alcançá-los."
"Você ou anda, ou morre", respondeu o primeiro guarda...
Eu o vi erguer e apontar o fuzil - não pude acreditar que ele fosse atirar. Nesse momento, os homens na coluna atrás de mim já haviam se reagrupado, e minha visão
do que acontecia foi obstruída. De repente, porém, ressoou um disparo, seguido de outro, e percebi que o homem morrera.
Contudo Zarod relata que nem todos os que desabavam durante a marcha eram fuzilados. Caso aqueles exaustos demais para continuar andando fossem jovens, eram apanhados
e postos numa carroça, onde
jaziam tal qual sacas até se recuperarem. [...] Pelo que consegui entender, o raciocínio era que os jovens podiam recobrar-se e trabalhar, mas que os velhos não
valia a pena salvar. Com certeza, aqueles jogados como trouxas de roupas velhas nas carroças de suprimentos não o eram por nenhuma razão humanitária. Os guardas,
embora jovens, já haviam feito aquele caminho antes e aparentemente estavam desprovidos de qualquer sentimento humano.
Ainda que não haja memórias para documentar isto, tal atitude certamente afetava até aqueles que ocupavam cargos no topo do sistema de campos. Nos capítulos anteriores,
citei freqüentemente relatórios encontrados nos arquivos da inspetoria-geral do Gulag, que fazia parte da promotoria soviética. Esses relatórios, redigidos com grande
precisão e regularidade, são extraordinários pela honestidade. Referem-se a epidemias de tifo, falta de alimentos, escassez de itens de vestuário. Denunciam campos
onde a taxa de mortalidade é "demasiado alta". Irados, acusam certos comandantes de campo de criar más condições de vida para os prisioneiros. Calculam o número
de homens/dia perdidos por conta de doenças, acidentes e óbitos. Lendo-os, não se tem nenhuma dúvida de que os maiorais do Gulag em Moscou sabiam - real e verdadeiramente
- como era a vida nos campos de concentração. Estava tudo lá, numa linguagem não menos franca do que a utilizada por Alexander Soljenitsin e Variam Shalamov.
E no entanto, embora às vezes se fizessem mudanças e se impusessem penas judiciais a comandantes, o que impressiona nos relatórios é a própria repetitividade: eles
fazem lembrar a cultura absurda das inspeções fajutas que Gogol descreveu de maneira tão maravilhosa. Era como se respeitassem as formalidades, produzissem os relatórios,
expressassem a ira que era de rigor - e não ligassem para os reais efeitos nos seres humanos. Comandantes viviam sendo repreendidos por não melhorarem as condições
de vida nos campos, estas continuavam a não melhorar, e a conversava acabava por aí.
Ao fim e ao cabo, ninguém obrigava os guardas a salvar os jovens e assassinar os velhos. Ninguém obrigava os comandantes de campo a matar os enfermos. Ninguém obrigava
a direção geral do Gulag, em Moscou, a não atentar para o que os relatórios dos inspetores indicavam. Ainda assim, tais decisões eram tomadas abertamente, todos
os dias, por guardas e administradores que pareciam convencidos do direito de tomá-las.
Tampouco a ideologia da submissão total ao Estado era exclusiva dos amos do Gulag. Os presos também eram estimulados a cooperar -e alguns o faziam.
14. Os Presos
O homem é uma criatura que consegue acostumar-se a tudo,
e creio ser essa a melhor definição dele.
Dostoievski, Recordações da casa dos mortos.
Urki: a bandidagem
Para o preso político inexperiente, para a jovem camponesa presa por ter roubado um pão, para o deportado polonês despreparado, o primeiro contato com os urki (a
casta criminosa da URSS) era desnorteante e aterrador. Evgeniya Ginzburg topou pela primeira vez com criminosas quando embarcou no navio para Kolyma:
Eram a nata da bandidagem: assassinas, sádicas, versadas em todos os tipos de perversão sexual [...] sem perderem tempo, já foram aterrorizando e oprimindo as "senhoras"
e ficavam encantadas em descobrir que as "inimigas do povo" eram seres ainda mais desprezados e marginalizados do que elas próprias [...]. Apossavam-se de nossos
pedacinhos de pão, roubavam nossos últimos trapos e pertences, empurravam-nos dos lugares que tínhamos conseguido arranjar.
Viajando pela mesma rota, Aleksander Gorbatov - o general Gorbatov, herói de guerra soviético, que dificilmente poderia ser considerado covarde - teve as botas roubadas
quando estava no porão do vapor Dzhurma, atravessando o mar de Okhotsk:
Um deles me golpeou com força no peito e depois na cabeça e disse, desdenhoso: "Olhem para ele - me vendeu as botas já faz dias, pegou o dinheiro e não quis mais
saber de entregar!" Foram-se com o produto do roubo, rindo-se o mais que podiam e só parando para bater em mim outra vez, quando, por puro e simples desespero, fui
atrás deles e pedi as botas de volta.
Dezenas de outros memorialistas descrevem cenas semelhantes. Os criminosos de carreira se lançavam sobre os outros presos com o que parecia ser uma fúria louca,
atirando-os para fora dos beliches nos trens e alojamentos; roubando as roupas que lhes restavam; berrando, maldizendo e xingando. Para pessoas comuns, a aparência
e o comportamento dos bandidos se afiguravam estranhíssimos. O preso polonês Antoni Ekart ficou horrorizado com a "absoluta falta de inibição da parte dos urki,
que satisfaziam à vista de todos as suas necessidades naturais, aí incluído o onanismo. Isso os tornava extraordinariamente similares aos macacos, com os quais pareciam
ter mais em comum que com os humanos" Mariya Ioffe, mulher de um bolchevique famoso, também escreveu que os bandidos faziam sexo às claras, andavam nus pelos alojamentos
e não tinham nenhum sentimento uns pelos outros: "Neles, só o corpo vivia".
Apenas depois de semanas ou meses nos campos, os não-inicia-dos começavam a entender que o inundo da criminalidade não era uniforme, que ele tinha uma hierarquia
própria e que, na realidade, havia muitos tipos diferentes de bandido. Lev Razgon explicou: "Eles se dividiam em castas e comunidades, cada uma com a própria disciplina
férrea, tendo muitas regras e costumes. Casos estes fossem desrespeitados, o castigo era severo: na melhor das hipóteses, o indivíduo era expulso do grupo; na pior,
assassinado".
O preso polonês Karol Colonna-Czosnowski, que se viu na situação de ser o único preso político num campo madeireiro setentrional habitado por bandidos, também observou
tais diferenças:
Naquele tempo, os criminosos russos tinham muita consciência de classe. Para eles, aliás, a classe era tudo. Em sua hierarquia, os peixes grandes, como os assaltantes
de trem ou de banco, eram membros da classe alta. Grisha Tchorny, chefe da máfia do campo, era um desses. No extremo oposto da escala social, ficava a arraia-miúda,
como os punguistas. Eram usados como criados e mensageiros pessoais pelos maiorais e tratados com muito pouco respeito. Todos os outros criminosos juntos compunham
o grosso da classe média, mas mesmo ali havia distinções.
De muitas maneiras, essa estranha sociedade era uma réplica caricaturesca do mundo normal. Nela, podíamos localizar o equivalente de cada nuance de virtude ou defeito
humano. Conseguíamos sem esforço identificar, por exemplo, o ambicioso em ascensão, o alpinista social, o embusteiro, assim como o íntegro e generoso.
Bem no topo daquela hierarquia, dando ordens a todos os outros, estavam os chefões. Os criminosos profissionais russos, conhecidos como urki, blatoi ou, caso estivessem
na elite mais exclusivista da bandidagem, vory v zakone - expressão que se poderia traduzir por "mafiosos" -, viviam segundo regras e costumes que precediam o Gulag
e que durariam mais que ele. Esses indivíduos não tinham absolutamente nada que ver com a vasta maioria dos presos do Gulag, aqueles com condenações por "crimes"
contra o socialismo. Os chamados "criminosos ordinários" - pessoas condenadas por pequenos furtos eventuais, infrações das normas de trabalho ou outros crimes não-políticos
- odiavam os mafiosos com a mesma veemência com que odiavam os presos políticos.
E não era de admirar: os mafiosos possuíam cultura muito diversa daquela do cidadão soviético médio. Esse universo criminoso tinha raízes profundas na bandidagem
da Rússia czarista, nas corporações de larápios e mendigos que, naquele tempo, controlavam os crimes de pouca monta. No entanto, essa cultura se disseminou muitíssimo
mais durante as primeiras décadas do regime soviético, graças às centenas de milhares de órfãos - vítimas diretas da Revolução, da Guerra Civil e da coletivização
- que haviam sobrevivido primeiro como crianças de rua e depois como bandidos. No final da década de 1920, quando os campos começaram a expandir-se em escala maciça,
os criminosos de carreira já haviam se tornado uma comunidade totalmente à parte, tendo até um rigoroso código de conduta que os proibia de manter toda e qualquer
relação com o Estado soviético. O verdadeiro mafioso se recusava a trabalhar, possuir documentos e cooperar de que modo fosse com as autoridades, só o fazendo para
explorá-las: os "aristocratas" da peça homônima de Nicolai Pogodin, de 1944, já eram identificáveis como "mafiosos" que, por princípio, se negavam a realizar qualquer
trabalho.
Aliás, os programas de doutrinação e reabilitação do começo dos anos 1930 estavam, na maior parte, voltados mais para os mafiosos que para os presos políticos. Presumia-se
que os bandidos, sendo sotsialnoblizkii - "socialmente próximos", ao contrário dos presos políticos, que eram sotsialnoopasnyi, "socialmente perigosos" -, pudessem
regenerar-se. Mas, no fim da década de 1930, as autoridades pareciam ter desistido da idéia de recuperar os criminosos de carreira. Em vez disso, resolveram usar
os mafiosos para controlar e intimidar outros presos, em especial "contra-revolucionários", os quais os bandidos abominavam com muita naturalidade.
Não se tratava de um desdobramento inteiramente novo. Um século antes, criminosos que cumpriam sentença na Sibéria já odiavam os presos políticos. Em Recordações
da casa dos mortos, as memórias bastante romanceadas de seus cinco anos na prisão, Dostoievski relata as observações de outro detento: "Não, eles não gostam de detentos
afidalgados, sobretudo dos presos políticos; bem gostariam de matá-los, o que não é de admirar. Para começo de conversa, vocês são um tipo diferente de pessoa, não
são como eles".
Na URSS, desde mais ou menos 1937 até o final da guerra, a administração dos campos começou a utilizar abertamente pequenos grupos de criminosos profissionais para
controlar outros presos. Durante aquele período, os mafiosos de mais alto coturno não trabalhavam; em vez disso, asseguravam-se de que outros o fizessem. Lev Razgon
assim descreveu:
Não trabalhavam, mas recebiam ração completa; extorquiam um tributo em dinheiro de todos os "camponeses", ou seja, de quem realmente trabalhava; pegavam metade das
remessas de alimento recebidas pelos detentos, mais metade do que estes compravam do empório do campo; e roubavam descaradamente os novos contingentes de presos,
apossando-se de todas as melhores roupas dos recém-chegados. Em suma, eram extorsionários, gângsteres, membros de uma pequena máfia. Todos os "criminosos ordinários"
do campo - e eles constituíam a maioria - os detestavam intensamente.
Alguns presos políticos descobriam maneiras de dar-se bem com os mafiosos, em especial após a guerra. Certos chefões gostavam de ter presos políticos como mascotes
ou sombras. Num campo onde os presos ficavam de passagem até o destino final, Alexander Dolgun ganhou o respeito de um chefão ao espancar um criminoso de menor posição.
Em parte porque também derrotara um criminoso numa briga de socos, Marlen Korallov (jovem preso político, depois um dos fundadores da Sociedade Memorial de Moscou)
foi notado pelo manda-chuva dos criminosos do pampo, Nikola, o qual autorizou Korallov a pôr-se perto dele no alojamento. Essa decisão alterou o status de Korallov
no campo, onde de imediato passou a ser considerado "protegido" de Nikola e obter muito mais vantagens na hora de arrumar lugar para dormir. "O campo entendeu: se
eu era parte da tróica em torno de Nikola, então era parte da elite [...] todas as atitudes para comigo se modificaram na mesma hora."
Na maior parte das vezes, porém, o domínio dos bandidos sobre os presos políticos era absoluto. O status superior dos criminosos ajudava a explicar por que eles,
nas palavras de um criminologista, se sentiam "em casa" nos campos de concentração: passavam melhor que outros presos e desfrutavam um nível de poder real que não
tinham fora dali. Korallov explica, por exemplo, que Nikola ficava na "única cama de ferro" do alojamento, a qual havia sido ajeitada num canto Ninguém mais dormia
nela, e um bando de asseclas a rondava para garantir que as coisas continuassem assim. Eles também faziam um cortinado de cobertores nos leitos ao redor, a fim de
impedir que outros espiassem o que faziam. O acesso ao espaço em torno do líder era controlado com zelo. Tais presos até consideravam suas longas condenações com
uma espécie de orgulho viril. Korallov observa que
havia alguns jovens que, para reforçar sua autoridade, procuravam escapar - uma tentativa inútil - e então recebiam mais 25 anos de pena, e talvez outros tantos
por sabotagem. Aí, quando apareciam num novo campo e diziam às pessoas que tinham sido condenados a cem anos, isso, seguindo a moralidade dos campos, os transformava
em figurões.
O status mais elevado aumentava o atrativo da bandidagem para os presos mais jovens, que às vezes eram introduzidos na fraternidade mediante complexos rituais de
iniciação. De acordo com relatos compilados por secretas e administradores prisionais nos anos 1950, os novos membros do clã tinham de fazer juramento, prometendo
ser "bandidos de valor" e aceitar as normas severas daquela vida. Outros mafiosos então recomendavam o noviço, talvez elogiando-o por "ter desafiado a disciplina
do campo" e dando-lhe um apelido. A notícia dessa "coroação" se disseminava por todo o sistema de campos, através da rede de contatos dos criminosos, de modo que,
se o novo mafioso fosse transferido para outro lagpunkt, seu status se conservaria.
Esse era o sistema que Nikolai Medvedev (o qual não tem nenhum parentesco com aqueles intelectuais de Moscou) encontrou em 1946. Aprisionado na adolescência por
ter furtado cereal numa fazenda coletiva, Medvedev já. ficou debaixo da asa de um dos principais chefões mafiosos quando ainda estava em traslado; então, aos poucos,
iniciaram-no na bandidagem. Ao chegarem a Magadan, Medvedev foi posto para trabalhar como os outros presos; viu-se encarregado de limpar o refeitório, o que não
era uma tarefa muito árdua. Seu mentor, porém, gritou para que parasse. "E, assim, não trabalhei, da mesma maneira todos os outros bandidos." Outros presos é que
se incumbiam do trabalho para ele.
Conforme Medvedev, a administração do campo não se preocupava com o fato de certos detentos não trabalharem. "Para ela, só interessava uma coisa: que a mina produzisse
ouro - tanto ouro quanto possível - e que o campo permanecesse em ordem." E, escreve ele de modo abonador, os bandidos realmente garantiam a ordem. O que os campos
perdiam em homens/hora (pelos criminosos que deixavam de trabalhar) ganhavam em disciplina. Medvedev explica que, "se alguém ofendia alguém, levava-se a queixa às
autoridades da bandidagem", não às do campo. Esse sistema, afirma Medvedev, mantinha baixo o nível de desavença e violência, o qual, do contrário, teria sido inconvenientemente
elevado.
A avaliação positiva que Nikolai Medvedev faz do domínio da bandidagem nos campos é incomum, em parte porque descreve de dentro o mundo dos mafiosos (muitos dos
urki eram analfabetos, e quase nenhum escreveu memórias), mas sobretudo porque lança sobre eles uma luz favorável. A maioria dos cronistas "clássicos" do Gulag,
testemunhas do terror, dos assaltos e dos estupros que os bandidos infligiam aos outros habitantes dos campos, os odiava com ardor. "Os criminosos não são humanos",
escreveu Variam Shalamov, sem meias palavras. "Os atos de perversidade que cometeram nos campos são inumeráveis." Soljenitsin escreveu que "era exatamente esse
mundo universalmente humano, o nosso mundo, com sua moral, seus costumes e suas relações mútuas, o que se mostrava mais odioso e mais merecedor de desdém para os
bandidos, pois se contrapunha da forma mais nítida possível a seu kubla (clã) anti-social e anticívico". De modo vivido, Anatolii Zhigulin descreveu como de fato
funcionava a ordem que os bandidos impunham. Certo dia, enquanto estava sentado num refeitório praticamente vazio, Zhigulin ouviu dois presos brigarem por causa
de uma colher. De súbito, Dezemiya, o principal lugar-tenente do maior chefão do campo, irrompeu pela porta e perguntou:
"Que barulho é esse? Por que o bate-boca? Vocês não podem perturbar a paz no refeitório."
"Olhe, ele pegou a minha colher e a trocou. Eu lhe dei uma inteira, e ele me devolveu uma quebrada..."
"Vou castigar e reconciliar os dois", disse Dezemiya, rindo à socapa. Nisto, executou dois rápidos movimentos em direção aos brigões: rápido como um raio, furou
um olho de cada um deles com seu picão.
A influência dos bandidos sobre a vida dos campos era decerto profunda. Sua gíria, tão distinta do russo comum que quase se torna um idioma à parte, tornou-se o
mais importante meio de comunicação no Gulag. Embora esse calão fosse célebre pelo enorme e complexo vocabulário de imprecações, uma lista de palavras compiladas
nos anos 1980 - muitas das quais ainda eram as mesmas usadas nos 1940 -também abrange centenas de termos para objetos comuns (aí incluídos utensílios, vestimentas
e partes do corpo) que são bem diversos das palavras russas usuais. Para objetos de particular interesse (dinheiro, prostitutas, bandidos e furto), há dúzias de
sinônimos. E, assim como termos genéricos para "crime" - entre eles po muzike khodit, "dançar conforme a música" -, existem muitos termos específicos para "furto"
e afins: derzhatsadku (furtar em estação ferroviária), marku derzhat (furtar em trem), idti na shalynuyu (furto não-planejado) denmik (furto à luz do dia) e klyusvennik
(ladrão de igreja), entre outros.
Aprender a falar blatnoe slovo - "língua de bandido", às vezes chamada blatnaya muzyka, "música de bandido" - era um ritual de iniciação a que muitos presos se submetiam,
não necessariamente de boa vontade. Alguns nunca se acostumavam. Uma prisioneira política escreveria:
Em tais campos, o mais difícil de agüentar são os constantes vitupérios [...] os palavrões que as prisioneiras usam são tão obscenos que se tornam insuportáveis,
e elas só parecem conseguir falar umas com as outras no linguajar mais reles e vulgar. Quando começavam com aqueles xingamentos e impropérios, ficávamos com tanta
raiva que costumávamos dizer entre nós: "Se uma delas estivesse morrendo aqui do meu lado, eu não lhe daria nem uma gota de água".
Outros tentavam analisar essa gíria. Já em 1925, um preso de Solovetsky especulava as origens daquele vocabulário num artigo que escreveu para a Solovetskie Ostrova
(uma das revistas do campo). Observava que algumas das palavras simplesmente refletiam a moralidade dos bandidos: a linguagem a respeito das mulheres era em parte
obscena, em parte melosamente sentimental. Algumas das palavras surgiam do contexto: os presos usavam stukat (bater) em vez de govorit (falar) porque batiam nas
paredes para comunicar-se uns com os outros. Outro ex-preso comentou o fato de que várias palavras, como shmon (para "busca"), musor (para "policial") e fraier
(para "não-criminoso", podendo traduzir-se também por "otário"), pareciam originar-se do hebraico ou do iídiche. Isso talvez seja evidência do papel que o porto
de Odessa - uma cidade em grande parte judaica, outrora a capital do contrabando na Rússia - desempenhou no desenvolvimento da cultura da bandidagem. De tempos em
tempos, a administração dos campos até procurava eliminar o calão. Em 1933, o comandante do Dmitlag ordenou a seus subordinados que "tomassem as devidas medidas"
para fazer os presos, assim como os guardas e administradores, pararem de utilizar o linguajar criminoso, o qual agora era "de uso geral, mesmo em cartas e discursos
oficiais". Não há nenhum indício de que a medida tenha surtido efeito.
Os mafiosos de mais alta posição pareciam e soavam diferentes dos outros presos. A indumentária e a moda estranha, talvez até mais que o calão, os estabeleciam como
casta identificável e distinta, o que reforçava ainda mais o poder de intimidação que exerciam sobre os demais prisioneiros. Nos anos 1940, segundo Shalamov, todos
os chefões mafiosos de Kolyma usavam cruzes de alumínio ao pescoço, sem nenhuma conotação religiosa ("Era uma espécie de símbolo"). Mas as modas mudavam:
Na década de 1920, os mafiosos usavam bonés de operário; antes ainda, a voga eram os quepes de oficial. Nos anos 40, durante os invernos, usavam bonés de couro sem
aba, dobravam o alto das botas de feltro e tinham ao pescoço um crucifixo. Este era em geral liso, mas, se houvesse algum artista à mão, eles o obrigavam a usar
uma agulha para pintar na cruz os motivos mais diversos: um coração, cartas de baralho, uma crucificação, uma mulher nua.
Georgii Feldgun, também prisioneiro nos campos na década de 1940, lembraria que os bandidos tinham um andar diferenciado, "de passadas curtas, com as pernas ligeiramente
abertas"; nos dentes, ostentavam coroas de ouro ou prata, uma espécie de moda:
Normalmente, o vor de 1943 circulava num costume azul-marinho de três peças, com as calças enfiadas dentro das botas. A túnica ficava debaixo do colete, com a fralda
para fora. Havia também o boné, cobrindo os olhos. E tatuagens, em geral sentimentais: "Nunca esquecerei minha querida mãezinha", "A vida desconhece a felicidade".
Essas tatuagens, mencionadas por muitos outros, também ajudavam a distinguir os mafiosos dos outros criminosos e a identificar o papel de cada chefão no mundo da
bandidagem. De acordo com um historiador dos campos, existiam diferentes tatuagens para homossexuais, viciados, condenados por estupro e condenados por homicídio.
Soljenitsin é mais explícito:
Cediam sua pele brônzea para a tatuagem e, dessa maneira, gradualmente satisfaziam suas necessidades artísticas, eróticas e até morais: nos peitos, barrigas e costas
uns dos outros, podiam admirar águias poderosas que se empoleiravam em desfiladeiros ou cruzavam os céus; ou uma grande marreta; ou o sol, dardejando raios em todas
as direções; ou homens e mulheres em cópula; ou os órgãos de seu desfrute sexual; e, bem de repente, Lênin, Stalin ou talvez ambos apareciam ao lado de seus corações
[...]. Por vezes, riam com a figura do foguista galhofeiro que lhes jogava carvão no orifício traseiro, ou com um macaco que se masturbava. E, na pele uns dos outros,
liam slogans que, mesmo se já familiares, eles adoravam repetir - "Vou f... todas as minas na boca!" [,..]. Ou, na barriga da namorada de um chefão, podia haver
um "Eu morro por uma boa f...!".
Sendo artista profissional, Thomas Sgovio logo foi tragado pelo ramo da tatuagem. Certa vez, pediram-lhe que desenhasse o rosto de Lênin no peito de alguém: entre
os bandidos, havia a crença comum de que nenhum pelotão de fuzilamento dispararia num retrato de Lênin ou Stalin.
Os mafiosos também se distinguiam de outros presos na maneira de se divertir. Complexos rituais cercavam seu carteado, o qual acarretava enorme risco, tanto do próprio
jogo, em que as apostas eram altas, quanto das autoridades, que puniam todos os apanhados em jogatina. Entretanto, o risco era provavelmente parte do atrativo para
pessoas acostumadas ao perigo: Dmitrii Likhachev, o crítico literário encarcerado em Solovetsky, observou que muitos bandidos "comparam as emoções do carteado às
da consecução de um crime".
Aliás, os criminosos anularam todas as tentativas da NKVD de pôr fim ao carteado. Buscas e apreensões não adiantavam de nada. Entre os bandidos, "peritos" se especializavam
em produzir baralhos, procedimento que, nos anos 1940, já se tornara extremamente sofisticado. Primeiro, o expert cortava quadrados de papel com lâmina de barbear.
Para assegurar-se de que as cartas fossem rijas o bastante, ele sobrepunha cinco ou seis desses quadrados, usando a "cola" que se fazia esfregando pão molhado contra
um lencinho. Depois, deixava as cartas amanhecerem debaixo dos beliches, para endurecê-las. Quando ficavam prontas, estampava as figuras e números, usando um carimbo
que fora entalhado do fundo de uma caneca. Para as cartas pretas, utilizava cinzas escuras. Caso se dispusesse de estreptomicina - se o médico da cadeia ou do campo
a tivesse e pudesse ser subornado ou ameaçado para entregar alguma -, podia também fazer as cartas vermelhas.
Os rituais do carteado eram outra parte do terror que os bandidos impunham aos presos políticos. Quando os criminosos jogavam uns com os outros, apostava-se dinheiro,
pão e indumentária. Se perdiam essas coisas, apostavam as de outros presos. Gustav Herling testemunhou pela primeira vez um desses episódios quando estava num vagão
Stolypin rumo à Sibéria. Viajava com outro polonês, o coronel Shklovski. No mesmo vagão, três urki, entre eles "um gorila com cara achatada de mongol", jogavam cartas.
[...] de repente, o gorila largou as cartas com brusquidão, levantou-se do banco num salto e veio para cima de Shklovski.
"Me dá o casaco!", berrou. "Eu o perdi no jogo!"
Shklovski abriu os olhos e, sem se mexer do assento, deu de ombros.
"Me dá!", rugiu o gorila, furioso. "Me dá! Senão, glaza vykolu, eu arranco os teus olhos!"
O coronel se ergueu devagar e entregou o casaco.
Só depois, no campo de trabalhos forçados, compreendi o significado daquela cena esdrúxula. Apostar nas cartas os pertences de outros presos é uma das diversões
prediletas dos urki, e o principal atrativo disso está no fato de que o perdedor é obrigado a tirar à força da vítima o item previamente acordado.
Uma prisioneira estava num alojamento feminino que fora todo "perdido" num jogo de cartas. Após terem ficado sabendo da notícia, as mulheres passaram dias numa espera
angustiada, "incrédulas". Até que, uma noite, ocorreu o ataque. "O alvoroço foi terrível: as mulheres berraram como loucas até que homens vieram em nosso socorro
[...] ao fim e ao cabo, só roubaram algumas trouxas de roupas, e a starosta foi apunhalada."
O carteado, porém, podia ser não menos perigoso para os próprios criminosos de carreira. Em Kolyma, o general Gorbatov encontrou um bandido que tinha apenas dois
dedos na mão esquerda. O homem explicou:
Estava jogando cartas e perdi. Não tinha dinheiro e, por isso, apostei um terno de boa qualidade - não meu, é claro, mas de um [preso] político. Eu pretendia pegar
o terno de noite, quando o preso, recém-chegado, o tivesse tirado para dormir. Eu precisava entregá-lo antes das oito da manhã, mas acabaram levando o político para
outro campo naquele mesmo dia. Nosso conselho de chefes se reuniu para determinar meu castigo. A parte queixosa queria que me cortassem todos os dedos da mão esquerda.
Os chefes propuseram dois. Pechincharam um pouco e fecharam em três. Assim, pus a mão na mesa, e o homem para o qual eu tinha perdido pegou um picão e, com cinco
golpes, arrancou meus três dedos.
Quase com orgulho, o homem concluiu: "Também temos as nossas leis, só que mais duras que as de vocês. Quando se falha com os companheiros, é preciso responder por
isso". E os rituais judiciais dos mafiosos eram tão complexos quanto suas cerimônias de iniciação, demandando um "tribunal", um julgamento e uma sentença, a qual
podia significar surra, humilhação ou até morte. Colonna-Czosnowski presenciou uma longa e renhida partida de cartas entre dois mafiosos de alto escalão, que só
terminou quando um deles já perdera todos os seus pertences. Em vez de um braço ou perna, o ganhador exigiu como penalidade uma humilhação medonha: mandou o "artista"
do alojamento tatuar na cara do perdedor um pênis enorme, apontado para a boca. Minutos depois de pronta a tatuagem, o perdedor pressionou um atiçador em brasa contra
o próprio rosto, apagando-a e desfigurando-se pelo resto da vida. Anton Antonov-Ovseenko, filho de um destacado bolchevique, também afirmaria ter conhecido nos
campos um "surdo-mudo" que perdera nas cartas e, por isso, fora proibido de usar a voz durante três anos. Mesmo quando era transferido de campo, não se atrevia a
violar a condenação, pois todos os urki locais estavam cientes dela. "O desrespeito ao acertado seria punido com a morte. Ninguém escapa à lei dos bandidos."
As autoridades sabiam desses rituais e, de quando em quando, procuravam intervir, nem sempre com sucesso. Num episódio em 1951, um tribunal mafioso condenou à morte
um bandido chamado Yurilkin. As autoridades do campo souberam da sentença e transferiram Yurilkin, primeiro para outro campo, depois para uma prisão transitória,
em seguida para um terceiro campo, numa região completamente diferente do país. Ainda assim, dois mafiosos enfim localizaram o condenado e o mataram - passados quatro
anos. Depois, foram julgados e executados por homicídio na Justiça soviética, mas nem mesmo tal castigo se mostrava necessariamente coibitivo. Em 1956, a promotoria-geral
da URSS fez circular um memorando em que, com frustração, se queixava de que "essa formação criminosa existe em todos os campos de trabalho correcional, e com freqüência
a decisão do grupo de matar este ou aquele preso que se encontra em outro campo é ali executada sem discussão".
Os tribunais mafiosos também eram capazes de impor punições a quem não pertencia à bandidagem, o que talvez explique por que inspiravam tanto terror. Lev Finkelstein,
preso político no começo dos anos 1950, recordaria um desses assassínios motivados pela vingança:
Pessoalmente, vi um só homicídio, mas esse foi bem espetacular. Sabe esses espetos de papel metálicos? Quando bem afiados, são uma arma extremamente mortífera. [...]
Tínhamos um naryadchik, o homem designado para distribuir tarefas aos presos - do que ele era culpado, disso não sei. Mas os mafiosos resolveram que devia ser morto.
Aconteceu quando ele estava de pé na contagem dos presos, antes de irem para o trabalho. Cada turma estava em posição de sentido, separada das outras. O naryadchik
se encontrava à frente. O nome dele era Kazakhov, um homem pesadão, com uma bela pança. Um dos bandidos saiu chispando da formação e enfiou o espeto na barriga dele.
Provavelmente, era um assassino experiente. Foi pego de imediato - mas tinha 25 anos de pena. Eles o julgaram outra vez, é claro, e lhe deram outros 25. Assim, a
sentença se prolongaria mais alguns anos - e quem se importava?
Contudo era um tanto raro que os bandidos voltassem sua "justiça" contra quem administrava os campos. No geral, se não eram exatamente leais cidadãos soviéticos,
pelos menos ficavam satisfeitos -satisfeitíssimos - em cooperar na única tarefa que as autoridades da URSS lhes destinavam: dominar os presos políticos, aqueles
elementos que, para de novo citarmos Evgeniya Ginzburg, eram ainda mais desprezados e marginalizados do que eles.
KONTRIKI E BYTOVYE: OS PRESOS POLÍTICOS E OS PRESOS ORDINÁRIOS
Com seu calão especial, sua indumentária característica e sua cultura rígida, os criminosos de carreira eram fáceis de identificar e de descrever. Sobre o resto
dos presos, que constituíam a mão-de-obra do Gulag, torna-se muito mais difícil fazer generalizações, pois eram pessoas oriundas de todos os estratos da sociedade
soviética. Aliás, durante tempo demasiado longo, nossa compreensão de quem era exatamente a maioria dos prisioneiros nos campos se viu enviesada pela dependência
forçada que tínhamos em relação às memórias escritas, sobretudo às publicadas fora da URSS. Seus autores eram em geral intelectuais, com freqüência estrangeiros
e quase universalmente presos políticos.
Mas, desde a glasnost de Gorbatchev, disponibilizou-se uma variedade maior de material memorialístico, junto com alguns dados arquivais. Segundo esses últimos -
que devem ser tratados com um bocado de cautela -, parece que a imensa maioria dos presos não era de modo algum composta de intelectuais. Ou seja, não eram pessoas
da intelligentsia técnica e acadêmica da Rússia, a qual, na prática, formava uma classe social à parte, mas operários e camponeses. Alguns números referentes aos
anos 1930, quando o grosso dos presos do Gulag eram kulaks, são particularmente reveladores. Em 1934, só 0,7% da população dos campos de concentração tinha instrução
superior; já 39,1% possuíam apenas escolaridade primária. Na mesma época, 42,6% eram descritos como "semi-alfabetizados", e 12% eram totalmente analfabetos. Mesmo
em 1938, o ano em que o Grande Terror assolou a intelectualidade de Moscou e Leningrado, quem tinha instrução superior ainda correspondia a apenas 1,1% da população
do Gulag, ao passo que mais de metade do total fizera somente o primário e um terço era semi-alfabetizado.
Estatísticas comparáveis sobre a proveniência social dos detentos não parecem estar disponíveis, mas vale a pena notar que, em 1948, menos de um quarto deles eram
presos políticos - aqueles condenados por crimes "contra-revolucionários", conforme o artigo 58 do Código Penal. Isso seguia um padrão preexistente. Os presos políticos
corresponderam a apenas 12%-18% da população prisional nos anos de terror de 1937 e 1938; ficaram em 30%-40% durante a guerra; subiram para quase 60% em 1946, em
conseqüência da anistia concedida a presos criminais após a vitória; e então permaneceram numa porcentagem estável, entre um quarto e um terço de todos os presos,
pelo restante do reinado de Stalin. Dada a elevada rotatividade de presos não-polí-ticos - estes freqüentemente estavam condenados a penas mais curtas e tinham
mais chance de atender aos requisitos para a liberação antecipada -, é seguro dizer que a grande maioria dos que passaram pelo sistema Gulag nas décadas de 1930
e 40 se constituía de pessoas com sentenças criminais e, portanto, com maior probabilidade de serem operários e camponeses.
Esboço de retrato de dois zeks. Desenho de Sergei Reikhenberg. Magadan, data desconhecida
No entanto, embora esses números possam ajudar a corrigir impressões anteriores, eles também enganam. Analisando o novo material memorialístico acumulado na Rússia
desde o colapso da URSS, fica igualmente claro que muitos dos presos políticos não se enquadravam na definição que hoje damos ao termo. Nos anos 1920, os campos
realmente continham membros dos partidos antibolchevique, indivíduos que de fato se designavam "presos políticos". Nos anos 30, também havia alguns verdadeiros trotskistas
- pessoas que tinham mesmo apoiado Trotski contra Stalin. Nos anos 40, após as prisões em massa na Ucrânia, nos Estados bálticos e na Polônia, uma onda de guerrilheiros
e ativistas verdadeiramente anti-soviéticos fluiu para o Gulag. E, no começo da década de 50, prendeu-se um punhado de estudantes anti-stalinistas.
Todavia, entre as centenas de milhares de pessoas que eram denominadas presos políticos nos campos, a imensa maioria se compunha não de dissidentes, nem de padres
que diziam missa às escondidas, nem mesmo de maiorais do Partido. Era, isto sim, de pessoas comuns, levadas de roldão durante detenções em massa, não tendo necessariamente
posições políticas fortes em nenhum sentido. Olga Adamova-Sliozberg, outrora funcionária de um dos ministérios industriais em Moscou, escreveria: "Antes de minha
prisão, eu levava vida bastante comum, típica de uma profissional liberal soviética que não pertencesse ao Partido. Dava duro, mas não tinha nenhuma participação
especial na política nem nas questões públicas. Meus verdadeiros interesses eram o lar e a família".
Se os presos políticos não eram necessariamente políticos, a esmagadora maioria dos presos criminais tampouco era necessariamente de criminosos. No Gulag, embora
houvesse alguns criminosos de carreira e, durante o conflito mundial, alguns verdadeiros colaboracionistas e criminosos de guerra, a maior parte dos demais fora
condenada por crimes "ordinários" ou não-políticos que, em outras sociedades, nunca seriam considerados delitos. Por duas vezes, o pai do general e político russo
Alexsander Lebed se atrasara dez minutos para o trabalho numa fábrica, pelo que o sentenciaram a cinco anos no Gulag. No campo de Polyansky, situado perto do Krasnoyarsk
26 (local de um dos reatores nucleares da URSS) e habitado majoritariamente por criminosos, os arquivos registram um preso "criminal" que pegou seis anos pelo furto
de um único pé de galocha numa feira; outro, dez anos pelo furto de dez pães; outro (caminhoneiro que criava sozinho os dois filhos), sete anos pelo furto de três
garrafas do vinho que estava entregando; e outro, cinco anos por "especulação", significando que comprara cigarros num lugar e os vendera em outro. Antoni Ekart
conta a história de uma mulher que foi presa porque pegou um lápis do escritório onde trabalhava; era para o filho, que não podia fazer o dever de casa porque não
tinha com o que escrever.
No mundo às avessas do Gulag, a probabilidade de presos criminais serem de fato criminosos equivalia à de presos políticos serem mesmo opositores ativos do regime.
Em outras palavras, os criminosos nem sempre eram gente que cometera crimes de verdade. E era ainda mais raro que um preso político houvesse cometido um delito de
natureza política. Isso, porém, não impedia o sistema judiciário soviético de classificá-los zelosamente. Como grupo, os contra-revolucionários tinham status ainda
mais baixo que os criminosos; como já dissemos, eram considerados "socialmente perigosos", menos compatíveis com a sociedade soviética que os criminosos, "socialmente
próximos". Mas os presos políticos também se classificavam segundo o parágrafo do artigo 58 do Código Penal pelo qual houvessem sido condenados. Evgeniya Ginzburg
observou que, dentre os presos políticos, era muitíssimo "melhor" ter sido condenado conforme o parágrafo 10, por "agitação anti-soviética" (ASA). Eram os "tagarelas":
haviam contado alguma piada infeliz a respeito do Partido ou deixado escapar alguma crítica a Stalin ou ao chefe partidário local - ou então sido acusados disso
por algum vizinho invejoso. Até as autoridades dos campos reconheciam tacitamente que os "tagarelas" não haviam cometido crime nenhum, e assim os condenados por
ASA descobriam que, no caso deles, às vezes era mais fácil ser designado para trabalho mais leve.
Abaixo deles, estavam os condenados por "atividades contra-revolucionárias" (KDR). Mais abaixo ainda, havia os condenados por "atividades terroristas contra-revolucionárias"
(KRTD). Em alguns campos, o T adicional podia significar que o preso estava proibido de realizar outro trabalho que não os "serviços gerais" mais pesados (cortar
árvores, cavar nas minas, construir estradas), em especial se a KRTD acarretara pena de dez ou quinze anos ou mais.
E era possível descer ainda mais. Abaixo da KRTD, havia outra categoria: as KRTTD, que eram não qualquer atividade terrorista, mas sim as "atividades terroristas
trotskistas contra-revolucionárias". "Sei de casos", escreve Lev Razgon, "em que esse T extra aparecia na documentação do preso nos campos por causa de alguma discussão,
durante a contagem dos prisioneiros, com o distribuidor de tarefas ou com o chefe desse serviço, ambos os quais eram criminosos." Uma mudancinha como essa podia
ser a diferença entre a vida e a morte, pois nenhum capataz designaria um preso KRTTD para outra coisa senão a labuta mais pesada.
Tais regras nem sempre eram nítidas. Na prática, os presos viviam sopesando o valor das diferentes sentenças judiciais, procurando calcular que influência elas teriam
em suas vidas. Variam Shalamov relata que, após haver sido selecionado para fazer um curso de paramédico que lhe teria permitido tornar-se feldsher (assistente médico,
um dos serviços mais prestigiosos e confortáveis no campo), ficou preocupado com o efeito que sua sentença teria em suas possibilidades de concluir o curso: "Será
que aceitariam presos políticos condenados pelo artigo 58? Só os que o tivessem sido pelo parágrafo 10? E o homem que estava comigo na traseira do caminhão? Ele
também era ASA, agitação anti-soviética".
As sentenças oficiais, por si sós, não determinavam o lugar dos presos políticos na hierarquia dos campos. Embora não tivessem um código de conduta rígido como o
dos bandidos, nem um linguajar uniformizador, eles realmente acabavam segregando-se em grupos. Esses clãs políticos se mantinham unidos pela camaradagem, pela necessidade
de defender-se ou pela visão de mundo que compartilhavam. Não ficavam à parte - tinham elementos de contato uns com os outros e com os clãs de presos não-políticos
-, nem existiam em todos os campos. Mas, nas circunstâncias certas, podiam ser cruciais para a sobrevivência do prisioneiro.
Dos clãs políticos, os mais fundamentais, e, no final das contas, mais poderosos, se constituíam em torno da nacionalidade ou do lugar de origem. Esses se tornaram
mais importantes durante e após a Segunda Guerra Mundial, quando o número de presos estrangeiros aumentou enormemente. Surgiam de modo bem natural: o novo prisioneiro
chegava e de imediato procurava nos alojamentos seus patrícios estonianos, ucranianos ou (num número ínfimo de casos) americanos, por exemplo. Walter Warwick, um
dos fino-americanos que acabaram no Gulag nos anos 1930, descreve, num manuscrito que elaborou para a família, como os falantes do finlandês em seu campo se aglutinavam
especificamente para proteger-se dos roubos e abusos da bandidagem: "Chegamos à conclusão de que, se quiséssemos um pouco de sossego, precisaríamos formar uma gangue.
Assim, organizamos nossa própria turma, para nos ajudarmos uns aos outros. Éramos seis: dois fino-americanos [...], dois finlandeses da própria Finlândia [...] e
dois finlandeses da região de Leningrado".
Nem todo clã baseado na nacionalidade exibia o mesmo caráter. Há opiniões discordantes, por exemplo, sobre se os prisioneiros judeus tinham mesmo uma rede própria
ou se, ao contrário, fundiam-se na população geral russa - ou, no caso do grande número de judeus polacos, na grande população geral polonesa. Parece que a resposta
variava conforme a época e que muito dependia das atitudes individuais. Muitos dos judeus aprisionados no final dos anos 1930, durante a repressão contra os primeiros
escalões da nomenklatura e das Forças Armadas, parecem ter-se considerado primeiro comunistas e só depois judeus. Segundo um preso, nos campos "todo o mundo virava
russo -fossem caucásios, fossem tártaros, fossem judeus".
Posteriormente, à medida que mais judeus chegavam com os poloneses durante a guerra, eles parecem ter formado redes étnicas reconhecíveis. Ada Federolf - que escreveu
memórias junto com Ariadna Efron, filha de Maria Tsvetaeva - descreveu um campo no qual a oficina de costura (pelos padrões locais, um lugar luxuoso para trabalhar)
ficava a cargo de um homem chamado Lieberman. Sempre que chegava um contingente de prisioneiros, ele percorria a multidão, gritando: "Quem é judeu? Quem é judeu?"
Quando os localizava, providenciava para que viessem trabalhar consigo na oficina, poupando-os do trabalho braçal na floresta. Lieberman também ideou planos engenhosos
para salvar rabinos, os quais, por dever de ofício, precisavam rezar o dia todo. Construiu um cubículo especial para certo rabino, ocultando o religioso a fim de
que ninguém soubesse que ele não estava trabalhando. Lieberman também inventou para outro rabino o cargo de "controlador de qualidade". Isso possibilitava que o
homem percorresse o dia inteiro as fileiras de costureiras, sorrindo para elas e orando de mansinho.
No começo dos anos 1950, quando o anti-semitismo oficial soviético começou a fortalecer-se - estimulado pela obsessão de Stalin com os médicos judeus que, achava
ele, estavam tentando matá-lo -, voltou a ficar difícil ser judeu. Entretanto, mesmo dessa vez, o grau de anti-semitismo parecia variar de campo para campo. Ada
Purizhinskaya, aprisionada no auge do "Complô dos Médicos" (o irmão fora julgado e executado por "ter conspirado para matar Stalin"), não se recordaria de "nenhum
problema em especial por ser judia". Mas Leonid Trus, outro judeu encarcerado na mesma época, pensaria de modo diferente. Certa vez, disse ele, um zek mais velho
o salvou de um anti-semita furibundo, que fora aprisionado por comércio de ícones. (O zek mais velho gritou para o vendilhão que este, homem que "comprava e vendia
imagens de Cristo", devia envergonhar-se.)
Trus, porém, não tentava esconder o fato de que era judeu. Pelo contrário: nas botas, pintou uma estrela-de-davi, em boa parte para impedir que as roubassem. Em
seu campo, "os judeus, assim como os russos, não se organizam num grupo". Isso o deixava sem companhia evidente. "Para mim [...] o pior era a solidão, a sensação
de ser judeu em meio a russos, o fato de que todos tinham amigos de sua terra, ao passo que eu estava completamente só."
Por causa de seu pequeno número, os europeus-ocidentais e os norte-americanos que acabavam nos campos também tinham dificuldade para formar redes fortes. Dificilmente
estavam em situação de ajudar-se uns aos outros: muitos estavam de todo desorientados pela vida no Gulag, não falavam russo e achavam o rancho incomível e as condições
de vida insuportáveis. Após ter visto todo um grupo de alemãs morrer na prisão transitória de Vladivostok, apesar de autorizadas a beber água fervida, a prisioneira
russa Nina Gagen-Torn escreveu, só em parte com ironia, que, "se os alojamentos estiverem repletos de cidadãos soviéticos, acostumados à comida, eles suportarão
o peixe salgado mesmo se estragado; mas, quando chega um grande transporte de presos da Terceira Internacional, eles todos pegam disenteria do tipo mais grave".
Lev Razgon também se compadecia dos estrangeiros, lembrando que "não conseguiam nem entender nem se assimilar; não tentavam adaptar-se e sobreviver; apenas se juntavam
instintivamente".
Mas os ocidentais - grupo que englobava poloneses, tchecos e outros leste-europeus - também tinham algumas vantagens. Eram motivo de especial fascínio e interesse,
o que às vezes lhes rendia contatos, dádivas de alimento, um tratamento mais gentil. Antoni Ekart, polonês educado na Suíça, conseguiu vaga no hospital graças a
um enfermeiro chamado Ackerman, oriundo da Bessarábia. "O fato de que eu provinha do Ocidente simplificava as coisas": todos estavam interessados no ocidental e
queriam salvá-lo. A escocesa Flora Leipman, cujo padrasto (russo) convencera a família dela a mudar-se para a URSS, usava sua nacionalidade para entreter as companheiras
de cativeiro:
Eu levantava a saia, para que parecesse um kilt, e baixava as meias, para que dessem a impressão de ir só até os joelhos. Jogava o cobertor sobre os ombros, como
um manto escocês, e pendurava o chapéu na cintura, como um sporran. Minha voz se elevava orgulhosamente, cantando "Annie-Laurie" e "Ye banks and braes o'boonie Doon",
sempre concluindo com o "God save the King" - sem traduzir a letra.
Ekart também descreveria a sensação de ser "objeto de curiosidade" para os intelectuais russos:
Em encontros especialmente organizados e cuidadosamente ocultos que tive com alguns dos mais confiáveis entre eles, falei de minha vida em Zurique, Varsóvia, Viena
e outras cidades do Ocidente. Meu paletó esporte de Genebra e minhas camisas de seda eram examinados com todo o zelo, pois eram a única prova concreta do alto padrão
de vida existente fora do mundo comunista. Alguns se mostravam visivelmente incrédulos quando eu dizia que podia comprar todos aqueles artigos com meu salário mensal
de engenheiro júnior numa fábrica de cimento.
"Quantos ternos você tem?", perguntou um dos agrônomos. "Seis ou sete."
"Você está mentindo!", protestou um homem de não mais que 25 anos. Depois, voltou-se para os outros e disse: "Por que é que temos de tolerar essas histórias absurdas?
Para tudo há limite; não somos criancinhas".
Eu encontrava dificuldade para esclarecer que, no Ocidente, uma pessoa comum que se preocupasse um pouco com a aparência procuraria ter vários ternos, pois as roupas
duram mais quando podemos tirá-las de tempos em tempos. Para um membro da intelligentsia russa, o qual raramente possuía mais de um terno, era difícil entender isso.
John Noble, americano pego em Dresden, também se tornou um "VIP de Vorkuta" e regalava os companheiros de campo com histórias sobre a vida nos Estados Unidos, as
quais eles consideravam inacreditáveis. "Johnny", disse-lhe um deles, "você vai querer nos fazer acreditar que os trabalhadores americanos têm carro próprio."
Mas, embora esses estrangeiros despertassem admiração, isso também os impedia de estabelecer os contatos estreitos que sustinham tantos prisioneiros nos campos.
Flora Leipman escreveria que "até minhas novas 'amigas' do campo tinham medo de mim, já que era estrangeira mesmo para elas". Antoni Ekart, quando se viu como único
preso não-russo num lagpunkt, sofreu porque os cidadãos soviéticos não gostavam dele e porque o sentimento era recíproco. "Estava envolto pelo cheiro de aversão,
quando não de ódio [...] ressentiam-se do fato de que eu não era como eles. A cada momento, eu percebia a desconfiança, a estultice, a má vontade, a vulgaridade
inata. Tive de ficar muitas noites sem dormir, para proteger a mim e a meus pertences."
Mais uma vez, os sentimentos de Ekart evocam uma época anterior. A descrição de Dostoievski do relacionamento entre criminosos polacos e russos no século XIX faz
pensar que os ancestrais de Ekart tinham vivenciado a mesma coisa:
Os poloneses (falo apenas dos presos políticos) tinham para com eles uma espécie de polidez refinada e insultante; eram extremamente fechados e não conseguiam de
modo algum esconder dos condenados a repulsa que sentiam por eles; os condenados, por sua vez, percebiam isso muitíssimo bem e pagavam na mesma moeda.
Em posição ainda mais delicada, estavam os muçulmanos e outros presos da Ásia central e de algumas das repúblicas do Cáucaso. Sofriam com o mesmo desnorteamento
que os ocidentais, mas em geral não conseguiam entreter nem interessar os russos. Conhecidos como natsmeny - acrônimo do termo russo para "minorias nacionais" -,
eram parte da vida no Gulag desde o final dos anos 1920. Grande número deles fora aprisionado durante a pacificação (e sovietização) da Ásia central e do Cáucaso
setentrional e mandado para trabalhar no Canal do Mar Branco, onde um coetâneo escreveu que, "para eles, tudo é difícil de entender: as pessoas que os dirigem, o
canal que estão construindo, a comida que estão consumindo". A partir de 1933, muitos trabalharam também no Canal Moscou-Volga, onde os chefes do campo parecem
ter-se compadecido deles. Em certa altura, ordenaram a seus subordinados que estabelecessem alojamentos e turmas de trabalho distintos para esses presos, de modo
que pudessem pelo menos cercar-se de patrícios. Posteriormente, Gustav Herling toparia com eles num campo madeireiro do norte. Lembrar-se-ia de vê-los toda noitinha
na enfermaria do campo, esperando para ser atendidos pelo médico do campo:
Mesmo na sala de espera, ficavam segurando a barriga, com dor, e, tão logo iam para a consulta, irrompiam em lamúrios aflitos, nos quais os gemidos se misturavam
de maneira indistinta com o precário e curioso russo que falavam. Não havia remédio para a doença deles [...] estavam simplesmente perecendo de fome, de frio, da
monótona brancura da neve, das saudades da terra natal. Seus olhos repuxados, desacostumados à paisagem setentrional, estavam sempre lacrimejantes, e suas pestanas
ficavam coladas uma à outra por uma pequena crosta amarela. Nos raros dias em que ficavam livres do trabalho, os uzbeques, turcomanos e quirguizes se juntavam num
canto do alojamento e punham suas roupas de festa - longos e coloridos mantos de seda e barretes bordados. Era impossível adivinhar do que falavam com tanta animação
e entusiasmo, gesticulando, berrando uns com os outros e balançando tristemente as cabeças, mas eu tinha certeza de que não era a respeito do campo.
A vida não se mostrava muito melhor para os coreanos - em geral cidadãos soviéticos daquela origem -, nem para os japoneses -dos quais espantosos 600 mil chegaram
ao Gulag e aos campos de prisioneiros de guerra no fim do conflito mundial. Os japoneses sofriam em especial com a comida, que lhes parecia não apenas escassa, mas
também estranha e praticamente inconsumível. Em conseqüência, catavam e consumiam coisas que se assemelhavam igualmente incomestível aos outros presos: ervas silvestres,
insetos, besouros, cobras e cogumelos que nem os russos comiam. De vez em quando, essas iniciativas acabavam mal: há registros de prisioneiros japoneses que morreram
da ingestão de ervas ou capins venenosos. Uma indicação de quão isolados eles se sentiam aparece nas memórias de um preso russo que, numa biblioteca de campo, encontrou
um folheto em japonês -tratava-se de um discurso do bolchevique Zhdanov. O russo o levou a um japonês seu conhecido, prisioneiro de guerra. "Pela primeira vez, eu
o vi feliz de verdade. Mais tarde, disse-me que lia o folheto todos os dias, apenas para ter contato com o idioma natal."
Algumas das outras nacionalidades do Extremo Oriente se adaptavam com mais facilidade. Vários memorialistas mencionam a forte organização dos chineses. Destes, alguns
eram "soviéticos", nascidos na URSS; outros, trabalhadores que haviam imigrado legalmente nos anos 1920; e outros ainda, desafortunados que, por acidente ou capricho,
haviam atravessado a longa fronteira sino-soviética. Um preso se recordaria de que um chinês lhe contou que ele, assim como muitos outros, fora aprisionado porque
atravessara o rio Amur a nado, atraído pela vista do lado soviético:
O verde e o dourado das árvores [e] as estepes pareciam tão belas! E, em nossa região, nenhum dos que cruzavam o rio jamais voltava. Pensávamos que isso só podia
significar que a vida era boa do lado de cá e, assim, resolvíamos atravessar. No instante em que chegávamos, éramos detidos e acusados segundo o artigo 58, parágrafo
6º Espionagem. Pena de dez anos.
Dmitri Panin - um dos companheiros de campo de Soljenitsin - lembraria que, no Gulag, os chineses "só se comunicavam entre si; à guisa de resposta a qualquer de
nossas perguntas, faziam cara de incompreensão". Karlo Stajner recordaria que eles eram ótimos na hora de arrumar bons trabalhos uns para os outros: "Em toda a
Europa, os chineses são famosos malabaristas, mas, nos campos, eram usados na lavanderia. Não me lembro de ter visto algum trabalhador não-chinês nas lavanderias
dos campos pelos quais passei".
No Gulag, os grupos étnicos mais influentes eram, de longe, os baltas e os oeste-ucranianos que haviam sido varridos em massa para os campos de concentração durante
e após a guerra (ver capítulo 20).
Menos numerosos, mas também influentes, eram os poloneses, sobretudo os guerrilheiros anticomunistas, que igualmente apareceram nos campos na segunda metade da década
de 1940 - assim como os tchetchenos, os quais Soljenitsin descreveria como "a única nação que se recusava a desistir e a adquirir os hábitos mentais da submissão"
e que, de diversas maneiras, sobressaía entre os outros caucásios. A força desses grupos étnicos específicos estava nos números e na clara oposição à URSS, cuja
invasão de seus respectivos países eles consideravam ilegal. Os poloneses, baltas e ucranianos do pós-guerra também tinham experiência militar e guerrilheira, e,
em alguns casos, suas organizações de luta clandestina se mantiveram nos campos. Logo depois da guerra, o estado-maior geral do Exército Rebelde Ucraniano - UPA,
um dos vários grupos que combatiam pelo controle da Ucrânia naquela época -, divulgou um comunicado a todos os compatriotas que haviam sido degredados ou mandados
para o Gulag: "Onde quer que estejais, nas minas, nas florestas ou nos campos de concentração, sempre permanecei o que fostes, continuai sendo ucranianos fiéis e
prossegui nossa luta".
Nos campos, ex-guerrilheiros se ajudavam conscientemente e cuidavam dos recém-chegados. Adam Galinski, que lutara no Exército da Pátria, a guerrilha anticomunista
da Polônia, durante e após a guerra, escreveria: "Zelávamos especialmente pela mocidade do Exército da Pátria e mantínhamos seu moral, que era o mais elevado na
degradante atmosfera de declínio espiritual que prevalecia entre os diversos grupos nacionais aprisionados em Vorkuta".
Em anos posteriores, quando adquiririam mais poder para influenciar o andamento das coisas nos campos, os poloneses, baltas e ucranianos - assim como os georgianos,
armênios e tchetchenos -, também formavam suas próprias turmas de trabalho, dormiam à parte em alojamentos dispostos conforme a etnia e organizavam comemorações
de seus feriados nacionais. Às vezes, esses grupos poderosos cooperavam uns com os outros. O autor polonês Aleksander Wat escreveria que, nas prisões soviéticas,
os polacos e ucranianos - inimigos figadais durante a guerra, quando seus movimentos guerrilheiros se confrontaram em cada centímetro do território da Ucrânia ocidental
- se relacionavam "com reticência, mas com incrível lealdade. 'Somos inimigos, mas não aqui"'.
De outras vezes, esses grupos étnicos competiam tanto entre si quanto com os russos. Lyudmila Khachatryan, aprisionada por ter-se apaixonado por um soldado iugoslavo,
recordaria que os ucranianos de seu campo se recusavam a trabalhar com os russos. Os movimentos nacionais de resistência, escreveria outro observador, "caracterizam-se,
de um lado, pela hostilidade ao regime e, de outro, pela hostilidade aos russos". Edward Buca se lembraria de uma hostilidade mais generalizada - "era incomum um
preso dar qualquer assistência a alguém de outra nacionalidade" -, embora Pavel Negretov, o qual estava em Vorkuta à mesma época que Buca, achasse que a maioria
das nacionalidades só não se dava bem quando sucumbia às "provocações" da administração - "por meio de seus informantes, ela tentava [...] fazer que brigássemos".
No final dos anos 1940, quando os vários grupos étnicos assumiram o papel da bandidagem como policiais de facto nos campos, eles às vezes lutavam entre si pelo controle.
Marlen Korallov recordaria que "começaram a disputar o poder, e este significava muito: controlar o refeitório, por exemplo, importava bastante, pois o cozinheiro
trabalharia diretamente para quem fosse seu senhor". Naquele tempo, segundo Korallov, o equilíbrio entre os diversos grupos era delicadíssimo e podia ser abalado
pela chegada de um novo contingente de presos. Quando, por exemplo, um grupo de tchetchenos veio para o lagpunkt de Korallov, eles entraram nos alojamentos, "jogaram
suas coisas nos beliches mais próximos do chão [naquele campo, os leitos "aristocráticos" eram os mais baixos] e instalaram-se ali com todas as suas posses".
No final dos anos 1940, Leonid Sitko - que ficara num campo de prisioneiros de guerra alemão e depois fora novamente preso quando voltou para a Rússia - testemunhou
uma batalha muito mais séria entre tchetchenos, russos e ucranianos. A discussão começou com uma disputa pessoal entre "brigadeiros" e foi aumentando - "virou guerra,
uma guerra total". Os tchetchenos organizaram um ataque a um alojamento russo, e muitos foram feridos. (Mais tarde, todos os cabeças acabaram indo para uma cela
punitiva.) Sitko explicaria que, embora as disputas fossem por influência nos campos, elas tinham origem em sentimentos nacionais mais profundos: "Os baltas e os
ucranianos achavam que russos e soviéticos eram a mesma coisa. Embora não faltassem russos no campo, isso não os impedia de ver esses últimos como invasores e ladrões".
Certa vez, o próprio Sitko foi abordado no meio da noite por um grupo de oeste-ucranianos:
"Seu nome é ucraniano", disseram-me. "Você é o quê? Algum traidor?"
Expliquei que fora criado no norte do Cáucaso, numa família que falava russo, e que não sabia por que tinha nome ucraniano. Ficaram um pouco e depois partiram. Podiam
ter-me matado - estavam com uma faca.
Uma prisioneira e recordaria de que as diferenças nacionais não eram "nada lá muito importantes", mas também brincaria comentando que isso só não se aplicava aos
ucranianos, os quais simplesmente "odiavam todos os demais".
Na maioria dos campos, por estranho que possa parecer, não havia nenhum clã para os russos, o grupo étnico que, segundo as próprias estatísticas do sistema, constituiu
a clara maioria dos prisioneiros durante toda a existência do Gulag. E bem verdade que os russos se associavam segundo a cidade ou região de que viessem. Moscovitas
descobriam outros moscovitas; leningradenses, outros leningradenses; e assim por diante. Em certa altura, Vladimir Petrov foi ajudado por um médico que lhe perguntou:
"Antes você fazia o quê?" "Estudava em Leningrado."
"Ah, então somos conterrâneos - ótimo!", disse o médico, dando-me tapinhas nas costas.
Com freqüência, os oriundos de Moscou eram particularmente poderosos e organizados. Leonid Trus, aprisionado quando ainda era estudante, recordaria que, no campo,
os moscovitas mais velhos formavam uma rede forte, da qual ele ficou de fora. Em certa ocasião, quando quis pegar emprestado um livro da biblioteca do campo, precisou
primeiro convencer o bibliotecário, membro daquele clã, de que podiam confiar-lhe o exemplar.
No mais das vezes, porém, esses laços eram fracos, proporcionando ao preso não mais que a companhia de pessoas que se lembravam da rua em que morara ou da escola
que freqüentara. Enquanto outros grupos étnicos formavam redes completas de auxílio mútuo - achando lugar para os recém-chegados nos alojamentos, ajudando-os a obter
tarefas mais leves -, os russos não o faziam. Ariadna Éfron escreveria que, ao chegar a Turukhansk, para onde fora banida com outras prisioneiras quando terminou
de cumprir sua pena no Gulag, outros degredados que já moravam ali vieram receber o trem:
Um judeu separou as judias em nosso grupo, deu-lhes pão, explicou como deviam portar-se e o que deviam fazer. Então, um grupo de georgianas foi recepcionada por
um patrício... E, depois de algum tempo, só restávamos nós, as russas, talvez dez ou quinze. Ninguém veio até nós, ofereceu-nos pão nem nos aconselhou.
Ainda assim, havia algumas distinções entre os detentos russos - distinções baseadas mais na ideologia que na etnia. Nina Gagen-Torn registraria que "a clara maioria
das mulheres dos campos considerava aquela sina e aquele sofrimento um infortúnio acidental, sem procurar os motivos". Contudo, para as que "descobriam por si mesmas
algum tipo de explicação para o que acontecia e passavam a acreditar nele, as coisas ficavam mais fáceis". Entre as que tinham uma explicação, estavam principalmente
as comunistas; ou seja, as prisioneiras que continuavam a alegar inocência, professar lealdade à URSS e acreditar, contra todos os indícios, que todas as demais
eram de fato inimigas e deviam ser evitadas. Anna Andreevna se recordaria de que as comunistas se procuravam umas às outras. "Elas se localizavam mutuamente e se
mantinham juntas. Eram gente limpa, soviética, e achavam que todas as restantes eram criminosas." Chegando ao Minlag no começo dos anos 1950, Susanna Pechora conta
que as viu "sentadas num canto e dizendo umas às outras: 'Somos boas soviéticas, viva Stalin, não somos culpadas, e nosso Estado nos livrará da companhia de todas
essas inimigas"'.
Tanto Susanna Pechora quanto Irena Arginskaya (prisioneira em Kengir na mesma época) lembram que a maioria das integrantes desse grupo pertencia ao mesmo segmento
de membros de alto escalão do Partido presos em 1937 e 1938. Na maior parte, eram pessoas mais velhas; Irena lembra que eram freqüentemente agrupadas nos campos
para inválidos, lugares que ainda continham muita gente aprisionada durante o Grande Terror. Anna Larina, mulher do líder soviético Nikolai Bukharin, foi desses
indivíduos que, encarcerados naquela fase anterior, de início se mantiveram fiéis à Revolução. Quando ainda estava na detenção, escreveu um poema para comemorar
o aniversário da Revolução de Outubro:
Embora esteja atrás das grades,
Sentindo a angústia dos condenados,
Ainda assim celebro este dia
Junto com minha feliz pátria.
Hoje tenho uma nova crença:
Retornarei à vida
E de novo marcharei com minha seção do Konsomol,
Ombro a ombro, pela praça Vermelha!
Posteriormente, Anna viria a considerar tais versos "os delírios de uma lunática". Na época, entretanto, ela os recitou para as esposas encarceradas dos velhos bolcheviques,
e estas "reagiram com lágrimas e aplausos comovidos".
Em Arquipélago Gulag, Soljenitsin dedica um capítulo aos comunistas, a quem denomina (de modo não muito generoso) "duplipensantes". O escritor se admirava com a
capacidade desses indivíduos para explicar até a detenção, tortura e reclusão deles próprios como "obra muito astuciosa dos serviços estrangeiros de espionagem",
"sabotagem em enorme escala", "complô da NKVD local" ou "traição". Alguns vinham com uma explicação ainda mais magistral: "Essa repressão é uma necessidade histórica
no desenvolvimento de nossa sociedade". Depois, alguns daqueles legalistas também escreveriam memórias, de bom grado publicadas pelo regime soviético. Em 1964,
por exemplo, Uma história de sobrevivência, romance curto de Boris Dyakov, foi veiculado pelo periódico Oktyabr com a seguinte introdução: "A força da narrativa
de Dyakov reside no fato de que trata de autênticos soviéticos, autênticos comunistas. Em circunstâncias difíceis, eles nunca perderam a humanidade, mantiveram-se
fiéis a seus ideais do Partido e dedicaram-se à pátria". Todorsky, um dos heróis de Dyakov, conta como ajudou um tenente da NKVD a redigir um discurso sobre a história
do Partido. Em outra ocasião, diz ao oficial de segurança do campo que, apesar de seu injusto encarceramento, ele se considera um verdadeiro comunista: "Não sou
culpado de nenhum crime contra a autoridade soviética. Portanto sou, e permanecerei, comunista". O oficial, major Yakovlev, o aconselha a não fazer alarde: "Por
que ficar berrando isso? Você acha que todo mundo aqui no campo adora os comunistas?".
E de fato não adoravam: os abertamente comunistas eram muitas vezes suspeitos de trabalhar, às escondidas ou não, para as autoridades dos campos. Escrevendo sobre
Dyakov, Soljenitsin observa que as memórias dele parecem deixar de fora algumas coisas. Em troca de quê, pergunta, o oficial de segurança Sokovikov concordava em
postar secretamente as cartas de Dyakov, driblando o censor do campo? "Esse tipo de amizade... tinha origem em quê?" Na realidade, os arquivos hoje mostram que
Dyakov fora agente da polícia secreta a vida toda (com o codinome "Pica-pau") e continuara a ser informante no Gulag.
O único grupo que superava os comunistas em matéria de fé absoluta eram os cristãos da Igreja Ortodoxa, assim como os seguidores das várias seitas protestantes que
também sofriam perseguição política na URSS: batistas, testemunhas-de-jeová e variantes russas dessas doutrinas. Eram presença particularmente forte nos campos femininos,
onde as conheciam pela expressão coloquial monashki (freiras). Anna Andreevna recordaria que, no final dos anos 1940, no campo feminino da Mordóvia, "a maioria das
prisioneiras eram devotas" que se organizavam de modo que, "nos dias santos, as católicas trabalhassem para as ortodoxas, e vice-versa".
Como já observamos, algumas dessas seitas se negavam totalmente a cooperar com o Satã soviético, e seus membros não trabalhavam nem assinavam nenhum documento oficial.
Nina Gagen-Torn descreve uma devota que foi libertada por motivo de saúde, mas que se recusou a deixar os campos. "Não reconheço vossa autoridade", disse ao guarda
que se prontificou a dar-lhe os documentos necessários e mandá-la para casa. "Vosso poder é ilegítimo, o anticristo aparece em vossos salvo-condutos [...] Se eu
sair, vós me prendereis outra vez. Não há razão para partir. A finlandesa Aino Kuusinen estava num campo com um grupo de prisioneiras que se recusavam a usar números
de identificação nas roupas; em vista disso, "os números lhes eram marcados na própria pele", e essas mulheres eram obrigadas a comparecer nuas em pêlo às chamadas
da manhã e da noite.
Soljenitsin conta a história (repetida de variadas formas por outros) de um grupo de membros de uma seita que foram levados para Solovetsky em 1930. Rejeitavam tudo
o que viesse do "anticristo", negando-se a usar o dinheiro ou os salvo-condutos soviéticos. Como punição, foram mandados para uma pequena ilha daquele arquipélago,
onde lhes disseram que só receberiam alimento se concordassem em assinar a documentação necessária. Negaram-se a fazê-lo. Dali a dois meses, haviam todos morrido
de inanição. Segundo uma testemunha ocular, o barco seguinte para a ilha "só encontrou cadáveres bicados pelos pássaros".
Mesmo os devotos que trabalhavam não necessariamente se misturavam com os outros presos; às vezes, até se recusavam a falar o que fosse com eles. Aglutinavam-se
nos alojamentos, observando absoluto silêncio ou então entoando suas preces e cânticos nos horários de rigor:
Fiquei atrás das grades
Lembrando como Cristo
Humilde e mansamente carregou Sua pesada Cruz,
Com penitência, até o Gólgota.
Os mais extremados tendiam a despertar sentimentos conflitantes nos outros presos. De modo jocoso, Irena Arginskaya, prisioneira indiscutivelmente laica, lembraria
que "todas as abominávamos", em especial aquelas que, por motivo religiosos, se negavam a tomar banho. Segundo Nina Gagen-Torn, outras prisioneiras se queixavam
daquelas que se recusavam a trabalhar: "A gente trabalha, e elas não! E comem o pão do mesmo jeito!"
Num sentido, porém, os homens e mulheres que chegavam a um campo e na mesma hora se integravam num clã ou seita se mostravam afortunados. Para quem era membro, as
gangues, as nacionalidades mais militantes, os comunistas fiéis e as seitas religiosas proporcionavam de imediato comunidades, redes de auxílio mútuo, companhia.
Já a maior parte dos presos políticos, e a maior parte dos criminosos "ordinários" - a imensa maioria dos habitantes do Gulag -, não se ajustava tão facilmente a
este ou aquele grupo. Então, constatava que assim era mais difícil aprender a sobreviver no campo, a lidar com a moralidade e a hierarquia dali. Sem forte rede de
contatos, essas pessoas tinham de descobrir por si mesmas as regras para melhorar de situação.
15. AS MULHERES E AS CRIANÇAS
A prisioneira que era a enfermeira do alojamento me saudou com um grito: "Corra para ver o que está debaixo do seu travesseiro!"
Meu coração deu um pulo: talvez eu enfim houvesse conseguido minha ração de pão!
Corri para a cama e afastei bruscamente o travesseiro. Debaixo dele, havia três cartas de casa - três cartas inteiras! Fazia seis meses que eu não recebia nenhuma
correspondência.
Minha primeira reação foi de profundo desapontamento. E depois... de horror.
No que eu me transformara se agora um pedaço de pão era mais importante que cartas de minha mãe, meu pai, meus filhos?... Esqueci totalmente o pão e chorei.
Olga Adamova-Sliozberg, Minha jornada.
Cumpriam as mesmas metas de produção e tomavam a mesma sopa aguada. Habitavam o mesmo tipo de alojamento e viajavam nos mesmos vagões de gado. Suas roupas eram quase
idênticas, e seu calçado, igualmente inadequado. Sob interrogatório, não recebiam tratamento diferente. E no entanto... A experiência de homens e mulheres nos campos
não era exatamente a mesma.
Por certo, muitas sobreviventes estão convencidas de que havia muitas vantagens em ser mulher no Gulag. As mulheres eram melhores quando se tratava de tomar cuidados
consigo mesmas, de manter as roupas remendadas e o cabelo limpo. Pareciam mais capazes de subsistir com pouca quantidade de alimento e não sucumbiam tão facilmente
à pelagra e a outras doenças da inanição. Formavam amizades fortes e se ajudavam umas às outras de maneiras que os homens presos não conseguiam reproduzir. Margarete
Buber-Neumann registra que uma das mulheres detidas com ela na prisão Butyrka viera usando um vestido leve de verão que logo ficou em farrapos. As outras detentas
na cela resolveram confeccionar um novo:
Fizeram uma vaquinha e compraram meia dúzia de toalhas de linho russo cru. Mas como cortar o vestido sem tesouras? Um pouco de engenhosidade resolveu o problema.
O molde foi marcado com pontas de fósforo queimado; o tecido foi dobrado seguindo as linhas assim marcadas; e um fósforo aceso foi rapidamente passado pelas dobras.
Quando se desdobrou o tecido, o fogo já o cortara o suficiente nas dobras. Conseguiu-se algodão para linha tirando cuidadosamente fios soltos de outras roupas [...].
Esse vestido feito de toalha (ele se destinava a uma letã gorda) passou de mão em mão e ganhou maravilhosos bordados na gola, nas mangas e na barra. Quando enfim
ficou pronto, foi umedecido e dobrado com esmero. Naquela noite, a feliz proprietária dormiu sobre ele [para "passá-lo"]. Acredite se quiser, mas, quando ela o mostrou
de manhã, estava realmente lindo; não teria envergonhado a vitrine de uma loja da moda.
Contudo, entre muitos ex-presos do sexo masculino, prevalece o ponto de vista oposto: moralmente, as mulheres decaíam mais depressa que os homens. Graças ao sexo,
dispunham de oportunidades especiais para obter melhor classificação laborai, ganhando trabalho mais fácil e, com isso, status superior nos campos. Em conseqüência,
desorientavam-se, perdendo o rumo no mundo áspero do Gulag. Gustav Herling escreve, por exemplo, sobre uma "cantora da Opera de Moscou, de cabelos negros", que foi
presa por "espionagem". Dada a severidade da sentença, designaram-na para o trabalho na floresta tão logo chegou ao Kargopollag.
Infelizmente para ela, foi desejada por Vanya, o urka [mafioso] baixinho que estava encarregado de sua turma de trabalho. Foi posta para descascar troncos com um
machado enorme, que ela mal conseguia levantar. À noite, tendo ficado muito atrás dos vigorosos lenhadores, chegou à zona prisional quase sem forças para arrastar-se
até a cozinha e pegar sua "primeira caldeirada" [a ração de sopa mais fraca] [...] era óbvio que estava febril, mas o enfermeiro era amigo de Vanya e não quis liberá-la
do trabalho.
Ela acabou cedendo, primeiro para Vanya e finalmente para "algum chefe do campo" que a "trouxe do monturo e a colocou atrás de uma escrivaninha no escritório da
contabilidade".
Havia sinas piores, como Herling também descreve. Ele fala, por exemplo, de uma moça polonesa à qual um "júri informal de urki" deu nota bem alta. De início,
ela saía para trabalhar de cabeça erguida c, com olhar dardejante de Cúria, repelia todo homem que se aventurasse perto dela. A noitinha, voltava mais humilde do
trabalho, mas ainda intocável e recatadamente altiva. Ia direto da guarita de entrada para a cozinha, a fim de buscar sua porção de sopa, e não tornava a sair do
alojamento das mulheres durante a noite. Por conseguinte, parecia que não seria logo vítima das caçadas noturnas na zona prisional.
Contudo, esse esforço inicial foi inútil. Após semanas de zelosa vigilância de seu supervisor, que a proibia de furtar uma cenoura ou batata podre que fosse no armazém
onde ela trabalhava, a moça desistiu. Uma noite, o homem entrou n,o alojamento de Herling e, "sem dizer palavra, atirou em meu beliche uma calcinha rasgada". Foi
o começo da transformação:
A partir daquele momento, a moça sofreu uma mudança completa. Já não se apressava para ir pegar a sopa na cozinha; após o retorno do trabalho, vagava pela zona prisional
até tarde da noite, como uma gata no cio. Quem quisesse a possuía, no beliche, debaixo do beliche, nos cubículos à parte dos especialistas técnicos, no depósito
de roupas. Sempre que topava comigo, ela olhava para o outro lado e franzia convulsivamente os lábios. Certa vez, ao entrar no depósito de batatas no centro do campo,
eu a surpreendi numa pilha de batatas com o corcunda Levkovich, o mestiço que era chefe de turma da 56a; a moça teve um acesso de choro, e quando voltou para a zona
prisional à noite estava segurando as lágrimas, com as mãozinhas crispadas.
Essa é a versão de Herling para uma história contada com freqüência - uma história que, é preciso dizer, sempre parece um tanto diferente quando narrada do ponto
de vista da mulher. Outra versão é contada, por exemplo, por Tamara Ruzhnevits, cujo "romance" no campo começou com uma carta -"uma carta-padrão de amor, uma carta
tipicamente dos campos" -, de Sasha, jovem com o confortável trabalho de sapateiro, o que o transformava em parte da aristocracia do lugar. Era uma carta curta e
direta: "Vamos morar juntos, e aí eu ajudo você". Alguns dias depois de enviá-la, Sasha puxou Tamara de lado, querendo saber a resposta. "Você vai ou não vai morar
comigo?", perguntou. A reposta foi negativa. Ele a espancou com um bastão de metal. Depois, carregou-a para o hospital, onde o status especial de sapateiro lhe dava
influência, e mandou a equipe médica cuidar bem de Tamara. Ela ficou ali vários dias, recuperando-se dos ferimentos. Ao receber alta, tendo tido bastante tempo para
pensar no assunto, voltou para Sasha. Do contrário, ele a teria espancado de novo.
"Assim começou minha vida doméstica", escreveria Tamara. Os benefícios foram imediatos. "Ganhei saúde, passei a usar bons sapatos, já não precisava mais vestir sabe-se
lá que trapos - tinha casaco novo, calças novas [...] até chapéu novo." Muitas décadas depois, descreveria Sasha como "meu primeiro verdadeiro amor". Infelizmente,
ele logo foi mandado para outro campo, e Tamara nunca mais o viu. Pior: o homem responsável pela transferência de Sasha também desejava Tamara. Já que "não havia
saída", ela começou a dormir com ele também. Embora não descreva nenhum sentimento amoroso pelo homem, Tamara recorda que esse arranjo tinha igualmente suas vantagens:
ganhou passe para deslocar-se fora do campo sem guarda e teve um cavalo só para si.
O relato de Tamara Ruzhnevits, da mesma maneira que o de Gustav Herling, pode ser considerado uma história de degradação moral. Ou, então, de sobrevivência.
Do ponto de vista dos administradores, nada disso devia acontecer. Em princípio, homens e mulheres nem podiam estar juntos no mesmo campo, e há presos que dizem
não ter posto os olhos numa mulher durante anos e anos. Tampouco os comandantes de campo tinham alguma vontade especial de contar com prisioneiras. Fisicamente mais
fracas, eram suscetíveis a tornar-se um peso morto quando se tratava de cumprir as metas produtivas, e, por isso, alguns comandantes tentavam rejeitá-las. Em certa
altura, em fevereiro de 1941, a direção do Gulag até mandou carta a toda a liderança da NKVD e todos os comandantes de campo, instruindo-os severamente a aceitar
comboios de prisioneiras e arrolando todas as atividades em que as mulheres poderiam atuar com proveito. A carta menciona a indústria leve e a indústria têxtil;
a carpintaria e a metalurgia; certos tipos de serviço madeireiro; a carga e descarga de mercadorias.
Talvez por causa das objeções dos comandantes dos campos, o número de mulheres que eram de fato enviadas para lá sempre permaneceu relativamente baixo (tal qual,
aliás, o número de mulheres executadas durante os expurgos de 1937-8). Segundo as estatísticas oficiais, em 1942, por exemplo, só uns 13% da população do Gulag eram
mulheres. Em 1945, essa proporção se elevou a 30%, em parte devido ao enorme contingente de presos do sexo masculino que foram convocados e mandados para a frente
de batalha; e em parte devido às leis que proibiam os operários fabris de largar seus empregos - e que causaram a prisão de muitas jovens. Em 1948, as mulheres
eram 22%, tornando depois a cair, agora para 17%, em 1951 e 1952. E mesmo esses números não refletem a verdadeira situação, pois as mulheres tinham muito mais probabilidade
de cumprir pena nas "colônias" de trabalho leve. Nos grandes campos industriais do extremo norte, elas eram ainda menos numerosas, e sua presença, ainda mais rara.
No entanto, o número menor implicava que as mulheres - assim como o alimento, o vestuário e outros pertences - estavam quase sempre em falta. Por isso, embora talvez
apresentassem pouco valor econômico para quem compilava as estatísticas de produção dos campos, elas tinham outro tipo de valor para os presos, os guardas e os trabalhadores
livres do Gulag. Nos campos em que os contatos entre presos de ambos os sexos eram mais ou menos livres - ou nos lugares em que, na prática, certos homens tinham
acesso aos campos femininos -, as mulheres com freqüência ouviam cantadas, sofriam abordagens atrevidas ou, mais comumente, recebiam propostas de alimento e trabalho
fácil em troca de favores sexuais. Isso talvez não fosse característica exclusiva do Gulag. Em 1999, por exemplo, um relatório da Anistia Internacional sobre presidiárias
americanas revelou casos de guardas e presos que estupravam detentas; de presos que subornavam guardas para ter acesso a elas; de mulheres que sofriam revistas íntimas
de guardas do sexo masculino. No entanto, as estranhas hierarquias sociais do Gulag levavam mulheres a ser estupradas e humilhadas num grau incomum até para o mundo
das prisões.
Para começo de conversa, o destino da prisioneira dependia muito de seu status e posição nos vários clãs do campo. Dentre a bandidagem, as mulheres se submetiam
a um sistema de normas e rituais complexos e eram tratadas com muito pouco respeito. Segundo Variam Shalamov, "o criminoso de terceira ou quarta geração aprende
desde a infância a ver as mulheres com desprezo [...] a mulher, ser inferior, fora criada apenas para satisfazer o apetite animal do criminoso, para ser o alvo de
piadas grosseiras e a vítima de surras públicas quando o bandido resolvesse 'agitar um pouco'". Na prática, as prostitutas "pertenciam" a chefões e podiam ser trocadas,
mercadejadas e até herdadas por algum irmão ou amigo do criminoso, caso este fosse morto ou transferido para outro campo. Quando ocorria uma troca de donos, "em
geral as partes interessadas não caíam no tapa, e a prostituta sujeitava-se a dormir com o novo amo. Na bandidagem, não havia nenhum ménage à trois em que dois homens
compartilhassem a mesma mulher Tampouco era possível a uma bandida viver com alguém que não fosse criminoso".
As mulheres não eram os únicos alvos. Entre os criminosos de carreira, o homossexualismo parece ter-se organizado segundo regras igualmente brutais. Na corte de
alguns chefões, havia efebos, junto com as "esposas" que o criminoso possuía no campo, ou mesmo no lugar delas. Thomas Sgovio cita um chefe de turma de trabalho
que tinha por "mulher" um rapaz que recebia comida extra em troca de seus favores. Todavia, é difícil descrever as normas que regiam a homossexualidade masculina
nos campos, já que os memorialistas só mencionam o tema muito raramente - talvez porque, na cultura russa, o homossexualismo continue em parte a ser tabu e as pessoas
prefiram não escrever sobre ele. Ademais, no Gulag, o homossexualismo parece ter-se restringido sobretudo aos bandidos - e poucos destes nos legaram memórias.
Entretanto, sabemos que, nos anos 1970 e 80, os criminosos soviéticos desenvolveram complicadíssimas regras de etiqueta homossexual. Os "passivos" eram condenados
ao ostracismo pelo resto da sociedade prisional, comendo em mesas separadas e não dirigindo a palavra aos outros homens. Regras semelhantes, embora raras vezes
descritas, parecem ter existido em alguns lugares já no final dos anos 30, quando PyotrYakir (então com quinze anos) testemunhou fenômeno análogo numa cela para
menores delinqüentes. De início, ficou estarrecido ao ouvir os demais garotos falarem de suas experiências sexuais e achou que estivessem exagerando,
mas estava enganado. Um dos rapazes guardara a ração de pão até a noite, quando perguntou a Mashka (que não comera nada o dia todo): "Você quer uma mordida?"
"Quero", respondeu Mashka.
"Então abaixe as calças."
A coisa aconteceu num canto, o qual era difícil de enxergar pela vigia da porta, mas à vista de todos na cela. Ninguém se surpreendeu, e fingi não estranhar nada
daquilo. Houve muitos outros episódios desse tipo enquanto estive ali; os passivos eram sempre os mesmos garotos. Eram tratados como párias; não podiam beber da
caneca coletiva e constituíam alvo de humilhações.
Nos campos, curiosamente, o lesbianismo era mais franco ou, pelo menos, mais amiúde citado. Entre as criminosas, também era muitíssimo ritualizado. As lésbicas eram
designadas pelo pronome neutro (ono) e se dividiam entre as mais femininas ("éguas") e as mais masculinas ("maridos"). Segundo uma descrição, as primeiras eram às
vezes "verdadeiras escravas", fazendo a limpeza para os "maridos" e cuidando deles, os quais adotavam apelidos masculinos e quase sempre fumavam. Falavam abertamente
do lesbianismo e até o cantavam:
Ah, obrigada, Stalin,
Você fez de mim uma baronesa.
Sou tanto vaca quanto touro,
Fêmea e macho.
Também se identificavam pela indumentária e pelo comportamento. Uma polonesa escreveria:
Todo o mundo sabe de casais assim, e elas não fazem nenhuma tentativa de ocultar seus hábitos. Em geral, quem faz o papel de homem usa roupas masculinas, corta o
cabelo bem curto e fica com as mãos nos bolsos. Quando um desses casais é repentinamente tomado pela paixão, as duas se levantam correndo de seus assentos, largam
as máquinas de costura, correm uma atrás da outra e, em meio a beijos desvairados, jogam-se no chão.
Valerii Frid menciona criminosas encarceradas que, vestidas de homem, faziam-se passar por hermafroditas. Uma "tinha cabelo curto, era bonitinha e usava calças de
oficial"; outra parece ter mesmo tido uma deformação genital. Outra prisioneira ainda descreveria o "estupro" lésbio: viu um casal perseguir uma "mocinha quieta
e recatada" atrás dos beliches, onde lhe romperam o hímen. Já nos círculos intelectuais, o lesbianismo parece ter sido visto com menos benevolência. Uma ex-prisioneira
política o lembraria como "prática absolutamente revoltante". Mas, embora costumasse ser mais disfarçado no ambiente das "políticas", também existia entre estas,
freqüentemente entre mulheres que tinham maridos e filhos em liberdade. Susanna Pechora me contou que, no Minlag, campo predominantemente habitado por presos políticos,
as relações lésbicas "ajudavam algumas pessoas a sobreviver".
Voluntários ou forçados, homossexuais ou heterossexuais, os relacionamentos carnais nos campos compartilhavam, na maioria dos casos, o mesmo ambiente quase sempre
brutal. Forçosamente, ocorriam com uma sem-cerimônia que muitos presos achavam escandalosa. Casais "arrastavam-se por baixo do arame farpado e faziam amor no chão,
junto à latrina", disse um ex-prisioneiro. "O beliche coletivo segregado das mulheres vizinhas por uma cortina de trapos era cena clássica nos campos", escreve
Soljenitsin. Uma vez, Isaak Filshtinskii acordou no meio da noite e deparou com uma mulher que dormia no leito ao lado do seu. Ela pulara o muro de fininho para
ter relações com o cozinheiro do campo. "Afora eu, ninguém dormira naquela noite: tinham ficado ouvindo tudo com a maior atenção." A prisioneira Hava Volovich conta
que "coisas que uma pessoa em liberdade pensaria cem vezes antes de fazer aconteciam ali com a mesma naturalidade que entre gatos de rua". Outro preso lembra que
o amor, em especial entre os bandidos, era "animalesco".
De fato, o sexo era tão público que o tratavam com certa apatia: para alguns, o estupro e a prostituição se tornaram parte da rotina diária. Numa ocasião, Edward
Buca estava trabalhando numa serraria junto com uma turma feminina quando chegou um grupo de bandidos condenados. Eles "agarraram as mulheres que queriam e as deitaram
na neve, ou as possuíram contra uma pilha de toras. As mulheres pareciam acostumadas e não ofereceram resistência. Tinham sua própria chefe de turma, mas ela não
objetava a essas interrupções, que, aliás, se afiguravam quase parte do trabalho". Lev Razgon também conta a história de uma moça loura, muito nova, com a qual
por acaso deparou quando ela varria o pátio de uma unidade médica de campo de concentração. Na época, Razgon era trabalhador livre, em visita a um médico seu conhecido;
e, embora não estivesse com fome, ofereceram-lhe um lauto almoço. Ele deu a comida à moça, que "comeu em silêncio, com asseio e educação, podendo-se ver que fora
criada em família". De fato, fez Razgon lembrar-se da própria irmã.
A mocinha acabou de comer e empilhou os pratos direitinho na bandeja de madeira. Depois, ergueu o vestido, tirou a calcinha e, segurando-a, voltou-se para mim sem
sorrir.
"No chão ou em outro lugar", perguntou.
De início sem entender minha reação, e depois amedrontada com esta, a jovem se justificou, outra vez sem sorrir de modo algum: "As pessoas não me dão comida de outro
jeito..."
Em alguns campos, também acontecia de certos alojamentos femininos se tornarem pouco menos que bordéis escancarados. Soljenitsin descreve um que era
insuperavelmente sujo e dilapidado. Havia um cheiro opressivo, e os beliches não tinham roupa de cama. Existia uma proibição oficial de que homens entrassem ali,
mas ela não era levada em conta, e ninguém a impunha. Lá, havia não só homens adultos, mas também adolescentes, meninos de doze a treze anos que afluíam para aprender
[...]. Tudo ocorria muito sem cerimônia, como na natureza, à vista de todos e em vários lugares ao mesmo tempo. Para as mulheres de lá, as únicas defesas possíveis
eram a velhice e a feiúra evidentes - nada mais.
Ainda assim... Em muitas memórias, indo diretamente contra os relatos de vulgaridade e sexo brutal, vêem-se histórias igualmente incríveis de amor nos campos, algumas
das quais surgiram simplesmente da vontade das mulheres de protegerem-se. Conforme as normas idiossincráticas da vida no Gulag, mulheres que tinham um "marido dos
campos" costumavam ser deixadas em paz pelos outros homens, num sistema que Gustav Herling denomina "o peculiar jus primae noctis do campo de concentração". Não
eram necessariamente "casamentos" de iguais: por vezes, mulheres respeitáveis viviam com bandidos. Tampouco se davam necessariamente de livre e espontânea vontade,
como bem mostra o exemplo de Tamara Ruzhnevits. Apesar disso, não seria rigorosamente correto defini-los como prostituição. Antes, escreve Valerii Frid, eram braki
po raschetu, casamentos de interesse, "que às vezes eram também por amor". Mesmo se tais relacionamentos surgiam por motivos tão-somente práticos, os detentos os
levavam a sério. "O zek se referia à amásia mais ou menos permanente como 'minha esposa' ", relata Frid. "E ela o chamava de 'meu marido'. Não se dizia isso de gozação:
os relacionamentos no campo humanizavam nossas vidas."
E, por estranho que possa talvez parecer, presos que não estavam demasiado exaustos ou emaciados realmente procuravam o afeto amoroso. Nas memórias de Anatolii Zhigulin,
inclui-se a descrição do romance que manteve com uma alemã, prisioneira política, a "boa e alegre Marta, de olhos cinzentos e cabelos louros". Posteriormente, Zhigulin
soube que ela tivera um filho, o qual ganhou o nome Anatolii. (Isso foi no outono de 1951; dado que à morte de Stalin se seguiria uma anistia geral para os presos
estrangeiros, Zhigulin presumia que "Marta e o menino, desde que não tivesse ocorrido algum infortúnio, houvessem voltado para casa".) Por vezes, as memórias de
Isaac Vogelfanger, médico de campo de concentração, parecem uma ficção romântica em que o herói pisa em ovos entre os perigos do affaire com a esposa de um administrador
e as alegrias do verdadeiro amor.
Fome de amor. Pela cerca, presos espiam o setor feminino do campo. Desenho de Yula-Imar Sooster. Karaganda, 1950
Pessoas privadas de tudo ansiavam tão desesperadamente por vínculos sentimentais que algumas mergulhavam fundo em platônicos amores epistolares. Isso se aplica em
particular ao final da década de 1940, nos campos especiais para presos políticos, onde homens e mulheres eram mantidos rigorosamente separados. No Minlag (um de
tais campos), prisioneiros e prisioneiras trocavam bilhetes por intermédio de colegas no hospital, que era compartilhado pelos dois sexos. Os presos também organizaram
uma "caixa de correio" secreta no setor ferroviário onde as turmas femininas trabalhavam. De poucos em poucos dias, uma mulher empregada ali fingia ter esquecido
um casaco ou outro objeto, ia até a caixa e pegava e deixava cartas. Mais tarde, um dos homens ia apanhá-las e depositar outras. Também existiam outros métodos:
"Num horário específico, uma pessoa escolhida numa das zonas prisionais atirava cartas dos homens para as mulheres, ou das mulheres para os homens. Eram os 'Correios'".
Segundo Leonid Sitko, tais cartas eram escritas em minúsculos pedaços de papel, com letra ínfima. Todos as assinavam com nome falso: Sitko era "Hamlet", e a namorada,
"Marsianka". Tinham sido "apresentados" por outras mulheres, as quais disseram a Sitko que ela estava deprimidíssima, pois seu bebê pequeno lhe fora tirado após
a prisão. Sitko começou a escrever para ela, e uma vez até conseguiram encontrar-se, dentro de uma mina abandonada.
Na busca por alguma espécie de intimidade, outros elaboravam métodos ainda mais surreais. No campo especial de Kengir, havia pessoas - quase na totalidade presos
políticos, completamente privados de contato com os amigos, a família e os cônjuges que haviam deixado em casa - que desenvolviam complexas relações com gente que
nunca tinham visto. Um muro separava o campo feminino do masculino, mas alguns pares até casavam sem nunca se terem encontrado. A mulher ficava de um lado do muro
e o homem, do outro; trocavam-se votos, e um padre encarcerado registrava a cerimônia num pedaço de papel.
Esse tipo de amor persistia, mesmo depois que a administração do campo ergueu ainda mais o muro, cobriu-o com arame farpado e proibiu os presos de aproximar-se dele.
Ao descrever tais matrimônios realizados às escuras, até Soljenitsin abre temporariamente mão do ceticismo com que encara quase todos os outros relacionamentos nos
campos: "Nesse matrimônio com uma pessoa desconhecida do outro lado do muro [...] ouço um coro de anjos. E como a contemplação pura e abnegada de corpos celestes.
É também algo demasiado sublime para estes tempos de calculismo egoísta".
Se amor, sexo, estupro e prostituição eram parte da vida no Gulag, segue-se que gravidez e parto também o eram. Junto com minas e canteiros de obras, turmas madeireiras
e celas punitivas, alojamentos de presos e vagões de gado, havia maternidades e campos para grávidas - assim como berçários.
Nem todas as crianças que apareciam nessas instituições eram nascidas nos campos. Algumas haviam sido "presas" com as mães. As normas que regiam essa prática sempre
foram pouco claras. A ordem operacional de 1937 que determinava a detenção de esposas e filhos de "inimigos do povo" proibia categoricamente a captura de grávidas
e lactantes. Por outro lado, uma ordem de 1940 dizia que as mães podiam ficar com os bebês por um ano e meio, "até eles não precisarem mais de leite materno", quando
então seriam colocados em orfanatos ou entregues a parentes.
Na prática, tanto grávidas quanto lactantes eram freqüentemente encarceradas. Ao fazer exames de rotina num comboio de presos recém-chegado, um médico de campo deparou
com uma grávida que já sentia as contrações. Fora detida no sétimo mês. Outra, Natalya Zaporozhets, foi colocada num traslado de presos quando estava no oitavo
mês: após sofrer trancos em trens e carrocerias de caminhão, daria à luz um nati-morto. A artista e memorialista Evfrosiniya Kersnovskaya ajudou no parto de bebê
que nasceu num trem de traslado.
Já dissemos que crianças pequenas eram "presas" com os pais. Uma detenta, encarcerada nos anos 1920, escreveu uma ácida carta de protesto a Dzerzhinsky, agradecendo-lhe
ter "prendido" seu filho de três anos: a prisão, dizia, era preferível ao orfanato, que ela chamava de "fábrica de anjinhos". Centenas de milhares de crianças foram,
para todos os fins e efeitos, aprisionadas junto com os pais durante as duas grandes ondas de deportação, a primeira a dos kulaks, no começo da década de 1930, a
outra a das etnias e nacionalidades "inimigas" durante e após a Segunda Guerra Mundial.
Para essas crianças, o choque da nova situação permaneceria com elas pelo resto da vida. Uma prisioneira polonesa recordaria que uma mulher em sua cela estava acompanhada
do filho de três anos: "O menino, apesar de bem-comportado, era frágil e macambúzio. Nós o entretínhamos o melhor que podíamos, com histórias e contos de fada, mas
ele nos interrompia de tempos em tempos, perguntando: 'Estamos na cadeia, né?'"
Muitos anos depois, um filho de kulaks degredados se lembraria de sua provação nos vagões de gado: "As pessoas ficavam tresloucadas [...]. Não faço idéia de quantos
dias viajamos. No vagão, sete pessoas morreram de fome. Chegamos a Tomsk, e nos tiraram para fora, diversas famílias. Também descarregaram vários cadáveres - crianças,
jovens, idosos".
Apesar das privações, havia mulheres que, de modo proposital e até cínico, engravidavam nos campos de concentração. Em geral, eram as criminosas profissionais ou
as condenadas por delitos de pouca monta as que desejavam engravidar para ser dispensadas do trabalho pesado, receber alimentação ligeiramente melhor e talvez beneficiar-se
das anistias periodicamente concedidas a mães com filhos pequenos. Tais anistias (houve uma em 1945 e outra em 1948, por exemplo) em geral não se aplicavam às condenadas
por crimes contra-revolucionários. "A vida ficava mais fácil quando a pessoa engravidava", disse-me Lyudmila Khachatryan, para explicar por que as mulheres dormiam
de bom grado com seus carcereiros.
Outra se recordaria de ter ouvido o rumor de que todas as mulheres com filhos pequenos (as mamki, na gíria prisional) seriam soltas. Ela então ficou grávida de caso
pensado. Nadezhda Joffe, prisioneira que engravidara do marido após haver recebido autorização para um encontro com ele, escreveria que suas companheiras no "alojamentos
das amas-de-leite" de Magadan simplesmente "não tinham nenhum instinto maternal" e largavam seus bebês tão logo podiam.
De modo talvez nada surpreendente, nem todas as mulheres que descobriam ter engravidado nos campos queriam levar a gestação adiante. O comando geral do Gulag parece
ter sido ambivalente no que se referia ao aborto, por vezes permitindo-o e por vezes acrescentando outra condenação à pena das mulheres que tentavam praticá-lo.
Tampouco está muito claro quão freqüentes eram essas interrupções forçadas da gravidez, pois só muito raramente são mencionadas: em dúzias de entrevistas e memórias,
ouvi ou li apenas dois relatos. Numa entrevista, Anna Andreevna me falou da mulher que "enfiou pregos em si mesma, sentou-se e trabalhou à máquina de costura; por
fim, começou a sangrar bastante". Outra mulher descreveu de que modo um médico de seu campo procurou pôr fim à gravidez dela:
Imaginem a cena. É noite. Está escuro... Andrei Andreevich tenta me fazer abortar, sem nenhum instrumento, usando só as mãos, cobertas de iodo. Mas está tão nervoso
que não sai nada. Sinto tanta dor que nem consigo respirar, mas agüento sem dar um pio, para que ninguém nos ouça. Aí, a dor se torna insuportável, e eu grito: "Pare!"
O procedimento inteiro fica interrompido durante dois dias. Enfim, sai tudo - o feto e um bocado de sangue. Por isso nunca fui mãe.
Mas havia as que queriam os filhos, e muitas vezes a tragédia era sua sina. Indo contra tudo o que se escreveu sobre o egoísmo e a venalidade das mulheres que engravidavam
no Gulag, sobressai a história de Hava Volovich. Prisioneira política encarcerada em 1937, era extremamente solitária nos campos e resolveu ficar grávida e dar à
luz.
Embora Hava não sentisse nenhum amor em especial pelo pai da criança, esta, uma menina chamada Eleonora, nasceu em 1942, num campo sem instalações especiais para
mães.
Ali, havia três mães, e nos deram um cômodo minúsculo no alojamento. Das paredes e do teto, os percevejos se derramavam como areia; passávamos a noite toda afastando-os
dos bebês. De dia, precisávamos sair para o serviço e confiávamos as crianças a qualquer velha que encontrássemos que houvesse sido dispensada do trabalho; então,
essas mulheres serviam-se calmamente do alimento que tínhamos deixado para os pequenos.
No entanto, escreve Hava,
Toda noite, um ano inteiro, fiquei junto ao berço, catando percevejos e fazendo orações. Rezava para que Deus prolongasse meu tormento por cem anos se isso garantisse
que eu não me separaria de minha filha. Rezava para que me visse libertada com ela, mesmo que eu me tornasse apenas uma indigente ou aleijada. Rezava para que eu
conseguisse criá-la até a idade adulta, mesmo que eu precisasse rastejar aos pés das pessoas e implorar-lhes esmolas. Mas Deus não atendeu a minhas preces. Meu bebê
mal começara a andar, eu mal ouvira suas primeiras palavras, a maravilhosa e alentadora palavra "Mamãe", quando fomos todas trajadas com farrapos (apesar do inverno
gelado), amontoadas num vagão de carga e transferidas para o "campo das mães". E ali o meu anjinho rechonchudo de cachos dourados se tornou um fantasma pálido com
sombras azuladas debaixo dos olhos e feridas nos lábios inteiros.
Hava foi colocada para trabalhar primeiro numa turma madeireira e depois numa serraria. A noite, levava para o campo um pequeno feixe de lenha, que dava às babás
no berçário. Em troca, deixavam-na às vezes ficar com a filha fora dos horários de visita.
Eu via as babás acordarem as crianças pela manhã. Elas as obrigavam a sair das camas geladas com safanões e pontapés [...] empurrando-as aos murros e xingando-as
de modo pesado, tiravam-lhe os camisolões e as lavavam na água gelada. Os bebês não ousavam nem chorar. Davam fungadelas, como velhos, e soltavam pios baixinhos.
Aqueles pios medonhos vinham dos berços durante dias, sem parar. Crianças já com idade suficiente para sentar ou engatinhar ficavam deitadas de costas, pressionando
os joelhinhos contra a barriga, fazendo aqueles sons esquisitos, semelhantes a arrulhos abafados.
Uma babá tinha a seu cargo dezessete crianças e, com isso, mal dispunha de tempo para manter todas trocadas e alimentadas, para nem falarmos de devidamente cuidadas.
A babá trazia da cozinha uma tigela de mingau fumegante e a repartia entre vários pratos. Apanhava o bebê mais próximo, forçava-lhe os bracinhos para trás, amarrava-os
com uma toalha de banho e começava a enfiar colheradas de mingau quente goela abaixo da criança, não lhe dando tempo de engolir, exatamente como se estivesse alimentando
um peru.
Eleonora começou a definhar.
Em algumas de minhas visitas, achei machucaduras em seu corpinho. Nunca me esquecerei de como ela se agarrava a meu pescoço com as mãos magrinhas e gemia: "Mamãe,
quero casa!" Ela não se esquecera do muquifo onde viera à luz e onde ficara com a mãe o tempo todo...
A pequena Eleonora, que agora tinha quinze meses, logo percebeu que seus rogos de "casa" eram inúteis. Parou de esticar os braços para mim quando a visitava; dava-me
as costas, em silêncio. No último dia de vida, quando a levantei (deixaram que eu a amamentasse), ela ficou olhando para longe, de olhos arregalados, e então começou
a bater com suas mãozinhas crispadas em meu rosto e a arranhar e morder meu seio. Em seguida, apontou para o berço, querendo voltar a ele.
À noite, quando voltei com o feixe de lenha, seu berço estava vazio. Eu a encontrei no necrotério, onde jazia nua entre os cadáveres dos presos adultos. Ela passara
um ano e quatro meses neste mundo e morrera em 3 de março de 1944. [...] Essa é a história de como, ao ter dado uma única vez à luz, cometi o pior dos crimes.
Nos arquivos do Gulag, conservaram-se fotos do tipo de berçário descrito por Hava Volovich. Um dos álbuns fotográficos se inicia com a seguinte introdução:
O sol brilha sobre a pátria stalinista desses pequenos. A nação está repleta de amor pelos líderes, e nossas maravilhosas crianças são felizes tal qual toda a juventude
do país. Aqui, em leitos amplos e aconchegantes, dormem os novos cidadãos de nosso país. Tendo sido alimentados, repousam tranqüilos e, com certeza, têm bons sonhos.
As fotos desmentem as legendas. Numa delas, uma enfiada de lactantes, com os rostos cobertos por máscaras brancas - prova das práticas higiênicas no campo -, senta-se
num banco com olhar sério sem nenhum sorriso, segurando seus bebês. Em outra, todas as crianças estão indo para a caminhada da noitinha. Enfileiradas, não parecem
mais espontâneas que as mães.
Em muitas fotos, as crianças estão de cabelo rapado, presumivelmente para evitar piolhos, e o efeito disso era que ficavam parecendo pequenos presos, coisa que,
na prática, eram consideradas mesmo. "O berçário também era parte do complexo do campo", escreveria Evgeniya Ginzburg. "Tinha sua própria guarita, seus próprios
portões, seus próprios barracões, seu próprio arame farpado."
Em algum nível, a direção do Gulag em Moscou deve ter estado ciente de quão terrível era a vida nos campos para as crianças que viviam ali. No mínimo, sabemos que
os inspetores transmitiam a informação: um relatório de 1949 sobre a condição das mulheres nos campos assinalava de maneira desaprovadora que, das 503 mil prisioneiras
do sistema, 9.300 estavam grávidas e outras 23.790 se viam acompanhadas de filhos pequenos. "Levando em conta a influência negativa sobre a saúde e a educação das
crianças", o relatório argumentava em favor da soltura antecipada das mães, assim como das mulheres que haviam deixado filhos em casa, num total (quando excetuadas
as reincidentes e as prisioneiras políticas contra-revolucionárias) de umas 70 mil mulheres.
De tempos em tempos, realizavam-se tais anistias. Contudo, pouco melhorava a vida das crianças que ficavam. Pelo contrário: dado que não contribuíam com nada para
a produtividade do campo, sua saúde e seu bem-estar estavam bem embaixo na lista de prioridade dos comandantes, e elas habitavam as construções mais precárias, geladas
e velhas. Um inspetor verificou que, no berçário de um campo, a temperatura nunca se elevava acima dos onze graus; outro descobriu um berçário em que a tinta das
paredes estava descascada e não havia absolutamente nenhuma iluminação, nem mesmo a querosene. Um relatório do Siblag de 1933 dizia que no campo seriam necessários
mais setecentos pares de calçado infantil, mais setecentos casacos infantis compridos e mais novecentos conjuntos de talheres. E quem trabalhava ali não era necessariamente
qualificado. Ao contrário: os serviços de berçário eram para aquelas "prisioneiras de confiança" e, assim, costumavam ser atribuídos a criminosas. Nadezhda Joffe
escreve que, "por hora a fio, ficavam debaixo da escada com os 'maridos'; ou, então, simplesmente saíam, enquanto as crianças, sem alimento e sem cuidados, adoeciam
e começavam a morrer".
Tampouco as mães, cuja gravidez já custara um bocado ao campo, costumavam ser autorizadas a compensar tal negligência - supondo-se que elas realmente desejassem
isso. Faziam-nas voltar ao trabalho tão logo era possível, e só de má vontade lhes davam folga para amamentar. Em geral, eram simplesmente liberadas do trabalho
de quatro em quatro horas e, ainda com as mesmas roupas sujas, tinham quinze minutos com os filhos, sendo depois mandadas de volta; o resultado era que as crianças
continuavam com fome. Às vezes, não se permitia nem isso. Um inspetor do Gulag citou o caso de uma mulher que, por causa de suas obrigações no trabalho, chegara
alguns minutos atrasada para amamentar o bebê; negaram-lhe acesso a ele. Numa entrevista, a ex-supervisora do berçário de um campo me disse (fazendo pouco caso)
que as crianças que não conseguiam mamar o que deviam nessa (segundo ela) meia hora recebiam das babás o resto de alguma mamadeira.
A mesma mulher também confirmou descrições que prisioneiras fizeram de outro tipo de crueldade: tão logo acabavam de amamentar, as mulheres eram freqüentemente proibidas
de manter qualquer outro contato com as crianças. A ex-supervisora contou que, em seu campo, proibira pessoalmente todas as mães de caminharem com os filhos, alegando
que elas, sendo mulheres condenadas, poderiam machucá-los. Afirmou ter visto uma mãe dar ao filho açúcar com fumo, para assim envenená-lo. Outra, ainda segundo ela,
tirara de propósito os sapatos do filho na neve. "Eu era responsável pelas taxas de mortalidade infantil no campo", disse-me, explicando por que tomara medidas para
manter as mães à distância. "Aquelas crianças eram um ônus para elas, que assim desejavam matá-las." A mesma lógica talvez tenha levado outros comandantes a proibir
mães de verem os filhos. No entanto, é igualmente possível que tais normas fossem outro produto da crueldade irrefletida dos administradores: providenciar para que
as mães vissem os filhos representava um incômodo, e, por isso, proibia-se tal prática.
Eram previsíveis as conseqüências de separar dos pais crianças em tão tenra idade. Havia incontáveis epidemias entre elas. As taxas de mortalidade infantil eram
extremamente altas - tanto que, conforme também registram os relatórios de inspeção, elas muitas vezes eram deliberadamente ocultadas. Mas mesmo as crianças que
sobreviviam à primeira idade tinham pouca chance de levar uma existência normal nos berçários. Algumas talvez tivessem a sorte de ser tratadas pelo tipo mais bondoso
de prisioneira transformada em babá. Outras não. A própria Evgeniya Ginzburg trabalhou num berçário do Gulag e descobriu, ao chegar lá, que nem as crianças mais
velhas sabiam falar:
Só algumas das que tinham quatro anos conseguiam articular umas poucas palavras, esparsas e desarticuladas. Gemidos, mímica e socos eram os principais meios de comunicação.
"Como se pode esperar que falem? Quem estava lá para ensiná-los?", explicou Anya, sem alterar-se. "No grupo dos mais novos, passam o tempo todo deitados nos berços.
Ninguém os tira de lá, mesmo quando se esgoelam de tanto chorar. É proibido, a menos que seja para trocar as fraldas - quando há fraldas secas, é claro."
Quando Evgeniya tentou ensinar algo às crianças sob seus cuidados, ela constatou que apenas uma ou duas - aquelas que haviam mantido algum contato com as mães -
se mostravam capazes de aprender alguma coisa. E mesmo a experiência dessas poucas crianças era limitadíssima:
"Olhe", eu disse a Anastas, mostrando-lhe a casinha que eu desenhara. "O que é isso?"
"Alojamento", respondeu o menininho, de modo bem claro.
Com algumas caneladas, pus um gato ao lado da casa. Mas ninguém, nem mesmo Anastas, reconheceu o bicho. Nunca tinham visto aquele animal raro. Aí, desenhei uma cerca
rústica, tradicional, em volta da casa.
"E o que é isso?"
"A zona prisional!", gritou Vera, encantada.
Normalmente, as crianças eram transferidas de tais berçários para orfanatos quando faziam dois anos. Algumas mães viam isso com bons olhos, pois era uma oportunidade
para as crianças escaparem do Gulag. Outras protestavam, sabendo que elas próprias podiam ser proposital ou acidentalmente transferidas para outros campos, longe
dos filhos, cujos nomes podiam então ter sido mudados ou esquecidos, impossibilitando que se estabelecesse relacionamento ou mesmo contato.
Isso às vezes acontecia. Valentina Yurganova, filha de kulaks da etnia alemã do Volga, foi colocada num orfanato onde algumas das crianças eram demasiado pequenas
para recordar-se dos próprios nomes e as autoridades, demasiado desorganizadas para lembrar-se deles. Valentina me disse que uma das crianças fora simplesmente rebatizada
"Kashtanova" ("Castanheira"), dado que havia tantas dessas árvores no parque atrás do orfanato.
Anos depois, outra dessas crianças escreveria uma pungente descrição da malsucedida busca que, durante a vida inteira, fez para descobrir o verdadeiro nome dos pais:
não havia registro de nenhuma menina nascida na região da mulher com o nome que aparecia em seu salvo-conduto, e a criança, muito pequena, ainda não aprendera o
nome deles. Mesmo assim, lembrar-se-ia de fragmentos de seu passado: "Mamãe na máquina de costura, eu pedindo agulha e linha... Eu num jardim... Aí, depois... O
recinto é escuro, a cama à direita está vazia, alguma coisa acontece. De algum modo, fico sozinha. Estou apavorada".
Não admira que algumas mães "chorassem, berrassem ou até enlouquecessem e fossem trancadas em depósitos, para se acalmarem", quando os filhos eram levados embora.
Depois que eles se afastavam, era pequena a probabilidade de reencontrarem as mães.
Extramuros, a vida das crianças nascidas nos campos não necessariamente melhorava. Elas se juntavam ao enorme contingente de outra categoria de vítima infantil -
as crianças que haviam sido transferidas direto para os orfanatos após o encarceramento dos pais. Em regra, os orfanatos estatais não tinham funcionários suficientes
e eram superlotadíssimos, sujos e com freqüência mortíferos. Uma ex-prisioneira recordaria as emoções e esperanças com que seu campo enviou para um orfanato urbano
um grupo de filhos de presos - e o horror sentido quando se soube que todas aquelas crianças tinham morrido numa epidemia. Já em 1931, no auge da coletivização,
diretores de orfanatos nos Urais escreviam cartas desesperadas às autoridades regionais, implorando ajuda para cuidar dos milhares de crianças que acabavam de ficar
órfãs de kulaks:
Num cômodo de doze metros quadrados, há trinta meninos. Para 38 crianças, há sete leitos, onde dormem os "reincidentes". Dois rapazes de dezoito anos destruíram
a instalação elétrica, assaltaram o empório e bebem com o diretor [...] crianças dormem, jogam cartas (que confeccionam com retratos rasgados do "Líder"), fumam,
quebram as grades das janelas e pulam os muros com a intenção de fugir.
Em outro orfanato para filhos de kulaks,
as crianças dormem no chão, e não há calçados em quantidade suficiente [...] às vezes, falta água por dias a fio. Comem mal; afora água e batata, não têm almoço.
Não há pratos nem cuias; elas comem direto de conchas. Para 140 pessoas, dispõe-se de uma única caneca, e não existem colheres suficientes; revezam-se para comer,
ou comem com a mão. Não há iluminação, só um lampião para o orfanato inteiro, e o querosene está em falta.
Em 1933, um orfanato perto de Smolensk enviou o seguinte telegrama à comissão infantil em Moscou: "Abastecimento alimentos orfanato interrompido. Cem crianças passando
fome. Organização recusa fornecer rações. Não há nenhum socorro. Tomar medidas urgentes". As coisas não mudaram muito com o passar do tempo. Em 1938, uma ordem
da NKVD descrevia um orfanato onde duas meninas de oito anos haviam sido estupradas por alguns dos garotos mais velhos; e outro onde 212 crianças compartilhavam
doze colheres e vinte pratos e, por falta de roupa de dormir, iam para a cama com a indumentário com que haviam passado o dia, aí incluídos os calçados. Em 1940,
Savelyeva Leonidovna foi "seqüestrada" de seu orfanato (os pais tinham sido aprisionados) e adotada por uma família que pretendia usá-la como doméstica. Assim, viu-se
separada da irmã, a qual nunca mais tornaria a ver.
Filhos de presos políticos, em especial, passavam maus bocados nessas instituições; com freqüência, recebiam tratamento pior que o conferido aos órfãos dali. Diziam-lhes
- como o fizeram a Svetlana Kogteva, então com dez anos -, que "esquecessem os pais, já que estes eram inimigos do povo". Os homens da NKVD que eram responsáveis
por tais lares tinham ordem de manter vigilância especial e atentar para os filhos de contra-revolucionários, a fim de garantir que não recebessem tratamento privilegiado
de nenhuma espécie. Graças a essa norma, PyotrYakir, após a detenção dos pais, ficou exatos três dias num desses orfanatos. Durante esse período, adquiriu "fama
de cabecilha dos filhos dos 'traidores'" e foi de imediato preso. Tinha catorze anos. Foi transferido para uma cadeia e acabou sendo mandado para o Gulag.
Mais freqüentemente, os filhos de presos políticos sofriam provocação e exclusão. Um preso recordaria que se recolhiam as impressões digitais desses menores quando
chegavam ao orfanato. Todos os professores e todos os outros funcionários temiam demonstrar demasiada afeição por eles, pois não queriam ser acusados de ter simpatia
por "inimigos do povo". Os filhos de presos políticos eram impiedosamente provocados por serem "inimigos", conforme conta Valentina Yurganova, que, em conseqüência,
esqueceu de propósito o idioma alemão (sua língua natal).
Em ambientes desse tipo, até filhos de pais instruídos logo adquiriam hábitos da bandidagem. Vladimir Glebov, filho do destacado bolchevique Lev Kamenev, era uma
dessas crianças. O pai foi preso quando Glebov tinha quatro anos, e o menino foi "degredado" para um orfanato especial na região oeste da Sibéria. Ali, cerca de
40% das crianças eram filhas de "inimigos do povo", cerca de 40% eram menores delinqüentes, e cerca de 20% eram crianças ciganas, detidas pelo crime de nomadismo.
Glebov explicaria ao escritor Adam Hochschild que, menos para os filhos de presos políticos, havia vantagens no contato precoce com jovens criminosos:
Meu chapa me ensinou coisas que, depois, me ajudaram bastante na hora de proteger-me. Aqui eu tenho uma cicatriz, e aqui outra [...] quando se é atacado a facadas,
é preciso saber reagir. O principal é reagir antes, para não se deixar atingir. Era assim a nossa feliz meninice soviética!
Algumas crianças ficavam permanentemente afetadas pela vivência em orfanatos. Uma mãe voltou do degredo e reuniu-se à filha. A menina, de oito anos de idade, mal
sabia falar, comia com as mãos e se comportava como o bicho-do-mato que o orfanato a ensinara a ser. Outra mãe, solta após cumprida uma pena de oito anos, foi pegar
os filhos no orfanato e ali descobriu que eles não desejavam ir com ela. Tinham-lhes ensinado que os pais eram inimigos do povo que não mereciam nenhum afeto. Os
filhos haviam sido especificamente instruídos a negar-se a ir embora "caso sua mãe um dia venha buscar vocês", e nunca mais quiseram morar com os pais.
Não era de surpreender que crianças de tais orfanatos fugissem - em grande número. Quando se viam nas ruas, caíam bem depressa no submundo criminal. E quando se
tornavam parte desse submundo, o ciclo vicioso se renovava: cedo ou tarde, provavelmente seriam encarceradas também.
A primeira vista, o relatório anual de 1944-5 da NKVD sobre um grupo de oito campos na Ucrânia não revela nada fora do comum. Arrolam-se quais dos campos cumpriram
as metas do Plano Qüinqüenal e quais não o fizeram. Louvam-se os presos que são trabalhadores de choque.
Observa-se com severidade que, na maioria daqueles campos, a dieta é ruim e monótona. De modo mais abonador, nota-se que, no período em questão, só num dos campos
ocorreu um surto epidêmico - e isso depois que cinco detentos haviam sido transferidos para lá do superlotado cárcere de Kharkov.
No entanto, alguns detalhes do relatório servem para ilustrar a verdadeira natureza desses oito campos ucranianos. Um inspetor se queixa, por exemplo, de que num
deles faltam "livros didáticos, lápis, cadernos, canetas". Há também um reparo severo sobre a propensão de certos detentos a apostar o alimento, às vezes perdendo
antecipadamente meses de ração de pão - ao que parece, os elementos mais jovens dos campos são demasiado inexperientes para jogar cartas com os mais velhos.
Os oito campos eram as colônias de menores. Isso porque nem todos os menores sob jurisdição do Gulag eram filhos de prisioneiros. Parte deles trilhara seu próprio
caminho para os campos. Cometeram delitos e foram apanhados e mandados a campos especiais para menores delinqüentes. Tais estabelecimentos não só eram administrados
pelos mesmos burocratas que geriam os campos para adultos, como também se pareciam com estes de muitas maneiras.
Na origem, os "campos infantis" foram organizados para os besprizornye, os órfãos, enjeitados e pequenos moradores de rua que haviam se perdido ou fugido dos pais
durante os anos da Guerra Civil, da fome, da coletivização e das prisões em massa. No início da década de 1930, essas crianças de rua já eram espetáculo comum nas
estações ferroviárias e nos parques públicos da URSS. O escritor russo Victor Serge as descreveu nestes termos:
Eu as vi em Leningrado e Moscou, morando nos esgotos, debaixo dos outdoors, nas criptas dos cemitérios, lugares dos quais eram as senhoras imperturbadas; realizando
conferências noturnas em mictórios públicos; viajando em cima ou embaixo dos vagões. Emergiam, irritantes, pretas de suor, para pedir uns copeques aos viajantes
e ficar à espreita da oportunidade de roubar alguma bagagem.
Esses menores eram tão numerosos e problemáticos que, em 1934, o Gulag estabeleceu nos campos para adultos os primeiros berçários destinados a filhos de presos,
objetivando impedir que tais crianças ficassem vagando pelas ruas. Pouco depois, em 1935, o Gulag também resolveu instalar colônias especiais de menores. Estes
eram capturados em grandes batidas nas ruas e depois mandados àquelas colônias, a fim de educar-se e preparar-se para ingressar na força de trabalho.
Em 1935, as autoridades soviéticas também aprovaram uma lei, tristemente célebre, que baixava para doze anos a maioridade penal. Depois disso, camponesas adolescentes
detidas pelo furto de alguns grãos de trigo, ou filhos de "inimigos do povo" suspeitos de colaboração com os pais, iriam para a prisão juvenil junto com as menores
prostitutas, os jovens punguistas, os meninos de rua e outros. Nos anos 1930, segundo um relatório interno, agentes da NKVD detiveram uma tártara de doze anos que
não falava russo e fora separada da mãe numa estação ferroviária. Deportaram-na, sozinha, para o extremo norte.
Os menores delinqüentes da URSS eram tantos que, em 1937, a NKVD criou orfanatos de regime especial para quem desrespeitava sistematicamente as normas nos orfanatos
comuns. Em 1939, os simplesmente órfãos já não eram mandados aos campos de menores: esses lugares agora estavam reservados aos meninos e meninas que de fato tinham
sido condenados pelos tribunais ou pela osoboe soveshchanie (comissão especial).
Apesar da ameaça de punição mais dura, o número de menores delinqüentes continuava a aumentar. A guerra não produziu apenas órfãos: havia também os que fugiam de
casa; ou crianças que eram largadas à própria sorte porque o pai estava na frente de batalha e a mãe fazia turno de doze horas na fábrica; ou uma categoria inteiramente
nova de criminoso, os menores operários que escapuliam de seus empregos fabris - às vezes depois que as fábricas haviam sido evacuadas para leste, longe de suas
famílias - e, assim, desrespeitavam uma lei dos tempos de guerra - "Do abandono não-autorizado do trabalho nos empreendimentos militares".
De acordo com as estatísticas da própria NKVD, os "centros de recepção" de menores recolheram em 1943-45 o extraordinário contingente de 842.144 crianças sem teto.
A maioria foi mandada de volta aos pais, aos orfanatos ou às escolas profissionalizantes. Mas um número considerável (pelos registros, 52.830) foi designado para
"colônias de trabalho educacional". Esse termo era nada mais que uma descrição palatável para campos de concentração infantis.
De muitas maneiras, o tratamento dos menores em tais campos pouco diferia daquele conferido a seus pais. Os menores eram detidos e trasladados segundo as mesmas
normas - com duas exceções: deviam ficar apartados dos adultos e não podiam ser alvejados caso tentassem fugir. Eram mantidos no mesmo tipo de cárcere que os maiores
de idade; suas celas eram separadas destes, mas se revelavam igualmente precárias. A descrição que um inspetor do Gulag faz de uma delas é deprimentemente familiar:
"As paredes estão sujas; nem todos os presos têm beliches ou colchões. Não têm lençóis, fronhas nem cobertores. Na cela 5, por falta de vidraça, a janela está tapada
com um travesseiro; e, na cela 14, uma janela não fecha de jeito nenhum". Outro relatório diz que os cárceres de menores são "inaceitavelmente insalubres", com
falta de água quente e de itens tão elementares como canecas, cuias e banquinhos.
Alguns menores também eram interrogados como maiores. Após ter ficado detido no orfanato, Pyotr Yakir (que, vimos, tinha então catorze anos) foi primeiro colocado
numa cadeia comum e depois submetido a um interrogatório completo, do mesmo tipo a que se submetiam os adultos. Seu interrogador o acusou de "ter organizado um bando
de cavalaria anarquista, cujo objetivo era atuar atrás das linhas do Exéreito Vermelho", citando como prova o fato de Yakir adorar montar. Em seguida, Yakir foi
condenado pelo crime de ser "elemento socialmente perigoso". Jerzy Kmiecik, polonês de dezesseis anos capturado ao tentar atravessai a fronteira soviética rumo
à Hungria (isso foi em 1939, na seqüência da invasão soviética da Polônia), também foi interrogado como maior. Eles o mantiveram em pé, ou sentado num banquinho
sem encosto, por horas a fio; ainda o alimentaram com sopa salgada e lhe negaram água. Os interrogadores queriam saber, entre outras coisas, "quanto o sr. Churchill
pagou a você para fornecer-lhe informações". Kmiecik não sabia quem era Churchill e pediu que lhe explicassem a pergunta.
Os arquivos também conservam os registros de interrogatório de Vladimir Moroz, quinze anos, acusado de ter exercido "atividades contra-revolucionárias" no orfanato.
A mãe e um irmão mais velho, de dezessete anos, já haviam sido aprisionados. O pai, fuzilado. Moroz mantivera um diário, encontrado pela NKVD, no qual execrava as
"mentiras e calúnias" que diziam a seu redor: "Se alguém houvesse caído num sono profundo há doze anos e acordasse de repente agora, ficaria aturdido com as mudanças
que ocorreram nesse período". Embora condenado a três anos no Gulag, Moroz morreria na cadeia em 1939.
Esses não eram casos isolados. Em 1939, quando a imprensa soviética relatou alguns casos de oficiais da NKVD detidos por terem extraído confissões falsas, um jornal
siberiano contou a história de 160 menores, a maioria com idade entre doze e catorze anos, mas alguns até de dez anos. Quatro oficiais da NKVD e os promotores dos
processos foram condenados a penas de cinco a dez anos por terem interrogado aqueles menores. O historiador Robert Conquest escreve que as confissões foram obtidas
"com relativa facilidade": "Um menino de dez anos cedeu após uma única noite de interrogatório e reconheceu ser membro de uma organização fascista desde os sete
anos".
Os menores aprisionados tampouco eram poupados das implacáveis exigências do sistema de trabalho escravo. Embora as colônias de menores não fossem, como regra, instaladas
no âmbito dos campos madeireiros ou mineiros setentrionais, onde as condições eram bem mais severas, havia nos anos 1940 um lagpunkt no campo de Norilsk, no extremo
norte. Alguns dos mil presos desse lagpunkt foram trabalhar na olaria de Norilsk; os outros foram postos para limpar neve. Entre eles, estavam algumas crianças de
doze, treze e catorze anos, mas a maioria tinha quinze ou dezesseis - os mais velhos que isso já haviam sido transferidos para o campo dos adultos. Muitos inspetores
reclamaram das condições no campo de menores de Norilsk, e ele acabou sendo deslocado para uma região mais meridional da URSS - não antes que muitos de seus detentos
houvessem sucumbido às mesmas doenças que seus homólogos adultos contraíam por conta do frio e da desnutrição.
Mais típico é o relatório ucraniano que explica que presos das colônias de trabalho de menores na Ucrânia receberam funções de marcenaria, metalurgia e costura.
Kmiecik, o qual esteve numa dessas colônias, perto de Zhitomir, trabalhou numa fábrica de móveis. Ainda assim, tais colônias seguiam muitas das práticas dos campos
para maiores. Havia metas de produtividade a atingir, metas e normas individuais a cumprir, um regime prisional a obedecer. Em 1940, uma ordem da NKVD estipulava
que os menores de doze a dezesseis anos trabalhassem quatro horas por dia e passassem outras quatro horas em atividades escolares. A mesma ordem determinava que
os menores de dezessete a dezoito anos trabalhassem oito horas por dia e dedicassem duas à escola. No campo de Norilsk, não se observava esse regime, pois não havia
nenhuma escola ali.
No campo de menores em que Kmiecik ficou, as aulas eram apenas à noite. Entre outras coisas, ensinaram-lhe que "a Inglaterra é uma ilha na Europa ocidental [...].
E governada por lordes que usam becas vermelhas de gola branca. São donos dos trabalhadores, que dão duro para eles e aos quais pagam muito pouco". Não que os menores
estivessem ali primordialmente para ser educados: em 1944, Beria informou com orgulho a Stalin que os campos de menores do Gulag haviam contribuído de modo notável
para o esforço de guerra, produzindo granadas, minas explosivas e outros itens no valor total de 150 milhões de rublos."
No Gulag, os menores também se submetiam ao mesmo tipo de propaganda que os adultos. Jornais dos campos publicados em meados dos anos 1930 falam de stakhanovistas
juvenis e cantam loas aos "de 35" - os meninos de rua colocados ali pela lei daquele ano -, enaltecendo os que tinham se regenerado pelo trabalho físico. Os mesmos
jornais atacam os menores que não haviam entendido que "precisam abandonar seu passado, pois é hora de começar vida nova [...]. Carteado, bebedeira, vandalismo,
malandragem, ladroeira etc. são vícios disseminados entre eles". Para combater esse "parasitismo" juvenil, os menores deviam participar do mesmo tipo de concerto
cultural e educacional que os adultos, entoando as mesmas canções stalinislas.
Por fim, eram submetidos às mesmas pressões psicológicas que os adultos. Outra diretiva da NKVD, esta de 1941, requeria a organização de uma agenturno-operativnoe
obsluzhwanie (rede de informantes) em suas colônias e centros de recepção de menores. Tinham se espalhado rumores de que, nesses campos, havia sentimento contra-revolucionário
tanto entre os funcionários quanto entre os detentos, em especial os filhos de contra-revolucionários. Em certo campo, os menores até haviam encetado uma mini-revolta:
tomaram e arrebentaram o refeitório e atacaram os guardas, ferindo seis destes.
Só num aspecto os detentos dos campos de menores eram afortunados: ao contrário de outros de sua idade, não tinham sido mandados para os campos de concentração comuns,
onde ficariam rodeados de criminosos adultos. De fato, assim como as onipresentes prisioneiras grávidas, o número sempre crescente de menores nos campos para adultos
constituía eterna dor de cabeça para os comandantes. Em outubro de 1935, Yagoda escreveu a todos os comandantes de campo para dizer que, "a despeito de minhas instruções,
menores presos não estão sendo mandados às colônias de trabalho especiais; em vez disso, misturam-se com adultos na cadeia". Pela contagem mais recente, afirmava
Yagoda, ainda havia 4.305 menores nas prisões comuns. Treze anos depois, em 1948, investigadores da promotoria-geral continuavam a queixar-se de que havia menores
demais nos campos comuns, onde eram corrompidos pelos presos adultos. Até mesmo as autoridades de um campo perceberam quando um preso, o chefão da bandidagem ali,
transformou um ladrãozinho de dezoito anos em matador de aluguel. Os maloletki (menores delinqüentes) despertavam pouca compaixão entre os outros presos. "A fome
e o horror do que acontecera os privara de todas as defesas", escreve Lev Razgon, o qual observou que os menores se aproximavam naturalmente dos indivíduos que pareciam
ser os mais fortes. Esses últimos eram os criminosos de carreira, que faziam dos garotos "serviçais, escravos mudos, bufões, reféns e tudo mais" e convertiam menores
de ambos os sexos à prostituição. No entanto, essas vivências apavorantes não suscitavam muita piedade. Pelo contrário: na memorialística do Gulag, algumas das
invectivas mais duras são dirigidas a tais adolescentes. Razgon diz que, não importando sua origem, todos os menores aprisionados logo "manifestavam uma crueldade
assustadora e incorrigivelmente vingativa, sem freio e sem responsabilidade". Pior:
Não temiam nada nem ninguém. Os guardas e capatazes dos campos morriam de medo de entrar nos alojamentos separados onde ficavam os menores. Era ali que ocorriam
os atos mais vis, mais impudentes e mais cruéis. Se um dos chefes da bandidagem jogava e perdia tudo após ter apostado até a vida, os garotos o matavam por uma ração
diária de pão ou, simplesmente, "pela diversão". As garotas se gabavam de conseguir satisfazer uma turma inteira de lenhadores. Não restara nada de humano nesses
menores, e era impossível achar que pudessem retornar ao mundo normal e tornar-se seres humanos comuns outra vez.
Soljenitsin tem a mesma impressão:
Na consciência deles, não havia nenhuma linha demarcatória entre o que era e o que não era permissível, nenhum conceito de certo e errado. Para eles, tudo o que
desejassem era bom, e tudo o que os atrapalhasse era mau. Adquiriam aquele comportamento descarado e insolente porque se tratava da conduta mais vantajosa no campo.
O preso holandês Johan Wigmans também escreve sobre jovens que "provavelmente não chegavam a incomodar-se por estar nesses campos. Oficialmente, deviam trabalhar;
na prática, porém, era a última coisa que faziam. Ao mesmo tempo, beneficiavam-se de 'proventos' regulares e de amplas oportunidades de aprenderem com seus cupinchas".
Havia exceções. Aleksander Klein conta a história de dois meninos de treze anos, capturados como guerrilheiros anti-soviéticos, que foram condenados a vinte anos
no Gulag. Os dois permaneceram dez anos nos campos, conseguindo manter-se juntos declarando greve de fome sempre que alguém os separava. Por causa da idade, as pessoas
se apiedavam deles, dando-lhes serviço leve e comida extra. Os dois se matricularam em cursos técnicos no Gulag, vindo a ser profissionais competentes antes de serem
libertados numa das anistias que se seguiram à morte de Stalin. Se não houvesse sido pelos campos, escreve Klein, "quem teria ajudado esses camponeses semi-analfabetos
a tornar-se pessoas instruídas, bons especialistas?"
Mas, no final dos anos 1990, quando comecei a procurar memórias escritas por pessoas que tinham sido menores prisioneiros, encontrei muita dificuldade para achar
alguma. Só temos as memórias de Yakir e Kmiecik e um punhado de outras, reunidas pela Sociedade Memorial e outras organizações. Contudo houvera milhares e milhares
de tais menores, e muitos ainda deviam estar vivos. Até sugeri a uma amiga russa que puséssemos anúncio em jornal, na tentativa de localizar alguns desses sobreviventes
para entrevistá-los. "Não faça isso", ela me recomendou. "Todos sabemos o que aquele tipo de gente virou." Décadas de propaganda, de cartazes ostentados nas paredes
de orfanatos para agradecer a Stalin "a nossa feliz meninice", não tinham conseguido convencer o povo soviético de que as crianças do Gulag, as crianças das ruas
e as crianças dos orfanatos houvessem se tornado outra coisa senão membros de carteirinha da grande e onipresente classe criminosa da URSS.
16. OS MORIBUNDOS
O que significa... exaustão?
O que significa... estafa?
Cada movimento apavora,
Cada movimento de nossos braços e pernas doridos.
Fome terrível - delirando por pão,
"Pão, pão", bate o coração.
Bem longe no céu melancólico,
O sol indiferente se move.
Nossa respiração é um assovio fino
A 45 graus negativos.
O que significa morrer?
As montanhas olham e continuam silenciosas.
Nina Gagen-Torn, Memória.
Durante toda a existência do Gulag, os presos sempre reservaram um lugar bem embaixo na hierarquia dos campos aos moribundos - ou melhor, aos mortos-vivos. Para
descrevê-los, criou-se todo um subdialeto na gíria daqueles lugares. Às vezes, os moribundos eram chamados fitili (pavios), numa referência ao pavio de uma vela
prestes a apagar-se. Também eram conhecidos como gavnoedy (come-merda) ou pormoechniki (papa-lavagem). Com mais freqüência, eram denominados dokhodyagi (no singular,
dokhodyaga), substantivo derivado do verbo russo dokhodit (chegar, alcançar). No Manual do Gulag, Jacques Rossi afirma que o termo era sarcástico: os moribundos
iam enfim "chegar ao socialismo". Outros, de modo mais prosaico, dizem que a palavra significava que eles estavam chegando não ao socialismo, mas ao fim da vida.
Os dokhodyagi simplesmente estavam perecendo de fome e sofriam as enfermidades da inanição e da carência vitamínica: escorbuto, pelagra, vários tipos de diarréia.
Nos primeiros estágios, essas doenças se manifestavam na forma de dentes moles e feridas cutâneas, sintomas que às vezes afligiam até os guardas dos campos. Nos
estágios posteriores, os presos perdiam a capacidade de enxergar no escuro. Gustav Herling se lembraria "daqueles com cegueira noturna, caminhando devagar pela zona
prisional de madrugada e à noitinha, tateando à frente".
Os famélicos também tinham problemas estomacais, tonturas e inchaços grotescos nas pernas. Ao acordar certa manhã, Thornas Sgovio (que chegou à beira da inanição
antes de recuperar-se) descobriu que uma de suas pernas estava "arroxeada e duas vezes maior que a outra. Coçava e estava coberta de erupções, de onde escorriam
sangue e pus. Depois que usei o dedo para comprimir aquela carne roxa, a marca ficou ali por muito tempo". Quando Sgovio viu que não conseguia calçar as botas por
causa do inchaço, mandaram-no fazer um corte nelas.
Nos estágios finais da inanição, os dokhodyagi assumiam aparência grotesca e inumana, transformando-se na encarnação da retórica desumanizadora usada pelo Estado:
nos últimos dias de vida, os inimigos do povo deixavam, em outras palavras, de ser gente. Ficavam dementes, com freqüência delirando e falando sozinhos por horas
a fio. A pele se tornava solta e seca. Os olhos adquiriam um brilho estranho. Comiam tudo em que conseguiam deitar as mãos - aves, cães, lixo. Moviam-se devagar
e não eram mais capazes de controlar os intestinos nem a bexiga, emitindo assim um odor horrível. Tarnara Petkevich descreve a primeira vez em que viu essas pessoas:
Ali, atrás do arame farpado, estava uma fileira de criaturas, que lembravam remotamente seres humanos [...] havia dezenas delas, esqueletos de vários tamanhos coberto
de pele pardacenta, semelhante a pergaminho, todas despidas até a cintura, com as cabeças rapadas e os seios murchos e balouçantes. Sua única indumentária eram umas
roupas de baixo lastimáveis, sujas, e as tíbias se projetavam da carne vazia. Eram mulheres! A fome, o calor e a lida as haviam transformado em espécimes ressequidos
que, inexplicavelmente, ainda se aferravam aos últimos vestígios de vida.
Variam Shalamov também deixou uma inesquecível descrição poética dos dokhodyagi, invocando a similaridade que havia entre eles, a perda de características identificadoras
que os humanizassem, o anonimato que era parte do horror que inspiravam:
Ergo um brinde a uma estrada na floresta,
Àqueles que caíram pelo caminho,
Àqueles que já não conseguem mais se arrastar,
Mas são forçados a fazê-lo.
A seus lábios rígidos e azulados,
A seus rostos idênticos,
A seus casacos rasgados e cobertos de gelo,
A suas mãos sem luvas,
À água que bebericam de uma velha latinha,
Ao escorbuto que se fixa em seus dentes,
Aos dentes de cães gordos e cinzentos,
Que os acordam pela manhã.
Ao sol carrancudo
Que os mira sem interesse,
Às lápides brancas,
Obras de astutas tempestades de neve.
A ração de pão cru e grudento
Engolido às pressas,
Ao céu pálido e tão alto,
Ao rio Ayab-Yuryakh!
Mas o termo dokhodyagi, tal qual era usado nos campos de concentração soviéticos, não se limitava a descrever um estado físico. Essas pessoas, conforme explicou
Sgovio, não estavam apenas doentes: eram presos que haviam chegado a um grau de inanição tão intenso que já não cuidavam mais de si mesmos. Tal deterioração costumava
avançar por etapas, à medida que os presos deixavam de lavar-se, de controlar os intestinos, de ter as reações humanas normais diante de insultos - até ficarem,
literalmente, loucos de fome. Sgovio se mostrou estarrecidíssimo na primeira vez em que deparou com alguém nesse estado, um comunista americano chamado Eisenstein,
que fora conhecido seu em Moscou:
De início, não reconheci meu amigo. Eisenstein não respondeu quando o cumprimentei. Seu rosto exibia a expressão vazia dos dokhodyagi. Olhou-me como se eu não estive
ali. Eisenstein parecia não perceber a presença de ninguém. Não havia expressão nenhuma em seus olhos. Juntando os pratos vazios nas mesas do refeitório, ele examinava
todos em busca de partículas de restos de comida. Passava os dedos por dentro de cada prato e depois os lambia.
Sgovio escreve que Eisenstein se tornara como os outros "pavios", na medida em que perdera toda noção de dignidade pessoal:
Descuidavam de si mesmos. Não se lavavam - nem mesmo quando tinham a oportunidade. Os pavios tampouco se preocupavam em procurar e matar os piolhos que lhes sugavam
o sangue. Os dokhodyagi não limpavam com as mangas o que lhes pingava da ponta do nariz [...] o pavio era imune a pancadas. Quando atacado por outros zeks, cobria
a cabeça para desviar dos golpes. Caía ao chão, e, se fosse deixado em paz e sua condição o permitisse, se levantava e saía choramingando como se nada tivesse acontecido.
Depois do trabalho, o dokhodyaga podia ser visto a rondar a cozinha, implorando sobras. Por diversão, o cozinheiro lhes atirava na cara uma conchada de sopa. Em
tais ocasiões, o pobre coitado passava apressadamente os dedos pelas suíças molhadas e os lambia [...]. Os pavios ficavam em pé perto das mesas, esperando que alguém
deixasse um pouco de sopa ou papa. Quanto isso acontecia, os mais próximos dentre eles se lançavam sobre os restos. Na disputa subseqüente, muitas vezes derramavam
a sopa. E aí, de quatro, lutavam e raspavam o chão até que o derradeiro tiquinho do precioso alimento fosse parar em suas bocas.
Uns poucos presos que se tornaram dokhodyagi e depois se recuperaram tentaram explicar, não com inteiro sucesso, qual era a sensação de ser um dos mortos-vivos.
Janusz Bardach recordaria que, após oito meses em Kolyma, "eu ficava zonzo ao acordar, e minha cabeça, confusa. Precisava de mais tempo e mais esforço para compor-me
e ir ao refeitório pela manhã". Yakov Éfrussi virou dokhodyaga depois que seus óculos foram roubados pela primeira vez - "para os míopes, ficará perfeitamente claro
o que é a vida sem óculos: tudo a nossa volta parece embaçado" - e, em seguida, perdeu os dedos da mão esquerda por causa das queimaduras de frio. Éfrussi descreveria
seus sentimentos nestes termos:
A constante privação de alimento destrói a psique. É impossível parar de pensar em comida - a gente o faz o tempo todo. A incapacidade física se junta a fraqueza
moral, pois a fome constante elimina o amor-próprio, o respeito por si mesmo. Todos os pensamentos se dirigem para uma só coisa: como conseguir mais comida? E por
isso que os dokhodyagi estão sempre rondando o lixão, as proximidades do refeitório, a entrada da cozinha. Ficam esperando para ver se alguém joga da cozinha alguma
coisa comestível. Uns restos de repolho, por exemplo.
A atração da cozinha e a obsessão pela comida cegavam alguns para quase todas as considerações, como Gustav Herling também tenta descrever:
Depois que a vacilante dignidade humana não mais consegue conservar um equilíbrio incerto porém independente, deixa de haver limite para os efeitos físicos da fome.
Muitas vezes, comprimi meu rosto empalidecido contra o vidro fosco da janela da cozinha, para, com olhar abobado, implorar outra conchada de sopa aguada a Fyedka,
o ladrão de Leningrado que estava encarregado dali. E me lembro de que, uma vez, meu melhor amigo, o engenheiro Sadovski, arrancou-me da mão uma lata cheia de sopa
e, fugindo com ela, nem esperou para se esconder na latrina antes de engolir aquela gororoba fervente com lábios febricitantes. Se Deus existe, que Ele castigue
sem dó os que degradam pela fome.
O sionista polonês Yehoshua Gilboa, aprisionado em 1940, descreve eloqüentemente os logros com os quais os presos tentavam convencer-se de que estavam comendo mais
do que de fato faziam:
Procurávamos enganar o estômago esfarelando o pão até virar quase farinha e misturando isso com sal e grandes quantidades de água. Essa iguaria era chamada "caldo
de pão". A água salgada adquiria algo da cor e do sabor do pão. Bebíamos, e a papa de pão ficava. Aí, púnhamos mais água, até extrair a última gota de gostinho de
pão. Ingeríamos a papa como sobremesa, depois de termos nos forrado com a "água de pão" (por assim dizer). Aquilo não tinha nenhum sabor, mas criávamos a ilusão
de esticar várias centenas de gramas do alimento.
Gilboa escreve que também encharcava em água o peixe salgado. O líqüido resultante "podia ser usado para fazer o caldo de pão, e aí tínhamos de fato uma iguaria
digna de reis".
Quando o preso passava todo o seu tempo rondando a cozinha e catando restos de comida, ele em geral já estava perto da morte e podia mesmo falecer a qualquer momento
- dormindo, indo para o trabalho, caminhando pela zona prisional, jantando. Certa vez, Janusz Bardach viu um preso cair durante a chamada do fim do dia:
Formou-se um grupo em volta dele. "Peguei o chapéu", disse um homem. Outros apanharam o casaco, a calça, as botas e os panos com que a vítima envolvia os pés. Aí,
começou uma briga por causa da roupa de baixo.
Tão logo o prisioneiro caído foi despido por completo, ele mexeu a cabeça, levantou a mão e afirmou, de modo débil, mas claro: "Está tão frio..." Sua cabeça voltou
a tombar sobre a neve, e ele ficou com um olhar vítreo. Aqueles urubus se foram com o que haviam arrebatado, inabaláveis. O preso provavelmente morreu de exposição
ao frio poucos minutos após ter sido despido.
Todavia, a inanição não era a única maneira de morrer. Muitos presos tombavam trabalhando, nas perigosas condições das minas e fábricas. Alguns, enfraquecidos pela
fome, também sucumbiam facilmente a doenças e epidemias. Já mencionei as epidemias de tifo, mas presos fracos e famélicos eram suscetíveis a muitas outras enfermidades.
No Siblag, por exemplo, durante o primeiro trimestre de 1941, hospitalizaram-se 8.029 pessoas; com tuberculose, foram 746 (resultando em 109 óbitos); com pneumonia,
72 (22 óbitos); com disenteria, 36 (nove óbitos); com queimaduras de frio, 177 (cinco óbitos); com distúrbios estomacais, 302 (sete óbitos); com problemas circulatórios,
912 (123 óbitos); e por acidentes de trabalho, 210 (sete óbitos).
Embora o assunto seja (curiosamente) tabu, presos também se suicidavam. Ê difícil dizer quantos tomaram esse caminho. Não existem estatísticas oficiais. Estranhamente,
também não há muito consenso entre os sobreviventes sobre quantos suicídios ocorriam. Nadezhda Mandelstam escreveria que nos campos as pessoas não se matavam, e
sim lutavam com afinco para continuar vivas. Tal crença foi ecoada por outros. Evgenii Gnedin relataria que, embora houvesse pensado em suicidar-se na cadeia e,
depois, no degredo, ele, durante seus oito anos nos campos, nunca pensou em matar-se. "Cada dia era uma luta pela vida; numa batalha assim, como teria sido possível
pensar em largar a vida? Havia uma meta - sair daquele sofrimento - e uma esperança - reencontrar os entes queridos."
Durante pesquisas, a historiadora Catherine Merridale, que é de opinião diferente, conheceu dois psicólogos de Moscou que haviam estudado ou trabalhado no sistema
Gulag. Tal como Nadezhda Mandelstam e Evgenii Gnedin, eles insistiram em que o suicídio e a doença mental eram raros: "Ficaram surpresos, e um pouco ofendidos",
quando Catherine apresentou provas do contrário. A historiadora atribui essa curiosa insistência ao "mito do estoicismo" na Rússia, mas talvez haja outras causas.
O teórico literário Tzvetan Todorov sugere que as testemunhas escrevem sobre a estranha ausência de suicídios porque querem enfatizar o caráter extraordinário da
experiência pela qual passaram: esta era tão medonha que ninguém sequer fazia a opção "normal" pelo suicídio. "O sobrevivente objetiva acima de tudo comunicar a
alteridade dos campos."
Na realidade, os casos de suicídio de que se tem notícia são numerosos, e muitos memorialistas os mencionam. Um descreve o suicídio de um garoto cujos favores sexuais
foram "ganhados" por um bandido no carteado. Outro fala do suicídio de um cidadão soviético de origem alemã, que deixou um bilhete para Stalin: "Minha morte é um
ato consciente de protesto contra a violência e o arbítrio lançados sobre nós, os germano-soviéticos, pelos órgãos da NKVD". Um sobrevivente de Kolyma escreve que,
na década de 1930, tornou-se relativamente comum que presos caminhassem, rápidos e decididos, rumo a "zona da morte" (a terra de ninguém junto à cerca do campo)
e então ficassem parados ali, esperando para ser baleados.
Zek moribundo. Desenho de Sergei Reikhenberg. Magadan, data desconhecida.
A própria Evgeniya Ginzburg cortou a corda que sua amiga Polina Melnikova usara para enforcar-se; Evgeniya escreveria sobre Polina, com admiração: "Ao agir daquela
maneira, ela afirmara seus direitos de pessoa - e fizera um serviço bem-feito". Todorov também escreve que muitos sobreviventes tanto do Gulag quanto dos campos
nazistas viam o suicídio como uma oportunidade de exercer o livre-arbítrio: "Ao matar-se, a pessoa altera o curso dos acontecimentos (ainda que pela última vez na
vida) em vez de simplesmente reagir a eles. Suicídios desse tipo são atos de desafio, não de desespero".
Para os administradores dos campos, era indiferente a maneira pela qual os presos morriam. Para a maioria, o mais importante era manter as taxas de mortalidade em
segredo, ainda que apenas parcial: os comandantes de lagpunkts onde essas taxas fossem consideradas "excessivamente altas" correriam o risco de ser punidos. Embora
as regras não fossem impostas com regularidade, e embora alguns de fato defendessem a idéia de que mais presos deviam morrer, os comandantes de alguns campos particularmente
mortíferos perdiam mesmo o emprego de vez em quando. Era por isso que, conforme alguns ex-prisioneiros relatam, médicos ocultavam cadáveres dos inspetores do Gulag;
e era por isso que, em alguns campos, constituía prática comum conceder a soltura antecipada a detentos moribundos - assim, não apareciam nas estatísticas de mortalidade.
Mesmo quando as mortes eram registradas, os registros nem sempre se mostravam honestos. De uma ou outra maneira, os comandantes de campo se asseguravam de que os
médicos que redigiam os atestados de óbito não indicassem "inanição" como causa direta da morte. O cirurgião Isaac Vogelfanger, por exemplo, recebeu ordem categórica
de sempre assinalar "insuficiência do músculo cardíaco", não importando qual fosse a verdadeira causa da morte do preso. O tiro podia sair pela culatra: em certo
campo, os médicos arrolaram tantos casos de "colapso cardíaco" que os inspetores desconfiaram. A promotoria obrigou os médicos a desencavarem os corpos, e se estabeleceu
que, na realidade, os presos haviam morrido de pelagra. Nem todo esse caos era intencional: em outro campo, os registros estavam em tamanha confusão que um inspetor
se queixou de que "os mortos são contabilizados como vivos, os fugitivos como ainda encarcerados, e vice-versa".
Com freqüência, os presos também eram mantidos proposital-mente na ignorância dos fatos relacionados às mortes. Embora estas não pudessem ser ocultadas de todo -
um preso falou de cadáveres que ficavam "numa pilha junto à cerca até o degelo" -, podiam ser encobertas de outras maneiras. Em muitos campos, os corpos eram removidos
à noite e levados para locais secretos. Só por acaso Edward Buca (obrigado a fazer serão para cumprir sua meta de trabalho) viu o que acontecia aos cadáveres em
Vorkuta:
Após terem sido empilhados como toras num galpão aberto, até que se houvessem acumulado em número suficiente para uma cova coletiva no cemitério do campo, eles eram
carregados nus, em trenós, com as cabeças para fora e os pés para dentro. Cada corpo tinha uma birka (plaquinha de madeira) amarrada ao dedão do pé direito, trazendo
o nome e o número do morto. Antes de cada trenó sair pelo portão do campo, o nadziratel (um homem da NKVD) pegava uma picareta e arrebentava cada crânio. Isso era
para garantir que nenhum preso vivo escapasse daquele jeito. Fora do campo, os corpos eram despejados numa transeya, uma das diversas valas largas que tinham sido
cavadas com aquela finalidade durante o verão. Mas, quando o número de óbitos avultou, o procedimento para certificar-se de que estavam mesmo mortos foi modificado.
Em vez de arrebentarem cabeças a picareta, os guardas usavam o szompol, um arame grosso de ponta afiada, que enfiavam em todos os corpos. Aparentemente, isso era
mais fácil que desfechar golpes de picareta.
Os enterros coletivos em valas comuns talvez fossem mantidos em segredo porque, estritamente falando, também eram proibidos - o que não quer dizer que fossem incomuns.
Por toda a Rússia, terrenos de antigos campos mostram o que claramente eram covas coletivas, e, de tempos em tempos, elas até se abrem: no extremo norte, o permafrost
não apenas conserva os corpos (às vezes lugubremente intactos), mas também se move com as congelações e degelos anuais. Variam Shalamov escreve: "O setentrião resistia
com toda a força a essa obra do homem, não aceitando em suas entranhas os defuntos [...] a terra se rompia, deixando à mostra seus depósitos subterrâneos, que continham
não só ouro, chumbo, tungstênio e urânio, mas também corpos humanos incorruptos".
No entanto, eles não deviam estar ali, e, em 1946, a direção do Gulag ordenou a todos os comandantes de campo que enterrassem os cadáveres separadamente, usando
mortalhas e cavando sepulturas com no mínimo 1,5 metro de profundidade. A localização dos corpos seria demarcada não com o nome, mas com um número. Só os encarregados
dos registros do campo deveriam saber quem estava enterrado onde.
Tudo isso parece muito civilizado - não fosse o fato de que outra ordem autorizou a extração dos dentes de ouro dos presos mortos. Esse procedimento deveria dar-se
sob a égide de uma comissão do campo, formada de representantes do serviço médico, da administração e do departamento financeiro. O ouro precisaria então ser levado
para o banco estatal mais próximo. Todavia, é difícil crer que tais comissões se reunissem com muita freqüência. Simplesmente, o furto dos dentes de ouro, um procedimento
mais descomplicado, era muito mais fácil de executar e ocultar num mundo onde havia cadáveres em demasia.
Em demasia mesmo - e isso, no fim das contas, era o aspecto aterrador das mortes no cativeiro, conforme escreveria Herling:
A morte no campo trazia outro horror: seu anonimato. Não tínhamos nenhuma idéia de onde os mortos eram enterrados, nem de se algum tipo de atestado de óbito era
redigido após a morte de um preso [...]. A certeza de que ninguém jamais saberia da morte deles, de que ninguém jamais saberia onde eles tinham sido enterrados,
era um dos maiores tormentos psicológicos pelos quais os prisioneiros passavam [...].
As paredes do alojamento estavam cobertas de nomes de presos rabiscados no reboco, e pedia-se aos amigos que completassem os dados após as mortes, acrescentando
uma cruz e uma data; todo preso escrevia aos familiares em intervalos estritamente controlados, de modo que uma súbita interrupção da correspondência forneceria
aos parentes a data aproximada da morte.
Apesar dos esforços dos presos, muitas mortes - muitas mesmo - não foram assinaladas, nem lembradas, nem registradas. Formulários não eram preenchidos; parentes
não eram notificados; demarcações de madeira se decompunham. Caminhando-se pelos antigos terrenos dos campos no extremo norte, vêem-se os sinais das covas coletivas:
o solo irregular e matizado, os pinheiros jovens, o capim alto que cobre valas funerárias de meio século. Às vezes, um monumento foi erigido por algum grupo local.
Com mais freqüência, não há identificação nenhuma. Os nomes, as vidas, as narrativas individuais, os vínculos familiares, a história - tudo se perdeu.
17. Estratégias de sobrevivência
Estou pobre, sozinho e nu,
Não tenho fogo,
A melancolia polar lilás
Cerca-me por todos os lados...
Recito meus poemas
Eu os grito
As árvores, desfolhadas e surdas,
Estão assustadas.
Apenas o eco das montanhas distantes
Ressoa em meus ouvidos.
E com um profundo suspiro
Respiro de novo com facilidade.
Variam Shalamov, Neskolko moikh zhiznei.
No final, havia prisioneiros que sobreviviam. Sobreviviam mesmo aos piores campos, às condições mais duras, mesmo aos anos de guerra, aos anos de escassez de víveres,
aos anos de execuções em massa. Não apenas isso, alguns sobreviviam psicologicamente intactos o suficiente para voltarem para casa, recuperarem-se e viverem vidas
relativamente normais. Janusz Bardach tornou-se cirurgião plástico na cidade de Iowa. Isaak Filshtinskii voltou a lecionar literatura árabe. Lev Razgon voltou a
escrever literatura infantil. Anatolii Zhigulin retomou a produção de poesia. Evgeniya Ginzburg mudou-se para Moscou, e durante anos foi a alma de um círculo de
sobreviventes, que se reuniam regularmente para comer, beber e discutir em volta da mesa da sua cozinha.
Ada Purizhinskaya, presa ainda adolescente, casou e teve quatro filhos, alguns dos quais tornaram-se músicos. Encontrei dois deles num jantar familiar, generoso,
bem-humorado, durante o qual Purizhinskaya serviu diversos pratos de deliciosa comida fria, e pareceu desapontada quando não consegui comer mais. A casa de Irena
Arginskaya também é pródiga em risadas, a maior parte das quais vem dela mesma. Quarenta anos depois, ela conseguia achar engraçadas as roupas que usara quando prisioneira:
"Suponho que você poderia chamar isso de uma espécie de jaqueta", disse ela, tentando descrever um casaco desajeitado. Sua filha, adulta e bem falante, riu com ela.
Quinto ano no campo (sobreviventes). Rostos de presos, alterados com o passar do tempo. Desenho de Aleksei Merekov, ele também prisioneiro. Local e data desconhecidos
Alguns até acabaram tendo vidas extraordinárias. Alexander Soljenitsin tornou-se um dos escritores russos mais conhecidos no inundo, e mais bem-sucedidos em vendagem.
O general Gorbatov ajudou a liderar o assalto soviético a Berlim. Depois de cumprir pena em Kolyma e de uma sharashka em tempos de guerra, Sergei Korolev acabou
tornando-se o pai do programa espacial da União Soviética. Gustav Herling deixou os campos, lutou com o exército polonês e, apesar de escrever desde seu exílio napolitano,
tornou-se um dos mais reverenciados homens de letras da Polônia pós-comunista. A notícia de sua morte em julho de 2000 encheu as primeiras páginas dos jornais de
Varsóvia, e toda uma geração de intelectuais poloneses pagou tributo à sua obra - especialmente Um mundo à parte, suas memórias do Gulag. Em sua capacidade de se
recuperar, esses homens e mulheres não eram únicos. Isaac Vogelfanger, que acabou se tornando professor de cirurgia na Universidade de Ottawa, escreveu que "as feridas
se curam, e podemos nos tornar íntegros de novo, um pouco mais fortes e mais humanos do que antes..."
Nem todas as histórias de sobreviventes do Gulag terminaram tão bem assim, é claro, o que talvez não sejamos necessariamente capazes de depreender da leitura dos
relatos. É claro, pessoas que não sobreviveram não escreveram nada. Também não escreveram nada aqueles que ficaram com problemas mentais ou físicos em conseqüência
da vivência nos campos. Aqueles que sobreviveram à custa de coisas das quais mais tarde se envergonharam tampouco costumam escrever -ou, quando o fazem, não contam
necessariamente toda a história. Existem pouquíssimos relatos de informantes - ou de pessoas que confessem terem sido informantes - e muito poucos sobreviventes
que sejam capazes de admitir terem machucado ou assassinado colegas prisioneiros a fim de permanecer vivos.
Por essas razões, alguns sobreviventes questionam se os relatos escritos têm alguma validade. Yuri Zorin, um sobrevivente mais velho e não muito acessível que entrevistei
em sua cidade natal, Arkhangelsk, descartou uma pergunta que lhe fiz sobre filosofias de sobrevivência. Não havia nenhuma, disse ele. Embora as lembranças dos prisioneiros
transmitam a impressão de que "discutiam tudo, pensavam sobre tudo", não era bem assim, contou-me ele: "Tudo se resumia em viver até o dia seguinte, em permanecer
vivo, não ficar doente, trabalhar menos, comer mais. E é por isso que discussões filosóficas, como regra, não aconteciam... Éramos salvos pela juventude, saúde,
força física, pois ali vivíamos segundo as leis de Darwin, da sobrevivência do mais apto".
Quem sobreviveu - e por que sobreviveu - é uma questão que deve portanto ser abordada com muita cautela. Não há documentos de arquivo confiáveis, e não existem "provas"
concretas. Temos que nos basear no que dizem aqueles que se dispõem a descrever suas experiências, seja por escrito ou numa entrevista. Cada um deles deve ter tido
motivos para ocultar de seus leitores aspectos de suas biografias.
Feita esta ressalva, é possível identificar padrões dentro das várias centenas de relatos que têm sido publicados ou disponibilizados em arquivos. Porque existiam
estratégias de sobrevivência, e elas eram bem conhecidas na época, embora variassem muito, conforme as circunstâncias particulares do prisioneiro. Sobreviver a uma
colônia de trabalho na Rússia ocidental em meados da década de 1930 ou mesmo no final da década de 1940, quando a maior parte do trabalho era fabril e a comida era
regular, mesmo não sendo farta, provavelmente não exigiu quaisquer ajustes mentais especiais. Sobreviver a um dos campos distantes do norte - Kolyma, Vorkuta, Norilsk
- durante os anos de fome da guerra, por outro lado, freqüentemente exigia imensas reservas de talento e força de vontade, ou então uma enorme capacidade para o
mal, qualidades que os prisioneiros, se tivessem permanecido em liberdade, poderiam nunca ter descoberto dentro deles.
Sem dúvida, muitos desses prisioneiros sobreviveram porque encontraram maneiras de se sobrepor a outros prisioneiros, de se distinguir da apinhada massa de zeks
famélicos. Dúzias de ditos e provérbios dos campos refletem os eleitos debilitadores para a moral dessa competição desesperada. "Você pode morrer hoje eu vou morrer
amanhã", era um deles. "O homem é o lobo do homem" a frase que Janusz Bardach usou como título de um de seus relatos - era outro.
Muitos ex-zeks falam da luta pela sobrevivência como algo cruel, e muitos, como Zorin, referem-se a ela como darwiniana. "O campo era um grande leste para nossa
força moral, nossa moralidade cotidiana, e 99% de nós fracassamos nesse leste", escreveu Shalamov. "Depois de apenas três semanas a maioria dos prisioneiros se
tornava homens alquebrados, sem interesse por nada a não ser comer. Comportavam-se como animais, antipatizavam e suspeitavam de todos os demais, vendo no amigo de
ontem um competidor na luta pela sobrevivência", escreveu Edward Buca.
Elior Olitskaya, com sua experiência no movimento social-democrata pré-revolucionário, ficou particularmente horrorizada com o que ela percebia corno a amoralidade
dos campos: enquanto internos em prisões costumavam cooperar entre si, os fortes ajudando os fracos, nos campos soviéticos cada prisioneiro "vivia por si", pisando
nos outros a fim de obter um status um pouco mais alto na hierarquia do campo. Galina Usakova descreveu como sentiu que sua personalidade mudara nos campos: "Eu
era uma garota bem-comportada, bem-cria-da, de uma família da intelligentsia. Mas com essas características não se sobrevive, é preciso endurecer, aprender a mentir,
a ser hipócrita de várias maneiras".
Gustav Herling foi além, descrevendo como o novo prisioneiro lentamente aprende a viver "sem piedade":
No início ele divide seu pão com prisioneiros dementes de fome, guia os que têm cegueira noturna no caminho de volta do trabalho, grita por ajuda quando seu vizinho
na floresta acaba de cortar fora dois dedos, e sub-repticiamente carrega canecas de sopa e cabeças de peixe para a sala mortuária. Depois de várias semanas, ele
compreende que suas motivações não são nem puras nem realmente desinteressadas, que ele está seguindo as injunções egoístas de seu cérebro e salvando primeiro a
ele mesmo. O campo, onde os prisioneiros vivem no nível mais baixo de humanidade e seguem um código brutal de comportamento em relação aos outros, o ajuda a chegar
a essa conclusão. Como ele poderia ter suposto, antes da prisão, que um homem pode ser degradado ao ponto de não despertar mais compaixão mas apenas aversão e repugnância
em seus colegas prisioneiros? Como pode ajudar os que têm cegueira noturna, quando todo dia ele os vê levarem pancadas de rifle porque estão atrasando a volta da
brigada ao trabalho, e depois serem empurrados com impaciência para fora do caminho por prisioneiros que têm pressa de chegar à cozinha para a sopa; como visitar
a sala mortuária e encarar a escuridão constante e o fedor de excremento; como dividir seu pão com um louco faminto que já no dia seguinte vai cumprimentá-lo no
alojamento com um olhar arregalado persistente, de quem pede... Ele lembra e acredita nas palavras do juiz que o julgou, que lhe disse que a vassoura de ferro da
justiça soviética varre apenas lixo para seus campos.
Tais sentimentos não são exclusivos dos sobreviventes de campos soviéticos. "Se alguém oferece uma posição privilegiada a alguns poucos indivíduos em condições de
escravidão", escreveu Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz, "exigindo em troca a traição a uma natural solidariedade com seus camaradas, certamente haverá quem
aceite". Escrevendo também a respeito dos campos alemães, Bruno Bettelheim observou que os prisioneiros mais velhos com freqüência acabam "aceitando os valores
e o comportamento dos SS como se fossem também os seus", particularmente adotando seu ódio pelos habitantes mais fracos e de cotação mais baixa dos campos, em especial
os judeus.
Nos campos soviéticos, assim como nos campos nazistas, os criminosos comuns também adotaram prontamente a desumanizante retórica da NKVD, insultando presos políticos
e "inimigos", e expressando entre eles repulsa pelos dokhodyagi. De sua inusual posição de único preso político num lagpunkt para uma maioria de criminosos, Karol
Colonna-Czosnowski conseguiu inteirar-se da visão que as pessoas do mundo do crime têm dos políticos: "O problema é que existem muitos deles. Eles são fracos, são
sujos, e só querem comer. Não produzem nada. Por que as autoridades se preocupam com eles, só Deus sabe..." Um criminoso, escreve Colonna-Czosnowski, disse ter encontrado
um cientista e professor universitário ocidental, num campo de trânsito: "Eu o peguei comendo, sim, comendo mesmo, a cauda meio apodrecida de um peixe treska. Eu
fiz ele passar um mau pedaço, você pode imaginar. Perguntei se ele sabia o que estava fazendo. Ele disse apenas que estava com fome... Então eu lhe dei um sopapo
na nuca que o fez vomitar. Fico mal só de lembrar. Eu também contei o caso para os guardas, mas o velho asqueroso morreu na manhã seguinte. Bem-feito!"
Outros prisioneiros observavam, aprendiam e imitavam, como escreveu Variam Shalamov:
O jovem camponês que se tornou prisioneiro vê que nesse inferno apenas os criminosos vivem comparativamente bem, que eles são importantes, que a todo-poderosa administração
do campo tem medo deles. Os criminosos sempre têm roupas e comida, e se apóiam mutuamente... ele começa a ter a impressão de que os criminosos possuem a verdade
sobre a vida do campo, que somente imitando-os ele irá seguir o caminho que poderá salvar sua vida... o intelectual condenado é esmagado pelo campo. Tudo o que ele
sempre valorizou se pulveriza à medida que civilização e cultura vão se despencando dele em questão de semanas. O método de persuasão são os punhos ou o pedaço de
pau. A maneira de induzir alguém a fazer alguma coisa é por meio de uma coronhada, um murro nos dentes...
E mesmo assim, seria incorreto dizer que não havia nenhuma moralidade nos campos, que nenhuma bondade ou generosidade era possível. Curiosamente, mesmo os mais pessimistas
dentre os que apresentaram relatos com freqüência se contradizem a respeito desse ponto. O próprio Shalamov, cuja descrição da barbaridade da vida no campo ultrapassa
todas as demais, a certa altura escreveu que: "Eu me recusei a procurar a tarefa de capataz, que proporcionava uma chance de permanecer vivo, pois a pior coisa num
campo era impor a própria vontade ou a de alguém sobre outra pessoa que era um condenado assim como você". Em outras palavras, Shalamov era uma exceção à própria
regra.
A maioria dos relatos também deixa claro que o Gulag não era um mundo de contornos definidos, onde a linha entre senhores e escravos estava claramente traçada, e
a única maneira de sobreviver era sendo cruel. Não apenas internos, trabalhadores livres e guardas pertenciam de fato a uma complexa rede social, mas essa rede estava
constantemente mudando, como vimos. Os prisioneiros podiam subir ou descer na hierarquia, e muitos o faziam. Podiam alterar seu destino não apenas pela colaboração
ou pelo desafio às autoridades mas também por meio de uma astuta manipulação, através de contatos e relacionamentos. A simples boa sorte ou o azar também determinavam
o curso de uma típica carreira no campo, que, se fosse longa, poderia muito bem ter períodos "felizes", em que o prisioneiro se estabelecia num bom emprego, comia
bem e trabalhava pouco, assim como períodos em que o mesmo prisioneiro caía no inferno do hospital, da sala mortuária e na sociedade dos dokhodyagi que se amontoavam
em volta da pilha do lixo, procurando restos de comida.
Na verdade, os métodos de sobrevivência eram próprios do sistema Na maior parte do tempo, a administração do campo não estava tentando matar prisioneiros, estava
apenas tentando alcançar altas metas impossíveis, definidas pelos planejadores centrais em Moscou. Como resultado, os guardas do campo estavam mais do que dispostos
a recompensar os prisioneiros que julgassem ser úteis para alcançar essa meta. Os prisioneiros, naturalmente, tiravam partido dessa disposição. Os dois grupos tinham
metas diferentes - os guardas queriam extrair mais ouro ou cortar mais madeira, e os prisioneiros queriam sobreviver - mas às vezes eles compartilhavam meios de
alcançar objetivos tão diferentes. Um punhado de estratégias de sobrevivência mostrava-se particularmente adequado tanto para prisioneiros como para guardas, e uma
lista delas é dada a seguir.
Tufta: fingir trabalhar
Fazer uma descrição precisa da tufta - uma palavra que pode ser traduzida, de modo bastante impreciso, como "enganar o patrão" - não é tarefa fácil. Primeiro, porque
tais práticas estavam tão arraigadas no sistema soviético que não é justo descrevê-las como se fossem algo exclusivo do Gulag. Tampouco eram exclusivas da URSS.
O provérbio da era comunista "Eles fingem que nos pagam, e nós fingimos que trabalhamos", podia ser ouvido na maioria das línguas do antigo Pacto de Varsóvia.
Mais apropriadamente, a tufta permeava todos os aspectos do trabalho - atribuições de trabalho, organização do trabalho, contabilidade do trabalho - e afetava todos
os membros da comunidade do campo, dos chefes do campo em Moscou, aos guardas de mais baixo escalão do campo, aos prisioneiros mais oprimidos. Isso vale desde os
primórdios do Gulag até o seu final. Uma das rimas mais repetidas pelos prisioneiros datava dos dias do Canal do Mar Branco:
Bez tufty i ammonala
Ne postroili by kanala.
Sem tufta e dinamite
Nunca teriam construído o canal.
Nos anos em que esse tópico passou a ser tema de discussão, houve também controvérsia sobre a questão de quanto os prisioneiros trabalhavam duro ou não, e de quanto
empenho eles punham ou não em evitar o trabalho. Desde que a publicação em 1962 do livro de Soljenitsin Um dia na vida de Ivan Denisovich abriu um debate mais ou
menos público sobre a questão dos campos, a grande comunidade de sobreviventes, polemistas e historiadores dos campos encontrou notáveis dificuldades para chegar
a um acordo unânime sobre a moralidade do trabalho nos campos. Porque muito da impactante novela de Soljenitsin era de fato dedicado às tentativas de seu herói de
evitar o trabalho. Durante o decorrer de um dia de Ivan Denisovich, ele consulta um médico, na esperança de obter uma licença por doença; fantasia que vai ficar
doente por algumas semanas; dá uma olhada no termômetro do campo, esperando que comprove estar frio demais para ir até o local de trabalho; fala com admiração de
líderes de brigada capazes de "fazer parecer que o trabalho tinha sido feito, fosse esse o caso ou não"; sente-se aliviado quando seu líder de brigada obtém uma
"boa nota pelo trabalho", apesar de que "metade do dia tinha passado e eles não haviam feito nada"; rouba lascas de madeira do local de trabalho para acender fogo
no alojamento; e rouba um pouco de mingau na hora do jantar. "Trabalho", pensa Ivan a certa altura, "é aquilo de que os cavalos morrem". Ele tenta evitá-lo.
Nos anos que se seguiram à publicação do livro, esse retrato de um típico zek era contestado por outros sobreviventes, tanto por razões ideológicas quanto pessoais.
Por um lado, aqueles que acreditavam no sistema soviético - e portanto acreditavam também que o "trabalho nos campos era valioso e necessário - achavam a "preguiça"
de Denisovich ofensiva. Muitas das descrições "alternativas", mais pró-soviéticas, da vida nos campos, publicadas na imprensa soviética oficial na esteira de Ivan
Denisovich, chegavam a se concentrar explicitamente na dedicação ao trabalho mostrada por aqueles que, apesar da injustiça de sua prisão, ainda acreditavam. O escritor
soviético (e informante a vida toda) Boris Dyakov descreveu um engenheiro empregado num projeto de construção de um Gulag perto de Perm. O engenheiro ficara tão
absorvido no trabalho, contou ao narrador de Dyakov, que esqueceu que era prisioneiro: "Por um tempo apreciei tanto meu trabalho que esqueci o que me havia tornado".
Tão consciencioso era o engenheiro na história de Dyakov que chegou a enviar secretamente uma carta a um jornal local, queixando-se da precária organização do transporte
no campo e dos sistemas de suprimento. Embora advertido pelo comandante do campo por essa indiscrição - nunca se ouvira falar que o nome de um prisioneiro aparecesse
no jornal - o engenheiro, como conta Dyakov, ficou satisfeito em ver que "depois do artigo, as coisas melhoraram um pouco".
A visão daqueles que comandavam os campos era ainda mais radical. Anonimamente, uma antiga administradora contou-me bastante irritada que todas as histórias sobre
internos em campos que viviam em más condições eram falsas. Aqueles que trabalhavam bem viviam extremamente bem, ela disse, bem melhor do que as pessoas em geral:
podiam até comprar leite condensado - grifo meu - coisa que as pessoas comuns não podiam. "Só aqueles que se recusavam a trabalhar é que viviam mal", ela me contou.
Tais pontos de vista em geral não eram expressados em público, mas houve algumas exceções. Anna Zakharova, esposa de um oficial da NKVD, cuja carta ao Isvestiya
circulou na imprensa underground russa na década de 1960, criticava dura-mente Soljenitsin. Zakharova escreveu que estava "enraivecida até o fundo da minha alma"
por Ivan Denisovich:
Podemos ver por que o herói dessa história, tendo tal atitude para com o povo soviético, não espera nada além de ir para a ala dos doentes para, de algum modo, escapar
de redimir sua culpa, o mal que fez à sua terra natal, por meio de trabalho duro... E por que exatamente deve uma pessoa tentar evitar o trabalho braçal e mostrar
escárnio por ele? Afinal, para nós o trabalho é a base do sistema soviético, e é só no trabalho que o homem se torna conhecedor de seus verdadeiros poderes.
Outras objeções, menos ideológicas, também vieram de zeks comuns.V K. Yasnui, prisioneiro durante cinco anos no início da década de 1940, escreve em seus relatos
que "Tentamos trabalhar honestamente, e não por medo de perder as rações, ou acabar na solitária... trabalho duro, e assim era o trabalho em nossa brigada, nos ajudava
a esquecer, ajudava a afastar pensamentos ansiosos". Nadezhda Ulyanovskaya, que foi presa junto com a mãe, escreveu que sua mãe trabalhava duro "a fim de provar
que judeus e a intelligentsia trabalhavam tão bem quanto os outros". ("Eu trabalhava porque era obrigada a isso", escreve ela a respeito de si mesma, no entanto.
"Receio que nesse ponto eu não esteja à altura das honras do povo judeu.")
Prisioneiros que trabalharam com entusiasmo em favor do regime soviético durante toda a vida também não mudaram rapidamente Aleksandr Borin, um preso político e
engenheiro de aviação, foi destinado a uma metalúrgica de um Gulag. Em seus relatos, ele descreve com orgulho as inovações técnicas que promoveu ali, a maior parte
concebida em seu tempo livre. Alla Shister, outra prisioneira política detida no final da década de 1930, contou-me numa entrevista que "Eu sempre trabalhei como
se fosse livre. Esse é meu traço de personalidade, não consigo trabalhar mal. Se é preciso cavar um buraco, eu vou continuar cavando até que ele esteja pronto".
Depois de dois anos em trabalhos gerais, Shister tornou-se líder de brigada, porque, diz ela, "Eles viram que eu trabalhava não como um prisioneiro trabalha, mas
com todas as minhas forças". Com essa capacidade, ela então fez todas as tentativas de inspirar seus subalternos, embora, admita, sem irritá-los com o amor pelo
Estado soviético. Eis como ela descreveu seu primeiro encontro com os homens que deviam trabalhar para ela:
Fui até o canteiro onde eles estavam cavando. Os guardas se ofereceram para me acompanhar, mas eu disse que não era preciso, e fui sozinha. Era meia-noite. Fui até
a equipe, e disse a eles "Preciso cumprir a cota, estão precisando de tijolos no front".
Eles disseram: "Alia Borisovna, não nos importamos com a cota para os tijolos, dê-nos nossa ração de pão".
Eu disse: "Vocês terão a ração, se cumprirem a cota".
Eles disseram: "A gente vai atirar você num buraco, enterrá-la e ninguém vai mais encontrá-la".
Fiquei lá em pé, quieta, e disse: "Vocês não vão me enterrar. Prometo a vocês que se hoje, lá pelo meio-dia, vocês cumprirem a cota, eu vou trazer-lhes um pouco
de tabaco". Tabaco ali valia mais do que ouro ou diamantes.
Como ela mesma conta, Shister havia simplesmente guardado as próprias rações de tabaco, já que não fumava, e de bom grado passou-as aos seus comandados.
Também havia, é claro, aqueles que percebiam as vantagens materiais que ganhariam se trabalhassem. Alguns prisioneiros simplesmente tentavam fazer o que se esperava
deles: cumprir a cota, conseguir o status de trabalhador de choque, receber melhores rações.
Vladimir Petrov chegou a um lagpunkt de Kolyma e imediatamente percebeu que os que ocupavam a "tenda de stakhanovista", que haviam trabalhado mais duro do que os
outros prisioneiros, possuíam todos os atributos que faltavam aos dokhodyagi:
Eles eram incomparavelmente mais limpos. Mesmo nas condições bastante severas de sua vida no campo, tinham conseguido lavar o rosto todos os dias, e quando não conseguiam
água usavam neve. Também se vestiam melhor... [e] pareciam mais inteiros. Não se amontoavam em cima dos fogões, mas sentavam em seus bancos fazendo alguma coisa
ou conversando sobre seus afazeres. Mesmo vista de fora, sua tenda parecia diferente.
Petrov pediu para se juntar à brigada deles, cujos membros recebiam um quilo de pão por dia. Uma vez admitido, não conseguiu agüentar o ritmo de trabalho. Foi excluído
da brigada, que não podia tolerar nenhuma fraqueza. Mas sua experiência não era atípica, como escreveu Herling:
O fascínio pela cota não era privilégio exclusivo dos homens livres que a haviam imposto, era também o instinto dominante entre os escravos que trabalhavam para
ela. Nas brigadas em que o trabalho era feito por equipes de homens trabalhando juntos, os capatazes mais conscienciosos e ardorosos eram os próprios prisioneiros,
pois ali a cota era definida coletivamente, dividindo-se o produto total pelo número de trabalhadores. Qualquer sentimento de amizade mútua era completamente abolido
em favor de uma corrida pelas porcentagens. Um prisioneiro não qualificado que se visse em uma equipe coordenada de prisioneiros experientes não podia esperar que
lhe demonstrassem alguma consideração; depois de uma pequena tentativa, era forçado a desistir e se transferir para uma equipe na qual ele por sua vez freqüentemente
tinha de supervisionar colegas mais fracos. Havia em tudo isso algo de inumano, quebrando sem misericórdia o único laço natural entre os prisioneiros - a solidariedade
diante de seus perseguidores.
Mas trabalhar duro às vezes surtia o efeito contrário. Lev Razgon descreveu lavradores que se matavam tentando superar a cota, ganhando para si uma "grande ração"
de um quilo e meio de pão: "Podia ser rústico e mal preparado, mas era pão de verdade. Para lavradores que haviam vivido em semi-inanição durante anos parecia uma
quantidade enorme, mesmo sem nenhum alimento cozido". Mas nem essa "enorme quantidade" de comida era suficiente para compensar a energia gasta no trabalho florestal.
O trabalhador florestal estava então condenado, Razgon escreve: "ele literalmente iria morrer de fome, mesmo comendo um quilo e meio de pão por dia". Variam Shalamov
também descreveu o "mito da grande ração", e Soljenitsin escreveu que "a grande ração é aquela que mata. Numa temporada carregando madeira, o mais forte dos lenhadores
acabaria nas últimas, sem esperança".
Mesmo assim, a grande maioria dos relatos (reforçados, em certo grau, por provas de arquivo) falava efetivamente em evitar o trabalho. Ainda que o motivo principal
não fosse em geral a mera preguiça, ou mesmo a vontade de "mostrar escárnio" pelo sistema soviético: a principal razão era a sobrevivência. Como haviam recebido
agasalhos precários e comida insuficiente, e ordens para trabalhar em condições climáticas extremas com maquinaria quebrada, muitos perceberam que evitar o trabalho
poderia salvar sua vida.
O relato não publicado de Zinaida Usova, uma das esposas presas em 1938, ilustra magnificamente de que modo os prisioneiros chegavam a essa conclusão. Usova foi
primeiro destinada a Temlag, um campo que continha principalmente mulheres como ela, esposas de destacados membros do partido e de figurões do Exército que haviam
sido mortos. Com um chefe de campo relativamente condescendente e uma escala de trabalho razoável, todo mundo em Temlag trabalhava com entusiasmo. Não só a maioria
era ainda de "cidadãos soviéticos leais", convencidos de que sua detenção havia sido parte de um gigantesco equívoco, mas eles também acreditavam que trabalhando
duro seriam libertados mais cedo. A própria Usova "dormia e acordava pensando em trabalho, elaborando meus projetos. Um deles chegou a ser colocado em produção".
Mais tarde, porém, Usova e um grupo de outras esposas foram para outro campo, que continha também criminosos. Ali ela foi parar numa fábrica de móveis. Seu novo
campo tinha cotas mais altas, mais rigorosas - as cotas "irracionais" citadas por tantos outros prisioneiros. Esse sistema, escreveu Usova, "tornava as pessoas escravas,
com psicologia de escravos". Somente aqueles que atingiam a cota integralmente recebiam a ração de pão completa de 700 gramas. Os que não conseguiam, ou que simplesmente
estavam incapacitados de trabalhar, ganhavam 300, o que mal dava para sobreviver.
Como compensação, os prisioneiros em seu novo campo tentavam o melhor que podiam "enganar os chefes, driblar o trabalho, fazer o mínimo possível". Com seu relativo
entusiasmo pelo trabalho, os prisioneiros recém-chegados de Temlag sentiam-se como párias. "Do ponto de vista dos antigos habitantes, éramos tolos, ou uma espécie
de fura-greves. Todos nos odiavam de imediato". Logo, é claro, as mulheres de Temlag adotaram as técnicas para evitar trabalho já dominadas por todos os demais.
Assim, o próprio sistema realmente criava tufta, e não o contrário.
Às vezes, os prisioneiros concebiam métodos, próprios de tufta. Uma mulher polonesa trabalhava numa fábrica de processamento de peixe em Kolyma onde as únicas pessoas
que alcançavam as cotas impossíveis eram aquelas que fraudavam. Os stakhanovistas eram simplesmente os "fraudadores mais hábeis": em vez de embalar todos os peixes,
colocavam alguns pedaços num pote e jogavam fora o resto, fazendo isso "de modo tão hábil que o capataz nunca percebia". Enquanto ajudava a construir um banheiro
coletivo no campo, Valerii Frid foi apresentado a outro truque: como camuflar rachaduras na construção com musgo em vez de preenchê-las com concreto. Ele só lamentava
uma coisa nesse recurso para poupar trabalho: "E se um dia eu tivesse que tomar banho nesse banheiro? Depois de um tempo, o musgo seca, e então o vento frio sopra
pelas rachaduras".
Evgeniya Ginzburg também descreveu como ela e sua então parceira lenhadora, Galya, finalmente arrumaram um jeito de atingir sua cota impossível de derrubada. Percebendo
que uma de suas colegas sempre conseguia alcançar a cota, "apesar de trabalhar sozinha com um serrote de uma só empunhadura", elas lhe perguntaram como ela fazia:
Quando a gente a pressionou mais, ela olhou furtivamente de lado e então contou:
"Essa floresta está cheia de pilhas de madeira cortada por turmas de trabalho anteriores. Nunca ninguém contou quantas são".
"Ê, mas qualquer um pode ver que elas não foram cortadas recentemente..."
"A única maneira pela qual se consegue ver isso é pela cor mais escura da seção cortada. Se você corta uma pequena seção de cada ponta, parece que acabou de ser
cortada. Então a gente as empilha em outro lugar, e já tem a 'cota' ".
Esse truque, que a gente batizou de "refrescar os sanduíches", salvou nossas vidas durante aquele período... Posso acrescentar que não sentimos o menor remorso...
Thomas Sgovio também passou um tempo numa brigada de corte de madeira em Kolyma que, simplesmente, nunca fez absolutamente nada:
Durante a primeira parte de janeiro, meu parceiro Levin e eu não derrubamos uma única árvore. Nem qualquer dos outros na brigada de derrubada. Havia muitas pilhas
de toras na floresta. Nós escolhíamos uma ou duas, limpávamos a neve de cima e sentávamos à beira do fogo. Nem era preciso limpar a neve, porque não houve uma única
vez durante o primeiro mês em que um brigadeiro, capataz ou supervisor viesse checar a produção de nosso trabalho.
Outros usavam contatos ou relações para achar um jeito de lidar com incumbências de trabalho impossíveis. Um prisioneiro de Kargopollag pagou outro - o pagamento
assumiu a forma de um naco de toucinho - para que lhe ensinasse a cortar árvores de maneira mais eficaz, para poder assim alcançar a cota, e até descansar às tardes.
Outro prisioneiro com a incumbência de garimpar ouro em Kolyma, pagou um suborno para receber uma tarefa mais fácil, ficando numa pilha de escória em vez de em pé
na água.
Com maior freqüência, a tufta era organizada no nível das brigadas de trabalho, pois os brigadeiros eram capazes de adulterar o número de prisioneiros que haviam
trabalhado. Um ex-zek descreveu como seu brigadeiro lhe permitiu declarar que havia completado 60% da cota, quando na verdade ele não era capaz de fazer praticamente
nada. Já outro prisioneiro relatou como seu brigadeiro negociou com as autoridades do campo para que as cotas de sua brigada fossem menores, já que todos os seus
trabalhadores estavam morrendo. Havia ainda outros brigadeiros que recebiam subornos, como Yuri Zorin, ele próprio um brigadeiro, admitiu: "Ali, nos campos, existem
leis internas que podem não ser compreendidas por aqueles que vivem fora da zona", foi como ele diplomaticamente abordou o assunto. Leonid Trus lembrou que seus
brigadeiros de Norilsk simplesmente "decidiam qual de seus trabalhadores merecia melhor comida e paga que os outros", sem dar a mínima atenção para o que haviam
conseguido efetivamente. Suborno e lealdades de clã determinavam a "produção" de um prisioneiro.
Do ponto de vista do zek, os melhores brigadeiros eram aqueles capazes de organizar tufta em grande escala. Trabalhando num canteiro nos Urais, ao norte, no final
da década de 1940, Lev Finkelstein foi parar numa brigada cujo líder idealizara um sistema altamente complexo de fraude. De manhã, a equipe descia para o cânion.
Os guardas ficavam em cima, na beirada, onde passavam o dia sentados em volta de fogueiras para se aquecer. Ivan, o brigadeiro líder, organizava então a tufta:
A gente sabia exatamente que partes do fundo do cânion eram visíveis lá de cima, e esse era nosso truque... nas partes visíveis do fundo, a gente ficava cortando
com força o muro de pedra. A gente estava trabalhando e havia muito barulho - os guardas podiam tanto ver como ouvir. Então, Ivan andava ao longo da fila... e dizia,
"Um para a esquerda" - e cada um de nós dava um passo à esquerda. Os guardas nunca perceberam.
Então a gente dava um passo à esquerda, outro, mais um, até que o último passasse para a zona invisível - a gente sabia onde ela ficava, havia um risco de giz no
chão. Assim que entrávamos na zona invisível, relaxávamos, sentávamos no chão, pegávamos um machado e batíamos no chão perto da gente, de maneira relaxada, só para
produzir o barulho. Então alguém mais se juntava, e outro, e assim por diante. Então Ivan dizia - "Você: para a direita!" - e o homem ia e se juntava ao ciclo de
novo. Nenhum de nós nunca trabalhou nem meio expediente.
Em outro ponto em sua carreira no campo, Finkelstein também trabalhou cavando um canal. Ali, a tufta era diferente, mas não menos sofisticada: "O mais importante
era mostrar que a turma havia preenchido sua cota". Pedia-se aos trabalhadores que trabalhassem, mas deixando intacto "um pequeno poste, uma pilha, mostrando que
altura a gente tinha cavado naquele turno, que profundidade a gente tinha cavado". Embora as cotas fossem muito pesadas, "havia artistas, verdadeiros artistas, que
conseguiam encompridar esse poste, a altura dele. É inacreditável, ele havia sido cortado da terra, portanto seria imediatamente visível se alguém falseasse sua
altura, e no entanto esta era falseada da maneira mais artística. Então, é claro, a turma toda conseguia o jantar stakhanovista".
Tais talentos especiais nem sempre eram necessários. Em certa ocasião, Leonid Trus foi incumbido de descarregar vagões de bens: "Nós simplesmente anotávamos que
havíamos carregado os bens mais longe do que fora na verdade, digamos trezentos metros, em vez de dez metros". Por isso, eles recebiam melhores rações de comida.
"A tufta era constante", disse ele a respeito de Norilsk; "sem ela, não teria havido absolutamente nada."
A tufta podia também ser organizada em escalões mais altos da hierarquia administrativa, por meio de cuidadosa negociação entre brigadeiros e definidores de cotas,
os funcionários do campo cuja função era determinar quanto uma brigada devia ou não ser capaz de conseguir num dia. Definidores de normas, assim como os brigadeiros,
eram muito inclinados a favoritismo e suborno - assim como a caprichos. Em Kolyma, no fim da década de 1930, Olga Adamova-Sliozberg viu-se designada brigadeira,
chefe de uma brigada de mulheres cavadoras de trincheiras composta em sua maioria por prisioneiras políticas, todas enfraquecidas por longas sentenças na prisão.
Quando, após três dias de trabalho, elas haviam completado apenas 3% da cota, ela foi até o definidor de cotas e implorou uma incumbência mais fácil. Depois de ouvir
que a fraca brigada era composta de antigos membros do partido, seu rosto ficou sombrio.
"Ah, quer dizer que vocês são antigos membros do partido? Bom, se fossem prostitutas, eu ficaria satisfeita de deixá-las lavando janelas e fazê-las completar três
vezes a cota. Quando membros do partido em 1929 decidiram me punir por ser uma kulak e me expulsaram, eu e meus seis filhos, de nossa casa, eu lhes disse: 'O que
foi que as crianças fizeram afinal?' E me responderam 'E a lei soviética'. Então, aqui estão vocês agora, podem se aferrar à sua lei soviética e cavar nove metros
cúbicos de barro por dia".
Quem definia as cotas também estava ciente da necessidade de preservar a força de trabalho em certas épocas - quando, por exemplo, o campo tinha sido criticado por
seu alto índice de mortalidade, ou quando o campo era um daqueles do extremo norte que só podiam conseguir trabalhadores de reposição uma vez a cada estação. Nessas
circunstâncias, eles podiam de fato baixar a cota, ou fazer vista grossa quando ela não era preenchida. Essa prática era conhecida no campo como "esticar a cota"
e era amplamente disseminada. Um prisioneiro trabalhou numa mina que exigia que os prisioneiros cavassem 5,5 toneladas de carvão por dia, uma tarefa impossível.
Sensato, o engenheiro-chefe da mina - um trabalhador livre - tentou descobrir quantos prisioneiros podiam cumprir a cota diária, e simplesmente disse a seus definidores
de cotas que se baseassem nisso para suas decisões, fazendo um rodízio de trabalhadores entre todos os prisioneiros, de modo que todos recebessem mais ou menos a
mesma quantidade de comida.
O suborno também funcionava hierarquia acima, às vezes através de uma longa cadeia de pessoas. Aleksandr Klein estava num campo no final da década de 1940, numa
época em que foram introduzidos pequenos salários para estimular zeks a trabalhar mais:
Depois de receber o dinheiro que havia ganhado (não era muito) o trabalhador deu uma propina ao brigadeiro. Isso era obrigatório: o brigadeiro então linha de dar
propina ao capataz e ao definidor de cotas, que determinavam que cota havia sido preenchida pela brigada... além dessas, o capataz e os brigadeiros tinham que dar
propinas ao naryadshchick, o atribuidor de tarefas. Os cozinheiros também pagavam propinas ao cozinheiro-chefe, e os trabalhadores nas casas de banhos, ao diretor
da casa de banhos.
Em média, escreveu Klein, ele perdia metade de seu "salário". As conseqüências para aqueles que não pagassem podiam ser terríveis. Os internos que não tinham como
pagar eram automaticamente rebaixados por terem conseguido uma porcentagem mais baixa da cola, e portanto recebiam menos comida. Brigadeiros que não queriam pagar
sofriam coisas piores. Um deles, escreveu Klein, foi morto na sua (-ama. Sua cabeça foi esmagada com uma pedra - e os que estavam dormindo em volta dele nem acordaram.
A tufta também afetou a manutenção de estatísticas em todos os níveis da vida do campo. Os comandantes do campo e os contadores do campo com freqüência alteravam
números para se beneficiarem, conforme as dúzias de comunicações de furto mantidas nos arquivos da inspetoria. Qualquer um que tivesse uma conexão, mesmo que remota,
com algum campo roubava comida, dinheiro, o que houvesse para roubar: em 1942, a irmã do antigo chefe da divisão de ferrovias dos campos em Dzhezkazgan, Casaquistão,
foi acusada de ter "ilegalmente removido alguns produtos alimentícios", e estar envolvida em especulação. Num lagpunkt em 1941, o comandante do campo e o contador
chefe "usaram seu status profissional" para criar uma falsa conta, permitindo-lhes drenar os fundos do campo. O comandante roubou 25 mil rublos, o contador, 18 mil,
uma fortuna em termos soviéticos. Mas as quantias não eram sempre altas assim: um grosso processo contra Siblag, contendo relatórios da promotoria de 1942 a 1944,
inclui, entre outras coisas, uma longa série de cartas contando uma forte discussão sobre um empregado do campo que supostamente teria roubado duas travessas de
ferro, uma chaleira esmaltada, um cobertor, um colchão, dois lençóis, dois travesseiros e duas fronhas.
Do roubo, não havia um salto moral tão grande assim para contar lorotas a respeito das estatísticas de produção. Se a tufta começava no nível da brigada, e era desenvolvida
no nível do lagpunkt, no período em que os contadores nos campos maiores estavam calculando estatísticas totais de produção os números já estavam muito distantes
da realidade e davam, como veremos, idéias muito enganadoras sobre a real produtividade dos campos, que era provavelmente muitíssimo baixa.
Na verdade, é quase impossível saber como encarar os dados de produção do Gulag, tal o grau de mentira e fraude. Por essa razão, fico sempre desorientada diante
dos relatórios anuais cuidadosamente detalhados do Gulag, como o produzido em março de 1940. Com mais de 124 páginas, esse impressionante documento traz os dados
de produção de dúzias de campos, listando cuidadosamente cada um por especialidade: os campos de madeira, os campos fabris, as minas, as fazendas coletivas. O relatório
é acompanhado de muitos gráficos e cálculos, e várias espécies diferentes de dados. Como conclusão, o autor do relatório declarou confiante que o valor total da
produção do Gulag em 1940 foi de 2.659.500 milhões de rublos - um valor que deve, nessas circunstâncias, ser considerado completamente sem significado.
Pridurki: cooperação e colaboração
A tufta não era o único método que os prisioneiros usavam para transpor a distância entre as cotas impossíveis que deviam cumprir e as impossíveis rações de comida
que recebiam. Também não era a única ferramenta usada pelas autoridades para cumprir suas próprias metas de produção impossíveis. Havia outras maneiras de convencer
os prisioneiros a cooperar, como Isaak Filshtinskii brilhante e memoravelmente descreve no primeiro capítulo de suas memórias, Marchamos sob escolta. Filshtinskii
começa sua história num de seus primeiros dias em Kargopollag, o campo de corte de madeira e construção que fica a norte de Arkhangelsk. Recém-chegado, encontrou
outro novato, uma jovem mulher. Ela fazia parte de um contingente feminino que havia sido temporariamente agregado à sua brigada. Percebendo sua "aparência tímida
e assustada" e suas roupas de campo esfarrapadas, ele se deslocou para perto dela na fila de prisioneiros. Sim, disse ela, respondendo à sua pergunta, "cheguei ontem
numa transferência da prisão". Começaram a conversar. Ela tinha o que Filshtinskii descreveu como "para aquela época, uma história pessoal bastante banal". Era artista,
tinha 26 anos de idade. Era casada e tinha um filho de três anos. Tinha sido presa porque "dissera isso e aquilo para uma artista amiga, e a amiga a delatara". Como
o pai dela também havia sido preso em 1937, ela foi logo presa por promover propaganda anti-soviética.
Enquanto falavam, a mulher, ainda espiando em volta com olhar assustado, segurou no braço de Filshtinskii. Tais contatos eram proibidos, mas felizmente os guardas
não perceberam. Quando chegaram ao local de trabalho, os homens e as mulheres foram divididos, mas na volta para casa a jovem artista encontrou Filshtinskii de novo.
Durante a semana e meia seguinte, eles caminharam para lá e para cá pela floresta juntos, ela contando-lhe de suas saudades de casa, do marido que a abandonara,
do filho que talvez ela não visse mais. Então a brigada de mulheres foi separada da brigada dos homens em definitivo, e Filshtinskii perdeu contato com sua amiga.
Passaram-se três anos. Era um dia quente - coisa rara no extremo norte - quando Filshtinskii viu de novo a mesma mulher. Desta vez ela estava vestindo "uma jaqueta
nova, bem ajustada a seu tamanho e a sua figura". Em vez do boné esfarrapado de prisioneiro, usava uma boina. Em vez das botas gastas de prisioneiro, usava sapatos.
Seu rosto estava mais redondo, sua aparência era mais vulgar. Quando abriu a boca, falou na pior gíria possível, e seu linguajar "demonstrava longos e duradouros
laços com o mundo do crime daquele campo". Ao ver Filshtinskii, uma expressão de horror tomou conta de seu rosto. Ela virou-se e foi embora, "quase correndo".
Quando Filshtinskii a encontrou pela terceira e última vez, a mulher estava vestida no que lhe pareceu ser "a última moda da cidade". Estava sentada atrás de uma
escrivaninha de chefe, e já não era mais uma prisioneira. Estava agora casada com o major L, um administrador de campo famoso por sua crueldade. Ela se dirigiu a
Filshtinskii rudemente, e não estava mais constrangida de falar com ele. A metamorfose tinha sido completa: ela passara de prisioneira a colaborado-ra, e depois
de colaboradora a chefe de campo. Havia primeiro adotado a gíria do mundo do crime, depois sua vestimenta e seus hábitos. Seguindo esse caminho, tinha finalmente
conseguido o status privilegiado das autoridades do campo. Filshtinskii sentiu que "não tinha mais nada a lhe dizer" - embora, ao deixar a sala, ele tenha se voltado
de novo para ela. Seus olhos se encontraram por um instante, e ele achou ter percebido nos olhos dela um lampejo de "ilimitada melancolia" e um comecinho de choro.
O destino desta conhecida de Filshtinskii pode ser reconhecido por aqueles leitores familiarizados com os sistemas de outros campos. Ao descrever os campos nazistas,
o sociólogo alemão Wolfgang Sofsky escreveu que "o poder absoluto c uma estrutura, não uma posse". Com isso, queria dizer que o poder nos campos alemães não era
uma simples questão de uma pessoa controlar a vida de outras. Ao contrário, "transformando um pequeno número de vítimas em cúmplices, o regime apagou a distinção
entre pessoal e internos". Embora a brutalidade que predominava no Gulag fosse diferente, em sua organização e em seus eleitos, os campos nazistas e soviéticos
eram semelhantes nesse ponto: o regime soviético também fez o mesmo uso dos prisioneiros, tentando alguns a colaborarem com o sistema repressivo, elevando-os em
relação aos outros e garantindo-lhes privilégios que lhes permitiram, por sua vez, ajudar as autoridades a exercerem seu poder. Não é por acaso que Filshtinskii
concentrou-se, em sua história, no guarda-roupa cada vez melhor de sua conhecida: nos campos, onde tudo estava em crônica escassez, pequenas melhoras no vestir ou
na comida ou nas condições de vida eram suficientes para persuadir os prisioneiros a cooperar, a lutar para melhorar. Esses prisioneiros que eram bem-sucedidos eram
chamados depridurki, ou "de confiança". E depois que obtinham esse status, sua vida no campo melhorava numa miríade de pequenas maneiras.
Soljenitsin, que retoma várias vezes a questão dos presos de confiança, descreve sua obsessão por pequenos privilégios e favores em O Arquipélago Gulag:
Por causa do habitual e mentalmente estreito apego da espécie humana à casta, logo se tornou inconveniente para os presos de confiança dormirem no mesmo alojamento
como internos comuns, nos mesmos beliches, ou mesmo, na verdade, em qualquer beliche que fosse, ou qualquer lugar exceto uma cama, ou comer na mesma mesa, despir-se
no mesmo banheiro, ou vestir a mesma roupa de baixo que os internos haviam suado e deixado puída...
Embora reconhecendo que "todas as classificações neste mundo careciam de limites precisos", Soljenitsin fez o melhor possível para descrever a hierarquia dos presos
de confiança. No nível mais inferior, explica ele, estavam os "trabalhadores de confiança": os presos engenheiros, projetistas, mecânicos e geólogos. Ranqueados
logo acima deles vinham os prisioneiros capatazes, planejadores, definidores de cotas, superintendentes de construção, técnicos. Ambos esses grupos tinham de fazer
fila e ser contados de manhã, e marchavam para o trabalho em comboio. Por outro lado, não faziam trabalho braçal e portanto não estavam "profundamente exaustos"
no final do dia; isso os tornava mais privilegiados do que os prisioneiros em trabalhos gerais. Os "presos mistos" eram ainda mais privilegiados. Eram prisioneiros
que nunca deixavam a zona durante o dia. Segundo Soljenitsin:
Um trabalhador nas oficinas do campo tinha uma vida muito melhor e mais fácil do que o interno em trabalhos gerais: ele não tinha de sair para lazer fila, e isso
significava que ele podia levantar e tomar o café mais tarde; não unha de marchar em comboio para o local de trabalho e na volta; havia menos rigor, menos frio,
menos energia gasta; além disso, seu expediente terminava mais cedo; e seu trabalho ou era num local aquecido ou num local em que o aquecimento estava à mão... "Alfaiate"
num campo soa como e quer dizer algo como "Professor assistente" aqui fora na liberdade.
Na hierarquia dos presos mistos, os de nível mais baixo na verdade faziam trabalho braçal: atendentes da casa de banhos, trabalhadores na lavanderia, lavadores de
pratos, foguistas e ordenanças, assim como aqueles que trabalhavam nas oficinas do campo, consertando roupas, sapatos e maquinaria. Num nível acima desses trabalhadores
em áreas fechadas estavam os "genuínos" trabalhadores mistos, que não faziam um trabalho braçal qualquer: os cozinheiros, cortadores de pão, funcionários, médicos,
enfermeiras, médicos assistentes, barbeiros, ordenanças veteranos, atribuidores de tarefas, contadores. Em alguns campos, havia até prisioneiros empregados como
provadores de comida oficiais. Os deste último grupo, escreve Soljenitsin, eram "não apenas bem alimentados, vestiam boas roupas, estavam livres de levantar peso
e de problemas nas costas, como tinham grande poder sobre o que era mais necessário a um ser humano, e conseqüentemente tinham poder sobre as pessoas". Esses eram
os presos de confiança que tinham o poder de decidir que tipo de trabalho os presos comuns iriam fazer, quanta comida tinham de receber, e se deviam ter tratamento
médico ou não - em resumo, se iriam viver ou morrer.
Diferentemente dos presos privilegiados nos campos nazistas, os prisioneiros de confiança dos campos soviéticos não precisavam pertencer a uma categoria racial particular.
Em tese, qualquer um podia ascender ao status de preso de confiança - do mesmo modo que qualquer um podia se tornar um guarda de prisão - e havia muita flutuação
entre os dois grupos. Embora em princípio prisioneiros comuns pudessem se tornar prisioneiros de confiança, e em princípio os prisioneiros de confiança pudessem
ser rebaixados ao nível de prisioneiros comuns, havia regras complexas governando esse processo.
Essas regras diferiam muito de campo para campo e de época para época, embora parecesse de fato haver algumas poucas convenções que se mantinham mais ou menos constantes
ao longo do tempo. Mais importante, era mais fácil tornar-se um prisioneiro de confiança se o prisioneiro fosse classificado como um prisioneiro criminoso "socialmente
próximo", e não como um preso político "socialmente perigoso". Como a intrincada hierarquia moral do sistema soviético de campos decretou que os "socialmente próximos"
- não só os criminosos profissionais, mas os ladrões comuns, vigaristas, assassinos e estupradores - eram mais aptos para serem reabilitados e se tornarem bons cidadãos
soviéticos, eles automaticamente estavam mais próximos de receber o status de prisioneiro de confiança. E num certo sentido, os ladrões, que não tinham receio de
usar brutalidade, eram os prisioneiros de confiança ideais. "Por toda parte e a toda hora", escreveu um preso político acidamente, "esses presos desfrutavam de uma
confiança quase ilimitada da administração do campo e da prisão, e eram designados para aquelas ocupações leves, como trabalhar em escritórios, lojas da prisão,
cantinas, salas de banho, barbearias e assim por diante". Como disse, este era particularmente o caso durante o final da década de 1930 e ao longo do período da
guerra, os anos em que gangues criminosas reinaram soberanas nos campos soviéticos. Mesmo mais tarde - Filshtinskii escrevia sobre o final dos anos 1940 - a "cultura"
dos prisioneiros de confiança era difícil de diferenciar da cultura dos criminosos profissionais.
Mas os criminosos prisioneiros de confiança também apresentavam um problema para as autoridades do campo. Eles não eram "inimigos" - mas tampouco eram instruídos.
Em muitos casos não eram sequer alfabetizados, e não queriam ser: mesmo quando os campos montavam classes de alfabetização, eles costumavam não se dar ao trabalho
de freqüentá-las. Isso deixou os chefes do campo sem outra alternativa, escreveu Lev Razgon, a não ser empregar os presos políticos: "O plano exerceu por si só
uma pressão implacável que não admitia desculpas. Sob a sua influência mesmo os mais zelosos chefes de campo que expressavam o maior ódio dos prisioneiros contra-revolucionários
eram obrigados a colocar prisioneiros políticos para trabalhar".
De fato, a partir de 1939, quando Beria substituiu Yezhov - e simultaneamente iniciou uma tentativa de tornar o Gulag lucrativo - as regras nunca eram claras de
um jeito ou de outro. As instruções de Beria em agosto de 1939, embora explicitamente proibissem os comandantes de campo de usar presos políticos em qualquer posto
administrativo, na verdade, abriam exceções. Médicos qualificados deviam ser usados em sua capacitação profissional e, sob circunstâncias especiais, também os prisioneiros
sentenciados por alguns dos crimes "menores" do Artigo 58 - Seções 7, 10, 12 e 14, que incluíam a "agitação anti-soviética" (contar piadas anti-regime, por exemplo)
e a "propaganda anti-soviética". Os sentenciados por "terrorismo" ou "traição à pátria", por outro lado, não deviam em tese ser empregados em nenhuma função exceto
a de trabalhadores braçais. Quando a guerra eclodiu, até essa instrução foi revertida. Stalin e Molotov enviaram um circular especial autorizando a Dalstroi, "em
vista da situação excepcional" a "fechar acordos individuais por um determinado período de tempo com engenheiros, técnicos e trabalhadores administrativos que haviam
sido mandados para trabalhar em Kolyma".
Mesmo assim, os administradores de campo que tivessem presos políticos demais em tarefas de alto nível corriam o risco de ser repreendidos, e um grau de ambivalência
sempre perdurou. De acordo tanto com Soljenitsin como com Razgon, acontecia às vezes portanto de prisioneiros políticos receberem "bons" empregos em áreas fechadas,
como os de contador ou guarda-livros - mas apenas temporariamente. Uma vez a cada ano, quando as equipes de inspeção de Moscou estavam sendo aguardadas, eles eram
demitidos de novo. Razgon desenvolveu uma teoria sobre esse procedimento:
Um bom chefe de campo esperava a comissão chegar, deixava que fizesse o trabalho dela, e removia quem tivesse de ser removido. Não era um processo que demandasse
muito tempo e qualquer um que não tivesse sido removido iria permanecer por longo tempo - por um ano, até o mês de dezembro seguinte, ou no mínimo por meio ano.
Um chefe de campo menos capaz, ou mais colo, removia tais pessoas antecipadamente de modo a poder relatar que estava tudo em ordem. Os piores chefes de campo, aqueles
que tinham menos experiência, conscienciosamente cumpriam as ordens de seus superiores e não permitiam que pessoas condenadas pelo Artigo 58 trabalhassem com outro
instrumento a não ser a picareta e o carrinho de mão, o serrote e o machado. Esses chefes de campo eram os menos bem-sucedidos. Eram rapidamente demitidos.
Na prática, as regras simplesmente eram insensatas. Como prisioneiro político em Kargopollag, Filshtinskii estava estritamente proibido de freqüentar um curso de
tecnologia florestal para prisioneiros. No entanto, tinha permissão para ler os livros do curso, e depois de passar no exame, estudando por conta própria, podia
também trabalhar como especialista em florestamento. Enquanto isso, Y K. Yasnyi, também prisioneiro político no final da década de 1940, trabalhava como engenheiro
em Vorkuta sem que isso causasse qualquer controvérsia. Nos anos pós-guerra, à medida que os grupos nacionais mais fortes começaram a causar impacto no campo, a
soberania dos criminosos passou a ser com freqüência suplantada por aquela dos prisioneiros mais bem organizados, geralmente ucranianos e baltos. Os que estavam
nos melhores postos - o capataz e os supervisores - podiam cuidar e de fato cuidavam de si mesmos, e distribuíam outros cargos bons para prisioneiros políticos que
fossem seus conterrâneos.
Mas em nenhum momento os prisioneiros tiveram poder total de distribuir cargos de confiança. A administração do campo dava a última palavra a respeito de quem iria
se tornar prisioneiro de confiança, e a maioria dos comandantes do campo inclinava-se a dar os trabalhos de confiança mais amenos àqueles que se dispunham a colaborar
mais abertamente - em outras palavras, a delatar. Aliás, é difícil saber quantos informantes o sistema empregava. Embora o Estado russo tenha disponibilizado o resto
dos arquivos da administração do Gulag, foram mantidos inacessíveis os documentos sobre a "Terceira Divisão", a divisão do campo responsável pelos informantes. O
historiador russo Viktor Berdinskikh, em seu livro sobre Vyatlag, cita alguns números sem nomear a fonte: "Na década de 1920, a liderança da OGPU se propôs a tarefa
de ter não menos do que 25% de informantes entre os prisioneiros do campo. Nas décadas de 1930 e 40, esse número planejado foi baixado para 10%". Mas Berdinskikh
também concorda que uma aferição real dos números é "complicada" sem um melhor acesso aos arquivos.
Outro aspecto é que não há muitos memorialistas que admitam abertamente terem sido informantes, embora alguns admitam terem sido recrutados. Claramente, prisioneiros
que atuaram como informantes na prisão (ou mesmo antes de sua detenção) chegavam ao campo com uma notificação de sua disposição para cooperar já em seus prontuários.
Outros, ao que parece, eram abordados logo após sua chegada ao campo, quando ainda estavam extremamente desorientados e com medo. Em seu segundo dia no campo, Lèonid
Trus foi levado até o comandante - conhecido na gíria do campo como o kum, o recrutador de informantes -, que lhe pediu para cooperar. Sem entender de fato o que
lhe estava sendo pedido, ele recusou. Isso, ele acha, foi a razão pela qual foi inicialmente incumbido de um trabalho braçal difícil, uma tarefa de baixo status
segundo os padrões do campo. Berdinskikh também cita a partir de suas próprias entrevistas e correspondência com antigos prisioneiros:
No primeiro dia na zona, os recém-chegados eram chamados diante do kum. Eu também fui chamado para me apresentar ao kum. Lisonjeiro, ardiloso, adulador, ele aproveitou
o fato de o acidente de carro pelo qual fui sentenciado (dez anos no campo, mais três anos sem direitos legais plenos) não ser vergonhoso (não era roubo, assassinato
ou algo semelhante) e propôs que eu fosse informante - que virasse um delator. Eu educadamente recusei e não assinei a proposta do kum.
Embora o kum o xingasse, esse prisioneiro não foi mandado para as celas de castigo. Ao voltar para seu alojamento, viu que ninguém queria chegar perto dele: sabendo
que tinham lhe proposto que fosse delator, vendo que não tinha apanhado nem sido punido, os outros prisioneiros passaram a supor que ele havia aceitado.
Talvez a mais famosa exceção à quase universal recusa em admitir ter sido informante seja, de novo, Alexander Soljenitsin, que descreve exaustivamente seu flerte
com as autoridades do campo. Ele data seu primeiro momento de fraqueza nos primeiros dias no campo, quando ainda lutava para se acostumar à sua abrupta perda de
status. Quando convidado a falar com o comandante, foi introduzido numa "pequena e bem mobiliada sala" onde um rádio tocava música clássica. Depois de educadamente
perguntar-lhe se estava confortável e bem ajustado à vida do campo, o comandante perguntou-lhe: "Você ainda é uma pessoa soviética?" Depois de hesitar, Soljenitsin
concordou que era.
Mas embora confessar ser "soviético" fosse equivalente a confessar que desejava colaborar, Soljenitsin inicialmente declinou o convite para informar. Foi então que
o comandante mudou de tática. Ele desligou a música e começou a falar com Soljenitsin sobre os criminosos do campo, perguntando como ele se sentiria se sua mulher
em Moscou fosse atacada por algum que tivesse conseguido fugir. Finalmente, Soljenitsin concordou que se ouvisse algum deles planejando uma fuga, ele iria contar.
Ele assinou uma petição, prometendo relatar quaisquer notícias de fuga às autoridades, e escolheu um pseudônimo conspiracional: Vetrov. "Essas seis letras", escreve
ele, "estão gravadas em vergonhosos sulcos na minha memória."
Por sua própria iniciativa, Soljenitsin nunca chegou a delatar. Quando preso de novo em 1956, ele diz que se recusou a assinar qualquer coisa. Mesmo assim, sua promessa
inicial foi suficiente para mantê-lo, enquanto esteve no campo, em um dos postos de confiança, para que morasse nos quarteirões especiais para prisioneiros de confiança,
para que pudesse se vestir e se alimentar ligeiramente melhor do que os outros presos. Essa experiência "me encheu de vergonha", escreveu ele - e sem dúvida provocou
seu desdém por todos os prisioneiros de confiança.
Na época de sua publicação, a descrição que Soljenitsin fez dos prisioneiros de confiança do campo era controvertida - e ainda é. Como sua descrição dos hábitos
de trabalho dos internos, ele também acendeu um debate no mundo dos sobreviventes dos campos e dos historiadores, que prossegue até hoje. Todos os memorialistas
clássicos e mais amplamente lidos foram prisioneiros de confiança num momento ou noutro: Evgeniya Ginzburg, Lev Razgon, Variam Shalamov, Soljenitsin. Pode muito
bem ser, como alguns afirmam, que a maior parte de todos os presos que sobreviveram a longas sentenças tenham sido prisioneiros de confiança em algum ponto de sua
trajetória no campo. Uma vez encontrei um sobrevivente que me contou sobre uma reunião de velhos amigos de um campo, da qual ele participou. O grupo dedicava-se
a reminiscências, e riam de velhas histórias do campo, quando um deles olhou em volta da sala e compreendeu o que era que os mantinha juntos, o que tornava possível
para eles rir do passado em vez de chorar: "Todos nós havíamos sido pridurki".
Não há dúvida de que muitas pessoas sobreviveram porque foram capazes de conseguir postos de confiança em locais fechados, escapando assim do horror do trabalho
geral. Mas será que isso sempre levou a uma colaboração ativa com o regime do campo? Soljenitsin sentia que sim. Mesmo aqueles prisioneiros de confiança que não
eram informantes podiam, ele alegou, ainda ser descritos como colaboradores. "Que posição de prisioneiro de confiança", pergunta ele, "não envolvia de fato dar crédito
aos chefes e participar do sistema geral de compulsão?"
Às vezes a colaboração era indireta, explicou Soljenitsin, mas mesmo assim prejudicial. Os "trabalhadores de confiança" - definidores de cotas, guarda-livros, engenheiros
- não torturavam de fato pessoas, mas todos eles participaram de um sistema que forçou prisioneiros a trabalharem até morrer. O mesmo era verdade no que se refere
aos "presos de confiança mistos": datilografes vazavam ordens do comando do campo. Cada cortador de pão que era capaz de roubar uma fatia para si pode ser acusado
de privar um trabalhador zek na floresta de sua porção integral, escreveu Soljenitsin: "Quem foi que subtraiu peso do pão de Ivan Denisovich? Quem roubou seu açúcar
umedecendo-o com água? Quem impediu que banha, carne, os bons cereais fossem parar na panela comum?"
Outros se sentiam do mesmo jeito. Uma ex-zek escreveu que tinha deliberadamente ficado com a incumbência do trabalho geral por nove anos a fim de evitar cair nos
relacionamentos corruptos que eram necessários para permanecer num posto de confiança. Dimitri Panin (que, como escrevi, conheceu Soljenitsin nos campos e aparece
em seu romance O primeiro círculo) também confessou que ficou muito embaraçado com as duas semanas em que pegou uma tarefa leve na cozinha do campo: "Pior ainda
era a percepção de que eu estava roubando comida de outros prisioneiros. Eu tentava me confortar pensando que quando um homem é reduzido à condição em que eu estava
então, ele não se preocupa com ninharias; mas isso não aliviava meu sentimento de ter feito uma coisa errada, e quando eles me expulsaram da cozinha, eu na verdade
fiquei feliz."
Frontalmente oposto a Soljenitsin - como muitos outros o roram e são - estava Lev Razgon, um escritor que se tornou, nos anos 1990, uma autoridade quase igualmente
grande sobre o Gulag dentro da Rússia. Quando estava nos campos, Razgon foi um definidor de cotas, um dos mais altos postos de confiança. Razgon argumentou que,
para ele e para muitos outros, tornar-se um prisioneiro de confiança era simplesmente uma questão de escolher viver. Particularmente nos anos da guerra, "era impossível
sobreviver se você estivesse derrubando árvores". Só lavradores sobreviviam: "aqueles que sabiam como afiar e usar ferramentas, e aqueles a quem era dado trabalho
agrícola conhecido para fazer, que podiam compor sua dieta com batatas roubadas, raízes ou qualquer outra espécie de legumes".
Razgon não acredita que fosse imoral escolher a vida, nem que aqueles que fizeram isso "não eram melhores que as pessoas que os prenderam". Ele também contestou
o retrato venal que Soljenitsin fez dos prisioneiros de confiança. Assim que ficavam em postos mais confortáveis, muitos prisioneiros de confiança ajudavam rotineiramente
outros prisioneiros:
Não é que eles fossem indiferentes aos Ivan Denisoviches que iam lá fora derrubar madeira ou que se sentissem alheios a eles. Simplesmente não podiam ajudar aqueles
que não sabiam fazer nada além do trabalho braçal. E mesmo entre esses últimos eles procuraram e acharam pessoas com os mais inesperados talentos: aqueles que sabiam
como fazer arcos e flechas e barricas eram mandados para o posto avançado onde eram produzidos esquis; aqueles que sabiam fazer cestos começaram a fabricar poltronas,
cadeiras e sofás de vime para os chefes.
Assim como havia bons guardas e maus guardas, Razgon argumenta, também havia ali bons e maus prisioneiros de confiança, pessoas que ajudavam outras pessoas, pessoas
que as machucavam. E no final das contas, eles não estavam mais seguros do que as pessoas que vinham abaixo deles na hierarquia. Se não estavam sendo obrigados a
trabalhar até morrer, sabiam que isso logo poderia acontecer. A qualquer momento, o chefe de algum campo distante poderia ordenar uma transferência para levá-los
embora até outro campo, outro posto, outro destino mortal.
Sanchast: hospitais e Médicos
Dos vários absurdos encontrados na vida do campo, talvez o mais estranho fosse também um dos mais mundanos: o médico do campo. Cada lagpunkt tinha um. Se não houvesse
suficientes médicos treinados, então no mínimo o lagpunkt deveria ter uma enfermeira ou feldsher, um médico assistente que poderia ter recebido ou não treinamento
médico. Como anjos da guarda, o pessoal médico tinha o poder de recolher os internos do frio, depositá-los em hospitais de campo limpos, onde poderiam ser alimentados
e cuidados para retornarem a vida. Todos os demais - os guardas, o comandante do campo, os brigadeiros _ constantemente diziam aos zeks para trabalhar mais duro.
Só o médico não era obrigado a fazer isso. "Só o médico", escreveu Varlam Shalamov, "tinha a autoridade de poupar o preso de sair lá fora no meio da branca neblina
do inverno até chegar à parede de pedra melada da mina para ficar lá muitas horas do dia."
Alguns internos eram literalmente salvos graças a algumas poucas palavras de um médico. Ardendo de febre, reduzido ao esqueleto, torturado por fome, Lev Kopelev
recebeu de uma médica o diagnóstico de que estava com pelagra, uma infecção intestinal, e um resinado muito forte. "Estou mandando você para o hospital", declarou
ela. Não foi uma viagem fácil do lagpunkt até o hospital central do campo, o sanchast. Kopelev abriu mão de todos os seus pertences - partindo do pressuposto de
que todos os pertences do campo devem permanecer no campo -, marchou por "poças fundas e geladas" e se amontoou num carro de bois com outros prisioneiros doentes
e moribundos. A viagem foi infernal. Mas quando ele acordou em seu novo ambiente, encontrou sua vida transformada:
Numa agradável sonolência, encontrava-me num quarto de hospital claro e limpo, num beliche coberto com um lençol incrivelmente limpo... O doutor era um homem pequeno,
de rosto arredondado, cujo bigode cinza e cujos óculos de lentes grossas lhe davam um ar de bondade e preocupação. "Em Moscou", ele perguntou, "você conheceu uma
crítica literária chamada Motylova?"
"Tamara Lazarevna Motylova? É claro!" "É minha sobrinha."
Tio Borya, o nome pelo qual vim a conhecê-lo, olhou para o termômetro. "Oh, oh! Dê-lhe banho", ele disse a seu assistente. "Mande ferver suas roupas. Ponha-o na
cama".
Ao acordar de novo, Kopelev descobriu que haviam trazido para ele seis pedaços de pão: "Três pedaços de pão preto e – miraculosa visão! Três pedaços de pão branco!
Comi-os com avidez, os olhos cheios de lágrimas". Melhor ainda, recebeu rações antipelagra: nabos e cenouras, além de levedura e mostarda para passar no pão. Ele
foi pela primeira vez autorizado a receber pacotes e dinheiro de casa, e com isso conseguiu comprar batatas cozidas, leite e makhorka, a forma mais barata de tabaco.
Tendo sido, ao que parecia, condenado a uma morte em vida, ele compreendeu que estava agora destinado a ser salvo.
Essa era uma experiência comum. "Paraíso" é como Evgeniya Ginzburg chamou o hospital onde ela trabalhou em Kolyma. "Nos sentíamos como reis", escreveu Thomas Sgovio
a respeito dos "alojamentos de recuperação" no lagpunkt de Srednikan, onde ele recebeu "um pãozinho fresco e doce de manhã". Outros rememoram com espanto os lençóis
limpos, a bondade das enfermeiras, os extremos a que chegavam os médicos para salvar seus pacientes. Um prisioneiro conta a história de um médico que, arriscando
a própria posição, deixou o campo ilegalmente para providenciar os medicamentos necessários. Tatyana Okunevskaya escreveu que seu médico "trazia os mortos de volta
à vida". Vadim Aleksandrovich, ele próprio um médico de campo, lembrou que: "O doutor e seu assistente nos campos são, se não deuses, então semideuses. Sobre eles
paira a possibilidade de alguns poucos dias livres do trabalho mortífero, e mesmo a possibilidade de ser mandado para um sanatório".
Janos Rozsas, um húngaro de dezoito anos que foi parar no mesmo campo de Alexander Soljenitsin depois da guerra, escreveu um livro intitulado Irmã Dusya, em homenagem
à enfermeira do campo que ele acredita ter salvado sua vida. A irmã Dusya do título não apenas conversou com ele, convencendo-o de que era impossível que ele morresse
estando sob os cuidados dela, mas ainda negociou a própria ração de pão a fim de obter leite para Rozsas, que só conseguia digerir pouquíssima comida. Ele foi-lhe
grato pelo resto de sua vida: "Eu evoco em minha mente dois rostos amados, o distante rosto de minha mãe natural e o rosto da irmã Dusya. Eles são espantosamente
semelhantes... Disse a mim mesmo que se viesse algum dia a esquecer o rosto de minha mãe, eu só precisaria pensar no rosto da irmã Dusya, e por intermédio dela eu
sempre veria minha mãe".
A gratidão de Rozsas pela irmã Dusya acabou transferida para um amor pela língua e pela cultura russas. Quando encontrei Rozsas em Budapeste meio século após sua
libertação, ele ainda falava um russo elegante, fluente, ainda mantinha contato com amigos russos, e orgulhosamente me contou onde poderia encontrar as referências
à sua história em O Arquipélago Gulag e nas memórias da esposa de Soljenitsin.
Mesmo assim havia, como muitos também notaram, outro paradoxo atuante nos campos. Quando um prisioneiro com escorbuto leve estava na brigada de trabalho, ninguém
dava atenção aos seus dentes bambos ou aos furúnculos em suas pernas. Suas queixas iriam despertar escárnio derrisório nos guardas, ou coisa pior. Se ele virasse
um clokhodyaga morrendo num beliche do campo, seria motivo de riso. Mas quando sua temperatura finalmente alcançasse o nível exigido ou sua doença atingisse o ponto
crítico - quando ele se "qualificasse" como doente, em outras palavras -, o mesmo homem moribundo receberia imediatamente "rações para escorbuto" ou "rações para
pelagra", além de todos os cuidados médicos que o Gulag pudesse oferecer.
Esse paradoxo estava embutido no sistema. Desde o início da existência dos campos, prisioneiros doentes eram tratados de modo diferente. Organizavam-se brigadas
de inválidos, para prisioneiros que não podiam mais fazer trabalho braçal duro, isso já em janeiro de 1931. Mais tarde, haveria alojamentos para inválidos, e até
lagpunkts só para inválidos, dedicados a tratar de prisioneiros enfraquecidos para trazê-los de volta à vida. Em 1933, Dmitlag organizou "lagpunkts de recuperação"
projetados para abrigar 3.600 prisioneiros. Documentos oficiais do Gulag descrevem cuidadosamente as rações adicionais para prisioneiros hospitalizados: alguns
poucos produtos de carne, chá de verdade (diferente do sucedâneo oferecido aos presos comuns), cebolas para prevenir escorbuto e, inexplicavelmente, pimenta e folhas
de louro. Mesmo que, na prática, a comida adicional só chegasse a "um pouco de batatas ou ervilhas secas (só meio cozidas para preservar as vitaminas) ou chucrute",
já se tratava, comparada com as rações normais, de um luxo.
Gustav Herling achou tão estranho esse contraste entre as condições assassinas da vida do campo e os esforços que os médicos do campo investiam para reviver os prisioneiros
cuja saúde tivesse sido muito destruída, que ele concluiu que devia existir na União Soviética um "culto ao hospital":
Havia algo incompreensível no fato de que no momento em que um prisioneiro deixava o hospital ele se tornava de novo um prisioneiro, mas enquanto ele havia permanecido
imóvel numa cama limpa todos os direitos de um ser humano, embora sempre com a exceção da liberdade, lhe haviam sido concedidos. Para um homem não habituado aos
violentos contrastes da vida soviética, os hospitais de campos pareciam igrejas que oferecem um santuário para proteger de uma todo-poderosa Inquisição.
George Bien, um prisioneiro húngaro que foi mandado para um bem aparelhado hospital em Magadan, também teve dificuldade de entender: "Eu perguntei a mim mesmo por
que eles estavam tentando me salvar quando dava a impressão de que eles só queriam minha morte por tortura - mas a lógica havia deixado de existir havia muito tempo".
Com certeza os chefes do Gulag em Moscou encaravam os problemas causados pelo grande número de prisioneiros inválidos "incapazes de trabalhar" como muito sérios.
Embora a existência deles não fosse de forma alguma nova, o problema ficou agudo depois da decisão de Stalin e Beria em 1939 de eliminar a política de "soltura condicional
precoce" para inválidos: de repente, os doentes não podiam mais ser facilmente descartados das listas de trabalho. Isso, sem falar de outras conseqüências, teria
forçado os comandantes dos campos a voltar sua atenção para os hospitais dos campos. Um inspetor fez um cálculo preciso do tempo e do dinheiro perdidos com doenças:
"De outubro de 1940 até a primeira metade de março de 1941, houve 3.472 casos de ulcerações por frio, graças aos quais foram perdidos 42.334 dias de trabalho. Dois
mil e quatrocentos prisioneiros ficaram fracos demais para poder trabalhar". Outro inspetor relatou que no mesmo ano, dos 2.398 prisioneiros nos campos de trabalho
da Criméia, 860 tinham apenas uma limitada capacidade de trabalho, e 273 estavam totalmente incapacitados de trabalhar. Alguns estavam em camas de hospital, outros,
por falta de camas, estavam sendo mantidos em celas de prisão, provocando um atraso em todo o sistema.
Mesmo assim, como tudo mais no Gulag, não havia nenhuma medida específica a respeito da necessidade de curar os doentes. Em alguns campos, parece que os lagpunkts
especiais para inválidos eram criados em grande parte para evitar que os inválidos derrubassem as estatísticas de produção do campo. Esse era o caso em Siblag, que
contava 9 mil inválidos e 15 mil "semi-inválidos" entre seus 63 mil prisioneiros em 1940 e 1941 - mais de um terço. Quando esses prisioneiros enfraquecidos eram
removidos de locais de trabalho importantes e substituídos por brigadas de novos trabalhadores "frescos", as cifras de produção do campo magicamente subiam.
A pressão para cumprir o plano colocou muitos comandantes de campo num dilema. Por um lado, eles genuinamente queriam curar os doentes - para que pudessem ser mandados
de volta ao trabalho. Por outro lado, eles não queriam incentivar os "preguiçosos". Na pratica, isso freqüentemente significava que as administrações dos campos
colocavam limites - às vezes muito precisos - ao número de prisioneiros que podiam ficar doentes em determinado período, ou que podiam ser enviados a lagpunkts de
recuperação. Em outras palavras, não importava qual fosse o número real de prisioneiros doentes, os médicos só estavam autorizados a garantir dias de descanso para
uma pequena porcentagem. Aleksandrovich, um médico de campo, lembrou que em seu campo "cerca de 10% do lagpunkt", trinta ou quarenta pessoas, apresentavam-se toda
noite na hora do atendimento médico. Ficava claro, porém, que não mais do que 3% a 5% poderiam ser liberados do trabalho: "mais do que isso, e teria início uma
investigação".
Se mais ficassem doentes, teriam de esperar. Típica era a história de um prisioneiro de Ustvymlag, que declarou várias vezes estar doente e não poder trabalhar.
De acordo com o relatório oficial arquivado mais tarde: "Os trabalhadores médicos não deram atenção ao seu protesto, e ele foi mandado para o trabalho. Como não
estava em condições de trabalhar, recusou-se a fazê-lo, e por isso foi trancado na cela de punição. Foi mantido ali por quatro dias, e levado de lá em condições
muito precárias até o hospital, onde morreu". Em outro campo, um tuberculoso foi mandado para o trabalho ao ar livre e, segundo o relatório do inspetor, "estava
em condições tão ruins que não conseguiu voltar do campo sem ajuda".
O baixo número desses "autorizados" a ficarem doentes significava que os médicos viviam sob uma pressão terrível e conflituosa. Eles podiam ser repreendidos, ou
mesmo sentenciados, se morressem prisioneiros doentes demais, depois de terem acesso recusado ao hospital do campo. Podiam também ser ameaçados pelos membros mais
violentos e agressivos da elite criminosa do campo, que queriam ser liberados do trabalho. Se o médico de campo quisesse dar dias de descanso a esses prisioneiros
genuinamente doentes, ele tinha de resistir às investidas desses criminosos. Shalamov, de novo, descreveu o destino de um tal dr. Surovoy, mandado para trabalhar
no lagpunkt predominantemente de criminosos situado na mina de Spokoiny, em Kolyma:
Era um médico jovem e - mais importante - era um médico prisioneiro. O amigo de Suroyov tentou persuadi-lo a não ir. Ele podia ter recusado e ser mandado para uma
turma de trabalho geral em vez de assumir esse trabalho claramente perigoso. Suroyov chegara ao hospital vindo de uma turma de trabalho geral; ele tinha medo de
voltar para ela e concordou em ir para a mina e trabalhar em sua profissão. As autoridades do campo deram-lhe instruções mas nenhum conselho sobre como se portar.
Ele foi categoricamente proibido de mandar ladrões saudáveis da mina para o hospital. Em um mês foi morto enquanto atendia pacientes; em seu corpo havia cinqüenta
e duas facadas.
Quando chegou para trabalhar como feldsher num lagpunkt de criminosos, Karol Colonna-Czosnowski também foi advertido de que sou antecessor tinha sido "morto a picaretadas"
por seus pacientes. Em sua primeira noite no campo, ele se defrontou com um homem que carregava um machado, pedindo para ser dispensado do trabalho no dia seguinte.
Karol conseguiu, diz ele, surpreendê-lo e jogá-lo para fora da cabana Ao feldsher. No dia seguinte ele fez um acordo com Grisha, o chefe dos criminosos do campo:
além dos genuinamente doentes, Grisha lhe daria os nomes de mais duas pessoas por dia que deveriam ser dispensadas do trabalho.
Alexander Dolgun também descreve uma experiência similar. Num de seus primeiros dias como feldsher, apresentou-se a ele um prisioneiro criminoso queixando-se de
dor de estômago - e pedindo ópio. "Ele me fez chegar mais perto dele. 'Aqui!', ele cochichou ameaçadoramente, puxando sua camisa. Sua mão direita estava dentro da
camisa, segurando um perigoso canivete entalhado como uma cimitarra em miniatura. 'Eu quero ópio. Eu sempre sou muito bem tratado aqui. Você é novo. Você também
deve saber que se eu não conseguir meu ópio, você vai levar uma facada'." Dolgun arrumou um jeito de se livrar dele dando-lhe uma falsa solução de ópio. Outros não
tinham a mesma presença de espírito, e podiam ficar sob o poder do criminoso indefinidamente.
Mesmo quando um prisioneiro finalmente conseguia dar entrada no hospital, ele com freqüência percebia que a qualidade do atendimento médico variava bastante. Os
campos maiores tinham hospitais adequados, com equipe médica e remédios. O hospital central da Dalstroi, na cidade de Magadan, era conhecido por contar com o mais
moderno equipamento da época, e também por dispor de uma equipe dos melhores prisioneiros médicos, freqüentemente especialistas de Moscou. Embora a maioria de seus
pacientes fossem oficiais da NKVD ou empregados do campo, alguns dos prisioneiros mais afortunados eram tratados também por especialistas, ali e em outras partes:
durante sua sentença no campo, Lev Finkelstein recebeu permissão até para consultar um dentista. Alguns dos lagpunkts de inválidos também eram bem equipados, e
parece que foram de fato projetados para cuidar bem da saúde dos prisioneiros. Tatyana Okunevskaya foi mandada para um deles, e ficou maravilhada com os espaços
abertos, os alojamentos generosos, as árvores: "Fazia tantos anos que não via árvores! K era primavera!"
Nos hospitais dos lagpunkts, menores, a situação era bem mais grave. Geralmente, os médicos de lagpunkts viam que era impossível manter os padrões mínimos de esterilização
e limpeza." Hospitais muitas vezes eram nada mais do que alojamentos comuns nos quais os doentes eram simplesmente despejados em camas comuns - às vezes dois em
cada cama - com apenas um suprimento mínimo de remédios. Num relatório sobre um pequeno campo, um inspetor reclamou que ele não tinha um prédio designado como hospital,
não tinha lençóis nem roupa íntima para pacientes, nem remédios ou pessoal médico qualificado. As taxas de mortalidade, em conseqüência, eram extremamente elevadas.
Testemunhas oculares concordam. Num pequeno hospital, num lagpunkt de Sevurallag, "o tratamento e a documentação eram precários", segundo Isaac Vogelfanger, que
por um tempo foi o médico chefe do campo. O pior é que
as rações de comida eram flagrantemente inadequadas e havia pouquíssimos remédios disponíveis. Casos cirúrgicos como fraturas e ferimentos grandes nos tecidos moles
eram tratados muito mal e negligenciados. Raramente, descobri mais tarde, os pacientes eram dispensados de voltar ao trabalho. Como eram admitidos com sinais avançados
de desnutrição, a maioria morria no hospital.
Jerzy Gliksman, um prisioneiro polonês, lembrou que num lagpunkt os prisioneiros ficavam literalmente "amontoados" no chão: "Todas as passagens estavam apinhadas
de corpos deitados. Por toda parte havia sujeira e desolação. Muitos dos pacientes deliravam e gritavam incoerentemente, enquanto outros jaziam imóveis e pálidos".
Piores ainda eram os alojamentos, ou melhor, salas mortuárias, para doentes terminais. Num desses, destinado a prisioneiros com disenteria, "os pacientes ficavam
deitados na cama durante semanas. Se tivessem sorte, recuperavam-se. Mais freqüentemente, morriam. Não havia tratamento, nem remédios... os pacientes costumavam
esconder um morto durante três ou quatro dias a fim de pegar as rações de comida do defunto".
As condições eram agravadas pela burocracia do Gulag. Em 1940, um inspetor de campo reclamou que o campo simplesmente não tinha camas de hospital suficientes para
os prisioneiros doentes. Como um prisioneiro que não estivesse realmente acamado no hospital não tinha permissão de receber uma ração hospitalar, isso significava
que os prisioneiros doentes que ficavam fora do hospital recebiam simplesmente a ração reduzida dos "preguiçosos".
Embora possamos dizer que muitos médicos de campo salvaram a vida de muitas pessoas, não se pode dizer que todos os médicos eram necessariamente inclinados a serem
prestativos. Alguns, de seu ponto de vista privilegiado, acabaram simpatizando mais com os chefes do que com os "inimigos" que eles eram obrigados a tratar. Elinor
Lipper descreveu uma médica, chefe de um hospital para quinhentos pacientes: "Ela se comportava como uma pomeshchitsa, uma grande senhora proprietária de terras
dos tempos dos czares, e considerava toda a equipe do hospital como seus servos pessoais. Com sua mão carnuda, ela uma vez pegou uma faxineira negligente e puxou-a
pelo cabelo até ela gritar". Em outro campo, a esposa do comandante do campo, médica na seção do hospital, chegou a ser repreendida pela inspetoria do campo porque
"admitia os seriamente doentes no hospital tarde demais, não dispensava os doentes do trabalho, era rude, e jogava os prisioneiros doentes para fora da enfermaria".
Em alguns casos, os médicos sabidamente tratavam mal os pacientes prisioneiros. Enquanto ele trabalhava num campo de mineração no início dos anos 1950, uma das pernas
de Leonid Trus foi esmagada. O médico do campo enfaixou a ferida, mas era preciso fazer mais que isso. Trus já havia perdido muito sangue, e começava a se sentir
muito frio. Como o campo não tinha um equipamento para transfusão de sangue, as autoridades do campo o enviaram, na parte de trás de um caminhão, até um hospital
local. Meio inconsciente, ele ouviu o médico pedir à enfermeira para iniciar uma transfusão de sangue. O amigo que o acompanhava forneceu seus dados pessoais: nome,
idade, sexo, local de trabalho - após o que o médico interrompeu a transfusão de sangue. Esse tipo de auxilio não era dado a um prisioneiro. Trus lembra que lhe
deram um pouco de glicose para beber - graças ao amigo, que pagou um suborno por ela - e um pouco de morfina. No dia seguinte, sua perna foi amputada:
O cirurgião estava tão convencido de que eu não iria viver que nem mesmo fez a operação ele mesmo, passando-a para a sua esposa, uma terapeuta que estava tentando
requalificar-se como cirurgia. Depois me contaram que ela havia feito tudo direito, que ela sabia o que estava fazendo, exceto por alguns detalhes que deixara de
fora. Não que ela tivesse esquecido deles, mas é que achava que eu não iria sobreviver, e que portanto era irrelevante que esses detalhes médicos fossem cumpridos.
E veja, eu continuei vivo!
Não que os médicos do campo, tanto os bondosos como os indiferentes, fossem também necessariamente qualificados. Aqueles que ostentavam o título iam desde os maiores
especialistas de Moscou cumprindo suas sentenças na prisão, até charlatães que não sabiam absolutamente nada de medicina, mas que se dispunham a fingir que sabiam
a fim de obter um posto de status mais elevado. Já em 1932, a OGPU se queixava da escassez de pessoal médico qualificado. Isso significava que prisioneiros com
diploma de médico eram a exceção a todas as regras que governavam os postos de confiança: não importava que ato terrorista contra-revolucionário fossem acusados
de ter cometido, eles eram sempre autorizados a praticar a medicina.
A escassez de médicos também significava que prisioneiros eram treinados como enfermeiros e feldshers - um treinamento que costumava ser rudimentar. Evgeniya Ginzburg
qualificou-se como enfermeira depois de passar "vários dias" num hospital de campo, aprendendo a arte de "aplicar ventosas" e como dar uma injeção. Alexander Dolgun,
depois de aprender num campo os fundamentos da função de feldsher, foi testado em seu conhecimento depois de ser transferido para outro campo. Quando um oficial,
desconfiado de sua qualificação, mandou que fizesse uma autópsia, ele fez "a melhor encenação possível, agindo como se fizesse esse tipo de coisa o tempo inteiro".
A fim de conseguir seu trabalho como feldsher, Janusz Bardach também mentiu: disse que era um estudante de medicina do terceiro ano quando, na verdade, ainda não
entrara na universidade.
Os resultados eram previsíveis. Depois de chegar ao seu primeiro cargo de prisioneiro médico em Sevurallag, Isaac Vogelfanger, um cirurgião bem qualificado, ficou
surpreso ao ver o feldsher local tratando de furúnculos de escorbuto - uma doença causada por subnutrição, não uma infecção - com iodo. Mais tarde, viu vários pacientes
morrerem porque um médico não qualificado insistiu em injetar nos pacientes uma solução feita de açúcar comum.
Nenhuma dessas coisas causaria surpresa aos chefes do Gulag, um dos quais se queixava, numa carta ao seu chefe em Moscou, de uma escassez de médicos: "Em vários
lagpunkts, o auxílio médico é prestado por enfermeiros autodidatas, prisioneiros sem nenhuma qualificação médica". Outro escreveu sobre o sistema médico de um campo
que desafiava "todos os princípios do serviço de saúde soviético". Os chefes sabiam que eram falhos, os prisioneiros sabiam que eram falhos - e mesmo assim os serviços
médicos do campo continuaram funcionando do mesmo jeito.
Mesmo com todas as suas falhas - mesmo quando os médicos eram venais, as alas precariamente equipadas, a medicação escassa -a vida no hospital ou na enfermaria parecia
tão atraente aos prisioneiros, que para conseguir dar entrada nela eles se dispunham não só a machucar ou ameaçar os médicos, mas também a ferir a si mesmos. Como
soldados tentando escapar do campo de batalha, os zeks também recorriam ao samorub (auto-mutilação) e à mastyrka (doença encenada) em tentativas desesperadas de
salvar suas vidas. Alguns acreditavam que acabariam recebendo uma anistia por invalidez. Na verdade, havia tantos que acreditavam nisso que o Gulag pelo menos numa
ocasião expediu uma declaração negando que os inválidos seriam libertados (embora eles o fossem, ocasionalmente). A maioria, no entanto, ficava simplesmente feliz
em poder evitar o trabalho.
A punição por auto-mutilação era particularmente severa: uma sentença adicional no campo. Isso refletia, talvez, o fato de que um trabalhador incapacitado era um
fardo para o Estado e um atraso para o plano de produção. "A auto-mutilação era punida de maneira mórbida, com a sabotagem", escreveu Anatolii Zhigulin. Um prisioneiro
conta a história de um ladrão que cortou fora quatro dedos da mão esquerda. Em vez de ser enviado para um campo de inválidos, no entanto, fizeram o inválido sentar
na neve e ficar vendo os outros trabalharem. Proibido de sair de lá, com medo de ser baleado por tentativa de fuga, "logo ele próprio pediu uma pá e, usando-a de
muleta, com sua mão sobrevivente, enfiou-a na terra congelada, chorando e praguejando".
Mesmo assim, muitos prisioneiros achavam que os benefícios potenciais faziam com que valesse a pena correr o risco. Alguns dos métodos eram rudes. Os criminosos
eram particularmente conhecidos por simplesmente cortarem seus três dedos intermediários com um machado, de modo que não pudessem mais cortar árvores ou segurar
um carrinho de mão nas minas. Outros cortavam fora um pé, ou uma mão, ou esfregavam ácido nos olhos. Outros ainda, ao partirem para o trabalho, embrulhavam um pano
molhado em volta do pé: à noite, voltavam com ulceração por frio de terceiro grau. O mesmo método podia ser aplicado aos dedos. Nos anos 1960, Anatoly Marchenko
viu um homem pregar seus testículos num banco de prisão. Não foi o primeiro: Valerii Frid descreve um homem que pregou seu saco escrotal num toco de árvore.
Mas havia também métodos mais sutis. Um criminoso mais ousado podia roubar uma seringa e injetar sabão derretido em seu pênis: a ejaculação resultante ficava parecida
com uma doença venérea. Outro preso encontrou uma maneira de simular silicose, uma doença pulmonar. Primeiro, ele limava uma pequena quantidade de pó de prata de
um anel de prata que ele havia conseguido manter entre seus pertences pessoais. Ele então misturava a poeira de prata com tabaco, e fumava. Embora não sentisse nada,
ele ia até o hospital tossindo do jeito que vira as vítimas de silicose tossir. No raio-X que era feito em seguida, uma sombra terrível aparecia em seus pulmões
- suficiente para desqualificá-lo para trabalho pesado e para que fosse enviado a um campo por causa da doença incurável.
Prisioneiros também tentavam criar infecções, ou doenças crônicas. Vadim Aleksandrovich tratou de um paciente que havia infectado a si mesmo com uma agulha de costura
suja. Gustav Herling viu um prisioneiro enfiar o braço no fogo, quando achava que ninguém estava olhando; ele fazia isso uma vez por dia, todo dia, de modo a manter
uma ferida misteriosamente persistente. Zhigulin ficou doente propositalmente bebendo água gelada e depois respirando ar frio. Isso provocou-lhe uma febre suficientemente
alta para que pudesse ser dispensado do trabalho: "Oh, que dez dias mais felizes no hospital!" Prisioneiros também simulavam insanidade. Bardach, durante sua carreira
como feldsher, trabalhou um tempo na ala psiquiátrica do hospital central de Magadan. Ali, o principal método de desmascarar falsos esquizofrênicos era colocá-los
numa ala com esquizofrênicos de verdade: "Em questão de horas, muitos prisioneiros, mesmo os mais determinados, batiam na porta pedindo para sair". Se isso falhasse,
dava-se ao prisioneiro uma injeção de cânfora, que induzia um ataque. Os que sobreviviam raramente queriam que o procedimento fosse repetido.
Havia até um procedimento padrão para prisioneiros que tentaram simular paralisias, segundo Elinor Lipper. O paciente era colocado numa mesa de operação e recebia
um anestésico leve. Quando ele acordava, os médicos o colocavam em pé. Inevitavelmente, quando eles chamavam seu nome, ele dava uns poucos passos antes de lembrar
de desabar no chão. Dimitrii Bystroletov também testemunhou uma mulher curada de "surdez" pela própria mãe. A administração, suspeitando da queixa da mulher de
ouvir mal, convidou a mãe a visitar sua filha prisioneira, mas não deixou que ela entrasse no alojamento. Em vez disso, fizeram-na ficar do lado de fora do portão,
onde ela ficou em pé, chamando o nome da filha. Naturalmente, a filha atendeu.
Mas havia também médicos que ajudavam os pacientes a encontrar métodos de auto-mutilação. Alexander Dolgun, apesar de estar muito fraco e sofrendo de uma diarréia
incontrolável, não tinha uma febre suficientemente alta para merecer ser dispensado do trabalho. Mesmo assim, quando ele contou ao médico do campo, um letão culto,
que era americano, o homem se iluminou. "Queria tanto encontrar alguém com quem pudesse falar inglês", disse ele - e mostrou a Dolgun como infectar o próprio corte.
Isso produziu uma enorme bolha púrpura em seu braço, suficiente para impressionar os guardas da MVD que inspecionavam o hospital sobre a gravidade de sua doença.
Mais uma vez, a moralidade comum estava invertida. No mundo fora da prisão, nenhum médico que deliberadamente fizesse seus pacientes adoecerem seria considerado
um homem bom. Mas no campo, um doutor assim era reverenciado com um santo.
"Virtudes comuns"
Nem todas as estratégias para sobreviver nos campos derivavam necessariamente do próprio sistema. E nem todas envolviam colaboração, crueldade ou auto-mutilação.
Se alguns prisioneiros - talvez a vasta maioria dos prisioneiros - conseguiam continuar vivos manipulando as regras do campo a seu favor, havia também alguns que
se baseavam no que Tzvetan Todorov, em seu livro sobre a moral dos campos de concentração, chamou de "virtudes comuns": cuidados e amizade, dignidade e a vida da
mente.
O cuidado assumia várias formas. Havia prisioneiros, como vimos, que criavam suas próprias redes de sobrevivência. Membros dos grupos étnicos que dominavam alguns
dos campos no final dos anos 1940 - ucranianos, baltos, poloneses - criaram sistemas inteiros de auxílio mútuo. Outros construíam redes independentes de conhecidos
ao longo de anos no campo. Outros ainda simplesmente faziam apenas um ou dois amigos extremamente íntimos. Talvez a mais conhecida dessas amizades do Gulag fosse
aquela entre Ariadna Efron, a filha da poeta Marina Tsvetaeva, e sua amiga Ada Federolf. Elas fizeram esforços enormes a fim de permanecerem juntas, tanto nos campos
como no exílio, e mais tarde publicaram suas memórias juntas em um volume. Num certo ponto de sua metade da história, Federolf contou como elas haviam se reencontrado
depois de uma longa separação quando Éfron foi colocada numa outra transferência:
Já era verão. Os primeiros dias depois que chegamos foram horríveis. Eles nos levavam para fora para nos exercitarmos uma vez dia - o calor era insuportável. Então
de repente uma nova transferência de Ryazan e - Alya. Eu arfava de alegria, puxei-a para os beliches de cima, mais perto do ar fresco... É essa á alegria de prisioneiro,
a alegria de simplesmente encontrar alguém.
Outros concordam. "E muito importante ter um amigo, um rosto confiável, que não vai abandoná-lo se você estiver em dificuldade", escreveu Zoya Marchenko. "Era impossível
sobreviver sozinho. As pessoas organizavam-se em grupos de dois ou três", escreveu outro prisioneiro. Dmitri Panin também atribui sua capacidade de suportar os
ataques dos criminosos ao pacto de autodefesa que fez com um grupo de outros prisioneiros. Havia limites, é claro. Janusz Bardach escreveu sobre seu melhor amigo
no campo que "nenhum de nós nunca pediu comida ao outro, nem a gente oferecia. Ambos sabíamos que esse santuário não podia ser violado se pretendíamos continuar
amigos".
Se o respeito pelos outros ajudava alguns a manter sua humanidade, o respeito por si mesmos ajudava outros. Muitos, particularmente mulheres, falavam da necessidade
de se conservar limpo, ou o mais limpo possível, como uma maneira de preservar a própria dignidade.
Olga Adamova-Sliozberg conta como uma companheira de cela "lavava e secava seu colarinho branco e o costurava de volta na sua blusa", toda manhã. Prisioneiros japoneses
em Magadan montaram um "banho" japonês - um grande barril, ao qual eram acoplados bancos - ao longo da baía. Durante dezesseis meses na prisão Kresty de Leningrado,
Boris Chetverikov lavava suas roupas muitas vezes, assim como as paredes e o chão de sua cela - antes de entoar todas as árias de ópera que ele conhecia de memória.
Outros praticavam exercícios ou rotinas higiênicas.Vejamos Bardach de novo:
Apesar da minha fadiga e do frio, mantive a rotina de exercícios que seguira em casa e no Exército Vermelho, lavando o rosto e as mãos na bomba manual. Eu queria
conservar o máximo de orgulho, distinguindo-me dos muitos prisioneiros que eu vira desistir dia após dia. Primeiro eles deixavam de cuidar de sua higiene ou aparência,
depois paravam de cuidar de seus colegas prisioneiros, e finalmente de suas próprias vidas. Se eu não tinha controle sobre mais nada, tinha controle pelo menos sobre
esse ritual que eu acreditava que iria me poupar da degradação e da morte certa.
Outros ainda praticavam disciplinas intelectuais. Inúmeros prisioneiros escreviam ou decoravam poesias, repetindo seus versos e aqueles de outros para si mesmos,
várias vezes, repetindo-os depois para amigos. Em Moscou, na década de 1960, Ginzburg uma vez encontrou um escritor que não podia acreditar que em tais condições
os prisioneiros tivessem sido capazes de repetir poemas para si mesmos e sentirem alívio mental ao fazerem isso. "Sim, sim", ele disse a ela: "ele sabia que eu não
era a primeira pessoa a dar testemunho disso, mas, bem, ele ainda achava que havíamos tido a idéia depois do evento". Ginzburg escreve que o homem não entendeu sua
geração, os homens e mulheres que ainda pertenciam a uma "época de ilusões magníficas... estávamos nos atirando no comunismo das alturas poéticas".
Nina Gagen-Torn, etnógrafa, escreveu poesia, freqüentemente cantando seus versos para si mesma:
Nos campos eu compreendi, num nível prático, por que as culturas pré-letradas sempre transmitiram textos na forma de canções - caso contrário, não conseguimos lembrar,
não é possível ter certeza das palavras exatas. Os livros apareciam entre nós acidentalmente, eles eram dados e depois tirados. Escrever era proibido, assim como
montar grupos de estudos: as autoridades temiam que isso levasse a contra-revolução. Então cada um preparava para si, do melhor jeito que desse, alimento para o
cérebro.
Shalamov escreveu que a poesia, entre "pretensão e maldade, decadência", poupou-o de se tornar completamente insensível. Eis uma poesia que ele escreveu, intitulada
"A um poeta":
Comi como um animal, reclamando da comida
Uma simples folha de papel para escrever
Parecia um milagre
Caindo do céu na floresta escura.
Bebi como um animal, tomando água sofregamente
Empapando minhas longas suíças
Medindo minha vida não por meses ou anos
Mas por horas.
E toda noite
Surpreso por estar ainda vivo
Repetia versos
Como se ouvisse sua voz.
E os cochichava como orações,
Exaltava-os como a água da vida
Como uma imagem salva da batalha
Como uma estrela-guia.
Eles eram o único vínculo com outra vida
Ali, onde o mundo nos sufocava
Com imundície cotidiana
E a morte perseguia de perto nossos calcanhares.
Soljenitsin "escreveu" poesia nos campos, compondo-a de cabeça e depois recitando-a para si mesmo com a ajuda de uma coleção de palitos de fósforo quebrados, como
seu biógrafo Michael Scammell conta:
Ele dispunha duas fileiras de dez pedaços de palito de fósforo com a sua cigarreira, uma fileira representando as dezenas e a outra as unidades. Então recitava seus
versos silenciosamente para si mesmo, movendo uma "unidade" a cada linha e uma "dezena" a cada dez linhas. Cada qüinquagésima e centésima linha eram memorizadas
com cuidado especial, e uma vez por mês ele recitava o poema de cabo a rabo. Se uma linha estava fora do lugar ou era esquecida, ele refazia a coisa toda até acertar.
Talvez por razões similares, rezar também ajudava alguns. O conjunto de memórias de um fiel batista, enviado para os campos pós-stalinistas nos anos 1970, consiste
quase inteiramente em relatos sobre quando e onde ele rezava, e sobre onde e como escondia suas Bíblias. Muitos memoristas escreveram sobre a importância das festas
religiosas. A Páscoa podia acontecer secretamente, numa padaria do campo - como aconteceu um ano numa prisão de trânsito em Solovestsky -, ou podia acontecer abertamente,
em trens de transferência: "o vagão balançava, os cantos eram desencontrados e esganiçados, os guardas batiam nas paredes do vagão a cada parada. Mas eles continuaram
cantando". O Natal podia ter lugar num alojamento. Yuri Zorin, um prisioneiro russo, relembra com assombro como os lituanos em seu campo haviam organizado bem a
celebração do Natal, uma festa que eles vinham preparando havia um ano: "Você pode imaginar, no alojamento, uma mesa posta com tudo, vodca, presunto, tudo?". Eles
tinham, pelo que ele achava, trazido a vodca em pequenas quantidades "que cabiam num dedal", em seus sapatos.
Lev Kopelev, ateu, participou de urna cerimônia secreta de Páscoa:
As mesas tinham sido colocadas junto às paredes. Havia uma fragrância de incenso no ar. Uma pequena mesa forrada com um cobertor era o altar. Várias velas caseiras
projetavam sua luz numa imagem. O padre, usando vestimenta feita com lençóis, segurava uma cruz de ferro. As velas piscavam no escuro. Mal podíamos ver o rosto dos
outros na sala, mas eu tinha certeza de que não éramos os únicos não crentes ali. O padre entoou a missa com a voz trêmula de um ancião. Várias mulheres de lenço
branco acompanharam-no suavemente, com vozes ardorosas e puras. Um coro respondia harmoniosamente, bem suave, bem suave, a fim de não ser ouvido do lado de fora.
Kazimierz Zarod estava entre seus conterrâneos poloneses que celebraram a noite de Natal de 1940 num campo de trabalho, guiados por um padre que se paramentou discretamente
pelo campo aquela noite, rezando missa em cada alojamento:
Sem auxílio da Bíblia ou de um livro de orações, ele começou a proferir o texto da missa, o latim familiar, dito num cochicho quase inaudível e respondido tão baixinho
que parecia um suspiro - "Kyrie eleison, Christe eleison - Senhor tenha piedade de nós. Cristo tenha piedade de nós. Gloria in excelsis Deo..."
As palavras nos banharam e a atmosfera no barracão, normalmente tão brutal e rústica, mudou imperceptivelmente, os rostos se voltaram para o padre, ficando suaves
e relaxados conforme os homens se esforçavam para ouvir o cochicho quase inaudível.
"Tudo limpo", disse a voz do homem que vigiava sentado à janela.
Num plano mais geral, o envolvimento com algum projeto intelectual ou artístico mais amplo mantinha muitas pessoas cultas vivas, espiritualmente e fisicamente -
pois quem tinha dons ou talentos costumava encontrar uma aplicação prática para eles. Num mundo de escassez constante, por exemplo, onde os pertences mais elementares
ganhavam enorme significação, as pessoas que podiam fornecer algo de que os outros precisavam eram sempre requisitadas. Foi o caso de Prince Kirill Golitsyn, que
aprendeu a fazer agulhas com ossos de peixe quando ainda estava na prisão de Butyrka. E também de Alexander Dolgun, que antes de arrumar o cargo de feldsher, procurou
um jeito de "ganhar uns rublos a mais ou umas gramas adicionais de pão":
Eu vi que havia um suprimento muito bom de alumínio nos cabos que os soldadores usavam. Pensei que se aprendesse a derretê-lo, seria capaz de moldar algumas colheres.
Conversei um pouco com alguns prisioneiros que pareciam saber o que estavam fazendo ao lidar com metais, e colhi algumas idéias sem contar qual era a minha. Também
encontrei alguns bons esconderijos, onde poderia passar parte do dia sem ser enxotado para o trabalho, e outros esconderijos onde poderia guardar ferramentas ou
pedaços de cabo de alumínio.
Construí duas caixas rasas para a minha fundição, roubei eu mesmo restos de cabo de alumínio, fiz um cadinho rústico usando aço fino roubado das peças do fogão,
surrupiei um pouco de carvão bom e de óleo diesel para acender minha forja, e estava pronto para iniciar meu negócio.
Logo, escreve Dolgun, ele conseguia "fazer aparecer duas colheres quase todo dia". Ele as trocou com outros prisioneiros por uma garrafa para água, e por óleo de
cozinhar que guardava dentro dela. Desse modo, arrumou alguma coisa para molhar seu pão.
Nem todos os objetos que os prisioneiros produziam uns para os outros eram utilitários. Anna Andreevna, uma artista, recebia constantes pedidos de seus serviços
- e não só de prisioneiros. Era requisitada pelas autoridades do campo para decorar uma lápide durante um funeral, para consertar louça de barro ou brinquedos quebrados,
e também para fazer brinquedos: "Fazíamos tudo para os chefes, não importa o que precisassem ou pedissem". Um prisioneiro entalhou pequenos souvenirs para outros
prisioneiros feitos de presa de mamute: braceletes, pequenas figuras com temas "do norte", anéis, medalhões, botões. Ocasionalmente, sentia-se culpado por aceitar
dinheiro de outros prisioneiros: "Mas, e daí? Todo mundo é livre para pensar por si... e não e vergonhoso aceitar dinheiro por um trabalho".
O museu da Sociedade Memorial de Moscou - montado por ex-prisioneiros e dedicado a contar a história das repressões de Stalin - está atualmente cheio dessas coisas:
pedaços de renda bordada, bugigangas entalhadas à mão, cartas de baralho pintadas, e até pequenas obras de arte - pinturas, desenhos, esculturas - que prisioneiros
preservaram, levaram para casa com eles e mais tarde doaram.
Os bens que os prisioneiros aprendiam a cultivar nem sempre eram tangíveis. Por estranho que possa soar, no Gulag era possível cantar - ou dançar ou representar
- para salvar a própria vida. Isso era particularmente verdadeiro no caso de prisioneiros talentosos nos campos maiores, com chefes mais aparatosos, aqueles que
tinham vontade de mostrar suas orquestras e grupos de teatro do campo. Se o comandante de Ukhtizhemlag aspirava a manter uma companhia de ópera de verdade - como
um deles chegou a fazer - isso significava que a vida de dúzias de cantores e dançarinos seria salva. No mínimo, eles poderiam recuperar algum senso de humanidade.
"Quando os atores estavam no palco, eles se esqueciam de sua constante sensação de fome, de sua ausência de direitos, do comboio que os aguardava com cães de guarda
do lado de fora do portão", escreveu Aleksandr Klein. Quando tocava na orquestra da Dalstroi, o prisioneiro e violinista Georgii Feldgun sentiu-se "como se eu respirasse
o ar pleno da liberdade".
Às vezes as recompensas eram ainda maiores. Um documento de Dmitlag descreve a roupa especial distribuída aos membros da orquestra do campo - incluindo as muito
cobiçadas botas de oficial - e ordena a um comandante de lagpunkt que lhes forneça alojamentos especiais também. Thomas Sgovio visitou um desses alojamentos para
músicos em Magadan: "Ao entrar, à direita havia um compartimento separado com um pequeno fogão. Mantas para os pés e botas de feltro ficavam dependuradas em arames
estendidos de uma parede a outra. Camas individuais estavam limpas e com cobertores. Colchões e fronhas eram forrados de palha. Os instrumentos pendiam das paredes
-uma tuba, uma trompa, um trombone, um trompete etc. Cerca da metade dos músicos eram criminosos. Todos eles tinham empregos leves - cozinheiro, barbeiro, administrador
de banheiro, contador etc.
No entanto, nos campos menores, aqueles que se apresentavam também desfrutavam de melhores condições, o que acontecia ate em prisões. Georgii Feldgun recebeu comida
adicional enquanto estava num campo de transferência, depois de tocar seu violino para um grupo de criminosos. Ele achou a experiência muito estranha: "Aqui estamos
nós no fim do mundo, no porto de Vanino... e tocando musica eterna, escrita há mais de duzentos anos. Estamos tocando Vivaldi para quinze gorilas".
Outra prisioneira foi parar numa cela com uma trupe de cantoras e atrizes que, graças aos seus talentos, não estavam sendo transferidas para os campos. Vendo que
eram mais bem tratadas, ela convenceu-as a deixarem que ela também se apresentasse junto com elas, e então cantou fora do tom e fez uma cena engraçada, rindo de
si mesma. Pelo resto de sua passagem pelo campo, seu talento cômico até então não descoberto fez com que recebesse comida adicional e ajuda de suas colegas prisioneiras.
Outros também usavam o humor para sobreviver. Dmitri Panin escreveu sobre um palhaço profissional de Odessa que atuava para salvar sua vida, sabendo que se fizesse
as autoridades do campo rirem iria poupar-se de ser transferido para um campo de punição. "A única incongruência nessa alegre dança vinha dos grandes olhos negros
do palhaço, que pareciam estar implorando misericórdia. Eu nunca havia visto uma performance tão emotiva".
De todas as maneiras de sobreviver por meio da colaboração com as autoridades, "salvar a pele" por meio da atuação no teatro do campo ou participar de outras atividades
culturais era o método que parecia aos prisioneiros o menos problemático do ponto de vista moral. Talvez porque outros prisioneiros também tirassem proveito disso.
Mesmo para aqueles que não recebiam tratamento especial, o teatro dava um tremendo apoio moral, algo que também era necessário para a sobrevivência. "Para os prisioneiros,
o teatro era a fonte de alegria, era amado, adorado", escreveu um prisioneiro. Gustav Herling lembra que nos concertos "os prisioneiros tiravam seus bonés na entrada,
limpavam a neve de suas botas no corredor externo, e ocupavam seus lugares nos bancos com expectativa cerimoniosa e com uma reverência quase religiosa".
Talvez fosse por isso que aqueles cujo talento artístico lhes permitia viver melhor inspirassem admiração, e não inveja ou ódio. Tatyana Okunevskaya - a estrela
de cinema enviada para os campos por se recusar a dormir com Abakumov, o chefe da contra-inteligência soviética - era reconhecida em toda parte, e todos a ajudavam.
Durante um concerto no campo, ela sentiu o que pareciam ser pedras sendo atiradas em suas pernas; olhou para baixo e viu que eram latas de abacaxi mexicano, uma
guloseima inaudita, que um grupo de ladrões tinha comprado só para ela.
Nikolai Starostin, o jogador de futebol, também era tratado com o máximo respeito pelos urki, que, escreveu ele, passavam a mensagem um para o outro: não toquem
em Starostin. Às noites, quando ele começava a contar histórias do futebol, os "jogos de cartas cessavam" e os prisioneiros se juntavam em torno dele. Quando ele
chegava a um novo campo, geralmente lhe era oferecida uma cama limpa no hospital do campo. "Era a primeira coisa que me era oferecida, sempre que chegava, desde
que entre os médicos ou chefes houvesse algum fã".
Apenas algumas pessoas se incomodavam com a questão moral mais complexa de se era "certo" cantar e dançar enquanto estivessem na prisão. Nadezhda Joffe era uma delas:
"Quando rememoro meus cinco anos, não sinto vergonha de me lembrar deles e não tenho nada que me faça enrubescer. Existe apenas a questão do teatro amador... Essencialmente
não havia nada de errado com ele, e mesmo assim... nossos ancestrais distantes, em condições aproximadamente análogas, penduraram seus alaúdes e disseram que não
iriam cantar em cativeiro".
Alguns prisioneiros, particularmente os de origem não soviética, também tinham suas dúvidas sobre as produções. Um prisioneiro polonês, detido durante a guerra,
escreveu que o teatro do campo "destinava-se a destruir ainda mais seu respeito por si mesmo... Às vezes havia performances 'artísticas', ou alguma espécie de orquestra
estranha, mas isso não era feito para a satisfação da alma. Em vez disso, era destinado a nos mostrar a 'cultura' deles [soviética], a nos enervar mais ainda".
Além disso, aqueles que se sentiam desconfortáveis não eram obrigados a participar das performances oficiais. Um impressionante número de prisioneiros políticos
que escreveram relatos - e isso talvez explique por que eles escreveram relatos - atribuem sua sobrevivência a sua capacidade de "contar histórias": entreter prisioneiros
criminosos contando enredos de romances ou filmes. No mundo dos campos e das prisões, onde os livros eram escassos e os filmes, raros, um bom contador de histórias
era altamente valorizado. Lev Finkelstein diz que ele será "para sempre grato a um ladrão que, em meu primeiro dia na prisão, identificou esse potencial em mim,
e disse: 'Você provavelmente leu um monte de livros. Conte eles para as pessoas, e você vai viver muito bem'. E de fato eu vivia melhor que o resto. Eu tinha alguma
notoriedade, alguma fama... Passava por pessoas que diziam 'Você é o Levchik-Romanist [Levchik-o contador de histórias], ouvi falar de você em Taishet' ". Por causa
desse talento, Finkelstein era convidado, duas vezes por dia, para o barracão do líder da brigada, onde recebia uma caneca de água quente. No canteiro em que ele
trabalhava na época, "isso significava a vida". Finkelstein achava, conforme diz, que os clássicos russos e estrangeiros eram os que funcionavam melhor: ele fazia
bem menos sucesso ao contar os enredos de romances soviéticos mais recentes.
Outros compartilhavam essa opinião. Em seu quente e abafado trem para Vladivostok, Evgeniya Ginzburg aprendeu que "havia vantagens materiais em recitar poesia...
Por exemplo, após cada ato de 0 infortúnio de ser talentoso, de Griboyedov, eu ganhava um gole de água da caneca de alguém como uma recompensa por 'serviços à comunidade'
.
Aleksander Wat contou O vermelho e o negro, de Stendhal, para um grupo de bandidos quando estava na prisão. Alexander Dolgun contou o enredo de Os miseráveis.
Janusz Bardach contou a história de Os três mosqueteiros: "Senti que meu status crescia a cada dobra do enredo". Em resposta aos ladrões que rejeitavam os presos
políticos como "gentalha", Colonna-Czosnowski também se defendeu contando-lhes "minha própria versão de um filme, devidamente embelezada para obter o máximo efeito
dramático, que eu assistira na Polônia alguns anos antes. Tratava-se de uma história de 'policiais e ladrões', que acontecia em Chicago, envolvendo Al Capone. Para
melhorá-la, eu introduzi Bugsy Malone, talvez até Bonnie e Clyde. Decidi incluir tudo que fosse capaz de lembrar, e mais uns refinamentos adicionais que eu inventava
no calor da hora". A história impressionou seus ouvintes, e eles pediram ao polonês para repeti-la muitas vezes: "Como crianças, eles ouviam atentamente. Não se
importavam de ouvir as mesmas histórias várias vezes. Como crianças, também gostavam que a cada vez eu usasse sempre as mesmas palavras. Eles também percebiam as
mais leves mudanças e as mínimas omissões... três semanas após minha chegada eu era um homem diferente".
Mesmo assim, quem tivesse dote artístico não precisava ganhar o dinheiro ou o pão de um prisioneiro para salvar sua vida. Nina Gagen-Torn fala de uma historiadora
de música, apreciadora de Wagner, que conseguiu escrever uma ópera enquanto estava nos campos. Voluntariamente, ela quis trabalhar na limpeza de esgotos e privadas
a céu aberto, já que essa tarefa, que de outro modo seria desagradável, lhe dava liberdade suficiente para se concentrar em sua música. Aleksei Smirnov, um dos
destacados defensores da liberdade de imprensa da Rússia daquele tempo, conta a história de dois acadêmicos de literatura que, enquanto estavam nos campos, criaram
um poeta francês fictício do século XVIII, e escreveram um pastiche de poesia francesa daquele século. Gustav Herling também tirou enorme proveito das "lições"
sobre história da literatura que ele recebeu de um antigo professor: seu professor, especulou ele, devia ter se beneficiado ainda mais.
Irena Arginskaya também foi auxiliada por sua sensibilidade estética. Anos após sua soltura, ainda era capaz de falar da "incrível beleza" do extremo norte, de como
às vezes o pôr-do-sol e a visão dos espaços abertos e das grandes florestas a deixavam sem fôlego. Uma vez aconteceu até de sua mãe fazer a longa e terrível viagem
para visitá-la no campo, só para descobrir ao chegar que sua filha havia sido levada para o hospital: a visita tinha sido em vão. Mesmo assim, ela falou "até o fim
da sua vida", assim como a filha, da beleza da taiga.
De qualquer modo, a beleza não podia ajudar a todos, e sua percepção era subjetiva. Rodeada pela mesma taiga, pelo mesmo espaço aberto, as mesmas vastas paisagens,
Nadezhda Ulyanovskaya achava que o cenário a fazia sentir apenas aversão: "Quase contra a minha vontade, eu relembro as grandiosas alvoradas e os ocasos, os pinheirais,
as dores brilhantes que por alguma razão não tinham perfume".
Tão impressionada fiquei com esse comentário que quando eu mesma visitei o extremo norte em pleno verão apreciei com olhos diferentes os largos rios e as intermináveis
florestas da Sibéria, a paisagem lunar desolada que é a tundra do Ártico. A entrada de uma mina de carvão, que fica no local de um antigo lagpunkt de Vorkuta, cheguei
a colher um punhado de flores silvestres do Ártico para ver se tinham perfume. Tinham. Talvez Ulyanovskaya simplesmente não quisesse senti-lo.
18. Rebelião e fuga
Naquele momento, se eu tivesse escutado o som dos cães de trenó anunciando o início da patrulha, acho que teria tido um colapso. Percorremos correndo os poucos metros
que nos separavam da última cerca [...] provavelmente, fazíamos pouco barulho, mas eu tinha a impressão de que o rebuliço era ensurdecedor [...] Escalamos a cerca
desordenadamente, saltamos e caímos sobre o último lote de arame farpado, ao pé da cerca, erguemo-nos, verificamos rapidamente se todos estavam bem e, de comum acordo,
começamos a correr.
Slavomir Rawicz, A longa caminhada.
Entre os vários mitos sobre o Gulag, o da impossibilidade de fuga é um dos maiores. Escapar dos campos de Stalin, disse Soljenitsin, era "uma empreitada para gigantes
entre os homens - mas gigantes condenados". Segundo Anatolii Zhigulin, "Era impossível fugir de Kolyma". Com a melancolia característica, Varlam Shalamov escreveu
que "os condenados que tentam fugir são quase sempre os recém-chegados, os que estão no primeiro ano, homens em cujo coração a liberdade e a vaidade não tinham sido
aniquiladas ainda". Nikolai Abakumov, o antigo comandante da guarnição de Norilsk, descartava a idéia de uma fuga bem-sucedida: "Alguns homens abandonaram os campos,
mas nenhum conseguiu chegar ao 'continente'"- era esse o termo que usava para se referir à Rússia central.
Gustav Herling conta a história de um companheiro de prisão que tentou fugir e fracassou: depois de meses de planejamento cuidadoso, depois de conseguir passar pelas
cercas e vagar pela floresta durante sete dias, faminto, ele se descobriu a apenas doze quilômetros do campo e entregou-se voluntariamente. "A liberdade não é para
nós", o homem concluía toda vez que contava aos outros prisioneiros a história da fuga malograda. "Estamos acorrentados a este lugar pelo resto da vida, muito embora
não haja correntes. Podemos fugir, podemos vagar por aí, mas no final voltaremos."
Naturalmente, os campos eram construídos para evitar fugas: em última análise, era para isso que serviam os muros, o arame farpado, as torres de vigia e a terra
de ninguém cuidadosamente esquadrinhada Em vários campos, entretanto, o arame farpado nem sequer era necessário para manter os presos do lado de dentro. O clima
era desfavorável às fugas - durante dez meses por ano, a temperatura ficava abaixo do ponto de congelamento -, assim como a geografia, algo que só se pode compreender
de fato quando se vê de perto o local em que ficavam alguns dos campos mais distantes.
Por exemplo, pode-se descrever Vorkuta, a cidade que se erguia ao lado das minas de carvão de Vorkutlag, não apenas como isolada, mas inacessível. Não há estradas
até Vorkuta, que fica além do Círculo Polar Ártico - a cidade e suas minas podem ser alcançadas apenas de trem ou de avião. No inverno, qualquer um que se aventurasse
pela tundra descampada, sem árvores, se transformaria num alvo móvel. No verão, essa paisagem se torna um pântano igualmente impenetrável.
Nos campos mais meridionais, as distâncias também eram um problema. Mesmo que um detento pulasse o arame farpado ou se esgueirasse pela floresta durante o trabalho
(graças ao desmazelo dos guardas, isso não era tão difícil), ele se encontrava a quilômetros de uma estrada ou de uma ferrovia; às vezes, a quilômetros de algo que
lembrasse uma cidade ou uma aldeia. Não havia comida nem abrigo, e, por vezes, a água era escassa.
Mais do que tudo, havia sentinelas em todos os cantos: toda a região de Kolyma - centenas e centenas de quilômetros quadrados de taiga - era na verdade uma imensa
prisão, assim como toda a República Komi, grandes faixas do deserto casaque e o norte da Sibéria. Nesses lugares, havia poucas aldeias comuns e poucos habitantes
comuns. Qualquer pessoa que andasse sozinha, sem documentos de identificação, seria imediatamente considerada fugitiva, levaria um tiro ou seria espancada e devolvida
ao campo. Certo prisioneiro decidiu não se juntar a um grupo de fugitivos por essa razão: "Sem papéis nem dinheiro, para onde eu iria num território atulhado de
campos de concentração e portanto cheio de postos de controle?"
Também não era provável que um preso em fuga recebesse ajuda dos habitantes locais que porventura encontrasse. Na Sibéria czarista, havia uma tradição de solidariedade
com os fugitivos e os servos. À noite, tigelas de pão e leite eram colocadas nas portas das casas para eles. Uma canção de prisioneiros pré-revolucionária descreve
esse costume:
As camponesas me davam leite
Os rapazes forneciam tabaco.
Na União Soviética de Stalin, o estado de espírito era diferente. A maioria das pessoas estava inclinada a entregar um "inimigo"que escapara e muito mais inclinada
a entregar um criminoso "reincidente". Isso não acontecia apenas porque elas acreditassem, ainda que não totalmente, no que a propaganda dizia sobre os presos, mas
porque aqueles que deixavam de entregar um fugitivo se arriscavam a receber longas sentenças de prisão. Dado o clima diário de paranóia, seus temores prescindiam
de uma razão específica:
Quanto à população do lugar, ninguém nos protegia nem escondia, como escondiam e protegiam os que fugiam dos campos de concentração nazistas. E isso acontecia porque
durante muitos anos todos viveram atemorizados e desconfiados, esperando um novo infortúnio a cada minuto, com medo uns dos outros [...] Num lugar em que todos,
do mais simples ao mais importante, temiam os espiões, era impossível esperar uma fuga bem-sucedida.
Quando os moradores não entregavam os fugitivos por ideologia nem por medo, eles o faziam pela cobiça. Justa ou injustamente, muitos memorialistas acreditam que
as tribos locais - de esquimós, ao norte, e de casaques, ao sul - viviam à procura de fugitivos. Alguns se tornaram caçadores de recompensa profissionais e entregavam
os presos em troca de um quilo de chá ou de um pacote de trigo. Em Kolyma, o morador que apresentou a mão direita de um fugitivo - a cabeça, segundo alguns relatos
- recebeu uma recompensa de 250 rublos, e parece que as gratificações eram semelhantes em todo o país. Num caso documentado, um habitante local reconheceu um prisioneiro
disfarçado de homem livre e denunciou sua presença à polícia. Recebeu 250 rublos. Seu filho, que havia se dirigido à delegacia, recebeu outros 150. Em outro caso,
um homem que denunciou o esconderijo de um fugitivo ao comandante de um campo recebeu a imensa quantia de 300 rublos.
Os presos recapturados eram punidos com severidade. Alguns eram mortos imediatamente. O corpo dos mortos também era usado como propaganda:
À medida que nos aproximávamos do portão, pensei por um instante que estava tendo um pesadelo: vi um cadáver nu, suspenso no mourão. As mãos e os pés estavam amarrados
com arame; a cabeça pendia para um lado; os olhos, rígidos, estavam meio abertos. Acima da cabeça havia uma placai com a inscrição: "Este é o destino de todos os
que tentam fugir de Norilsk".
Zhigulin se lembra dos cadáveres dos homens que haviam tentado fugir jogados no meio do seu lagpunkt em Kolyma, às vezes por um mês inteiro. Na verdade, essa prática
era antiga, remontava a Solovetsky. Nos anos 1940, era quase universal.
Ainda assim, os detentos tentavam fugir. De fato, a julgar pelas estatísticas oficiais e pela correspondência irritada sobre o assunto nos arquivos do Gulag, as
fugas e as tentativas de fuga eram mais comuns do que a maior parte dos memorialistas admite. Existem, por exemplo, registros de punições impostas depois de fugas
que deram certo. Em 1945, após a escapada de vários grupos do "Canteiro de Obras 500 da NKVD" - uma ferrovia que atravessava a Sibéria oriental -, oficiais das guardas
armadas receberam penas de prisão de cinco ou dez dias, e seu salário foi reduzido em 50% para cada dia passado atrás das grades. Em outros casos ilustrativos, os
guardas eram levados a julgamento depois de fugas importantes, e, de vez em quando, os chefes dos campos perdiam o emprego.
Também há registros de guardas que frustraram algumas fugas. Um guarda que soou o alarme depois que detentos em fuga sufocaram um vigia recebeu uma recompensa de
300 rublos. O chefe dele ganhou 200 rublos, assim como outro chefe da prisão, e os soldados envolvidos ficaram com 100 rublos cada um.
Nenhum campo era totalmente seguro. Por causa da localização remota, pensava-se que Solovetsky fosse inexpugnável. No entanto, em maio de 1925, dois Guardas Brancos,
S. A. Malsagov e Yuri Bessonov, escaparam de um dos campos da rede Slon do continente. Depois de atacar os vigias, eles caminharam durante 35 dias até a fronteira
com a Finlândia. Mais tarde, ambos publicaram livros sobre sua passagem por Solovetsky, os primeiros a aparecerem no Ocidente. Em 1928, Solovetsky foi palco de
outra fuga famosa. Meia dúzia de detentos atacou os guardas e transpôs os portões do campo. A maioria escapou, provavelmente cruzando a fronteira com a Finlândia
também. Em 1934, houve duas fugas particularmente espetaculares - também em Solovetsky. A primeira envolveu quatro "espiões"; a segunda, "um espião e dois bandidos".
No final dos anos 1920, à medida que os campos da Slon se expandiam pelo território careliano, as oportunidades de fuga se multiplicaram, e Vladimir Tchernavin aproveitou-se
delas. Tchernavin era especialista em pesca e tentara corajosamente injetar um pouco de realismo no Plano Qüinqüenal da Cooperativa de Pesca de Murmansk. Foi condenado
por "destruição" devido às críticas que fez ao projeto. Ele recebeu uma pena de cinco anos e foi enviado a Solovetsky. Posteriormente, o Slon o transferiu para o
norte da Carélia, onde deveria projetar novos empreendimentos de pesca.
Tchernavin aguardou o momento propício. Ao longo de muitos meses, ganhou a confiança dos superiores, que chegaram a permitir que recebesse a visita da mulher e do
filho de quinze anos, Andrei. Um dia, durante uma visita, no verão de 1933, a família saiu para um "piquenique" pela baía local. Quando chegaram à margem oeste,
Tchernavin e a mulher contaram a Andrei que eles iriam sair da URSS - a pé. "Sem bússola nem mapa, atravessamos montanhas, florestas e pântanos, até a Finlândia
e a liberdade", Tchernavin escreveu. Décadas mais tarde, Andrei recordou que o pai acreditava que poderia mudar a opinião que o mundo tinha da Rússia soviética
se escrevesse um livro sobre sua experiência. Ele escreveu. Não funcionou.
Entretanto, é possível que a experiência de Tchernavin não tenha sido única: de fato, o período de expansão inicial do Gulag pode muito bem ter sido a era de ouro
das fugas. O número de prisioneiros crescia rapidamente, a quantidade de guardas era insuficiente, os campos eram relativamente próximos à Finlândia. Em 1930, 1.174
fugitivos foram capturados na fronteira. Em 1932, 7.202 haviam sido encontrados, e é bem possível que o número de fugas bem-sucedidas tenha aumentado proporcionalmente.
Segundo as estatísticas do próprio Gulag - que podem não ser precisas, é claro -, 45.755 pessoas escaparam dos campos em 1933 e apenas um pouco mais da metade -28.370
- foi recapturada. A população estava aterrorizada pela grande quantidade de condenados à solta, e os comandantes do campo, os guardas da fronteira e a OGPU local
viviam solicitando reforços.
A resposta da OGPU foi instituir controles mais rígidos. Mais ou menos na mesma época, a ajuda dos moradores foi ativamente recrutada: a OGPU baixou uma norma para
a criação de um cinturão de 25 a 30 quilômetros em torno de cada campo no qual a população "combateria ativamente as fugas". Os encarregados dos trens e dos barcos
na vizinhança dos campos também foram recrutados. Outra norma proibiu que os guardas levassem os detentos para tomar sol. Os oficiais imploravam por mais recursos,
particularmente por mais guardas para evitar fugas. Novas leis determinavam penas de prisão extra para quem fugisse. Os guardas sabiam que se atirassem em um prisioneiro
durante uma fuga, podiam até ser recompensados.
Ainda assim, os números não caíram muito rapidamente. Nos anos 1930, as fugas em massa eram muito comuns em Kolyma. Acampados na floresta, os criminosos se organizavam
em bandos, roubavam armas e chegavam a atacar moradores, grupos de geólogos e aldeias nativas. Em 1936, depois de 22 incidentes desse tipo, montou-se uma divisão
especial para 1.500 "elementos especialmente perigosos" - prisioneiros que poderiam fugir. Posteriormente, em janeiro de 1938, no auge do Grande Terror, um dos
delegados-chefe da NKVD distribuiu uma circular a todos os campos da União Soviética observando que "apesar de uma série de normas que visam a combater decisivamente
a fuga de detentos dos campos [...] a questão ainda precisa ser melhorada".31
Nos primeiros dias da Segunda Guerra Mundial, o número de fugas voltou a subir de maneira acentuada, graças às oportunidades criadas pela evacuação dos campos na
região oeste do país e ao caos generalizado. Em julho de 1941, quinze prisioneiros escaparam de Pechorlag, um dos campos mais ermos, localizado na República Komi.
Em agosto do mesmo ano, quatro ex-marinheiros liderados por um ex-tenente da Frota do Norte conseguiram escapar de um posto avançado em Vorkuta.
Os números começaram a cair com o decorrer da guerra, mas as fugas não cessaram completamente. Em 1947, em seu apogeu no pós-guerra, 10.440 prisioneiros tentaram
escapar, dos quais apenas 2.894 foram recapturados. Talvez essa porcentagem seja pequena em relação aos milhões que enchiam os campos na época, mas ainda assim
e uma prova de que fugir não era tão impossível quanto se pensa. Pode ser até que a freqüência das fugas ajude a explicar o endurecimento das regras nos campos e
o aumento dos níveis de segurança que caracterizaram a vida no Gulag nos últimos cinco anos de sua existência.
Em geral, os memorialistas concordam que a maioria esmagadora dos fugitivos potenciais era formada por crimimosos de carreira. Isso se reflete na gíria utilizada.
Por exemplo, eles se referiam à aproximação da primavera como a chegada do "promotor verde" ("Vasia foi solto pelo promotor verde"), pois era na primavera que se
planejavam fugas do verão: "Só é possível viajar pela taiga no verão, quando se pode comer grama, cogumelos, frutas silvestres, raízes ou panquecas de musgo, caçar
arganazes, tâmias, esquilos, gaios, coelhos [...]" No extremo norte, a melhor época para fugir era o inverno, que os criminosos chamavam de "promotor branco": só
então era possível atravessar os pântanos e a lama da tundra.
Na verdade, os criminosos de carreira escapavam com mais facilidade porque, depois de "passar por baixo do arame", tinham muito mais chances de sobreviver. Se conseguissem
chegar a uma cidade grande, podiam se misturar aos criminosos locais, falsificar documentos e encontrar esconderijo. Como não tinham muitas aspirações de voltar
ao mundo "livre", eles também fugiam só para se divertir, para ficar "fora" por um tempo. Se fossem capturados e conseguissem sobreviver, o que era uma pena de dez
anos para alguém que já tinha duas condenações de 25 anos ou mais? Um ex-zek se lembra de uma prisioneira comum que fugiu apenas para se encontrar com um homem.
Ela voltou "saciada", mas foi imediatamente condenada à solitária.
Os prisioneiros políticos fugiam com muito menos freqüência. Além de não ter experiência e de não poder contar com uma rede de ajuda, eram perseguidos com muito
mais fervor. Tchernavin - que pensou muito no assunto antes de fugir - explicou a diferença:
Os guardas não se importavam muito com a fuga dos criminosos, nem dispendiam muito esforço perseguindo-os: eles seriam capturados quando chegassem à ferrovia ou
a uma cidade. No entanto, organizavam-se pelotões imediatamente para ir atrás dos presos políticos: às vezes, todas as aldeias vizinhas eram mobilizadas e até os
guardas da fronteira eram chamados a ajudar. Os prisioneiros políticos sempre tentavam fugir para fora do país - não havia refúgio em sua terra natal.
A maioria dos fugitivos era do sexo masculino, mas não todos. Margarete Buber-Neumann esteve num campo do qual uma cigana fugiu com o cozinheiro. Ao ouvir a história,
uma cigana mais velha assentiu com a cabeça: "Ela acha que existe um tabor [acampamento cigano] pelas redondezas. Se conseguir chegar até ele, estará segura". Em
geral, as fugas eram planejadas com antecedência, mas elas também podiam acontecer de uma hora para outra: Soljenitsin conta a história de um prisioneiro que pulou
uma cerca de arame farpado durante uma tempestade de poeira no Casaquistão. As tentativas de fuga costumavam ser realizadas nas áreas de trabalho menos guardadas
do campo, mas isso não era regra. Por exemplo, no mês de setembro de 1945, selecionado aleatoriamente, 51% das tentativas de fuga registradas aconteceram em áreas
de trabalho; 27%, nos alojamentos; 11%, durante o traslado. Junto com um grupo de ucranianos jovens, Edward Buca planejou a fuga de um trem de prisioneiros com
destino à Sibéria:
Com minha serra para metal, tentaríamos cortar quatro ou cinco pranchas, trabalhando apenas à noite e escondendo os vestígios no piso do vagão com uma mistura de
pão e estrume de cavalo. Quando o buraco estivesse pronto, esperaríamos até que o trem parasse na floresta, retiraríamos as pranchas e saltaríamos do vagão, tantos
quanto possível, espalhando-nos em todas as direções para confundir os guardas. Alguns seriam atingidos por tiros, mas a maioria escaparia.
Eles tiveram de desistir do plano quando alguém suspeitou da tentativa de fuga. No entanto, havia quem tentasse fugir dos trens: em junho de 1940, dois criminosos
conseguiram de fato sair por um buraco no vagão. No mesmo ano, Janusz Bardach também escapou através de algumas tábuas podres no trem. Entretanto, ele não as colocou
de volta no lugar e foi perseguido pelos cães, capturado e espancado, mas sobreviveu.
Algumas fugas se originavam, conforme afirma Soljenitsin, "não de um impulso desesperado, mas de cálculos técnicos e do amor pelo trabalho bem feito. Muros falsos
eram construídos nos vagões de carga fechados; os prisioneiros se escondiam em caixas e assim conseguiam sair dos campos. Uma vez, 26 criminosos abriram caminho
por baixo de um muro. Todos conseguiram escapar, mas, de acordo com o oficial que liderou as buscas, também foram recapturados em um ano.
Outros, como Tchernavin, aproveitavam a posição especial de que desfrutavam no campo para organizar sua fuga. Os arquivos registram a história de um prisioneiro
que deliberadamente causou um acidente num trem de mercadorias e escapou no meio da confusão. Em outro caso documentado, os detentos que receberam a incumbência
de enterrar os mortos no cemitério do campo atiraram no guarda que os escoltava e o colocaram no túmulo coletivo, de modo que seu corpo não fosse descoberto de imediato.
A fuga também era fácil para os prisioneiros "subvigiados", que tinham passes que lhes permitiam movimentar-se entre os campos.
Os disfarces também eram utilizados. Varlam Shalamov conta a história de um detento que escapou e conseguiu viver dois anos em liberdade, vagando pela Sibéria, fingindo
ser um geólogo. Num dado momento, as autoridades locais, orgulhosas de contar com um especialista, pediram-lhe respeitosamente que proferisse uma palestra. "Krivoshei
sorriu, citou Shakespeare em inglês, rabiscou alguma coisa no quadro-negro e desfiou uma dúzia de nomes estrangeiros." No final, foi apanhado porque enviou dinheiro
à esposa. É muito possível que sua história seja apócrifa, mas os arquivos registram casos semelhantes. Em um desses episódios, um prisioneiro de Kolyma roubou
alguns documentos, escondeu-se num avião e viajou até Yakutsk. E lá ele foi encontrado, confortavelmente instalado em um hotel, com 200 gramas de ouro no bolso.
Nem todas as fugas se davam por meio de astúcia. Muitas fugas de criminosos (a maioria, provavelmente) envolviam violência. Os fugitivos atacavam os guardas armados,
sufocavam-nos e atiravam neles, e faziam o mesmo com os trabalhadores livres e os moradores. Também não poupavam os companheiros de prisão. Um dos métodos-padrão
de fuga dos criminosos comuns era o canibalismo. Uma dupla de criminosos combinava fugir com um terceiro homem (a "carne"), cujo destino era tornar-se o sustento
dos outros dois durante a jornada. Buca também descreve o julgamento de um ladrão e assassino profissional, que, junto com um colega, fugiram com o cozinheiro do
campo, seu "suprimento ambulante":
Eles não foram os primeiros a ter essa idéia. Quando se tem uma comunidade imensa de pessoas que não pensam em nada a não ser fugir, é inevitável que se discutam
todos os meios possíveis de atingir esse objetivo. O "suprimento ambulante" é, na verdade, um prisioneiro gordo. Se for preciso, pode-se matá-lo e comê-lo. E, até
lá, é ele quem carrega a "comida".
Os dois homens fizeram conforme o planejado - mataram e comeram o cozinheiro - mas não negociaram a extensão da viagem. Começaram a ficar com fome outra vez:
No fundo do coração, os dois sabiam que o primeiro que dormisse seria morto pelo outro. Assim, ambos fingiam que não estavam cansados e passavam a noite contando
histórias, observando o outro de perto. A velha amizade os impedia de atacar abertamente ou de confessar as suspeitas mútuas.
Afinal, um deles dormiu. O outro cortou-lhe a garganta. Foi apanhado, Buca nos conta, dois dias depois, e ainda tinha pedaços de carne crua no saco.
Embora não se possa saber com que freqüência esse tipo de fuga ocorria, há histórias semelhantes, contadas por um número considerável de presos entre os anos 1930
e 1940, em quantidade suficiente para afirmar que elas realmente aconteciam, pelo menos de vez em quando. Quando esteve em Kolyma, Thomas Sgovio ouviu as sentenças
de morte pronunciadas em duas fugas desse tipo - eles haviam feito um rapaz de prisioneiro, mataram-no e salgaram sua carne. Vatslav Dvorzhetskii ouviu uma história
parecida na Carélia, em meados dos anos 1930.
Na tradição oral do Gulag também se podem encontrar histórias de fugas e fugitivos verdadeiramente extraordinários, muitas, mais uma vez, possivelmente apócrifas.
Soljenitsin relata a saga de Georgi Tenno, um político estoniano que vivia fugindo dos campos e em uma ocasião percorreu 460 quilômetros a cavalo, de barco e de
bicicleta, quase chegando à cidade siberiana de Omsk. Enquanto algumas histórias de Tenno são provavelmente verdadeiras (mais tarde ele se tornou amigo de um outro
memorialista sobrevivente do Gulag, Alexander Dolgun, que também o apresentou a Soljenitsin), outras, mais espetaculares, são de difícil confirmação. Existe uma
antologia inglesa que conta a história de um pastor estoniano que conseguiu fugir de um campo, falsificar documentos e atravessar a fronteira do Afeganistão com
seus acompanhantes. A mesma antologia cita um prisioneiro espanhol que escapou fingindo-se de morto quando um terremoto destruiu seu campo. Mais tarde, ele diz,
atravessou a fronteira do Irã.
Por fim, há o caso curioso de Slavomir Rawicz, cujas memórias, A longa caminhada, contêm a mais espetacular e comovente descrição de uma fuga em toda a literatura
sobre o Gulag. Segundo esse relato, Rawicz foi capturado após a invasão soviética da Polônia e deportado para um campo no norte da Sibéria. Ele afirma ter escapado,
com a conivência da esposa de um comandante do campo, na companhia de outros seis detentos, um deles americano. Junto com uma garota polonesa, uma expatriada que
ele pegou no meio do caminho, eles conseguiram sair da União Soviética.
Durante aquela que teria sido uma jornada extraordinária (se jamais tivesse ocorrido), eles circundaram o lago Baikal, cruzaram a fronteira da Mongólia, seguiram
pelo deserto de Gobi, pelo Himalaia e pelo Tibete, até a Índia. Ao longo do caminho, quatro prisioneiros morreram; o restante sofreu privações extremas. Infelizmente,
varias tentativas de confirmar essa história - muito parecida com um conto de Rudyard Kipling, "O homem que era" - deram em nada. A longa caminhada é uma história
narrada com extrema maestria, mesmo (pie não seja verdadeira. Seu realismo convincente pode muito bem servir como lição a todos os que tentam descrever de forma
factual as fugas do Gulag.
Pois, na verdade, a fantasia em torno da fuga exercia um papel importante na vida de muitos prisioneiros. Mesmo para os milhares de detentos que jamais tentariam
escapar, o pensamento da fuga - o sonho da fuga - era um apoio psicológico importante. Um sobrevivente de Kolyma me disse que "uma das formas mais óbvias de oposição
ao regime era fugir". Em especial, os prisioneiros jovens e do sexo masculino planejavam, discutiam e brigavam sobre a melhor maneira de escapar. Para alguns, essa
discussão era um meio de combater a sensação de impotência, como Gustav Herling escreve:
Era comum nos reunirmos em um dos alojamentos, um grupo íntimo de poloneses, para discutir os detalhes do plano; juntávamos fragmentos de metal que encontrávamos
no trabalho, caixas velhas e pedaços de vidro, com os quais acreditávamos poder montar uma bússola improvisada; recolhíamos informações sobre os arredores do campo,
sobre as distâncias, as condições atmosféricas e as peculiaridades geográficas do norte [...]
Na terra de pesadelo para a qual fomos levados em centenas de trens de carga, cada minuto de fantasia nos dava uma nova vida. Afinal, se a participação em uma organização
terrorista não existente podia ser punida com dez anos de prisão em um campo de trabalho forçado, por que um prego afiado não poderia ser a agulha de uma bússola,
um pedaço de madeira não poderia se transformar em um esqui, uma folha de papel coberta de linhas e pontos não poderia servir de mapa?
Herling suspeita que, no fundo, todos os envolvidos nessas discussões aceditavam que os preparativos eram fúteis. No entanto, o exercício servia a seu propósito:
Lembro-me de um oficial subalterno da cavalaria polonesa que, durante os piores períodos de fome no campo, tinha força de vontade para cortar uma fina fatia do pão
de sua ração diária, secá-la no fogo e guardá-la num saco que mantinha em algum esconderijo do alojamento. Anos depois, encontramo-nos de novo no deserto iraquiano.
Enquanto recordávamos os anos de prisão em torno de uma garrafa numa tenda, caçoei de seu "plano" de fuga. Mas ele me respondeu grave: "Você não devia rir disso.
Sobrevivi ao campo graças à esperança de fugir, e só escapei da morte graças ao meu estoque de pão. Um homem é incapaz de sobreviver se não tiver uma razão para
viver".
Se na memória da maioria dos sobreviventes era impossível fugir dos campos, uma rebelião era impensável. A caricatura do zek oprimido, derrotado e desumanizado,
desesperado para colaborar com as autoridades, incapaz até mesmo de pensar mal do regime soviético, quanto mais de tramar contra ele, aparece em muitas memórias,
inclusive nas de duas das maiores personalidades literárias da comunidade russa: Soljenitsin e Chalamov. E pode ser que, ao longo de grande parte da história do
Gulag, essa imagem não estivesse longe da verdade. O sistema interno de espionagem e informantes realmente fazia os prisioneiros suspeitarem uns dos outros. A opressiva
inevitabilidade do trabalho e a predominância dos membros do crime organizado tornavam difícil para os outros prisioneiros pensar em uma oposição organizada. A experiência
humilhante de ser interrogado, preso e deportado roubara-lhes boa parte da vontade de viver, quanto mais o desejo de se opor às autoridades. Herling, que organizou
uma greve de fome com outros detentos poloneses, descreve a reação dos amigos russos:
Eles ficavam excitados e fascinados diante do simples fato de termos ousado erguer a mão contra a inalterável lei da escravidão, que jamais havia sido perturbada
por um gesto de revolta. Por outro lado, havia o medo instintivo - que tinham conservado da vida anterior - de se envolver em algo perigoso, talvez um caso que pudesse
levar a um tribunal de guerra. Como saber se os interrogatórios não revelariam as conversas dos "rebeldes" no alojamento imediatamente após a transgressão?
Mais uma vez, no entanto, os arquivos contam uma história diferente e revelam a existência de muitos protestos menores e interrupções do trabalho nos campos. Os
chefes dos criminosos de carreira, em especial, pareciam conduzir greves de trabalho breves e apolíticas sempre que queriam alguma coisa das autoridades, que consideravam
esses incidentes como nada mais que uma perturbação. Nos anos 1930 e 1940, particularmente, a posição privilegiada dos criminosos comuns os teria tornado menos temerosos
de punições e teria lhes dado mais oportunidades de organizar essas pequenas rebeliões.
Às vezes ocorriam protestos espontâneos dos criminosos nas lonas viagens de trem para o leste, quando não havia água e o único alimento disponível era arenque salgado.
Para obrigar os guardas a lhes dar água, os criminosos combinavam "armar uma gritaria", que os guardas detestavam, como lembra um prisioneiro: "Um dia a legião romana
chorou ao som dos gritos agudos dos germanos, tão aterrorizantes! Os sádicos do Gulag sentiram o mesmo terror [...]" Essa tradição durou até os anos 1980, quando,
como lembra a poetisa e dissidente Irina Ratushinskaya, descontentes com o tratamento recebido, os detentos que eram transportados levaram o protesto um passo à
frente:
"Ei, companheiros! Comecem a chacoalhar!", grita uma voz de homem.
Todos os prisioneiros começam a balançar o vagão. Todos juntos, em uníssono, jogam-se contra uma das paredes de sua prisão, depois contra a parede oposta. O vagão
está tão cheio que a estratégia logo dá resultado. Ele sai dos trilhos e faz todo o trem descarrilar.
A superlotação e a má qualidade da comida também podiam levar a um tipo de protesto mais bem descrito como surtos semi-organizados de histeria. Uma testemunha narra
uma dessas cenas, liderada por um grupo de prisioneiras comuns:
Como se tivessem recebido uma ordem, cerca de duzentas mulheres despiram-se de repente e começaram a correr pelo pátio, totalmente nuas. Em poses rudes, amontoaram-se
ao redor dos guardas e gritaram, guincharam, riram e blasfemaram, jogaram-se ao chão em convulsões aterradoras, puxaram o próprio cabelo, arranharam o próprio rosto
até ele sangrar, caíram de novo no chão, de novo se levantaram e correram para o portão.
"A-a-a-a-a-a-a-a-a-i!", a multidão gritou.
A parte esses momentos de loucura espontânea, utilizava-se uma modalidade de protesto mais antiga, a greve de fome, cujos objetivos e métodos foram herdados diretamente
dos primeiros políticos (que, por sua vez, tinham-nos herdado da Rússia pré-revolucionária), os social-democratas, os anarquistas e os mencheviques que foram presos
nos anos 1920. Esse grupo de prisioneiros manteve a tradição das greves de fome - herdada da Rússia pré-revolucionária - depois que foram mandados às prisões de
isolamento, longe de Solovetsky, em 1925. Até o momento da execução, em 1937, Alexsander Fedodeev, um dos líderes dos social-revolucionários, continuou fazendo greves
de fome na prisão de Suzdal, nas quais reivindicava o direito de se corresponder com a família.
Entretanto, mesmo depois de terem sido novamente transferidos das prisões para os campos, alguns ainda tentavam manter a tradição. Em meados dos anos 1930, as greves
de fome dos socialistas ganharam a adesão de alguns trotskistas genuínos. Em outubro de 1936, centenas de trotskistas, anarquistas e outros prisioneiros políticos
de um lagpunkt de Vorkuta deram início a uma greve de fome que duraria, segundo os registros, 132 dias. Sem dúvida, seu objetivo era político: os grevistas exigiam
ser separados dos criminosos, queriam que o seu dia de trabalho fosse limitado a oito horas, que fossem alimentados a despeito do trabalho - e que suas penas fossem
anuladas. Em outro lagpunkt de Vorkuta, uma greve ainda maior - desta vez com a adesão dos criminosos - duraria 115 dias. Em março de 1937, a administração do Gulag
decidiu atender às reivindicações dos grevistas. No final de 1938, no entanto, a maioria havia sido morta nas execuções em massa que ocorreram no mesmo ano.
Mais ou menos na mesma época, outro grupo de trotskistas entrou em greve no campo de transição de Vladivostok, enquanto esperava a transferência para Kolyma. Ali
eles fizeram reuniões e elegeram um líder, que reivindicou o direito de examinar o barco em que seriam transportados. O pedido foi recusado. Ainda assim, enquanto
entravam na embarcação, os presos entoavam canções revolucionárias e chegaram até mesmo (a se acreditar nos relatórios dos informantes da NKVD) a exibir pôsteres
com slogans como "Hurra, Trotski, gênio revolucionário!" e "Abaixo Stalin!" Quando o vapor chegou a Kolyma, os prisioneiros começaram a fazer novas reivindicações:
as tarefas deveriam ser designadas segundo a especialidade de cada um, todos deveriam ser pagos para trabalhar, os casais não deveriam ser separados, todos os prisioneiros
tinham o direito de enviar e receber cartas livremente. No tempo devido, convocaram uma série de greves de fome, sendo que uma delas durou cem dias. Um observador
contemporâneo escreveu que "em Kolyma, os líderes dos prisioneiros trotskistas viviam no reino da fantasia e ignoravam as verdadeiras relações de poder". No devido
tempo, também eles foram condenados e executados. Mas seu sofrimento causou impacto. Anos mais tarde, um ex-promotor de Kolyma recordava os acontecimentos com clareza:
Tudo que aconteceu depois produziu um efeito tão forte sobre mim e meus camaradas que, durante vários dias, fiquei vagando como se estivesse sob uma neblina e à
minha frente marchasse uma fila de trotskistas fanáticos condenados, os quais, temerariamente, partiam desta vida grilando seus slogans [...]
Talvez em resposta a essas rebeliões, a NKVD começou a levar mais a sério as greves de fome e de trabalho dos prisioneiros políticos. A partir dos anos 1930, os
grevistas passaram a receber penas de prisão adicionais, até mesmo penas de morte. Eles levavam a sério as greves de fome, mas levavam ainda mais a sério a recusa
dos prisioneiros em trabalhar: isso ia contra o próprio espírito dos campos. O prisioneiro que não trabalhava não criava apenas um problema disciplinar; ele se transformava
num sério obstáculo aos objetivos econômicos do campo. Os grevistas passaram a ser severamente punidos, em especial após 1938, conforme descreve um detento:
Alguns prisioneiros se recusavam a sair para trabalhar [...] algo sobre a comida estar estragada. Naturalmente, a administração agia com rigor. Catorze líderes,
doze homens e duas mulheres, foram mortos. As execuções aconteceram no campo, e os prisioneiros assistiram ao espetáculo enfileirados. Então, grupos de homens de
cada alojamento ajudaram a cavar os túmulos, do lado de fora, ao lado da cerca de arame farpado. Enquanto essa lembrança ainda era fresca, as chances de haver outro
tumulto eram pequenas [...]
Mas nem a perspectiva de punição e a consciência de que haveria algumas mortes eliminavam a urgência de cada prisioneiro de se rebelar. Mais tarde, depois da morte
de Stalin, eles o fizeram em massa. Mas mesmo enquanto Stalin vivia, mesmo durante os anos duros da guerra, o espírito da revolta sobreviveu - como bem ilustra a
notável história do levante de Ust-Usa, em janeiro de 1942.
Nos anais do Gulag, a rebelião de Ust-Usa foi, ao que se sabe, única. Se houve outras fugas em massa enquanto Stalin era vivo, ainda não sabemos. Sobre Ust-Usa sabemos
bastante: versões truncadas do acontecimento há muito fazem parte da história oral do Gulag, mas nos últimos anos ela também foi cuidadosamente documentada.
O mais estranho é o fato de essa rebelião não ter sido liderada por um prisioneiro, mas por um trabalhador livre. Na época, Mark Retyunin era o administrador chefe
do lagpunkt Lesoreid, um pequeno campo madeireiro dentro do complexo de Vorkuta. O lagpunkt tinha cerca de duzentos prisioneiros, e mais da metade eram prisioneiros
políticos. Em 1942, Retyuniri conhecia bem o sistema do campo: como vários chefes dos campos menores, ele já havia sido prisioneiro, tendo servido dez anos por um
suposto roubo a banco. No entanto, tinha a confiança dos administradores. Um deles descreveu-o como um homem "preparado para sacrificar a própria vida pelos interesses
produtivos do campo". Outros lembravam-se dele como um homem que bebia e jogava - uni testemunho, talvez, de suas origens criminosas. Outros ainda o descreviam como
um amante de poesia e dono de um "temperamento forte", fanfarrão e briguento - um testemunho, talvez, da lenda em que ele se transformou.
A motivação precisa de Retyunin ainda é obscura. Ao que parece, ele ficou profundamente chocado quando a NKVD, logo depois do início da guerra, em 1941, publicou
um édito proibindo todos os prisioneiros políticos de sair dos campos, mesmo aqueles cujas penas haviam expirado. Afanasy Yashkin, o único dos conspiradores originais
que sobreviveu à rebelião, disse aos interrogadores da NKVD que Retyunin acreditava que todos os habitantes do lagpunkt, prisioneiros ou não, seriam executados quando
os alemães começassem a avançar pela União Soviética. "O que temos a perder, mesmo que eles nos matem?", ele os incitava. "Qual é a diferença? Caímos mortos amanhã
ou morremos hoje como rebeldes [...] as autoridades do campo vão atirar em todos os condenados por contra-revolução, mesmo nós, trabalhadores livres que eles pretendem
manter aqui até o fim da guerra." Esse sentimento não era totalmente paranóico: como havia sido detento em Vorkuta, em 1938, ele sabia que a NKVD era bem capaz de
cometer execuções em massa. Além disso, a despeito do status de chefe de um lagpunkt, recentemente fora proibido de voltar para casa num feriado.
Não se conhecem outros detalhes dos preparativos. Não é de surpreender que Retyunin não tenha deixado documentos escritos. Apesar disso, os próprios acontecimentos
tornam claro que a rebelião foi planejada com cuidado. Os rebeldes deram o primeiro passo na tarde do dia 24 de janeiro de 1942. Era um sábado, o dia em que os guardas»
do campo planejavam utilizar as banheiras. Eles as encheram zelosamente. O ajudante de banho do campo, um detento chinês chamado Lu Fa - que estava entre os conspiradores
- rapidamente trancou as portas atrás deles. Imediatamente os outros rebeldes desarmaram o restante dos guardas, que vigiavam o vakhta. Dois guardas reagiram.
Um foi morto e o outro, ferido. Todas as armas foram parar nas mãos rios rebeldes, doze metralhadoras e quatro revólveres no total.
Rapidamente um grupo de rebeldes abriu os depósitos do campo e começou a distribuir roupas de boa qualidade e botas aos prisioneiros Esses itens haviam sido especialmente
estocados por Retyunin, que exortou os prisioneiros a se juntarem ao levante. Nem todos aderiram. Alguns sentiram medo, outros perceberam a inutilidade de tudo aquilo;
houve até quem tentasse dissuadir os rebeldes. Outros concordaram. Por volta das cinco horas daquela tarde, mais ou menos ama hora depois do início da revolta, uma
coluna de cem homens marchava na direção de Ust-Usa, a cidade vizinha.
A princípio, os moradores do lugar, desconcertados pela boa aparência dos prisioneiros, não entenderam o que estava acontecendo. Então os rebeldes, a essa altura
divididos em dois grupos, atacaram o correio e a cadeia. Foram bem-sucedidos nas duas investidas. Eles abriram as celas da cadeia, e mais doze presos se juntaram
às suas fileiras. No correio, cortaram a comunicação com o mundo exterior. Ust-Usa estava sob o controle dos detentos.
Nesse ponto, a população começou a resistir. Uns poucos pegaram armas no edifício da milícia da cidade. Alguns se apressaram para defender o pequeno campo de aviação,
em cuja pista, por acaso, havia dois aviões. Outros pediram socorro: um policial subiu no cavalo e dirigiu-se ao lagpunkt de Polya-Kurya, nas redondezas. Lá o pânico
irrompeu. O chefe do campo, convencido de que os alemães tinham chegado, imediatamente ordenou que os prisioneiros tirassem o sapato, para que não pudessem fugir.
Quinze guardas armados puseram-se a marchar em direção a Ust-Usa, pensando que iam defender a terra natal.
Nessa altura, a batalha já era aberta no centro de Ust-Usa. Os rebeldes haviam desarmado alguns dos policiais da cidade e procurado mais armas. Não contavam, no
entanto, com os defensores intrépidos do edifício da milícia. A luta que se seguiu durou a noite toda. Pela manhã, as perdas dos rebeldes eram graves. Havia nove
mortos e um ferido. Quarenta tinham sido capturados. Os sobreviventes optaram por uma tática diferente: partir de Ust-Usa e rumar para outra cidade, Kozhva. Não
sabiam, porém, que as autoridades de Ust-Usa já haviam pedido ajuda com um radiotransmissor escondido na floresta. Todas as estradas que saíam de Ust-Usa aos poucos
eram tomadas por milicianos.
Ainda assim, no início eles tiveram sorte. Quase de imediato, os rebeldes chegaram a uma aldeia onde não encontraram resistência de fato. Tentaram convencer os agricultores
locais a se juntar a eles, mas foram mal-sucedidos. No correio, ouviram uma linha aberta e perceberam que a milícia estava a caminho. Abandonaram a estrada principal
e enveredaram pela tundra, escondendo-se, a princípio, numa fazenda do renas. Na manhã do dia 28 de janeiro, foram descobertos: outra batalha irrompeu, com baixas
pesadas dos dois lados. Ao cair da noite, porém, os rebeldes remanescentes haviam fugido - cerca de trinta ainda estavam vivos - e se escondido num abrigo de caçadores
numa montanha próxima. Alguns decidiram permanecer e lutar, embora já não tivessem mais nenhuma chance, pois estavam sem munição. Outros partiram pela floresta,
onde, sob o rigor do inverno, em terreno aberto, também não teriam chance.
O último ato se devi a 31 de janeiro e durou um dia e uma noite. A medida que a milícia fechava o cerco, alguns rebeldes, inclusive Retyunin, se mataram. A NKVD
caçou os outros na floresta, pegando vim por um. Os corpos foram empilhados: a milícia, num frenesi de ódio, mutilou-os e depois fotografou-os. As fotos, conservadas
nos arquivos regionais, mostram corpos contorcidos, atormentados, cobertos de neve e sangue. Não há registro do local de sepultamento. Dizem que os milicianos os
queimaram ali mesmo.
Como conseqüência, os rebeldes capturados no início foram enviados a Syktyvkar, a capital regional, e sem demora colocados sob investigação. Depois de mais de seis
meses de interrogatório e tortura, nove receberam novas penas de prisão e 49 foram executados a 9 de agosto de 1942.
O número de mortos entre os defensores da ordem soviética foi alto. Mas não foi apenas a perda de algumas dúzias de guardas e civis que preocupou a NKVD. Segundo
um testemunho registrado, Yashkin também "confessou" que o objetivo final de Retyunin era derrubar as autoridades regionais, impor um regime fascista e, naturalmente,
aliar-se à Alemanha nazista. Conhecendo os métodos soviéticos de interrogatório, podemos descartar essas razões com bastante segurança.
Ainda assim, a rebelião foi muito mais que uma revolta comum: claramente, ela tinha motivações políticas e abertamente anti-soviéticas. Os rebelados também não tinham
o perfil típico do fugitivo comum: em sua maioria, eles eram prisioneiros políticos. A NKVD sabia que os rumores sobre a rebelião se espalhariam com rapidez pelos
campos próximos, que contavam com um número incomumente alto de presos políticos durante a guerra. Alguns, então e mais tarde, suspeitavam que os alemães tivessem
conhecimento dos campos de Vorkuta e planejassem usá-los como quinta-coluna, caso sua marcha chegasse tão longe. Rumores de que espiões alemães desceram de pára-quedas
na região persistem até os dias de hoje.
Como temia que a ação se repetisse, Moscou tomou providências. A 20 de agosto de 1942, todos os chefes de todos os campos do sistema receberam um memorando: "Sobre
o Aumento das Atividades Contra-Revolucionárias nos Campos de Trabalho Correcionais da NKVD". O memorando exigia que eles eliminassem as "forças contra-revolucionárias
e anti-soviéticas" dos campos em duas semanas. As investigações que se seguiram em todo o país "revelaram" uma quantidade enorme de pretensas conspirações, desde
o "Comitê para a Libertação do Povo", em Vorkuta, até a "Sociedade Russa para a Vingança contra os Bolcheviques", em Omsk. Um relatório publicado em 1944 declarava
que 603 grupos de insurreição que operavam nos campos haviam sido descobertos entre 1941 e 1944, com um total de 4.640 participantes.
Sem dúvida, a grande maioria desses grupos era fictícia, criada com o objetivo de provar que a rede de informantes dentro dos campos estava fazendo alguma coisa.
No entanto, as autoridades tinham razão em ter medo: a rebelião de Ust-Usa fora uma amostra do que estava por vir. Embora tenha sido derrotada, não foi esquecida:
como também não se esqueceu o sofrimento dos socialistas e dos trotskistas. Uma década depois, partindo do ponto em que os rebeldes e os grevistas de fome haviam
parado, uma nova geração de prisioneiros reinventaria as greves políticas, modificando suas táticas à luz de uma nova era. A história deles, entretanto, pertence
aos capítulos subseqüentes. Eles não fazem parte da história dos campos no apogeu do reinado do Gulag, mas de uma saga posterior: a história do fim do Gulag.
ASCENSÃO E QUEDA DO COMPLEXO INDUSTRIAL DE CAMPOS
1940-86
19. Início da guerra
Era soldado, hoje sou prisioneiro
Minha alma congela, minha língua cala.
Que poeta, que artista
Pintará meu terrível cativeiro?
E os corvos malignos não sabiam
Que espécie de pena dar
Quando nos torturaram e caçaram
Da prisão ao degredo ao campo
Mas o indizível ocorrei
Acima da presa
Uma estrela livre brilha
A alma congela - mas não se quebra
A língua cala - mas vai falar!
Leonid Sitko, 1949.
A memória coletiva do Ocidente costuma reconhecer o dia 1o de setembro de 1939, data da invasão do oeste da Polônia pela Alemanha, como o início da Segunda Guerra
Mundial. Entretanto, na consciência histórica da Rússia, nem esse dia, nem o 15 de setembro de 1939 -data da invasão soviética do leste da Polônia - contam como
o início da batalha. Apesar de dramática, essa invasão conjunta, definida com antecedência durante as negociações que culminaram com o pacto Hitler-Stalin, não afetou
diretamente a vida da maioria dos soviéticos. Nenhum cidadão soviético se esquece, porém, de 22 de junho de 1941, o dia em que Hitler deslanchou a Operação Barba
Ruiva, um ataque-surpresa contra os aliados russos. Karlo Stajner, então prisioneiro em Norilsk, ouviu a notícia no rádio do campo:
Subitamente, a música foi interrompida e ouvimos Molotov falar do "ataque desleal" contra a União Soviética. Depois de algumas palavras, o programa saiu do ar. Havia
cerca de cem pessoas no alojamento, mas o silêncio era completo: olhávamos fixamente uns para os outros. O vizinho de Vasily disse: "E o nosso fim".
Acostumados à idéia de que todo evento político de grandes proporções era ruim para eles, os prisioneiros políticos receberam a notícia da invasão com particular
horror. E eles tinham razão: em alguns casos, os "inimigos do povo", agora encarados como uma potencial quinta-coluna, eram alvo imediato do aumento da repressão.
Alguns (até hoje o número é desconhecido) foram executados. Stajner se lembra de que, no segundo dia da guerra, a comida foi racionada: "o açúcar foi banido, e mesmo
a ração de sabão caiu pela metade". No terceiro dia da guerra, todos os detentos estrangeiros foram reunidos. Stajner, um cidadão austríaco (embora ele se considerasse
um comunista iugoslavo), foi detido novamente, retirado do campo e colocado numa cadeia. Os promotores do campo reabriram seu caso.
O mesmo padrão se repetiu em todos os campos. Em Ustvymlag, no primeiro dia de guerra o comandante do campo proibiu as cartas, as encomendas, os jornais, e retirou
as caixas acústicas do rádio. Os chefes de Kolyma tiraram dos prisioneiros políticos o direito de ler cartas e jornais e também cortaram o acesso aos rádios. Em
todos os cantos, as revistas aumentaram, a contagem da manhã ficou mais longa. Os comandantes dos lagpunkts organizaram um alojamento de segurança máxima para os
prisioneiros de origem alemã. "Todos os Burgs, Bergs e Steins, um passo para a esquerda. Todos os Hindenbergs e Ditgensteins e assim por diante", os guardas gritavam,
indicando que Evgeniya Ginsburg deveria se juntar a eles. Ela conseguiu correr para o escritório de Registro e Triagem e persuadiu o inspetor a examinar sua nacionalidade:
"Essa deve ter sido a primeira vez na história em que ser judeu era uma vantagem".
A administração de Karlag removeu todos os prisioneiros de origem finlandesa e germânica da marcenaria do campo e os mandou cortar madeira. Um prisioneiro fino-americano
se lembra de que "depois de cinco dias, a marcenaria interrompeu a produção porque os finlandeses e os alemães eram os únicos que sabiam fazer o trabalho [...] Sem
a autorização de Moscou, eles nos levaram de volta à marcenaria".
A mudança mais dramática foi o decreto - baixado também a 22 de junho de 1941 - que proibia todos os prisioneiros condenados por "traição à pátria, espionagem, terrorismo,
trotskismo, tendências direitistas e banditismo" (em outras palavras, presos políticos) de deixar os campos. Os detentos chamavam esse decreto de "extratermo", embora
se tratasse de fato de uma ordem administrativa, não uma nova sentença. Segundo os registros oficiais, 17 mil prisioneiros foram afetados de imediato. Outros seriam
incluídos mais tarde. Em geral, não havia notificação antecipada: no dia em que iam ser soltos, aqueles que se enquadravam nos termos do decreto simplesmente
recebiam um documento instruindo-os a permanecer nos limites do arame farpado "até a guerra terminar". Para muitos, isso significava que ficariam na prisão para
sempre. "Só então percebi a real extensão da tragédia que se abatera sobre minha vida", recordou-se um prisioneiro.
A tragédia foi ainda pior para as mulheres com filhos. Uma prisioneira polonesa conta a história de uma mulher que havia sido obrigada a deixar o bebê num berçário
fora do campo. Durante todos os dias em que esteve presa, ela não pensava em nada além de recuperar o filho. Então, quando chegou a hora de ser solta, ela soube
que continuaria presa por causa da guerra: "Ela jogou o trabalho para o lado, inclinou-se sobre a mesa e começou a urrar como um animal selvagem".
Olga Adamova-Sliozberg também conta a história de uma mulher, Nadya Fyodorovich, que devia ser libertada a 25 de junho de 1941. O filho, que na época vivia com parentes
distantes que queriam livrar-se dele, esperava pela mãe. Ela lhe escrevera, pedindo que tivesse paciência. Quando soube que não seria libertada, escreveu-lhe de
novo. Ele não respondeu:
Afinal, no inverno de 1942, ela recebeu uma carta de um estranho. Ele havia encontrado Borya em alguma estação remota da Sibéria, perto de Irkutsk, e descoberto
que o garoto estava com pneumonia. O estranho cuidara de Borya até ele melhorar e agora reprovava Nadya por ter se esquecido do filho assim que fora solta; era uma
péssima mãe; provavelmente, tinha se casado e estava indo muito bem enquanto o filho de catorze anos, viajando de carona num trem de Ryazan a Irkutsk, morria de
fome.
Nadya tentou entrar em contato com o estranho, mas não conseguiu: os censores não enviavam mais as cartas dos prisioneiros, especialmente as que se referiam à extensão
indefinida das penas. Mais tarde, Nadya soube que o filho havia se juntado a uma gangue. Em 1947, condenado a cinco anos de prisão, ele também acabou em Kolyma.
Para todos os que permaneceram atrás do arame farpado, a vida tornou-se mais dura à medida que a guerra avançava. Novas leis determinavam uma jornada de trabalho
maior. Agora, recusar-se a trabalhar não era apenas ilegal, mas um ato de traição. Em janeiro de 1941,Vasily Chernyshev, comandante da administração central do Gulag,
enviou uma carta aos chefes de todos os campos e colônias descrevendo o destino de 26 prisioneiros. O sistema de justiça do campo julgara-os, considerou-os culpados
por se recusarem a trabalhar e dera a cinco deles uma pena adicional de dez anos no campo. Os outros 21 foram condenados à morte. Lacônico, Chernyshew disse aos
subalternos para "informar os prisioneiros de todos os campos e das colônias de trabalho corretivo" sobre essas sentenças.
A mensagem se espalhou rapidamente. Todos os prisioneiros, escreveu Gustav Herling, sabiam muito bem que "espalhar o derrotismo e recusar-se a trabalhar estavam
entre os mais graves delitos que se podia cometer nos campos depois de 22 de junho de 1941; nos novos regulamentos de segurança, eles estavam incluídos na categoria
'sabotagem contra o esforço de guerra'".
O resultado de todas essas políticas, aliadas à grande escassez de comida, foi dramático. Embora as execuções em massa não fossem tão comuns quanto haviam sido em
1937 e 1938, a taxa de mortalidade entre os detentos em 1942 e 1943 foram as mais altas de toda a história do Gulag. Segundo as estatísticas oficiais, certamente
subestimadas, 352.560 prisioneiros morreram em 1942, ou seja, um quarto deles. Um quinto morreu em 1943, ou seja, 267.826. Oficialmente, 22% dos detentos estavam
doentes em 1943 e 18% em 1944, mas o número devia ser muito maior, pois o tifo, a disenteria e outras epidemias varriam os campos.
Em janeiro de 1943, a situação chegara a tal ponto que o governo soviético criou um "fundo" especial de alimentos para o Gulag: os prisioneiros podiam ser "inimigos",
mas eram necessários para manter a produção em tempo de guerra. A situação da comida realmente melhorou à medida que a maré da guerra se tornava favorável à União
Soviética, mas, mesmo com as rações extras ao final da guerra os presos recebiam apenas dois terços das calorias que consumiam no final da década de 1930. No total,
bem mais de 2 milhões de pessoas morreram nos campos e nas colônias do Gulag nos anos de guerra, sem contar aqueles que morreram no degredo ou sob outras formas
de encarceramento. Mais de 10 mil foram executados, por traição ou sabotagem, a mando dos promotores dos campos.
Para colocar esses dados e essas mudanças em contexto, é preciso dizer que a população livre da União Soviética também sofreu durante a guerra e que os regimes de
trabalho mais rígidos afetaram os operários dentro e fora dos campos. Já em 1940, na esteira da invasão da Polônia e dos países bálticos, o Soviete Supremo estabeleceu
uma jornada de trabalho de oito horas diárias, inclusive nos finais de semana, em todas as fábricas e instituições. E o governo foi ainda mais drástico, pois proibiu
os trabalhadores de deixar o local de trabalho. Quem desobedecesse era passível de ser punido com uma pena nos campos. A produção de bens de "baixa qualidade" ("sabotagem")
também se tornou crime, e as penas para os outros delitos ficaram mais duras. Operários acusados de surrupiar peças sobressalentes, ferramentas, papel ou material
de escrita do local de trabalho eram condenados a passar um ano em um campo - ou mais.
Fora dos campos, as pessoas passavam fome tanto quanto os prisioneiros. Durante o bloqueio alemão a Leningrado, a ração de pão caiu para 120 gramas por dia, o que
era insuficiente para alguém se manter vivo, e não havia óleo para o aquecimento, o que transformou o inverno no extremo norte em um tormento. A população caçava
pássaros e ratos, roubava comida das crianças moribundas, comia cadáveres e cometia assassinatos para ficar com os cartões de racionamento. "Em casa as pessoas lutavam
pela vida como exploradores polares à beira da morte", recorda um sobrevivente.
Leningrado não era a única cidade a passar fome. Relatórios da NKVD escritos em abril de 1945 atestam a escassez de víveres e a fome coletiva na Ásia central - Uzbequistão,
Mongólia e República Tártara. As famílias que haviam perdido seu arrimo para as frentes de batalha eram as que mais sofriam. A fome também atingiu a Ucrânia: em
1947, casos de canibalismo ainda era registrados. Ao todo, a União Soviética alega ter perdido 20 milhões de cidadãos durante a guerra. Entre 1941 e 1945, o Gulag
não foi a única fonte de sepulturas coletivas do país.
Além do aumento do controle e das regras mais rígidas, a declaração de guerra trouxe também o caos. A invasão alemã prosseguia com uma rapidez chocante. Nas primeiras
quatro semanas da Operação Barba Ruiva, quase todas as 319 unidades soviéticas destacadas para a batalha foram destruídas. No outono, as forças nazistas haviam
ocupado Kiev e cercado Leningrado, e pareciam estar na iminência de capturar Moscou.
Os postos avançados do Gulag a oeste foram dominados nos primeiros dias da guerra. Em 1939, a direção havia fechado os acampamentos remanescentes nas ilhas
Solovetsky e transferido todos os detentos para prisões do continente: achava que o campo ficava próximo demais da fronteira com a Finlândia. (Durante a evacuação
e a subseqüente ocupação da Finlândia, o arquivo do campo desapareceu. Provavelmente, ele foi destruído, seguindo os procedimentos-padrão, mas há rumores, nunca
confirmados, de que os papéis foram roubados pelo exército finlandês e ainda estão guardados num cofre ultra-secreto do governo em Helsinki.) A direção também instruiu
Belbaltlag, o campo que cuidava do canal do mar Branco, a evacuar os detentos em julho de 1941, mas para deixar os cavalos e o gado para o Exército Vermelho. Não
se sabe se os soldados soviéticos puseram as mãos neles antes da chegada dos alemães.
Nas demais localidades, a NKVD simplesmente entrou em pânico, e muito mais ainda nos territórios recém-ocupados do leste da Polônia e dos países bálticos, onde as
prisões estavam lotadas de prisioneiros políticos. A NKVD não tinha tempo para evacuá-los, mas também não podia deixar "terroristas anti-soviéticos" nas mãos dos
alemães. Em 22 de junho, dia da invasão alemã, a NKVD começou a executar os prisioneiros de Lwów, a cidade polaco-ucraniana próxima à frente germano-soviética. No
entanto, durante a operação, um levante ucraniano engolfou a cidade, obrigando a NKVD a abandonar as prisões de uma hora para outra. Encorajados pela súbita ausência
de guardas e pelo som de fogo de artilharia, um grupo de detentos da prisão de Brygidka, no centro de Lwów, fugiu. Outros se recusaram a partir, temerosos de que
os guardas estivessem a postos do lado de fora dos portões, esperando uma desculpa para matá-los.
Os que decidiram ficar pagaram pelo erro. A 25 de junho, a NKVD, com o reforço dos guardas de fronteira, voltou a Brygidka, libertou os criminosos... e metralhou
os prisioneiros políticos nas celas subterrâneas. Os carros e os caminhões que transitavam acima abafaram o ruído das metralhadoras. Os presos das outras cadeias
da cidade tiveram destino semelhante. A NKVD matou um total de 4 mil prisioneiros em Lwów, largando-os em sepulturas coletivas que mal teve tempo de cobrir com uma
camada fina de areia.
Atrocidades semelhantes aconteceram em todas as regiões de fronteira. Na esteira da retirada soviética, a NKVD deixou para trás cerca de 21 mil prisioneiros e libertou
outros 7 mil. Num surto final de violência, porém, tropas da NKVD em retirada e soldados do Exército Vermelho assassinaram quase 10 mil presos em dezenas de cidades
e aldeias polonesas e bálticas - Vilna, Drohobycz, Pinsk. Eles foram mortos nas celas, nos pátios das prisões, nas florestas próximas. Enquanto se retiravam, as
tropas da NKVD também incendiavam edifícios e atiravam em civis, muitas vezes matando os donos das casas em que estiveram alojadas.
Longe da fronteira, onde havia mais tempo para os preparativos, o Gulag tentou organizar adequadamente a evacuação dos prisioneiros. Três anos depois, em,seu longo
e pomposo resumo sobre o esforço de guerra do Gulag, seu chefe na época, Viktor Nasedkin, descreveu essas evacuações como "ordeiras". Os planos haviam sido "elaborados
em conjunto com a relocação da indústria", ele declarou, embora "devido às bem conhecidas dificuldades de traslado, alguns prisioneiros tenham sido evacuados a pé".
Na verdade, não houve planejamento, e as evacuações foram conduzidas em meio ao pânico, com freqüência enquanto as bombas alemãs caíam por perto. As "bem conhecidas
dificuldades de traslado" significavam que as pessoas morriam sufocadas nos vagões superlotados dos trens ou que estes eram destruídos pelas bombas antes de chegar
a seu destino. Um detento polonês, Janusz Puchinski, preso e deportado a 19 de junho, escapou de um trem em chamas cheio de prisioneiros, junto com a mãe e os irmãos:
A certa altura, houve uma explosão forte e o trem parou. As pessoas começaram a escapar dos vagões [...] vi que o trem estava numa ravina profunda. Pensei que jamais
sairia de lá. Os aviões passavam acima da minha cabeça, minhas pernas pareciam feitas de algodão. Não sei como, pulei para fora e comecei a correr na direção das
árvores, a cerca de 200 ou 250 metros dos trilhos. Quando cheguei, virei-me e vi que atrás de mim, no espaço aberto, havia uma multidão de pessoas. Nesse momento,
um novo grupo de aviões chegou e começou a atirar [...]
As bombas também atingiram um trem que transportava os detentos da prisão de Kolomyja, matando alguns, mas permitindo a fuga de trezentos. Os guardas do comboio
recapturaram 150, mas depois os soltaram. Conforme explicaram, não tinham como alimentar os prisioneiros nem onde deixá-los. Todas as prisões da área haviam sido
evacuadas.
Entretanto, a experiência de estar num trem de prisioneiros durante um ataque aéreo era um tanto incomum - no mínimo porque estes raramente eram incluídos nos trens
de evacuação. A família e a bagagem dos guardas e administradores não deixavam lugar para mais ninguém nos trens que partiam dos campos. Nos outros locais, o equipamento
industrial tinha prioridade sobre as pessoas, tanto por questões práticas quanto por motivos publicitários. Esmagada a oeste a liderança soviética prometeu reedificar-se
a leste dos Urais. Como resultado, a "proporção significativa" de prisioneiros - na verdade, a esmagadora maioria - que, segundo Nasedkin, eram "evacuados a pé",
suportou longas marchas forçadas, cuja descrição guarda uma semelhança assustadora com as marchas empreendidas pelos prisioneiros dos campos de concentração nazistas
quatro anos depois: "Não temos transporte", um guarda disse a um grupo de prisioneiros enquanto as bombas caíam ao redor. "Quem puder andar, que ande. Gostem ou
não, todos vão andar. Quem não puder andar será morto. Não deixaremos ninguém para os alemães [...] escolham seu destino".
E então eles andaram - embora a jornada de vários tenha sido abreviada. O rápido avanço dos alemães deixava a NKVD nervosa, e quando estavam nervosos, eles atiravam.
A 2 de julho, 954 prisioneiros da prisão de Czortków, na Ucrânia ocidental, começaram a marchar para o leste. Ao longo do caminho, o oficial que escreveu o relatório
subseqüente identificou 123 deles como ucranianos nacionalistas e os executou por "tentativa de rebelião e fuga". Depois de caminhar por mais de duas semanas, com
o exército alemão a menos de 20 ou 30 quilômetros, ele matou todos os que ainda estavam vivos.
Muitas vezes, a situação dos que não eram assassinados era pouca coisa melhor. Nasedkin escreveu que "o aparato do Gulag nas regiões de conflito foi mobilizado para
garantir que os prisioneiros evacuados tivessem assistência médico-sanitária e comida". Esta é a descrição que M. Shteinberg, uma prisioneira política encarcerada
pela segunda vez em 1941, fez da sua evacuação da prisão de Kirovograd:
Tudo estava envolvido pela luz cegante do sol. Ao meio dia, ficou insuportável. Estávamos na Ucrânia, no mês de agosto. Fazia 35 graus todos os dias. Uma imensa
quantidade de pessoas caminhava, e sobre essa multidão pairava uma nuvem de poeira. Não havia como respirar, era impossível respirar [...]
Todos tinham uma trouxa nas mãos. Eu também. Tinha levado ate um casaco, pois era difícil sobreviver à prisão sem um casaco. Ele serve de travesseiro, de cobertor,
de disfarce - tudo. Na maioria das prisões, não há camas, nem colchões, nem lençóis. Mas depois de termos percorrido 30 quilômetros naquela calor, deixei tranqüilamente
minha trouxa na beira da estrada. Sabia que não conseguiria carregá-la. A grande maioria das mulheres fez o mesmo. Quem não largou a trouxa depois dos primeiros
30 quilômetros largou depois dos 200. Ninguém chegou ao final com ela. Depois de mais 15 quilômetros, tirei os sapatos e abandonei-os também [...]
Quando passamos por Adzhambka, arrastei minha companheira de cela, Sokolovskaya, por 30 quilômetros. Ela era uma mulher velha, tinha mais de setenta anos, cabelos
totalmente grisalhos [...] para ela, era muito difícil caminhar. Ela se agarrou a mim e ficou falando sobre o neto de quinze anos, com quem vivia. O terror final
na vida de Sokolovskaya era o de que ele fosse preso também. Era difícil arrastá-la, e comecei a vacilar. Ela me disse "descanse um pouco, vou sozinha". Em pouco
tempo, ficou mais de um quilômetro para trás. Éramos as últimas do comboio. Quando senti que ela havia ficado para trás, me virei para alcançá-la - e então vi quando
eles a mataram. Esfaquearam-na com uma baioneta. Pelas costas. Ela nem viu. Obviamente, eles sabiam como esfaquear. Ela nem se mexeu. Mais tarde, percebi que sua
morte fora fácil, mais fácil que a dos outros. Ela não viu a baioneta. Não teve tempo de sentir medo [...].
Ao todo, a NKVD evacuou 750 mil prisioneiros de 27 campos e 210 colônias de trabalho forçado. Outros 140 mil foram evacuados de 272 prisões e enviados a novas cadeias
no leste. Uma porcentagem significativa, embora ainda não se saiba o número real, jamais chegou a seu destino.
20. "Estranhos"
Salgueiros são salgueiros em todo lugar
Salgueiro de Alma-Ata, que belo és vestido de branco gelado e brilhante.
Mas se eu te esquecer, meu salgueiro seco de Varsóvia, Rua Rozbat.
Minha pena secará também
Montanhas são montanhas em todo lugar
Diante de meus olhos, o Tian Shan mergulha no céu púrpura [...]
Mas se eu vos esquecer, picos do Tatra que deixei para trás,
Riacho Bialy, onde eu e meu filho vivemos sonhos vividos de viagens pelo mar [...]
Uma rocha do Tian Shan me tornarei.
Se eu te esquecer
Se eu esquecer minha terra natal[...]
Aleksander Wat, "Salgueiros de Alma-Ata", janeiro de 1942.
Desde o início, os campos do Gulag sempre tiveram uma quantidade notável de prisioneiros estrangeiros. Em sua maior parte, eram comunistas do Ocidente e membros
do Comintern, embora também houvesse um punhado de mulheres britânicas e francesas, esposas de cidadãos soviéticos, além dos peculiares homens de negócio expatriados.
Eles eram tratados como raridades, curiosidades, mas ainda assim sua origem comunista e sua experiência anterior na União Soviética os ajudava a se entrosarem com
os outros detentos. Conforme escreveu Lev Razgon:
Eles eram "nossos" porque eles tinham ou nascido ou crescido no pais, ou ainda porque haviam vindo para cá de livre e espontânea vontade. Mesmo quando falavam russo
muito mal, eram nossos. E, no caldeirão de raças dos campos, eles logo deixaram de se destacar ou de parecer diferentes. Os que sobreviveram ao primeiro e ao segundo
anos no campo só podiam ser diferenciados de "nós" pelo russo mal falado.
Já os estrangeiros que surgiram depois de 1939 eram bem diferentes. Sem aviso prévio, depois da invasão soviética do leste da Polônia, uma região multiétnica, da
Bessarábia e dos países bálticos, a NKVD arrancou esses recém-chegados - poloneses, bálticos, ucranianos bielo-russos e moldávios - de seu mundo agrícola ou burguês
e jogou, em grande número, no Gulag e nas aldeias de degredo. Comparando-os com "nossos" estrangeiros, Razgon chamou-os de "estranhos". Tendo sido "arrancados de
seu próprio país por uma força histórica alienígena e hostil que não compreendiam", eles eram instantaneamente identificáveis por seus bens: "Em Ustvymlag, sempre
éramos alertados de sua chegada pelo surgimento de peças de roupa exóticas entre os detentos criminosos: o chapéu alto e felpudo e as faixas coloridas da Moldávia,
e, de Bukovina, os coletes bordados elegantes e justos, com ombreiras".
As prisões tiveram início nos territórios ocupados logo depois da invasão soviética do leste da Polônia, em setembro de 1939, e continuaram depois das invasões da
Romênia e dos países bálticos. Os objetivos da NKVD eram a segurança (ela queria evitar as rebeliões e a formação de quinta-colunas) e a sovietização, por isso o
alvo eram as pessoas que, em sua opinião, podiam se opor ao regime soviético. Isso incluía não apenas os integrantes do antigo governo polonês, mas também comerciantes
e mercadores, poetas e escritores, camponeses e fazendeiros ricos - todos cuja prisão provavelmente contribuísse para o colapso psicológico dos habitantes do leste
da Polônia. Eles também tinham como alvo os refugiados do oeste do país, ocupado pela Alemanha, entre os quais havia milhares de judeus fugindo de Hitler.
Posteriormente, o critério para as prisões tornou-se mais preciso, ou, pelo menos, tão preciso quanto sempre foram os critérios para as prisões na União Soviética.
Um documento de maio de 1941 relativo à expulsão dos elementos "socialmente estranhos" dos países bálticos, da Romênia ocupada e da Polônia ocupada exigia, entre
outras coisas, a prisão dos "membros ativos das organizações contra-revolucionárias" - ou seja, os partidos políticos; antigos integrantes da polícia ou dos presídios;
capitalistas e burgueses importantes, ex-oficiais das forças armadas; familiares de todos os mencionados acima; qualquer repatriado da Alemanha; refugiados da "antiga
Polônia"; assim como ladrões e prostitutas.
Outro lote de instruções, anunciado em novembro de 1940 pelo comissário da recém-sovietizada Lituânia, afirmava que os deportados deveriam incluir, além das categorias
acima,
os que viajam ao exterior com freqüência, os que se correspondem com o exterior ou se comunicam com representantes de outros países; esperantistas, filatelistas;
os que trabalham com a Cruz Vermelha-refugiados, contrabandistas; os que foram expulsos do Partido Comunista; padres e membros ativos de congregações religiosas;
nobres, proprietários de terras, comerciantes ricos, banqueiros, industriais e donos de hotéis e restaurantes.
Quem violasse as leis soviéticas, inclusive as que proibiam a "especulação" - qualquer forma de comércio -, poderia ser preso. Assim como poderiam ser presos os
que tentassem atravessar a fronteira e fugir para a Hungria ou a Romênia.
Devido à escala das prisões, os líderes da ocupação soviética tiveram de suspender rapidamente até mesmo o disfarce de legalidade. Poucas pessoas capturadas pela
NKVD nos novos territórios a oeste foram levadas a julgamento, encarceradas ou condenadas. Em vez disso, mais uma vez a guerra promoveu um renascimento da "deportação
administrativa", o mesmo procedimento que, instigado pelos czares, tinha sido usado contra os kulaks. "Deportação administrativa" é um nome bonito para um procedimento
simples. As tropas da NKVD ou os guardas dos comboios chegavam a uma residência e mandavam os moradores sair. Às vezes eles tinham um dia para se preparar, às vezes
alguns minutos. Então chegavam os caminhões que os levavam à estação de trem e adeus. Não havia prisão, nem julgamento, nenhum procedimento formal.
Os números em questão eram muito grandes. O historiador Aleksandr Gurjanow estima que 108 mil pessoas tenham sido presas no leste da Polônia e enviadas aos campos
do Gulag, enquanto 320 mil teriam sido deportadas para aldeias de degredo - algumas fundadas pelos kulaks - no extremo norte do Casaquistão. E preciso acrescentar
também os 96 mil prisioneiros e os 160 mil deportados dos países bálticos, assim como os 36 mil moldávios. O efeito combinado das deportações e da guerra sobre
a demografia dos países bálticos é chocante: entre 1939 e 1945, a população da Estônia diminuiu 25%.
A história dessas deportações, como a história das deportações dos kulaks, é diferente da história do Gulag, e, corno eu disse, a saga completa dessa movimentação
indiscriminada de famílias não cabe no contexto deste livro, embora ela não seja um fato totalmente isolado. É difícil entender por que a NKVD decidia deportar determinada
pessoa para uma aldeia de degredo e prender outra num campo, já que os antecendentes de prisioneiros e deportados eram os mesmos. Às vezes, quando um homem era mandado
para um campo, a mulher e os filhos eram deportados. Ou, se um filho era preso, então os pais eram deportados. Alguns presos cumpriam a pena no campo e depois passavam
a morar nas aldeias de degredo, às vezes com os familiares anteriormente deportados.
À parte a função punitiva, as deportações se encaixavam perfeitamente no grande plano de Stalin de povoar a região norte da Rússia. Como o Gulag, as aldeias de degredo
estavam deliberadamente situadas em áreas remotas, e pareciam ser permanentes. Certamente, os oficiais da NKVD disseram a muitos degredados que eles jamais voltariam,
chegando até a congratular os "novos cidadãos", enquanto eles embarcavam nos trens, pela emigração definitiva para a União Soviética. Nas aldeias de degredo, os
comandantes costumavam lembrar os recém-chegados de que a Polônia, então dividida entre a União Soviética e a Alemanha, jamais voltaria a existir. Um professor russo
disse a uma estudante polonesa que o renascimento da Polônia era tão provável quanto "o nascimento de pêlos em suas mãos". Enquanto isso, nas cidades e nas aldeias
que eles haviam deixado para trás, os oficiais soviéticos confiscavam e redistribuíam seus bens. Transformaram suas casas em edifícios públicos - escolas, hospitais,
maternidades - e deram seu conteúdo (aquilo que não fora roubado pelos vizinhos ou pela NKVD) a creches e abrigos para crianças.
Os deportados sofriam tanto quanto os conterrâneos que tinham sido enviados aos campos de trabalho, se é que não sofriam mais. Pelo menos os prisioneiros tinham
uma ração diária de pão e um lugar para dormir. Com freqüência, os degredados não tinham nem uma coisa nem outra. As autoridades despejavam-nos na floresta virgem
ou em aldeias minúsculas, no norte da Rússia, no Casaquistão, na Ásia central, e os deixavam lutar pela vida, muitas vezes sem ter como. Na primeira onda de deportações,
os guardas dos comboios proibiram as pessoas de levar com elas o que quer que fosse, nem utensílios de cozinha, nem roupas, nem ferramentas. Somente em novembro
de 1940 o corpo administrativo dos guardas de comboio soviéticos reverteu essa decisão: até as autoridades soviéticas perceberam que a falta de pertences dos deportados
aumentava a taxa de mortalidade e ordenaram que os guardas avisassem aos deportados que levassem roupas quentes para três anos.
Ainda assim, muitos deportados não estavam preparados física e psicologicamente para a vida de forasteiro ou nas fazendas coletivas.
A própria paisagem parecia alienígena e aterrorizante. Uma mulher descreveu-a em um diário assim que a avistou do trem: "Somos levados por este espaço sem fim; uma
terra enorme e plana, com alguns povoados aqui e ali. Invariavelmente, vemos cabanas de terra esquálidas com teto de sapê e janelas pequenas, sujas e dilapidadas,
sem cercas nem árvores..."
Quando chegavam, a situação costumava piorar. Muitos degredados eram advogados, médicos, lojistas e comerciantes, acostumados a viver em cidades relativamente sofisticadas.
Mas, segundo um relatório arquivado com data de dezembro de 1941, os degredados dos "novos" territórios ocidentais viviam em alojamentos superlotados: "As instalações
são sujas, por isso a incidência de doenças e mortes é alta, especialmente entre as crianças [...] a maioria dos degredados não tem roupas quentes e não está habituada
ao frio".
Nos meses e anos que se seguiram, o sofrimento apenas aumentou, como um lote de documentos incomuns registra. Depois da guerra, o governo polonês no exílio patrocinou
e preservou uma compilação de "memórias" das crianças sobre as deportações. Elas ilustram, melhor do que qualquer adulto, tanto o choque cultural quanto as privações
físicas experimentados pelos deportados. Um garoto polonês de treze anos na época da "prisão" escreveu o seguinte relato:
Não tinha nada para comer. As pessoas comiam urtiga, inchavam e iam embora para o outro mundo. Obrigavam a gente a ir para a escola russa porque não nos davam pão
se não fôssemos. Lá ensinavam a não rezar para Deus porque Deus não existe, e quando a gente começava a rezar, depois da aula, o comandante do povoado me trancava
na tyurma [prisão].
As histórias de outras crianças refletem o trauma dos pais. "Mamãe queria tirar a própria vida e a nossa para não viver naquele tormento, mas quando eu disse que
queria ver papai e voltar para a Polônia, o ânimo dela melhorou", escreveu um menino que tinha oito anos quando foi preso. Mas nem todas as mulheres conseguiram
se animar. Uma criança que tinha catorze anos na época da deportação descreveu a tentativa de suicídio da mãe:
Mamãe foi ao alojamento, pegou uma corda e um pedaço de pão e foi para a floresta. Eu segurei mamãe, mas ela estava triste e me bateu com a corda e foi embora. Algumas
horas depois encontraram mamãe numa árvore, com uma corda em volta do pescoço. Tinha umas moças embaixo da árvore, mamãe pensou que eram minhas irmãs e quis dizer
alguma coisa mas as moças gritaram com o comandante que tinha levado um machado no cinto e cortou a árvore [...] Ainda brava, mamãe agarrou o machado e acertou o
comandante nas costas, e ele caiu no chão [...]
No dia seguinte levaram mamãe para uma cadeia a 350 quilômetros daqui. Entendi que eu tinha de trabalhar e continuei a carregar a madeira. Eu tinha um cavalo que
estava fraco como eu. Carreguei madeira durante um mês e então fiquei doente e não pude trabalhar. O comandante notificou o vendedor de que não devia nos dar pão,
mas o vendedor compreendia as crianças e nos dava pão escondido [...] logo que mamãe veio da cadeia os pés dela congelaram e o rosto se enrugou [...].
Tampouco todas as mães sobreviveram - conforme escreveu outra criança:
Chegamos ao povoado e, no segundo dia, eles nos mandaram para o trabalho, que a gente tinha de trabalhar de madrugada até a noite. Quando o dia do pagamento de quinze
dias chegou 10 rublos foi o pagamento máximo de modo que em dois dias não havia o suficiente para o pão. As pessoas morriam de fome. Elas comiam cavalos mortos.
Foi assim que minha mãe trabalhou e pegou um resfriado porque ela não tinha roupa quente ela pegou pneumonia e ficou doente cinco meses ela ficou doente dia 3 de
dezembro. No dia 3 de abril ela foi para o hospital. No hospital eles não cuidaram dela se ela não tivesse ido para o hospital talvez ainda estivesse viva ela voltou
para o alojamento do povoado e morreu não tinha nada pra comer então ela morreu de fome no dia 30 de abril de 1941. Minha mãe estava morrendo e eu e minha irmã estávamos
em casa. Papai não estava ele estava no trabalho e minha mãe morreu quando papai voltou pra casa do trabalho então mamãe morreu e então minha mãe morreu de fome.
Então veio a anistia e fomos embora daquele inferno.
Comentando essa compilação de histórias, incomuns pela natureza e pela quantidade, Bruno Bettelheim tentou descrever o desespero especial que elas transmitem:
Como foram escritas logo depois de as crianças terem sido libertadas e estarem em segurança, teria sido razoável que elas falassem de sua esperança na libertação,
se tivessem alguma. A ausência de afirmações nesse sentido sugere que elas não tinham. Roubaram dessas crianças o direito de expressar sentimentos profundos e normais.
Para sobreviver por mais um dia, tiveram de reprimi-los. Um criança privada de ter qualquer esperança no futuro é uma criança que habita o inferno [...].
Igualmente cruel foi o destino de outro grupo de degredados, que se juntariam aos poloneses e aos bálticos ao longo da guerra. Tratava-se das minorias soviéticas.
No início da guerra, Stalin as tratava como possível quinta-coluna; no fim, apontava-as como "colaboradoras" dos alemães. Os "quinta-colunistas" eram os alemães
do Volga, cujos ancestrais haviam sido convidados a viver na Rússia no tempo de Catarina, a Grande (outra governante russa profundamente preocupada em povoar as
grandes áreas vazias do país), e a minoria de fala finlandesa que tinha morado na República Careliana. Embora nem todos os alemães do Volga falassem alemão e nem
todos os finlandeses da Carélià falassem finlandês, eles realmente viviam em comunidades distintas e tinham costumes diferentes dos vizinhos russos. No contexto
da guerra contra a Finlândia e a Alemanha, isso era suficiente para torná-los objeto de suspeita. Num raciocínio tortuoso até mesmo para os padrões soviéticos, todos
os alemães do Volga foram condenados, em setembro de 1941, como "inimigos ocultos":
Segundo informação fidedigna recebida pelas autoridades militares, há entre a população germânica que vive na área do Volga dezenas de milhares de diversionistas
e espiões que, a um sinal da Alemanha, vão realizar sabotagens na área [No entanto] nenhum dos alemães do Volga relatou às autoridades soviéticas a existência desse
grande número de diversionistas e espiões; conseqüentemente, a população germânica da área do Volga esconde inimigos do povo soviético e das autoridades soviéticas.
As autoridades soviéticas tinham "informações fidedignas" de que havia milhares de espiões, mas nenhum espião havia sido denunciado. Logo, todos eram culpados de
esconder o inimigo.
Entre os "colaboradores" estavam várias pequenos povos caucasianos - os caracenos, os baleares, os calmuques, os tchetchenos e os inguches -, além dos tártaros da
Criméia e de outros grupos minoritários: turcos mesquetes, curdos e khemshils, além de grupos ainda menores de gregos, búlgaros e armênios. Entre eles, apenas a
deportação dos tártaros e dos tchetchenos tornou-se pública durante a vida de Stalin. Seu degredo, embora tenha acontecido de fato em 1944, foi anunciado no jornal
Izvestiya como se tivesse acontecido em junho de 1946:
Durante a Grande Guerra Patriótica, quando os povos da União Soviética defendiam heroicamente a honra e a independência da pátria na luta contra os invasores germano-fascistas,
muitos tchetchenos e tártaros da Criméia, instigados por agentes alemães, juntaram-se voluntariamente a unidades organizadas pelos alemães [...] Por causa disso,
os tchetchenos e os tártaros da Criméia foram assentados em outras regiões da URSS.
Na verdade, não há provas de colaboração maciça dos tchetchenos ou dos tártaros, embora os alemães os recrutassem ativamente e não recrutassem russos. As forças
alemãs pararam a oeste de Grosni, capital da Tchetchênia, e não mais que poucos tchetchenos cruzaram o front. Um relatório da NKVD menciona apenas 335 "bandidos"
na república. Do mesmo modo, embora os alemães tenham de fato ocupado a Criméia, cooptado e alistado tártaros - como alistaram franceses e holandeses -, não há
provas de que eles tenham colaborado mais ou menos que os povos de outras regiões ocupadas da União Soviética (ou da Europa) ou de que tenham participado do assassinato
de judeus da Criméia. Um historiador ressaltou que, de fato, mais tártaros lutaram ao lado do Exército Vermelho contra os nazistas do que o contrário.
Provavelmente, o objetivo de Stalin, ao menos no episódio das deportações dos caucasianos e dos tártaros, não era vingar-se pelo colaboracionismo. Ele parece ter
usado a guerra como um meio de encobrir e levar adiante operações de limpeza étnicas havia muito planejadas. Os czares sonhavam com uma Criméia livre dos tártaros
desde quando Catarina, a Grande incorporara a península ao império russo. Os tchetchenos também incomodavam os czares russos e causavam ainda mais problemas para
a União Soviética. A Tchetchênia foi palco de uma série de levantes anti-russos e anti-soviéticos, alguns depois da revolução, outros após a coletivização de 1929.
Outra rebelião aconteceu em 1940. Todos os indícios apontam para o fato de Stalin simplesmente querer se livrar desse povo incômodo, profundamente anti-soviético.
Como acontecera na Polônia, as deportações dos alemães do Volga, dos caucasianos e dos tártaros da Criméia envolveram grandes números. No final da guerra, havia
1,2 milhão de alemães soviéticos deportados, 90 mil calmuques, 70 mil caracenos, 390 mil tchetchenos 90 mil inguches, 40 mil baleares e 180 mil tártaros, além de
9 mil finlandeses e outros.
Tendo em vista esses números, a velocidade das deportações foi notável, pois superou até a rapidez com que poloneses e bálticos foram expulsos. Talvez isso tenha
acontecido porque a NKVD já tivesse bastante experiência: nessa altura, não havia indecisão quanto a quem poderia levar o quê, quem deveria ser preso ou que providências
deveriam ser tomadas. Em maio de 1944, 31 mil funcionários da NKVD, entre oficiais, soldados e ajudantes, deportaram 200 mil tártaros em três dias, usando cem jipes,
250 caminhões e 67 trens. Uma ordem especial, preparada de antemão, limitava a quantidade de bagagem que cada família poderia levar. Porém, como eles dispunham de
apenas quinze ou vinte minutos para fazer as malas, muitos não levavam sequer metade do permitido. A grande maioria dos tártaros foi colocada em trens e despachada
para o Uzbequistão - homens, mulheres, crianças e velhos. Entre 6 mil e 8 mil morreram antes de chegar.
Na Tchetchênia, a operação foi ainda mais cruel. Muitos observadores se lembram de que a NKVD utilizou Studebakers americanos recém-comprados pelo programa Lend-Lease
e transportados pela fronteira com o Irã. E descrevem como os tchetchenos foram arrancados dos Studebakers e colocados em trens lacrados: não eram privados apenas
de água, como os prisioneiros "comuns", mas também de alimento. Cerca de 78 mil tchetchenos podem ter morrido apenas nos trens de traslado.
Na chegada aos locais designados para o degredo - Casaquistão, Ásia central e norte da Rússia -, os deportados que não haviam sido presos separadamente e enviados
ao Gulag foram colocados em aldeias especiais, como as que os poloneses e os bálticos povoaram, e avisados de que qualquer tentativa de fuga resultaria numa pena
de vinte anos nos campos. Sua experiência também foi parecida. Desorientados, arrancados de suas aldeias e tribos, muitos não conseguiram se adaptar. Geralmente
desprezados pela população local, freqüentemente desempregados, logo se enfraqueceram e adoeceram. Talvez o choque diante do novo clima tenha sido maior: "Quando
chegamos ao Casaquistão", recorda um tchetcheno deportado, "o solo estava congelado, e pensamos que todos íamos morrer". Em 1949, centenas de milhares de caucasianos
e entre metade e um terço dos tártaros estavam mortos.
No entanto, do ponto de vista de Moscou, havia uma diferença importante entre as ondas de deportação e prisão da época de guerra e as que tinham acontecido antes:
o alvo escolhido era novo. Pela primeira vez, Stalin decidira eliminar não apenas os integrantes de nacionalidades suspeitas específicas ou "inimigos" políticos,
mas nações inteiras - homens, mulheres, crianças, velhos -, varrendo-as do mapa.
Talvez "genocídio" não seja a palavra certa para definir essas deportações, já que não houve execuções em massa. Anos depois, Stalin buscaria colaboradores e aliados
entre esses grupos "inimigos", portanto seu ódio não era puramente racial. Entretanto, o termo "genocídio cultural" não é inadequado. Depois da partida, o nome de
todas as pessoas deportadas foi retirado dos documentos oficiais - até mesmo da Grande Enciclopédia Soviética. As autoridades eliminaram sua terra natal do mapa,
abolindo a República Autônoma dos Tchetchenos e Inguches, a República Autônoma dos Alemães do Volga, a República Autônoma dos Cabardinos e Baleares e a Província
Autônoma dos Caracenos. A República Autônoma da Criméia também foi liqüidada e simplesmente se tornou outra província soviética. As autoridades regionais destruíram
cemitérios, renomearam cidades e aldeias e baniram os antigos habitantes dos livros de história.
Em seus novos lares, todos os muçulmanos deportados - tchetchenos, inguches, baleares, caracenos e tártaros - foram forçados a enviar os filhos para escolas russas.
Todos foram desencorajados de falar a própria língua, de praticar sua fé, de lembrar-se do passado. Sem sombra de dúvida, esperava-se que os tchetchenos, os tártaros,
os alemães do Volga e as pequenas nações do Cáucaso - e, por um período mais longo, os bálticos e os poloneses - desaparecessem, que fossem absorvidos pelo mundo
soviético de língua russa. No final, essas nações "reapareceram" depois da morte de Stalin, ainda que vagarosamente. Embora os tchetchenos tenham obtido permissão
para voltar para casa em 1957, os tártaros não puderam fazer o mesmo até a era
Gorbatchev. Eles receberam a "cidadania" criméia - o direito legal de residência - apenas em 1994.
Devido ao clima da época, à crueldade da guerra e à presença, alguns quilômetros a oeste, de outro genocídio planejado, alguns se perguntaram por que Stalin simplesmente
não matou as etnias que ele tanto desprezava. Meu palpite é que a destruição da cultura, e não dos povos, servia melhor a seus propósitos. A operação livrou a União
Soviética do que ele considerava estruturas sociais "inimigas" - as instituições burguesas, religiosas e nacionais, as pessoas educadas que poderiam se opor a ele.
Ao mesmo tempo, ela preservava mais "unidades de trabalho" para o futuro.
Mas a história dos estrangeiros nos campos não termina com os tchetchenos e os poloneses. Os forasteiros podiam acabar nos campos soviéticos de outras maneiras -
e a maioria absoluta dava entrada como prisioneiro de guerra.
Tecnicamente, o Exército Vermelho estabeleceu o primeiro campo soviético para prisioneiros de guerra em 1939, após a ocupação do leste da Polônia. O primeiro decreto
regulamentando esses campos foi baixado em 19 de setembro desse ano, quatro dias depois de os tanques soviéticos cruzarem a fronteira. No fim de setembro, o Exército
Vermelho mantinha presos 230 mil soldados e oficiais poloneses. Muitos foram soltos, especialmente os soldados mais jovens, de patente mais baixa, embora alguns,
tidos como guerrilheiros potenciais, tenham ido parar no Gulag ou em um dos cerca de cem campos para prisioneiros de guerra nas regiões mais recônditas do país.
Após a invasão alemã, esses campos foram evacuados e seus detentos, enviados aos campos do leste.
No entanto, nem todos os prisioneiros de guerra poloneses foram deslocados para os campos orientais. Em abril de 1940, a NKVD assassinou em segredo com um tiro na
cabeça mais de 20 mil oficiais poloneses, obedecendo a uma ordem direta de Stalin. Stalin matou os oficiais pela mesma razão pela qual ordenara a prisão de padres
e professores poloneses (sua intenção era eliminar a elite do país), mas encobriu a matança. Apesar de se esforçar muito, o governo polonês no exílio não conseguiu
descobrir o destino dos oficiais - até que os alemães os encontraram. Na primavera de 1943, o regime de ocupação alemã encontrou 4 mil corpos na floresta de Katyn.
Embora as autoridades soviéticas negassem a responsabilidade pelo massacre de Katyn, como ele passou a ser conhecido, e embora os aliados tenham apoiado essa versão
(eles chegaram a citar o massacre como um crime dos alemães no Tribunal de Nuremberg), os poloneses sabiam, através de fontes próprias, que a NKVD era a responsável.
O caso viria a minar a "aliança" polaco-soviética não apenas durante a guerra, mas nos cinqüenta anos seguintes. O presidente russo Boris Yeltsin admitiu a responsabilidade
soviética no massacre apenas em 1991.
Embora prisioneiros de guerra poloneses continuassem a apresentar-se em batalhões de trabalho forçado e nos campos do Gulag ao longo de toda a guerra, os primeiros
campos de trabalho construídos em escala verdadeiramente maciça não foram erguidos para os poloneses. À medida que a sorte dos soviéticos mudava, o Exército Vermelho
começou a capturar um grande número de prisioneiros do Eixo, aparentemente de forma inexplicável. E as autoridades estavam muito despreparadas. Na esteira da rendição
alemã após a Batalha de Stalingrado - sempre lembrada como o ponto de virada da guerra -, o Exército Vermelho prendeu 91 mil soldados inimigos, para os quais não
havia instalações nem comida. Os alimentos enviados três ou quatro dias depois não eram suficientes: "Um pão era dividido entre dez homens, além de uma sopa feita
com água, sementes de painço e peixe salgado".
Nas primeiras semanas de cativeiro, as condições não eram muito melhores, e não apenas para os sobreviventes de Stalingrado. Enquanto o Exército Vermelho avançava
para o oeste, os soldados capturados eram conduzidos às campinas abertas, onde eram deixados com um mínimo de comida e nenhum remédio, isso quando não eram mortos
de imediato. Sem abrigo, os prisioneiros dormiam abraçados, amontoados na neve, e, quando acordavam, descobriam que estavam agarrados a cadáveres. Nos primeiros
meses de 1943, o índice de mortalidade entre os prisioneiros de guerra estava em torno de 60%, e cerca de 570 mil foram oficialmente dados como mortos em cativeiro.
Morreram de fome, de doenças, de ferimentos não tratados. E possível que a quantidade real tenha sido ainda maior, pois muitos podem ter morrido antes que alguém
os tivesse contado. Entre os soldados soviéticos capturados pelos alemães, os índices de mortalidade eram semelhantes: a guerra nazi-soviética foi mesmo uma batalha
de morte. No entanto, a partir de março de 1944, a NKVD encarregou-se de "melhorar" a situação e criou um novo departamento de campos de trabalho forçado, especialmente
projetado para os prisioneiros de guerra. Embora estivessem sob a jurisdição da polícia secreta, tecnicamente esses campos não pertenciam ao Gulag, mas à Agência
de Prisioneiros de Guerra (UPV) da NKVD, e, depois de 1945, à Agência de Prisioneiros de Guerra e Internos (GUPVI).
A nova burocracia não trouxe melhora no tratamento. As autoridades japonesas, por exemplo, calculam que o inverno de 1945-46 - após o final da guerra - tenha sido
o pior para os prisioneiros japoneses. Um décimo deles morreu no cativeiro soviético. Embora não estivessem em condição de passar informações militares úteis, as
restrições severas à correspondência continuaram: os prisioneiros de guerra só tiveram permissão para escrever para casa em 1946, em formulários especiais classificados
como "carta de prisioneiro de guerra".
Foram criados escritórios especiais nos quais censores que falavam línguas estrangeiras liam as cartas deles.
A superlotação também não deixou de existir. No último ano da guerra, e mesmo depois, a quantidade de pessoas enviadas ao novos campos continuou a crescer, chegando
a níveis alarmantes. Segundo as estatísticas oficiais, a União Soviética manteve 2.388 milhões de prisioneiros de guerra alemães entre 1941 e 1945. Também caíram
em mãos soviéticas 1.097 milhão de soldados europeus que lutavam pelo Eixo - em sua maioria italianos, húngaros, romenos e austríacos, além de alguns franceses,
holandeses e belgas - e cerca de 600 mil japoneses, um número surpreendente se levarmos em conta que a guerra entre a União Soviética e o Japão foi relativamente
breve. Na época do armistício, o total de soldados capturados ultrapassava 4 milhões.
Mas esses dados não incluem todos os estrangeiros jogados nos campos soviéticos durante a marcha do Exército Vermelho pela Europa. No rastro do exército, a NKVD
também procurava por outros tipos de prisioneiros: qualquer pessoa acusada de crimes de guerra, qualquer pessoa suspeita de espionagem (mesmo que para um governo
aliado), qualquer pessoa considerada anti-soviética por alguma razão, qualquer pessoa de quem a polícia secreta não gostasse. Seu interesse era particularmente amplo
nos países da Europa central em que pretendiam ficar depois da guerra. Em Budapeste, por exemplo, logo capturaram 75 mil civis húngaros e os enviaram primeiramente
a campos provisórios na Hungria e depois ao Gulag - junto com centenas de milhares de prisioneiros de guerra húngaros que ainda estavam lá.
Quase todo mundo podia ser preso. Entre os húngaros apanhados em Budapeste, por exemplo, estava George Bien, de dezesseis anos. Ele foi preso com o pai porque eles
possuíam um rádio. Na outra ponta do espectro social, os oficiais da NKVD também prenderam Raul Wallenberg, um diplomata sueco que, sozinho, salvara milhares de
judeus húngaros da deportação aos campos de concentração nazistas. No curso das negociações, Wallenberg teve de lidar com as autoridades fascistas e os líderes ocidentais.
Além disso, ele vinha de uma família sueca proeminente e rica. Para a NKVD, essas eram razões suficientes para considerá-lo suspeito. Ele foi preso em Budapeste
em janeiro de 1945, junto com o motorista. Os dois desapareceram nas prisões soviéticas (Wallenberg foi registrado como "prisioneiro de guerra") e nunca mais se
ouviu falar deles. Nos anos 1990, o governo sueco procurou pistas do paradeiro de Wallenberg, mas nada descobriu. Hoje se acredita que ele tenha morrido sob interrogatório
ou que tenha sido executado logo após a prisão.
Na Polônia, a NKVD voltou os olhos para os líderes remanescentes do Exército da Pátria. Até 1944, esse exército de guerrilheiros lutou ao lado das tropas soviéticas
contra os alemães. No entanto, assim que o Exército Vermelho cruzou a antiga fronteira polonesa, as tropas da NKVD capturaram e desarmaram suas unidades e prenderam
seus líderes. Alguns se esconderam nas florestas polonesas e continuaram a lutar até meados da década de 1940. Outros foram executados. O restante foi deportado.
Assim, dezenas de milhares de cidadãos poloneses, civis e militares, foram parar no Gulag e nas aldeias de degredo depois da guerra.
Nenhuma nação ocupada foi poupada. Corno eu disse, os países bálticos e a Ucrânia sofreram ampla repressão no pós-guerra, assim como a Tchecoslováquia, a Bulgária,
a.Romênia e, mais do que todos, a Alemanha e a Áustria. A NKVD arrastou para interrogatórios em Moscou todos os que foram encontrados no bunker de Hitler quando
o Exército Vermelho avançou sobre Berlim. Eles também capturaram vários parentes distantes de Hitler na Áustria. Entre eles havia uma prima, Maria Koopensteiner,
para quem Hitler tinha enviado um pouco de dinheiro, o marido, os irmãos e um sobrinho. Nenhum deles, nem mesmo Maria, tinha posto os olhos em Hitler depois de 1906.
Todos morreram na União Soviética.
Em Dresden, a NKVD também prendeu um cidadão americano, John Noble, que fora detido na Alemanha nazista e mantido em prisão domiciliar durante a guerra junto, com
o pai, um alemão naturalizado americano. Noble voltou aos Estados Unidos nove anos depois. Ele passou grande parte desse tempo em Vorkuta, onde os companheiros o
apelidaram de "Amerikanets".
A grande maioria dos que foram atropelados pelos acontecimentos acabou nos campos de trabalho para prisioneiros de guerra ou nos campos do Gulag. A diferença entre
os dois tipos de campo nunca ficou clara. Embora tecnicamente pertencessem a estruturas burocráticas diferentes, em pouco tempo a administração dos campos de prisioneiros
de guerra ficou parecida com a dos campos de trabalho forçado - a tal ponto que é difícil separá-los quando se tenta investigar sua historia. As vezes, os campos
do Gulag criavam lagpunkts especiais apenas para os prisioneiros de guerra, e os dois tipos de detentos trabalhavam lado a lado. Sem nenhum motivo claro, às vezes
a NKVD enviava prisioneiros de guerra diretamente ao Gulag.
No final da guerra, as rações de comida dos prisioneiros de guerra e dos presos comuns era quase a mesma, assim como o alojamento em que ficavam e o trabalho que
faziam. Gomo os zeks, os prisioneiros de guerra trabalhavam na construção civil, nas minas, nas fábricas e na abertura de estradas e ferrovias. Como os zeks, alguns
prisioneiros de guerra mais educados encontravam seu caminho nas sharashki, onde projetavam aeronaves militares para o Exército Vermelho. Até hoje os moradores
de certos distritos de Moscou falam com orgulho dos blocos de apartamento que eles habitavam, supostamente muito bem construídos pelos meticulosos prisioneiros de
guerra alemães.
Também como os zeks, os prisioneiros de guerra acabaram recebendo uma "educação política" ao estilo soviético. Em 1943, a NKVD começou a organizar escolas e cursos
"antifascistas" nos campos de prisioneiros de guerra. A intenção era persuadir os participantes a "conduzir a luta pela reconstrução 'democrática' de seus países
e eliminar os resquícios do fascismo" quando retornassem à Alemanha, à Romênia ou à Hungria - e, é claro, a pavimentar o caminho para a dominação soviética. De
fato, vários ex-prisioneiros de guerra alemães terminaram trabalhando para a polícia da Alemanha Oriental.
No entanto, nem aqueles que demonstravam lealdade voltavam para casa rapidamente. Embora a URSS tenha repatriado um grupo de 225 mil prisioneiros em junho de 1945,
em sua maioria soldados rasos feridos, e embora outros tenham voltado para casa desde então num fluxo regular, a repatriação completa de todos os prisioneiros de
guerra em mãos soviéticas levou mais de uma década: em 1953, quando Stalin morreu, 20 mil permaneciam no país. Ainda convencido da eficácia da escravidão estatal,
Stalin encarava o trabalho dos prisioneiros como uma forma de reparação e considerava seu longo cativeiro totalmente justificável. Nos anos 1940 e 1950 (e depois,
na verdade, como o caso Wallenberg ilustra), as autoridades soviéticas continuaram a ocultar a questão dos estrangeiros presos com confusões, propaganda e contrapropaganda,
libertando-os quando lhes convinha e negando sua existência quando assim lhes parecia melhor. Em outubro de 1945, por exemplo, Beria escreveu a Stalin pedindo-lhe
autorização para libertar prisioneiros de guerra húngaros pouco antes das eleições na Hungria: os americanos e os britânicos haviam soltado seus prisioneiros de
guerra, e caía mal se a União Soviética não fizesse o mesmo.
A névoa persistiu durante décadas. Nos primeiros anos depois da guerra, enviados de todo o mundo pressionaram Moscou com listas de cidadãos que haviam desaparecido
em meio à ocupação da Europa pelo Exército Vermelho ou que, por qualquer razão, tinham ido para os campos do Gulag ou os de prisioneiros de guerra. Não era fácil
conseguir respostas, pois muitas vezes nem a NKVD sabia do paradeiro dos presos. No final, as autoridades soviéticas criaram comissões especiais para descobrir por
que ainda havia estrangeiros presos na URSS, estudar cada caso e liberá-los.
Os casos mais complexos podiam levar anos para ser solucionados. Jacques Rossi, um comunista francês nascido em Lyon e enviado a um campo depois de ter passado alguns
anos dando aulas em Moscou, ainda tentava voltar para casa em 1958. Depois que lhe recusaram um visto de saída para a França, ele tentou ir para a Polônia, onde,
conforme disse às autoridades, viviam um irmão e uma irmã seus. Esse pedido também foi recusado. Por outro lado, de vez em quando as autoridades suspendiam todas
as objeções e permitiam que os estrangeiros fossem embora. Em 1947, no auge da fome do pós-guerra, a NKVD libertou inesperadamente centenas de milhares de prisioneiros
de guerra. Não havia uma razão política: os líderes soviéticos apenas concluíram que não dispunham de comida suficiente para manter todos vivos.
A repatriação não tinha mão única. Se um grande número de europeus ocidentais estava na Rússia ao final da guerra, um número igualmente grande de russos estava na
Europa Ocidental. Na primavera de 1945, mais de 5,5 milhões de cidadãos soviéticos viviam fora do país. Alguns eram soldados capturados e encarcerados nos campos
nazistas para prisioneiros de guerra. Outros haviam sido levados para os campos de trabalho escravo da Alemanha e da Áustria. Alguns colaboraram com a força de ocupação
e se retiraram do país com o exército alemão. Cerca de 150 mil eram "vlasovitas", soldados que tinham combatido - ou, mais freqüentemente, que tinham sido obrigados
a combater - o Exército Vermelho sob o comando do general Andrei Vlasov, um oficial russo capturado que se voltara contra Stalin e lutara ao lado de Hitler, ou
em outras brigadas pró-Hitler e anti-Stalin da Wehrmacht. Por mais estranho que possa parecer, alguns nem eram cidadãos soviéticos.
Espalhados pela Europa, notadamente na Iugoslávia, havia também imigrantes anticomunistas: os russos brancos, os que haviam perdido a disputa com os bolcheviques
e se estabelecido no Ocidente. Stalin também os queria de volta: ninguém deveria escapar da punição bolchevique.
No final, ele os conseguiu. Entre as várias decisões controversas da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, Roosevelt, Churchill e Stalin acordaram que todos
os cidadãos soviéticos, fosse qual fosse sua história específica, tinham de voltar à União Soviética. Embora os protocolos assinados em Ialta não obrigassem os aliados
a devolver os cidadãos soviéticos contra a vontade deles, foi isso o que aconteceu.
Alguns desejavam voltar para casa. Leonid Sitko, soldado do Exército Vermelho que passou um tempo num campo nazista e que mais tarde passaria outra temporada num
campo soviético, lembra-se de ter decidido voltar para casa. Posteriormente, ele descreveu seus sentimentos em versos:
Eram quatro estradas - quatro países.
Em três haveria paz e conforto.
No quarto, eu sabia, destruiriam as rimas
E a mim, provavelmente, matariam.
E o que fiz? Aos três países disse: pro inferno!
E escolhi minha terra natal.
Outros, com medo do que os aguardava, foram convencidos a voltar pelos oficiais da NKVD que viajavam pelos campos de prisioneiros e deslocados de guerra espalhados
por toda a Europa. Os oficiais procuravam os russos nesses campos e lhes ofereciam uma visão cor-de-rosa do futuro. Tudo seria perdoado, diziam: "Nós os consideramos
cidadãos soviéticos, apesar de vocês terem sido obrigados a se juntar ao exército alemão [...]".
Alguns, em especial aqueles que já haviam experimentado o lado errado da justiça soviética, naturalmente não quiseram retornar. "Há espaço para todos na terra natal",
o adido militar soviético na Grã-Bretanha afirmou a um grupo de soldados soviéticos que viviam nos campos de prisioneiros de guerra de Yorkshire. "Sabemos que tipo
de espaço teremos", um prisioneiro respondeu.65 Porém, os oficiais alia" dos tinham ordens para mandá-los de volta - e assim fizeram. em Fort Dix, Nova Jersey, 145
prisioneiros soviéticos, que trajavam uniformes alemães quando foram presos, entrincheiraram-se dentro do alojamento para não serem mandados para casa. Quando os
soldados americanos jogaram gás lacrimogêneo no edifício, os que ainda não tinham se suicidado correram para fora com facas de cozinha e porretes ferindo alguns
americanos. Mais tarde explicaram que queriam incitar os americanos a atirar neles.
O pior foram os incidentes que envolveram mulheres e crianças. Em maio de 1945, seguindo ordens diretas de Churchill, as tropas britânicas começaram a repatriar
mais de 20 mil cossacos que viviam na Áustria, antigos guerrilheiros antibolcheviques. Alguns haviam se juntado a Hitler como forma de combater Stalin, muitos tinham
deixado a URSS depois da Revolução, e a maioria não tinha mais passaporte soviético. Depois de passar muitos dias prometendo-lhes um bom tratamento, os britânicos
os enganaram. Convidaram os oficiais cossacos para uma "conferência", entregaram-nos às tropas soviéticas e reuniram seus familiares no dia seguinte. Num incidente
particularmente feio em um campo perto de Lienz, Áustria, soldados britânicos usaram baionetas e a coronha dos fuzis para colocar milhares de mulheres e crianças
em trens com destino à URSS. Em vez de voltar, as mulheres jogavam os bebês das pontes e saltavam atrás. Um homem matou a mulher e os filhos, depositou seus corpos
cuidadosamente na grama e se suicidou. É claro que os cossacos sabiam o que os esperava no retorno à União Soviética: pelotões de fuzilamento - ou o Gulag.
Mesmo os que retornaram de livre e espontânea vontade podiam se tornar suspeitos. Quer tenham saído da União Soviética voluntariamente ou pela força, quer tenham
colaborado ou sido capturados, quer tenham voltado de bom grado ou obrigados em vagões de gado, todos foram solicitados, na fronteira, a preencher um formulário
que perguntava se tinham colaborado. Os que confessaram (alguns o fizeram) e os que pareciam suspeitos - inclusive muitos prisioneiros de guerra soviéticos, a despeito
dos tormentos que sofreram nos campos alemães - foram retidos em campos de triagem para futuro interrogatório. Esses campos, criados no início da guerra, pareciam
os campos do Gulag. Cercados com arame farpado, os internos eram trabalhadores forçados em todos os aspectos, exceto pelo nome.
De fato, a NKVD deliberadamente montou vários campos de triagem perto de centros industriais, de modo que os "suspeitos" pudessem contribuir com o país com trabalho
gratuito, enquanto seu caso era investigado. Entre 27 de dezembro de 1941 e 1º de outubro de 1944, a NKVD investigou 421.199 detentos nos campos de triagem. Em
maio de 1945, mais de 160 mil ainda viviam neles, executando trabalhos forçados. Mais da metade extraía carvão. Em janeiro de 1946, a NKVD extinguiu os campos e
repatriou mais 228 mil pessoas à URSS para investigação. Supõe-se que muitos terminaram no Gulag.
No entanto, mesmo entre os prisioneiros de guerra havia casos especiais. Como a NKVD distribuía condenações aos prisioneiros de guerra e aos trabalhadores escravos,
pessoas que, na verdade, não tinham cometido nenhum crime, as autoridades inventaram um novo tipo de sentença para os verdadeiros criminosos de guerra: pessoas que
haviam cometido crimes de verdade. Já em abril de 1943, o Soviete Supremo declarou que, enquanto libertava o território soviético, o Exército Vermelho descobrira
"atos de bestialidade e violência sem precedentes praticados por monstros fascistas alemães, italianos, romenos, húngaros e finlandeses, por agentes de Hitler e
por espiões e traidores soviéticos" Como resposta, a NKVD declarou que os criminosos de guerra condenados receberiam penas de quinze, vinte ou 25 anos, que deveriam
ser cumpridas em lagpunkts especiais. Os lagpunkts foram convenientemente erguidos em Norilsk, Vorkuta e Kolyma, os três campos setentrionais mais rígidos.
Com uma linguagem curiosamente floreada e uma percepção histórica irônica que pode muito bem ser indício do envolvimento direto de Stalin, a NKVD batizou esses lagpunkts
com um termo da história penal da Rússia czarista: katorga. Essa escolha não teria sido acidental. Sua ressurreição, que ecoava a ressurreição da terminologia czarista
em outras esferas da vida soviética (escolas militares para os filhos dos oficiais, por exemplo), devia ter como intenção caracterizar um novo tipo de punição para
uma nova espécie de prisioneiro, perigoso e irreformável. Ao contrário dos criminosos comuns, que recebiam a punição comum nos campos de trabalho do Gulag, onde
seriam corrigidos, nem em teoria se esperava que os presos da katorga se corrigissem ou redimissem. O renascimento da palavra parece ter causado certa consternação.
Os bolcheviques haviam lutado contra a katorga, mas agora a instituíam novamente, como os porcos de A revolução dos bichos, de George Orwell, que proibiram os animais
de beber álcool mas começaram a tomar uísque. A katorga também foi reinventada no momento em que o mundo começava a descobrir a verdade sobre os campos de concentração
nazistas. A palavra sugeria que os campos soviéticos eram um pouco mais parecidos com os campos "capitalistas" do que as autoridades admitiam.
Talvez por isso o general Nasedkin, o chefe do Gulag durante a guerra, tenha preparado a pedido de Beria um histórico da katorga czarista. Entre outras "notas explanatórias",
o histórico tentava explicar cuidadosamente a diferença entre as katorgas bolcheviques e czaristas e as outras formas de punição do Ocidente:
no Estado socialista soviético, a punição por meio da katorga - degredo com trabalho forçado - baseia-se num princípio diferente daquele que havia no passado. Na
Rússia czarista e nos países burgueses, essa pena severa era infligida aos elementos mais progressistas da sociedade [...] no Estado soviético, a katorga permite
a redução das penas de morte e é aplicada a inimigos especialmente perigosos [...].
Ao ler as instruções do novo regime, é de se perguntar se alguns dos que foram enviados à katorga não preferiam a pena de morte. Os condenados à katorga eram separados
dos outros prisioneiros por cercas altas. Eles recebiam uniformes diferentes, listrados, com números costurados nas costas. A noite, eram trancados no alojamento,
cujas janelas eram cerradas com trancas. Trabalhavam mais que os prisioneiros comuns, tinham menos dias de descanso e eram proibidos de executar qualquer trabalho
leve, pelo menos durante os dois primeiros anos. Eram cuidadosamente guardados: cada grupo de dez prisioneiros tinha dois guardas e cada campo devia dispor de pelo
menos cinco cães. Os prisioneiros da katorga não podiam sequer ser transferidos de um campo para outro sem a autorização expressa da administração do Gulag em Moscou.
Os presos da katorga também parecem ter se tornado o esteio de uma indústria soviética nova em folha. Em 1944, ao listar suas realizações econômicas, a NKVD afirmava
ter produzido 100% do urânio do país. "Não é difícil deduzir", escreve a historiadora Galina Ivanova, "quem extraía e processava o minério radiativo". Os prisioneiros
e os soldados também construiriam o primeiro reator nuclear em Chelyabinsk, após a guerra. "Nessa época, todo o canteiro de obras era um campo de várias classes",
um operário recorda. Ali, chalés "finlandeses" especiais seriam erguidos para os especialistas alemães que também eram obrigados a trabalhar no projeto.
Sem dúvida, entre os prisioneiros da katorga havia muitos colaboradores dos nazistas e criminosos de guerra, inclusive os responsáveis pelo assassinato de centenas
de milhares de judeus soviéticos. Com essas pessoas na cabeça, Simeon Vilensky, um sobrevivente de Kolyma, alertou-me para não considerar inocentes todos os que
estavam no Gulag: "Essas pessoas teriam ido para a cadeia, deveriam ter ido para a cadeia, sob qualquer regime". Como regra geral, os detentos evitavam os condenados
por crimes de guerra, chegando até a agredi-los.
Ainda assim, dos 60 mil prisioneiros condenados à katorga em 1947, boa parte tinha sido sentenciada por razões mais ambíguas. Havia, por exemplo, milhares de guerrilheiros
anti-soviéticos da Polônia, dos países bálticos e da Ucrânia, muitos dos quais lutaram contra os nazistas antes de se voltar contra o Exército Vermelho. Fizeram
isso por acreditar que lutavam pela libertação do próprio país. De acordo com um documento enviado a Beria em 1945 sobre os menores de idade presos na katorga, Andrei
Levchuk, acusado de fazer parte da Organização dos Ucranianos Nacionalistas (OUN), um dos dois principais grupo de oposição aos soviéticos na Ucrânia, era um desses
guerrilheiros. Enquanto estava a serviço deles, Levchuk supostamente teria "participado do assassinato de cidadãos inocentes , do desarmamento dos soldados do Exército
Vermelho e da apropriação de seus bens". Na época em que foi preso, em 1945, Levchuk tinha quinze anos de idade.
Yaroslava Krutigolova era outra "criminosa de guerra". Também integrante da OUN - serviu como enfermeira -, foi presa com dezesseis anos. A NKVD também prendeu
uma mulher de origem germânica que trabalhara como tradutora para guerrilheiros soviéticos. Ao ouvir que ela tinha sido presa por "ajudar o inimigo", o líder da
brigada guerrilheira deixou a frente de batalha e foi depor a seu favor. Graças a ele, Krutigolova recebeu uma pena de dez anos na katorga, e não de 25.
Finalmente, entre os prisioneiros da katorga estava Aleksandr Klein, um oficial do Exército Vermelho que, capturado pelos alemães, conseguiu fugir e voltar para
a divisão soviética. Assim que voltou, foi interrogado, como relatou posteriormente:
De repente o major se levantou e perguntou: "Pode provar que é judeu?"
Eu sorri, constrangido, e disse que podia... tirando as calças.
O major olhou para Sorokin e depois voltou-se em minha direção.
"Está dizendo que os alemães não sabiam que você era judeu?"
"Acredite. Se eles soubessem, eu não estaria aqui."
"Arre, judeu de uma figa!", o janota exclamou, e me deu um soco no estômago que me fez engasgar e cair.
"Que mentira é essa? Diga, filho-da-puta, por que foi mandado de volta? Com quem está metido? Quando se vendeu? Por quanto? Por quanto se vendeu, criatura? Qual
é o seu codinome?"
O interrogatório resultou na condenação de Klein à morte. Depois sua pena foi comutada para vinte anos na katorga.
"Havia todo tipo de gente nos campos, especialmente depois da guerra", escreveu Hava Volovich. "Mas todos éramos atormentados do mesmo jeito: os bons, os maus, os
culpados e os inocentes".
Se durante a guerra milhões de estrangeiros entraram no Gulag contra a vontade, pelo menos um se apresentou voluntariamente. A guerra pode ter conduzido os líderes
soviéticos a novos paroxismos de xenofobia; graças a ela, no entanto, um velho político americano visitou o Gulag pela primeira e única vez. Henry Wallace, vice-presidente
dos Estados Unidos, viajou a Kolyma em maio de 1944 - e jamais soube que visitava uma prisão.
A visita de Wallace aconteceu no auge da amizade entre americanos e soviéticos na guerra, no momento mais caloroso da aliança, quando a imprensa dos Estados Unidos
se habituara a chamar Stalin de "Tio Joe". Por essa razão, talvez, Wallace estava inclinado a olhar a União Soviética com bondade mesmo antes de chegar. Em Kolyma,
viu todas as suas idéias confirmadas. Logo que chegou, percebeu muitos paralelos entre a Rússia e os Estados Unidos: ambos eram duas "novas" grandes nações que não
carregavam a bagagem aristocrática da Europa. Ele acreditava, conforme disse aos anfitriões, que a "Ásia soviética" era, na verdade, o "oeste selvagem da Rússia".
Acreditava "não haver países mais parecidos do que a União Soviética e os Estados Unidos : "As grandes extensões de seu território, as florestas virgens, os rios
e lagos amplos, todos os tipos de clima - do tropical ao polar - a riqueza infindável, lembram-me a minha pátria".
Ele se agradou da paisagem e daquilo que considerou a força industrial do país. Nikishov, o chefe da Dalstroi, corrupto notório com alto padrão de vida, acompanhou
Wallace por Magadan, a principal cidade de Kolyma. Por sua vez, Wallace imaginou que Nikishov, um antigo oficial da NKVD, fosse o equivalente de um capitalista americano:
"Ele gerencia tudo por aqui. Comandando os recursos da Dalstroi, ele se tornou milionário". Wallace apreciou a companhia do amigo "Ivanº e observou-o "brincar" na
taiga, "aproveitando imensamente o ar maravilhoso". Ele também ouviu com atenção o relato de Ivan sobre a origem da Dalstroi: "Tivemos de cavar muito para pôr este
lugar em funcionamento. Doze anos atrás chegaram os primeiros colonos, que ergueram oito casas pré-fabricadas. Hoje Magadan tem 40 mil habitantes, e todos moram
bem".
Nikishov deixou de mencionar, é claro, que os "primeiros colonos" eram prisioneiros e que os 40 mil habitantes eram na maioria degredados, proibidos de ir embora.
Wallace também ignorava a situação dos operários - quase todos prisioneiros - e continuou aprovando os trabalhadores das minas de ouro. Recordava que eles eram "jovens
grandes e vigorosos", trabalhadores livres que davam muito mais duro do que os prisioneiros políticos que ele supunha habitarem o extremo norte na época dos czares:
"A população da Sibéria é valente e vigorosa, mas não por ser levada na ponta do chicote".
Naturalmente, os chefes da Dalstroi queriam que Wallace pensasse exatamente isso. Conforme o relatório que o próprio Nikishov escreveu a Beria mais tarde, Wallace
pediu para ver um campo de prisioneiros, mas não foi atendido. Nikishov também assegurou aos chefes que os únicos operários que Wallace encontrou eram trabalhadores
livres, e não prisioneiros. É possível que muitos deles fossem membros da Komsomol, a juventude comunista, e tenham recebido uniforme e botas de mineiro minutos
antes da chegada de Wallace. Eles saberiam responder perguntas. "Conversei com alguns", Wallace observou mais tarde. "Estavam entusiasmados com a vitória na guerra".
Depois, Wallace conheceu prisioneiros de verdade, embora não soubesse: eram os cantores e músicos que se apresentaram para ele no teatro de Magadan, vários deles
artistas de ópera presos em Moscou e Leningrado. Informado de que eram integrantes de um "coral não-profissional do Exército Vermelho" estacionado na cidade, ele
se encantou com o alto nível artístico dos amadores. Na verdade, todos foram avisados de que "uma palavra ou sinal que desse a entender que éramos prisioneiros seriam
considerados um ato de traição".
Wallace também viu o artesanato produzido pelos prisioneiros, embora mais uma vez não tivesse conhecimento disso. Nikishov levou-o a uma feira de bordados e disse-lhe
que os trabalhos expostos eram realizados por um grupo de "mulheres que se juntavam regularmente durante o inverno rigoroso para estudar costura". É claro que as
prisioneiras haviam feito tudo de antemão para a visita de Wallace.
Quando Wallace parou diante de um dos trabalhos, visivelmente admirado, Nikishov tirou-o da parede e entregou-o a ele. Para sua (agradável) surpresa, a esposa de
Nikishov, a temida Gridasova, modestamente explicou que era ela a artista. Posteriormente, a prisioneira Vera Ustieva soube que seu quadro fora um dos dois dados
ao vice-presidente como recordação da viagem: "Nosso chefe recebeu uma carta da mulher do vice-presidente agradecendo pelo presente e dizendo que os quadros haviam
sido pendurados na parede", ela escreveu mais tarde. Wallace também descreveu os presentes em suas memórias: "Hoje em dia, esses dois quadros transmitem àqueles
que visitam minha casa em Washington toda a beleza da paisagem rural da Rússia".
A visita de Wallace coincidiu mais ou menos com a chegada das "doações americanas" a Kolyma. O programa Lend-Lease, cujo objetivo era o envio de armas e equipamento
militar para ajudar os aliados a se defender contra a Alemanha, levou tratores, caminhões, escavadeiras e ferramentas a Kolyma, o que não era bem a intenção do governo
americano. Também levou um sopro de ar do mundo exterior. As peças chegaram embrulhadas em jornais velhos, e, por eles, Thomas Sgovio soube da guerra no Pacífico.
Até então, como a maioria dos prisioneiros, ele pensava que o exército soviético lutava sozinho e que os americanos apenas enviavam suprimentos. O próprio Wallace
notara que os mineiros de Kolyma (ou membros da Komsomol fingindo-se de mineiros) usavam botas americanas, também elas fruto do Lend-Lease. Quando perguntou sobre
a questão - as doações do Lend-Lease não se destinavam às minas de ouro -, os anfitriões responderam que haviam comprado as botas.
A grande maioria das roupas enviadas pelos Estados Unidos acabou no corpo dos administradores do campo e no de suas mulheres, embora algumas peças tenham mesmo sido
utilizadas nas produções de teatro dos campos e algumas latas de carne de porco tenham chegado aos prisioneiros. Eles a comeram com prazer: muitos jamais haviam
visto carne enlatada antes. Melhor ainda, usaram as latas vazias como canecas, lamparinas, potes, panelas, chaminés de fogão e até botões - sem fazer idéia da surpresa
que tanta engenhosidade teria causado no país de onde as latas vieram.
Antes de Wallace ir embora, Nikishov ofereceu um elaborado banquete em sua homenagem. Pratos extravagantes foram servidos - os ingredientes foram extraídos da ração
dos prisioneiros; brindaram a Roosevelt, a Churchill e a Stalin. Wallace fez um discurso que continha as seguintes palavras memoráveis:
Cada um à sua maneira, russos e americanos buscam um estilo de vida que permita ao homem comum em todo o mundo tirar o melhor da tecnologia moderna. Não há nada
de inconciliável em nossos objetivos e nossos propósitos. Aqueles que afirmam o contrário querem a guerra, consciente ou inconscientemente - e, na minha opinião,
isso é um crime.
21. A ANISTIA... E DEPOIS
Hoje disse adeus ao campo com um sorriso alegre,
Às cercas que por um ano afastaram a liberdade [...]
Nada restará de mim neste lugar,
Nada impedirá meus passos apressados?
Oh não! Atrás das cercas deixo um Gólgota de dor,
Que ainda tenta me empurrar a extremos de tormento.
Deixo túmulos de angústia e restos de compaixão
E, em segredo, choro as contas do nosso rosário [...]
Tudo agora parece ter sido levado, como a folha
arrancada de uma árvore
Por fim nos livramos da escravidão.
E meu coração se esvaziou do ódio
Pois hoje um arco-íris rompeu as nuvens!
Janusz Wedów, "Adeus ao campo".
Muitas das metáforas que foram utilizadas para descrever o sistema de repressão soviético - moedor de carne, rolo compressor - fazem-no soar implacável, inexorável,
inflexível. Ao mesmo tempo, porém, o sistema não era estático: ele mudava, dava voltas e produzia novas surpresas. E verdade que os anos de 1941 a 1943 significaram
morte, doença e tragédia para os prisioneiros soviéticos, mas a guerra também proporcionou a liberdade de milhões de pessoas.
A anistia para os homens saudáveis, em idade de lutar, começou apenas alguns dias depois do início da guerra. Já em 12 de julho de 1941, o Soviete Supremo ordenou
ao Gulag que liberasse determina-das categorias de prisioneiros diretamente para o Exército Vermelho: "os condenados por faltar ao trabalho e por crimes administrativos
e financeiros comuns e insignificantes". Posteriormente, a ordem se repetiu várias vezes. Ao todo, a NKVD liberou 975 mil prisioneiros nos três primeiros anos de
guerra, junto com várias centenas de milhares de ex-kulaks, degredados especiais. Mais pessoas continuaram a ser anistiadas até, e durante, o assalto final a Berlim.
A 21 de fevereiro de 1945, três meses antes do fim da guerra, houve nova ordem para libertar prisioneiros: o Gulag foi avisado de que eles deveriam estar prontos
para entrar no exército no dia 15 de março.
O volume de anistiados teve um impacto enorme sobre a demografia dos campos durante a guerra, e, conseqüentemente, sobre a vida dos que ficaram para trás. Novos
prisioneiros afluíam aos campos, a anistia em massa libertava outros tantos, e milhões morriam, o que torna as estatísticas dos anos de guerra extremamente enganosas.
Os dados de 1943 demonstram um aparente declínio da população carcerária, de 1,5 para 1,2 milhão. Nesse ano, no entanto, outro dado indica que 2.421 milhões de prisioneiros
passaram pelo Gulag, alguns recentemente presos, alguns recém-libertados, alguns transferidos entre os campos e muitos mortos. Ainda assim, a despeito da chegada
de centenas de milhares de prisioneiros todos os meses, a quantidade total de detentos no Gulag efetivamente diminuiu entre junho de 1941 e julho de 1944. Vários
campos nas regiões de floresta, criados às pressas para receber o excesso de novos detentos em 1938, foram eliminados com a mesma rapidez. Os presos remanescentes
trabalhavam cada vez mais, e ainda assim a falta de mão-de-obra era endêmica. Em Kolyma, durante a guerra, até os trabalhadores livres tinham de garimpar ouro nas
horas de descanso.
Nem todos os prisioneiros tiveram permissão para partir: as ordens de anistia excluíam explicitamente os "criminosos reincidentes" - ou seja, os criminosos de carreira
- e os prisioneiros políticos. Poucas exceções foram feitas. Talvez graças ao reconhecimento do prejuízo causado ao Exército Vermelho pela prisão de oficiais no
final dos anos 1930, alguns dos condenados por questões políticas foram silenciosamente soltos depois da invasão soviética da Polônia. Entre eles estava o general
Aleksandr Gorbatov, que foi chamado a Moscou de um distante lagpunkt de Kolyma no inverno de 1940. Depois de ver Gorbatov, o interrogador designado para reabrir
o caso olhou de novo para a fotografia tirada antes da prisão e imediatamente pôs-se a fazer perguntas. Tentava se certificar de que o esqueleto que tinha à sua
frente era mesmo um dos mais talentosos jovens oficiais do exército: "Minha calça estava remendada, minhas pernas estavam cobertas de trapos e eu usava as botas
de mineiro. Também vestia uma jaqueta acolchoada e muito suja. Usava um boné com tapa-orelhas imundo e esfarrapado [...]" Gorbatov foi afinal libertado em março
de 1941, imediatamente antes da ofensiva alemã. Na primavera de 1945, liderou um dos assaltos a Berlim.
Quanto aos soldados comuns, a anistia não lhes garantia a sobrevivência. Muitos especulam, embora os arquivos não confirmem, que os prisioneiros liberados do Gulag
para o Exército Vermelho foram designados para "batalhões penais" e enviados diretamente aos locais mais perigosos do front. O Exército Vermelho era notório pela
disposição de sacrificar homens, e não é difícil imaginar que os comandantes estivessem ainda mais dispostos a sacrificar antigos prisioneiros. Um destes, o dissidente
Avraham Shifrin, disse ter sido colocado em um batalhão penal porque era filho de um "inimigo do povo". Segundo seu relato, ele e os camaradas foram mandados diretamente
para o front, apesar da falta de armas: quinhentos homens receberam cem fuzis. "Suas armas estão nas mãos dos nazistas", os oficiais lhes disseram. "Peguem-nas."
Shifrin sobreviveu, embora tenha sido ferido duas vezes.
No entanto, os prisioneiros soviéticos que se juntavam ao Exército Vermelho costumavam sobressair. Surpreendentemente, poucos parecem ter se recusado a lutar por
Stalin. Pelo que conta, o general Gorbatov jamais teve um momento de hesitação quanto a reintegrar-se ao exército soviético ou quanto a lutar pelo Partido Comunista,
que o tinha prendido sem motivo. Quando soube da invasão alemã, pensou apenas na sorte que tivera por ser solto: poderia usar a força reconquistada em benefício
da pátria. Ele também fala com orgulho das "armas soviéticas" que os soldados utilizaram "graças à industrialização do nosso país", sem fazer nenhum comentário sobre
os meios pelos quais essa industrialização fora alcançada. É verdade que em varias ocasiões ele revela desprezo pelos "oficiais políticos" do Exército Vermelho -
a polícia secreta militar -, que interferiam demais no trabalho dos soldados, e que uma ou duas vezes foi maltratado por oficiais da NKVD, que sombriamente murmuravam
que ele "não tinha aprendido muito em Kolyma". É difícil duvidar, no entanto, da sinceridade de seu patriotismo.
A julgar pelos arquivos da NKVD, o mesmo parece valer para muitos outros prisioneiros libertados. Em maio de 1945, o chefe do Gulag, Viktor Nasedkin, produziu um
relatório elaborado, quase efusivo, sobre o patriotismo e o espírito de luta dos ex-prisioneiros que tinham entrado no Exército Vermelho, citando muitas cartas enviadas
aos antigos campos. "Primeiramente, informo que estou num hospital em Kharkov, ferido", um deles escreveu. "Defendi a pátria amada sem pensar na minha vida. Eu também
fui condenado por trabalhar mal, mas nosso amado Partido me deu uma chance de pagar minha dívida com a sociedade conquistando a vitória no front. Pelos meus cálculos,
matei 53 fascistas com balas de aço."
Outro escreveu para agradecer:
Antes de mais nada, escrevo para agradecer sinceramente por ter me reeducado. No passado, era um criminoso considerado perigoso para a sociedade, e por isso mais
de uma vez fui colocado numa prisão, onde aprendi a trabalhar. Agora, o Exército Vermelho confiou ainda mais em mim, ensinou-me a ser um bom comandante e confiou
a mim camaradas combatentes. Com eles, entro corajosamente na batalha, eles me respeitam porque cuido deles e porque desempenhamos nossas tarefas militares com correção.
De vez em quando, os oficiais também escreviam para os comandantes dos campos. "Durante o assalto a Chernigov, o camarada Kolesnichenko comandou uma companhia",
um capitão escreveu. "O ex-prisioneiro se transformou num comandante refinado, firme e combativo."
Com exceção de cinco ex-zeks que se tornaram Heróis da União Soviética e receberam a mais alta distinção militar do Exército Vermelho, parece não haver registros
isolados dos ex-prisioneiros que ganharam medalhas. Mas os registros dos mais de mil zeks que escreveram para os campos são instrutivos: 85 se tornaram oficiais,
34 se inscreveram no Partido Comunista e 261 ganharam medalhas. Provavelmente, essa amostragem não é representativa de todos os prisioneiros, mas não há razão para
acreditar que seja muito incomum. A guerra gerou um surto de patriotismo na União Soviética, e os ex-prisioneiros tiveram permissão para participar dele.
Talvez o mais surpreendente seja o fato de alguns prisioneiros que ainda cumpriam pena nos campos terem sido tomados pelo mesmo sentimento patriótico. As regras
ainda mais rígidas e os cortes no suprimento de comida não transformaram todos os zeks do Gulag em oponentes duros do regime soviético. Ao contrário, posteriormente
muitos escreveram que a pior coisa de ter estado num campo de concentração em junho de 1941 era não ter podido ir ao front e lutar. A guerra corria solta, os camaradas
lutavam... e eles ficaram para trás, ardendo de patriotismo. Instantaneamente, passaram a tratar todos os prisioneiros alemães como fascistas, a insultar os guardas
por não estarem no front e a trocar mexericos e boatos sobre a guerra. Como recorda Evgeniya Ginzburg, "Estávamos prontos para perdoar e esquecer agora que toda
a nação sofria, prontos para apagar a injustiça de que fomos vítimas [...]"
Em algumas ocasiões, os prisioneiros dos campos próximos ao front tiveram a oportunidade de colocar o patriotismo em prática. Num relatório com o qual pretendia
contribuir para a história da Grande Guerra Patriótica, Pokrovkii, ex-funcionário de Soroklag, um campo na República Careliana, perto da fronteira finlandesa, descreveu
um incidente ocorrido durante a apressada evacuação do campo:
A coluna de tanques se aproximava, a situação se tornava crítica, então um dos prisioneiros [...] pulou para a cabine de um caminhão e começou a dirigir o mais rápido
que pôde na direção do tanque. O choque destruiu o caminhão e o prisioneiro-herói, mas o tanque também parou e se incendiou. A estrada ficou bloqueada, os outros
tanques viraram na direção oposta. Graças a isso foi possível evacuar o restante da colônia.
Pokrovskii também descreveu como um grupo de mais de seiscentos prisioneiros libertados, retidos no campo por falta de trens, atirou-se voluntariamente ao trabalho
de erguer as defesas da cidade de Belomorsk:
Todos concordaram e imediatamente se dividiram em brigadas de trabalho, apontando brigadeiros e capatazes. Esse grupo de prisioneiros libertados trabalhou nas defesas
por mais de uma semana com zelo excepcional, da manhã bem cedo até tarde da noite, treze ou catorze horas por dia. A única coisa que pediram em troca foi que alguém
conversasse sobre política com eles e os informasse sobre a situação no front. Eu desempenhei essa tarefa escrupulòsamente.
Nos campos, esse patriotismo era estimulado pela propaganda, que ficou mais veloz durante a guerra. Como em toda a União Soviética, havia pôsteres, filmes de guerra
e palestras. Os prisioneiros ouviam que "agora teríamos de trabalhar ainda mais, uma vez que cada grama de ouro garimpado seria um golpe contra o fascismo". Naturalmente,
é impossível saber se esse tipo de propaganda funcionou, assim como é impossível determinar se qualquer propaganda funciona. Provavelmente, porém, a administração
do Gulag levou a mensagem mais a sério quando a capacidade de produção do Gulag se tornou vital para o esforço de guerra soviético. Em seu panfleto sobre reeducação,
"Retorno à vida", Loginov, oficial do KVCh escreveu que o slogan "Todos para o front, todos pela vitória" encontrou "um eco caloroso" no coração dos que trabalhavam
na linha de frente dos campos do Gulag: "Temporariamente isolados da sociedade, os prisioneiros duplicaram e triplicaram a velocidade do trabalho. Trabalhando generosamente
em fábricas, canteiros de obras, florestas e campos, jogaram toda a força produtiva no apressamento da derrota do inimigo no front".
Sem dúvida, o Gulag contribuiu para o esforço de guerra. Nos primeiros dezoito meses, 35 de suas "colônias" foram convertidas para a produção de munição. Muitos
dos campos madeireiros passaram a fabricar caixas de munição. Pelo menos vinte campos confeccionaram os uniformes do Exército Vermelho, enquanto outros fabricaram
telefones de campanha, mais de 1,7 milhão de máscaras de gás e 24 mil suportes para morteiros. Mais de 1 milhão de detentos trabalharam na construção de ferrovias,
estradas e campos de pouso. Sempre que surgia a necessidade de trabalhadores para a construção (quando um oleoduto cedia ou uma nova ferrovia tinha de ser construída),
o Gulag era chamado. Como no passado, Dalstroi produziu todo o ouro da União Soviética.
Porém, como em tempo de paz, esses dados e a eficiência que eles parecem sugerir são enganosos. "Desde os primeiros dias da guerra o Gulag organizou suas indústrias
para atender às necessidades dos que lutavam no front", Nasedkin escreveu. Essas necessidades poderiam ter sido mais bem atendidas por trabalhadores livres? Nos
outros locais, ele registra que a produção de certos tipos de munição quadruplicou. Quanta munição a mais poderia ter sido fabricada se os prisioneiros patrióticos
tivessem trabalhado em fábricas comuns? Milhares de soldados que poderiam estar no front foram mantidos atrás das linhas, guardando a mão-de-obra encarcerada. Milhares
de homens da NKVD foram destacados para prender e depois soltar poloneses. Eles também poderiam ter sido mais bem utilizados. Assim, o Gulag contribuiu para o esforço
de guerra... e provavelmente ajudou a solapá-lo também.
Além do general Gorbatov e de uns poucos militares, havia outra exceção, muito maior, à regra geral contra a anistia política. A despeito do que a NKVD havia dito,
no final o degredo dos poloneses nos confins da União Soviética não seria permanente. A 30 de julho de 1941, um mês depois do lançamento da Operação Barba Ruiva,
o genera Sikorski, líder do governo polonês no exílio, em Londres, e o embaixa dor Maisky, enviado soviético à Grã-Bretanha, assinaram uma trégua. O pacto Sikorski-Maisky,
como o tratato ficou conhecido, restabeleceu o Estado polonês - com fronteiras a ser determinadas - e garantiu a anistia a "todos os cidadãos poloneses que no momento
estão privados da liberdade em território da URSS".
Os prisioneiros do Gulag e os degredados foram oficialmente libertados e receberam permissão para se juntar a uma nova divisão do exército polonês, a ser formada
em solo soviético. Em Moscou, o general Wladyslaw Anders, oficial polonês que estivera preso na Lubyanka durante vinte meses, soube que havia sido nomeado comandante
do novo exército em uma reunião inesperada com o próprio Beria. Depois do encontro, o general Anders deixou a prisão num carro da NKVD com motorista, trajando calça
e camisa, mas descalço.
Do lado polonês, muitos objetavam ao fato de a União Soviética usar a palavra "anistia" para descrever a libertação de pessoas inocentes, mas não era hora de tergiversar:
as relações entre os novos "aliados" eram instáveis. As autoridades soviéticas se recusaram a assumir qualquer responsabilidade moral pelos "soldados" do novo exército
- todos em péssimo estado de saúde - e não deram ao general Anders comida nem suprimentos. "Vocês são poloneses... que a Polônia os alimente", os oficiais do exército
escutaram. Os comandantes de alguns campos chegaram a se negar a libertar os prisioneiros poloneses. Gustav Herling, ainda preso em 1941, percebeu que "não sobreviveria
ate a primavera" se não fosse solto, e teve de fazer uma greve de fome até ser libertado.
As autoridades soviéticas complicaram a situação ainda mais ao afirmar, alguns meses depois, que a anistia não se aplicava a todos os cidadãos poloneses, mas apenas
aos de etnia polonesa: os poloneses de etnia ucraniana e bielo-russa e os judeus poloneses deveriam permanecer na URSS. O resultado foi uma tensão terrível. Muitos
integrantes dessas minorias tentaram se passar por poloneses, mas foram desmascarados por estes, que temiam ser novamente presos se a identidade dos "falsos" camaradas
fosse revelada. Posteriormente, os passageiros de um trem que levava poloneses para o Irã tentaram expulsar um grupo de judeus: eles temiam que o trem não conseguisse
sair da URSS com passageiros "não-poloneses".
Outros prisioneiros poloneses foram soltos dos campos ou das aldeias de degredo, mas não receberam dinheiro algum nem instruções sobre para onde ir. Um ex-prisioneiro
se recorda de que "com a desculpa de que não sabiam nada sobre o exército polonês, as autoridades soviéticas em Omsk não quiseram rios ajudar e propuseram que procurássemos
emprego perto de Omsk". Um oficial da NKVD deu a Herling uma lista dos locais onde ele poderia obter um visto de residência, mas negou ter qualquer conhecimento
sobre o exército polonês. Guiando-se por boatos, os prisioneiros poloneses libertados viajaram a pé e de trem pela União Soviética em busca do exército polonês.
Os familiares de Stefan Waydenfeld, que cumpriam o degredo no norte da Rússia, não foram informados da existência do exército polonês nem receberam um meio de transporte:
disseram-lhes simplesmente que podiam partir. Para ir embora da remota aldeia de degredo, construíram uma jangada e desceram o rio em direção à "civilização" - uma
cidade que tinha estação de trem. Meses depois foram resgatados de sua peregrinação quando, num café da cidade de Chimkent, no sul do Casaquistão, Stefan reconheceu
uma colega de classe da Polônia. Finalmente, ela lhe disse onde encontrar o exército polonês.
No entanto, os ex-zeks e as esposas e os filhos deportados seguiram vagarosamente para Kuibyshev, o acampamento-base do exército polonês, e para os outros postos
avançados espalhados pelo país. Na chegada, muitos foram tomados pela experiência de redescobrir a Polônia, como escreveu Kazimierz Zarod: "Em todas as direções
à nossa volta, a língua polonesa, rostos poloneses familiares! Eu mesmo encontrei velhos conhecidos, homens e mulheres se cumprimentavam com beijos e abraços, em
momentos de júbilo e exultação". No dia da chegada do general Anders, outro ex-zek, Janusz Wedów, compôs um poema intitulado "Boas-vindas ao líder":
Ai, meu coração! Volta a bater tão forte, tão feliz
Pensei que estivesse endurecido, morto dentro de mim [.. .]
Em poucos meses, porém, o otimismo havia diminuído. O exercito não tinha comida, remédios, equipamento - nada. Em sua maioria, os soldados eram homens doentes, cansados,
meio famintos, que precisavam de ajuda profissional e cuidados médicos. Um oficial lembra o horror que sentiu ao perceber que "uma imensa maré de seres humanos que
tinham deixado os lugares onde viviam degredados ou deportados [...] afluía agora aos distritos famélicos do Uzbequistão, aglomerando-se em torno de um exército
mal nutrido e dizimado por doenças".
Além disso, as relações com as autoridades soviéticas continuavam precárias. Empregados da embaixada polonesa espalhados pelo país ainda sofriam prisões inexplicáveis.
Temeroso de que a situação piorasse, o general Anders mudou os planos em março de 1942. Em vez de levar seu exército para o oeste, na direção do front, ele obteve
permissão para evacuar totalmente as tropas da União Soviética. Foi uma operação ampla: 74 mil militares e 41 mil civis poloneses, inclusive muitas crianças, embarcaram
em trens com destino ao Irã.
Na pressa de partir, o general Anders deixou milhares de poloneses para trás, juntamente com antigos cidadãos judeus, ucranianos e bielo-russos. Mais tarde, alguns
se juntaram à Kosciuszko, uma divisão polonesa do Exército Vermelho. Outros tiveram de esperar o fim da guerra para serem repatriados. Outros ainda jamais foram
embora. Até hoje seus descendentes vivem em comunidades polonesas no Casaquistão e no norte da Rússia.
Os que partiram continuaram lutando. No Irã, depois de se recuperar, o exército de Anders conseguiu se juntar às forças aliadas na Europa. Viajando pela Palestina
- e em alguns casos pela África do Sul -, posteriormente lutaram pela libertação da Itália na Batalha de Montecassino. No decorrer da guerra, os civis poloneses
foram distribuídos por várias partes do império britânico. Crianças polonesas acabaram em orfanatos na Índia, na Palestina e até mesmo no leste da África. Muitos
jamais retornariam à Polônia do pós-guerra, ocupada pela União Soviética. Os clubes, as sociedades históricas e os restaurantes poloneses do West End londrino são
um testemunho de seu degredo pós-guerra.
Depois de sair da URSS, esses poloneses prestaram um serviço inestimável aos ex-companheiros de prisão, menos afortunados. No Irã e na Palestina, o exército e o
governo poloneses realizaram vários levantamentos sobre os soldados e suas famílias, a fim de determinar com exatidão o que acontecera aos poloneses deportados para
a União Soviética. Como os comandados de Anders foram o único grande grupo autorizado a sair do país, o material produzido por esses questionários e essa investigação
um tanto apressada foram a única prova substancial da existência do Gulag durante meio século, e uma prova surpreendentemente acurada: embora não compreendessem
de fato a história do Gulag, os prisioneiros poloneses conseguiram transmitir a assombrosa dimensão do sistema de campos - tudo que tinham de fazer era listar a
ampla variedade de lugares para onde haviam sido enviados - e as terríveis condições de vida durante a guerra.
Findo o conflito, as descrições feitas pelos poloneses foram a base dos relatórios sobre os campos soviéticos de trabalho forçado produzidos pela Biblioteca do Congresso
americano e pela American Federation of Labor. Os francos relatos sobre o sistema soviético de trabalho escravo foi um choque para muitos americanos, cujo conhecimento
sobre os campos se obscurecera desde os boicotes soviéticos à madeira nos anos 1920. Esses relatórios circularam amplamente, e em 1949, numa tentativa de persuadir
as Nações Unidas a investigar a prática de trabalho forçado entre seus membros, a AFL apresentou um grosso dossiê de sua existência na União Soviética:
Menos de quatro anos atrás, os trabalhadores do mundo tiveram sua primeira vitória, a vitória contra o totalitarismo nazista, depois de uma guerra travada com grandes
sacrifícios - contra a política nazista de escravizar a população de todos os países que eles invadiram [...].
Entretanto, apesar da vitória aliada, o mundo está profundamente preocupado com comunicados que parecem indicar que o mal que lutamos para erradicar, por cuja derrota
tantos morreram, ainda viceja em várias partes do mundo [...].
Começara a Guerra Fria.
A vida dentro dos campos freqüentemente espelhava e ecoava a vida na União Soviética como um todo - e isso foi ainda mais verdadeiro nos últimos anos da Segunda
Guerra Mundial. À medida que a Alemanha desmoronava, Staliri passou a pensar na colonização pós-guerra. Seus planos de arrastar a Europa central para a esfera de
influência soviética se solidificaram. Não foi coincidência o fato de a NKVD também entrar numa fase que pode ser descrita como expansiva, "internacionalista". "Esta
não é como as guerras do passado", Stalin observou numa conversa com Tito, relembrada pelo comunista iugoslavo Milovan Djilas. "Quem ocupa um território impõe a
ele seu sistema social. Todos impõem o próprio sistema social até onde o exército alcança." Os campos de concentração eram uma parte fundamental do "sistema social"
soviético, e, à medida que o conflito se aproximava do fim, a policia secreta soviética começou a exportar métodos e pessoal para os territórios ocupados, ensinando
aos novos clientes estrangeiros o regime e os procedimentos que havia aperfeiçoado em casa.
Dos campos criados no que viria a ser chamado de "bloco soviético", na Europa Oriental, talvez os mais brutais tenham sido os da Alemanha Oriental. Enquanto o Exército
Vermelho marchava pela Alemanha, em 1945, a Administração Militar Soviética imediatamente começou a construí-los. Ao final, foram erguidos sete campos de concentração
"especiais" - spetslagerya. Dois deles, Sachsenhausen e Ruchenwald, situavam-se no mesmo local de antigos campos de concentração nazistas. Todos ficavam sob o controle
direto da NKVD, que os organizava e gerenciava como fazia nos campos do Gulag, com normas de trabalho, rações mínimas e alojamentos superlotados. Nos anos de guerra,
assolados pela fome, esses campos alemães parecem ter sido ainda mais letais que os congêneres soviéticos. Em cinco anos de existência, quase 240 mil prisioneiros,
em sua maioria políticos, passou por eles. Desses, 95 mil - mais de um terço - são dados como mortos. Se a vida dos prisioneiros soviéticos nunca foi especialmente
importante para as autoridades, a vida dos alemães "fascistas" importava ainda menos.
Em sua maior parte, os detentos dos campos da Alemanha Oriental não eram nazistas de alto coturno nem criminosos de guerra comprovados. Essa espécie de prisioneiro
costumava ser transferida para Moscou, interrogada e jogada diretamente nos campos soviéticos para prisioneiros de guerra ou no Gulag. Os spetslagerya tinham a mesma
função das deportações de poloneses e bálticos: quebrar a espinha da burguesia alemã. Por isso não abrigavam líderes nazistas nem criminosos de guerra, mas juizes,
advogados, empresários, executivos, médicos e jornalistas. Entre eles havia até mesmo alguns dos pouquíssimos oponentes de Hitler, a quem a União Soviética - paradoxalmente
- também temia. Afinal, quem ousara enfrentar os nazistas poderia ousar enfrentar o Exército Vermelho.
A NKVD prendia o mesmo tipo de gente nos campos da Hungria e da Tchecoslováquia, criados pela polícia secreta local a conselho dos soviéticos quando o Partido Comunista
se consolidou em Praga, em 1948, e em Budapeste, em 1949. As prisões eram realizadas com o que foi descrito como "caricatura" da lógica soviética: um meteorologista
foi preso depois de anunciar "uma massa de ar gelado vinda do nordeste, da União Soviética" no dia em que a divisão soviética chegou à Hungria; um executivo tcheco
acabou num campo depois que um vizinho o acusou de referir-se ao "imbecil do Stalinº.
No entanto, os campos não eram uma caricatura. Em suas memórias de Reczk, o mais notório campo da Hungria, o poeta húngaro Gyorgy Faludy esboça o retrato de um sistema
que parece cópia fiel do Gulag, inclusive pela prática da tufta e pelos prisioneiros famintos em busca de frutas silvestres e cogumelos nas florestas. O sistema
tcheco tinha uma característica especial: um conjunto de dezoito lagpunkts agrupados em torno das minas de urânio de Yachimov. Retrospectivamente, fica claro que
os prisioneiros políticos com penas longas, equivalentes aos detentos da katorga soviética eram enviados a esses campos para morrer. Embora trabalhassem extraindo
urânio para o projeto da bomba atômica soviética, não recebiam roupas especiais nem proteção de espécie alguma. Sabe-se que o índice de mortalidade era alto, embora
os números exatos ainda sejam desconhecidos.
Na Polônia, a situação era mais complicada. No final da guerra, uma proporção significativa de poloneses vivia em alguma espécie de campo, fosse um campo para desalojados
(judeus, ucranianos, antigos trabalhadores escravos dos nazistas), um campo de detenção (alemães e Volksdeutsche, poloneses que alegavam ter ascendência germânica)
ou um campo de prisioneiros. O Exército Vermelho montou campos de prisioneiros de guerra na Polônia e os encheu não apenas com alemães, mas também com integrantes
do Exército da Pátria a caminho da deportação soviética. Em 1954, 84.200 prisioneiros políticos ainda estavam encarcerados na Polônia.
Também existiam campos na Romênia, na Bulgária e - apesar da reputação de anti-soviético - na Iugoslávia de Tito. Como os campos da Europa central, no início os
campos dos Bálcãs eram parecidos com os do Gulag, mas com o tempo começaram a ficar diferentes. A maioria fora criada pela polícia local com orientação dos soviéticos.
A policia secreta romena, a Securitate, parece ter trabalhado sob as ordens diretas das congêneres soviéticas. Por essa razão, talvez, os campos romenos sejam os
que mais lembravam o Gulag, ao ponto de levarem a cabo projetos ambiciosos e absurdos como os que o próprio Stalin privilegiava na União Soviética. O mais famoso,
o Canal Mar Negro-Danúbio, aparentemente não teve função econômica. Até hoje ele esta totalmente vazio e abandonado, como o Canal do Mar Branco, com quem tanto se
assemelha. Um slogan de propaganda declarava que o "Canal Mar Negro-Danúbio é o túmulo da burguesia romena!" Como cerca de 200 mil pessoas devem ter morrido em sua
construção, esse pode ter sido de fato seu real objetivo.
Os campos da Bulgária e da Iugoslávia tinham um espírito diferente. A polícia búlgara parecia menos preocupada em desempenhar um plano e mais interessada em punir
os presos. Uma atriz búlgara que sobreviveu a um desses locais contou como foi espancada até quase morrer depois de sucumbir ao calor:
Cobriram-me com trapos e me deixaram sozinha. No dia seguinte, todos foram para o trabalho, enquanto eu fiquei trancada o dia todo, sem comida nem remédio. Estava
fraca demais para levantar, por causa dos machucados e de tudo que eu tinha passado no dia anterior. Fui brutalmente espancada. Fiquei em coma por catorze horas
e sobrevivi graças a um milagre.
Ela também viu pai e filho serem espancados até a morte um na rente do outro, apenas para satisfazer ao sadismo dos que batiam. Outros sobreviventes dos campos búlgaros
descrevem como eram atormentados pelo calor, pelo frio, pela fome e por abusos físicos. A localização desses campos, mais ao sul, também trazia outros tipos de
sofrimento: entre os mais infames campos iugoslavos estava um construído na ilha de Saint-Gregoire, no mar Adriático, onde a água era escassa e o principal tormento
era a sede.
Ao contrário do Gulag, a maioria desses campos não durou, e muitos fecharam antes ainda da morte de Stalin. De fato, os spetslagerya da Alemanha Oriental foram desativados
em 1950, principalmente porque contribuíam para a grande impopularidade do Partido Comunista da Alemanha Oriental. A fim de melhorar a imagem do novo regime e de
impedir que os alemães fugissem para o Ocidente, o que ainda era possível na época -, a polícia secreta da Alemanha Oriental cuidou da saúde dos prisioneiros antes
de libertá-los e deu-lhes roupas novas. Nem todos foram soltos: aqueles tidos como os mais sérios oponentes da nova ordem foram, como os poloneses presos nesse período,
deportados para a União Soviética. Membros dos batalhões de sepultamento dos spetslagerya também parecem ter sido deportados. Do contrário, eles poderiam ter exposto
a existência de sepulturas coletivas nos campos, que só foram localizadas e exumadas nos anos 1990.
Os campos tchecos também não duraram: eles alcançaram o apogeu em 1949 e começaram a encolher até desaparecer completamente. O líder húngaro Imre Nagy extinguiu
os campos do país logo após a morte de Stalin, em julho de 1953. Os comunistas búlgaros, por outro lado, mantiveram vários campos de trabalho forçado até os anos
1970, muito tempo depois de o sistema de campos soviéticos ter sido desmontado. Lovech, um dos campos mais cruéis no país, funcionou de 1959 a 1962.
Inesperadamente, a exportação da política do Gulag obteve o impacto mais duradouro fora da Europa. No início dos anos 1950, no auge da colaboração sino-soviética,
"especialistas" soviéticos ajudaram a criar vários campos chineses e organizaram brigadas de trabalho forçado nas minas de carvão de Fushun. Os campos chineses -
laogai -ainda existem, embora pouco lembrem os campos stalinistas que emulavam. Ainda são campos de trabalho - e uma condenação a um deles costuma ser seguida por
um período de degredo, como no sistema de Stalin -, mas os comandantes parecem menos obcecados com normas e planejamentos centrais. Em vez disso, concentram-se numa
forma rígida de "reeducação". A expiação dos prisioneiros e sua degradação ritual diante do Partido parecem importar tanto às autoridades - se não mais - quanto
os bens que eles conseguem produzir.
No final, os detalhes da vida diária nos campos dos países satélites e dos aliados da União Soviética - para que serviam, quanto tempo duravam, o nível de rigidez
ou desorganização, de crueldade ou liberalismo - dependiam da cultura específica de cada país. Como se descobriu, era relativamente fácil alterar o modelo soviético
para ir ao encontro das próprias necessidades. Ou talvez eu deva dizer que é relativamente fácil. O trecho a seguir, extraído de uma antologia publicada em 1998,
descreve uma experiência ainda mais recente num campo de concentração no último país comunista em território eurasiano:
No primeiro dia - eu tinha nove anos -, recebi uma cota. A primeira tarefa que tive de cumprir foi caminhar até as montanhas, apanhar lenha e levar um grande carregamento
para a escola. Me mandaram repetir a tarefa dez vezes. A viagem de ida e volta levava três horas. Só podia ir para casa se terminasse tudo. Trabalhei a noite toda,
ate depois da meia-noite, e, quando acabei, caí no chão. Naturalmente, as crianças que estavam lá havia mais tempo eram mais rápidas [...]
Também tínhamos de garimpar ouro na areia do rio, com uma rede que sacudíamos e lavávamos. Isso era bem mais fácil; quando dávamos a sorte de completar a cota mais
cedo, brincávamos um pouco, em vez de dizer ao professor que já tínhamos terminado [...].
O escritor Chul Hwan Kong desertou da Coréia em 1992. Antes, passou dez anos, junto com toda a família, num campo de punição. Um grupo de direitos humanos de Seul
estima que cerca de 200 mil norte-coreanos ainda vivem em campos semelhantes, por "crimes" como ler jornais estrangeiros, escutar rádios estrangeiras, conversar
com estrangeiros ou, de algum modo, "desacatar a autoridade" dos líderes da Coréia do Norte. Cerca de 400 mil prisioneiros teriam morrido nesses campos.
Mas os campos norte-coreanos não estão confinados à Coréia do Norte. Em 2001, o Moscow Times anunciou que o governo norte-coreano pagava a dívida com a Rússia enviando
mão-de-obra para os campos de mineração e derrubada de madeira, fortemente guardados, em regiões isoladas da Sibéria. Esses campos - "um Estado dentro do Estado"
- dispunham de redes internas de distribuição de comida, prisões e guardas próprios. Estima-se que houvesse ali 6 mil trabalhadores. Não se sabe se eles eram pagos
ou não - mas com certeza não eram livres para partir.
A concepção de campo de concentração não era apenas universal o bastante para ser exportada, mas também resistente ao ponto de durar até o presente.
22. O APOGEU DO COMPLEXO INDUSTRIAL DE CAMPOS
Aos dezessete, amávamos estudar.
Aos vinte, aprendemos a morrer.
Saber que nos deixaram viver significa que nada aconteceu - ainda.
Aos vinte e cinco, aprendemos a trocar
A vida por peixe seco, lenha e batatas [...]
O que sobrou para os quarenta?
Pulamos tantas páginas
Quem sabe aprendemos que a vida é curta –
Mas isso sabíamos aos vinte [...]
Mikhail Frolovsky, "Minha geração".
Enquanto isso, 1949, irmão gêmeo de 1937, avançava em nosso território, em toda a Europa Oriental, e, antes de tudo, nos locais de prisão e degredo [...}
Evgeniya Ginzburg, No olho do furacão.
Com o fim da guerra vieram as paradas da vitória - reuniões sentimentais - e a convicção generalizada de que a vida seria, e deveria ser, mais fácil. Milhões de
homens e mulheres suportaram privações terríveis para vencer a guerra. Agora desejavam uma vida mais fácil. No campo, os boatos da extinção das fazendas coletivas
se espalharam rapidamente. Na cidades, a população reclamava abertamente dos preços cobrados pela comida racionada. A guerra também expusera milhões de cidadãos
soviéticos, soldados e trabalhadores escravos, à vida relativamente luxuosa do Ocidente, e agora o regime soviético não podia mais alegar, como já fizera, que os
trabalhadores ocidentais eram muito mais pobres que os soviéticos.
Várias autoridades também sentiam que era hora de reorientar a produção soviética para os bens de consumo de que as pessoas precisavam desesperadamente, em vez de
fabricar armamentos. Num telefonema particular entre dois generais soviéticos, gravado e registrado para a posteridade pela polícia secreta, um deles disse que "Todo
mundo diz abertamente que todos estão descontentes. Nos trens, em todo lugar, na verdade, é o que todos dizem". Com certeza, o general especulava, Stalin também
sabia disso e logo tomaria uma providência. Na primavera de 1945, os prisioneiros também estavam esperançosos. Em janeiro daquele ano, as autoridades tinham declarado
outra anistia geral para as mulheres grávidas ou que tivessem filhos pequenos, e elas foram libertadas em grande número - 734.785 em julho, mais precisamente. As
restrições da guerra tinham sido afrouxadas, e os prisioneiros voltaram a receber comida e roupas da família. A anistia para as mulheres - que naturalmente excluía
as prisioneiras políticas - não representava uma mudança de idéia; era apenas uma resposta ao aumento vertiginoso da quantidade de órfãos e aos problemas que ele
acarretava, como os meninos de rua, o vandalismo e o surgimento de gangues de crianças por toda a URSS: com relutância, as autoridades reconheceram que a solução
passava pelas mães. A suspensão das restrições à entrada de pacotes nos campos também não tinha nada a ver com bondade, era apenas uma tentativa de amenizar o impacto
da fome pós-guerra: se eles não podiam alimentar os prisioneiros, por que não deixar que as famílias ajudassem? Uma dura diretriz central declarou que "na questão
da comida e das roupas dos prisioneiros, os pacotes e as ordens de pagamento devem ser tratados como um importante suplemento". Ainda assim, muitos ficavam esperançosos
com esses decretos, interpretando-os como arautos de uma nova era, uma era menos rígida.
Não seria assim. Um ano depois da vitória começou a Guerra Fria. As bombas atômicas que os americanos lançaram sobre Hiroshima e Nagasaki persuadiram os líderes
soviéticos de que a economia do país deveria se dedicar irrestritamente à produção militar e industrial e não à manufatura de refrigeradores e sapatos infantis.
Apesar da devastação causada por cinco anos e meio de batalhas, os planejadores soviéticos tentaram com todo o afinco economizar e construir rapidamente - e utilizar
o máximo possível o trabalho forçado.
A emergência de uma nova ameaça à União Soviética servia aos propósitos de Stalin: essa era a desculpa de que precisava para voltar a apertar o controle sobre a
população depois de ela ter sido exposta à influência corruptora do mundo externo. Portanto, ele ordenou aos subordinados que "dessem um golpe duro" no falatório
sobre democracia, antes mesmo que tal falatório se espalhasse. Ele também fortaleceu e reorganizou a NKVD, que foi dividida em dois órgãos, em março de 1956. O
Ministério de Assuntos Internos - ou MVD - continuava a controlar o Gulag e as aldeias de degredo, tornando-se, na prática, o ministério do trabalho forçado. O outro
órgão, mais glamoroso - o MGB, mais tarde chamado de KGB -, controlaria a contra-inteligência e a inteligência estrangeira, os guardas da fronteira e, em última
análise, a vigilância dos oponentes do regime.
Finalmente, em vez de diminuir a repressão depois da guerra, os líderes soviéticos embarcaram numa nova série de prisões, mais uma vez atacando o exército e algumas
minorias étnicas, como os judeus soviéticos. Uma a uma, a polícia secreta "descobriu" conspirações anti-stalinistas em quase todas as cidades do país. Em 1947,
novas leis proibiram o casamento - e, na prática, qualquer relacionamento afetivo - entre cidadãos soviéticos e estrangeiros. Os acadêmicos que compartilhassem informações
científicas com colegas no estrangeiro também estavam sujeitos a processos criminais. Em 1948, as autoridades recolheram 23 mil agricultores. Todos foram acusados
de não trabalhar o número obrigatório de dias no ano anterior e foram degredados em áreas remotas, sem investigação nem julgamento.
Existem provas de algumas prisões menos comuns no final dos anos 1940. Segundo o interrogatório de um prisioneiro de guerra alemão recentemente aberto ao público,
dois pilotos americanos podem ter acabado no Gulag depois da guerra. Em 1954, o ex-prisioneiro alemão disse aos investigadores americanos que tinha encontrado dois
integrantes da força aérea americana no campo de prisioneiros na região de Komi, perto de Ukhta, em 1949. Eles pilotavam o avião que caíra perto de Kharkov, na Ucrânia.
Foram acusados de espionagem e colocados no que parece ser, pela descrição do alemão, uma unidade da katorga. Um deles teria morrido no campo, assassinado por um
criminoso comum. O outro foi levado depois, supostamente para Moscou.
Rumores vagos, ainda mais torturantes, circulavam na região de Komi. Segundo a lenda local, outro grupo de ingleses, ou pelo menos de falantes de inglês, foi preso
num lagpunkt - Sedvozh, também perto de Ukhta - nos anos 1940. Segundo o relato de um morador, os ingleses eram espiões lançados de pára-quedas na Alemanha no fina
da guerra. O Exército Vermelho capturou-os, interrogou-os e deportou-os para o Gulag secretamente, afinal a URSS e a Grã-Bretanha tinham sido aliadas na guerra.
Os indícios de sua presença são exíguos: um lagpunkt que chamavam de "Angliiskaya Koloniya", "Colônia Inglesa", e uma única referência nos arquivos militares de
Moscou a "dez escoceses", seja lá o que isso quer dizer, num campo de prisioneiros de guerra da região.
Graças a esses acréscimos, o Gulag não diminuiu depois da guerra. Ao contrário, ele se expandiu e atingiu o apogeu no início dos anos 1950. Segundo as estatísticas
oficiais, a 1º de janeiro de 1950, o Gulag mantinha 2.561.351 prisioneiros em campos e colônias - 1 milhão a mais do que havia cinco anos antes, em 1945. A quantidade
de degredados especiais também aumentou, devido às grandes operações de deportação nos países bálticos, na Moldávia e na Ucrânia, deliberada-mente pensadas para
completar a "sovietização" dessas populações. E, mais ou menos na mesma época, a NKVD resolveu de uma vez por todas a espinhosa questão do futuro dos degredados,
decretando que todos haviam sido deportados "perpetuamente" - junto com os filhos. Na década de 1950, o número de degredados era equivalente ao de prisioneiros nos
campos.
A segunda metade de 1948 e a primeira metade de 1949 trouxeram outra tragédia inesperada para os antigos detentos do Gulag: uma série de prisões, ou recapturas,
melhor dizendo, de ex-prisioneiros, em sua maioria da leva que havia sido encarcerada em 1937 e 1938, recebido penas de dez anos e recentemente libertada. As recapturas
eram sistemáticas, meticulosas, e, curiosamente, não havia derramamento de sangue. As novas investigações eram raras, e a maior parte dos presos passava apenas por
um interrogatório superficial. A comunidade de degredados de Magadan e do vale de Kolyma soube que algo estava errado quando ouviu falar da prisão de antigos "políticos"
cujos nomes começavam com as primeiras três letras do alfabeto russo: a polícia secreta, eles perceberam, estava recapturando as pessoas em ordem alfabética. Seria
engraçado, se não fosse trágico. Evgeniya Ginzburg escreveu que, enquanto "em 1937 o mal tinha assumido uma aparência monumentalmente trágica [...] em 1949, a Serpente
da Geórgia, bocejando de saciedade, redigia despreocupadamente a lista dos que seriam exterminados [...]".
A esmagadora maioria dos recapturados expressa sentimentos de indiferença. A primeira prisão fora um choque, mas também um aprendizado: muitos foram obrigados a
encarar a verdade sobre seu sistema político pela primeira vez. A segunda prisão não trazia nenhum conhecimento novo. "Em 49 eu já sabia que o sofrimento purifica
até certo ponto. Quando ele se arrasta por décadas e se torna rotineiro, deixa de purificar; ele simplesmente amortece todas as sensações", escreveu Ginzburg: "após
minha segunda prisão, eu com certeza me transformaria num pedaço de madeira".
Quando a polícia foi atrás dela pela segunda vez, Olga Adamova-Sliozberg encaminhou-se ao armário para fazer as malas, então parou. "Por que me dar ao trabalho de
levar alguma coisa? As crianças podem fazer melhor uso dos meus pertences", pensou. "É claro que desta vez não vou sobreviver; como iria suportar?" A esposa de
Lev Razgon foi recapturada, e ele exigiu que a razão fosse explicada. Quando soube que ela havia sido condenada pelos mesmos crimes de antes, pediu mais explicações:
"Ela já cumpriu a pena. A lei permite que uma pessoa seja punida duas vezes pelo mesmo delito?"
O procurador me olhou, espantado.
"É claro que não. Mas o que a lei tem a ver com isto?"
A maior parte dos recapturados não foi enviada de volta aos campos, mas ao degredo, em geral em regiões especialmente remotas e despovoadas do país: Kolyma, Krasnoyarsk,
Novosibirsk, Casaquistão. Ali eles viviam num tédio implacável. Como eram considerados "inimigos" pela população local, tinham dificuldade para encontrar moradia
e trabalho. Ninguém queria ser associado a espiões ou sabotadores.
Para as vítimas, os planos de Stalin pareciam bastante claros: aqueles que recebessem uma condenação por espionagem, sabotagem ou qualquer forma de oposição política
jamais teriam permissão para voltar para casa. Se fossem libertados, receberiam "passaportes de lobo", que os proibia de viver perto das grandes cidades, e estariam
constantemente sujeitos a uma nova prisão. O Gulag e o sistema de degredo que o complementava não eram mais castigos temporários. Haviam se tornado o estilo de
vida dos que a eles foram condenados. Ainda assim, a guerra realmente teve um impacto duradouro sobre o sistema de campos, muito embora seja difícil quantificá-lo.
As regras e os regulamentos não foram liberalizados logo após a vitória, mas os prisioneiros haviam mudado, especialmente os presos políticos.
Para começar, eles eram em maior número, graças às sublevações demográficas dos anos de guerra e às anistias, das quais sempre foram excluídos. Em 1o de julho de
1946, mais de 35% dos prisioneiros de todo o sistema haviam sido condenados por crimes "contra-revolucionários". Em determinados campos a porcentagem era ainda mais
alia, acima da metade.
Embora a quantidade geral viesse a cair novamente, a posição dos presos políticos também tinha mudado. Os que foram presos nos anos 1930, especialmente em 1937 e
1938, eram intelectuais, membros do Partido e trabalhadores comuns. A maior parte ficou chocada com a prisão, não tinha preparo psicológico para a vida na cadeia
nem preparo físico para o trabalho forçado. Nos anos que se seguiram à guerra, entretanto, os presos políticos passaram a incluir ex-soldados do Exército Vermelho,
oficiais do Exército da Pátria, guerrilheiros ucranianos e bálticos e prisioneiros de guerra alemães e japoneses. Esses homens e essas mulheres tinham lutado em
trincheiras, conspirado, comandado tropas. Alguns eram sobreviventes dos campos alemães; outros haviam liderado grupos de guerrilheiros. Muitos eram abertamente
anti-soviéticos ou anticomunistas e não se surpreenderam nem um pouco ao se ver atrás das cercas de arame farpado, como um deles recorda: "Depois de olhar a morte
nos olhos, de passar pelos fogos e pelo inferno da guerra, de sobreviver à fome e à tragédia, essa era uma geração completamente diferente dos detentos do período
anterior ao conflito".
Tão logo começou a aparecer nos campos, essa nova espécie de prisioneiro começou a causar problemas para as autoridades. Em 1947, os criminosos de carreira já não
os dominavam com tanta facilidade. Entre as várias tribos criminosas que comandavam a vida nos campos, um novo clã surgiu: os krasnye shapochki, ou "chapéus vermelhos".
Em geral, o grupo era formado por ex-soldados ou ex-guerrilheiros que se juntaram para lutar contra a dominação dos mafiosos - e, por extensão, contra a administração
que os tolerava. Apesar de todos os esforços empreendidos para desmantelá-los, esses grupos continuaram em atividade por muito tempo na década seguinte. No inverno
de 1954-55, Viktor Bulgakov, então prisioneiro em Inta, um campo de mineração no extremo norte, na região de Vorkuta, testemunhou uma tentativa da administração
de "dissolver" um grupo de presos políticos com a admissão de sessenta mafiosos no campo. Os mafiosos se armaram e se prepararam para atacar os presos políticos:
De repente, eles conseguiram armas brancas [facas], como era de se esperar nesse tipo de situação [...] soubemos que tinham roubado o dinheiro e os pertences de
um velho. Pedimos que devolvessem as coisas, mas eles não estavam acostumados a devolver nada. Então, por volta das duas horas da manhã, quando estava clareando,
cercamos o alojamento deles por todos os lados e atacamos. Começamos a bater neles, e batemos até não conseguirem mais se levantar. Um pulou pela janela [...] correu
para o vakhta e caiu na soleira. Porém, quando o guarda chegou não havia mais ninguém [...] Eles retiraram os mafiosos da área.
Um incidente semelhante aconteceu em Norilsk, como recorda um prisioneiro:
Um grupo de mafiosos chegou a um lagpunkt só de presos políticos e começou a tentar impor o próprio sistema. Os prisioneiros, todos ex-oficiais do Exército Vermelho,
fizeram picadinho deles, mesmo sem armas. Gritando como loucos, os mafiosos que sobraram correram para os guardas e para os oficiais, implorando por socorro.
Até as mulheres haviam mudado. Cansada de ser intimidada, uma prisioneira política disse a um grupo de ladras que se não devolvessem o dinheiro que tinham roubado,
"vamos jogar vocês e seus trapos lá fora, e vocês vão dormir ao relento". As ladras devolveram o dinheiro.
Naturalmente, nem sempre os mafiosos perdiam. Num incidente em Vyatlag, uma batalha entre os dois grupos terminou com a morte de nove presos políticos. Os mafiosos
exigiram 25 rublos de cada prisioneiro e simplesmente assassinaram quem se recusou a pagar.
As autoridades prestavam atenção. Se os prisioneiros políticos se juntavam para combater os mafiosos, podiam também se juntar para combater a administração do campo.
Em 1948, prevendo uma rebelião, os chefes do Gulag em Moscou ordenaram que os presos políticos "mais perigosos" fossem colocados em um novo grupo de "campos especiais"
(psobye lagerya). Especialmente projetados para "espiões, diversionistas, terroristas, trotskistas, direitistas, mencheviques, social-revolucionários, anarquistas,
nacionalistas, russos brancos e integrantes de outras organizações anti-soviéticas", os campos especiais eram, na verdade, uma extensão do regime da katorga, e apresentavam
varias características iguais: os uniformes listrados; os números na testa, nas costas e no peito; as janelas gradeadas; e os alojamentos trancados a noite. A comunicação
dos prisioneiros com o mundo externo era mínima, em alguns casos, apenas uma ou duas cartas por ano. A correspondência com pessoas que não fossem da família era
estritamente proibida. A jornada de trabalho era de dez horas diárias, e os prisioneiros só podiam executar tarefas braçais. O atendimento médico era mínimo: nenhum
"campo para inválidos" foi criado nos complexos dos campos especiais.
Como os lagpunkts da katorga, aos quais logo se sobrepuseram, os campos especiais foram criados apenas nas regiões mais inóspitas do país, em Inta,Vorkuta, Norilsk
e Kolyma - todos campos de mineração perto ou acima do Círculo Ártico -, assim como no deserto do Casaquistão e nas florestas geladas da Mordóvia. Com efeito, eram
campos dentro dos campos, já que muitos se localizavam em complexos de trabalho forçado que já existiam. Uma única coisa os distinguia. Numa atitude surpreendentemente
poética, as autoridades do Gulag batizaram-nos com nomes oriundos do mundo natural: Mineral, Montanha, Carvalho, Estepe, Litoral, Rio, Lago, Areia e Prado, entre
outros. Presumivelmente, o objetivo era esconder a natureza dos campos, pois não havia nenhum carvalho no campo Carvalho e certamente não havia nenhum litoral no
campo que ostentava esse nome. E claro que logo os nomes foram abreviados, como era o costume soviético, para Minlag, Gorlag, Dubravlag, Steplag e assim por diante.
No início de 1953, os dez campos especiais contavam com 210 mil detentos.
No entanto, o isolamento dos presos políticos "mais perigosos" não os tornou mais dóceis. Ao contrário, os campos especiais livraram esses prisioneiros dos conflitos
com os criminosos comuns e da influência apaziguadora dos outros detentos. Sozinhos, sua oposição ao sistema só fez crescer: estavam em 1948 e não em 1937. No final,
embarcariam numa batalha longa, determinada e sem precedentes contra as autoridades.
À medida que os mecanismos repressivos recrudesceram, os prisioneiros políticos deixaram de ser os únicos a merecer atenção. Agora que os lucros eram mais importantes
do que nunca, os chefes do Gulag começaram a reexaminar sua postura em relação aos criminosos de carreira. A corrupção, a preguiça e o comportamento ameaçador deles
em relação aos guardas prejudicava a produtividade dos campos. Agora que eles não controlavam os presos políticos, não ofereciam nenhum benefício. Os criminosos
comuns jamais atrairiam a mesma inimizade que os presos políticos, nem receberiam o mesmo tratamento odioso dos guardas do campo, mas, ainda assim, depois da guerra,
os líderes do Gulag decidiram pôr um fim ao seu reinado - e a eliminar de vez os mafiosos que se recusavam a trabalhar.
Na prática, a guerra contra os mafiosos foi ao mesmo tempo aberta e velada. Para começar, os criminosos de carreira mais perigosos e devotados foram simplesmente
separados dos outros detentos e condenados a penas mais longas - dez, quinze, 25 anos. No inverno de 1948, o Gulag também requisitou a criação de uma série de lagpunkts
de regime rígido para os criminosos reincidentes. De acordo com as instruções de Moscou, apenas os guardas mais disciplinados e "com melhor saúde física" poderiam
trabalhar nesses lagpunkts, que deveriam receber cercas particularmente altas e reforçadas. Instruções à parte ofereciam as especificações. O Gulag determinou a
criação imediata de 27 desses campos, com espaço para mais de 115 mil presos.
Infelizmente, muito pouco se sabe sobre a vida nesses lagpunkts de castigo, ou se todos chegaram a ser criados: caso tenham sobrevivido, esses criminosos seriam
ainda menos propensos a escrever as memórias do que os colegas dos campos comuns. Na prática, porém, a maioria dos campos dispunha de alguma forma de isolamento
para os criminosos mais perigosos, e, devido a um grande azar, Evgeniya Ginzburg descobriu-se em um deles por um breve período: lzvestkovaya, um lagpunkt de castigo
em Kolyma. Ela era a única prisioneira política em meio a um grupo de criminosas comuns.
Durante sua estada em lzvestkovaya, Ginzburg passava os dias numa pedreira de calcário. Como não conseguia cumprir a norma, não recebia comida alguma. Nas primeiras
noites, ela se sentava "totalmente ereta" no canto do alojamento, pois não havia espaço nos beliches, e observava as mulheres, em sua maioria nuas, beber uma imitação
de álcool no cômodo superaquecido. Mais tarde, uma das mulheres, uma sifilítica nos estágios finais da doença, abriu espaço para Ginzburg e permitiu que ela se deitasse,
mas isso não foi muito reconfortante. "O odor insuportável de putrefação" que vinha do nariz esfacelado da mulher quase a sufocou. "Em lzvestkovaya, como no mais
real dos infernos, não se tratava apenas de não haver dia nem noite, não havia sequer um temperatura intermediária para tornar a existência suportável. Era o frio
glacial da pedreira de calcário ou o caldeirão infernal da cabana".
Nesse campo, Ginzburg quase foi estuprada. Certa noite, os guardas do campo, que estavam "muito, muito distantes dos chefes", irromperam no alojamento e começaram
a atacar as mulheres. Outra vez, um deles jogou-lhe um inesperado pedaço de pão. A administração do campo estava à espera de uma equipe de inspeção e temia que ela
morresse. "Com o isolamento total, a gula, o álcool e as escaramuças constantes com as garotas, nossos soldados estavam completamente desorientados e mal sabiam
o que poderia comprometê-los. Com certeza eles não precisavam de um atestado de óbito."
Mas ela escapou. Com a ajuda de amigos, usando a influência da faxineira do chefe de Sewostlag, nada menos, Ginzburg conseguiu a transferência para outro campo.
As outras não teriam tanta sorte.
No entanto, os regimes mais rígidos e as penas mais longas não eram a única arma da administração contra os líderes criminosos. Em toda a Europa central, o grande
trunfo da União Soviética como força de ocupação era sua capacidade de corromper as elites locais, transformando-as em colaboradores que, de boa vontade, oprimiam
a própria população. A mesma técnica foi utilizada para controlar a elite dos criminosos nos campos. A abordagem foi direta: ofereceram privilégios e tratamento
especial aos criminosos de carreira - os mafiosos - que abandonassem seu código de conduta e colaborassem com as autoridades. Os que aceitaram a oferta receberam
total liberdade para abusar dos antigos camaradas, inclusive para torturá-los e matá-los, enquanto os guardas do campo olhavam para outro lado. Esses criminosos
colaboracionistas totalmente corrompidos ficaram conhecidos como suki, ou "cachorros", e as brigas violentas que irromperam entre eles e os outros criminosos de
carreira vieram a ser chamadas de "guerra entre cachorros e mafiosos".
Como a luta dos presos políticos pela sobrevivência, a guerra dos mafiosos foi um dos elementos que caracterizaram a vida nos campos no pós-guerra. Embora os conflitos
entre grupos criminosos acontecessem antes, nenhum tinha sido tão selvagem, nem tão clara e abertamente provocado: em 1948, batalhas isoladas irromperam simultaneamente
em todo o sistema, deixando pouca dúvida sobre o papel desempenhado pelas autoridades. Muitos, muitos memorialistas registraram momentos dessas batalhas, embora
mais uma vez a maioria não tenha participado delas. Ao contrário, assistiram a tudo como observadores horrorizados e às vezes como vítimas. "Os cachorros e os mafiosos
lutavam até a morte", escreveu Anatolii Zhigulin:
Os mafiosos que se achavam num lagpunkt de cachorros freqüentemente enfrentavam um dilema se não conseguissem se esconder num alojamento de castigo: morrer ou tornar-se
um cachorro. Do mesmo modo, se um grande grupo de mafiosos chegasse a um lagpunkt, todos os cachorros se escondiam nos alojamentos de castigo, pois o poder havia
trocado de mãos [...] quando o regime mudava, os resultados costumavam ser sangrentos.
Um mafioso disse a um prisioneiro que todos os cachorros eram "homens mortos, condenados por nós, e na primeira oportunidade um blatnoi [mafioso] os mataria". Outro
presenciou as conseqüências de uma das brigas:
Depois de uma hora e meia, os mafiosos do nosso grupo foram carregados e jogados no chão. Estavam irreconhecíveis. Suas belas roupas haviam sido rasgadas e removidas.
Em troca, receberam jaquetas do campo esfarrapadas e, no lugar das botas, uma proteção para os pés. Apanharam como animais, muitos perderam os dentes. Um deles não
conseguia erguer o braço: tinha sido quebrado com um cano de ferro.
Leonid Sitko testemunhou o início de uma briga particularmente selvagem:
Um guarda veio pelo corredor e gritou 'Guerra! Guerra!'. Na seqüência, todos os mafiosos, menos numerosos que os cachorros, correram para se esconder nas solitárias.
Os cachorros foram atrás e assassinaram vários. Então os guardas ajudaram os restantes a se esconder, pois não queriam que todos morressem, e no dia seguinte tiraram-nos
do campo às escondidas.
Às vezes, os prisioneiros não-mafiosos também se envolviam nas brigas, especialmente quando os comandantes do campo garantiam amplos poderes aos cachorros. Embora
"não valha a pena tratar com romantismo os mafiosos e suas leis, que é o que eles fazem", Zhigulin continuou:
Os cachorros eram verdadeiramente terríveis para os prisioneiros comuns dos campos e das cadeias. Eles serviam fielmente aos diretores das prisões, desempenhavam
o papel de capatazes, comandantes e líderes de brigadas. Tratavam os trabalhadores comuns com bestialidade, espoliavam-nos de seus pertences, arrancavam suas roupas.
Os cachorros não eram apenas informantes: eles cometiam assassinatos em conluio com os diretores do campo. A vida dos prisioneiros nos campos controlados pelos cachorros
era mesmo difícil.
Ainda assim, estávamos no pós-guerra, e os prisioneiros políticos não eram mais indefesos diante dessas agressões. No campo de Zhigulin, um grupo de ex-soldados
do Exército Vermelho conseguiu primeiro espancar o séquito do odiado líder dos cachorros do lagpunkt e depois matar o próprio líder, amarrando-o a uma das máquinas
de serrar madeira. Quando o resto dos cachorros se trancou nos alojamentos, os presos políticos enviaram uma mensagem: cortem a cabeça do substituto do homem, mostrem-na
pela janela, e não matamos vocês. Assim eles fizeram. "Obviamente, a própria vida era mais importante do que a cabeça do líder."
A guerra aberta tornou-se tão detestável que até as autoridades acabaram por se cansar dela. Em 1954, o MVD propôs que os comandantes dos campos designassem "campos
separados para a incineração de tipos específicos de reincidentes" sob ameaça. O "isolamento de grupos hostis" era a única maneira de evitar o derramamento de sangue
generalizado. A guerra começara porque as autoridades queriam controlar os mafiosos - e foi encerrada porque as autoridades perderam o controle sobre ela.
No início dos anos 1950, os senhores do Gulag viram-se diante de uma situação paradoxal. Eles queriam dar uma dura nos criminosos reincidentes, aumentar a produção
e assegurar o funcionamento tranqüilo dos negócios do campo. Queriam isolar os contra-revolucionários e impedi-los de infectar os outros prisioneiros com seus pontos
de vista perigosos. Ao aumentar a repressão, no entanto, dificultaram ainda mais a própria tarefa. A rebeldia dos presos políticos e a guerra entre os criminosos
acelerou o início de uma crise ainda mais profunda: finalmente ficou claro para as autoridades que os campos eram dispendiosos, corruptos e, acima, de tudo, não
davam lucro.
Ou melhor, ficou claro para todos, exceto para Stalin. Mais uma vez, sua mania de repressão e sua dedicação à economia do trabalho escravo eram tão imbricadas que
era difícil aos observadores da época dizer se ele aumentava as ordens de prisão para construir mais campos ou se construía mais campos a fim de acomodar aquela
quantidade de presos. Ao longo de toda a década de 1940, Stalin insistiu em dar ainda mais poder econômico ao MVD. Tanto que, em 1952, no ano anterior à sua morte,
o MVD controlava 9% dos investimentos da Rússia, mais do que todos os outros ministérios. O Plano Qüinqüenal de 1951 a 1955 solicitava que esses recursos mais do
que dobrassem. Mais uma vez, Stalin deslanchou uma série de projetos de construção espetaculares e chamativos no Gulag, que lembravam os que
havia patrocinado nos anos 1930. Por causa da insistência direta de Stalin, o MVD construiu uma nova fábrica de asbesto, um projeto que demandava um alto grau de
especialização tecnológica, precisamente o tipo de coisa que o Gulag não conseguia fornecer direito. Stalin também defendia pessoalmente a construção de uma nova
ferrovia através da tundra ártica, de Salekhard a Igarka - um projeto que ficou conhecido como "A Estrada da Morte". O final da década de 1940 também foi a era
dos canais Volga-Don, Volga-Báltico e Grande Turcomano e das estações hidrelétricas de Estalingrado e Kuibyshev, a maior do mundo. Em 1950, o MVD também iniciou
a construção de um túnel e de uma linha de trem para a ilha Sacalina, um projeto que empregaria dezenas de milhares de prisioneiros.
Dessa vez, não havia nenhum Gorki para tecer louvores às novas obras soviéticas. Ao contrário, esses projetos foram considerados um grandioso desperdício. Embora
não tenham enfrentado objeções abertas enquanto Stalin vivia, vários deles, inclusive a Estrada da Morte e o túnel para Sacalina, foram abortados dias depois da
morte dele. A inutilidade cabal dessas obras fora compreendida, como provam os arquivos do próprio Gulag. Uma inspeção realizada em 1951 mostrou que os 83 quilômetros
de uma ferrovia no extremo norte, construída a preços altos e ao custo de muitas vidas, não eram usados havia três anos. Outros 370 quilômetros de uma estrada igualmente
cara não eram usados havia dezoito meses.
Em 1953, outra inspeção, dessa vez conduzida a pedido do Comitê Central, mostrou que o custo de manutenção dos campos excedia em muito os lucros auferidos do trabalho
dos prisioneiros. Em 1952, na verdade, o Estado subsidiara o Gulag com 2,3 milhões de rublos, mais de 16% de toda a verba orçamentária. Um historiador russo observou
que todos os memorandos do MVD sobre a expansão dós campos endereçados a Stalin começavam com "de acordo coro sua vontade", como que para enfatizar a sutil objeção
do remetente.
Os chefes do Gulag em Moscou tinham consciência da disseminação da insatisfação e da inquietude dentro dos campos. Em 1951, a recusa dos criminosos e dos presos
políticos em trabalhar atingiu o ponto de uma crise: nesse ano, o MVD calculou ter perdido mais de 1 milhão de dias de trabalho com greves e protestos. Em 1952,
o número dobrou. Segundo as estatísticas do próprio Gulag, em 1952, 32% dos prisioneiros não atingiu as normas de trabalho. A lista das maiores greves e protestos
entre 1950 e 1952, mantida pelas próprias autoridades, é surpreendentemente extensa. Entre outros, houve um levante armado em Kolyma no inverno de 1949-50; uma fuga
armada de Kraslag em março de 1951; greves de fome em massa em Ukhtizhemlag e Ekibastuzlag, em Karaganda, em 1951; e uma greve em Ozerlag em 1952.
A situação se tornou tão grave que, em janeiro de 1952, o comandante de Norilsk mandou uma carta ao general Ivan Dolgikh, então comandante-chefe do Gulag, listando
os passos que tomara para evitar rebeliões. Ele sugeria o abandono das grandes zonas de produção onde os prisioneiros não pudessem ser supervisionados o suficiente,
dobrar a quantidade de guardas (o que ele mesmo achava difícil) e isolar as várias facções de prisioneiros. Isso também seria difícil, ele escreveu: "dado o grande
número de prisioneiros que pertencem a uma ou outra facção rival, teríamos sorte se conseguíssemos isolar apenas os líderes". Ele também propôs que se isolassem
os trabalhadores livres dos prisioneiros nos locais de produção - e acrescentou, por fim, que seria bastante útil libertar 15 mil presos de uma só vez, pois seriam
mais úteis como trabalhadores livres. Não é preciso dizer que essas sugestões colocavam em dúvida toda a lógica do trabalho forçado.
Nos níveis superiores da hierarquia soviética, outros estavam de acordo. "Agora precisamos de tecnologia de ponta", Kruglov, então chefe do MVD, concedeu: obviamente,
a tecnologia de terceira classe encontrada no Gulag não era mais considerada suficiente. Uma reunião do Comitê Central realizada a 25 de agosto de 1949 chegou a
discutir uma carta recebida de um prisioneiro educado, identificado como Zhdanov. "A deficiência mais importante do sistema de campos é o fato de ele se apoiar no
trabalho forçado", Zhadanov escreveu. "A produtividade real dos prisioneiros é muitíssimo baixa. Sob condições diferentes, metade das pessoas faria o dobro do trabalho
que os prisioneiros realizam hoje."
Em resposta a essa carta, Kruglov prometeu aumentar a produtividade dos prisioneiros, principalmente pela reinstituição de salários aos de alto desempenho e da política
de redução de pena para quem mostrasse bons resultados. Ao que parece, ninguém ressaltou que essas práticas de "motivação" haviam sido eliminadas no final dos anos
1930 (a ultima pelo próprio Stalin) precisamente com o argumento de que diminuíam a lucratividade dos campos. Mas não importava muito, pois as mudanças faziam pouca
diferença. Uma parte ínfima do dinheiro dos prisioneiros chegava aos bolsos deles: uma investigação conduzida após a morte de Stalin mostrou que o Gulag e outras
instituições tinham confiscado ilegalmente 126 milhões de rublos das contas pessoais dos prisioneiros. Mesmo a pequena soma de dinheiro que de fato era entregue
aos detentos era provavelmente mais destruidora do que útil. Em muitos campos, os líderes criminosos criaram sistemas de proteção e coleta de dinheiro obrigando
os prisioneiros dos níveis inferiores da hierarquia a pagar pelo privilégio de não apanhar nem morrer. Também tornou-se possível "comprar" cargos de confiança, cujo
trabalho era mais fácil. Nos campos políticos, os prisioneiros utilizavam o salário para subornar os guardas. O dinheiro também levou a vodca para os campos, e
mais tarde, as drogas.
A promessa de penas menores para quem trabalhasse mais pode ter ajudado a aumentar um pouco o entusiasmo dos trabalhadores. Certamente, o MVD apoiou essa política
com entusiasmo, e em 1952 até propôs a libertação de uma grande quantidade de presos dos três maiores empreendimentos do norte - as minas de carvão de Vorkuta e
Inta e a refinaria de óleo de Ukhtinsky - e sua utilização como trabalhadores livres. Parece que até os gerentes do MVD preferiam, simplesmente, lidar com homens
livres do que com prisioneiros.
A preocupação com a situação econômica dos campos era tão grande que, no outono de 1950, Beria mandou Kruglov inspecionar o Gulag e descobrir a verdade. O relatório
subseqüente de Kruglov afirmava que os prisioneiros "empregados" pelo MVD não eram menos produtivos que os trabalhadores comuns. No entanto, ele reconhecia que o
custo de manutenção dos prisioneiros - comida, roupas, alojamentos e, acima de tudo, guardas, agora necessários em grande número - excedia em muito o custo dos trabalhadores
livres.
Em outras palavras, os campos não eram lucrativos, e agora muitas pessoas sabiam disso. Ainda assim, ninguém, nem mesmo Beria, ousou tomar uma atitude enquanto Stalin
ainda era vivo, o que talvez não fosse de surpreender. Qualquer integrante da roda de Stalin teria considerado os anos de 1950 a 1952 um período particularmente
perigoso para dizer ao ditador que os projetos dele eram um fracasso econômico. Embora doente e moribundo, Stalin não amolecera com a idade. Ao contrário, estava
cada vez mais paranóico e inclinado a enxergar conspiradores em todos os cantos. Em junho de 1951, ordenou a prisão de Abakumov, o cabeça da contra-inteligência
soviética, de modo inesperado. No outono desse ano, sem nenhuma consulta anterior, ditou pessoalmente ao Comitê Central a resolução que descrevia uma "conspiração
nacionalista mingrélia". Os mingrélios eram um grupo étnico da Geórgia cujo membro mais proeminente era ninguém menos que o próprio Beria. Ao longo de todo o ano
de 1952, uma onda de prisões, incêndios e execuções envolveu a elite comunista da Geórgia, atingindo vários protegidos e colegas próximos de Beria. É quase certo
que Stalin queria que Beria fosse o alvo final do expurgo. No entanto, Beria não teria sido a última vítima da loucura final de Stalin. Em 1952, ele estava interessado
em perseguir mais um grupo étnico. Em novembro desse ano, o Partido Comunista Tcheco, então no controle da Tchecoslováquia, levou catorze líderes a julgamento -onze
judeus -, denunciando-os como "aventureiros sionistas". Um mês depois, Stalin afirmou numa reunião do Partido que "todo judeu é nacionalista e agente da inteligência
americana". Então, a 13 de janeiro de 1953, o Pravda, o jornal do Partido Comunista, revelou a existência do Complô dos Médicos: "grupos de médicos terroristas",
diziam, "-tinham decidido abreviar a vida de figuras públicas em atividade na União Soviética sabotando o tratamento médico". Entre os "médicos terroristas", seis
eram judeus. Todos foram denunciados por supostas ligações com o Comitê Judeu Antifascista, cuja liderança durante a guerra - proeminentes escritores e intelectuais
judeus - tinha sido condenada alguns meses antes pelo crime de promover o "cospomolitanismo".
O Complô dos Médicos foi uma ironia terrível e trágica. Apenas dez anos antes, centenas de milhares de judeus soviéticos que viviam na região ocidental do país tinham
sido assassinados por Hitler. Centenas de milhares mais saíram deliberadamente da Polônia para a União Soviética, fugindo dos nazistas. No entanto, Stalin passou
seus últimos anos planejando outra série de julgamentos fictícios, outra onda de execuções em massa e de deportações. É possível que ele tenha até planejado deportar
para a Ásia central e para a Sibéria todos os judeus residentes nas principais cidades soviéticas.
O medo e a paranóia tomaram conta do país mais uma vez. Intelectuais judeus aterrorizados assinaram uma petição condenando os médicos. Mais uma centena de médicos
judeus foi presa. Outros judeus perderam o emprego, enquanto uma onda de amargo anti-semitismo varria o país. Em seu degredo em Karaganda, Olga Adamova-Sliozberg
soube pelas moradoras do local de pacotes enviados ao correio por pessoas com nomes judeus. Segundo se alega, eles continham bolas de algodão cheias de piolhos contaminados
com tifo. Em Kargopollag, no campo ao norte de Arkhangelsk, Isaak Filshtinskii também ouviu boatos de que prisioneiros judeus seriam enviados a campos especiais
no extremo norte.
Então, quando parecia que o Complô dos Médicos mandaria dezenas de milhares de novos prisioneiros para os campos ou para o degredo, quando o laço se apertava em
torno de Beria e seus cupinchas, quando o Gulag entrou no que parecia uma crise econômica insolúvel, Stalin morreu.
23. A morte de Stalin
Nas últimas doze horas, a falta de oxigênio se acentuou. O rosto e os lábios ficavam roxos à medida que ele era sufocado aos poucos. A agonia da morte foi terrível.
Ele morreu literalmente sufocado diante de nossos olhos. Naquele que pareceu ser o momento final, ele abriu os olhos e lançou um olhar a todos os que estavam no
quarto. Um olhar terrível, insano ou talvez irado, e cheio de medo da morte [...]
A filha de Stalin, Svetlana, descreve os momentos finais do pai.
Se na década de 1930 muitos prisioneiros soviéticos acreditavam que o Gulag era um grande engano, um imenso erro que de alguma forma tinha sido escondido do olhar
bondoso do camarada Stalin, nos anos 1950 poucos alimentavam essa ilusão. A opinião, conforme recorda o médico de um campo, era generalizada: "A grande maioria sabia
e entendia do que o homem era feito. Eles sabiam que ele era um tirano, que trazia um grande país sob o tacão da bota e que o destino de todos os prisioneiros de
alguma forma estava ligado ao destino de Stalinº.
Nos últimos anos, os prisioneiros políticos esperavam e rezavam pela morte de Stalin, discutindo-a constante e sutilmente, de modo a não atrair a atenção dos informantes.
Eles diziam "Ah, os georgianos vivem muito tempo", uma frase que transmitia o desejo de sua morte sem de fato cometer traição. A cautela permaneceu mesmo quando
Stalin caiu doente. Maya Ulyanovskaya soube daquela que seria sua moléstia terminal por uma mulher que sabia ser informante. Ela respondeu com cuidado: "E daí? Todo
mundo fica doente. Os médicos dele são bons, vão curá-lo".
Quando a morte de Stalin foi finalmente anunciada, em 5 de março de 1953, alguns continuaram cautelosos. Na Mordóvia, os presos políticos tiveram o cuidado de esconder
sua excitação, pois temiam que ela lhes trouxesse uma segunda condenação. Em Kolyma, as mulheres "prantearam diligentemente o falecido". Em um lagpunkt de Vorkuta,
Pavel Negretov escutou o anúncio, lido em voz alta, no refeitório do campo. Nem o comandante que leu a notícia da morte nem os prisioneiros disseram palavra. "A
novidade foi recebida com um silêncio tumular. Ninguém disse nada."
Num lagpunkt de Norislk, os prisioneiros se reuniram no pátio e escutaram solenemente a notícia do falecimento do "grande líder do povo soviético e dos seres humanos
livres de todos os lugares". Uma longa pausa se seguiu. Então um preso ergueu a mão: "Cidadão comandante, minha mulher me mandou um pouco de dinheiro, está em minha
conta. Não preciso dele, por isso gostaria de gastá-lo numa coroa de flores para nosso amado líder. Posso?"
Outros prisioneiros, no entanto, festejaram abertamente. Em Steplag, houve gritos e urros de comemoração. Em Vyatlag, os prisioneiros jogaram os bonés para o alto
e gritaram "Urra!". Nas ruas de Magadan, um prisioneiro cumprimentou outro: "Desejo-lhe muita alegria neste dia de ressurreição!" Ele não era o único tomado por
um sentimento religioso: "Tinha geado e estava tudo muito, muito quieto. Logo o céu ficaria azul. Yuri Nikolaevich ergueu os braços e declarou com fervor "Pela Rússia
sagrada, que os galos cantem! Logo o dia vai raiar na Rússia sagrada!".
Fossem quais fossem seus sentimentos, quer ousassem expressá-los ou não, a maior parte dos prisioneiros e dos degredados logo se convenceu de que as coisas iriam
mudar. No degredo em Karaganda, assim que soube da novidade, Olga Adamova-Sliozberg começou a tremer e cobriu o rosto com as mãos para que as colegas de trabalho
suspeitas não vissem sua alegria. "É agora ou nunca. Tudo vai mudar. Agora ou nunca."
Em outro lagpunkt de Vorkuta, Bernhard Roeder escutou a noticia no rádio do campo enquanto vestia o equipamento de mineiro:
Olhares furtivos foram trocados, nos quais um ódio triunfante flamejava, palavras foram furtivamente murmuradas, uma movimentação excitada [...] logo o corredor
ficou vazio. Todos correram para contar a boa nova [...] Nesse dia, ninguém trabalhou em Vorkuta. As pessoas permaneceram em grupos, conversando animadamente [...]
ouvimos os guardas nas torres de vigia ligando uns para os outros em grande agitação e, logo depois, os primeiros bêbados vociferando.
Entre os administradores dos campos, a confusão era profunda. Olga Vasileevna, que na época trabalhava no escritório do Gulag em Moscou, lembra-se de chorar: "Eu
chorei e todos choraram, mulheres e homens também, todos choraram abertamente". Como milhões de compatriotas, os empregados do Gulag choravam não apenas pelo líder
morto, mas também por temer por si mesmos e pela carreira. Mais tarde, o próprio Khrutchev escreveu que "Eu não chorava apenas por Stalin. Estava muito preocupado
com o futuro do país. Já sentia que Beria começaria a mandar em todos à sua volta e que esse poderia ser o princípio do fim".
Por "fim", é claro, Khrutchev queria dizer o fim dele mesmo: com certeza a morte de Stalin traria uma nova onda de derramamento de sangue. Temendo o mesmo, vários
manda-chuvas do Gulag sofreram ataques cardíacos, surtos de pressão alta e casos graves de gripe e febre. A angústia e o estado de completa confusão mental os tinham
deixado doentes de verdade. Estavam morrendo de medo.
Se os guardas das prisões estavam confusos, os novos ocupantes do Kremlin não tinham uma visão muito mais clara do futuro. Como Khrutchev temera, Beria, que mal
conseguira conter o júbilo diante do cadáver de Stalin, assumiu de fato o poder e começou a fazer mudanças com uma velocidade espantosa. A 6 de março, antes que
Stalin tivesse sido sequer enterrado, Beria anunciou uma reorganização da polícia secreta. Ele instruiu o chefe dela a transferir a responsabilidade pelo Gulag ao
Ministério da Justiça, mantendo apenas os campos especiais para prisioneiros políticos sob a jurisdição do MVD. Transferiu vários negócios do Gulag para outros ministérios,
como a administração florestal, a mineração e as fábricas. A 12 de março, Beria também abortou mais de vinte projetos do Gulag, alegando que eles "não iam ao encontro
das necessidades econômicas nacionais". As obras do Grande Canal Turcomano pararam, assim como as do Canal Volga-Ural, do Canal Volga-Báltico, da represa no curso
inferior do rio Don, do porto de Donetsk e do túnel da ilha Sacalina. A Estrada da Morte, a ferrovia entre Salekhard e Igarka, também foi abandonada sem nunca ter
sido concluída.
Duas semanas mais tarde, Beria escreveu ao presidium do Comitê Central um memorando no qual descreveu o estado dos campos de trabalho com surpreendente clareza.
Ele informou que havia 2.526.402 detentos, dos quais apenas 221.435 eram realmente "criminosos perigosos", e argumentou em favor da libertação de muitos dos restantes:
Entre os prisioneiros, 438.788 são mulheres, das quais 6.286 estão grávidas e 35.505 estão acompanhadas de filhos menores de dois anos. Muitas mulheres têm filhos
com menos de dez anos que estão sendo criados por parentes ou em abrigos para crianças.
Entre os prisioneiros, 238 mil são idosos - homens e mulheres acima de cinqüenta anos - e 31.181 são adolescentes com menos de dezoito anos, em sua maioria condenados
por roubos insignificantes e por vandalismo;
Cerca de 198 mil prisioneiros sofrem de doenças graves e incuráveis e estão totalmente incapacitados para o trabalho.
E bem conhecido o fato de que os prisioneiros dos campos [...] deixam a família em situação muito difícil, freqüentemente desintegrando-se, com sérias conseqüências
negativas para o resto da vida.
Com esses argumentos humanitários, Beria solicitou uma anistia para todos os prisioneiros com penas de cinco anos ou menos, para todas as mulheres grávidas ou que
tivessem filhos pequenos, e para todos os menores de dezoito anos - 1 milhão de pessoas no total. A anistia foi anunciada a 27 de março. A libertação começou de
imediato.
Uma semana depois, a 4 de abril, Beria também cancelou a investigação sobre a Conspiração dos Médicos. Essa foi a primeira mudança visível para o público em geral.
Mais uma vez, o anúncio apareceu no Pravda: "As pessoas acusadas de conduzir incorretamente a investigação foram presas e devem responder a processo".
As implicações eram claras: a justiça stalinista era deficiente. Em segredo, Beria também promoveu outras mudanças. Proibiu que os funcionários da polícia secreta
usassem a força física contra os detentos - efetivamente acabando com a tortura. Ele tentou liberalizar as políticas empregadas na Ucrânia, nos países bálticos
e até mesmo na Alemanha Oriental, revertendo a sovietização e a russificação, que, no caso da Ucrânia, haviam sido implantadas pelo próprio Nikita Khrutchev. Quanto
ao Gulag, a 16 de junho ele colocou todas as cartas na mesa, declarando abertamente a intenção de "liqüidar o sistema de trabalho forçado, pois ele era economicamente
ineficiente e não tinha nenhuma perspectiva de futuro".
Até hoje as razões de Beria para realizar mudanças tão rápidas são um mistério. Alguns tentaram pintá-lo como um liberal secreto que padecia sob o sistema stalinista
e ansiava por reformas. Os colegas de partido suspeitavam que ele estava tentando concentrar mais poderes na polícia secreta, à custa do próprio Partido Comunista:
livrar o MVD do fardo incômodo e caro dos campos era simplesmente uma maneira de fortalecer o órgão. Beria também podia estar tentando se tornar popular entre o
povo e os antigos integrantes da polícia secreta que agora retornariam dos campos distantes. No final da década de 1940, ele havia criado a prática de contratar
os ex-prisioneiros, garantindo assim sua lealdade. Entretanto, talvez a explicação mais provável para o comportamento de Beria seja o seu conhecimento: mais do que
qualquer outra pessoa na URSS, Beria realmente sabia que os campos eram dispendiosos e que a maioria dos presos era inocente. Afinal, ele se dedicara a supervisionar
os primeiros e a prender os últimos durante boa parte da década anterior.
Fossem quais fossem os seus motivos, Beria andou depressa demais. Suas reformas perturbaram os colegas. Khrutchev, a quem Beria subestimou profundamente, foi o mais
abalado, talvez por ter ajudado a organizar as investigações sobre a Conspiração dos Médicos, talvez por causa da forte ligação com a Ucrânia. Khrutchev também deve
ter calculado que, cedo ou tarde, entraria na nova lista de inimigos de Beria. Aos poucos, por meio de uma intensa campanha de difamação, colocou os outros líderes
do Partido contra Beria. No final de junho, tinha conquistado a todos. Numa reunião do Partido, cercou o prédio com tropas leais. Seguiu-se a surpresa. Chocado,
gaguejando, o homem que havia sido a segunda pessoa mais poderosa na URSS foi preso.
Beria permaneceu na prisão pelos poucos meses que lhe restaram. Como Yagoda e Yezhov, ele se ocupava escrevendo cartas, pedindo clemência. Seu julgamento foi realizado
em dezembro. Não se sabe se ele foi executado então ou mais cedo - o fato é que no final de 1953 estava morto.
Os líderes da União Soviética abandonaram algumas políticas de Beria com a mesma rapidez com que elas tinham sido implantadas. Mas nem Khrutchev nem nenhum outro
ressuscitou os grandes projetos de construção do Gulag. Nem revogaram a anistia de Beria. As libertações continuaram - uma prova de que a dúvida a respeito da ineficiência
do Gulag não era apenas de Beria, por mais que ele tenha caído em desgraça. A nova liderança soviética sabia perfeitamente bem que os campos eram um estorvo para
a economia, assim como sabia que milhões dos prisioneiros ali detidos eram inocentes. O relógio começou a soar: a era do Gulag chegava ao fim.
Talvez seguindo o exemplo que vinha de Moscou, os administradores do Gulag e os guardas também se adaptaram à nova situação. Assim que se recuperaram do medo e das
doenças, vários guardas mudaram de atitude quase da noite para o dia, relaxando as regras antes mesmo de receberem ordens para tal. Um dos comandantes do lagpunkt
de Alexander Dolgun em Kolyma começou a apertar a mão dos prisioneiros e a chamá-los de "camarada" assim que soube da doença de Stalin, antes mesmo que ele fosse
oficialmente declarado morto. "O regime nos campos afrouxou, tornou-se mais humano", recorda um prisioneiro. Outro explicou a situação de forma diferente: "Os
guardas deixaram de apresentar o tipo de patriotismo que mostravam quando Stalin estava vivo". Os prisioneiros que se recusavam a realizar uma tarefa particularmente
extenuante, desagradável ou injusta não eram mais punidos. Os prisioneiros que se recusavam a trabalhar aos domingos não eram mais punidos. Protestos espontâneos
irromperam, e os manifestantes também não foram castigados, como lembra Barbara Armonas:
De alguma forma essa anistia alterou a disciplina básica do campo [...] A administração nos mandava para o banho sem deixar que pegássemos nossas coisas antes. Não
gostávamos disso, pois queríamos trocar a roupa molhada por peças secas. A longa fila de prisioneiras começou a gritar insultos, chamando os administradores de "chekistas"
e "fascistas". Então nos recusamos a continuar andando. Nada funcionou, nem as tentativas de persuasão, nem as ameaças. Depois de uma hora de batalha silenciosa,
os administradores desistiram e nos deixaram buscar roupas secas.
A mudança também alterou as prisões. Nos meses que se seguiram à morte de Stalin, Susanna Pechora vivia numa solitária e passava por um segundo interrogatório: como
"contra-revolucionária" judia, fora tirada do campo e levada a Moscou por conta da Conspiração dos Médicos. Então, de repente, o interrogatório cessou. O interrogador
a chamou para uma reunião. "Você entende, não a tratei mal, nunca lhe bati, nunca a machuquei", ele disse, e colocou-a numa nova cela, onde ela ouviu uma mulher
falando sobre a morte de Stalin pela primeira vez. "O que aconteceu?", perguntou. As companheiras de cela fizeram silêncio: como todos sabiam que Stalin tinha morrido,
supuseram que ela fosse uma informante que tentava sondar a opinião das outras. Pechora levou o dia inteiro para convencê-las de que sua ignorância era genuína.
Depois disso, ela recorda, a situação começou a mudar dramaticamente.
Os guardas estavam com medo de nós, fazíamos o que queríamos, gritávamos na hora dos exercícios, fazíamos discursos, saíamos pelas janelas. Não nos levantávamos
quando eles vinham até as celas e nos diziam para não deitar nas camas. Meio ano antes teríamos sido mortas por fazer coisas assim.
Nem tudo mudou. Leonid Trus também estava sob interrogatório em março de 1953. A morte de Stalin pode tê-lo livrado da execução, mas ainda assim ele recebeu uma
pena de 25 anos. Um de seus companheiros de cela foi condenado a dez anos por fazer um comentário pouco delicado sobre a morte de Stalin. E nem todos foram libertados.
Afinal, a anistia fora limitada aos muito jovens, aos muito velhos, às mulheres com filhos e aos prisioneiros com penas de cinco anos ou menos. A imensa maioria
dos que cumpriam penas pequenas eram criminosos comuns ou presos políticos cujos casos eram pouco consistentes. Restavam ainda 1 milhão de prisioneiros no Gulag,
inclusive centenas de milhares com penas extensas.
Outros tipos de violência também irromperam. Alguns prisioneiros que cumpriam penas grandes pediram aos médicos dos campos o cobiçado certificado de "inválido",
que garantiria a libertação imediata. Os médicos que se recusaram a atender o pedido foram ameaçados ou espancados. Em Percholag, houve seis incidentes como esse:
os médicos eram "sistematicamente aterrorizados", espancados e até esfaqueados. Em Yuzhkuzbasslag, quatro prisioneiros fizeram ameaças de morte ao médico. Em outros
campos, a quantidade de prisioneiros libertados como inválidos excedia o número anterior de inválidos registrados no campo.
Mas um grupo específico de prisioneiros, em um grupo específico de campos, experimentou emoções bastante diferentes. Os prisioneiros dos "campos especiais" eram
de fato um caso especial: em sua maioria, cumpriam penas de dez, quinze ou 25 anos e não tinham nenhuma esperança de se beneficiar da anistia de Beria. Nos primeiros
meses após a morte de Stalin, o regime sob o qual viviam sofreu mudanças mínimas. Agora os detentos podiam receber pacotes, por exemplo, mas apenas um por ano. Com
má vontade, a administração permitiu que se formassem times de futebol. Mas eles continuaram vestindo uniformes numerados, os alojamentos continuaram trancados à
noite e suas janelas continuaram gradeadas: O contato com o mundo externo continuou reduzido ao mínimo.
Estavam aí os ingredientes para uma rebelião. Em 1953, fazia já cinco anos que os moradores dos campos especiais viviam isolados dos presos "comuns" e dos criminosos.
Sozinhos, desenvolveram meios de organização interna e resistência sem paralelo na história anterior do Gulag. Durante anos elos estiveram à beira de um levante
organizado, conspirando e planejando, e a única coisa que os detinha era a esperança de que a morto de Stalin significasse sua libertação. Quando isso não aconteceu,
a esperança foi substituída pelo ódio.
24. A REVOLUÇÃO DOS ZEKS
Não consigo dormir.
Ouço as nevascas
De um tempo passado, desconhecido.
E as barracas coloridas do Tamerlão
Estão lá fora, na estepe [...] fogueiras flamejantes,
fogueiras flamejantes
Vou virar princesa mongol
Galopar de volta ao passado
E atar à história do meu cavalo
Amigos e inimigos [...]
E então, numa das batalhas
Numa impensável orgia de sangue
No momento da derrota total
Me atiro contra minha espada [...]
Anna Barkova, "Nos alojamentos do campo de prisioneiros".
Logo depois da morte de Stalin, os campos especiais, como o resto do país, foram inundados por boatos. Beria assumiria; Beria estava morto. O marechal Zhukov e o
almirante Kuznetsov tinham marchado para Moscou e atacavam o Kremlin com tanques; Khrutchev e Molotov tinham sido assassinados. Todos os prisioneiros seriam libertados;
os campos haviam sido cercados por tropas armadas do MVD, prontas para reprimir qualquer sinal de rebelião. Os prisioneiros repetiam essas histórias em voz baixa
e aos gritos, confiando e especulando.
Ao mesmo tempo, nos campos especiais, as organizações nacionais ficavam cada vez mais fortes e as ligações entre elas, cada vez mais estáveis. A experiência de Viktor
Bulgakov é típica desse momento. Ele foi preso na primavera de 1953 (na noite da morte de Stalin, na verdade) e acusado de participar de um círculo político de estudantes
anti-stalinistas. Logo depois, chegou a Minlag, o campo especial no complexo mineiro de Inta, ao norte do Círculo Polar Ártico.
A descrição que Bulgakov faz da atmosfera em Minlag contrasta demais com as lembranças dos prisioneiros de um período anterior. Ainda adolescente na época da prisão,
ele entrou numa comunidade anti-stalinista e anti-soviética bem organizada. Greves e protestos ocorriam "com regularidade". Os prisioneiros haviam se dividido em
vários agrupamentos nacionais com características próprias. Os bálticos tinham uma "organização firme, mas com uma hierarquia mal-administrada". Os ucranianos, em
sua maioria ex-guerrilheiros, eram "extremamente bem-organizados, pois seus líderes tinham comandado a guerrilha antes da prisão, todos se conheciam e se estruturaram
quase automaticamente".
O campo também tinha prisioneiros que acreditavam no comunismo, embora eles tenham se dividido em dois grupos: os que simplesmente seguiam a linha do partido e os
que se consideravam comunistas por fé ou convicção - e acreditavam na reforma da União Soviética. Por fim, tornara-se possível ser um marxista anti-soviético, algo
impensável alguns anos antes. Bulgakov pertencia à União Operária Popular - Narodno-Trudovoi Soyuz, ou NTS -, um movimento anti-stalinista que ganharia bastante
notoriedade uma ou duas décadas depois, quando as autoridades, paranóicas, começaram a ver sinais de sua influência em todos os cantos.
As preocupações de Bulgakov no campo também teriam atordoado a geração anterior de prisioneiros. Em Minlag, os detentos conseguiram publicar um jornal secreto, que
era escrito à mão e distribuído pelos campos. Eles intimidaram os pridurki, que, conseqüentemente, "ficaram com medo dos presos". Além disso, não perdiam de vista
os informantes - como os outros detentos nos campos especiais. Dmitri Panin também descreveu a guerra cada vez mais intensa contra os informantes:
As represálias eram sistemáticas. Ao longo de oito meses, 45 informantes foram mortos. As operações contra eles eram comandadas de um centro clandestino [...] Nós
vimos muitos delatores, incapazes de suportar a ameaça de morte que pairava sobre eles, tentarem escapai ao seu destino trancando-se na cadeia do campo - o único
local onde podiam se esconder de retaliações. Todos eram mantidos na mesma cela, que foi batizada de "buraco dos covardes".
Um historiador dos campos escreveu que o assassinato de informantes se tornara "uma ocorrência tão comum que ninguém se surpreendia nem se mostrava interessado",
e observou que os informantes "morriam rapidamente" Mais uma vez, a vida dentro dos campos refletia e amplificava a existência fora deles. As organizações guerrilheiras
anti-soviéticas na Ucrânia ocidental também tentaram com afinco destruir os informantes, e seus líderes levaram essa obsessão para os campos. Talvez cientes disso,
as autoridades do campo de Panin isolaram os prisioneiros ucranianos, já que eles eram tidos como os responsáveis pelas mortes dos informantes. Isso serviu apenas
para aumentar sua solidariedade e seu ódio.
Em 1953, os camaradas de Bulgakov em Minlag também tentavam sistematicamente acompanhar seus próprios números e as condições em que viviam, transmitindo as informações
para o Ocidente por meio da cooperação de guardas e de outras técnicas que seriam aperfeiçoadas nos campos para dissidentes dos anos 1970 e 1980, como veremos adiante.
Bulgakov ficou encarregado de esconder esses documentos, bem como cópias de canções e poesias compostas pelos presos. Leonid Sitko realizou a mesma tarefa em Steplag
e escondeu os documentos no porão de um edifício que os prisioneiros estavam construindo. Entre eles havia "breves descrições da vida de cada um, cartas dos detentos
mortos, um documento curto assinado pela médica Galina Mishkina atestanto as condições desumanas nos campos (inclusive com estatísticas de mortes, fome etc), uma
explicação sobre a organização e o crescimento dos campos do Casaquistão e um relato detalhado da história de Steplag - além de poemas".
Sitko e Bulgakov simplesmente acreditavam que um dia os campos seriam fechados, que os alojamentos seriam incendiados e que as informações poderiam ser recuperadas.
Vinte anos antes ninguém ousara pensar algo assim, quanto mais tomar alguma atitude.
Graças à administração do Gulag, táticas e estratégias de conspiração se espalharam pelos campos especiais com rapidez. No passado, os prisioneiros suspeitos de
tramar conspirações eram isolados. As principais autoridades mudavam os detentos de um campo para outro, aniquilando as redes rebeldes antes que elas se formassem.
No ambiente mais homogêneo dos campos especiais, porém, essa tática foi um tiro pela culatra. A movimentação constante dos prisioneiros foi um meio excelente de
disseminar a rebelião.
Ao norte do Círculo Ártico, os verões são muito curtos e muito quentes. No final de maio, o gelo dos rios começa a se quebrar. Os dias ficam cada vez maiores, até
a noite desaparecer de vez. Em algum momento de junho - dependendo do ano, em julho - o sol começa a brilhar ferozmente, às vezes por um mês, às vezes por dois.
De um dia para outro, as flores do Ártico desabrocham, e durante algumas semanas a tundra fica imersa em cores. Para os seres humanos, que viveram trancados durante
nove meses, o verão traz uma vontade avassaladora de sair, de ser livre. Nos poucos dias quentes do verão que passei em Vorkuta, os habitantes da cidade pareciam
passar todos os dias e todas as noites ao ar livre, passeando pelas ruas, sentando nos parques, conversando nos degraus das casas. Não era por acaso que os prisioneiros
tentavam fugir na primavera. Assim como não foi obra do acaso os três levantes mais famosos, perigosos e importantes terem acontecido nos campos do norte durante
a primavera.
Em Gorlag, o campo especial do complexo de Norilsk, a atmosfera estava especialmente carregada de ódio na primavera de 1953. No outono anterior, uma grande quantidade
de presos, cerca de 1.200, havia chegado de Karaganda, muitos dos quais estariam envolvidos nas tentativas de fuga armadas e nos protestos que aconteceram alguns
meses antes. Todos tinham sido presos por "atividade revolucionária na Ucrânia ocidental e nos países bálticos". Segundo os arquivos do MVD, eles começaram a organizar
um "comitê revolucionário" quando ainda estavam em trânsito para Norilsk.
De acordo com os relatos dos detentos, eles também mataram quatro informantes do campo - com picaretas - pouco depois da chegada. Na primavera de 1953, enraivecidos
ao extremo contra a anistia que os deixara de lado, esse grupo criou o que o MVD descreveu como uma "organização anti-soviética" no campo, o que provavelmente significa
que eles haviam fortalecido as organizações nacionais já existentes.
A inquietação cresceu ao longo de maio. No dia 25, os guardas dos comboios mataram um prisioneiro a caminho do trabalho. Na manhã seguinte, duas divisões do campo
protestaram com uma greve. Alguns dias depois, guardas abriram fogo contra detentos que jogavam mensagens sobre o muro que separava os campos dos homens e das mulheres.
Alguns foram feridos. Então, no dia 4 de junho, um grupo prisioneiros pôs abaixo a barreira de madeira que separava o alojamento de castigo do resto da zona e libertou
24 detentos. Eles também capturaram um integrante da administração do campo, levaram-no para a zona e fizeram-no refém. Os guardas abriram fogo, matando cinco prisioneiros
e ferindo catorze. Mais quatro divisões do campo aderiram ao protesto. Em 5 de junho, 16.379 detentos estavam em greve. Os soldados cercaram o campo, e todas as
saídas foram bloqueadas.
Mais ou menos na mesma época, protestos semelhantes aconteceram em Rechlag, o campo especial do complexo mineiro de Vorkuta. Ali os prisioneiros tentaram organizar
uma greve geral ainda em 1951; posteriormente, as autoridades diriam ter descoberto nada menos que cinco "organizações revolucionárias" entre 1951 e 1952. Quando
Stalin morreu, os detentos de Rechlag também estavam particularmente bem-equipados para acompanhar o que acontecia no mundo. Não apenas se organizaram em grupos
nacionais, como em Minlag e em outros campos, como também destacaram alguns prisioneiros para acompanhar as transmissões do Ocidente em rádios emprestados e escrever
as notícias em forma de boletins comentados, que eles distribuíam com cuidado entre os prisioneiros. Portanto, eles sabiam da morte de Stalin e da prisão de Beria,
mas também da greve geral em Berlim Oriental, que ocorreu a 17 de junho de 1953 e foi esmagada pelos tanques soviéticos.
Essa notícia parece ter galvanizado os prisioneiros: se os berlinenses podiam entrar em greve, eles podiam também. John Nobel, um americano preso em Dresden logo
depois da guerra, recorda que "a coragem deles nos inspirou, e só se falou sobre isso nos dias seguintes [...] No outro mês éramos escravos arrogantes. O sol de
verão derretera a neve e o calor renovara nossa energia e nossa disposição. Discutimos a possibilidade de entrar em greve pela liberdade, mas ninguém sabia como
fazer".
Em 30 de junho, os detentos da mina de Kapitalnaya distribuíram panfletos convocando os prisioneiros a "interromper a entrega de carvão . No mesmo dia, alguém escreveu
um slogan nas paredes da mina nº 40: "Não haverá entrega de carvão até a anistia". Os caminhões ficaram vazios: os prisioneiros tinham parado de extrair o carvão.
Em 17 de julho, as autoridades da mina de Kapitalnaya tiveram uma razão ainda maior para se alarmar: nesse dia, um grupo de presos espancou o capataz porque ele
teria mandado "parar a sabotagem". Quando deu a hora do segundo turno, o próximo capataz se recusou a descer até a mina.
Enquanto os detentos de Rechlag ainda absorviam as novidades, um grande contingente de prisioneiros chegou - outra vez de Karaganda. Todos tinham recebido a promessa
de melhores condições de vida e reexame de seus casos. Quando chegaram ao trabalho na mina nº 7 de Vorkuta, encontraram não uma melhoria, mas as piores condições
de todo o sistema de campos. No dia seguinte - 19 de julho -350 entraram em greve.
Outras greves se seguiram - graças, em parte, à própria geografia de Vorkuta. Vorkutalag estava no centro de uma vasta bacia de carvão - uma das maiores do mundo.
Para explorar o combustível, uma série de minas foi aberta num amplo círculo em torno da bacia. Entre as minas havia outros empreendimentos - estações de energia,
fábricas de cimento e tijolos - cada uma ligada a um campo, assim como à cidade de Vorkuta e ao pequeno povoado de Yur-Shor. Um ferrovia ligava todos esses locais.
Os trens, como tudo mais em Vorkuta, eram operados por prisioneiros - e foi assim que a rebelião se espalhou: junto com o carvão e outros suprimentos que eles transportavam
de um lagpunkt para outro, os ferroviários prisioneiros contavam as novidades da greve no campo nº 7. Enquanto os trens viajavam pelo grande círculo, milhares de
prisioneiros ouviam os relatos murmurados, outros milhares viam os slogans pintados nas laterais dos trens: "Para o diabo com seu carvão! Queremos liberdade". Um
campo após o outro se juntou à greve, até que, em 29 de julho de 1953, seis das dezessete divisões de Rechlag - 15.604 pessoas - estavam em greve.
Na maior parte dos lagpunkts em greve em Vorkuta e Norilsk, comitês de grevistas se encarregaram de uma situação visivelmente perigosa. Aterrorizados, os administradores
deixaram os campos, e a possibilidade de anarquia era grande. Em alguns casos, esses comitês se viram organizando a comida dos detentos. Em outros, tentavam persuadir
os internos a não agredir os informantes, então completamente indefesos. Tanto no que diz respeito a Rechlag como a Gorlag, memórias e arquivos concordam que os
responsáveis (na medida em que havia alguém responsável) eram quase sempre ucranianos, poloneses e bálticos. Mais tarde, o MVD apontou um ucraniano chamado Herman
Stepanyuk como o líder em Norilsk, e o polonês Kendzerski - "ex-capitão" do exército polonês - como um dos líderes - em Vorkuta. Em seu relato da rebelião, Edward
Buca, outro polonês, reivindicava a liderança da greve na mina nº 29 de Vorkuta. Embora ele estivesse mesmo nesse campo na época, há razões para duvidar de sua história,
no mínimo porque muitos dos verdadeiros líderes grevistas foram mortos.
Anos depois, os nacionalistas ucranianos afirmariam que todas as grandes greves do Gulag foram planejadas e executadas por suas organizações secretas, que se ocultavam
atrás de comitês grevistas multinacionais: "O prisioneiro médio, e nos referimos especificamente aos prisioneiros ocidentais e russos, eram incapazes de participar
das decisões ou de compreender o mecanismo do movimento". Como prova, citavam os dois "étaps de Karaganda", os contingentes de ucranianos transferidos para ambos
os campos pouco antes das greves.
As mesmas provas levaram outros indivíduos a concluir que as greves foram provocadas por pessoas dentro do MVD. Talvez integrantes dos sistemas de segurança temessem
que Khrutchev fechasse os campos de uma só vez e demitisse todas as autoridades. Assim, fomentavam as rebeliões para reprimi-las e mostrar como ainda eram necessários.
Simeon Vilensky, editor e ex-zek que organizou duas conferências sobre a oposição nos campos, explica melhor: "Quem dirigia os campos? Milhares de pessoas que não
tinham uma profissão civil, pessoas acostumadas à completa ausência de leis, acostumadas a ser donas dos prisioneiros, a fazer com eles o que bem entendiam. Em comparação
aos outros cidadãos, esse tipo de gente ganhava muito bem".
Vilensky continua convencido de que testemunhou uma provocação em seu campo em Kolyma, em 1953. De repente, ele diz, uma nova leva de prisioneiros chegou. Um deles
começou a organizar abertamente os mais jovens em um grupo rebelde. Eles falavam de greves, escreviam panfletos, aliciavam novos prisioneiros. Chegaram até a usar
a oficina do campo para fabricar facas. Agiam tão abertamente e de forma tão provocativa que Vilensky considerou-os suspeitos: a administração do campo não tolerava
aquele tipo de atividade por acaso. Ele liderou a oposição aos recém-chegados até ser transferido para outro campo.
Na essência, essas teses são compatíveis. É possível que indivíduos do MVD colocassem rebeldes ucranianos dentro dos campos a fim de causar problemas. Também é possível
que os líderes grevistas ucranianos acreditassem estar agindo por vontade própria. No entanto, os relatos oficiais e os das testemunhas oculares parecem indicar
que, muito provavelmente, as greves só ganharam ímpeto por causa da cooperação entre os vários grupos nacionais. Nos locais em que os grupos competiam entre si de
modo mais aberto - como em Minlag - era mais difícil organizar greves.
Fora dos campos, as greves não recebiam nenhum apoio. Os grevistas de Gorlag, cujos campos ficavam bem próximos da cidade de Norilsk, tentaram chamar atenção para
a sua causa com uma faixa: "Camaradas, habitantes de Norilsk! Ajudem nossa luta". Como a maioria da população de Norilsk era de ex-prisioneiros, é quase certo
que estava apavorada demais para responder. Apesar da linguagem burocrática, os relatórios do MVD escritos algumas semanas depois desses acontecimentos transmitem
muito bem o terror que as greves geraram entre os prisioneiros e os trabalhadores livres. Um dos contadores de Gorlag jurou ao MVD que "se os grevistas saírem da
zona lutaremos contra eles como se fossem inimigos".
Outro trabalhador livre contou ao MVD sobre seu encontro casual com os grevistas: "Fiquei um pouco além do término do turno a fim de acabar de perfurar o veio de
carvão. Um grupo de prisioneiros se aproximou. Agarrando minha furadeira elétrica, ordenaram que eu parasse de trabalhar e me ameaçaram com uma punição. Fiquei com
medo e parei de trabalhar [...]". Felizmente para ele, os prisioneiros iluminaram seu rosto com uma lanterna, viram que era um trabalhador livre e deixaram-no em
paz. Sozinho, na escuridão da mina, cercado por grevistas hostis, irados, ele deve ter mesmo sentido muito medo.
Os chefes locais dos campos também estavam intimidados. Ao sentir isso, os grevistas de Gorlag e Rechlag exigiram um encontro com representantes do governo soviético
e do Partido Comunista de Moscou. Eles argumentavam que os comandantes locais não podiam tomar nenhuma decisão sem a permissão de Moscou, o que era a pura verdade.
E Moscou apareceu. Ou seja, em várias ocasiões, representantes das "comissões de Moscou" se reuniram com comitês de prisioneiros em Gorlag e Rechlag para escutar
e discutir suas exigências. Eu poderia descrever essas reuniões como sem precedentes, mas essas palavras não transmitem a magnitude da novidade. Nunca antes as exigências
dos prisioneiros tinham sido recebidas com algo que não fosse a força bruta. Nesse período pós-stalinista, entretanto, Khrutchev parecia disposto a pelo menos tentar
conquistar os prisioneiros com concessões genuínas.
Ele, ou melhor, seus representantes não foram bem-sucedidos. No quarto dia de uma greve em Vorkuta, a comissão de Moscou liderada pelo general 1.1. Maslennikov apresentou
aos presos uma nova lista de privilégios: jornada de trabalho de nove horas, remoção dos números dos uniformes, permissão para encontrar familiares, permissão para
receber cartas e dinheiro. Segundo o relatório oficial, vários líderes grevistas receberam a proposta com "hostilidade" e permaneceram em greve. Uma oferta semelhante
em Gorlag obteve a mesma reação Ao que parece, os prisioneiros queriam anistia e não apenas a melhoria das condições de vida.
No entanto, embora eles já não estivessem em 1938, ainda não estavam em 1989. Stalin morrera, mas seu legado continuava vivo. O primeiro passo podia ser a negociação,
mas o segundo era a força bruta. Em Norilsk, a princípio as autoridades prometeram "examinar as exigências dos presos". Em vez disso, conforme o relatório do MVD
explica, "a comissão do MVD da URSS decidiu liqüidar os grevistas". Essa decisão, quase certamente tomada pelo próprio Khrutchev, teve efeitos imediatos e dramáticos.
Os campos foram cercados por soldados. Lagpunkt a lagpunkt, eles esvaziaram os campos, prenderam os líderes grevistas e transferiram os outros presos.
Em alguns casos, a "liqüidação" foi realizada com relativa tranqüilidade. Ao chegar à primeira divisão do campo, as tropas pegaram os prisioneiros de surpresa. Pelo
alto-falante, o promotor-chefe de Norilsk, Babilov, ordenou aos prisioneiros que deixassem a zona, assegurando-lhes que aqueles que saíssem de forma pacífica não
seriam punidos pela participação na "sabotagem". De acordo com o relato oficial, a maior parte dos presos saiu. Vendo-se isolados, os líderes saíram também. Lá fora,
na taiga, os soldados e os comandantes do campo dividiram os prisioneiros em grupos. Os suspeitos de instigar a greve foram colocados em caminhões que estavam à
espera, e os "inocentes" puderam voltar para o campo.
Algumas das "liqüidações" posteriores não correram com a mesma tranqüilidade. No dia seguinte, quando as autoridades seguiram o mesmo procedimento em outro lagpunkt,
primeiro os líderes grevistas ameaçaram os que queriam sair - e então se trancaram em um alojamento, do qual teriam de ser removidos à força. No campo das mulheres,
as prisioneiras formaram um círculo, hastearam uma bandeira preta - símbolo das camaradas injustamente assassinadas - no centro e começaram a gritar slogans. Depois
de cinco horas, os guardas começaram a molhá-las com mangueiras poderosas. Só então o círculo se abriu o suficiente para os guardas tirarem as mulheres de lá.
No lagpunkt nº 5, um total de 1.400 prisioneiros, em sua maioria ucranianos e bálticos, recusou-se a sair da zona. Em vez disso, eles penduraram bandeiras negras
nos alojamentos e se comportaram, nas palavras de um burocrata do MVD, com "extrema agressividade". Então, quando os guardas do campo, auxiliados por quarenta soldados,
tentaram isolar os alojamentos com cordas e proteger os suprimentos de comida, uma multidão de quinhentos prisioneiros atacou. Gritando palavrões e vivas, jogaram
pedras, acertaram os soldados com porretes e picaretas, tentaram arrancar-lhes as armas das mãos. O relatório oficial descreve o que aconteceu a seguir: "No momento
mais crítico do ataque aos guardas, os soldados abriram fogo contra os prisioneiros. Ao final do tiroteio, os presos foram obrigados a se deitar no chão. Depois
desse episódio, eles passaram a obedecer a todas as ordens dos guardas e dos administradores do campo".
Segundo o mesmo relatório, 23 prisioneiros morreram nesse dia De acordo com testemunhas oculares, várias centenas morreram ao longo de vários dias em Norilsk, numa
série de incidentes semelhantes.
A greve em Vorkuta foi debelada de forma similar. Lagpunkt a lagpunkt, soldados e tropas policiais forçaram os prisioneiros a sair, dividiram-nos em grupos de cem
e passaram-nos por um processo de "filtragem", isolando os supostos líderes. Para que os presos saíssem de forma pacífica, a comissão de Moscou também prometeu em
voz alta que todos os casos seriam revistos e que os cabeças não seriam mortos. O estratagema funcionou: graças à postura "paternal" do general Maslennikov, "acreditamos
nele", um dos participantes explicou mais tarde.
Em um campo, porém - o lagpunkt ao lado da mina nº 29 -, os prisioneiros não acreditaram no general, e quando Maslennikov lhes disse para voltar ao trabalho, eles
não obedeceram. Os soldados chegaram num carro de bombeiros, com a intenção de usar as mangueiras de água para dispersar a multidão:
Mas antes que as mangueiras pudessem ser desenroladas e utilizadas contra nós, Ripetsky acenou aos presos que dessem um passo a frente, e eles avançaram em bloco,
colocando o veículo para fora dos portões como se ele fosse de brinquedo [...] Os guardas atiraram contra a massa de prisioneiros. Como estávamos de braços dados,
a princípio ninguém caiu, embora houvesse vários mortos e feridos. Apenas Ihnatowicz estava só, um pouco à frente do cordão. Por um momento, ele pareceu parar, atônito,
então se virou para nos seus lábios se moveram, mas não se ouviu uma palavra. Ele esticou um braço e caiu.
Enquanto ele caía, veio uma segunda salva de tiros, seguida de urna terceira e uma quarta. Então, pesadas metralhadoras abriram fogo.
Mais uma vez, são muito variadas as estimativas dos mortos na mina nº 29. Os documentos oficiais mencionam 42 mortos e 135 feridos. As testemunhas oculares falam
de "centenas" de baixas.
As greves terminaram. Mas nenhum campo foi verdadeiramente pacificado. No restante do ano de 1953 e ao longo de 1954, irromperam protestos esporádicos em Vorkuta
e Norilsk, nos outros campos especiais e nos campos comuns também. "Um espírito triunfante, que se mantinha à tona graças ao aumento de salário que tivemos, foi
a herança da greve", Noble escreveu. Quando ele foi transferido para a mina n° 29, cenário do massacre, os sobreviventes mostravam com orgulho as cicatrizes deixadas
por aquele dia.
Praticamente nenhum campo ficou imune ao aumento da audácia dos presos. Em novembro de 1953, por exemplo, 530 prisioneiros recusaram-se a trabalhar em Vyatlag. Eles
exigiam salários melhores e o fim das "anormalidades" na distribuição de roupas e nas condições de vida. Os administradores do campo concordaram em atender às exigências,
mas no dia seguinte os prisioneiros entraram em greve de novo. Dessa vez, exigiam ser incluídos na anistia de Beria. A greve terminou quando seus organizadores foram
capturados e encarcerados. Em março de 1954, um grupo de "bandidos" assumiu o controle do lagpunkt de Kargopollag e ameaçou fazer uma rebelião a menos que recebessem
uma alimentação melhor... e vodca. Em julho de 1954, novecentos prisioneiros de Minlag organizaram uma greve de fome de uma semana em protesto contra a morte de
um prisioneiro, que fora queimado vivo quando um bloco de solitárias se incendiou. Os prisioneiros distribuíram panfletos pelo campo e pela aldeia vizinha explicando
as razões da greve, que só teve fim com a chegada de uma comissão de Moscou e a promessa de um tratamento melhor. Em todo o Minlag, as greves se tornaram parte do
cotidiano; às vezes, eram organizadas por brigadas, às vezes por minas inteiras.
Como era de conhecimento das autoridades, mais tumultos estavam planejados. Em junho de 1954, o MVD enviou o relatório de um informante diretamente a Kruglov, o
ministro do Interior. O relatório descrevia uma conversa travada entre um grupo de prisioneiros ucranianos que o informante encontrara no campo de transição de Sverdlovsk.
Os prisioneiros eram de Gorlag e tinham participado de uma greve por lá. Eles estavam sendo transportados para outro local, mas já se preparavam para a próxima:
Todos na cela tiveram de explicar a Pavlishin e Stepanyuk o que fizeram durante a greve, inclusive eu [...] Na minha frente, Morushko relatou a Stepanyuk um incidente
na barcaça que levava de Norilsk a Krasnoyarsk. Nessa barcaça, ele conduziu uma triagem de prisioneiros e destruiu os que não eram úteis. "Você cumpriu a missão
que recebeu e agora nossos feitos entrarão para a história da Ucrânia" Stepanyuk disse a Pavlishin. Então, ele abraçou Morushko e disse
"Pan Morushko, você prestou um grande serviço a nossa organização [...] por isso receberá uma medalha, e, depois do colapso da União Soviética, ocupará um cargo
importante."
Embora seja perfeitamente possível que o informante que escreveu esse relatório tenha escutado uma conversa parecida com essa, ele também fez elucubrações: mais
adiante, ele pôs-se a acusar os ucranianos de organizar um complô bastante improvável para matar Khrutchev. Ainda assim, o fato de essas informações dúbias terem
sido enviadas diretamente a Kruglov indica como as autoridades levavam a sério a ameaça de novas rebeliões. As comissões enviadas para investigar a situação em Rechlag
e Gorlag concluíram ser necessário aumentar o número de guardas, apertar o regime e, acima de tudo, aumentar a quantidade de informantes.
E eles tinham razão em se preocupar. O levante mais perigoso ainda estava por vir.
Como os dois predecessores, o levante que Soljenitsin batizou de "Os quarenta dias de Kengir" não foi repentino ou inesperado. Ele emergiu devagar, na primavera
de 1954, a partir de uma série de incidentes no campo especial de Steplag, que se localizava ao lado da aldeia de Kengir, no Casaquistão.
Como os colegas de Rechlag e de Gorlag, os comandantes de Steplag foram incapazes de lidar com os prisioneiros depois da morte de Stalin. Um dos historiadores da
greve, que estudou os arquivos do campo a partir de 1953, conclui que a administração tinha "perdido totalmente o controle". Nos momentos que antecederam a greve,
os comandantes de Steplag enviavam relatórios periódicos a Moscou dando conta das organizações secretas do campo, dos tumultos e da "crise" que afetava a rede de
informantes, na época quase totalmente incapacitada. Moscou respondeu ordenando que os prisioneiros ucranianos e bálticos fossem isolados. Nessa altura, quase metade
dos 20 mil detentos do campo eram ucranianos e um quarto eram poloneses e bálticos; talvez não houvesse meio de isolá-los. Assim, os presos continuaram a violar
as regras com protestos e greves intermitentes.
Incapazes de intimidar os prisioneiros com ameaças de punição, os guardas recorriam à violência de fato. Algumas pessoas acreditam - Soljenitsin, por exemplo - que
esses incidentes eram também provocações destinadas a detonar a revolta que se seguiu. Quer isso seja verdade ou não - até hoje não existem registros esclarecedores
-, durante o inverno de 1953 e a primavera de 1954 os guardas do campo realmente atiraram contra prisioneiros que não cooperavam, matando vários deles. Então, talvez
numa tentativa desesperada de reassumir o controle, os administradores colocaram um grupo de criminosos nos campos, instruindo-os abertamente a provocar brigas com
os presos políticos no lagpunkt na 3 - o mais revoltoso de Steplag. O tiro saiu pela culatra. "E aqui", escreve Soljenitsin, "vemos como é imprevisível o curso das
emoções humanas e dos movimentos sociais! Ao injetar em Kengir nº 3 uma dose cavalar de ptomaína já testada, os chefes não conseguiram a pacificação do campo, mas
o maior motim do Arquipélago Gulag". Em vez de brigar, os dois grupos decidiram cooperar.
Como em outros campos, os prisioneiros de Steplag estavam organizados por nacionalidade. Os ucranianos, porém, pareciam ter elevado sua organização a um esquema
de conspiração. Em vez de escolher os líderes abertamente, eles formaram um "centro" conspira-tório, um grupo secreto cujos integrantes jamais foram conhecidos publicamente
e que, é provável, contava com todas as nacionalidades do campo. No momento em que os mafiosos chegaram, o Centro já tinha começado a produzir armas - facas improvisadas,
porretes e picaretas - nas oficinas do campo e já estava em contato com os prisioneiros de dois lagpunkts vizinhos, o nº 1 - uma zona para mulheres - e o nº 2. E
possível que os presos políticos tenham impressionado os mafiosos com seu trabalho manual, ou talvez eles os tenham aterrorizado. Seja como for, sabe-se que, numa
reunião à meia-noite, representantes dos dois grupos - políticos e criminosos - cumprimentaram-se e decidiram se unir.
Em 16 de maio, essa cooperação gerou o primeiro fruto. A tarde, um grande grupo de prisioneiros do lagpunkt nº 3 começou a derrubar o muro de pedra que os
separava dos dois campos vizinhos a partir do pátio de serviços, onde ficavam as oficinas e os armazéns. Antigamente, o objetivo principal teria sido o estupro.
Agora, com guerrilheiros nacionalistas ucranianos dos dois lados do muro, os homens acreditavam estar indo ao socorro de suas mulheres - familiares, amigas e até
esposas.
A demolição do muro continuou pela noite. Os guardas responderam com tiros. Eles mataram treze presos, feriram quarenta e espancaram outros tantos, inclusive mulheres.
No dia seguinte, furiosos com as mortes, os prisioneiros do lagpunkt nº 3 iniciaram um enorme protesto e escreveram slogans anti-soviéticos nas paredes do refeitório
Nessa noite, eles invadiram a solitária - literalmente desmontando-a com as mãos - e libertaram 252 presos. Assumiram o controle dos armazéns, da cozinha, da padaria
e das oficinas, que imediatamente puseram a serviço da fabricação de facas e porretes. Na manhã do dia 19 de maio, a maior parte dos presos estava em greve.
Nem Moscou nem o comando local do campo pareciam saber o que fazer em seguida. O comandante do campo prontamente informou Kruglov, o chefe do MVD, sobre os acontecimentos.
Com a mesma prontidão, Kruglov ordenou a Gubin, chefe do MVD casaque, que investigasse. Gubin voltou ao ponto de partida e ordenou ao Gulag que enviasse uma comissão
de Moscou. A comissão chegou. Seguiram-se as negociações - e a comissão, tentando ganhar tempo, prometeu aos prisioneiros que investigaria as execuções ilegais,
que manteria aberta a passagem entre os campos e que aceleraria a revisão de seus casos.
Os presos acreditaram. Em 23 de maio, voltaram ao trabalho. Porém, quando os trabalhadores do turno diurno voltaram, perceberam que pelo menos uma das promessas
havia sido quebrada: os muros que separavam os lagpunkts haviam sido reconstruídos. Em 25 de maio, o chefe de Kengir, V M. Bochkov, voltou a telegrafar frenetica-mente,
pedindo permissão para impor um "regime rígido" aos prisioneiros: nada de cartas, nada de reuniões, nada de ordens de pagamento, nada de revisão de casos. Além disso,
ele retirou cerca de 420 criminosos do campo e os enviou a outro lagpunkt, onde entraram em greve.
Resultado: em 48 horas, os prisioneiros escorraçaram todas as autoridades para fora da zona, depois de ameaçá-las com as novas armas. Embora as autoridades dispusessem
de revólveres, estavam em menor número. Mais de 5 mil prisioneiros viviam nas três divisões do campo e a maioria deles aderira ao levante. Os que não aderiram estavam
intimidados demais para protestar. Os que mantinham uma postura neutra foram tomados pelo espírito do levante dos quarenta dias. Na primeira manhã da greve, um prisioneiro
recordou assombrado, "não fomos acordados pelos guardas, não fomos recebidos com gritos".
A princípio, os comandantes do campo esperavam que a greve perdesse força de maneira espontânea. Imaginavam que, cedo ou tarde, os mafiosos e os presos políticos
se desentenderiam. Os prisioneiros se entregariam à anarquia e à libertinagem, as mulheres seriam estupradas, a comida seria roubada. No entanto, embora o comportamento
dos prisioneiros durante a greve não deva ser idealizado, a verdade é que ocorreu quase o oposto: o campo começou a funcionar com urna harmonia surpreendente.
Rapidamente os prisioneiros escolheram um comitê de greve, encarregado das negociações e da organização do cotidiano do campo. Os relatos da origem desse comitê
são radicalmente diferentes entre si. Segundo o registro oficial dos acontecimentos, as autoridades mantinham negociações gerais com grupos de prisioneiros quando,
subitamente, um grupo de pessoas que alegavam fazer parte do comitê de greve apareceu em cena e proibiu todos os outros de falar. No entanto, várias testemunhas
afirmam que foram as próprias autoridades que sugeriram a formação de um comitê de greve, que foi escolhido pelo voto, de forma democrática.
A verdadeira ligação entre o comitê de greve e a liderança "real" do levante também permanece nebulosa, como provavelmente era na época. Mesmo que não tenha planejado
as coisas passo a passo, está claro que o Centro ucraniano foi a força que impulsionou a greve e desempenhou um papel decisivo na eleição "democrática" do comitê.
Os ucranianos parecem ter insistido em um grupo multinacional: não queriam que a greve parecesse muito anti-soviética ou anti-russa e desejavam um líder russo.
Esse russo foi o coronel Kapiton Kuznetsov, que sobressai como um figura notadamente ambígua, mesmo na história obscura de Kengir. Ex-oficial do Exército Vermelho,
Kuznetsov fora capturado pelos nazistas e enviado a um campo de prisioneiros de guerra. Em 1948, foi preso e acusado de colaborar com a administração do campo nazista
e de se juntar à luta contra os guerrilheiros soviéticos. Como já havia desempenhado o papel de vira-casaca, estaria bem preparado para assumir um papel duplo mais
uma vez.
Aparentemente, os ucranianos escolheram Kuznetsov na esperança de que ele desse uma feição "soviética" ao levante e tirasse das autoridades uma desculpa para esmagar
os prisioneiros. O que ele certamente fez - chegando a extremos, talvez. Incitados por Kuznetsov, os prisioneiros em greve penduraram faixas pelo campo: "Vida longa
à constituição soviética!", "Vida longa ao regime soviético!", "Abaixo os partidários de Beria, assassinos!". Ele fazia discursos aos prisioneiros, argumentando
que deveriam parar de escrever panfletos, que a agitação "contra-revolucionária" serviria apenas para prejudicar sua causa Cortejou assiduamente os prisioneiros
"soviéticos", os detentos que mantinham a fé no Partido, e persuadiu-os a ajudar a manter a ordem.
E embora os ucranianos tenham ajudado a elegê-lo, Kuznetsov com certeza não fez jus à fé nele depositada. Na longa e cuidadosamente detalhada confissão que escreveu
quando a greve chegou ao inevitável final sangrento, ele afirmou que sempre considerara o Centro ilegítimo e que havia lutado contra seus éditos secretos durante
toda a greve. Mas os ucranianos jamais confiaram muito em Kuznetsov. Ao longo da greve, dois guardas ucranianos armados o seguiam por toda parte. A desculpa era
que ele precisava de proteção. Na realidade, o objetivo era provavelmente evitar que ele traísse a causa e se esquivasse do campo à noite.
Os ucranianos podiam ter motivos para temer a fuga de Kuznetsov, pois um outro membro do comitê de greve, Aleksei Makeev, acabou deixando o campo algumas semanas
depois. Posteriormente, pelo rádio do campo, Makeev exortou os prisioneiros a retornar ao trabalho. É possível que ele logo tenha entendido que a greve estava fadada
ao fracasso - ou talvez tenha sido um instrumento da administração desde o início.
Mas nem todos os integrantes do comitê tinham comportamento dúbio. O próprio Kuznetsov admitiu mais tarde que pelo menos três membros - "Gleb" Sluchenkov, Gersh
Keller e Yuri Knopmus - eram de fato representantes do Centro. Posteriormente, os comandantes do campo também descreveram um deles, Gersh Keller, como representante
da conspiração ucraniana, e sua biografia parece de fato corroborar esse retrato. Listado nos registros do campo como judeu, Keller era na verdade um ucraniano -
seu sobrenome verdadeiro era Pendrak -que conseguira esconder a própria etnia do MVD. Keller se encarregou do departamento "militar" da greve, organizando os presos
para responder caso os guardas atacassem o campo. Foi ele quem deu inicio à produção em massa de armas - facas, cajados, porretes, picaretas - e quem montou um "laboratório"
para fabricar granadas, coquetéis molotov e outras armas "quentes". Keller também supervisionou a construção de barricadas e providenciou um barril de vidro moído
para cada alojamento - o vidro deveria ser jogado nos olhos dos soldados, se e quando eles chegassem.
Se Keller representava os ucranianos, Gleb Sluchenkov estava ligado aos criminosos do campo. O próprio Kuznetsov o descreveu como "representante do mundo do crime",
e as fontes ucranianas nacionalistas também o descreviam como líder dos mafiosos. Durante o levante, Sluchenkov dirigiu a operação de "contra-inteligência" do comitê.
Ele tinha a própria "polícia", que patrulhava o campo, mantinha a ordem e prendia possíveis vira-casacas e informantes. Organizou o campo em divisões e designou
um "comandante" para cada uma. Mais tarde, Kuznetsov reclamou do fato de os nomes desses comandantes serem mantidos em sigilo; apenas Sluchenkov e Keller os conheciam.
Kuznetsov era menos mordaz que Knopmus, um russo de etnia germânica nascido em São Petersburgo que dirigia o departamento de "propaganda" do levante. Ainda assim,
retrospectivamente, as atividades de Knopmus durante a rebelião foram as mais revolucionárias e as mais anti-soviéticas de todas. A "propaganda" de Knopmus incluía
a produção de panfletos - distribuídos à população local, fora dos campos -, a impressão de um "jornal mural" para os prisioneiros em greve e, o mais extraordinário,
a criação de uma rádio.
Como as autoridades tinham cortado a energia nos primeiros dias da greve, essa rádio não foi apenas uma fanfarronice, mas uma grande conquista técnica. Primeiro,
os zeks montaram uma estação "hidrelétrica" - usando uma torneira. Um motor foi convertido em gerador, e eles conseguiram produzir energia suficiente para o sistema
de telefonia do campo e para a rádio. Esta, por sua vez, foi montada com peças dos projetores portáteis do campo.
Em poucos dias, a rádio tinha locutores e programas de notícias destinados aos prisioneiros e à população local, fora do campo, inclusive os guardas e os soldados.
As estenógrafas do campo registraram o texto de um dos pronunciamentos da rádio depois de um mês de greve, quando os suprimentos de comida estavam chegando ao fim.
Dirigido aos soldados, que agora montavam guarda do lado de fora, a estenógrafa o encaminhou para os arquivos do MVD:
Camaradas soldados! Não temos medo de vocês e pedimos que não entrem em nossa zona. Não atirem em nós, não se curvem diante da vontade dos partidários de Beria.
Não temos medo deles, assim como não temos medo da morte. Preferimos morrer de fome neste campo a nos render a esse bando. Não sujem as mãos com o mesmo sangue que
mancha as mãos dos seus oficiais [...]
Enquanto isso, Kuznetsov organizava a distribuição da comida, que era preparada pelas mulheres do campo. Todos os prisioneiros recebiam a mesma ração - não havia
porções extras para os pridurki -, que foi diminuindo ao longo das semanas, à medida que os estoques baixavam. Grupos de voluntários também limpavam os alojamentos,
lavavam as roupas e montavam guarda. Um detento recorda que "a ordem e a limpeza" reinavam no refeitório, que no passado era imundo e caótico. Os banheiros do campo
funcionavam como de costume, assim como o hospital, embora os comandantes do campo se recusassem a fornecer os remédios e os suprimentos necessários.
Os prisioneiros também organizavam o próprio "entretenimento". Segundo um memorialista, um aristocrata polonês chamado conde Bobrinski abriu um "bar" no campo, onde
servia "café": "Ele jogava alguma coisa na água, fervia, e, no meio de um dia quente, os prisioneiros bebiam esse negócio com prazer, rindo". O conde se sentava
num canto do bar, tocava violão e cantava velhas canções românticas. Outros prisioneiros organizavam séries de palestras, além de espetáculos. Um grupo de atores
ensaiou e apresentou uma peça. Uma seita religiosa, que vira todos os seus membros reunidos depois da derrubada do muro que separava homens e mulheres, apregoava
que seu profeta havia previsto que todos seriam levados para o céu, vivos. Durante vários dias eles permaneceram sentados em colchões na praça principal, no centro
da zona, esperando serem levados para o céu. Mas nada aconteceu.
Surgiram também muitos recém-casados, unidos pelos vários padres que tinham sido presos junto com as levas de bálticos ou ucrania-nos. Entre os casais havia aqueles
que tinham se casado enquanto estavam separados pelo muro e que agora se encontravam pela primeira vez. Mas embora homens e mulheres se misturassem livremente, todas
as pessoas que descreveram a greve concordam que as mulheres nao foram molestadas nem estupradas, como era freqüente acontecer nos campos comuns.
Naturalmente, canções foram escritas. Alguém compôs um hino ucraniano que, de vez em quando, era cantado em uníssono pelos 13.500 prisioneiros em greve. O refrão
era o seguinte:
Não seremos, não seremos escravos
Não iremos mais carregar o fardo [...]
Outro verso dizia:
Irmãos de sangue em Vorkuta e Norilsk, Kolyma e Kengir [...]
"Foi uma época maravilhosa", recorda Irena Arginskaya, 45 anos depois. "Nem antes nem depois eu me senti tão livre como naquele momento." Lyuba Bershadskaya se lembra
de que "fizemos tudo inconscientemente: ninguém sabia o que nos esperava nem pensava nisso".
As negociações com as autoridades continuavam. Em 27 de maio, a comissão do MVD designada para cuidar da greve realizou a primeira reunião com os prisioneiros. Entre
os que Soljenitsin chama de "personagens de dragona dourada" estavam Sergei Yegorov, o delegado-chefe do MVD; Ivan Dolgikh, chefe do Gulag; e Vavilov, o procurador
público responsável pela supervisão do Gulag. Eles foram recebidos por um grupo de 2 mil prisioneiros liderados por Kuznetsov, que lhes entregou uma lista de exigências.
No momento em que a greve estava no auge, eles exigiram que os guardas que atiraram nos presos fossem criminalmente responsabilizados - algo que pediam desde o início.
Fizeram também exigências claramente políticas, como a redução das penas de 25 anos; a revisão dos casos de todos os prisioneiros políticos; a extinção das celas
e dos alojamentos de castigo;mais liberdade de comunicação cornos familiares; a eliminação do degredo forçado aos prisioneiros libertados; melhores condições de
vida para as prisioneiras; e a reunião permanente de homens e mulheres nos campos.
Os prisioneiros também exigiram encontrar-se com um membro do Comitê Central do Partido Comunista. Eles continuaram a fazer essa exigência até o fim, alegando que
não podiam confiar que as autoridades de Steplag ou que o MVD fossem cumprir as promessas: "De onde vocês tiraram esse ódio pelo MVD?", o delegado Yegorov lhes perguntou.
Naturalmente, se a greve tivesse acontecido alguns anos antes não teria havido negociação alguma. Mas, em 1954, a revisão dos casos dos prisioneiros políticos já
tinha começado, ainda que lentamente. Ao longo da greve, aconteceu de alguns prisioneiros serem convocados a deixar o campo para participar de audiências no tribunal
que investigava os casos de novo. Sabendo que muitos prisioneiros já tinham morrido e, ao que parece, desejoso de uma solução rápida e pacífica para o conflito,
Dolgikh logo começou a atender às demandas menores, ordenando que retirassem as grades das janelas dos alojamentos, estabelecendo uma jornada de trabalho de oito
horas e transferindo de Kengir alguns guardas e oficiais especialmente odiados. Obedecendo a ordens diretas de Moscou, a princípio Dolgikh não usou a força. No entanto,
tentou quebrar a resistência dos prisioneiros exortando-os muitas vezes a sair do campo e proibindo novas remessas de comida e remédios.
Com o passar do tempo, porém, Moscou perdeu a paciência Num telegrama enviado a 15 de junho, Kruglov desancou Yegorov por causa de seus relatórios repletos de estatísticas
inúteis - por exemplo, quantos pombos haviam deixado o campo carregando panfletos - e informou-o de que um escalão de homens e cinco tanques T-34 estavam a caminho.
Os últimos dez dias da greve foram de fato muito tensos. A comissão do MVD enviava avisos duros pelo sistema de alto-falantes do campo. Como resposta, os prisioneiros
transmitiam mensagens pela rádio, contando ao mundo que morriam de fome. Em um discurso, Kuznetsov falou do destino de sua família, que havia sido destruída por
sua prisão. "Muitos de nós também haviam perdido familiares, e, ao escutá-lo, fortalecemos nossa decisão de ir até o fim", recordou um detento.
Às três da manhã do dia 26 de junho, o MVD atacou. Na noite anterior, Kruglov telegrafara a Yegorov e o aconselhara a utilizar "todos os recursos possíveis": 1.700
soldados, 98 cães e cinco tanques T-34 cercaram o campo. A princípio, os soldados dispararam sinais luminosos sobre os alojamentos e dispararam as armas descarregadas.
Avisos insistentes começaram a soar pelos alto-falantes: "Os soldados estão entrando no campo. Os prisioneiros que desejarem cooperar devem sair com calma. Quem
resistir será morto [...]".
Enquanto os prisioneiros corriam pelo campo, desorientados, os tanques passaram pelos portões. Tropas armadas, trajadas com equipamento de combate completo, vieram
atrás. Segundo alguns relatos, todos os soldados estavam bêbados. Muito embora essa possa ser uma lenda que cresceu na esteira do assalto, é verdade que o Exército
Vermelho e a polícia secreta costumavam dar vodca aos soldados designados para executar um trabalho sujo: quase sempre há garrafas vazias nas sepulturas coletivas.
Bêbados ou não, os motoristas dos tanques não tiveram nenhum escrúpulo de passar por cima dos que avançavam em sua direção. "Eu parei no meio", recorda Lyubov Bershadskaya,
"e à minha volta os tanques esmagavam as pessoas vivas". Eles passaram direto sobre um grupo de mulheres que, não acreditando que ousariam matá-las, deram-se os
braços e permaneceram em seu caminho. Eles esmagaram um casal que se abraçou e se jogou deliberadamente à sua frente. Destruíram alojamentos onde as pessoas dormiam.
Resistiram às granadas caseiras, às pedras, às picaretas e aos outros objetos de metal que os prisioneiros jogavam. Com rapidez surpreendente - em uma hora e meia,
de acordo com o relatório escrito depois -, os soldados pacificaram o campo, retiraram os prisioneiros que tinham concordado em sair calmamente e algemaram o restante.
Segundo os documentos oficiais, 37 prisioneiros morreram naquele dia. Nove morreram mais tarde. Um total de 106 presos e quarenta soldados ficaram feridos. Mais
uma vez, esses números são muito menores do que os registrados pelos próprios prisioneiros. Bershadskaya, que ajudou o médico do campo, Julian Fuster, a cuidar dos
feridos, fala em quinhentos mortos:
Fuster me disse para vestir uma touca branca e uma máscara cirúrgica (que guardo até hoje) e pediu que eu ficasse ao lado da mesa de operação e anotasse o nome dos
que ainda conseguiam falar. Infelizmente, quase ninguém conseguia. A maioria dos feridos morreu na mesa, olhando-nos com desespero e pedindo "escreva para minha
mãe [...] para meu marido [...] para meus filhos" e assim por diante.
Quando não suportava mais o ar quente e abafado, tirei a máscara e me olhei no espelho. Tinha a cabeça completamente branca. A princípio, achei que, por alguma razão,
houvesse talco dentro da touca. Não percebi que, em meio àquela carnificina inacreditável, observando tudo que acontecia, todo o meu cabelo tinha ficado branco em
quinze minutos.
Fuster ficou em pé durante treze horas e salvou quantos pôde. Finalmente, aquele cirurgião talentoso e animado sucumbiu. Ele perdeu a consciência, desmaiou, e as
operações acabaram [...].
Depois da batalha, todos os sobreviventes que não estavam hospitalizados tiveram de marchar para fora do campo, até a taiga. Armados com metralhadoras, os soldados
ordenaram que se deitassem com o rosto no chão e os braços abertos - como se estivessem crucificados - durante várias horas. A partir das fotografias tiradas nas
reuniões públicas e dos poucos relatórios feitos pelos informantes, as autoridades prenderam 436 pessoas, inslusive todos os integrantes do comitê de greve. Seis
viriam a ser executados, entre eles, Keller, Sluchenkov e Knopmus. Kuznetsov, que entregou às autoridades uma confissão escrita longa e elaborada apenas 48 horas
após a prisão, foi condenado à morte - e depois poupado. Ele foi transferido para Karlag e libertado em 1960. Outros mil prisioneiros - quinhentos homens e quinhentas
mulheres - foram acusados de apoiar a rebelião e despachados para Ozerlag e Kolyma. Ao que parece, a maior parte deles também foi libertada no final da década.
Durante o levante, as autoridades não deram mostra de ter conhecimento de qualquer força organizadora dentro do campo que não fosse o comitê oficial de grevistas.
Mais tarde, começaram a juntar todas as peças, provavelmente graças ao detalhado relatório de Kuznetsov. Cinco representantes do Centro foram identificados - o lituano
Kondratas; os ucranianos Keller, Sunichuk e Vakhaev; e o mafioso conhecido no submundo como "Bigode". Chegaram até a desenhar um organograma, com as linhas de comando
partindo do Centro, passando pelo comitê de grevistas, pelos departamentos de propaganda, defesa e contra-inteligência. Descobriram as brigadas que haviam sido organizadas
para defender os alojamentos, a estação de rádio e o gerador.
No entanto, jamais chegaram a identificar todos os integrantes do Centro, os verdadeiros arquitetos da rebelião. De acordo com um relato, muitos dos "verdadeiros
ativistas" permaneceram no campo à espera da anistia, cumprindo suas penas em tranqüilidade. Seus nomes são desconhecidos - e provavelmente continuarão assim.
25. Degelo e libertação
Chega de rodeios
Chega de estupidez.
Somos os filhos da devoção.
Somos seu sangue
Fomos criados na névoa
Deveras ambígua,
Megalomaníaca
E pobre de espírito [...]
Andrei Voznesensky, "Filhos do culto", 1967.
Embora tenham perdido a batalha, os grevistas de Kengir venceram a guerra. Como conseqüência da rebelião em Steplag, as autoridades da União Soviética de fato perderam
o apetite pelos campos de trabalho forçado - e com uma velocidade estonteante.
No verão de 1954, a falta de lucratividade dos campos era amplamente reconhecida. Outro levantamento das finanças do Gulag, realizado em junho de 1954, demonstrou
mais uma vez que os campos recebiam pesados subsídios e que o custo dos guardas, em particular, os tornava não lucrativos. Em uma reunião entre os comandantes dos
campos e o mais alto escalão do Gulag, realizada logo após os acontecimentos em Kengir, vários administradores reclamaram abertamente da má organização do suprimento
de comida, da burocracia fora de controle (nessa altura havia dezessete normas alimentares diferentes) e da péssima organização dos campos. Alguns ainda estavam
abertos, mas poucos tinham prisioneiros. As greves e os tumultos continuaram. Em 1955, os prisioneiros de Vorkuta entraram em greve geral outra vez. Os incentivos
à mudança eram avassaladores - e a mudança veio. Em 10 de julho de 1954, o Comitê Central emitiu uma resolução que restaurou a jornada de trabalho de oito horas,
simplificou o regi-me dos campos e tornou mais fácil aos presos reduzir a pena por meio de trabalho pesado. Os campos especiais foram dissolvidos. Seus prisioneiros
tiveram permissão para mandar cartas e receber pacotes, em geral sem restrições. Em alguns campos, os detentos puderam se casar e até viver com as esposas. Os cães
e os guardas dos comboios tornaram-se coisas do passado. Os presos passaram a dispor de novas mercadorias para comprar: roupas, que antes inexistiam, e laranjas.
Os detentos de Ozerlag puderam até plantar flores.
Nessa época, os altos escalões da elite soviética também tinham iniciado um debate mais amplo sobre a justiça stalinista. No início de 1954, Khrutchev havia solicitado
- e recebido - um relatório de quantos presos tinham sido acusados de crimes contra-revolucionários desde 1921 e de quantos ainda estavam presos. Por definição,
esses números eram incompletos, pois não incluíam os milhões enviados ao degredo, aqueles acusados de crimes tecnicamente não-políticos, os que foram julgados em
tribunais comuns e os que sequer foram julgados. Ainda assim, dado que esses números revelam a quantidade de pessoas mortas ou presas sem nenhum motivo, sua magnitude
é chocante. Pelas contas do próprio MVD, 3.777.380 pessoas foram consideradas "culpadas" de fomentar a contra-revolução pelos colégios da OGPU, pelas tróicas da
NKVD, pelas comissões especiais e por todos os colégios e tribunais militares que produziram condenações em massa nas três décadas anteriores. Dessas pessoas, 2.369.220
foram enviadas aos campos, 765.180 foram degredadas e 642.980, executadas.
Alguns dias depois, o Comitê Central encarregou-se de reexaminar todos esses casos - bem como o caso dos "repetentes", prisioneiros que receberam um segunda condenação
ao degredo em 1948. Khrutchev criou um comitê nacional, encabeçado pelo procurador-chefe da União Soviética, para supervisionar a tarefa. Ele também montou comitês
locais em todas as repúblicas e regiões do país para rever as penas dos condenados. Alguns presos políticos foram libertados nesse momento, embora as sentenças originais
não tivessem sido ainda anuladas: a reabilitação de fato - a admissão do Estado de que havia cometido um erro - viria mais tarde.
As libertações tiveram início, embora durante um ano e meio tenham acontecido a um passo dolorosamente lento. Às vezes, aqueles que já tinham cumprido dois terços
da pena eram soltos sem mais explicações nem reabilitação. Outros foram mantidos nos campos sem nenhum motivo. Apesar de tudo que sabiam sobre a não-lucratividade
dos campos, os oficiais do Gulag eram incapazes de fechá-los. Ao que parece, precisavam de um tranco dos superiores.
Então, em fevereiro de 1956, o tranco chegou na forma de um "discurso secreto" proferido por Khrutchev numa sessão fechada do XX Congresso do Partido Comunista.
Pela primeira vez, Khrutchev atacou abertamente Stalin e o "culto à personalidade" que o cercava:
É imperdoável - e alheio ao espírito do marxismo-leninismo - elevar uma pessoa ao ponto de transformá-la em um super-homem com poderes sobrenaturais, um deus. Supostamente,
esse homem sabe tudo, enxerga tudo, pensa por todos, faz o que quer, é infalível. Durante muitos anos nós cultivamos essa crença a respeito de um homem, Stalin.
Em sua maior parte, o discurso era tendencioso. Ao listar os crimes de Stalin, Khrutchev concentrou-se quase exclusivamente nas vítimas de 1937 e 1938, lembrando
os 98 integrantes do Comitê Central que foram mortos e um punhado de velhos bolcheviques. "A onda de prisões em massa começou a perder a força em 1939", ele declarou-o
que era uma inverdade patente, pois a quantidade de prisioneiros aumentou na década de 1940. Ele chegou a mencionar as deportações dos tchetchenos e dos balcânicos,
talvez porque não tivesse participado delas. Mas não mencionou a coletivização, ou a fome na Ucrânia, ou a repressão maciça na Ucrânia ocidental e nos países bálticos,
talvez porque houvesse o dedo dele nessas operações. Khrutchev falou de 7.679 reabilitações, e embora tenha sido aplaudido pelos presentes, essa era uma porcentagem
muito pequena dos milhões que foram falsamente acusados, como era de seu conhecimento.
Apesar das falhas, o discurso transmitido com rapidez, também em segredo, para as células do Partido em todo o país - sacudiu a União Soviética. Nunca antes um governante
confessara um crime, muito menos em quantidade tão grande. Nem mesmo Khrutchev tinha certeza das reações ao discurso. "Estávamos saindo de um estado de choque",
ele escreveu mais tarde. "Ainda havia pessoas nos campos e nas prisões, e não sabíamos explicar o que tinha acontecido ou o que fazer com elas assim que estivessem
livres."
O discurso galvanizou o MVD, a KGB e os administradores dos campos. Em poucas semanas, a atmosfera nos campos ficou ainda mais leve, e o processo de libertação e
reabilitação finalmente se acelerou. Enquanto pouco mais de 7 mil pessoas foram reabilitadas nos três anos que antecederam o discurso, 617 mil foram reabilitadas
nos dez meses seguintes. Criaram-se novos mecanismos para acelerar ainda mais o processo. Ironicamente, vários prisioneiros condenados pelas tróicas eram agora libertados
por tróicas. Comissões compostas por três pessoas - um procurador, um membro do Comitê Central e um membro reabilitado do Partido - visitavam os campos e os locais
de degredo em todo o país. Eles tinham poder para investigar um caso rapidamente, entrevistar os prisioneiros e libertá-los na hora.
Nos meses que se seguiram ao discurso secreto, o MVD também se preparou para efetuar alterações muito mais profundas na estrutura dos campos. Em abril, o novo ministro
do interior, N. P. Dudorov, enviou ao Comitê Central uma proposta de reorganização. "A situação nos campos e nas colônias", ele escreveu, "é terrível." Dudorov argumentou
que eles deveriam ser fechados e que os criminosos mais perigosos deveriam ser isolados em prisões nas regiões remotas do país, e citou especificamente o canteiro
de obras da inacabada Ferrovia Salekhard-Igarka como uma possibilidade. Os criminosos menos perigosos, por sua vez, deveriam permanecer na região de origem e cumprir
a pena em "colônias", trabalhando nas indústrias leves e nas fazendas coletivas. Nenhum deveria ser obrigado a trabalhar como lenhador, mineiro ou mestre-de-obras,
nem executar qualquer tarefa não especializada e pesada.
A linguagem de Dudorov era mais importante que as sugestões específicas. Ele não propunha apenas a criação de um sistema de campos menor; ele sugeria a criação de
um sistema qualitativamente diferente, o retorno a um sistema prisional "normal", ou que pelo menos fosse reconhecido como tal nos países europeus. As novas colônias
penais iriam parar de fingir que eram economicamente auto-suficientes. Os prisioneiros passariam a trabalhar para aprender um ofício útil, não para enriquecer o
Estado. O objetivo do trabalho dos prisioneiros seria a reabilitação, não o lucro.
Surpreendem as objeções iradas contra essas sugestões. Embora os representantes dos ministérios econômicos tenham sinalizado seu apoio, I. A. Serov, o chefe da KGB,
atacou violentamente as propostas do ministro do Interior, classificando-as de "incorretas" e "inaceitáveis", além de caras. Ele se opunha à construção de novas
colônias penais porque essa política "criaria a impressão da existência de um enorme quantidade de locais de encarceramento na União Soviética". Ele se opunha à
extinção dos campos e não entendia por que os zeks não podiam trabalhar como lenhadores ou mineiros. Afinal de contas, o trabalho pesado ajudaria a "reeducá-los
no espírito do trabalho honesto da sociedade soviética".
O resultado do conflito entre os dois braços do serviço de segurança foi uma reforma mista. Por um lado, o Gulag, o Glavnoe Upravleine Lagerei - Centro de Administração
dos Campos - foi dissolvido. Em 1957, Dalstroi e Norilsk, dois dos maiores e mais poderosos complexos, foram desmantelados. O mesmo aconteceu com outros campos.
Cada ministro - das Minas, da Indústria, dos Recursos Florestais, dos Transportes - assumiu o controle de grandes nacos do antigo complexo industrial. O trabalho
escravo jamais voltaria a ser uma parte importante da economia da União Soviética.
No entanto, o sistema judicial permaneceu intocado. Os juizes continuaram tão políticos, tendenciosos e injustos como sempre foram. O sistema prisional também permaneceu
intocado. Os mesmos carcereiros continuaram a impor o mesmo regime nas mesmas celas sem pintura. Com o tempo, quando o sistema começou a se expandir outra vez, até
mesmo os programas de reabilitação e reeducação, foco de tanta preocupação e interesse, voltaram a ser inconsistentes e ilusórios como antes.
O embate surpreendentemente mordaz entre o chefe do MVD, Dudorov, e o chefe da KGB, Serov, também era o prenuncio dos conflitos maiores que estavam por vir. Obedecendo
ao que consideraram uma ordem de Khrutchev, os liberais queriam fazer mudanças rápidas em todas as esferas da vida soviética. Ao mesmo tempo, os defensores do antigo
sistema queriam parar, reverter ou até mesmo alterar as mudanças, em especial quando elas afetavam a vida dos poderosos. O resultado do confronto era previsível:
não apenas celas inalteradas, mas também reformas incompletas, novos privilégios rapidamente revogados e discussões públicas que eram imediatamente silenciadas.
A era que veio a ser chamada de "Degelo" foi na verdade uma época de mudança, mas um tipo particular de mudança: as reformas davam um passo à frente e depois dois,
às vezes três, para trás.
A libertação, fosse em 1926 ou em 1956, sempre produzia nos prisioneiros sentimentos mistos. Gennady Andreev-Khomiakov, que foi libertado nos anos 1930, mostrou-se
surpreso com a própria reação:
Imaginei que eu ia ter vontade de dançar, que ficaria bêbado com a liberdade quando eu finalmente a conquistasse. Porém, quando me soltaram, não senti nada disso.
Passei pelos portões e pelo último guarda sem nenhum sentimento de felicidade ou de que as coisas iriam melhorar [...] Ali, na plataforma ensolarada, duas garotas
trajando vestidos leves riam com alegria. Olhei-as, atônito. Como elas podiam rir? Como todas aquelas pessoas podiam andar por aí, conversando e rindo, como se nada
de estranho estivesse acontecendo no mundo, como se não houvesse um pesadelo em seu caminho [...]
Depois da morte de Stalin e do discurso de Khrutchev, as libertações aconteciam com mais rapidez, e as reações ficaram ainda mais confusas. Prisioneiros que esperavam
passar mais uma década atrás do arame farpado eram soltos com um dia de aviso. Certo grupo de degredados foi convocado ao escritório da mina em que trabalhavam no
horário de expediente e convidado a ir embora. Como um deles recorda, o Spetskomandant Isaev "abriu um cofre, pegou nossos documentos e entregou-os a nós [...]".
Os prisioneiros que preencheram uma petição após a outra exigindo o reexame de seus casos,de repente descobriram que as cartas não eram mais necessárias - eles podiam
simplesmente partir.
Os detentos que não pensavam em nada exceto na liberdade pareciam estranhamente relutantes em experimentá-la: "Embora eu mesmo mal pudesse acreditar, chorei enquanto
caminhava para a liberdade [...] sentia-me como se estivessem arrancando de mim o bem mais querido e precioso, meus camaradas de infortúnio. Os portões se fecharam
- estava tudo acabado".
Muitos simplesmente não estavam preparados. Yuri Zorin, que viajava num trem lotado de prisioneiros ao sul de Kotlas, em 1954, andou apenas duas estações. "O que
vou fazer em Moscou?", perguntou-se, e então voltou para o velho campo, onde o ex-comandante o ajudou a arrumar um emprego como trabalhador livre. Ele permaneceu
ali por mais dezesseis anos. Evgeniya Ginzburg conheceu uma mulher que realmente não queria deixar o alojamento: "A verdade e que eu... eu não consigo encarar a
vida lá fora. Quero ficar no campo , ela disse a amigos. Uma outra escreveu em seu diário que "Realmente não quero a liberdade. O que a liberdade trará para mim?
Tenho a impressão de que lá fora [...] há mentiras, hipocrisia, imprudência. La fora tudo é fantasticamente irreal; aqui tudo é real". Muitos não acreditavam em
Khrutchev, achavam que a situação iria piorar e aceitaram empregos como trabalhadores livres em Vorkuta e Norilsk. Preferiram não viver as emoções nem passar pelo
estresse do retorno para, no final, serem recapturados.
Porém, mesmo os que queriam voltar para casa descobriam que era quase impossível. Não tinham dinheiro, e a comida era muito pouca. Os campos libertavam os prisioneiros
com o equivalente a 500 gramas de pão para cada dia que, em tese, passariam na estrada - uma ração de fome. Além do mais, era comum que ficassem na estrada muito
mais tempo que o esperado, pois era quase impossível conseguir passagens para os poucos aviões e trens com destino ao sul. Ao chegar à estação de Krasnoyarsk, Ariadna
Éfron encontrou "uma multidão tão grande que era impossível partir, simplesmente impossível. Havia ali pessoas de todos os campos, de Norilsk inteira". Afinal ela
conseguiu uma passagem inesperada de um "anjo", uma mulher que, por acaso, tinha duas. Não fosse por isso, poderia ter esperado durante meses.
Diante de um trem também lotado, Galina Usakova e muitos outros resolveram o problema viajando no compartimento de bagagem. Mas outros simplesmente não tiveram
sucesso: não era incomum os prisioneiros morrerem na difícil jornada de retorno ou semanas ou meses depois da chegada. Enfraquecidos pelos anos de trabalho forçado,
cansados da viagem extenuante, cercados de emoções esmagadoras, sofriam ataques cardíacos e derrames. "Como morreu gente dessa liberdade!", surpreendeu-se um prisioneiro.
Alguns acabaram na cadeia. O próprio MVD fez um relatório em que revelava que os prisioneiros que saíam dos campos de Vorkuta, Pechora e Inta não podiam comprar
roupas, sapatos ou roupa de cama, pois "as cidades acima do Círculo Ártico não têm lojas". Desesperados, alguns cometeram pequenos delitos para serem presos de novo.
Na prisão eles tinham uma ração de pão, pelo menos. Não que os encarregados dos campos se importassem com isso: enfrentando uma crise de falta de mão-de-obra, a
administração de Vorkuta desobedeceu as ordens superiores e tentou de fato impedir que certas categorias de detentos deixassem as minas.
Quando conseguiam retornar a Moscou, Leningrado ou qualquer que fosse a cidade de origem, a vida dos ex-prisioneiros também não ficava mais fácil. A simples libertação
não era suficiente para restabelecer uma vida "normal". Sem documentos atestando a reabilitação - documentos que anulavam a sentença original - os ex-prisioneiros
políticos ainda eram suspeitos.
É verdade que alguns anos antes eles haviam recebido os temidos "passaportes de lobos", que proibiam os ex-presos políticos de morar nas maiores cidades da União
Soviética ou perto delas. Outros haviam sido mandados diretamente para o degredo. Agora os "passaportes de lobos" estavam extintos, mas continuava difícil conseguir
trabalho, um lugar onde viver, e, em Moscou, permissão para permanecer na capital. Ao voltar, os prisioneiros descobriram que sua casa havia sido requisitada muito
tempo atrás, que seus bens tinham sido gastos.
Vários parentes, "inimigos" por associação, estavam mortos ou empobrecidos: muito tempo depois de os prisioneiros terem sido soltos, sua família continuou estigmatizada,
sujeita a várias formas oficiais de discriminação e proibida de realizar determinados trabalhos. As autoridades locais ainda suspeitavam dos antigos detentos. Thomas
Sgovio passou um ano "enviando petições e importunando" até receber permissão para residir oficialmente no apartamento da mãe. Os prisioneiros mais velhos não conseguiam
uma pensão apropriada.
As dificuldades pessoais e o sentimento de que eram vítimas de uma injustiça convenceram muitos a buscar a reabilitação completa - mas esse processo também não era
simples. Para muitos essa opção nem sequer existia. O MVD se recusava categoricamente a rever qualquer caso anterior a 1935, por exemplo. Os que tinham recebido
uma sentença extra no campo por insubordinação, dissidência ou roubo também jamais recebiam a cobiçada certidão de reabilitação. Os casos dos bolcheviques de alto
coturno - Bukharin, Kamenev, Zinoviev -permaneceram um tabu, e os que foram condenados junto com eles só foram reabilitados nos anos 1980.
Para quem podia, o processo de reabilitação era longo. Os pedidos tinham de ser feitos pelo prisioneiro ou pela família, que freqüentemente tinham de escrever duas,
três ou inúmeras cartas para serem atendidos. E, quando conseguiam, o processo às vezes andava para trás: Anton Antonov-Ovseenko recebeu a certidão de reabilitação
póstuma de seu pai, que acabou por ser revogada em 1963. Vários ex-prisioneiros continuavam temerosos de apelar. Aqueles que eram convocados a comparecer diante
da comissão de reabilitação, em geral formada por oficiais do MVD ou do Ministério da Justiça, costumavam surgir com várias camadas de roupa, segurando pacotes de
comida, ao lado de parentes em lágrimas, certos de que seriam presos outra vez.
Nos níveis superiores, muitos temiam que o processo de reabilitação andasse depressa demais e fosse muito longe. "Estávamos apavorados, realmente apavorados", Khrutchev
escreveu mais tarde. "Tínhamos medo de que o Degelo causasse uma inundação que não conseguíssemos controlar e que nos afogasse." Um antigo investigador da KGB,
Anatoly Spragovsky, recordou-se de que entre 1955 e 1960 ele viajara pela região de Tromsk entrevistando testemunhas e visitando as cenas de supostos crimes. Entre
outras coisas, soube que ex-prisioneiros tinham sido acusados de planejar a explosão de fábricas ou pontes que nunca existiram. Ainda assim, quando Spragovsky escreveu
a Khrutchev e propôs dinamizar o processo de reabilitação e torná-lo mais rápido, foi rechaçado: ao que parecia, os oficiais de Moscou não desejavam que os erros
dos anos de Stalin parecessem grandes ou absurdos demais, por isso não queriam que a investigação dos casos antigos corresse muito depressa. Anastas Mikoyan, membro
stalinista do Politburo que sobreviveu na era Khrutehev, explicou por que era impossível reabilitar as pessoas muito depressa. Se todos fossem declarados inocentes
de uma vez, "ficaria claro que o país não era administrado por um governo legal, mas por um bando de gângsteres".
O Partido Comunista também temia admitir muito erros. Das mais de 70 mil petições de ex-integrantes exigindo a recondução ao Partido, menos da metade foi atendida.
Em conseqüência, a reabilitação completa, com a restituição de casa, trabalho e pensão, era muito rara.
Muito mais comuns do que a reabilitação foram a experiência e os sentimentos mistos de Olga Adamova-Sliozberg, que entrou com o pedido de reabilitação para si e
para o marido em 1954. Ela esperou dois anos. Então, depois do discurso secreto de Khrutehev, em 1956, ela recebeu a certidão. E esta declarava que seu caso havia
sido revisto e encerrado por falta de provas. "Fui presa em 27 de abril de 1936. Portanto, paguei por esse engano com vinte anos e 41 dias da minha vida." Gomo compensação,
dizia a certidão, Adamova-Sliozberg tinha direito a dois meses de salário, por ela e pelo marido morto, e a um extra de 11 rublos e 50 copeques como restituição
do dinheiro que estava com o marido quando ele morreu. Só isso.
Enquanto estava parada numa sala de espera da Suprema Corte de Moscou, absorvendo a notícia, ela ouviu alguém gritar. Era uma senhora ucraniana que tinha recebido
uma notícia semelhante:
A velha ucraniana começou a gritar: "Não preciso do seu dinheiro em troca do sangue do meu filho; fique com ele!" Ela rasgou as certidões e jogou-as no chão.
O soldado que tinha entregado as certidões se aproximou: "Acalme-se, cidadã", ele começou.
Mas a velha começou a gritar de novo e sufocou num acesso de raiva.
Todos emudeceram, acabrunhados. Aqui e ali escutei lágrimas e soluços abafados.
Voltei a meu apartamento, do qual nenhum policial poderia me expulsar agora. Não havia ninguém em casa, e finalmente pude chorar à vontade.
Chorar por meu marido, que sucumbiu nos porões da Lubyanka aos 37 anos de idade, no auge da força e do talento; por meus filhos, que cresceram órfãos, estigmatizados
como filhos de inimigos do povo; por meus familiares, que morreram de desgosto; por Nikolai, que foi torturado nos campos; o por todos os amigos que não viveram
para ser reabilitados e que jazem sob o solo congelado de Kolyma.
Embora o fato costume ser ignorado nas histórias que se contam da União Soviética, o retorno de milhões de pessoas dos campos e do degredo deve ter atordoado os
milhões de cidadãos soviéticos que encontraram ao chegar. O discurso secreto de Khrutchev fora um choque, mas era um evento distante, dirigido ao Partido. Ao contrário,
o reaparecimento de pessoas havia muito consideradas mortas levou a mensagem do discurso de forma muito mais direta a um número bem maior de pessoas. A era de Stalin
tinha sido de tortura e violência. De repente, os veteranos dos campos eram a prova viva do que tinha acontecido.
Eles também traziam notícias, boas e más, dos desaparecidos. Na década de 1950, tornou-se costume os prisioneiros soltos visitarem a casa dos camaradas vivos ou
mortos, para transmitir mensagens ou repetir as últimas palavras. M. S. Rotfort voltou para Kharkov via Chita e Irkutsk a fim de visitar a família dos amigos. Gustav
Herling fez uma visita estranha à família do colega de campo general Kruglov, cuja esposa implorou que não contasse à filha sobre a nova condenação do pai, passou
o tempo todo olhando o relógio e pediu que ele fosse embora logo.
Os prisioneiros que retornavam eram também uma fonte de terror - para os chefes, os colegas e as pessoas que os tinham mandado para a prisão. Anna Andreevna recordou
que todos os trens que partiam de Karaganda e Potma para Moscou estavam cheios de ex-prisioneiros no verão de 1956. "Tudo estava repleto de alegria e seu oposto,
pois as pessoas encontravam aqueles que as tinham condenado, que tinham condenado outros. Era alegre e trágico, e em pouco tempo Moscou inteira estaria repleta daquilo".
No romance Pavilhão dos cancerosos, Soljenitsin imagina a reação de um chefe do Partido, acometido pelo câncer, quando a esposa lhe conta que um antigo amigo - um
homem que havia denunciado pessolmente para ficar com o aparta-mento dele - seria reabilitado:
Uma fraqueza tomou conta de todo o seu corpo - dos quadris, dos ombros; os braços também ficaram fracos, e o tumor pareceu deslocar a cabeça para o lado.
"Por que me conta isso?", gemeu num tom de voz infeliz, débil.
"Minha desgraça não é suficiente?" E por duas vezes a cabeça e o peito foram sacudidos por soluços [...]
"Que direito eles têm de soltar essas pessoas agora? Eles não têm pena? Como ousam causar tantos traumas!"
O sentimento de culpa podia ser insuportável. Após o discurso secreto de Khrutchev, Aleksandr Fadeev, stalinista comprometido e burocrata literário muito temido,
caiu na bebedeira. Bêbado, confessou a um amigo que enquanto era chefe do Sindicato dos Escritores havia sancionado a prisão de muitos autores que sabia serem inocentes.
Fadeev se suicidou no dia seguinte. Alegam que teria deixado um bilhete de uma linha endereçado ao Comitê Central: "Essa bala era para a política de Stalin, a estética
de Zhdanov e a genética de Lysenko". Outros enlouqueceram. Olga Mishakova, funcionária da Komsomol, tinha denunciado o líder da organização, Kosarev. Depois de
1956, Kosarev foi reabilitado, e o Comitê Central da Komonsol expulsou Mishakova. Ainda assim, durante um ano ela continuou a ir ao edifício da organização, a sentar-se
o dia todo no escritório vazio, a fazer horário de almoço. Quando a Komonsol confiscou-lhe o crachá, ela ia para lá e ficava parada na entrada durante todo o expediente.
Quando o marido foi transferido para Ryazan, ela pegava o trem para Moscou todos os dias às quatro da manhã, ficava na frente do antigo escritório e só voltava no
final da tarde. No fim, foi internada numa instituição psiquiátrica.
Mesmo quando o resultado não era insanidade ou suicídio, os encontros constrangedores que atormentaram a vida social de Moscou depois de 1956 podiam ser excruciantes.
"Dois russos se olham nos olhos", escreveu Anna Akhmatova, "o que esteve na prisão e o que o colocou lá." Vários membros do governo, inclusive Khrutchev, conheciam
pessoalmente muitos dos egressos. Segundo Antonov-Ovseenko, um desses "velhos amigos" apareceu na porta de Khrutchev em 1956 e persuadiu-o a acelerar o processo
de reabilitação. O pior eram os encontros entre os ex-prisioneiros e os homens que haviam sido seus carcereiros e interrogadores. Uma memória publicada sob pseudônimo
no jornal clandestino de Roy Medvedev, em 1964, descrevia o encontro de um homem com seu interrogador, que lhe implorou dinheiro para uma bebida: "Dei-lhe tudo que
sobrara da viagem, e era bastante. Dei-lhe para podermos ir embora depressa. Tive medo de não me segurar. Senti um desejo avassalador de soltar meu ódio, contido
por tanto tempo, em cima dele e dos de sua laia".
Também podia ser muito constrangedor encontrar os antigos amigos, agora prósperos cidadãos soviéticos. Lev Razgon encontrou um amigo íntimo em 1968, mais de uma
década depois de retornar "Ele me cumprimentou [...] como se tivéssemos nos despedido na noite anterior. Expressou seus pêsames pela morte de Oksana, é claro, e
perguntou por Yelena. Mas tudo isso aconteceu muito rápido, como num encontro de negócios [...] e foi tudo". Yurii Dombrovskii expressou em versos o que sentiu
por um amigo que ofereceu suas condolências tarde demais. O poema se chama "A um famoso poeta":
Nem nossos filhos tiveram pena de nós
Nem nossas esposas nos quiseram
Só um sentinela atirou em nós, hábil
Fazendo de nossos números seu alvo [...]
Você perambulava por restaurantes
E contava piadas de copo na mão
Entendia tudo e recebia a todos
Sem notar que havíamos morrido
Então me explique: por que agora,
que eu volto de um túmulo ao norte
enquanto revêem a ordem de guerra
você se aproxima como se eu fosse herói?
Mulheres lambiam suas mãos –
Para lhe dar coragem? Pelas torturas que sofreu?
Lev Kopelev escreveu esse poema depois de voltar, não suportava mais a companhia de pessoas bem-sucedidas, preferia a companhia dos fracassados.
Outra fonte de tormento para os ex-prisioneiros era como falar sobre os campos - e quanto falar - com os amigos e os farmliares. Muitos tentaram proteger os filhos
da verdade. A filha do projetista de foguetes Sergei Korolev só soube que o pai estivera na prisão no final da adolescência, quando, ao preencher um formulário,
teve de informar se alguém na família já tinha sido preso. Ao deixar os campos, vários prisioneiros foram solicitados a assinar documentos que os proibiam de contar
o que quer que fosse. Alguns emudeceram de medo, mas houve quem não se acovardasse. Susanna Pechora se recusou a assinar papéis ao sair do campo, e, em suas próprias
palavras, "tenho falado sobre ele desde então".
Outros descobriram que os amigos e os parentes não queriam saber com muitos detalhes onde eles tinham estado e o que lhes tinha acontecido. Sentiam medo - não apenas
da onipresente polícia secreta mas também do que poderiam descobrir sobre as pessoas que amavam O romancista Vasily Aksyonov - filho de Evgeniya Ginzburg -escreveu
uma cena trágica mas horrivelmente plausível na trilogia As gerações do inverno, ao descrever o que acontecia quando um homem e a mulher se encontram depois de passarem
anos em campos de concentração. Imediatamente ele observa que ela parecia saudável demais: "Primeiro me diga como conseguiu não ficar feia [...] você nem emagreceu!",
ele diz, conhecendo muito bem todas as maneiras pelas quais as mulheres conseguiam sobreviver no Gulag. Nessa noite, eles se deitam na cama distantes um do outro,
incapazes de falar: "A melancolia e a dor os reduzira a cinzas".
O escritor e poeta popular Bulat Okudzhava também escreveu uma história em que descreve o encontro de um homem com a mãe, que tinha passado dez anos nos campos.
Ele esperava o retorno da mãe com alegria, acreditando que iria pegá-la na estação de trem, levá-la para jantar em casa depois de um reencontro cheio de lágrimas
mas feliz, contar-lhe sobre sua vida e talvez até levá-la ao cinema. Em vez disso, encontrou uma mulher de olhos secos e expressão vaga: "Ela me olhou mas não me
viu, seu rosto estava endurecido, congelado". Ele esperava que ela estivesse fisicamente debilitada, mas não estava preparado para os danos emocionais - uma experiência
que deve ter sido compartilhada por milhões de pessoas.
As histórias reais costumavam ser igualmente tristes. Nadezhda Kapralova escreveu sobre o encontro com a mãe depois de treze anos. Quando se separaram, ela tinha
apenas oito anos: "Éramos mãe e filha, tínhamos a mais íntima das relações, mas ainda assim éramos estranhas, conversamos sobre coisas irrelevantes e passamos a
maior parte do tempo chorando ou em silêncio". O prisioneiro Evgeny Gagen reuniu-se a esposa depois de catorze anos, mas descobriu que não tinham nada em comum.
Ele sentia ter "crescido" ao longo daqueles anos, ao passo que ela permanecera a mesma. Olga Adamova-Sliozberg sentiu-se pisando em ovos quando se reuniu ao filho,
em 1948: "Eu tinha medo de contar-lhe o que havia descoberto 'no outro lado'. Sem duvida eu poderia tê-lo convencido de que havia muita coisa errada em nosso país,
de que Stalin, seu ídolo, estava longe de se perfeito, mas meu filho tinha apenas dezessete anos. Tive medo se ser totalmente franca com ele".
No entanto, nem todos se sentiram estranhos na sociedade soviética. Surpreendentemente, talvez, muitos egressos estavam loucos para voltar ao Partido Comunista,
não apenas pelo status e pelos privilégios, mas também para se sentirem mais uma vez integrantes do projeto comunista. "O compromisso com um sistema de crenças pode
ter raízes profundas, irracionais." É assim que a historiadora Nanci Adler tenta explicar os sentimentos de um prisioneiro ao ser reconduzido ao Partido:
O fator mais importante a assegurar minha sobrevivência naquelas condições duras foi minha fé inabalável no Partido Leninista, em seus princípios humanistas. Foi
o Partido que me deu a força física para agüentar os julgamentos [...] Voltar às fileiras do meu Partido Comunista nativo foi a maior felicidade da minha vida.
A historiadora Catherine Merridale vai um pouco mais longe e argumenta que o Partido e a ideologia coletiva da União Soviética realmente ajudaram as pessoas a se
recuperar dos traumas que sofreram: "Os russos parecem mesmo ter convivido com suas histórias de perdas indescritíveis trabalhando, cantando e balançando a bandeira
vermelha. Hoje alguns riem disso, mas quase todos sentem saudade de um coletivismo e de um objetivo comum que se perderam. Até certo ponto, o totalitarismo funcionou".
Embora em determinado nível eles soubessem que aquela batalha era falsa, embora soubessem que a nação não era tão gloriosa quanto apregoavam seus líderes, embora
soubessem que cidades inteiras haviam sido construídas sobre os restos de pessoas condenadas injustamente ao trabalho forçado, mesmo assim algumas vítimas dos campos
se sentiam melhor quando faziam parte do esforço coletivo.
De todo modo, a imensa tensão entre o que estiveram "lá" e os que permaneceram em casa não poderia ficar confinada aos quartos e trancada atrás das portas para sempre.
Os responsáveis pelos acontecimentos ainda estavam vivos. Finalmente, no XXII Congresso do Partido, em outubro de 1961, Khrutchev, então brigando por espaço, começou
a dar nome aos bois. Ele anunciou que Molotov, Kaganovich, Voroshilov e Malenkov eram "culpados de repressão ilegal a oficiais do Partido, do Soviete, das forças
armadas e da Komonsol e responsáveis diretos por sua destruição física". Ameaçador, fez insinuações a "documentos em nosso poder" que poderiam provar essa culpa.
No fim, porém, Khrutchev não divulgou nenhum documento ao longo da batalha contra os stalinistas que se opunham às suas reformas. Talvez ele não tivesse força suficiente
para isso, ou talvez esses documentos acabassem por revelar sua própria participação na repressão de Stalin. Em vez disso, Khrutchev usou uma nova tática: ampliou
o debate público sobre o stalinismo para além do Partido e disseminou-o pelo mundo literário. Embora provavelmente Khrutchev não se interessasse muito pelos poetas
e pelos romancistas soviéticos, já no início dos anos 1960 ele previu que eles poderiam colaborar com sua busca de poder. Aos poucos, nomes banidos começaram a reaparecer
em publicações oficiais, sem que se explicasse por que tinham sumido e agora reaparecido. Personagens até então inaceitáveis na ficção soviética - burocratas gananciosos,
detentos egressos dos campos - começaram a surgir nos romances publicados.
Khrutchev percebeu que essas publicações poderiam fazer sua propaganda: os escritores poderiam desacreditar seus inimigos imputando-lhes os crimes do passado. De
qualquer maneira, parece ter sido essa a razão para permitir o lançamento de Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Aleksandr Soljenitsin, o mais famoso romance sobre
o Gulag.
Graças à sua importância na literatura e ao papel que desempenhou ao divulgar no Ocidente a existência do Gulag, Aleksandr Soljenitsin certamente merece menção especial
na história dos campos soviéticos. Mas sua breve carreira de autor soviético "oficial", famoso e amplamente publicado, também merece ser contada, pois ela marca
um importante momento de transição. Quando Ivan Denisovich foi impresso pela primeira vez, em 1962, o Degelo estava no auge, havia poucos prisioneiros políticos,
e o Gulag parecia coisa do passado. No verão de 1965, quando um jornal do partido descreveu Ivan Denisovich como "uma obra indubitavelmente controversa do ponto
de vista ideológico e artístico", Khrutchev tinha sido expulso, o retrocesso havia começado e a quantidade de presos políticos aumentava a uma velocidade sinistra.
Em 1974, quando O Arquipélago Gulag - a história do sistema de campos narrada em três volumes - surgiu na Inglaterra, Soljenitsin tinha sido expulso do país e seus
livros só eram publicados no exterior. A instituição dos campos de prisioneiros havia sido firmemente restabelecida e o movimento dissidente estava em plena atividade.
A carreira de Soljenitsin na prisão começou da maneira típica entre os zeks de sua geração. Depois de entrar na escola de oficiais, em 1941, ele lutou no front ocidental
no outono e no inverno de 1943, escreveu algumas críticas a Stalin numa carta enviada a um amigo em 1945 - e foi preso logo depois. Até então um comunista mais ou
menos crente, o jovem oficial ficou atordoado com a brutalidade e a crueza com que foi tratado. Mais tarde, ele ficaria ainda mais chocado diante do tratamento agressivo
dispensado aos soldados do Exército Vermelho que tinham sido capturados pelos nazistas. Em sua opinião, esses homens deveriam ter sido recebidos como heróis.
Sua estada subseqüente nos campos foi um pouco menos típica. Graças aos seus conhecimentos de matemática e física, cumpriu parte da pena na sharashka, uma experiência
que veio a registrar em O primeiro círculo. Exceto por esse fato, é justo dizer que ele passou por uma série de lagpunkts pouco notáveis, inclusive um em Moscou
e outro num complexo de campos especiais em Karaganda. Ele também foi um prisioneiro pouco notável. Flertou com as autoridades, serviu de informante antes de cair
em si e acabou trabalhando como pedreiro. Foi essa a profissão que escolheu para Ivan Denisovich, o zek "comum" que protagonizou seu primeiro romance. Depois da
libertação, passou a dar aulas em uma escola de Ryazan e começou a escrever sobre suas experiências. Isso também não era comum: as centenas de memórias do Gulag
que foram publicadas desde a década de 1980 são um testemunho da eloqüência e do talento dos ex-prisioneiros soviéticos, entre os quais muitos escreveram em segredo
durante anos. No final, o que tornou Soljenitsin verdadeiramente único foi o fato de sua obra ter sido publicada na União Soviética enquanto Khrutchev estava no
poder.
Muitas lendas cercam a publicação de Um dia na vida de Ivan Denisovich, ao ponto de Michael Scammell, o biógrafo de Soljenitsin, afirmar que "foram tantos os floreios
acrescentados pelo caminho que é difícil separar os fatos das invenções". A obra caminhou para a fama lentamente. O manuscrito de Ivan Denisovich passou pelas mãos
de Lev Kopelev - uma figura do círculo literário de Moscou e colega de campo de Soljenitsin - e pela editora de texto da Novyi Mir. Excitada com a descoberta, a
editora repassou-o a Aleksandr Tvardovsky, editor-chefe da Novyi Mir.
Diz a lenda que Tvardovsky começou a ler Ivan Denisovich deitado na cama. Depois de algumas páginas, porém, estava tão impressionado que achou melhor se levantar,
vestir-se e continuar lendo sentado. Passou a noite lendo, e, assim que o dia raiou, correu para o escritório e ordenou às datilógrafas que produzissem mais cópias,
de modo que pudesse distribuir o livro aos amigos, o tempo todo saudando o nascimento de um novo gênio da literatura. Não se sabe se foi exatamente assim que as
coisas aconteceram, mas essa foi a história contada por Tvardovsky. Posteriormente, Soljenitsin escreveu-lhe para dizer como se sentira feliz ao saber que ele achava
que Ivan Denisovich "valia uma noite de sono".
O romance era bastante direto: registrava um dia na vida de um prisioneiro comum. Os leitores atuais - mesmo os russos - podem achar difícil entender por que o livro
gerou tanto furor nos meios literários de Moscou. Mas ele teve o impacto de uma revelação para quem o leu em 1962. Em vez de mencionar os "egressos" e a "repressão"
de maneira vaga, como outras obras da época, Ivan Denisovich descrevia sem rodeios a vida nos campos, um assunto que até então não havia sido discutido em público.
Ao mesmo tempo, o estilo de Soljenitsin - em particular a utilização da gíria dos campos - e a descrição do tédio e do desgosto da vida na prisão contrastavam vivamente
com a ficção vazia e falsa que se publicava. O credo oficial da literatura soviética, o "realismo socialista", não era realismo de fato, mas uma versão literária
da doutrina política de Stalin. A literatura das prisões não havia mudado desde os dias de Gorki. Se houvesse um ladrão num romance soviético, ele veria a luz e
se converteria à verdadeira fé soviética. O herói podia sofrer, mas no final o Partido lhe mostrava o caminho. A heroína podia verter lágrimas, mas assim que aprendia
o valor do Trabalho, descobria o seu papel na sociedade.
Ivan Denisovich, ao contrário, era genuinamente realista: não era otimista nem dava lições de moral. O sofrimento dos heróis era inútil. Seu trabalho era extenuante,
e eles tentavam evitá-lo. O Partido não triunfava no final, e o comunismo não emergia vencedor. Essa honestidade, tão rara num escritor soviético, foi precisamente
o que Tvardovsky admirou: ele disse a Kopelev que a história "não tinha um pingo de falsidade". E essa foi precisamente a qualidade que perturbou muitos leitores,
em especial os do establishment soviético. Até mesmo um dos editores da Novyi Mir considerou a franqueza do livro perturbadora.Nos comentários sobre a obra, ele
escreveu que "ele mostra a vida por um único ângulo, distorcendo involuntariamente as proporções".
Para as pessoas acostumadas a conclusões simplistas, o final do romance parecia terrivelmente aberto e amoral.
Tvardovsky desejava publicá-lo, mas sabia que se mandasse uma cópia datilografada aos censores eles a baniriam de imediato. Em vez disso, ofereceu Ivan Denisovich
a Khrutchev, para que ele o usasse contra os inimigos. Segundo Michael Scammel, Tvardovsky escreveu um prefácio que apresentava o livro exatamente sob essa luz e
começou a distribuí-lo a pessoas que poderiam entregá-lo ao próprio Khrutchev.
Depois de muitas idas e vindas, muita discussão e algumas alterações no manuscrito - Soljenitsin foi persuadido a acrescentar pelo menos um "herói positivo" e a
incluir uma sutil condenação ao nacionalismo ucraniano -, o romance por fim chegou a Khrutchev. Ele o aprovou. Chegou até a elogiar o livro por ter sido escrito
"no espírito do XXII Congresso do Partido", o que presumivelmente significa que, em sua opinião, ele iria incomodar os inimigos. Finalmente, o romance apareceu impresso
na edição da Novyi Mir de novembro de 1962. "O pássaro está livre! O pássaro está livre", Tvardovsky teria gritado com um exemplar nas mãos.
A princípio, o elogio da crítica foi fastidioso, principalmente porque o enredo ia ao encontro da linha oficial do momento. O crítico de literatura do Pravda desejou
que daquele momento em diante "a luta contra o culto à personalidade continue a facilitar o aparecimento de obras de arte notáveis pelo valor artístico inesgotável".
O crítico do Izvestiya disse que Soljenitsin "havia se mostrado um verdadeiro colaborador do Partido numa causa sagrada e vital - a luta contra o culto à personalidade
e suas conseqüências".
No entanto, não foi bem essa a reação dos leitores comuns que afogaram Soljenitsin em cartas nos meses seguintes à publicação da Novyi Mir. O paralelo com a nova
linha do Partido não impressionou os ex-prisioneiros que lhe escreveram de todo o país. O que aconteceu e que eles ficaram muito satisfeitos de ler algo que refletia
a própria experiência e os próprios sentimentos. Pessoas temerosas de deixar escapar uma palavra aos amigos mais próximos de repente se sentiram libertas. Uma mulher
descreveu sua reação: "Meu rosto se encheu de lágrimas. Não as enxuguei porque naquelas poucas páginas da revista estava o retrato de todos os dias dos quinze anos
que passei nos campos".
Outra carta endereçada ao "Caro amigo, camarada e irmão" Solienitsin dizia: "Lendo sua história eu me lembrei de Sivaya Maska e Vorkuta [...] as geadas e as nevascas,
os insultos e as humilhações [...] Eu chorei enquanto lia - os personagens eram todos familiares, como se fossem da minha brigada [...] Obrigado mais uma vez! Continue
assim - escreva, escreva".
As reações mais fortes vieram daqueles que ainda estavam presos. Leonid Sitko, que então cumpria a segunda pena, soube da publicação no distante Dubravlag. Quando
um exemplar da Novyi Mir chegou à biblioteca do campo, os administradores o retiveram por dois meses. Finalmente, os zeks conseguiram um exemplar e formaram um grupo
de leitura. Sitko recordou que os prisioneiros ouviam "sem respirar":
Depois que a última palavra foi lida, houve um silêncio mortal. Então, após dois ou três minutos, a sala explodiu. Todos tinham vivido aquela história dolorosa [...]
em meio à fumaça de tabaco, eles falaram sem parar [...]
E com freqüência cada vez maior, perguntavam: "Por que publicaram isso?"
De fato, por quê? Parece que as próprias lideranças do Partido começaram a se perguntar. Talvez o retrato honesto que Soljenitsin pintou da vida nos campos tenha
sido demais para eles: ele representava uma mudança significativa demais, sua publicação foi rápida demais para homens que ainda temiam que a própria cabeça fosse
a próxima a rolar. Ou talvez já estivessem cansados de Khrutchev, talvez pensassem que ele já tinha ido longe demais e usaram o romance de Soljenitsin como desculpa.
De fato, Khrutchev foi deposto pouco tempo depois, em outubro de 1964. Seu substituto, Leonid Brejnev, era o líder dos neo-stalinistas - reacionários, oponentes
da mudança e do Degelo.
Seja como for, está claro que depois da publicação do romance os conservadores se reorganizaram com velocidade impressionante. Ivan Denisovich surgiu em novembro.
Em dezembro - alguns dias depois de Khrutchev encontrar Soljenitsin e cumprimentá-lo - Leonid Ilyichev, presidente da Comissão Ideológica do Comitê Central, discursou
para um grupo de quatrocentos escritores reunidos em seu sindicato. A sociedade soviética, disse-lhes, não devia ser "abalada e enfraquecida sob o pretexto de se
lutar contra o culto ao indivíduo [...]".
A rapidez da mudança refletia a postura ambivalente da União Soviética em relação à própria história - ambivalência que não foi resolvida até hoje. Para a elite
soviética, aceitar que o retrato de Ivan Denisovich era autêncito significava admitir que pessoas inocentes haviam sofrido inutilmente em vão. Se os campos fossem
realmente estúpidos, e dispendiosos, e trágicos, então a União Soviética também era estúpida, e dispendiosa, e trágica. Para os cidadãos soviéticos fossem eles membros
da elite ou simples camponeses, era e ainda é difícil aceitar que sua vida foi guiada por um amontoado de mentiras.
Após um período de oscilação - alguns argumentos a favor, alguns argumentos contra - Soljenitsin começou a ser atacado com severidade. Em capítulos anteriores, descrevi
a reação irada de guardas e prisioneiros aos esforços de Denisovich para evitar o trabalho pesado. Mas também houve críticas mais elaboradas. Lydia Fornenko, crítica
da Literaturnaya Rossiya, acusou Soljenitsin de não "revelar toda a dialética da época". Em outras palavras, Soljenitsin tinha condenado o "culto à personalidade",
mas deixara de apontar o caminho para um futuro otimista e não incluíra personagens comunistas "bons", que triunfariam no final. Vários outros fizeram coro a essa
crítica, e alguns até tentaram corrigir os erros de Soljenitsin de forma literária. A história de um sobrevivente, de Boris Dyakov, o romance "leal" sobre os campos
lançado em 1964, continha descrições explícitas de prisioneiros soviéticos leais e trabalhadores.
Como o romance de Soljenitsin estava sendo considerado para o Prêmio Lenin, o mais importante prêmio literário na União Soviética, os insultos pioraram. No final
- por meio de táticas que viriam a ser repetidas anos depois - o establishment recorreu a insultos pessoais. Em uma reunião do Comitê do Prêmio Lênin, o chefe da
Komsomol, Sergei Pavlov, levantou-se e acusou Soljenitsin de ter se rendido aos alemães durante a guerra e de ter sido condenado como criminoso. Tvardovsky fez Soljenitsin
buscar a certidão de reabilitação, mas era tarde demais. O Prêmio Lenin foi para O sino da ovelha, livro cuja melhor descrição é "completamente esquecido", e a carreira
literária oficial de Soljenitsin chegou ao fim.
Ele continuou escrevendo, mas nenhum de seus romances sub-seqüentes foi publicado na União Soviética - pelo menos não legal-mente - até 1989. Em 1974, foi expulso
do país e acabou por fixar residência em Vermont. Até a era Gorbatchev, apenas um minúsculo grupo de cidadãos soviéticos - aqueles que tinham acesso a cópias clandestinas
datilografadas ou exemplares contrabandeados - lera O arquipélago Gulag, seu relato do sistema de campos.
Mas Soljenitsin não foi a única vítima do recuo conservador. No momento em que a controvérsia em torno de Ivan Denisovich ficava mais inflamada, outro drama literário
de desenrolava: a 18 de fevereiro de 1964, o jovem poeta Joseph Brodsky foi julgado por "parasitismo". A era dos dissidentes estava para começar.
26. A ERA DOS DISSIDENTES
Não festejem cedo demais
E deixem que um oráculo proclame
Que as feridas não serão reabertas
Que as hordas do mal não vão se reerguer.
E que me arrisco a parecer demente;
Deixem-no orar. Tenho certeza de que Stalin não morreu.
Como se os mortos importassem
E os anônimos sumidos no Norte.
Não causou verdadeiro estrago
O mal que insulou em nosso coração?
Como a pobreza vem da riqueza
Como continuamos a mentir
E não desaprendemos a temer
Stalin não morreu
Boris Chichibabin, "Stalin não morreu", 1967.
A morte de Stalin realmente sinalizou o final da era de trabalho escravo em massa na União Soviética. Embora as políticas de repressão no país viessem a assumir
formas um tanto duras nos quarenta anos subseqüentes, ninguém voltou a propor que se revivessem os campos de concentração em larga escala. Ninguém voltou a tentar
transforma-los no centro da economia ou usá-los para encarcerar milhões de pessoas. A polícia secreta nunca mais controleu uma fatia tão grande do setor produtivo
da nação, e os comandantes dos campos nunca mais chefiaram um empreendimento industrial tão grande. Mesmo o edifício da Lubyanka, o quartel-general da KGB no pós-guerra,
deixou de ser uma prisão: Gary Powers, o piloto-espião americano cujo avião, um U-2, foi derrubado em solo soviético em 1960, foi a última pessoa presa em suas celas.
Ainda assim, os campos não desapareceram de uma vez.Tampouco as prisões soviéticas passaram a fazer parte de um sistema penal "comum", organizado apenas para criminosos.
Os campos evoluíram.
Para começar, a natureza dos prisioneiros políticos evoluiu. No tempo de Stalin, o sistema repressivo lembrava uma grande roleta: qualquer um podia ser preso, por
qualquer razão, a qualquer momento - camponeses, operários e burocratas do Partido. Depois de Khrutchev, a polícia secreta continuou fazendo prisões ocasionais "a
troco de nada", segundo definição de Anna Akhmatova. Na maior parte do tempo, porém, a KGB de Brejnev prendia as pessoas por alguma razão - se não por um ato criminoso
genuíno, então pela oposição literária, religiosa ou política ao sistema soviético. Em geral chamados de "dissidentes" e às vezes de "presos de consciência", os
presos políticos dessa geração sabiam por que estavam presos, identificavam-se como prisioneiros políticos e eram tratados como tal. Eles eram isolados dos criminosos
comuns, tinham uniforme diferente e estavam sujeitos a um regime diferenciado. Também seriam estigmatizados como dissidentes pelo resto da vida, estariam sujeitos
a discriminação no trabalho e perderiam a confiança de parentes e vizinhos.
Também havia muito menos presos políticos agora do que na época de Stalin. Em meados dos anos 1970, a Anistia Internacional estimava que de cerca de 1 milhão de
prisioneiros soviéticos, não mais de 10 mil eram presos políticos, em sua maioria encarcerados em dois complexos de campos "políticos", um na Mordóvia, ao sul de
Moscou, e outro em Perm, no lado ocidental dos Urais. Em um ano se faziam não mais de alguns milhares de prisões políticas. Essa quantidade seria considerada alta
em qualquer outro país, mas certamente era baixa em comparação ao padrão da União Soviética de Stalin.
Segundo os relatos de ex-detentos, essa nova espécie de prisioneiro começou a aparecer nos campos no início de 1957, na esteira da revolução húngara de outubro de
1956, quando foram presos soldados e cidadãos soviéticos que simpatizavam com a revolta. Mais ou menos nessa época, a primeira leva de "refuseniks", judeus que
foram proibidos de imigrar para Israel, também surgiu nas prisões soviéticas. Em 1958, Bym Gindler, um judeu polonês que fora deixado do lado soviético da fronteira
depois da guerra, teve negado o pedido para ser repatriado para a Polônia, com o argumento de que ele aproveitaria a oportunidade Para imigrar para Israel.
O final dos anos 1950 também assistiu à prisão dos primeiros batistas soviéticos, que logo se tornariam o maior grupo dissidente por trás do arame farpado, além
de membros de outras seitas religiosas. Em 1960, o dissidente Avraham Shifrin encontrou até um grupo de Fiéis Antigos, seguidores dos velhos ritos da igreja Ortodoxa,
numa solitária em um campo político em Potma. Sua comunidade imigrara para as florestas virgens ao norte dos montes Urais em 1919 e ali vivera em segredo durante
cinqüenta anos, até ser descoberta por um helicóptero da KGB. Quando Shifrin os encontrou, já eram residentes permanentes das solitárias, pois se recusavam categoricamente
a trabalhar para o anticristo soviético.
O próprio Shifrin era representante de uma nova categoria de prisioneiro: a dos filhos dos "inimigos do povo", que no final dos anos 1950 se descobriram incapazes
de abrir espaço na vida soviética. Nos anos que se seguiram, uma quantidade impressionante de integrantes da geração dissidente, em especial os ativistas dos direitos
humanos, acabariam por se revelar filhos ou parentes das vítimas de Stalin. Os gêmeos Medvedev, Zhores e Roy, estão entre os exemplos mais famosos. O historiador
Roy tornou-se um dos mais conhecidos publicistas clandestinos da União Soviética; Zhores foi um cientista dissidente, que por isso foi trancado num hospital psiquiátrico.
Eles eram filhos de um "inimigo do povo": seu pai havia sido preso quando eles ainda eram crianças.
Havia outros. Em 1967, 43 filhos de comunistas, todos vítimas da repressão de Stalin, enviaram uma carta aberta ao Comitê Central, alertando para a ameaça do neo-stalinismo.
A carta, a primeira de uma série de missivas de protesto encaminhadas às autoridades, continha o nome de vários editores clandestinos e líderes dissidentes, muitos
dos quais logo estariam na prisão também: Pyotr Yakir, filho do general Yakir; Anton Antonov-Ovseenko, filho do bolchevique revolucionário; e Larisa Bogoraz, cujo
pai tinha sido preso por atividade trotskista em 1936. Ao que parecia, a experiência familiar com os campos podia ser suficiente para tornar radicais os membros
mais jovens.
Se os prisioneiros tinham mudado, o mesmo aconteceu com alguns aspectos do sistema legal. Em 1960 - o ano que costuma ser lembrado como o apogeu do Degelo - um novo
código criminal foi promulgado. Sem dúvida, o novo código era mais liberal. Ele abolia os interrogatórios noturnos e limitava os poderes da KGB (que conduzia as
investigações policiais) e do MVD (que administrava o sistema prisional). Ele garantia mais independência aos promotores e, acima de tudo, abolia o odiado Artigo
58.
Algumas mudanças foram imediatamente consideradas uma simples camuflagem, alterações lingüísticas e não mudança de fato. "Você está enganado", o romancista Yuli
Daniel escreveu alguns anos depois, numa carta que conseguiu contrabandear para um amigo. "Você está enganado se pensou que eu estava na prisão. Eu era 'mantido
em isolamento investigativo', portanto não fui jogado na cadeia, mas 'instalado num local de castigo'. E isso não foi feito por carcereiros, mas por 'controladores',
e esta carta não está sendo enviada de um campo de concentração, mas de uma 'instituição'."
Daniel tinha razão em outra coisa: se o governo quisesse prender alguém como suspeito de pensar diferente, ainda podiam fazê-lo. No lugar do Artigo 58, o código
criou o Artigo 70, que regulava a "Agitação e Propaganda Anti-Soviética", e o Artigo 72, sobre "Atividade Organizacional de Crimes Especialmente Perigosos contra
o Estado e Também a Participação em Organizações Anti-Soviéticas". Além disso, as autoridades acrescentaram o Artigo 142, sobre "Violação da Lei e Separação entre
Igreja e Estado". Em outras palavras, se a KGB quisesse prender alguém por sua religião, ainda havia formas.
Mas nem tudo continuou como antes. Na era pós-stalinista, as autoridades - os promotores, os guardas dos campos, os carcereiros - estavam muito mais sensíveis às
aparências e tentavam de fato transmitir uma imagem de legalidade. Por exemplo, quando a linguagem utilizada na redação do Artigo 70 se mostrou frouxa demais para
condenar todos aqueles que as autoridades achavam necessário colocar atrás das grades, acrescentaram ao código o Artigo 190-1, que proibia a "disseminação oral de
maquinações deliberadas para desacreditar o sistema político e social da União Soviética". O sistema judicial devia parecer um sistema judicial, mesmo que todos
soubessem que se tratava de uma impostura.
Numa clara reação ao antigo sistema de tróicas e comissões especiais, a nova lei estipulava que as prisões tinham de ser julgadas num tribunal de justiça. E isso
acabou se tornando um inconveniente muito maior do que o previsto.
Embora Joseph Brodsky não tenha sido condenado pelas novas leis antidissidentes, seu julgamento anunciou os novos tempos que estavam a caminho. O simples fato de
que tenha sido realizado já era uma novidade: no passado, as pessoas que irritaram o Estado só tiveram um julgamento público em casos pré-combinados, para exibição,
se é que foram mesmo julgadas. E o mais importante é que a própria postura de Brodsky no julgamento já era uma prova de que ele pertencia a uma geração diferente
da de Soljenitsin e da geração de presos políticos do passado recente.
Certa vez Brodsky escreveu que sua geração havia sido "poupada" da experiência de doutrinação por que passaram as pessoas apenas alguns anos mais velhas. "Nós surgimos
do entulho do pós-guerra, quando o Estado estava preocupado demais em remendar a própria pele e não podia cuidar de nós muito bem. Entramos na escola, e a despeito
da bobajada nobre que nos ensinaram por lá, o sofrimento e a pobreza eram visíveis à nossa volta. Não se esconde uma ruína com uma página do Pravda."
Se fossem russos, os integrantes da geração de Brodsky teriam chegado à crítica do statu quo soviético por meio do gosto artístico ou literário, que não podiam ser
expressos na União Soviética de Brejnev. Se fossem bálticos, caucasianos ou ucranianos, o mais provável é que tivessem chegado a ela graças ao nacionalismo herdado
dos pais. Brodsky era o clássico dissidente de Leningrado. Ele rejeitou a propaganda soviética ainda muito pequeno e abandonou a escola aos quinze anos. Teve uma
série de empregos temporários e começou a escrever poesia. Quando tinha vinte e poucos anos já era bem conhecido no meio literário da cidade. A velha Akhmatova fez
dele seu protegido. Seus poemas circulavam entre os amigos e eram lidos em voz alta em encontros literários secretos, outra característica dos novos tempos.
Confio era de se esperar, toda essa atividade não oficial atraiu a atenção da polícia secreta. Primeiro, Brodsky foi hostilizado; depois, preso. A acusação era de
"parasitismo": como Brodsky não era um poeta licenciado pelo Sindicato dos Escritores, foi considerado vadio. No julgamento, realizado em fevereiro de 1964, o Estado
apresentou testemunhas, na maioria desconhecidas de Brodsky, que afirmaram que ele era "moralmente depravado, que fugira do serviço militar e que escrevia versos
anti-soviéticos". Em sua defesa havia cartas e discursos de poetas e escritores famosos, inclusive de Akhmatova, aos quais as testemunhas da promotoria responderam
iradas:
Eles não passam de amigos extravagantes tocando todos os sinos e exigindo "Salvem esse jovem!". Mas ele deveria ser tratado com trabalho forçado, e ninguém o ajudaria,
nenhum amigo extravagante. Não o conheço pessoalmente, só pelos jornais. E estou familiarizado com certidões. Tenho dúvidas sobre as certidões que o liberaram do
serviço militar. Não sou médico, mas tenho dúvidas.
Visivelmente, aquele não era o julgamento de Brodsky apenas, mas dos remanescentes da classe intelectual independente, de sua suposta oposição às autoridades soviéticas
e de seu desprezo pelo "trabalho duro". E, num certo sentido, os organizadores do julgamento acertaram um alvo: Brodsky realmente se opunha às autoridades soviéticas;
realmente desprezava o trabalho inútil, estéril; e ele realmente representava uma classe alienada, um grupo de pessoas profundamente frustradas com a repressão que
se seguiu ao Degelo. Como sabia disso muito bem, Brodsky não ficou surpreso com a prisão nem desconcertado com o julgamento. Em vez disso, discutiu com o juiz:
Juiz: Qual é a sua profissão? Brodsky: Sou poeta.
Juiz: Quem o reconhece como poeta? Quem lhe deu autoridade para se intitular poeta?
Brodsky: Ninguém. Quem me deu autorização para lazer parle da raça humana?
Juiz: Estudou para isso? Brodsky: Para quê?
Juiz: Para ser poeta. Por que não continua os estudos numa escola onde podem prepará-lo, onde pode aprender?
Brodsky: Não acho que se possa aprender poesia.
Juiz: Como assim?
Brodsky: Acho que ela é [...] um dom de Deus.
Depois, quando lhe perguntaram se tinha alguma petição a apresentar ao tribunal, Brodsky respondeu "Gostaria de saber por que estou preso". O juiz respondeu "Isso
é uma pergunta, não uma petição". E Brodsky retrucou "Nesse caso, não tenho petições".
Tecnicamente, Brodsky perdeu a briga: o juiz condenou-o a cinco anos de trabalho pesado numa colônia penal perto de Arkhangelsk, sob o argumento de que ele havia
"sistematicamente deixado de cumprir suas obrigações como cidadão soviético, que não tinha produzido nada de valor material, que não era capaz de se sustentar, como
comprovavam as mudanças constantes de emprego". Citando afirmações feitas pela Comissão de Trabalho com Jovens Poetas, o juiz também declarou que Brodsky - que viria
a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura - "não era poeta".
Ainda assim, de certo modo Brodsky "venceu", algo que a geração anterior de prisioneiros russos não teria conseguido. Ele não apenas desafiou a lógica do sistema
legal soviético em público, mas também registrou esse desafio para a posteridade. Sub-repticiamente, um jornalista fez anotações durante o julgamento, e estas acabaram
sendo contrabandeadas para o Ocidente. Graças a isso, Brodsky tornou-se logo famoso, na Rússia e no exterior. Além de se tornar um modelo a ser seguido por outros,
sua postura no tribunal também influenciou escritores russos e estrangeiros a entrar com petições de soltura. Dois anos depois, ele foi solto e, ao final, acabou
expulso da União Soviética.
Nada parecido aconteceu quando Stalin estava vivo. "Como sempre, as pessoas são jogadas atrás das grades e transportadas para o leste", escreveu pouco depois Valentyn
Moroz, um historiador ucraniano dissidente. "Desta vez, porém, eles não afundaram no desconhecido." Seria essa, afinal, a grande diferença entre os prisioneiros
de Stalin e os de Brejnev e Andropov: o mundo sabia de sua existência, importava-se com eles e, acima de tudo, podia influir em seu destino. No entanto, o regime
soviético não estava se tornando mais liberal, e as conseqüências do julgamento de Brodsky não demoraram a aparecer.
Assim como 1937 foi um ano especial de perseguição à intelligentsia da era stalinista, 1966 foi um ano especial para a geração do Degelo. Em 1966, já era claro que
os neo-stalinistas haviam triunfado. A reputação de Stalin como líder falho mas ainda assim admirável tinha sido oficialmente restaurada. Joseph Brodsky estava em
um campo de trabalho. Soljenitsin era um escritor banido. Khrutchev fora deposto e substituído por Leonid Brejnev, que se manifestou abertamente no sentido de reconstruir
a reputação de Stalin. Em um ano, Yuri Andropov, que tinha acabado de ser nomeado presidente da KGB, faria um discurso pelo qüinquagésimo aniversário da fundação
da Cheka. Ele exaltaria a polícia secreta, entre outras coisas, por sua "luta implacável contra os inimigos do Estado".
Em fevereiro de 1966, Andrei Sinyavsky e Yuli Daniel também foram a julgamento. Ambos eram escritores conhecidos, com trabalhos publicados no exterior, e ambos foram
declarados culpados, nos termos do Artigo 70, por agitação e propaganda anti-soviética. Sinyavsky foi condenado a sete anos de trabalho forçado; Daniel foi condenado
a cinco. Essa foi a primeira vez em que alguém foi condenado não por vadiagem, mas pelo conteúdo de seu trabalho literário. Um mês depois, sob sigilo significativamente
maior, mais de duas dezenas de intelectuais ucranianos foram a julgamento em Kiev. Um deles foi acusado, entre outras coisas, de possuir uma cópia de poema do século
XIX do poeta Taras Shevchenko, que dá nome a ruas em Moscou e Kiev. Como o poema havia sido impresso sem o nome do autor, os "especialistas" soviéticos classificaram-no
de poema anti-soviético de autor desconhecido.
Seguindo um padrão que logo se tornaria comum, esses julgamentos geravam outros, pois, sentindo-se insultados, outros intelectuais começaram a usar o jargão legal
e a constituição soviética para criticar o sistema jurídico e a polícia do país. O caso de Sinyavsky e Daniel, por exemplo, causou profunda impressão em outro jovem
moscovita, Aleksandr Ginzburg, que já atuava nos círculos culturais "não oficiais". Ele compilou uma transcrição do julgamento Sinyavsky-Daniel, o "Livro Branco"
e distribuiu-a em Moscou. Logo depois, Gizburg foi preso com três supostos colaboradores.
Mais ou menos na mesma época, os julgamentos de Kiev impressionaram um jovem advogado ucraniano, Vyacheslav Chornovil. Ele compilou um dossiê do sistema judicial
da Ucrânia, apontou suas principais contradições e demonstrou a ilegalidade e o absurdo das prisões realizadas no país. Em pouco tempo ele foi preso. Dessa maneira,
um movimento intelectual e cultural iniciado por escritores e poetas transformou-se num movimento pelos direitos humanos.
Para colocar o movimento soviético pelos direitos humanos em contexto, é importante observar que os dissidentes da União Soviética jamais começaram como uma organização
de massas, como os colegas poloneses, e não podem receber todo o crédito pela derrocada do regime soviético: a corrida armamentista, a guerra contra o Afeganistão
e o desastre econômico produzido pelo planejamento central tiveram papel equivalente. Eles tampouco conseguiram organizar mais que um punhado de manifestações públicas.
Uma das mais famosas - realizada em 25 de agosto de 1968 em protesto contra a invasão soviética da Tchecoslováquia - contou com apenas sete pessoas. Ao meio-dia,
os sete se reuniram em frente à Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, desfraldaram bandeiras tchecas e estenderam faixas com slogans como "Vida longa à Tchecoslováquia
independente", "Não se meta, Tchecoslováquia, pela sua liberdade e pela nossa". Em alguns minutos um apito soou e agentes da KGB à paisana investiram contra os manifestantes,
a quem pareciam estar esperando, aos gritos de "São todos judeus!" e "Batam nos anti-soviéticos!". Rasgaram as faixas, espancaram os manifestantes e levaram todos
para a cadeia, exceto um - ela estava com o filho de três anos.
Por menores que fossem, porém, esses esforços causavam um grande problema para os líderes soviéticos, em especial devido ao compromisso renovado de disseminar a
revolução e da conseqüente - e obsessiva - preocupação com a imagem internacional da União Soviética. No tempo de Stalin, a repressão em massa podia ser ocultada
até durante a visita de um vice-presidente americano. Nas décadas de 1960 e 1970, a notícia de uma única prisão dava a volta ao mundo da noite para o dia.
Em parte isso aconteceu graças à melhoria da comunicação de massa, à Voz da América, à Rádio Liberdade e à televisão. Em parte, graças ao fato de os cidadãos soviéticos
terem descoberto novos meios de transmitir as notícias. Pois 1966 também trouxe outro marco: o nascimento do termo "samizdat. Acrônimo que lembrava deliberadamente
"Gosizdat, ou "Editora Estatal", "samizdat significa "auto-editora" e se refere figurativamente à imprensa clandestina. O conceito não era novo. Na Rússia, a samizdat
era tão antiga quanto a escrita. Nos anos 1820, Pushkin distribuiu confidencialmente manuscritos de seus poemas mais politizados. Mesmo nos anos de Stalin, histórias
e poemas circulavam entre amigos.
Mas depois de 1966, a samizdat virou passatempo nacional. O Degelo havia dado a muitos soviéticos o gosto por uma literatura mais livre, e no início a samizdat foi
um fenômeno literário. Rapidamente, porém, ela passou a ter um caráter mais político. Um relatório da KGB que circulou entre os integrantes do Comitê Central em
janeiro de 1971 analisava as mudanças ocorridas nos cinco anos anteriores, observando que havia descoberto
mais de quatrocentos estudos e artigos sobre economia, política e filosofia que criticavam por vários ângulos a experiência histórica da construção socialista da
União Soviética, reviam as políticas interna e externa do Partido Comunista e propunham vários programas oposicionistas.
O relatório concluía que a KGB teria de trabalhar na "neutralização e na denúncia das tendências anti-soviéticas apresentadas na samizdat". Mas era tarde demais
para colocar o gênio de volta na garrafa, e a samizdat continuou a se expandir sob várias formas: poemas datilografados passados de amigo em amigo e redatilografados
sempre que possível; boletins manuscritos; transcrições das transmissões da Voz da América; e, muito depois, livros e periódicos produzidos profissionalmente em
composições tipográficas clandestinas, com freqüência localizadas na Polônia comunista. Poesias e canções-poemas compostas pelos bardos russos - Aleksandr Galich,
Bulat Okudzhava, Vladimir Vysotsky - também se espalharam com rapidez por meio de uma nova tecnologia, o gravador de fita cassete.
Ao longos das décadas de 1960, 1970 e 1980, um dos temas importantes da samizdat foi a história do stalinismo - inclusive a história do Gulag. As redes da samizdat
continuaram a imprimir e distribuir cópias dos trabalhos de Soljenitsin, que a essa altura já tinham sido banido do país. As histórias e poemas de Varlam Shalamov
também começaram a circular clandestinamente, assim como as memórias de Evgeniya Ginzburg. Os dois autores começaram a atrair grandes grupos de admiradores. Ginzburg
tornou-se o centro de um círculo de sobreviventes do Gulag e de figurinhas literárias de Moscou.
O outro tema importante da samizdat era a perseguição aos dissidentes. De fato, foi graças à samizdat - em particular à sua distribuição no exterior - que os defensores
dos direitos humanos ganharam, nos anos 1970, um fórum internacional muito mais amplo. Em especial, os dissidentes aprenderam a utilizar a samizdat não apenas para
ressaltar as incoerências entre o sistema legal da URSS e os métodos da KGB, mas também a apontar, com freqüência e estridência, a lacuna entre os tratados de direitos
humanos assinados pelo país e sua prática. Os textos preferidos eram a Declaração dos Direitos Humanos da ONU e o Tratado de Helsinki. A primeira foi assinada pela
URSS em 1948 e continha, entre outras coisas, uma cláusula conhecida como Artigo 19:
Todos têm o direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de sustentar opiniões sem interferências e de receber e transmitir informações
e idéias através de qualquer meio, independentemente de fronteiras.
O último foi o resultado final de um processo de negociações que envolveu toda a Europa e resolveu várias questões políticas deixadas em aberto desde o final da
Segunda Guerra Mundial. Embora poucos tenham notado na época de sua assinatura, em 1976, o Tratado de Helsinki continha alguns acordos sobre direitos humanos (parte
da chamada "Cesta Três" de negociações). Entre outras coisas, o tratado reconhecia a "liberdade de pensamento, consciência e crença":
Os Estados participantes reconhecem o significado universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais [...] respeitarão constantemente esses direitos e
essas liberdades em suas relações mútuas e se empenharão, juntos e isoladamente - inclusive em cooperação com as Nações Unidas -, em promover seu respeito universal
e efetivo.
Tanto dentro como fora da URSS, a maior parte das informações sobre os esforços dos dissidentes para promover os termos desses tratados veio do jornal interno da
samizdat soviética: Crônica dos acontecimentos atuais. Esse boletim, dedicado ao registro neutro de notícias não publicadas por outros meios - violações dos direitos
humanos, prisões, julgamentos, manifestações, novas publicações samizdat -, foi fundado por um pequeno grupo de conhecidos em Moscou, inclusive Sinyavsky, Daniel,
Ginzburg e dois dissidentes que se tornariam famosos mais tarde, Pavel Litvinov e Vladimir Bukovsky. A evolução do Crônica vale por si só um livro do tamanho deste.
Na década de 1970, a polícia secreta conduziu uma verdadeira guerra contra o Crônica, organizando buscas coordenadas na casa de todos os suspeitos de manter relações
com o jornal: numa cena memorável, um editor jogou um maço de papéis num caldeirão de sopa enquanto a KGB revistava o apartamento. Mas o Crônica sobreviveu à prisão
de seus editores e conseguiu chegar ao Ocidente. Ao final, a Anistia Internacional publicaria traduções regulares.
O Crônica também desempenhou um papel especial na história dos campos. Rapidamente, ele se tornou a principal fonte de informações sobre a vida nos campos soviéticos
pós-stalinistas. Ele tinha uma sessão regular, "Por dentro das prisões e dos campos" (e, mais tarde, "Por dentro das solitárias"), que trazia notícias e entrevistas
coro prisioneiros. Esses relatos surpreendentemente precisos dos acontecimentos nos campos - a doença de vários dissidentes, as mudanças de regime, os protestos
organizados - enlouqueceram as autoridades: eles não conseguiam entender como as informações vazavam. Anos depois, um dos editores explicou:
Algumas [informações] eram trazidas quando um companheiro era solto. Alguém faria um contato em algum lugar após a libertação. Ou então eles subornavam os guardas,
que permitiam que eles passassem informações orais e por escrito quando recebiam a visita da família. Os parentes paravam em Moscou e passavam as notícias adiante.
Era possível subornar os guardas da Mordóvia, por exemplo. Esses [os campos políticos da Mordóvia] eram campos novos, organizados em 1972, e os guardas eram todos
novos. De vez em quando eles passavam bilhetes, quando se solidarizavam com a situação. Houve uma greve de fome em massa ali em 1974, e quando viram aquilo, os guardas
foram compreensivos.
Também se podia corromper os guardas. Eles não ganhavam muito. Não tinham muito. Vinham de lugares provincianos. Bastava, por exemplo, pegar alguma coisa em Moscou
- um isqueiro - e subornar um guarda. Ou então ele dava um endereço. O suborno - mercadorias ou dinheiro - era dado em troca de ele passar informações [...]
Havia também métodos de escamoteamento. Um ex-prisioneiro descreve um deles:
Eu escrevo meu último poema em tirinhas de 4 centímetros de largura de papel de cigarro [...] Essas tirinhas são então enroladas na forma de um tubo pequeno (mais
fino que o seu dedo), seladas e protegidas contra a umidade através de um método inventado por nós, e, quando uma oportunidade se apresenta, são passadas adiante.
Fossem quais fossem os métodos - escamoteamento, suborno, bajulação -, as informações que o Crônica conseguiu extrair dos campos são significativas até hoje. No
momento em que eu escrevia este livro, a maior parte dos arquivos pós-stalinistas do MVD e da KGB permanecia fechada aos pesquisadores. Porém, graças ao Crônica,
às outras publicações da samizdat, às publicações sobre direitos humanos e às muitas, muitas memórias que descrevem os campos nas décadas de 1960, 1970 e 1980, é
possível formar uma imagem consistente de como era a vida nos campos soviéticos após a morte de Stalin.
"Hoje em dia, os campos para prisioneiros políticos são tão horríveis quanto no tempo de Stalin. Algumas coisas estão melhores, outras estão piores [...]"
Assim começam as memórias de Anatoly Marchenko dos seus anos de prisão, um documento que, tão logo começou a circular em Moscou, no final dos anos 1960, chocou a
intelligentsia da cidade, que acreditava que os campos de trabalho tinham sido fechados para sempre. Operário e filho de pais iletrados, Marchenko foi preso pela
primeira vez por vandalismo. A segunda prisão foi por traição: ele tentou fugir da União Soviética pela fronteira com o Irã. Foi condenado a cumprir a pena política
em Dubravlag, Mordóvia, um dos dois famigerados campos políticos de regime severo.
Vários elementos da prisão de Marchenko teriam soado familiares às pessoas acostumadas a ouvir as histórias dos campos de Stalin Como os que o precederam, Marchenko
dirigiu-se à Mordóvia num vagão Stolypin. Como os que o precederam, recebeu um pãozinho, 50 gramas de açúcar e um aranque salgado, que deviam durar a viagem toda.
Corno os que o precederam, descobriu que o acesso à água dependia do soldado que estivesse tomando conta do trem: "Se for um dos bons, trará duas ou três chaleiras,
mas se for um daqueles que pouco se importa, você morre de sede".
Chegando ao campo, Marchenko encontrou a mesma fome generalizada, se não inanição, que teria havido no passado. A norma diária de comida continha 2.400 calorias:
750 gramas de pão, 30 gramas de legumes em geral podres, 90 gramas de bacalhau geralmente estragado, 60 gramas de carne. Já os cães que guardavam os prisioneiros
recebiam quase meio quilo de carne. Como rio passado, nem toda a ração de Marchenko terminava em seu prato, e havia poucos extras. "Nos seis anos que passei no campo
e na cadeia, comi pão com manteiga duas vezes, quando tinha visitas. Também comi dois pepinos - um em 1964 e outro em 1966. Não comi tomate nem maçã uma única vez."
Até certo ponto, o trabalho ainda importava, embora fosse um tipo diferente de trabalho. Marchenko exercia as funções de carregador e carpinteiro. Leonid Sitko,
também em Dubravlag nessa época, fabricava móveis. As prisioneiras dos campos da Mordóvia trabalhavam em fábricas, em geral nas máquinas de costura. Já os prisioneiros
de outro complexo de campos, perto da cidade de Perm, no sopé dos Urais, também trabalhavam com madeira. Os que ficavam confinados em solitárias, como era comum
na década de 1980, costuravam luvas e uniformes.
Com o tempo, Marchenko também descobriu que as condições se deterioravam lentamente. Em meados dos anos 1960, havia pelo menos três categorias de presos: os privilegiados,
os comuns e os que viviam sob regime estrito. Em pouco tempo o último grupo - que incluía todos os dissidentes políticos mais "sérios" - voltou a usar uniformes
de algodão preto em vez das próprias roupas. Embora pudessem receber um número ilimitado de cartas, além de material impresso (se fossem de origem soviética), podiam
enviar apenas duas cartas por mês. Se estivessem sob regime rígido, não podiam receber nem comida nem cigarros. Marchenko cumpriu pena como prisioneiro comum e político,
e sua descrição do mundo do crime soa familiar. Para dizer o mínimo, a cultura criminosa tinha se tornado mais abjeta e degradada desde a morte de Stalin. Na esteira
da guerra dos mafiosos dos anos 1940, os criminosos de carreira se dividiram em mais facções. Zhenya Fedorov, ex-prisioneiro encarcerado por roubo em 1967, descreve
vários grupos - não apenas "cachorros" e "mafiosos", mas também svoyaki, que eram aprendizes dos mafiosos, e os "chapéus vermelhos", mafiosos que seguiam a própria
lei, provavelmente descendentes intelectuais dos "chapéus vermelhos" que surgiram nos campos depois da guerra. Alguns prisioneiros também se agruparam em "famílias",
para se proteger e também com outras finalidades: "Quando alguém tinha de ser assassinado, 'as famílias' decidiam quem iria fazer o serviço", explicou Fedorov.
A violenta cultura de estupro e dominação homossexuais - visível anteriormente nas descrições das prisões juvenis - também desempenhavam agora um papel bem mais
importante na vida criminosa. Regras não escritas passaram a dividir os criminosos em dois grupos: os que faziam o papel "feminino" e os que desempenhavam o papel
"masculino". "Os primeiros eram desprezados por todos, enquanto os últimos andavam por aí como heróis, gabando-se de sua virilidade e de suas 'conquistas', não apenas
entre si, mas também com os guardas", escreveu Marchenko. Segundo Fedorov, as autoridades cooperavam, mantendo os prisioneiros "sujos" em celas separadas. Qualquer
um podia acabar lá: "se você perdesse nas cartas, podia ser abrigado a 'fazer' como mulher". Nos campos de mulheres, o lesbianismo era igualmente disseminado, e
às vezes igualmente violento.
Tempos depois, uma prisioneira política escreveu sobre uma detenta que se recusara a receber a visita do marido e do filho pequeno de tanto que temia a represália
da amante lésbica.
Os anos 1960 marcaram o início da epidemia de tuberculose nas prisões russas, um flagelo que sobrevive ainda hoje. Fedorov descreveu a situação da seguinte forma:
"Se houvesse oitenta pessoas num alojamento, quinze tinham tuberculose. Ninguém tentava curá-los, só havia comprimido para dor de cabeça. Os médicos eram assim como
homens da SS, nunca conversavam com a gente, nunca nos olhavam, não éramos ninguém".
Para piorar as coisas, muitos mafiosos estavam então viciados em chifr, um chá extremamente forte que produzia um efeito entorpecente. Outros faziam o impossível
para conseguir álcool. Os que trabalhavam do lado de fora do campo desenvolveram um método para passá-lo pelos guardas:
Um preservativo é hermeticamente preso a um tubo de plástico fino. O zek o engole, deixando uma ponta do tubo na boca. Para não engolir o tubo por acidente, ele
o prende entre dois dentes: não deve existir um único zek com todos os 32 dentes. Então, com a ajuda de uma seringa, 3 litros de álcool são bombeados para dentro
do preservativo - e o zek retorna ao campo. Se o preservativo ficar mal colado ao tubo ou se acontecer de ele estourar no estômago do zek, a morte é certa e dolorosa.
Apesar disso, eles correm o risco: 3 litros de álcool dão 7 litros de vodca. Quando o "herói" volta à zona [...] ele é pendurado de cabeça para baixo numa viga do
teto do alojamento, e a ponta do tubo plástico é segurada sobre uma travessa até cair a última gola. Então o preservativo vazio é puxado para fora [...]
A prática da automutilação também era disseminada, só que agora ela assumia formas extremas. Uma vez, na cela de uma prisão, Marchenko viu dois mafiosos engolirem
as colheres. Depois, quebraram uma vidraça e começaram a engolir os cacos de vidro, antes que os carcereiros conseguissem tirá-los dali. Edward Kuznetsov, condenado
por ter participado da infame tentativa de seqüestrar um avião no aeroporto de Leningrado, descreveu dezenas de métodos de automutilação:
Eu vi condenados engolindo enormes quantidades de pregos e arame farpado; vi-os engolindo termômetros de mercúrio, sopeiras de peltre (depois de fragmentá-las em
pedaços "comestíveis"), peças de xadrez, dominós, agulhas, vidro moído, colheres, facas e muitos outros objetos semelhantes. Vi condenados costurando a boca e os
olhos com linha ou arame, pregando botões no próprio corpo; ou pregando os testículos na cama [...] Vi condenados cortando a pele dos braços e das pernas e puxando-a
como se fosse uma meia; vi condenados cortando pedaços da própria carne (da barriga ou da perna), assando-os e comendo-os; vi condenados abrindo uma veia e deixando-a
pingar sobre uma sopeira, para depois molhar pedaços de pão no sangue e tomar tudo como se fosse uma sopa; vi condenados cobrindo-se de papel e ateando-se fogo;
vi condenados cortando os dedos, o nariz, as orelhas, o pênis [...]
Kuznetsov disse que os condenados não faziam essas coisas para protestar, que não tinham nenhum motivo específico, ou que apenas queriam "ir para o hospital, onde
as enfermeiras mexiam os quadris, onde obtinham a ração hospitalar, onde não eram obrigados a trabalhar, onde conseguiam drogas, comida, cartões postais". Entre
eles também havia masoquistas "em permanente estado de depressão entre um corte e outro".
Indiscutivelmente, as relações entre os criminosos e os prisioneiros políticos também tinham mudado muito desde o tempo de Stalin. Às vezes os criminosos atormentavam
ou espancavam os presos políticos: o dissidente ucraniano Valentyn Moroz ficou preso numa cela com criminosos que o mantinham acordado durante a noite e um dia o
atacaram, cortando sua barriga com uma colher afiada. Mas também havia os criminosos que respeitavam os presos políticos, no mínimo por resistirem às autoridades,
como Vladimir Bukovsky escreveu: "Eles costumavam nos pedir para contar por que estávamos presos e o que queríamos [...] a única coisa em que não conseguiam acreditar
é que tivéssemos feito tudo a troco de nada e não de dinheiro".
Havia até criminosos que desejavam se juntar a eles. Acreditando que as prisões políticas eram mais "fáceis", alguns criminosos de carreira tentaram conseguir sentenças
por crimes políticos. Escreviam denúncias de Khrutchev ou do Partido, recheadas de obscenidades, ou fabricavam "bandeiras americanas" com trapos e hasteavam-nas
pelas janelas. No final dos anos 1970, era muito comum ver prisioneiros com tatuagens na testa: "Comunistas bebem o sangue das pessoas", "Escravo do Partido Comunista",
"Bolcheviques, quero pão".
A mudança no relacionamento entre a nova geração de presos políticos e as autoridades era ainda mais profunda. Na era pós-Stalin, os presos políticos sabiam por
que estavam na prisão, esperavam estar na prisão e já tinham decidido como iam se comportar: com oposição organizada. Já em fevereiro de 1968, um grupo de detentos
de Potma - inclusive Yuli Daniel - entraram em greve de fome. Exigiam o relaxamento do regime de prisão; o fim do trabalho compulsório; a remoção das restrições
à correspondência; e, num eco do início dos anos 1920, o reconhecimento do status especial de prisioneiros políticos.
A direção fez concessões - e depois, aos poucos, retirou-as. No entanto, a exigência dos presos políticos de serem separados dos criminosos seria atendida, ao menos
porque a administração queria manter essa nova geração, suas demandas constantes e seu pendor para as greves de fome tão longe quanto possível dos criminosos comuns.
As greves eram freqüentes e disseminadas, tanto que, a partir de 1969, o Crônica contém um registro de protestos quase constantes. Nesse ano, por exemplo, os prisioneiros
entraram em greve para exigir o restabelecimento de concessões feitas um ano antes; para protestar contra a proibição de visitas dos parentes; para protestar por
que um dos seus foi colocado numa solitária; para protestar depois que outro foi proibido de receber um pacote da família; para protestar contra a transferência
de um grupo do campo para a cadeia; e até mesmo para marcar o Dia Internacional dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro. Mas 1969 não foi um ano incomum. Na década
seguinte, greves de fome e de trabalho e outros tipos de protesto tornaram-se parte da paisagem na Mordóvia e em Perm.
As greves de fome, que assumiam a forma de protestos curtos, de um dia, e as contendas agoniantes com a direção chegaram a desenvolver um padrão enfadonho, como
escreveu Marchenko:
No começo, ninguém presta a menor atenção. Então, depois de vários dias - às vezes dez ou doze -, transferem os grevistas para uma cela reservada para eles e começam
a alimentá-los artificialmente, por meio de tubos. Se o sujeito resiste, torcem o braço dele e colocam algemas. Esse procedimento costuma ser executado com mais
brutalidade nos campos do que na cadeia - depois de alimentado à força uma ou duas vezes, você fica sem dentes [...]
Em meados dos anos 1970, alguns dos "piores" prisioneiros políticos foram transferidos da Mordóvia e de Perm para prisões de segurança máxima - especialmente Vladimir,
uma prisão de origem czarista na Rússia central -, onde se ocupavam quase exclusivamente da batalha contra as autoridades. O jogo era perigoso, e regras minto complexas
foram criadas. O objetivo dos prisioneiros era afrouxar o regime e ganhar pontos, o que poderia ser relatado ao Ocidente via samizdat O objetivo da direção era domar
os presos, fazê-los dar informações, colaborar e, acima de tudo, retratar-se publicamente fato que sairia na imprensa soviética e repercutiria no exterior. Embora
seus métodos tivessem alguma semelhança com a tortura praticada nos interrogatórios stalinistas, em geral eles envolviam mais pressão psicológica do que dor física.
Natan Sharansky, um dos mais ativos prisioneiros do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 (hoje político em Israel), descreveu o procedimento:
Eles o convidam para uma conversa. Acha que nada depende de você? Ao contrário: eles explicam que tudo depende de você. Gosta de chá, café ou carne? Gostaria de
ir comigo a um restaurante? Por que não? Vamos dar-lhe suas roupas e iremos. Se percebermos que você está no caminho da reabilitação, que está preparado para nos
ajudar... como assim, não quer delatar seus amigos? Mas o que significa delatar? Você não percebe que tipo de nacionalista é esse russo (ou judeu, ou ucraniano,
depende da situação) que cumpre pena com você? Não percebe como ele odeia os ucranianos (ou russos, ou judeus)?
No passado, a administração podia dar ou tirar privilégios e aplicar punições, em geral uma temporada numa solitária. Ela podia regular as condições de vida do prisioneiro
fazendo alterações mínimas mas críticas no dia-a-dia, transferindo-o do regime comum para o regime severo e vice-versa - sempre, é claro, seguindo os regulamentos.
Como Marchenko escreveu, "As diferenças entre os regimes poderiam parecer infinitesimais para quem não os experimentara na carne, mas para os prisioneiros elas eram
enormes. No regime normal há rádio; no regime severo, não; no regime normal os presos têm uma hora de exercícios por dia; no regime severo, meia hora, e aos domingos,
nada".
No final da década de 1970, o número de normas de comida havia diminuído para dezoito, de 1A a 9B, cada uma com uma quantidade específica de calorias (de 2.200 a
900) e alimentos. Os prisioneiros recebiam uma ou outra norma de acordo com mudanças mínimas no comportamento. A B9, a menor delas, era dada aos prisioneiros das
solitárias e consistia num pedaço pequeno de pão, urna colher de kasha e uma sopa que deveria ter, mas nem sempre tinha, 200 gramas de batata e 200 gramas de repolho.
Os presos também podiam ser jogados em solitárias - a "geladeira -, a punição ideal do ponto de vista das autoridades. Era totalmente legal e, tecnicamente, não
podia ser descrita como tortura. Seu efeito sobre os detentos era lento e cumulativo, mas como ninguém tinha pressa de terminar uma estrada através da tundra, isso
não preocupava a direção. Essas celas não se comparavam a nada do que foi inventado pela NKVD de Stalin. Um documento de 1976, publicado pelo grupo de Helsinki em
Moscou, descreve em detalhes as solitárias da prisão de Vladimir, das quais havia cerca de cinqüenta. As paredes das celas eram cheias de saliências e pontas de
cimento. O chão era sujo e molhado. Numa cela, a janela quebrada fora substituída por jornais; em outras, foram bloqueadas com tijolos. O único lugar que havia para
se sentar era um cilindro de cimento de cerca de 25 centímetros de diâmetro, com anéis de ferro. À noite traziam um catre de madeira, mas sem lençóis nem travesseiro.
O prisioneiro tinha se de acomodar sobre tábuas nuas e ferro. As celas eram tão frias que os presos tinham dificuldade para dormir, até para se deitar. Em algumas,
o "sistema de ventilação" trazia o ar do esgoto.
Para pessoas acostumadas a uma vida ativa, o pior de tudo era o tédio, como explicou Yuli Daniel:
Semana após semana
Se dissolvem na fumaça de cigarro
Neste local curioso
Tudo é sonho ou delírio [...]
Aqui a luz não se apaga durante a noite
Aqui a luz não chega durante o dia
Aqui o silêncio, que a tudo preside,
Tomou conta de mim.
Podemos sufocar de ócio
Ou bater a cabeça na parede,
Semana após semana
Se dissolvem na fumaça azul [...]
As temporadas nas solitárias podiam durar indefinidamente. Em termos técnicos, os prisioneiros só podiam ser confinados por períodos de quinze dias, mas a direção
contornava a questão tirando-os da cela por um dia e jogando-os lá novamente. Certa vez, Marchenko ficou numa solitária durante 48 dias. A cada vez que o período
de quinze dias vencia, os guardas o deixavam sair por alguns minutos - o suficiente para lerem um diretriz confinando-o outra vez.53 No campo Perm , um prisioneiro
ficou no isolamento quase dois meses, e de lá foi levado ao hospital, enquanto outro foi mantido por 45 dias por se recusar a executar qualquer trabalho que não
fosse a sua especialidade, metalurgia.
Vários presos jogados nas solitárias haviam cometido crimes ainda menos substanciais: quando as autoridades queriam dobrar alguém de verdade, distribuíam castigos
duros pelas menores infrações. De 1973 a 1974, nos campos de Perm, dois prisioneiros foram privados do direito de receber visitas da família por "ficarem na cama
durante o dia". Outro foi punido porque o pacote que recebera continha uma geléia que foi a preparada com álcool. Outros prisioneiros foram punidos ou repreendidos
por andar devagar demais, ou por não usarem meias.
Às vezes, a pressão prolongada dava resultados. Aleksei Dobrovolsky, co-réu no julgamento de Aleksandr Ginzburg, "sucumbiu" bem cedo e, por escrito, solicitou permissão
para testemunhar na rádio e contar toda a história de sua atividade dissidente "criminosa", a fim de impedir que os jovens seguissem o mesmo caminho perigoso. Pyotr
Yakir também sucumbiu enquanto era investigado e "confessou" que inventara o que tinha escrito.
Outros morreram. Yuri Galanskov, outro co-réu no julgamento de Ginzburg, morreu em 1972. Havia desenvolvido úlceras enquanto esteve preso. Não tratadas, elas acabaram
por matá-lo." Marchenko também morreu, em 1986, provavelmente em decorrência das drogas que recebeu enquanto estava em greve de fome. Vários outros prisioneiros
faleceram - um se suicidou - durante greve de fome que durou um mês, no campo Perm 35, em 1974. Em 1985, Vasil Stus, poeta ucraniano e ativista dos direitos humanos,
também morreu em Perm.
No entanto, os prisioneiros também opunham resistência. Em 1977, os presos políticos de Perm 35 descreveram como desafiavam a administração:
Fazíamos greve de fome com freqüência. Nas solitárias, nos vagões de traslado. Nos dias comuns, insignificantes, nos dias em que nossos camaradas morriam. Nos dias
de atividade incomum na zona, nos dias 8 de março e 10 de dezembro, nos dias 1º de agosto e 8 de maio, em 5 de setembro. Fazíamos greve de fome com muita freqüência.
Os diplomatas e os funcionários públicos assinavam novos acordos de direitos humanos, de liberdade de informação, de extinção da tortura... e nós fazíamos greve
de fome, pois na URSS essas coisas não eram observadas.
Graças a esse empenho, o Ocidente sabia cada vez mais sobre o movimento dissidente - e os protestos se tornavam mais estridentes. Como conseqüência, alguns prisioneiros
passaram a receber novo tipo de tratamento. Vladimir Bukovsky foi convidado a abandonar a Grã-Bretanha, onde morava havia quinze anos, desde que tinha sido expulso,
e voltar para a Rússia (em troca de um comunista chileno preso). Bukovsky foi designado "especialista em tribunais" no "julgamento" do Partido Comunista, que ocorreu
depois de o Partido contestar a tentativa do presidente Yeltsin de bani-lo. Ele chegou ao edifício do Tribunal Constitucional, em Moscou, carregando um laptop e
um scanner manual. Confiante de que ninguém na Rússia tinha visto aquelas máquinas antes, ele se sentou e, com toda a calma, pôs-se a copiar todos os documentos
que eram apresentados como prova. Somente quando estava quase no fim as pessoas à sua volta se deram conta do que ele fazia. Alguém gritou "Ele vai publicar, lá!".
A sala ficou em silêncio. Nesse momento - "como num filme", Bukovsky contou depois - ele simplesmente fechou o laptop, encaminhou-se para a saída, dirigiu-se ao
aeroporto e saiu da Rússia."
Graças a Bukovsky, sabemos, entre outras coisas, o que aconteceu na reunião do Politburo de 1967 realizada logo antes de sua prisão. Bukovsky ficou particularmente
impressionado com o fato de muitos dos presentes sentirem que fazer acusações contra ele "causaria unia certa reação dentro e fora do país". Eles concluíram que
seria um engano simplesmente deter Bukovsky, então propuseram interná-lo num hospital psiquiátrico. A era dos psikhushka - hospitais psiquiátricos especiais - começara.
A utilização dos hospitais psiquiátricos para prender dissidentes tinha um precedente. Em 1836, ao retornar da Europa Ocidental para São Petersburgo, o filósofo
russo Potr Chadaev escreveu um ensaio em que criticava o regime do czar Nicolau I: "Contrariamente a todas as leis da comunidade humana", ele declarou no auge do
regime imperial russo, "a Rússia se move na direção da própria escravidão e da escravidão dos povos vizinhos." A resposta de Nicolau foi prender Chadaev em casa.
O czar tinha certeza, ele declarou, que assim que os russos percebessem que seu compatriota "sofria de desordem mental", eles o perdoariam.
Depois do Degelo, as autoridades voltaram a usar os hospitais psiquiátricos para prender os dissidentes - um política que trazia muitas vantagens para a KGB. Acima
de tudo, ela ajudava a desacreditar os dissidentes, tanto no Ocidente quanto na URSS, desviava a atenção deles. Se essas pessoas não eram adversárias do governo,
mas simplesmente loucas, quem poderia se opor à sua hospitalização?
Com grande entusiasmo, a comunidade psiquiátrica soviética participou da farsa. Para explicar o fenômeno da dissidência, eles se saíram com a definição de "esquizofrenia
apática" ou "esquizofrenia rasteira". Segundo os cientistas, essa forma de esquizofrenia não deixava marcas no intelecto ou no físico, mas podia abranger quase todas
as formas de comportamento tido como não social ou anormal. "Com muita freqüência, as pessoas com estrutura paranóide formam idéias sobre uma 'luta pela verdade
e pela justiça'", escreveram dois professores soviéticos, ambos do Instituto Serbsky:
Um traço característico das idéias superestimadas é a convicção do paciente de sua própria retidão, uma obsessão em afirmar seus "direitos" pisoteados, e o significado
desses sentimentos para a personalidade do paciente. Eles tendem a utilizar os procedimentos jurídicos como plataforma para discursos e apelos.
Por essa definição, todos os dissidentes podiam ser classificados como loucos. O escritor e cientista Zhores Medvedev recebeu o diagnóstico de "esquizofrenia apática"
acompanhada de "delírios paranóides de reformar a sociedade". Entre os sintomas estava a "personalidade dividida", já que era escritor e cientista. O diagnóstico
de Natalya Gorbanevskaya, a primeira editora do Crônica, indicava esquizofrenia apática sem "sintomas definidos", mas que resultará em "alterações anormais de humor,
vontades e pensamentos". O general Pyotr Grigorenko, dissidente do Exército Vermelho, foi dado como portador de uma condição psicológica "caracterizada pela presença
de idéias reformistas, em especial sobre a reorganização do aparato estatal; além disso, superestimava a própria personalidade em proporções messiânicas". Em um
relatório enviado ao Comitê Central, o comandante local da KGB também se queixava de ter em mãos um grupo de cidadãos com uma forma bem específica de doença mental:
eles "tentam fundar novos 'partidos', organizações e conselhos, preparando e distribuindo planos para novas leis e programas". Dependendo das circunstâncias de
sua detenção - ou da não-detenção - os prisioneiros classificados como mentalmente doentes eram enviados a várias instituições. Alguns foram avaliados por médicos
das prisões, outros por clínicos gerais. O Instituto Serbsky, cujo setor especial de diagnóstico, encabeçado nos anos 1960 e 1970 pelo doutor Danil Lunts, era o
responsável pela avaliação dos infratores políticos. Via-se que o dr. Lunts, que examinou pessoalmente Sinyavsky, Bukovsky, Gorbanevskaya, Grigorenko e Viktor Nekipelov,
entre muitos outros, tinha uma alta patente. De acordo com Nekipelov, ele vestia um uniforme azul com duas estrelas, "a insígnia de general das tropas do MVD".
Alguns psiquiatras soviéticos refugiados alegariam que Lunts e outros médicos do instituto acreditavam sinceramente que os pacientes sofriam de doenças mentais.
No entanto, a maioria dos presos políticos que o conheceu o descreveu como um oportunista que executava as ordens do MVD, em nada melhor que os médicos criminosos
que realizaram experiências desumanas com os presos nos campos de concentração nazistas".
Se recebessem o diagnóstico de doença mental, os pacientes eram condenados a passar uma temporada num hospital, às vezes alguns meses, às vezes muitos anos. Os que
tinham mais sorte eram enviados a um dos vários hospitais psiquiátricos comuns do país. Eles eram sujos e superlotados, e seus funcionários costumavam ser bêbados
e sádicos. Ainda assim, os bêbados e os sádicos eram civis, e os hospitais comuns eram, em geral, menos controladores que as prisões e os campos. Os pacientes podiam
escrever cartas com mais liberdade e recebiam visitas de pessoas de for a da família.
Por outro lado, os que eram tidos como "especialmente perigosos" eram despachados para "hospitais psiquiátricos especiais", que existiam em pouco número. Eles eram
administrados diretamente pelo MVD. Seus médicos, como Lunts, faziam parte da hierarquia do MVD. Esses hospitais pareciam prisões, eram cercados por torres de vigia,
arame farpado, guardas e cães. Uma fotografia do hospital psiquiátrico especial de Oryol tirada nos anos 1970 mostra os pacientes fazendo exercícios em um pátio
interno em nada diferente do pátio de exercícios de uma prisão.
Tanto nos hospitais comuns quanto nos especiais o objetivo dos médicos era mais uma vez a retratação. Os pacientes que concordavam em renunciar às suas convicções,
que admitiam que a doença mental levara-os a criticar o sistema soviético eram declarados saudáveis e libertados. Os que não se retratavam continuavam a ser considerados
doentes e passavam por um "tratamento". Como os psiquiatras soviéticos não acreditavam na psicanálise, o tratamento consistia basicamente em drogas, eletrochoques
e formas variadas de reclusão. Remédios cujo uso havia sido banido no Ocidente nos anos 1930 eram administrados rotineiramente, fazendo a temperatura dos pacientes
subir a mais de 40 graus centígrados, causando-lhes dor e desconforto. Os médicos da prisão também prescreviam tranqüilizantes que provocavam vários efeitos colaterais,
como rigidez física, lentidão, tiques e movimentos involuntários, para não falar da apatia e do alheamento.
Entre os outros tratamentos estavam as surras; a injeção de insulina, que causa um choque hipoglicêmico em quem não é diabético; e urna punição chamada "rolamento",
que Bukovsky descreveu numa entrevista, em 1976: "Os pacientes eram colocados sobre grandes pedaços de lona molhada e enrolados dos pés à cabeça com tanta força
que era difícil respirar; à medida que a lona secava, ela ficava cada vez mais apertada, e o paciente se sentia ainda pior". Outro tratamento, que Nekipelov presenciou
no Instituto Serbsky, era a "punção lombar", a introdução de uma agulha na espinha do paciente. Aqueles que passavam por uma punção lombar eram deitados de lado,
imóveis, com as costas besuntadas de iodo, durante vários dias.
Muitas pessoas foram atingidas. Sabe-se que em 1977, o ano em que Peter Reddaway e Sidney Block publicaram um amplo levantamento sobre o abuso psiquiátrico na União
Soviética, pelo menos 365 pessoas sadias passaram por tratamento para a loucura, e com certeza houve centenas de outros casos.
Ainda assim, no final o encarceramento dos dissidentes nos hospitais não teve o resultado esperado pelo regime soviético. Acima de tudo, ele não desviou a atenção
do Ocidente. Para começar, os horrores do abuso psiquiátrico provavelmente inflamaram ainda mais a imaginação do Ocidente do que as histórias dos campos e das prisões.
Qualquer pessoa que tenha assistido a Um estranho no ninho podia imaginar muito bem um hospital psiquiátrico soviético. Mais do que isso porém, a questão do abuso
psiquiátrico exercia apelo direto sobre um grupo articulado que se interessava profissionalmente pelo assunto: os psiquiatras ocidentais. A partir de 1971, ano em
que Bukovsky contrabandeou mais de 150 páginas de documentos sobre o abuso, a questão tornou-se eterno tema de discussão de entidades como a Associação Psiquiátrica
Mundial, a Real Faculdade de Psiquiatria, na Grã-Bretanha, e outras associações psiquiátricas nacionais e internacionais. Os grupos mais corajosos fizeram declarações
públicas. E os que não o fizeram foram criticados pela covardia, o que gerou ainda mais publicidade ruim para a URSS.
O assunto acabou por galvanizar os cientistas soviéticos. Quando Zhores Medvedev foi condenado a um hospital psiquiátrico, muitos escreveram cartas de protesto à
Academia de Ciência Soviética. Andrei Sakharov, físico nuclear que no final dos anos 1960 emergiu como líder moral do movimento dissidente, fez uma declaração pública
de apoio a Medvedev num simpósio internacional no Instituto de Genética.
Soljenitsin, a essa altura já no Ocidente, escreveu uma carta aberta às autoridades soviéticas protestando contra a prisão de Medvedev. "Afinal", ele escreveu, "é
hora de pensar com clareza: a prisão de livres-pensadores saudáveis é um assassinato espiritual."
Provavelmente, a atenção internacional teve um papel na decisão das autoridades de liberar vários prisioneiros, entre eles, Medvedev, que foi então expulso do país.
Porém, alguns integrantes dos altos escalões da elite soviética acharam que essa foi a resposta errada. Em 1976, Yuri Andropov então chefe da KGB, escreveu um memorando
secreto em que descreveu com bastante precisão (se o tom falso e o anti-semitismo forem ignorados) as origens internacionais da "campanha anti-soviética":
Dados recentes são um testemunho do fato de que a campanha tem as feições de uma ação anti-soviética cuidadosamente planejada [...] no presente momento, os que deram
início à campanha tentam atrair associações psiquiátricas internacionais e nacionais, assim como especialistas de boa reputação, para a criação de um "comitê'' pensado
para monitorar a atividade dos psiquiatras em vários países, especialmente na URSS [...] Sob a influência de elementos sionistas, a Real Faculdade de Psiquiatria
tem desempenhado um papel ativo na construção do sentimento anti-soviético.
Andropov descreveu com cuidado o empenho da Associação Psiquiátrica Mundial em denunciar a URSS e revelou um conhecimento bastante amplo de quais seminários internacionais
haviam condenado a psiquiatria soviética. Respondendo ao memorando, o Ministério da Saúde soviético propôs o lançamento de uma maciça campanha publicitária antes
do próximo congresso da associação. O ministério também propôs a preparação de documentos científicos para negar as acusações e a identificação de psiquiatras ocidentais
"progressistas"que os corroborassem. Por sua vez, esses "progressistas" seriam convidados a visitar a União Soviética, onde fariam visitas a hospitais especialmente
escolhidos. O ministério chegou até a sugerir o nome de alguns médicos.
Em outras palavras, em vez de deixar de usar a psiquiatria com finalidades políticas, Andropov se propunha a levar a história adiante. Não estava em sua natureza
admitir erros na política soviética.
27. A DÉCADA DE 1980: DERRUBANDO ESTÁTUAS
A base rachada da estátua está sendo destruída,
O aço da furadeira emite lamentos,
A mistura especial de cimento, mais dura,
Foi calculada para resistir a milênios [...]
Tudo que é feito pela mão do homem
Pode ser arruinado por ele.
Mas o mais importante é isto:
A pedra, na sua essência,
Jamais é boa ou má.
Aleksandr Tvardovsky, "A base rachada da estátua"
Quando Yuri Andropov assumiu o cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista Soviético, em 1982, seu "castigo" para os elementos anti-sociais da União Soviética
já estava bem avançado. Ao contrário dos antecessores, Andropov sempre acreditou que os dissidentes, apesar de serem poucos, deveriam ser tratados como uma ameaça
séria ao poder soviético. Gomo embaixador em Budapeste, em 1956, ele tinha visto como um movimento intelectual podia se transformar rapidamente numa revolta popular.
Também acreditava que grande parte dos problemas da União Soviética - políticos, econômicos, sociais - poderia ser resolvida com uma punição maior: campos e prisões
mais rigorosos, vigilância mais intensa e mais hostilidade.
Esses foram os métodos defendidos por Andropov como chefe da KGB de 1979 em diante, e esses foram os métodos que ele continuou seguindo durante o curto reinado como
líder da União Soviética. Graças a Andropov, a primeira metade da década de 1980 é lembrada como o período mais repressivo da história soviética pós-stalinista.
Era como se a pressão no interior do sistema tivesse de chegar ao ponto de saturação para ele sucumbir.
A partir do final de 1970, a KGB de Andropov fez um número imenso de prisões: sob sua direção, ativistas insubordinados recebiam freqüentemente novas sentenças quando
já estavam terminando de cumprir sentenças antigas, como aconteceu na época de Stalin. A associação a um dos grupos de monitoramento de Helsinki - organizações de
dissidentes que tentavam verificar se a União Soviética obedecia ao Tratado de Helsinki - tornou-se uma maneira fácil de acabar na prisão. Vinte e três membros do
grupo de Moscou foram presos entre 1977 e 1979 e sete foram expulsos do país. Yuri Orlov, líder do grupo de Helsinki em Moscou, ficou na prisão durante metade da
década de 1980.
Mas a prisão não era a única arma de Andropov. Como seu objetivo era, em primeiro lugar, impedir que as pessoas se juntassem aos movimentos dissidentes, a repressão
foi muito mais abrangente. Até os suspeitos de simpatizar com os movimentos religiosos, de direitos humanos ou nacionalistas podiam perder tudo. Os suspeitos e seus
cônjuges não eram apenas privados do emprego, mas também do status e das qualificações profissionais. Seus filhos perdiam o direito de freqüentar as universidades.
As linhas telefônicas eram cortadas, o visto de permanência, cancelado; as viagens, restritas.
No final dos anos 1970, a multifacetada "medida disciplinar" de Andropov tinha conseguido dividir o movimento dissidente e seus defensores estrangeiros em grupos
pequenos e sólidos, que muitas vezes suspeitavam uns dos outros. Havia ativistas de direitos humanos cujo destino era rigorosamente monitorado pela Anistia Internacional.
Havia dissidentes batistas, cuja causa era apoiada pela Igreja Batista internacional. Havia dissidentes nacionalistas - da Ucrânia, da Letônia, da Lituânia e da
Geórgia -, que eram apoiados pelos compatriotas no degredo. Os mesquetes e os tártaros da Criméia, deportados na época de Stalin, queriam o direito de voltar ao
país.
No Ocidente, talvez o grupo mais proeminente de dissidentes fosse o de refuseniks, judeus soviéticos cujo direito de emigrar para Israel fora recusado. Sob os holofotes
devido à emenda Jackson-Vanik, que, apresentada ao Congresso em 1975, condicionava o comércio entre os Estados Unidos e a União Soviética à questão da emigração,
os refuseniks continuaram sendo uma preocupação para Washington até o final da União Soviética. No outono de 1986, no encontro que teve com Gorbatchev em Reikjavik,
o presidente Reagan apresentou pessoal-mente ao líder soviético uma lista de 1.200 judeus soviéticos que desejavam emigrar.
Agora mantidos totalmente separados dos criminosos, todos esses grupos estavam bem representados nos campos e nas prisões soviéticas, onde se organizavam, como os
presos políticos do passado de acordo com as causas que tinham em comum. Pode-se até dizer que, nessa altura, os campos serviam como um centro de relacionamento,
quase uma escola de dissidentes, onde os prisioneiros políticos podiam encontrar pessoas com idéias semelhantes às suas. Às vezes, comemoravam os feriados nacionais
uns dos outros - lituanos e letões, georgianos e armênios - e discutiam com entusiasmo qual país seria o primeiro a se libertar da União Soviética. Os contatos
também passavam por várias gerações: bálticos e ucranianos tiveram a oportunidade de conhecer a geração anterior de nacionalistas, guerrilheiros anti-soviéticos
que receberam penas de 25 anos e nunca foram libertados. Sobre os últimos, Bukovsky escreveu que como "a vida deles tinha parado quando tinham cerca de vinte anos",
os campos de alguma maneira os preservaram. "Nos domingos ensolarados, eles ficavam ao sol com os acordeões e tocavam canções havia muito esquecidas em sua terra
natal. Na verdade, viver nos campos era como ter entrado em um lugar além da morte."
Muitas vezes, a geração mais velha tinha problemas para compreender os compatriotas mais jovens. Homens e mulheres que lutaram com armas na floresta não entendiam
os dissidentes que lutavam com pedaços de papel. Mas os mais velhos ainda inspiravam os jovens com seu exemplo. Esses encontros ajudavam a formar as pessoas que,
no final da década, organizariam os movimentos nacionalistas que, por fim, ajudariam a destruir a União Soviética. Relembrando essa experiência, David Berdzenishvili,
um ativista da Geórgia, contou-me que se sentia feliz por ter passado dois anos num campo de trabalho, nos idos de 1980, em vez de ter passado dois anos no exército
soviético, na mesma época.
Se as redes de relações pessoais tinham se solidificado, o mesmo aconteceu com as ligações com o mundo exterior. Uma edição do Crônica de 1979 ilustra bem esse fato
ao contar, entre outras coisas, o dia-a-dia nas celas de Perm 36:
13 de setembro: Zhukauskas encontrou um bicho branco na sopa.
26 de setembro: Ele achou um inseto preto de 1,5 centímetro na tigela. Essa descoberta foi imediatamente relatada ao capitão Nelipovich.
27 de setembro: Como castigo, a temperatura da cela 6 ficou em 12 graus centígrados. Foram distribuídos cobertores e calças acolchoadas. As salas dos guardas de
plantão receberam aquecedores. De noite, a temperatura nas celas era de 11 graus.
1º de outubro: 11,5 graus.
2 de outubro: Colocaram um aquecedor de 500 watts na cela 6 (Zhukauskas, Gluzman, Marmus). De manhã e à tarde, a temperatura era de 12 graus. Pediram a Zhukauskas
para assinar um documento que declarava que a sua produção era dez vezes menor. Ele se recusou [...]
10 de outubro: Balkhanov se recusou a servir como voluntário num encontro da Comissão de Educação no campo. Sob ordens de Nikomarov, ele foi levado à força.
E assim por diante.
A direção parecia incapaz de impedir que esse tipo de informação vazasse - ou de impedir que aparecesse nas estações de rádio ocidentais transmitidas na URSS. A
prisão de Berdzenishvili, em 1983, foi anunciada pela BBC duas horas depois de ter ocorrido. Ratushinskaya e suas companheiras no campo feminino na Mordóvia enviaram
a Reagan uma mensagem de congratulação pela vitória nas eleições. E ele a recebeu em dois dias. A KGB, escreveu ela com alegria, estava "do lado deles".
Essa habilidade parecia um tanto irrelevante para os estrangeiros que observavam pelo espelho o estranho mundo da União Soviética. Para todos os efeitos práticos,
Andropov tinha ganhado o jogo. Uma década de hostilidades, confinamento e exílio reduziu e enfraqueceu o movimento dissidente. A maioria dos dissidentes conhecidos
foi silenciada: em meados dos anos 1980, Soljenitsin se exilou no exterior, e Sakharov foi para o exílio interno na cidade de Gorki. Os policiais da KGB se plantaram
diante da porta de Roy Medvedev, vigiando todos os seus movimentos. Na URSS, ninguém parecia notar essa luta. Em 1983, Peter Reddaway, na época o principal acadêmico
ocidental especializado na dissidência soviética, escreveu que os grupos dissidentes "tinham feito pouquíssimo progresso entre a massa de pessoas comuns no coração
da Rússia".
Os asseclas e os carcereiros, os médicos trapaceiros e a polícia secreta pareciam seguros em suas profissões. Mas o terreno em que pisavam era movediço. Como se
soube depois, a intolerância de Andropov pelos dissidentes estava com os dias contados. Quando ele morre, em 1984, a polícia morreu com ele.
Quando Mikhail Gorbatchev foi nomeado Secretário-Geral do Partido Comunista Soviético, em março de 1985, o caráter do novo líder soviético pareceu misterioso para
os estrangeiros e para seus compatriotas.
Ele parecia tão escorregadio e bajulador quanto os outros burocratas soviéticos, mas ainda assim havia sinais de algo diferente. No verão que se seguiu à sua nomeação,
encontrei-me com um grupo de refuseniks de Leningrado que riu muito da ingenuidade ocidental: como podíamos acreditar que a suposta preferência de Gorbatchev por
uísque - em vez de vodca - e a admiração de sua mulher por roupas ocidentais significassem que ele era mais liberal do que os antecessores?
Eles estavam errados: Gorbatchev era diferente. Na época, pouca gente sabia que ele vinha de uma família de "inimigos". Um de seus avós, camponês, tinha sido preso
e enviado a um campo de trabalho forçado em 1933. O outro avô fora preso em 1938 e torturado na prisão por um investigador que lhe quebrou os dois braços. O impacto
desses acontecimentos sobre o jovem Mikhail fora enorme, como ele mesmo escreveu: "Nossos vizinhos começaram a se afastar da nossa casa como se ela tivesse sido
atacada pela peste. Apenas à noite alguns parentes próximos se arriscavam a passar por lá. Até os garotos da vizinhança me evitavam [...] tudo isso foi um choque
muito grande para mim e permaneceu gravado na minha memória".
Entretanto, as suspeitas dos refuseniks não eram totalmente infundadas, pois os primeiros meses da era Gorbatchev foram decepcionantes. Ele se lançou numa campanha
contra o álcool que deixou as pessoas enfurecidas, pois destruiu as vinhas da Geórgia e da Moldávia e pode até mesmo ter provocado o desastre econômico que ocorreu
anos mais tarde: algumas pessoas acreditam que o colapso nas vendas de vodca destruiu o delicado equilíbrio financeiro para sempre. Apenas em abril de 1986, depois
da explosão da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, Gorbatchev mostrou-se preparado para realizar mudanças verdadeiras. Convencido de que a União Soviética precisava
ralar abertamente de seus problemas, ele apareceu com outra proposta de reforma: a glasnost, ou "abertura".
No início, a glasnost, assim como a campanha contra o álcool, era apenas uma política econômica. Aparentemente, Gorbatchev esperava que a discussão aberta das crises
econômica, ecológica e social da União Soviética conduzisse a resoluções rápidas, à reestruturação – a perestroika - sobre a qual tinha começado a falar nos discursos.
Num período surpreendentemente curto, no entanto, a glasnost considerava a história soviética.
Na verdade, ao descrever o que aconteceu com o debate público na União Soviética no final da década de 1980, as pessoas podem se sentir tentadas a usar metáforas
de inundação: foi como se uma barragem se rompesse, ou como se um dique explodisse, ou como se o encanamento de água estourasse. Em janeiro de 1987, Gorbatchev disse
a um grupo intrigado de jornalistas que as "lacunas" da história da União Soviética seriam preenchidas. Em novembro, tanta coisa tinha mudado que Gorbatchev se tornou
o segundo líder do Partido na história soviética a se referir abertamente às "lacunas" num discurso:
[...] a falta de democratização apropriada da sociedade soviética foi o que propiciou o culto à personalidade e as violações da lei, a arbitrariedade e a repressão
da década de 1930 - para ser claro, os crimes de abuso de poder. Milhares e milhares de membros do Partido e de pessoas comuns foram submetidos à repressão em massa.
Esta é, companheiros, a verdade dolorosa.
Gorbatchev foi menos eloqüente que Khrutchev, mas provavelmente teve um impacto muito maior sobre o público soviético. Afinal, o discurso de Khrutchev fora feito
num encontro reservado. Gorbatchev falara em cadeia nacional de televisão.
Gorbatchev também reforçou seu discurso com um entusiasmo que Khrutchev jamais teve. Na sua trilha, novas "revelações" começaram a aparecer na imprensa da União
Soviética todas as semanas. Finalmente a população soviética teve a oportunidade de ler Ossip Mandelstam e Joseph Brodsky, o Réquiem de Anna Akhmatova, Doutor Jivago,
de Boris Pasternak, e até mesmo Lolita, de Vladimir Nabokov. Depois de muita luta, a Novyi Mir, agora sob nova direção editorial, começou a publicar capítulos do
Arquipélago Gulag, de Soljenitsin. Um dia na vida de Ivan Denisovich logo venderia milhões de exemplares, e autores cujas obras tinham circulado apenas na samizdat,
se e que tinham, venderam centenas de milhares de exemplares de suas memórias do Gulag. Alguns se tornaram nomes familiares, como Evgenrya Ginzburg, Uev Razgon,
Anatolii Zhigulin, Varlam Chalamov, Dmitrii Likhachev e Anna Larina.
Entre 1964 e 1987, apenas 24 pessoas foram reabilitadas. Agora, graças em parte às revelações espontâneas da imprensa, o processo recomeçava. Desta vez, aqueles
que tinham sido esquecidos no passado foram incluídos: Bukharin, condenado juntamente com dezenove líderes bolcheviques nos processos de expurgo de 1938, foi o primeiro.
"Os fatos foram falsificados", anunciou solenemente um porta-voz do governo. A verdade então seria contada.
A nova literatura veio acompanhada de novas revelações dos arquivos soviéticos. E estas vieram por meio dos historiadores soviéticos que (segundo alegavam) tinham
compreendido os fatos, como também por meio da Memorial Sociedade. A Memorial Sociedade foi fundada por um grupo de historiadores jovens, que em alguns casos passaram
anos coletando os relatos orais dos sobreviventes dos campos. Entre eles estava Arseny Roginsky, fundador do jornal Pamyat (Memória), que primeiro começou a circular
na samizdat e, depois, no exterior, já no início da década de 1970. O grupo de Roginsky já tinha começado a compilar dados das pessoas que passaram pela repressão.
Mais tarde, a Memorial Sociedade iria também conduzir a luta para identificar os corpos queimados em sepulturas coletivas nos arredores de Moscou e de Ueningrado,
e a construir monumentos e memoriais à era de Stalin. Depois de uma breve e fracassada tentativa de se transformar em movimento político, a Memorial Sociedade acabou,
mas emergiu na década de 1990 como o mais importante centro de estudo da história soviética e de defesa dos direitos humanos da Federação Russa. Roginsky continuou
sendo seu líder e um de seus principais historiadores. As publicações da Memorial Sociedade logo se tornaram conhecidas entre os eruditos soviéticos espalhados pelo
mundo pela precisão, pela fidelidade aos fatos e pelos arquivos meticulosos e criteriosos.
Embora a mudança na qualidade do debate público tenha acontecido com uma rapidez surpreendente, a situação ainda não era tão clara como parecia aos que estavam de
fora. Ainda que estivesse introduzindo as mudanças que logo conduziriam ao colapso da União Soviética, apesar de a "gorbimania" ter tomado conta da Alemanha e dos
Estados Unidos, Gorbatchev - assim como Khrutchev - acreditava profundamente no regime soviético. Ele nunca teve a intenção de desafiar os princípios básicos do
marxismo soviético ou as conquistas de Lenin. Sua intenção sempre foi reformar e modernizar a União Soviética e não destruí-la. Talvez por causa da experiência familiar,
ele acreditava que era importante contar a verdade sobre o passado. E, de início, não pareceu enxergar a ligação entre o passado e o presente.
Por essa razão, a publicação de uma grande quantidade de artigos sobre os campos e as prisões stalinistas e sobre as execuções em massa do passado não foi de imediato
acompanhada pela libertação em massa dos dissidentes que continuavam presos. No final de 1986 - embora Gorbatchev estivesse se preparando para falar sobre as "lacunas",
embora a Memorial Sociedade tivesse começado a excitar a opinião pública para a construção de um monumento à repressão, embora o resto do inundo começasse a falar
com arrebatamento a respeito das novas lideranças da URSS -, a Anistia Internacional sabia o nome de seiscentos presos políticos que ainda estavam nos campos soviéticos
e suspeitava da existência de muitos outros.
Um deles era Anatoly Marchenko, que morreu durante uma greve de fome na prisão de Khristopol em dezembro daquele ano. Ao chegar à prisão, sua mulher, Larisa Bogoraz,
encontrou três soldados guardando o corpo do marido, que havia sido submetido a uma autópsia. Não lhe permitiram falar com ninguém na prisão - nem com médicos, nem
com outros prisioneiros, nem com os administradores -, a não ser com um agente da polícia, Churbanov, que a tratou rudemente. Ele se recusou a dizer-lhe como Marchenko
tinha morrido e não lhe entregou o atestado de óbito, um relatório médico nem mesmo as cartas e os diários do marido. Com um grupo de amigos e uma "escolta" de três
homens da prisão, ela enterrou Marchenko no cemitério da cidade:
Estava deserto e soprava um vento forte; não havia mais ninguém além de nós e da escolta de Tolya. Eles tinham à mão tudo o que era necessário, mas entenderam que
não iríamos permitir que se aproximassem da sepultura e ficaram de lado "até o final da operação", como um deles disse. Os amigos de Tolya disseram algumas palavras
de despedida. Então, começamos a encher a sepultura de terra, primeiro com as mãos e depois com as pás [...]
Colocamos no túmulo uma cruz de madeira - espero que tenha sido feita pelos outros prisioneiros. Na cruz, eu escrevi com caneta esferográfica "Anatoly Marchenko
23/1/1938-8/12/1986 [...]"
Embora a administração cercasse a morte de Marchenko de mistério, Bogoraz disse depois que eles não podiam esconder que "Anatoly Marchenko morreu lutando. Sua luta
tinha durado 25 anos, e ele nunca hasteou a bandeira branca da rendição".
Mas a morte trágica de Marchenko não foi totalmente em vão. Talvez estimulado pela onda de má publicidade deflagrada por essa morte - as declarações de Bogoraz foram
divulgadas no mundo todo -, Gorbatchev finalmente decidiu, no final de 1986, conceder o perdão a todos os prisioneiros políticos do país.
Houve muitas coisas estranhas na anistia que fechou as prisões políticas da União Soviética para sempre. Nada foi mais estranho, porém, do mie a pouca atenção que
ela atraiu. Afinal, esse era o fim do Gulag, o fim do sistema de campos que mobilizou milhões de pessoas. Era o triunfo dos movimentos de direitos humanos, que foram
o foco de tanta atenção diplomática durante as duas décadas anteriores. Era um momento real de transformação histórica. Mesmo assim, ninguém lhe deu atenção.
Às vezes os jornalistas sediados em Moscou escreviam um ou outro artigo; com uma ou duas exceções, poucas pessoas que escreveram livros sobre a era Gorbatchev e
Yeltsin mencionaram os últimos dias dos campos de concentração. Até mesmo os melhores entre os muitos escritores e jornalistas talentosos que viviam em Moscou no
final dos anos 1980 estavam mais preocupados com outros acontecimentos da época: as tentativas inábeis de reforma econômica, as primeiras eleições livres, a transformação
da política exterior, o fim do império soviético no Leste europeu, o fim da própria União Soviética. Distraídos por essas mesmas questões, ninguém na Rússia deu
atenção ao caso. Dissidentes cujos nomes foram famosos na clandestinidade voltaram - e descobriram que não eram mais famosos. Estavam velhos e fora de sintonia com
os tempos. Nas palavras de um jornalista ocidental que estava na Rússia na época, eles tinham "construído sua carreira em segredo, datilografando petições em velhas
máquinas de escrever, desafiando as autoridades enquanto tomavam um chá absurdamente doce, vestidos com roupões. Não estavam mais preparados para as batalhas no
parlamento ou na TV e pareciam muito confusos ao ver como o país havia mudado enquanto estiveram fora".
A maior parte dos ex-dissidentes que permaneceram sob o olhar do público não se preocupava mais com o destino dos campos de concentração remanescentes. Andrei Sakharov,
libertado do exílio interno em dezembro de 1986, eleito para o Congresso dos Deputados do Povo em 1989, logo começou a incitar a opinião pública pela reforma das
leis de propriedade. Dois anos depois de sua libertação, o armênio Levon Ter-Petrossian foi eleito presidente de seu país. Uma multidão de ucranianos e bálticos
saiu dos campos de Perm e da Mordóvia direto para a babel política de seus respectivos países, exigindo ruidosamente a independência.
A KGB percebeu que as prisões políticas estavam sendo fechadas, é claro, mas tampouco parecia capaz de entender o que isso significava. Lendo-se os documentos oficiais
disponíveis da segunda metade da década de 1980, é chocante perceber como a linguagem da polícia secreta quase não mudou. Em fevereiro de 1986, Viktor Chebrikov,
então chefe da KGB, disse orgulhosamente a um Congresso do Partido que a KGB tinha realizado uma importante operação de contra-espionagem. Ele afirmou que isso fora
necessário porque "o Ocidente espalha mentiras sobre a violação dos direitos humanos para disseminar aspirações anti-soviéticas entre os renegados".
Mais tarde, nesse mesmo ano, Chebrikov enviou ao Comitê Central um relatório em que descrevia a luta ininterrupta de seu órgão contra as "atividades das agências
de espionagem imperialistas e contra os inimigos soviéticos ligados a elas". Ele também se vangloriou de que a KGB tinha efetivamente "paralisado" as atividades
de vários grupos, entre eles os comitês de monitoramento Helsinki, e que no período de 1982 a 1986 tinha forçado "mais de cem pessoas a abandonar as atividades ilegais
e a retornar ao caminho da justiça". Algumas dessas pessoas - ele deu o nome de nove - tinham até feito "declarações públicas, na televisão e nos jornais, desmascarando
os espiões ocidentais e aqueles que pensam como eles".
No entanto, algumas frases adiante, Chebrikov reconheceu que as coisas haviam mudado. Mas é preciso ler com muita atenção para entender como a mudança foi de fato
surpreendente: "As condições atuais de democratização de todos os aspectos da sociedade e o fortalecimento da unidade do Partido e da sociedade possibilitaram que
a questão da anistia fosse reconsiderada".
Na verdade, ele quis dizer que os dissidentes estavam tão enfraquecidos que não podiam mais fazer nenhum mal - e que, de qualquer maneira, eles seriam observados,
como disse numa reunião anterior do Politburo, "para se ter certeza de que não continuariam com as atividades hostis". Numa declaração separada, ele acrescentou,
quase como uma reflexão tardia, que, pelos cálculos da KGB, 96 pessoas eram desnecessariamente mantidas em hospitais psiquiátricos especiais. Sugeriu que aquelas
que "não representassem perigo para a sociedade" fossem também libertadas. O Comitê Central concordou e, em fevereiro de 1987, perdoou duzentos prisioneiros condenados
pelo Artigo 70 ou pelo Artigo 190-1. Alguns meses depois, para comemorar o Milênio do Cristianismo Russo, mais prisioneiros foram libertados dos campos. Mais de
2 mil pessoas (com certeza, um número bem maior que 96) seriam libertadas de hospitais psiquiátricos nos dois anos seguintes.
Mesmo então - fosse por estar desacostumado, fosse porque via o próprio poder diminuir com a população de prisioneiros -, a KGB parecia relutante em libertar os
presos políticos. Como foram formalmente perdoados, e não anistiados, os prisioneiros políticos libertados em 1986 e 1987 foram os primeiros convidados a assinar
um documento comprometendo-se a se desligar das atividades anti-soviéticas. Muitos tiveram permissão para criar as próprias desculpas, evasivas: "Devido ao agravamento
de uma doença, não me engajarei mais em atividades anti-soviéticas" ou "Nunca fui anti-soviético; eu era anticomunista, e não existem leis que proíbam o anticomunismo".
O dissidente Lev Timofeev escreveu: "Pedi para ser libertado. Não pretendo prejudicar o Estado soviético, não que eu tenha tido algum dia essa intenção".
A outras pessoas, contudo, solicitaram uma vez mais que renunciassem às suas crenças ou ordenaram que emigrassem. Um prisioneiro ucraniano foi libertado mas enviado
diretamente ao degredo, onde tinha de obedecer ao toque de recolher e apresentar-se a um posto policial uma vez por semana. Um dissidente da Geórgia permaneceu
mais seis meses num campo apenas porque havia se recusado a assinar qualquer coisa que a KGB inventasse. Outro recusou-se a pedir formalmente que fosse perdoado
"pelo motivo de não ter cometido nenhum crime".
A situação de Bohdan Klymchak, um técnico da Ucrânia preso por tentar sair da URSS, era sintomática dessa época. Em 1978, com medo de ser preso sob a acusação de
nacionalismo ucraniano, ele cruzou a fronteira soviética com o Irã e pediu asilo político. Os iranianos o mandaram de volta. Em abril de 1990, ele ainda continuava
numa prisão política em Perm. Um grupo de congressistas americanos conseguiu visitá-lo e descobriu que as condições na prisão de Perm não tinham mudado. Os prisioneiros
ainda reclamavam do frio extremo e ainda eram colocados nas solitárias por crimes como a recusa a abotoar os botões superiores do uniforme.
Todavia, rangendo e chiando, gemendo e se queixando, o regime repressivo capengava - como de resto, todo o sistema. Na verdade, quando todos os campos políticos
de Perm foram finalmente fechados para sempre, em fevereiro de 1992, a União Soviética não mais existia. Todas as antigas repúblicas se tornaram países independentes.
Algumas - Armênia, Ucrânia, Lituânia - eram dirigidas por ex-prisioneiros. Outras eram dirigidas por ex-comunistas cujas crenças tinham desmoronado na década de
1980, quando viram pela primeira vez as provas do terror do passado. A KGB e o MVD, ainda que não tenham sido desmantelados, foram substituídos por outros órgãos.
Os agentes da polícia secreta começaram a procurar emprego no setor privado. Os carcereiros se arrependeram e transferiram-se discretamente para os governos locais.
O novo parlamento russo aprovou, em novembro de 1991, uma Declaração de Direitos e Liberdades do Indivíduo, garantindo, entre outras coisas, liberdade para viajar,
liberdade de religião e liberdade de divergir do governo. Infelizmente, a nova Rússia não eslava destinada a se tornar um paradigma de tolerância étnica, religiosa
e política, mas essa já é uma outra história.
As mudanças aconteceram com uma velocidade estonteante e ninguém pareceu mais desnorteado por ela do que o homem que deu início à desintegração da União Soviética.
Foi essa, afinal, a maior cegueira de Gorbatchev: Khrutchev sabia, Brejnev sabia, mas Gorbatchev, neto dos "inimigos" e criador da glasnost, não percebeu que uma
discussão ampla e honesta sobre o passado soviético acabaria por corroer a legitimidade do governo. "Agora percebemos nosso objetivo de forma mais clara", ele disse
na véspera do ano-novo, em 1989. "É um socialismo democrático e humano, uma sociedade com liberdade e justiça social." Gorbatchev não foi capaz de entender, mesmo
então, que o "socialismo" soviético estava prestes a desaparecer.
Ele também não enxergou, anos depois, a ligação entre as revelações da imprensa durante a glasnost e o colapso do comunismo soviético. Gorbatchev simplesmente não
percebeu que, uma vez que a verdade sobre o passado stalinista fosse contada, seria impossível sustentar o mito da grandeza soviética. Ambos trouxeram muita crueldade,
muito derramamento de sangue e muitas mentiras.
Mas se Gorbatchev não entendeu o próprio país, muitas outras pessoas entenderam. Vinte anos antes, o editor de Soljenitsin, Aleksandr Tvardovsky, sentia a força
do passado oculto, sabia o que a memória poderia causar ao sistema soviético. Ele expressou seus sentimentos num poema:
Estão errados se pensam que a memória
Não tem grande valor
Ou que as ervas daninhas do tempo apagam
Acontecimentos ou dores do passado.
O planeta gira sem parar,
Contando os dias e os anos [...]
Não. O dever ordena que agora
Tudo que não se disse seja dito totalmente [...].
Epílogo
Memória
E os assassinos? Os assassinos vivem [...]
Lev Razgon, Nepridumannoe, 1989.
No começo do outono de 1989, viajei de barco, pelo mar Branco, da cidade de Arcangel às ilhas Solovetsky. Era o último cruzeiro do verão; em meados de setembro,
quando as noites do Ártico começam a ficar mais longas, os navios param de fazer essa travessia. O mar se torna muito bravio e as águas ficam geladas demais para
que se exponham os turistas a uma viagem noturna.
Talvez o fato de se saber que era o final da estação tenha dado urna certa excitação à viagem. Ou talvez os passageiros estivessem excitados apenas por estarem em
alto-mar. Fosse qual fosse a razão, o restaurante do navio era um burburinho só: os brindes se repetiam, as piadas também, e muitos, muitos aplausos ao capitão.
Os dois casais de meia-idade com quem eu partilhava a mesa pareciam dispostos a se divertir.
No início do jantar, minha presença lhes deu mais alegria. Afinal, não era todo dia que encontravam uma americana num barco em pleno mar Branco, e isso os divertia.
Queriam saber por que eu falava russo, o que pensava sobre a Rússia, quais eram as diferenças em relação aos Estados Unidos. Quando lhes contei o que fazia na Rússia,
a alegria deles diminuiu. Uma coisa era ter uma americana num cruzeiro para visitar as ilhas Solovetsky e conhecer a beleza do antigo mosteiro. Outra coisa muito
diferente era essa americana visitar as ilhas Solovetsky para conhecer o que havia sobrado do campo de concentração.
Um dos homens reagiu com hostilidade e perguntou: "Por que os estrangeiros se preocupam apenas com as coisas feias da nossa história? Por que escrever sobre o Gulag?
Por que não escreve sobre as nossas realizações? Fomos o primeiro país a enviar um homem ao espaço!". Com esse "nós", ele queria dizer "nós, soviéticos". A União
Soviética já não existia havia sete anos, mas ele ainda se identificava como um cidadão soviético, e não como um cidadão russo.
A esposa dele também me atacou. "O Gulag não é mais importante. Temos outros problemas agora, como o desemprego, o crime. Por que não escreve sobre nossos problemas
reais, em vez de escrever sobre coisas que aconteceram há tanto tempo?"
Enquanto essa conversa desagradável se desenrolava, o outro casal permaneceu em silêncio, e o homem não deu sua opinião sobre o passado soviético. Mas, a certa altura,
sua esposa se manifestou: "Eu entendo por que você quer conhecer os campos. É interessante saber o que aconteceu. Eu gostaria de saber mais".
Nas viagens seguintes que fiz pela Rússia, deparei com essas atitudes muitas outras vezes. "Não é da sua conta" e "Esse assunto não é importante" eram reações comuns.
O silêncio - ou a ausência de opinião - talvez tenha sido a reação mais freqüente. Mas algumas pessoas também entendiam por que era importante conhecer o passado
e desejavam me ajudar a obter mais informações.
Na verdade, com um pouco de esforço, pode-se aprender muitas coisas sobre o passado na Rússia contemporânea. Nem todos os arquivos russos estão fechados, nem todos
os historiadores russos têm outras preocupações: este livro é uma prova da abundância de informações disponíveis. A história do Gulag também se tornou parte das
discussões públicas em algumas ex-repúblicas e ex-estados satélites soviéticos. Em algumas nações - geralmente, naquelas que se vêem como vítimas em vez de agentes
do terror -, os memoriais e as discussões são muito proeminentes. Os lituanos converteram as antigas sedes da KGB em Vilna em um museu das vítimas do genocídio.
Os letões transformaram um velho museu soviético, antigamente dedicado aos "exímios atiradores vermelhos da Letônia", num museu sobre a ocupação do país.
Em fevereiro de 2002, participei da abertura de um novo museu húngaro, localizado num prédio que foi sede do movimento fascis a entre 1940 e 1945 e também quartel-general
da polícia secreta comunista húngara entre 1945 e 1956. Na primeira sala de exibição, um painel de televisores transmitia propaganda fascista. Na outra parede, outro
painel de televisores transmitia propaganda comunista. O efeito era imediato e emocionante, como se pretendia, e o restante do museu seguia essa tendência. Por meio
de fotografias, vídeos, áudios e pouquíssimas palavras, os organizadores do museu pretendem atingir quem é jovem demais para se lembrar dos dois regimes.
Na Belarus, ao contrário, a falta de um monumento se tornou o maior problema político: no verão de 2002, o ditador Aleksandr Lukashenka continuava anunciando publicamente
sua intenção de construir uma rodovia sobre o local em que ocorreu uma execução em massa, nos arredores de Minsk, a capital, em 1937. Sua retórica inflamou a oposição
e gerou uma discussão maior sobre o passado.
Um punhado de monumentos informais, semi-oficiais e privados, erguidos por diversas pessoas e organizações estão espalhados pela Rússia. As sedes da Memorial Sociedade
em Moscou contêm um arquivo de memórias orais e escritas, assim como um pequeno museu que abriga, entre outras coisas, uma importante coleção de arte dos prisioneiros.
O Museu Andrei Sakharov, também em Moscou, faz exposições e mostras sobre a era stalinista. Nos arredores de muitas cidades - Moscou, São Petersburgo, Tomsk, Kiev,
Petrozavodsk -, as sedes locais da Memorial Sociedade e de outras instituições ergueram monumentos para marcar os locais de sepultamento em massa, os locais das
execuções em massa de 1937 e 1938.
Existem também esforços maiores. O círculo de minas de carvão em torno de Vorkuta, todas elas antigos lagpunkts, é pontilhado de cruzes, estátuas e outros monumentos
erguidos para as vítimas lituanas, polonesas e alemãs dos campos de Vorkuta. O museu histórico da cidade de Magadan possui diversas salas consagradas à história
do Gulag, inclusive um posto de observação de um campo; no mirante da cidade, um escultor russo bem conhecido construiu um monumento para os mortos de Kolyma, com
símbolos das crenças que eles praticavam. Uma sala dentro dos muros do mosteiro de Solovetsky, que agora é um museu, mostra cartas, fotografias dos prisioneiros
e recortes dos arquivos; do lado de fora plantaram-se árvores em homenagem aos mortos.
No centro de Syktyvkar, a capital da República Komi, a administração e a sede local da Memorial Sociedade construíram uma pequena cape-la, em cujo interior foram
listados o nome de alguns prisioneiros, deliberadamente escolhidos para ilustrar as muitas nacionalidades presentes no Gulag: lituanos, coreanos, judeus, chineses,
espanhóis.
Monumentos individuais estranhos e assombrosos às vezes são encontrados em lugares inusitados. Uma cruz de ferro foi fincada numa colina árida nos arredores da cidade
de Ukhta, o antigo quartel-general de Ukhtpechlag, em lembrança à execução em massa dos prisioneiros. Para vê-la, tive de seguir de carro por uma estrada cheia de
lama e quase intransitável, passar por um lugar em obras e subir por um difícil trilho de estrada de ferro. Mesmo assim, estava muito distante para poder ler a sua
inscrição. Mas os ativistas locais, que colocaram a cruz ali, sorriem orgulhosos.
Algumas horas ao norte de Petrozavodsk, outro monumento especial foi construído nos arredores do vilarejo de Sandormokh Nesse caso, talvez "monumento" não seja a
palavra apropriada. Embora exista uma placa comemorativa, como também várias cruzes de pedra erguidas pelos poloneses, alemães e outros, Sandormokh - onde os prisioneiros
das ilhas Solovetsky foram mortos em 1937, entre eles o padre Pavel Florensky - é notável pelas cruzes artesanais estranhamente comoventes e pelos monumentos pessoais.
Como não existem registros indicando quem está enterrado onde, cada família escolheu ao acaso, uma pilha de ossos para homenagear. Os parentes das vítimas afixaram
fotografias dos mortos em estacas de madeira, e alguns gravaram epitáfios nas laterais. Fitas, flores de plástico e outros objetos se espalham pela mata que cresceu
nesse campo de morte. No dia ensolarado de agosto em que visitei o local - era o aniversário da matança e uma delegação tinha vindo de São Petersburgo -, uma senhora
idosa falou sobre seus pais, ambos enterrados ali, ambos mortos quando ela tinha sete anos. Uma vida toda tinha se passado até que ela pudesse visitar seu túmulo.
Um projeto maior foi concebido nos arredores da cidade de Perm. No local do Perra 36, primeiro um lagpunkt da era stalinista, depois um dos campos políticos mais
sombrios das décadas de 1970 e 1980, um grupo de historiadores construiu um museu em tamanho natural, o único localizado dentro dos alojamentos de um campo de trabalho
forçado. Com recursos próprios, os historiadores reconstruíram o campo, os alojamentos, as paredes, as cercas de arame farpado etc. Para bancar o projeto, eles chegaram
até a criar um pequeno comércio de madeira, usando as máquinas enferrujadas e abandonadas do campo. Mesmo sem receber muito apoio do governo local, atraíram fundos
da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Ambiciosos, eles agora esperam restaurar o conjunto de 25 prédios e usar quatro deles para abrigar um grande Museu da Repressão.
E ainda assim, na Rússia, um país acostumado a memoriais de guerra grandiosos e funerais estatais grandes e solenes, esses esforços localizados e privados parecem
insuficientes e imperfeitos. E provável que a grande maioria dos russos nem tenha consciência disso. E é natural: dez anos depois do colapso da União Soviética,
a Rússia, país que herdou as políticas externa e diplomática da União Soviética, suas embaixadas, suas dívidas e sua cadeira nas Nações Unidas, continua a agir como
se não tivesse herdado a história da União Soviética. A Rússia não tem um museu nacional dedicado à história da repressão. Nem tem um local nacional de luto, um
monumento que oficialmente reconheça o sofrimento das vítimas e de suas famílias. Ao longo da década de 1980, houve concorrências para projetar esse monumento, mas
elas deram em nada. A Memorial Sociedade conseguiu apenas trazer urna pedra das ilhas Solovetsky - onde o Gulag começou - e colocá-la no centro da praça Dzerzhinsky,
em frente a Lubyanka.
Mais espantosa que a falta de monumentos, porém, é a falta de consciência pública. Às vezes, é como se toda a emoção e a paixão provocadas pelas abrangentes discussões
de Gorbatchev simplesmente tivessem desaparecido junto com a própria União Soviética. Os debates dolorosos sobre justiça para as vítimas desapareceram também de
forma abrupta. Embora muito se tenha falado sobre o assunto no final da década de 1980, o governo russo nunca investigou os torturadores ou os assassinos, nem mesmo
aqueles que podiam ser identificados. No início da década de 1990, um dos homens que executaram o massacre dos oficiais da Polônia em Katyn ainda estava vivo. Antes
de sua morte, a KGB entrevistou-o e pediu-lhe que explicasse - do ponto de vista técnico - como os homicídios foram cometidos. Gomo um gesto de boa vontade, uma
gravação da conversa foi entregue ao adido cultural polonês em Moscou. Ninguém sugeriu nem uma única vez que o homem fosse levado a julgamento em Moscou, em Varsóvia
ou em qualquer outro lugar.
E verdade, naturalmente, que os julgamentos podem não ser a melhor maneira de acertar as contas com o passado. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial,
a Alemanha Ocidental levou 8.500 nazistas a julgamento, mas conseguiu menos de 7 mil condenações. Os tribunais são sabidamente corruptos e facilmente dominados por
disputas pessoais e ciúmes. O Julgamento de Nuremberg foi um exemplo de "justiça do vencedor" prejudicada por uma legalidade duvidosa e por excentricidades, como
presença de juizes soviéticos, que sabiam muito bem que o seu próprio lado era também responsável por homicídios em massa.
Mas existem outros métodos de se fazer justiça pública aos crimes do passado. Existem comissões da verdade, por exemplo, como a que foi realizada na África do Sul,
que permitem que as vítimas contem sua história num lugar público, oficial, e tornem os crimes do passado parte de um debate público. Existem investigações oficiais,
como o inquérito realizado em 2002 pelo Parlamento britânico sobre o massacre do Domingo Sangrento na Irlanda do Norte, que acontecera trinta anos antes. Existem
inquéritos governamentais, comissões governamentais, pedidos de desculpa públicos... Mesmo assim, o governo russo nunca considerou nenhuma dessas alternativas. Além
do "julga-mento" breve e inconclusivo do Partido Comunista, não houve nenhuma sessão pública para que a verdade fosse contada, nenhuma audiência parlamentar, nenhuma
investigação oficial sobre os assassinatos sobre os massacres ou sobre os campos de trabalho da União Soviética.
Resultado: meio século depois do fim da guerra, os alemães ainda discutem a compensação das vítimas, os memoriais, as novas interpretações da história do nazismo,
e até mesmo se a nova geração de alemães deveria assumir a responsabilidade pelos crimes nazistas. Meio século depois da morte de Stalin, nada semelhante aconteceu
na Rússia, porque o passado não é mais uma parte viva do discurso público.
O processo de reabilitação continuou calmamente durante os anos 1990. No final de 2001, cerca de 4,5 milhões de prisioneiros políticos tinham sido reabilitados na
Rússia, e a comissão de reabilitação nacional reconheceu que ainda havia mais de meio milhão de casos para ser examinados. Naturalmente, aqueles que jamais foram
condenados - centenas de milhares, talvez milhões - serão dispensados do processo. A comissão, composta por sobreviventes dos campos e também por burocratas, é
séria e bem-intencionada, mas ninguém acredita de fato que os políticos que a criaram tenham sido motivados pelo impulso de buscar "a verdade e a reconciliação",
nas palavras da historiadora britânica Catherine Merridale. Sem dúvida, o objetivo era encerrar a discussão sobre o passado, apaziguar as vítimas, oferecendo-lhes
alguns rublos e passagem gratuita nos ônibus, e evitar uma investigação mais profunda das causas do stalinismo o de seu legado.
Existem algumas justificativas boas, ou pelo menos perdoáveis, para o silêncio público. A maioria dos russos passou todo o tempo lidando com a transformação completa
da economia e da sociedade. A era stalinista pertence ao passado distante, e muita coisa aconteceu desde então. A Rússia pós-comunista não é a Alemanha do pós-guerra,
em que as lembranças das piores atrocidades ainda estavam frescas na mente das pessoas. No início do século XXI, os acontecimentos da metade do século XX soam como
história antiga para grande parte da população.
Mais objetivamente, muitos russos também acham que já discutiram o passado e que o resultado disso foi pífio. Quando perguntamos a uma pessoa idosa porque o Gulag
é tão pouco mencionado atualmente, ela sempre evita falar sobre o caso: "Em 1990, esse era nosso único assunto, agora não precisamos mais falar sobre isso". Para
complicar ainda mais as coisas, muita gente confunde o Gulag e a repressão stalinista com os "reformadores democráticos" que promoveram os primeiros debates sobre
o passado soviético. Gomo essa geração de líderes políticos é vista agora como fracassada - seu governo é lembrado pela corrupção e pelo caos -, toda conversa sobre
o Gulag é contaminada por associação.
A questão de lembrar ou comemorar a repressão política também é confusa - como observei na introdução deste livro - pela presença de tantas vítimas de tantas outras
tragédias soviéticas. Segundo Catherine Merridale: "Para complicar mais as coisas, um número muito grande de pessoas sofreu muitas vezes; elas podem facilmente se
descrever como veteranos de guerra, vítimas da repressão, filhos da repressão e até mesmo como sobreviventes da fome". Existem muitos monumentos em homenagem aos
mortos na guerra, alguns russos parecem pensar: isso não é suficiente?
Mas existem outras razões, menos perdoáveis, para o silêncio profundo. Muitos russos viveram o colapso da União Soviética como um golpe duro em seu orgulho pessoal.
Talvez o antigo sistema fosse ruim, pensam agora, mas pelo menos era forte. E como hoje não somos mais poderosos, não queremos ouvir que ele era ruim. É muito doloroso,
é como falar mal dos mortos.
Outras pessoas têm medo do que podem descobrir se pesquisarem o passado atentamente. Em 1998, a jornalista russo-americana Masha Gessen descreveu como era descobrir
que uma de suas avós, uma simpática senhora judia, fora censora, que alterava os relatórios dos correspondentes estrangeiros baseados em Moscou. Ela também descobriu
que a outra avó, também uma bondosa senhora judia, havia certa vez se candidatado a um emprego na polícia secreta. As duas fizeram essas escolhas por desespero.
Agora, escreveu Masha, ela sabe porque sua geração se absteve de condenar a geração de seus avós tão duramente: "Nós não os comprometemos, nós não os colocamos à
prova, nós não os julgamos [...] com perguntas desse gênero, todos correm o risco de trair alguém que ama".
Aleksandr Yakolev, dirigente da comissão russa de reabilitação, abordou esse problema de uma forma mais direta. Ele me disse: "A sociedade é indiferente aos crimes
do passado porque muitos participaram deles". O sistema soviético comprometeu milhões e milhões de cidadãos em muitas formas de colaboração. Embora muitas participações
tenham sido voluntárias, pessoas decentes também foram forçadas a fazer coisas horríveis. Elas, seus filhos e seus netos nem sempre querem se lembrar disso agora.
No entanto, a explicação mais importante para a falta de discussão não diz respeito ao medo da geração mais jovem ou ao complexo de inferioridade e ao sentimento
de culpa de seus pais. A questão mais importante é o poder e o prestígio daqueles que hoje governam não apenas a Rússia, mas também a maioria dos ex-Estados soviéticos
e dos Estados-satélites. Em dezembro de 2001, no décimo aniversário da dissolução da União Soviética, treze das quinze ex-repúblicas soviéticas eram administradas
por velhos comunistas, como também era o caso de muitos antigos estados-satélites, inclusive a Polônia, país que forneceu centenas de milhares de prisioneiros para
os campos de trabalho forçado e para o degredo na União Soviética. Mesmo nos países não administrados por descendentes ideológicos diretos do Partido Comunista,
ex-comunistas, seus discípulos e simpatizantes continuavam a freqüentar as elites intelectuais e empresariais e a mídia. O presidente da Rússia, Vladimir Putin,
era um antigo agente da KGB que orgulhosamente se identificava como "chekista". Antes, quando era primeiro-ministro, Putin fez questão de visitar a sede da KGB na
Lubyanka no aniversário da criação da Cheka e dedicou uma placa à memória de Yuri Andropov.
A predominância de ex-comunistas e as discussões insuficientes sobre o passado no mundo pós-comunista não é uma coincidência. Os ex-comunistas têm interesse em esconder
o passado, pois ele os mácula, os prejudica, fere suas afirmações de estarem realizando "reformas", mesmo quando nada têm a ver com os crimes do passado. Na Hungria,
o antigo Partido Comunista, cujo nome mudou para Partido Socialista, lutou muito contra a abertura do museu para as vítimas do terror. Em 2001, na Polônia, quando
o ex-Partido Comunista, agora chamado Partido Social-Democrata, foi eleito, imediatamente cortou a verba do Instituto Polonês da Memória Nacional, criado pelos
antecessores de centro-direita. Muitas, muitas desculpas foram dadas para o fato de a Rússia não ter construído um monumento nacional para seus milhões de vítimas,
mas Aleksandr Yakovlev me deu a explicação mais concisa. Ele disse: "O monumento será construído quando nós, da geração mais velha, tivermos morrido".
Ou seja, o fato de não reconhecer, não lamentar, não discutir o passado comunista pesa como uma pedra sobre muitas nações da Europa pós-comunista. Boatos sobre o
conteúdo dos velhos "arquivos secretos" continuam atrapalhando os políticos atuais e já desestabilizaram pelo menos um primeiro-ministro polonês e um húngaro. Acordos
feitos no passado entre os partidos comunistas ainda possuem ramificações no presente. Em muitos lugares, o aparato da polícia secreta - a estrutura, o equipamento,
os escritórios - não mudou. A descoberta casual de novos cemitérios clandestinos gerou muita controvérsia e raiva.
É sobre a Rússia que esse passado pesa de forma mais opressiva. O país herdou os arreios do poder soviético - e também seu poderio militar, seus objetivos imperialistas.
Como resultado, as conseqüências políticas da ausência de memória na Rússia têm sido muito mais prejudiciais do que em outros países ex-comunistas. Em nome da pátria
soviética, Stalin deportou a nação tchechena para os desertos do Casaquistão, onde metade deles morreu e o restante estava fadado a desaparecer, juntamente com sua
língua e sua cultura. Cinqüenta anos depois, repetindo o gesto, a Federação Russa destruiu Grosni, a capital da Tchechênia, e assassinou dezenas de milhares de civis
no decorrer de duas guerras. Se o povo e a elite russa se lembrassem - se lembrassem visceralmente, emocionadamente - do que Stalin fez aos tchechenos, não teriam
invadido a Tchechênia na década de 1990, não apenas uma, mas duas vezes. É como se a Alemanha do pós-guerra invadisse o oeste da Polônia. Na Rússia, poucos viam
as coisas dessa forma - uma prova de como conhecem mal a própria história.
Também houve conseqüências na formação da sociedade civil e no desenvolvimento dos preceitos legais. Falando de maneira mais objetiva, se os patifes do antigo regime
continuarem impunes, o bem jamais triunfará sobre o mal. A polícia não precisa prender todos os criminosos o tempo todo para que a maioria das pessoas se submeta
à ordem pública, mas precisa prender um bom número deles. Nada encoraja mais os fora-da-lei do que ver os vilões escaparem impunemente, preservarem as suas vantagens
e rirem das pessoas. A polícia secreta manteve os apartamentos, as dachas e os salários. Suas vítimas permaneceram pobres e marginais. Para a maioria do povo russo,
a impressão que ficou é a de que quanto mais uma pessoa colaborava no passado, melhor ela se saía. Por analogia, quanto mais a pessoa trapaceia e mente no presente,
melhor ela se dá.
No fundo, parte da ideologia do Gulag também sobrevive nas atitudes e na visão da nova elite russa. Certa vez, eu estava na casa de alguns amigos em Moscou e presenciei
uma conversa que costuma ocorrer a altas horas da noite, na mesa da cozinha. Num determinado ponto, já bastante tarde, dois dos participantes - empresários de sucesso
- começaram a discutir como o povo russo era estúpido e ingênuo! E como os dois eram mais inteligentes que o povo! O conceito stalinista de classificar a humanidade
em categorias, entre a elite todo-poderosa e os "inimigos" imprestáveis, sobrevive no desrespeito arrogante da nova elite russa pelos outros cidadãos. A menos que
essa elite reconheça o valor e a importância de todos os russos e respeite seus direitos civis e humanos, o país está fadado a se tornar o que hoje é a região norte
do Zaire, uma terra povoada por camponeses empobrecidos e políticos milionários que mantêm seus ativos nos cofres da Suíça e seus jatinhos particulares na pista
de pouso, com o motor ligado.
A falta de interesse pelo passado privou os russos de heróis e de vítimas. Os nomes daqueles que se opunham secretamente a Stalin -estudantes como Susanna Pechora,
Viktor Bulgakov e Anatolli Zhigulin; os líderes das rebeliões no Gulag; os dissidentes, de Sakharov a Bukovsky e a Orlov - deveria ser tão conhecido na Rússia como
são conhecidos na Alemanha os nomes dos que participaram de uma conspiração para matar Hitler. A literatura inacreditavelmente rica dos sobreviventes russos - histórias
de pessoas cuja humanidade triunfou sobre as tenebrosas condições dos campos de concentração soviéticos - deveria ser mais lida, mais conhecida, citada com mais
freqüência. Se os estudantes conhecessem mais esses heróis e sua história, teriam algo de que se orgulhar no passado da Rússia além dos triunfos militares e imperiais.
A falta de memória também traz conseqüências mais práticas e mundanas. Pode-se dizer, por exemplo, que o fato de a Rússia não ter investigado apropriadamente o passado
também explica sua insensibilidade diante de certo tipo de censura e da presença contínua e maciça da polícia secreta, agora chamada de Federalnaya Sluzhba Bezopasnosti,
ou FSB. Em geral, os russos não se preocupam com o fato de a FSB abrir a correspondência, grampear os telefones ou entrar nas casas sem uma ordem judicial. Também
não estão muito interessados, por exemplo, no longo processo a que a FSB submeteu Aleksandr Nikitin, um ecologista que escreveu sobre os prejuízos que a Frota do
Norte estava causando ao mar Báltico.
A insensibilidade em relação ao passado também ajuda a explicar a ausência de reforma judicial e carcerária. Em 1998, fiz uma visita à prisão da cidade de Arcangel.
Outrora uma das capitais do Gulag, Arcangel está no caminho de Solovetsky, Kotlas, Kargopollag e de outros complexos de campos do norte. A prisão da cidade, que
foi construída antes de Stalin, parecia não ter mudado em nada desde então. Cheguei lá na companhia de Galina Dudina, uma verdadeira raridade pós-soviética, defensora
dos direitos dos prisioneiros. Quando entramos no edifício de pedra, acompanhadas por um carcereiro calado, parecia que tínhamos voltado ao passado.
Os corredores eram estreitos e escuros, com paredes úmidas e pegajosas. Quando o guarda abriu a porta de uma cela masculina, vi de relance os corpos nus, cobertos
de tatuagens, esticados nos beliches. Ao perceber que os homens não estavam vestidos, o guarda fechou a porta, dando-lhes tempo de se arrumarem. Quando o guarda
voltou a abri-la, entrei no cômodo onde estavam cerca de vinte homens em fila, nem um pouco satisfeitos por terem sido interrompidos. Deram respostas monossilábicas
e guturais às perguntas feitas por Galina e, na maioria das vezes, fitavam o piso de cimento da cela. Estavam jogando baralho; o guarda nos tirou rapidamente dali.
Entramos numa cela feminina. No canto, havia um banheiro. Exceto por isso, o cenário parecia ter saído direto das páginas de um texto biográfico da década de 1930.
A roupa íntima estava pendurada numa corda no alto da cela; o ar era abafado e denso, quente e pesado com o cheiro de transpiração, comida estragada, umidade e dejetos
humanos. As mulheres, também seminuas, sentadas nos beliches em volta da cela, despejaram insultos sobre o guarda, queixaram-se e fizeram exigências aos gritos.
Tive a sensação de ter entrado na cela em que Olga Adarnova-Sliozberg esteve em 1938. Vou repetir a descrição que ela fez:
As paredes abobadadas pingavam. De ambos os lados, deixando apenas uma passagem estreita, havia pranchas baixas que serviam de camas e estavam apinhadas de corpos.
Por cima, em varais, secavam andrajos diversos. O ar se espessava com a fumaça nojenta de fumo forte e barato e se enchia com o alarido de bate-bocas, gritos e soluços.
Ao lado, a cela juvenil tinha poucas prisioneiras, com expressão ainda mais triste. Galina passou um lenço para uma garota de quinze anos que soluçava, acusada de
ter roubado, em rublos, o equivalente a 10 dólares. "Continue estudando álgebra; logo você estará fora daqui", Galina disse à garota. Pelo menos era isso que ela
esperava. Galina encontrou muita gente que estava presa havia meses sem julgamento, e aquela garota estava na prisão havia apenas uma semana.
Depois, conversamos com o chefe da prisão, que deu de ombros quando lhe perguntamos sobre a menina, sobre o prisioneiro que estava no corredor da morte havia anos
mesmo afirmando ser inocente sobre o ar fétido da prisão e sobre a falta de saneamento. Tudo dependia de dinheiro, ele respondeu. Não havia dinheiro suficiente.
Mal dava para pagar os guardas. A conta de luz estava atrasada, o que explicava os corredores escuros. Não havia dinheiro para consertos, nem para promotores, ou
juizes, ou julgamentos. Os prisioneiros tinham de esperar a sua vez, ele disse, até que o dinheiro começasse a chegar.
Ele não me convenceu. Dinheiro é um problema, mas não é tudo. Se as prisões da Rússia pareciam o cenário das memórias de Adamova-Sliozberg, se os tribunais e as
investigações criminais eram um blefe, isso se devia em parte ao fato de o legado soviético não pesar sobre os ombros daqueles que administravam o sistema judiciário
e criminal da Rússia. O passado não assombrava a polícia secreta, nem os juizes, nem os políticos, nem a elite empresarial da Rússia.
Mas poucas pessoas na Rússia contemporânea viam o passado como uma responsabilidade, uma obrigação. O passado era um pesadelo a ser esquecido ou um boato a ser ignorado.
Como uma caixa de Pandora fechada, ele permanece à espera das próximas gerações.
O fato de os ocidentais não compreenderem a magnitude do que aconteceu na União Soviética e na Europa central não tem, naturalmente, as mesmas implicações na nossa
vida. O fato de tolerarmos a "negação do Gulag" em nossas universidades não destruirá o tecido moral de nossa sociedade. Afinal, a Guerra Fria acabou e não sobrou
nenhuma força intelectual ou política importante nos partidos comunistas do Ocidente.
De qualquer forma, se não nos esforçarmos para nos lembrar, também seremos atingidos pelas conseqüências. Por um lado, nossa compreensão do que está acontecendo
agora na antiga União Soviética acabará deturpada pela má interpretação da história. Por outro, se soubéssemos de fato o que Stalin fez contra tchechenos e se acreditássemos
que foi um crime bárbaro, não apenas Vladimir Putin seria incapaz de repetir a mesma atrocidade agora, nós também seríamos incapazes de ficar observando com tranqüilidade.
Tampouco o colapso da União Soviética inspirou as forças ocidentais a se mobilizarem como no final da Segunda Guerra Mundial. Quando a Alemanha nazista finalmente
sucumbiu, o resto do Ocidente criou a Otan e a Comunidade Européia - em parte para impedir a Alemanha de desgarrar-se outra vez da "normalidade" civilizada. Só depois
do 11 de setembro de 2001 as nações do Ocidente começaram a repensar seriamente suas políticas de segurança pós-Guerra Fria, e, mesmo assim, existiam motivações
mais fortes do que a necessidade de trazer a Rússia de volta à civilização ocidental.
Mas, no final, as conseqüências na política externa não são as mais importantes. Pois, se esquecermos o Gulag, mais cedo ou mais tarde descobriremos que é difícil
entender também a nossa própria história. Afinal, por que travamos a Guerra Fria? Será que foi porque os enlouquecidos políticos de direita, mancomunados com o complexo
industrial-militar e com a CIA, inventaram toda essa história e forçaram duas gerações de americanos e de europeus ocidentais a concordar com ela? Ou alguma coisa
mais importante aconteceu? A confusão já é muito grande. Em 2002, um artigo da revista conservadora britânica Spectator opinou que a Guerra Fria foi "um dos mais
desnecessários conflitos de todos os tempos". O escritor americano Gore Vidal também descreveu as batalhas da Guerra Fria como "quarenta anos de uma guerra estúpida
que gerou um débito de 5 trilhões de dólares". Já estamos esquecendo o que nos mobilizou, o que nos inspirou, o que manteve a civilização ocidental unida por tanto
tempo: estamos esquecendo contra o que lutávamos. Se não nos esforçarmos para lembrar a história da outra metade do continente europeu, o Ocidente acabará por não
entender o próprio passado, por não saber como o nosso mundo se transformou no que é.
E não apenas o nosso passado; pois, se continuarmos esquecendo metade da história da Europa, nosso conhecimento sobre a humanidade será distorcido. Todas as tragédias
foram únicas: o Gulag, o Holocausto, o massacre americano, o massacre de Nanquim, a Revolução Cultural, a revolução do Camboja, as guerras da Bósnia, entre outras.
Todos esses acontecimentos tiveram uma origem histórica, filosófica e cultural diferente, todos surgiram de circunstâncias locais particulares que nunca se repetirão.
Apenas a nossa habilidade de degradar, e destruir, e desumanizar nossos semelhantes se repetiu - e ainda se repetirá - por muitas vezes: a transformação do nosso
próximo em "inimigo", a redução dos nossos oponentes a vermes ou pragas venenosas, a reinvenção das nossas vítimas em seres perversos, dignos apenas de prisão, expulsão
ou morte.
Quanto mais formos capazes de entender como as diferentes sociedades transformaram seu próximo e seu semelhante em objetos quanto mais conhecermos as circunstâncias
específicas que orientaram cada episódio de tortura e execução em massa, mais entenderemos o lado sombrio de nossa natureza humana. Este livro não foi escrito para
que "a história não se repita", como diz um velho clichê. Este livro foi escrito porque é quase certo que a história se repetirá. As filosofias totalitaristas tiveram,
e continuarão a ter, um grande apelo sobre milhões de pessoas. A destruição do "inimigo impessoal", como Hannah Arendt disse certa vez, continua sendo um objetivo
fundamental de muitas ditaduras. Precisamos saber por quê - e todas as histórias, todas as memórias, todos os documentos da história do Gulag são uma parte do quebra-cabeça,
uma parte da explicação. Sem eles, vamos acordar um dia e perceber que não sabemos quem somos.
Apêndice
Quantos?
Embora a União Soviética dispusesse de milhares de campos de concentração e embora milhões de pessoas tenham passado por eles, durante décadas, ninguém, a não ser
meia dúzia de burocratas, soube qual era o número de vítimas. Estimar esse número era um exercício de pura adivinhação enquanto a URSS ainda existia; hoje em dia,
o cálculo pode ser feito por suposição.
Durante o período de pura adivinhação, o debate ocidental em torno da estatística da repressão - da mesma forma que o debate ocidental sobre a história soviética
em geral - foi deturpado, dos anos de 1950 em diante, pelos políticos da Guerra Fria. Sem arquivos, os historiadores contavam alternadamente com as memórias dos
prisioneiros, as declarações dos dissidentes, os números do censo oficial, as estatísticas econômicas e até mesmo com detalhes menos importantes que de alguma forma
chegavam ao exterior, como o número de jornais distribuídos aos prisioneiros em 1931. Os que não gostavam da União Soviética tendiam a escolher as estimativas mais
altas. Os que não gostavam da atuação dos americanos ou dos ocidentais na Guerra Fria escolhiam as estimativas mais baixas. Os números variavam muito. No livro The
great terror [O grande terror], de 1968, na época um relato original e inovador dos expurgos soviéticos, o historiador Robert Conquest estimou que o Ministério do
Interior da antiga URSS - a NKDV - prendeu 7 milhões de pessoas em 1937 e 1938. Em Origins of the purges [Origens do expurgo], uma narrativa "revisionista" de 1985,
o historiador J. Arch Getty falava apenas em "milhares" de prisões nesses mesmos dois anos.
No entanto, a abertura dos arquivos soviéticos não satisfez a nenhuma das tendências. A princípio, os primeiros números liberados sobre os prisioneiros do Gulag
situavam-se exatamente entre as estimativas mais altas e as mais baixas. De acordo com documentos da NKDV amplamente divulgados, foram estes os números de prisioneiros
dos campos de trabalho forçado e das colônias do Gulag de 1930 a 1953, contados em 1º de janeiro de cada ano:
1930.........179.000 1942 .......1.777.043
1931.........212.000 1943 .......1.484.182
1932.........268.700 1944 .......1.179.819
1933.........334.300 1945 .......1.460.677
1934.........510.307 1946 .......1.703.095
1935.........965.742 1947 .......1.721.543
1936 .......1.296.494 1948 .......2.199.535
1937 .......1.196.369 1949 .......2.356.685
1938 .......1.881.570 1950 .......2.561.351
1939 .......1.672.438 1951 .......2.525.146
1940 .......1.659.992 1952 .......2.504.514
1941 .......1.929.729 1953.......2.468.5244
Esses números realmente refletem algumas circunstâncias que, por meio de fontes diversas, sabemos serem verdadeiras. A quantidade de detentos começa a aumentar no
final dos anos de 1930, à medida que a repressão aumentava. Cai um pouco durante a guerra, em razão do grande número de anistiados. Sobe em 1948, quando Stalin volta
a endurecer. Além disso, a maioria dos estudiosos que trabalhou nos arquivos concorda agora que esses números se baseiam em compilações genuínas de dados fornecidos
pelos campos à NKVD. Eles são compatíveis com dados oriundos de outros órgãos governamentais; condizem, por exemplo, com as informações utilizadas pelo Comissariado
do Povo de Finanças. Mesmo assim, não refletem necessariamente toda a verdade.
Para começar, a contagem anual é enganosa, pois mascara a alta rotatividade no sistema de campos. Em 1943, por exemplo, registrou-se que 2.421 milhões de prisioneiros
passaram pelo Gulag, embora os totais no começo e no final daquele ano mostrem um declínio de 1,5 para 1,2 milhão. Esse número inclui as transferências dentro do
sistema, mas mesmo assim indica um nível enorme de movimentação de prisioneiros que não se reflete no número total. Seguindo essa mesma linha, quase 1 milhão de
prisioneiros deixou os campos durante a guerra para se juntar ao Exército Vermelho, um fato que quase não se reflete nos dados gerais, uma vez que durante a guerra
também chegaram muitos prisioneiros. Outro exemplo: em 1947, 1.490.959 presos chegaram aos campos e 1.012.967 os deixaram, uma rotatividade enorme que também não
é registrada na tabela.
Os prisioneiros deixavam os campos porque morriam, porque fugiam, porque tinham sentenças curtas, porque tinham sido liberados para o Exército Vermelho ou porque
passavam a ocupar cargos administrativos. E, como já disse, freqüentemente os velhos, os doentes e as mulheres grávidas eram anistiados - mas a isso se seguiam,
invariavelmente, novas ondas de prisão. Essa grande e constante movimentação de prisioneiros significava que os números eram na verdade maiores do que pareciam ser
no início: por volta de 1940, 8 milhões de prisioneiros já tinham passado pelos campos. A única contagem completa que eu vi, feita a partir dos dados disponíveis
de entrada e de saída e da combinação de várias fontes, estima que 18 milhões de cidadãos soviéticos passaram pelos campos e pelas colônias entre 1929 e 1953. Esses
números também condizem com outros fornecidos pelos oficiais da segurança russa durante a década de 1990. De acordo com uma fonte, o próprio Khrutchev dizia que
17 milhões de pessoas haviam passado pelos campos de trabalho forçado entre 1937 e 1953.
Contudo, esses números também são enganosos. Como os leitores já sabem, nem todas as pessoas condenadas ao trabalho forçado na União Soviética cumpriam a sentença
num campo de concentração dirigido pelo Gulag. Por isso, os dados acima excluem as muitas centenas de milhares de pessoas que foram condenadas ao "trabalho forçado
sem prisão" por infrações no local de trabalho. Além disso, existiam pelo menos três outras categorias de presos destinados ao trabalho forçado: os prisioneiros
de guerra, os habitantes dos campos de triagem no pós-guerra e, acima de todos, os "degredados especiais": os kulaks deportados durante a coletivização, os poloneses,
os bálticos e outros deportados depois de 1939, e os caucasianos, os tártaros, os alemães do Volga e outras pessoas deportadas durante a guerra.
Os primeiros dois grupos são relativamente fáceis de computar: a partir de várias fontes confiáveis, sabemos que o número de prisioneiros de guerra excedia 4 milhões.
Também sabemos que entre 27 de dezembro de 1941 e 1º de outubro de 1944 a NKVD investigou 421.199 detidos nos campos de filtragem, e que em 10 de maio de 1945 mais
de 160 mil detidos ainda viviam neles, realizando trabalhos forçados. Em janeiro de 1946, a NKVD aboliu os campos e repatriou mais de 280 mil pessoas para a URSS
para uma investigação mais detalhada. Um total de cerca de 700 mil, portanto, parece uma boa suposição.
Os degredados especiais são, de certa forma, difíceis de computar, porque havia muitos grupos enviados a muitos lugares em muitas épocas por muitas razões. Na década
de 1920, vários antigos adversários dos bolcheviques - mencheviques, social-revolucionários e outros - foram degredados por decreto administrativo, o que significava
que, tecnicamente, não faziam parte do Gulag, mas com certeza tinham de ser punidos. No início da década de 1930, 2,1 milhões de kulaks foram degredados, se bem
que um número desconhecido, certamente centenas de milhares, foi enviado não para o Casaquistão ou para a Sibéria, mas para outras regiões de sua província natal
ou para terras áridas nos confins das fazendas coletivas: uma vez que muitos devem ter fugido, é difícil saber se foram incluídos na contagem ou não. Muito mais
clara é a situação dos grupos nacionais degredados durante a guerra e depois dela para as "aldeias de degredo". Igualmente clara, mas também mais fácil de ser esquecida,
é a situação de grupos estranhos corno o de 17 mil "ex-pessoas" expulsas de Leningrado depois do assassinato de Kirov. Havia também os alemães soviéticos que não
foram fisicamente deportados, mas cujas aldeias na Sibéria e na Ásia central foram transformadas em "colônias especiais" - o Gulag foi até eles -, além dos bebês
nascidos no degredo, que lambem contam como degredados.
Em conseqüência, aqueles que tentaram confrontar os muitos dados publicados sobre cada um desses diferentes grupos chegaram a números diferentes. No Ne po svoei
vole, publicado pela Memorial Sociedade em 2001, o historiador Pavel Polyan reuniu os números dos degredados especiais e chegou a 6.015 milhões. Por outro lado,
num levantamento em publicações arquivadas, Otto Pohl chegou a mais de 7 milhões de degredados especiais entre 1930 e 1948. Eis a sua contagem de pessoas em "colônias
especiais" depois da guerra:
Outubro de 1945........................2.230.500
Outubro de 1946........................2.463.940
Outubro de 1948........................2.104.571
1º de janeiro de 1949..................2.300.223
1º de janeiro de 1953..................2.753.356
Todavia, partindo do princípio de que a contagem menor satisfaria os mais exigentes, decidi ficar com os números de Polyan: 6 milhões de exilados. Somando todos
os resultados, o total de pessoas que realizaram trabalhos forçados na URSS chega a 28,7 milhões.
Sei que esse número não deixará todo mundo satisfeito. Alguns dirão que nem todas as pessoas presas ou deportadas contam como "vítimas", uma vez que muitos eram
criminosos ou tinham cometido crimes de guerra. E embora seja verdade que milhões desses prisioneiros cumprissem sentenças por crimes comuns, não acredito que a
maioria fosse "criminosa" no sentido normal da palavra. Uma mulher que pegou um pouco do que havia sobrado de uma colheita não é uma criminosa, nem um homem que
chegou três vezes atrasado ao trabalho, como foi o caso do general russo Alexander Lebed, condenado ao campo exatamente por essa razão. Da mesma forma, um prisioneiro
de guerra deliberadamente mantido num campo de trabalho forçado muitos anos depois da guerra também não é um prisioneiro legítimo. No final das contas, o número
de criminosos de carreira verdadeiros em qualquer campo era minúsculo - por isso prefiro não mexer nesses números.
Outras pessoas ficarão insatisfeitas com esses números por razões diversas. Enquanto escrevia este livro, muitas vezes me fizeram a mesma pergunta: dos 28,7 milhões
de prisioneiros, quantos morreram?
Essa resposta também é complicada. Até hoje não apareceu nenhuma estatística satisfatória para o Gulag ou para o sistema de degredo. Nos próximos anos poderão surgir
números mais confiáveis: pelo menos, um ex-oficial do MVD assumiu pessoalmente a tarefa de realizar um levantamento metódico nos arquivos, campo por campo e ano
por ano, para tentar compilar números autênticos. Talvez por motivos diferentes, a Memorial Sociedade, que já produziu o primeiro guia confiável sobre os números
dos campos, também se incumbiu da tarefa de calcular as vítimas da repressão.
Até que essas compilações apareçam, no entanto, temos de contar com o que temos: o índice de mortalidade no Gulag ano a ano, baseado nos arquivos do Departamento
de Registro de Prisioneiros. Esses números parecem excluir as mortes nas prisões e as mortes que ocorreram durante o traslado. Eles foram compilados a partir dos
registros totais da NKVD, e não a partir dos registros de cada campo, e não incluem os degredados especiais. Relutantemente, eu os registro aqui:
1930.......... 7.980 (4,2%) 1935.......31.636(2,75%)
1931.......... 7.283(2,9%) 1936.......24.993(2,11%)
1932.......13.197(4,81%) 1937......31.056(2,42%)
1933.......67.297(15,3%) 1938......108.654(5,35%)
1934....... 25.187 (4,28%) 1939..........44.750(3,1%)
1940........41.275(2,72%) 1947........66.830 (3,59%)
1941........115.484(6,1%) 1948........50.659(2,28%)
1942......352.560 (24,9%) 1949........29.350(1,21%)
1943......267.826 (22,4%) 1950........24.511(0,95%)
1944........114.481 (9,2%) 1951........22.466 (0,92%)
1945........81.917(5,95%) 1952........20.466(0,92%)
1946..........30.715(2,2%) 1953........9.628 (0,67%)
Como a estatística oficial dos prisioneiros, esses números mostram alguns padrões que podem ser reconhecidos em outros dados. O crescimento abrupto de 1933, por
exemplo, com certeza reflete o impacto da fome que também matou de 6 a 7 milhões de cidadãos soviéticos "livres". O aumento pequeno em 1938 reflete a execução em
massa que ocorreu em alguns campos naquele ano. O aumento no índice de mortalidade durante a guerra - quase um quarto dos prisioneiros em 1942 - também corresponde
às recordações e às memórias de pessoas que viveram nos campos nesse ano e reflete a grande escassez de alimento que assolou a URSS.
Se - e quando - esses números forem aprimorados, ainda será difícil responder à pergunta "Quantos morreram?". Na verdade, o número de mortes compilado pela direção
do Gulag jamais poderá ser considerado totalmente confiável. A cultura de inspeção e censura dos campos significava, entre outras coisas, que seus comandantes tinham
o direito de mentir sobre a quantidade de prisioneiros mortos: tanto os arquivos como as memórias indicam que, em muitos campos, era comum a prática de libertar
os prisioneiros que estavam prestes a morrer, diminuindo, desse modo, o índice de mortalidade. Embora os degredados se mudassem com menos freqüência e não fossem
libertados já perto da morte, a natureza do sistema de degredo - os prisioneiros viviam em aldeias remotas, distantes das autoridades regionais - também não permite
que se confie em seu índice de mortes.
No entanto, a pergunta deve ser feita com um pouco mais de cuidado. "Quantos morreram?" é, na verdade, uma pergunta imprecisa no caso da União Soviética, e quem
a fizer deve ter em mente o que real-mente deseja saber. Por exemplo, quer saber simplesmente quantas pessoas morreram nos campos do Gulag e nas aldeias de degredo
no período stalinista, de 1929 a 1953? Nesse caso, existe um número baseado nos arquivos, embora até mesmo os historiadores que o compilaram ressaltem que ele é
incompleto e não cobre todas as categorias de prisioneiros em todos os anos. Mais uma vez, vou citá-lo com relutância: 2.749.163.
Mesmo que fosse completo, esse número ainda não refletiria todas as vítimas do sistema judiciário stalinista. Como disse na introdução, na maioria das vezes a polícia
secreta soviética não utilizou os campos para matar as pessoas. Quando queria matar, ela realizava execuções em massa nas florestas; certamente, essas também são
vítimas da justiça soviética, e são muitas. Usando os arquivos, um pesquisador menciona o total de 786.098 execuções políticas entre 1934 e 1935. A maioria dos
historiadores considera esse número mais ou menos razoável, mas a pressa e o caos que acompanharam as execuções em massa também podem significar que jamais saberemos.
Mesmo assim, esse número - que, do meu ponto de vista, é preciso demais para ser confiável - ainda não inclui os que morreram nos trens a caminho dos campos; os
que morreram durante os interrogatórios; as pessoas cuja execução não foi considerada tecnicamente "política", mas que foram de qualquer forma executadas sob pretextos
artificiais; os mais de 20 mil oficiais poloneses que morreram no massacre de Katyn; e, acima de tudo, as pessoas que morreram poucos dias depois de terem sido libertadas.
Se o número que queremos é esse, então ele é muito maior, embora as estimativas possam variar bastante.
Mas nem sempre esses números proporcionam uma resposta para o que as pessoas querem realmente saber. Muitas vezes, quando me perguntam "Quantos morreram?", o que
querem saber é quantas pessoas morreram desnecessariamente em conseqüência da Revolução Bolchevique. Ou seja, quantos morreram vítimas do Terror Vermelho e da Guerra
Civil, da fome gerada pela política brutal de coletivização, das deportações em massa, das execuções em massa, dos campos da década de 1920, dos campos de 1960 a
1980 - e também dos campos e das execuções em massa do reinado de Stalin. Nesse caso, os números não são apenas muito maiores, mas são de fato uma questão de pura
conjectura. Os autores do Livro negro do comunismo falam em 20 milhões de mortes. Outros citam cerca de 10 ou 12 milhões.
Um simples número redondo de vítimas mortas seria extremamente satisfatório, em especial por que nos permitiria comparar Stalin com Hitler ou Mao. Entretanto, mesmo
que chegássemos a esse número, acredito que ele também não poderia contar toda a história de sofrimento. Nenhum dado oficial, por exemplo, pode retratar a mortalidade
das viúvas, dos filhos e dos pais idosos que ficaram para trás, uma vez que a morte deles não foi computada. Durante a guerra, os idosos morriam de fome sem os cartões
de racionamento; se o filho condenado não estivesse extraindo carvão em Vorkuta, eles poderiam ter continuado vivos. As crianças sucumbiam às epidemias de tifo e
sarampo nos orfanatos gelados e mal equipados; se as mães não estivessem costurando uniformes em Kengir, elas também poderiam ter sobrevivido.
E nenhum número é capaz de retratar o impacto cumulativo da repressão stalinista na vida e na saúde de todas as famílias. Um homem foi julgado e morto como "inimigo
do povo"; a mulher foi levada para um campo de concentração como "membro de uma família inimiga"-os filhos cresceram em orfanatos e se uniram a gangues de criminosos
a mãe morreu de desgosto e mágoa; os primos, as tias e os tios romperam relações com a família para que não fossem tidos como "corrompidos". Famílias separadas,
amizades desfeitas; o medo pesava muito sobre as pessoas, mesmo quando elas não morriam.
No final, estatística alguma poderá jamais descrever completamente o que aconteceu. Nem os documentos arquivados, nos quais este livro tanto se baseou. Todos os
que escreveram sobre o Gulag sabem que isso é verdade - razão pela qual escolhi um desses autores para dar a palavra final sobre "estatística", "arquivos" e "processo".
Em 1990, o escritor Lev Razgon obteve autorização para ver o próprio processo, uma série de documentos que descreviam sua prisão e a prisão de sua primeira mulher,
Oksana, como também a de diversos membros da família. Depois de lê-lo, escreveu um pequeno ensaio. Ele faz uma reflexão sobre o conteúdo desse processo; sobre a
falta de provas; sobre a natureza absurda das acusações; sobre a tragédia que se abateu sobre a mãe de sua mulher; sobre os motivos estúpidos do seu sogro, o chekista
Gleb Boky; sobre a estranha falta de arrependimento das pessoas que os destruíram. Mas o que mais me impressionou em sua experiência de pesquisar os arquivos foi
a ambivalência que demonstrou ao terminar a leitura:
Já fazia muito tempo que eu tinha parado de virar as páginas do processo e elas estavam do meu lado havia mais de uma ou duas horas, esfriando com os pensamentos.
Meu guarda [o arquivista da KGB] começa a pigarrear sugestivamente e a olhar para o relógio. é hora de ir. Entrego o processo, e ele é negligentemente jogado de
novo num saco plástico. Desço as escadas, passo pelos corredores vazios, pelas sentinelas que nem mesmo pedem para ver meus documentos, e chego à praça Lubyanka.
São apenas cinco horas da tarde, mas já está escurecendo, e uma chuva fina e silenciosa cai ininterruptamente. Fico na calçada sem saber o que fazer. Como é horrível
não acreditar em Deus e não poder ir a uma igrejinha e ficar lá, acolhido pelo calor das velas, olhando para Cristo na cruz; como é horrível não poder falar e fazer
as coisas que tornam a vida do crente mais suportável [...]
Tirei o chapéu e gotas de chuva ou lágrimas rolaram pelo meu rosto. Tenho 82 anos e aqui estou, vivendo tudo outra vez [...] Ouço a voz de Oksana e a de sua mãe
[...] Lembro-me delas, de cada uma. E se eu continuei vivo, essa é minha obrigação [...]
Notas
Mais detalhes sobre as memórias publicadas e não publicadas, artigos literários, referências, arquivos e entrevistas, citados nestas Notas de forma abreviada, podem
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ARQUIVOS
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APRF - Archive of the President of the Russian Federation [Arquivo da Presidência da Federação Russa], Moscou
GAOPDFRK - State Archive of Social-Political Movements and the Formation of the Republic of Karelia (former Communist Party archives), [Arquivo Estadual dos Movimentos
Sociopolíticos e de Formação da República da Carélia - Arquivos do Partido Comunista], Petrozavodsk
GARF - State Archive of the Russian Federation [Arquivo da Federação Russa], Moscou
Hoover - Hoover Institution on War, Revolution, and Peace [Instituto Hoover de Guerra, Revolução e Paz], Stanford, CA
IKM - Iskitim Local Lore Museum Collections [Coleção do Museu de Iskitim], Iskitim
Info-Russ - coleção de documentos de Vladimir Bukovsky [http://psi.ece.jhu.edu/~kaplan/IRUSS/BUK/GBARC/buk.html]
Karta - The Karta Society [Sociedade Karta], Varsóvia
Kedrovyi Shor - Archives of the Kedrovyi Shor lagpunkt [Arquivos do lagpunkt de Kedrovyi Shor], Intlag, coleção da autora
Komi Memorial - Archive of the Memorial Society [Arquivos da Sociedade Memorial], Sykryvkar
LOC - Library of Congress [Biblioteca do Congresso], Washington, D.C.
Memorial - Archive of the Memorial Society [Arquivos da Sociedade Memorial], Moscou
ML - Marylebone Library [Biblioteca de Marylebone], Amnesty International Documents Collection [Coleção de Documentos da Anistia Internacional], Londres
NARK. - National Archives of the Republic of Karelia [Arquivos da República da Carélia], Petrozavodsk
RGASPI - Russian State Archive of Social and Political History [Arquivos Estatais Russos de História Social e Política], Moscou
RGVA - Russian State Military Archive [Arquivo Estatal Militar Russo], Moscou
St. Petersburg Memorial - Archives of the Memorial Society [Arquivos da Sociedade Memorial], São Petersburgo
SKM - Solovetsky Local Lore Museum Collections [Coleção do Museu de Solovetsky], Solovetsky Islands
TsKhIDK - Center for Preservation of Historie Document Collections [Geritro de Preservação de Coleções de Documentos Históricos], Moscou
VKM - Vorkuta Local Lore Museum Collections [Coleção do Museu de Vorkuta], Vorkuta
ENTREVISTAS
Anônimo, ex-director do campo de órfãos (Moscou, 24 de julho, 2001)
Arma Andreevna (Moscou, 28 de maio, 1999)
Anton Antonov-Ovseenko (Moscou, 14 de novembro, 1998)
Irena Arginskaya (Moscou, 24 de maio, 1998)
Olga Astafyeva (Moscou, 14 de novembro, 1998)
David Berdzenishvili (Moscou, 2 de março, 1999)
Viktor Bulgakov (Moscou, 25 de maio, 1998)
Zhenya Fedorov (Elektrostal, 29 de maio, 1999)
Isaak Filshtinskii (Peredelkino, 30 de maio, 1998)
Lev Finkelstein (Londres, 28 de junho, 1997)
Lyudmila Khachatryan (Moscou, 23 de maio, 1998)
Marlen Korallov (Moscou, 13 de novembro, 1998)
Natasha Koroleva (Moscou, 25 de julho, 2001)
Paulina Myasnikova (Moscou, 29 de maio, 1998)
Pavel Negretov (Vorkuta, 15 de julho, 2001)
Susanna Pechora (Moscou, 24 de maio, 1998).
Ada Purizhinskaya (Moscou, 31 de maio, 1998)
Alia Shister (Moscou, 14 de novembro, 1998)
Leonid Sitko (Moscou, 31 de maio, 1998)
Galina Smirnova (Moscou, 30 de maio, 1998)
Leonid Trus (Novosibirsk, 28 de fevereiro, 1999)
Galina Usakova (Moscou, 23 de maio, 1998)
Olga Vasileevna (Moscou, 17 de novembro, 1998)
Simeon Vilensky (Moscou, 6 de março, 1999)
Danuta Waydenfeld (Londres, 22 de janeiro, 1998)
Stefan Waydenfeld (Londres, 22 de janeiro, 1998)
Maria Wyganowska (Londres, 22 de janeiro, 1998)
Valentina Yurganova (Iskitim, 1º de março, 1999)
Yuri Zorin (Arkhangelsk, 13 de setembro, 1998) Glossário
Glossário
A POLÍCIA POLÍTICA
Cheka Chrezvychainaya komissiya (Comissão Extraordinária): a polícia secreta durante a guerra civil.
GPU Gosudarstvennoepoliticheskoe (Agência Política do Estado): a polícia secreta que sucedeu à Tcheka no início dos anos 1920.
MGB/KGB Ministerstvo/Komitet gosudarstvennoi bezopasnosti (Ministério/Comitê de Segurança do Estado): a polícia secreta responsável pela segurança interna e externa
no pós-guerra.
MVD Ministerstvo vnutrennikh dei (Ministério de Assuntos Internos): a polícia secreta responsável pelas prisões e pelos campos de trabalho forçado no pós-guerra.
NKVD Narodnyi komissariat vnutrennikh dei (Comissariado do Povo de Assuntos Internos): a polícia secreta nos anos 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial, sucessora
da OGPU.
OGPU Obedinennoe gosudarstvennoipoliticheskoe upravlenie (Agência Política Unificada do Estado): polícia secreta no final dos anos 1920 e início da década de 1930,
sucessora da GPU.
Okhrana Polícia secreta da época czarista.
Palavras estrangeiras e instituições soviéticas
balanda a sopa da prisão.
banya sauna russa.
Barba Ruiva, Operação a invasão da União Soviética por Hitler, desfechada a 22 de junho de 1941.
beskonvoinyi o prisioneiro que podia circular entre as várias divisões do campo sem guarda armada.
besprizornyer os meninos de rua soviéticos. Em sua maioria, eram órfãos, resultado da guerra civil e da coletivização.
blatnoi slovo o jargão dos ladrões, (veja urka)
bolcheviques a facção radical do Partido Social Democrata dos Trabalhadores Russos, que, sob a liderança de Lenin, tornou-se o Partido Comunista da Russia, em 1918.
bushlat jaqueta de manga comprida com enchimento de algodão utilizada pelos prisioneiros e pelos operários.
Carélia a República Careliana, no extremo noroeste da União Soviética, na fronteira com a Finlândia.
chifir chá extremamente forte; tem efeito narcotizante.
coletivização política que vigorou entre 1929 e 1932 e que obrigava os camponeses a abandonar a agricultura privada e a formar cooperativas com as terras e outros
bens. A coletivização criou as condições que levaram à grande fome do período 1932-1934 e fragilizou para sempre a agricultura soviética.
Comintern a (Terceira) Internacional Comunista, organização dos partidos comunistas do mundo formada em 1919 sob a liderança do Partido Comunista Soviético. A União
Soviética encerrou-o em 1943.
Comissário do Povo chefe de um ministério.
Comitê Central o principal órgão formulador de políticas do Partido Comunista da União Soviética. Ele se reunia duas ou três vezes por ano, entre os congressos do
partido. Quando não estava em sessão, as decisões eram tomadas pelo Politburo, que, tecnicamente, era um órgão eleito pelo Comitê Central.
Conselho dos Comissários do Povo (ou Sovnarkom) em tese, o órgão que tomava as decisões, equivalente a um gabinete ministerial. Na prática, estava subordinado ao
Politburo.
dacha casa de verão.
Degelo breve período de reformas que se seguiu à morte de Stalin. Lançado por Nikita Khrutchev em discurso ao XX Congresso do Partido, em 1956, ele foi eficientemente
arquivado por seu sucessor, Leonid Brejnev, em 1964.
dezhurnaya ou dnevalnyi em linguagem comum, o zelador. Nos campos, homem ou mulher que passam o dia limpando os alojamentos e guardando-os contra roubos.
dokhodyaga alguém à beira da morte; comumente traduzido como "falecido".
Dom Svidanii literalmente, "Casa de Reuniões", local onde os prisioneiros podiam encontrar a família.
escorbuto doença causada pela desnutrição, pela falta de vitamina C. Entre outras coisas, provoca cegueira noturna e perda dos dentes.
étap transporte de prisioneiros.
feldsher assistente médico, às vezes formado, às vezes não.
glasnost literalmente, "abertura". Política de debate aberto e liberdade de expressão lançada por Mikhail Gorbatchev nos anos 1980.
Gulag - Glavnoe Upravlenie Lagerei (Administração Central dos Campos) divisão da polícia secreta que gerenciava os campos de concentração soviéticos.
Izvestiya o jornal do governo soviético.
katorga palavra czarista para designar "trabalho forçado". Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo soviético também adotou a palavra para descrever o regime
rígido dos campos para prisioneiros de guerra.
Kolyma o vale do rio Kolyma, no extremo nordeste da Russia, na costa do Pacífico. Sede de uma das maiores redes de campos da URSS.
Kolkhoz fazenda coletiva, colcoz. Os camponeses foram obrigados a trabalhar nelas após a implantação da coletivização, entre 1919 e 1931.
Kolkhoznik habitante do kolkhoz.
Komi a República Komi, no nordeste da Russia européia, a oeste dos montes Urais. Os komi são os habitantes nativos da região e falam uma língua fino-úgrica.
Komsoraol a juventude do Partido Comunista, organização destinada a jovens de catorze a 28 anos. As crianças faziam parte dos Pioneiros.
kontslager campo de concentração.
Kronstadt, rebelião de levante contra os bolcheviques liderado pelos marinheiros da base naval de Kronstadt, em 1921.
kulak tradicionalmente, um camponês próspero. Na União Soviética, camponês acusado de se opor às autoridades ou à política de coletivização. Entre 1930 e 1933, mais
de dois milhões de kulaks foram presos e deportados.
kum o administrador do campo responsável pela rede de informantes.
KVch - Kulturno-Vospitatelnaya Chast o departamento cultural-educacional de cada campo, responsável pela política de educação dos prisioneiros e pelas produções
musicais e teatrais.
lagpunkt a menor divisão do campo.
laogai campo de concentração chinês.
Leningrado/São Petersburgo a mesma cidade. Fundada em 1712 por Pedro, o Grande, São Petersburgo tornou-se Petrogrado (nome mais russo) por um breve período, em 1914,
quando a Russia entrou em guerra com a Alemanha. Após a morte de Lênin, em 1924, foi rebatizada de Leningrado.
makhorka tabaco grosseiro fumado pelos operários e pelos prisioneiros soviéticos.
maloletki prisioneiros jovens.
mamka prisioneira, mulher que deu à luz na prisão.
Memorial organização fundada nos anos 1980 para contar, descrever e assistir as vítimas de Stalin. Hoje em dia, é um dos mais proeminentes grupos de defesa dos direitos
humanos da Rússia (Centro de Direitos Humanos Memorial), além de ter sido o primeiro instituto de pesquisa histórica.
mencheviques a ala não leninista do Partido Social Democrata dos Trabalhadores Russos. Depois da Revolução Bolchevique, os mencheviques tentaram fazer oposição legal
ao regime, mas seus líderes foram exilados em 1922. Mais tarde, muitos foram mortos ou entregues ao Gulag.
monashki mulheres religiosas, de várias fés. Literalmente, "freiras".
naryadshchik o funcionário do campo que delegava as tarefas aos prisioneiros.
NEP - Novaya ékonomicheskaya politika (Nova Política Econômica) a política econômica lançada pelos soviéticos em 1921. Por um curto período, trouxe de volta o capitalismo
miúdo (lojas e comerciantes privados). Segundo Lênin, essa era uma "reitrada estratégica", que foi totalmente abolida por Stalin.
norma: a quantidade de trabalho que um prisioneiro tinha de fazer em um único turno.
normirovshik: o funcionário do campo que determinava as normas de trabalho.
NovyiMir: revista literária soviética, a primeira a publicar o escritor Soljenitsin.
NTS - Narodno-trudovoi Soyuz o "partido dos trabalhadores do povo", um grupo político clandestino que se opunha a Stalin e tinha ramificações na URSS e no exterior.
obshchaya rabota "serviços gerais". Nos campos, usualmente trabalho braçal não qualificado, como cortar árvores e cavar valas.
osoboe soveshchanie "comissão especial". A partir dos anos 1930, os comitês costumavam condenar prisioneiros durante os períodos de prisão em massa.
osobye lagerya "campos especiais". Esses campos foram criados em 1948 para prisioneiros políticos especialmente perigosos.
otkazchik alguém que se recusa a trabalhar.
otlichnik um operário que se destaca.
OUN - Organizatsiya Ukrainskikh Natsionalistov Organização dos Ucranianos Nacionalistas, que lutou contra o Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial.
parasha balde de dejetos.
pelagra doença causada pela fome.
perestróika programa (fracassado) de reestruturação da economia soviética lançado por Mikhail Gorbatchev nos anos 1980.
permafrost solo permanentemente congelado.
Politburo o birô político do Comitê Central do Partido Comunista. Na prática, o Politburo era o mais importante órgão decisório da URSS. O governo - o Conselho dos
Comissários do Povo - acatava suas ordens.
Pravda o jornal do Partido Comunista Soviético.
pridurok (no plural, priduriki) prisioneiro que não faz "serviços gerais", e tem um trabalho mais fácil ou mais especializado.
psikhushka hospital psiquiátrico para dissidentes políticos.
refusenik judeus soviéticos que pediram para imigrar para Israel mas não foram atendidos.
rezhim regime de prisão.
samizdat publicações ilegais, clandestinas. Um trocadilho irônico com "Gosizdat", a editora estatal.
sharashka prisão especial em que cientistas e técnicos detidos realizavam tarefas secretas. Ela foi inventada por Beria em 1938.
Shizo - de shtrafnoi izolyator nos campos, cela em que os prisioneiros eram castigados.
Slon - Severnye Lagerya a Osobogo Naznacheniya (Campos do Norte de Objetivo Especial ) Os primeiros campos criados pela polícia política nos anos 1920.
Social-Revolucionário um partido revolucionário russo fundado em 1902, que mais tarde se dividiu em dois grupos, de esquerda e de direita. Por um breve período,
os social-revolucionários de esquerda participaram de um governo de coalizão com os bolcheviques, com quem mais tarde se desentenderam. Vários de seus líderes foram
executados ou entregues ao Gulag.
Sovnarkom (ou Conselho dos Comissários do Povo) em tese, o órgão que tomava as decisões, equivalente a um gabinete ministerial. Na prática, estava subordinado ao
Politburo.
spetslagerya campos de concentração criados pela Administração Militar Soviética na Alemanha ocupada, depois de 1945.
sploshnye nary prancha de madeira comprida - uma prateleira - em que vários prisioneiros dormiam ao mesmo tempo.
Stakhanovite operário ou camponês que excedia a norma de trabalho designada. Recebeu esse nome em homenagem a Aleksei Stakhanov, o mineiro que, em um único turno,
em agosto de 1935, cortou 102 toneladas de carvão em vez da norma de sete.
starosta literalmente, "mais velho". Nas celas das prisões, nos alojamentos dos campos e nos vagões dos trens o starosta tinha a incumbência de manter a ordem.
Stolypinka ou vagão Stolypin vagão utilizado para o transporte de prisioneiros; na verdade, um vagão de passageiros modificado. Injustamente nomeado em homenagem
a Pyotr Stolypin, primeiro-ministro da Rússia czarista de 1906 até seu assassinato, em 1911.
suki literalmente, "putas". Gíria dos campos para os prisioneiros comuns que colaboravam com as autoridades.
taiga a vegetação do norte da Rússia, caracterizada por florestas de pinheiros, rios largos e campos abertos.
tovarishch "camarada". Na URSS, palavra que mostrava respeito.
tróica a partir de 1937, um grupo de três oficiais soviéticos que condenavam prisioneiros no lugar dos tribunais, durante os períodos de prisão em massa.
trudosposobnost capacidade de trabalho.
tufta nos campos, método de trapacear com as normas de trabalho a fim de receber uma ração maior de comida.
tundra a vegetação ártica, onde a terra é permanentemente congelada. Apenas a superfície se descongela por um breve período no verão, quando surgem um pântano, uns
poucos arbustos e algumas gramíneas, mas nenhuma árvore.
udarnik operário ou camponês que excedia a norma de trabalho designada. Após 1935, o termo "Stakhanovite " se tornou mais comum.
urka criminoso profissional; também conhecido como blatnoi oi cor.
vagonki nos alojamentos dos campos, beliche duplo, para quatro pessoas.
vakenki botas de feltro.
vakhta o quartel-general da guarda armada do campo, localizado na entrada do complexo.
Vtasovites seguidores do general Vlasov, que lutou ao lado dos nazistas contra o Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial.
VOKhR de voenizirovannaya okhrana, guarda armada. Os guardas que andavam armados nos campos.
Wehrmacht as forças militares de Hitler.
zek de zlk, abreviação de zaklyuchennyi, ou prisioneiro.
zemlyanka casa ou alojamento construídos em um buraco no solo; abrigo subterrâneo.
zona campo de concentração. Literalmente, a área protegida pela cerca de arame farpado.
Créditos dos textos e das ilustrações
Textos
Todas as traduções são da própria autora, a não ser quando indicadas diferentemente. Todos os esforços foram feitos para se localizar os detentores dos direitos.
São bem-vindas todas as correções.
W. W. Norton: de "The Son Does Not Answer for the Father", de Alexander Tvardovsky; de "Children from the Cult", de Andrei Voznesensky; de "The Lower Camp", de Elana
Vladimirovca; de "Stalin is Not Dead", de Boris Chichibabin; todos traduzidos por Vera Dunham; de An End to Silence: Uncerisored Opinion in the Soviet Union from
Roy Medvedev 's Underground Magazine Political Diary, editado por Stephen F. Cohen, traduzido por George Saunders. Copyright © 1982 by W.W. Norton and Company, Inc.
Usado com permissão de W. W. Norton and Company, Inc.
Leonid Sitko: "I was a soldier, now I'm a convict" e "There were four roads", de Tiazhest Sveta. Copyright © 1996. Usado com permissão de Leonid Sitko.
Polska Fundacja Kulturalna: "Willow Trees in Alma-Ata", de Gulag Polskich Poetów. Copyright © 2001 by Polska Fundacja Kulturalna. Usado com permissão de Polska Fundacja
Kulturalna. "Good-bye to the Camp", de Gulag Polskich Poetów. Copyright © 2001 by Polska Fundacja Kulturalna Usado com permissão de Polska Fundacja Kulturalna.
Vozvraschenie: "What Does It Mean-Exhaustion?", de Memoria de Nina Gagen-Torn, Copyright © 1994 by Vozvraschenie. Usado com permissão de Vozvraschenie e Galina Gagen-Torn.
"Even our wives didn't feel sorry for us", de Yuri Dombrovskii, de Menya Khoteli Ubit, Eti Suki. Copyright © 1997 by Vozvraschenie. Usado com permissão de Vozvraschenie
e Klara Dombrovskaya. "In the Prison-Camp Barracks", de Anna Barbova, de Dodnes Tiagoteet. Copyright © Sovetskii Pisatel. Usado com permissão de Vozvraschenie.
Semyon Vilenskii: "The Sound of a Distant Bell", 1948, Usado com permissão de SemyonVilenskii.
Requiem 1935-1940", de Poems of Akhmatova, de Anna Akhmatova. Traduzido por Stanley Kunitz e Max Hayward. Copyright © 1967 by Stanley Kunitz e Max Hayward. Usado
com permissão de Darhansoff, Verrill, Feldman Literary Agents.
Trecho de Prison Poerns, de Yuli Daniel. Traduzido por David Burg e Arthur Boyars. Copyright © 1971 by David Burg e Arthur Boyars. Usado com permissão de Marion
Boyars Publishers.
"The Statue's Sundered Plínth", de AlexanderTvardovksy. Traduzido por George Reavey. De The New Russian Poets: 1953-1968; an Anthology, de George Reavey. Copyright
© 1981 by George Reavey. Usado com permissão de Marion Boyars Publishers.
Varlam Shalamov: "Toast to the Ayan Uryakh River" e "To a Poet", usados com permissão de Iraida Sirotinskaya. "I am poor, alone and naked", de NeskolkoMoikh Zhizn,
copy-right © 1996 by Respublika, usado com permissão de Iraida Sirotinskaya.
Ilustrações
Coleção de Yuri Brodksy: fotografias 2a, 2b, 3a, 3b.
Memorial Society: fotografias 4a, 4b, 12a. Desenhos de Benjamin Mkrtchyan, Ivan Sukhanov, Sergei Reikhenberg, Yula-Imar Sooster e Aleksei Merekov.
The David King Collection: fotografias 6a, 6b, lia, falso frontispício.
GARF: fotografias 7b, 9b, llb, 12b, 13a, 13b, 16a, 16b.
KARTA Society: fotografias 8a, 8b, 8c, 9a, 10a, 10b.
The Hoover Institution: fotografias 14a, 14b. Desenhos de Thomas Sgovio.
Índice Remissivo
A
Os números em itálico se referem a páginas com ilustrações.
"A base rachada da estátua" (Tvardovsky), 611
"A um famoso poeta" (Dombrovskii), 576
"A um poeta" (Shalamov), 438
"Aos chekistas" (Panchenko), 305
Abakumov, Nikolai, 447
Abakumov, Viktor, 169, 171, 183, 186, 532
abortos, 371
abrigos (moradias) escavados na terra, 243
Adamova-Sliozberg, Olga, 178, 198, 222, 235, 344, 359, 412, 437, 471, 522, 533, 536, 573, 577, 633-634
Adler, Nanei, 578
administradores dos campos, ver guardas e administradores Akhmatova, Anna, 136, 165, 168, 575, 587, 590, 616
Aksyonov.Vasily, 577
Aleksandrovich,Vadim, 426, 429, 435
Aleksandrovna, Sofia, 174
alemães (nazistas), campos de concentração, 32-40, 305, 393, 401, 416, 495
alemães baseados no modelo soviético, campos 512-513
alemães como minoria étnica na URSS, 484
alemães prisioneiros de guerra, 470, 490, 492
alimento e água para os presos, 109, 118, 197, 209-210, 218, 256, 257, 260, 261, 294, 297, 459, 489
alimento em troca de trabalho, sistema de, 73, 77, 407, 408
Alliluyeva, Svetlana, 535
alojamentos nos campos, 230, 232, 233
American Federation of Labor (AFL), 102, 512, 596, 672, 678
americanos presos no Gulag, 346,492, 512
Amis, Martin, 17
amizade entre presos, 359,
Anders, general Wladyslaw, 509-511
Andreev, Leonid e Danil, 67
Andreev-Khomiakov, Gennady, 569
Andreevna, Anna, 222, 224, 287, 319, 355, 357, 371,574,447
Andropov, Yuri, 592, 610-612, 614, 630
Anistia Internacional, 363, 587, 596, 612, 618
anistias, ver soltura e restabelecimento do bom nome de presos Anna Karenina (Tolstoi), 34
Antonov-Ovseenko, Anton, 340, 572, 575, 588
Anzer, campo de, 60,64
Arcangel, prisão central de, 623, 633
Arendt, Hannah, 35, 636
Arginskaya, Irena, 244, 250, 320, 355, 358, 397, 446, 561
Aristocratas (Pogodin), 112, 113, 144, 148, 224
Armonas, Barbara, 210, 221, 254, 298, 540
Arquipélago Gulag (Soljenitsin), 18, 73, 356, 416, 426, 579, 616
arte produzida por presos, 174, 242, 258; 265, 343, 368, 393, 442, 582, 625
artigos produzidos pelos presos uns para os outros, 440-441 asseio dos presos, 437-438
Associação de Estudos Locais de Blyumkin,Yakov, 87 Solovetsky, 67, 79 Bobrinski, conde 560
Associação Psiquiátrica Mundial, 609, 610
automutilação, 434-436, 600
Averbakh, I. L., 144
Avrutsky, 328
B
Babilov, 551
Babina, Bertha, 58
Bachulis, 57
Bamlag, 119, 120, 141, 142, 253, 306
banhos, 218, 221, 247, 249
Barabanov,V. A., 144
Bardach, Janusz, 172-173, 206, 217, 223, 272, 273, 275, 294, 390, 391, 397, 400, 433, 435, 437, 445, 454
Bazhenovsky, campo de, 309
Bebida alcoólica introduzida clandestina­mente, 600
Belbaltlag, 107,109, 148,152,153,306,474
Berdinskikh,Viktor, 420
Berdzenishvili, David, 613-614
Beria, Lavrenty, 146, 146, 225, 229, 233, 247, 280, 318, 384, 419, 428, 492, 497-500, 509, 532-534, 541, 543, 547, 553; detenções, 169; morte, 543; sistema prisional,
192,; reformas para melho­rar a produtividade dos campos, 155-157; tomada do poder após a morte de Stalin, 536-539
Berman, Matvei, 111, 124, 140, 141, 309
Bershadskaya, Lyubov, 177, 197, 561-563
Berzin, Eduard, 128, 129, 131, 132, 142, 143, 274, 316,324
Bessonov, Yuri, 450
Bettelheim, Bruno, 401, 483
Biblioteca do Congresso (Washington), 512
Bien, George, 225, 427, 490
Birlag, 259, 321
Bloch, sidney, 609
Blyumkin, Yakov, 87
Bobrinski, conde 560
"Boas-vindas ao líder" (Wedów), 510
Bochkov, V M., 556
Bogoraz, Larisa, 588, 618
Bogoslovlag, 279
Bograzdino, campo de, 121
Boky, Gleb, 80, 83, 123, 644
bolcheviques, 29; criação do Gulag, 45-58; vivência como degredados, 32-35; Grande Terror e, 136, 137; tomada do poder, 43-44
Bolshevo, campo de, 113, 114
Bondarevskii, Sergei, 239
Borin, Aleksandr, 406
Brackman, Roman, 184
Brecht, Bertold, 19
Brejnev, Leonid, 16,18, 583,587 ,590,592, 622
Brodsky, Joseph, 585-592, 616
Brygidka, prisão, 474
Buber-Neumann, Margarete, 195, 198, 233, 243, 359, 458
Buca, Edward, 207, 209,353,366,394,400, 454-456, 548
Buchenwald (Alemanha), campo de concentração de, 513
Bukharin, Nikolai, 138, 146, 572, 616
Bukhta Nakhodka, prisão de, 213
Bukovsky,Vladimir, 290,596,601,605-607, 609, 613, 632
Bulgakov, Viktor, 322, 523, 543-545, 632
búlgaros baseados no modelo soviético, campos 515
Butyrka, prisão, 58, 62, 108, 122, 193, 195, 196,198, 202,203
Bystroletov, Dmitrii, 199, 298-299, 436
c
cadeias, sistema de, 47, 191-205; características das várias cadeias, 192-192; Comitês dos Pobres, 202-203; comunicação entre detentos, 200; starosta, 199-200;
informantes, 198; problema da superlotação, 194; preparação dos presos para a vida no Gulag, 191-192; solidariedade entre presos, 195, 198-203; regulação do cotidiano,
195; atuais prisões russas, 633; lei do silên­cio, 196; normas para o sono, 197-198; solitária, 177,187; impacto da morte de Stalin, 540-541
campos de concentração, 13-17. Ver tam­bém alemães (nazistas), campos de concentração nazistas; Gulag, sistema de campos do
campos de triagem, 495, 639
campos russos em 2001, 517
Camus, Albert, 17
canais, projetos de, 69, 96, 105, 530. Ver também mar Branco, canal do
Canal chamado Stalin, O (livro), 110-112, 114, 144
canibalismo, 119, 455, 485
cartas e remessas para os presos, 292,296, 297, 298, 301, 519
carteado, 307, 338-340, 384
carvão, extração de, 117, 126, 264
casa de visitas, 302-304
Catarina II (Catarina, a Grande), czarina, 484-485
Chadaev, Potr, 606
"chapéus vermelhos", 523
Chebrikov, Viktor, 620
Cheburkin, Andrei, 315
checos baseados no modelo soviético, campos, 515
Checoslováquia, invasão soviética da, 593
Cheka; OGPU; NKVD; MVD; KGB, 46, 47, 53 ,58, 60 103, 104, 111, 116, 122, 124, 589, 592, 611, 630; detenções, 168,171, 172; controle do Gulag, 48-49, 53, 96-97.
520 dissidentes e 586-587, 594, 614; documentos sobre a população do Gulag, 637-638; responsabilidades econômicas, 529; fugas de presos, 451-452; execuções de presos
políticos, 150; sistema de degredo, 479-480; exportação de métodos do Gulag para Estados-satélites e aliados, 512-513; campos de triagem, 495-496; atual FSB, 632;
Grande Terror, 136,137,144, 154, 157, 183, 184, 185; "inquéritos" da, 180-181; últimos dias do Gulag, 619; motivos para a criação dos campos, 93-94; execuções em
massa de oficiais poloneses, 488; reformas pós-stalinistas do Gulag, 568-569; hospitais psiquiátricos usados para encar-ceramento, 606-608; expurgos na, 145 306-316,
362; rebeliões de presos, 462-464, 548, 555-556; soltura e restabelecimento do bom nome de presos, 567, 572; reorganização por Beria, 537; repatriação de russos
do Ocidente, 494; regulamentos secretos, 144-145; durante a Segunda Guerra Mundial, 452, 469,. 512, 595, 627; Ver também guardas e administradores
Chernyshev, Vasily, 309, 472
Chetverikov, Boris, 194, 437
Chichibabin, Boris, 586
chineses baseados no modelo soviético, campos 516
chineses presos no Gulag, 351
Chirkov, Yurii, 221
Chornovil, Vyacheslav, 593
Chukhin, Ivan, 95
Chul Hwan Kong, 516
Churbanov, 618
Churchill, Winston, 20, 494-495, 502
cientistas e técnicos aprisionados, 37, 67, 116, 135
colaboração de presos com os administradores, 402, 403
coletivização, 89-90, 93-94
Colônia penal na Russia Vermelha, Uma (Duguet), 101
colonialismo, 34
Colonna-Czosnowski, Karol, 221, 248, 249, 331, 340, 401, 430, 445
"Comitês dos Pobres" (Shalamov), 202,203
Complô dos Médicos, 347, 533-534
comunismo soviético, colapso do, 622
comunistas presos no Culag, 355-357
confissões de detidos, 183-184, 191
Conquest, Robert, 168, 184, 383, 637
contadores de histórias, presos que eram, 444
Contos de Kolyma (Shalamov), 132
Contra toda esperança (Nadezhda Mandelstam), 165.
coreanos baseados no modelo soviético, campos 517
coreanos presos no Gulag, 350
cossacos, 495
criminais, presos, 46, 330-342; carteado, 338-339; indumentária, 337; conflitos entre grupos de, 525-527; médicos e, 427; fugas, 447, 448, 450; guerra do Gulag aos,
475; hierarquia, 331; homossexualismo, 364; rituais de iniciação, 334; rituais de justiça, 340; não-criminosos como, 344; relacionamento,com presos políticos, 216,
236, 522,525, 529-530, 541, 555-557, 601; campos pós-stalinistas, 598; campos disciplinares, 526; rebeliões de, 458, 461, 479, 531, 549, 554; programa de reabilitação
(reeducação) e, 280; gíria, 336, 371, 387; tatuagens, 337-338; "mafiosos", 330-342, 523-526; trabalho de supervisão concedido a, 418; do sexo feminino, 363-364
criminosos de guerra, campos para, 496, 497, 513
Crônica dos acontecimentos atuais (newslet-ter), 596-597, 602, 607, 613
crueldade para com presos, 217, 293, 322-323, 375, 385
Cruz Vermelha Política, 55, 62, 80
Cuba, campos de concentração espanhóis em, 33
culturais, atividades para difundir virtudes do trabalho, 279-290
D
Dallag, 116, 135
Dalstroi, ver Kolyma, campos de
Daniel, Yuli, 589, 592-593, 596, 601, 604
Danilyuk, 315
Danúbio-mar Negro, canal, 514
Davidenko, I. S., 148
degredo, 13,15, 19, 25, 28-30; como genocídio cultural, 487; precedentes czaristas, 32; taxas de mortalidade, 472; privações da vida no, 118, 481-482; decreto da
"perpetuidade, 521; kulaks e, 48; minorias visadas para, 484; número de pessoas em, 521, 639-640; populações de territórios ocupados visadas para, 481; detenção
de ex-prisioneiros em degredo, 464; Expedição Ukhtinskaya e, 120, 122, 127; anistia para degredados (Segunda Guerra Mundial), 509; deportações durante a Segunda
Guerra Mundial, 480-481
deportação administrativa, 480
deportação de etnias, ver degredo, sistema de
desumanização dos presos, 36,37, 388-389
detenções, 165-190; confissões de detidos, 181-185; estrangeiros, 166-170; Grande Terror, 136-137, 144, 154-157, 183-185; "inquéritos" da polícia secreta, 179; isolamento
celular de detidos, 178-179; sistema jurídico para, 165; detenções em massa, 128136-137, 144, 171-172, 182-184; métodos para, 162, 170; realizadas à noite, 171;
pós-guerra, 511, 519, 527; grávidas e lactantes, 145; de ex-presos,170, ; motivos para, 168; rituais subseqüentes, 147, 175; revistas em detidos, 177; estrangeiros
de territórios ocupados, 470, 478; tortura de detidos, 129,143,178,179,183,185
dezembristas, 29, 201
Dia na vida de Ivan Denisovich, Um (Soljenitsin), 18, 268, 404, 405, 616; publicação, 579-584
dissidentes, 15, 545, 585, 587; "repressão" de Andropov a, 610, 611; Brodsky, caso, 590-591; campos, vivências nos, 595, 513; soltura definitiva no fim dos anos
80, 619-620; grupos identificados como, 587-588; movimento de direitos humanos e, 588, 593-597; interesse internacional pelos, 592, 609; sistema jurídico e, 593;
número de, 587; problemas de dissidentes mais antigos quando da soltura, 619; relações com presos políticos mais antigos, 612; como presos políticos, 587; encarcera-mento
em hospitais psiquiátricos, 606; samizdat, 594-597; cisão do movimento dissidente, 612
divórcios, 303, 304
Djilas, Milovan, 512
Dmitlag, 135, 144, 241, 250, 254, 256, 258, 267, 295, 320, 322, 337, 427, 442
Dmitrov, Georgi, 167
Dobrovolsky, Aleksei, 605
doenças, 219, 250, 272, 295, 311
Dolgikh, general Ivan, 531, 561-562
Dolgun, Alexander, 166, 167, 169, 171, 177, 188, 194, 196, 202, 276, 333, 430, 433,436,441,445-456,540
Dombrovskii, Yurii, 576
Dostoievski, Fiodor, 30, 32, 206, 330, 333, 349
Dubravlag, 525, 583, 598
Dudina, Galina, 633
Dudorov, N. P, 568-569
Duguet, Raymond, 101
Durasova, S. G., 181
Dvorzhetskii, Vatslav, 456
Dyakov, Boris, 323, 356-357, 404-405, 584
Dzerzhinsky, Feliks, 47, 49, 50, 51, 55, 57, 58, 60, 71, 72, 86,193, 214, 370
E
economia dos campos, 14, 15, 38-39; precedentes czaristas, 29-30; extração de recursos naturais, 117; foco econômico no pós-guerra, 518; problemas de produtividade,
414; gama de atividades, 265; reformas voltadas para a, 154-155,156; reestruturação de todo o sistema prisional soviético, 47, 48, 53, 58; meta de autofinanciamento,
51; campos de Solovetsky, 64, 69-70, 74-76, 97; Revolução Stalinista e, 87; problema da falta de rentabilidade, 70, 529, 565; projetos pródigos e malconcebidos,
277; interesses econômicos ocidentais e, 102; Ver também trabalho no Gulag
Eden, Anthony, 20
Éfron, Ariadna, 347, 354, 437, 571
Éfrussi,Yakov, 390
Eichmanns, Fyodor, 76, 141
Eisenstein (comunista americano), 389
Ekart, Antoni, 220,275,284,287,331,344, 348, 349
Ekibastuzlag, 531
enterro de presos, 395
Epshtein, Lev, 143
Eremenko, Zoya, 314
estrangeiros, 101-104, 166
"estranhos", 479-80, 487-89
Europa oriental, campos da, 512
Evstonichev, A. P. 243
Exército Vermelho, 15, 37, 44, 46, 49, 52, 137, 143, 172, 173, 438, 474, 485, 488-496, 498, 500, 504-505, 513-514, 520, 523-524, 529, 557, 562, 580, 607, 638; presos
anistiados ingressados no, 638, 639
F
Fadeev, Aleksandr, 575
Faludy, Gyorgy, 513
familiares, contatos dos presos com 296, 297,301,303
Federolf, Ada, 347, 437
Fedodeev, Aleksandr, 460
Fedorov, Zheriya, 599
Feldgun, Georgii, 337, 442
ferroviária, construção, 117, 120, 141, 279
Figes, Orlando, 10
Figner, Vera, 55, 201
Filaretov, Gleb, 309
"Filhos do culto" (Voznesensky), 565
Filippov, I. G., 143
Filshtinskii, Isaak, 244, 251, 266, 272, 274, 283, 366, 397, 414-416, 418, 420, 534
Finkelstein, Lev, 181, 194, 200, 207, 235, 341,410-411,430,444
finlandeses como minoria étnica na URSS, 167, 485
Fischer, Eugen, 34
Florensky, Pavel, 626
Fomenko, Lydia, 584
Frenkel, Naftaly Aronovich, 73, 74, 75, 77, 78, 79, 97
Frid, Valerii, 237, 238, 365, 367, 409, 435
Frolovsky, Mikhaíl, 518
fugas de presos, 447-456
funcionários do Gulag, ver guardas e administradores
Fundacja Karta, 10, 22
furto nos campos, 259-261
Fuster, Julian, 563
futebol, times de, 282, 318
Fyodorovich, Nadya, 471
G
Gagen, Evgeny, 577
Gagen-Torn, Nina, 171, 210, 220, 226, 227, 348, 357, 358, 387, 438, 445
Galanskov, Yuri, 605
Galich, Aleksandr, 595
Galinski, Adam, 352
Garaseva, A. M., 193
genocídio cultural, 487
Gerações do inverno, As (Aksyonov), 577
Gessen, Masha, 629
Getty, J. Arch, 637
Gilboa, Yehoshua, 391
Gindler, Bym, 587
Ginzburg, Aleksandr, 593, 605
Ginzburg, Evgeniya, 133, 134, 153, 174, 187, 194, 201, 205, 209, 215, 224, 260, 266, 270, 316, 330, 341, 345, 374, 376, 393, 697, 409, 422, 426, 433, 438, 445, 506,
518, 521-522, 526-527, 570, 577, 595-596, 616
Ginzburg, Isaak, 141
Ginzburg, Lidiya, 26
glasnost, 18, 615, 622
Glebov, Vladimir, 379
Gliksman, Jerzy, 113, 224, 226, 227, 431
Glink, Elena, 216
Glushko,Valentin, 156
Gnedin, Evgenii, 177, 186, 322, 392
Goering, Heinrich, 34
Golitsyn, Prince Kirill, 441
Gorbanevskaya, Natalya, 607
Gorbatchev, Mikhail, 15, 21, 612 ,614-618, 622,631
Gorbatov, general Aleksandr, 180, 189, 298, 330, 340, 398 ,504-505, 508
Gorchakov, Genrikh, 321
Gorki, Maximo, 55, 67,83-86, 91, 110-113, 129,144, 147
Gorlag, 525, 546, 548-550, 553-554
Goskin, Mikhail, 141.
Grande Terror (1937-8), 136-137-154; bolcheviques visados pelo, 137; término, 157; interesse historiográfico pelo, 136-137
Grande Terror, O (Conquest), 637
greves de fome, 459, 602
Grigorenko, general Pyotr, 607
guardas e administradores, 305-329; opções disponíveis para, 317; crueldade para com presos, 217, 322-326; dificuldades e privações dos, 310; dissidentes e, 601;
castigo para fugas de presos, 450; hierarquia dos campos e, 305; tratamento humano a presos, 320; cuidados com presos inválidos, 428-429; baixa qualidade de, 309;
transição de preso a guarda, 306; privilégios de, 274, 305; expurgos de chefes de campo, 124; rebeliões de presos, 549-550, 554; recrutamento de, 312-314; falta
de, 310; reações à morte de Stalin, 536-537; presos de confiança e, 416-417; tufta e, 403-414; violência entre presos permitida por, 236; hostilidade para com prisioneiras,
361-362
guaritas dos campos, 186-87, 190
Gubin, 556
Guerra Civil Russa, 26, 33, 44, 45, 49, 52, 53, 86, 87
Guerra dos Bôeres, 33
Guerra Fria, 15, 16, 21, 454,. 461, 576, 578
Guia do sistema de campos de trabalho correcional da URSS, 265<Sylvia; Adriana: por favor, corrijam no miolo, onde deixei "trabalhos correcionais">
Gulag na Segunda Guerra Mundial, 25-26; anistias de presos, 503-527; contribuição dos campos para o esforço de guerra, 507-508; taxas de mortalidade, 472; fugas
de presos, 452; evacuação dos campos no oeste da URSS, 475-476; campos de triagem, 495, 639; situação alimentar, 256, 472; campos de katorga para criminosos
de guerra, 496; Lend-Lease, 486; patriotismo dos presos, 505-506; aumento da repressão aos presos políticos, 470; campos de prisioneiros de guerra, 488-493, 639;
população de presos, 504; rebeliões de presos, 461; contatos de familiares com presos, 297-299; estrangeiros presos de territórios ocupados, 478-479; visita de Wallace,
499-501; condições de trabalho, 238-241
Gulag, sistema, 160-161; cultura absurda das inspeções fajutas, 329; significado do acrônimo Gulag, 13; primórdios bolcheviques, 43-58; sistema de campos industriais,
159; "missão civilizado-ra" em regiões remotas, 134; mudanças cosméticas para acalmar opinião estrangeira, 102-103; Departamento de Cultura e Educação (KVCh), 280,
289-290; precedentes czaristas, 13, 29-32; mortes e taxas de mortalidade, 13, 26, 73, 108, 118, 129, 132, 134, 136, 137, 141, 150, 154, 157, 431, 481, 489, 514,
641, 642, 643; política de extermínio, 137; dissolução, 568-569; informação documental sobre o, 22-23; exportação de métodos para Estados-satélites e aliados, 517-517;
interesse estrangeiro pelo, 101-102; comparação com os campos de concentração alemães, 32-40, 224, 233, 251, 269, 416; impacto do Grande Terror, 140-151; pesquisa
his-toriográfica sobre, 21-22, 617; isolamento dos campos, 448; linguagem usada nos campos, 145-146; última fase dos campos, 618-619; criação do sistema de grandes
campos, 91, 92; material memorialístico sobre os campos, 397, 398, 399; questões de memória e justiça referentes ao, 624-636; motivos da criação, 92-100; número
de complexos de campos, 229; número de presos, 15, 521, 566, 636-643; problema de superlotação, 149-150; perspectiva geral, 13-17; relatos de presos poloneses sobre
o, 511-512; reformas pós-sta-linistas, 537-539, 566-567; propaganda sobre o, 85, 107, 110, 277-280; discrepância entre a realidade e a propaganda do, 286; regras
de gestão dos campos, 226, 230; atuais atitudes russas para com o, 623-624; campos russos em 2001, 517; normas de sigilo, 145; similaridade com a vida soviética
em geral, 27; impacto da morte de Stalin, 535-542, 543; interesse pessoal de Stalin, 96; indiferença do Ocidente para com o, xviii-xxiii, 634-635; Ver também campos
de concentração específicos e temas relacionados
Gurjanow, Aleksandr, 480
H
Harenczyk, Karol, 212
Harris, James, 93
Heidegger, Martin, 17
Herling, Gustav, 227, 236, 240, 282, 288, 294, 295, 301, 302, 303, 304, 339, 350, 360, 361, 362, 367, 387, 390, 396, 398, 400, 407, 427, 435, 443, 445, 457+458,
472, 509-510, 574
História de sobrevivência, A (Dyakov), 356, 584
Hitler, Adolf, 17,18,19,20,32,36,96,167, 469, 479, 491, 493, 495, 533, 632
Hochschild, Adam, 326, 379
homossexualismo, 364, 599
Hook, Sidney, 19
humorismo de presos, 443
húngaros baseados no modelo soviético, campos, 513
húngaros presos no Gulag, 490
I
ideologia do Gulag, 632
Ilyichev, Leonid, 583
inanição, 25-27, 268, 281, 327, 357, 359, 387-389, 392, 394
Indonésia, 34
indumentária dos presos, 227, 231, 272, 273,311,337,342, 365
industrialização, 87, 88, 93, 505
informantes, 187, 266, 353, 384, 399, 420-421, 458, 460, 465, 528, 535, 544-546, 548, 554, 559, 563
"inimigos do povo", 14, 65, 137, 146, 147. Ver também presos políticos "inquéritos" da polícia secreta, 165-181
Instituto Sakharov, 22
Instituto Serbsky de Medicina Legal, 607, 609
Inta, campo de, 523, 525, 532, 571
Internacional Comunista (Comintern), 167
internações hospitalares, 424-436
interrogatórios, 178,179,181,184,185,212
inválidos, cuidados com presos, 225, 237, 247, 324-436
Ioffe, Mariya, 133, 331
Irmã Dusya (Rozsas), 426
Isaev, tenente, 570
Iskitim, pavilhão punitivo de, 295-296
iugoslavos baseados no modelo soviético, campos, 515
Ivanova, Galina, 497
Ivanova, Maria, 313
Izgoev, Aleksandr, 51
Izrailev, Aleksandr, 141
Izvestiya (jornal), 60, 81, 484, 582
Izvestkovaya, campo de, 523
J
Jakobson, Michael, 93, 105
japoneses presos no Gulag, 350-351, 438, 489
Joffe, Nadezhda, 176, 371, 444
jornais publicados no Gulag, 21, 67, 79, 104, 114, 544
judeus presos no Gulag, 167, 210, 308, 346, 422, 474-75, 529, 554
julgamentos públicos, 20, 89, 137
K
Kaganovich, Lazar, 75, 578
Kamenev, Lev, 137-138, 379, 572
Kanen,V. E.,85
Kapralova, Nadezhda, 577
Kargopollag, 159, 227, 236, 244, 251, 272, 309, 311, 360, 410, 414, 420, 553, 633
Karlag, 135, 326, 470, 564
Karta, ver Fundacja Karta
katorga, campos de, 30, 31, 496-499, 514, 520, 524-525
Katyn, massacre de, 488, 627, 643
Kazachkov, VA., 68
Kedrovyi Shor, campo de, 256,259,260,299
Keller, Gersh, 558-559, 563-564
Kendzerski, 548
Kengir, campo de, 250, 251, 355, 369; levante, 554, 555
Kennan, George, 29
Kerensky, Aleksander, 43
Kersnovskaya, Evfrosiniya, 370
KGB, ver Cheka; OGPU; NKVD; MVD; KGB
Khabarov, 219
Khachatryan, Lyudmila, 169, 352, 371
Kholmogory, campo de, 56, 57, 60
Khristopol, prisão de, 618
Khrutchev, Nikita, 29, 185, 324, 537-539, 543, 549-551, 554, 566-567, 569-570, 572-573, 578-579, 582-583, 592, 622, 639; Um dia na vida de Ivan Denisovitch e, 404,
579-580, 616; soltura e restabelecimento do bom nome de presos, 570; "discurso secreto" sobre Stalin, 566-567; tomada do poder, 580
Kirov, Sergei, 137, 169
Kirovograd, prisão de, 476
Kiselev, 64
Kitchin, George, 104
Klein, Aleksandr, 386, 413, 442, 498-499
Klinger, A., 65
Klymchak, Bohdan, 621
Kmiecik, Jerzy, 382, 383, 386
Knopmus, Yuri, 558-559, 563
Koestler, Arthur, 179
Kogan, dr., 327
Kogan, Lazar, 114, 240, 241, 254
Kogteva, Svetlana, 378
Kolesnichenko, 506
Kolomyja, prisão de, 475
"Kolyma" (Elena Vladimirova), 264
Kolyma (Dalstroi), campos de, 37, 40, 128, 129, 131, 133, 134, 149, 150, 205, 212, 216, 217, 222, 224, 238, 239, 241, 242, 251, 252, 257, 262, 264, 270, 272, 313,
316, 398-399, 407, 412, 419,429, 448, 450, 456-457, 460, 496, 504, 521-522, 525-526, 531, 535, 549, 564, 625; Contos de Kolyma (Shalamov), 132; Traste Dalstroi,
120, 131; taxas de mortalidade, 132; expurgo de chefes de campo, 143; visita de Wallace, 499, 501
Kondratas, 564
Koopensteiner, Maria, 491
Kopelev, Lev, 317, 425, 440, 576, 580, 581
Korabelnikov, 307
Korallov, Marlen, 333, 334, 353
Korolev, Sergei, 156., 302, 398, 576
Kosarev, 575
Kotkin, Stephen, 286
Kotlas, campo de, 226, 227
Kozhina, Elena, 27
Krasikov, N., 80-81
Kraslag, 159, 531
Krasnaya Gazeta (jornal), 49
Krasnoyarsk, campo de, 273
Kress, Verrion, 268
Kruglov, general, 574
Kruglov, S. N., 312, 531, 532, 533, 554, 556, 562
Krutigolova, Yaroslava, 498
kulaks, 25,49, 89,90, 93, 94,104,108,112, 120, 123, 126, 137, 139, 147, 150, 166, 170,179, 342, 370, 376, 377, 503, 639
Kulevsky, 123
Kundush,V.A., 320
Kuperman, Yakov, 306
Kuusinen, Aino, 178, 216, 292, 357
Kuusinen, Oleg, 178
Kuznetsov, coronel Kapiton, 543, 557-564
Kuznetsov, Edward, 600-601
L
Larina, Anna, 146, 207 ,295,355, 616
latrinas, 213, 245
Lebed, general Alexander, 344, 641
Lefortovo, prisão, 188, 193
Leipman, Flora, 148, 348, 349
leitos e roupa de cama, 243-244
Lend-Lease, 486
Lenin, V L, 14,16,19,26,36,44-49, 54,67, 83, 84, 86, 91, 96,123
Leningrad, cerco de, 13, 26, 27, 473
Leonidovna, Savelyeva, 378
Levchuk, Andrei, 498
Levi, Primo, 401
Levin, 320
Levinson, Galina, 146, 254, 321
Lieberman, 347
Likhachev, Dmitrii, 43, 64, 65, 66, 67, 83, 84, 338, 616
Lipper, Elinor, 170,200,216,244,273, 432, 435
Litvinov, Pavel, 596
Livingstone, Ken, 18
Livro negro do comunismo, O, 643
Lockhart, Robert Bruce, 48, 129
Loginov (funcionário do KVCh), 285,286, 507
Loginov, Aleksei, 325, 326
Lokchimlag, 134, 291
Longa caminhada, A (Rawicz), 447, 456
Losev,A. E, 108
Lovech, campo de, 515
Lu Fa, 462
Lubyanka, prisão, 142, 143, 156, 170, 171, 175,176, 192,193,197, 609
Lukashenka, Aleksandr, 625
Lunts, Danil, 607-608 Lwów, massacre de, 474
M
madeira, extração de, 116-117, 127-135, 403, 404
"mafíosos", 332-341, 523-529, 555-600
Magadan, 128, 278
Magnitogorsk, campo de, 286
Makeev, Aleksei, 558
Malenkov, Georgi, 307, 578
Malsagov, S.A., 101, 450
Mandelstam, Nadezhda, 165, 171-172, 392
Mandelstam, Osip, 43, 168, 171-172, 213, 261
Manual do Gulag (Rossi), 147,232, 387
mar Branco, canal do, 13, 56, 59, 61, 101, 105, 106, 232, 276, 280, 306, 474, 623; construção, 105, 106, 110; propaganda sobre, 106; situação atual, 115
Marchamos sob escolta (Filshtinskii), 414 Marchenko, Anatoly, 435, 597- 600, 602, 603-605, 618
Marchenko, Zoya, 437
Martin, Terry, 99
Maslennikov, general I. L, 550, 552
Mazus, Izrail, 304
McCarthy, Joseph, 20
médicos, cuidados, 427
Medvedev, Nikolai, 334, 335
Medvedev, Roy, 320, 575, 588, 614
Medvedev, Zhores, 588, 607, 609
Medvedkov, 101
Medvezhegorsk, campo de, 232
Melnikova, Polina, 393
Memoria (Nina Gagen-Torn), 387
memoriais e debates referentes ao passado soviético, 623-636
Mengele, Joseph, 34
menores, 369-370, 644; hábitos criminosos adotados por, 378-379, 386; vivência como degredados, 370; encarcera-mento com os pais, 146, 377; bebês e crianças pequenas
nos campos, 371-372; interrogatório de, 359; campos para, 380; delinqüentes em campos para adultos, 383-384; em campos de regime de katorga, 498; orfanatos, 370,
376-379; nas prisões atuais, 634; impacto psicológico da vida na prisão, 385; meninos de rua, 380; em trens de traslado, 211-212; como visitas de presos, 302
menores, campos para, 291, 364, 379- 384
Merekov, Aleksei, 398
Merridale, Catherine, 392, 578, 628, 629
Meyerhold, Vsevelod, 186
Mikoyan, Anastas, 573
Milyutina,T. P, 177
Mindlin, M. B., 268
"Minha geração" (Frolovsky), 518
Minha luta (Hitler), 36
Minlag, 313, 316, 525, 543-545, 547, 549, 553
Mishakova, Olga, 575
Mishkina, Galina, 545
Mkrtchyan, Benjamin, 242, 265
Mollison, Theodor, 34
Molotov, Vyacheslav, 97,104,106,139,419, 469, 543, 578
moradores locais para com os presos, atitudes dos, 448-449
Mordóvia, campos da, 525, 535, 587, 597, 598, 602, 614, 619
moribundos, presos, 425
Moroz, Valentyn, 592, 601
Moroz,Vladimir, 382
Morushko, Pam, 554
Moscou-Volga, canal, 23, 114, 135, 144
mosquitos, 65, 270
Motyleva, Tamara Lazarevna, 425
movimento pelos direitos humanos, 15, 588, 593, 595, 612, 619
muçulmanos deportados, 487
muçulmanos presos no Gulag, 350
Muksalma, campo de, 60
mulheres prisioneiras, 359-373; aborto, 371; hostilidade dos administradores para com, 361; benefícios pessoais, 359-360; anistias, 374; criminosas, 330, 363, 364;
esposas de "inimigos do povo", 146; fugas, 453; em campos de katorga, 498; lesbianismo, 365, 599; "matrimônios", 361-362, 369; relações entre mães e filhos, 370;
porcentagem da população do Gulag, 363; amores platônicos, 367; gravidez e parto, 369; estupro, 175, 216-217, 236; em rebeliões, 459, 561, 562; religiosas, 357 ;
revista em detidas, 175; exploração sexual de, 360-361, ; situação atual, 634; durante a Segunda Guerra Mundial, 471; operários e camponeses presos, 342
Mundo aparte, Um (Herling), 398
Museu Andrei Sakharov, 625
música nos campos, 238, 442
Mussolini, Benito, 96
MVD, ver Cheka; OGPU; NKVD; MVD; KGB
N
Nagy, Imre, 515
Narinskii, A. S., 256
Nasedkin, Viktor, 61, 286, 309, 475, 476, 497, 505, 508
Natal, comemoração do, 440
Nazino, catástrofe da ilha, 118
Nepo svoei vole, 640
Negretov, Pavel, 353, 535
Nekipelov, Viktor, 607, 609
Nepridumannoe (Razgon), 623
Neskolko moikh zhiznei (Shalamov), 397
Nicolau I, czar, 29-30, 606
Nicolau II, czar, 43
Nikishov, Ivan, 316,317,318,319,499,500, 501
Nikitin, Aleksandr, 633
Nikolaevich, Yuri, 536
níquel, extração de, 159
NKVD, ver Cheka; OGPU; NKVD; MVD; KGB
No olho do furacão (Evgeniya Ginzburg), 518
Noble, John, 349, 553, 491
Nogtev,A. P.,43, 76, 79
Nordlander, David, 129
Norilsk, campos de, 150, 154, 1548, 159, 214, 219, 239, 270, 273, 311, 314, 325, 383 399 ,410, 411, 447, 450, 469, 496, 524, 525, 531, 546, 548, 551; rebeliões de
presos, 552, 553
"Nos alojamentos do campo dos prisioneiros" (Barkova), 543
NovyiMir (periódico), 580, 581, 582, 583, 616
Nuremberg, julgamentos de, 488
O
OGPU, ver Cheka; OGPU; NKVD; MVD; KGB
Okudzhava, Bulat, 577
Okunevskaya, Tatyana, 169, 171, 229, 247, 426, 431, 443
Olitskaya, Elinor, 62, 201, 215, 222, 238, 275, 400
ONU, 512; Declaração dos Direitos Humanos, 595
Ordem do terror, A (Sofsky), 37
Ordzhonikidze, Grigory, 32
orfanatos, 370, 376-381, 386
Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN), 498
Origens dos expurgos (Getty), 637
Orlov, Yuri, 612, 632
Orwell, George, 496
Oryol, hospital psiquiátrico especial de, 608
ouro, extração de, 117
ouro, furto de dentes de, 395
Ozerlag, 531, 564, 566
P
Pamyat (periódico), 617
Panchenko, Mikhail, 305
Panin, Dmitri, 193, 262, 351, 423, 437, 443, 544
pão, 209, 210, 213, 214, 219
Partido Trabalhista (Reino Unido), 102
Páscoa, comemoração da 439-440
"passaporte de lobos", 571
Pavdhão dos cancerosos (Soljenitsin), 574
Pavlov, major, 142-143, 148
Pavlov, Sergei, 584
Pechora, Susanna, 189, 199, 245, 263, 269, 313, 355, 365 540, 571, 576, 632
Pechorlag, 452
Pedro I (Pedro, o Grande), czar, 30 ,32, 95, 96
Perekovka (jornal), 114, 148, 249
perestroika, 615
Perm, campos de, 587, 598, 602, 604, 605, 613,619,621,626
pernas, males das, 388
Peshkova, Ekaterina, 55, 62
Petkevich, Tamara, 388
Petrominsk, campo de, 57, 60, 61
Petrov, Vladimir, 257,262, 274, 354, 407
piolhos e percevejos, 249-251
Pipes, Richard, 26
Pliner, Izrail, 141, 308, 309
poesia como refúgio para presos, 438, 439
Pogodin, Nikolai, 112-114,144,148, 332
Pohl, Otto, 640
Pokrovskii, 507
polícia secreta, ver Cheka; OGPU; NKVD; MVD; KGB
Polisonov, Aleksandr, 141
políticos, presos, 47; tratamento dado pelos bolcheviques a, 54; filhos de, 378, 588; relacionamento com presos criminais, 215-216, 227, 330-331, 338, 340, 401,
523, 528-529; do período czarista, 29-30; documentação da vivência dos, 544-545; em campos da Europa oriental, 512- 513; como "inimigos do povo", 137; fugas de,
453; etnias, 346; "excomungados" da sociedade soviética, 37, 147; execuções durante o Grande Terror, 80, 150; tachados de "fascistas", 324; presos não-políticos
como, 344; porcentagem da população do Gulag, 342; do pós-guerra, 523; classificação, 345; rebeliões de, 459-460, 545-564; contatos de familiares com, 297; nos campos
de Solovetsky, 61, 79; "campos especiais" para, 524-525, 537; perda de status especial dos, 79, 148; como contadores de histórias, 443-444; como presos de confiança,
418; repressão durante a Segunda Guerra Mundial, 470-471; canal do mar Branco, 112; Ver também dissidentes
poloneses baseados no modelo soviético, campos 514
poloneses presos no Gulag, 182-183, 216, 349,352, 479,491; exército formado de presos anistiados, 508
poloneses, massacre de oficiais, 488, 643
Polyan, Pavel, 640
Polyansky, campo de, 344
"Por direito de memória" (Tvardovsky), 13
Potapov, Vanka, 64
Powers, Gary, 586
Pravda (jornal), 533, 538, 582, 590
preces, 439, 440
presos no Gulag, 521
Prikaspiiskii, campo de, 242
Primeiro círculo, O (Soljenitsin), 176, 303, 425, 580
prisioneiras, ver mulheres como prisioneiras
prisioneiros de guerra, campos de, 488-494, 513, 514, 521, 557, 639
propaganda, discrepância entre a realidade e a, 286-289 Tratado de Helsinki, 595, 596, 612
Pryadilov, Aleksei, 321
psiquiátricos usados para encarceramen-to, hospitais, 606, 608, 609
Puchinski, Janusz, 475
punitivo, regime, 269, 292, 293, 294, 295, 603-605
Purizhinskaya, Ada, 347, 397
Pushkin, Alexander, 28, 594
Putin, Vladimir, 630, 635
Pyatakov, G. L. 71, 72
Q
Que a história julgue (Medvedev), 320
R
rabinos, 347
rapagem de pêlos do corpo, 253
Ratushinskaya, Irina, 459, 614
Rawicz, Slavomir, 447, 456
Razgon, Lev, 55, 169, 174, 189, 200, 293, 307, 317, 318, 321, 327, 331, 333, 345, 348, 366, 385, 397, 407, 408, 418, 419, 422, 423, 424, 478, 479, 522, 576, 616,
623, 644
reabilitação (reeducação), programa de, 51-53,61,71,77,91,332
Reagan, Ronald, 15, 612
rebeliões de presos, 457-465; dissidentes, 593, 595; greves de fome, 459, 602; levante de Kengir, 554-564; liderança de, 548-549, 557; "liqüidação" de, 551; ausência
de apoio dos moradores locais, 549-550; cumplicidade do MVD em, 549-550; negociações entre governo e grevistas, 550, 561; presos políticos, 15-17, 460, 545, 564;
propaganda dos rebelados, 559; morte de Stalin e, 540, 541; greves (1953), 546; rebelião de Ust-Usa, 461-465; onda de agitação no começo dos anos 50, 530; greves
laborais, 460
Rechlag, 547-548, 550, 554
Recordações da casa dos mortos (Dostoievski), 30, 330, 333
Reczk, camp de, 513
Reddaway, Peter, 609, 614
reformas jurídicas de 1960, 588
refuseniks, 587, 612, 615
Reikhenberg, Sergei, 343, 393
religiosos presos no Gulag, 29, 292, 439-440, 560, 587,
repatriação de russos do Ocidente, 492-493
Réquiem (Anna Akhmatova), 136
Reshetov, 322
Retorno à vida (Loginov), 285, 507
Retyunin, Mark, 461-464
Revolução dos bichos, A (Orwell), 496
Revolução Russa, 13, 20, 26, 89
Richkov, 158
Rigoulot, Pierre, 16
Robinson, Robert, 166
Roeder, Bernhard, 536
Roginsky, Arseny, 617
Rokossovsky, Konstantin, 316
Rolland, Romain, 56
Romanova, Olga, 56
romenos baseados no modelo soviético, campos, 514
Roosevelt, Franklin D., 20, 494, 502
Rossi, Jacques, 147,232, 238,269,287, 493
Rotfort, M. S., 574
Rozina, Anna, 247
Rozsas, Janos, 426
russos considerados como etnia, presos 355
Ruzhnevits, Tamara, 361
Rykov, Aleksei, 106
s
"sabotadores", 36, 45, 48, 88,122
Sachsenhausen (Alemanha), campo de concentração de, 513
Sadovnikov,VN.,307
Sakharov, Andrei, 594-597, 602, 616-617
"Salgueiros de Alma-Ata" (Wat), 478
samizdat, 594-597, 602, 616-617
Sandratskaya, Mariya, 211, 212, 321
Sartre, Jean-Paul, 17
Sazlag, 116,135
Scammell, Michael, 439, 580
Sedvozh, lagpunkt de, 520
Segunda Guerra Mundial, 20; presos anistiados durante a,504-505, 509; colabo-racionismo com os alemães, 493; deportação de etnias durante a, 480-482; invasão alemã
da URSS, 26, 469; privações da população soviética em geral, 473; massacres por forças soviéticas, 473, 476, 488; irrupção da, 469; repatriação de russos do Ocidente,
20, 493; Ver também Gulag na Segunda Guerra Mundial
Sekirka (igreja), 59, 66, 85
seleção para o trabalho no Gulag, processo de, 224-226
sepulturas de presos, 395
Serebryakova, Galina, 170
Sereny, Gitta, 36
Serge,Victor, 380
Serov, I.A.,568
Serpantinka, campo punitivo de, 295
Sevlag, 120
Sevurallag, 224, 431, 433
Sewostlag, 131,135,143,158
Sgovio, Thomas, 132,174, 180-184, 189, 205, 213, 215, 245, 253, 262, 280, 316, 338, 364, 388, 389, 410, 423, 442, 456, 501, 572
Shalamov, Varlam, 9,23,132,149,198,201, 202, 203-205, 213, 245, 253, 262, 280, 316, 338, 364, 388, 389, 397, 400, 402, 408, 422, 425, 429, 438, 447, 455, 595, 616
Shanin, Comissão, 79
Sharansky, Natan, 602
Shevchenko, Taras, 593
Sheveleva, Liza, 224
Shifrin, Avraham, 505, 587
Shikheeva-Gaister, Inna, 175, 199
Shiryaev, Boris, 63, 74
Shister, Alia, 406
Shreider, Mikhail, 325
Shteinberg, M., 476
Sibéria e o sistema de degredo, A (Kennan), 29
Siblag, 116, 135, 150, 252, 259, 272, 295, 321, 374, 392, 413, 428
Sidorkina,Yelena, 143, 174
Sidorov, S. E, 123
Sieminski, Janusz, 195
Sikorski-Maisky, Pacto, 509
Sinyavsky, Andrei, 593, 596, 607
Sitko, Leonid, 251,254,266,353, 369,469, 494, 528, 545, 583, 598
Skaya, E. P, 123
Slon (periódico), 280
Slon, campos da, 60, 64-67, 70-79, 86, 97, 106-107,116,122-123, 141. Ver também Solovetsky, campos de
Sluchenkov, Gleb, 558, 559, 563
Smirnov, Aleksei, 445
Smirnova, Galina, 222, 245, 319
Soboleev, I. M., 307
sobrevivência, estratégias de, 199, 397-446; evitando trabalho braçal, 227; colaboração com os administradores, 414-424; competição com outros presos, 400;
internações hospitalares, 424-436; ausência de compaixão, 400-401; material memorialístico sobre, 397-400; "virtudes comuns", 436-446; tufta, 403-414; automutilação,
434, 436, 600
Social-revolucionários, 45, 54, 55, 58, 62
Sociedade Antiescravagista, seção britânica, 102
Sociedade Internacional de Ajuda às Vítimas da Revolução, 55
Sociedade Memorial, 21, 258, 268, 306, 333, 386, 441, 617, 618, 625, 627, 640, 641
Sofsky,Wolfgang,36,416
Soljenitsin, Alexander, 9,18,20,60, 65, 73, 74,84,115,136,155,171,176,177,189, 193, 220, 247, 262, 268, 291, 305, 329, 335, 338, 351, 352, 356, 357, 366, 367, 369,
385 398, 404, 405, 408, 419, 421, 422, 423, 424, 426, 447, 454, 456, 458, 554,555, 561, 574, 579 ; carreira nos campos, 579, 580; vivência como preso de confiança
e informante, 416-417; poesia como refúgio para, 439; publicado na URSS, 580
Solovetskie Ostrova (revista), 67, 68, 336
Solovetskoi Lageram (revista), 68
Solovetsky, arquipélago de, 59-60
Solovetsky, campos de, 58, 59-82, 79, 280, 306, 336; Associação de Estudos Locais de Solovetsky, 67, 79; atividades culturais, 66-67, 67; taxas de mortalidade,
64-65; economia dos, 67, 69, 97; faixa à entrada de campo, 221; fugas, 449-450; como "primeiro campo do Gulag", 60; interesse estrangeiro pelo, 101; Frenkel
e os, 73-74, 77, 78; Visita de Gorki, 83-86; memoriais referentes aos, 525, 526; influência do dinheiro nos, 69-70; presos políticos, 61-62, 79-82; tortura
e execuções, 65-66, 151-152; sistema de trabalho, 73
soltura e restabelecimento do bom nome de presos, 71, 566, 567, 570-578; anistia ordenada por Beria, 538, 541; reações populares aos presos que voltavam, 574; derradeira
soltura dos dissidentes, final dos anos 80, 618; peripécias da soltura, 569-570; processo de restabelecimento do bom nome de presos, 567, 616, 628; reingresso
na sociedade soviética, 577-578; falando sobre a vida no Gulag com civis, 575-576; anistias durante a Segunda Guerra Mundial, 503-506
sono, arranjos para o, 246, 247
sono, privação do, 187-188
Sooster, Yula-Imar, 368
sopa, 254
Sorokin, 180
Soroklag, 507
Sovietland (revista), 277
Spectator (revista), 635
Spielberg, Steven, 17
Spragovsky, Anatoly, 572
Stajner, Karlo, 168, 314, 325, 358, 469
Stakhanov, Aleksei, 109
Stalin, Josef, 15, 20, 32, 36, 83, 118, 231, .283, 284, 347, 384, 419, 519; detenções sob o regime de, 166,182, 183, 186; Truste Dalstroi, 120, 131; morte, 534,
535; economia do Gulag, 529-530, 532; "inimigos do povo" e, 137-146; vivência como degredado, 32; sistema de degredo, 426, 484, 487; Frenkel e, 141, 142; Grande
Terror, 137, 138, 142, 143; "discurso secreto" de Khrutchev sobre, 566-567; motivos para a criação dos campos, 93-100; paranóia no fim da vida, 533; interesse
pessoal pelo Gulag, 96; massacre de oficiais poloneses, 488; campos de prisioneiros de guerra, 492; restabelecimento de seu bom nome, 592; repatriação de russos
do Ocidente, 493; ascensão ao poder, 87; transformação da economia e da sociedade (Revolução Stalinista), 87; Ukhtpechlag, 153; canal do mar Branco, 105, 110
"Stalin não morreu" (Chichibabin), 586
Stangl, Franz, 36
Starostin, Nicolai, 169, 318, 443
Stepanyuk, Herman, 548
Steplag, 525, 536, 545, 554, 555, 561, 565
Stolypin, vagões, 207-212
Stus, Vasil, 605
suborno, 413
suicídio, 309, 392, 482, 575
Sukhanovka, prisão, 186
Sulimov, Ivan, 241
Sunichuk, 564
Surovoy, dr., 429
Suvorov,VD., 307
Suzdal, cadeia de, 460
Svirlag, 135
Sykahnov, Ivan, 258
t
Taganskaya, prisão, 47
talheres e vasilhas para comer, 257-258
Tarasyuk, coronel, 317, 327
tártaros degredados, 484, 485, 486, 487, 612, 639
Tchekhov, Anton, 28, 31
Tchernavin, Vladimir, 185, 187, 451, 453, 454
Tchetchenia, guerras na, 631 tchetchenos degredados, 484-485, 487-488, 567
tchetchenos presos no Gulag, 352-353 Tchorny, Grisha, 331
teatro nos campos, 290, 315-318, 442-444
Temlag, 212, 250, 253
Temnikovsky, campo de, 226
Tenno, Georgi, 456
Ter-Petrossian, Levon, 619
"terapia medicamentosa", 608
Terror Vermelho, 43, 49
têxtil, indústria, 240
Tikhonovich, N., 122
Times (Londres), 102
Timofeev, Lev, 621
Tito, marechal, 512, 514
Todorov, Tzvetan, 436
Tolmachev, 91
Tolstoi, Liev, 13, 35
tortura, 65, 69, 79, 129, 143, 178-189, 193, 197, 464, 527, 538, 574, 602, 603, 636
trabalhadores livres, 254-261, 500, 504, 508, 531, 532, 550, 570
trabalho no Gulag, 264-290; acidentes, 275-276; "brigadas" (turmas de trabalho) e "brigadeiros", 237, 266, 409-410, 412; a baixas temperaturas, 270-275; consciencioso,
404; atividades culturais para difundir virtudes do trabalho, 279-290; folgas, 240-241; alimentação e, 254-255; "serviços geral" (trabalho braçal), 266-279; problemas
mecânicos, 277; normas e metas, 269, 412; despropositado, 269; nos campos pós-stalinistas, 597-598; programa de "racionalização", 283 ; seleção e classificação em
categorias de trabalhador, 225; campanha contra "mandriões", 268; culto ao trabalhador de choque, 280, 284, 406; sono e, 246-247; "competições socialistas" entre
turmas de trabalho, 283; para presos de confiança, 414-424; variedade, 264-265; salários, 531; durante a Segunda Guerra Mundial, 239; jornadas, 238; greves, 460
transitórias, prisões, 212, 222
traslado de presos, 397-221; marítimo, 214-215; de menores, 210-211; reações de civis ao ver presos, 206-207; crueldade de guardas, 217; situação alimentar, 209-210;
ferroviário, 207-210, 458-459; prisões transitórias, 213; por caminhão, 206
tróicas, 152, 566, 567, 589
Trotski, Leon, 32, 33, 44, 46, 48, 52, 87,138
trotskistas, 141-142,151, 460-461,465, 524
Trus, Leonid, 287, 347, 410, 411, 421, 432, 541
Tsvetaeva, Marina, 437
tuberculose, 599
Tucker, Robert, 95
tufta, 27, 403-414
Tukhachevsky, marechal M. N., 143
Tupolev, 154
Tvardovsky, Aleksandr, 13, 580, 581, 582, 584, 611, 622
Tyszkiewicz, conde, 293
u
Uborevich, I. P., 143
ucranianos presos no Gulag, 248, 306, 324, 436, 476, 479, 511, 514, 544, 545, 548, 549
Ukhtinskaya, Expedição, 120-127, 238
Ukhtizhemlag, 442, 531
Ukhtpechlag, 125, 127, 128, 131, 133, 134, 141,153,158, 234, 625
Ulyanovskaya, Maya, 535
Ulyanovskaya, Nadezhda, 295, 405, 446
União Operária Popular, 544
Unzhlag, 317
urânio, extração de, 497, 514
Usakova, Galina, 400, 571
Usova, Zinaida, 408
Uspensky,72
Ustieva, Vera, 501
Ust-Usa, rebelião de, 461-465
Ustvymlag, 307, 317, 327, 429, 470, 479
V
vagões de gado, 208, 211, 270 Vaigach, Expedição, 124, 238
Vakhaev, 564
Vanino, campo de, 204, 213, 307
Vasileevna, Olga, 159, 311, 536
Vavilov, 561
"Vek" (Osip Mandelstam), 43
Vesyolaya, Zayara, 196, 197, 202
vida nos campos do Gulag, 24, 229-263; caráter absurdo da, 286-287; alojamentos, 241-249; banhos, 249-254; presos moribundos, 387-396; situação alimentar, 254-263;
liberdade de movimento, 234; processo de iniciação, 221-228; contatos extramuros, 296-304; na era pós-stalinista, 595; regime punitivo, 291-296, 603; regime cotidiano
(rezhim), 236-241; descrições dadas por Soljenitsin, 579-585; zona prisional, 231-236; campos do canal do mar Branco, 107-110; Ver também sobrevivência, estratégias
de Vidal, Gore, 635
Vilensky, Simeon, 497, 549
Violaro, conde, 69
Vishlag, 116,129, 159
visitas de familiares, 292-296
visitas femininas aos presos, 302-304
vitamínica, carência, 257, 311, 387
Vladimir, prisão de, 602, 603
Vladimirova, Elena, 264
Vlasov, general Andrei, 324, 493
Vogelfanger, Isaac, 177, 247, 317, 368, 394, 398, 431, 433
Volgostroi, campo de, 259, 322, 328
Volkogonov, Dmitri, 32, 146
Volkonskaya,-princesa Maria, 31, 204-205
Volkov, Oleg, 64, 84
Volovich, Hava, 187, 366, 371, 373, 499
Vorkuta, campos de, 122, 125, 126, 127, 150, 151, 232, 239, 241, 243, 245, 264, 270, 273, 276, 278, 292, 301, 310, 315, 316, 352, 399, 420, 446, 462, 465, 491, 496,
523, 525, 532, 535, 536, 546, 625; rebeliões de presos, 452, 460
Voroshilov,K.Y., 578
Vospominaniya (Likhachev), 43
Vosturallag, 289
Voznesensky, Andrei, 565
Vozvrashchenie, editora, 9, 22
Vtoraya Rechka, prisão de, 212-213
Vyatlag, 159, 239, 259, 260, 322, 323, 328, 420, 524, 536, 553
Vyshinsky, Andrei, 142, 158
Vysotsky, Vladimir, 595
w
Wallace, Henry, 499-502
Wallenberg, Raul, 490-492
Warwick,Walter, 346
Wat, Aleksander, 170, 352, 445, 478
Waydenfeld, Stefan, 510
Webb, Sidney e Beatrice, 19
Wedów, Janusz, 503, 510
Weissberg, Alexander, 170, 199, 200, 224, 267, 275
Wigmans, Johan, 385
Y
Yagoda, Genrikh, 74, 91, 92, 98, 99, 108, 126,140,142, 144,153,158, 191,195
Yakir, lon, 143, 224
Yakir, Pyotr, 224, 364, 378, 382, 386, 588, 605
Yakovlev, Aleksandr, 631
Yalta, Conferência de, 494
Yanson, Comissão, 91, 92, 94, 96,101, 103, 111
Yaroslavl, prisão de, 194
Yashenko, 77
Yashkin, Afanasy, 462, 464
Yasnyi,VK., 151, 420
Yegorov, Sergei, 561, 562
Yeltsin, Boris, 488, 606
Yezhov, Nikolai, 140, 150, 152, 153, 154, 182, 183
Yurganova, Valentina, 376, 379
Yurilkin, 340
Yuzhkuzbasslag, 541
Yuzhnev, 76
z
Zakharova, Anna, 326, 405
Zaporozhets, Natalya, 370
Zarod, Kazimierz, 200, 235, 237, 238, 240, 262, 275, 328, 329, 440, 510
Zayatsky Ostrov, campo de, 60
Zhdanov, 531
Zhenov, Georgii, 175, 300, 309 Zhigulin, Anatolii, 202, 321, 323, 335, 367, 368, 434, 435, 447, 450, 527, 528, 616, 632
Zinoviev, Grigory, 137-138, 572 Zorin,Yuri, 220, 399, 400, 410, 440, 570
Á primeira e terceira partes do livro contam, de forma cronológica, a ascensão e queda desse sistema repressivo e sua relação com as situações econômicas, políticas
e sociais no país e no mundo. Entre elas, a narrativa pungente da vida dos condenados aos campos de concentração, da captura e interrogatório, por vezes violento,
passando pela transferência e chegada aos locais de punição, pelo dia-a-dia cruel e sua rotina desumana, às estratégias de sobrevivência, tentativas de fuga, rebeliões
e morte.
Anne Applebaum é colunista e integrante do Conselho Editorial do Washington Post. Foi correspondente em Varsóvia da Economist e trabalhou como editora de Internacional
da íspectator (Londres). Tem artigos publicados no Hew York Review of Books, Foreign Áffairs e The Wall Street Journal Com Gulag, obra já traduzida para mais de
doze idiomas, ganhou o Prêmio Pulitzer 2004 e o Britain's Duff-Cooper Prize.
O colapso da União Soviética trouxe à tona detalhes sobre um dos maiores crimes contra a humanidade cometidos no século xx. Coberto com um véu de segredo, o Gulag
compreendia uma série de campos de concentração que atravessava o país. suas localizações foram apagadas dos mapas oficiais, mas, ao lado do exílio forçado, eram
um dos principais instrumentos do terrorismo de estado do totalitarismo comunista. Neles, milhões de criminosos e, principalmente, prisioneiros políticos trabalharam
como escravos, em condições sub-humanas, para ajudar a desenvolver e sustentar a cambaleante economia soviética, da revolução de 1917 até os anos 80. Com acesso
privilegiado a documentos do antigo regime e relatos de sobreviventes, Anne Applebaum conta a história desse massacre, do ponto de vista dos seus planejadores e
de suas vítimas, escrevendo definitivamente o nome gulag na galeria da infâmia mundial, ao lado de outros como treblinka, sobibor e Auschwitz.A Lista de Schindler
(Um Herói do Holocausto)
Durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto o Reich, acossado pelas sucessivas derrotas, enviava diariamente 60 mil seres humanos aos fornos de Auschwitz, o industrial
alemão Oskar Schindler abrigava milhares de judeus em sua fábrica, de onde ele finalmente os transferia em segurança para a Tchecoslováquia. Um lugar na "lista de
Schindler" significava, no mínimo, esperança de futuro para um prisioneiro judeu.
No decorrer daqueles anos de guerra, Schindler despendeu imensa fortuna em subornos para a SS e em alimentos e remédios adquiridos no mercado negro para os seus
prisioneiros. Levando uma vida cheia de riscos, manejou com incrível habilidade os cordões que o ligavam a autoridades alemãs. Ninguém jamais compreendeu o que o
impeliu a arriscar a própria vida para salvar tantos estranhos. E é este mistério - juntamente com o relato de seus inacreditáveis atos e seu imenso valor moral
- que marcará indelevelmente o nome de Oskar Schindler nas páginas da História.
Romancista, dramaturgo e produtor, Thomas Keneally passou dois anos entrevistando sobreviventes Schindlerjuden em oito países, inclusive Austrália, Israel, Estados
Unidos, Polônia, Alemanha Ocidental e Áustria. Baseado nesses depoimentos e nos testemunhos que se encontram na Seção de Lembrança dos Mártires e Heróis, no Yad
Vashem, ele realizou esta espantosa recriação de um episódio histórico, narrado com toda a ênfase de uma ficção. Agraciado com o Prêmio Booker, da Inglaterra, A
Lista de Schindler tornou-se um dos maiores sucessos cinematográficos de Steven Spielberg, considerado pela Associação dos Críticos de Nova York e Los Angeles.À
memória de Oskar Schindler,
e a Leopold Pfefferberg,
que, pelo seu zelo e persistência,
fez com que este livro fosse escrito.
NOTA DO AUTOR
Em 1980, entrei numa loja de malas em Beverly Hills, Califórnia, e perguntei os preços de pastas para documentos. A loja pertencia a Leopold Pfefferberg, um sobrevivente
Schindler. Foi sob prateleiras de mercadorias de couro italiano importado que ouvi pela primeira vez a história de Oskar Schindler, um alemão bon vivant, especulador,
homem sedutor, e - sinal típico de sua personalidade contraditória - como salvou um segmento de uma raça condenada durante aqueles anos agora conhecidos pelo nome
genérico de Holocausto.
Este relato da espantosa história de Oskar se baseia, em primeiro lugar, nas entrevistas com cinqüenta sobreviventes Schindler em sete nações - Austrália, Israel,
Alemanha Ocidental, Áustria, Estados Uni dos, Argentina e Brasil. É incrementado por uma visita, na companhia de Leopold Pfefferberg, a locais mencionados em destaque
no livro: Cracóvia, cidade de adoção de Oskar; Plaszóvia, cenário dos torpes trabalhos forçados de Goeth; a Rua Lipowa, Zablocie, onde ainda se situa a fábrica de
Oskar; Auschwitz-Birkenau, de onde Oskar arrancou suas prisioneiras. Mas a narrativa se baseia também em documentos e outras informações fornecidos pelos poucos
associados de Oskar na época da guerra, que ainda podem ser encontrados, bem co mo pelos seus muitos amigos do pós-guerra. Numerosos testemunhos relativos a Oskar,
depositados pelos Judeus Schindler no Yad Vashem, a Autoridade de Recordação de Mártires e Heróis, amplificam este re lato, assim como os depoimentos por escrito
de fontes privadas e um contexto de documentos e cartas de Schindler, alguns fornecidos pelo Yad Vashem, outros por amigos de Oskar.
O estilo e o esquema adotados nos romances têm sido freqüente mente usados por autores modernos para contar uma história verdadeira. Foi o caminho que decidi seguir
aqui - não só por ser de romancista a minha única profissão, mas porque a técnica do romance me pareceu adequada a um personagem da ambigüidade e magnitude de Oskar.
Contudo, tentei evitar qualquer ficção, pois assim fazendo iria adulterar o relato, e procurei separar a realidade dos mitos que se criam em torno de um homem da
envergadura de Oskar. Por vezes se fez necessário uma reconstrução razoável das conversações que Oskar e outros poucos relataram. Mas a maioria dos contatos e entendimentos,
e todos os eventos se baseiam nas recordações detalhadas dos Schindlerjuden (Judeus Schindler), do próprio Schindler e de outras testemunhas dos incríveis salvamentos
por ele efetuados.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a três sobreviventes Schindler - Leopold Pfefferberg, o juiz Mosh Bejski, da Suprema Corte de Israel, e Mieczyslaw Pemper
- que não somente transmitiram suas rememorações de Oskar ao autor e lhe forneceram certos documentos que contribuíram para a exatidão da narrativa, mas também leram
o rascunho do livro e sugeriram algumas correções. Muitos outros, quer fossem sobreviventes Schindler ou aqueles que conheceram Oskar no pós-guerra, deixaram-se
entrevistar e forneceram generosamente informações através de cartas e documentos. Nessa lista estão incluídos Frau Emilie Schindler, Sra. Ludmila Pfefferberg, Dra.
Sophia Stern, Sra. Helen Horowitz, Dr. Jonas Dresner, Sr. e Sra. Henry Rosner, Leopold Rosner, Dr. Alex Rosner, Dr. Idek Schindel, Dra. Danuta Schindel, Sra. Regina
Horowitz, Sra. Bronislawa Karakulska, Sr. Richard Horowitz, Sr. Shmuel Springmann, o falecido Sr. Jakob Sternberg, Sr. Jerzy Sternberg, Sr. e Sra. Lewis Fagen, Sr.
Henry Kinstlinger, Sra. Rebecca Bau, Sr. Edward Heuberger, Sr. e Sra. M. Hirschfeld, Sr. e Sra. Irving Glovin e muitos outros. O Sr. e Sra. E. Korn não somente relataram
suas rememorações de Oskar mas foram para mim um estí mulo constante. No Yad Vashem, Dr. Josef Kermisz, Dr. Shmuel Krakowski, Vera Prausnitz, Chana Abells e Hadassah
Mõdlinger proporcionaram amplo acesso aos testemunhos de sobreviventes Schindler e ao material fotográfico e de vídeo.
Finalmente, gostaria de render homenagem aos esforços do falecido Sr. Martin Gosch no sentido de levar ao conhecimento do mundo o nome de Oskar Schindler e transmitir
meus agradecimentos à sua viúva, Sra. Lucille Gaynes, pela sua cooperação neste projeto.
Através da assistência de todas essas pessoas, a espantosa história de Oskar Schindler aparece pela primeira vez detalhadamente.
Tom Keneally
A Lista de Schindler
(Um Herói do Holocausto)
Prólogo
Outono de 1943
E
m pleno outono na Polônia, um rapaz alto, envergando um elegante sobretudo por cima de um dinner jacket, em cuja lapela trazia uma vistosa Hakenkreuz (suástica)
de ouro e esmalte preto, emergiu de um luxuoso edifício de apartamentos na Rua Straszewskiego, nas circunvizinhanças do antigo centro de Cracóvia. O seu chofer o
esperava, com a respiração condensada pelo frio, junto à porta aberta de uma imensa limusine Adler, que reluzia apesar da escuridão da rua.
- Cuidado com a calçada, Herr Schindler - advertiu o chofer. - Está mais gélida do que um coração de viúva.
Ao observar essa pequena cena de inverno, estamos em terreno seguro. O rapaz alto iria usar até o fim de seus dias jaquetões, iria - sendo praticamente um engenheiro
- ser sempre agraciado com veículos lustrosos e - embora alemão e, neste ponto da história, alemão de alguma influência - ser, enquanto vivesse, o tipo de homem
a quem um chofer polonês podia dirigir uma discreta piada em tom de camaradagem.
Mas não será possível apreender toda a história com a simples descrição desses pormenores característicos. Pois se trata da história do triunfo pragmático do bem
sobre o mal, um triunfo em termos rigorosamente mensuráveis, estatísticos e nada sutis. Quando se considera o outro lado da fera - quando se relata o previsível
sucesso que o mal geralmente alcança - é fácil ser perspicaz e deturpar, a fim de evitar um anticlímax. É fácil mostrar a inevitabilidade com que o mal adquire o
que se poderia chamar de propriedade da história, ainda que o bem possa terminar com uns poucos e imponderáveis triunfos, tais como dignidade e autoconhecimento.
A fatal malícia humana é a matéria-prima dos narradores, o pecado original, o fluido materno dos historiadores. Mas é um empreendimento arriscado escrever sobre
a virtude.
Com efeito, "virtude" é uma palavra tão perigosa que temos de nos apressar em explicar: Herr Oskar Schindler, arriscando os seus re luzentes sapatos na gélida calçada
daquele velho e elegante bairro de Cracóvia, não era um rapaz virtuoso no sentido convencional. Nessa cidade, ele instalara sua amante alemã numa casa e mantinha
um prolongado caso com sua secretária polonesa. Sua mulher, Emilie, preferia passar a maior parte do tempo no lar em Morávia, ainda que de vez em quando fosse visitar
o marido na Polônia. É preciso que se diga isso em favor de Oskar: com todas as suas mulheres ele se mostrava um amante polido e generoso. Mas na interpretação usual
de "virtude", essas qualidades não servem como desculpa.
Além disso, era dado a bebidas. Às vezes bebia por simples prazer, outras vezes com companheiros, burocratas, membros da SS para obter informações mais concretas.
Era capaz, como poucos, de se manter alerta enquanto bebia, de não perder a cabeça. Também isso - segundo uma rígida interpretação de moralidade - nunca foi desculpa
para farras. E ainda que o mérito de Herr Schindler esteja bem documentado, é um traço da sua ambigüidade o fato de que ele trabalhava dentro ou, pelo menos, na
periferia de um esquema corrupto e selvagem, que enchia a Europa de campos de variada e dura desumanidade e criava uma submersa e muda nação de prisioneiros. Portanto,
talvez seja melhor começarmos experimentalmente com um caso ilustrativo da estranha virtude de Herr Schindler e dos locais e pessoas que o levaram a agir naquele
sentido.
No final da Rua Straszewskiego, o carro passou sob a negra massa do Castelo Wawel, de onde o advogado Hans Frank, o bem-amado do Partido Nacional-socialista, governava
a Polônia. Luz alguma brilhava no palácio do gigante mau. Nem Herr Schindler nem o seu chofer lançaram sequer um olhar aos baluartes quando o carro rumou na direção
do rio. Na Ponte Podgórze, os guardas, postados acima do Vístula congelado para impedir a passagem de guerrilheiros e infratores do toque de recolher entre Podgórze
e Cracóvia, estavam habitua dos ao veículo, ao rosto de Herr Schindler, ao Passierschein apresentado pelo chofer. Herr Schindler atravessava freqüentemente aquela
barreira, indo da sua fábrica (onde mantinha também um apartamento) para o centro da cidade; ou então do seu apartamento na Rua Straszewskiego para a sua usina no
subúrbio de Zablocie. Estavam também habituados a vê-lo à noite, em trajes formais ou semiformais, a caminho de algum jantar, festa ou encontro amoroso. Talvez,
como era o caso nessa noite, rumando uns dez quilômetros para fora da cidade, onde se situava o campo de trabalhos forçados de Plaszóvia para jantar com o SS Hamptsturmführer
Amon Goeth, um libertino altamente colocado. Herr Schindler gozava a fama de ser generoso com presentes de bebidas no Natal, portanto o seu carro tinha permissão
para entrar sem formalidades no subúrbio de Podgórze.
É verdade que nessa fase de sua história, apesar de uma preferência por boa comida e bons vinhos, Herr Schindler encarava o jantar com o Comandante Goeth com mais
desagrado do que satisfação. Com efeito nunca houvera ocasião em que se sentar e beber em companhia de Amon não lhe fosse uma perspectiva repelente. Entretanto,
havia na repulsa de Herr Schindler algo de picante, um antigo, excitante senso de abominação - algo como a sensação que causa, numa pintura medieval, a vista dos
justos lado a lado com os malditos. Uma emoção que, por assim dizer, mais o aguilhoava do que acovardava.
No interior forrado de couro preto do Adler, que corria ao lado dos trilhos do bonde, no local onde até recentemente fora o gueto judaico, Herr Schindler - como
sempre - fumava um cigarro atrás do outro. Mas a sua maneira de fumar era calma. Jamais se via tensão nas suas mãos; sua atitude era elegante; seus modos sugeriam
que ele sabia de onde viriam o próximo cigarro e a próxima garrafa de conhaque. Somente ele poderia nos dizer se tinha de se fortalecer com uns goles de seu frasco
de bolso, ao passar pela silenciosa e sombria aldeia de Prokocim, onde se via, parada junto ao leito da estrada para Lwów, uma fileira de vagões de gado, que poderiam
estar transportando sol dados de infantaria ou prisioneiros, ou até mesmo - embora fosse pouco provável - gado.
Já no subúrbio, talvez a uns dez quilômetros do centro da cidade, o Adler dobrou à direita e entrou numa rua chamada - por ironia - Jerozolimska. Nessa noite de
marcantes contornos congelados, Herr Schindler notou à primeira vista, abaixo da colina, uma sinagoga em ruínas, e depois as formas nuas do que naqueles dias equivalia
à cidade de Jerusalém, o Campo de Trabalhos Forçados de Plaszóvia, a cidade de casernas de 20.000 judeus inquietos. Os SS ucranianos e Waffen cumprimentaram cortesmente
Herr Schindler, pois ele era tão conhecido ali como na Ponte Podgórze.
Quando se achou no mesmo nível que o Prédio da Administração, o Adler avançou por um caminho margeado por sepulturas judaicas. Até dois anos atrás, o acampamento
fora um cemitério judaico. O Comandante Goeth, que se dizia poeta, usara na construção daquele campo todas as metáforas que lhe ocorreram. Essa metáfora de tumbas
arrebentadas percorria a extensão do campo, dividindo-o em dois, mas não se estendia a leste para a villa, ocupada pelo próprio Comandante Goeth.
À direita, depois da caserna dos guardas, erguia-se uma antiga construção mortuária dos judeus. Parecia proclamar que ali toda a mor te era natural, causada pelo
desgaste, que todos os mortos estavam devidamente enterrados. Na realidade, o local era agora usado como a estrebaria do comandante. Embora estivesse habituado ao
cenário, é possível que este ainda provocasse em Herr Schindler a reação de uma ligeira tosse irônica. Admissivelmente, se alguém fosse reagir a cada aspecto irônico
da nova Europa, essa reação passaria a fazer parte de sua bagagem. Mas Herr Schindler possuía uma imensa capacidade de carregar consigo tal bagagem.
Nessa noite, um prisioneiro chamado Poldek Pfefferberg encaminhava-se também para a residência do comandante. Lisiek, a ordenança de dezenove anos, fora à caserna
de Pfefferberg munido de passes assinados por um oficial graduado da SS. O problema do rapaz era o fato de que a banheira do comandante estava com um anel encardido
em seu interior, e Lisiek tinha medo de ser espancado, quando o Co mandante Goeth fosse tomar o seu banho matinal. Pfefferberg, que fora professor no curso secundário
de Lisiek em Podgórze, trabalhava na garagem do campo e tinha acesso a solventes. Assim, acompanha do por Lisiek, ele foi até a garagem e apanhou um esfregão e uma
lata de detergente. Aproximar-se da residência do comandante era sempre uma aventura duvidosa, mas significava a chance de receber comida de Helen Hirsch, a maltratada
empregada judia de Goeth, moça gene rosa que também fora discípula de Pfefferberg.
Quando o Adler de Herr Schindler se encontrava ainda a cem metros da villa, os cães começaram a latir - o dinamarquês, o fila e to dos os animais mantidos em canis
atrás da casa. A construção era de forma quadrada, com um sótão. As janelas do sobrado davam para uma varanda. Contornando todas as paredes havia um terraço com
balaustrada. Amon Goeth gostava de sentar-se ao ar livre no verão. Desde que chegara a Plaszóvia aumentara de peso. No próximo verão seria um rotundo adorador do
sol. Mas naquela versão particular de Jerusalém, ele estaria a salvo de pilhérias.
Um Unterscharführer SS (sargento), exibindo luvas brancas, estava nessa noite postado junto à porta da entrada. Bateu continência e introduziu Herr Schindler na
casa. No saguão, Ivan, a ordenança ucraniana, apanhou o sobretudo e o chapéu-coco de Herr Schindler. Este apalpou o bolso de cima do paletó para se certificar de
que estava com o presente para o seu anfitrião: uma cigarreira folheada a ouro adquirida no mercado negro. Amon estava tão bem de finanças, especial mente negociando
com jóias confiscadas, que se ofenderia se recebesse algo menos que um folheado a ouro.
Ao pé das portas duplas, que abriam para a sala de jantar, os ir mãos Rosner estavam extraindo melodias, Henry de um violino, Leo de um acordeão. Por ordem de Goeth,
eles tinham posto de lado as roupas esfarrapadas, que usavam durante o dia na oficina de pintura do campo, e envergado os trajes de noite, mantidos em sua caserna
para eventos como aquele. Oskar Schindler sabia que, embora o co mandante admirasse a música dos Rosner, estes nunca se sentiam tranqüilos, quando tocavam na villa.
Já conheciam bem Amon. Sabiam que ele era imprevisível e dado a execuções ex tempore. Assim, tocavam com cautela, no receio de que sua música, de repente, inexplicavelmente,
se tornasse ofensiva.
A mesa de Goeth essa noite iriam sentar-se sete homens. Além do próprio Schindler e do anfitrião, os convidados incluíam Julian Scherner, chefe da SS para a região
de Cracóvia, e Rolf Czurda, chefe da divisão em Cracóvia da SD, o Serviço de Segurança do falecido Heydrich. Scherner era um Oberführer - um posto entre coronel
e general-de-brigada, para o qual não existe equivalente no Exército; Czurda, um Obersturmbannführer, equivalente a tenente-coronel. Goeth era um Hauptsturmführer,
ou seja, capitão. Scherner e Czurda eram os convidados de mais alta categoria, pois aquele campo estava sob a sua autoridade. Eram ambos alguns anos mais velhos
do que o Comandante Goeth, e o chefe de polícia SS Scherner parecia positivamente um homem já maduro, com seus óculos, cabeça calva e leve obesidade. Ainda assim,
em virtude dos hábitos extravagantes do seu protegido, a diferença de idade entre ele e Amon não parecia ser significativa.
O mais velho do grupo era Herr Franz Bosch, um veterano da Primeira Guerra, gerente de várias oficinas, legais e ilegais, dentro de Plaszóvia. Era também "conselheiro
econômico" de Julian Scherner e tinha interesses comerciais na cidade.
Oskar sentia desprezo por Bosch e pelos dois chefes de polícia, Scherner e Czurda. Contudo, a cooperação deles era essencial à existência de sua peculiar fábrica
em Zablocie, e assim constantemente mandava-lhes presentes. Os únicos convidados por quem ele sentia alguma simpatia eram Julius Madritsch, proprietário da fábrica
de uni formes Madritsch, dentro do campo de Plaszóvia, e Raimund Titsch, seu gerente. Madritsch era cerca de um ano mais moço do que Oskar e o Comandante Goeth.
Homem empreendedor, porém humano; se lhe pedissem para justificar a existência de sua rendosa fábrica dentro do campo, argumentaria que mantinha quase quatro mil
prisioneiros empregados e portanto a salvo das usinas de matança. Raimund Titsch, de quarenta e poucos anos, retraído e de físico franzino (que provavelmente deixaria
cedo a reunião), contrabandeava para dentro do campo caminhões de alimentos para os seus prisioneiros (empreendimento que poderia custar-lhe uma permanência fatal
na prisão de Montelupich, a cadeia da SS, ou então Auschwitz) e tinha o mesmo ponto de vista de seu patrão.
Tal era o grupo de convidados para o jantar na villa do Comandante Amon Goeth.
As quatro convidadas, muito bem penteadas e usando roupas caras, eram mais jovens do que qualquer dos homens, e todas prostitutas de alta categoria. Alemãs e polonesas,
de Cracóvia. Algumas delas compareciam regularmente àqueles jantares. O seu número permitia certa opção de escolha para os dois oficiais superiores. Majola, a amante
alemã de Goeth, em geral ficava em seu apartamento na cidade durante aqueles festejos de Amon. Considerava tais jantares como orgias masculinas e, portanto, ofensivas
à sua sensibilidade.
Não havia dúvida de que, à maneira deles, os chefes de polícia e o comandante gostavam de Oskar. Achavam, contudo, haver algo de estranho nele. Talvez estivessem
dispostos a considerar essa impressão como motivada pela origem de Oskar, um alemão da região Sudeste, entre a Boêmia e a Silésia - a mesma diferença de Arkansas
para Manhattan ou de Liverpool para Cambridge. Havia dúvidas a respeito de sua mentalidade, embora ele fosse bom pagador, sempre pronto a fornecer mercadorias escassas,
soubesse beber sem se embriagar e tivesse às vezes um senso de humor um tanto ousado. Era a espécie de homem para quem se sorria e cumprimentava do outro lado da
sala, mas não era necessário tratá-lo efusivamente.
É bem provável que os membros da SS tivessem se dado conta da chegada de Schindler ao notar um frisson entre as quatro moças. Os que conheceram Oskar naquela época
falam do charme magnético que ele exercia especialmente sobre as mulheres, com as quais seus sucessos eram escandalosamente constantes. Os dois chefes de polícia,
Czurda e Scherner, voltaram-se para Schindler, talvez procurando um meio de atrair também a atenção das moças. Goeth adiantou-se para estender Ihe a mão. Era tão
alto quanto Schindler, e sua obesidade, anormal para um homem de trinta e poucos anos, era ainda mais acentuada pela altura e físico atlético. O rosto não tinha
marcas especiais, a não ser pelos olhos avinhados. O fato era que o comandante costumava ingerir uma quantidade imoderada do conhaque local.
Contudo, os sinais de excesso de bebida não eram tão marcantes nele como em Herr Bosch, o gênio da economia da SS em Plaszóvia. O nariz de Herr Bosch era de um vermelho
arroxeado; o oxigênio que deveria correr-lhe nas veias do rosto havia muito passara a alimentar a intensa chama azul de todo aquele álcool. Cumprimentando-o, Schindler
teve a certeza de que nessa noite, como de costume, Bosch iria fazer-lhe um pedido de mercadorias.
- Que seja bem-vindo o nosso industrial! - exclamou Goeth, e então apresentou-o formalmente às moças. No decorrer da cena, os irmãos Rosner tocaram melodias
de Strauss, os olhos de Henry fixando através das cordas de seu violino o canto mais vazio da sala e Leo sorrindo de olhos baixos para as teclas de seu acordeão.
Enquanto beijava a mão das moças, Herr Schindler sentiu certa piedade delas, pois sabia que mais tarde - quando começassem as brincadeiras de palmadinhas e cócegas
- as palmadas podiam deixar vergões e as cócegas arranharem a pele. Mas, por enquanto, o Hauptstumführer Amon Goeth, um sádico quando embriagado, portava-se como
um exemplar cavalheiro vienense.
As conversas antes do jantar foram banais. Falou-se na guerra e, enquanto o Chefe da Segurança Czurda se empenhava em garantir a uma alemãzinha alta que a Criméia
estava totalmente dominada, o chefe da SS Scherner contava a outra moça que um jovem, que ele conhecera em Hamburgo, bom sujeito, Oberscharführer na SS, tinha perdido
as duas pernas na explosão de uma bomba lançada pelos guerrilheiros dentro de um restaurante em Czestochowa. Schindler conversou sobre assuntos industriais com Madritsch
e seu gerente Titsch. Havia entre os três empresários uma amizade genuína. Herr Schindler sabia que o franzino Titsch adquiria ilegalmente, no mercado negro, grandes
quantidades de pão, que destinava aos prisioneiros da fábrica de uni formes Madritsch. Tal gesto era de mera humanidade, pois na opinião de Schindler os lucros na
Polônia eram bastante altos para satisfazer o mais inveterado capitalista e justificar gastos ilegais na aquisição de um pouco mais de pão. No caso de Schindler,
os contratos com a Rustungsinspektion, a Inspetoria de Armamentos - organismo que pro punha lances e concedia contratos para a manufatura de todos os artigos necessários
ao Exército alemão - tinham sido tão numerosos que ele ultrapassara seu desejo de ser bem-sucedido aos olhos do pai. Infeliz mente, Madritsch, Titsch e ele próprio
éramos únicos que compravam regularmente pão no mercado negro.
Pouco antes de Goeth avisar que o jantar estava servido, Herr Bosch aproximou-se de Schindler, tomou-o pelo cotovelo, como ele previra, e o conduziu para junto à
porta, onde se achavam os músicos, como se esperasse que as impecáveis melodias dos Rosner abafassem a conversa.
Os negócios vão bem, pelo que vejo - disse Bosch. Schindler sorriu para o SS.
Ah, então está dando para perceber, Herr Bosch?
É claro - replicou Bosch. Era evidente que Bosch andara consultando os boletins oficiais da Junta de Armamentos, onde eram mencionados os contratos concedidos à
fábrica de Schindler.
Eu estava pensando - disse Bosch, inclinando a cabeça - que, em vista do seu atual surto de prosperidade, graças, afinal de contas, aos nossos muitos êxitos nas
frentes de combate... Eu estava pensando se o senhor não gostaria de fazer um gesto generoso. Nada de maior. Apenas um gesto.
É claro - respondeu Schindler. Sentia a náusea de estar sendo usado e, ao mesmo tempo, uma sensação próxima do regozijo. O departamento do chefe de polícia Scherner
por duas vezes usara a sua influência para tirar Oskar Schindler da prisão. Os auxiliares do chefe iriam sentir-se ainda mais na obrigação de repetir a providência.
A minha tia em Bremen, pobrezinha, teve a sua casa bombardeada - explicou Bosch. - Tudo foi arrasado. A cama nupcial. Os aparadores. Todas as louças e panelas. Pensei
que talvez pudesse lhe arranjar uns utensílios de cozinha. E talvez uma ou duas terrinas - aquelas sopeiras grandes fabricadas na sua DEF.
Deutsche Emailwaren Fabrik (Fábrica Alemã de Utensílios Esmaltados) era o nome do próspero negócio de Herr Schindler. DEF era a sigla usada pelos alemães, mas poloneses
e judeus abreviavam o no me da fábrica para Emalia.
- Acho que posso dar um jeito - concordou Herr Schindler.
- Quer que a mercadoria seja consignada diretamente para sua tia oupara o senhor?
- Para mim, Oskar - respondeu Bosch, sem sequer um sorriso.
- Quero mandar-lhe junto um cartão.
É claro.
Então está combinado. Digamos meia grosa de tudo... pratos de sopa e de servir, cafeteiras. E uma meia dúzia daquelas terrinas.
Inclinando a cabeça para trás, Herr Schindler riu abertamente, embora com certo enfado. Mas, quando falava, o seu tom era afável. E realmente isso fazia parte da
sua natureza. Sempre estava disposto a presentear. Mas o fato era que os parentes de Bosch pareciam ter uma grande tendência para serem bombardeados.
- Sua tia dirige um orfanato? - perguntou Oskar.
Bosch tornou a fitá-lo nos olhos; não havia nada de furtivo naquele bêbado.
Ela é uma mulher idosa e sem recursos. Poderá negociar os artigos que sobrarem.
Direi à minha secretária que providencie a remessa.
Aquela garota polonesa? A bonita?
- Sim, a bonita - concordou Schindler.
Bosch tentou soltar um assobio mas os nervos de seus lábios ha viam afrouxado com o excesso de conhaque, e apenas conseguiram emitir um estranho sopro.
Sua mulher - disse ele de homem para homem - deve ser uma santa.
Sim, uma santa - admitiu Herr Schindler secamente. Não se importava de fornecer mercadorias a Bosch, mas lhe desagradava ouvi-lo falar sobre sua mulher.
Diga-me - disse Bosch - como consegue que sua mulher não interfira? Ela deve saber... e, no entanto, você parece capaz de controlá-la muito bem.
A afabilidade desapareceu do semblante de Schindler. O seu de sagrado era óbvio. Contudo, o tom rosnado de irritação não diferiu muito de sua voz normal.
Nunca discuto assuntos particulares - declarou.
Oh, perdoe-me - desculpou-se apressadamente Bosch. - Não tive a intenção... - E continuou pedindo desculpas incoerentes.
Herr Schindler não prezava Herr Bosch o suficiente para lhe explicar que, naquela altura de sua vida, não se tratava de controlar ninguém, que o desastre matrimonial
do casal era antes de tudo decorrente do temperamento ascético de Frau Emilie Schindler e do temperamento hedonista de Herr Oskar Schindler. Haviam-se casado de
livre e espontânea vontade, apesar de essa união ter sido desaconselhada. Mas a irritação de Oskar contra Bosch era mais profunda do que ele próprio estava disposto
a admitir. Emilie era muito semelhante a Frau Louisa Schindler, a falecida mãe de Oskar. Herr Schindler pai abandonara Louisa em 1935. Assim, Oskar tinha a sensação
visceral de que, ao falar com descaso do casamento Emilie-Oskar, Bosch estava também aviltando o casamento dos pais.
Bosch continuava desdobrando-se em desculpas. Bosch, que tinha a mão enfiada na gaveta de todas as máquinas registradoras de Cracóvia, estava agora suando frio de
medo de perder a sua meia grosa de utensílios de cozinha.
Os convidados sentaram-se à mesa. Uma sopa de cebolas foi ser vida por uma criada. Enquanto todos comiam e conversavam, os ir mãos Rosner continuavam a tocar, aproximando-se
mais da mesa, mas não tão perto que pudessem atrapalhar os movimentos da criada ou de Ivan e Petr, as duas ordenanças ucranianas de Goeth. Schindler, sentado entre
a moça alta, de quem Scherner se apropriara, e uma polonesa de rosto meigo e físico delicado que falava alemão, reparou que as duas olhavam para a criada. Esta usava
o tradicional uniforme doméstico, vestido preto e avental branco, mas em seu braço não havia nenhuma estrela judaica, ou risco de tinta amarela nas costas. Entre
tanto, era judia. O que atraíra a atenção das outras moças era o estado de seu rosto. Em seu queixo via-se uma equimose, e seria de se imaginar que Goeth tivesse
vergonha de exibir para os seus convidados uma criada em tais condições. Ambas as moças e Schindler notaram também, além da pisadura no rosto, um alarmante vergão
arroxeado, que a gola do vestido nem sempre escondia, na junção do pescoço fino com o ombro.
Não somente Amon Goeth não procurou desviar a atenção geral da pessoa da criada, como virou sua cadeira para ela, ordenando-lhe, com um gesto de mão, que se aproximasse,
exibindo-a para os presentes. Fazia seis semanas que Schindler não vinha àquela casa, mas sabia pelos seus informantes que a relação entre Goeth e a criada era de
uma estranha crueldade. Quando se achava com amigos, ele se referia a ela como assunto de conversa. Só a escondia quando era visitado por oficiais graduados de fora
da região de Cracóvia.
Senhoras e cavalheiros - anunciou ele, imitando o tom de um embriagado mestre-de-cerimônias num cabaré - quero apresentar-lhes Lena. Após cinco meses em minha casa,
ela agora está se saindo bem na cozinha e comportando-se adequadamente.
Posso ver pelo seu rosto - disse a moça alta - que ela deve ter sofrido uma colisão com a mobília da cozinha.
E logo a cadela poderá sofrer outra colisão - retorquiu Goeth, com uma risada jovial. - Sim, outra colisão, não é mesmo, Lena?
Ele não é mole com mulheres - comentou o chefe SS, piscando para a sua parceira. A intenção de Scherner talvez não fosse racista, pois ele não se referira a mulheres
judias, mas sim às mulheres em geral. Mas sempre que Goeth se lembrava da origem de Lena é que ela era mais severamente punida, quer em público, diante dos convidados,
quer mais tarde, depois de todos se terem retirado. Scherner, sendo mais graduado do que Goeth, poderia ordenar ao comandante que parasse de espancar a criada. Mas
isso não seria polido para com o seu anfitrião e poderia vir a perturbar as amistosas reuniões na villa. Scherner vinha ali não como oficial superior, mas como amigo,
companheiro de orgias, apreciador de mulheres. Amon era um sujeito esquisito, mas ninguém como ele para organizar festinhas.
Em seguida foi servido arenque com molho e mocotó de porco admiravelmente preparados e apresentados por Lena. Com a carne foi servido um pesado vinho tinto húngaro;
os irmãos Rosner puseram-se a tocar ardentes czardas, e o ar na sala de jantar esquentou, fazendo com que todos os oficiais despissem as jaquetas. Falou-se de novo
em contratos de guerra. Perguntaram a Madritsch, o fabricante de fardas, como ia a sua fábrica em Tarnow. Estava conseguindo tantos contra tos na Inspetoria de Armamentos
quanto a sua fábrica em Plaszóvia? Madritsch passou a pergunta a Titsch, o seu magro e ascético gerente. De repente, Goeth pareceu preocupado, como um homem que
se lembrou no meio do jantar de algum detalhe urgente de negócio, que de veria ter sido acertado durante o dia.
As moças de Cracóvia pareciam entediadas. A jovem polonesa de lábios lustrosos, que não poderia ter mais do que 18 ou 20 anos, pousou a mão na manga de Schindler.
- Você não é militar? - perguntou ela. - Deve lhe assentar muito bem uma farda.
Todos se puseram a rir - inclusive Madritsch, que em 1940 passara algum tempo fardado, até ser dispensado porque seus talentos de empresário eram mais importantes
para o esforço de guerra. Mas Herr Schindler era tão influente que nunca fora ameaçado pela Wehrmacht:
- Ouviram isso? - perguntou o Oberführer Scherner aos presentes. - A mocinha está imaginando o nosso industrial como um soldado. O soldado Schindler em Kharkov,
comendo sua marmita, com um cobertor sobre os ombros!
À vista da elegância impecável de Schindler, realmente o quadro era discrepante, e o próprio Schindler pôs-se a rir.
Aconteceu com... - disse Bosch, tentando estalar os dedos - aconteceu com... qual era mesmo o nome dele lá em Varsóvia?
Toebbens - informou Goeth, saindo inesperadamente de sua alienação. - Aconteceu com Toebbens. Quase.
Oh, sim - disse o chefe da SD Czurda - Toebbens escapou por pouco. - Toebbens era um industrial de Varsóvia, mais importante do que Schindler ou Madritsch. - Heini
(o apelido de Heinrich Himmler) foi a Varsóvia e ordenou ao chefe dos armamentos da zona: "Tire aqueles judeus fodidos da fábrica de Toebbens e convoque Toebbens
para o Exército e... mande-o para a Frente. Quero dizer a Frente de Combate!" Depois recomendou ao meu colega de Varsóvia que examinasse os livros de Toebbens ao
microscópio!
Toebbens era muito querido na Inspetoria de Armamentos, que sempre o favorecera com contratos de fornecimento para o Exército; por sua vez, ele retribuía esse privilégio
com uma profusão de presentes. Os protestos do pessoal da Inspetoria de Armamentos tinham conseguido salvar Toebbens, contou solenemente Scherner, e depois voltou-se
com uma piscadela para Schindler.
- Isso nunca aconteceria em Cracóvia, Oskar. Nós todos gostamos demais de você.
Imediatamente, talvez para demonstrar a afeição calorosa que a mesa inteira dedicava ao industrial Herr Schindler, Goeth pôs-se de pé e entoou sem palavras um trecho
da melodia de Madame Butterfly, que os irmãos Rosner estavam executando tão caprichosamente quanto qualquer artesão em qualquer fábrica ameaçada, em qualquer gueto
ameaçado.
A essa hora, Pfefferberg e Lisiek, a ordenança, se achavam no andar acima esfregando o anel de sujeira na banheira de Goeth. Podiam ou vir a música dos Rosner e
o ruído das risadas e conversas. À hora do café, a infeliz Lena trouxe a bandeja para os convidados e se retirou às pressas para a cozinha.
Madritsch e Titsch beberam rapidamente o seu café e desculparam-se por terem de se retirar. Schindler preparou-se para fazer o mesmo. A garota polonesa esboçou um
gesto de protesto mas aquela casa não tinha atrativos para ele. Na Goethhaus tudo era permitido, mas para Oskar, que sabia dos extremos do comportamento da SS na
Polônia, cada palavra que ali se dizia, cada copo que ali se bebia, era repugnante, sem falar em qualquer entretenimento sexual. Mesmo que ele levas se uma das moças
para cima, não poderia se esquecer de que Bosch e Scherner e Goeth estavam desfrutando os mesmos prazeres - nas escadas ou num banheiro ou quarto - executando os
mesmos movi mentos. Schindler, que não era nenhum monge, preferia ser um monge a ter que dormir com uma mulher chez Goeth.
Conversou por cima da cabeça da moça com Scherner, comentando as notícias da guerra, os bandidos poloneses, a probabilidade de um mau inverno, dando a entender à
pequena que Scherner era para ele como um irmão, e que nunca roubaria a mulher de um irmão. Mas, ao dizer-lhe boa-noite, ele lhe beijou a mão. Viu que Goeth, em
mangas de camisa, esgueirava-se para fora da sala de jantar, encaminhando-se para as escadas, apoiado a uma das moças, que se sentara ao seu lado durante o jantar.
Oskar pediu licença e foi atrás do co mandante. Pousou a mão no ombro de Goeth. Os olhos de Goeth esforçaram-se para focalizar Schindler.
Oh - balbuciou ele - já vai, Oskar?
Tenho de voltar para casa - disse Oskar. Em casa, esperava-o Ingrid, sua amante alemã.
Você é um tremendo garanhão - observou Goeth.
Não da sua classe - replicou Schindler.
Tem razão, sou imbatível. Nós vamos... aonde vamos nós? - E virou a cabeça para a moça, mas respondeu à sua própria pergunta. - Vamos à cozinha para ver se Lena
está limpando tudo direito.
- Não - disse a moça, rindo. - Não é isso que vamos fazer.
- E encaminhou-o para as escadas. Era um gesto de solidariedade daparte dela, a fim de proteger a jovem brutalizada, na cozinha.
Schindler observou-os - o oficial volumoso, a jovem esguia sustentando-o - subirem cambaleando as escadas. Goeth dava a impressão de que a melhor coisa que teria
a fazer era dormir até a hora do almoço do dia seguinte, mas Oskar conhecia a espantosa constituição do comandante e o relógio que funcionava dentro dele. Às 3:00
horas da madrugada, Goeth seria bem capaz de decidir levantar-se e escrever uma carta ao seu pai em Viena. Às 7:00 da manhã, depois de ter dormido apenas uma hora,
ele estaria na varanda, de rifle em punho, pronto a atirar em qualquer prisioneiro retardatário.
Quando a moça e Goeth chegaram ao primeiro patamar, Schindler atravessou o saguão e dirigiu-se para os fundos da casa.
Pfefferberg e Lisiek ouviram o comandante chegar muito mais cedo do que esperavam, entrando no quarto e falando com a moça que o acompanhava. Em silêncio, eles apanharam
o seu equipamento de limpeza, esgueiraram-se pelo quarto e tentaram escapulir por uma porta lateral. Ainda de pé e capaz de vê-los, Goeth recuou à vista do esfregão,
suspeitando que os dois homens fossem assassinos. Entretanto, quando Lisiek adiantou-se e começou uma trêmula explicação, o co mandante compreendeu que se tratava
de meros prisioneiros.
Herr Commandant - disse Lisiek - quero informá-lo de que na sua banheira havia um colarinho...
Ah - disse Amon -, então você recorreu a um especialista em limpeza? - E fez um sinal para o rapaz se aproximar. - Venha, meu querido.
Hesitante, Lisiek adiantou-se e levou uma bofetada tão violenta que caiu esparramado no chão. Amon repetiu o convite, como se pudesse ser divertido para a moça ouvi-lo
falar em termos carinhosos com os prisioneiros. O jovem Lisiek levantou-se e tornou a aproximar-se do comandante para uma nova bofetada. Quando ele se ergueu pela
segunda vez, Pfefferberg, um prisioneiro experiente, sabia que podia esperar que qualquer coisa acontecesse - os dois serem levados para o jardim e sumariamente
fuzilados por Ivan. Ao invés, o comandante simplesmente esbravejou contra eles e lhes ordenou que saíssem; os dois prontamente sumiram.
Quando Pfefferberg soube alguns dias depois que Amon matara Lisiek com um tiro, presumiu que fosse por causa do incidente do banheiro. Na verdade, tinha sido por
uma questão totalmente diferente - a ofensa de Lisiek fora atrelar um cavalo numa charrete para Bosch, sem primeiro pedir permissão ao comandante.
Na cozinha da casa, a criada, cujo nome verdadeiro era Helen Hirsch (Goeth chamava-a de Lena por preguiça), ergueu os olhos e deparou com um dos convidados do jantar.
Soltou na mesa o prato com restos de carne que tinha nas mãos e perfilou-se com trêmula rapidez.
Herr... - Olhou para o dinner jacket de Schindler e buscou um título para ele. - Herr Direktor, eu estava apenas pondo de lado os ossos para os cães de Herr Comandante.
Por favor - disse Schindler - não tem que me dar satisfações, Fräulein Hirsch.
E deu a volta na mesa. Não parecia querer agarrá-la mas ela te mia as suas intenções. Se bem que Amon se comprazesse em espancá-la, o fato de Helen ser judia a salvara
de um franco ataque sexual. Mas havia alemães que não eram tão discriminadores quanto Amon em questões sexuais. Todavia, o tom de voz desse homem não era o mesmo
a que ela estava acostumada, nem mesmo ao de oficiais da SS e NCO que vinham à cozinha queixar-se de Amon.
Não me conhece? - perguntou ele, como se fosse um jogador de futebol, astro do cinema ou um virtuose do violino, cuja consciência de sua própria celebridade se ofendia
com o fato de alguém não o reconhecer. - Sou Schindler.
Herr Direktor - balbuciou ela, curvando a cabeça. - É claro que já ouvi falar... e o senhor já esteve antes aqui. Lembro-me...
Ele passou o braço pela cintura dela. Podia sentir a tensão do corpo da moça, quando lhe tocou o rosto com os lábios.
- Não é a espécie de beijo que você está receando - murmurou ele. - Se quer saber, estou beijando-a por piedade.
Ela não pôde conter as lágrimas. Herr Direktor beijou-a agora com força na testa, à maneira de despedidas polonesas em estações de estrada de ferro, um ruidoso beijo
típico da Europa Oriental. Helen viu que também ele tinha lágrimas nos olhos.
- Este beijo é algo que lhe estou transmitindo de. . . - E, comum gesto da mão indicou a turba de honestas criaturas lá fora no escuro, dormindo em catres
amontoados ou escondidas nas florestas para quem, ao absorver os espancamentos de Hauptsturmführer Goeth, ela de certa forma atuava com pára-choque.
Schindler soltou-a e tirou de dentro do bolso uma grande barra de chocolate. Em sua substância, parecia também algo de antes da guerra.
Esconda isso - advertiu ele.
Aqui tenho mais comida - respondeu ela, como se fosse uma questão de amor-próprio informá-lo de que não estava passando fome. E, com efeito, a comida era a menor
de suas preocupações. Ela sabia que não sobreviveria ao trato na casa de Amon, mas não seria por falta de alimentação.
Se não quiser comer o chocolate, troque-o por outra coisa. Por que não procura se fortalecer? - Ele recuou um passo e examinou-a. - Itzhak Stern falou-me a seu respeito.
Herr Schindler - murmurou a jovem, baixando a cabeça e chorando discretamente por alguns segundos. - Herr Schindler, ele gosta de me bater diante daquelas mulheres.
No meu primeiro dia aqui, espancou-me porque joguei fora os ossos do jantar. Desceu ao porão durante a noite e perguntou-me onde estavam os ossos para os seus cachorros.
Foi a minha primeira sova. Eu disse a ele... não sei por que falei; agora eu não abriria mais a boca... "Por que está me batendo?" E ele respondeu: "Estou batendo
em você porque me perguntou por que estou batendo."
Helen abanou a cabeça e encolheu os ombros, como se estivesse reprovando a si mesma por falar demais. Não queria dizer mais nada; não podia relatar todos os espancamentos
de que fora vítima, suas múltiplas experiências com os punhos do Hauptsturmführer.
As circunstâncias em que está vivendo são horríveis, Helen - disse Schindler em tom confidencial, curvando-se para ela.
Não importa - respondeu ela. - Já aceitei o meu destino.
Aceitou?
Um dia ele vai me matar com um tiro.
Schindler fez que não com a cabeça, e ela julgou que era um encorajamento bem precário para lhe dar esperanças. Subitamente, o traje elegante de Schindler e seu
ar saudável pareceram-lhe uma provocação.
- Pelo amor de Deus, Herr Direktor, eu vejo as coisas. Na segunda-feira estávamos em cima do telhado, o jovem Lisiek e eu, arrancando o gelo. E vimos o Herr
Commandant sair pela porta da frente e descer os degraus do pátio, bem abaixo de onde nos achávamos.E ali mesmo, ele puxou o revólver e atirou numa mulher que estava
passando. Uma mulher carregando uma trouxa. Ela não parecia mais magra ou mais gorda ou mais rápida ou mais lenta do que qualquer outra pessoa. Não pude entender
a razão. O tiro atravessou-lhe a garganta. Apenas uma mulher que passava. Quanto mais se conhece Herr Commandant, mais a gente se convence de que o comportamento
dele não obedece a regras de espécie alguma. Não posso dizer para mim mesma: "Se eu seguir essas regras, estarei a salvo..."
Schindler tomou-lhe a mão e apertou-a com força.
- Escute, minha cara Fräulein Helen Hirsch, apesar de tudo, isto aqui ainda é melhor do que Majdanek ou Auschwitz. Se conseguir se manter com saúde...
- Pensei isso, que não haveria esse problema na cozinha do comandante. Quando me tiraram da cozinha do campo e me destacaram para cá, as outras mulheres ficaram
com inveja - respondeu ela, com um sorriso.
Schindler passou a falar mais alto. Parecia um professor enunciando um princípio de física.
- Ele não vai matá-la, porque você lhe oferece muitos divertimentos, minha cara Helen. Tantos divertimentos que nem permite quevocê use a estrela de judia.
Não quer que saibam que ele está se divertindo com uma judia. Atirou naquela mulher porque ela não significava nada para ele, era apenas uma a menos de uma série,
que nem o ofendia nem o agradava. Está compreendendo? Mas você... Isso não é decente, Helen. Mas é a vida.
Alguém mais, Leo John, o adjunto do comandante, lhe dissera o mesmo. John era um Untersturmführer SS - equivalente a segundo-tenente. "Ele não a matará", dissera
John, "até o final, Lena, porque você representa muito divertimento para ele." Dito por John, o comentário não produzira o mesmo efeito. Herr Schindler estava condenando-a
a uma dolorosa sobrevivência.
Ele pareceu compreender que a deixara perturbada. Murmurou palavras de encorajamento. Tornaria a procurá-la. Tentaria livrá-la.
Livrar? - perguntou ela.
Sim. Livrá-la do comandante - explicou ele - levando-a para a minha fábrica. Certamente já ouviu falar na minha fábrica. Tenho uma fábrica de artefatos esmaltados.
Oh, sim! - respondeu ela como uma criança de cortiço, falando na Riviera. - A Emalia de Schindler. Já ouvi falar.
Mantenha-se com saúde - repetiu ele. Parecia ter certeza, quando falava, de que aquela seria a solução, baseando-se no conheci mento das futuras intenções de Himmler,
de Frank.
Está bem - concordou ela.
Dando-lhe as costas, Helen se dirigiu para o guarda-louça e o arrastou para a frente, numa demonstração de força que espantou Schindler, tratando-se de uma jovem
tão frágil. Removendo um tijolo da parede que ficava atrás do guarda-louça, ela retirou um punhado de dinheiro - zloty de ocupação.
Tenho uma irmã na cozinha do campo - explicou ela. - É mais moça do que eu. Quero que o senhor a resgate com este dinheiro, para que ela jamais seja colocada num
vagão de gado. Creio que o senhor costuma saber de antemão dessas coisas.
Tratarei pessoalmente do caso - falou Schindler, porém com displicência, não como uma promessa solene. - Quanto dinheiro tem você?
- Quatro mil zlotys.
Ele apanhou as economias da moça e enfiou-as no bolso. Esta riam mais seguras com ele do que num nicho atrás do guarda-louça de Amon Goeth.
Assim começa perigosamente a história de Oskar Schindler, envolvido com nazistas góticos, com hedonistas SS, com uma frágil e brutaliza da jovem e com uma figura
de certa forma fictícia, tão popular como a da prostituta de coração de ouro: o bom alemão.
Por um lado, Oskar tratou de conhecer a verdadeira face do sistema, a face hidrófoba por detrás do véu de decência burocrática. Sabe mais cedo do que a maioria das
pessoas ousaria reconhecer o que Sonderbehandlung significa; que embora a palavra queira dizer "Trata mento Especial", significa pirâmides de cadáveres cianóticos
em Belzec, Sobibor, Treblinka e no complexo a oeste de Cracóvia, conhecido pelos poloneses como Oswiecim-Brzezinka, mas que será denominado no Ocidente pelo seu
nome alemão, Auschwitz-Birkenau.
Por outro lado, ele é um comerciante, um homem de negócios por temperamento, e não cospe abertamente no olho do sistema. Já conseguiu reduzir as pirâmides de cadáveres,
e, embora não saiba o quanto nesse ano ou no próximo elas irão crescer em número e tamanho, ultrapassando o Matterhorn, sabe que o Holocausto virá. Embora não possa
prever que mudanças burocráticas irão ocorrer em sua construção, ainda assim presume que sempre haverá espaço e necessidade de mão-de-obra judaica. Portanto, durante
sua visita a Helen Hirsch, ele insiste: "Conserve sua saúde." E lá fora, no sombrio Arbeilslager (campo de trabalho) de Plaszóvia, judeus vigilantes dizem a si mesmos
que regime algum - com a sua maré em vazante - pode se dar ao luxo de desperdiçar uma abundante fonte de mão-de-obra gratuita. São os que não conseguem se agüentar,
que cospem sangue, que são acometi dos de disenteria que são transportados para Auschwitz. O próprio Herr Schindler ouviu prisioneiros, na Appellplatz do campo de
trabalho de Plaszóvia, respondendo à chamada matinal, murmurarem: "Pelo me nos ainda estou com saúde", num tom que na vida normal só os velhos usam.
Assim, naquela noite de inverno já se havia iniciado o engajamento prático de Herr Schindler no salvamento de certas vidas humanas. Ele já estava tremendamente comprometido;
já burlara leis do Reich, o que lhe poderia ter valido numerosas vezes o enforcamento, a decapitação, o confinamento nas frias cabanas de Auschwitz ou Gröss-Rosen.
Mas não sabe ainda o quanto aquilo tudo vai lhe custar. Embora já tenha gasto uma fortuna, não sabe a extensão do custo futuro.
Para não forçar de início a credibilidade, a história começa com um ato cotidiano de bondade - um beijo, uma voz branda, uma barra de chocolate. Helen Hirsch nunca
tornaria a ver os seus 4.000 zlotys - não numa forma em que pudessem ser contados e colocados em sua mão. Mas até hoje ela considera uma questão de somenos importância
que Oskar fosse tão negligente em prestação de contas.
Capítulo 1
A
s divisões blindadas do General Sigmund List, rumando da Sudetenlândia para o norte, tinham tomado Cracóvia, a pérola do sul da Polônia, em ambos os seus flancos,
em 6 de setembro de 1939. E foi no rastro das divisões que Oskar Schindler entrou na cidade, que seria a sua ostra nos próximos cinco anos. Embora logo no primeiro
mês ele tivesse demonstrado a sua antipatia pelo nacional-socialismo, ainda assim previa que Cracóvia, com a sua rede ferroviária e suas indústrias ainda modestas,
ia ser uma cidade privilegiada pelo novo regime. Ele próprio não seria mais um simples vendedor. Agora ia ser um magnata.
Não é fácil de imediato descobrir na história da família de Oskar as origens do seu impulso de salvar vidas. Nasceu em 28 de abril de 1908, no Império Austríaco
de Franz Josef, na montanhosa província de Morávia do antigo reino austríaco. Sua terra natal era a cidade industrial Zwittau, para a qual, no começo do século XVI,
certas oportunidades comerciais tinham atraído de Viena os antepassados dos Schindler.
Herr Hans Schindler, o pai de Oskar, aprovara o regime imperial, considerava-se culturalmente um austríaco, e falava alemão à mesa, ao telefone, nas conversas de
negócios, em momentos de ternura. Contudo, quando, em 1918, Herr Schindler e os membros de sua família se viram cidadãos da República Tchecoslovaca de Masaryk e
Benes, isso não pareceu incomodar em demasia o pai, e muito menos seu filho de dez anos. O menino Hitler, segundo assevera o homem Hitler, ainda na infância vivia
atormentado com o abismo existente entre a unidade mística da Áustria e da Alemanha e a divisão política dos dois países. Tal neurose nunca amargurou a infância
de Oskar Schindler.
A Tchecoslováquia era uma pequena república tão frondosa e isolada que os cidadãos de língua alemã aceitaram sem relutância a condição de minoria, ainda que mais
tarde a depressão e alguns desmandos governamentais tivessem provocado certos atritos.
Zwittau, terra natal de Oskar, era uma pequena cidade coberta de pó de carvão, nas faldas da cadeia de montanhas conhecida como as Jeseniks. As colinas que a cercam
eram em parte desmaiadas pela indústria e, em parte, florestadas por lariços, espruce e pinheiros. Devido à comunidade Sudetendeuíschen, que falava o alemão, havia
uma escola pública alemã, freqüentada por Oskar. Ali ele fez o Curso de Realgymnasium fundado para formar engenheiros - de mineração, mecânica, urbanismo - a fim
de atender às necessidades industriais da região. O próprio Hans Schindler era proprietário de uma fábrica de maquinaria agrícola, e a educação de Oskar fora um
preparo para essa herança.
A família Schindler era católica, assim como a do jovem Amon Goeth, por essa ocasião completando também o Curso de Ciências e prestando exames em Viena.
Louisa, a mãe de Oskar, praticava com ardor a sua fé, e suas roupas todos os domingos conservavam o aroma do incenso, que subia em espirais de fumaça na missa da
Igreja de St. Maurice. Hans Schindler era o tipo de marido que impele a mulher para a religião. Por seu lado, ele gostava de conhaque; de freqüentar cafés. A emanação
de conhaque, bom tabaco e indubitável materialismo se exalava daquele bom monarquista, Herr Hans Schindler.
A família morava numa residência moderna, cercada de jardins, do lado oposto ao da zona industrial. O casal tinha dois filhos, Oskar e Elfriede. Mas não restam testemunhas
de que tenha sido um lar especialmente ditoso, exceto nos termos mais gerais. Sabemos, por exemplo, que Frau Schindler não gostava que o filho, como o pai, fosse
um católico negligente.
Mas não pode ter sido um lar amargurado. Do pouco que Oskar contava de sua infância não havia nada de sombrio no seu passado. O sol brilha entre os pinheiros do
jardim. Há ameixas maduras naqueles princípios de verão. Se ele passa parte de alguma manhã de junho assistindo a uma missa, nem por isso volta para casa com muito
senso do pecado. Vai tirar o carro do pai da garagem e começa a regular o motor. Ou então, sentado num degrau dos fundos da casa, passa horas mexendo no carburador
de sua motocicleta.
Oskar tinha uns poucos amigos judeus da classe média matricula dos pelos pais na escola pública alemã. Esses meninos não eram retrógrados Ashkenazim - ortodoxos
de língua iídíche - mas os filhos multílinguais, pouco dados a ritos religiosos, de comerciantes judeus. Do outro lado da Planície de Hana, nas Colinas Beskidy,
nascera Sigmund Freud, filho de uma família judia do mesmo padrão, pouco antes do nascimento de Hans Schindler em Zwittau, filho de uma família de sólida origem
alemã.
A história de Oskar parece sugerir algum incidente marcante em sua infância, em que ele teria tomado a defesa de um menino judeu perseguido na escola. Mas é bem
pouco provável que tal tenha acontecido; se aconteceu, preferimos ignorar o evento, pois pareceria uma coincidência excessiva dessa história. Além disso, um judeuzinho
salvo de um soco no nariz nada prova. O fato é que o próprio Himmler iria queixar-se num discurso a um dos seus Einsatzgruppen que cada alemão tinha um amigo judeu.
'"O povo judeu vai ser aniquilado', diz todo membro do Partido. 'Sem dúvida, faz parte do nosso programa a eliminação dos judeus, o extermínio da raça - disso nos
encarregamos.' E então surgem oito milhões de dignos alemães, e cada um deles tem o seu bom judeu. Concordam em que todos os outros são uma escória, mas aquele seu
judeu é Classe A."
Procurando ainda encontrar, à sombra de Himmler, alguma motivação para os futuros entusiasmos de Oskar, descobrimos um vizinho dos Schindler, um rabino liberal chamado
Dr. Felix Kantor. O Rabino Kantor fora discípulo de Abraham Geiger, o liberador alemão do judaísmo, que afirmava que não era crime, e até digno de louvor, ser ao
mesmo tempo alemão e judeu. O Rabino Kantor não era um rígido erudito de aldeia. Vestia trajes modernos e falava alemão em casa. Chamava o seu local de orações de
"templo" e não pelo antigo nome de "sinagoga". O seu templo, em Zwittau, era freqüentado por judeus doutores, engenheiros e proprietários de fábricas têxteis. Quando
viajavam, contavam a outros comerciantes: "Nosso rabino é o Dr. Kantor - ele escreve artigos não somente para jornais judaicos em Praga e Brno, mas também para outros
diários."
Os dois filhos do Rabino Kantor freqüentavam a mesma escola que o filho de seu vizinho alemão Schindler. Ambos os meninos eram inteligentes o bastante para, eventualmente,
talvez, se tornarem dois dos raros professores judeus da universidade alemã de Praga. Esses prodígios de cabelo cortado à escovinha e falando alemão corriam de calças
curtas pelos jardins de verão, perseguindo Oskar e Elfriede e sendo por eles perseguidos. E Kantor, ao vê-los aparecer e desaparecer por entre as sebes de teixos,
poderia ter pensado que tudo estava acontecendo conforme haviam previsto Geiger e Graetz e Lazarus e todos aqueles outros judeus-alemães liberais do século XIX.
"Somos pessoas esclarecidas, recebidas por nossos vizinhos alemães - o Sr. Schindler chega a fazer na nossa frente comentários desabonadores sobre políticos tchecoslovacos.
Somos eruditos seculares bem como intérpretes compreensivos do Talmude. Pertencemos não somente ao século XX como também a uma antiga raça tribal. Não somos ofensivos
nem nos ofendem."
Mais tarde, em meados dos anos trinta, o rabino iria revisar essa estimativa otimista e chegar à conclusão de que seus filhos jamais iriam cair nas boas graças dos
nacionalsocialistas devido apenas ao diploma de um autor de filosofia em língua alemã - que não havia nenhum nivelamento de tecnologia do século XX, no qual um judeu
pudesse encontrar o seu refúgio, como também jamais haveria uma espécie de rabino aceitável para os novos legisladores alemães. Em 1936, toda a família Kantor mudou-se
para a Bélgica. Os Schindler nunca mais souberam deles.
Raça, sangue, solo pouco significavam para o adolescente Oskar. Era um desses meninos para quem um modelo de motocicleta é a coisa mais fascinante do universo. E
seu pai - mecânico por temperamento - parece ter encorajado o zelo do filho por motores envenenados. No seu último ano do curso secundário, Oskar andava em disparada
por Zwittau num Galloni 500cc vermelho. Erwin Tragatsch, um colega de classe, via com indizível inveja o Galloni vermelho percorrendo ruidosamente as ruas da cidade
e atraindo a atenção dos pedestres na praça. Para os irmãos Kantor, também era um prodígio - não apenas o único Galloni na cidade, não apenas o único Galloni italiano
500cc na Morávia, mas provavelmente o único veículo do seu tipo em toda a Tchecoslováquia.
Na primavera de 1928, os últimos meses de adolescência de Oskar e prelúdio de um verão em que ele iria se apaixonar e decidir casar-se, apareceu na praça da cidade
numa Moto-Guzzi 250cc, tipo que, fora da Itália, só havia outras quatro na Europa, e mesmo essas de propriedade de corredores internacionais: Giessler, Hans Winkler,
o húngaro Joo e o polonês Kolaczkowski. Na certa havia habitantes da cidade que abanavam a cabeça e diziam que Herr Schindler estava mimando demais o filho.
Mas aquele seria o mais doce e inocente verão de Oskar. Um rapazola apolítico com a cabeça protegida por um capacete de couro, acelerando o motor da Moto-Guzzi,
disputando corridas com as equipes locais nas montanhas da Morávia, filho de uma família para quem o auge da sofisticação política era acender uma vela por Franz
Josef. Logo em seguida, um casamento ambíguo, uma recessão econômica, dezessete anos de política fatídica o aguardavam. Mas no rosto do corredor nenhuma premonição,
apenas a careta achatada pelo vento de um corredor que - por ser um novato e não um profissional, por não ter ainda estabelecido os seus recordes - tem mais condições
de pagar o preço do que os mais velhos, os profissionais, os corredores que precisam bater recordes.
A primeira competição de Oskar foi em maio, a corrida de montanha entre Brno e Sobeslav. Era uma corrida de alta categoria, e as sim pelo menos o brinquedo caro
que o próspero Herr Hans Schindler dera ao filho não iria enferrujar numa garagem. O rapaz chegou em terceiro lugar em sua Moto-Guzzi vermelha, atrás de dois Terrots
que haviam sido "envenenados" com motores ingleses Blackburne.
Na sua próxima competição, ele se afastou mais de sua cidade, indo correr no circuito de Altvater, nas montanhas da fronteira saxônia. Walfried Winkler, o campeão
alemão de 250cc, participou da cor rida, assim como o seu veterano rival Kurt Henkelmann, num DKW refrigerado a água. Todos os corredores saxões da maior categoria
- Horowitz, Kocher e Kliwar - eram participantes; estavam de volta os Terrot-Blackburnes e alguns Coventry Eagles. Havia três Moto-Guzzis, inclusive a de Oskar Schindler,
bem como os corredores mais destaca dos da classe 350cc e um BMW 500cc.
Aquele dia foi quase o melhor, o mais perfeito da carreira de Oskar. Manteve-se logo atrás dos primeiros colocados durante as etapas iniciais da corrida, esperando
para ver o que ia acontecer. Após uma hora, Winkler, Henkelmann e Oskar tinham deixado para trás os saxônios e as outras Moto-Guzzis abandonaram a corrida devido
a falhas mecânicas. No que Oskar supunha ser a penúltima etapa, ele ultrapassou Winkler e deve ter sentido, tão palpável quanto o chão e a rápida visão de pinheiros,
a iminência de sua carreira como corredor de uma equipe de fábrica, e a vida de constantes viagens, que isso iria lhe proporcionar.
Então, no que ele presumiu ser a última etapa, Oskar ultrapassou Henkelmann e ambos os DKWs, cruzou a linha e reduziu sua velocidade. Devia ter havido algum sinal
enganoso dos dirigentes, porque o público pensou também que a corrida estava encerrada. Quando Oskar se deu conta de que a prova não tinha terminado - que ele come
teu um erro de amador - Walfried Winkler e Mita Vychodil já o haviam ultrapassado, e até o exausto Henkelmann conseguira fazê-lo perder o terceiro lugar.
Em sua casa, ele foi recebido como um campeão. Exceto por um problema técnico, tinha vencido os melhores corredores da Europa.
Tragatsch presumiu que as razões por que fora encerrada a carreira de Oskar como corredor de motocicleta tinham sido de ordem econômica. Isso é bem provável, pois
naquele verão, depois de um na moro de apenas seis semanas, ele fez um casamento precipitado com a filha de um fazendeiro, e com isso perdeu o apoio do pai, que
era também o seu patrão.
A moça com que Oskar se casou era de uma aldeia situada a leste de Zwittau, na Planície de Hana. Fora educada num convento e tinha um temperamento discreto, que
Oskar admirava em sua própria mãe. O pai da moça, um viúvo, não era nenhum camponês rude mas um fazendeiro educado. Na Guerra dos Trinta Anos, os antepassados austríacos
da família tinham conseguido sobreviver às periódicas batalhas e devastações, que assolavam aquela planície fértil. Três séculos mais tarde, numa nova era de riscos,
a jovem descendente da família aceitou um mal combinado casamento com um rapaz inexperiente de Zwittau. Tanto o pai da noiva como o de Oskar desaprovaram muito o
enlace.
Hans não gostou porque podia ver que Oskar tinha repetido o erro do seu próprio casamento. Um marido sensual, de temperamento desabrido, procurando demasiado cedo
na vida a paz ao lado de uma jovem educada em convento, gentil, desprovida de sofisticações.
Oskar conhecera Emilie numa festa em Zwittau. Ela estava de vi sita a amigos de sua aldeia de Alt-Molstein. Evidentemente Oskar conhecia a aldeia, pois já estivera
vendendo tratores naquela zona.
Quando correram os proclamas do casamento nas igrejas paroquiais de Zwittau, algumas pessoas consideraram o casal tão mal combinado que começaram a procurar outros
motivos que não o amor. É possível que já naquele verão a fábrica de maquinaria agrícola de Schindler estivesse em má situação, pois era ligada à manufatura de tratores
a vapor de um tipo considerado obsoleto pelos agricultores. Oskar estava colocando grande parte de seu salário no negócio, e agora - com Emilie - vinha um dote de
meio milhão de reichsmarks, capital nada desprezível sob qualquer condição. As suspeitas dos mexericos, porém, não tinham fundamento, pois naquele verão Oskar estava
apaixonado. E como o pai de Emilie não via razões para crer que o rapaz iria se estabelecer e ser um bom marido, pagou apenas uma fração do meio milhão do dote.
Quanto a Emilie, encantava-a a idéia de se ver livre da enfadonha Alt-Molstein, casando-se com o bonito Oskar Schindler. O amigo mais íntimo de seu pai fora o maçante
padre da paróquia; Emilie crescera servindo-Ihes chá e ouvindo-Ihes apreciações ingênuas sobre política e teologia. Se ainda estivéssemos procurando conexões judaicas
significativas, encontraríamos algumas na infância de Emilie - o médico da aldeia que tratava de sua avó, e Rita, neta de Reif, dono de um armazém. Durante uma de
suas visitas à casa da fazenda, o padre dissera ao pai de Emilie que não convinha uma menina católica manter uma amizade mais estreita com uma judia. Emilie resistiu
ao veredicto do padre. A amizade com Rita Reif iria sobreviver até certo dia de 1942, quando nazistas locais executaram Rita diante do armazém.
Depois de casados, Oskar e Emilie instalaram-se num apartamento em Zwittau. Para Oskar, a década de 30 deve ter parecido um mero epílogo do seu glorioso engano na
corrida da Altvater, no verão de 1928. Fez seu serviço militar no Exército tchecoslovaco e, embora isso lhe fornecesse a oportunidade de guiar um caminhão, logo
descobriu que odiava a vida militar - não por motivos pacifistas mas por causa do desconforto. De volta ao lar em Zwittau, ele abandonava Emilie noites a fio para
ficar até tarde em cafés, como se fosse solteiro, conversando com moças que não eram nem discretas nem educadas em conventos. Em 1935, o negócio da família foi à
falência, e nesse mesmo ano o pai de Oskar abandonou Frau Louisa Schindler e passou a morar num apartamento. Oskar odiou-o por isso e passou a falar mal do pai,
durante os chás na casa de suas tias. Até mesmo nos cafés ele denunciava a traição de seu pai contra uma boa esposa. Ao que parece, Oskar não enxergava a semelhança
entre o casamento fracassado dos pais e o seu próprio em vias de fracasso.
Devido aos seus bons contatos comerciais, sua sociabilidade, seu talento em promover vendas, a capacidade que tinha de beber sem se embriagar, apesar de estar o
país em plena depressão, ele conseguiu um emprego de gerente de vendas na Moravian Electrotechnic. O escritório central da companhia ficava na melancólica capital
provinciana de Brno e Oskar viajava diariamente entre Brno e Zwittau. Gostava da sua vida de viajante. Era em parte o destino que prometera a si mesmo, ao ultrapassar
Winkler no circuito de Altvater.
Quando sua mãe faleceu, ele retornou às pressas para Zwittau e se postou junto com as tias, a irmã, Elfriede, e a mulher Emilie, de um lado da sepultura, enquanto
o traidor Hans se mantinha isolado, ao lado do padre, na cabeceira do esquife. A morte de Louisa viera cimentar a inimizade entre Oskar e Hans. Não ocorria a Oskar
- só as mulheres o percebiam - que Hans e Oskar eram na realidade dois irmãos separados pelo acidente da paternidade.
Na ocasião do funeral, Oskar estava usando o emblema Hakenkreuz do Partido Sudeto Alemão de Konrad Henlein. Tanto as tias co mo Emilie desaprovavam esse procedimento
mas não com muita convicção, pois era algo que a maioria dos jovens alemães-tchecos usava naquela estação. Somente os socialdemocratas e os comunistas não exibiam
o emblema ou não eram membros do partido de Henlein, e Deus sabe que Oskar não era nem comunista nem socialdemocrata, mas sobretudo um vendedor. A verdade é que,
quando se procurava um gerente de companhia alemã, a vista do emblema decidia favoravelmente o negócio.
Contudo, mesmo com o seu livro de encomendas aberto e o lápis anotando ativamente, também Oskar - em 1938, nos meses que precederam a invasão da Sudetenlândia pelas
divisões alemãs - sentiu que estava se operando uma grande mudança na História, e se deixou seduzir pela idéia de participar daquela mudança.
Fossem quais fossem os seus motivos para aderir a Henlein, parece que assim que as divisões penetraram na Morávia, ele teve uma desilusão imediata com o nacionalsocialismo,
tão total e rápida quanto a desilusão que sentia após o casamento. Talvez tivesse esperado que a potência invasora iria permitir que fosse fundada uma fraternal
República Sudeta. Mais tarde, ele iria revelar o quanto o horrorizara o tratamento do novo regime à população tcheca, inclusive a apropriação de propriedades tchecas.
Os seus primeiros atos documentados de rebeldia ocorreriam logo no início do conflito mundial, e não resta dúvida de que o Protetorado da Boêmia e Morávia, proclamado
por Hitler, do Castelo de Hradschim, em março de 1939, deixou-o surpreso por essa clara e imediata exibição de tirania.
Além disso, as duas pessoas, cujas opiniões ele mais respeitava - Emilie e Hans - não se deixaram enganar pela grandiosa hora teutônica e ambos consideraram que
Hitler não alcançaria os seus fins. A opinião dos dois não era fundamentada mas tampouco era a de Oskar. Emilie simplesmente acreditava que Hitler seria punido por
querer assumir o papel de Deus. Herr Schindler pai, cuja posição fora transmitida a Oskar através de uma de suas tias, argumentava com princípios históricos básicos.
Logo nas imediações de Brno ficava o trecho do rio onde Napoleão tinha ganho a Batalha de Austerlitz. E que destino tivera o triunfal Napoleão? Tornara-se um joão-ninguém,
plantando batatas numa ilha distante no meio do oceano Atlântico. 0 mesmo aconteceria àquele sujeito. O destino, segundo Herr Schindler pai, não era uma corda infindável.
Era um pedaço de elástico. Quanto mais se esticava para a frente, mais violentamente se era jogado para trás. Era isso que a vida, um casamento fracassado e a falência
econômica tinham ensinado a Herr Hans Schindler.
Mas seu filho, Oskar, talvez não fosse ainda um inimigo definido do novo regime. Certa noite, naquele outono, Herr Schindler filho com pareceu a uma festa em um
sanatório nas colinas que circundavam Os trava, próximo da fronteira polonesa. A anfitriã era a diretora do sanatório, cliente e amiga de Oskar. Ela o apresentou
a um bem-apessoado alemão chamado Eberhard Gebauer. Os dois conversaram sobre negócios e as futuras atuações previsíveis da parte da Inglaterra, França e Rússia.
Depois se retiraram, com uma garrafa, para um quarto desocupado, por sugestão de Gebauer, a fim de poderem falar com mais franqueza. Foi então que Gebauer se identificou
como oficial do serviço de inteligência Abwehr, do Almirante Canaris, e ofereceu ao seu novo conhecido a chance de trabalhar para a Seção Exterior da Abwehr. Oskar
tinha contatos comerciais na Polônia, em toda a Galícia e na Silésia. Estaria ele de acordo em fornecer à Abwehr informações militares daquela região? Gebauer disse
que soubera, por intermédio de sua amiga anfitriã, que Oskar era inteligente e sociável. Com esses dons, ele poderia realizar um bom trabalho, não somente mediante
suas próprias observações quanto a instalações industriais e militares da região, mas também no recrutamento de poloneses germânicos, em restaurantes e bares, ou
em contatos comerciais.
Os apologistas do jovem Oskar poderiam dizer, mais uma vez, que ele aceitou trabalhar para Canaris porque, como agente da Abwehr, ficava isento de servir no Exército.
Era esse em grande parte o atrativo da proposta. Mas ele deve também ter acreditado que seria bom um avanço alemão na Polônia. Como o elegante oficial bebendo sentado
na cama a seu lado, o nacionalsocialismo ainda devia merecer a aprovação de Oskar, apesar de ele desaprovar a maneira como o movimento estava sendo conduzido. Para
Oskar, talvez Gebauer possuísse um certo fascínio moral, pois ele e seus colegas da Abwehr se consideravam uma nonesta elite cristã. Embora essa posição não os impedisse
de planejar uma invasão militar na Polônia, permitia-lhes sentir desprezo por Himmler e os SS, com quem eles acreditavam sofismada mente estar em competição para
controlar a alma da Alemanha.
Mais tarde, um bem diferente grupo do serviço de inteligência consideraria os informes de Oskar dignos de elogios. Em suas viagens à Polônia pela Abwehr, ele demonstrava
um dom para extrair informações das pessoas, especialmente em ambientes sociais - a uma mesa de jantar, em coquetéis. Não sabemos a natureza exata ou a importância
do que Oskar apurava para Gebauer e Canaris, mas ele acabou gostando muito de Cracóvia e descobrindo que, embora se tratasse de uma grande concentração industrial,
era também uma linda cidade medieval, cercada por metalúrgicas e indústrias têxteis e químicas.
Quanto ao desmotorizado Exército polonês, os seus segredos eram bem aparentes.
Capítulo 2
E
m fins de outubro de 1939, dois jovens oficiais graduados entraram na loja de J.C. Buchheister & Co., na Rua Stradom, em Cracóvia e insistiram em comprar algumas
peças de um tecido caro que queriam remeter para a Alemanha. O vendedor judeu atrás do balcão, com uma estrela amarela costurada no peito, explicou que Buchheister
não vendia diretamente ao público mas sim a fábricas de roupas e varejistas. Os militares não se deixaram dissuadir. Quando chegou o momento de pagar a compra, eles
maliciosamente a saldaram com uma cédula bávara de 1858 e um vale de ocupação do Exército alemão datado de 1914. "Dinheiro perfeitamente válido", disse um deles
ao contador judeu. Os dois eram rapazes de aspecto saudável, tendo passado toda a primavera e verão em manobras, alcançando logo no início do outono um triunfo fácil
e, mais tarde, toda liberdade de não de conquistadores numa cidade afável. O contador concordou com a transação e esperou que eles saíssem da loja para guardar o
dinheiro na caixa registradora.
Mais tarde, no mesmo dia, um jovem gerente alemão de contabilidade, funcionário da astuciosamente chamada Agência de Crédito do Leste, nomeado para requisitar e
dirigir negócios dos judeus, visitou a loja. Era um dos dois funcionários alemães destacados para a Buchheister. O primeiro chamava-se Sepp Aue, o supervisor, homem
de meia-idade, sem maiores ambições, e o segundo aquele furão. O rapaz inspecionou os livros e a caixa registradora. Apanhou o dinheiro sem valor. O que significava
aquele dinheiro de ópera cômica?
O contador judeu narrou a sua história; o gerente de contabilidade acusou-o de ter substituído as velhas notas pelo zloty atual. Mais tarde ainda naquele mesmo dia,
subindo ao escritório da companhia no andar de cima, o furão informou a Sepp Aue sobre o ocorrido e disse que deviam chamar a Schutzpolizei.
Tanto Herr Aue quanto o jovem contador sabiam que o resultado de tal providência seria o contador judeu ser levado para a prisão da SS na Rua Montelupich. O furão
achava que tal procedimento seria um excelente exemplo para os outros empregados judeus da Buchheister. Mas a idéia perturbou Aue, que tinha uma vulnerabilidade
secreta, pois uma de suas avós era judia, embora ninguém até então houvesse descoberto isso.
Aue mandou um contínuo com uma mensagem ao chefe contador da companhia, um judeu-polonês chamado Itzhak Stern, que estava acamado com gripe, em casa. Aue fora nomeado
para o cargo por questões políticas e pouca experiência tinha de contabilidade. Queria que Stern comparecesse ao escritório para resolver o impasse das peças de
linho. Tinha acabado de mandar o recado para a casa de Stern em Podgórze, quando seu secretário entrou no escritório e anunciou que um certo Herr Oskar Schindler
estava esperando lá fora, sob a alegação de que tinha um encontro marcado. Aue foi até a ante-sala e deparou com um rapaz alto, plácido como um cachorrão, fumando
tranqüila mente. Os dois tinham-se conhecido numa festa na noite anterior. Oskar estava acompanhado de uma alemã sudeta chamada Ingrid, Treuhänder, ou supervisora,
de uma companhia judaica de ferragens, da mesma forma que Aue era o Treuhänder da Buchheister. Os dois formavam um casal glamouroso, Oskar e a sudeta, elegantes,
francamente apaixonados um pelo outro, com muitos amigos na Abwehr.
Herr Schindler estava tentando fazer carreira em Cracóvia.
- Têxteis? - sugerira Aue. - Não se trata apenas de uniformes. O mercado doméstico polonês é bastante amplo e expandido para sustentar a todos nós. Convido-o
a visitar a Buchheister - propusera ele a Oskar, sem saber o quanto iria lamentar no dia seguinte a sua camaradagem alcoolizada.
Schindler podia perceber que Herr Aue possivelmente estava lamentando o seu convite da véspera.
- Se não é conveniente, Herr Treuhänder sugeriu Oskar...
Herr Aue negou com veemência e levou Schindler para visitar o depósito e, do outro lado do pátio, a divisão de tecelagem, onde grandes rolos de tecido iam sendo
lançados para fora das máquinas. Schindler perguntou se o Treuhänder tivera problemas com os poloneses. Não, respondeu Sepp, os poloneses cooperavam. Um pouco espanta
dos, talvez. Afinal, não se tratava de uma fábrica de munições.
Schindler tão obviamente tinha o ar de um homem com boas conexões que Aue não pôde resistir à tentação de testá-lo. Conhecia Oskar pessoas da Junta Suprema de Armamentos?
Conhecia, por exemplo, o General Julius Schindler? Talvez o General Schindler fosse um seu parente?
Isso não faz nenhuma diferença, respondera Schindler, concilia tório. (Na verdade, o General Schindler não tinha nenhum parentesco com ele.) Comparado a outros,
o general não era tão mau sujeito, observara Oskar.
Aue concordou. Mas ele próprio nunca teria a oportunidade de jantar ou tomar um drinque com o General Schindler; essa era a diferença.
Os dois retornaram ao escritório, encontrando no caminho Itzhak Stern, o contador-chefe da Buchheister, esperando sentado numa cadeira fornecida pelo secretário
de Aue, assoando o nariz e procurando conter acessos de tosse. Ele se pôs de pé, colocou as mãos uma sobre a outra no peito, e, com olhos imensos, viu os dois conquistadores
se aproximarem, passarem na sua frente e entrarem no escritório. Ali Aue ofereceu um drinque a Schindler e depois, pedindo licença, deixou-o junto à lareira e saiu
para falar com Stern.
Stern era muito magro; havia nele um certo ar de fria erudição. Tinha as maneiras de um erudito talmúdico e também de intelectual europeu. Aue contou-lhe a história
do contador e dos dois militares e o que o jovem contador alemão tinha presumido. Depois tirou do cofre a cédula bávara de 1858 e o vale de ocupação de 1914.
- Julguei que talvez o senhor tivesse estabelecido um processo de contabilização para resolver uma situação como esta - disse Aue. - Devem estar acontecendo
muitos casos análogos agora em Cracóvia.
Stern tomou as cédulas e examinou-as. Sim, declarou ele, realmente tinha um processo para solucionar o problema. E, sem sorrir ou piscar um olho, aproximou-se da
lareira na extremidade da sala e atirou as cédulas no fogo.
- Anoto essas transações na coluna de lucros e perdas sob o título de "amostras grátis" - completou ele. (Tinha havido muitas amostras grátis desde setembro.)
Aue gostou do estilo seco e eficiente de Stern para resolver impasses legais. Começou a rir, ante as feições magras do contador, as complexidades da própria Cracóvia,
a sagacidade provinciana de uma cidade pequena. Só um habitante do lugar saberia como agir. No escritório Herr Schindler continuava sentado necessitando de informações
locais.
Aue fez Stern entrar no escritório do gerente para conhecer Herr Schindler, que se pusera de pé junto à lareira, segurando distraidamente um cantil aberto. A primeira
coisa que Stern pensou foi: "Este não é um alemão manejável." Aue usava o emblema do seu Führer, uma
Hakenkreuz em miniatura, com certa displicência, como se se tratasse de um emblema de clube de ciclismo. Mas o emblema de Schindler era do tamanho de uma moeda e
refletia a luz do fogo em sua superfície esmaltada de preto. Isso, e o aspecto saudável do rapaz eram bem os símbolos dos desgostos outonais de Stern, um judeu-polonês
gripado. Aue fez as apresentações. De acordo com o edital já emitido pelo Governador Frank, Stern declarou de saída:
Tenho a dizer-lhe, meu senhor, que sou judeu.
Muito bem - resmungou Herr Schindler. - Pois eu sou ale mão. E aqui estamos nós!
"Muito bem", quase ecoou Stern por trás de seu lenço encharca do. "Neste caso, revogue o edital."
Pois Itzhak Stern era um homem - mesmo naquele momento, apenas sete semanas após ter sido instalada a Nova Ordem na Polônia - submetido não somente a um, mas a muitos
editais. Hans Frank, Governador-Geral da Polônia, já havia programado e assinado seis editais restritivos, deixando outros para o seu governador distrital, Dr. Otto
Wàchter, um Gruppenführer (equivalente a major-general) implementar. Stern, além de declarar sua origem, tinha também de carregar consigo um cartão de registro marcado
com uma lista amarela. As Ordens do Conselho, proibindo o preparo de kosher de carnes e determinando trabalhos forçados para judeus, já estavam em vigor ha via três
semanas, no momento em que Stern tossia diante de Schindler. E a ração oficial de Stern como Untermensch (subumano) era pouco mais do que a metade da ração de um
polonês não-judeu, embora este último fosse também considerado Untermensch.
Finalmente, obedecendo a um edital de 8 de novembro, tinha-se iniciado o registro geral de todos os judeus-cracovianos, o qual devia encerrar-se no dia 24.
Stern, com o seu espírito calmo e abstraído, sabia que os editais iriam continuar, restringindo cada vez mais sua vida e sua própria respiração. A maioria dos judeus-cracovianos
esperava essa onda de editais. Iriam ser criados transtornos na vida cotidiana - judeus dos shtetls trazidos para a cidade a fim de escavar carvão; intelectuais
enviados ao campo para colher beterrabas. Haveria também matanças esporádicas por algum tempo, como a de Tursk, quando uma unidade de artilharia da SS mantivera
um grupo de pessoas trabalhando o dia inteiro numa ponte, e depois as conduzira à noite para a sinagoga da aldeia, onde as fuzilara. De quando em quando ocorriam
casos semelhantes. Mas a situação iria ser contornada: a raça sobreviveria por meio de petições ou subornando as autoridades. Era um velho processo que funcionava
desde o Império Romano e continuaria funcionando. No final das contas, as autoridades civis necessitavam dos judeus, especialmente numa nação em que havia um judeu
para cada onze pessoas.
Entretanto, Stern não se mostrava otimista. Não presumia que a legislação logo se estabeleceria num plano de severidade negociável. Pois aqueles eram os tempos mais
difíceis de suportar. Assim, embora soubesse que a onda vindoura seria diferente, tanto em substância co mo em grau de intensidade, já previa um futuro bastante
sombrio e pensava: "É muito fácil para você. Herr Schindler, ter pequenos gestos generosos de igualdade..."
- Este homem - disse Aue, apresentando Itzhak Stern - é o braço direito de Buchheister. Tem boas conexões na comunidade dos negócios, na Cracóvia.
Não cabia a Stern discutir a opinião de Aue. Ainda assim, pensou que talvez o Treuhänder estivesse dourando a pílula para o distinto visitante.
Aue pediu licença para sair da sala.
A sós com Stern, Schindler murmurou que ficaria grato se o contador pudesse dizer-lhe o que sabia sobre o comércio local. Testando Oskar, Stern sugeriu que talvez
Herr Schindler devesse dirigir-se aos funcionários da Agência de Crédito.
- Não passam de ladrões - retorquiu Herr Schindler. - E também são burocratas. Eu gostaria de certa amplitude. - Depois encolheu os ombros. - Sou um capitalista
por temperamento e não gosto de me sujeitar a regulamentações.
Assim, Stern e o capitalista declarado começaram a conversar. E Stern provou ser uma boa fonte; parecia ter amigos ou parentes em todas as fábricas de Cracóvia -
têxteis, roupas, confeitos, marcenaria, artigos de metal. Herr Schindler ficou impressionado e tirou um envelope do bolso do paletó.
- Conhece uma companhia chamada Rekord? - perguntou ele.
Itzhak Stern conhecia. Estava falida. Fabricava artigos esmalta dos. Desde a falência algumas das máquinas de prensar metais haviam sido confiscadas, e agora, praticamente
inativa, produzia - sob a administração de um parente dos antigos donos - uma mera fração de sua capacidade. O seu próprio irmão, continuou Stern, representava uma
companhia suíça que era uma das principais credoras da Rekord. Stern sabia que era permitido revelar certo grau de orgulho fraterno e em seguida mostrar desaprovação.
A fábrica era muito mal administrada - completou ele. Schindler deixou cair o envelope no colo de Stern.
Este é o balancete deles. Diga-me qual é a sua opinião.
Stern alegou que evidentemente Herr Schindler devia obter também o parecer de outros.
- Sim, é evidente - replicou Oskar. - Mas apreciaria muito tera sua opinião.
Stern leu rapidamente o balancete; após uns três minutos de estudo, sentiu um estranho silêncio no escritório e ergueu os olhos; Herr Oskar Schindler fitava-o atentamente.
Havia, naturalmente, em homens como Stern um dom ancestral para reconhecer um bom goy, que podia ser usado como pára-choque ou refúgio parcial contra a selvageria
de outros. Era um instinto que lhe indicava uma zona potencial de proteção. E daquele momento em diante, a possibilidade de Herr Schindler ser um refúgio iria permear
a conversa, como uma vislumbrada, intangível, promessa sexual pode permear a conversa entre um homem e uma mulher numa reunião social. Era uma sugestão da qual Stern
tinha mais consciência do que Schindler, e nada de explícito seria dito com receio de prejudicar um esboço de conexão.
É um negócio perfeitamente viável - disse Stern. - O senhor podia conversar com o meu irmão. E agora, é claro, existe a possibilidade de contratos militares...
Exatamente - murmurou Herr Schindler.
Pois quase no mesmo instante após a queda de Cracóvia, mesmo antes de terminar o cerco de Varsóvia, o Governo-Geral da Polônia tinha criado uma Inspetoria de Armamentos,
cuja função era assinar contratos com fabricantes adequados para o fornecimento de equipa mentos ao Exército. Numa fábrica como a Rekord, era possível fabricar utensílios
para rancho e cozinha de campanha. Stern sabia que a Inspetoria de Armamentos era chefiada pelo General-de-Divisão Julius Schindler da Wermacht. Era o general aparentado
com Herr Oskar Schindler?, perguntara Stern. Infelizmente não, tinha respondido Schindler, mas dando a entender que preferia que Stern guardasse segredo sobre a
revelação.
De qualquer forma, continuou Stern, a produção precária da Rekord estava rendendo mais de meio milhão de zlotys por ano, máquinas novas prensadoras de metal e fornos
podiam ser adquiridos com relativa facilidade. Tudo dependia do acesso de Herr Schindler a créditos.
Ferro esmaltado, disse Schindler, era mais da sua alçada do que têxteis. Suas atividades anteriores haviam sido no ramo de máquinas agrícolas e ele entendia de prensadoras
a vapor e similares.
Não ocorreu mais a Stern perguntar por que um elegante empresário alemão desejava conversar com ele sobre opções de negócios. Encontros como aquele haviam acontecido
em toda a história de sua tribo, e não eram bem explicados como transações normais de negócios. Estendeu-se mais em suas observações, explicando como a Corte Comercial
iria estabelecer uma remuneração para o arrendamento da massa falida. Arrendamento com uma opção para compra - era melhor do que ser um Treuhänder. Um Treuhänder,
mero supervisor, ficava totalmente sob o controle do Ministério das Finanças. Stern baixou a voz e arriscou-se a dizer:
O senhor sofrerá restrições quanto aos empregados que lhe se rá permitido contratar...
Como sabe disso tudo? - perguntou Schindler. - A respeito de intenções finais?
Li num exemplar do Berliner Tageblatt. Ainda é permitido a um judeu ler jornais alemães.
Schindler pôs-se a rir, estendeu a mão e pousou-a no ombro de Stern.
- Tem certeza disso tudo? - perguntou ele.
Na realidade, Stern sabia dessas coisas porque Aue tinha recebido uma diretriz do Secretário de Estado do Reich, Eberhard von Jagwitz, do Ministério das Finanças,
delineando as providências a serem adota das para "arianizar" o comércio. Aue tinha deixado a cargo de Stern analisar o memorando. Von Jagwitz informara mais com
tristeza do que com raiva que ia haver pressão da parte de outras agências do Governo e do Partido, tais como a RHSA de Heydrich, ou do Escritório Central de Segurança
do Reich, para arianizar não apenas os proprietários de companhias mas também a administração e a mão-de-obra. Quanto mais depressa os Treuhänders conseguissem extirpar
empregados judeus especializados, tanto melhor - sempre, naturalmente, levando em conta a manutenção da produção a um nível aceitável.
Finalmente, Schindler tornou a pôr no bolso os balancetes da Rekord, levantou-se e conduziu Itzhak Stern para a sala principal do escritório da companhia. Os dois
ficaram parados ali por algum tempo, em meio de datilógrafos e funcionários, discutindo filosoficamente, co mo era hábito de Oskar. Foi ali que ele abordou a questão
de o cristianismo ser baseado no judaísmo, assunto que, por algum motivo, talvez mesmo por causa de sua amizade de infância com os Kantor, em Zwittau, o interessava.
Chegara mesmo a publicar artigos em jornais sobre religião comparativa. Oskar, que erroneamente se julgava um filósofo, tinha encontrado um entendido no assunto.
Stern, um erudito que alguns consideravam um pedante, julgou a compreensão de Oskar superficial, uma mente benigna por natureza porém sem muita capacidade conceituai.
Não que Stern estivesse disposto a lamentar-se. Estabelecera-se firmemente entre os dois uma divergente amizade. A Stern ocorreu uma analogia, como ao próprio pai
de Oskar, com relação a impérios anteriores, e ele expôs suas próprias razões para acreditar que Adolf Hitler não teria êxito em seu intento.
Essa opinião escapou da boca de Stern antes de ele ter tempo de reprimi-la. Os outros judeus no escritório baixaram a cabeça e mantiveram os olhos pregados no seu
trabalho. Schindler não pareceu per turbado com o comentário.
Mais para o final da conversa dos dois, Oskar disse algo que era uma novidade. Em épocas como essa, observou ele, devia ser difícil para as igrejas continuar dizendo
aos fiéis que o seu Pai do Céu se preocupava até com a morte de um mísero pardal. Herr Schindler acrescentou que detestaria ser padre nos dias de hoje, quando uma
vida tinha menos valor do que um maço de cigarros. Stern concordou, mas citou, no espírito moral da discussão, que a referência bíblica de Schindler poderia ser
resumida num verso talmúdico que dizia que "aquele que salva a vida de um homem salva a vida do mundo inteiro".
- É claro, é claro - murmurou Oskar Schindler.
Com ou sem razão, Itzhak sempre acreditou que foi naquele mo mento que ele deixou cair a semente que iria germinar no espírito de Oskar.
Capítulo 3
E
xiste outro judeu da Cracóvia que relata um encontro com Schindler naquele outono - e de como quase o matou. O nome desse homem era Leopold (Poldek) Pfefferberg.
Era comandante de uma companhia do Exército polonês durante a recente trágica campanha. Depois de sofrer um ferimento na perna na batalha pelo Rio San, ele estivera
manquejando pelo hospital polonês em Przemysl, ajudando os outros feridos. Não era médico, mas sim professor de educação física formado na Universidade de Cracóvia
e, portanto, com algum conhecimento de anatomia. Resiliente, cheio de confiança em si, tinha vinte e sete anos e era de constituição vigorosa.
Juntamente com algumas centenas de outros oficiais poloneses capturados, Pfefferberg estava a caminho da Alemanha, quando o seu trem parou em sua cidade natal, Cracóvia,
e os prisioneiros foram levados para a sala de espera da primeira classe, a fim de ali estacionarem, aguardando novo transporte. A casa dele ficava a uns dez quarteirões
da estação. Rapaz de espírito prático, parecia-lhe inadmissível que não conseguisse ir até a Rua Pawia para apanhar o bonde, que o deixaria em casa. O guarda de
aspecto rústico da Wehrmacht à porta parecia uma provocação.
Pfefferberg trazia no bolso um documento assinado pelo diretor do hospital alemão em Przemysl, declarando que ele tinha licença de se locomover pela cidade em ambulâncias,
cuidando dos feridos de ambos os exércitos. O documento era espetacularmente formal, selado e assinado. Pfefferberg resolveu exibi-lo ao guarda.
- Sabe ler alemão? - perguntou Pfefferberg.
Esse tipo de manobra tinha de ser feito do modo certo. Era preciso ser jovem e persuasivo; manter, inabalado pela derrota sumária, um ar de segurança típico da natureza
polonesa - algo que corria nas veias de oficiais poloneses, até mesmo entre os raros judeus que tinham ingressado no Exército.
- Claro que posso ler alemão - disse o guarda, piscando os olhos. Mas depois de pegar o documento e segurá-lo como quem não sabe em absoluto ler - segurá-lo como
se fosse um pedaço de pão, ouviu de Pfefferberg a explicação de que aquele documento lhe dava o direito de sair para cuidar de enfermos. Só o que o guarda podia
ver era uma proliferação de carimbos oficiais. Um documento e tanto. Com um gesto de cabeça, ele indicou a porta.
Nessa manhã, Pfefferberg era o único passageiro do bonde. Não eram ainda seis horas da manhã. O condutor recebeu sem comentário o preço da passagem, pois na cidade
ainda havia muitas tropas polonesas que a Wehrmacht não tinha classificado. Os oficiais eram apenas obrigados a se registrarem.
O bonde fez a volta do Barbakan, atravessou os portões da antiga muralha, desceu a Rua Florianska rumo à Igreja de Santa Maria, cruzou a praça central, e dentro
de cinco minutos chegava à Rua Grodzka. Ao se aproximar do apartamento de seus pais no n? 48, ele saltou do bonde, como fazia desde menino, antes de funcionarem
os freios, e deixou que o impulso do salto, acrescido pelo do bonde, o projetasse com um ruído surdo contra o batente da porta.
Após sua fuga, Poldek tinha vivido com relativo conforto em apartamentos de amigos, visitando de vez em quando o apartamento da Rua Grodzka. As escolas israelitas
abriram por um curto espaço de tempo - tornariam a ser fechadas dentro de seis semanas - e ele chegou a voltar ao seu emprego de professor. Tinha certeza de que
a Gestapo levaria algum tempo para encontrá-lo, e por isso requereu carnes de ração. Começou também a negociar com jóias - por conta própria - no mercado negro,
que operava na praça central de Cracóvia, nas arcadas do Sukiennice e sob as torres desiguais da Igreja de Santa Ma ria. O comércio era ativo, entre os próprios
poloneses porém ainda mais para os judeus-poloneses. Os carnes de ração que recebiam, cheios de cupons pré-cancelados, davam-lhes direito a apenas dois terços da
carne e metade da manteiga distribuídos aos cidadãos arianos, ao passo que todos os cupons de chocolate e arroz vinham cancelados. E assim o mercado negro que operara
durante séculos de ocupação e as poucas décadas de autonomia polonesa tornou-se o alimento, a fonte de renda e o meio mais disponível de resistência para respeitáveis
cidadãos burgueses, especialmente aqueles que, como Leopold Pfefferberg, sabiam atuar nas ruas.
Presumiu que logo estaria viajando pelos percursos de esqui em torno de Zakopane nos Tatras, cruzando a fina faixa de terra da Eslováquia rumo à Hungria ou Romênia.
Estava bem equipado para a jornada: tinha sido membro do time polonês de esqui. Numa das prateleiras mais altas do fogão de porcelana, no apartamento de sua mãe,
ele escondera uma elegante pistolinha 22 - arma que lhe serviria tanto para a fuga planejada, como no caso de ser acuado dentro do apartamento pela Gestapo.
Com a sua pistolinha de cabo de madrepérola, Pfefferberg quase matou Oskar Schindler num frio dia de novembro. Vestido com um terno de jaquetão, com o emblema do
Partido na lapela, Schindler decidira ir procurar a Sra. Mina Pfefferberg, mãe de Poldek, para lhe propor um trabalho. As autoridades de habitação do Reich lhe haviam
reservado um moderno e bonito apartamento na Rua Straszewskiego, anteriormente de propriedade dos Nussbaum, uma família judaica. Tais alocações eram efetuadas sem
qualquer indenização para o ex-proprietário. No dia em que Oskar foi procurar a Sra. Mina Pfefferberg, ela própria estava temerosa de que o mesmo fosse acontecer
com o seu apartamento na Rua Grodzka.
Vários amigos de Schindler afirmariam mais tarde - embora não fosse possível prová-lo - que Oskar tinha ido procurar os Nussbaum expulsos de sua moradia na Rua Podgórze
e lhes dera uma quantia de quase 50.000 zlotys como compensação. Com esse dinheiro, ao que se supõe, os Nussbaum compraram a sua fuga para a Iugoslávia. Os 50.000
zlotys significavam uma marcante divergência; antes do Natal Oskar teria outros gestos similares de divergência. Efetivamente, alguns amigos diriam que a generosidade
era uma doença em Oskar, um impulso frenético, uma de suas paixões. Costumava dar a motoristas de táxi gorjetas que eram o dobro do que marcava o relógio. Mas é
preciso notar também que ele considerava injustas as autoridades de habitação do Reich e disse isso a Stern, não quando o regime começou a ter problemas mas já naquele
outono tão favorável aos nazistas.
De qualquer forma, a Sra. Pfefferberg não tinha a menor idéia do que viera fazer em seu apartamento o alto e elegante alemão. Teria vindo bater à sua porta à procura
de Poldek, que no momento estava escondido na cozinha? Ou quem sabe para se apossar do apartamento e do negócio de decoração da Sra. Pfefferberg, de suas antigüidades
e tapeçarias francesas?
Com efeito, por ocasião da festa de Hanukkah em dezembro, a polícia alemã, por ordem da agência de habitação, viria bater à porta da família e expulsá-la, tremendo
de frio, para a calçada da Rua Grodzka. Quando a Sra. Pfefferberg pedira para tornar a entrar no aparta mento e apanhar o seu capote, a permissão lhe fora recusada;
quando
o Sr. Pfefferberg encaminhara-se para o seu escritório a fim de apanhar um antigo relógio de ouro, levara um soco no queixo. "Testemunhei coisas terríveis no passado",
tinha dito Hermann Góring, "motoristas e gauleilers têm lucrado tanto com essas transações que agora já devem ter por volta de meio milhão." O efeito dessas apropriações
fáceis, como o relógio de ouro do Sr. Pfefferberg, sobre a fibra moral do Partido poderiam preocupar Góring. Mas naquele ano na Polônia, o estilo da Gestapo era
não prestar contas do que encontrasse nos apartamentos.
Todavia, quando Schindler foi bater na porta do apartamento dos Pfefferberg no segundo andar, a família ainda ali residia. A Sra. Pfefferberg e o filho estavam conversando
em meio de peças de tecidos e rolos de papel de parede, quando ouviram bater na porta. Poldek não ficou preocupado. Havia duas entradas no apartamento - a porta
comercial e a da cozinha ficavam cada uma de um lado de um patamar. Indo até a cozinha, ele espiou pela porta entreaberta o visitante. Notou a alta estatura do desconhecido,
o elegante talhe de sua roupa, e voltou à sala de estar para dizer à sua mãe que tinha a impressão de que o homem era da Gestapo. Quando ela o deixasse entrar pela
porta comercial, Poldek sempre teria tempo de fugir pela cozinha.
A Sra. Pfefferberg tremia. Estava, naturalmente, de ouvido atento a ruídos no corredor. Pfefferberg tinha apanhado a pistola e a enfiara no cinto. A sua intenção
era combinar o ruído de sua saída com o da entrada de Schindler. Mas parecia uma tolice fugir sem saber o que o alemão queria. Havia a possibilidade de ser preciso
matar o homem, e então seria necessário combinar a fuga da família para a Romênia.
Se a pressão magnética do momento tivesse impelido Pfefferberg a puxar o gatilho da pistola, a morte, a fuga, as represálias seriam consideradas normais e próprias
da época. A morte de Schindler seria brevemente lamentada e prontamente vingada. E isso teria sido, evidentemente, o sumário fim de todas as potencialidades de Oskar.
E lá em Zwittau, a pergunta das pessoas seria: "Qual foi o marido que matou Herr Schindler?"
A voz surpreendeu os Pfefferberg. Era calma, polida, adequada a uma transação comercial, até mesmo a um pedido de favor. A família tinha-se habituado nas semanas
anteriores ao tom de decreto, de pronta expropriação. Mas o daquele homem parecia fraternal, o que poderia significar coisa pior.
Pfefferberg tinha-se esgueirado da cozinha e estava escondido por detrás das portas duplas da sala de jantar. Podia ver por uma fresta o visitante.
- É a Sra. Pfefferberg? - perguntou o alemão. - Foi-me recomendada por Herr Nussbaum. Acabo de tomar posse do apartamento na Rua Straszewskiego, e gostaria
de redecorá-lo.
Mina Pfefferberg mantinha o homem à porta. Respondeu com tal incoerência que o filho teve pena dela e apareceu na soleira, com o paletó abotoado sobre a arma. Convidou
o visitante a entrar e, ao mesmo tempo, murmurou em polonês palavras tranqüilizadoras à sua mãe.
Oskar Schindler então se identificou. Era preciso agir com calma, pois o alemão podia perceber que Pfefferberg estava executando uma manobra primordial de proteção.
Schindler demonstrou o seu respeito, dirigindo agora a palavra ao filho, como se se tratasse de um intérprete.
- Minha mulher vai chegar da Tchecoslováquia - explicou ele - e eu gostaria de redecorar o apartamento no estilo que ela gosta.
Acrescentou que os Nussbaum tinham mantido o apartamento em excelentes condições, mas decorado num gosto em que predominavam os móveis pesados e as cores sombrias.
A Sra. Schindler dava preferência a um estilo mais leve - um pouco francês, um pouco sueco.
A Sra. Pfefferberg se recompusera o bastante para dizer que não sabia - eram dias muito agitados aqueles, com a proximidade do Na tal. Poldek percebeu que havia
nela uma resistência instintiva em aceitar um cliente alemão; mas os alemães deviam ser, naquele momento, os únicos com suficiente confiança no futuro para se interessarem
por decoração. E a Sra. Pfefferberg precisava de um bom contrato - seu marido fora despedido do emprego e agora trabalhava por uma ninharia na agência de habitação
do Gemeinde, o escritório judaico de previdência social.
Dois minutos depois, os dois homens já conversavam como se fossem amigos. A pistola no cinto de Pfefferberg era agora arma reserva da para uma futura e remota emergência.
Não restava dúvida de que a Sra. Pfefferberg iria decorar o apartamento de Schindler, sem olhar despesas. Schindler sugeriu que Pfefferberg talvez gostasse de ir
até seu apartamento para discutir outros negócios.
- Há a possibilidade de o senhor me aconselhar na aquisição de mercadorias locais - disse Schindler. - Por exemplo, esta sua bonita camisa azul... Não sei
como procurar sozinho artigos assim.
A sua ingenuidade era uma manobra, mas Pfefferberg compreendeu.
- As lojas, como deve saber, estão vazias - insinuou Oskar. Pfefferberg era o tipo de homem que sobreviveria, apostando alto.
- Herr Schindler, essas camisas são extremamente caras. Espero que compreenda. Custam vinte e cinco zlotys cada uma.
Ele tinha multiplicado por cinco o preço. Imediatamente, no rosto de Schindler surgiu um malicioso sorriso de compreensão - porém não muito acentuado para não pôr
em risco a tênue amizade, ou lembrar a Pfefferberg a pistola que trazia escondida sob o paletó.
- Provavelmente, poderia conseguir-lhe algumas camisas - continuou Pfefferberg - se me der o número que o senhor usa. Mas receio que os meus contatos exijam
dinheiro adiantado.
Schindler, ainda demonstrando com os olhos que estava a par do golpe, tirou do bolso a carteira e entregou a Pfefferberg 200 reichmarks. A quantia era tremendamente
exagerada e, mesmo aos preços inflacionados de Pfefferberg, teria dado para comprar camisas para uma dezena de magnatas. Mas Pfefferberg nem pestanejou.
- Precisa me dar as suas medidas - concluiu ele.
Uma semana depois, Pfefferberg levou uma dúzia de camisas de seda ao apartamento de Schindler na Rua Straszewskiego. Lá deparou com uma bonita alemã que lhe foi
apresentada como Treuhänder de uma indústria de ferragens em Cracóvia. Depois, numa outra noite, Pfefferberg avistou Oskar na companhia de uma beldade polonesa loura
e de grandes olhos azuis. Se existia uma Frau Schindler, ela não apareceu mesmo depois de a Sra. Pfefferberg ter redecorado o apartamento. O próprio Pfefferberg
passou a ser uma das mais constantes conexões de Schindler com o mercado de artigos de luxo - sedas, móveis, jóias - que florescia na antiga cidade de Cracóvia.
Capítulo 4
A
vez seguinte em que Itzhak Stern se encontrou com Oskar Schindler, foi numa manhã em princípios de dezembro. Schindler já dera entrada à sua proposta à Corte Comercial
de Cracóvia e agora podia visitar tranqüilamente os escritórios da Buchheister; de pois de conferenciar com Aue, postou-se junto à escrivaninha de Stern, bateu palmas
e anunciou, numa voz que já parecia embriagada:
- Amanhã, vai começar. As ruas Jozefa e Izaaka vão saber de tudo!
Havia realmente as ruas Jozefa e Izaaka na Kazimierz. Havia-as em todo gueto e Kazimierz era o local do antigo gueto de Cracóvia, uma ilha cedida no passado à comunidade
judaica por Kazimier o Gran de agora um subúrbio aninhado num braço do Rio Vístula.
Herr Schindler curvou-se sobre Stern, que sentiu o seu hálito de conhaque e ficou na dúvida: Sabia Herr Schindler que algo estava para acontecer na Rua Jozefa e
na Rua Izaaka? Ou estaria apenas citando nomes ao acaso? De qualquer forma, Stern sentiu-se enjoadamente frustrado. Herr Schindler estava alardeando um pogrom, sem
uma base positiva como que para pôr Stern de sobreaviso.
Era o dia 3 de dezembro. Quando Oskar disse "amanhã", Stern presumiu que ele estivesse usando a palavra não no sentido de 4 de dezembro mas nos termos que bêbados
e profetas sempre usam, como algo que aconteceria ou provavelmente iria acontecer dentro em breve. Muito poucos daqueles que a ouviram, ou que souberam da advertência
alcoolizada de Herr Schindler, deram-lhe crédito. Alguns fizeram suas malas naquela noite e levaram suas famílias para Podgórze, do outro lado do rio.
Oskar sabia que corria um risco transmitindo aquelas informações
Recebera-as de pelo menos duas fontes, de novos amigos. Um era um oficial ligado à equipe de auxiliares do chefe de polícia da SS, Herman Toffel, policial com o
posto de Wachtmeister (sargento); o outro, Dieter Reeder, pertencia à equipe do chefe Czurda da SS. Ambos os contatos eram característicos entre oficiais amistosos,
com quem Oskar cultivava amizade.
Mas, naquele dia de dezembro, ele não soubera explicar a Stern os motivos de estar transmitindo aquela informação. Mais tarde diria que, no período da Ocupação Alemã
da Boêmia e Morávia, testemunhara tantas expropriações de propriedades de judeus e tchecos, sua remoção à força das áreas sudetas consideradas alemãs, que ficara
curado de qualquer lealdade à Nova Ordem. A revelação a Stern, mui to mais do que a não confirmada história a respeito dos Nussbaum, é uma prova muito mais positiva
de sua atuação.
Schindler deve também ter nutrido a esperança, assim como os judeus de Cracóvia, que o furor inicial do regime iria afrouxar e permitir que as pessoas respirassem.
Se os reides e incursões da SS nos meses seguintes pudessem ser mitigados com avisos de antemão, então talvez a sanidade voltasse a se estabelecer na primavera.
Afinal, tanto Oskar quanto os judeus diziam a si mesmos que os alemães eram uma nação civilizada.
Entretanto, a invasão da Kazimierz pela SS despertou em Oskar uma repulsa fundamental - não uma repulsa que chegasse a afetar diretamente o nível de sua vida comercial,
ou amorosa, ou seus jantares com amigos, mas uma repulsa que, quanto mais claras se tornavam as intenções do novo regime, o impulsionaria, obcecaria, levando-o em
sua exaltação a arriscar-se cada vez mais. A finalidade da operação era em parte a apropriação de jóias e peles. Haveria alguns despejos de casas e apartamentos
na zona mais abastada entre Cracóvia e Kazimierz. Mas, além desses resultados práticos, aquela primeira Aktion ia ser uma advertência dramática aos atemorizados
habitantes daquele bairro judaico. Com esse objetivo, contou Reeder a Oskar, um peque no destacamento de homens da Einsatzgruppe juntamente com membros da SS local
e da polícia de campanha entrariam em caminhões na Kazimierz.
Seis Einsatzgruppen tinham vindo para a Polônia com o exército invasor. A sua denominação tinha significação sutil. "Grupos de Tarefa Especial" é uma tradução aproximada.
Mas a palavra amorfa Einsatz é também rica em nuanças - de desafio, de provocação, de nobre contenda. Esses esquadrões eram recrutados no Sicherheitsdienst (SD -
Serviço de Segurança) de Heydrich. De antemão, eles sabiam que a sua tarefa era ampla. O seu líder supremo dissera seis semanas antes ao General Wilhelm Keitel que
"no Governo Geral da Polônia terá de haver uma dura luta pela existência nacional, que não permitirá restrições legais de espécie alguma". Na elevada retórica de
seus líderes,os soldados do Einsatz sabiam que uma luta pela existência nacional significava guerra aos judeus e outras raças, assim como o próprio Einsatz, Tarefa
Especial de Cavaleiros, significava o cano quente de uma espingarda.
O esquadrão Einsatz destacado para ação na Kazimierz naquela noite era de elite. Deixariam aos tarefeiros da SS o trabalho sórdido de revistar as moradias em busca
de anéis de diamante e casacos forra dos de peles. Eles próprios tomariam parte numa atividade mais radicalmente simbólica de destruir os instrumentos da cultura
judaica -isto é, as antigas sinagogas de Cracóvia.
Havia semanas que os componentes do Einsatz estavam se exercitando, assim como os Sonderkommandos SS (Esquadrões Especiais), também destacados para essa primeira
Aktion em Cracóvia, e a policia de segurança do chefe Czurda. O Exército negociara com Heydrich e os chefes de polícia mais categorizados um adiamento de operações
até a Polônia passar da administração militar à civil. A transmissão de autoridade fora agora efetuada, e em todo o país os Cavaleiros de Einsatz e os Sonderkommandos
receberam ordem de atacar, com um justo senso de racismo histórico e indiferença profissional, os antigos guetos judaicos.
No final da rua estava situado o apartamento de Oskar, e lá também se erguiam as fortificações rochosas do Castelo de Wawel, de onde governava Hans Frank. Para que
se possa compreender a futura atuação de Oskar na Polônia, é preciso examinar a ligação entre Frank e os jovens membros da SS e da SD, e depois entre Frank e os
judeus de Cracóvia.
Em primeiro lugar, Hans Frank não tinha autoridade direta sobre aqueles esquadrões especiais que iriam invadir a Kazimierz. As forças policiais de Heinrich Himmler,
onde quer que atuassem, faziam sempre a sua própria lei. Frank não só reprovava esse poder independente, como não concordava com ele em terreno prático. Abominava
tanto quanto qualquer outro membro do Partido a população judaica e considerava a agradável cidade de Cracóvia intolerável devido à quantidade de judeus que a habitavam.
Pouco tempo antes ele se queixara, quando as autoridades tinham tentado usar o Governo-Geral, e especialmente Cracóvia com o seu entroncamento de estrada de ferro,
como despejo de judeus das cidades da Wartheland, Lodz e Poznan. Mas não acreditava que os Einsatzgruppen ou os Sonderkommandos, com os seus métodos, pudessem trazer
alguma solução para o problema.
Era opinião de Frank, partilhada por Himmler (em certos estágios das divagações mentais de "Heini"), que deveria haver um só vasto campo de concentração para judeus,
pelo menos na cidade de Lublin e cercanias, ou, ainda melhor, na Ilha de Madagascar.
Os próprios poloneses sempre haviam acreditado em Madagascar. Em 1937, o Governo polonês tinha enviado uma comissão para estudar aquela ilha de picos altos tão longe
de suas sensibilidades européias. O Ministério Colonial francês, a que pertencia Madagascar, estava disposto a negociar, de governo para governo, essa nova colonização,
pois uma Madagascar com uma densa população judaica seria um grande mercado de exportação. Oswald Pirow, Ministro da Defesa da África do Sul, tinha atuado por um
tempo como intermediário entre Hitler e a França na questão da ilha. Assim, Madagascar, como solução, tinha um alvará respeitável. Havia um interesse financeiro
da parte de Hans nessa solução e não no Einsatzgruppe. Pois aqueles reides e massacres esporádicos não podiam arrasar a população subumana da Europa Oriental. Durante
o tempo da campanha em torno de Varsóvia, o Einsatzgruppe tinha enforcado judeus nas sinagogas da Silésia, haviam-nos destruído com o suplício da água, tinham-lhes
invadido os lares nas noites de Sabbath ou dias de festa, cortado os seus cachos rituais de oração, tocado fogo em seus tallis, haviam-nos fuzilado contra uma parede.
O efeito fora quase nulo. Segundo Frank, havia muitos indícios na História de que raças ameaçadas em geral venciam os genocídios. O falo era mais rápido que o fuzil.
O que ninguém sabia - nem os participantes do debate, os fina mente educados rapazes do Einsatzgruppe dentro de um caminhão, os não tão distintos membros da SS em
outro caminhão, os fiéis nas sinagogas, Herr Oskar Schindler a caminho de seu apartamento na Rua Straszewskiego para se vestir para o jantar - o que nenhum deles
sabia, e muitos planejadores do Partido mal podiam esperar, era que iria ser encontrada uma resposta tecnológica: um desinfetante químico com posto, Zyklon B, iria
substituir Madagascar como solução.
Houvera um incidente relacionado com Leni Riefenstahl, a atriz e diretora predileta de Hitler. A caminho de Lodz com uma equipe de cinegrafistas logo depois de a
cidade cair, ela presenciara uma fileira de judeus - visivelmente judeus, de longos cachos - serem executa dos com armas automáticas. Leni fora procurar diretamente
o Führer, que se achava no quartel-general do Exército do Sul, e lhe fez uma cena. Era isso - a logística, o peso dos números, as considerações de relações públicas
faziam com que os rapazes do Einsatz fizessem papel de tolos. Mas Madagascar também iria parecer ridículo, uma vez que fossem descobertos meios de efetuar incursões
substanciais contra a população subumana da Europa Central em locais determinados, com facilidades adequadas de remoção, que uma elegante diretora tinha pou cas
probabilidades de encontrar.
Conforme Oskar tinha avisado a Stern no escritório da Buchheister, os SS desencadearam uma guerra econômica de porta em porta nas ruas Jakoba, Izaaka e Josefa. Invadiram
apartamentos, arrastaram o conteúdo de armários, arrebentaram fechaduras em escrivaninhas e penteadeiras. Arrancaram jóias dos dedos e pescoços e correntes de relógios.
Uma mulher que não queria entregar o seu casaco de pele teve o braço quebrado; um menino da Rua Ciemna, que queria ficar cora os seus esquis, levou um tiro.
Alguns, cujos bens tinham sido roubados - ignorando que a SS estava operando fora de qualquer restrição legal -, foram no dia seguinte dar queixa nas delegacias
de polícia. Em algumas delegacias encontraram um ou outro oficial graduado com alguma integridade, que se mostrava embaraçado e talvez até disciplinasse algum depredador.
Teria de haver uma investigação para o caso do menino da Rua Ciemna e da mulher com o nariz quebrado por um cassetete.
Enquanto os SS trabalhavam nos prédios de apartamentos, o esquadrão do Einsaizgruppe atacava a Sinagoga de Stara Bozníca, data da do século XIV. Como esperavam,
ali encontraram orando uma congregação de judeus tradicionais de barbas e cachos e tallis nos ombros. Juntaram um grupo de judeus menos ortodoxos nos apartamentos
das imediações e os fizeram entrar na sinagoga para apurar a reação de um grupo em presença do outro.
Entre os que haviam sido empurrados para dentro da Stara Bozníca achava-se o gângster Max Redlicht, que de outra forma não teria posto os pés na sinagoga nem sido
convidado para entrar. Foram to dos colocados diante da Arca, dois pólos da mesma tribo que, em circunstâncias normais, teriam considerado uma ofensa estar na companhia
um do outro. Um oficial graduado do Einsatz abriu a Arca e tirou de dentro o rolo de pergaminho do Tora. A discrepante congregação dentro da sinagoga recebeu ordem
de desfilar diante do pergaminho sagrado e cuspir nele. Não podia haver tapeação - a cusparada teria de ser visível na caligrafia.
Os judeus ortodoxos se mostraram mais racionais do que os outros, os agnósticos, os liberais, os que se consideravam apenas europeus. Tornou-se claro para os homens
do Einsatz que os judeus dessa classe recuavam diante do Tora, e tentavam mesmo transmitir-lhes encorajamento através de olhares, como que dizendo: "Vamos, somos
todos muito sofisticados para dar importância a essa tolice." Os membros da SS tinham ouvido em seu treinamento que o caráter europeu dos judeus liberais era uma
fina classe, e na Stara Bozníca a relutância dos que usavam cabelos curtos e roupas contemporâneas vinha provar aquela teoria.
No final, todos cuspiram exceto Max Redlicht. Os homens do Einsatzgruppe devem ter considerado isso um teste que valera a pena - ver um homem visivelmente agnóstico
recusar-se a repudiar um livro, que intelectualmente ele considerava uma antiga sandice tribal, mas que seu sangue lhe diz ser sagrado. Podia um judeu se libertar
das tendências de seu sangue? Podia ele pensar com tanta clareza quanto Kant? Aquele era o teste.
Redlicht não passou no teste. Pronunciou um pequeno discurso. "Já fiz muita coisa na vida. Mas isso não farei." Foi o primeiro a ser morto com um tiro, mas depois
fuzilaram todos os outros e incendiaram Stara Bozníca, deixando apenas o arcabouço da mais antiga das sinagogas polonesas.
Capítulo 5
V
ictoria Klonowska, secretária polonesa, era a beldade do escritório de Oskar, e imediatamente ele se envolveu num duradouro caso com ela. Ingrid, sua amante alemã,
devia saber de tudo, tão certo como Emilie Schindler sabia a respeito de Ingrid. Pois Oskar nunca fora um amante furtivo. Em questões sexuais, era de uma franqueza
que chegava a ser infantil. Não que se gabasse de suas aventuras mas simplesmente não via necessidade alguma de mentir, de esgueirar-se para dentro de hotéis pelas
escadas de serviço, bater de leve na porta de uma mulher a altas horas da madrugada. Como Oskar não fazia esforço algum para enganar suas mulheres, elas não tinham
muita opção: as discussões tradicionais entre amantes tornavam-se difíceis.
Com os cabelos louros arrumados no alto de seu lindo, esperto e bem-maquilado rostinho, Victoria Klonowska parecia ser do tipo de jovem frívola para quem as inconveniências
da História significavam uma intrusão temporária na vida real. Nesse outono, quando usavam roupas simples, Klonowska parecia bem fútil com uma blusa de baba dos
e saia justa. Contudo, era astuta, eficiente e hábil. Era também uma nacionalista no robusto estilo polonês. Mais tarde, ela iria negociar com os dignitários alemães
das instituições da SS o livramento do seu amante sudeto. Mas, por enquanto, Oskar tinha uma tarefa me nos arriscada para ela.
Encarregou-a de encontrar um bom bar ou cabaré em Cracóvia, onde ele pudesse levar alguns amigos. Não contatos, nem funcionários graduados da Inspetoria de Armamentos.
Amigos de verdade. Um local animado e que não fosse freqüentado por autoridades.
Conhecia Klonowska, por acaso, um local assim?
Ela descobriu um excelente porão com uma banda de jazz, nas estreitas ruas ao norte da Rynek, a praça da cidade: um clube que sempre fora popular entre os estudantes
e professores mais jovens da universidade, mas a própria Victoria nunca lá estivera. Os homens de meia-idade, que a haviam cortejado em tempo de paz, nunca se mos
trariam dispostos a se meter num antro de estudantes. Quem desejasse podia alugar uma alcova atrás de uma cortina para reuniões privadas, sob pretexto de ouvir os
ritmos tribais da banda de jazz. Por ter descoberto aquele local, Oskar apelidou Victoria de "Colombo". A linha do Partido considerava o jazz não somente manifestação
artisticamente decadente mas expressão da subumana animalidade africana. O ump -pa-pa das valsas vienenses era o ritmo preferido dos homens da SS e membros do Partido,
que faziam absoluta questão de evitar clubes de jazz.
Por volta do Natal de 1939, Oskar organizou uma reunião no clube com um grupo de amigos. Como qualquer cultivador instintivo de contatos, jamais tivera problema
algum de beber na companhia de homens de quem não gostava. Mas nessa noite os convidados eram gente de quem realmente gostava. Além disso, naturalmente, eram todos
de alguma utilidade, pois eram membros jovens mas não sem certa in fluência, nas várias agências de ocupação; todos mais ou menos exila dos duplos - não só se encontravam
longe de sua pátria mas, quer no seu país quer no exterior, estavam todos mais ou menos inquietos com o regime.
Havia, por exemplo, um jovem superintendente alemão da Divisão do Interior do Governo-Geral. Fora ele quem delimitara a fábrica de esmaltados de Oskar em Zablocie.
Nos fundos da fábrica de Oskar, Deutsche Email Fabrik (DEF), ficava um terreno baldio que confinava com duas outras fábricas, uma de embalagens e outra de radiadores.
Schindler gostara muito de saber que a maior parte da área desocupada pertencia, segundo o superintendente, à DEF. Em sua cabeça surgiram visões de expansão econômica.
Esse superintendente, é claro, linha sido convidado porque era um bom sujeito, porque era pos sível conversar com ele e porque poderia ser útil no plano de conseguir
futuras licenças de construção.
O policial Herman Toffel estava presente e também Reeder, do Ser viço de Segurança, assim como um outro superintendente, jovem oficial de nome Steinhauser, da Inspetoria
de Armamentos. Oskar conhecera e simpatizara com esses homens, quando havia requerido as licenças de que necessitava para pôr sua fábrica em funcionamento. Já bebera
com eles em outras ocasiões. Sempre acreditara que a melhor maneira de desfazer o nó górdio da burocracia, excetuando o suborno, era a bebida.
Finalmente, havia dois membros da Abwehr. O primeiro era Eberhard Gebauer, o tenente que um ano antes tinha recrutado Schindler para a Abwehr. O segundo era o Leutnant
Martin Plathe, do comando de Canaris em Breslau. Devido ao seu recrutamento através do amigo Gebauer, Herr Oskar Schindler tinha descoberto que Cracóvia era uma
cidade de muitas oportunidades.
A presença de Gebauer e Plathe teria suas conseqüências. Oskar continuava inscrito nos livros da Abwehr como agente e, nos anos que permaneceu em Cracóvia, manteve
a equipe de Canaris em Breslau satisfeita, transmitindo-lhes informações sobre o comportamento dos seus rivais na SS. Gebauer e Plathe consideravam como um favor,
uma dá diva, o fato de Oskar ter convidado um policial, mais ou menos descontente como Toffel, e Reeder do Serviço de Segurança, além de oferecer-lhes boa companhia
e bebidas.
Ainda que não seja possível dizer exatamente o que conversaram os convidados daquela reunião, é possível reconstituir com alguma plausibilidade as conversas, pelo
que Oskar transmitiu mais tarde a respeito de cada um deles.
Foi Gebauer, naturalmente, quem fez a saudação, declarando que não lhes daria governos, exércitos ou potentados; ao invés, lhes dará a fábrica de esmaltados do seu
bom amigo Oskar Schindler. Pois, se a fábrica prosperasse, haveria mais reuniões no estilo Schindler, e da melhores!
Mas, depois do brinde, a conversa desviou-se naturalmente para o assunto que confundia e obcecava todos os níveis da burocracia ci vil: os judeus.
Toffel e Reeder tinham passado o dia na Estação de Mogilska, supervisionando o desembarque de judeus e poloneses de trens vinda do leste. Essa gente havia sido transportada
dos Territórios Incorporados, regiões recentemente conquistadas, que no passado tinham pertencido à Alemanha. Toffel não estava se preocupando com o conforto dos
passageiros nos Ostbahn, vagões de gado, embora confessasse que eram muito frios. Mas esse tipo de transporte de populações era uma novidade para todo mundo e os
vagões ainda não viajavam desumanamente repletos. O que deixava Toffel confuso era a intenção por de trás de tudo aquilo.
- Há um rumor persistente - disse Toffel - de que estamos em guerra. E, em tal situação, os cidadãos dos Territórios Incorpora dos se consideram de raça muito pura
para conviver com uns poucos poloneses e meio milhão de judeus. O sistema Ostbahn foi planejado para entregar toda essa gente em nossas mãos.
Os membros da Abwehr ouviam com um leve sorriso nos lábios.
Para a SS o inimigo oculto podia ser o judeu mas para Canaris o inimigo oculto era a SS.
A SS, informou Toffel, tinha requisitado toda a rede ferroviária a partir de 15 de novembro. Por sua mesa, na Rua Pomorska, tinham passado memorandos irritados dirigidos
pela SS ao pessoal do Exército, reclamando que os militares não estavam cumprindo o prometido, tinham ultrapassado duas semanas o prazo marcado para o uso dos Ostbahn.
Pelo amor de Deus, perguntava Toffel, o Exército não devia ter prioridade, por quanto tempo quisesse, para usar a rede ferroviária? De que outra forma poderia distribuir
suas tropas a leste e oeste?, perguntava ele bebendo nervosamente. Usando bicicletas?
Oskar achou graça que os homens da Abwehr não fizessem comentário algum. Suspeitavam ser Toffel um informante, em vez de simplesmente estar embriagado.
O superintendente e o homem da Inspetoria de Armamentos fizeram algumas perguntas a Toffel sobre aqueles trens que chegavam na Mogilska. Em breve tais movimentações
deixariam de ser assunto de discussão; o transporte de seres humanos passaria a ser um clichê de medidas de repovoamento. Mas na noite da reunião de Oskar, ainda
constituíam uma novidade.
- Eles chamam isso - disse Toffel - concentração. É a palavraque se encontra nos documentos. Concentração. Eu chamo isso de maldita obsessão.
O proprietário do clube de jazz trouxe pratos de arenque e mo lho. O peixe combinava bem com a bebida forte e, enquanto eles o devoravam, Gebauer falou sobre os
Judenrats, os conselhos judaicos formados em cada comunidade por ordem do Governador Frank. Em cidades como Varsóvia e Cracóvia o Judenrat tinha vinte e quatro membros
eleitos, pessoalmente responsáveis pelo cumprimento das ordens do regime. O Judenrat de Cracóvia estava em funcionamento havia menos de um mês; Marek Biberstein,
respeitada autoridade municipal, fora nomeado presidente da organização. Mas Gebauer disse ter ouvi do o rumor de que o Judenrat já apresentara no Castelo de Wawel
uma lista de trabalhadores judeus. O Judenrat forneceria a mão-de-obra para cavar valas e latrinas e remover neve. Podia alguém negar que os ju deus estavam muito
dispostos a cooperar?
Em absoluto, disse o engenheiro Steinhauser da Inspetoria de Armamentos. Os judeus pensavam que, se fornecessem turmas de trabalhadores, isso faria cessarem fortuitos
ataques da imprensa. Ataques da imprensa levavam a espancamentos e a um ocasional tiro na cabeça.
Martin Plathe concordou.
- Eles serão cooperativos para evitar coisas piores. É o seu método. É preciso que se compreenda isso. Sempre compraram as autoridades civis cooperando com
elas e depois negociando.
Gebauer parecia estar querendo desorientar Toffel e Reeder mostrando-se mais apaixonadamente analítico a respeito de judeus que realmente o era.
- Eu lhes digo o que para mim significa cooperação - explicouele. - Frank assina um decreto exigindo que todo judeu no Governo Geral use uma estrela. Esse
decreto está em vigor há apenas umas poucas semanas. Em Varsóvia há um judeu fabricando estrelas em plástico lavável a três zlotys cada uma. É como se eles não tivessem
a menor idéia de que espécie de decreto é esse. É como se se tratasse de emblema de um clube de ciclismo.
Foi então sugerido que, já que Schindler estava no comércio dos esmaltados, talvez pudesse fabricar um emblema de luxo em esmalte e distribuí-lo através do comércio
de ferragens, negócio que seria supervisionado pela sua namorada Ingrid. Alguém observou que a estrela era a insígnia nacional deles, a insígnia de um Estado que
havia sido destruído pelos romanos e que agora só existia na mente de sionistas Assim talvez os judeus se orgulhassem de usar a estrela.
O fato é - disse Gebauer - que eles não possuem organização alguma para se salvar. As organizações deles são do tipo de amainar a tempestade. Mas essa vai ser diferente.
Essa tempestade será dirigida pela SS. - De novo Gebauer falava como se, sem se entusiasmar demais, aprovasse a eficiência profissional da SS.
Ora, vamos - ponderou Plathe -, a pior coisa que poderia acontecer aos judeus é serem enviados para Madagascar, que tem condições de temperatura melhores do que
Cracóvia.
- Não creio que eles jamais vejam Madagascar - disse Gebauer Oskar pediu que se mudasse de assunto. Afinal, a festa não era sua? O fato era que ele já tinha
visto a mão de Gebauer pousada sobre
documentos forjados, permitindo a fuga para a Hungria de um comerciante judeu, no bar do Hotel Cracóvia. Talvez Gebauer estivesse co brando o serviço, embora parecesse
muito sensível moralmente para negociar documentos, vender assinaturas ou carimbos. Mas era certo que, apesar da sua atitude estudada na presença de Toffel, ele
não odiava os judeus. E tampouco odiavam os outros presentes. No Natal de 1939, Oskar simplesmente achava-os um alívio, em vista da bombástica linha do Partido.
Mais tarde eles teriam uma utilidade mais positiva.
Capítulo 6
A Aktion da noite de 4 de dezembro havia convencido Stern de que Oskar Schindler era aquela raridade, um goy justo. Existe uma lenda talmúdica dos Hasidei Ummot
Haolam, os Justos das Nações que, segundo a lenda, são - em qualquer época da história do mundo - trinta e seis. Stern não acreditava literalmente naquele número
místico mas para ele a lenda era psicologicamente verdadeira; julgava por isso que o critério certo seria tentar fazer de Schindler um santuário vivo.
O alemão precisava de capital - a Rekord tinha sido parcialmente despojada de material de fabricação exceto por uma pequena galeria de prensas de metal, depósitos
de esmalte, tornos mecânicos e fornos. Ainda que Stern pudesse exercer uma substancial influência espiritual sobre Oskar, o homem que lhe proporcionou contatos com
capital em boas condições foi Abraham Bankier, o gerente do escritório da Rekord, cuja confiança Oskar tinha conquistado.
A dupla - o alto e sensual Oskar e o atarracado Bankier - puseram-se em campo para encontrar possíveis investidores. Pelo decreto de 23 de novembro, as contas bancárias
e depósitos dos judeus ficariam sob a guarda da administração alemã, com crédito fixo, sem que o cliente tivesse direito algum a juros ou a lançar mão do seu dinheiro.
Alguns dos negociantes judeus mais abastados e experientes mantinham fundos secretos de dinheiro em espécie. Mas podiam prever que por alguns anos, sob o governo
de Hans Frank, mesmo dinheiro seria arriscado; bens móveis - diamantes, ouro, mercadorias - eram mais aconselháveis.
Em Cracóvia havia certo número de homens conhecidos de Bankier dispostos a fazer investimentos de capital contra a garantia de certa quantidade de produtos. A transação
podia ser um investimento de 50 mil zlotys por tantos quilos de panelas e caçarolas, entregues a partir de julho de 1940, em todo o decorrer do ano. Para um judeu
de Cracóvia, com Hans Frank no governo, utensílios de cozinha eram mais seguros e disponíveis do que zlotys.
As partes desses contratos - Oskar, o investidor, com Bankier como intermediário - não tinham papel algum assinado. Contratos formais de nada adiantavam e não representavam
nenhuma garantia. Não podia haver exigência alguma quanto ao seu cumprimento. Tudo dependia da confiança que Bankier depositava naquele fabricante sudeto de artigos
esmaltados.
As reuniões podiam realizar-se talvez no apartamento do investidor no Centrum de Cracóvia, a antiga cidade interna. À luz da transação podiam ser vistos os quadros
dos paisagistas poloneses que a mulher do investidor apreciava ou os romances franceses que suas cultas e frágeis filhas adoravam. Ou, então, o cavalheiro investidor
já fora expulso do seu apartamento e residia mais modestamente no Podgórze: um homem em estado de choque - espoliado da sua morada, agora um mero empregado do próprio
negócio - e tudo isso se passara em poucos meses, o ano ainda não tinha terminado.
A primeira vista, parece um enobrecimento da história dizer que Oskar jamais fora acusado de deixar de cumprir a palavra empenhada naqueles contratos informais.
No ano seguinte, ele iria ter uma briga com um varejista judeu por causa da quantidade de artigos que o homem tinha o direito de receber da fábrica na Rua Lipowa.
E o varejista até o fim da vida iria afirmar que fora lesado. Mas jamais alguém confirmou que Oskar deixara de cumprir um contrato.
Pois Oskar era por natureza um pagador que, de certa forma, dava a impressão de que podia fazer pagamentos ilimitados com recursos ilimitados. Mas o fato era que
ele e outros oportunistas alemães iam ganhar tanto dinheiro no decorrer dos quatro anos seguintes que só um homem sôfrego pela ambição do lucro teria deixado de
saldar o que o pai de Oskar teria chamado de "dívida de honra".
No ano-novo, Emilie Schindler foi pela primeira vez a Cracóvia para visitar o marido. Achou a cidade a mais encantadora que já conhecera, tão mais agradável e antiga
do que Brno, com suas nuvens de fumaça industrial.
Ficou impressionada com o novo apartamento do marido. As janelas da frente davam para um belo cinturão verde que circundava a cidade, seguindo o traçado de antigas
muralhas, que há muito haviam ruído. No final da rua erguia-se a grande fortaleza de Wawel e em meio de todas essas antigüidades ficava o moderno apartamento de
Oskar. Olhou em seu redor os estofados e cortinas da Sra. Pfefferberg. Eram a prova tangível dos novos sucessos do marido.
- Vejo que tem se saído muito bem na Polônia - observou ela.Oskar sabia que Emilie estava realmente aludindo à questão do
dote, que seu pai se recusara a pagar doze anos antes. De volta de uma viagem a Zwittau, ele havia retornado à aldeia de Alt-Molstein com a informação de que o genro
estava vivendo e tendo aventuras como um homem solteiro. O casamento da filha tornara-se exata mente o que ele temera e, em hipótese alguma, iria pagar o dote prometido.
Embora a ausência dos 400 mil reichmarks tivesse alterado um pouco as perspectivas de Oskar, o fazendeiro de Alt-Molstein não sabia o quanto a recusa do pagamento
do dote magoara sua filha, tornara-a ainda mais defensiva, e que doze anos depois, quando aquele dinheiro não contava mais para Oskar, Emilie continuava pensando
no seu dote.
- Minha cara, nunca precisei daquele maldito dinheiro - dizia lhe freqüentemente Oskar.
As relações intermitentes de Emilie com Oskar parecem ter sido as de uma mulher que sabe que não pode contar com a fidelidade do marido mas ainda assim se recusa
a tomar conhecimento de suas aventuras. Ela deve ter adotado uma atitude cautelosa em Cracóvia, com parecendo a festas e reuniões, em que amigos de Oskar certamente
sabiam da verdade, podiam citar os nomes das outras mulheres, no mês que ela realmente queria ignorar.
Um dia, um jovem polonês - Poldek Pfefferberg, que quase ha via morto o seu marido, mas ela naturalmente ignorava o incidente - bateu na porta do apartamento carregando
no ombro um rolo de tape te. Era um tapete do mercado negro, importado de Istambul via Hungria, e Pfefferberg recebera de Ingrid a incumbência de encontrar um tapete
naquelas condições. Mas Ingrid tinha-se mudado provisoriamente do apartamento, enquanto durasse a visita de Emilie.
- Frau Schindler está? - perguntou Pfefferberg, que sempre se referia a Ingrid como Frau Schindler por considerar que era mais delicado.
- Eu sou Frau Schindler - respondeu Emilie, sabendo o que significava a pergunta.
Pfefferberg deu prova de habilidade, disfarçando a sua gafe: na realidade, não havia necessidade de falar com Frau Schindler, embora Herr Schindler sempre falasse
muito em sua esposa. Precisava falar era com Herr Schindler... sobre um negócio.
Emilie respondeu que Herr Schindler não estava em casa e ofereceu a Pfefferberg um drinque, que foi recusado apressadamente. Emilie sabia também o que a recusa significava.
O rapaz estava um pouco chocado com a vida privada de Oskar, e não achava decente aceitar uma bebida da vítima do seu cliente.
A fábrica que Oskar alugou se situava do outro lado do rio, em Zablocie, na Rua Lipowa. Os escritórios, que ficavam de frente para a rua, eram de construção moderna,
e Oskar pensou na possibilidade e conveniência de instalar um apartamento no terceiro andar, embora a zona fosse industrial e não tão alegre como a Rua Straszewskiego.
Quando Oskar tomou posse da Rekord, dando-lhe o novo no me de Deutsche Emailwaren Fabrik, havia quarenta e cinco empregados responsáveis pela modesta produção de
utensílios de cozinha. Em princípios do novo ano ele firmou seus primeiros contratos com o Exército, o que não constituiu surpresa. Oskar tinha cultivado relações
com vários engenheiros influentes da Wehrmacht, que faziam parte da junta da Inspetoria de Armamentos do General Schindler. Dava-se socialmente com eles, tendo-os
convidado a jantar no Cracóvia Hotel. Existem fotos de Oskar sentado com esses personagens ao redor de mesas luxuosas, todos sorrindo afavelmente para a câmera,
todos bem alimentados, bem bebidos, e os oficiais elegantemente fardados. Alguns deles punham os carimbos certos nas ofertas apresentadas por ele e escreviam as
decisivas cartas de recomendação ao General Schindler, por pura amizade e por acreditarem que Oskar estava capacitado a cumprir os contratos. Outros eram influenciados
por presentes, o tipo de presentes que Oskar sempre oferecia a funcionários - conhaque, tapetes, jóias, móveis e cestas de comestíveis finos. Além do mais, era sabido
que o General Schindler conhecia e apreciava muito o seu homônimo, fabricante de esmaltados.
Agora, com o prestígio de seus lucrativos contratos com a Inspetoria de Armamentos, Oskar obteve permissão de expandir sua fábrica. Não faltava espaço. Adiante
do saguão e escritórios da DEF ficavam dois grandes galpões industriais. Parte do espaço no prédio à esquerda, passagem do saguão para o interior da fábrica, era
ocupado pela atual produção. O outro prédio estava totalmente vazio.
Ele comprou máquinas novas, algumas no local, outras na Ale manha. Além dos pedidos militares, havia um esfaimado mercado negro a ser abastecido. Oskar soube então
que poderia vir a ser um magnata. Já em meados do verão de 1940, estava empregando 250 poloneses e iria ter de instituir um turno da noite. A fábrica de maquinaria
agrícola de Herr Hans Schindler, em Zwittau, empregava em seu apogeu 50 homens. É gratificante superar um pai, a quem nunca se perdoou.
Em determinadas ocasiões, no decorrer daqueles anos, Itzhak Stern ia procurar Schindler, a fim de arranjar emprego para algum jovem judeu - um caso especial; um
órfão de Lodz; ou a filha de um funcionário de um dos departamentos do Judenrat (Conselho Judaico). Em poucos meses, Oskar já contava com 150 empregados judeus e
sua fá brica tinha uma discreta reputação de refúgio.
Era um ano semelhante a todos os outros anos que se sucede ram até o fim do conflito mundial, em que os judeus procuravam algum emprego considerado essencial ao
esforço de guerra. Em abril, o Governador Frank tinha decretado a evacuação dos judeus de sua capital, Cracóvia. Era uma decisão curiosa, já que as autoridades do
Reich continuavam remetendo de volta ao Governo-Geral judeus e poloneses numa média de 10 mil por dia. Entretanto, segundo Frank informou ao seu gabinete, as condições
em Cracóvia eram escandalosas. Sabia de chefes-de-divisão alemães que eram obrigados a morar em prédios de apartamentos, onde ainda havia inquilinos judeus! Até
oficiais mais graduados estavam também sujeitos à mesma escandalosa indignidade. E Frank prometeu que nos próximos seis me ses tornaria Cracóvia judenfrei (livre
de judeus). Seria permitido um remanescente de 5 mil ou 6 mil trabalhadores judeus especializados. Todo o resto seria removido para outras cidades do Governo-Geral,
Varsóvia ou Radom, Lublin ou Czestochowa. Os judeus poderiam emigrar voluntariamente para a cidade de sua escolha, desde que o fizessem até 15 de agosto. Os que
ainda permanecessem na cidade após aquela data seriam transportados de caminhão com um míni mo de bagagem para qualquer local que fosse da conveniência da administração.
A partir de 1? de novembro, declarou Hans Frank, seria possível aos alemães de Cracóvia respirarem "puro ar alemão", caminhar pela cidade sem ver as ruas e alamedas
"fervilhando de judeus".
Frank não ia conseguir nesse ano reduzir a população judaica a um nível tão baixo; mas logo que foram anunciados os seus pla nos, houve uma corrida dos judeus de
Cracóvia, especialmente os jovens, para adquirir ofícios especializados. Homens como Itzhak Stern, agentes oficiais e extra-oficiais do Judenrat, já tinham organizado
uma lista de simpatizantes alemães a quem eles podiam recorrer. Schindler figurava nessa lista; assim como Julius Madritsch, um vienense que conseguira recentemente
dar baixa da Wehrmacht e as sumir o posto de Treuhànder numa fábrica de uniformes militares.
Madritsch podia ver os benefícios resultantes de contratos cora a Inspetoria de Armamentos e agora tencionava abrir uma fábrica pró pria de uniformes no subúrbio
de Podgórze. Acabaria por juntar uma fortuna ainda maior do que a de Schindler, mas no annus mirabilis de 1940 ainda era um assalariado. Sabia-se que ele era uma
pessoa hu mana - só isso.
Em 1? de novembro de 1940, Frank já tinha conseguido retirar de Cracóvia 23 mil voluntários judeus. Alguns deles foram para os novos guetos de Varsóvia e Lodz. As
lacunas às mesas, o choro nas estações de estrada de ferro podem ser imaginados; mas as pessoas aceitavam tudo docilmente, pensando: "Vamos obedecer, e isso será
um impacto maior do que eles desejam." Oskar sabia o que estava acontecendo mas, como os próprios judeus, esperava que se tratasse de um excesso temporário.
Aquele ano seria muito provavelmente o mais atarefado da vida de Oskar - um ano durante o qual ele passou transformando um negócio falido numa companhia que as agências
governamentais podiam levar a sério. Por ocasião das primeiras nevadas, Schindler notou com irritação que num só dia 60 ou mais de seus empregados judeus deixa ram
de comparecer ao trabalho. Haviam sido detidos a caminho do trabalho por esquadrões da SS e forçados a desobstruir a neve das ruas. Herr Schindler visitou o seu
amigo Toffel no quartel-general da SS na Rua Pomorska para apresentar uma queixa. Disse a Toffel que, num só dia, 125 empregados seus não tinham podido comparecer
ao trabalho.
- Você tem de compreender - disse-lhe confidencialmente Toffel - que alguns desses sujeitos da SS estão se danando para a produção. Para eles é uma questão
de prioridade nacional que judeus removam a neve das ruas. Eu próprio não compreendo isso... tem umsignificado ritualista para eles que os judeus removam a neve.
E não é só com você, está acontecendo isso com todo mundo.
Oskar perguntou se os outros estavam também se queixando. Sim, respondeu Toffel. Todavia, acrescentou ele, um economista chefão do Orçamento da SS e do Departamento
de Construção tinha vindo al moçar em Pomorska e declarado que era uma traição considerar que a mão-de-obra especializada judaica tinha alguma razão de ser na eco
nomia do Reich.
- Acho que ainda vai ter de agüentar muita pá de neve, Oskar.No momento, Oskar assumiu a atitude de um patriota indignado, ou talvez um oportunista indignado.
- Se querem ganhar a guerra - respondeu ele - tem de se livrar de gente desse tipo.
- Livrar-se da SS? - perguntou Toffel. - Pelo amor de Deus, eles são os miseráveis que estão mandando.
Como resultado de tais conversas, Oskar tornou-se o advogado do princípio de que o dono de uma fábrica não podia ser impedido de ter acesso aos seus próprios empregados
e que esses não deviam ser detidos ou tiranizados a caminho da fábrica, tanto na ida como na volta. Aos olhos de Oskar, tratava-se de um axioma tanto moral como
industrial. E no final, iria aplicar ao máximo essa teoria na Deutsche Email Fabrick.
Capítulo 7
A
lgumas pessoas das cidades grandes - Varsóvia e Lodz, esta com os seus guetos, Cracóvia com o compromisso de Frank de tornar a cidade judenfrei - recorreram ao
campo, onde pode riam passar despercebidos entre os camponeses. Os irmãos Rosner, músicos cracovianos, que mais tarde teriam muitos contatos com Oskar, instalaram-se
na velha aldeia de Tyniec. Esta se situava numa bonita curva do Rio Vístula, de onde se podia avistar um velho mosteiro beneditino no alto de um rochedo calcário.
Os Rosner consideraram o local suficientemente obscuro. Ali residiam uns poucos lojistas judeus e artesãos ortodoxos, que pouco tinham em comum com os dois músicos.
Mas os camponeses, empenhados no tedioso trabalho da colheita, mostraram-se contentes, para alívio dos Rosner, de ter músicos em sua aldeia.
Os dois tinham chegado a Tyniec, não de Cracóvia, nem do grande posto militar junto aos jardins botânicos da Rua Mogilska, onde jovens SS empurravam as pessoas para
dentro de caminhões, berrando deslavadas e mentirosas promessas de lhes remeter depois as suas bagagens. Tinham vindo efetivamente de Varsóvia, onde haviam sido
contratados para tocar na Basilisk, tinham partido um dia antes de os alemães selarem o gueto de Varsóvia - Henry, Leopold e Manci, mulher de Henry, e Olek, o filho
de cinco anos do casal.
A idéia de uma aldeia como Tyniec, no sul da Polônia, não longe de sua nativa Cracóvia, agradava aos irmãos. Oferecia a opção, caso melhorassem as condições, de
tomar um ônibus para Cracóvia e lá encontrar trabalho. Manci Rosner tinha conseguido trazer sua máquina de costura, e os Rosner abriram em Tyniek uma pequena confecção
de roupas. À noite, tocavam nas tavernas e assim se tornaram a sensação daquele vilarejo. Aldeias recebem bem e patrocinam talentos oca sionais, mesmo que sejam
judeus. E o violino era, de todos os instru mentos, o mais venerado na Polônia.
Certa noite, um Volksdeutscher (polonês que fala alemão) vindo de Poznan ouviu os irmãos tocando numa estalagem. O Volksdeuts cher era um funcionário municipal de
Cracóvia, um daqueles poloneses-alemães, em cujo nome Hitler se achara no direito de tomar o país. 0 Volksdeutscher disse a Henry que o prefeito de Cracóvia, o Obersturmbannführer
Pavlu, e seu adjunto, o renomado esquiador Sepp Rõh-re, estariam visitando o campo por ocasião da colheita, e ele gostaria de providenciar para que ouvissem uma
dupla tão talentosa como os Rosner.
Uma tarde, quando os feixes de feno jaziam por toda parte nos campos, tão silenciosos e abandonados como num domingo, um comboio de limusines atravessou a aldeia
e subiu uma encosta até a pro priedade de um aristocrata polonês ausente. No terraço, esperavam os bem-trajados irmãos Rosner; quando todas as damas e cavalheiros
tinham-se sentado num salão que, em outros tempos, poderia ter sido usado para bailes, eles foram convidados a tocar. Henry e Leopold estavam ao mesmo tempo exultantes
e temerosos com o capricho com que os convidados do Obersturmbannführer Pavlu tinham-se apara mentado para o concerto. As mulheres usavam luvas e vestidos brancos,
os militares uniformes de gala, os burocratas colarinhos engoma dos. Quando as pessoas se preparam assim, fica mais fácil desapontá-las. Tratando-se de um judeu,
até mesmo causar uma decepção cultural ao regime podia constituir um crime grave.
Mas a audiência adorou o concerto. Era um público caracteristicamente gemütlich; apreciava Strauss, as composições de Offenbach e Lehar, as de André Messager e Leo
Fall. O clima era de sentimentalismo.
Enquanto Henry e Leopold tocavam, as damas e cavalheiros sor viam champanha em taças, que haviam sido trazidas em cestas.
Uma vez terminado o concerto oficial, os irmãos foram levados encosta abaixo para onde se achavam reunidos camponeses e soldados da escolta. Se iria haver alguma
rude demonstração racial, seria ali. Mas, de novo, quando os irmãos subiram numa carroça e olharam a turba nos olhos, Henry percebeu que estavam a salvo. O orgulho
dos camponeses, com raízes num sentimento nacionalista - já que nessa noite os Rosner representavam um crédito à cultura polonesa - constituía uma proteção. Era
como nos velhos tempos, e Henry não pôde deixar de sorrir para Olek e Manei, tocando para ela, ignorando o resto das pessoas. Por alguns breves momentos, parecia
realmente que o mundo havia sido pacificado através da música.
Quando eles terminaram de tocar, um SS de meia-idade - talvez um Roítenführer (oficial subalterno), pois Henry não era ainda muito familiarizado com as gradações
de postos da SS - aproximou-se deles, enquanto recebiam congratulações, e cumprimentou-os com um esboço de sorriso.
- Espero que vocês tenham uma boa festa de colheita - disseele e depois se retirou.
Os irmãos se entreolharam. Assim que o oficial SS se afastou, eles cederam à tentação de discutir o significado daquelas palavras. Leopold disse, convencido:
- É uma ameaça.
Aquilo vinha provar o que eles tinham temido em seu âmago, quando o Voíksdeutsche lhes dirigira a palavra - que nessa época não convinha sobressair, ter qualquer
forma de destaque.
Assim era a vida no campo em 1940. O cerceamento de uma cor rida, o tédio rústico, a luta pelo trabalho, o terror ocasional, a atração por aquele centro brilhante
chamado Cracóvia. Para lá, os Rosner sabiam que eventualmente iriam voltar.
No outono Emilie regressou a sua casa; quando Stern retornou ao apartamento de Schindler, foi Ingrid quem lhe ofereceu um café. Oskar não fazia segredo de suas fraquezas
e jamais poderia pensar que o ascético Itzhak Stern precisasse de alguma desculpa pela presença de Ingrid. Portanto, quando terminou o café, Oskar foi até o aparador
e apanhou uma garrafa nova de conhaque; colocou-a sobre a mesa, entre sua cadeira e a de Stern, como se este realmente fosse compartilhar da bebida.
Stern tinha vindo essa noite para contar a Oskar que uma família - que chamaremos os Cs.* - o velho David e o jovem Leon C. estavam espalhando histórias sobre ele
no interior das casas e até nas ruas de Kazimierz, tachando-o de gângster alemão e de escroque. Ao trans mitir essas acusações a Oskar, Stern empregou termos menos
fortes.
Oskar sabia que Stern não estava aguardando uma resposta, que estava apenas transmitindo uma informação. Mas mesmo assim, naturalmente, achou que devia responder.
- Eu poderia espalhar histórias sobre eles - disse Oskar. - Estão me roubando de todas as maneiras. Se quiser, pode perguntar aIngrid.
•O motivo de se empregar aqui a inicial em vez de um sobrenome de ficção e porque em Cracóvia havia grande número de sobrenomes judeus-poloneses, e empregar um so
brenome qualquer, em vez de uma simples inicial, poderia ofender a memória de aigu- ma família desaparecida ou de algum amigo ainda vivo de Oskar.
Ingrid era a supervisora dos Cs., uma Treuhänder benigna, de apenas vinte e poucos anos, comercialmente inexperiente. O que se dizia era que o próprio Schindler
tinha conseguido a nomeação da moça a fim de garantir um mercado comprador para os seus artigos de
cozinha. Contudo, os Cs. tinham bastante autonomia em sua companhia. Se não gostavam da idéia de as autoridades da ocupação manterem a custódia dos seus negócios,
ninguém podia censurá-los por isso.
Stern fez um gesto de mão como para afastar a sugestão de Oskar. Quem era ele para interrogar Ingrid? E, de qualquer forma, não iria obter grandes informações da
moça.
- Eles tapeiam Ingrid - explicou Oskar. - Apareceram na Rua Lipowa para receber suas encomendas, alteraram as faturas e levaram mais do que haviam pago. "Ela disse
que está bem", informaram os meus empregados. "Ele arranjou tudo com Ingrid."
O filho, com efeito, andava dizendo a torto e a direito que Schin dler tinha mandado os SS lhe darem uma surra. Mas sua história variava - a surra supostamente ocorrera
na fábrica de Schindler, no depósito de onde o jovem C. emergira com um olho preto e dentes que brados. Depois já a surra teria acontecido no Limanowskiego, diante
de testemunhas. Um homem chamado F., empregado de Oskar e ami go dos Cs., tinha dito que ouvira Oskar andando de um lado para ou tro no seu escritório na Rua Lipowa
e ameaçando matar o velho David C. Ainda falavam que Oskar tinha ido de carro a Stradom e feito uma limpa na caixa registradora de C; tinha atulhado os bolsos com
dinheiro, tinha dito que havia uma Nova Ordem na Europa, e isso de pois de ter espancado o velho David em seu escritório.
Seria possível que Oskar tivesse agredido o velho David C. e o deixado de cama com tantos ferimentos? Seria possível que ele tivesse pedido a amigos seus da polícia
que atacassem Leon? Sob certo aspecto, Oskar e os Cs. eram gângsteres, vendendo ilegalmente toneladas de utensílios de cozinha, sem avisar a relação das vendas ao
Transferstelle, sem o uso dos necessários cupons de mercadoria chamados Bezugschein. No mercado negro o diálogo era rude e os humores violentos. Oskar admitia que
entrara furioso na loja dos Cs., chamara pai e filho de ladrões e indenizara a si mesmo na caixa registradora pelos utensílios de cozinha, que os Cs. tinham levado
sem autorização. Oskar admitia que esmurrara o jovem Leon, nada mais.
E os Cs., que Stern conhecia desde a infância, tinham uma reputação nada invejável. Não exatamente de criminosos mas de espertalhões e, caracteristicamente, como
no incidente com Oskar, de fendiam-se pondo a boca no mundo quando apanhados em flagrante.
havia ocasiões em que as únicas pessoas que restavam para fazer negócios eram os escroques.
Schindler riu com o comentário - uma gargalhada franca, quase rústica.
- Muito obrigado, meu amigo - disse ele a Stern.
Capítulo 8
O Natal daquele ano não foi tão ruim. Mas havia uma tristeza no ar, a neve era como uma interrogação na paisagem defronte do apartamento de Schindler; havia algo
de imobilizado, vigilante e eterno nos telhados do Wawel lá no alto, assim como nas antigas fachadas da Rua Kanonicza. Ninguém mais acreditava numa solução rápida
- nem os soldados ou os poloneses, nem os judeus de cada lado do rio.
Nesse Natal, para a sua secretária Klonowska, Schindler comprou um poodle, um ridículo cãozinho parisiense, adquirido por Pfefferberg. Para Ingrid ele deu uma jóia
e mandou outra para a suave Emilie, em Zwittau. Poodles eram raridade, informou Pfefferberg. Mas jóias eram fáceis de se adquirir. Naquele tempo havia uma grande
oferta nesse mercado.
Oskar parece ter mantido suas simultâneas ligações com as três mulheres e eventuais casos passageiros com outras, tudo isso sem sofrer as normais penalidades infligidas
a um conquistador. Pessoas que freqüentavam o seu apartamento não se lembram de jamais ter visto Ingrid amuada. Ela parece ter sido uma jovem generosa e afável.
Emilie, com ainda mais motivos para queixas, tinha muita dignidade para fazer as cenas que Oskar merecia de sobra. Se Klonowska nutria quaisquer ressentimentos,
isso não parecia afetar o seu comportamento no escritório da DEF, nem sua lealdade para com Herr Direktor. Seria de esperar que numa vida como a de Oskar, confrontos
públicos entre mulheres enraivecidas fossem comuns. Mas ninguém entre os amigos e empregados de Oskar - testemunhas dispostas a admitir e até, em certas circunstâncias,
a rir dos seus pecados da carne - se lembra de confrontos peno sos, tão comuns na vida de homens bem menos afoitos do que ele.
Sugerir, como algumas pessoas chegaram a fazer, que qualquer mulher se satisfaria com a posse parcial de Oskar é menosprezar as mulheres de sua vida. O problema
era, talvez, que se alguém pretendesse discutir fidelidade com Oskar, em seus olhos surgia uma expressão de infantil e autêntica perplexidade, como se lhe estivesse
sendo proposto algum conceito tal como a Relatividade, que só poderia ser compreendido se o ouvinte dispusesse de umas cinco horas para se concentrar. Ora, Oskar
nunca dispunha de cinco horas e jamais compreenderia.
Exceto no caso de sua mãe. Naquela manhã de Natal, em homenagem a ela, Oskar compareceu à missa na Igreja de Santa Maria. Ha via um espaço acima do altar principal,
onde o tríptico de madeira de Wit Stwosz até poucas semanas antes havia desviado a atenção dos fiéis com o seu aglomerado de divindades se acotovelando. O vazio,
a marca desbotada na pedra, no local onde estivera pendurado o tríptico, provocara em Schindler uma reação indignada. Alguém tinha rouba do o tríptico e remetido
para Nuremberg. Como se tornara inverossímil o mundo!
Ainda assim naquele inverno os negócios iam de vento em popa. No ano seguinte, os amigos de Oskar da Inspetoria de Armamentos começaram a discutir com ele a possibilidade
de instalar um departamento de munições para fabricar granadas antitanque. Oskar estava mais interessado em panelas e caçarolas do que em granadas. Panelas e caçarolas
eram de fácil fabricação. Cortava-se e prensava-se o metal, mergulhando-o depois em tanques e aquecendo-o na temperatura certa. Não era preciso calibrar instrumentos;
a fabricação não necessitava em absoluto da precisão necessária para armas. Não podia haver nenhum negócio por debaixo do pano com granadas e Oskar gostava de negócios
por debaixo do pano - gostava das jogadas, do descrédito, do lucro rápido, da exclusão da burocracia.
Mas, por ser de boa política, ele estabeleceu uma seção de munições, instalando umas poucas e imensas máquinas Hilo, para a precisão na prensagem e cinzelamento
dos invólucros de granadas. A seção de munições era ainda evolucionária; levaria alguns meses de planeja mento e testes de produção antes de começarem a fabricar
as grana das. As grandes Hilos, todavia, deram à fábrica de Schindler uma espécie de barreira contra o futuro incerto, pelo menos uma aparência de indústria essencial.
Antes mesmo de terem sido adequadamente calibradas as Hilos, Oskar começou a ouvir alusões, através de seus contatos com a SS da Rua Pomorska, de que havia um projeto
de criar um gueto para judeus. Transmitiu o boato a Stern, sem querer causar alarme. Ah, sim, disse Stern, a coisa era sabida. Algumas pessoas até desejavam que
se crias se um gueto. Estaremos lá dentro, o inimigo estará do lado de fora. Poderemos cuidar dos nossos próprios negócios. Ninguém irá nos invejar, ninguém nos
apedrejará nas ruas. Os muros do gueto serão o limite, a forma fixa da catástrofe.
O decreto, "Gen. Gub. 44/91", emitido em 3 de março, foi publicado nos diários de Cracóvia e anunciado na Kazimierz por alto-falantes em caminhões. Percorrendo o
seu departamento de munições, Oskar ouviu um de seus técnicos comentar a notícia:
- Eles não estarão melhor lá? - perguntou o técnico. - Como sabe, os poloneses odeiam os judeus.
O decreto usava a mesma desculpa. Como um meio de reduzir conflitos raciais no Governo-Geral, seria instalado um bairro judaico fechado. A inclusão no gueto seria
compulsória para todos os judeus, mas aqueles que tivessem carteira de trabalho poderiam sair do gueto para trabalhar, retornando à noite. O gueto ficaria localizado
no subúrbio de Podgórze, do outro lado do rio. O prazo final para dar entrada no gueto era no dia 20 de março. Uma vez lá dentro, cada um seria lotado em habitações
determinadas pelo Judenrat. Os poloneses que residiam atualmente na área e que, portanto, teriam de se mudar, deviam procurar a sua própria agência de habitação
para receber um apartamento em outras partes da cidade.
Um mapa do novo gueto vinha apenso ao edital. O lado norte se ria limitado pelo rio, a extremidade leste pela linha da estrada de ferro para Lwów, o lado sul pelos
montes adiante de Rekawka, o oeste pela Praça Podgórze. Uma área bem restrita.
Mas havia esperança de que a repressão tomaria agora uma for ma definida e daria às pessoas uma base com que planejar seus futuros restritos. Para um homem como
Juda Dresner, negociante por ataca do de tecidos da Rua Stradom, que viria a conhecer Oskar, o ano e meio anterior trouxera uma incrível sucessão de decretos, intromissões
e confiscos. Perdera o seu negócio para a Agência de Crédito, seu car ro, seu apartamento. Sua conta bancária fora congelada. As escolas de seus filhos haviam sido
fechadas, ou eles tinham sido expulsos de outras. As jóias da família, assim como o rádio, haviam sido confisca das. Ele e sua família estavam proibidos de penetrar
no centro de Cracóvia, assim como de viajar de trem. Podiam usar apenas bondes segregados. Sua mulher, filha e filhos eram intermitentemente arrebanhados para retirar
a neve das ruas e outras tarefas compulsórias. Nunca sabia quando seria forçado a entrar num caminhão, se a ausência seria curta ou longa, ou que espécie de loucos
armados estariam supervisionando o trabalho que o obrigariam a executar. Sob tal tipo de regime a vida não oferecia a menor segurança, era como escorregar para dentro
de um poço sem fundo. Mas talvez o gueto estivesse no fundo, o ponto do qual seria possível organizar algum plano.
Além do mais, os judeus de Cracóvia estavam acostumados - de uma forma que se poderia descrever melhor como congênita - à idéia de um gueto. E agora que ficara
decidido, a própria palavra soava co mo algo ancestralmente calmante. Seus avós não tinham tido
permissão de emergir do gueto de Kazimierz até 1867, quando Franz Josef assinara um decreto permitindo-lhes viver onde quisessem na cidade. Os cínicos diziam que
os austríacos tinham tido necessidade de abrir Kazimierz, entalada no braço do rio tão perto de Cracóvia, a fim de que os trabalhadores poloneses pudessem encontrar
acomodações próximas ao seu local de trabalho. Não obstante, Franz Josef era ainda reverenciado pelos mais velhos da Kazimierz com tanta ênfase quanto o fora no
lar de Oskar Schindler, em sua infância.
Embora a liberdade tivesse chegado tão tarde, havia ao mesmo tempo, entre os judeus mais velhos de Cracóvia, uma nostalgia pelo antigo gueto de Kazimierz. Um gueto
implicava esqualidez, dificuldade de moradia, compartilhar banheiros, disputas por espaço para cor das de secar roupa. Contudo, também fazia com que os judeus se
dedicassem à sua especial característica: riqueza de erudição partilha da, canções e conversações em conjunto, em cafés com fartura de idéias senão de leite. Rumores
tenebrosos emanavam dos guetos de Lodz e Varsóvia, mas o de Podgórze, conforme fora planejado, era mais favorecido em questão de espaço, pois, se fosse superposto
num mapa do Centrum, ver-se-ia que ocupava uma área de cerca de metade do tamanho da Cidade Velha - espaço de modo algum suficiente mas que não chegava a ser um
estrangulamento.
Havia também no edital uma cláusula tranqüilizadora pela qual o governo se comprometia a proteger os judeus dos seus compatriotas poloneses. Desde princípios da
década de 30, uma luta racial, preme ditadamente organizada, prevalecera na Polônia. Quando começou a depressão e os preços de produtos agrícolas caíram, o governo
polonês tinha sancionado vários grupos políticos anti-semitas, do tipo que via os judeus como a causa de todos os seus problemas econômicos. Sanacja, o Partido de
Saneamento Moral do Marechal Pilsudski, depois da morte do velho marechal, tinha-se aliado ao Campo de Unidade Nacional, partido de direita anti-semita. O Primeiro-Ministro
Sklad kowski, na tribuna do Parlamento em Varsóvia, declarara: "Guernl econômica contra os judeus? Aprovado!" Em vez de dar uma reforma agrária aos camponeses, Sanacja
induzia-os a encarar as bancai de judeus no mercado como símbolo e total explicação da penúria
rural polonesa. Realizaram-se pogroms contra a população judaica em algumas cidades, a começar por Grodno em 1935. Os legisladores poloneses também participaram
da luta e indústrias judaicas faliram com as novas leis de crédito bancário. Grêmios de artesanato recusavam judeus e as universidades adotaram uma quota, ou o que
eles próprios - muito dados à linguagem clássica - denominavam numerus clau sus aut nullus (um número reduzido ou nulo), para o ingresso de estudantes judeus. Faculdades
cederam à insistência da Unidade Nacional para que os judeus se sentassem em bancos separados no quadrilátero e ficassem segregados no lado esquerdo nas salas de
conferência. Era muito comum, nas universidades polonesas, bonitas e brilhantes estudantes, filhas de judeus, ao saírem das salas de aula, terem o rosto re talhado
por um rápido golpe de navalha desfechado por algum magro e sério jovem do Campo de Unidade Nacional.
Nos primeiros dias da ocupação alemã, os conquistadores se espantaram com a presteza com que os poloneses lhes indicavam os lares de judeus e agarravam um judeu
pelos cachos religiosos, enquanto um alemão cortava com uma tesoura as barbas ortodoxas ou espetava-lhe o rosto com a ponta de uma baioneta. Portanto, em março de
1941, o compromisso de proteger os moradores do gueto dos excessos nacionalistas poloneses foi recebido quase como verossímil.
Embora não houvesse grandes manifestações espontâneas de alegria entre os judeus de Cracóvia, ao arrumarem as bagagens para se mudar para Podgórze, havia uma estranha
sensação de volta ao lar, assim como a impressão de ter alcançado um limite além do qual, com alguma sorte, não poderiam expulsá-los e tiranizá-los ainda mais. A
tal ponto que mesmo judeus de aldeias nas cercanias de Cracóvia, de Wieliczka, Niepolomice, Lipnica, Murowana e Tyniec se apressaram em retornar à cidade, receosos
de não poderem mais penetrar no gueto depois de 20 de março e se verem isolados num ambiente hostil. Pois o gueto era, pela sua própria natureza, quase por definição,
habitável, ainda que sujeito a ataques intermitentes. O gueto representava estase em vez de fluxo.
O gueto traria um pequeno inconveniente à vida de Oskar Schindler. Era costume seu sair do luxuoso apartamento na Straszewskiego, passar pelo rochedo calcário do
Castelo de Wawel, enfiado na boca da cidade como uma rolha numa garrafa, e descer atravessando Kazi-mierz, depois a ponte Kosciuszko e dobrar à esquerda, rumo à
sua
fábrica de Zablocie. Agora aquele caminho estaria bloqueado pelos muros do gueto. Era um problema de menor importância mas tornava mais razoável a idéia de manter
um apartamento no andar acima do seu escritório no prédio da Rua Lipowa. Era um bom prédio, construído no estilo de Walter Gropius. Muitas vidraças e claridade,
elegantes tijolos cúbicos no pátio da entrada.
Sempre que fazia o percurso naqueles dias, antes do prazo de 20 de março, entre a cidade e Zablocie, Oskar via os judeus da Kazimierz arrumando suas bagagens, e
na Rua Stradom, famílias empurrando carrinhos de mão com cadeiras, colchões e relógios, em direção do gueto. Os parentes daquela gente tinham vivido na Kazimierz
desde o tempo em que era uma ilha separada do Centrum por um riacho chamado Stara Wisla. Na verdade, desde o tempo em que Kazimier o Grande os havia convidado a
vir para Cracóvia quando, em outras cidades, eles estavam sendo responsabilizados pela Peste Negra. Oskar presumia que os seus antepassados tinham chegado a Cracóvia
daquela mesma maneira, empurrando carrinhos com os seus pertences, havia mais de 500 anos. Agora estavam partindo, ao que parecia com os mesmos carrinhos de mão.
O convite de Kazimier tinha sido cancelado.
Durante aquelas longas jornadas matutinas pela cidade, Oskar notou que os planos da cidade eram de os bondes continuarem descendo a Rua Lwówska, passando pelo centro
do gueto. Muros fronteiriços da linha do bonde estavam sendo erguidos por trabalhadores poloneses; onde havia espaços abertos, já se levantavam muros de cimento.
Ao penetrarem no gueto os bondes fechariam hermeticamente suas por tas e não parariam até emergir novamente no Umwelí, o mundo ariano, na esquina de Lwówska com
a Rua Kingi. Oskar sabia que, apesar disso, haveria clandestinos que apanhariam o bonde. Portas cerradas, sem parada, metralhadoras nos muros - não importava. Sob
esse aspecto, os seres humanos eram incorrigíveis. Gente tentando descer do bonde, a empregada fiel de alguém, com um embrulho de salsichas. E gente tentaria subir
no bonde, algum jovem atleta ágil como
Leopold Pfefferberg, com diamantes no bolso ou zlotys de ocupação ou uma mensagem em código para os guerrilheiros. As pessoas se agarravam à menor chance, mesmo
que fosse viajando do lado de fora, com portas cerradas, passando veloz entre muros silenciosos.
A partir de 20 de março, os trabalhadores judeus de Oskar não receberiam mais salário algum e, para viver, iriam depender inteiramente de suas rações. Em contrapartida,
ele pagaria determinada quantia à SS de Cracóvia. Tanto Oskar como Madritsch se sentiram inquietos com a medida, pois sabiam que um dia a guerra ia terminar e os
donos de escravos, tal como acontecera na América, seriam vilipendiados e despojados. A quantia que ele teria de pagar aos chefes de polícia era a estabelecida pelo
Escritório Administrativo e Econômico da SS - 7.50 reichmarks pelo trabalho diário de um trabalhador especializado e cinco para as mulheres e os não-especializados.
Esses eram salários abaixo dos que vigoravam no mercado de trabalho aberto. Mas tanto para Oskar como para Madritsch, o desconforto moral superava a vantagem econômica.
Naquele ano, a folha de pagamento era a menor das preocupações de Oskar. Além do mais, ele nunca fora um capitalista rígido. Em sua juventude, numerosas vezes fora
acusado pelo pai de esbanjar dinheiro sem necessidade. Enquanto exercera a mera função de gerente de vendas, possuía dois carros, na esperança de que isso chegasse
aos ouvidos de Hans e o chocasse. Agora, em Cracóvia, ele podia se dar ao luxo de vários carros - um Minerva belga, um Maybach, um cabriolé Adler, um BMW.
Ser pródigo e ainda assim mais rico do que o seu cauteloso pai - este era um dos triunfos que Schindler ambicionava na vida. Em tempos de abundância, o custo da
mão-de-obra não merecia cogitações. 0 mesmo se dava com Julius Madritsch. A fábrica de uniformes de Madritsch ficava no lado oeste do gueto, a um ou dois quilômetros
da Emalia de Oskar. Seus negócios iam tão bem que ele estava em negociações para abrir uma fábrica semelhante em Tarnow. Era também muito querido pela Inspetoría
de Armamentos e o seu crédito tão bom que lhe fora concedido um empréstimo de um milhão de zlotys pelo Bank Emisyjny (Banco de Crédito).
Ainda que isso lhes trouxesse certo desconforto ético, não é pro vável que qualquer dos dois empresários, Oskar ou Julius, se sentisse obrigado moralmente a não
empregar judeus. Isso seria uma atitude, e, como ambos fossem pragmáticos, atitudes não eram do estilo de
nenhum dos dois. Em todo caso, ltzhak Stern, assim como Roman Gin ter, um comerciante e representante do Departamento de Assistência doJudenral, foram ambos procurar
Oskar e Julius e lhes imploraram que empregassem mais judeus, tantos quanto possível. O objetivo era dar ao gueto uma permanência econômica. Era quase axiomático.
Stern e Ginter consideravam que, naquele estágio, um judeu que tivesse algum valor econômico num império prematuro, sequioso de trabalha dores especializados, estava
a salvo de coisas piores. E Oskar e Madritsch concordaram.
Assim, durante duas semanas, os judeus empurraram seus carrinhos de mão, cruzando a Kazimierz e atravessando a ponte para chegar a Podgórze. Empregados poloneses
de famílias de classe média os acompanhavam para ajudar no transporte. No fundo dos carrinhos de mão, debaixo de colchões, chaleiras e frigideiras estavam escondidos
casacos de peles e as jóias que lhes haviam restado. Turbas de poloneses nas Ruas Stradom e Starovislna gritavam insultos e atiravam lama."Os judeus vão embora,
os judeus vão embora! Adeus, judeus!"
Adiante da ponte um elaborado portão de madeira se abria para os novos habitantes do gueto. Branco, com baluartes entalhados parecendo arabescos, tinha dois grandes
arcos para a ida e vinda dos bondes de Cracóvia. Ao lado havia uma guarita branca para a sentinela. Acima dos arcos, uma tabuleta em hebraico, visando a um efeito
tranqüilizador: CIDADE JUDAICA. Cercas altas de arame farpado se es tendiam ao longo da frente do gueto voltada para o rio; espaços abertos eram selados com placas
de cimento de uns três metros de altura, arredondadas o topo, parecendo fileiras de lápides anônimas.
No portão do gueto o judeu trêmulo era recebido por um representante do Departamento de Habitação do Judenrat. Se tinha mulher e uma família grande, podiam lhe ser
concedidos dois cômodos e o uso da cozinha. Mesmo assim, após a boa vida das décadas de 20 e 30, era doloroso ter de partilhar sua vida privada com famílias de rituais
diferentes, hábitos desagradáveis e odor de almíscar. Mães protestavam, pais diziam que as coisas poderiam ser piores e abanavam a ca beça. Num mesmo recinto, os
ortodoxos julgavam os liberais uma abominação.
Em 20 de março, o movimento estava encerrado. Todos os do lado de fora do gueto estavam sujeitos a confisco e outros prejuízos. Dentro do gueto, por enquanto, havia
espaço para se viver.
Edith Liebgold, de vinte e três anos, foi instalada em um quarto no primeiro andar, que passaria a partilhar com sua mãe e seu bebe. A queda de Cracóvia, dezoito
meses antes, provocara em seu marido um acesso de desespero, e ele partira de casa, como se quisesse
procurar alguma saída para a sua situação. Tinha idéias sobre florestas, queria encontrar alguma clareira, onde estivesse a salvo. E nunca mais voltara.
De sua janela, Edith Liebgold podia ver o Vístula através da barricada de arame farpado mas, em seu caminho para outras partes do gueto, especialmente para o hospital
na Rua Wegierska, cruzava Plac Zgody, a Praça da Paz, a única praça do gueto. Ali, no segundo dia de sua vida no gueto, por uma questão de vinte segundos ela deixou
de ser posta dentro dum caminhão da SS para ir trabalhar com uma pá, removendo carvão ou neve da cidade. Não era só o fato de que aquelas turmas de trabalho, segundo
rumores, retornavam ao gueto com menos gente do que havia partido. Mais do que essa espécie de risco, Edith temia ser forçada a entrar em um caminhão, quando meio
minuto antes estava se dirigindo para a farmácia de Pankiewicz e dentro de vinte minutos teria de amamentar o filho. Decidiu, então, ir com amigos ao Departamento
de Empregos. Se pudesse conseguir trabalho noturno, sua mãe cuidaria à noite do bebê.
O departamento naqueles primeiros dias estava muito movimentado. O Judenrat tinha agora a sua própria força policial, a Ordnungs-dienst (ou OD), ampliada e regulamentada
para manter a ordem no gueto, e um menino de boné e faixa no braço organizava as filas diante do departamento.
O grupo de Edith Liebgold tinha acabado de passar pela porta, fazendo muito barulho para matar o tempo, quando um senhor baixo, de meia-idade, vestido com um terno
e gravata marrons, aproximou-se dela. Provavelmente o que o atraíra fora o barulho e a animação do grupo. A princípio os outros pensaram que o senhor baixo queria
conquistar Edith.
- Escute - disse ele - em vez de estar aí esperando. . . há uma fábrica de esmaltados lá em Zablocie.
E deixou que o endereço produzisse o seu efeito. Zablocie ficava fora do gueto. Lá seria possível barganhar com trabalhadores poloneses. A fábrica estava precisando
de dez mulheres saudáveis para o turno da noite.
As moças torceram o nariz, como se pudessem se dar ao luxo de escolher emprego. Não era trabalho pesado, garantiu ele. Elas pode riam aprender o ofício trabalhando.
Quem era ele? Chamava-se Abraham Bankier e era o gerente. Evidentemente, o dono da fábrica era alemão. Que espécie de alemão?, perguntaram elas. Bankier sorriu
co mo se, de repente, estivesse querendo infundir-lhes esperança. O dono não era um mau sujeito, declarou ele.
Nessa noite, Edith Liebgold reuniu-se ao grupo que formava o turno da noite da fábrica de esmaltados e saiu do gueto em direção a Zablocie sob a guarda de um judeu
OD. No caminho ela fez perguntas sobre a Deutsche Email Fabrik. Servem uma sopa bem grossa, disseram-lhe. Espancamentos?, perguntou. Não é esse tipo de lugar, respon
deram-lhe. Não é como a fábrica de navalhas de Beckmann; mais co mo a de Madritsch. Madritsch é um bom sujeito e Schindler também.
À entrada da fábrica, Bankier chamou as moças do turno da noite para fora das colunas e as levou para o andar de cima, passando por uma sala de escrivaninhas vazias
até uma porta em que se lia HERR DIREKTOR. Edith Liebgold ouviu uma voz profunda dizer-lhes que entrassem. Lá dentro encontraram o Herr Direktor sentado no canto
de sua mesa, fumando um cigarro. Seu cabelo, entre louro e castanho-claro, parecia muito bem escovado; vestia jaquetão e gravata de seda. A impressão que dava era
de um homem que tinha um jantar marcado para aquela noite mas esperara especialmente para dar uma palavra às suas novas funcionárias. Era muito alto e ainda jovem.
Personificando o tipo ideal de Hitler, Edith esperou que ele pronunciasse um discurso sobre esforço de guerra e a necessidade de aumentar as quotas de produção.
- Eu queria dar-lhes as boas-vindas - disse-lhes o diretor empolonês. - Fazem parte da expansão desta fábrica. - E desviou osolhos; era até possível que
estivesse pensando: "Não lhes diga issoelas não têm nenhum interesse na fábrica."
Então, sem sequer piscar os olhos, sem nenhuma introdução, sem encolher significativamente os ombros, Schindler afirmou-lhes:
- Trabalhando aqui, vocês estarão a salvo. Se trabalharem aqui.irão até o final da guerra com vida.
Deu-lhes boa-noite e deixou-as no escritório. Bankier reteve as moças no alto das escadas, a fim de que Herr Direktor pudesse descer na frente.
A promessa deixara-as aturdidas. Era uma promessa divina. Co mo podia um homem, um mero homem, fazer uma promessa daquela ordem? Mas Edith Liebgold acreditou no
mesmo instante. Não tanto porque era no que ela queria acreditar; não porque era uma dádiva, incentivo imprudente. Mas porque no instante em que Herr Schindler proferiu
a promessa, a única opção era acreditar.
As novas mulheres da DEF receberam as instruções para o seu trabalho num estado de agradável perplexidade. Era como se alguma velha cigana maluca, que nada tinha
a ganhar com isso, houvesse previsto para elas o casamento com um conde. A promessa tinha para sempre alterado para Edith Liebgold as expectativas de vida. Se algum
dia se visse diante de um pelotão de fuzilamento, ela provavelmente tería pr testado: "Mas Herr Direktor disse que isso jamais poderia acontecer!"
O trabalho não exigia nenhum esforço mental. Edith carregava os recipientes banhados em esmalte, pendurados por ganchos em uma longa vara, até os fornos. E o tempo
todo meditava na promessa de Herr Schindler. Somente loucos faziam promessas tão categóricas. Sem sequer piscar os olhos. Contudo, ele não era em absoluto louco.
Era um industrial com um jantar marcado. Portanto, ele devia saber. Mas isso significava alguma visão, algum contato profundo com Deus ou o diabo ou uma configuração
do futuro. Mas, de novo, o aspecto dele, a mão com o anel de sinete de ouro não era a mão de um visionária Era a mão que se estendia para o copo de vinho; a mão
em que se podia de certa forma perceber carícias latentes. E assim ela retomou à primeira idéia da insanidade dele, da embriaguez, das explanações místicas, da técnica
com que Herr Direktor lhe havia incutido aquela certeza.
Similares voltejos de raciocínio obcecariam naquele ano e nos anos vindouros todos aqueles a quem Oskar fizera as suas arrebatadas promessas. Alguns teriam consciência
da precariedade de tais afirmações. Se o homem estava errado, se tinha usado levianamente o seu poder de convicção, então não havia nenhum Deus, nenhuma humanidade,
nenhum pão, nenhuma salvação. Restavam, naturalmente, apenas probabilidades, e as probabilidades não eram boas.
Capítulo 9
Naquela primavera, Schindler deixou a sua fábrica em Cracóvia e rumou para o oeste na sua BMW. atravessando a fronteira e as florestas que começavam a verdejar,
e
chegou a Zwittau. Ia visitar suas tias, sua irmã e Emilie. Todas elas tinham-se aliado a ele contra o pai; todas elas mantinham acesa a chama do martírio de sua
mãe. Se havia um paralelo entre a infelicidade de sua mãe e a de sua mulher, Oskar Schindler - no seu sobretudo com lapelas de peles, guiando com as mãos enluvadas
de couro seu carro feito sob encomenda, apanhando um outro cigarro turco, enquanto percorria as retas de geladas no Jeseniks - não via esse paralelo. Não cabia a
uma criança ver tais coisas. Seu pai era um deus e sujeito a leis mais rígidas
Ele gostava de visitar as tias - do jeito como elas erguiam as mão espalmadas em admiração à vista do talhe de sua roupa. Sua irmã mais nova casara-se com um funcionário
da estrada de ferro e vivia num agradável apartamento fornecido pelas autoridades ferroviárias. O seu marido era importante em Zwittau, cidade de entroncamento de
estradas de ferro, que possuía grandes pátios de cargas. Oskar tomou chá com a irmã e o marido, depois alguns cálices de genebra. Havia entre eles um leve tom mutuamente
congratulatório: os irmãos Schindler não tinham se saído nada mal na vida.
Naturalmente, a irmã de Oskar fora quem cuidara de Frau Schindler. na sua última enfermidade, e agora andava se encontrando secretamente com o pai. Não podia fazer
mais do que algumas insinuações no sentido de uma reconciliação. Foi o que fez durante o chá, e teve como resposta apenas resmungos.
Mais tarde, Oskar jantou em casa com Emilie. A mulher mostrou-se contente por tê-lo ali, naquele feriado. Podiam comparecer às cerimônias da Páscoa juntos, como
os casais de antigamente. E foi real mente um cerimonial, pois os dois dançaram formalmente a noite to da, servindo um ao outro à mesa como estranhos bem-educados.
E, em seus corações e suas mentes, tanto Emilie quanto Oskar se surpreendiam com aquela singular inaptidão matrimonial - que ele pudesse oferecer e dar mais de si
mesmo a estranhos, a trabalhadores em sua fábrica do que a sua mulher.
A questão que surgira entre eles era se Emilie devia ir morar com o marido em Cracóvia. Se abrisse mão do apartamento em Zwittau, permitindo que fosse ocupado por
outros inquilinos, não teria mais condição de abandonar Cracóvia. Acreditava que era seu dever estar ao lado de Oskar; na linguagem da teologia moral católica, a
ausência dele do lar era uma "iminente ocasião de pecado". A vida em comum na cidade estranha só seria tolerável se ele se mostrasse contido, discreto e zeloso em
relação às sensibilidades de sua mulher. O problema com Oskar era que não se podia contar com ele para manter em segredo os seus deslizes. Descuidado, meio embriagado,
meio sorridente, ele parecia às vezes pensar que se realmente gostasse de alguma mulher, todos também tinham de gostar dela.
A questão não solucionada a respeito de Emilie mudar-se pa ra Cracóvia tornou-se tão opressiva entre os dois que, quando ter minou o jantar, Oskar pediu licença
e se dirigiu para um café na pra ça principal. Era um ponto freqüentado por engenheiros de mine ração, pequenos comerciantes, algum ocasional comerciante transformado
em oficial do Exército. Ele suspirou de alívio ao encontrar alguns dos seus amigos motociclistas, quase todos envergando uniformes da Wehrmacht. Começou a beber
conhaque com eles. Alguns expressaram surpresa que um grandalhão forte como Oskar não estivesse fardado.
- Indústria essencial - replicou ele. - Indústria essencial.
Começaram a recordar os seus tempos de motociclista. Lembra ram rindo a motocicleta que Oskar tinha fabricado com peças sobressalentes, quando ainda era estudante.
O ruído explosivo do motor, e também o de sua grande Galloni 500cc. O alarido no café ia num
crescendo; mais conhaque era pedido aos gritos. Antigos colegas de Oskar surgiram da sala de jantar anexa, denotando pela expressão facial que haviam reconhecido
uma risada esquecida, como de fato a tinham esquecido. Então um deles assumiu um ar mais sério.
- Escute, Oskar. Seu pai está jantando na sala ao lado, totalmente sozinho.
Oskar Schindler baixou os olhos para o seu conhaque. Sentia o rosto em fogo mas encolheu os ombros.
- Você devia ir falar com ele - disse alguém. - O pobre coitado está uma sombra do que foi
Oskar respondeu que era melhor ir para casa. Começou a pôr-se de pé, mas os amigos o seguraram pelos ombros, forçando-o a tornar a sentar-se.
- Seu pai sabe que você está aqui - ponderaram. Dois deles játinham se dirigido para a sala anexa e estavam persuadindo o velhoHans Schindler, que terminava
o seu jantar. Em pânico, Oskar já sepusera de pé, procurando no bolso a ficha do vestiário, quando HansSchindler, com ar contrafeito, emergiu da sala de jantar,
levemente empurrado pelos dois rapazes. Ao ver o pai, Oskar se deteve. Apesar da raiva que guardara dele, sempre tinha imaginado que, se houvesse um gesto de aproximação
entre os dois, ele teria de ser o primeiro a se aproximar. O velho era tão orgulhoso. Contudo, estava se deixando empurrar em direção ao filho.
Quando os dois se viram frente a frente, o primeiro gesto do pai foi um meio sorriso de desculpa e uma espécie de contração das sobrancelhas. A familiaridade da
atitude encontrou Oskar despreveni do. "Não pude evitar nada", estava Hans dizendo. "O casamento e tudo mais... eu e sua mãe, tudo se passou de acordo com as leis
da vida." A idéia por detrás do gesto poderia ser comum mas Oskar vira uma expressão idêntica nessa mesma noite no rosto de alguém - o seu próprio, ao erguer os
ombros instintivamente, diante do espelho no saguão do apartamento de Emilie. "O casamento e tudo mais, tudo aconteceu de acordo com as leis da vida." Ele tinha
partilhado aquela expressão consigo mesmo, e ali - três conhaques depois - seu pai a estava partilhando com ele.
- Como vai, Oskar? - perguntou Hans Schindler. Havia um sopro perigoso em sua voz. A saúde de seu pai era pior do que ele serecordava.
Então Oskar decidiu que até mesmo Herr Hans Schindler era um ser humano - uma noção que ele não conseguira engolir à hora do chá em casa da irmã; abraçou seu velho
pai, beijando-o três vezes na face, sentindo o impacto da barba por fazer e começando a chorar, enquanto os engenheiros, militares e motociclistas aplaudiam a cena
edificante.
Capítulo 10
Os conselheiros do Judenrat de Arthur Rosenzweig, que ainda se consideravam guardiães da saúde, do bem-estar e da ração de pão dos internos do gueto, fizeram ver
à polícia judaica do gueto que eram também servidores públicos. A sua tendência era contratar homens compassivos e com alguma instrução. Embora na sede da SS a OD
fosse considerada como apenas uma força de polícia auxiliar, que recebia ordens como qualquer outra força policial, não era essa a imagem que a maioria dos membros
da OD fazia de si mesma. Não pode ser negado que à medida que o tempo passava, nos guetos, o membro da OD ia se tornando cada vez mais um objeto de sus peita, um
suposto colaboracionista. Alguns homens da OD transmitiam informações a grupos da Resistência e desafiavam o sistema, mas tal vez a maioria deles julgasse que a
sua própria existência e a de suas famílias dependia cada vez mais da cooperação dada à SS. Para os homens honestos, a OD iria tornar-se um elemento de corrupção.
Para escroques, representava uma oportunidade.
Mas em seus primeiros meses de atividade em Cracóvia, a OD parecia ser uma força benigna. Poldek Pfefferberg poderia ser citado co mo um exemplo da ambigüidade de
se pertencer à OD. Quando, em dezembro de 1940, foi abolida toda a instrução para os judeus, mesmo a organizada pelo Judenrat, Poldek tinha aceito um emprego de
controlador das filas de espera, cuidando também do livro de apontamentos no escritório do Judenrat. Era um emprego de meio expediente mas lhe dava o pretexto de
poder se movimentar em Cracóvia com uma certa liberdade. Em março de 1941, foi fundada a OD com o objetivo declarado de proteger os judeus, que entravam no gueto
do Podgórze, vindos de outras partes da cidade. Poldek aceitou o convite de pôr na cabeça o boné da OD. Ele acreditava compreender a finalidade da força policial
- não era apenas para garantir um comportamento racional dentro dos muros do gueto mas também para conseguir aquele grau correto de relutante obediência tribal que,
na história do judaísmo europeu, tem tendido a fazer com que os opressores se retirem mais rapidamente, tornem-se menos atentos, a fim de que, nos intervalos de
sua desatenção, a vida volte a ser mais viável.
Ao mesmo tempo que Pfefferberg usava o seu boné da OD, ele transava mercadorias ilegais - artigos de couro, jóias, peles, moeda corrente - para dentro e para fora
do portão do gueto. Conhecia o Wachtmeister do portão, Oswald Bosko, um policial que se tornara tão rebelde ao regime que permitia a entrada de matérias-primas no
gueto para serem transformadas em mercadorias - roupas, vinho, ferragens - e depois deixava que as mercadorias saíssem para ser vendi- das em Cracóvia, tudo sem
sequer cogitar de suborno.
Ao deixar o gueto, com os funcionários do portão, os schmalzowniks, ou os informantes rondando pelas imediações, Pfefferberg retirava a faixa judaica do braço em
algum beco discreto e ia transar os seus negócios na Kazimierz ou no Centrum.
Nos muros da cidade, acima das cabeças dos passageiros nos bondes, ele podia ler os cartazes do dia: anúncios de navalhas, os últimos editais de Wawel sobre as penalidades
para quem abrigasse bandidos poloneses, o slogan JUDEUS-PIOLHOS-TIFO, o cartaz mostrando uma virginal polonesa oferecendo comida a um judeu de nariz adunco, cuja
sombra era o Diabo. QUEM AJUDA UM JUDEU AJUDA SATANÁS. Em fachadas de armazéns viam-se desenhos de judeus co locando ratos picados dentro de tortas, aguando o leite,
recheando pastéis com piolhos, amassando a farinha do pão com pés imundos. A existência do gueto estava sendo corroborada nas ruas de Cracóvia com cartazes executados
por artistas do Ministério de Propaganda. E Pfefferberg, com ares de ariano, trafegava sob aqueles cartazes, carregando uma mala com roupas, jóias e moeda corrente.
O maior golpe de Pfefferberg se dera no ano anterior, quando o Governador Frank retirara de circulação as cédulas de 100 e 500 zlotys e ordenara que as cédulas desses
valores, ainda em circulação, fossem depositadas no Reich Credit Fund. Como um judeu só tinha permissão para trocar até 2.000 zlotys, isso significava que todas
as cédulas guardadas - acima de 2.000, contra os regulamentos - não mais te riam valor algum. A não ser que o portador encontrasse alguém, com aspecto ariano e sem
braçadeira, que se dispusesse a entrar nas longas filas de poloneses defronte do Reich Credit Bank para trocar o seu
dinheiro. Pfefferberg e um jovem seu amigo sionista arrecadaram dos
residentes do gueto algumas centenas de milhares de zlotys em cédulas banidas, saíram com uma mala cheia delas, e voltaram com a moeda de ocupação, descontando
apenas os subornos que tinham tido de pagar à polícia polonesa no portão do gueto.
Pfefferberg era um policial assim. Excelente pelos padrões do Secretário Artur Rosenzweig, deplorável pelos padrões da Pomorska.
Em abril, Oskar foi fazer uma visita ao gueto - por curiosidade e para falar com um joalheiro, a quem ele tinha encomendado dois anéis. Encontrou o recinto mais
super povoado do que tinha imaginado - duas famílias para cada cômodo, a não ser que se tivesse a sorte de ter um amigo no Judenrat. Havia no ar um cheiro de encanamentos
entupidos, mas as mulheres se defendiam do tifo esfregando com força e fervendo as roupas nos pátios. O joalheiro confiou a Schindler que "as coisas estão mudando",
e que "os OD receberam cassetetes". Quanto à administração do gueto, como a de todos os outros da Polônia, passara do controle do Governador Frank para as mãos da
Seção 4B da SS, e a autoridade mais alta em todas as questões de judeus em Cracóvia era agora o Oberführer Julian Scherner, homem jovial de uns quarenta e cinco
a cinqüenta anos que, em trajes civis e com óculos de lentes grossas, parecia um burocrata comum. Oskar conhecera-o em coquetéis alemães. Scherner falava muito -
não sobre a guerra mas de negócios e investimentos. Era da espécie de funcionário muito comum nas categorias intermediárias da SS, um folgazão, interessado em bebidas,
mulheres e bens confiscados. Às vezes, se podia notar nele um sorrisinho de contentamento com o seu inesperado poder, como a boca lambuzada de geléia como a de uma
criança. Mostrava-se sempre sociável e infalivelmente impiedoso. Oskar podia perceber que Scherner era mais a favor de fazer os judeus trabalharem do que de matá-los,
que desconsiderava regulamentos quando se tratava de
lucro, mas que seguiria a linha geral da política da SS, fosse qual fosse o rumo que tomasse.
Oskar não se tinha esquecido do chefe de polícia no Natal anterior, enviando-lhe meia dúzia de garrafas de conhaque. Agora que o poder do homem se expandira, o presente
desse ano seria mais substancial.
Era devido a essa transferência de poder - a SS tornara-se não apenas o braço da política mas também a sua formuladora - que, sob o sol de verão de junho, a OD
estava adquirindo uma nova natureza. Simplesmente, ao atravessar de carro o gueto, Oskar familiarizou-se com uma nova figura, um ex-vidraceiro chamado Symche Spira,
ago ra a figura mais influente na OD. Spira era de família ortodoxa e, tanto pelos seus antecedentes como por temperamento, desprezava os liberais judeus europeizados,
que ainda faziam parte do Conselho do Judenrat. Recebia ordens não de Artur Rosenzweig mas do Untersturm führer Brandt e da sede da SS do outro lado do rio. De
suas confabulações com Brandt, ele retornava ao gueto com mais instruções e mais poder. Brandt pedira-lhe que organizasse e chefiasse uma Seção Política da OD, e
para tanto ele recrutou vários amigos. O uniforme deles deixou de ser o boné e braçadeira e passou a ser uma camisa cinza, calças de montaria, cinto largo de couro
e lustrosas botas SS.
A Seção Política de Spira iria além da exigência de cooperação relutante, pois se encheria de homens venais, homens complexados, com ressentimentos secretos contra
as desfeitas sociais e intelectuais recebi das no passado da comunidade judaica respeitável. Além de Spira, havia Szynwn Spitz e Marcel Zellinger, Ignacy Diamond,
o negociante David Gutter, Forster e Grüner e Landau. Assim, iniciaram eles uma carreira de extorsões e passaram a fazer para a SS listas de habitantes insatisfatórios
ou sediciosos do gueto.
Poldek Pfefferberg queria agora livrar-se da força policial. Corriam rumores de que a Gestapo obrigaria todos os membros da OD a jurar fidelidade ao Führer, depois
do que eles não teriam mais condições para desobediência. Poldek não queria compartilhar a profissão do camisa-cinza Spira ou de Spitz e Zellinger, encarregados
das listas. Assim, dirigiu-se ao hospital na esquina de Wegierska para falar com um bondoso médico chamado Alexander Biberstein, o médico oficial do Judenrat. O
irmão de Biberstein, Marek, tinha sido o primeiro presidente do Conselho e estava agora cumprindo pena na tenebrosa prisão de Montelupich por violação dos regulamentos
sobre a moeda corrente e por ter tentado subornar funcionários.
Pfefferberg implorou a Biberstein que lhe desse um certificado médico, que o liberasse de pertencer à OD. Era difícil, respondeu Biberstein. Pfefferberg não apresentava
sinal algum de doença. Ser-lhe-ia impossível fingir que sofria de pressão alta. O Dr. Biberstein deu-lhe instruções sobre os sintomas de problemas da coluna. Pfefferberg
passou a apresentar-se ao serviço muito curvado e usando uma bengala.
Spira ficou indignado. Quando Pfefferberg lhe havia pedido da primeira vez para ser dispensado da OD, o chefe de polícia declarara - como o comandante de alguma
guarda de palácio - que a única maneira de sair da OD era "na horizontal". No interior do gueto, Spira e seus ingênuos amigos estavam brincando de Corpo de Elite.
Eram a Legião Estrangeira; eram os pretorianos. "Vamos mandá-lo para o médico da Gestapo!", berrara Spira.
Biberstein, consciente do quanto o jovem Pfefferberg se sentia constrangido, instruíra-o muito bem. Poldek sobreviveu à inspeção do médico da Gestapo e deu baixa
da OD, como portador de uma enfermidade, que impediria sua eficiência no controle das pessoas. Ao se despedir do seu funcionário graduado, Spira expressou todo seu
desprezo e sua inimizade.
No dia seguinte, a Alemanha invadiu a Rússia. Oskar ouviu furtivamente a notícia, transmitida pela BBC de Londres, e compreendeu que o Plano Madagascar estava agora
encerrado. Muitos anos se passariam antes de haver navios disponíveis para uma solução daquelas. Oskar sentiu que o evento mudava a essência dos planejamentos da
SS, pois agora por toda parte os economistas, os engenheiros, os planejadores de deslocamento de pessoas, os policiais de todas as categorias passariam a adotar
não somente os hábitos mentais adequados a uma guerra prolongada mas também as medidas mais sistemáticas pa ra chegar a um império racialmente impecável.
Capítulo 11
Numa viela da Rua Lipowa e dando fundos para a oficina da fábrica de esmaltados de Schindler, ficava a Fábrica Alemã de Embalagens. Oskar Schindler, sempre irrequieto
e desejoso de companhia, costumava, às vezes, ir até lá e conversar com o Treuhän der Ernst Kuhnpast ou com o antigo proprietário e extra-oficial gerente, Szymon
Jereth. A Fábrica de Embalagens Jereth passara a ser, havia cerca de dois anos, a Fábrica Alemã de Embalagens - segundo o ar ranjo habitual - sem pagamento de indenização
e sem que houvesse qualquer documento assinado por Jereth.
A injustiça da transação não mais preocupava especialmente Jereth. Era o que havia acontecido com a maioria das pessoas que ele conhecia. O que o preocupava era
o gueto. As brigas nas cozinhas, a implacável promiscuidade da vida no gueto, o cheiro de suor, os pio lhos que saltavam para a sua roupa do casaco ensebado de um
homem com quem se cruzava numa escada. A Sra. Jereth, contou ele a Oskar, estava profundamente deprimida. Sempre estivera habituada ao conforto; era de uma boa
família de Kleparz, ao norte de Cracóvia. E pensar, expressou ele a Oskar, que com toda aquela madeira de pinho poderia construir uma moradia ali. E apontou para
o terreno baldio atrás de sua fábrica. Os trabalhadores costumavam usar o espaço amplo para as suas partidas de futebol. Grande parte do terreno pertencia à fábrica
de Oskar, o restante a um casal polonês de nome Bielski. Mas Oskar não fez ver isso ao pobre Jereth, ou disse que ele também se preocupava com aquele terreno baldio.
Estava mais interessado na oferta insinuada de fornecimento de madeira.
- Acha que pode "alienar" tanta madeira assim? - perguntou Oskar.
- Claro - replicou Jereth. - É só uma questão de escrita.Os dois estavam junto à janela do escritório de Jereth, olhando para o terreno baldio. Da oficina
vinha o ruído de marteladas e de uma serra.
- Eu odiaria perder contato com este local - disse Jereth. -Odiaria desaparecer em algum campo de trabalhos forçados e ter depensar de longe o que aqueles
imbecis estariam fazendo aqui. Deve compreender isso, não é, Herr Schindler?
Um homem como Jereth não podia prever libertação alguma. Os exércitos alemães davam a impressão de estar desfrutando ilimitados êxitos na Rússia, e até mesmo a BBC
parecia pouco inclinada a acreditar que eles estavam avançando para um abismo fatal. As encomendas da Inspetoria de Armamentos para cozinhas de campo não cessavam
de chegar à mesa de Oskar, com os cumprimentos do General Julius Schindler no final, acompanhados de telefonemas de congratulação de oficiais graduados. Oskar aceitava
as encomendas e as congratulações como de direito mas sentia um prazer contraditório com as cartas irritadas que o pai lhe escrevia para celebrar a reconciliação.
Não vai durar, dizia Schindler pai. O homem (Hitler) não tem condições de durar. A América acabará se voltando contra ele. E os russos? Meu Deus, será que ninguém
se deu ao trabalho de fazer ver ao ditador que lá existem incontáveis hordas daqueles bárbaros ímpios? Oskar, sorrindo com as cartas, não se deixava perturbar pelos
sentimentos conflitantes - a satisfação comercial dos contratos da Inspetoria de Arma mentos e o prazer mais íntimo com as cartas subversivas do pai. Oskar depositava
no banco em nome do pai uma quantia mensal de 1.000 RM, em honra do amor filial e da subversão, e também pela alegria da generosidade.
O ano pareceu-lhe passar rápido e quase tranqüilo. Horas de trabalho mais longas do que nunca, festas no Cracóvia Hotel, rodadas de bebidas no clube de jazz, visitas
ao luxuoso apartamento de Klonowska. Quando começaram a cair as folhas do outono, Schindler se espantou com a rapidez com que o ano se escoara. A impressão de que
o tempo voara era acrescida pelo verão tardio e agora pelas chuvas ou tonais, que chegavam mais cedo do que de costume. As estações alteradas iriam favorecer os
soviéticos e afetariam a vida dos europeus. Para Herr Oskar Schindler, instalado na Rua Lipowa, as mudanças de tempo continuavam apenas mudanças de tempo.
Então, no final de 1941, Oskar de repente foi preso. Alguém - um dos funcionários poloneses da expedição, um dos técnicos alemães da seção de munições, era difícil
saber - fora à Rua Pomorska, prestara informações e o denunciara. Dois homens da Gestapo, em trajes civis, chegaram certa manhã à Rua Lipowa e bloquearam a entrada
com seus Mercedes, como se tencionassem liquidar com todo o comércio da Ema lia. Em cima, diante de Oskar, eles exibiram mandados de prisão que os autorizavam a
requisitar todo o seu cadastro comercial. Mas, ao que parecia, não tinham nenhuma experiência naquele ramo.
Exatamente, quais são os livros que querem? - perguntou-lhe Schindler.
Livros-caixa - disse um.
Os seus principais livros-razão - disse o outro.
Foi uma prisão calma; eles conversaram com Klonowska, enquanto Oskar foi apanhar seus livros de contabilidade. Foi-lhe concedido tempo para anotar num bloco uns
tantos nomes, supostamente de pessoas com quem Oskar tinha encontros marcados para aquele dia e que agora te riam de ser cancelados. Lendo-os Klonowska compreendeu
que era uma lista de gente com quem ela devia entrar em contato para ajudá-lo a ser solto.
O primeiro nome na lista era o do Oberführer Julian Scherner; o segundo, Martin Plathe da Abwehr em Breslau. Este último implica va um telefonema interurbano. O
terceiro nome pertencia ao supervisor da Osífaser, o bêbado veterano do Exército, Franz Bosch, que Schindler presenteara com uma grande quantidade de utensílios
domésticos. Debruçando-se sobre o ombro de Klonowska, sobre seus cabelos louros arrumados no alto da cabeça, ele sublinhou o nome de Bosch. Homem influente, Bosch
conhecia e aconselhava todos os altos funcionários que participavam do mercado negro de Cracóvia. E Oskar sabia que a sua prisão tinha a ver com o mercado negro,
cujo perigo consistia em sempre poder encontrar algum funcionário disposto a ser subornado mas nunca poder prever a inveja de algum dos próprios em pregados do funcionário.
O quarto nome da lista era o do diretor alemão da Ferrum AG de Sosnowiec, a companhia onde Schindler adquiria o seu aço. Esses nomes eram um conforto, pensava ele,
ao ser conduzido no Mercedes da Gestapo para a Rua Pomorska, a mais ou menos um quilômetro do Centrum. Eram uma garantia de que não iria desaparecer sem deixar vestígio.
Não se sentia, portanto, tão indefeso quanto os mil habitantes do gueto que haviam sido arrebanhados de acordo com as listas de Symche Spira e conduzidos sob as
gélidas estrelas do Advento para os vagões de gado na Estação Prokocim. Oskar tinha bons pistolões.
O complexo da SS em Cracóvia era um imenso edifício moderno, sombrio, mas não tão portentoso quanto a prisão de Montelupich. Contudo, mesmo que não se acreditasse
nos rumores de torturas ali praticadas, o edifício assustava o preso assim que ele penetrava naquela vastidão, com os seus corredores kafkianos, com a ameaça muda
dos nomes dos chefões inscritos nas portas. Ali estavam instalados o Escritório Principal da SS, a sede da Polícia de Ordem, de Kripo, Sipo e Gestapo, da Economia
e Administração da SS, do Corpo de Funcionários, de Questões Judaicas, de Raça e Remoção, do Tribunal SS, de Operações, de Serviço SS do Reichskommíssariat para
o Fortalecimento do Germanismo, do Departamento de Assistência aos Alemães Étnicos.
Em algum setor naquela colméia, um homem de meia-idade da Gestapo, que parecia ter um conhecimento mais preciso de contabilidade do que os oficiais que haviam efetuado
a prisão, começou a interrogar Oskar. O jeito do homem era de quem estava achando aquilo meio divertido, como um fiscal alfandegário que descobre que um passageiro
suspeito de estar contrabandeando moedas, na realidade contrabandeou apenas plantas para a sua tia. Disse a Oskar que todas as empresas relacionadas com a produção
bélica estavam sob fiscaliza ção. Oskar não acreditou mas ficou calado. Herr Schindler devia compreender, acrescentou o homem da Gestapo, que indústrias ligadas
ao esforço de guerra tinham a obrigação moral de reservar todo o seu pro duto para um tão grande empreendimento - e evitar prejudicar a
economia do Governo-Geral com transações ilegais.
Com aquele seu modo peculiar de falar, Oskar resmungou algumas palavras, que poderiam significar ao mesmo tempo ameaça e displicência.
Está insinuando, Herr Wachtmeister, que há informações de que a minha fábrica não está preenchendo as suas quotas?
O senhor vive muito bem - contrapôs o homem, mas ostentando um sorriso condescendente, como se não houvesse objeção quanto a isso, como se fosse admissível que industriais
importantes levassem boa vida. - E, tratando-se de qualquer um que viva bem... temos de ter a certeza de que o seu padrão de vida é inteiramente resultado de contratos
legais.
Oskar abriu um sorriso para o homem da Gestapo.
Quem quer que lhe tenha denunciado o meu nome é um imbecil e está fazendo o senhor perder seu tempo.
Quem é o gerente da DEF? - perguntou o homem da Gestapo, ignorando o comentário de Oskar.
Abraham Bankier.
Judeu?
Claro que é. A fábrica pertencia a parentes dele.
Aqueles dados pareciam corretos, concluiu o homem da Gestapo. Mas se fossem necessárias outras informações, ele presumia que Herr Bankier estaria apto a fornecê-las.
- Está querendo dizer que vai me deter aqui? - perguntou Oskar e começou a rir. - Afianço-lhe que, quando eu estiver rindo com o Oberführer Scherner a respeito deste
incidente, eu lhe direi que o senhor me tratou com a maior cortesia.
Os dois que tinham efetuado a prisão levaram-no para o segundo andar, onde ele foi revistado e lhe foi permitido ficar com os cigarros e 100 zlotys para algum pequeno
luxo. Depois o trancaram num quar to - um dos melhores disponíveis, presumiu Oskar, equipado com pia e vaso sanitário e cortinas empoeiradas na janela de grades
- a espécie de quarto em que trancafiavam dignitários que estavam sendo interrogados. Se o prisioneiro fosse posto em liberdade, não poderia queixar-se de um quarto
como aquele nem tampouco descrevê-lo em termos entusiásticos. E, se ficasse apurado que ele era um traidor, sedicioso, ou praticante de crime contra a economia,
então, como se no assoalho do quarto se tivesse aberto um alçapão, ele se veria numa cela de interrogatório, sentado imóvel e sangrando, espécie de baia - que eles
apelidavam de "bonde" - esperando ser transferido para Montelupich, onde os prisioneiros eram enforcados em suas celas. Oskar fitou a porta. "Quem quer que ponha
a mão em mim", prometeu ele a si mesmo, "eu farei com que seja mandado para a frente russa."
Não sabia esperar com paciência. Após uma hora, bateu na porta e deu ao Waffen SS que o atendeu 50 zlotys para lhe comprar uma garrafa de vodca. A quantia era, naturalmente,
três vezes o preço da bebida mas era esse o método de Oskar. Mais tarde, no mesmo dia, graças às providências tomadas por Klonowska e Ingrid, uma sacola de objetos
de toalete, livros e pijamas chegaram à cela. Trouxeram-lhe uma excelente refeição com meia garrafa de vinho húngaro e ninguém apareceu para incomodá-lo ou fazer-lhe
uma pergunta sequer. Oskar presumiu que o contador continuava curvado sobre os livros da Ema lia. Ele teria gostado de ter ali um rádio para ouvir as notícias da
BBC sobre a Rússia, o Oriente e o novo combatente, os Estados Unidos. Teve a impressão de que, se pedisse aos seus carcereiros, eles eram bem capazes de lhe arranjar
um rádio. Esperava que a Gestapo não tivesse invadido o seu apartamento da Rua Straszewskiego e se apoderado de objetos e jóias de Ingrid. Quando finalmente adormeceu,
chegara já ao ponto em que estava ansioso por se ver diante dos seus inquisidores.
Pela manhã, trouxeram-lhe uma boa refeição - arenque, queijo, ovos, pãezinhos, café - e ele continuou não sendo incomodado. Só então o auditor SS de meia-idade,
carregando os seus livros de contabilidade, veio vê-lo na cela.
O auditor desejou-lhe bom-dia. Esperava que Oskar tivesse passado uma noite confortável. Não houvera tempo de se fazer mais do que um exame superficial dos livros
de Herr Schindler mas ficara decidido que um cavalheiro que gozava de tanto prestígio junto a pessoas influentes no esforço de guerra não precisava por enquanto
ser inter rogado mais minuciosamente. Acrescentou que tinha recebido certos telefonemas... Ao agradecer ao SS, Oskar estava convencido de que sua liberação era temporária.
Recebeu os livros de contabilidade e lhe foi devolvido todo o seu dinheiro no balcão de recepção.
Fora, Klonowska o esperava, radiante. Suas providências tinham rendido aquele resultado: Schindler, livre da terrível SS, envergando o seu jaquetão e sem o menor
arranhão. Ela o conduziu até o seu Adler, que lhe haviam permitido estacionar do lado de dentro do portão. O ridículo cãozinho poodle estava sentado no banco traseiro.
Capítulo 12
A
menina chegou na moradia dos Dresner, situada no lado leste do gueto, no final de uma tarde. Fora trazida de volta a Cracóvia pelo casal polonês que estivera cuidando
dela no campo. Haviam conseguido convencer a Polícia Azul Polonesa, postada no por tão do gueto, que lhes permitisse entrarem a negócio, e a menina passou como
filha deles.
Eram gente decente; estavam envergonhados por a terem trazido do campo de volta a Cracóvia e ao gueto. Era uma menina tão boazinha; tinham-se afeiçoado a ela. Mas
não era mais possível conservar no campo uma criança judia. As autoridades municipais
- independentemente da SS - ofereciam até 500 zlotys por cada judeu traído. Havia o perigo dos vizinhos. Não se podia confiar nos vizinhos. E, então, não somente
a criança estaria em perigo mas todos eles. Santo Deus, havia zonas em que os camponeses saíam à caça de judeus, armados de foices e ancinhos.
A menina não parecia sofrer demais com a esqualidez do gueto. Sentada a uma mesinha, comia meticulosamente o bico de pão que a Sra. Dresner lhe oferecera. Aceitava
todas as palavras carinhosas que lhe diziam as mulheres que partilhavam a cozinha. A Sra. Dresner
notou a estranha atitude precavida da criança em todas as suas respostas. Tinha, porém, suas vaidades e, como é comum em crianças de três anos de idade, uma paixão
pela cor vermelha. Assim, ali estava com o seu gorrinho vermelho, capote vermelho e botinhas vermelhas. O casal de camponeses fazia-lhe as vontades.
A Sra. Dresner começou a conversa falando sobre os verdadeiros pais da menina. Estavam também vivendo - na realidade, se escondendo - no campo. Mas, explicou a Sra.
Dresner, em breve estariam de volta a Cracóvia e ao gueto. A criança abanava a cabeça mas não parecia ser por timidez que se mantinha calada.
Em janeiro, seus pais haviam sido arrebanhados, de acordo com uma lista fornecida à SS por Spira e, enquanto estavam sendo conduzidos em filas para a Estação de
Prokocim, tinham passado por entre uma turba de poloneses vociferantes - "Adeusinho, judeus!" Haviam, porém, conseguido se esgueirar para fora da coluna, como se
fossem dois honestos cidadãos poloneses atravessando a rua para ver a deportação de inimigos sociais, e tinham-se reunido à turba, gritando eles próprios um pouco,
e depois se afastado e fugido para o campo.
Agora também eles não se sentiam mais seguros no campo e tencionavam penetrar clandestinamente em Cracóvia durante o verão. A mãe de "Chapeuzinho Vermelho" - como
haviam apelidado a garota os filhos do casal Dresner, ao voltarem da cidade para casa, após o trabalho - era prima-irmã da Sra. Dresner.
Logo a jovem Danka, filha da Sra. Dresner, voltou também do seu trabalho de faxineira na base aérea da Luftwaffe. Danka ia fazer 14 anos, mas era alta o bastante
para já ter recebido o seu Kennkarte (carteira de trabalho), o que lhe permitia trabalhar fora do gueto.
Ficou encantada com a esquiva menina.
- Genia, conheço sua mãe, Eva. Nós duas costumávamos fazercompras juntas e ela me comprava doces na confeitaria na Rua Bracka.
A menina manteve-se sentada, não sorriu, fixou os olhos num pon to vago.
- Moça, está enganada. O nome de minha mãe não é Eva. É
Jasha. - E continuou citando os nomes da fictícia genealogia polonesa,que a haviam feito decorar, tanto seus pais como o casal de poloneses,para o caso de ela
ser interrogada pela Polícia Azul ou pela SS. A
família pareceu perplexa com a excepcional esperteza da criança e,
embora achando aquilo horrível, não quiseram corrigi-la, pois era bempossível que, naquela mesma semana, o embuste fosse uma arma
essencial de sobrevivência.
À hora do jantar, Idek Schindel, o tio da menina, um jovem médico do hospital do gueto na Rua Wegierska, apareceu em casa dos Dresner. Era o alegre, brincalhão,
carinhoso tio, de que uma criança necessita. Ao vê-lo, Genia tornou-se uma criança, levantando-se da cadeira e correndo para ele. Se o seu tio estava ali, chamando
aquela gente de primos, então eram mesmo primos. Agora ela já podia admitir que tinha uma mãe chamada Eva e que os seus avós não se chamavam real mente Ludwik e
Sophia.
Então o Sr. Juda Dresner, funcionário de compras da fábrica Bosch, chegou em casa, e a família ficou completa .O dia 28 de abril era aniversário de Schindler, e
em 1942 ele comemorou a data como um filho da primavera, ruidosamente, prodigamente. Foi um grande dia na DEF. O Herr Direktor levou para a fábrica o raro pão branco,
sem se preocupar com despesas, para ser servido com a sopa do meio-dia. Os festejos se estenderam pelo escritório geral e a oficina nos fundos da fábrica. Oskar
Schindler, o industrial, desfrutava o sabor suculento da vida.
O seu trigésimo quarto aniversário começou a ser comemorado desde cedo, na Emalia. Schindler atravessou acintosamente o escritório geral sobraçando três garrafas
de conhaque, para bebê-las com os engenheiros, contadores, projetistas. Os funcionários da
Contabilidade e do Pessoal ganharam uma profusão de cigarros e, no decorrer da manhã, as dádivas já tinham chegado ao andar da oficina. Um bolo veio da confeitaria
e Oskar partiu-o sobre a mesa de Klonowska. Delegações de trabalhadores judeus e poloneses começaram a entrar no escritório para dar-lhe os parabéns e ele beijou
efusivamente uma jovem chamada Kucharska, cujo pai fizera parte do parlamento polonês antes da guerra. Apareceram então outras judias, os homens trocavam apertos
de mão e até Stern veio da Comissão de Melhoramentos, onde agora trabalhava, para apertar formalmente a mão de Oskar e se ver envolvido num abraço de quebrar costelas.
À tarde alguém, provavelmente o mesmo insatisfeito da vez anterior, contatou Pomorska e denunciou Schindler por transgressões às leis raciais.
Seus livros de contabilidade podiam suportar uma investigação mas ninguém teria como negar que ele era um "beijador de judeus".
A maneira como ele foi preso dessa vez pareceu mais profissional do que a anterior.
Na manhã do dia 29, um Mercedes bloqueou a entrada da fábrica e dois homens da Gestapo, com um ar mais seguro do terreno em que pisavam do que os dois primeiros,
encontraram-no quando atravessava o pátio da fábrica. Fora acusado de infringir as provisões da Lei de Raça e Reajustamento e pediram-lhe que os acompanhasse. Não,
não havia necessidade de ele ir primeiro ao seu gabinete...
Os senhores têm uma ordem de prisão?
Não precisamos disso - foi a resposta.
Oskar deu-lhes um sorriso. Os cavalheiros deviam compreender que, se o levassem sem uma ordem expressa, iriam se arrepender.
Estas palavras foram ditas num tom displicente mas ele podia perceber pela atitude firme dos dois que a ameaça tinha-se concretizado e focalizado, depois da detenção
meio cômica do ano anterior. Da última vez, a conversa da Rua Pomorska tinha decorrido sobre questões
econômicas e suas possíveis irregularidades. Desta vez, estava-se lidando com uma lei grotesca, a lei do intestino grosso, decretos do lado negro do cérebro. Assunto
grave.
- Teremos de correr o risco do arrependimento - respondeu um deles.
Oskar avaliou a segurança da atitude, a perigosa indiferença que demonstravam a seu respeito, um homem de recursos, com recentes trinta e quatro anos de idade.
- Numa manhã de primavera - replicou-lhes - posso disporde umas poucas horas para um passeio de carro.
Procurou tranqüilizar a si mesmo, pensando que de novo seria confinado numa daquelas celas civilizadas na Pomorska. Mas, quando enveredaram pela Rua Kolejowa, percebeu
que dessa vez seria a prisão de Montelupich.
- Gostaria de falar com um advogado - disse ele.
- Mais tarde - respondeu o homem que estava ao volante.Oskar sabia, a acreditar na palavra de um dos seus companheiros
de rodadas de bebida, que o Instituto de Anatomia Jagiell recebia cadáveres de Montelupich.
O muro do local estendia-se por todo um comprido quarteirão e a tenebrosa igualdade das janelas do terceiro e quarto andares podia ser vista do assento traseiro
do Mercedes. Passando pelo portão principal e por baixo de uma arcada, chegaram a uma sala onde um
funcionário da SS falava muito baixo, como se vozes altas fossem provocar ecos ensurdecedores ao longo dos corredores estreitos. Confiscaram lhe todo o dinheiro
mas lhe disseram que, enquanto estivesse preso, receberia 50 zlotys por dia. Não, responderam os SS, ainda não estava na hora de se comunicar com um advogado.
Eles partiram. No corredor, sob guarda, Oskar ficou de ouvido atento a ecos de gritos que, naquele silencio de convento, pudessem vazar pelas frestas das portinholas
ao longo das paredes. Depois de descer um lance da escada, conduziram-no por um túnel claustrofóbico, ao longo de uma fileira de celas de portas trancadas e uma
de grades, onde havia uma meia dúzia de prisioneiros em mangas de camisa, cada um numa baia separada, voltados para a parede dos fundos, a fim de que não se pudessem
ver suas feições. Oskar notou uma orelha rasgada. Alguém estava fungando mas sem coragem de assoar o nariz. "Klonowska, Klonowska, está dando os seus telefonemas,
meu amor?"
Abriram uma cela para ele e o fizeram entrar. Oskar tivera certo receio de que houvesse muita gente na cela. Mas havia só mais um prisioneiro, um militar envolto
até as orelhas no seu casacão, sentado nu ma das duas camas de madeira, cada qual com o seu estrado. Naturalmente, não havia pias. Apenas um balde d'água e um para
detritos. E quem seria aquele Waffen SS Standartenführer (posto da SS equivalente a coronel), com a barba por fazer, uma camisa meio suja sob o casacão, botas enlameadas?
- Seja bem-vindo, cavalheiro - disse o oficial, com um sorrisono canto da boca, erguendo a mão para o recém-chegado. Era um
bonito homem, uns poucos anos mais velho do que Oskar.
Provavelmente, tratava-se de um informante. Mas era estranho que lhe houvessemfornecido a farda de um posto tão importante. Oskar consultou seurelógio, sentou-se,
levantou-se, olhou para a janela alta. Um poucoda claridade dos pátios de exercício penetrava pela janela, mas esta nãoera do tipo que permitia a alguém debruçar-se
e assim reduzir a
intimidade dos dois catres lado a lado, dos prisioneiros sentados quase
tocando os joelhos um do outro.
Finalmente, começaram a conversar. Oskar mostrava-se muito cauteloso mas o Standartenführer tagarelava descontraidamente. Qual era o seu nome? Philip era como se
chamava. Achava que cavalheiros não deviam revelar seu sobrenome em prisões. Além disso, estava na hora de as pessoas começarem a usar apenas nomes. Se todos tivessem
adotado esse sistema antes, os alemães seriam agora uma raça mais feliz.
Oskar concluiu que, se o homem não era um informante, então tinha tido alguma espécie de exaustão nervosa ou talvez estivesse sofrendo de neurose de guerra. Estivera
participando da campanha no sul da Rússia e seu batalhão tinha conseguido manter-se o inverno to do em Novgorod. Ele, então, recebera uma licença para visitar sua
na morada polonesa em Cracóvia e, segundo suas palavras, "os dois tinham-se perdido um no outro", e ele fora preso no apartamento dela, três dias depois de expirada
sua licença.
- Acho que decidi - disse Philip - não ser pontual demais
quanto a prazos, quando vi a vida que esses safados levam - apontou coma mão para o teto, indicando a estrutura ao seu redor, os projetistas,contadores, burocratas.
- Não foi deliberada a decisão de me
ausentar, sem permissão. Mas apenas achei que devia a mim mesmo umacerta latitude.
Oskar perguntou se ele não preferia estar na Rua Pomorska.
Não. Prefiro estar aqui - respondeu Philip. - Pomorska mais parece um hotel. Mas os salafrários têm lá uma cela da morte, cheia de barras de cromo reluzente. Mudando
de assunto, o que Herr Oskar fez?
Beijei uma judia - respondeu Oskar. - Uma empregada minha. É do que me acusam.
Ao ouvir isso, Philip soltou uma gargalhada.
- Oh, oh! E o seu pau caiu no chão?
O Standartenführer Philip passou o resto da tarde condenando a SS. Eram ladrões e tarados, afirmou. Não dava para acreditar o dinheiro que aqueles safados estavam
ganhando. E sempre com um ar incorruptível. Podiam matar um pobre coitado de um polonês por ro bar um quilo de toucinho, ao passo que eles viviam como barões
hanseáticos.
Oskar ouvia, como se tudo aquilo fosse novidade para ele, como se a revelação da venalidade de Reichführers fosse um doloroso choque para a sua provinciana inocência
Sudetendeutsch, que o havia levado ao ponto de beijar uma judia. Por fim Philip, cansado de suas vituperações, adormeceu.
Oskar estava com vontade de beber. Uma boa dose de vodca certamente ajudaria a passar o tempo, tornaria o Standartenführer melhor companhia, se ele não fosse um
informante, e mais falível se o fosse. Oskar tirou do bolso uma nota de 10 zlotys e anotou nela nomes e números de telefone; mais nomes do que da última vez, uma
dúzia. Acrescentou mais quatro notas, amassou-as, depois bateu na portinho Ia. Um guarda apareceu - um grave rosto de meia-idade, que o fitou Não parecia ser um
homem que exercitava poloneses até eles tomba rem mortos, ou rompia rins a pontapés, uma das formas mais comuns de tortura. Não se esperava isso de um homem que
parecia um tio do interior.
Seria possível encomendar cinco garrafas de vodca? - perguntou Oskar.
Cinco garrafas? - espantou-se o guarda. O seu tom era de quem estava aconselhando sobriedade a um jovem bêbado inveterado. Pareceu, porém, algo pensativo, como se
estivesse cogitando denunciar Oskar aos seus superiores.
O general e eu - explicou Oskar - apreciaríamos ter uma garrafa para cada um, a fim de estimular a conversa. Você e seus colegas, por favor, aceitem as restantes,
com os meus cumprimentos. Presumo, também, que um homem com a sua autoridade tem o poder de dar uns telefonemas de rotina, por um prisioneiro. Os números dos telefones
estão anotados aqui... sim, na cédula. Não precisa telefonar você mesmo. Mas pode transmiti-los a minha secretária, não é? Sim, ela é a primeira da lista.
Essas pessoas são gente muito influente - murmurou o guarda.
Você é um louco - gritou Philip para Oskar. - Podem fuzilá-lo por tentar corromper um guarda.
Oskar deitou-se no catre, aparentemente despreocupado.
- É uma estupidez tão grande como beijar uma judia - dissePhilip.
- Veremos - replicou Oskar. Mas estava apavorado.Finalmente, o guarda retornou e trouxe, juntamente com as duas
garrafas, um embrulho com camisas e roupas de baixo, alguns livros e uma garrafa de vinho, arrumado no apartamento da Rua Straszewskiego por Ingrid, que o entregou
no portão da Montelupich. Philip e Oskar tiveram juntos uma noite relativamente agradável, embora em determinado momento um guarda houvesse batido na porta de aço
e ordenado que eles parassem de cantar.
Mas mesmo assim, com a bebida tornando a cela mais espaçosa e dando mais credibilidade às vituperações do Standartenführer, Schindler estava de ouvido atento a gritos
remotos do andar de cima ou a batidas em morse de algum preso desesperado na cela ao lado. Só uma vez a verdadeira natureza daquele local diluiu os efeitos da vodca.
Junto ao seu catre, parcialmente escondido pelo estrado, Philip descobriu uma diminuta inscrição em lápis encarnado. Levou algum tempo para decifrá-la, pois o seu
conhecimento da língua polonesa não era tão bom como o de Oskar.
- "Meu Deus" - traduziu ele - "como eles me espancam!"Então, meu amigo Oskar, este não é mesmo um mundo maravilhoso?
De manhã, Schindler acordou com a cabeça desanuviada. Nunca tivera ressacas e não entendia como outras pessoas se queixavam tanto delas. Mas Philip estava pálido
e deprimido. Na parte da manhã vieram buscá-lo e ele voltou para juntar seus pertences. Ia ser julgado nessa tarde por uma corte marcial mas havia sido designado
para uma nova missão num campo de treinamento em Stutthorf; presumia que não pretendiam fuzilá-lo por deserção. Apanhou de cima do catre o casa cão e se foi para
explicar a sua aventura polonesa. Sozinho, Oskar passou o dia lendo um livro de Karl May que Ingrid lhe mandara e, à tarde, falando com o seu advogado, um Sudetendeutscher,
que dois anos antes abrira em Cracóvia um escritório de advocacia civil. A entrevista reconfortou Oskar. O motivo de sua prisão era o que fora alegado; eles não
estavam utilizando seus beijos transraciais como pretexto pa ra retê-lo, enquanto investigavam os seus negócios.
Mas o caso irá provavelmente para o Tribunal da SS e irão perguntar-lhe por que você não se alistou no Exército.
O motivo é óbvio - respondeu Oskar. - Sou essencial ao es forço de guerra. Pode conseguir um depoimento do General Schindler.
Oskar era um leitor vagaroso e saboreou o livro de Karl May - o caçador e o filósofo índio na vastidão das florestas americanas - um relacionamento edificante. De
qualquer modo, não queria se apressar na leitura. Podia levar uma semana até ele ser conduzido perante um tribunal. O advogado supunha que haveria um discurso do
presidente do tribunal sobre a conduta deplorável de um membro da raça germânica, e lhe seria imposta uma multa substancial. Que assim fosse. Oskar Schindler sairia
do tribunal um homem mais cauteloso.
Na quinta manhã, ele já havia bebido o meio litro de café preto ersatz, que lhe tinham servido bem cedo, quando um NCO e dois guardas vieram buscá-lo. Caminhando
ao longo de portas mudas, ele foi levado para um dos gabinetes do andar de cima. Ali deparou com um homem, com quem tinha-se encontrado várias vezes em coquetéis,
o Obersturmbannführer Rolf Czurda, chefe do Serviço de Segurança de Cracóvia. Com seu terno bem-talhado, Czurda parecia um homem de negócios.
- Oskar, Oskar! - exclamou Czurda, como um velho amigoreprovando-o. - Nós lhe fornecemos aquelas judiazinhas a cinco
marcos por dia. Os seus beijos deviam ser para nós, não para elas.
Oskar explicou que tinha sido seu aniversário. Obedecera a um ímpeto. Estivera bebendo. Czurda abanou a cabeça.
Nunca pensei que você fosse tão importante, Oskar. Recebi te lefonemas até de Breslau, do nosso amigo na Abwehr. É claro que se ria ridículo mantê-lo afastado de
seu trabalho só porque se serviu de uma judia qualquer.
É muito compreensivo, Herr Obersturmbannführer - respondeu Oskar, sentindo que Czurda estava à espera de algum tipo de gratificação. - Se jamais eu estiver em posição
de retribuir o seu gesto liberal...
Por falar nisso, tenho uma velha tia cujo apartamento foi bombardeado.
Outra velha tia. Schindler deu um estalido compassivo com a língua e disse que um representante do chefe Czurda seria bem-vindo a qualquer hora na Rua Lipowa para
fazer uma seleção dos produtos ali fabricados. Porém, não convinha deixar que homens como Czurda considerassem a sua libertação como um favor absoluto - e os utensílios
de cozinha como o mínimo que o prisioneiro felizardo poderia oferecer. Quando Czurda falou que ele podia se retirar, Oskar fez objeção.
- Não posso simplesmente mandar vir o meu carro, Herr Obersturmbannfúher. Afinal, a minha quota de gasolina é limitada.
Czurda perguntou se Herr Schindler esperava que o Serviço de Se gurança o levasse em casa.
Oskar encolheu os ombros. O fato era que ele vivia do outro lado da cidade. Seria uma longa caminhada.
Czurda soltou uma risada.
- Oskar, vou mandar um dos meus motoristas levá-lo a casa.
Mas, quando a limusine estava pronta, com o motor em funcionamento, esperando-o ao pé da entrada principal, Schindler lançou um olhar para as janelas vazias acima,
esperando algum sinal daquela outra república, o reino da tortura, das prisões incondicionais - o
inferno daqueles que não tinham panelas e caçarolas para barganhar. Rolf Czurda deteve-o pelo cotovelo:
- Pondo de lado as brincadeiras, Oskar, meu caro amigo, vocêseria muito tolo se se interessasse mesmo por alguma saia judia. É umaraça sem futuro, Oskar.
Posso lhe garantir que não se trata apenas dovelho preconceito anti-semita. Trata-se de um plano de ação.
Capítulo 13
inda naquele verão, as pessoas cercadas pelos muros continuavam se agarrando à noção de que o gueto era um domínio res trito, porém permanente. Não era muito difícil
acreditar nessa noção no ano de 1941. Fora instalado um correio e havia até selos do gueto. Havia também um jornal, embora pouco mais contivesse do que editais de
Wawel e da Rua Pomorska. Fora permitido o funcionamen to de um restaurante na Rua Lwówska: o Restaurante Foerster, onde os irmãos Rosner, de volta dos perigos do
campo e das paixões mutáveis dos camponeses, tocavam violino e acordeão. Por um breve espaço de tempo, parecia que as escolas iriam funcionar normalmente, que orquestras
se reuniriam para concertos, que a vida judaica seria comunicada como uma organização benigna ao longo das ruas, de artesão para artesão, de professor para professor.
Não fora ainda definitiva mente manifestada a idéia pelos burocratas SS da Rua Pomorska de que tal tipo de gueto não era apenas uma extravagância como um insulto
às diretrizes racionais da História.
Assim, quando o Untersturmführer Brandt mandou chamar o presidente Artur Rosenzweig à Rua Pomorska para uma surra com o cabo de seu chicote de montaria, estava tentando
corrigir a incurável visão do judeu de considerar o gueto como uma zona de residência permanente. O gueto era um depósito, um desvio, uma estação de ônibus cercada
de muralhas. Em 1942, qualquer suposição que encorajasse outra perspectiva já havia sido abolida.
Assim, ali era diferente dos guetos que os velhos recordavam até com uma certa afeição. A música ali não era uma profissão. Não ha via profissões. Henry Rosner trabalhava
na cozinha da base aérea da Lufiwaffe. Lá tinha conhecido um jovem cozinheiro-gerente alemão
chamado Richard, um rapaz risonho que se escondia, como é possível a um cozinheiro, da história do século XX, no seu ambiente de cozi nha e gerência de bar. Ele
e Henry Rosner se deram tão bem que Richard passou a mandar o violinista até o outro lado da cidade para receber o pagamento do Corpo de Fornecedores da Luftwaffe
- não se podia confiar num alemão, dizia ele; o último cobrador tinha fugi do para a Hungria com o dinheiro do pagamento.
Richard, como acontece a um barman digno de seu ofício, ouvia boatos, e tinha relações amistosas com os funcionários da base aérea. No dia primeiro de junho, ele
foi ao gueto com sua namorada, uma Volks deuische, envolta numa ampla capa - que, em vista das chuvas de
junho, não parecia um agasalho excessivo. Devido à sua profissão, Richard conhecia muitos policiais, inclusive o Wachtmeister Oswald Bosko, e não teve problema
em ser admitido no gueto, ainda que oficialmente a entrada lhe fosse proibida. Uma vez transposto o portão, Richard atravessou a Plac Zgody e descobriu o endereço
de Henry Rosner. Este mostrou-se surpreso ao vê-los. Poucas horas antes, deixara Richard na base aérea e, no entanto, ali estava ele com a sua namorada, ambos vestidos
como para uma visita de cerimônia. Isso veio evidenciar para Henry as discrepâncias da época. Nos últimos dois dias, os habitantes do gueto se enfileiravam à porta
do edifício do velho Banco Polonês de Poupança na Rua Jozefinska a fim de obter novas carteiras de identidade. A kenn karte amarela, com a fotografia de passaporte
em sépia e um grande J azul, ao qual os funcionários alemães agora anexavam - se o judeu em questão estava com sorte - uma etiqueta azul. Havia pessoas que saíam
do banco, acenando com suas carteiras acrescidas da etiqueta azul, co mo se aquilo provasse o seu direito de respirar, a sua validade permanente. Os que trabalhavam
na base aérea da Luftwaffe, na garagem da Wehr macht, na fábrica de Madritsch, na Emalia de Oskar Schindler, na fábrica Progress, não tinham nenhum problema em receber
a Blauschein. Mas aqueles a quem ela era recusada sentiam como se até a sua cidadania no gueto estivesse sendo posta em dúvida.
Richard disse que o pequeno Olek Rosner devia ir para o aparta mento de sua namorada. Dava para perceber que ele tinha ouvido alguma coisa na base.
Olek não pode simplesmente sair pelo portão do gueto - disse Henry.
Já está tudo arranjado com Bosko - respondeu Richard.
Henry e Manci pareciam hesitar e consultaram-se mutuamente, enquanto a moça da capa prometia engordar Olek à custa de chocolate. Uma Aktion?, perguntou Henry Rosner
num sussurro. Ia haver uma Aktion?
Richard respondeu com outra pergunta. Recebera Henry o seu Blauscheinl Claro, respondeu Henry. E Manei? Manei também. Mas Olek não, acrescentou Richard. Ao cair
da tarde chuvosa, Olek Rosner, filho único do casal, mal tendo completado seis anos de idade, saiu do gueto escondido sob a capa da namorada de Richard. Se algum
policial tivesse se dado ao trabalho de erguer a capa, tanto Richard como sua namorada poderiam ter sido executados por causa daquele generoso estratagema. Olek
também teria desaparecido. Em seu quarto, sem o filho, os Rosner esperavam ter agido certo.
Poldek Pfefferberg, contrabandista de Oskar Schindler, tinha recebi do no começo do ano ordem de ensinar os filhos de Symche Spira, o importante vidraceiro, chefe
da OD.
Era uma ordem desdenhosa, como se Spira estivesse dizendo: "Sim, nós sabemos que você não serve para fazer o trabalho de um homem mas, pelo menos, pode transmitir
a meus filhos alguns dos benefícios de sua instrução."
Pfefferberg distraía Schindler com descrições das aulas no lar dos Symche. O chefe de polícia era um dos poucos judeus a ter todo um andar para si. Ali, entre pinturas
em duas dimensões de rabinos do século XIX, Symche andava de um lado para outro, ouvindo as aulas de Pfefferberg e parecendo querer ver os conhecimentos brotarem
co mo petúnias das orelhas dos filhos. Um homem predestinado, com a mão enfurnada na abertura do casaco, acreditava que aquela postura napoleônica era característica
de homens de influência.
A mulher de Symche era uma criatura apagada, um pouco aturdi da com o inesperado poder do marido, talvez evitada por antigos amigos. Os filhos, um menino de doze
anos e uma menina de quatorze, eram dóceis, porém não muito inteligentes.
De qualquer modo, quando Pfefferberg se dirigiu ao Banco Polonês de Poupança, esperava receber sem nenhum problema o seu Blaus chein. Tinha certeza de que as suas
aulas para os filhos de Spira seriam consideradas trabalho essencial. A carteira amarela identificava-o co mo PROFESSOR DE SEGUNDO GRAU e, num mundo racional, por
enquanto só parcialmente de pernas para o ar, era uma aptidão respeitável.
Os funcionários recusaram-se a entregar-lhe a etiqueta azul. Poldek discutiu com eles e pensou em apelar talvez para Oskar ou para Herr Szepessi, o burocrata austríaco
que, de um prédio mais adiante na mesma rua, chefiava a agência de trabalho. Havia um ano que Oskar lhe pedia que fosse trabalhar na Emalia, mas Pfefferberg sempre
achara que um horário integral iria restringir muito as suas atividades ilegais. Ao sair do prédio do banco, destacamentos da Polícia de Segurança Alemã, da Polícia
Azul Polonesa e o destacamento político da OD estavam em atividade nas calçadas, inspecionando as carteiras de todo mundo e prendendo os que não tinham a etiqueta
azul. Uma fila de rejeitados, homens e mulheres abjetos, já se formara no meio da Rua Josefinska. Pfefferberg adotou o seu porte de militar polonês e explicou que,
naturalmente, ele tinha vários ofícios. Mas o Schupo com quem falou simplesmente sacudiu a cabeça, dizendo: "Não discuta comigo; sem Blauschein; vá para a fila.
Está compreendido, judeu?"
Pfefferberg entrou na fila. Mila, a delicada e bonita jovem com quem ele se casara havia um ano e meio, trabalhava para a Madritsch e já tinha a sua Blauschein.
Portanto, nada a fazer.
Quando a fila contava mais de cem pessoas, desfilou pela rua, passando pelo hospital e indo até o pátio da antiga fábrica de confeitos Optima. Ali já esperavam trezentas
pessoas. Os que haviam chegado antes tinham-se abrigado nos cantos sombrios do que fora em outros tempos a estrebaria onde os cavalos da Optima costumavam ser arreados
entre os varais de carroças carregadas de cremes e chocolates de licor. Não era um grupo barulhento. Eram homens profissionais, banqueiros como os Holzer, farmacêuticos
e dentistas. Estavam reunidos em grupos, falando em voz baixa. O jovem farmacêutico Bachner
conversava com um velho casal de nome Wohl. Havia ali muita gente velha. Os velhos e pobres, que dependiam da ração do Judenrat. Nesse verão o próprio Judenrat,
distribuidor de alimentos e até de espaço, mostrara-se menos imparcial do que no ano anterior.
Enfermeiras do hospital do gueto moviam-se entre aqueles detentos com baldes de água, que se dizia ser um bom remédio para tensão e desnorteamento. De qualquer
forma, eram o único remédio que ha via, além de um pouco de cianureto do mercado negro, de que o hospital dispunha. Os velhos, as famílias pobres dos shtetls, aceitavam
a água em nervoso silêncio.
No decorrer do dia, policiais de três variedades entravam no pátio com listas e formavam filas de pessoas, que eram esperadas no portão do pátio por destacamentos
da SS e conduzidas para a Estação Ferro viária de Prokocim. Alguns procuraram escapar a essa nova transferência, mantendo-se nos cantos mais afastados do pátio.
Mas o estilo de Pfefferberg era rondar o portão, procurando alguém para quem pudesse apelar. Talvez Spira estivesse por lá, vestido como um ator de cinema e disposto
- com certa dose de grossa ironia - a soltá-lo. Mas o que viu foi, junto à guarita do vigia, um rapazola de fisionomia
triste com um boné da OD examinando uma lista, segurando a ponta da página com dedos delicados. Pfefferberg não só tinha servido durante um breve espaço de tempo
com o rapaz na OD, como tinha, no seu primeiro ano de professor na Escola Secundária de Kosciuszko em Podgórze, dado aulas à irmã dele. O rapaz ergueu os olhos.
Panie Pfefferberg... - murmurou ele, com o mesmo respeito dos dias do passado. Como se o pátio estivesse cheio de criminosos empedernidos, perguntou o que Panie
Pfefferberg estava fazendo ali.
E ridículo - disse Pfefferberg -, mas não tenho uma Blauschein.
O rapaz abanou a cabeça, disse a Poldek que o acompanhasse e levou-o à presença de um Schupo uniformizado ao portão. Não pare cia muito heróico com o seu cômico
boné da OD, o fino e vulnerável pescoço. Mais tarde, porém, Pfefferberg chegou à conclusão de que aquilo lhe dera maior credibilidade.
- Apresento-lhe Herr Pfefferberg, do Judenrat - mentiu ele,com uma hábil combinação de respeito e autoridade. - Estava aquivisitando uns parentes.
O Schupo parecia entediado com a quantidade de trabalho no pá tio. Com um gesto negligente da mão, deu permissão a Pfefferberg para sair. Pfefferberg não teve tempo
de agradecer ao rapaz ou de refletir sobre o mistério de um jovem de pescoço fino se dispor a correr um risco de morte, mentindo para salvá-lo, só por ter ele ensinado
sua irmã a usar argolas de ginástica.
Pfefferberg correu diretamente para a agência de trabalho e furou a fila de espera. Atrás da mesa estavam Fràuleins Skoda e Knosal la, duas joviais alemãs sudetas.
- Liebchen, Liebchen - disse ele a Skoda - querem me levarembora porque eu não tenho a etiqueta azul. Olhe para mim. - (Eletinha a constituição de um touro,
era jogador de hóquei em seu paíse pertencia ao time de esqui polonês.) - Não sou exatamente o tipode sujeito que vocês gostariam de manter aqui?
Apesar da multidão que não lhe dera descanso o dia todo, Skoda ergueu as sobrancelhas e esforçou-se por conter um sorriso.
Não posso ajudá-lo, Herr Pfefferberg - respondeu ela, exa minando a Kennkarte do rapaz. - Não recebeu a etiqueta azul, por isso não posso fazer nada. Uma pena...
Mas pode me dar a etiqueta, Liebchen - insistiu ele em voz alta, adotando o tom sedutor de novelas de rádio. - Tenho ofícios Liebchen. Muitos ofícios.
Skoda ponderou que somente Herr Szepessi poderia ajudá-lo, e era impossível Szepessi receber Pfefferberg naquele momento. Leva ria dias.- Mas vai conseguir
que eu fale com ele - insistiu Pfefferberg.De fato, ela conseguiu. Era por isso que tinha a reputação de ser
uma boa moça, porque se abstraía do turbilhão de regulamentos e podia, mesmo num dia de muita movimentação, dar atenção a um rosto individual Todavia, era pouco
provável que se esforçasse do mesmo modo por um velho verruguento.
Herr Szepessi gozava também de uma reputação de humanidade, embora estivesse a serviço daquela máquina monstruosa; relanceando um olhar à carteira de Pfefferberg,
murmurou:
- Mas não precisamos de professores de ginástica.Pfefferberg sempre tinha recusado os oferecimentos de emprego
de Oskar porque se considerava especulador, um individualista. Não queria trabalhar longas horas por uma ninharia na enfadonha Zablo cie. Mas se dava conta agora
de que estava desaparecendo a era do individualismo. As pessoas precisavam, como base de vida, de um ofício.
- Sou um polidor de metais - declarou ele a Szepessi. Tinhatrabalhado por um curto período com um tio de Podgórze, que dirigiauma pequena fábrica de metais
em Rekawka.
Herr Szepessi examinou Pfefferberg por detrás dos óculos.
- Bem, esta é uma profissão. - Apanhou uma caneta e passouum risco no PROFESSOR DE ENSINO SECUNDÁRIO, cancelandoa educação universitária de que tanto Pfefferberg
se orgulhava; acimaescreveu POLIDOR DE METAIS. Depois apanhou um carimbo e umpote de cola e tirou de uma gaveta a etiqueta azul. - Pronto -
concluiu ele, devolvendo o documento a Pfefferberg - agora, se,
encontrar um Schupo, pode garantir-lhe que você é um membro útil dasociedade
Mais tarde, naquele ano, mandariam o pobre Szepessi para Auschwitz por se deixar persuadir tão facilmente.
Capítulo 14
D
e diversas fontes - do policial Toffel bem como do bêbado Bosch da Ostfaser, a operação têxtil da SS - Oskar ouvia rumores de que "condutas no gueto" (de significado
dúbio) iam se tornar mais intensas. A SS estava mandando vir de Lublin para Cracóvia algumas unidades do violento Sonderkommando. Em Lublin es sas unidades já tinham
efetuado um excelente trabalho em questões de purificação racial. Toffel sugerira que, a não ser que Oskar quisesse prejudicar sua produção, devia instalar alguns
leitos de campanha para o seu turno da noite, até depois do primeiro Sabbath, em junho.
Assim Oskar organizou dormitórios nos escritórios e no andar acima, na seção de munições. Alguns empregados do turno da noite ficavam felizes por poder dormir na
fábrica. Outros tinham mulher, filhos, parentes esperando-os no gueto. Além disso, estavam munidos da Blaus chein, a santa etiqueta azul, em suas Kennkartes.
No dia 3 de junho, Abraham Bankier, o gerente de escritório de Oskar, não compareceu à Rua Lipowa. Schindler ainda estava em seu apartamento na Rua Straszewskiego,
tomando o café da manhã, quando recebeu um telefonema de uma de suas secretárias. Dizia ter visto Bankier sendo conduzido para fora do gueto, sem sequer parar na
Optima, e encaminhado diretamente para o posto da Prokocim. Outros empregados da Emalia faziam também parte do grupo, Reich, Leser... cerca de uns doze.
Oskar mandou vir seu carro da garagem e seguiu direto para Prokocim. Ali mostrou o seu passe aos guardas do portão. O pátio do posto estava cheio de fileiras de
vagões de carga, a estação repleta de cidadãos dispensáveis do gueto, documente enfileirados, ainda convenci dos - e talvez tivessem razão - da conveniência de uma
atitude passiva
e disciplinada. Era a primeira vez que Oskar via aquela justaposição de seres humanos em vagões de carga para gado e o choque foi maior do que imaginava; fez parar
a composição à beira da plataforma. Avistou, então, um joalheiro seu conhecido.
Viu Bankier? - perguntou ele.
Ele já está dentro de um dos vagões, Herr Schindler - respondeu o joalheiro.
Para onde vocês estão sendo levados?
Dizem que para um campo de trabalho. Perto de Lublin. Provavelmente não será pior do que... - O homem fez um gesto com a mão, indicando Cracóvia.
Schindler tirou dos bolsos um maço de cigarros e algumas cédulas de 10 zlotys e deu ao joalheiro. Este agradeceu e disse que dessa vez haviam sido obrigados a deixar
suas casas, sem bagagem alguma. Os guardas haviam dito que as bagagens lhes seriam remetidas depois.
Em fins do ano anterior, Schindler tinha visto no Boletim de Orçamento e Construção da SS propostas para a construção de alguns fornos crematórios no campo de Belzec,
a sudeste de Lublin. Schindler fitou o joalheiro. Sessenta e três ou quatro anos. Um pouco magro; provavelmente tivera uma pneumonia no inverno passado. Terno puído,
quente demais para aquele dia. E nos claros olhos compreensivos a capacidade de suportar altas doses de sofrimento. Mesmo no verão de 1942 era impossível imaginar
conexões entre um homem como aquele e os tais fornos de extraordinária capacidade cúbica. Tencionavam eles provocar epidemias entre os detentos? Qual iria ser o
método?
Começando pela locomotiva, Schindler passou a percorrer a com posição de mais de vinte vagões de carga, chamando Bankier pelo no me, procurando vê-lo entre as grades
ou no alto das ripas dos vagões. Era uma sorte para Abraham que Oskar não perguntasse a si mesmo por que estava chamando pelo nome Bankier, que não tivesse parado
para considerar que o nome Bankier tinha apenas um valor igual a to dos os outros nomes a bordo dos vagões de gado do Ostbahn. Um existencialista poderia ter sido
derrotado pelos números na Prokocim, atordoado pelo igual apelo de todos os nomes e vozes. Mas Schindler era um inocente filosófico. Conhecia a quem conhecia. Conhecia
o no me de Bankier.
- Bankier! Bankier! - continuou ele a chamar.
Foi, então, interceptado por um jovem Oberscharführer SS, um técnico de Lublin em cargas ferroviárias. Ele pediu para ver o passe de Schindler. Oskar viu na mão
do SS uma lista enorme - páginas e páginas cheias de nomes.
- Meus empregados - disse Schindler. - Trabalhadores essenciais na minha indústria. O meu gerente de vendas. É uma idiotice. Tenho contratos com a Inspetoria
de Armamentos e vocês estão levando o pessoal de que preciso para cumprir esses contratos.
- Não pode retirá-los daqui - respondeu o SS. - Eles estão nalista... - O SS sabia que a lista implicava o mesmo destino a todosos seus componentes.
Oskar baixou a voz, adotando o sussurro áspero de um homem moderado, bem relacionado, que não estava ainda disposto a lançar mão de todos os seus trunfos. Por acaso
Herr Oberscharführer sabia quanto tempo levaria para treinar pessoal especializado, em
substituição aos da lista?
- Na minha Deutsche Email Fabrik, tenho uma seção de
munições sob a proteção especial do General Schindler, meu homônimo.Não somente os camaradas do Oberscharführer na frente russa serãoafetados pelo prejuízo da
produção, mas também o escritório da
Inspetoria de Armamentos na certa vai exigir explicações.
O rapaz abanou a cabeça - era apenas um exausto encarregado da operação de embarque.
- Já ouvi antes esse tipo de história.
Estava, porém, preocupado. Oskar o percebeu e continuou debruçado sobre ele, inserindo uma ameaça em seu tom suave.
- Não tem sentido continuar discutindo sobre a lista. Onde estáo seu oficial superior?
O rapaz apontou com a cabeça um oficial da SS, um homem de uns trinta anos, de testa franzida acima dos óculos.
- Quer me dar o seu nome, Herr Untersturmführer?. - pediuOskar, já tirando do bolso um bloco de apontamentos.
0 oficial também declarou que a lista era intocável. Para ele, era o único processo seguro, racional, para toda aquela trituração de judeus e movimento de vagões.
Mas Schindler agora estava mais incisivo. Já sabia a respeito da lista, disse ele. O que tinha perguntado era o nome do Untersturmführer. Sua intenção era apelar
diretamente pa ra o Oberführer Scherner e para o General Schindler, da Inspetoria de Armamentos.
Schindler? - perguntou o oficial. Pela primeira vez olhou com mais atenção para Oskar. O homem estava vestido como um magnata, usava a insígnia certa, tinha generais
na família.
Creio que posso lhe garantir, Herr Untersturmführer - continuou Oskar com voz macia -, que dentro de uma semana o senhor estará no sul da Rússia.
Com o NCO seguindo na frente, Herr Schindler e o oficial caminharam lado a lado entre as fileiras de prisioneiros e junto aos vagões lotados. A locomotiva já estava
soltando vapor e o engenheiro debruçado para fora da cabine, olhando, à espera da ordem de partida. O oficial ordenou aos funcionários do Ostbahn na plataforma que
esperassem. Por fim, chegaram a um dos últimos vagões da composição. Havia ali uma dúzia de trabalhadores com Bankier; tinham todos entrado juntos no vagão, como
se estivessem à espera de uma libertação em conjunto. A porta foi destrancada e eles saltaram para fora - Bankier e Frankel, do escritório; Reich, Leser e os outros,
da fábrica. Mostraram-se comedidos, não querendo permitir a ninguém ver a sua alegria por terem sido salvos daquela viagem. Os que tinham ficado dentro do vagão
demonstraram satisfação, como se fosse uma sorte para eles viajar com mais espaço, enquanto que, com enfáticos riscos de caneta, o oficial eliminava da lista, um
a um, os nomes dos empregados da Emalia e solicitava a rubrica de Oskar em cada página.
Depois de Schindler ter agradecido e se voltado para seguir seus empregados, o oficial deteve-o pela manga do casaco.
- Herr Schindler, quero que compreenda que para nós é
indiferente. Não nos importamos se é esta ou aquela dúzia de gente.
O oficial, que estivera de sobrolho cerrado, quando Oskar o vira pela primeira vez, agora parecia calmo, como se houvesse descoberto o teorema por trás da situação.
Acha que os seus treze míseros funileiros são importantes? Nós os substituiremos por outros míseros treze e todo o seu sentimentalismo por causa deles ruirá por
terra.
- É inconveniência para a lista, apenas isso - explicou o oficial.
O baixote e rotundo Bankier admitiu que o grupo todo não se ti nha dado ao trabalho de ir buscar as Blauscheins no velho Banco de Poupança Polonês. Schindler, subitamente
irado, mandou que eles tomassem as providências necessárias. Mas o que a sua irritação
escondia era a consternação de ver toda aquela gente que, por falta de uma etiqueta azul, estava ali na Prokocim, esperando pelo novo e decisivo símbolo de seu
status, o vagão de gado, para ser puxado pela pesada locomotiva através da amplitude de sua visão. Era como se os vagões lhes dissessem: agora vocês todos são gado.
Capítulo 15
os rostos dos seus próprios empregados, Oskar podia ler algo do tormento do gueto. Lá, uma pessoa não tinha tempo para respirar, espaço para se abrigar, não podia
fazer valer seus hábitos ou praticar rituais de família. Muitos retraíam-se e encontravam uma espécie de conforto suspeitando de todos os outros - das pessoas que
compartilhavam seus cômodos tanto quanto do OD na rua. Mas o fato era que nem os mais equilibrados tinham certeza de em quem confiar. "Cada morador", escreveu um
jovem artista sobre as casas no gueto, "tem o seu próprio mundo de segredos e mistérios." Crianças de repente se calavam, ao ouvir um estalido nas escadas. Adultos
acordavam sobressaltados com pesadelos de exílio, de desapropriação, e se viam exilados e desapropriados numa sala repleta em Podgórze - os mesmos eventos de seus
pesadelos, o próprio gosto do medo de seus pesadelos, encontrando continuidade nos pavores do dia. Rumo reshorripilantes perseguiam-nos em seus quartos, nas ruas,
no local de trabalho. Spira tinha outra lista que era duas ou três vezes mais longa do que a última. Todas as crianças seriam mandadas para Tarnow para serem fuziladas,
Stutthof para serem afogadas, Breslau para serem doutrinadas, desarraigadas, operadas. Você tem algum parente idoso? Eles estão enviando todos acima de cinqüenta
anos para as minas de sal de Wieliczka. Para trabalhar? Não, para serem trancafiados em câmaras em desuso.
Todos esses boatos, muitos dos quais Oskar tinha ouvido, se pro pagavam muito rapidamente impulsionados pelo instinto humano de impedir o mal expressando-o através
de palavras, tentando interceptar os destinos, mostrando aos algozes que se podia ter tanta imaginação quanto eles. Mas naquele mês de junho, todos os piores pesadelos
e
boatos adquiriram uma forma concreta e os rumores mais inimagináveis transformaram-se em cruel realidade.
Ao sul do gueto, além da Rua Rekawka, havia pastagens montanhosas, lugar ermo como os espaços vazios do cerco de uma cidade sitiada como se vê em pinturas medievais,
permitindo descortinar a mu ralha sul do gueto. À medida que se percorria a cavalo a crista das colinas, o mapa do gueto ia-se delineando, de maneira que era possível
ver o que se passava nas ruas abaixo.
Schindler havia notado essa particularidade do local quando na primavera saíra a cavalo com Ingrid. Agora, chocado com o que vira no posto de Prokocim, decidiu repetir
o passeio. Na manhã seguinte ao resgate de Bankier, alugou cavalos numa estrebaria no Parque Bed narskiego. Ele e Ingrid estavam impecavelmente vestidos, com longos
casacos fendidos nas costas, calças de montaria e botas reluzentes. Dois Sudeten louros, espiando do alto o alvoroçado formigueiro do gueto.
Atravessaram bosques e, num rápido galope, percorreram campi nas. Das suas selas podiam ver agora, na Rua Wegierska, uma multidão aglomerada na esquina do hospital
e, logo adiante, um esquadrão da SS agindo com cães, entrando nas casas, as famílias despejadas pa ra a rua, envergando capotes apesar do calor, na antecipação de
uma ausência prolongada. Ingrid e Oskar estacaram as montarias à sombra de árvores e observaram a cena, começando a notar os pormenores de toda aquela movimentação.
Os OD armados de cassetetes trabalhavam com os SS. Alguns membros daquela polícia judaica pareciam muito animados, pois em poucos minutos, lá do alto da colina,
Oskar via três mulheres relutantes serem espancadas nos ombros. A princípio, ele sentiu uma cólera ingênua. Os SS estavam usando judeus para espancar judeus. Contido,
no decorrer do dia se convenceu de que alguns dos OD espancavam seus patrícios para salvá-los de coisas piores. E, de qualquer maneira, havia um novo regulamento
para o OD: se deixasse de despejar uma família, a sua própria família seria despejada.
Schindler notou também que na Rua Megierska estavam constantemente se formando duas filas. Uma estacionaria; a outra, à medida que ia se alongando, era conduzida
em segmentos e, depois de dobrar a esquina da Rua Jozefinska, desaparecia de vista. Não era difícil interpretar essa movimentação, pois Schindler e Ingrid, escondidos
pelos pinheiros e tendo-se colocado acima do gueto, estavam a uma distância de apenas uns dois ou três curtos quarteirões, de onde se desenrolava a Aktion.
As pessoas eram enxotadas dos apartamentos, separadas à força em duas filas, sem serem levados em consideração os laços de família. Filhas adolescentes, com os papéis
em ordem, iam para a fila estática,gritando para suas mães mais idosas colocadas na outra fila. Um trabalhador de turno noturno, ainda meio estonteado por lhe terem
per turbado o sono, foi conduzido para uma fila, enquanto a mulher e a filhinha iam para outra.
No meio da rua, o rapaz discutia com um policial OD. Estava dizendo: "Dane-se a Blauschein! Quero ir com Eva e minha filha."
Um SS armado interveio. Em contraste com a massa anônima de Ghettomenschen, o militar, com seu uniforme de verão muito bem-passado, parecia soberbamente alimentado
e disposto. E da colina, podia-se ver o reflexo do óleo em sua pistola automática. O SS
desfechou um golpe na orelha do judeu e pôs-se a falar com ele aos berros. Schindler, ainda que não pudesse ouvi-lo, tinha certeza de que eram frases que ouvira
antes, na Estação de Prokocim. "Não faz a menor diferença para mim. Se quer acompanhar a sua nojenta prostituta judia, pode ir!" O rapaz foi levado de uma fila para
a outra. Schindler víu-o correr e ir abraçar a mulher; aproveitando a confusão causada por aquele ato de lealdade conjugai, outra mulher esgueirou-se para dentro
de uma porta, e não foi vista pelo Sonderkommando SS.
Oskar e Ingrid viraram seus cavalos, cruzaram uma avenida deserta e chegaram a uma plataforma de pedra que ficava bem defronte da Rua Krakusa. Mais de perto, essa
rua parecia menos turbulenta do que a Wegierska. Uma fila de mulheres e crianças, não tão extensa, estava sendo conduzida em direção à Rua Piwna. Um guarda caminhava
na frente, outro fechava a fila. Havia um desequilíbrio na com posição: muito mais crianças em relação às poucas mulheres da fila que poderiam ser suas mães. No
final, caminhando com passinhos
titubeantes, como que aprendendo a andar, uma criança, menino ou me nina, vestida com um casaquinho e gorro encarnados. O que atraiu a atenção de Schindler foi que
na cor estava implícita uma afirmação, da mesma forma que na discussão do trabalhador do turno da noite na Rua Wegierska. A afirmação tinha a ver, naturalmente,
com uma paixão pelo vermelho.
Schindler consultou Ingrid. Era certamente uma meninazinha, explicou ela. Meninas se deixavam obcecar por uma cor, sobretudo uma cor viva como o vermelho.
Enquanto eles observavam a cena, um Waffen SS, no final da coluna, de vez em quando estendia a mão para corrigir a direção daquela mancha encarnada. O gesto não
era violento - ele poderia ter sido um irmão mais velho. Se os seus superiores lhe houvessem dito que procurasse apaziguar a preocupação sentimental dos civis, não
pode ria ter agido melhor. Assim a ansiedade moral dos dois cavaleiros no Parque Bedmarskiego abrandou irrefletidamente por uns poucos segundos. Mas a impressão
reconfortante foi breve. A certa distância da coluna de mulheres e crianças, que se afastavam, e que a garotinha de vermelho fazia serpentear, turmas da SS com cães
agiam de cada lado da rua.
Eles invadiam os apartamentos fétidos; como sinal evidente da sua pressa, uma valise voou da janela de um segundo andar e se escancarou na calçada. E correndo na
frente dos cães, homens, mulheres e crianças, que se haviam escondido em sótãos e armários, dentro de cômodas sem gavetas, os evadidos da primeira onda da busca,
saíam pa ra a calçada, gritando, ofegantes de pavor dos ferozes cães dobermanns. Tudo parecia se passar em grande velocidade e era quase impossível acompanhar com
os olhos do alto da colina aquela movimentação. Os que emergiam eram fuzilados, onde tinham parado na calçada, projetados no ar com o impacto das balas, espirrando
sangue nos bueiros. Uma mãe e seu filho, talvez de uns oito anos, talvez de uns dez subnutridos, tinham-se abrigado sob o peitoril de uma janela no lado esquerdo
da Rua Krakusa. Schindler sentiu um medo intolerável por eles, um tal terror em seu próprio sangue que lhe afrouxou as pernas na sela e quase o derrubou do cavalo.
Olhou para Ingrid e viu que as mãos dela apertavam com força as rédeas. Podia ouvi-la a seu lado, protestando e suplicando.
Os olhos de Schindler agora se fixaram na garotinha de vermelho da Rua Krakusa. A cena se passava a uma distância de meio quarteirão dela; não tinham esperado que
a coluna dobrasse a esquina e seguisse pela Rua Jozefinska. A princípio, Schindler duvidara das intenções daqueles assassinos. Mas, agora, ali estava a prova flagrante,
que ninguém poderia ignorar, de quais eram as suas intenções. Quando a menina de vermelho parou de seguir sua coluna e voltou-se para olhar, eles acertaram um tiro
no pescoço da mulher. O menino
soluçante deixou-se escorregar junto à parede; um SS então firmou-lhe a cabeça com a bota, encostou-lhe o cano do revólver na nuca - postura recomendada pela SS
- e disparou o tiro.
Oskar tornou a olhar para a garotinha de vermelho. Ela se volta ra e vira a bota calcar o pescoço do menino. Já se fizera um espaço entre ela e o penúltimo da coluna.
De novo o guarda SS encaminhou-a fraternalmente para a coluna, dando-lhe nas costas um pequeno
empurrão. Schindler não podia compreender por que ele não a golpeara com o cano de sua espingarda, já que na outra extremidade da Rua Krakusa a compaixão era inexistente.
Por fim, Schindler deixou-se escorregar do cavalo, tropeçou e caiu de joelhos abraçado ao tronco de um pinheiro. Sentiu que precisava conter a ânsia de vomitar o
seu excelente café de manhã, pois suspeitava que o seu corpo instintivamente procurava abrir espaço para digerir os horrores da Rua Krakusa.
A infâmia de homens nascidos de mulheres e que tinham de escrever cartas para suas famílias (o que diziam nessas cartas?) não era o pior aspecto do que Schindler
presenciara. Sabia que eles não tinham vergonha alguma do que estavam fazendo, pois o guarda na retaguarda da coluna não vira necessidade de impedir a garotinha
de vermelho de assistir a toda a cena. Mas o pior era que, se não havia a menor vergonha, isso significava sanção oficial. Ninguém mais podia encontrar segurança
na idéia de cultura alemã, nem nos pronunciamentos de líderes, que condenavam homens anônimos por terem ultrapassado seus limites, ou por olharem pelas janelas de
seus escritórios para a realidade na rua. Oskar tinha visto na Rua Krakusa uma prova da política de seu governo, que não podia ser justificada como uma aberração
temporária. Acreditava que os SS estavam cumprindo as ordens de seu líder pois, do contrário, o colega na retaguarda da coluna não teria deixado uma criança assistir
à cena.
Mais tarde, nesse dia, depois de ter ingerido uma dose de conhaque, Oskar compreendeu o teorema em seus termos mais claros. Eles permitiam testemunhas, testemunhas
tais como a garotinha de verme lho, porque julgavam que as testemunhas iam todas também perecer.
Na esquina da Plac Zgody (Praça da Paz) ficava a Apotheke de Ta deus Pankiewicz. Era uma farmácia no estilo antigo: ânforas de porcelana com letreiros de nomes em
latim de velhos remédios e umas poucas centenas de delicadas gavetinhas muito lustradas escondiam dos habitantes de Podgórze a complexidade de sua farmacopéia. O
farmacêutico Pankiewicz vivia no andar de cima da farmácia por permissão das autoridades e a pedido dos médicos das clínicas do gueto. Era o único polonês com licença
para permanecer dentro dos muros do gueto. Homem calmo, de quarenta e poucos anos, possuía interesses intelectuais: o impressionista polonês Abraham Neumann, o compositor
Mordche Gebirtig, o filósofo Leon Steinberg e o cientista e filósofo Dr. Rappaport eram todos visitas assíduas de Pankiewicz. A casa era também um elo, uma caixa
de correio para informações e mensagens entre o Organização Judaica de Combate (ZOB) e os combatentes do Exército do Povo Polonês. O jovem Dolek Liebeskind, Shimon
e Gusta Dranger, organizadores da ZOB de Cracóvia, às vezes apareciam ali, porém sempre discretamente. Era importante não comprometer Ta deus Pankiewicz com seus
planos que - ao contrário da política de cooperação do Judenrat - implicava uma vigorosa e inequívoca resistência.
A praça defronte da farmácia de Pankiewicz tornou-se naqueles primeiros dias de junho um pátio de concentração. "Era indescritível", repetia sempre mais tarde Pankiewicz,
referindo-se à Praça da Paz. No centro da praça as pessoas eram reclassificadas e recebiam ordem de deixar para trás suas bagagens. "Não, não, vamos remetê-las a
todos vocês!" Contra o muro no lado direito da praça, aqueles que resistiam e aqueles que eram descobertos, levando nos bolsos qualquer documento ariano forjado,
eram fuzilados, sem nenhuma explicação ou desculpa às pessoas arregimentadas no centro. O estarrecedor estampido dos fuzis fraturava conversas e esperanças. Contudo,
apesar dos gritos e choro dos parentes das vítimas, algumas pessoas - chocadas ou desesperadamente concentradas em se manter com vida - pareciam quase não notar
o montão de cadáveres. Quando surgiam os caminhões e os mortos eram jogados na carroceria pelos destacamentos de judeus, os que tinham restado na praça imediatamente
recomeçavam a falar de seus futuros. E Pankiewicz então tornava a ouvir o que estivera ouvindo o dia inteiro dos NCO da SS: "Posso lhe afirmar, minha senhora, que
vocês, judeus, vão trabalhar. Acha que estamos em condições de desperdiçar tanta mão-de-obra?" O desejo desesperado de acreditar se estampava nos rostos daquelas
mulheres. E os soldados rasos da SS que tinham acabado de efetuar as execuções contra o muro, caminhavam por entre a multidão e aconselhavam às pessoas a colocar
etiquetas em suas bagagens.
De Bednarskiego, Oskar Schindler não conseguira avistar a Praça Zgody. Mas tanto Pankiewicz na praça, como Schindler na colina jamais testemunharam um horror tão
frio. Como Oskar, Pankiewicz sentiu náuseas; seus ouvidos estavam cheios de um silêncio irreal, como se ele houvesse levado uma pancada na cabeça. Sentia-se tão
confuso com os ruídos e a selvageria que não notou entre os mortos da praça os seus amigos Gebirtig, compositor de canções famosas, e o suave artista Neumann. Médicos
começaram a invadir a farmácia, ofegantes, tendo percorrido correndo os dois quarteirões que separavam a farmácia do hospital. Queriam bandagens - tinham estado
arrastando das ruas os feridos. Um médico entrou, pedindo eméticos, pois na multidão havia umas doze pessoas sufocadas ou letárgicas por terem ingerido cianureto.
Um engenheiro conhecido de Pankiewicz tinha colocado uma daquelas pílulas na boca, aproveitando um momento de distração de sua mulher.
O jovem Dr. Idek Schindel, que trabalhava no hospital do gueto na esquina da Rua Wegierska, ouviu uma mulher gritar histericamente que as crianças estavam sendo
levadas. Ela as vira enfileiradas na Rua Krakusa, e entre elas Genia. Schindel deixara Genia nessa manhã com vizinhos - ele era o seu guardião no gueto, pois os
pais dela continuavam no campo, tencionando esgueirar-se de volta para dentro do gueto até aquele momento considerado menos perigoso. Nessa manhã, Genia, sempre
independente, tinha-se afastado da mulher encarregada de olhá-la e retornado à casa onde morava com o seu tio. Lá, os SS a tinham prendido. Fora assim que Oskar
Schindler, do alto da colina, tinha notado a presença de Genia, sem ninguém a acompanhando, na coluna da Rua Krakusa.
Despindo seu jaleco de cirurgião, o Dr. Schindel correu para a praça e quase imediatamente viu sua sobrinha, sentada na grama, cercada por uma parede de guardas
e afetando tranqüilidade. O Dr. Schindel sabia que aquela calma era fingida por ter muitas vezes levantado durante as noites para acalmar os terrores de Genia.
Contornou a periferia da praça, e ela o viu. "Não me chame", queria ele dizer. "Vou dar um jeito." Procurava evitar uma cena, que acabaria mal para ambos. Mas não
precisava se preocupar, pois não se notava na expressão dos olhos da criança indício algum de tê-lo re conhecido. Deteve-se, assombrado com a admirável astúcia da
meninazinha. Aos três anos de idade, ela sabia bem que não devia recorrer ao consolo imediato de gritar por um tio. Sabia que não havia salvação alguma, se atraísse
a atenção dos SS sobre tio Idek.
Ele estava compondo mentalmente o discurso que tencionava fazer para o troncudo Oberscharführer postado junto ao muro de execução. Não convinha abordar as autoridades
com muita humildade ou através de algum subalterno. Tornando a olhar para Genia, viu nos seus olhos uma ligeira piscadela; então, com enorme sangue-frio, ela passou
entre dois guardas a seu lado, varando o cordão de isolamento. Afastou-se com uma lentidão tão exasperante que, naturalmente, gal vanizou o olhar de seu tio. Mais
tarde, cerrando os olhos, freqüente mente ele via a imagem de Genia passando por entre a floresta de botas reluzentes dos SS. Na Praça Zgody ninguém a viu. Ela manteve
o seu passinho, meio titubeante meio brejeiro, em todo o percurso até a farmácia de Pankiewicz e dobrou a esquina. O Dr. Schindel reprimiu o impulso de bater palmas:
ainda que aquela proeza merecesse uma platéia, seria pela sua própria natureza destruída pelos espectadores.
Idek sentiu que não podia ir diretamente atrás da sobrinha sob pena de despertar a atenção para a façanha dela. Contendo seu impulso natural, ele acreditou que o
instinto que a tinha feito escapulir da Praça Zgody a levaria a encontrar um esconderijo. Assim, retornou ao hospital por outro caminho.
Genia voltou ao quarto da frente na Rua Krakusa, que partilhava com o tio. A rua agora estava deserta; se uns poucos judeus ainda ali se achavam, seja por um ardil
ou por paredes falsas, não davam demonstração de sua presença. Ela entrou na casa e escondeu-se debaixo da cama. Da esquina da rua, Idek, voltando a casa, viu os
SS, numa última busca, baterem na porta. Mas Genia não respondeu. Nem responderia ao tio, quando ele próprio chegou. Mas ele sabia onde procurar, na fresta entre
a cortina e o caixilho da janela; viu, então, reluzindo na esqualidez do quarto, a botinha vermelha sob a bainha da colcha da cama.
Àquela hora, naturalmente, Schindler já tinha devolvido o cavalo à estrebaria. Não estava na colina para assistir ao pequeno, porém significativo, triunfo da volta
da garotinha de vermelho ao local de onde antes havia sido retirada pelos SS. Já se achava no seu gabinete na DEF, fechado a chave, sem coragem de contar o ocorrido
ao turno do dia. Bem mais tarde, em termos nada característicos do jovial Herr Schindler, o conviva predileto das festas de Cracóvia, o perdulário de Za-blocie,
isto é, em termos que revelavam - por trás da fachada de playboy - um juiz implacável, Oskar tomou naquele dia uma decisão da qual não mais se afastaria. "A partir
daquele dia", diria ele mais tarde, "ninguém, com capacidade de raciocinar, poderia deixar de ver o que iria acontecer. E agora eu estava resolvido a fazer tudo
em meu poder para derrotar o sistema."
Capítulo 16
A
SS prosseguiu com suas atividades no gueto até a noite de sábado. Operava com aquela eficiência que Oskar tivera ocasião de observar nas execuções da Rua Krakusa.
Era difícil predizer as suas investidas e as pessoas que escaparam na sexta-feira eram apanhadas no sábado. Genia sobreviveu à semana, graças ao seu talento precoce
de manter o silêncio e de, vestida de vermelho, ser imperceptível. Em Zablocie, Schindler não ousava acreditar que a garotinha de vermelho havia sobrevivido aos
métodos da Aktion. Através de Toffel e outros conhecidos da central de polícia na Rua Pomorska, ele soube que 7.000 pessoas haviam sido postas para fora do gueto.
Um funcionário da Gestapo no Escritório de Questões Judaicas estava radiante de poder confirmar a "limpeza". Entre os burocratas da Rua Pomorska, a Aktion de junho
foi considerada um sucesso.
Oskar agora pesquisava com mais precisão a respeito dessa espécie de informações. Sabia, por exemplo, que a Aktion estivera sob a supervisão geral de um certo Wilhelm
Kunde mas fora chefiada pelo Obersturmführer SS Otto von Mallotke. Oskar não mantinha nenhum dossiê mas estava se preparando para outra ocasião, em que faria um
relatório completo para Canaris ou para o mundo inteiro. Por enquanto, ele investigava fatos que no passado tinha classificado como demências temporárias. Conseguia
suas informações exatas não só através de contatos com a polícia mas também de judeus esclarecidos como Stern. As informações vindas de outros locais da Polônia
chegavam ao gueto geralmente através da farmácia de Pankiewicz ou transmiti das por membros do Exército do Povo. Dolek Liebeskind, líder do Grupo de Resistência
Akiva Halutz, também trazia notícias de outros guetos, em virtude do seu cargo de oficial itinerante no Auto-Auxílio
Comunitário Judaico, uma organização cujo funcionamento os alemães - de olho na Cruz Vermelha - permitiam.
De nada adiantava transmitir ao Judenrat esses dados. O Conselho do Judenrat não considerava aconselhável, do ponto de vista civil, informar os habitantes do gueto
sobre os campos. As pessoas certamente se apavorariam; haveria desordens nas ruas, as quais não ficariam sem punição. Era sempre melhor que aquela gente só ouvisse
boatos não-confirmados, presumisse que se tratava de exageros e conservasse suas esperanças. Essa tinha sido a atitude da maioria dos conselheiros judeus, mesmo
sob a direção do honesto Artur Rosenzweig. Mas Rosenzweig não estava mais lá. O caixeiro-viajante David Gutter, ajudado pelo seu sobrenome germânico, logo seria
nomeado presidente do Judenrat. Rações de alimentos eram agora desviadas não apenas por membros da SS mas também por Gutter e seus novos conselheiros, cujo vicário
nas ruas era Symche Spira com suas botas altas. O Judenrat, portanto, não tinha mais interesse algum em informar os habitantes do gueto sobre os seus prováveis destinos,
já que estavam confiantes de que eles próprios não estariam incluídos nas listas fatídicas.
O início da elucidação para o gueto e do recebimento de informações positivas por Oskar foi a volta a Cracóvia (oito dias depois de ter sido embarcado na Estação
do Prokocim) do jovem farmacêutico Bachner. Ninguém sabia como Bachner conseguira retornar ao gueto ou compreendia o mistério de ele ter voltado a um local do qual
a SS simplesmente o obrigaria a uma outra jornada. Mas era, naturalmente, o desejo de se ver entre conhecidos que fizera Bachner voltar.
Em toda a extensão da Rua Lwówska e nas ruas atrás da Praça Zgody, ele ia espalhando a sua história. Tinha assistido ao horror final. Seu olhar era alucinado e,
durante a curta ausência, seus cabelos tinham embranquecido. Toda a gente de Cracóvia que fora arrebanhada em princípios de junho tinha sido levada para o campo
de Belzec, próximo à fronteira russa. Quando os trens chegavam na estação ferro viária, as pessoas eram postas para fora dos vagões por ucranianos armados de cacetes.
Havia no ar um cheiro horrível mas um SS tinha bondosamente informado que o cheiro provinha do uso de desinfetantes. As pessoas eram enfileiradas defronte de dois
grandes armazéns, um marcado VESTIÁRIO e o outro OBJETOS DE VALOR. Os recém-chegados recebiam ordem de se despirem e um menino judeu passava pelas filas distribuindo
pedaços de barbante para que fossem amarrados os pares de sapatos. Óculos e anéis eram recolhidos. Assim, despidos, os prisioneiros em seguida tinham suas cabeças
raspadas na barbearia, e eram informados por um NCO SS que seus cabelos eram necessários para fabricar algo para as tripulações de submarinos. O cabelo tornaria
a crescer, dissera ele, mantendo o mito da perene utilidade dos prisioneiros. Por fim, eram encaminhados por uma passagem ladeada de cercas de arame farpado para
casamatas toscas, marcadas com estrelas-de-davi de cobre e os letreiros SALAS DE BA NHO E INALAÇÃO. Em todo o percurso os SS tranqüilizavam suas vítimas, dizendo-lhes
que respirassem profundamente, que era um excelente meio de desinfecção. Bachner viu uma meninazinha deixar cair no chão uma pulseira, que um garoto de três anos
apanhou e entrou na casamata brincando com a jóia.
Uma vez lá dentro, relatou Bachner, foram todos asfixiados com gases venenosos. E, mais tarde, turmas entraram nos recintos para desmanchar a pirâmide de corpos
e levá-los para serem enterrados. A operação toda levara menos de dois dias, disse Bachner, e todos, exceto ele, estavam mortos. Enquanto esperava em um cercado
pela sua vez, ele tinha conseguido esgueirar-se para dentro de uma latrina e entrado na fossa. Ali passara três dias com excrementos humanos até o pescoço, com o
rosto coberto de moscas. Tinha dormido em pé, apoiado na parede da fossa, com medo de se afogar. Aproveitando o escuro da noite, escapulira lá de dentro.
Não sabia bem como conseguira fugir de Belzec, seguindo o leito da estrada de ferro. Todos compreenderam que Bechner pudera esca par precisamente porque estivera
em estado de transe. E porque a mão de alguém - talvez de uma camponesa - o limpara e lhe dera roupas para a sua jornada de volta ao ponto de partida.
Apesar de tudo, havia pessoas em Cracóvia que consideravam a narrativa de Bachner um boato perigoso. De alguns prisioneiros do campo de Auschwitz tinham chegado
cartões-postais para parentes. Por tanto, o que acontecera em Belzec não podia ser verdade em Auschwitz. E era para acreditar? Tão escassas eram as rações emocionais
do gueto que as pessoas só podiam manter seu equilíbrio acreditando numa lógica.
Pelas suas fontes de informação, Schindler descobriu que as câmaras de Belzec tinham sido terminadas em março daquele ano, sob a supervisão de uma firma de engenharia
de Hamburgo e engenheiros da SS de Oranienburg. Pelo testemunho de Bachner, ao que parecia, 3.000 matanças por dia eram o cálculo da capacidade das câmaras. Crematórios
estavam sendo construídos, para o caso de o meio tradicio nal de dispor de cadáveres pudesse provocar um atraso no novo método de extermínio. A mesma companhia em
atividade em Belzec instalara facilidades idênticas em Sobibor, também no distrito de Lublin. Ha viam sido abertas concorrências e as construções estavam muito avançadas
para instalações similares em Treblinka, perto de Varsóvia. E câmaras de gás e fornos se achavam ambos em funcionamento no campo principal de Auschwitz e no vasto
campo Auschwitz II, a poucos quilômetros de Birkenau. A Resistência afirmava que 10 mil assassinatos por dia estavam dentro da capacidade de Auschwitz II. E, para
a área de Lodz, havia o campo em Chelmno, também equipado de acordo com a nova tecnologia.
Relatar agora tais ocorrências é repetir lugares-comuns da Histó ria. Mas para alguém que viesse a saber delas em 1942, vê-las desabar sobre sua cabeça era um choque
fundamental, um tumulto na área do cérebro onde as idéias estáveis se alojam. Naquele verão, por toda a Europa alguns milhões de pessoas, Oskar entre elas, e também
os habitantes do gueto de Cracóvia, ajustaram tortuosamente as reservas de suas almas à idéia de Belzec e outros campos semelhantes nas florestas polonesas.
Naquele verão, Schindler arrematou também a massa falida da Rekord e, de acordo com as provisões do Tribunal Comercial Polonês, adquiriu, numa espécie de leilão
pro forma, o título de propriedade da fábrica. Embora os exércitos alemães tivessem cruzado o Don e es tivessem avançando para os campos de petróleo do Cáucaso,
Oskar previa, pelo que presenciara na Rua Krakusa, que no final a vitória não podia ser deles. Portanto, era uma boa época para legitimar ao máximo a sua posse da
fábrica na Rua Lipowa. E ainda tinha esperança, de um modo quase infantil, de que a História não iria levar em consideração a queda do rei perverso, no sentido de
anular aquela legitimidade - que na nova era ele continuaria sendo o filho bem-sucedido de Hans Schindler, que chegara a Cracóvia proveniente de Zwittau.
Jereth, da fábrica de embalagens, continuava pressionando-o pa ra construir uma cabana - um refúgio - no seu terreno baldio. Oskar obteve dos burocratas as necessárias
autorizações. O seu pretexto era um local de repouso para o seu turno da noite. Tinha a madeira para a construção, doada pelo próprio Jereth.
Depois de terminada no outono, a cabana parecia uma frágil e desconfortável estrutura. As tábuas eram de madeira ainda verde co mo a de caixotes e davam a impressão
de que iriam encolher, quando fossem escurecendo e deixando penetrar a neve por entre suas frestas. Mas durante uma Aktion em outubro foi um abrigo para Jereth e
sua mulher, para os operários da fábrica de embalagens e da de radiadores, e para o turno da noite de Oskar.
O Oskar Schindler, que sai de seu gabinete nas manhãs gélidas de uma Aktion para falar com o membro da SS, com o auxiliar ucraniano, com a Polícia Azul e com o destacamento
da OD, que teriam marchado de Podgórze para escoltar o seu turno da noite; o Oskar
Schindler que, enquanto toma seu café, telefona para o escritório do Wachttneister Bosko próximo ao gueto e prega uma mentira a respeito da necessidade de seu turno
da noite permanecer essa manhã na Rua Lipowa - esse Oskar está se comprometendo agora além dos limites de negócios cautelosos. Os homens influentes que, por duas
vezes, o tiraram da prisão não poderiam fazê-lo indefinidamente, embora Oskar se mostre generoso nos aniversários deles. Nesse ano, eles estavam mandando homens
influentes para Auschwitz. Se eles morrem lá, suas viúvas recebem um telegrama seco e ingrato do comandante: SEU MARIDO MORREU EM KONZENTRATIONSLAGER AUSCHWITZ.
Bosko era desengonçado, mais magro do que Oskar, ríspido e, co mo ele, um tcheco-alemão. Sua família, como a de Oskar, era conservadora e adepta dos velhos valores
germânicos. Por um breve espaço de tempo, ele tinha sentido uma expectativa exaltada de pan germanismo com a subida ao poder de Hitler, exatamente como Beethoven
sentira um grande fervor europeu por Napoleão. Em Viena, onde estivera estudando teologia, ele entrara para a SS - em parte como uma alternativa que o desobrigava
do recrutamento da Wehrmacht, em parte devido a um evanescente ardor. Arrependia-se agora desse ardor e estava expiando-o mais do que Oskar presumia. Só o que Oskar
percebia em Bosko era que ele sempre parecia satisfeito em solapar uma Aktion. Era responsável pelo perímetro do gueto e de seu escritório fora da muralha via a
Aktion com positivo horror, pois, co mo Oskar, ele se considerava uma testemunha potencial.
Oskar não sabia que durante a Aktion de outubro Bosko tinha contrabandeado algumas dúzias de crianças dentro de caixas de papelão. E tampouco sabia que o Wachtmeister
fornecia dezenas de passes para o movimento de resistência. A Organização Judaica de Combate (ZOB) era forte em Cracóvia. Compunha-se sobretudo de membros de clubes
juvenis, especialmente de membros do Akiva - um clube assim nomeado em homenagem ao lendário Rabino Akiva ben Joseph, um erudito da Mishna. A ZOB era liderada por
um casal, Shimon e Gusta Dranger - o diário dela iria tornar-se um clássico da Resistência - e por Dolek Liebeskind. Seus membros necessitavam entrar e sair livremente
do gueto, levando dinheiro em espécie, documentos forjados e exemplares do jornal da Resistência. Tinham contatos com o Exército Polonês do Povo, de tendência esquerdista,
que se abrigava nas florestas nos arredores de Cracóvia e que também precisava dos documentos que Bosko fornecia. Portanto, os contatos de Bosko com a ZOB e o Exército
do Povo eram motivo suficiente para enforcá-lo; mas secretamente ele continuava desprezando a si mesmo e prosseguia com a sua participação incompleta nas atividades
de salvamento. Pois Bosko queria salvar a todos, e era o que em breve tentaria, e por causa disso seria morto.
Danka Dresner, prima da Genia de vermelho, tinha quatorze anos e já não possuía mais o instinto infantil que levara a sua priminha a escapulir do cordão de isolamento
na Praça da Paz. Embora tivesse trabalho como faxineira na base da Luftwaffe, a ordem era que, naquele outono, toda mulher com menos de quinze ou mais de trinta
anos podia ser levada para um campo de concentração.
Assim, na manhã em que um Sonderkommando SS e grupos da Polícia de Segurança penetraram na Rua Lwówska, a Sra. Dresner levou Danka à Rua Dabrowski, para a casa de
uma vizinha que possuía uma parede falsa. A vizinha, mulher de trinta e alguns anos, trabalhava num rancho da Gestapo perto do Castelo de Wawel, portanto podia esperar
um tratamento privilegiado. Mas seus pais eram idosos, o que constituía automaticamente um risco. Ela então construíra com tijolos, uma cavidade de 60 centímetros,
um esconderijo para seus pais, empreendimento dispendioso, pois os tijolos tinham sido contrabandeados para dentro do gueto em carrinhos de mão sob montes de artigos
permitidos - trapos, lenha, desinfetantes. Só Deus sabia o que lhe ti nha custado aquele espaço secreto - talvez cinco, talvez dez mil zlotys.
Várias vezes ela mencionara o abrigo à Sra. Dresner. Se houvesse uma Aktion, a Sra. Dresner podia ir para lá com Danka. Portanto, na manhã em que Danka e a Sra.
Dresner ouviram da esquina da Rua Dabrowski o ruído assustador, o latir de dálmatas e dobermanns, a vociferação dos Oberscharführers nos megafones, as duas se apressa
ram em ir para a casa da amiga.
Depois de subir as escadas e chegar ao quarto do esconderijo, elas constataram que o clamor havia provocado uma reação em sua amiga.
- Parece que vai ser muito perigoso - disse a mulher. - Meuspais já estão escondidos lá. Posso esconder sua filha, mas você não...
Danka olhava aturdida para a parede com o papel florido manchado. Lá dentro, comprimidos entre tijolos, talvez com ratos passeando em seus pés, o nervosismo aumentado
pela escuridão, se escondiam os pais idosos da mulher.
A Sra. Dresner podia ver que sua amiga estava sendo irracional.
- A menina, mas não você - repetia ela, como se pensasse que,se a SS descobrisse a parede falsa, seria menos severa devido ao pesomenor de Danka.
A Sra. Dresner explicou que mal podia ser chamada de gorda, que a Aktion parecia estar se concentrando naquele lado da Rua Lwówska e que ela não tinha para onde
ir. E que caberia ali dentro. Danka era uma menina em quem se podia confiar mas se sentiria mais segura com a mãe a seu lado. Visivelmente, medindo a parede com
os olhos, quatro pessoas podiam muito bem caber na cavidade. Mas disparos a uma distância de dois quarteirões acabaram por obliterar por completo o raciocínio da
mulher.
- Posso esconder a menina! - gritou ela. - Mas quero que você vá embora!
A Sra. Dresner voltou-se para Danka e lhe disse que entrasse no esconderijo. Mais tarde Danka não ia compreender como pudera obedecer à mãe e entrar docilmente no
esconderijo. A mulher levou-a ao sótão, afastou um tapete do assoalho, depois ergueu um alçapão de madeira. Danka desceu então para o interior da cavidade. Não estava
escuro lá dentro; o casal de velhos acendera um toco de vela. Danka viu-se ao lado de uma mulher - não era sua mãe mas, sob o odor de roupa usada, havia um protetor
cheiro maternal. A mulher deu-lhe um rápido sorriso. O marido estava na outra extremidade, mantendo os olhos fechados, não querendo se deixar perturbar pelos ruídos
lá fora.
Depois de alguns instantes, a mulher fez-lhe sinal de que ela podia sentar-se, se quisesse. Danka então agachou-se e encontrou uma posição confortável no chão do
abrigo. Nenhum rato veio incomodá-la. Não ouvia som algum - nem uma só palavra de sua mãe e da amiga do outro lado da parede. Acima de tudo, sentia-se inesperadamente
segura. E com a sensação de segurança veio o desagrado consigo mesma por ter obedecido tão docilmente à ordem da mãe, depois temeu por sua mãe, pelo que poderia
lhe acontecer lá fora, no mundo das Aktionen.
A Sra. Dresner não saiu imediatamente da casa. Os SS estavam agora na Rua Dabrowski. Achou que seria melhor continuar ali; se a apanhassem, não causaria prejuízo
à sua amiga. Podia até ser que a ajudasse. Se eles tirassem uma mulher daquele quarto, provavelmente ia aumentar-lhes a satisfação de tarefa cumprida, evitar que
inspecionassem com mais atenção o estado do papel de parede.
Mas a mulher estava convencida de que ninguém iria sobreviver à busca, se a Sra. Dresner permanecesse no quarto; esta, por sua vez, percebia que ninguém estaria
a salvo, se a mulher continuasse naquele es tado de histeria. Assim, levantou-se, calmamente aceitando a sua sorte, e saiu. Eles a encontrariam nas escadas ou na
entrada. Por que não na rua? Era um regulamento tácito que os nativos do gueto deviam permanecer trêmulos em seus quartos até serem descobertos, que qualquer pessoa
descendo escadas era de certa forma culpada de desafio ao sistema.
Uma figura de boné impediu-a de sair. Apareceu na entrada, apertando os olhos no corredor escuro para enxergar na fria claridade azulada do pátio ao fundo. Fitando-a,
ele a reconheceu; ela também o reconheceu. Era um companheiro de seu filho mais velho, mas não se podia ter certeza de que isso tivesse algum valor, não se podia
saber o quanto eram pressionados os jovens da OD. O rapaz entrou e aproximou-se dela.
- Pani Dresner - sussurrou ele e apontou para o poço da
escada. - Em dez minutos eles terão partido. Fique debaixo da escada.Depressa!
Tão documente quanto sua filha lhe obedecera, ela fez como o jovem OD lhe ordenara. Agachou-se debaixo das escadas mas sabia que não adiantaria. A claridade outonal
do pátio a revelava. Se eles quisessem revistar o pátio ou fossem até a porta do apartamento no final do corredor, não deixariam de vê-la. Como também ficar de pé
ou agacha da não fazia diferença. Levantou-se. Da porta da frente, o OD insistiu para que ela não saísse dali. Depois ele se foi. Ouviu berros, ordens e súplicas,
e tudo lhe pareceu estar acontecendo ali ao seu lado.
Por fim, o OD retornou com os outros. Ela ouviu o ruído das botas entrando pela porta da frente. Ouviu-o dizer em alemão que tinha revistado o andar térreo e que
não havia ninguém em casa. Mas no andar de cima havia quartos ocupados. Era tão prosaica a sua conversa com os SS, que pareceu à Sra. Dresner não fazer justiça ao
perigo a que ele estava se expondo. Estava arriscando sua existência contando com a probabilidade de os SS, já tendo vasculhado a Rua Lwówska e chegando até aquele
trecho da Rua Dabrowski, cometerem o desleixo de não revistar eles próprios o andar térreo, deixando assim de
encontrar a Sra. Dresner escondida debaixo dos degraus.
Mas os SS acabaram por aceitar a palavra do jovem OD. Ela os ouviu abrindo e batendo portas no primeiro andar, com as botas pisando forte no assoalho do quarto da
cavidade. Ouviu a voz estridente de sua amiga...
- É claro que tenho a minha carteira, trabalho no rancho da
Gestapo, conheço todos os cavalheiros.
Ouviu-os descer do segundo andar com alguém, com mais de uma pessoa; um casal, uma família. "Estão me substituindo", pensou. Uma voz masculina meio cansada, com
um arfar de bronquite, disse:
- Mas, meus senhores, certamente podemos levar conosco
algumas roupas.
E, num tom tão indiferente quanto o de um carregador de estação ferroviária dando uma informação de horário, o SS respondendo-lhe em polonês:
- Não há necessidade de levar nada. Lá para onde vocês vão,eles fornecem tudo.
Os ruídos recuaram. A Sra. Dresner esperou. Não veio uma nova onda. A segunda onda seria amanhã ou depois. Agora voltariam sempre, vasculhando o gueto. O que em
junho parecera um horror supre mo, em outubro já se tornara um processo de rotina. E por mais gratidão que sentisse pelo jovem OD, ao subir as escadas para ir bus
car Danka, ela sabia que quando o assassinato é programado, habitual, uma indústria, como ali em Cracóvia, não havia maneira, mesmo com tentativas heróicas, de desviar
o rumo devastador do sistema. Os mais ortodoxos do gueto tinham um refrão: "Uma hora de vida é ainda vida." O jovem OD lhe dera aquela hora. Ela sabia que ninguém
mais lhe daria outra.
No quarto, sua amiga estava meio envergonhada.
- A menina pode vir sempre que quiser - disse ela; mas o quequeria dar a entender era: "Não excluí você por covardia, mas por
prudência. E meu ponto de vista continua o mesmo. A menina pode seraceita, você não."
A Sra. Dresner não discutiu - ela percebia que a atitude da mulher fazia parte da mesma equação que a salvara no andar térreo. Agradeceu à amiga. Talvez Danka precisasse
aceitar de novo a sua hospitalidade.
Dali em diante, como não parecesse ter os seus quarenta e dois anos e ainda tivesse boa saúde, a Sra. Dresner tentaria sobreviver naquela base - a base econômica,
o valor putativo de sua capacidade de trabalho para a Inspetoria de Armamentos ou qualquer outro setor do esforço de guerra. Não tinha muita confiança na perspectiva.
Naqueles dias, qualquer um com um vislumbre de compreensão já devia saber que a SS acreditava que a morte do judeu era socialmente inapelável, ultrapassava qualquer
valor que ele pudesse ter como um item de trabalho. E a questão era em tal época: Quem salva Juda Dresner, operária de fábrica? Quem salva Janek Dresner, mecânico
na garagem da Wehrmacht? Quem salva Danka Dresner, faxineira na Lufíwaffe, na manhã em que a SS finalmente resolva ignorar-lhes o valor
econômico?
Enquanto o jovem OD estava providenciando a sobrevivência da Sra. Dresner embaixo da escada na Rua Dabrowski, os sionistas da Juventude Halutz Youth e a ZOB preparavam
um ato de resistência mais concreto. Tinham conseguido uniformes dos Waffen SS e, assim disfarçados, adquiriram o direito de visitar o Restaurante Cyganeria reservado
à SS na Praça Ducha, defronte do Teatro Slowacki. No Cyganeria eles deixaram uma bomba, que fez voar as mesas pelo telhado, reduziu a fragmentos sete membros da
SS e feriu cerca de quarenta.
Quando Oskar soube do ocorrido, pensou que poderia ter estado lá, adulando algum SS.
Era a intenção deliberada de Shimon e Gusta Dranger e seus companheiros agirem contra o tradicional pacifismo do gueto, convertê-lo numa rebelião universal. Colocaram
uma bomba no Bagatella Cine ma, reservado só para a SS, na Rua Karmelicka. Na escuridão de uma rua, Leni Riefenstahl acenou com uma promessa de feminilidade germânica
para um soldado desgastado de executar sua tarefa nacional no gueto ou nas ruas cada vez mais perigosas da Cracóvia polonesa, e no instante seguinte uma vasta chama
amarela o extinguiu.
Nos próximos meses a ZOB iria afundar lanchas de patrulhamento no Vístula, incendiar diversas garagens militares por toda a cidade, providenciar Passierscheins para
pessoas que não tinham direito de possuí-los, contrabandear fotografias de passaporte para centros, onde podiam ser usadas para falsificar documentos arianos, descarrilar
o elegante trem, de uso exclusivo do Exército, que fazia o percurso entre Cracóvia e Bochnia, e distribuir o seu jornal clandestino. Iria tam bém arranjar para que
dois dos auxiliares OD do Chefe Spira, Spitz e Foster, que haviam preparado listas de milhares de prisioneiros, caís sem numa emboscada da Gestapo. Era uma variação
de um velho truque de estudantes. Um dos membros da ZOB, fazendo-se passar por informante, marcou encontro com dois policiais numa aldeia nas
proximidades de Cracóvia. Ao mesmo tempo um outro suposto informante avisou à Gestapo que dois líderes do movimento clandestino judaico poderiam ser encontrados
num determinado local. Spitz e Forster foram ambos metralhados enquanto fugiam do fogo da Gestapo.
Contudo, o estilo de resistência para os habitantes de guetos permanecia o mesmo que o de Artur Rosenzweig; quando lhe disseram em junho que fizesse uma lista de
milhares de conterrâneos seus para serem deportados, colocou o seu próprio nome, o de sua mulher e o da sua filha em primeiro lugar na lista.
Em Zablocie, no terreno baldio nos fundos da Emalia, o Sr. Jereth e Oskar Schindler estavam prosseguindo com o seu estilo próprio de resistência, construindo uma
segunda caserna.
Capítulo 17
Um dentista austríaco de nome Sedlacek tinha chegado a Cracóvia e estava fazendo perguntas cautelosas sobre Schindler. Viera de trem de Budapeste e trazia consigo
uma lista de possíveis contatos em Cracóvia; numa valise de fundo falso, uma quantidade de zlotys de ocupação, que, como o Governador-Geral Frank abolira as denominações
majoritárias da moeda polonesa, tomava um espaço despropositado.
Embora pretendesse fazer ver que estava viajando a negócio, fazia as vezes de correio para uma organização sionista de resgate em Budapeste.
Ainda no outono de 1942, os sionistas da Palestina e, sobretudo, os vários povos do mundo, apenas tinham conhecimento dos rumores que corriam sobre o que estava
se passando na Europa. Os primeiros haviam instalado um escritório em Istambul para captar informações mais exatas. De um apartamento no bairro de Beyoglu dessa
cidade, três agentes enviavam cartões-postais endereçados a cada grupo sionista na Europa germânica. Os cartões diziam: "Por favor, mande me dizer como vai. Eretz
está ansiosa por notícias suas." Eretz significava "o mundo" e, para qualquer sionista, Israel. Todos os cartões eram assinados por um dos três agentes, uma jovem
chamada Sarka Man delblatt, que possuía uma conveniente cidadania turca.
Nenhum dos cartões tivera resposta. Isso significava que os destinatários estavam presos, escondidos nas florestas, em algum campo de trabalho, em um gueto ou mortos.
Só o que os sionistas de Istambul obtiveram foi uma tenebrosa prova negativa de silêncio.
Em fins do outono de 1942, finalmente, eles receberam uma resposta, um cartão com uma vista dos Belvaros de Budapeste. A mensagem era: "O seu interesse pela minha
situação é encorajante. Raha mim maher (auxílio urgente) é muito necessário. Por favor, mantenha-se em contato."
Essa resposta havia sido composta por um joalheiro de Budapeste chamado Samu Springmann, que recebera e conseguira decifrar a mensagem do cartão-postal de Sarka
Mandelblatt. Samu era um homem franzino, estatura de jóquei, trinta e poucos anos. Desde os treze, apesar de uma probidade inalienável, ele vinha bajulando funcionários,
fazendo favores ao corpo diplomático, subornando a opressiva Polícia Secreta da Hungria. Agora o grupo de Istambul informou-o de que queria utilizá-lo para canalizar
dinheiro para dentro do império ale mão e, através dele, transmitir ao mundo informações positivas sobre o que estava acontecendo com os judeus europeus.
Na Hungria do General Horthy, aliado dos alemães, Samu Spring mann e seus companheiros sionistas viviam tão privados quanto os de Istambul de notícias fidedignas
sobre o que se passava do outro lado das fronteiras polonesas. Mas ele começou a recrutar correios que, por uma percentagem sobre a quantia transportada, ou por
simples
convicção, estavam dispostos a penetrar em território alemão. Um desses correios era um negociante em pedras preciosas, Erich Popescu, um agente da Polícia Secreta
húngara. Outro era um contrabandista de ta petes, Bandi Grosz, que também trabalhara para a polícia secreta mas que passara a servir Springmann para expiar o desgosto
que tinha causado à sua falecida mãe. Um terceiro era Rudi Schulz, um arrombador de cofres austríaco e agente do Escritório Administrativo da Gestapo em Stuttgart.
Springmann tinha o dom de manobrar agentes duplos tais como Popescu, Grosz e Schulz, apelando para o seu sentimentalis mo, a sua ganância e, acaso os tivessem, os
seus princípios.
Alguns dos correios eram idealistas e trabalhavam por premissas firmes. Sedlacek, que no final de 1942 andava fazendo perguntas sobre Schindler, era um deles. Tinha
um bem-sucedido consultório dentário em Viena e, com quarenta e poucos anos, não necessitava estar transportando valises de fundo falso para a Polônia. Mas ali estava
ele, com uma lista no bolso, uma lista que lhe viera de Istambul E o segundo nome mencionado era o de Oskar!
O que significava que alguém - Itzhak Stern, o comerciante Gin ter ou o Dr. Alexander Biberstein - tinha enviado o nome de Schindler para os sionistas na Palestina.
Sem o saber, Herr Schindler havia sido nomeado para o posto de um justo.
O Dr. Sedlacek tinha um amigo na guarnição militar da Cracóvia, um seu cliente e conterrâneo vienense. Era o Major Franz Von Korab, da
Wehrmacht. Na sua primeira noite em Cracóvía, o dentista encontrou-se com o Major Von Korab no Hotel Cracóvia para tomarem um drinque. Sedlacek tivera um dia melancólico;
fora até o cinzento Vístula, donde avistara, na outra margem, o Podgórze, a fria fortaleza de ara me farpado e os altos muros construídos com lápides de sepulturas.
Uma nuvem de opacidade fora do normal pairava sobre aquele gélido dia de inverno e uma chuva fina caía além do falso portão oriental, onde até os policiais pareciam
míseras criaturas. Depois daquela vi são, foi com alívio que ele se dirigiu para o hotel, a fim de encontrar-se com Von Korab.
Nos subúrbios de Viena, sempre haviam circulado rumores de que Von Korab tinha uma avó judia. Clientes do dentista mencionavam isso ocasionalmente - no Reich, comentários
sobre a genealogia das pessoas eram tão comuns quanto falar sobre o tempo. Em meio a ro dadas de bebidas, especulava-se muito seriamente se era verdade que a avó
de Reinhard Heydrich tinha-se casado com um judeu chamado Suss. Certa vez, contra todas as precauções de bom senso, devido à amizade entre os dois, Von Korab confessara
a Sedlacek que, no seu caso, o boato era verdadeiro. A confissão fora uma prova de confiança, que agora não haveria perigo em corresponder. Assim, Sedlacek perguntou
ao major sobre os nomes na lista de Istambul. A menção do nome de Schindler, Von Korab respondeu com uma risada indulgente. Conhecia Herr Schindler, já jantara com
ele. Fisicamente, era um magnífico tipo de homem, informou o major, e ganhava rios de dinheiro. Muito mais esperto do que fingia ser. Podia telefonar imediatamente
a Schindler e marcar uma entrevista com ele.
Às dez horas da manhã seguinte, eles entraram no escritório da Emalia. Schindler recebeu polidamente Sedlacek, mas observou o Major Von Korab, estranhando a confiança
dele no dentista. Após algum tempo, Oskar mostrou-se mais amistoso com o estranho e o major se desculpou por não poder ficar para o café.
- Muito bem - disse Sedlacek, depois da partida de Von Ko rab. - Vou lhe dizer exatamente o motivo de eu estar aqui.
Não mencionou o dinheiro que trouxera consigo, nem a probabilidade de, no futuro, serem entregues a contatos de confiança na Polônia pequenas fortunas provenientes
das reservas do Comitê Judaico de Partilha. O que o dentista queria saber, independente de qualquer fator financeiro, era o que Herr Schindler sabia e pensava sobre
a guerra contra o povo judeu na Polônia.
Uma vez formulada a pergunta de Sedlacek, Schindler hesitou. Durante um instante, Sedlacek pensou que a pergunta iria ficar sem resposta. Em fase de expansão, a
oficina de Schindler empregava 550 judeus alugados pela SS. A Inspetoria de Armamentos garantia a um homem como Schindler uma continuidade de contratos substanciais;
e a SS prometia-lhe, por uma diária de apenas 7.50 reichmarks por pessoa, uma continuidade de escravos. Não seria surpreendente se ele se recostasse na poltrona
estofada de couro e afetasse ignorância.
Existe um problema, Herr Sedlacek - retorquiu ele. - Seguinte: o que eles estão fazendo com o povo judeu neste país é inacreditável.
Está querendo dizer - perguntou o Dr. Sedlacek - que re ceia que os meus superiores não acreditem na sua palavra?
Eu mesmo mal posso acreditar - disse Schindler; levantando se, foi até o aparador de bebidas, serviu duas doses de conhaque e es tendeu uma ao Dr. Sedlacek. Depois
de franzir a testa para uma fatura que apanhara em cima de sua mesa, dirigiu-se para a porta na ponta dos pés e escancarou-a bruscamente, como para apanhar em flagrante
algum bisbilhoteiro. Ficou um instante parado na soleira da porta. Se dlacek ouviu-o, então, falar calmamente em polonês com sua secretária a respeito da fatura.
Momentos depois, fechando a porta, ele voltou para junto de Sedlacek, sentou-se na sua poltrona detrás da mesa e, após um prolongado gole de conhaque, começou a
falar.
Até mesmo na pequena célula de Sedlacek, seu clube vienense antinazista, não se imaginava que a perseguição aos judeus tornara-se tão sistemática. Não somente a
história que Schindler lhe contava era as sustadoramente primária em termos morais, como lhe pediam que acre ditasse que, em meio de uma batalha desesperada, os
nacionalsocialistas empregavam milhares de homens, os recursos de preciosas estradas de ferro, técnicas de engenharia dispendiosas, uma parcela fatídica dos seus
cientistas e pesquisadores, uma vasta burocracia, arsenais inteiros de armas automáticas, uma profusão de depósitos de munições, todo esse potencial para um extermínio,
que não tinha nenhum objetivo militar ou econômico mas um mero objetivo psicológico. Dr. Sedlacek tinha esperado apenas histórias de horror - fome, restrições econômicas,
pogroms violentos em uma ou outra cidade, violações de propriedade - todas as arbitrariedades historicamente habituais.
O sumário de Oskar dos eventos na Polônia convenceu Sedlacek precisamente por causa do tipo de homem que era o seu informante: um homem que tinha ganho muitos lucros
na ocupação abancado no centro de sua própria colméia, com um copo de conhaque na mão. Apresentava ao mesmo tempo uma impressionante superfície calma e uma cólera
fundamental. Era como um homem que, para seu pesar, descobre que é impossível deixar de acreditar no pior. Narrava os fatos sobriamente, sem nenhuma tendência ao
exagero.
- Se eu puder conseguir-lhe um visto - disse Sedlacek -, estádisposto a ir a Budapeste relatar aos meus superiores e a outros o queacaba de me contar?
Schindler pareceu momentaneamente surpreendido.
- Pode escrever um relatório, Herr Sedlacek - disse ele. -
Certamente já ouviu de outras fontes a espécie de fatos que lhe contei.
Sedlacek, porém, respondeu que não; tinha ouvido histórias individuais, detalhes de um ou outro incidente. Mas nenhuma descrição global.
Venha a Budapeste - insistiu Sedlacek. - Mas devo avisá-lo de que não será uma viagem confortável.
Está querendo dizer que tenho de atravessar a fronteira a pé?
Não, não será tão ruim assim - disse o dentista. - Mas tal vez tenha de viajar num trem de carga.
Eu irei - declarou Oskar Schindler.
O Dr. Sedlacek perguntou sobre os outros nomes da lista de Istambul. No alto da lista, por exemplo, figurava um dentista de Cracóvia. Dentistas eram sempre contatos
fáceis, explicou Sedlacek, já que não havia ninguém no mundo que não tivesse pelo menos uma cárie bona fide.
- Não - avisou Herr Schindler -, não procure esse homem.Ele está comprometido com a SS.
Antes de partir de Cracóvia e retornar ao Sr. Springmann em Budapeste, o Dr. Sedlacek teve outro encontro com Oskar. No gabinete da DEF, ele lhe entregou quase todo
o dinheiro que Springmann o encarregara de levar para a Polônia. Havia sempre um risco, em vista da tendência hedonista de Schindler, de que ele gastasse a quantia
em jóias no mercado negro. Mas nem Springmann nem Istambul pediam quaisquer garantias. Ser-lhes-ia de todo impossível desempenhar o papel de inspetores.
É preciso dizer que Oskar se portou impecavelmente e entregou o dinheiro aos seus contatos na comunidade judaica, para que o usas sem de acordo com o que julgassem
conveniente.
Mordecai Wulkan que, como a Sra. Dresner, iria mais tarde conhecer Herr Schindler, era joalheiro por profissão. Agora, no final do ano, ele foi visitado em sua casa
por um dos OD políticos de Spira. Não se tratava de nenhum problema, explicou o OD. Sem dúvida, Wulkan tinha uma ficha na polícia. Um ano antes, o OD o apanhara
vendendo dinheiro em espécie no mercado negro. Quando ele se recusara a trabalhar como agente do Escritório de Controle da Moeda, tinha sido espancado pelo SS, e
a Sra. Wulkan tivera de ir procurar o Wachtmeister Beck na delegacia da polícia do gueto e pagar um suborno pa ra seu marido ser solto.
No mês de junho desse ano, ele tinha sido preso, devendo ser trans portado para Belzek; mas um OD seu conhecido conseguira retirá-lo do pátio da Optima. Como se
vê, havia sionistas na OD, por menores que fossem as suas chances de vir um dia a conhecer Jerusalém.
O OD que o visitou dessa vez não era de forma alguma um sionista. Disse a Wulkan que a SS necessitava urgentemente de quatro joalheiros. Tinham dado a Symche Spira
três horas para encontrá-los. Dessa maneira Herzog, Friedner, Grüner e Wulkan, quatro joalheiros, haviam sido levados à delegacia da OD no gueto e posteriormente
encaminhados à antiga Academia Técnica, agora um armazém para o Escritório Central de Economia e Administração da SS.
Era óbvio a Wulkan, ao entrar na Academia, que havia lá um forte esquema de segurança. Em cada porta estava postado um guarda. No saguão do prédio, um oficial da
SS informou aos quatro joalheiros que, se revelassem a alguém o que tinham vindo fazer ali, seriam mandados para um campo de trabalhos forçados. Acrescentou que
eles deviam trazer consigo todos os dias os seus estojos de classificação de diamantes, seus equipamentos para avaliar o quilate de ouro.
Os quatro joalheiros foram conduzidos ao porão. Ao redor, nas pa redes, havia prateleiras repletas de malas e pilhas enormes de pastas, cada qual com um nome cuidadosa
e futilmente marcado pelo seu ex-dono. Debaixo das janelas altas alinhavam-se caixotes de madeira. Quando os quatro joalheiros se agacharam no chão, dois homens
da SS apanharam uma mala, carregaram-na com dificuldade até o meio do porão e a es vaziaram aos pés de Herzog. Depois foram buscar outra na prateleira e despejaram
o conteúdo diante de Grüner. Trouxeram uma cascata de ouro para Friedner, e depois para Wulkan. Era ouro velho - anéis, broches, braceletes, berloques, lorgnettes,
piteiras. Os joalheiros teriam que classificar o ouro, separar os folheados dos maciços. Diamantes e pérolas seriam avaliados. Eles deviam classificar tudo, de acordo
com o valor, o peso e o quilate, em montes separados.
A principio eles sopesaram as peças com hesitação, mas depois puseram-se a trabalhar com mais rapidez, como profissionais competentes que eram. A medida que se formavam
as pilhas de ouro e pedra rias, os SS colocavam o material em determinados caixotes. Cada vez que acabavam de encher um caixote, escreviam nele com tinta preta -
SS REICHSFÜHRER BERLIN. O SS Reichsführer era o próprio Himmler, em cujo nome eram depositados no Reichsbank os bens confiscados. Havia uma profusão de anéis de
crianças, e os joalheiros tinham de manter um frio controle racional para não pensar nos ex-donos
infantis. Só uma vez se deixaram perturbar: quando os SS abriram uma valise e de dentro dela caiu um dente de ouro ainda sujo de sangue. Ali, numa pilha junto aos
joelhos de Wulkan, estavam representadas as bocas de mil mortos, cada uma parecendo clamar para que o joalheiro se revoltasse, se pusesse de pé, atirasse para longe
seus instrumentos de trabalho e denunciasse a origem odiosa de todas aquelas preciosidades. Então, depois de uma pausa, Herzog e Grüner, Wulkan e Friedner recomeçaram
a sua tarefa, conscientes agora, natural mente, do valor radioso do ouro, que porventura houvesse em suas bocas, e temendo que a SS resolvesse fazer uma sondagem
nesse sentido.
Durante seis semanas eles trabalharam na classificação dos tesouros da Academia Técnica. Depois de terminado o trabalho, foram leva dos para uma garagem em desuso,
convertida em um depósito de prataria. Os poços de lubrificação estavam cheios até a borda de prata maciça - anéis, berloques, bandejas da Páscoa, balanças yad,
peitorais, coroas, candelabros. Separaram a prata maciça da folheada; pesaram tudo. O oficial da SS encarregado queixou-se de que alguns daqueles objetos eram de
acondicionamento difícil. Mordecai Wulkan sugeriu que talvez fosse conveniente fundi-los. Pareceu a Wulkan, embora ele não fosse um
homem piedoso, que de certo modo seria melhor, um pequeno triunfo, se o Reich herdasse prata de onde houvesse sido removida a sua forma judaica. Mas, por alguma
razão, o oficial SS não aceitou a idéia. Talvez os objetos se destinassem a algum museu didático no Reich. Ou talvez o SS apreciasse a beleza artística da prataria
das sinagogas.
Quando terminou esse trabalho de avaliação, Wulkan de novo se viu desempregado. Tinha de sair regularmente do gueto a fim de arranjar comida suficiente para sua
família, especialmente para sua filha que sofria de bronquite. Trabalhou algum tempo numa fundição em Kazimierz, e ali ficou conhecendo o Oberscharführer Gola, um
SS moderado. Gola arranjou-lhe um emprego como encarregado da manutenção na caserna da SA perto de Wawel. Quando Wulkan entrou no rancho com suas ferramentas, viu
acima da porta a inscrição: FÜR JUDEN UND HUNDE EINTR/TT VERBOTEN (Entrada Proibida a Judeus e Cães). Esse letreiro, e mais os cem mil dentes avaliados na Academia
Técnica, convenceram-no de que, no final, a libertação não poderia vir do favor displicente do Oberscharführer. Gola bebia naquele recinto, sem sequer notar o letreiro;
tampouco notaria a ausên cia da família Wulkan no dia em que eles fossem levados para Belzec ou algum outro lugar de igual eficiência. Portanto, Wulkan, como a Sra.
Dresner e uns quinze mil outros habitantes do gueto, sabiam que precisavam mesmo era de uma libertação especial e estrondosa. Mas, nem por um momento, acreditavam
que essa libertação viria.
Capítulo 18
D
r. Sedlacek tinha avisado que a viagem seria desconfortável, e assim foi. Oskar viajou agasalhado num bom sobretudo, com uma valise e uma sacola cheia de vários
confortos que, no de correr da viagem, provaram ser-lhe de grande utilidade. Ainda que es tivesse com os devidos documentos para viajar, não queria ter de usá-los.
Tinha chegado à conclusão de que, se não tivesse de apresentá los na fronteira, sempre poderia negar que naquele dezembro tinha viajado para a Hungria.
Fez a viagem num caminhão fechado, cheio de pacotes do jornal do Partido, Völkischer Beobachter, para distribuição na Hungria. Trancado com o cheiro da tinta de
impressão e em meio das pesadas letras góticas do jornal oficial da Alemanha, seguiu aos solavancos pelas
montanhas cobertas de neve da Eslováquia, cruzando depois a fronteira húngara e descendo para o vale do Danúbio.
Fora feita uma reserva para ele no Hotel Pannonia, perto da Universidade. Na tarde de sua chegada, o franzino Samu Springmann e seu companheiro, Dr. Rezso Kastner,
foram vê-lo. Os dois homens, que subiram ao andar de Schindler pelo elevador, tinham ouvido
fragmentos de notícias trazidas por refugiados. Mas refugiados não podiam fornecer muitas informações. O fato de terem evitado a ameaça significava que pouco sabiam
de sua geografia, seu funcionamento in terno, quantas pessoas haviam sido atingidas. Kastner e Springmann estavam ansiosos por informações, pois - a se acreditar
em Sedlacek - o alemão Sudeten lá em cima ia poder dar-lhes o mapa todo, o primeiro relatório completo do descalabro polonês.
No quarto, as apresentações foram breves, pois Springmann e Kastner tinham vindo ali para ouvir e podiam notar que Schindler estava ansioso por falar. Nenhuma providência
foi tomada, naquela cidade obcecada por café, para formalizar o encontro, telefonando ao
serviço de copa para mandar servir no quarto café e bolos. Kastner e Spring mann, depois de trocarem um aperto de mão com o enorme alemão, sentaram-se. Mas Schindler
pôs-se a andar de um lado para outro. Parecia que longe de Cracóvia e das realidades do Aktion e do gueto o que sabia perturbava-o mais do que na ocasião em que
contara rapidamente as ocorrências a Sedlacek. Estava agitado. No quarto do andar abaixo poderiam ouvir suas passadas - o lustre teria tremido quando ele batia o
pé, demonstrando a ação do SS, que comandara o pelotão de fuzilamento na Rua Krakusa, o que tinha retido com a bota a cabeça de sua vítima, em plena vista da garotinha
de vermelho no final da fila.
Começou sua narrativa com imagens pessoais das crueldades assistidas por ele em Cracóvia, o que testemunhara nas ruas ou ouvira de ambos os lados do muro, as palavras
dos judeus e da SS. Naquela conexão, informou ele, estava trazendo cartas de habitantes do gueto, do médico Chaim Hilfstein, do Dr. Leon Salpeter, de Itzhak Stern.
A carta do Dr. Hilfstein era um informe sobre a fome.
- Quando desaparece a gordura do corpo - disse Oskar - o cérebro começa a ser destruído.
Os guetos, contou ele, estavam sendo torturados. E o que acontecia em Cracóvia estava acontecendo também em Varsóvia e Lodz. A população do gueto de Varsóvia fora
reduzida em quatro quintos. Lodz em dois terços, Cracóvia à metade. Onde estavam as pessoas que
tinham sido transferidas? Algumas se achavam em campos de trabalhos forçados; mas os cavalheiros ali presentes tinham de aceitar o fato de que, pelo menos três quintos
dessas pessoas haviam desaparecido em campos, que agora utilizavam novos métodos científicos. Tais campos não eram incomuns. A SS tinha até um nome oficial para
eles - Ver nichtungslager - Campo de Extermínio.
Naquelas últimas semanas, informou Oskar, uns 2.000 habitantes do gueto de Cracóvia tinham sido reunidos e enviados não para as câmaras de Belzec, mas para campos
de trabalhos forçados nas cercanias da cidade. Um campo ficava em Wieliczka, outro em Prokocim, ambos com estações ferroviárias da linha Ostbahn, que corria para
a fronteira russa. De Wieliczka e Prokocim, os prisioneiros marchavam todos os dias para um local na aldeia de Plaszóvia, na periferia da cidade, onde estavam sendo
preparadas as fundações para um vasto campo de trabalho. A vida em tal campo, explicou Schindler, não ia ser das mais aprazíveis - as casernas de Wieliczka e Prokocim
estavam sob o comando de um NCO SS chamado Horst Pilarzik, que adquirira notável reputação, em junho do ano anterior, quando ajudara a ex pulsar do gueto cerca de
7.000 pessoas, das quais apenas uma, um farmacêutico, tinha retornado. O campo em construção em Plaszóvia estaria sob as ordens de um homem do mesmo calibre. O que
havia a favor dos campos de trabalho era que lhes faltava o aparato técnico para o genocídio metódico. Havia um critério lógico com relação a tais campos: havia
razões econômicas para existirem - prisioneiros de Wieliczka e Prokocim eram levados todos os dias para ali trabalharem em vários projetos. Wieliczka, Prokocim e
o campo em construção em Plaszóvia estavam sob o controle dos chefes de polícia de Cracóvia, Julian Schemer e Rolf Czurda; ao passo que os Vernichtungslagers eram
dirigidos pelo Escritório Central de Administração e Economia em Ora-nienburg, perto de Berlim. Os Vernichtungslagers usavam também pessoas vivas por algum tempo,
para mão-de-obra, mas a sua indústria principal era a morte e seus subprodutos - a reciclagem de roupas, das jóias e óculos que restassem, de brinquedos e até da
pele e cabelo dos mortos.
Em meio às suas explicações sobre a distinção entre campo de extermínio e os de trabalhos forçados, Schindler de repente adiantou-se para a porta, escancarou-a e
olhou para um e outro lado do corredor deserto.
- Conheço a reputação de bisbilhotice desta cidade - explicouele.
O franzino Springmann levantou-se e foi ter com Oskar.
- O Pannonia não oferece tanto perigo - ponderou ele em vozbaixa. - O ninho da Gestapo é o Victoria Hotel.
Schindler examinou mais uma vez o corredor, fechou a porta e foi postar-se junto às janelas, onde continuou seu macabro relatório. Os campos de trabalhos forçados
seriam dirigidos por homens nomeados devido à sua severidade e eficiência na limpeza dos guetos. Haveria assassinatos e espancamentos esporádicos e certamente corrupções
envolvendo alimentos; em conseqüência, rações menores para os prisioneiros. Mas isso era preferível à morte certa dos Vernichtungslagers. Os que estavam em campo
de trabalho podiam ter acesso a alguns confortos extras e havia a chance de serem levados para fora, contrabandeados para a Hungria.
Esses SS são tão venais quanto qualquer outra força policial? - perguntou um dos dois membros do comitê de salvamento de Budapeste.
Minha experiência pessoal - retorquiu Oskar - diz que não há um só deles que não possa ser corrompido.
Quando Oskar terminou, fez-se, naturalmente, um longo silêncio
Kastner e Springmann não se espantavam facilmente. Tinham passa do a vida inteira sob a intimidação da Polícia Secreta. Suas presentes atividades eram vagamente
vigiadas pela polícia húngara, que os deixava em paz somente por causa dos contatos e subornos de Samu, e ao mesmo tempo menosprezados pelos cidadãos judeus respeitáveis.
Samuel Stern, por exemplo, presidente do Conselho Judaico, membro do Senado húngaro, iria desconsiderar o relatório feito por Oskar Schindler nessa tarde como uma
fantasia perniciosa, um insulto à cultura alemã, um acinte às intenções do Governo húngaro. Aqueles dois estavam habituados a ouvir o pior.
Não era tanto o fato de que Kastner e Springmann estivessem acovardados com o testemunho de Oskar, mas suas mentes estavam fazendo cálculos dolorosos. Os recursos
que possuíam pareciam diminutos, agora que sabiam o que tinham pela frente - não apenas um previsível gigante filistino mas o próprio Beemonte. Talvez já estivessem
cogitando que, além das barganhas individuais - um pouco mais de alimentos para este campo, providências para salvar este ou aquele intelectual, um suborno para
abrandar o ardor profissional de determinado SS -, um esquema muito mais amplo de salvamento te ria de ser executado por um preço astronômico.
Schindler atirou-se numa poltrona. Samu Sprigmann olhou para o industrial exausto. Disse-lhe, então, que ambos estavam extremamente impressionados com ele. Evidentemente,
iam mandar um relatório pa ra Istambul a respeito de tudo o que Oskar contara. O relatório seria usado para impulsionar os sionistas palestinos e o Comitê de Distribuição
a tomar providências mais drásticas. Ao mesmo tempo seria transmitido aos governos de Churchill e Roosevelt. Springmann disse que Oskar tinha razão de se preocupar
a respeito de as pessoas não acreditarem em suas palavras, pois a realidade era inacreditável.
- Portanto - disse Samu Springmann - insisto para que vá aIstambul e fale diretamente com as pessoas de lá.
Após alguma hesitação - enquanto considerava os seus negócios na fábrica e os perigos de cruzar tantas fronteiras -, Schindler concordou.
- Mais para o final do ano - sugeriu Springmann. - Entrementes, quero que mantenha contatos regulares com o Dr. Sedlacekem Cracóvia. - Os três levantaram-se;
Oskar pôde ver que eles agoraeram homens mudados. Agradeceram-lhe e saíram, tornando-se
simplesmente, ao deixar o hotel, dois pensativos profissionais de Budapeste, que tinham tido informações de má gerência em seus negócios.
Nessa noite, Dr. Sedlacek foi buscar Oskar no hotel e conduziu-o pelas ruas movimentadas para jantar no Hotel Gellert. Da sua mesa,
eles podiam ver o Danúbio, suas barcaças iluminadas, a cidade cintilando do outro lado das águas. Era como uma cidade de antes da guerra e Schindler de novo começou
a sentir-se como um turista. Depois de sua temperança da tarde, ele sorveu o denso vinho tinto húngaro chamado Sangue de Touro, com lenta, obstinada sede, e encarreirou
uma fileira de garrafas vazias sobre a mesa.
Quando estavam no meio do jantar, veio ter com eles um jornalista austríaco, Dr. Schmidt, que se fizera acompanhar de sua amante, uma linda húngara loura. Schindler
elogiou as jóias da moça e disse-lhe que também ele era grande apreciador de pedras preciosas. Mas na hora do conhaque de abricó, Schindler tornou-se menos amistoso.
Calado, de testa franzida, ele ouvia Schmidt discorrer sobre preços de imóveis e falar de carros e corridas de cavalo. A moça parecia fascina da com a conversa do
amante, já que estava usando no pescoço e nos pulsos os resultados dos seus golpes financeiros. Mas era óbvia a inesperada desaprovação de Oskar. Intimamente, o
Dr. Sedlacek estava achando graça na reação; talvez Oskar estivesse vendo o episódio co mo vendo um reflexo de sua própria ambição, de sua tendência a tirar vantagem
das situações.
Quando terminou o jantar, Schmidt e a moça saíram para alguma boate e Sedlacek tratou de levar Oskar para outro local de diversão. Os dois sentaram-se a uma mesa
e assistiam ao show, enquanto bebiam grande quantidade de barack.
Esse Schmidt - começou Schindler, querendo esclarecer a questão. - Vocês o utilizam? Sim.
Acho que não deviam usar homens como ele - advertiu Oskar. - Trata-se de um ladrão. Dr. Sedlacek virou o rosto para disfarçar um meio sorriso.
Como pode ter a certeza de que ele entrega o dinheiro que lhe é confiado? - perguntou Oskar.
Deixamos que ele fique com uma percentagem - respondeu Dr. Sedlacek.
Oskar pensou meio minuto; depois murmurou:
Não quero nenhuma maldita percentagem. Não quero nem que me seja oferecida.
Muito bem - disse Sedlacek.
Agora vamos prestar atenção ao show - sugeriu Oskar.
Capítulo 19
E
nquantoOskar Schindler voltava, de Budapeste, onde predisse ra que o gueto seria fechado, um Untersturmführer chamado Amon Goeth estava a caminho de Lublin para
realizar aquela liquidação e assumir o comando do resultante Campo de Trabalhos Forçados (Zwangsarbeitslager) em Plaszóvía. Goeth era uns oito meses mais moço do
que Schindler mas partilhava com ele mais do que meramente o ano do nascimento. Como Oskar, ele tinha sido criado na religião católica e só em 1938 deixara de observar
os ritos da Igreja, quando o seu primeiro casamento resultará numa separação. Como Oskar, tinha-se formado no Realgymnasium - engenharia, física, matemática. Portanto,
tratando-se de um homem prático, não era um pensador, embora se considerasse um filósofo.
Nascido em Viena, ele tinha ingressado cedo, em 1930, no Parti do Nacionalsocialista. Quando, em 1933, a preocupada República Austríaca baniu o partido, Goeth já
era membro da Força de Segurança da SS. Proibido de atuar, ele surgira nas ruas de Viena após o
Anschlussde 1938 fardado de um oficial subalterno da SS. Em 1940, fora promovido ao posto de Oberscharführer e em 1941 alcançou a honra de um posto comissionado,
muito mais difícil de se conseguir na SS do que nas unidades da Wehrmacht. Depois de um treinamento em lática de infantaria, fora encarregado de comandar os Sonderkommandos
durante Aktionen no populoso gueto de Lublin e, devido à sua atua ção, conquistado o direito de liquidar Cracóvia.
Assim, o Untersturmführer Amon Goeth, viajando no velho trem especial da Wehrmacht entre Lublin e Cracóvia, a fim de assumir o comando dos bem-treinados Sonderkommandos,
assemelhava-se a Os kar, não apenas quanto ao ano de nascimento, à religião, ao apreço
pela bebida mas também ao físico imponente. A fisionomia de Goeth era aberta e afável, um pouco mais alongada do que a de Schindler. Suas mãos, embora grandes e
musculosas, tinham dedos afilados. Era sentimental com referência aos filhos do seu segundo casamento, os quais, devido estar prestando serviços no estrangeiro,
não vira com mui ta freqüência nos últimos três anos. Como para se compensar, às vezes dava atenção aos filhos de oficiais seus colegas. Podia ser também um amante
sentimental, mas, embora se assemelhasse a Oskar em termos de sôfrego apetite sexual, seus gostos eram menos convencionais, às vezes se manifestando com relação
a colegas seus, e freqüentemente se satisfazendo em espancar mulheres. Suas duas ex-esposas poderiam ter testemunhado que uma vez esmorecido o calor da paixão, ele
podia tornar-se fisicamente abusivo. Considerava a si mesmo um homem
sensível e julgava que a profissão de seus parentes explicava essa tendência. O pai e o avô tinham sido impressores e encadernadores de livros sobre história econômica
e militar e Goeth gostava de identificar-se em documentos oficiais como literaf. um homem de letras. E ainda que, naquele momento, ele teria dito que estava ansioso
por assumir o controle da operação de liquidação - que essa era a grande chance da sua carreira, provavelmente com a promessa de uma promoção -, seu serviço em Ações
Especiais parecia-lhe ter alterado o curso das suas energias. Havia dois anos que sofria de insônia e, quando lhe era possível, ficava acordado até três ou quatro
horas da madrugada e dor mia até tarde na manhã seguinte. Passara a beber desordenadamente e acreditava possuir uma capacidade para ingerir bebidas, que não tivera
em sua juventude. E de novo, como Oskar, não sofria as ressacas que merecia, atribuindo isso ao bom funcionamento de seus rins.
Sua comissão, confiando-lhe a tarefa de extinção do gueto e co mando do campo de Plaszóvia, era datada de 12 de fevereiro de 1943. Mas esperava que, depois de se
consultar com os NCO seus superiores, com Wilhelm Kunde, comandante do destacamento da SS para o gueto, e com Willi Haase, representante de Scherner, seria possível
começar a limpeza do gueto dentro de um mês após a data de sua designação para aquelas funções.
O Comandante Goeth foi recebido na Estação Central de Cracóvia pelo próprio Kunde e por um rapaz alto da SS, Horst Pilarzik, que estava temporariamente encarregado
dos campos de trabalho em Prokocim e Wieliczka. Os três se instalaram no banco traseiro de um Mercedes e foram levados para uma inspeção do gueto e do local do novo
campo. Era um dia de frio intenso, e a neve começou a cair, quando eles cruzaram a ponte do Vístula. O Untersturmführer Goeth gostou do trago de schnapps que Pilarzik
lhe ofereceu de um frasco que carregava no bolso. Atravessaram o falso portão oriental e seguiram pelo trilho de bondes da Rua Lwówska, que cortava o gueto em duas
gélidas porções. O garboso Kunde, que fora agente alfandegário na vida civil e estava capacitado a prestar informações aos seus superiores, fez um esclarecido sumário
do gueto. O trecho à esquerda era o Gueto B. Seus habitantes, cerca de uns 2.000, tinham conseguido escapar de Aktionen anteriores ou em períodos precedentes já
trabalhavam em indústria. Mas, desde então, haviam sido emitidas novas carteiras de identidade, com iniciais adequadas - W para empregados no Exército, Z para empregados
de autoridades civis, ou R para trabalhadores de indústrias essenciais. Os habitantes do Gueto B não tinham recebi do essas novas carteiras e deviam ser enviados
para Sonderbehandlung (Tratamento Especial). Quanto à limpeza do gueto, seria preferível começar por aquele setor, embora essa decisão tática dependesse inteira
mente de Herr Commandant.
A maior área do gueto ficava à direita e ainda era habitada por umas 10 mil pessoas. Essas seriam, naturalmente, a força de trabalho inicial para as fábricas do
campo de Plaszóvia. Esperava-se que os empresários e supervisores alemães - Bosch, Madritsch, Beckmann e o Sudetenlander Oskar Schindler - iriam querer transferir
todas as suas indústrias, ou uma boa parte delas, para dentro do campo. Havia também uma fábrica de cabos condutores a pouco menos de um quilômetro do campo em perspectiva,
havendo possibilidade de os trabalhadores serem levados e trazidos de volta todos os dias.
Estaria Herr Commandant, perguntou Kunde, disposto a ir uns poucos quilômetros mais adiante e inspecionar o próprio local do campo?
Ah, sim, tinha replicado Amon, achava aconselhável uma inspeção.
Portanto, seguiram pela rodovia, onde o pátio da fábrica de cabos, com seus gigantescos carretéis cobertos de neve, marcava o começo da Rua Jerozolimska. Amon Goeth
entreviu uns poucos grupos de mulheres curvadas e envoltas em xales, arrastando segmentos de caba nas - um painel de parede, um pedaço de beirai - pela Rua Jerozo
limska acima na direção oposta à estação ferroviária de Cracóvía-PIaszóvia. Eram mulheres do campo de Prokocim, explicou Pilarzik. Quando o campo de Plaszóvia estivesse
pronto, Prokocim seria naturalmente dispersado e aquelas trabalhadoras ficariam sob a gerência do Herr Commandant.
Goeth calculou a distância que as mulheres teriam de percorrer, carregando os segmentos, em uns três quartos de quilômetro.
- Tudo em ladeira - disse Kunde, abanando a cabeça, como que querendo dizer que era uma forma satisfatória de disciplina, porém atrasava a construção.
O campo ia precisar de um ramal de estrada de ferro, concluiu o Untersturmführer Goeth. Falaria sobre essa necessidade com o Ostbahn.
Depois passaram, à direita, por uma sinagoga e suas construções mortuárias, e um muro meio ruído deixava ver túmulos, como dentes cruelmente expostos na boca do
inverno. Parte do local fora até aquele mês um cemitério judaico.
Muito extenso - observou Wilhelm Kunde. O Herr Commandant soltou uma piada, que repetiria durante sua residência em Plaszóvia:
Eles não precisarão ir muito longe para serem enterrados.
Havia à direita uma casa, que poderia servir como moradia temporária para o comandante, e também um grande prédio novo que poderia ser um centro de administração.
O mortuário da sinagoga, já parcialmente dinamitado, se tornaria o estábulo do campo. Kunde fez notar que as duas pedreiras dentro da área podiam ser avistadas dali.
Uma ficava no fundo do pequeno vale, a outra na encosta do monte atrás da sinagoga. O comandante podia avistar os trilhos sendo estendidos para as carretas, que
seriam usadas no transporte de pedras. Quando o tempo melhorasse, a construção da linha iria prosseguir.
O carro levou-os à extremidade sudeste do campo em perspectiva e, por uma trilha mal perceptível na neve, que terminava onde antes existira uma trincheira militar
austríaca, chegaram a um outeiro circu lar em torno de uma larga e profunda reentrância. Para um artilheiro teria parecido um importante baluarte, donde um canhão
podia fazer mira para fogo de enfiada na fronteira russa. Ao Untersturmführer Goeth parecia um local adequado para castigos disciplinares.
Dali de cima, a área do campo podia ser avistada em toda a sua extensão. Era uma área rural, ornamentada pelo cemitério judaico e situada entre dois morros. Naquele
período do inverno, para o observador no outeiro, era como duas páginas de um imenso livro em
branco aberto. Uma habitação campestre de pedra cinzenta ficava encravada na entrada para o vale e, mais adiante, ao longo de uma encosta e entre umas poucas casernas
já construídas, moviam-se grupos de mulheres, negros como agrupamentos de notas musicais, na estranha luminescência da neve ao crepúsculo. Emergindo das vielas gélidas
adiante da Rua Jerozolimska, elas avançavam, penosamente acossadas pelos guardas ucranianos, e deixavam cair seus fardos onde os engenheiros SS, de chapéu-melão
e roupas civis, as ordenavam.
O Untersturmführer Goeth observou que o ritmo de trabalho das mulheres era limitado. Evidentemente, o pessoal do gueto não podia ser transferido para lá antes de
serem erguidas as casernas e termina das as cercas e torres de vigia. Aos seus companheiros, ele disse
confidencialmente que nada tinha a reparar a respeito do ritmo de trabalho dos prisioneiros no morro mais distante. Na verdade, estava intima mente impressionado
que, no final de um dia tão cruelmente frio, os SS e ucranianos naquele morro não permitissem que o pensamento da ceia num abrigo quente esmorecesse suas atividades.
Horst Pilarzik assegurou a Goeth que os trabalhos estavam mais adiantados do que pareciam: trechos tinham sido aplainados, fundações cavadas apesar do frio e uma
grande quantidade de seções pré-fabricadas já haviam sido transportadas da estação ferroviária. Herr Untersturmführer iria poder se entrevistar com os empresários
no dia seguinte - já estava providenciada uma reunião para as dez horas da manhã. Mas a associação de métodos modernos com a farta mão-de-obra significava que o
campo poderia ficar pronto quase do dia para a noite, se as condições do tempo o permitissem.
Pilarzik parecia acreditar que Goeth estava em grave perigo de desmoralização. Na realidade, Amon sentia-se muito satisfeito. Pelo que via agora, podia visualizar
o acabamento final do campo. Tampouco estava preocupado com cercas. As cercas seriam um conforto moral para os prisioneiros mais do que uma precaução essencial.
Pois, uma vez que fosse aplicado ao gueto de Podgórze o processo de liquidação da SS, os judeus ficariam gratos pelas casernas de Plaszóvia. Mesmo os que possuíam
documentos arianos se encaminhariam para dentro do campo, procurando um obscuro beliche sob os tetos cobertos de geada. Para a maioria deles, o arame farpado era
necessário apenas como um apoio moral, para que pudessem assegurar a si mesmos de que eram prisioneiros contra a própria vontade.
A reunião com os donos de fábricas locais e os Treuhanders se realizou no gabinete de Julian Scherner, em Cracóvia, na manhã do dia seguinte. Amon Goeth chegou sorrindo
fraternalmente e, com sua farda Waffen SS nova, feita sob medida para o seu corpo colossal, pareceu dominar a sala. Estava certo de que os auto-suficientes sucumbiriam
ao seu charme. Ia convencer Bosch, Madritsch e Schindler a transferirem seus empregados judeus para dentro do campo. Além disso, uma investigação das capacidades
disponíveis entre os habitantes do gueto o havia ajudado a se convencer de que Plaszóvia poderia tornar-se um excelente negócio. Havia joalheiros, estofadores, alfaiates,
que pode riam ser usados para transações especiais sob a direção do comandante, executando encomendas para a SS, a Wehrmacht, a oficialidade alemã abastada. Haveria
as oficinas de confecção de Madritsch, a fábrica de esmaltados de Schindler, uma metalúrgica, uma fábrica de es covas, uma oficina para reciclar uniformes da Wehrmacht
usados, rasgados ou manchados na frente russa, uma outra oficina para reciclar roupas de judeus dos guetos e remetê-las para o uso de famílias despojadas pelos bombardeios
na Alemanha. Sabia, por experiências anteriores com respeito a depósitos de jóias e peles da SS em Lublin - quando cada um dos seus superiores e ele próprio recebiam
o seu quinhão -, que podia esperar uma boa percentagem para si mesmo nessas transações. Tinha chegado a um ponto de sua carreira, em que dever e oportunidade financeira
coincidiam. Julian Scherner, o sociável chefe de polícia da SS, durante o jantar na noite anterior, tinha falado a Amon sobre a grande oportunidade que Plaszóvia
podia representar tanto para o jovem oficial como para ele próprio.
Scherner abriu a reunião com os donos de fábricas. Falou solene mente sobre a "concentração de mão-de-obra", como se se tratasse de um grande princípio de economia
recém-descoberto pela burocracia da SS. Os donos das fábricas disporiam de mão-de-obra in loco, disse Scherner. Toda a manutenção da fábrica não lhes custaria nada,
nem haveria aluguel a pagar. Os cavalheiros estavam convidados a ir nessa tarde inspecionar os locais das oficinas no campo de Plaszóvia.
O novo comandante foi apresentado aos presentes. Disse estar satisfeito em se associar com os industriais, cujas valiosas contribuições para o esforço de guerra
já eram bem conhecidas.
Amon indicou, num mapa da área do campo, a seção reservada para as fábricas. Era ao lado do campo dos homens; as mulheres - disse ele, com um sorriso muito charmoso
- teriam de caminhar um pouco mais, uns cem ou duzentos metros pela encosta abaixo, para chegar às oficinas. Garantiu aos cavalheiros que a sua principal tarefa
era supervisionar o bom funcionamento do campo e que não tinha in tenção alguma de interferir na gerência das fábricas ou alterar a autonomia de que gozavam em Cracóvia.
As ordens que recebera, como o Oberführer Scherner poderia atestar, proibiam terminantemente aquela espécie de intrusão. Mas o Oberführer tinha sido correto ao apontar
as vantagens mútuas de transportar uma indústria para dentro do perímetro do campo. Os donos das fábricas não teriam de pagar aluguel, e ele, o comandante, não teria
de fornecer uma guarda para conduzir os prisioneiros até a cidade e trazê-los de volta. Os cavalheiros não podiam deixar de compreender que a extensão da caminhada
e a hostilidade dos poloneses contra uma coluna de judeus iria desgastar a capacidade de trabalho dos prisioneiros.
Durante todo o seu discurso, o Comandante Goeth olhava freqüentemente para Madritsch e Schindler, os dois que ele desejava especial mente conquistar para o seu plano.
Sabia que já podia contar com os conhecimentos locais e conselhos de Bosch. Herr Schindler, por
exemplo, tinha uma seção de munições, pequena e ainda em estágio de desenvolvimento; porém, se fosse transferida, daria a Plaszóvia uma grande respeitabilidade junto
à Inspetoria de Armamentos.
Herr Madritsch ouvia de testa franzida, e Herr Schindler observava o orador, com um meio sorriso de aquiescência. Instintivamente, o Comandante Goeth podia perceber,
mesmo antes de terminar o seu discurso, que Madritsch seria razoável e aceitaria a mudança mas Schindler iria recusar. Era difícil julgar, por essas diferentes decisões,
qual dos dois se sentia mais paternal com relação aos seus empregados judeus - Madritsch, que desejava ficar dentro de Plaszóvia com eles, ou Schindler, que queria
conservá-los a seu lado na Emalia.
Oskar Schindler, com a mesma expressão de impaciente tolerância no rosto, foi com o grupo inspecionar o local. Plaszóvia tinha ago ra o aspecto de um campo de concentração
- uma melhora nas condições de tempo permitira que as casernas fossem montadas; o degelo do solo tornara possível cavar as fossas das latrinas e fixar os postes.
Uma companhia polonesa de construção tinha instalado quilômetros de cerca no perímetro do campo. Grossas torres de vigia iam sendo erigidas na direção de Cracóvia
e também na entrada do vale do lado da Rua Wieliczka, na extremidade do campo; dali, do alto do morro a leste, o grupo oficial, à sombra das fortificações austríacas,
observava o trabalho intenso daquela nova criação. Mais para a direita, Oskar notou que mulheres subiam penosamente por atalhos enlameados, arrastando pesadas seções
de casernas. Abaixo, desde o fundo do vale e pela encosta acima no outro lado, as casernas eram montadas sobre plataformas por prisioneiros que erguiam paredes,
aparafusavam, mar telavam com uma energia que, àquela distância, dava a impressão de que trabalhavam de boa vontade.
No trecho melhor, mais plano, do terreno, tinham sido erguidas compridas estruturas de madeira destinadas a ser ocupadas industrial mente. Pisos de cimento podiam
ser preparados nos locais onde seria preciso instalar maquinaria pesada. A transferência de toda a
maquinaria das fábricas seria efetuada pela SS. A estrada que servia a área era sem dúvida pouco mais do que um atalho, mas a administração já entrara em contato
com a firma de engenharia Klug para a construção de uma rua central no campo, e a Ostbahn prometera fornecer um desvio até o próprio portão do campo e para a pedreira
à direita. Pe dras das pedreiras e algumas, que Goeth chamava de "sepulturas desmontadas", do cemitério seriam quebradas para calçar outras ruas do campo. Os cavalheiros
não teriam de se preocupar com os meios de acesso às fábricas, prometeu Goeth, pois pretendia manter permanentemente uma numerosa equipe de prisioneiros para trabalhar
nas pedreiras e na construção das estradas.
Uma pequena ferrovia fora instalada para as carretas de transporte de pedras; partia da pedreira e passava pelo prédio da Administração, destinando-se às grandes
casernas de pedra, que estavam sendo construídas para a SS e para a guarnição militar ucraniana. Carregamentos, que pesavam cada um seis toneladas, eram transportados
por grupos de trinta e cinco a quarenta mulheres, que puxavam cabos instalados de cada lado das carretas para compensar a irregularidade dos trilhos. As que tropeçavam
ou caíam eram pisadas ou empurradas pa ra fora do caminho, pois os grupos tinham o seu próprio impulso orgânico e ninguém podia abdicar individualmente do ritmo.
Observando aquele esforço, que lembrava o trabalho de escravos no antigo Egito, Oskar sentiu a mesma onda de náusea, o mesmo formigamento no sangue que experimentara
no alto da colina, descortinando a Rua Krakusa. Goeth presumira que os industriais não se deixariam abalar por aquela visão, que todos eram espiritualmente iguais
a ele. Não o constrangia aquela labuta selvagem. A questão em mente era a mesma que na Rua Krakusa: O que podia constranger a SS? O que podia causar constrangimento
a Amon?
A energia dos construtores das casernas tinha, mesmo para um observador bem-informado como Oskar, o aspecto ilusório de homens trabalhando duro para providenciar
abrigo para suas mulheres. Mas embora Oskar ainda não soubesse, Amon procedera a uma execução sumária essa manhã diante daqueles homens, a fim de que agora ficas
sem convencidos quanto aos termos em que estavam trabalhando. De pois do encontro de manhã cedo com os engenheiros, Amon descera a Rua Jerozolimska até a caserna
da SS, onde os trabalhos estavam sob a supervisão de um excelente NCO, que logo seria promovido a oficial, chamado Albert Hujar. Este adiantara-se e fizera o seu
relatório. Uma seção das fundações da caserna desabara, disse Hujar, com o sangue subindo-Ihe ao rosto. Ao mesmo tempo, Amon tinha notado uma moça andando ao redor
da construção, falando com os trabalha dores, apontando, dirigindo. Quem era ela?, perguntou ele a Hujar. Uma prisioneira chamada Diana Reiter, respondeu Hujar,
uma arqui teta, que fora destacada para a construção das casernas. Estava reclamando que as fundações não haviam sido corretamente cavadas e queria que todas as
pedras e o cimento fossem arrancados e se recomeçasse a construção desde o início.
Goeth podia notar, pela vermelhidão do rosto de Hujar, que ele
tinha tido uma dura discussão com a moça. A coisa chegara a ponto de Hujar berrar que ele estava construindo uma caserna "e não um hotel de luxo"!
Amon deu um meio sorriso a Hujar.
- Não vamos ter discussões com essa gente - disse ele, comose fosse uma promessa. - Traga a moça aqui.
Amon podia ver, pela maneira com que ela se encaminhava em sua direção, a espúria elegância com que havia sido educada pela sua família de classe média, as maneiras
européias de que fora imbuída, mandando-a - quando os honestos poloneses tinham recusado admiti-la em suas universidades - para Viena ou Milão, a fim de lhe dar
uma profissão e uma coloração protetora. A moça dirigiu-se a Amon, co mo se ambos fossem da mesma categoria e isso os unisse na batalha contra o NCO imbecil e a
inferior capacidade profissional de algum engenheiro da SS, que supervisionara a escavação das fundações. Não sabia que estava atiçando ainda mais o ódio de Amon
por ser ela do tipo que, mesmo ante a evidência do seu uniforme da SS, julgava não ser visível a sua condição de judia.
- Você teve ocasião de discutir com o Oberscharführer Hujar -disse-lhe Goeth, como que estabelecendo um fato. Ela concordou, comum firme gesto de cabeça.
O gesto sugeria que Herr Commandanl devia compreender, embora o imbecil Hujar não fosse capaz de
entender. Todas as fundações daquele lado tinham de ser refeitas, declarouela em tom positivo. É claro que Amon sabia que "eles" eram assimmesmo, gostavam de acumular
tarefas umas após outras, a fim de
garantir a atividade constante da força de trabalho enquanto durasse oprojeto. Se tudo não for refeito, concluíra ela, haveria pelo menos umafundamento na extremidade
sul da caserna. Podia mesmo haver umdesabamento.
A moça continuou argumentando; Amon concordava com a ca beça e presumia que ela devia estar mentindo. Era um princípio primordial que nunca se devia dar ouvidos
a um técnico judeu. Técnicos judeus se baseavam no pensamento de Marx, cujas teorias visavam
solapar a integridade do governo, e no de Freud, que atacara a integridade da mente ariana. Amon julgava que os argumentos da arquiteta ameaçavam a sua integridade.
Chamou Hujar. O NCO voltou, meio contrafeito. Pensou que o chefe ia mandá-lo fazer o que a moça tinha aconselhado. Ela pensou o mesmo.
- Atire nela - ordenou Amon a Hujar. Houve, naturalmente,uma pausa enquanto Hujar digeria a ordem. - Atire nela! - repetiuAmon.
Hujar segurou a moça pelo cotovelo para levá-la a algum lugar apropriado para a execução.
- Aqui! - disse Amon. - Atire nela aqui! A mando meu! - berrou Amon.
Hujar sabia como a coisa devia ser feita. Agarrou a moça pelo cotovelo, empurrou-a um pouco para a frente, tirou a Mauser do coldre e deu-lhe um tiro na nuca.
O ruído apavorou todos os presentes, exceto - ao que parecia - os executores e a moribunda Diana Reiter. Ela dobrou os joelhos e ergueu os olhos. Será preciso mais
do que isso, parecia estar dizendo. Aquele olhar deliberado assustou Amon e depois o justificou e
levantou na sua opinião. Não tinha a menor idéia e não teria acreditado que para aquelas suas reações havia uma etiqueta clínica. Na verdade, acreditava que estava
sendo recompensado com a inevitável exaltação que se segue a um ato de justiça política, racial e moral. Ainda assim, aquilo tudo tinha o seu preço, pois à plenitude
daquele momento mais tarde se seguiria tal vazio que ele iria precisar, a fim de evitar ser varri do para longe como um farrapo de palha, aumentar o seu peso e equilíbrio,
ingerindo mais comida, bebida, procurando contato com uma mulher.
Afora essas considerações, a execução de Diana Reiter, o cancela mento de seu diploma da Europa Ocidental, tinha o seu valor prático: nenhum construtor de habitações
ou estradas em Plaszóvia poderia considerar-se essencial à sua tarefa - se, com toda a sua capacidade profissional, Diana Reiter não conseguira salvar-se, a única
chance dos outros era uma pronta e anônima eficiência. Portanto, as mulheres transportando seus pesados fardos da estação de Cracóvia - Plaszóvia, as equipes das
pedreiras, os homens montando as habitações, to dos eles passaram a trabalhar com uma energia adequada à lição que tinham recebido com o assassinato de Diana Reiter.
Quanto a Hujar e seus colegas, sabiam agora que a execução instantânea era o estilo permitido em Plaszóvia.
Capítulo 20
Dois dias após a visita dos donos de fábricas a Plaszóvia, Schindler apareceu no escritório temporário do Comandante Goeth, trazendo saudações e uma garrafa de conhaque.
A notícia do assassinato de Diana Reiter já havia chegado ao escritório da Emalia e era o tipo de informação que firmava Oskar em sua determinação de manter a Emalia
fora de Plaszóvia.
Os dois homens atléticos se sentaram frente a frente; havia também entre eles uma compreensão mútua, como houvera no rápido contato entre Amon e Diana Reiter. O
que sabiam era que ambos estavam ali em Cracóvia para fazer fortuna; e que, portanto, Oskar iria pagar pelos favores que lhe fossem concedidos. Quanto a esse ponto,
Oskar e o comandante se compreendiam bem. Oskar tinha o dom característico do negociante de tratar homens que abominava como se fossem irmãos espirituais, e Herr
Commandant se deixaria enganar tão completamente que sempre acreditaria que Oskar era seu amigo.
Mas segundo o testemunho de Stern e outros, é óbvio que, desde os seus primeiros contatos com Goeth, Oskar o abominou como um homem que praticava assassinatos com
a mesma tranqüilidade com que um funcionário executa a sua rotina de trabalho. Oskar podia falar com Amon o administrador, Amon o especulador, mas sabia ao mesmo
tempo que nove décimos da mente do comandante ficavam abaixo dos processos racionais do comum dos seres humanos. Os negócios e conexões sociais entre Oskar e Amon
funcionavam muito bem para poder haver a suposição de que Oskar, de certa forma, e apesar de si mesmo, se deixava fascinar pela perversidade do homem. Na verdade,
ninguém dos que conheciam Oskar nessa ocasião, ou dos que o conheceram mais tarde, viu sinal algum desse fascínio. Oskar desprezava Goeth nos termos mais simples
e mais intensos. Seu desprezo iria tornar-se ilimitado, como o demonstraria dramaticamente a sua carreira. Mesmo assim, é difícil evitar o pensamento de que Amon
era o irmão satânico de Oskar, o frenético e fanático carrasco em que Oskar, por alguma infeliz perversão, poderia também se tornar.
Com uma garrafa de conhaque entre os dois, Oskar explicou a Amon que lhe era impossível mudar-se para Plaszóvia. Sua fábrica era demasiado sólida para poder ser
transplantada. Supunha que o seu amigo Madritsch tencionava mudar lá para dentro os seus trabalhadores judeus mas a maquinaria de Madritsch podia ser mais facilmente
trans ferida - era basicamente uma série de máquinas de costura. Havia diferentes problemas envolvidos na mudança de pesadas prensas, sendo que cada uma delas, como
acontece com maquinaria sofisticada, tinha suas peculiaridades. Os seus operários especializados já se tinham habituado a elas. Numa nova instalação, porém, as máquinas
iriam adquirir novas peculiaridades. Haveria atrasos; o período de instalação levaria mais tempo do que seria o caso da fábrica do seu estimado amigo Julius Madritsch.
O Untersturmführer devia compreender que, com importantes contratos de material de guerra a serem cumpridos, a DEF não podia dispor de tal lapso de tempo. Herr Beckmann,
que tinha a mesma espécie de problema, estava despedindo todos os seus judeus da usina de Corona. Não queria a confusão de judeus sendo conduzidos de manhã para
a usina e levados de volta à noite para Plaszóvia. Infelizmente ele, Schindler, tinha algumas centenas mais de trabalhadores especializados do que Beckmann. Se os
despedisse, poloneses teriam de ser treinados no lugar deles e de novo haveria um atraso na produção, e um atraso maior ainda, se ele aceitasse o atraente ofereci
mento de Goeth e se mudasse para Plaszóvia.
Amon pensou que talvez Oskar estivesse preocupado com a possibilidade de a mudança para Plaszóvia prejudicar algumas das suas negociatas em Cracóvia. O comandante
apressou-se em garantir a Herr Schindler que não haveria interferência alguma na gerência de sua
fábrica de esmaltados.
- São puramente problemas industriais que me preocupam -
disse respeitosamente Schindler. Não queria causar inconveniências ao comandante mas ficaria grato, e tinha certeza de que a Inspetoria deArmamentos lhe seria
grata, se fosse permitido à DEF permanecer emseu local.
Entre Goeth e Oskar, a palavra "gratidão" não tinha um significado abstrato. Gratidão era pronto pagamento. Eram bebidas e diamantes.
- Compreendo os seus problemas, Herr Schindler - disse Amon.
- Terei prazer, uma vez liquidado o gueto, em fornecer uma guarda para escoltar os seus empregados de Plaszóvia a Zablocie.
Certa tarde em que foi a Zablocie a negócio da fábrica Progress, Itzhak Stern encontrou Oskar deprimido e percebeu que o amigo estava tomado de um perigoso senso
de impotência. Depois de Klonowska ter servido um café, que Herr Direklor tomou como sempre com uma dose de conhaque, Oskar contou a Stern que tinha voltado a Plaszóvia:
ostensivamente, para examinar as instalações; na realidade, para calcular quando estariam prontas para receber os Ghettomenschen.
- Fiz os cálculos - disse Oskar. Tinha contado as casernas naencosta do outro lado e constatado que, se Amon tencionava atulhar200 mulheres em cada uma
delas, o conjunto poderia agora abrigar 6.000 mulheres. O setor dos homens, mais abaixo na encosta, não tinha tantas construções terminadas mas, no ritmo em que
se
trabalhava em Plaszóvia, dentro de poucos dias estaria tudo terminado. -Todos na oficina da fábrica sabem o que vai acontecer - continuouele. - E não adianta manter
o turno da noite aqui dentro, porque depois dessa operação, não haverá um gueto para onde eles voltem. Tudo o que lhes posso dizer - acrescentou Oskar, tomando
outro golede conhaque - é que não devem procurar esconder-se, a não ser quetenham certeza da segurança do esconderijo. - Ouvira dizer que a intenção era pôr abaixo
o gueto, depois de ter sido evacuado. Cada
cavidade de parede seria revistada, cada tapete de sótão retirado, cada nichorevelado, cada porão revolvido. - E o único conselho que posso daraos meus empregados
é que não resistam.
E assim, ilogicamente, Stern, um dos alvos da planejada Aktion, foi quem procurou consolar Herr Direktor Schindler, frisando que ele seria apenas uma testemunha
da Aktion. A preocupação de Oskar com os seus empregados judeus estava se difundindo, devido à tragédia maior da destruição do gueto. Plaszóvia era uma instituição
de trabalho, disse Stern. Como todas as instituições, podia oferecer uma sobrevida. Não era como Belzec, onde se fabricava a morte em série como Henry Ford fabricava
carros. Era degradante ter de obedecer a ordens sem pestanejar, mas não era o final de tudo. Quando Stern terminou seus argumentos, Oskar colocou ambos os polegares
sob a borda chanfrada de sua mesa e pareceu, por uns instantes, querer arrancá-la.
Sabe de uma coisa, Stern - disse -, nada disso é consolo suficiente!
É, sim - replicou Stern. - É o único caminho a adotar. - E continuou argumentando, citando e detalhando, sentindo-se, ele próprio, apavorado, porque Oskar parecia
estar em crise. Se Oskar perdesse a esperança, Stern sabia que todos os empregados judeus da Ema lia seriam despedidos, pois Oskar iria querer purificar-se de toda
aquela imundície.
Chegaria a hora de se fazer algo mais positivo, ponderou Stern. Mas não ainda.
Abandonando a tentativa de arrancar a borda da sua mesa de trabalho, Oskar reclinou-se na poltrona e voltou a parecer deprimido.
- Você conhece aquele Amon Goeth - disse ele. - É um homem com charme. Poderia chegar aqui e exercer o seu charme sobre você. Mas trata-se de um lunático.
Na última manhã do gueto - que coincidiu ser um Shabbat 13 de março -, Amon Goeth chegou à Praça Zgody, Praça da Paz, a uma hora matutina que oficialmente, precedia
a madrugada. Nuvens baixas obscureciam a linha divisória entre a noite e o dia. Viu que os homens do Sonderkommando já haviam chegado e se espalhavam pelo solo congelado
do parque no centro da praça, fumando e rindo baixo, mantendo em segredo sua presença para os habitantes do gueto nas ruas adiante da farmácia de Pankiewicz. Os
caminhos que tomariam estavam limpos, como numa cidade-modelo. A neve restante se empilhava nas sarjetas e contra os muros. É de se presumir que o sentimental Goeth
tenha-se sentido paternal com relação aos seus rapazes reunidos em camaradagem no centro da praça, antes da ação.
Amon tomou um trago de conhaque, enquanto esperava pele Sturmbannführer Willi Haase, homem de meia-idade, que estava encarregado do controle estratégico, porém não
tático, da Aktion desse dia. Hoje o Gueto A, da Praça Zgody para o oeste, a seção maior
onde moravam todos os trabalhadores judeus (saudáveis, esperançosos, obstinados), seria esvaziado. O Gueto B, pequeno conjunto de uns poucos quarteirões a leste,
era habitado pelos velhos, os que não tinham emprego. Seriam arrancados dali à noite ou pela manhã. Estavam destinados ao grandemente expandido campo de extermínio
do Comandante Rudolf Hóss, em Auschwitz. Gueto B era um trabalho direto, honesto. Gueto A era o desafio.
Todos queriam estar ali hoje, pois seria uma data histórica. Ha via bem mais de sete séculos que existia uma Cracóvia judaica, e essa noite ou no máximo até o dia
seguinte - aqueles sete séculos desapareceriam, e Cracóvia estaria judenrein (limpa de judeus). E cada SS subalterno queria poder dizer que assistira ao evento.
Até mesmo Unkelbach, o Treuhánder da fábrica de cutelaria Progresso, tendo um pos to de reserva na SS, ia vestir seu uniforme NCO e entrar no gueto com uma das brigadas.
Portanto, o eminente Willi Haase, como oficial
superior e um dos organizadores do plano, tinha todo o direito de estar ali presente.
Amon, sofrendo de sua habitual dor de cabeça e um pouco esgotado com a insônia febril que o acometera tarde da noite, mesmo as sim comparecera para assistir ao evento,
tomado de certo entusiasmo profissional. Era uma grande dádiva do Partido Nacionalsocialista aos homens da SS que eles tivessem a chance de entrar em combate, sem
nenhum risco físico, que pudessem conquistar honrarias sem as contingências que implicavam expor-se a ser baleado. Não fora fácil conseguir impunidade psicológica.
Todo oficial SS tinha amigos que se haviam suicidado. Os compêndios de treinamento da SS, escritos para combater essas baixas absurdas, assinalavam a tolice de se
acreditar que pelo fato de o judeu não estar visivelmente armado, deixasse de possuir armas sociais, econômicas ou políticas. Na realidade estava armado até os dentes.
Fortaleçam-se, alertavam os compêndios, pois a criança judia é uma bomba-relógio cultural, a mulher judia uma biologia de traições, o homem judeu um inimigo mais
incontrolável do que nenhum russo poderia jamais ser.
Amon Goeth se sentia em forma. Sabia que ninguém poderia tocá-lo, e esse pensamento provocava nele a mesma deliciosa excitação de um corredor de longa distância
antes de uma corrida que tem certeza de ganhar. Amon desprezava com certo bom humor os oficiais que
fastidiosamente deixavam a ação a cargo de seus homens e dos NCO. Sentia que de certa maneira essa atitude poderia ser mais perigosa do que uma atuação direta.
Ele mostraria o caminho, como tinha mostrado no caso de Diana Reiter. Sabia a euforia que ia sentir no decorrer do dia, a gratificação crescente, juntamente com
o gosto da bebida, quando o ritmo fosse se acelerando. Mesmo sob a baixa esqualidez daquelas nuvens, Amon sabia que aquele seria um dos seus melhores dias, sentia
que, quando ele fosse velho e a raça judia extinta, os jovens maravilhados iriam perguntar-lhe sobre os acontecimentos de dias como aquele.
A menos de um quilômetro de distância o Dr. H., um médico do hospital de convalescença do gueto, cuidava, na penumbra, de seus últimos pacientes, grato por vê-los
assim isolados no andar superior, bem distantes da rua, a sós com a sua dor e sua febre.
Pois, ao nível da rua, todos sabiam o que tinha acontecido com o hospital de isolamento perto da Praça Zgody. Um destacamento da SS sob as ordens do Oberscharführer
Albert Hujar tinha penetrado no hospital para fechá-lo e encontrara a Dra. Rosalia Blau entre os leitos de seus pacientes de escarlatina e de tuberculose, que, dizia
ela, não podiam ser removidos. As crianças com coqueluche ela mandara antes para suas casas. Mas os portadores de escarlatina não podiam ser re movidos seja por
eles mesmos seja pela comunidade, e os doentes de tuberculose simplesmente não tinham forças para se levantar.
Como a escarlatina é uma enfermidade da adolescência, muitos dos pacientes da Dra. Blau eram meninas entre 12 e 16 anos. Diante de Albert Hujar, a Dra. Blau apontou,
como uma garantia de seu julgamento profissional, para as meninas ardendo em febre.
O próprio Hujar, agindo sob mandato que lhe fora conferido uma semana antes por Amon Goeth, matou a Dra. Blau com um tiro na cabeça. As doentes de moléstias contagiosas,
algumas tentando levantar-se de seus leitos, outras inconscientes em seu delírio, foram executadas numa fúria de fogo automático. Quando o pelotão de Hujar terminou
a sua tarefa, uma turma de homens do gueto foi enviada ao andar superior para remover os cadáveres, empilhar os lençóis ensangüentados e lavar as paredes.
O hospital ficava situado num prédio, onde funcionara, antes da guerra, uma delegacia de polícia polonesa. Durante toda a existência do gueto, os seus três andares
tinham estado repletos de doentes. O diretor do hospital era um médico muito respeitado, o Dr. B. Naquela fria manhã de 13 de março, os Drs. B. e H. haviam reduzido
o número de pacientes para quatro, todos eles irremovíveis. Um era um jovem operário com tuberculose galopante; o segundo, um talentoso músico com uma doença fatal
de rins. Ao Dr. H. parecia que eles deviam ser poupados do pânico final de uma alucinada rajada de balas. Sobretu do o cego, sofrendo de um insulto cerebral, e o
senhor idoso que uma cirurgia para extrair um tumor intestinal deixara enfraquecido e molestado ainda por uma colostomia.
A equipe médica, inclusive o Dr. H., era do mais alto nível. Daquele mal equipado hospital de gueto iam derivar os primeiros informes poloneses sobre a doença eritroblástica
de Weil, uma afecção da medula do osso, e da síndrome Wolff-Parkinson-White. Nessa manhã, porém, a preocupação maior do Dr. H. era com o dilema do cianureto.
Com o pensamento na opção do suicídio, o Dr. H. tinha adquiri do um suprimento de uma solução de cianureto. Sabia que outros médicos haviam tomado a mesma providência.
Naquele último ano, o estado depressivo tinha sido endêmico no gueto e atingira também o Dr. H., homem jovem, com uma saúde de ferro. Mas a realidade era que a própria
História parecia ter-se tornado maligna. Em seus dias de maior depressão, fora um conforto para o Dr. H. a certeza de que tinha acesso ao cianureto. Naquele último
estágio de existência do gueto, era o único produto farmacêutico de que ele e os outros médicos podiam dispor em quantidade. A sulfa era uma raridade. Acabara o
estoque de eméticos, éter e até aspirina. Cianureto era a única droga sofisticada que restava.
Nesse dia, antes das cinco horas da manhã, o Dr. H. fora despertado em seu quarto na Rua Wit Stwosz pelo ruído de caminhões estacionando do lado de fora do muro
do gueto. Olhando pela janela, viu os Sonderkommandos reunindo-se à margem do rio e compreendeu que tinham vindo para alguma atuação decisiva. Correu para o hospital
onde encontrou o Dr. B. e a equipe de enfermagem já em atividade, providenciando para que todos os pacientes que podiam ser removi dos fossem levados para baixo,
onde parentes ou amigos se encarregavam de retirá-los do hospital. Quando todos, exceto os quatro em estado crítico, já tinham saído, o Dr. B. disse às enfermeiras
que se retiras sem, e todas obedeceram exceto a enfermeira-chefe. Agora só restavam ela, os Drs. B. e H. e os quatro pacientes no hospital quase deserto.
Enquanto esperavam, os Drs. B. e H. pouco falaram. Ambos tinham acesso ao cianureto; logo o Dr. H. notaria que o Dr. B. também estava tristemente preocupado com
o dilema da droga. Sim, havia o suicídio. Mas havia a eutanásia também. O conceito aterrava H. Ele tinha um rosto sensível e uma certa delicadeza na expressão dos
olhos. A sua ética o fazia sofrer com uma angústia tão íntima, como se se tratasse de órgãos do seu próprio corpo. Sabia que um médico com sensibilidade comum, uma
seringa de injeção e praticamente nada mais para norteá-lo, podia somar, como se fosse uma lista de compras, os valores das duas opções - injetar o cianureto ou
abandonar os pa cientes ao Sonderkommando. Mas H. sabia também que tais coisas nunca eram uma questão de calcular valores, que a ética era mais complexa e tortuosa
do que a álgebra.
Às vezes o Dr. B. ia até a janela, olhava para fora para ver se a Aktion já tinha começado nas ruas, e voltava-se para H. com uma ex pressão de calma profissional
nos olhos. H. podia perceber que o outro também estava perplexo ante as opções, como se fossem cartas que estivesse embaralhando e tornando a embaralhar. Suicídio.
Eutanásia. 4cido de hidrocianureto. Um conceito não sem atração: manter-se ali ^espera entre as camas como Rosalia Blau. Outro conceito: usar o cianureto em si próprio,
assim como nos pacientes. A segunda perspectiva atraía H., por lhe parecer menos passiva do que a primeira. Além disso, tendo acordado deprimido naquelas últimas
três noites, ele sentira algo como um desejo físico pelo veneno instantâneo, como se fosse apenas a droga ou bebida forte que toda vítima necessitava para suavizar
a hora final.
Para um homem sério como o Dr. H., essa tentação era um motivo a mais para não ingerir o veneno. Para ele a motivação do suicídio tinha sido estabelecida desde
a sua educação infantil, quando o pai lera para ele, num texto do historiador Josephus Flavius, a narrativa do suicídio em massa dos Fanáticos do Mar Morto, na iminência
de serem capturados pelos romanos. O princípio era que não se devia entrar na morte como num abrigo aconchegante, mas, tão-somente, numa inequívoca recusa de rendição.
Princípios são princípios, é claro, e o terror numa manhã cinzenta é outra coisa. Mas H. era um homem de princípios.
E tinha uma esposa. Ele e a mulher haviam planejado um itinerário de fuga pelos esgotos próximos da esquina da Rua Piwna com Krakusa. Os esgotos eram um caminho
de fuga arriscado para a floresta de Ojców. Temia a fuga mais do que o fácil oblívio do cianureto. Se a Polícia Azul ou os alemães o detivessem e lhe amassem as
calças, ele passaria na prova, graças ao Dr. Lachs. Lachs era um ilustre cirurgião plástico, que ensinara a vários jovens judeus de Cracóvia como alongar os seus
prepúcios, sem derramamento de sangue: dormir cora um peso - uma garrafa contendo um volume de água gradativamente maior - amarrado ao pênis. Segundo Lachs, era
um recurso usado pelos judeus em épocas de perseguição romana e a intensidade da atuação da SS em Cracóvia o fizera ressuscitar o estratagema naqueles últimos dezoito
meses. Lachs ensinara aquele método ao seu jovem colega H., e o fato de o ter empregado com algum sucesso justificava ainda menos no seu caso o recurso do suicídio.
De madrugada a enfermeira, mulher calma de uns quarenta anos de idade, veio fazer o relatório da noite ao Dr. H. O rapaz estava re pousando tranqüilamente, mas o
cego com a fala afetada pela embolia aparentava grande ansiedade. O músico e o caso de fístula anal tinham tido ambos uma noite penosa. Agora, porém, reinava o silêncio
no hospital; os pacientes se remexiam no final do sono ou na intimidade da sua dor. O Dr. H. saiu para a fria sacada acima do pátio, a fim de fumar um cigarro e
mais uma vez estudar a questão.
No ano anterior ele estivera trabalhando no velho hospital epidêmico em Rekawka, quando a SS decidira fechar aquela zona do gueto e relocalizar o hospital. Nessa
ocasião haviam enfileirado a equipe contra a parede e arrastado os pacientes escadas abaixo. H. tinha visto a per na da velha Sra. Reisman ficar presa entre os balaústres
e um SS, que a puxava pela outra perna não se deter para desembaraçá-la e continuar puxando-a até a perna enganchada quebrar com um estalo audível. Era assim que
se removiam pacientes no gueto. Mas no ano anterior ninguém pensava em matar por piedade. Naquela altura dos acontecimentos, to dos ainda tinham esperança de que
as coisas poderiam melhorar.
Agora, mesmo que ele e o Dr. B. tomassem a decisão, H não tinha certeza de que teria a coragem de dar cianureto aos seus pacientes ou assistir a alguém ministrar
o veneno e manter uma impassibilidade profissional. De certa forma absurda, era como a argumentação em sua juventude, sobre se devia aproximar-se de uma garota,
pela qual estava interessado. E mesmo depois de ele tomar uma decisão, isso de nada adiantava. Ainda não fora encarado o ato.
Ali, da sacada, ele ouviu o primeiro ruído. Começara cedo e vinha do lado leste do gueto. Os raus, raus dos megafones, a mentira costumeira a respeito das bagagens,
que algumas pessoas ainda persistiam em acreditar. Nas ruas desertas e entre as habitações onde ninguém se movia, podia-se ouvir em todo o percurso da Praça Zgody
até Madwislanska, à margem do rio, um indefinido murmúrio de terror que fazia tremer o próprio Dr. H.
Depois ele ouviu a primeira rajada, tão estrondosa que deu para acordar os doentes. E uma súbita estridência após os disparos, um megafone violento rugindo contra
alguma plangente voz feminina; por fim a lamúria cessando bruscamente após uma nova rajada de balas. Sucedeu-se um choro diferente, o lamento dos que estavam sendo
impelidos pelos bullhorns SS, por ansiosos OD e por vizinhos, o incontrolável lamento, que foi desaparecendo na extremidade do gueto, onde havia um portão. Sabia
que aquilo tudo teria sido ouvido até pelo músico em seu estado pré-comatoso.
Quando retornou à ala da enfermaria, ele pôde notar que todos - até mesmo o músico - o observavam. Podia sentir, mais do que ver, os corpos se retesando em seus
leitos; o ancião com a colostomia grilava com o esforço muscular. "Doutor, doutor!", alguém exclamou. 0 Dr. H. respondeu um "Por favor!" que significava: "Estou
aqui e eles ainda estão muito longe." Então olhou para o Dr. B., que cerrou os olhos, quando recomeçou o barulho dos disparos a três quarteirões de distância. O
Dr. B. fez-lhe um sinal com a cabeça, encaminhou-se para o pequeno armário farmacêutico trancado, no final da enfermaria, e voltou com um frasco de ácido cianídrico.
Após uma pausa, H. aproximou-se do seu colega. Poderia ter deixado tudo a car go de Dr. B., pois sabia que o outro tinha bastante coragem para agir sozinho, sem
precisar do amparo de colegas. Mas seria uma covardia, pensou H., não dar o seu próprio voto de aprovação, não assumir par te da responsabilidade. O Dr. B. era um
especialista, um pensador. Que ria dar ao Dr. B. o seu apoio integral.
- Muito bem - disse o Dr. B., mostrando rapidamente o frasco a H. Suas palavras foram quase abafadas pelos gritos de uma mulher e as vociferantes ordens oficiais,
que provinham da extremidade da Rua
Jozefinska. O Dr. B. chamou a enfermeira. Dê a cada paciente quarenta gotas com água.
Quarenta gotas? - repetiu ela, sabendo qual era a medicação.
Quarenta - repetiu o Dr. B.
O Dr. H. olhou também para a enfermeira. "Sim", queria lhe dizer. "Agora sinto-me forte; poderia dar eu mesmo a medicação. Mas, se o fizesse, iria alarmar os doentes.
Todos eles sabem que as enfermeiras são as encarregadas da medicação."
Enquanto a enfermeira preparava a mistura, H. adiantou-se pela enfermaria e pousou sua mão na do velho.
Tenho algo para ajudá-lo, Roman - disse ele. E ficou surpreso que aquele contato de pele como que lhe transmitisse a história do velho: por um segundo, como num
lampejo de chama, pareceu-lhe ver ali o jovem Roman crescendo na Galícia de Franz Josef, vivendo na deliciosa cidadezinha de nugá, apetite Wien, a jóia do Vístula,
Cracóvia; um rapaz sedutor fardado com o uniforme de Franz Josef, subindo as montanhas para as manobras da primavera; soldadinho de chocolate em Rynek Glowny com
as moças de Kazimierz, cidade de rendas e patisseries; escalando o Morro Kosciuszko e roubando um beijo entre os arbustos. Como podia o mundo ter mudado tanto no
decurso de uma só vida?, perguntava-se o que restava do jovem no velho Roman. De Franz Josef ao NCO, que tinha a sanção para trucidar Rosalia Blau e as meninas com
escarlatina?
Por favor, Roman - disse o médico, como que pedindo ao velho que relaxasse o corpo. Calculava que o Sonderkommando esta ria ali dentro de uma hora. O Dr. H. sentiu,
mas resistiu, à tentação de contar o seu segredo ao velho. O Dr. B. fora liberal com a
dosagem. Uns poucos segundos de falta de ar e um pequeno susto não se riam nenhuma nova ou intolerável sensação para o velho Roman.
Quando a enfermeira chegou com os quatro copos de remédio, nenhum deles perguntou-lhe sequer o que ela estava lhes trazendo. o Dr. H. nunca saberia se algum deles
chegara a compreender. Voltou-se e consultou o seu relógio. Receava que, quando eles bebessem o veneno, emitiriam algum gemido, algo pior do que os arquejos e engasgos
normais em um hospital.
- Aqui tem o seu remédio - ouviu a enfermeira dizer. E depoiso arfar de uma respiração, mas não sabia se provinha do paciente ouda própria enfermeira. "Aqui,
a mulher é a verdadeira heroína",
pensou ele.
Quando tornou a olhar, a enfermeira estava acordando o moribundo, o sonolento músico, e oferecendo-lhe o copo. Na outra extremidade da enfermaria, o Dr. B. avistou
uma jaqueta branca muito limpa. O Dr. H. aproximou-se do velho Roman e tomou-lhe o pulso.
Nenhuma pulsação. Em um leito na outra extremidade da enfermaria, o músico ingeriu com esforço o líquido que cheirava a amêndoas.
Tudo se passou suavemente, como H. tanto desejara. Observou os seus pacientes - bocas escancaradas mas não obscenamente, olhos vidrados e imunes, cabeças jogadas
para trás, queixos voltados para o teto - observou-os com a mesma inveja, que qualquer habitante do gueto sentiria de fugitivos.
Capítulo 21
Poldek Pfefferberg habitava um quarto no segundo andar de uma casa do século XIX, no final da Rua Jozefinska. Das janelas descortinava-se por cima do muro do
gueto
o Rio Vístula, onde barcaças polonesas subiam e desciam, na ignorância de que aquele era o derradeiro dia do gueto, e barcos de patrulhamento da SS passavam casualmente,
como se estivessem a passeio. Ali Pfefferberg esperava com sua mulher, Mila, pela chegada do Sonderkommando, que iria jogá-los na rua. Mila era uma pequenina e nervosa
jovem de vinte e dois anos, uma refugiada de Lodz, com quem Poldek se casara nos primeiros dias do gueto. Descendia de uma família de médicos, seu pai fora um cirurgião
que morrera muito cedo, em 1937; sua mãe uma dermatologista a quem, durante uma Aktion no gueto de Tarnow no ano anterior, coubera a mesma sorte que a de Rosalia
Blau no hospital de isolamento: foi fuzilada entre os seus doentes.
Mila tivera uma infância feliz, mesmo na anti-semita Lodz, tendo iniciado seus estudos de medicina em Viena no ano anterior à guerra. Conhecera Poldek quando, em
1939, habitantes de Lodz tinham sido transferidos para Cracóvia, e ela fora alojada no mesmo apartamento que o ativo Poldek Pfefferberg.
Agora ele era, como Mila, o último membro de sua família. Sua mãe, que em outros tempos havia redecorado o apartamento de Schindler em Straszewskiego, fora enviada
juntamente com o marido para o gueto de Tarnow. De lá, como mais tarde seria apurado, eles tinham sido levados para Belzec e assassinados. Sua irmã e cunhado, com
documentos arianos, haviam desaparecido na prisão de Pawiak em Varsóvia. Poldek e Mila só tinham um ao outro neste mundo. Entre os dois existia um abismo de temperamentos:
Poldek era desenvolto, um líder, um organizador; o tipo que, quando aparecia uma autoridade e perguntava que diabo estava acontecendo, daria um passo à frente e
saberia falar. Mila era tímida, sendo que o incrível destino, que arrasara sua família, a havia tornado ainda mais retraída. Numa época de paz, a combinação dos
dois teria sido excelente. Não só inteligente mas sensata, ela era a própria tranqüilidade. Tinha senso de humor.
Freqüentemente Poldek Pfefferberg precisava da mulher para conter suas torrentes de oratória. Hoje, porém, nesse dia problemático, os dois estavam em conflito.
Embora Mila estivesse disposta, se surgisse a oportunidade de abandonar o gueto, até mesmo de aceitar a idéia do casal se transformar em guerrilheiros na floresta,
tinha medo dos esgotos. Poldek usara-os mais de uma vez como meio de escapar do gueto, embora a polícia, às vezes, estivesse de guarda à entrada e à saída. O seu
amigo e antigo professor, Dr. H., também tinha recentemente sugerido a rede de esgotos como um caminho de fuga, que podia não estar sendo guardado no dia em que
o Sonderkommando penetrasse no gueto. O plano era esperar pelo antecipado cair da tarde do inverno. A porta da casa do médico ficava a apenas uns poucos metros de
uma entrada da rede. Uma vez lá embaixo, deviam seguir pelo túnel da esquerda, que corria por baixo das ruas do não-gueto Podgórze até uma saída na barragem do Vístula,
perto do canal da Rua Zatorska. Na véspera, o Dr. H. avisara-o de que ele e a mulher iam tentar a fuga pelos esgotos e
convidara os Pfefferberg a fugir com eles. Poldek não podia, àquela altura, comprometer-se a participar da fuga. Mila temia, aliás temor razoável, que a SS inundasse
de gás os esgotos ou, de qualquer forma, resolvesse chegar cedo ao quarto dos Pfefferberg, no final da Rua Jozefinska.
Um dia lento, tenso, no quarto do sótão, a dúvida sobre qual rumo tomar. Vizinhos deviam estar também na expectativa. Talvez alguns deles, não tolerando esperar
mais, já houvessem partido com os seus embrulhos e valises, pois aquela miscelânea de ruídos levava as pessoas a se precipitarem escadas abaixo - ruídos violentos,
vagamente ouvidos a quarteirões de distância, enquanto ali pairava um silêncio em que se podia ouvir o antigo, indiferente madeiramento das casas estalando como
para marcar as últimas e piores horas de seus inquilinos. Na claridade turva do meio-dia, Poldek e Mila mastigaram seu pão preto, os 300 gramas para cada um, que
haviam guardado. Os ruídos provenientes da Aktion tinham avançado até a esquina da Rua Wegierska, a um longo quarteirão de distância e, no princípio da tarde, tornado
a afastar-se. Fez-se então um quase silêncio. Alguém tentou inutilmente dar descarga na latrina recalcitrante do primeiro andar.
Àquela hora, era quase impossível eles acreditarem que tinham ficado esquecidos.
A última tarde pardacenta de suas vidas na Rua Jozefinska número 2, recusava-se, apesar da obscuridade, a terminar. Poldek contudo, achou que a luz já era bastante
fraca para se tentar a fuga pelos esgotos, antes do cair da noite. Queria, agora que tudo parecia mais cal mo, ir falar com o Dr. H.
- Por favor - pediu-lhe Mila.
Mas ele a tranqüilizou. Procuraria manter-se fora das ruas, avançando por uma série de buracos que ligavam um prédio ao outro. Insistiu que não correria perigo.
Nas ruas daquele lado parecia não haver patrulhamento. Evitaria algum ocasional OD ou SS nos cruzamentos e estaria de volta dentro de cinco minutos.
- Mila querida, tenho de combinar a fuga com Dr. H. - disse ele.Saindo pela escada dos fundos para o quintal, Poldek se embarafustou por um buraco na parede
da estrebaria, sem emergir para a rua, até chegar à Agência de Trabalho. Ali arriscou cruzar uma via larga e chegou ao quarteirão triangular de casas do lado oposto,
onde
encontrou grupos de pessoas confusas, trocando boatos e discutindo opções, em cozinhas, galpões, pátios e corredores. Por fim, saiu na Rua Krakusa, logo defronte
da moradia do médico. Atravessou a rua, sem ser notado por uma patrulha que revistava o limite sul no gueto, cerca de três quarteirões adiante, na área em que Schindler
assistira, pela primeira vez, à prova de até que extremos iam os ditames da política racial do Reich.
O prédio do Dr. H. estava deserto, mas no pátio Poldek encontrou um atordoado homem de meia-idade, que informou que o Sonderkommando já estivera ali e que o médico
e a mulher tinham primeiro se escondido, depois fugido para os esgotos. A SS vai voltar, alertou-o Poldek, que conhecia bem as táticas da Aktion, por já ter sobrevivido
a tantas delas.
Voltou, então, pelo caminho que fizera na vinda e pôde de novo cruzar a via. Mas encontrou o número 2 vazio. Mila desaparecera cora as bagagens, todas as portas
estavam escancaradas, ninguém nos quar tos. Pensou que talvez todos estivessem escondidos no hospital - Dr. H., sua mulher e Mila. Talvez o médico tivesse vindo
buscá-la, em
consideração à ansiedade daquela descendente de uma longa linhagem de médicos.
Poldek tornou a sair apressadamente pelo buraco da estrebaria e, através de passagens alternativas, chegou ao pátio do hospital. Como bandeiras de rendição abandonadas,
lençóis ensangüentados estavam pendurados das sacadas dos dois primeiros andares. No calçamento de pedras da rua havia uma pilha de vítimas, algumas com a cabeça
espatifada, os membros retorcidos. Não eram evidentemente os doentes moribundos dos Drs. B. e H. Eram gente que havia sido detida durante o dia e depois executada.
Alguns deviam ter sido aprisionados nos andares superiores, fuzilados e depois atirados à rua.
Mais tarde, sempre que era interrogado sobre os cadáveres empilhados debaixo das janelas do hospital do gueto, Poldek calculava uns 60 ou 70, embora não tivesse
tido tempo de contar toda aquela pirâmide de corpos. Cracóvia era uma cidade provinciana e Poldek fora um menino muito sociável em Podgórze, depois em Centrum, e
costumava visitar com sua mãe pessoas abastadas e importantes da cidade. As sim reconheceu na pilha macabra vários rostos: antigos clientes de sua mãe; pessoas que
lhe perguntavam sobre os seus estudos na Escola
Superior de Kosciuszko, a quem dava respostas precoces, e que lhe ofereciam bolos e doces. Agora estavam vexatoriamente expostas e empilhadas na rua ensangüentada.
Não ocorreu a Pfefferberg procurar os corpos de Mila e do Dr. H. e sua mulher. Como que sentia o motivo que o retinha ali naquele momento. Acreditava piamente num
futuro melhor, quando haveria tribunais justos. Tinha a sensação de ser uma testemunha, a mesma sensação que Schindler sentira no morro acima da Rua Rekawka.
Sua atenção foi desviada para uma turba na Rua Wegierska adiante do pátio do hospital. Encaminhava-se para o portão de Rekawka com passos vagarosos, sem desespero,
os passos de operários de fábrica nu ma manhã de segunda-feira ou de torcedores de um time de futebol derrotado. No meio dessa onda de gente, Poldek reconheceu vizinhos
da Rua Jozefinska. Afastou-se do pátio carregando como uma arma escondida na manga do seu paletó a imagem daquela cena. O que acontecera a Mila? Algum vizinho o
saberia? Disseram-lhe que ela já tinha partido. O Sonderkommando já passara por lá. Já devia ter atravessa do o portão, para onde? Para Plaszóvia.
Evidentemente, ele e Mila tinham elaborado um plano de emergência para o caso de um impasse como aquele. Se um dos dois fosse parar em Plaszóvia, seria melhor que
o outro ficasse do lado de fora. Poldek sabia do dom de Mila de passar despercebida, dom invejável para prisioneiros, mas que também podia fazê-la sofrer o tormento
da fome. Ele seria o seu provedor de comida. Tinha certeza de que essas coisas podiam se arranjar. Mas não era uma decisão fácil - a marcha da multidão aturdida,
que a SS mal vigiava, para o portão sul e as
Fábricas cercadas de arame farpado em Plaszóvia, indicava o local onde a maioria das pessoas, sem dúvida com razão, consideravam que se daria o final de seus padecimentos.
A claridade, apesar da hora tardia, parecia agora mais intensa, como se a neve estivesse prestes a cair. Poldek conseguiu atravessar a rua e entrar em apartamentos
vazios. Não sabia se estavam mesmo vazios ou cheios de habitantes do gueto, astuciosa ou ingenuamente escondidos - aqueles que acreditavam que, para onde quer que
a SS os conduzisse, no final iriam parar nas câmaras de extinção.
Poldek estava procurando um bom lugar para se esconder. Por passagens secretas chegou ao depósito de madeiras na Rua Jozefinska. Madeira era um artigo raro. Não
havia estruturas grandes de madeira cortada que lhe servissem de esconderijo. O local que parecia mais
adequado ficava atrás dos portões de ferro da entrada do depósito. O tamanho e negrume dos portões seriam um bom abrigo para passar a noite. Mais tarde pareceria
difícil a Poldek acreditar que escolherão local com tanto entusiasmo.
Agachou-se atrás da folha do portão, que tinha sido empurrada contra a parede do escritório abandonado. Pela fresta entre o portão e a pilastra, ele podia ver a
Rua Jozefinska na direção de onde viera. Escondido atrás da gélida grade de ferro entrevia uma fatia da noite, de um cinza luminoso, e puxou o paletó sobre o peito.
Um homem e uma mulher passaram apressadamente, em direção ao portão do gueto, evitando esbarrar nas trouxas espalhadas no chão, as malas com inúteis etiquetas. KLEINFELD,
anunciavam elas: LEHRER, BAUME, WEINBERG, SMOLAR, STRUS, ROSENTHAL, BIRMAN, ZEI TLIN. Nomes que nunca teriam de volta um recibo. "Montes de pertences, carregados
de memórias", o jovem artista Josef Bau escreveria relatando tais cenas. "Onde estão os meus tesouros?"
Vindo do outro lado daquele campo de batalha de bagagens, Poldek podia ouvir o latido agressivo de cães. Então, caminhando pela calçada da Rua Jozefinska apareceram
três SS, um deles puxado por dois grandes cães policiais. Os cães arrastaram seu treinador para
dentro do número 41 da rua, mas os outros dois homens ficaram esperando na calçada. Ele concentrou sua atenção nos cães: pareciam uma cruza de dálmatas e pastores
alemães. Continuava vendo Cracóvia como uma cidade alegre, onde animais assim pareciam estranhos, como se houvessem sido trazidos de algum gueto mais rigoroso. Pois
mesmo naquela última hora, escondido atrás do portão de ferro, ele era grato à cidade, e presumia que o terror derradeiro não se daria ali, mas em outro lugar qualquer
menos acolhedor. Essa presunção desapareceu no meio minuto seguinte. O pior estava acontecendo ali mesmo, em Cracóvia. Por uma fresta do portão, ele assistiu à cena
que lhe revelou que, se existia um pólo da maldade, não se situava em Tarnow, Tchecoslováquia, Lwów ou Varsóvia, como supusera. Situava-se no lado norte da Rua Jozefinska,
a alguns metros de distância. Do número 41, emergiu gritando uma mulher com uma criancinha. Um cão retinha a mulher pelo tecido do vestido, a carne de seu quadril.
O SS treinador dos cães agarrou a criança e atirou-a contra a parede. O ruído fez com que Pfefferberg fechasse os olhos, e ele ouviu o tiro que pôs fim aos gritos
de protesto da mulher.
Assim como Pfefferberg calculara que a pirâmide no pátio do hospital devia ter uns 60 ou 70 corpos, ele sempre afirmaria que a criança não podia ter mais do que
dois ou três anos de idade.
Talvez até mesmo antes de ela estar morta, certamente antes de ele próprio se dar conta, Poldek pôs-se de pé, como se a decisão fosse provocada por alguma glândula
da coragem em seu cérebro. Abandonou o esconderijo atrás do portão, que não o protegeria dos cães. Uma vez na rua, imediatamente ele adotou a postura militar que
tinha aprendido no Exército polonês e, como um homem encarregado de uma tarefa formal, curvou-se e começou a recolher trouxas e malas espalhadas pelo solo e a empilhá-las
junto aos muros. Podia ouvir os três SS se aproximando; o rosnar dos cães era quase palpável; pareceu-lhe que a noite toda se estirava até que, com a tensão, se
rompessem as correias que retinham os animais. Quando Poldek calculou que eles estavam a uns dez passos de distância, endireitou o corpo e arriscou-se a notá-los
fazendo o papel do judeu dócil de educação européia. Viu que as botas e calças de montaria dos três estavam respingadas de sangue mas eles não pareciam envergonhados
de se apresentar daquela manei ra diante de outros seres humanos. O oficial do meio era o mais alto. Não parecia um assassino; havia algo de sensível no rosto grande
e na linha sutil da boca.
Pfefferberg, em sua roupa puída, bateu os tacões de papelão, no estilo militar polonês, e esboçou uma continência para o homem alto. Ele não entendia nada de postos
da SS e não sabia como dirigir-se cor retamente ao sujeito.
- Herr - disse ele. - Herr Commandant!
Era um termo que lhe brotara no cérebro, sob a ameaça de extinção, como uma faísca elétrica. E provou ser a palavra exata, pois o homem alto era Amon Goeth, na plena
atividade naquela tarde, exultante com os progressos do dia e tão capaz de instantâneos e instintivos exercícios de poder como Poldek era capaz de instantâneos e
instintivos subterfúgios.
- Herr Commandant, informo-lhe respeitosamente que recebi
ordem de empilhar todas as bagagens de um lado da rua para
desobstruí-la. Os cães em suas correias esticavam o pescoço para ele. Esperavam, condicionados pelo seu negro treinamento e pelo ritmo da Aktion do dia, ser soltos
para atacar Pfefferberg. Os seus rosnados não eram apenas ferozes mas como que confiantes no desfecho daquele confronto, e a questão era se o SS à esquerda do Herr
Commandant teria força suficiente para retê-los. Pfefferberg não tinha muita confiança na sua salvação. Não o surpreenderia ser triturado pelos cães e depois ser
liberado por uma bala da ferocidade dos animais. Se a mulher não tinha escapado implorando pelo filho, pouca chance tinha ele com aquela conversa de bagagens, de
desobstruir uma rua onde, de qualquer modo, fora abolido o tráfego humano.
Mas o comandante achou Pfefferberg mais divertido do que a mulher. Ali estava um Ghettomensch brincando de soldado diante de três oficiais da SS e fazendo o seu
relatório, servil, se verdadeiro, e quase simpático se falso. O comportamento dele era, sobretudo, diferente do estilo de uma vítima. De todas as criaturas marcadas
para extermínio, ninguém mais tentara bater os saltos em continência. O Herr Commandant podia portanto exercer o direito régio de mostrar uma irracional e inesperada
condescendência. Inclinou a cabeça para trás, retraindo o lábio superior. Foi uma larga, espontânea risada, e seus colegas
sorriram e abanaram as cabeças.
- Untersturmführer - disse Goeth, com sua excelente voz de
barítono. - Nós estamos cuidando de tudo. O último grupo está
deixando o gueto. Verschwinde! - Isto é, "Suma daqui, soldadinho polonêsbatedor de tacões!"
Pfefferberg começou a correr, sem olhar para trás, e não se teria surpreendido se levasse um tiro pelas costas. Correndo sempre, chegou à esquina da Rua Wegierska
e dobrou-a, passando pelo pátio do hospital onde horas antes testemunhara aquela cena horrenda. A noite chegou quando ele já se aproximava do portão, e iam desaparecendo
as últimas ruas familiares do gueto. Na Praça Podgórze, o último grupo oficial de prisioneiros esperava cercado por um cordão de homens da SS e ucranianos.
- Eu devo ser o único que saiu de lá com vida - disse ele aoshabitantes do gueto.
Além dele, havia Wulkan, o joalheiro, com mulher e filho. Wulkan estivera trabalhando naqueles últimos meses na fábrica Progress e, sabendo o que ia acontecer, fora
procurar o Treuhänder Unkelback cora um grande diamante que trazia, havia dois anos, escondido no forro de um casaco.
- Herr Unkelbach - dissera ele ao supervisor. - Irei para onde quer que me mandem mas minha mulher não está em condições de suportar todo esse estrondo e
violência.
Wulkan, a mulher e o filho ficariam esperando na delegacia da OD sob a proteção de um policial judeu, que os conhecia; e então, talvez durante o dia, Herr Unkelbach
viria buscá-los e os levaria sem violências para Plaszóvia.
Desde manhã bem cedo eles tinham ficado sentados num cubículo na delegacia; fora uma espera muito penosa, como se houvessem permanecido em sua cozinha, o menino
alternadamente aterrado e entediado e a mulher continuando a atormentar o marido com suas censuras. "Onde está ele? Será que vai mesmo aparecer? Essa gente, essa
gente." Na primeira parte da tarde, Unkelbach realmente apareceu na Ordnungsdienst para usar o banheiro e tomar um café. Ao sair do local de espera, Wulkan viu o
Treuhander Unkelbach, sob um aspecto que não conhecia: envergava o uniforme da SS NCO, e estava fumando e conversando animadamente com outro SS; com a mão direita
ele sorvia vorazmente o café e mordia um pedaço de pão preto, enquanto sob a esquerda retinha sua pistola pousada como um animal em repouso sobre o balcão da delegacia;
manchas escuras de sangue riscavam-lhe o preto do uniforme. Os olhos que ele voltou para Wulkan não reconheceram o joalheiro. Imediatamente, Wulkan se deu conta
de que Unkelbach não estava roendo a corda; simplesmente não se lembrava do combinado. O homem estava embriagado, mas não seria por esse motivo que, se Wulkan lhe
houvesse dirigido a palavra, a resposta teria sido um olhar de total incompreensão, seguido, muito provavelmente, de algo bem pior.
Wulkan desistiu e voltou para junto de sua mulher, que continuou insistindo:
- Por que você não fala com ele? Vou falar, se ele ainda estiver lá.
Ela viu, então, uma sombra nos olhos de Wulkan e espiou pela porta entreaberta. Unkelbach estava se preparando para sair. Notou-lhe o uniforme desarrumado, o sangue
de pequenos comerciantes e suas mulheres manchando-lhe a roupa. Soltando um gemido, voltou a sentar-se.
Como o marido, foi tomada agora de compreensível desespero e a espera de certa forma pareceu mais fácil. O OD, que os conhecia, tornou a devolver-lhes a esperança
e a ansiedade, dizendo-lhes que todos os membros da OD, com exclusão dos pretorianos de Spira, tinham de estar fora do gueto às seis horas da noite e na estrada
de Wieliczka a caminho de Plaszóvia. Ele ia ver se havia um jeito de colocar os Wulkan em um dos veículos.
Quando caiu a noite, após a passagem de Pfefferberg pela Rua Wegierska e de o último grupo de prisioneiros ter sido reunido na Praça Podgórze, enquanto o Dr. H.
e sua mulher rumavam para leste na companhia e sob a guarda de um grupo de barulhentos bêbados
poloneses e pelotões do Sonderkommando repousavam e fumavam um cigarro, antes da última investida contra as moradias do gueto, duas carroças pararam à porta da
delegacia. Os OD esconderam a família Wulkan sob caixas de papelão e trouxas de roupas..Symche Spira e seus associados estavam funcionando em alguma outra rua, tomando
café com os NCO, comemorando a sua atuação dentro do sistema.
Mas antes de as carroças saírem pelo portão do gueto, os Wulkan, encolhidos bem no fundo do veiculo, ouviram o quase contínuo pipocar de tiros nas ruas que iam ficando
para trás. Aquilo significava que Amon Goeth, Willi Haase, Albert Hujar, Horst Pilarzik e
centenas de outros da mesma laia estavam invadindo sótãos, tetos falsos, canastras em porões, e encontrando aqueles que, em todo o decorrer do dia, haviam-se mantido
em esperançoso silêncio.
Mais de 4.000 pessoas foram encontradas no decorrer daquela noite e executadas nas ruas. Nos próximos dois dias seus corpos foram trans portados para Plaszóvia em
caminhões abertos e enterrados em valas comuns nos bosques próximos do novo campo de concentração.
Capítulo 22
Não sabemos em que estado de espírito Oskar Schindler passou o dia 13 de março, o último e pior dia do gueto. Mas, quando os seus empregados voltaram, sob guarda,
de Plaszóvia para a fábrica, ele estava de novo disposto a coligir informações e transmiti-las ao Dr. Sedlacek, na próxima visita do dentista. Apurou pelos prisioneiros
que Zwangsarbeitslager Plaszóvia - como o denominavam os burocratas da SS - não ia ser nenhum reino racional. Goeth já se entregara à sua ojeriza por engenheiros,
permitindo que os guardas espancassem Zygmunt Grünberg até deixá-lo em estado de coma, e de pois não o levassem para a clínica perto do campo das mulheres, senão
quando já era tarde demais para salvá-lo. Pelos prisioneiros, que tomavam a sua substanciosa sopa do almoço na DEF, Oskar soube também que Plaszóvia estava sendo
utilizado não apenas como campo de trabalho mas como local de execuções. Além de todo o campo ouvir os disparos das execuções, alguns dos prisioneiros as haviam
testemunhado pessoalmente.
O prisioneiro M.,* por exemplo, que antes da guerra tivera uma loja de decoração em Cracóvia. Nos primeiros dias de existência do campo, ele fora solicitado para
decorar as residências dos SS, peque nas casas de campo que margeavam a vereda na parte norte. Como qualquer artesão com uma especialidade, tinha mais liberdade
de movimento, e certa tarde daquela primavera caminhara da casa do Unlersturmführer Leo John por um atalho, que levava ao morro Chujowa Górka, em cujo cume ficava
a fortaleza austríaca. Dispunha-se a descer a encosta do outro lado, de volta à fábrica, quando teve de se deter
•Residindo hoje em Viena, a pessoa não quer que seja usado o seu verdadeiro nome
para dar passagem a um caminhão do Exército, que subia a encosta. M. notou que sob a capota havia mulheres sob a guarda de ucranianos vestidos com macacões brancos.
Escondera-se por detrás de tábuas empilhadas e tivera uma visão incompleta das mulheres, quando eram desembarcadas e impelidas para dentro do forte, recusando despir-se.
O homem, que berrava as ordens lá dentro, era o SS Edmund Sdrojewski. Os ucranianos caminhavam entre as mulheres, espancando-as com o cabo de seus chicotes. M. presumiu
que elas eram judias, provavelmente surpreendidas com documentos arianos e trazidas da prisão de Montelupich para ali. Algumas gritavam de dor mas outras se mantinham
em silêncio, como que recusando aos ucranianos aquela satisfação. Uma delas começou a entoar o Shema Yisroel e as outras a imitaram. Os versos soavam vigorosos acima
do mor ro, como se tivesse ocorrido justo naquele momento às mulheres que até a véspera haviam fingido ser arianas - que agora, uma vez cessada a pressão, estavam
inteiramente livres de celebrar sua diferença tribal na cara de Sdrojewski e dos ucranianos. Depois, agrupadas, por pudor e para se protegerem do ar frio da primavera,
elas foram todas fuziladas. À noite, os ucranianos levaram os corpos em carrinhos de mão e os enterraram nos bosques do outro lado do
Chu jowa Górka.
Habitantes do campo abaixo também tinham sabido daquela primeira execução no morro, agora profanamente apelidado de "Morro do Cacete''. Alguns procuravam se convencer
de que guerrilheiros tinham sido fuzilados, marxistas intratáveis ou nacionalistas enlouquecidos. Lá em cima era outro país. Quem obedecesse às ordens dentro do
arame farpado nunca teria de subir aquele morro. Mas os emprega dos de Schindler, mais esclarecidos, sendo conduzidos pela Rua Wie liczka acima, passando pela fábrica
de cabos de Zablocie para trabalhar na DEF - sabiam por que os prisioneiros de Montelupich estavam
sendo fuzilados no forte austríaco: a SS não parecia se incomodar que fosse vista a chegada dos caminhões, ou que fossem ouvidos os disparos dos tiros em toda Plaszóvia.
A razão era simples: a SS tinha conhecimento de que a população do campo jamais poderia prestai testemunho. Se houvesse a preocupação com referência a tribunais,
futuros testemunhos em massa, eles poderiam ter levado as mulheres mais longe para executá-las. A conclusão a que se devia chegar, decidiu Oskar, não era que Chujowa
Górka fosse um mundo separado de Plaszóvia, mas que todos eles, tanto os que eram levados de caminhão ao forte, como os que viviam por trás das cercas de arame farpado
estavam sob a mesma sentença de morte
Na primeira manhã em que o Comandante Goeth emergiu da porta da frente de sua casa e assassinou ao acaso um prisioneiro, houve uma tendência para se ver esse episódio,
assim como a primeira execução no Chujowa Górka, como um fato único, apartado do que se tornaria a vida costumeira do campo. A verdade era que as matanças no morro
viriam a se tornar habituais, assim como a rotina das manhãs de Amon.
De camisa, calças de montaria e botas, as quais sua ordenança dava um polimento faiscante, Amon aparecia nos degraus da frente de sua casa provisória. (Uma residência
melhor estava sendo reformada para seu uso, na outra extremidade do perímetro do campo.) À medida que o tempo fosse esquentando, ele iria aparecer sem camisa, pois
amava o sol. Mas, por enquanto, trazia a roupa com que tinha tomado o seu café da manhã, um binóculo numa das mãos e um fuzil com mira telescópica na outra. Com
o binóculo percorria a área do campo, o trabalho na pedreira, os presos puxando e empurrando as carretas nos trilhos, que passavam pela sua porta. Os que erguessem
os olhos pode riam ver a fumaça do seu cigarro preso entre os lábios, à maneira co mo um homem fuma quando está muito ocupado para largar as ferramentas de seu ofício.
Logo nos primeiros dias de vida do campo ele apareceu assim à porta de sua casa e atirou num prisioneiro, que não parecia estar empurrando com bastante energia uma
carreta car regada de pedra calcária. Ninguém sabia o motivo exato de Amon ter destacado aquele prisioneiro - Amon certamente não tinha de prestar contas dos seus
atos. Ao estampido partindo do degrau da casa, o homem foi projetado para fora do grupo de cativos, indo cair à margem do caminho. Os outros, naturalmente, pararam
de trabalhar, com os músculos retesados, na expectativa de mais uma matança geral. Mas Amon fez-lhes sinal com a mão para que continuassem a trabalhar, franzindo
o sobrolho, como que para significar que, por enquanto, es tava satisfeito com o ritmo do trabalho.
À parte de tais excessos com prisioneiros, Amon estava também quebrando uma das promessas que fizera aos empresários. Oskar recebeu um telefonema de Madritsch, sugerindo
que ambos fossem fazer uma queixa. Amon tinha dito que não interferiria nos negócios das fábricas. Pelo menos, não estava interferindo lá dentro. Mas atrasava os
turnos, detendo a população do campo durante horas na Appell platz (praça de paradas) fazendo a chamada, nome por nome. Madritsch relatou um caso em que uma batata
fora encontrada em determinada caserna; por isso, como castigo, todos os moradores tinham sido publicamente açoitados diante de milhares de prisioneiros. Evidentemente,
o castigo consistia em obrigar algumas centenas de pessoas a descerem as calças e roupas de baixo, ou suspender as saias, e aplicar em cada uma vinte e cinco chicotadas.
O regulamento estabelecido por Goeth era que cada prisioneiro chicoteado devia ir contando as chicotadas para facilitar o trabalho das ordenanças ucranianas, encarrega
das de aplicar o castigo. Se a vítima se atrapalhava na contagem, recomeçava-se tudo do início. As chamadas do Comandante Goeth na Appellplatz eram cheias de medidas
desse tipo, que atrasavam os trabalhos.
Assim, os turnos chegavam com um atraso de horas na fábrica de roupas de Madritsch dentro do campo de Plaszóvia, e ainda mais tarde na fábrica de Oskar na Rua Lipowa.
Além disso, chegavam trans tornados, incapazes de concentração, balbuciando histórias do que Amon ou John ou Scheidt ou qualquer outro tinha feito naquela manhã.
Oskar queixou-se a um engenheiro seu conhecido na Inspetoria de Armamentos. Não adiantava queixar-se aos chefes de polícia, disse o engenheiro.
Eles não estão envolvidos na mesma guerra que nós - comentou.
O que eu devia fazer - disse Oskar - era manter os meus em pregados no recinto de trabalho. Organizar o meu próprio campo.
O engenheiro achou graça na idéia.
E aonde iria acomodar tanta gente, meu caro? O espaço de que dispõe não bastaria.
Se eu puder adquirir mais espaço - disse Oskar - você esta ria disposto a escrever uma carta apoiando a minha idéia?
Quando o engenheiro concordou, Oskar foi procurar um casal idoso chamado Bielski, que residia na Rua Stradom. Perguntou se estariam interessados numa oferta pelo
terreno contíguo à fábrica. O casal ficou encantado com os seus modos. Como o aborrecesse o ritual de pechinchar, Oskar começou oferecendo-lhes um preço excelente.
Eles lhe serviram um chá e, muito excitados, chamaram seu advogado para preparar os papéis imediatamente. Em seguida, muito cortesmente, Oskar foi procurar Amon
para dizer-lhe da sua intenção de criar um
subcampo de Plaszóvia em sua própria fábrica. Amon gostou da idéia.
- Se os generais e a SS aprovarem - disse ele - você pode
contar com a minha cooperação. Desde que não queira me tirar os meusmúsicos ou a minha criada particular.
No dia seguinte, foi marcada uma reunião geral com o Oberführer Scherner na Rua Pomorska. Tanto Amon quanto o General Scherner sabiam que Oskar iria ter de arcar,
de alguma forma, com todas as despesas do novo campo. Podiam perceber que, quando Oskar usava o argumento industrial - "Quero os meus empregados dentro da fábrica,
a fim de poder explorar melhor o seu potencial de trabalho"
- falava ao mesmo tempo algo maluco da sua personalidade, para quem a questão de despesas não existia. Consideravam-no um bom sujeito, que fora contaminado por uma
forma qualquer de amor a judeus, como um vírus. A dedução da teoria da SS era que o gênio semita de tal forma permeara o mundo, que podia produzir efeitos mágicos.
Portanto, devia-se lamentar o que ocorrera com Herr Oskar Schindler, como se ele fosse um príncipe que se houvesse transformado num sapo. Mas Herr Schindler teria
de pagar por essa enfermidade.
As exigências do Obergruppenführer Friedrich-Wilhelm Krüger, chefe de polícia do Governo-Geral e superior de Scherner e Czurda, baseavam-se nos regulamentos estabelecidos
pela Seção de Campos de Concentração do Escritório Administrativo e Econômico do General Oswald Pohl, embora até aquele momento o campo de Plaszóvia fosse governado
independentemente do escritório de Pohl. As estipulações básicas para um Subcampo de Trabalhos Forçados implicavam a construção de cercas de quase três metros de
altura; torres de vigia situadas em determinados intervalos, de acordo com o perímetro do campo; latrinas, casernas, clínica, gabinete dentário, casa de banhos e
complexo de desinfecção, barbearia, empório, lavanderia, escritório, habitações para os guardas, de padrão superior ao das casernas dos prisioneiros, e todos os
outros anexos necessários. O que ocorrera a Amon, Scherner e Czurda era que, de justiça, Oskar teria de arcar com todas essas despesas por motivos econômicos e em
razão do encantamento cabalístico, que se apossara dele.
E, como tinham a intenção de fazer Oskar pagá-las, a sua proposta os interessava. Restava um gueto em Tarnow, a uns sessenta quilômetros a leste, e, quando este
fosse abolido, a população teria de ser absorvida pelo campo de Plaszóvia, além dos milhares de judeus que chegavam agora, vindos dos shteils do sul da Polônia.
Um subcampo na Rua Lipowa iria aliviar a pressão.
Amon achava também que, embora nunca o expressasse em voz alta aos chefes de polícia, não haveria necessidade de suprir o campo da Rua Lipowa com muita exatidão
quanto ao mínimo de necessidades alimentícias, estabelecido nas diretrizes do General Pohl. Amon - que podia lançar raios da porta de sua casa, sem que ninguém pro
testasse - era adepto da idéia oficial de que convinha haver certo desgaste em Plaszóvia. Assim, já estava vendendo uma percentagem das rações dos prisioneiros no
mercado de Cracóvia, através de um seu agente, um judeu chamado Wilek Chilowicz, que mantinha contatos com gerentes de fábricas, negociantes e até donos de restaurantes.
0 Dr. Alexander Biberstein, agora ele próprio um prisioneiro, apurou que a ração diária variava entre 700 e 1.000 calorias. De manhãcada prisioneiro recebia meio
litro de café preto ersatz, com gosto de glandes de carvalho, e um pedaço de pão de centeio pesando 175g, a oitava parte de um dos pães redondos, que todas as manhãs
as ordenanças do rancho das casernas iam buscar na padaria. Sendo a fome uma força desmoralizante, a ordenança de cada rancho cortava o pão de costas para os famintos
e pilheriava: "Quem quer este pedaço? Quem vai querer?" Ao meio-dia era distribuída uma sopa - cenouras, beterrabas, um substituto de sagu. Em certos dias a sopa
era mais encorpada. Alimentos melhores entravam no campo, trazidos de fora pelos trabalhadores. Uma galinha pequena podia ser transportada debaixo do casaco, um
pão francês preso numa perna de calça. Entretanto, Amon procurava impedir que isso acontecesse, mandando que os guardas revistassem os trabalhadores de volta ao
campo defronte do Prédio da Administração. Não queria que fosse frustrado o desgaste natural, nem que o sopro ideológico desaparecesse de suas negociatas com alimentos
através de Chilowicz. Como não saciava os próprios prisioneiros, ele achava que, se Oskar decidira abrigar mil judeus, poderia matar-lhes a fome a suas próprias
expensas, sem um fornecimento muito regular de pão e beterraba dos empórios de Plaszóvia.
Naquela primavera, não foi apenas com os chefes de polícia de Cracóvia que Oskar teve de se entender. Visitou a área dos fundos de sua fábrica para ganhar os vizinhos
à sua causa. Adiante das duas cabanas rústicas de Jereth, construídas com tábuas de pinho, ficava a fábrica de radiadores dirigida por Kurt Hoderman, que empregava
um bando de poloneses e cerca de cem prisioneiros de Plaszóvia. Na outra direção havia a fábrica de embalagens de Jereth, supervisionada pelo engenheiro alemão Kuhnpast.
Como eram poucos os prisioneiros de Plaszóvia empregados ali, os dois donos das fábricas não se interessa ram muito pela idéia mas não fizeram objeção, porque Oskar
estava oferecendo moradia aos empregados judeus de ambos a 50 metros do local de trabalho, em vez de cinco quilômetros.
Em seguida, Oskar foi conversar com o engenheiro Schmilewski na guarnição militar da Wehrmacht, situada umas poucas ruas adiante de sua fábrica, que empregava um
esquadrão de prisioneiros de Plas zóvia. Schmilewski não tinha nenhuma objeção a fazer, e seu nome, além dos de Kuhnpast e Hoderman, foi acrescentado ao requerimento
que Schindler enviou à Rua Pomorska.
Supervisores da SS foram visitar a Emalia e conferenciaram com o supervisor Steinhauser, um velho amigo de Oskar da Inspetoria de Armamentos. Inspecionaram o recinto
com um ar carrancudo, como é costume dos supervisores, e fizeram perguntas sobre drenagem. Oskar
levou-os todos ao seu gabinete no andar de cima e serviu-lhes café
e conhaque; depois houve despedidas afáveis. Poucos dias depois, o requerimento para montar um Sub campo de Trabalhos Forçados no terreno da fábrica foi aprovado.
Naquele ano a DEF iria faturar um lucro de 15,8 milhões de reich marks. Poder-se-ia pensar que os 300 mil RM que Oskar gastara até agora na construção do campo constituíam
uma despesa vultosa porém
não ruinosa. Mas a verdade era que ele estava apenas começando a pagar.
Oskar enviou um pedido ao Bauleitung, ou Escritório de Construção, de Plaszóvia, para que lhe fosse cedido um jovem engenheiro de nome,
Adam Garde, que nessa ocasião trabalhava ainda nas casernas do campo de Amon. Garde então, depois de deixar instruções aos encarregados
das construções, era conduzido por uma guarda individual de Plaszóvia à Rua Lipowa, a fim de supervisionar o conjunto de obras de Oskar. Quando lá chegou pela primeira
vez, o engenheiro encontrou duas casernas rudimentares, que já abrigavam perto de 400 prisioneiros.
Havia uma cerca patrulhada por um pelotão da SS mas os reclusos contaram a Garde que Oskar não permitia que os SS penetrassem no acampamento ou na oficina da fábrica,
exceto, naturalmente, quando inspetores categorizados vinham inspecionar o local. Disseram ainda que
Oskar mantinha a pequena guarnição militar da SS na fábrica bem provida de bebidas e satisfeita de ali permanecer. Garde podia ver que os prisioneiros da Emalia,
eles próprios, pareciam contentes com suas duas frágeis moradias de tábuas de pinho, uma para
os homens, outra para as mulheres. Já estavam começando a referir-se a si mesmos como os Schindlerjuden, usando o termo com cautelosa
satisfação, da mesma maneira que um convalescente de ataque do coração poderia considerar-se um sujeito de sorte. Já tinham cavado umas tantas latrinas primitivas,
cujo mau cheiro o engenheiro Garde, por mais que aprovasse aquela disposição para ajudar, não pudera deixar de notar desde a entrada da fábrica. Para o banho, eles
usavam a água de uma bomba ao ar livre. Oskar pediu a Garde que o acompanhasse ao seu gabinete e examinasse os
planos. Seis casernas para até 1.200 pessoas. A cozinha de campanha numa extremidade, a caserna da SS - Oskar estava hospedando
os SS numa parte da fábrica - fora da cerca de arame farpado.
- Quero instalações de primeira qualidade para os chuveiros e lavanderia - disse Oskar. - Tenho bombeiros que poderão trabalhar sob sua direção. Tifo... - acrescentou
ele, esboçando um sorriso para Garde. - Não queremos tifo no nosso campo. Piolhos é o que não falta em Plaszóvia. Precisamos ter espaço para ferver as roupas. Adam
Garde estava muito satisfeito de poder ir todos os dias para a
Rua Lipowa. Dois engenheiros já haviam sido punidos em Plaszóvia
por causa de seus diplomas mas os técnicos na Emalia nunca eram rebaixados. Certa manhã, quando era conduzido por um guarda pela Rua Wieliczka em direção a Zablocie,
de repente surgiu uma limusine preta, que freou bruscamente. Lá de dentro emergiu o Untersturmführer Goeth. Estava com aquele seu ar agitado.
- Um guarda para um só prisioneiro? - observou ele. - O que significa isso?
O ucraniano desculpou-se, informando ao Herr Commandant que tinha recebido ordem de escoltar seu prisioneiro todas as manhãs até a Emalia de Herr Oskar Schindler.
Tanto o ucraniano como Garde
esperavam que a menção do nome de Oskar lhes desse imunidade.- Um guarda para um prisioneiro? - tornou a perguntar o
comandante, mas se acalmou e entrou de novo na sua limusine, sem
resolver a questão de algum modo radical. Mais tarde, naquele mesmo dia, ele entrou em contato com Wilek Chilowicz, que além de ser seu agente era também chefe da
polícia judaica do campo - ou os "bombeiros", como eram chamados. Symche Spira, recentemente transformado em Napoleão do gueto, ainda morava lá e passava os dias
supervisionando as buscas e escavações de diamantes, ouro e dinheiro escondidos, que não haviam sido registrados pelos judeus que agora eram cinzas sob os pinheiros
de Belzek. Contudo, em Plaszóvia, Spira não tinha poder algum, pois o centro do poder ali era Chilowicz. Ninguém sabia de onde derivava a autoridade de Chilowicz.
Talvez Willi Kunde houvesse recomendado o seu nome a Amon; talvez Amon tivesse gostado do estilo do agente. O fato é que, de um momento para outro, ele passou a
ser chefe dos "bombeiros" de Plaszóvia, o distribuidor de bonés e braçadeiras, símbolos de autoridade naquele degradante
reino e, como Symche, de imaginação bastante primária para equacionar o seu poder com o dos czares.
Goeth chamou Chilowicz e disse-lhe que era melhor ele mandar Adam Garde para Schindler por tempo integral e acabar com aquela função de escoltá-lo todos os dias
à fábrica. "Temos engenheiros para dar e vender", dissera Goeth com desprezo. Insinuava que a engenharia
era a opção mais fácil para os judeus, habitualmente barrados das faculdades de medicina nas universidades polonesas. Mas, de qualquer maneira, declarou Goeth, Garde
teria primeiramente de terminar o trabalho
do seu conservatório.
Adam Garde recebeu a notícia na Caserna 21, onde os beliches se empilhavam de quatro em quatro. Seria devolvido para Zablocie, no final de uma provação - a de trabalhar
nos fundos da casa de Goeth onde, como o teriam advertido Reiter e Grünberg, os regulamentos eram imprevisíveis.
No decorrer da obra para o comandante, uma grande viga estava sendo colocada na cumeeira do conservatório de Amon. Enquanto trabalhava, Adam Garde podia ouvir latirem
os dois cães do comandante, Rolf e Ralf, nomes inspirados numa história em quadrinhos - que apenas diferiam no modo de agir, pois, anteriormente, com o consentimento
de Amon, tinham estraçalhado o seio de uma prisioneira suspeita
de andar vagabundeando.O próprio Amon, com sua instrução técnica precária, aparecia freqüentemente
por lá e adotava ares profissionais, enquanto via as vigas do teto sendo erguidas por roldanas. Pôs-se a fazer perguntas, quando a viga central estava sendo encaixada
no lugar. Era uma imensa viga de pinho pesado; postado do outro lado da peça, Goeth fez alguma pergunta. Adam Garde não compreendeu o que o comandante estava perguntando
e pôs a mão em concha no ouvido. De novo Goeth fez a pergunta, e pior do que não ouvi-la, Garden não a compreendeu.
- Não compreendo, Herr Commandant - admitiu ele.
Amon agarrou a viga imensa suspensa no ar e, com ambas as mãos de possantes dedos, impeliu-a na direção do engenheiro. Garde viu o maciço tronco apontado em direção
à sua cabeça e compreendeu que seria um golpe mortal. Ergueu a mão direita defendendo-se; a viga então esmagou-lhe as juntas e metacarpos e atirou-o ao chão. Quando
Garde pôde enxergar de novo através da névoa de dor e náusea, Amon já se fora. Talvez voltasse no dia seguinte para uma resposta satisfatória...
Com receio de ser considerado aleijado e deficiente, o engenheiro evitou exibir a mão a caminho da Krankenstube (enfermaria), e manteve-a numa postura normal, apesar
da dor excruciante. Mas acabou permitindo que o Dr. Hilfstein a engessasse. Assim continuou a supervisionar a construção do conservatório, e todos os dias era conduzido
à fábrica Emalia, esperando que a manga comprida do paletó disfarçasse
o gesso. Ainda assim, impelido pelo mesmo receio, ele acabou arrancando o gesso da mão. Paciência se ela iria ficar defeituosa! O que ele queria era garantir a sua
transferência para o campo de Schindler, aparentando condições físicas perfeitas.
Uma semana depois, carregando uma camisa, alguns livros e uma trouxa, ele foi definitivamente escoltado para a Rua Lipowa.
Capítulo 23
ntre os prisioneiros bem-informados, já havia competição para ir trabalhar na Emalia. O prisioneiro Dolek Horowitz, por ser o encarregado de compras no campo de
Plaszóvia, sabia que não lhe seria permitido ir para o subcampo de Schindler. Mas tinha mulher e dois filhos. Richard, o mais novo de seus filhos, acordava cedo
naquelas manhãs
do começo da primavera - quando a terra se despedia do inverno envolta num nevoeiro -, saltava do beliche de sua mãe na caserna das mulheres e descia correndo a
encosta para o campo dos homens, pensando no grosseiro pão da manhã. Tinha de comparecer com o pai à primeira chamada na Appellplatz. No caminho o menino passava
pelo posto da polícia judaica de Chilowicz e, mesmo nas manhãs de bruma, podia ser visto das duas torres de vigia. Mas estava em segurança porque todos o conheciam.
Era o filho de Horowitz. O pai era considerado valioso por Herr Bosch, que, por sua vez, costumava beber em companhia do comandante. A sensação de liberdade de Richard
era uma conseqüência da capacidade técnica de seu pai; passava contente sob os olhos dos guardas, entrava na caserna dos homens e acordava o pai em seu catre, com
perguntas. Por que há névoa de manhã e não à tarde? Vai haver caminhões? Vai demorar muito a chamada do dia na Appellplatz"? Vai haver gente chicoteada?
Pelas perguntas de Richard, Dolek Horowitz chegou à conclusão de que Plaszóvia não servia nem mesmo para crianças privilegiadas. Talvez pudesse entrar em contato
com Schindler. Com o pretexto de estar cuidando de seu negócio, Schindler aparecia de vez em quando no campo e dava uma volta pelo Prédio da Administração e pelas
oficinas,
para distribuir pequenos presentes e trocar notícias com velhos
amigos, tais como Stern, Roman Ginter e Poldek Pfefferoerg Como Dolek não conseguia falar com ele nessas ocasiões, ocorreu-lhe que tal vez pudesse entrar em contato
com o industrial através de Bosch. Dolek
acreditava que os dois se viam amiudamente. Não ali no campo, mas talvez em escritórios na cidade e em reuniões sociais. Percebia que eles não eram amigos mas mantinham
ligações de negócios e de favores
mútuos.
Não era talvez apenas Richard que Dolek queria que fosse para a fábrica da Schindler: Richard podia diluir seu terror em nuvens de perguntas. Mas principalmente
Niusia, sua filha de dez anos, que era apenas uma criança franzina entre muitas outras, que não mais faziam perguntas; que perdera a capacidade de franqueza; que,
diariamente - de uma janela na oficina de vassouras, onde ela costurava os pêlos nas armações de madeira -, via chegarem caminhões repletos no forte austríaco do
morro e carregava insuportavelmente o seu terror, como uma adulta, incapaz de subir no colo de seus pais e transferir o seu medo. A fim de mitigar a fome, Niusia
habituara-se a fumar cascas de cebola enroladas em papel de jornal. Os boatos que corriam sobre a Emalia eram que lá não havia necessidade daqueles recursos precoces.
Assim Dolek apelou para Bosch numa de suas idas à fábrica de roupas. Criara coragem, animado com a idéia de bondades anteriores de Bosch, para pedir-lhe que falasse
com Herr Schindler. Repetiu o pedido e mais uma vez o nome dos filhos, para que Bosch, cuja memória estava afetada pelo abuso dos schnapps que bebia, não se esquecesse.
Bosch disse que Herr Schindler era "o meu melhor amigo e fará tudo o que eu pedir". Dolek não esperava muito daquela conversa. Sua mulher, Regina,
não tinha nenhuma experiência em trabalhar com esmaltados. O próprio Bosch não mais tornou a mencionar o assunto. Contudo, uma semana depois, eles eram incluídos
na lista dos próximos trabalhadores da Emalia, sancionada pelo Comandante Goeth, em troca de um pequeno envelope contendo jóias. Niusia parecia uma adulta retraída
na caserna das mulheres na Emalia e Richard se movimentava como em Plaszóvia, conhecido de todos na seção de munições e nas oficinas de peças esmaltadas; os próprios
guardas não faziam objeção à sua familiaridade. Regina estava sempre esperando que Oskar a procurasse para dizer: "É você a mulher de Dolek Horowitz?" Seu único
problema, então, seria como expressar sua gratidão. Mas ele nunca a procurou. Regina notava, satisfeita, que na Rua Lipowa nem ela nem a filha chamavam muito atenção.
Ambas sabiam que Oskar não ignorava quem elas fossem, pois freqüentemente ele chamava Richard pelo
nome. E sabiam também, pela natureza incomum das perguntas de Richard, a extensão do benefício com que haviam sido agraciados. O campo da Emalia não tinha um comandante
residente para tiranizar os prisioneiros. Não havia guardas permanentes. A guarnição era trocada a cada dois dias, homens da SS e ucranianos, que vinham em dois
caminhões de Plaszóvia para Zablocie para se encarregarem da segurança do subcampo. Os soldados que gostavam de ser destacados para a Emalia. As cozinhas de Herr
Direktor, embora ainda mais primitivas do que as de Plaszóvia, serviam refeições melhores. Como Herr Direktor se indignava e imediatamente ligava para o Oberführer
Scherner, quando algum guarda, em vez de cingir-se ao patrulhamento do perímetro, penetrava no campo, a guarnição não ousava passar para o outro lado da cerca. O
patrulhamento em Zablocie era agradavelmente monótono.
Exceto quando havia inspeção de oficiais da SS, os prisioneiros, que trabalhavam na DEF, raramente viam de perto os seus guardas. Um corredor, com cerca de arame
farpado de ambos os lados, levava-os para o local do seu trabalho na oficina de esmaltados; outro, até a porta da seção de munições. Os judeus da Emalia, que trabalhavam
na fábrica de embalagens, de radiadores e no escritório da guarnição, eram levados e trazidos de volta por ucranianos, substituídos por outros a cada dois dias.
Assim, nenhum guarda tinha tempo de cismar com algum prisioneiro e persegui-lo.
Portanto, embora coubesse à SS estabelecer os limites da vida que os prisioneiros levavam na Emalia, era Oskar quem resolvia os detalhes.
O clima era de frágil estabilidade. Não havia cães. Nem espancamentos.
A sopa e o pão eram melhores e com mais fartura do que em Plaszóvia - cerca de 2.000 calorias por dia, de acordo com um médico que trabalhava como operário na Emalia.
Os turnos eram prolongados, freqüentemente de doze horas, pois Oskar continuava sendo um homem de negócios com contratos de fornecimento de material bélico e o desejo
convencional de lucro. Contudo, é preciso dizer que o trabalho não era árduo e que muitos dos seus prisioneiros pareciam ter acreditado na ocasião que aquela atividade
era uma contribuição em termos comensuráveis para a sua sobrevivência. Segundo a prestação de contas apresentada por Oskar, depois da guerra, ao Comitê de Distribuição
Conjunto, ele havia gasto 1.800.000 zlotys (360 mil dólares) em alimentação para o campo da Emalia. Podiam-se encontrar lançamentos adulterados para despesas semelhantes
nos livros de Farbene Krupp - embora nem de longe numa percentagem de lucro tão alta como na prestação de contas de Oskar. Contudo, a verdade é que ninguém adoeceu
ou morreu de excesso de trabalho, espancamento ou fome na Emalia. Ao passo que somente na fábrica I.G. Farben Buna 25 mil dos 35 mil prisioneiros da força de trabalho
pereceram labutando.
Muitos anos depois, o pessoal da Emalia iria referir-se ao campo de Schindler como um paraíso. Como por essa época eles já estivessem espalhados pelo mundo, não
pode ter sido um termo adotado em conjunto depois de ocorridos os fatos. Era, naturalmente, um paraíso apenas relativo, um céu em contraste com Plaszóvia. O que
inspirava aquela gente era um senso de libertação quase irreal, algo de fantástico, que eles não queriam examinar muito de perto por temer vê-lo evaporar-se.
Os novos empregados da DEF não conheciam Oskar pessoalmente.
Não queriam cruzar o caminho de Herr Direktor ou arriscar-se a falar com ele. Precisavam de tempo para se recuperar e se ajustar ao sistema de prisão tão pouco ortodoxo
estabelecido por Schindler.
Uma jovem chamada Lusia, por exemplo. Recentemente a tinham separado do marido, escolhido na multidão de prisioneiros na Appellplatz de Plaszóvia e enviado com outros
para Mauthausen. Havia chorado muito, certa da realidade do seu estado de viúva. Em lágrimas, fora destacada para a lia. O seu trabalho era carregar os objetos banhados
em esmalte para os fornos. Ali era permitido aquecer água nas superfícies da maquinaria, e a oficina ficava aquecida. Para Lusia, a água quente tinha sido o primeiro
benefício da Emalia. A princípio Lusia via Oskar apenas como uma figura alta passando entre as prensas de metal ou atravessando uma passarela. Por algum motivo,
não lhe parecia uma figura ameaçadora. A sua sensação era de que, se alguém a notasse, a natureza do local - a ausência de espancamentos, a comida, o campo sem uma
guarda visível - talvez se invertesse. Queria apenas trabalhar discretamente no seu turno e retornar pelo túnel de arame farpado para a sua caserna. Após certo tempo,
Lusia passou a dar um cumprimento de cabeça a Oskar e até a dizer-lhe que, sim, obrigada, Herr Direktor, estava tudo bem. Certa vez ele lhe ofereceu cigarros, artigo
mais valioso do que ouro, não somente como reconforto, mas também como um meio de negociar com os trabalhadores poloneses. Como sabia que amigos podiam sumir, ela
temia a amizade de Oskar; queria que ele continuasse sendo uma presença, uma espécie de pai encantado. Um paraíso dirigido por um amigo era demasiado frágil. Para
se ter um céu duradouro,era preciso que houvesse alguém mais autoritário e mais misterioso. Muitos prisioneiros da Emalia sentiam o mesmo. Na ocasião em que o subcampo
de Oskar entrou em funcionamento, uma moça chamada Regina Perlman residia em Cracóvia, com documentos forjados, que a davam como sul-americana. Sua tez morena emprestava
credibilidade aos documentos e, graças a isso, ela trabalhava como sendo de raça ariana no escritório de uma fábrica em Podgórze.
Estaria mais protegida contra chantagistas, se tivesse ido para Varsóvia, Lodz ou Gdansk. Mas seus pais estavam em Plaszóvia e, na sua posição, conseguia fornecer-lhes
comida, conforto, remédios. Sabia pelos seus pais no gueto, que se tornara um adágio na mitologia judaica de Cracóvia, que era possível esperar de Herr Schindler
uma extrema dedicação. Estava a par, também, do que se passava no campo de Plaszóvia, na pedreira, nos degraus da entrada da casa do comandante.
Ela teria de desvendar sua falsa identidade para conseguir o que queria mas acreditava ser essencial conseguir a transferência de seus pais para o campo de Schindler.
A primeira vez que se apresentou na DEF, para não se fazer notar, tinha escolhido um discreto e desbotado vestido estampado e não usava meias. O porteiro polonês
telefonou para o escritório de Her Schindler no andar acima, e pela vidraça ela podia ver o olhar de desaprovação desse funcionário. "Não é ninguém especial - uma
pobretona de alguma das outras fábricas." Regina sentia medo, compreensível em pessoas com papéis forjados de raça ariana, de que o polonês descobrisse
que ela era judia. O guarda parecia hostil. Não tem maior importância, disse ela, quando ele voltou abanando a cabeça, pois não queria despertar a sua desconfiança.
Mas o polonês não se deu sequer ao trabalho de mentir.
- Herr Direktor não a quer ver - disse ele. A capota do BMW luzia no pátio da fábrica e só podia pertencer a Schindler. "O patrão estava no recinto, mas não para
visitantes, que não podiam sequer comprar
um par de meias..." Ela se retirou trêmula, pensando no perigo por que passara. Tinha sido salva de fazer a Herr Schindler uma confissão que, mesmo em sonho, temia
revelar a alguém. Regina esperou uma semana, até conseguir uma folga na fábrica de Podgórze. Dedicou toda a metade de um dia preparando-se. Tomou um banho e arranjou
um par de meias no mercado negro. De uma de suas poucas amigas - em sua situação, com documentos falsos, não podia se arriscar a ter muitas amizades - tomou emprestado
uma blusa. Tinha um casaco em boas condições e comprou um chapéu de palha laqueada com um véu. Maquilou-se, obtendo em sua tez morena o brilho próprio de uma mulher
livre de qualquer ameaça. No espelho, viu-se como era antes da guerra, uma elegante cracoviana de exótica extração racial - o pai um homem de negócios húngaro e
a mãe nascida no Rio.
Dessa vez, como Regina pretendia, o polonês não a reconheceu. Deixou-a entrar enquanto telefonava a Klonowska, a secretária de Herr
Direktor, e em seguida falou
com o próprio Schindler.
- Herr Direktor, está aqui uma jovem senhora que deseja vê-lopara tratar de um negócio importante. - Herr Schindler pediu detalhes.
- É uma moça bem-vestida e muito distinta.
Como se estivesse ansioso por conhecê-la, ou talvez temendo que se tratasse de algum caso seu no passado que pudesse causar-lhe embaraço no escritório, Schindler
foi ao seu encontro na escada. Sorriu ao ver que não a conhecia. Era um prazer conhecer Fràulein Rodriguez. Regina sentiu nele uma espécie de respeito por sua beleza,
respeito ao mesmo tempo infantil e sofisticado. Com um gesto largo de galã de cinema, convidou-a a subir ao escritório. O que tinha a dizer era confidencial?
Pois não. Acompanhando-a, ele passou pela mesa de Klonowska, que não pareceu preocupada. A moça podia significar apenas mercado negro ou alguma transação comercial.
Podia até mesmo tratar-se de uma bela guerrilheira. O amor era a suposição menos provável. De qualquer modo, uma jovem com a experiência de Klonowska não esperava
que tanto Oskar como ela própria pertencessem um ao outro com exclusividade.
Uma vez em seu gabinete, Schindler ofereceu uma cadeira à moça e foi sentar-se à sua mesa de trabalho, sob o retrato de praxe do Führer.
Aceitava um cigarro? Talvez um Pernod ou um conhaque? Não, disse Regina, mas Herr Direktor não devia se constranger de tomar o seu drinque. Ele se serviu da bebida.
Mas qual era aquele negócio tão importante?, perguntou, não com a mesma afabilidade charmosa que usara de início. Pois agora, com a porta do gabinete fechada, ela
havia adotado uma atitude diferente. Visivelmente, a visitante viera tratar de um negócio sério. Ela chegou-se para a frente. Por um instante pareceu-lhe ridículo
que, depois de seu pai ter pago 50 mil zlotys por papéis de identidade ariana, abrir o jogo e contar tudo para um Sudetendeutscher, meio irônico, meio preocupado,
com um copo de conhaque na mão.
Todavia, de certa forma, foi muito mais fácil falar do que tinha imaginado.
- Digo-lhe Herr Schindler, que não sou uma polonesa ariana.Meu sobrenome verdadeiro é Perlman. Meus pais estão no campo dePlaszóvia. Eles dizem, e eu acredito,
que trabalhar na Emalia é o mesmo
que receber um Lebenskarte, um cartão com direito à vida. Não tenho nada que lhe possa dar em troca; pedi emprestado roupas para poder ser admitida em sua fábrica.
Quer mandar buscar os meus pais para trabalharem aqui? Schindler devolveu o copo à mesa e pôs-se de pé.
- Você quer fazer um arranjo secreto? Eu não faço arranjos secretos. O que sugere é ilegal, Fràulein. Tenho uma fábrica aqui em Zablocie e a única pergunta
que faço é se a pessoa está capacitada para determinado trabalho. Se quiser ter a bondade de deixar o seu endereço e nome como ariana, talvez seja possível escrever-lhe
daqui a algum tempo e informá-la se preciso de seus pais para o trabalho em perspectiva.
Mas não agora, e não sob qualquer pretexto.-Mas eles não podem vir para cá como trabalhadores especializados - explicou Fràulein Perlman. - Meu pai era importador,
não metalúrgico.-Temos uma equipe no escritório. Mas estamos sobretudo precisando é de operários especializados na oficina.
Fora derrotada. Com lágrimas turvando-lhe a visão, escreveu o seu falso nome e endereço verdadeiro - ele que fizesse o que bem entendesse com aqueles dados. Mas,
já na rua, Regina compreendeu e começou a criar ânimo. Talvez Schindler desconfiasse de que ela podia ser uma agente, que viera preparar-lhe uma armadilha. De qualquer
modo, ele se mostrara bem frio. Nenhum gesto ambíguo, nenhuma bondade subentendida, na maneira pela qual a pusera para fora do seu gabinete. Um mês depois, o Sr.
e a Sra. Perlman foram transferidos de Plaszóvia para a Emalia. Não isoladamente, como Regina Perlman tinha imaginado que aconteceria, se Herr Oskar Schindler decidisse
ser compassívo, mas como parte de um novo grupo de trinta trabalhadores. Às vezes, ela ia até a Rua Lipovva e, à custa de suborno, conseguia entrar na oficina para
vê-los. Seu pai trabalhava dando banho de esmalte em objetos, alimentando com carvão os fornos, varrendo do chão a sucata. "Mas ele está de novo falando", contou
a Sra. Perlman à filha. No campo de Plaszóvia, ele não abria a boca.Com efeito, apesar das toscas casernas por onde o vento penetrava, dos encanamentos deficientes,
ali, na Emalia, havia um certo estado de espírito, uma confiança renascente, uma esperança de vida, que ela, vivendo arriscadamente com documentos falsos na soturna
Cracóvia, não poderia sentir senão no dia em que cessasse aquela loucura.Fràulein Perlman-Rodriguez não complicou a vida de Herr Schindler, irrompendo em seu gabinete
para lhe demonstrar gratidão ou lhe escrevendo cartas efusivas. Entretanto, sempre saía pelo portão amarelo da DEF com uma insaciável inveja dos que estavam lá dentro.
Houve, então, uma campanha para transferir para a Emalia o Rabino Menasha Levartov, que se fazia passar por metalúrgico em Plaszóvia. Levartov era um rabino erudito
da cidade, jovem e de barbas negras. Era mais liberal do que os rabinos dos shtetls da Polônia, os que acreditavam que o Shabbai era mais importante do que a própria
vida e que, no decorrer dos anos de 1942 e 1943, eram fuzilados às centenas, todas as noites de sexta-feira, por se recusarem a trabalhar nos acantonamentos de trabalhos
forcados da Polônia. Menasha Levartov era homem do tipo que, mesmo nos anos de paz, teria pregado à sua congregação que, embora a inflexibilidade dos piedosos seja
uma homenagem a Deus. o mesmo Deus também se sentiria homenageado com a flexibilidade dos sensatos. Levartov sempre merecera a admiração de Itzhak Stern, que trabalhava
no Escritório de Construção do Prédio da Administração de Amon Goeth. Nos velhos tempos, Stern e Levartov, em horas de lazer, teriam passado horas juntos bebendo
herbata, deixando a bebida esfriar, enquanto discutiam a influência de Zoroastro no judaísmo e vice-versa, ou o conceito do mundo natural no taoísmo. Stern, quando
se tratava de religião comparativa, sentia mais prazer em conversar com Levartov do que jamais sentiria com o diletante Oskar Schindler, que tinha um fraco por discorrer
sobre o mesmo assunto. Em uma das visitas de Oskar a Plaszóvia, Stern disse-lhe que era preciso dar um jeito de levar Menasha Levartov para Emalia, do contrário
Goeth certamente acabaria matando-o. Porque Levartov tinha uma personalidade que atraía o olhar - era uma questão de presença. Goeth tinha atração por pessoas de
presença; elas eram uma classe de alta prioridade para a sua mira. Stern contou a Oskar como Goeth tinha tentado assassinar Levartov.
O campo de Amon Goeth continha agora mais de 30 mil pessoas. De um lado da Appellplatz, próximo à capela mortuária judaica, transformada em cocheira. ficava um conjunto
polonês, com capacidade para cerca de 1.200 prisioneiros. O Obergruppenführer Krüger, depois de inspecionar o novo campo, ficou tão satisfeito com o seu desenvolvimento
que promoveu o comandante dois postos acima, à categoria de Hauptsturmführer. Assim como muitos poloneses, judeus do Leste e da Tchecoslováquia ficavam retidos em
Plaszóvia, enquanto eram providenciados alojamentos para eles mais a oeste, em Auschwitz-Birkenau ou Gròss-Rosen.
Às vezes, a população era de mais de 35 mil, e a Appellplatz fervilhava de gente na hora da chamada. Assim, Amon freqüentemente tinha de livrar-se dos antigos prisioneiros
a fim de criar espaço para os recém-chegados. E Oskar sabia que o método rápido do comandante era entrar num dos escritórios ou oficinas do campo, formar duas fileiras
de indivíduos e ordenar que uma delas fosse conduzida para fora. Essa fileira era levada para o morro do forte austríaco, para ser executada por pelotões de fuzilamento,
ou para os vagões de gado na Estação de Cracóvia-Plaszóvia ou, quando esta foi desmantelada no outono de 1943, para o desvio de estrada de ferro junto ao quartel
fortificado da SS.
Stern contou a Oskar que Amon, numa daquelas suas funções de seleção, entrou na oficina metalúrgica da fábrica. Os supervisores tinham-se perfilado como soldados
e prestado ansiosamente as informações, sabendo que uma palavra mal escolhida podia ser mortal.-Preciso de vinte e cinco metalúrgicos - disse Amon aos supervisores,
quando esses terminaram suas explicações. - Apenas vinte e cinco. Indiquem-me os mais competentes.
Um dos supervisores apontou para Levartov e o rabino entrou na fila, conquanto notasse que Amon prestara uma atenção especial à escolha da sua pessoa. Naturalmente,
nunca se sabia qual fileira receberia ordem de marchar, ou qual seria o seu destino; mas, na maioria dos casos, era preferível fazer parte da fileira dos competentes.
Assim prosseguiu a seleção. Levartov tinha notado que as oficinas metalúrgicas estavam estranhamente desertas naquela manhã, pois muitos metalúrgicos e outros, que
lá trabalhavam, tinham sido avisados da aproximação de Goeth e se esgueirado para dentro da fábrica de confecções de Madritsch para se esconderem entre os rolos
de tecido ou fingirem que estavam consertando máquinas de costura. Os quarenta e poucos mais lentos ou inadvertidos, que tinham ficado nas oficinas de metalurgia,
achavam-se agora em duas fileiras entre os bancos e os tornos. Todos estavam temerosos, porém os mais inquietos eram os que compunham a fileira menor.
Então um rapazola de idade imprecisa, entre dezesseis e dezenove anos, que fazia parte da fileira menor, gritou: Mas, Herr Commandant, eu também sou um metalúrgico
competente.
Sim, Liebchen? - murmurara Amon, puxando o revólver do coldre, adiantando-se para o rapazola e dando-lhe um tiro na cabeça. O estampido violento atirara a vítima
contra a parede, matando-a instantaneamente, segundo o testemunho de Levartov. A fileira agora mais curta foi conduzida, marchando, para a estação ferroviária,
enquanto o corpo do rapazola era transportado num carrinho de mão para o morro, o chão lavado, e os tornos recomeçavam a funcionar. Mas Levartov, fabricando lentamente
dobradiças sentado no seu banco, percebera o lampejo do olhar de Amon - um olhar que dizia: Ali está um. O rabino tinha a impressão de que o rapazola, com seu grito
de apelo, fizera Amon esquecer temporariamente o próprio Levartov, seu alvo mais óbvio. Stern contou a Schindler que uns poucos dias se passaram ate Amon voltar
à oficina metalúrgica, encontrá-la cheia de gente e recomeçar a fazer as suas seleções para o morro ou para a estação ferroviária.
Então, parou junto ao banco de Levartov. Era como Levartov estivera prevendo. Podia sentir o cheiro da loção de barba de Amon. Podia ver os seus punhos engomados.
Amon era sempre de uma elegância impecável.
- O que você está fazendo? - perguntou o comandante. - Herr Commandant - respondeu Levartov - estou fabricando dobradiças. - O rabino apontou para
um pequeno monte de dobradiças no chão.
- Faça uma agora para mim - ordenou Amon. E, tirando seurelógio do bolso, começou a marcar o tempo. Levartov cortou apressadamente uma dobradiça, manipulou
o metal, apertou o torno; os dedos trabalhando com competência. Com uma contagem trêmula em sua cabeça ele terminou a dobradiça, no que lhe pareceu 58 segundos,
e deixou-a cair no chão a seus pés. - Mais uma - murmurou Amon. Após a sua experiência de velocidade, o rabino sentia-se agora mais tranqüilo e trabalhou
com confiança. Em talvez
um minuto, a segunda dobradiça estava pronta. Amon olhou para o pequeno monte no chão.
- Você esteve trabalhando aqui desde as seis horas da manhã -disse ele, sem erguer os olhos do chão. - Se pode trabalhar com arapidez que acaba de demonstrar,
por que está tão pequena a pilha dedobradiças?
Naturalmente, Levartov compreendeu que a sua própria perícia o condenara à morte. Amon ordenou que ele fosse andando entre os bancos e ninguém se deu ao trabalho
ou teve a coragem de levantar a cabeça. Para ver o quê? Alguém caminhar para a morte? Tais caminhadas eram muito comuns em Plaszóvia.Ao ar livre da manhã de primavera,
Amon colocou Menasha Levartov contra a parede da oficina, firmando-lhe os ombros; depois pegou no revólver, com que dois dias antes havia assassinado o menino.
Levartov apertou os olhos e viu prisioneiros passarem apressadamente, empurrando ou arrastando as matérias-primas do campo de Plaszóvia, ansiosos por se afastarem
dali, os cracovianos entre eles pensando:
"Meu Deus, chegou a vez de Levartov." Murmurando para si mesmo o Shema Yisroel, ele ouviu o ruído do mecanismo do revólver. Mas o acionamento interno da arma não
culminou num estampido, apenas num estalido, como o de um isqueiro que se recusa a acender. E, exatamente como um fumante aborrecido, nada mais, Amon Goeth retirou
e tornou a colocar o pente de balas, fez mira de novo e disparou.
Quando a cabeça do rabino desviou, na suposição instintiva de que a bala seria absorvida como um soco, só o que emergiu do revólver de Goeth foi outro clique.
- Donnerwelter! Zum Teufel! - praguejou Goeth. Levartov teve a impressão de que a qualquer instante Amon começaria a insultar a arma defeituosa, como se se
tratasse de dois negociantes tentando transar um trabalho simples - a enfiação de um cano, a perfuração de uma parede com uma broca. Amon recolocou em seu coldre
preto a arma defeituosa e tirou do bolso da túnica um revólver de cabo de madrepérola de certo tipo, que o Rabino Levartov só conhecia através de leituras, na infância,
de histórias do Velho Oeste. "Evidentemente", pensou ele, "não devo esperar clemência por motivo de falha técnica. Não vai desistir. Vou ser morto com um revólver
de cowboy; mesmo que falhem todas as armas precedentes, o
Hauptsturmführer Goeth lançará mão de outras mais primitivas para levar a cabo a sua intenção." Conforme Stern contou a Schindler, quando Goeth fez de novo pontaria
e disparou, Menasha Levartov já começara a olhar à sua volta
à procura de algum objeto por perto que pudesse ser usado como substituto da pistola defeituosa de Goeth. A um canto da parede havia uma pilha de carvões, material
aparentemente sem utilidade nesse impasse.
- Herr Commandant - começou Levartov, mas já podia ouviro mortífero cão e as molas do revólver de cowboy postos em funcionamento.
E de novo foi como o clique de um isqueiro recusando-se a acender. Amon, furioso, parecia estar tentando arrancar o cano da arma.O Rabino Levartov decidiu então
adotar o recurso que vira os supervisores da oficina usarem.- Herr Commandant, devo informá-lo de que a minha produção de dobradiças foi tão pouco satisfatória
porque as máquinas estavam sendo recalibradas esta manhã. Em vez de fabricar dobradiças, fui destacado para transportar carvão. Levartov pensou que tinha violado
as regras do jogo em que ambos estavam empenhados, o jogo que devia terminar com a sua morte justa. Era como se o rabino tivesse escondido os dados, e não se pudesse
chegar a uma conclusão. Amon esbofeteou-o com a sua mão esquerda
livre, e Levartov sentiu o gosto do sangue na boca, como uma garantia de sobrevivência. Então o Hauptsturmführer Goeth simplesmente abandonou Levartov encostado
contra a parede. Entretanto, a crise, como ambos, Levartov e Stern, não ignoravam, fora simplesmente adiada. Stern sussurrou sua narrativa a Oskar no Prédio da Administração
de Plaszóvia. Curvando-se, com os olhos voltados para cima, as mãos postas, foi como de costume prolixo nos detalhes.- Não há problema - murmurou Oskar. Ele gostava
de provocar Stern.
- Por que esta história tão comprida? Sempre há lugar na Emalia para alguém que pode fabricar uma dobradiça em menos de um minuto. Quando Levartov e sua mulher
chegaram ao subcampo da fábrica Emalia no verão de 1943, ele teve de sofrer o que a princípio tomou como ligeiras brincadeiras de Schindler sobre religião. Nas
tardes de sexta-feira, na oficina de munições, onde Levartov operava um torno, Schindler lhe dizia: "Não devia estar aqui, Rabino. Devia estar se preparando para
o Shabbat". Mas quando Oskar lhe deu disfarçadamente
uma garrafa de vinho para usar nas cerimônias, Levartov compreendeu que Herr Direktor não estava brincando. Nas sextas-feiras, antes do cair da tarde, o rabino era
dispensado do trabalho e ia para a sua caserna atrás do arame farpado no terreno dos fundos da DEF. Ali, sob roupas malcheirosas secando nas cordas, ele recitava
o Kiddush com um copo de vinho, entre os beliches empilhados até o teto. E, naturalmente, à sombra de uma torre de vigia da SS.
Capítulo 24
Oskar Schindler que, naqueles dias, desmontava de seu cavalo no pátio da Emalia era ainda o protótipo do magnata. Elegante e belo no estilo dos astros de cinema
George Sanders e Curt Jurgens, aos quais as pessoas sempre o comparavam. Usava paletó e calças de montaria de talhe impecável; o polimento das botas dava-lhe um
brilho faiscante. Parecia um homem a quem só o lucro interessava. Entretanto, Oskar voltava de cavalgadas pela zona rural para o seu gabinete, onde o esperavam contas
surpreendentes, mesmo para a contabilidade de uma empresa excêntrica como a DEF.
Remessas da padaria em Plaszóvia para o campo da fábrica na Rua Lipowa, Zablocie, consistiam em umas poucas centenas de pães, entregues duas vezes por semana e um
ocasional meio caminhão de nabos.
Esses caminhões mal cheios eram sem dúvida registrados e multiplicados nos livros de contabilidade do Comandante Goeth, enquanto homens de sua confiança, como Chilowicz,
vendiam para lucro de Herr Hauptsturmführer a diferença entre os magros suprimentos, que chegavam à Rua Lipowa, e os fartos comboios fantasmas que Goeth anotava
em
seus livros. Se Oskar dependesse de Amon para a comida dos presos, os seus 900 prisioneiros teriam recebido cada um, para o seu sustento, talvez três quartos de
um quilo de pão por semana e sopa de três em três dias. Em suas missões e do seu gerente, Oskar estava gastando mais de 50 mil zl. por mês em alimentos adquiridos
no mercado
negro para a cozinha do seu campo. Havia semanas em que tinha de desencavar mais de três mil pães redondos. Ia para a cidade e falava com supervisores alemães nas
grandes padarias, levando em sua pasta reichmarks e duas ou três garrafas de bebidas.
Oskar não parecia se dar conta de que, em toda a Polônia naquele verão de 1943, ele era o campeão entre os fornecedores de comida ilegal para os prisioneiros. A
nuvem maligna da fome, que a política da SS fazia pairar sobre as grandes fábricas de morte e sobre cada um dos campos de trabalhos forçados, era inexistente na
Rua Lipowa de um modo perigosamente acintoso. Naquele verão ocorreram vários incidentes que vieram engrandecera figura mitológica de Schindler e a suposição quase
religiosa entre os muitos prisioneiros de Plaszóvia e toda a população carcerária da Emalia de que Oskar tinha o dom de efetuar salvamentos milagrosos.
Logo que foram estabelecidos subcampos, oficiais superiores do campo principal, ou Lager, iam inspecionar os primeiros a fim de se certificarem de que a energia
dos trabalhadores escravos era estimulada da maneira mais radical e exemplar. Não se sabe ao certo que membros
da equipe de oficinas de Plaszóvia inspecionavam a Emalia, mas alguns prisioneiros e o próprio Oskar sempre diriam que Goeth era um deles. E quando não era Goeth,
era Leo John, ou Scheidt; ou ainda Josef Neuschel, um protegido de Goeth. Não é uma injustiça mencionar
esses nomes, relacionando-os com a expressão "estímulo de energia de uma maneira radical e exemplar". O fato é que na história de Plaszóvia eles tinham praticado
ou permitido que fossem praticadas ferozes violências. Certa vez, visitando a Emalia, notaram no pátio um prisioneiro de nome Lamus, que empurrava um carrinho de
mão muito lentamente. O próprio Oskar declarou que Goeth estava lá naquele dia e, notando a lentidão de Lamus, voltara-se para um jovem NCO chamado Grün (Grün era
um outro protegido de Goeth, seu guarda-costas, ex-lutador). Certamente foi ele quem recebeu a ordem para executar Lamus.
Assim Grün prendeu Lamus, enquanto os inspetores continuaram percorrendo outras partes do campo da fábrica. Alguém da fundição correu ao gabinete de Herr Direktor
e o alertou. Oskar desceu as escadas, furioso, ainda mais rapidamente do que no dia da visita de Regina Perlman, e chegou ao pátio justo no momento em que Grün
estava mandando que Lamus se encostasse na parede.- Não pode fazer isso aqui! - gritou Oskar. - Não vou conseguir produção do meu pessoal, se você começar a atirar
a torto e a direito!
Tenho contratos de guerra de alta prioridade. - Era o argumento que Schindler sempre usava e o seu tom insinuava que ele conhecia oficiais superiores, a quem seria
dado o nome de Grün, se ele impedisse a produção da Emalia. Grün era esperto. Sabia que os outros inspetores tinham entrado nas oficinas, onde o ruído das prensas
de metal e o ronco dos tornos encobririam qualquer barulho que ele fizesse, ou deixasse de fazer. Lamus era de tão pouca importância para homens como Goeth e John
que nenhuma investigação seria feita posteriormente.
Que vantagem vou levar com isso? - perguntou o SS
Vodca basta para você? - retorquiu Oskar. O preço era substancial. Para trabalhar o dia inteiro atrás das metralhadoras, durante as Aktionen, as execuções diárias
em massa no Leste, ele recebia meio litro de vodca. Os rapazes disputavam um lugar
no pelotão a fim de, no final da noite, receber o seu prêmio. E ali o Herr Direktor estava lhe oferecendo três vezes mais por um ato de omissão.- Não estou
vendo a garrafa - disse ele, enquanto Herr Schindler já empurrava Lamus para longe da mira do SS. - Desapareça!
- gritou ele para a sua quase vítima.- Pode ir apanhar a sua garrafa no meu escritório quando terminar a inspeção - disse Oskar. Oskar tomou parte
numa transação semelhante, quando a Gestapo deu uma busca no apartamento de um falsificador e descobriu, entre outros documentos prontos ou quase prontos, papéis
de identidade arianos para uma família chamada Wohlfeiler - mãe, pai, três filhos adolescentes, todos eles trabalhando no campo de Schindler. Dois homens da Gestapo
apareceram na Rua Lipowa a fim de levar a família para um interrogatório, que resultaria no seu envio à prisão de Montelupich e, em seguida, a Chujowa Górka. Três
horas depois de entra rem no escritório de Oskar ambos os homens partiram, cambaleando pelas escadas abaixo, sorrindo com o bom humor temporário do conhaque e, ao
que se podia presumir, com dinheiro no bolso. Os papéis confiscados agora se achavam espalhados sobre a mesa de Oskar. Ele os apanhou e jogou no fogo da lareira.
Em seguida, o caso dos irmãos Danziger, que numa sexta-feira racharam uma prensa de metal. Homens honestos, perplexos, semi-especializados, erguendo os olhos shteíl
da máquina que tinham acabado de avariar. O Herr Direktor não se achava na fábrica, e alguém- um espião entre os seus operários, afirmaria sempre Oskar -
denunciou os Danziger à administração de Plaszóvia. Os irmãos foram retirados da Emalia e o seu enforcamento anunciado na chamada da manhã seguinte em Plaszóvia:
"Esta noite, a população deste campo assistirá à execução de dois sabotadores." O que, naturalmente, mais pesava na balança da condenação ao enforcamento dos Danziger
era a sua aura ortodoxa.
Oskar voltou da sua viagem de negócios a Sosnowiec às três horas da tarde de sábado, três horas antes do programado enforcamento dos dois irmãos. Na sua mesa esperava-o
a notícia da sentença. Imediata mente ele partiu no seu carro para Plaszóvia, levando consigo conhaque e algumas deliciosas salsichas kielbasa. Estacionou junto
ao Prédio da Administração e encontrou Goeth em seu gabinete. Ficou satisfeito por não ter de acordar o comandante da sua sesta habitual à tarde. Ninguém sabe os
termos da transação havida naquela tarde no gabinete de Goeth, naquele gabinete que poderia ter pertencido a Torquemada e que possuía cavilhas soldadas na parede
onde eram dependuradas pessoas para serem disciplinadas ou instruídas. Todavia, é difícil acreditar que Goeth pudesse se satisfazer apenas com conhaque e salsichas.
Em todo caso, sua preocupação com a integridade das prensas de metal do Reich se abrandou com a entrevista e, às seis da tarde, a hora marcada para a execução, os
irmãos Danziger voltaram no assento traseiro da luxuosa limusine de Oskar para a doce esqualidez da Emalia. Todos esses sucessos eram, naturalmente, parciais. Oskar
bem sabia que uma das características dos Césares era remir tão irracionalmente quanto condenar. O engenheiro Emil Krautwirt, durante o dia trabalhava na fábrica
de radiadores por detrás das casernas da Emalia e à noite dormia nosubcampo de Oskar. Era jovem, tendo conseguido seu diploma no final da década de 30. Como os outros
na Emalia, chamava o local de o "campo de Schindler"; ao levá-lo de volta a Plaszóvia para um enforcamento exemplar, a SS queria demonstrar de quem era de fato o
campo, pelo menos sob alguns aspectos. A primeira história relatada pelo restante dos prisioneiros de Plaszóvia, que ainda estariam vivos no fim da guerra, era o
enforcamento do engenheiro Krautwirt, antes mesmo da narrativa de cada uma das dores e humilhações que haviam eles próprios sofrido. A SS era muito econômica com
seus cadafalsos e, em Plaszóvia, as forcas pareciam uma série de traves baixas de jogo de futebol, sem a majestade dos patíbulos da História, da guilhotina revolucionária,
do cadafalso
elizabetano, da forca erigida atrás da cadeia do xerife. Em tempo de paz, as forcas em Plaszóvia e Auschwitz intimidariam, não pela sua solenidade mas pela sua
mediocridade. Aquele tipo de estrutura das forcas em Plaszóvia, como descobririam as mães, permitia a uma criança de cinco anos ver um enforcamento do local onde
se situava a turba de prisioneiros na Appellplatz. Juntamente com Krautwirt seria também enforcado um menino de dezesseis anos, chamado Haubenstock. Krautwirt tinha
sido condenado sob alegação de umas cartas que escrevera a pessoas sediciosas na cidade de Cracóvia. No caso de Haubenstock, a acusação era por ter ele sido ouvido
cantando Volga, Volga, Kalinka Maya e outras canções russas proibidas, com a intenção, segundo a sentença de morte, de conquistar guardas ucranianos à causa bolchevista.
O regulamento para o ritual da execução no campo de Plaszóvia exigia silêncio. Ao contrário dos enforcamentos festivos de outros tempos, a queda do corpo se processava
sem o mais leve ruído. Os prisioneiros se perfilavam em falanges e eram patrulhados por homens e mulheres cientes de seu poder: por Hujar e John; por Scheidt e Grün;
pelos NCO Landsdorfer, Amthor e Grimm, Ritschek e Schreiber; e por , supervisoras da SS recentemente destacadas para Plaszóvia, ambas muito eficientes no manejo
de cassetetes: Alice Orlowski e Luise Danz. Sob tal supervisão, os apelos dos condenados eram ouvidos em silêncio, O engenheiro Krautwirt pareceu a princípio aturdido,
emudecido, mas o menino apelou, com voz conturbada, para o Hauptsturmfüher que se postara ao lado da forca.
- Não sou comunista, Herr Commandant. Odeio o comunismo. Eram apenas canções. Canções comuns.O carrasco, um açougueiro judeu de Cracóvia, perdoado de algum crime
com a condição de aceitar aquela tarefa, ajeitou Haubens-tock em cima de um tamborete e passou-lhe o laço no pescoço. Percebia que Amon queria que o menino fosse
o primeiro a ser enforcado, pois lhe desagradava continuar ouvindo aqueles apelos. Quando o açougueiro deu um pontapé no banco de sob os pés de Haubenstock, a corda
se rompeu e o menino, roxo e engasgado, com o laço ainda à volta do pescoço, arrastou-se de joelhos até Goeth, continuando as suas súplicas, batendo a cabeça nos
tornozelos do comandante e agarrando-lhe as pernas.
Era a mais extrema submissão; conferia a Goeth de novo a realeza, que ele vinha exercendo naqueles últimos meses febris. Amon, numa Appellplatz repleta de olhos
estarrecidos, soltou apenas uma espécie de assobio, um sussurro como vento em dunas de areia, tirou a pistola do coldre, deu um pontapé no menino e o matou cora
um tiro na cabeça. Quando o pobre engenheiro Krautwirt viu o horror da execução do menino, apanhou uma navalha que trazia escondida no bolso e cortou os pulsos.
Os prisioneiros na fila da frente podiam ver que Krautwirt se ferira mortalmente em ambos os braços. Mas Goeth ordenou ao carrasco que prosseguisse a execução.
Respingados com o sangue dos ferimentos de Krautwirt, dois ucranianos o suspenderam na forca, onde, com o sangue esguichando de ambos os pulsos, ele foi estrangulado
diante dos judeus do sul da Polônia. Era natural acreditar, com uma parte lógica do cérebro, que tão bárbara exibição seria talvez a última, que poderia haver uma
reviravolta nos métodos e atitudes até mesmo de Amon ou, senão dele, dos oficiais invisíveis que, de algum gabinete de grandes janelas envidraçadas e assoalho encerado,
abrindo para a praça onde velhas vendiam flores,
teriam de reformular parte do que acontecera em Plaszóvia e justificar o resto.
Na segunda viagem do Dr. Sedlacek de Budapeste para Cracóvia, Oskar e o dentista planejaram um esquema que, para um homem mais introvertido do que Schindler, teria
parecido ingênuo. Oskar sugeriu a Sedlacek que, talvez, uma das razões de Amon Goeth demonstrar tal selvageria era a má qualidade das bebidas que ele ingeria, os
galões do pretenso conhaque local que enfraquecia ainda mais o seu cérebro defeituoso, levando-o às últimas conseqüências. Com parte dos reichmarks que o Dr. Sedlacek
trouxera para a Emalia e entregara a Oskar, uma caixa de conhaque de primeira qualidade devia ser adquirida - o que não era artigo fácil ou barato de se obter na
Polônia pós-Stalingrado.
Oskar ofereceria a caixa a Amon e iria sugerir-lhe que, de uma ou outra forma, a guerra um dia ia terminar e haveria investigações de atos individuais. Que talvez
até os amigos de Amon se lembrariam de ocasiões em que ele se excedera em seu zelo.
Oskar era homem de natureza a acreditar que se podia beber com o diabo e alcançar um equilíbrio da maldade, entre um e outro copo de conhaque. Não que considerasse
assustadores os métodos mais radicais; simplesmente não lhe ocorriam. Sempre fora homem de transações. O Wachtmeister Oswald Bosko, que anteriormente tivera o controle
do
perímetro do gueto, era, em contraste, um homem de idéias. Tornara-se impossível para ele trabalhar dentro do esquema da SS, distribuindo subornos, providenciando
papéis falsificados, colocando uma dúzia de crianças sob seu patrocínio, enquanto centenas de outras eram levadas para fora do portão do gueto. Acabara fugindo
de sua delegacia
em Podgórze e desaparecendo nas florestas de Niepolomice, reduto de guerrilheiros. Agora, no Exército do Povo, ele procurara expiar o entusiasmo imaturo que tinha
sentido pelo nazismo no verão de 1938. Vestido como um camponês polonês, ele acabaria sendo reconhecido numa aldeia a oeste de Cracóvia e fuzilado como traidor.
Desde então,
Bosko seria venerado como um mártir. Bosko passara a viver na floresta porque não lhe restava outra opção.
Faltavam-lhe os recursos financeiros com que Oskar engraxava o sistema. Mas as suas naturezas eram divergentes, pois enquanto um nada possuíra a não ser um posto
e um uniforme posteriormente abandonados, o outro mantinha em mão dinheiro e mercadorias com que negociar. Não pretendemos elogiar Bosko ou denegrir Oskar, afirmando
que só acidentalmente esse último viria a tornar-se um mártir, só no caso de que algum negócio que ele estivesse transando o comprometesse.
Mas havia gente que ainda respirava - os Wohlfeiler, os irmàos Danziger, Lamus - porque Oskar trabalhava daquela maneira. Por ser aquele o seu sistema, o inverossímil
campo da Emalia continuava funcionando na Rua Lipowa, e lá na maioria do tempo, cerca de mil pessoas estavam a salvo, e a SS se mantinha do lado de fora da cerca
de arame farpado. Ninguém ali era espancado e a sopa era bastante grossa para sustentar a vida. De acordo com a natureza de cada um desses dois membros do Partido,
Bosko e Schindler, a repulsa de ambos se eqüivalia, embora Bosko manifestasse a sua abandonando o uniforme num cabide em Podgórze, ao passo que Oskar espetava na
roupa seu vistoso emblema nazista e saía para presentear com bebidas finas o demente Amon Goeth, em Plaszóvia. Era um fim de tarde e Oskar estava sentado com Goeth
no salão da casa do comandante. Majola, a amante de Goeth, mulher de físico delicado, secretária na fábrica Wagner na cidade, apareceu no salão. Não passava o seu
tempo em meio aos excessos de Plaszóvia. Tinha um ar sensível e essa sensibilidade provocara rumores de que Majola tinha ameaçado não mais dormir com Goeth se ele
continuasse a matar arbitrariamente as pessoas. Mas não se sabia se eram verdadeiros ou se eram apenas dessas interpretações terapêuticas que brotam na imaginação
dos prisioneiros, em seu desespero, na esperança de tornar o mundo habitável.
Majola não se demorou muito com Amon e Oskar naquela tarde, pois presumia que ia ser uma reunião regada com muita bebida. Helen Hirsch, pálida jovem vestida de preto,
criada de Amon, trouxe-lhe os acompanhamentos habituais - bolinhos, canapés, salsichas. Resfolegava de cansaço. Na noite anterior Amon a tinha espancado por preparar
comida para Majola sem a sua permissão; e nessa manhã a obrigara a subir e descer 50 vezes os três lances de escada da casa, por causa de uma sujeira de mosca num
dos quadros do corredor. Helen tinha ouvido certos boatos sobre Herr Schindler mas era a primeira vez que o via. Nessa tarde, não a reconfortou a vista daqueles
dois homens
grandes, sentados de cada lado da mesa baixa, fraternais e em aparente concordância de idéias. Nada ali a interessava, pois a certeza de sua própria morte era o
seu pensamento dominante. Esperava apenas a sobrevivência da irmã mais moça, que trabalhava nas cozinhas do campo. Juntara algum dinheiro, que guardava escondido,
na esperança
de que iria servir para salvar a irmã. Acreditava que não havia nenhuma quantia ou transação que pudesse influenciar a sua chance de sobrevivência.
Os dois homens continuaram bebendo a tarde toda e pela noite adentro. Por muito tempo, mesmo depois de a interpretação noturna do LuIlaby de Brahms, pelo prisioneiro
Tosia Lieberman, ter acalmado o campo das mulheres e penetrado por entre as tábuas da caserna dos homens, Goeth e Schindler continuaram bebendo. A bebida incandescia-lhes
os prodigiosos fígados como fornalhas. No momento certo, agindo em
nome de uma amizade que, apesar de todo aquele conhaque ingerido, não
ia além da flor da pele... Oskar debruçou-se para Amon e, astuto como um demônio, começou a induzi-lo a adotar uma atitude de maior contenção.Amon recebeu bem o
que ouvia. Pareceu a Oskar que ele se deixava influir pela idéia da moderação - atitude digna de um imperador. Amon passou a imaginar um escravo doente nas carretas,
um prisioneiro cambaleante voltando da fábrica de cabos - com aquele fingimento tão difícil de se tolerar -, sob um carregamento de roupas ou lenha apanhadas no
portão da prisão. E Amon sentia um estranho calor no ventre, fantasiando a própria magnanimidade, ao perdoar aquele molengão, aquele ator patético. Como Calígula
poderia ter tido
a tentação de ver a si mesmo como Calígula o Bom, por algum tempo a imagem de Amon o Bom tomou conta da imaginação do comandante. Na verdade, ele conservaria um
fraco por aquela fantasia. Nessa noite, com o sangue aquecido pelo dourado conhaque e o campo quase todo adormecido mais além, Amon definitivamente se deixou seduzir
mais pela idéia da própria clemência do que pelo medo de represálias.
De manhã, porém, ele se lembraria das advertências de Oskar confirmadas pelas notícias do dia de que os russos estavam ameaçando a frente de batalha em Kiev. Stalingrado
ficava a uma distancia inconcebível de Plaszóvia mas a distância até Kiev era imaginável. Alguns dias depois da visita de Oskar a Amon, chegaram a Emalia rumores
de que a dupla influência estava produzindo seus efeitos no comandante. Dr. Sedlacek, de volta a Budapeste, informaria a Samu Springmann que Amon renunciara, pelo
menos por enquanto, a matar arbitrariamente as pessoas. E o bom Samu, entre as suas diversas
preocupações com respeito à lista de locais como Dachau e Drancy, no oeste, e Sobibor e Belzec no leste, por algum tempo alimentara esperança de que o problema de
Plaszóvia estava resolvido. Mas a atitude de clemência logo desapareceu. Se houvera uma breve trégua, aqueles que iriam sobreviver e prestar testemunho dos seus
dias em Plaszóvia não a gravaram na memória. Pareceu-lhes que os assassinatos sumários eram contínuos. Se Amon não aparecia no seu alpendre essa manhã ou na manhã
seguinte, isso não queria dizer que ele não aparecesse dois dias depois. Seria preciso bem mais do que a
ausência temporária de Goeth para dar até mesmo ao mais iludido dos prisioneiros a esperança de uma mudança fundamental na natureza do comandante. E de qualquer
forma, lá estaria ele, nos degraus, com o boné de estilo austríaco, que usava nos assassinatos, de binóculos em punho, procurando algum faltoso. Dr. Sedlacek voltara
a Budapeste não apenas com notícias exageradamente esperançosas de uma transformação em Amon como com dados mais precisos sobre o campo em Plaszóvia. Certa tarde,
um guarda da Emalia apareceu em Plaszóvia para levar Stern a Zablocie. Ao chegar ao portão da entrada, Stern foi conduzido ao novo apartamento de Oskar. Ali Herr
Direktor apresentou-o a dois homens bem-vestidos. Um era Sedlacek; o outro um judeu - equipado com um passaporte suíço - que se apresentou como Babar.
-Meu caro amigo-disse Oskar a Stern-, quero que escrevaum relatório o mais completo possível sobre o que se passa em Plaszóvia numa só tarde. Stern nunca antes
vira Sedlacek ou Babar e achou que Oskar estava sendo indiscreto. Depois de cumprimentar os dois estranhos, ele murmurou que antes de empreender a tarefa gostaria
de dar uma palavra em particular com Herr Direktor.
Oskar costumava dizer que Itzhak Stern nunca podia fazer uma declaração ou pedido, a não ser sob a capa de citações do Talmude babilônico e ritos de purificação.
Mas agora Stern se mostrou mais direto.
-Por favor, diga-me, Herr Schindler - perguntou ele -, nãoacha que isso é um tremendo risco? Oskar explodiu. Antes de ter conseguido se controlar, os estranhos
o tinham ouvido da outra sala. - Acha que eu lhe pediria alguma coisa se houvesse algum risco?
- Depois, acalmando-se, acrescentou: - Sempre há algum risco como deve saber melhor do que eu. Mas não com esses dois homens. Garanto por eles.
Afinal, Stern passou a tarde inteira escrevendo o seu relatório. Era um erudito e habituado a escrever numa prosa escorreita. A organização de salvamento em Budapeste,
os sionistas em Istambul iriam receber de Stern um relatório no qual podiam confiar. Multiplicando por 1.700 os pequenos e grandes campos de trabalhos forçados na
Polônia,
podia-se obter uma colcha de retalhos que deixaria o mundo estupefato!Sedlacek e Oskar queriam mais do que um relatório de Stern. Na manhã após a bebericação Amon-Oskar,
este último tornou a arrastar
o seu heróico fígado de volta a Plaszóvia, antes da hora do expediente no escritório. Entre as sugestões de tolerância, Oskar havia informado a Amon na noite da
véspera de que tinha uma permissão por escrito para levar "amigos industriais" numa visita ao campo. Babar possuía uma câmera em miniatura, que ele carregava abertamente
na mão. Talvez acreditasse que, se um SS lhe perguntasse alguma coisa a respeito, ele teria a chance de passar cinco minutos gabando a pequena máquina fotográfica,
que adquirira numa recente viagem de negócios a Bruxelas ou Estocolmo.
Ao sair do Prédio da Administração com os visitantes de Budapeste, Oskar segurou pelo ombro o franzino Stern: seus amigos gostariam de visitar as oficinas e alojamentos,
mas se houvesse alguma coisa que Stern achasse que eles não tinham notado, simplesmente deveria curvar-se e amarrar o cordão de seu sapato.
Na estrada de Goeth, pavimentada com túmulos fragmentados, eles passaram pela caserna dos SS. Quase imediatamente, o prisioneiro Stern baixou-se e precisou amarrar
o cordão do sapato. O companheiro de Sedlacek bateu um instantâneo dos grupos de homens arrastando encosta acima cargas de caminhões de pedras da pedreira, enquanto
Stern murmurava: "Perdão, senhores." E levou um tempo enorme amarrando o cordão do sapato, para que os visitantes pudessem ler as inscrições nos fragmentos monumentais.
Ali estavam as lápides de Bluma Gemeinerowa (1859-1927); de Matylde Liebeskind, falecida aos 90 anos em 1912; de Helena Wachsberg, que morrera de parto em 1911;
de Rozia Groder, uma menina de 13 anos, falecida em 1931; de Sofia Rosner e Adolf Gottlieb, que tinham morrido no reinado de Franz Josef. Stern queria que eles vissem
que aqueles nomes respeitáveis tinham-se tornado pedras de calçamento.
Prosseguindo em sua caminhada, passaram pelo Puffaus, o bordel de moças polonesas para a SS e os ucranianos até chegarem à pedreira, onde eram feitas escavações
no penhasco de pedra calcária. Ali, Stern parou outra vez para dar nós nos cordões; queria que a cena fosse registrada. Homens se destruíam no brutal trabalho de
escavar o penhasco com malhos e cunhas. Ninguém, dos que labutavam ali, demonstrou qualquer curiosidade pelos visitantes daquela manhã. Ivan, o motorista ucraniano
de Amon Goeth, estava de plantão, e o supervisor era um criminoso alemão de cabeça redonda chamado Erik. Este já tinha demonstrado sua capacidade para chacinas,
tendo assassinado os próprios pais e a irmã. Deveria ter sido enforcado ou pelo menos preso numa masmorra, se a SS não houvesse chegado à conclusão de que existiam
criminosos piores do que parricidas, e que Erik devia ser utilizado para punir tais criminosos. Conforme Stern tinha mencionado em seu relatório, um médico cracoviano,
chamado Edward Goldblatt, fora enviado de sua clínica para o campo pelo Dr. Blancke da SS e seu protegido judeu, Dr. Leon Gross. Erik deleitava-se de ver um homem
de cultura e ciência se apresentar na pedreira para trabalhai com suas mãos delicadas; no caso de Goldblatt os espancamentos começaram com a primeira demonstração
de incerteza no manejo de martelos e puas. No decorrer de vários dias, Erik, vários SS e ucranianos espancaram Goldblatt. O médico era forçado a trabalhar com o
rosto deformado pela inchação e um olho fechado. Ninguém sabia que erro de técnica na escavação da pedreira decidiu Erik a dar no Dr. Goldblatt a sua surra derradeira.
Muito depois de o médico ter perdido a consciência, Erik permitiu que ele fosse levado para a Krankenstube, onde o Dr. Leon Gross recusou-se a admiti-lo. Com essa
sanção médica, Erik e membros da SS continuaram a dar pontapés no moribundo Goldblatt que, rejeitado para tratamento, jazia à entrada do hospital,
Stern curvou-se e amarrou o laço do sapato na pedreira porque, como Oskar e outros do complexo de Plaszóvia, acreditava que futuramente juízes poderiam perguntar:
"Onde - numa só palavra - ocorreu tal fato?"
Oskar pôde dar a seus companheiros uma vista geral do campo, subindo com eles até Chujowa Górka e o morro austríaco, onde carrinhos de mão manchados de sangue, usados
no transporte dos mortos para os bosques, se enfileiravam despudoradamente à entrada do forte. Já havia milhares enterrados ali em valas comuns ou nas matas de pinheiros
a leste. Quando os russos chegaram do leste, aquela mata com sua população de vítimas seria a primeira coisa que encontrariam antes da moribunda Plaszóvia.
Quanto a Plaszóvia, proclamada uma maravilha industrial, fatalmente decepcionaria qualquer observador mais atento. Amon, Bosch, Leo John, Josef Neuschel, consideravam-na
uma cidade-modelo pelo simples motivo de que os estava enriquecendo. Ficariam muito surpresos se descobrissem que uma das razões de sua rendosa situação em Plaszóvia
não era porque a Inspetoria de Armamentos estava encantada com os milagres que eles vinham conseguindo.
Na realidade, os únicos milagres econômicos dentro de Plaszóvia eram as fortunas pessoais de Amon e sua panelinha. Qualquer pessoa de bom senso se surpreendia que
contratos de guerra fossem cedidos a Plaszóvia, considerando que suas instalações eram tão precárias e antiquadas. Mas astutos prisioneiros sionistas dentro de Plaszóvia
pressionavam gente como Oskar e Madritsch, que, por sua vez, pressionavam a Inspetoria de Armamentos. Levando em conta que a fome e os assassinatos esporádicos em
Plaszóvia ainda eram preferíveis ao extermínio infalível em Auschwitz e Belzec, Oskar se empenhava em negociações com os engenheiros e oficiais encarregados das
compras para a Inspetoria de Armamento do General Schindler. Esses cavalheiros faziam uma careta e diziam: "Ora vamos, Oskar! Está falando sério?" Mas acabavam concordando
em firmar contratos com o campo de Amon Goeth, e com Oskar, para fornecimento de pás manufaturadas com a sucata de ferro da sua fábrica, na Rua Lipowa, de tubos
de exaustores,subprodutos de uma fábrica de geléias em Podgórze. Eram pequenas as chances da entrega total das pás e seus cabos à Wehrmacht. Muitos dos amigos de
Oskar, entre os oficiais da Inspetoria de Armamentos, compreendiam o que estavam fazendo, isto é, que fornecer trabalho à escravatura no campo de Plaszóvia era o
mesmo que prolongar a vida de muitos escravos. Alguns deles custavam a engolir aquela situação, pois sabiam que Goeth era um escroque, e parecia-lhes um insulto,
ao seu sincero e antiquado patriotismo, a vida sibarítica que Amon levava no campo.
O estranho paradoxo do Campo de Trabalhos Forçados de Plaszóvia - o fato de que alguns dos escravos estivessem conspirando para manter o reinado de Amon - pode se
evidenciar no caso de Roman Ginter, antigo empresário e agora um dos supervisores na metalúrgica de onde o Rabino Levartov já havia sido salvo. Certa manhã Ginter
foi chamado ao gabinete de Goeth e, ao fechar a porta, levou o primeiro de uma série de murros. Enquanto esmurrava Ginter, Amon esbravejava incoerentemente. Depois
arrastou-o para fora, escadas abaixo, até uma parede da entrada do prédio.
-Posso perguntar uma coisa? - perguntou Ginter contra a parede, cuspindo dois dentes, discretamente, para que Amon não o julgasse um ator ou um choramingas.
Seu safado! - rugiu Goeth. - Não entregou as abotoaduras que eu tinha encomendado! A data está anotada no calendário da minha mesa.
Mas, Herr Commandant - tornou Ginter -, permita que lhe diga que as abotoaduras ficaram prontas ontem. Perguntei a Herr Oberscharführer Neuschel o que devia fazer
com elas, e ele me respondeu que as entregasse em seu gabinete. Foi o que fiz.
Amon arrastou Ginter, sangrando, de volta ao seu gabinete e chamou o SS Neuschel.
-Sim, é verdade - replicou o jovem Neuschel. - Veja na suasegunda gaveta à esquerda, Herr Commandant.
Goeth procurou na gaveta e encontrou as abotoaduras.
-Quase o matei por causa delas - reclamou ele do seu não muitointeligente protegido vienense.
Esse mesmo Roman Ginter - cuspindo discretamente os seus dois dentes contra a parede cinzenta do Prédio da Administração, esse zero judeu, de cujo assassinato acidental
Amon teria acusado Neuschelesse Ginter é o homem que, depois de obter um passe especial, vai à DEF falar com Oskar Schindler sobre fornecimento para as oficinas
de Plaszóvia de uma grande quantidade de sucata, sem a qual todo o pessoal das oficinas seria mandado num trem para Auschwitz. Assim, enquanto o desatinado Amon
Goeth acredita que mantém Plaszóvia graças ao seu gênio administrativo, são os prisioneiros, de boca sangrando, que mantêm o campo em funcionamento.
Capítulo 25
Algumas pessoas julgavam que Oskar estava gastando como um jogador compulsivo. Embora pouco soubessem a seu respeito, seus prisioneiros sentiam que Oskar se arruinaria
por causa deles, se necessário fosse. Mais tarde - não agora, pois agora aceitavam sua caridade com o mesmo espírito com que uma criança aceita presentes de Natal
dos pais - eles diriam: "Graças a Deus, ele era mais fiel a nós do que à mulher!" Assim como os prisioneiros, muitas pessoas podiam provocar a mesma reação em Oskar.
Uma delas, um tal Dr. Sopp, médico das prisões da SS em Cracóvia e da Corte da SS em Pomorska, informou a Schindler, através de um emissário polonês, que estava
disposto a fazer certa transação com ele. Na prisão de Montelupich havia uma mulher chamada Helene Schindler. O Dr. Sopp sabia que ela não era aparentada com Oskar
mas o marido tinha investido algum dinheiro na Emalia. Os papéis de identidade ariana da detenta eram duvidosos. O Dr. Sopp não precisava informar que, para a Sra.
Schindler, isso implicava o desfecho de uma viagem de caminhão a Chujowa Górka. Mas, se Oskar se dispusesse a comparecer com certa quantia, o Dr. Sopp estaria disposto
a dar um certificado médico, declarando que, em vista de seu estado de saúde, devia ser permitido à Sra. Schindler fazer uma cura prolongada em Marienbad, na Boêmia.
Oskar foi ao consultório do Dr. Sopp, onde apurou que o médico queria 50 mil zl. pelo certificado. Não adiantava discutir o preço. Após três anos de prática, um
homem como Sopp sabia avaliar com precisão o preço de favores desse gênero. Nessa mesma tarde, Oskar conseguiu levantar a quantia. Sopp sabia que, se quisesse, Oskar
era o tipo de homem que sempre tinha à sua disposição dinheiro de mercado negro, dinheiro cuja origem não podia ser revelada.
Antes de efetuar o pagamento, Oskar estabeleceu certas condições. O Dr. Sopp teria de acompanhá-lo a Montelupich, para tirar a mulher de sua cela. Depois ele iria
entregá-la pessoalmente a amigos mútuos na cidade. Sopp não fez objeção. À luz de uma lâmpada nua na gélida Montelupich, a Sra. Schindler recebeu o seu precioso
documento. Um homem mais cauteloso, um homem com mentalidade de contador, teria razoavelmente se reembolsado dos seus gastos, com o dinheiro que Sedlacek
lhe trouxera de Budapeste. Ao todo, Oskar iria receber quase 150 mil reichmarks, trazidos para Cracóvia em malas de fundo falso e no forro de roupas. Mas, em parte
porque o seu apreço pelo dinheiro (quer seu ou de outros) era tão displicente, em parte por causa do seu senso de honra, Oskar sempre entregou a seus contatos judeus
todas as importâncias que recebia de Sedlacek, exceto a quantia despendida com o conhaque de Amon.
O negócio nem sempre era sem complicações. Quando, no verão de 194.3, Sedlacek chegou a Cracóvia com 50 mil RM, os sionistas dentro de Plaszóvia, a quem Oskar ofereceu
o dinheiro, recearam que se tratasse de uma armadilha.
Oskar procurou primeiro Henry Mandei, fundidor na fundição de Plaszóvia e membro do Hitach Dut, movimento sionista de jovens e trabalhadores. Mandei não quis tocar
no dinheiro.
-Escute - disse-lhe Schindler -, tenho uma carta em hebraicoremetendo o dinheiro, uma carta da Palestina.
Mas, se era uma armadilha, se Oskar tinha se comprometido e estava sendo usado, teria naturalmente uma carta da Palestina. Para quem não recebia pão suficiente
para o café da manhã, a soma oferecida era assustadora: 50 mil RM - 100 mil zl. Oferecida para ser usada sem nenhum controle. Simplesmente não era crível! Em seguida
Schindler tentou entregar, dentro de Plaszóvia, o dinheiro, escondido na mala de seu carro, a outro membro do Hitach Dut, uma mulher chamada Alta Rubner, que tinha
alguns contatos, com prisioneiros que trabalhavam na fábrica de cabos, com alguns poloneses na prisão polonesa, com o movimento de resistência em Sosnowiec. Talvez,
disse ela a Mandei, fosse melhor reportar a questão ao movimento de resistência e deixar que os dirigentes decidissem sobre a procedência do dinheiro que Oskar Schindler
estava oferecendo. Oskar continuou tentando persuadi-la, erguendo a voz sob a proteção das ruidosas máquinas de costura de Madritsch.
-Garanto de todo coração que não se trata de uma cilada! De todo o coração. Exatamente a expressão que se podia esperar de um agent provocaleur?
Contudo, depois de Oskar ter ido embora, de Mandei ter falado com Stern, que declarou ser a carta autêntica, e depois de novas conferências com Alta Rubner, foi
tomada a decisão de aceitar o dinheiro. Entretanto, eles sabiam que Oskar não ia voltar com a quantia. Mandei foi ter com Marcei Goldberg do Escritório da Administração.
Goldberg
tinha sido também membro do Hitach Dut, mas, depois de se tornar um funcionário encarregado das listas - listas de trabalho e listas de transporte, listas dos vivos
e mortos - passara a aceitar subornos. Mandel, porém, podia pressioná-lo. Uma das listas que Goldberg era encarregado de fazer - ou, pelo menos, acrescentar-lhe
ou subtrair-Ihe nomes - era a lista dos que iam à Emalia para receber o fornecimento da sucata que seria usada nas oficinas de Plaszóvia. Por efeito de uma antiga
amizade e, sem ter de revelar a razão para querer ir à Emalia, Mandel foi incluído na lista.
Mas, ao chegar a Zablocie, quando se esgueirava da oficina para ir falar com Oskar, ele fora detido no escritório da frente por Bankier. Herr Schindler estava
muito
ocupado, disse Bankier.
Uma semana depois, Mandei estava de volta à Emalia. De novo Bankier não permitiu que ele falasse com Oskar. Na terceira vez, Bankier foi mais categórico.
- Está querendo o dinheiro sionista? Não quis antes, e agora está querendo. Pois agora não vai receber nada. Assim é a vida, Sr. Mandel!
Mandel deu-lhe um cumprimento de cabeça e saiu. Presumiu, aliás erroneamente, que Bankier já se apossara de pelo menos uma parte do dinheiro. Mas o fato era que
Bankier estava sendo cauteloso. O dinheiro acabou indo parar nas mãos dos prisioneiros sionistas, pois um recibo da quantia, assinado por Alta Rubner, foi entregue
por Stern a Springmann. Parece que os 50 mil zl foram usados em parte para ajudar judeus, que chegavam de outras cidades, não procedentes de Cracóvia e que, portanto,
não possuíam nenhuma fonte local de ajuda.
Se os fundos que Oskar recebia e passava adiante eram gastos sobretudo em alimentos, como Stern teria preferido, ou em grande parte usados no movimento da resistência
- a compra de passes ou armas -, era uma questão que Oskar nunca investigou. Todavia, nenhuma parcela desse dinheiro serviu para comprar a saída da Sra. Schindler
de Montelupich ou salvar as vidas de gente como os irmãos Danziger. E tampouco o dinheiro de Sedlacek foi usado para indenizar Oskar pelos 30 mil quilos de peças
esmaltadas com que ele subornou funcionários mais ou menos graduados da SS durante o ano de 1943, com a finalidade de impedi-los de recomendar o fechamento do subcampo
da Emalia.
Nenhuma parcela desse dinheiro foi usado na aquisição dos 16 mil zl. de instrumentos ginecológicos, que Oskar teve de comprar no mercado negro, quando uma das moças
da Emalia engravidou - a gravidez, naturalmente, significava uma passagem imediata para Auschwitz. Nem foi usado na compra do Mercedes avariado do Untersturmführer
John, que o ofereceu a Oskar para compra, ao mesmo tempo que este último apresentava um pedido de transferência de 30 pessoas de Plaszóvia para irem trabalhar na
Emalia. O carro comprado por Oskar ura dia por 12 mil zl foi requisitado no dia seguinte pelo amigo e colega de Leo John, o Untersturmführer Scheidt, para ser usado
na construção de fortificações no perímetro do campo. Talvez eles transportem terra na mala do carro - comentou furioso Oskar para Ingrid durante o jantar. Mais
tarde, numa referência informal sobre o caso, ele declarou que tivera muito prazer em prestar assistência a ambos os cavalheiros.
Capítulo 26
Raimund Titsch estava fazendo pagamentos de uma espécie diferente. Titsch era um modesto, quieto católico austríaco, com uma manqueira, que alguns diziam ser conseqüência
da Primeira Guerra Mundial e outros atribuíam a um acidente na infância. Era uns dez anos mais velho do que Amon ou Oskar. Dentro do campo de Plaszóvia, trabalhava
como gerente da fábrica de uniformes de Madritsch, que empregava cerca de 3.000 costureiras e mecânicos.
Um dos pagamentos eram as partidas de xadrez que jogava com Amon Goeth. O Prédio da Administração era ligado à fábrica de Madritsch por telefone e Amon freqüentemente
chamava Titsch ao seu gabinete para uma partida. A primeira vez que Raimund jogou com Amon, a partida terminou em meia hora, com a derrota do Hauptslurmführer. Titsch,
com um contido e não muito triunfante "xeque-mate" morrendo-lhe nos lábios, ficara aturdido com o acesso de raiva de Amon. No final, o comandante enfiara e abotoara
seu paletó, afivelara seu cinturão e metera com força o boné na cabeça. Titsch, apavorado, pensou que Amon ia descer e dirigir-se à linha de tração das carretas,
procurando algum prisioneiro para desforrar-se sobre alguém da pequena vitória do adversário no xadrez. Então, desde aquela primeira tarde, Titsch adotara nova tática.
Passou a levar até umas três horas para perder a partida para o comandante. Quando funcionários no Prédio da Administração viam Titsch capengar pela Rua Jerozoimska
acima, a fim de cumprir suas obrigações no xadrez, sabiam que a tarde seria mais tranqüila. Um humilde senso de segurança se espalhava o prédio até as oficinas,
até os infelizes puxadores de pedras.
Mas Raimund Titsch não jogava apenas apaziguadoras partidas de xadrez. Além do Dr. Sedlacek e do homem com a câmera de bolso, que Oskar levara a Plaszóvia, Titsch
começara a fotografar também. Às vezes da janela do seu escritório, às vezes de cantos das oficinas, ele fotografava os prisioneiros de uniforme listrado na linha
das carretas, a distribuição de pão e sopa, a escavação de bueiros e fundações. Algumas dessas fotos de Titsch são provavelmente do fornecimento ilegal de pão para
a oficina de Madritsch. Sem dúvida, pães pretos de centeio eram comprados pelo próprio Raimund, com o consentimento e dinheiro de Julius Madritsch, e entregues em
Plaszóvia por caminhões, sob fardos de trapos e peças de tecidos. Titsch fotografava os pães redondos sendo passados apressadamente de mão em mão para dentre do
depósito de Madritsch, que ficava afastado das torres de vigia e tornado invisível da principal estrada de acesso, pelo prédio da fábrica de papel.
Ele fotografou a SS e os ucranianos marchando, divertindo-se, trabalhando; fotografou um grupo de trabalho sob a supervisão do engenheiro Karp, que logo iria ser
atacado pelos cães ferozes e ter a coxa dilacerada, os órgãos genitais arrancados. Numa tomada geral de Plaszóvia, mostrou a extensão do campo, sua desolação. Ao
que consta, no solário de Amon ele conseguiu mesmo bater close-ups do comandante repousando numa espreguiçadeira, um Amon pesadão agora com quase 120 quilos, que
levara o novo médico da SS, Dr. Blancke, a adverti-lo: "Agora chega, Amon; vai ter de perder peso." Titsch fotografou Rolf e Ralf brincando e dormindo ao sol, e
Majola segurando um dos cães pela coleira e fingindo que estava gostando da proximidade. E fotografou também Amon majestosamente montado no seu grande cavalo branco.
Titsch não revelava as fotos que batia. Formavam um arquivo mais seguro e portátil sob a forma de rolos, que escondia num cofre de metal no seu apartamento em Cracóvia.
Ali ele também guardava alguns dos pertences que haviam restado aos judeus de Madritsch. Em toda Plaszóvia havia gente que ainda tinha um último tesouro; algo a
oferecer - no momento de maior perigo - ao homem da lista, o homem que abria e fechava as portas dos vagões de gado. Titsch compreendia que só os desesperados lhe
confiavam os seus tesouros. Os poucos prisioneiros, que tinham um estoque de anéis e relógios e jóias escondido em alguma parte no campo, não precisavam dele. Trocavam
regularmente esses bens por favores e confortos. Mas no mesmo esconderijo dos rolos de filme de Titsch eram guardados os últimos recursos de uma dúzia de famílias
- o broche de tia Yanka, o relógio de tio Mordche.
De fato, quando o regime de Plaszóvia deixou de existir, quando Scherner e Czurda fugiram e os arquivos impecáveis do Escritório Econômico e Administrativo da SS
tinham sido empacotados e transportados em caminhões para servirem como provas, Titsch não precisou revelar as fotos, e teve todos os motivos para não as revelar.
Nos arquivos de ODESSA, a sociedade secreta de ex-membros da SS no pós-guerra, ele estaria na lista dos traidores. Pelo fato de ter fornecido ao pessoal de Madritsch
uns 30 mil pães, bem como muitas galinhas e uns tantos quilos de manteiga, de o Governo de Israel o ter homenageado pela sua humanidade e a imprensa o ter distinguido
com alguma publicidade, pessoas o ameaçavam e vaiavam nas ruas de Viena. "Beijador de judeus!" Assim, os rolos de filmes de Plaszóvia permaneceram vinte anos enterrados
num pequeno parque nos subúrbios de Viena, onde Titsch os escondera e poderiam ter ali ficado para sempre, a emulsão secando as sombrias e secretas imagens de Majola,
a amante de Amon, seus cães assassinos, seus anônimos trabalhadores escravos. Portanto o arquivo de Titsch poderia ter sido considerado como uma espécie de triunfo
para a população de Plaszóvia quando, em novembro de 1963, um sobrevivente da fábrica de Schindler (Leopold Pfefferberg) comprou secretamente o cofre e seu conteúdo,
por 500 dólares, de Raimund Titsch, que estava sofrendo de uma grave doença do coração. Mesmo assim, Raimund não quis que os rolos fossem revelados senão depois
de sua morte. A sombra anônima de ODESSA apavorava-o mais do que os nomes de Amon Goeth, de Scherner, de Auschwitz, nos tempos de Plaszóvia. Após o seu enterro,
os filmes foram revelados. Quase todas as fotos puderam ser aproveitadas. Ninguém do pequeno grupo de prisioneiros do campo de Plaszóvia que tenha sobrevivido a
Amon jamais teria qualquer acusação a fazer contra Raimund Titsch. Mas ele nunca fora o tipo de homem a respeito de quem se criam lendas, ao contrário de Oskar.
Uma história sobre Schindler, sucedida em fins de 1943, corre entre os sobreviventes, provocando a excitação eletrizante de um mito. Pois o que importa num mito
não é ser verdadeiro ou falso, nem se teria de ser verdadeiro mas que, de certa forma, seja mais verdadeiro do que a própria verdade. Ao ouvir essas histórias, constata-se
que, para a população de Plaszóvia, enquanto Titsch era considerado o bom samaritano, Oskar se tornara um pequeno deus da libertação - de face dupla, à maneira grega
- como qualquer deus menor; ele era dotado de todos os vícios humanos: astucioso; sutilmente poderoso; capaz de efetuar um salvamento gratuito, porém seguro.
Uma das histórias se refere ao tempo em que os chefes de polícia da SS estavam sendo pressionados para fechar Plaszóvia, já que a reputação do campo, como um eficiente
complexo industrial, não era brilhante aos olhos da Inspetoria de
Armamentos. Freqüentemente, Helen Hirsch, a criada de Goeth, encontrava oficiais, convidados dos
jantares de Goeth, que perambulavam pelo saguão ou pela cozinha para se livrarem um pouco da presença de Amon e que abanavam a cabeça com desaprovação. Certa vez,
um oficial da SS, chamado Tibritsch, surgiu na cozinha e disse a Helen: "Será que ele não sabe que há homens morrendo?" Naturalmente, referia-se à frente de batalha
no Leste, não à sombra dos muros de Plaszóvia. Oficiais, com uma vida menos nababesca do que Amon, estavam ficando indignados com o que viam na casa do comandante
ou, o que talvez fosse mais perigoso, o invejavam.
Segundo a lenda, foi numa noite de sábado que o General Julius Schindler visitou Plaszóvia, a fim de decidir se a existência do campo tinha algum valor real para
o esforço de guerra. Era uma hora estranha para um importante burocrata estar fazendo aquela inspeção mas talvez a Inspetoria de Armamentos, em vista daquele inverno
perigoso na Frente Leste, estivesse despendendo desesperada atividade. A inspeção fora precedida de um jantar na Emalia, com profusão de vinhos e conhaques, pois
Oskar era adepto, como Baco, da linha dionisiana dos deuses.
Depois do lauto jantar, o grupo de inspeção que seguiu para Plaszóvia, em seus Mercedes, achava-se num estado de espírito não muito profissional. Ao alegar isso,
a história ignora o fato de que Schindler e seus oficiais eram todos engenheiros e peritos em produção, com quase quatro anos de experiência. Mas não era do feitio
de Oskar se intimidar com essas eficiências.
A inspeção começou na fábrica de uniformes de Madritsch, que era o principal cartaz de Plaszóvia. Durante o ano de 1943, a fábrica tinha produzido uma média de mais
de 20 mil uniformes por mês para a Wehrmacht. Mas a questão era: não seria melhor Herr Madritsch esquecer Plaszóvia e usar seu capital na expansão das suas mais
eficientes fábricas polonesas em Podgórze e Tarnow? As condições precárias de Plaszóvia não constituíam um encorajamento para Madritsch ou qualquer outro investidor
decidir instalar a espécie de maquinaria , de que necessitaria uma fábrica sofisticada.
O grupo oficial estava começando a inspeção quando todas as luzes em todas as oficinas se apagaram; o circuito elétrico fora interrompido por amigos de Itzhak Stern
na casa do gerador. Ao entorpecimento causado pelo excesso de comida e bebida com que Oskar abarrotara os membros da Inspetoria de Armamentos, se acrescentaram as
limitações decorrentes da falta de iluminação. A inspeção prosseguiu com lanternas elétricas e as máquinas permaneceram inoperantes e portanto menos mensuráveis
ao profissionalismo dos inspetores.
Enquanto o General Schindler apertava os olhos para distinguir, à luz de uma lanterna elétrica, as prensas e tornos da fundição, 30 mil plaszovianos, inquietos nos
beliches, esperavam pela sua decisão. Mesmo nas sobrecarregadas linhas da Ostbahn, eles sabiam que a tecnologia mais aperfeiçoada de Auschwitz ficava a apenas poucas
horas de trem para o oeste. Compreendiam que não podiam esperar compaixão alguma do General Schindler. Produção era a sua meta. Para ele, Produção era só o que contava.
Graças ao copioso jantar de Schindler e à falta de eletricidade, diz o mito, a população de Plaszóvia se salvou. É uma lenda humanitária, pois, na verdade, apenas
um décimo dos prisioneiros do campo escaparia com vida no final. Mas Stern e outros iriam comemorar mais tarde a história e provavelmente ela é verdadeira na maioria
dos detalhes. Pois Oskar sempre recorrera à bebida, quando tinha de tratar com autoridades nazistas, e teria apreciado a esperteza de mergulhá-las em escuridão.
"É preciso lembrar", teria dito um rapaz que mais tarde Oskar salvou, "que Oskar tinha um lado alemão mas também um lado tcheco. Ele era o bom soldado Schweik. Adorava
transtornar o sistema."
Não confere mais credibilidade ao mito perguntar o que o rigoroso Amon Goeth pensou quando as luzes se apagaram. Talvez, mesmo naquele momento importante, ele estivesse
embriagado ou jantando fora. A questão que ficou pendente é: Plaszóvia sobreviveu porque o General Schindler teria sido enganado pela falta de iluminação e por uma
visão turvada pela bebida ou por ser um excelente centro de controle durante aquelas semanas, em que a grande terminal de Auschwitz-Birkenau estava superlotada.
Mas a história conta mais das esperanças que aquela gente depositava em Oskar do que sobre o horrendo conjunto de Plaszóvia ou sobre o fim que teve a maioria dos
seus prisioneiros.
Enquanto a SS e a Inspetoria de Armamentos cogitavam do futuro de Plaszóvia, Josef Bau - um jovem artista de Cracóvia, que Oskar acabaria conhecendo bem - se apaixonava
perdidamente por uma jovem chamada Rebecca Tannenbaum. Bau trabalhava no Escritório de Construção como desenhista. Era um rapaz grave, com um senso fatalista. Tinha,
por assim dizer, escapado para dentro de Plaszóvia, porque nunca possuíra a documentação correta do gueto. Como o seu ofício não tinha utilidade alguma para as fábricas
do gueto, sua mãe o escondera em casa de amigos. Durante uma batida em março de 1943, ele escapara para fora dos muros e se juntara sorrateiramente a uma fila de
trabalhadores que retornava para Plaszóvia. Porque no campo havia uma nova indústria, que não se aplicava ao gueto: construção. No mesmo prédio sombrio de duas alas,
onde Amon tinha o seu gabinete, Josef Bau desenhava plantas. Era um protegido de Itzak Stern, que o mencionara a Oskar como um excelente projetista e, pelo menos
potencialmente, um falsário.
Tinha a sorte de não ter muito contato com Amon, pois certo ar de genuína sensibilidade sempre fora um incentivo para Amon usar o seu revólver. O escritório de Bau
ficava na outra extremidade do prédio, bem longe do gabinete do comandante. Ali trabalhavam encarregados de compras, escriturários, o estenógrafo Mietek Pemper.
Não somente enfrentavam o risco diário de uma bala inesperada mas, ainda mais certamente, violações ao seu senso de justiça. Mundek Korn, por exemplo, que antes
da guerra fora comprador de uma rede de subsidiárias dos Rothschild e que agora comprava tecido, capim, lenha e ferro para as oficinas do campo, era obrigado a trabalhar
não sono Prédio da Administração mas na mesma ala em que Amon tinha o seu gabinete. Certa manhã Korn ergueu os olhos de sua mesa de trabalho e viu pela janela, do
outro lado da Rua Jerozolimska próximo à caserna da SS, um rapaz de cerca de vinte anos, um cracoviano seu conhecido, urinando junto a uma pilha de lenha. Ao mesmo
tempo ele notou; dois braços em mangas de camisa branca e duas manoplas aparecerem na janela do banheiro, no final da ala. A mão direita segurava um revolver. Houve
dois rápidos disparos, um dos quais penetrou na cabeça do rapaz e o atirou contra o monte de lenha. Quando Korn tornou a olhar para a janela do banheiro, um braço
e a mão livre estavam fechando a janela.
Sobre a mesa de Korn nessa manhã havia formulários de requisição assinados com a letra redonda, regular, de Amon. Seu olhar passou da assinatura para o corpo de
braguilha aberta junto à lenha. Não apenas ele duvidou se vira mesmo o que tinha visto, como se deu conta do conceito traiçoeiro inerente aos métodos de Amon. Isto
é, a tentação de concordar que, se assassinato não era mais do que uma visitai ao banheiro, uma mera pulsação na monotonia da assinatura de
formulários, então talvez toda morte devia agora ser encarada - fosse qual fosse a dose de desespero conseqüente - como rotina.
Não parece que Josef Bau tenha corrido o risco de tão radical persuasão. Ficou de fora, também, no expurgo do andar térreo do prédio, deflagrado quando
Josef Neuschel, um protegido de Goeth, dera queixa ao comandante de que uma funcionária do escritório havia adquirido um pedaço de toucinho. Amon saíra do seu gabinete,
esbravejando. "Vocês estão todos engordando!", berrou ele. Depois dividiu o pessoal do escritório em duas filas. A Korn pareceu que assistia a uma cena na escola
secundária de Podgórze: as garotas da segunda fila, tão suas conhecidas, filhas de famílias com quem ele tinha sido criado, famílias de Podgórze. Era como se a professora
estivesse dividindo um grupo de alunas para irem visitar o Monumento de Kosciuszko, e outro o museu do Wawel. Na realidade, as jovens da segunda fila foram levadas
diretamente de suas mesas de trabalho para Chujowa Górka, acusadas de decadência pela aquisição daquele pedaço de toucinho e fuziladas por um dos pelotões de Pilarzik.
Embora Josef Bau não houvesse sido envolvido naquele tumulto no escritório, não se podia dizer que ele levasse uma vida protegida em Plaszóvia. Era, porém, menos
perigosa que a da jovem, em quem estava interessado. Rebecca Tannenbaum era órfã, embora no clã unido dos judeus de Cracóvia não lhe houvesse faltado afetuosos tios
e tias. Apenas dezenove anos, um rostinho meigo e um bonito corpo. Sabia falar bem alemão e tinha uma conversa agradável. Recentemente, começara a trabalhar no escritório
de Stern, atrás do Prédio da Administração, longe da interferência demente do comandante. Mas o seu trabalho no Escritório de Construção constituía apenas metade
de suas atribuições. Rebecca era também manicura. Todas as semanas ela fazia as unhas de Amon, do Untersturmführer Leo John, do Dr. Blanche e de sua amante, a ríspida
Alice Orlowski. Ao tratar das mãos de Amon, ela notara que eram alongadas e bem-feitas, com dedos afilados - em absoluto as mãos de um homem gordo; certamente não
as de um selvagem.
Quando um prisioneiro fora ter com ela e lhe dissera que Herr Commandant queria vê-la, Rebecca se pusera a fugir, correndo por entre as mesas e descendo pela escada
dos fundos.
-Por favor, não faça isso! - gritara-lhe o prisioneiro, indo emseu alcance. - Se eu voltar sem você, ele vai me castigar!
Ela, então, o acompanhou até a casa de Goeth. Mas, antes de entrar no salão, foi primeiro ao malcheiroso porão - era a primeira residência de Goeth, e o porão fora
cavado onde antes existira um antigo cemitério judaico. Ali, Helen Hirsch, amiga de Rebecca, estivera cuidando de seus ferimentos.
-Você tem um problema - admitiu Helen. - Mas apenas façao seu serviço e espere. É só o que pode fazer. Ele gosta da maneiraprofissional de umas pessoas, de outras
não. E, quando você vier aqui,eu lhe darei bolo e salsichas. Mas não coma nada sem primeiro me perguntar. Tem gente que apanha a comida sem pedir e eu fico sem
saber como prestar contas.
Amon aceitou bem a maneira profissional de Rebecca, estendendo-lhe os dedos e conversando em alemão. Poderia ser o Hotel Cracóvia de novo e Amon um jovem magnata
alemão, um pouco pesadão, de camisa impecável, que teria vindo a Cracóvia para negociar têxteis ou aço ou produtos químicos. Havia, porém, dois detalhes nessas sessões
que destoavam do tom de deslocada cordialidade. O comandante mantinha sempre um revólver junto a seu cotovelo esquerdo e freqüentemente um ou o outro dos seus cães
dormitava no salão. Ela os vira, na Appellplatz, rasgar as carnes do engenheiro Karp. Entretanto, às vezes, com os cães imobilizados pela sonolência, quando ela
e Amon falavam de suas visitas, antes da guerra, à estação de águas de Carlsbad, os horrores que se passavam na Appellplatz pareciam remotos e : inacreditáveis.
Um dia ela tomou coragem e lhe perguntou por que mantinha o revólver sempre a seu lado. A resposta dele a fez curvar-se sobre o seu trabalho, sentindo um frio na
espinha.
-É para o caso de você dar um corte no meu dedo.
Se Rebecca precisasse ainda de outra prova de que conversas sobre estações de águas para Amon ajustavam-se a um ato de demência, ela a teve no dia em que do corredor
viu Amon arrastando Helen Hirsch pelos cabelos para fora do salão. A infeliz esforçava-se por manter o equilíbrio, enquanto seus cabelos castanho-avermelhados iam
sendo arrancados aos punhados; quando sua vítima lhe escapava por um instante, Amon tornava a agarrá-la com as mãos bem-cuidadas. Rebecca teve ainda outra prova
na noite em que entrou no salão e um dos cães - Rolf ou Ralf - saltou sobre seus ombros e escancarou a boca para morder-lhe o seio. Olhando para o fundo da sala
ela viu Amon reclinado no sofá, sorrindo:
-Pare de tremer, estúpida, ou não vou poder livrá-la do meu cão. Durante o tempo em que cuidou das mãos do comandante, ela o viu matar com um tiro o engraxate
por não gostar dos seus serviços; pendurar a ordenança de quinze anos, Poldek Deresiewicz, nas argolas do seu gabinete porque encontrara uma pulga num dos seus cães;
executar o seu criado Lisiek por ter emprestado uma drózka e o cavalo a Bosch, sem primeiro consultá-lo. Contudo, duas vezes por semana, a bonita órfã entrava no
salão e tomava entre as suas a mão da fera.
Rebecca conheceu Josef Bau numa manhã cinzenta, quando ele se achava do lado de fora do Bauleitung, segurando o chassi da planta de uma construção contra a claridade
de baixas nuvens do outono. O peso parecia excessivo para o seu físico franzino. Ela lhe perguntou se podia ajudá-lo.
Não - disse ele. - Só estou esperando pelo sol.
Por quê? - quis saber Rebecca.
Josef explicou que seus desenhos, em transparência, para o novo prédio estavam aparafusados no chassi, junto com o papel sensibilizado.
Se o sol brilhasse com um pouco mais de intensidade, uma misteriosa
liga química transferiria o desenho da transparência para o papel. Então, perguntou-lhe:
-Não quer ser o meu raio de sol mágico?
Em Plaszóvia as meninas bonitas não estavam habituadas a delicadezas dos rapazes. Lá a sexualidade tinha o ímpeto violento das rajadas ouvidas em Chujowa Górka,
das execuções na Appellplatz. Um exemplo da violência reinante: o incidente de uma galinha encontrada dentro da sacola de alguém de um grupo de trabalho que regressava
da fábrica de cabos em Wieliczka. Amon pôs-se a vociferar na Appellplatz quando foi descoberta a sacola contendo a ave caída na frente do portão do campo, no decorrer
de uma vistoria. A quem pertence a sacola?, esbraveja Amon. De quem é a galinha? Como ninguém na Appellplatz se apresenta, Amon toma o fuzil de um guarda SS e atira
no primeiro prisioneiro da fila. A bala, atravessando o corpo da vítima, derruba também o homem que se encontra logo atrás. Mas ninguém abre a boca.
-Como vocês se amam uns aos outros! - troveja Amon, eprepara-se para executar o próximo homem da fila. Um menino de quatorze anos adianta-se. Está tremendo e chorando.
Diz que pode apontar quem é o dono da galinha.
Quem, então?
Aquele! - exclama o menino, apontando para um dos dois homens mortos.
Para espanto geral, Amon acredita na palavra do menino e, jogando a cabeça para trás, ri com a espécie de incredulidade que professores gostam de exibir numa classe.
"Essa gente... será que não compreenderam até agora que estão perdidos?"
Depois de uma tarde como aquela, nas horas de trânsito livre, entre as sete e as nove da noite, a maioria dos prisioneiros achava que não havia tempo para galanteios
amorosos. A tortura dos chatos nas virilhas e axilas tornavam ridículas as formalidades. Rapazes montavam sem cerimônia nas meninas. No campo das mulheres cantava-se
uma canção que perguntava à virgem por que ela se protegia tanto e para quem estava guardando a sua virgindade?
O ambiente na Emalia não era tão desolador. Na oficina tinham se arranjado nichos entre as máquinas para permitir aos namorados maior intimidade. Nas casernas repletas,
a segregação era apenas teórica. A ausência do medo quotidiano, a ração mais farta de pão abrandavam os ímpetos. Além disso, Oskar continuava afirmando que não permitiria
que a guarnição da SS penetrasse no campo, sem sua permissão.
Um prisioneiro recorda-se de ter sido instalada uma fiação no gabinete de Oskar para a eventualidade de algum SS querer vistoriara! casernas. Enquanto o SS descia
as escadas do escritório, Oskar apertava um botão ligado a uma campainha dentro do campo. Assim homens e mulheres eram avisados para apagar cigarros ilícitos, fornecida
diariamente por Oskar. ("Vá ao meu apartamento e encha essa cigarreira"- dizia ele quase todos os dias a alguém na oficina, piscando significativamente o olho.)
A campainha servia também para avisara homens e mulheres que tratassem de voltar para os seus respectiva beliches.
A Rebecca parecia algo de espantoso, algo que lhe lembrava um cultura desaparecida, encontrar em Plaszóvia um rapaz que a cortejava, como se a houvesse conhecido
numa confeitaria no Rynek.
Numa outra manhã, quando ela descia do gabinete de Stern, Josef mostrou-lhe sua mesa de trabalho. Estava desenhando plantas para novas casernas. Qual era o número
de sua caserna, e quem era a sua Alteste? Ela o informou, com a apropriada relutância. Tinha visto Helen Hirsh sendo arrastada pelos cabelos no corredor e morreria
se, acidentalmente, desse um pique na cutícula do dedo de Amon. E no entanto, esse rapaz lhe devolvera o senso do recato, da feminilidade
Vou falar com sua mãe - prometeu ele.
Não tenho mãe - respondeu Rebecca.
Então falarei com a sua Alteste.
Assim começou o namoro - com a permissão dos mais velhos, como se ainda houvesse condições e tempo suficiente para tais formalidades. Por ser ele um rapaz tão excêntrico
e cerimonioso, não beijava a namorada. Com efeito, foi sob o teto de Amon que conseguira trocar um beijo de verdade, pela primeira vez. Acontecera depois de uma
sessão de manicura. Rebecca tinha conseguido água quente e sabão com Helen e esgueirara-se para o andar de cima, deserto porque ia entrar em reforma, para lavar
sua blusa e roupa de baixo. O seu tanque de lavar roupa era a gamela da comida. Iria precisar dela no dia seguinte para a sopa.
Esfregava a roupa naquele pequeno balde de espuma, quando Josef apareceu.
Por que está aqui? - perguntou Rebecca.
Estou tirando medidas para desenhar a planta da reforma - replicou ele. - E você, o que está fazendo aqui?
Não está vendo que lavo a minha. roupa? E, por favor, não fale tão alto. Ele circundou a sala, dançando e medindo com a fita métrica paredes e cornijas.
Faça tudo com cuidado - advertiu ela, ansiosa porque sabia o quanto Amon era exigente.
Enquanto estou aqui - disse ele - vou aproveitar para tomar também as suas medidas. - E começou a medir-lhe com a fita métrica os braços e as costas, desde a nuca
até a base da espinha dorsal. Ela não resistiu ao toque das mãos dele. Mas depois de se deixar acariciar prolongadamente, Rebecca lhe ordenou que fosse embora. Aquele
local não era apropriado para uma tarde amorosa.
Havia outros romances desesperados em Plaszóvia, mesmo entre os SS, mas se desenrolavam menos radiosos do que o namoro antiquado de Josef Bau com a manicura. O Oberscharführer
Albert Hujar, por exemplo, que havia matado a Dra. Rosalia Blau no gueto e Diana Reiter depois de as fundações da caserna terem ruído, apaixonou-se por uma prisioneira
judia. Por sua vez, a filha de Madritsch se encontrava com um rapaz judeu do gueto de Tarnow - naturalmente ele tinha trabalhado na fábrica de Madritsch em Tarnow
até o perito em liquidação de guetos, Amon, surgir no final do verão e fechar Tarnow como fechara o gueto de Cracóvia. Agora o rapaz trabalhava na oficina de Madritsch
dentro de Plaszóvia, onde a jovem podia visitá-lo. Mas o romance não podia florescer. Os próprios prisioneiros tinham nichos e abrigos, onde amantes e esposos podiam
se encontrar. Mas tudo - a lei do Reich e o estranho código dos prisioneiros - proibia o amor entre Fräulein Madritsch e o rapaz. Similarmente, o honesto Raimund
Titsch tinha-se apaixonado por uma de suas maquinistas. Aquele também era um romance suave, delicado e impossível. Quanto ao Oberscharführer Hujar, recebeu uma
ordem direta do próprio Amon para que deixasse de ser imbecil. Assim, Albert levou a moça para um passeio a pé nos bosques e, com muita tristeza, matou-a com um
tiro na nuca.
De fato, parecia que a morte pairava sobre as paixões dos SS. O violinista Henry Rosner e seu irmão Leopold, o acordeonista, enquanto tocavam melodias vienenses
em torno da mesa de Goeth, tinham consciência disso. Certa noite um oficial grisalho, alto, esguio, do Waffen da SS veio jantar com Amon; depois de ingerir muita
bebida, começou a insistir com os Rosner para tocarem a canção húngara Domingo Sombrio. A canção versa sobre um transbordamento emocional, em que um jovem está prestes
a se suicidar por amor. O tom era exatamente do tipo de sentimentalismo excessivo que, como Henry já havia notado, tinha especial apelo para certos membros da SS.
A canção desfrutara de certa notoriedade nos anos 30 - os governos da Hungria, Polônia e Tchecoslováquia tinham cogitado proibi-la porque a sua popularidade provocara
uma onda de suicídios por amores mal- correspondidos. Às vezes, rapazes prestes a dar um tiro na cabeça citavam versos da canção em seus bilhetes suicidas. Desde
muito tempo, Domingo Sombrio fora proibida pela Agência de Propaganda do Reich. Agora, aquele alto, elegante conviva, com idade suficiente para ter filhos adolescentes,
que mais naturalmente seriam dados a excessos de amor juvenil, insistia com os irmãos Rosner: "Toquem Domingo Sombrio!" Apesar da proibição do Dr. Goebbels, ninguém
nos confins do sul da Polônia iria discutir com um oficial superior da SS, que alimentava recordações amargas de um caso de amor.
Depois de o conviva ter pedido a canção umas quatro ou cinco vezes, uma absurda convicção se apossou de Henry Rosner. Sob a influência de origens tribais, a música
tornava-se uma magia. E ninguém na Europa tinha melhor senso do poder mágico do violino do que um judeu cracoviano como Henry, que descendia de uma família em que
o virtuosismo musical era mais herdado do que aprendido, da mesma forma que o status de cohen, ou o sacerdócio hereditário. Ocorreu naquele momento a Henry, como
ele diria mais tarde: "Meu Deus, se me for concedido esse poder, talvez esse filho de uma cadela se mate!"
A melodia proscrita de Domingo Sombrio adquirira legitimidade na sala de jantar de Amon pelas
vezes que vinha sendo repetida, e agora Henry resolveu usar a canção como arma de guerra, ao passo que Leopold o acompanhava tranqüilizado pelos olhares de melancolia
quase grata que o oficial lhes lançava.
Henry transpirava, acreditando que estava tão visivelmente impelindo o oficial SS à morte que a qualquer momento Amon ia perceber sua intenção e arrastá-lo para
fora e executá-lo. Quanto ao desempenho de Henry, não importa saber se era bom ou mau, era arrebatador. E apenas um homem, o oficial, o notava e se empolgava por
sobre a algazarra embriagada de Bosch e Scherner, Czurda e Amon. Continuava sentado em sua cadeira, olhando fixamente Henry, como se prestes a levantar-se de um
salto e dizer: "É claro, cavalheiros. O violinista está com toda a razão... Não tem sentido viver com um desgosto como este."
Os Rosner continuaram repetindo a canção a tal ponto que era de admirar que Amon não tivesse gritado: "Basta!" Por fim o oficial levantou-se e foi até a sacada.
Henry percebeu imediatamente que tinha levado o homem ao auge da alucinação. Ambos, ele e o irmão, passaram a tocar melodias de Von Suppé e Lehar, disfarçando o
clima de melancolia com operetas alegres. O conviva permaneceu sozinho na varanda e, ao final de meia hora, interrompeu uma boa reunião dando um tiro na cabeça.
Assim era o sexo em Plaszóvia. Piolhos, chatos e incontinência dentro do campo; assassinato e demência ao redor. E em meio de tudo isso Josef Bau e Rebecca Tannenbaum
prosseguiam em seu ritual de namoro.
Durante as neves daquele ano, Plaszóvia passou por uma adversa mudança nas condições sociais de todos os amantes do campo. Nos primeiros dias de janeiro de 1944,
foi organizado um Konzentrationslager (Campo de Concentração) sob a autoridade central do General SS Oswald Pohl, do Escritório Econômico e Administrativo em Oranienburg,
nas cercanias de Berlim. Subcampos de Plaszóvia - tais como o da Emalia, de Schindler - também passaram a ser controlados em Oranienburg. Os chefes de polícia Scherner
e Czurda perderam autoridade direta. Os salários de trabalho de todos os prisioneiros empregados por Oskar e Madritsch não foram mais para a Rua Pomorska mas para
o escritório do General Richard Glücks, chefe da Seção D (Campos de Concentração) de Pohl. Agora, quando precisava de favores, Oskar não tinha de ir somente a Plaszóvia
amaciar Amon e convidar Julian Scherner para jantar, mas também entrar em contato com certos funcionários do grande complexo burocrático de Oranienburg.
Oskar logo arranjou uma oportunidade de viajar para Berlim e travar conhecimento com as pessoas que iriam lidar com a sua ficha. Oranienburg tinha começado como
um campo de concentração. Agora se tornara uma vasta organização administrativa. Nos escritórios da Seção D, eram regulamentados todos os aspectos da vida e da morte
de prisioneiros. O seu chefe, Richard Glücks, tinha também a responsabilidade, de acordo com Pohl, de estabelecer o equilíbrio entre trabalhadores e candidatos às
câmaras de gás, para a equação em que X representava trabalho escravo e Y representava os próximos condenados.
Glücks estabelecera as providências para cada evento e do seu departamento eram emitidos memorandos compostos no jargão anestésico do planejador, do burocrata, do
perito imparcial.
Escritório Central da SS de Economia e Administração Chefe da Seção D (Campos de Concentração) Di-Az:fl. 14-Ot-S-GEH TGB NO 453-44
Aos Comandantes de Campos de Concentração
Da, Sah, Bu, Mau, Slo, Neu, Au 1 -III,
Gr-Ro, Natz, Stu, Rav, Herz, A-L-Bels,
Gruppenl. D. Riga, Gruppenl. D. Cracóvia (Plaszóvia)
Estão se tornando cada vez mais freqüentes os requerimentos de Comandantes de Campo para que sejam punidos com chicotadas prisioneiros acusados de sabotagem na produção
de indústrias de guerra.
Solicito que, no futuro, em todos os casos comprovados de sabotagem (um relatório da gerência deve ser incluído), seja feito um pedido de execução por enforcamento.
A execução deverá ter lugar diante dos membros reunidos do destacamento de trabalho em questão. O motivo da execução deve ser comunicado, a fim de que seja criado
um clima de coibição.
(Assinado) SS Obersturmführer
Nessa sinistra chancelaria, alguns arquivos se referiam a discussões sobre qual o comprimento obrigatório do cabelo de um prisioneiro, material considerado
utilizável economicamente "na manufatura de meias para tripulações de submarinos e feltro de cabelo para calçados", ao passo que em outros se discutia se o formulário
registrando "casos de morte" devia ser arquivado por oito departamentos ou simplesmente citado por carta e apenso aos registros de pessoal, a fim de que as fichas
de arquivo fossem atualizadas. E era nessa chancelaria que Herr Oskar Schindler de Cracóvia precisava falar do seu pequeno conjunto industrial em Zablocie. Destacaram
alguém do segundo escalão para discutir com ele.
Oskar não desanimou. Havia maiores empregadores do que ele de mão-de-obra judaica. Havia os megalíticos, Krupp, naturalmente, e I. G. Farben. Havia a Companhia de
Cabos em Plaszóvia. Walter G. Toebbens, o industrial de Varsóvia, que Himmler tentara forçar a entrar para a Wehrmacht, era mais poderoso empregador de mão-de-obra
do que Schindler. E havia ainda as fundições em Stalowa Wola, as fábricas de aviões em Budzyn e Zakopane, as oficinas Steyr-Daimler-Puch em Radom.
O oficial do segundo escalão estava com os planos da Emalia sobre a mesa. Um tanto secamente, ele disse esperar que Herr Schindler não estivesse pretendendo ampliar
o seu campo, o que certamente provocaria uma epidemia de tifo.
Oskar replicou que essa não era a sua intenção. O que interessava era a estabilidade da sua força de trabalho. E acrescentou que já havia conversado sobre a questão
com um amigo seu, o Coronel Erich Lange. Oskar notou que esse nome produziu certo efeito no oficial da SS. Oskar estendeu uma carta do coronel e o outro reclinou-se
na poltrona para lê-la. Na sala reinava o silêncio - tudo o que se podia ouvir das salas contíguas era o arranhar de canetas no papel, o rumor de papéis e as conversas
em voz baixa, como se ninguém ali soubesse que se achava no centro de uma encruzilhada de gritos.
O Coronel Lange era um homem de influência, Chefe do Estado Maior da Inspetoria de Armamentos do quartel-general do Exército, em Berlim. Oskar conhecera-o numa reunião
no gabinete do General Schindler em Cracóvia. Quase imediatamente os dois simpatizaram um com o outro. Em reuniões, acontecia freqüentemente duas pessoas que percebiam
uma na outra certa paridade de resistência ao regime se afastarem para um canto da sala a fim de trocar idéias e talvez iniciar uma amizade. Erich Lange ficara horrorizado
com os campos na Polônia - com as fábricas de I.G. Farben em Buna, por exemplo, onde os chefes de turma adotavam o "ritmo de trabalho" da SS e faziam os prisioneiros
descarregarem cimento ininterruptamente; onde os cadáveres dos que tinham morrido de fome eram atirados em valas cavadas para encanamentos e cobertos, juntamente
com os canos, por camadas de cimento. "Vocês não estão aqui para viver mas para morrer soterrados em concreto", dissera um gerente da fábrica a recém-chegados, e
Lange tinha ouvido o discurso e se sentira arrasado. Sua carta para Oraniemburg fora precedida de alguns telefonemas; tanto a carta como os telefonemas insistiam
na mesma proposição: "Herr Schindler, com seus utensílios de ranchos e granadas antitanque de 45mm, é considerado por esta Inspetoria um colaborador de grande importância
na luta pela nossa sobrevivência nacional. Formou uma equipe de peritos e nenhuma medida que possa perturbar o trabalho desses homens, sob a supervisão de Herr Direktor
Schindler,
deve ser tomada."
O oficial encarregado do pessoal mostrou-se impressionado e disse que ia falar francamente com Herr Schindler. Não havia planos para alterar o estado de
coisas atual ou interferir com a população do campo em Zablocie. Contudo, Herr Direktor devia compreender que a situação dos judeus, mesmo a dos técnicos em armamentos,
era sempre arriscada.
- Veja, o caso de nossos próprios empreendimentos. Ostindustrie, a companhia da SS, emprega prisioneiros em trabalhos com turfa; uma fábrica de escovas e
fundição de ferro em Lublin; fábricas de equipamentos em Random; uma oficina de peles em Trawniki. Mas outras sucursais da SS estão continuamente desbaratando a
tiros a força de trabalho, e agora a Ostindustrie, para todas as finalidades práticas, está inutilizada. Da mesma forma, nos centros de liquidação de judeus, a equipe
nunca retém uma percentagem suficiente de prisioneiros para o trabalho de fábrica. Esse item tem ocasionado muita correspondência; essa gente dos campos é intransigente.
Mas, naturalmente - concluiu o oficial batendo com os dedos na carta -, farei o que puder para ajudá-lo, Herr Schindler.
- Compreendo o problema - disse Oskar, fitando o SS, com um sorriso radioso. - Se há algum modo de eu poder expressar a minha gratidão...
No final, Oskar deixou Oranienburg, com pelo menos algumas garantias sobre a continuidade de seu campo em Cracóvia.
O novo regulamento cerceava os amantes estabelecendo uma separação penal dos sexos - conforme estipulado numa série de memorandos do Escritório Central de Economia
e Administração. As cercas entre a prisão dos homens e a das mulheres, a cerca perimetral, a cerca em torno do setor industrial, todas elas eram eletrificadas. A
voltagem, o espaço entre os arames farpados, o número de cabos e isoladores eletrificados eram todos determinados pelas diretrizes do Escritório. Amon e seus oficiais
não tardaram em notar as possibilidades disciplinares decorrentes dessa disposição. Agora se podia deixar uma pessoa de pé durante vinte e quatro horas consecutivas,
entre a cerca eletrificada externa e a neutra interna. Se a pessoa cambaleava de cansaço, sabia que uns poucos centímetros atrás de suas costas havia cem volts.
Mundek Korn, por exemplo, ao voltar ao campo com um grupo de trabalho em que estava faltando um prisioneiro, foi posto de pé como à beira de um abismo durante todo
um dia e uma noite.
Mas talvez pior do que o risco de cair contra o fio eletrificado era a maneira como se ligava a corrente, desde o final da chamada da noite até a hora de despertar
de manhã, como se homens e mulheres estivessem na muda. O tempo para contatos físicos ficava agora reduzido a uma breve fase de perambulação na Appellplatz, antes
da ordem berrada para que todos se enfileirassem. Cada casal combinava certa melodia, assobiando-a em meio da multidão, de ouvido atento ao refrão da resposta, de
tal modo que o ar ressoava como uma floresta de sibilância. Rebecca Tannenbaum também tinha uma melodia de código. As exigências do Escritório do General Pohl haviam
forçado os prisioneiros a adotar os estratagemas de acasalamento dos pássaros. E assim prosseguiu o romance entre Josef e Rebecca.
Josef conseguiu, no depósito de roupas, o vestido de uma mulher que morrera; muitas vezes, depois da chamada dos homens, ele se dirigia para as latrinas, envergava
o vestido comprido e colocava na cabeça uma touca ortodoxa. Depois saía e se encaminhava para as fileiras das mulheres. O seu cabelo curto não chamava a atenção
de nenhum guarda da SS, pois que a maioria das mulheres tivera a cabeça rapada por causa dos piolhos. Assim vestido, juntamente com 13 mil prisioneiros, ele penetrava
no conjunto das mulheres e passava a noite sentado na Cabana 57, fazendo companhia a Rebecca.
Na caserna de Rebecca, as mulheres mais velhas levavam a sério o namoro. Se Josef queria fazer uma corte tradicional à sua amada, elas também estavam dispostas a
assumir os seus papéis tradicionais de chaperons. Portanto Josef era bem-vindo entre elas, fornecendo-lhes a oportunidade de representar suas funções sociais de
antes da guerra.
Do alto de seus beliches, elas vigiavam os dois namorados até todos adormecerem. Se uma delas pensava: "Não vamos ser muito exigentes numa época como esta, com o
que as crianças fazem na calada da noite", nunca expressava em palavras esse pensamento. De fato,duas das mulheres mais velhas se apertavam num beliche estreito
para que Josef dispusesse de um só para ele. O desconforto, o cheiro do outro corpo, o risco de apanhar piolhos uma da outra - nada disso era tão importante, tão
crucial para os seus padrões atuais como o desejo de que o namoro progredisse de acordo com as normas.
No final do inverno, Josef, usando a braçadeira do Escritório de Construção, saiu na neve estranhamente imaculada entre a cerca interna e a barreira eletrificada
e, de régua em punho, sob os olhos das torres de vigia abobadadas, fingiu estar medindo a terra-de-ninguém para alguma finalidade arquitetural.
Na base dos pilares de concreto juncados de isoladores de porcelana cresciam as primeiras flores silvestres do ano. Segurando numa das mãos a régua de aço, com a
outra ele colheu as flores e enfiou-as por dentro do casaco. Em seguida, encaminhou-se através do campo em direção à Rua Jerozolimska. Passava pela casa de Amon,
com as flores escondidas no peito, quando o dono apareceu no limiar da porta da entrada e desceu imponente os degraus. Josef Bau estacou. Era muito perigoso parar,
parecer imobilizado diante de Amon. Mas tendo parado, só lhe restava continuar na mesma posição. Temeu que o coração, que com tanta intensidade e honestidade ele
entregara à órfã Rebecca, agora provavelmente fosse tornar-se apenas mais um alvo para Amon.
Mas, quando Amon passou por ele, sem o notar, sem fazer objeção por estar ele ali parado com uma régua inútil na mão, Josef Bau concluiu que isso significava uma
espécie de garantia. Ninguém escapava a Amon a não ser por milagre do destino. Muito bem-trajado com sua vestimenta de caçador, Amon tinha certa vez entrado inesperadamente
no campo pelo portão dos fundos e encontrara uma moça sentada numa limusine na garagem olhando-se no espelho retrovisor. As vidraças do carro que ela estava encarregada
de limpar estavam ainda sujas. Por isso, ele a matara. E havia também o caso da mãe e filha que Amon notara pela janela de uma cozinha, descascando batatas com certa
lentidão. Ele se debruçara no peitoril da janela e matara ambas a tiros. No entanto, ali diante de sua casa estava algo que ele odiava, um desenhista judeu apaixonado,
com a régua pendurada na mão. E Amon passara por ele sem se deter. Bau sentiu um ímpeto de celebrar a sua incrível sorte com algum ato solene. E o casamento era,
naturalmente, o mais imaginável ato solene.
Voltou ao Prédio da Administração, subiu as escadas para o escritório de Stern e, encontrando Rebecca, pediu-a em casamento. Foi uma alegria e uma preocupação para
Rebecca refletir que agora se tratava de um caso urgente.
Nessa noite, envergando o vestido da defunta, ele foi de novo visitar sua mãe e o conselho das senhoras na Cabana 57. Esperavam apenas a chegada de um rabino. Mas,
quando apareciam rabinos, demoravam-se ali apenas uns poucos dias a caminho de Auschwitz - não o tempo suficiente para as pessoas, que estivessem precisando dos
ritos de kidduschín e nissuin, conseguissem localizá-los e lhes pedissem que exercessem pela última vez seu sacerdócio, antes de entrarem no forno crematório.
Josef casou-se com Rebecca em fevereiro, numa noite de frio intenso de um domingo. Não havia um rabino. A Sra. Bau, mãe de Josef, oficioua cerimônia. Eram judeus
da Reforma, por isso podiam dispensar um kelubbah escrito em aramaico. Na oficina do joalheiro Wulkan, alguém tinha feito duas alianças de uma colher de prata que
a Sra. Bau escondera entre os caibros do telhado. No chão da caserna, Rebecca rodeou Josef sete vezes e Josef esmagou vidro - uma lâmpada queimada do Escritório
de Construção - sob os calcanhares.
Haviam reservado para o casal o beliche mais alto e, para maior privacidade, penduraram cobertores em volta. Às escuras Josef e Rebecca subiram para o seu ninho;
ao redor começaram as piadas maliciosas. Nos casamentos na Polônia havia sempre um período de trégua, quando o amor profano tinha a chance de se expressar. Se os
convivas não desejavam pronunciar eles próprios os tradicionais subentendidos, podiam contratar um bufão profissional especializado em piadas para casamento. Mulheres
que na casa dos vinte ou dos trinta teriam assumido ares de desaprovação com os gracejos salgados do bufão e com as gargalhadas dos homens, só de vez em quando se
permitindo um sorriso, estando agora na maternidade, nessa noite tomaram o lugar de todos os bufões de casamento, ausentes ou mortos, do sul da Polônia.
Josef e Rebecca não estavam juntos havia mais de dez minutos no beliche de cima, quando se acenderam as luzes da caserna. Espiando por uma fresta nos cobertores,
Josef viu o Untersturmführer Scheidt patrulhando os corredores de beliches. O mesmo antigo e temeroso senso do destino se apoderou de Josef. Já tinham descoberto
a sua ausência na caserna dos homens e mandado um dos piores oficiais para procurá-lo na caserna de sua mãe. Amon fingira não tê-lo visto nesse dia diante de sua
casa só para que Scheidt, que era rápido no gatilho, pudesse vir matá-lo na sua noite de núpcias!
Ele sabia também que todas as mulheres estavam comprometidas - a mãe, a noiva, as testemunhas, as companheiras que tinham cochichado todas aquelas piadas deliciosamente
embaraçosas. Josef começou a balbuciar desculpas, pedindo para ser perdoado. Rebecca disse-lhe que calasse a boca. Depois tirou todos os cobertores que estavam servindo
de cortina, raciocinando que Scheidt não iria olhar o beliche de cima, a não ser que algo provocasse a sua curiosidade. As mulheres dos beliches de baixo passaram-lhe
seus pequenos travesseiros de palha.Josef podia ter orquestrado o namoro mas agora era o menino que devia ser escondido. Rebecca empurrou-o com força para um canto
do beliche e cobriu-o com travesseiros. Viu Scheidt passar abaixo dela e sair pela porta dos fundos. As luzes se apagaram. Em meio a um último murmúrio de gracejos,
o casal Bau voltou à sua privacidade.
Minutos depois, as sirenes soaram. Todos se sentaram na escuridão. O ruído significou para Bau que sim, eles estavam decididos a liquidar com a sua noite nupcial.
Tinham encontrado o seu beliche desocupado e agora o estavam caçando.
Na caserna escura, as mulheres debatiam-se lentamente de um lado para o outro. Elas também sabiam. Do alto de seu beliche, Josef podia ouvir o que diziam. O seu
amor à antiga ia causar a morte de todas elas. A Alteste da caserna, que procurara tanto ajudar, seria a primeira a levar um tiro, quando as luzes se acendessem
e fosse encontrado o noivo disfarçado com seu vestido de mulher.
Josef Bau agarrou suas roupas, beijou rapidamente a mulher, escorregou para o chão e correu para fora. Na escuridão da noite, o ruído das sirenes parecia furar-lhe
os tímpanos. Disparou na neve suja, com o paletó e o velho vestido numa trouxa debaixo do braço. Quando as luzes se acendessem, ele seria visto pelas torres de vigia.
Mas teve a idéia maluca de que iria conseguir chegar à cerca antes das luzes, talvez mesmo saltá-la entre as alternações da corrente. Uma vez de volta ao campo dos
homens, poderia inventar uma história a respeito de diarréia, de ter ido à latrina e desmaiado no chão, recobrando os sentidos com o ruído das sirenes.
Enquanto corria desabaladamente, ele sabia que, mesmo que o eletrocutassem, não poderia confessar com que mulher estivera. Avançando para o arame fatal, não refletiu
que haveria uma cena como a de colégio na Appellplatz, e que Rebecca seria obrigada, de uma ou outra forma, a se denunciar.
A cerca entre os campos dos homens e das mulheres em Plaszóvia era de nove fios eletrificados. Josef Bau tomou impulso e saltou, esperando que seus pés encontrassem
apoio no terceiro fio e, esticando as mãos, ele alcançasse o segundo fio no alto. Imaginou-se saltando os fios com uma rapidez de rato. O que aconteceu foi que ele
caiu sobre a rede de arame e simplesmente ali ficou pendurado. Julgou que o frio do metal em suas mãos era a primeira mensagem da corrente elétrica. Mas não havia
corrente alguma. Nem luzes. Josef Bau, estendido sobre a cerca, não especulou sobre o motivo de não haver voltagem. Alcançou o alto da rede e caiu no campo dos homens.
"Você é um homem casado", disse para si mesmo. Atravessou a lavanderia e entrou na latrina. "Uma terrível diarréia, Herr Oberscharführer." O mau cheiro quase o sufocou.
A cegueira de Amon no dia das flores... a consumação, esperada com incômoda paciência, duas vezes interrompida... Scheidt e as sirenes... o problema com as luzes
e os fios eletrificados - cambaleante e nauseado, refletiu até quando iria ele suportar a ambigüidade de sua vida. Como todos os outros, o que desejava era uma segurança
mais definida.
Foi um dos últimos a entrar nas fileiras diante da sua caserna. Estava trêmulo mas certo de que o Alteste o ajudaria. "Sim, Herr Untersturmführer, dei permissão
ao Haftling Bau para ir à latrina."
Não estavam em absoluto procurando-o, mas sim três jovens sionistas, que tinham fugido num caminhão de produtos da oficina de estofamento, onde se fabricavam colchões
de capim para a Wehrmacht.
Capítulo 27
o dia 28 de abril de 1944, Oskar - examinando-se de perfil no espelho - constatou que, em seu trigésimo sexto aniversário, sua cintura estava mais grossa. Mas pelo
menos hoje, quando beijava as moças, ninguém se dava ao trabalho de denunciá-lo. Qualquer
informante entre os técnicos alemães devia sentir-se desmoralizado,
pois a SS tinha soltado Oskar da Rua Pomorska e da prisão de Montelupich, ambas consideradas centros supostamente impregnáveís à influência.
Para marcar o dia, Emilie enviou da Tchecoslováquia as habituais congratulações e Ingrid e Klonowska lhe deram presentes. Seus arranjos
domésticos pouco tinham-se modificado nos quatro anos e meio que ele passara em Cracóvia. Ingrid continuava sendo a sua consorte, Klonowska uma amante, Emilie uma
esposa compreensivelmente ausente.
Nada se sabe das queixas ou perplexidades que cada uma delas pudesse sentir mas tornara-se óbvio em seu trigésimo sétimo aniversário
que as suas relações com Ingrid pareciam um pouco mais frias; que Klonowska, sempre uma amiga leal, contentava-se com uma ligação meramente esporádica; e que Emilie
continuava considerando o seu casamento
indissolúvel. Mas, no momento, cada qual deu seu presente a Oskar e manteve-se calada.
Outros participaram da comemoração. Amon permitiu que Henry levasse o seu violino para a Rua Lipowa à noite, sob a guarda do melhor barítono da guarnição ucraniana.
Naquele estágio Amon estava muito satisfeito com a sua associação com Schindler. Em troca do contínuo apoio ao campo da Emalia, ele tinha solicitado e obtido o uso
permanente
do Mercedes de Oskar - não o calhambeque que Oskar tinha comprado
de John por um dia mas o carro mais elegante da garagem da Emalia. O recital realizou-se no gabinete do Herr Direktor. Ninguém compareceu,
a não ser o próprio Oskar. Era como se ele estivesse cansado de gente. Quando o ucraniano foi ao toalete, Oskar revelou sua depressão
a Henry. Estava preocupado com as notícias da guerra. Seu aniversário chegara num hiato. Os exércitos soviéticos tinham parado atrás da região fronteiriça de Pripet
na Bielo-Rússia e diante de Lwów. Os receios de Oskar intrigaram Henry. "Será que ele não compreende que, se os russos não forem detidos, será o fim de suas operações
aqui?"
- Já pedi muitas vezes a Amon que deixe você vir permanentemente
para cá
- disse Oskar a Rosner. - Você e sua mulher e seu filho. Mas ele se recusa. Aprecia muito você. Mas eventualmente...
Henry sentiu-se grato. Mas achou que devia fazer ver a Oskar que sua família estava bem garantida em Plaszóvia. Sua cunhada, por exemplo,
fora apanhada em flagrante por Goeth fumando no trabalho e ele ordenara a sua execução. Mas um dos NCO pediu permissão para informar Herr Commandant de que a moça
era a Sra. Rosner, mulher do acordeonista Rosner.
- Oh! - disse Amon, e suspendeu a execução. - Mas lembre-se, moça, que não permito que fumem no trabalho. Nessa noite, Henry descreveu a Oskar a atitude
de Amon, em relação aos Rosner - imunes graças ao seu talento musical -, atitude essa que o persuadira e à sua mulher Manei a trazerem para dentro do campo Olek,
seu filho de oito anos. O menino estivera escondido na casa de amigos em Cracóvia mas a situação estava ficando cada vez mais perigosa. Uma vez dentro do campo,
Olek podia se misturar ao grupo de crianças, muitas sem registro nos livros da prisão, cuja presença em Plaszóvia encontrava apoio na conivência dos prisioneiros
e era tolerada por alguns dos funcionários mais jovens. Todavia, o maior risco fora fazer Olek penetrar no campo. Poldek Pfefferberg, que tivera de ir de caminhão
à cidade para apanhar caixas de ferramentas,
tinha contrabandeado o menino para dentro do campo. Os ucranianos quase haviam descoberto o garoto no portão, quando ele estava ainda do lado de fora, vivendo em
contravenção com todos os estatutos raciais do Governo-Geral do Reich. Os pés dele tinham furado a caixa metida entre os tornozelos de Pfefferberg. "Sr. Pfefferberg,
Sr. Pfefferberg!", ouvira Poldek, enquanto os ucranianos revistavam o fundo do caminhão. "Meus pés estão de fora!"
Henry podia rir agora do incidente, embora com cautela, pois ainda havia muitos obstáculos a serem vencidos. Mas Schindler reagiu dramaticamente, com um gesto que
parecia inspirado na melancolia levemente alcoólica que se apossara dele nessa noite do seu aniversário. Agarrou pelo espaldar sua cadeira e suspendeu-a até o retrato
do Führer. Por um instante, pareceu que ia arremessá-la contra o retrato. Mas tornou a girar sobre os calcanhares, baixou resolutamente a cadeira até as quatro pernas
estarem a igual distância do chão, e atirou-a com força sobre o tapete, fazendo estremecer a parede. Depois disse:
Eles estão queimando corpos lá fora, não é mesmo? Henry fez uma careta, como se o mau cheiro empestasse na sala.
Sim, já começaram - admitiu.Agora que Plaszóvia era - na linguagem dos burocratas - um campo de concentração, seus prisioneiros constataram ser menos perigoso deparar
com Amon. Os chefes de Oranienburg não permitiam mais as execuções sumárias. Os tempos em que era fuzilado quem não descascasse
batatas com bastante rapidez pertenciam ao passado. Agora só podiam ser liquidados através de um processo legal. Tinha de haver um interrogatório e um relatório
remetido em três cópias para Oranienburg.
A sentença precisava ser confirmada não apenas pelo escritório do General Glück mas também pelo Departamento W (Empreendimentos Econômicos) do General Pohl. Se um
comandante matasse algum dos trabalhadores essenciais, o Departamento W podia ver-se a braços com reivindicações de compensação. Allach-Munich, Ltd., por exemplo,
fabricantes de porcelana, que usavam trabalho escravo de Dachau, tinham recentemente exigido uma indenização de 31.800 RM porque "em resultado da epidemia de febre
tifóide que surgiu em 1943, deixamos de ter à nossa disposição mão-de-obra de prisioneiros desde 26 de janeiro de 1943 até 3 de março de 1943. Em nossa opinião temos
direito à compensação, de acordo com a Cláusula 2 do Fundo de Compensação Comercial..."
O Departamento W ficava ainda mais obrigado a compensações, se a perda de mão-de-obra especializada era causada pelo zelo de algum oficial da SS rápido no gatilho.
Assim, para evitar a burocracia e as complicações departamentais, Amon passou a conter-se um pouco. As pessoas que apareciam na sua proximidade, na primavera e começo
do verão de 1944, de certa forma se sentiam mais seguras, embora nada soubessem sobre o Departamento W e os Generais Pohl e Glücks. Para elas era um indulto tão
misterioso quanto a própria demência de Amon. Contudo, como Oskar tinha mencionado a Henry Rosner, eles agora
queimavam os corpos em Plaszóvia. Preparando-se para a ofensiva russa, a SS estava abolindo suas instituições no Leste. Treblinka, Sobibor e Belzec haviam sido
evacuados no outono anterior. A Waffen SS, que os administrava, recebera ordem de dinamitar as câmaras de gás e crematórios, não deixar vestígio algum reconhecível,
e fora transferida para a Itália, a fim de combater os guerrilheiros. O imenso complexo
de Auschwitz, em terreno seguro no norte da Silésia, completaria a grande
tarefa no Leste e, uma vez esta concluída, o crematório seria soterrado. Pois, sem a evidência do crematório, os mortos não podiam prestar testemunho, eram um sussurro
ao vento, uma poeira inconsistente nas folhas dos alamos.
Plaszóvia não era de solução tão simples, porque os seus mortos jaziam por toda parte em seu redor. No furor da primavera de 1942, cadáveres - sobretudo os das pessoas
assassinadas nos últimos dois dias do gueto - eram jogados a esmo em valas comuns nos bosques. Agora, o Departamento D encarregou Amon de descobrir todas aquelas
valas.Os cálculos quanto à quantidade de corpos variam muito. Publicações polonesas, baseadas no trabalho da Comissão Central para Investigação de Crimes Nazistas
na Polônia e em outras fontes de informação, afirmam que 150 mil prisioneiros, muitos deles em trânsito para outros locais, passaram por Plaszóvia e seus cinco subcampos.
Desses, os poloneses acreditam que 80 mil morreram ali, muitos em execuções em massa dentro de Chujowa Górka ou vítimas de epidemias.
Essa estimativa desconcerta os sobreviventes de Plaszóvia que se lembram do horrendo trabalho de queimar os mortos. Afirmam que só o número de corpos, por eles exumados,
atinge mais ou menos entre oito mil e dez mil - proporção apavorante, e que eles não têm a menor vontade de exagerar. A diferença entre as duas estimativas fica
mais chocante, quando lembramos que execuções de poloneses, ciganos e judeus continuariam em Chujowa Górka e em outros pontos nas circunvizinhanças de Plaszóvia,
durante quase todos aqueles anos, e que os próprios SS adotaram a prática de queimar corpos imediatamente após as execuções em massa no morro do forte austríaco.
Além disso, Amon não iria conseguir realizar a sua intenção de remover dos bosques todos os corpos. Alguns milhares mais seriam encontrados em exumações no pós-guerra
e hoje, quando os subúrbios de Cracóvia se aproximam cada vez mais de Plaszóvia, ainda são encontrados ossos nas escavações para fundações.Oskar viu a enfiada de
piras na elevação do terreno acima das oficinas, durante uma visita pouco antes de seu aniversário. Quando voltou,
uma semana depois, a atividade havia aumentado. Os corpos eram desenterrados por prisioneiros que trabalhavam de rosto tapado. Em cobertores, padiolas e macas eram
levados para o local da incineração e depositados sobre toras de madeira. A pira era arrumada camada por camada, e quando alcançava a altura do ombro de um homem,
encharcada com combustível e acesa. Pfefferberg se horrorizara, vendo a vida temporária com que as chamas animavam os mortos, a maneira como os corpos se sentavam,
atirando para longe as toras ardentes, os membros estirando-se, as bocas se escancarando como para um derradeiro grito. Um jovem SS da estação de despiolhamento
corria entre as piras, sacudindo a pistola e esbravejando ordens frenéticas. A fuligem dos mortos recaía nos cabelos dos vivos e sobre as roupas postas a secar nos
varais do quintal dos oficiais subalternos. Oskar ficou pasmo ao ver a indiferença com que o pessoal do campo aceitava a fumaça, como se a fuligem no ar proviesse
de alguma honesta e inevitável
precipitação industrial. E no ar enfumaçado, Amon saía a cavalo com Majola, ambos muito calmos em suas montarias. Leo John levava o filho de doze anos para apanhar
sapos no terreno pantanoso da mata. As chamas e a fedentina não lhes perturbavam a vida
quotidiana.
Curvando-se para trás ao volante de seu BMW, com as vidraças fechadas e um lenço tapando-lhe a boca e o nariz, Oskar pensou que eles deviam estar queimando os Spiras
junto com os outros. Espantara-se, ao saber que a SS tinha executado todos os policiais judeus do gueto e suas famílias no último Natal, mal Symche Spira terminara
de dirigir o desmantelamento do gueto. Todos eles, com suas mulheres e filhos, haviam sido levados para ali numa tarde cinzenta e executados, quando o frio sol de
inverno desapareceu. Acabaram fuzilando os mais fiéis (Spira e Zellinger) bem como os mais relutantes. Spira e a tímida Sra. Spira e os obtusos filhos do casal,
a quem Pfefferberg tão pacientemente dera aulas - tinham sido todos colocados nus dentro de um círculo de fuzis, encostados uns contra os outros, tremendo de frio.
O uniforme OD napoleônico de Spira era agora apenas um monte de pano para reciclagem, atirado à entrada do forte. E até o último instante, Spira continuara afirmando
a todos que aquilo não ia acontecer. A execução tinha chocado Oskar como prova de que, para os judeus,
não havia obediência ou subserviência que pudesse garantir-lhe a sobrevivência. E agora os Spira estavam sendo queimados tão anônima e ingratamente como haviam
sido executados. Até mesmo os Gutter! O evento se dera após um jantar em casa de Amon, no ano anterior. Oskar retirara-se cedo para casa, porém mais tarde soubera
do que acontecera depois da sua saída. John e Neuschel tinham começado a implicar com Bosch. Acusavam-no de ser supersensível. Bosch gostava muito de se gabar de
ser um veterano das trincheiras. Mas nunca o tinham visto efetuar uma execução. Durante horas bateram na mesma tecla - a brincadeira da noite. Afinal, Bosch dera
ordem para acordarem David Gutter e seu filho na caserna, e a Sra. Gutter e a filha na caserna das mulheres. Nesse caso também se tratava de servos fiéis. David
Gutter tinha sido o último presidente do Judenrat e cooperado em tudo - nunca fora à Rua Pomorska, tentando protestar contra os desmandos das Aktionen SS ou contra
o número dos transportes com destino a Belzek. Gutter tinha assinado todas as ordens e considerado razoáveis todas as exigências. Além disso, Bosch utilizara-o como
agente dentro e fora de Plaszóvia, mandando-o a Cracóvia com caminhões de móveis estofados na oficina do campo, ou jóias, para vender no mercado negro. E Gutter
a tudo acedera porque era realmente um canalha mas principalmente porque acreditava que assim sua mulher e seus filhos ficariam imunes.
Às duas horas daquela manhã polar, Zauder, um policial judeu, amigo de Pfefferberg e de Stern - que seria mais tarde fuzilado por Pilarzik, num dos desmandos alcoólicos
daquele oficial -, achava-se de plantão naquela noite no portão das mulheres e ouviu Bosch ordenando
aos Gutter que se colocassem em posição, numa depressão do terreno próximo do local. Os filhos imploravam mas David e a Sra. Gutter mantinham-se calmos, sabendo
que de nada adiantaria argumentar.
E agora Oskar via todos aqueles testemunhos - os Gutter, os Spira, os rebeldes, os sacerdotes, as crianças e as garotas bonitas com documentação ariana falsificada
-, todos aqueles testemunhos sendo amontoados naquele morro horrendo para serem obliterados no caso de os russos chegarem a Plaszóvia e não aprovarem o que se fizera
no campo. Deve haver cuidado, dizia Oranienburg numa carta a Amon, quanto à futura disposição de todos os corpos, e para essa finalidade estava enviando um representante
de uma firma de engenharia de Hamburgo para supervisionar a construção dos crematórios. Entrementes, os mortos, enquanto esperavam para ser desenterrados, deviam
ter suas valas cuidadosamente assinaladas.Quando, naquela segunda visita, Oskar viu a extensão das fogueiras no Chujowa Górka, o seu primeiro impulso foi permanecer
no carro, aquele mecanismo alemão equilibrado, e voltar para casa. Ao invés, foi procurar seus amigos na oficina e depois visitou o escritório de Stern. Pensava
que, com toda aquela fuligem se acumulando nas janelas, não seria de admirar se os internos de Plaszóvia cogitassem de suicídio. Contudo,
era ele quem parecia mais deprimido. Não fez nenhuma das suas ironias habituais, tais como: "Então, Herr Stern, se Deus fez o homem à Sua imagem, qual a raça que
mais se assemelha a Ele? Acha que um polonês se parece mais com Ele do que um tcheco?" Hoje nenhuma brincadeira lhe ocorreu. Apenas perguntou:
- O que estão todos pensando?
Stern respondeu que prisioneiros eram prisioneiros. Faziam o seu trabalho e esperavam sobreviver.
Vou tirá-los daqui - resmungou Oskar de repente. Bateu na mesa com o punho cerrado. - Vou tirar vocês todos daqui!
Todos? - não pôde Stern deixar de perguntar. Tais maciços salvamentos bíblicos não se encaixavam na época.
Você, pelo menos - disse Oskar. - Você.
Capítulo 28
o gabinete de Amon, no Prédio da Administração, havia dois datilógrafos. Um deles era uma moça alemã, Frau Kochmann; o outro, Mietek Pemper, um prisioneiro jovem
e estudioso. Pemper um dia passaria a ser secretário de Oskar mas, no verão de 1944, ele trabalhava para Amon e, como qualquer outro em tal situação, não era muito
otimista quanto às suas chances de sobrevivência. O seu primeiro contato mais prolongado com Amon foi tão acidental quanto o fora o de Helen Hirsch, a criada. Pemper
foi chamado ao gabinete de Amon, depois de alguém tê-lo recomendado ao comandante.
O jovem prisioneiro era estudante de contabilidade, ótimo datilografo e taquígrafo e capaz de tomar ditado em polonês e alemão. A sua prodigiosa memória era famosa.
Assim, por ser um prisioneiro de tanta capacidade, Pemper foi parar no escritório de Amon, e, às vezes, ia tomar ditados em casa do comandante. Por ironia, no final,
a memória fotográfica de Pemper mais do que a de qualquer outro prisioneiro, iria causar o enforcamento de Amon em Cracóvia. Mas Pemper não sonhava que jamais chegasse
esse dia. Em 1944, se tentasse adivinhar quem seria a vítima mais provável de sua memória quase perfeita, ele diria que era o próprio Mietek Pemper. Pemper exercia
a função de secretário auxiliar. Para assuntos confidenciais,
Amon devia usar Frau Kochmann, mais lenta como taquígrafa e muito menos competente do que Mietek. Às vezes, Amon quebrava esse regulamento e deixava que o jovem
Pemper tomasse um ditado confidencial. E Mietek, mesmo quando se achava sentado diante da mesa de Amon com o bloco nos joelhos, não podia impedir que suposições
contraditórias o distraíssem de seu trabalho. A primeira eraque todos aqueles relatórios e memorandos internos, cujos detalhes estava
memorizando, fariam dele uma testemunha vital no dia ainda remoto em que Amon se visse perante um tribunal. A outra suposição era que Amon, no final, teria de apagá-lo
como quem apaga uma fita confidencial de gravação.
Contudo, todas as manhãs Mietek não somente organizava seus papéis de datilografia, carbonos e cópias, mas também uma dúzia deles para a secretária alemã. Depois
de ter ela datilografado tudo, Pem-per fingia destruir os carbonos mas, na realidade, guardava-os e lia-os mais tarde. Não tinha nenhuma documentação por escrito
mas a sua reputação de boa memória vinha desde os tempos de colegial. Mietek sabia que, se algum dia houvesse aquele tribunal, se ele e Amon se sentassem no recinto
da corte de justiça, ia deixar o comandante pasmado com a precisão de datas de suas provas.Pemper teve a oportunidade de ver alguns documentos confidenciais espantosos,
como, por exemplo, memorandos sobre a aplicação do chicote nas mulheres. A ordem era recomendar aos comandantes dos campos que o castigo surtisse o maior efeito
possível. Seria considerado aviltante envolver no processo membros da SS; portanto, mulheres tchecas deviam ser açoitadas por mulheres eslovacas e eslovacas por
tchecas. Com referência às russas e polonesas, devia ser aplicada a mesma tática. Recomendava-se aos comandantes usar a imaginação para explorar diferenças nacionais
e culturais.
Outro boletim lembrava-lhes que eles não tinham pessoalmente o direito de impor uma sentença de morte. Os comandantes podiam solicitar autorização por telegrama
ou carta do Escritório Central de Segurança do Reich. Amon fizera isso na primavera com dois judeus que tinham fugido do subcampo em Wieliczka e que ele pretendia
enforcar.
Um telegrama de permissão chegara de Berlim, assinado, como Pemper notou, pelo Dr. Ernst Kaltenbrunner, Chefe do Escritório Central de Segurança do Reich. Agora,
em abril, Pemper leu um memorando de Gerhard Maurer, Chefe da Distribuição de Mão-de-obra da Seção D do General Glück. Maurer queria que Amon lhe informasse quantos
húngaros poderiam
ser temporariamente mantidos em Plaszóvia. O seu destino final era a Fábrica de Armamentos Germânica, DAW, que era uma subsidiária da Krupp, fabricando fusos de
granada de artilharia no enorme complexo de Auschwitz. Devido ao fato de a Hungria só recentemente ter sido anexada como Protetorado da Alemanha, esses judeus e
dissidentes húngaros estavam em melhores condições de saúde do que os que tinham anos de vida em guetos e prisões. Eram portanto uma bênção para as fábricas de Auschwitz.
Infelizmente, as acomodações na DAW ainda não estavam prontas mas, se o comandante de Plaszóvia pudesse aceitar uns sete mil, à espera de uma solução, a Seção D
lhe seria extremamente grata.
A resposta de Goeth, quer lida ou datilografada por Pemper, era que Plaszóvia atingira o máximo de sua capacidade de prisioneiros e não havia espaço para construções
dentro das cercas eletrificadas. Não obstante, Amon estava disposto a aceitar até dez mil prisioneiros em trânsito, se (a) lhe fosse permitido liquidar os elementos
improdutivos dentro do campo; e (b) se ele pudesse colocar ao mesmo tempo dois prisioneiros em cada beliche. Em resposta, Maurer escreveu que a dupla utilização
de beliches não podia ser permitida no verão por representar o risco de uma epidemia de tifo; além disso, idealmente, de acordo com os regulamentos, deveria haver
um mínimo de três metros cúbicos de ar por pessoa. Mas estava disposto a autorizar Goeth a realizar
a primeira opção. A Seção D informaria Auschwitz-Birkenau - ou, pelo menos, a ala de extermínio daquele grande empreendimento - que esperasse o envio de um refugo
de prisioneiros de Plaszóvia. Simultaneamente, seria providenciado o transporte Ostbahn em vagões de gado, naturalmente, partindo do portão de Plaszóvia. Desse modo,
Amon teria condições de separar os prisioneiros dentro do próprio campo.
Com a bênção de Maurer e da Seção D, ele iria num só dia abolir tantas vidas quantas Oskar, à custa de astúcias e de dinheiro a rodo, estava abrigando na Emalia.
Amon batizou a sua sessão de seleção Die Gesundheitaktion, a Operação Saúde.
Organizou tudo, como se se tratasse de uma feira rural. Quando começou, no domingo, 7 de maio, a Appellplatz amanheceu com faixas:
A CADA PRISIONEIRO, O TRABALHO APROPRIADO! Alto-falantes tocavam baladas de Strauss e canções de amor. Sob as faixas fora colocada uma mesa, em torno da qual estavam
sentados Dr. Blancke, o médico da SS, Dr. Leon Gross e vários funcionários. O conceito de "saúde" de Blancke era tão excêntrico como o de qualquer médico da SS.
Já tinha livrado a clínica da prisão dos doentes crônicos, injetando-lhes benzina nas veias. Essas injeções não podiam, por definição alguma, ser consideradas eutanásias.
O paciente era tomado de convulsões que terminavam, após um quarto de hora, em morte por sufocação. Marek Biberstein, outrora presidente do Judenrat e agora, após
dois anos de prisão na Montelupich, fazendo parte da população de Plaszóvia, sofrerá um ataque do coração e fora levado para a Krankensíube. Antes de Blancke ter
tempo de aplicar-lhe a benzina, Dr. Idek Schindel, tio de Genia, a moça cuja figura distante tanto estimulara Schindler dois anos antes, tinha-se adiantado para
o leito de Biberstein com alguns colegas, e um deles injetara no paciente uma dose mais caridosa de cianureto.
Naquele dia, flanqueado pelos arquivos de toda a população do campo, Blancke ia chamando os prisioneiros de cada caserna e, quando terminava com uma bateria de fichas,
esta era substituída por outra.
Ao chegarem à Appellplatz, os prisioneiros recebiam ordem de despir-se, formar filas e correr nus de um lado para o outro diante dos médicos. Blancke e Leon Gross,
o médico judeu colaborador, faziam anotações nas fichas, apontavam para um prisioneiro, chamavam ou tro para verificar-lhe o nome. Os prisioneiros continuavam correndo
e os médicos procuravam neles sinais de doença ou fraqueza muscular.
Era um estranho e humilhante exercício. Homens com as costas deformadas (Pfefferberg, por exemplo, cujas costas Hujar desconjuntara com um golpe do cabo do chicote);
mulheres com diarréia crônica, que haviam esfregado repolho-roxo nas faces para lhes dar um colorido - todos correndo e tentando, literalmente, salvar suas vidas.
A jovem Sra. Kinstlinger, que correra pela Polônia nas Olimpíadas de Berlim, sabia que tudo aquilo não passara de um jogo. Esta era a verdadeira competição. De estômago
revirado, com a respiração em suspenso, ela estava correndo - sob o compasso da música enganosa - para escapar da morte.
Ninguém soube dos resultados até o domingo seguinte, quando, sob as mesmas faixas e músicas, a turba de prisioneiros foi de novo reunida. Quando foram lidos os nomes,
e os rejeitados do Gesundheitaktion levados, marchando, para a extremidade leste da praça, houve gritos de indignação e susto. Amon tinha esperado um tumulto e
pedido o auxílio da guarnição da Wehrmachl em Cracóvia, que ficara de prontidão para o caso de os prisioneiros se amotinarem. Quase 300 crianças haviam sido encontradas,
durante a inspeção do domingo anterior, e estavam agora sendo levadas à força; eram tão altos os protestos e o choro dos pais, que a maioria da guarnição, juntamente
com destacamentos da Polícia de Segurança convocados de Cracóvia, tiveram de reforçar o cordão de isolamento, que separava os dois grupos. O confronto durou horas,
enquanto os guardas forçavam para trás o ímpeto dos pais desesperados e afirmavam as mentiras habituais aos que tinham parentes entre os rejeitados. Nada fora anunciado
mas todos
sabiam que não havia futuro para aqueles do outro lado, os que tinham fracassado no teste. Entremeada de valsas e canções cômicas, uma triste babel de mensagens
passava aos gritos de um grupo para o outro. Henry Rosner sofrendo tormentos a idéia de seu filho, Olek - escondido em alguma parte do campo - teve a estranha experiência
de ver um jovem SS que, com lágrimas nos olhos, denunciava o que estava acontecendo e jurava que ia se apresentar como voluntário na Frente Leste. Mas os oficiais
gritaram que, a não ser que os prisioneiros se portassem com um pouco mais de disciplina, eles ordenariam aos seus homens que abrissem fogo. Talvez Amon tivesse
esperança de que uma justificável rajada de balas iria diminuir ainda mais o número de prisioneiros.No final da seleção, 1.400 adultos e 268 crianças se viram, cercados
por armas, na extremidade leste da Appellplatz, prontos para serem imediatamente embarcados para Auschwitz. Pemper assistia à cena e memorizava os números, que Amon
considerava decepcionantes.
Embora não fosse a quantidade que Amon esperara, iria criar um espaço imediato para a permanência temporária dos húngaros.
No sistema de fichas do Dr. Blancke, as crianças de Plaszóvia não haviam sido registradas com a mesma precisão que os adultos. Muitas delas passaram aqueles dois
domingos escondidas; tanto elas como seus pais, instintivamente sabendo que suas idades e a ausência de seus nomes
e outros detalhes da documentação do campo faria delas evidentes alvos do processo de seleção.
No segundo domingo, Olek Rosner escondeu-se no teto de uma cabana. Com ele mais duas crianças passaram o dia inteiro escondidas acima dos caibros, o dia inteiro
mantiveram a disciplina do silêncio, o dia inteiro contiveram suas bexigas, entre os piolhos, ratos e os
pequenos embrulhos de pertences dos prisioneiros. Porque as crianças sabiam tão bem como qualquer adulto que a SS e os ucranianos temiam os espaços acima do teto.
Acreditavam que ali se abrigava o micróbio do tifo e tinham sido informados pelo Dr. Blancke que bastava um fragmento de excremento de piolho em alguma arranhadura
da pele para provocar um tifo epidêmico. Algumas das crianças de Plaszóvia estavam, havia meses, abrigadas numa cabana próxima da prisão dos homens, na qual fora
pregada a tabuleta ACHTUNG TYPHUS.
Naquele domingo, para Olek Rosner, a Aktion de saúde de Amon era muito mais perigosa do que os piolhos transmissores de tifo. Outras crianças, algumas das 268 arrebanhadas
naquele dia, ao se iniciar a Aktion, de fato tinham procurado em vão esconder-se. Cada criança de Plaszóvia, com aquela mesma capacidade de encontrar soluções, escolhera
um esconderijo de sua preferência. Algumas preferiram depressões sob as cabanas, algumas a lavanderia, outras um galpão atrás da garagem. Mas muitos desses esconderijos
tinham sido descobertos nesse domingo ou no anterior, e não mais ofereciam refúgio. Outro grupo fora trazido, sem nada suspeitar, à Appellplatz. Alguns pais conheciam
esse ou aquele NCO. Era como certa vez Himmler se queixara, pois mesmo os Oberscharführers SS, que não hesitavam em executar pessoas, tinham os seus favoritos, como
se a praça fosse um recreio de escola. Se houvesse um problema com as crianças, pensavam
certos pais, sempre poderiam apelar para um SS que conhecessem melhor.
No domingo anterior, um órfão de treze anos pensou que estava a salvo porque, em outras chamadas, o tinham tomado por um rapaz. Mas nu, não pôde esconder a infantilidade
de seu corpo. Mandaram que ele se vestisse e fosse se reunir ao grupo de crianças. Agora, enquanto
os pais do outro lado da praça gritavam chamando seus filhos e enquanto os alto-falantes berravam uma canção sentimental, intitulada Mammi, kaufmir ein Pferdchen
(Mamãe, compre-me um pônei), o menino simplesmente passou de um grupo para o outro, impelido pelo instinto infalível que anteriormente demonstrara a garotínha de
roupa vermelha na Praça Zgody. E como acontecera com o Chapeuzinho
Vermelho, ninguém percebera a sua manobra. Ele se manteve, um falso adulto, entre os outros, enquanto a música odiosa ressoava e seu coração batia com tanta força
que parecia querer escapar de sua gaiola de costelas. Depois, fingindo sentir as câimbras da diarréia, pediu a um guarda que o deixasse ir à latrina.As longas instalações
das latrinas ficavam atrás do campo dos homens, e ali chegando o menino passou por cima da tábua em que os homens se sentavam para defecar. Com um braço de cada
lado da fossa, ele foi descendo e procurando encontrar apoio para os joelhos e os pés. O mau cheiro deixava-o engasgado e moscas invadiam-lhe a boca, ouvidos e narinas.
Ao chegar a um espaço mais amplo e tocar no fundo da fossa, pareceu-lhe ouvir o que supôs ser um murmúrio alucinatório de vozes acima do fervilhar das moscas. "Eles
estavam atrás de você?", perguntou uma voz. E outra respondeu: "Que diabo, este lugar é nosso!"
Havia dez crianças ali, ao seu redor. No seu relatório, Amon fez uso da palavra Sonderbehadlung - Tratamento Especial. Era um termo que se tornaria famoso em anos
vindouros, mas essa era a primeira vez que Pemper o ouvia. Evidentemente, tinha um quê de sedativo, até mesmo de medicinal, mas Mietek agora não podia mais ignorar
que aquele "tratamento" nada tinha a ver com medicina. Um telegrama de Amon, ditado nessa manhã para ser transmitido a
Auschwitz, era bem mais explícito quanto a seu significado. Amon insistia em que, para tornar mais difícil uma fuga, os selecionados para Tratamento Especial deviam
abandonar, junto ao desvio da estrada, quaisquer sobras de trajes civis que ainda possuíssem e vestir as roupas listradas de prisioneiros, que lhes seriam fornecidas.
Como haviagrande escassez de roupas listradas, as usadas por candidatos de Plaszóvia ao Tratamento Especial deviam ser imediatamente devolvidas a esse Campo de Concentração,
para serem reusadas, mal os portadores das mesmas chegassem a Auschwitz.
E todas as crianças que tinham ficado para trás em Plaszóvia, das quais o maior número era das que tinham partilhado a fossa da latrina com o órfão graúdo, mantiveram-se
escondidas ou se fizeram passar por adultos. Mas novas buscas as descobriram e levaram ao Ostbahn para a lenta viagem de um dia, percorrendo os 60 quilômetros até
Auschwitz. Os vagões de gado foram usados dessa maneira, em todo o verão, levando tropas e suprimentos para as linhas de frente paralisadas perto de Lwów e, na viagem
de volta, desperdiçando tempo em desvios, enquanto médicos da SS observavam as incessantes filas de gente nua correndo diante dos seus olhos.
Capítulo 29
Sentado no gabinete de Amon, com as janelas escancaradas para um irrespirável dia de verão, Oskar desde o início teve a impressão de que aquela reunião era uma tapeação.
Talvez Madritsch e Bosch achassem o mesmo, pois os seus olhares se desviavam de Amon para as carretas de pedra lá fora, para caminhões ou carroças que por lá passavam.
Somente o Uniersturmführer Leo John, que tomava anotações,achava seu dever permanecer muito ereto na cadeira e com todos os
botões do paletó abotoados. Amon anunciara-a como uma conferência de segurança. Declarou que, apesar de a Frente ter-se estabilizado, o avanço do corpo central do
Exército russo para os subúrbios de Varsóvia tinha encorajado a atividade dos guerrilheiros por todos os setores do Governo-Geral. Judeus, que estavam a par disso,
sentiam-se encorajados a tentar fugas.
Não sabiam, observou Amon, que estavam em melhor situação por detrás das cercas de arame farpado do que expostos a guerrilheiros poloneses, matadores de judeus.
Todos deviam estar atentos a um ataque dos guerrilheiros e, pior do que tudo, a uma possível conivência entre guerrilheiros e prisioneiros. Oskar procurou imaginar
os guerrilheiros invadindo Plaszóvia, libertandotodos os poloneses e judeus, repentinamente fazendo deles um exército. Era um sonho, sem dúvida, e quem poderia acreditar
em tal sonho? Mas ali estava Amon, esforçando-se por convencê-los de que ele acreditava nessa possibilidade. Aquela pequena comédia certamente
tinha uma finalidade. Oskar estava disso convencido.
Se os guerrilheiros entrarem aqui no seu campo, espero que não seja numa noite em que eu tenha sido convidado - disse Bosch.
Amen, amen - murmurou Schindler.
Depois da reunião, qualquer que fosse o seu significado, Oskar levou Amon até o seu carro estacionado defronte do Prédio da Administração.
Abriu a mala. Dentro havia uma sela ricamente pirogravada, com desenhos característicos da região de Zakopane nas montanhas ao sul da Cracóvia. Oskar julgava necessário
continuar agradando Amon com presentes, mesmo agora que o pagamento pelo trabalho forçado da Emalia nada mais tinha a ver com o Hauptsturmführer Goeth. O extrato
das contas ia diretamente para a área de Cracóvia, que representava o q
uartel-general do General Pohl, em Oranienburg. Oskar ofereceu levar de carro Amon e sua sela até a casa do comandante. Num dia de calor escaldante, alguns dos
empurradores de carretas estavam mostrando um pouco menos do esforço exigido. Mas a sela tinha abrandado o zelo de Amon e, de qualquer forma, não lhe era mais permitido
atirar a esmo nos prisioneiros. O carro passou pelo quartel da guarnição e chegou ao desvio, onde se achavam estacionados
muitos vagões de gado. Oskar pôde ver, pela bruma pairando acima dos vagões e misturando-se ao vapor tremulante emanando dos tetos, que os vagões estavam repletos.
Apesar do ruído da locomotiva, podiam-se ouvir gemidos vindos lá de dentro, gente implorando por água.
Oskar freou o carro e ficou ouvindo. Era-lhe permitido isso, considerando-se a esplêndida e dispendiosa sela na mala do carro. Amon riu com indulgência de seu amigo
sentimental.
- Em parte é gente de Plaszóvia - disse ele - e também há prisioneiros do campo de trabalho em Szebnie. E poloneses e judeus de Montelupich. Estão indo para
Mauthausen. - Depois sorriu maliciosamente. - Eles se queixam agora? Não sabem o que são motivos
de queixa de verdade...Os tetos dos vagões estavam bronzeados de calor.
- Não faz objeção - perguntou Oskar - se eu chamar a suabrigada de bombeiros? Amon deu uma risada, que significava: O-que-vai-você-inventar-mais? Bem entendido,
não deixaria ninguém mais chamar os bombeiros, mas tolerava isso de Oskar porque o seu amigo era um sujeito muito original e o incidente daria uma boa anedota para
ser contada a uma mesa de jantar. Mas quando Oskar deu ordem aos ucranianos que tocassem o sino chamando os bombeiros judeus, Amon se espantou. Não ignorava
que Oskar sabia o que significava Mauthausen. Se esguichassem água nos vagões, era como fazer-lhes uma promessa de um futuro. E tais promessas não constituíam, segundo
o código de qualquer mortal, uma verdadeira crueldade? Ao espanto de Amon, misturou-se uma tolerância sorridente, quando os jatos de água das mangueiras caíram sibilando
sobre os tetos escaldantes. Neuschel também veio do seu escritório para abanar a cabeça e sorrir, enquanto os prisioneiros lá dentro gemiam e gritavam palavras de
gratidão. Grün, o guarda-costas de Amon, que estivera conversando com o Untersturmführer John, começou a bater nas coxas e soltar exclamações vendo chover toda aquela
água. Mesmo esticadas ao máximo, as mangueiras só alcançavam metade da composição de vagões. Oskar, então, pediu a Amon que lhe emprestasse um caminhão e uns poucos
ucranianos para irem até Zablocie buscar as mangueiras de incêndio da DEF. Eram mangueiras de 200 metros, disse Oskar. Amon, por alguma razão, achou o pedido hilariante.
- Claro que autorizo o caminhão! - disse Amon disposto a fazer qualquer coisa por aquela comédia humana. Oskar entregou aos ucranianos um bilhete para Bankier
e Garde. Quando os ucranianos partiram, Amon estava tão disposto a entrar no espírito da coisa que permitiu que fossem abertas as portas dos vagões para que fossem
entregues aos prisioneiros alguns baldes de água e retirados os mortos com os rostos inchados e rosados pelo calor. Ao redor da estrada de ferro, oficiais SS e NCOs
divertiam-se com a cena. "Do que pensa ele que os está salvando?" Quando as grandes mangueiras da DEF chegaram e todos os vagões foram devidamente encharcados, a
brincadeira adquiriu novas dimensões.
No seu bilhete para Bankier, Oskar também dera instruções ao gerente para ir ao seu próprio apartamento e encher um cesto grande com bebidas e cigarros, alguns
bons queijos e salsichas e outras tantas coisas. Entregou pessoalmente o cesto ao NCO no final do trem. Tudo às claras mas o homem pareceu um tanto embaraçado com
a largueza da dádiva e escondeu o cesto rapidamente no último vagão, com receio de que um dos oficiais o denunciasse. Contudo, Oskar parecia estar tão curiosamente
nas boas graças do comandante que o NCO o ouviu respeitosamente.
- Quando o trem parar perto das estações, abra as portas dosvagões - ordenou Oskar.
Anos mais tarde, dois sobreviventes daquele transporte, Dr. Ru-binstein e Dr. Feldstein, contariam a Oskar que o NCO ordenara freqüentemente que fossem abertas as
portas e se enchessem os baldes de água regularmente, durante a tediosa jornada para Mauthausen. Mas para a maioria dos passageiros dos vagões, naturalmente, aquilo
não passara de um conforto antes da morte.Quem visse Oskar movimentando-se ao longo da composição de
vagões, acompanhado pelas risadas dos SS, fazendo uma caridade que era em grande parte inútil, poderia perceber que ele estava agora menos afoito do que alucinado.
Até o próprio Amon notara que seu amigo entrara em nova fase. Todo aquele desespero para inundar até o último carro, depois subornando um SS em plena vista dos colegas
- bastaria uma pequena mudança no tom do riso de Scheidt ou John ou Hujar para provocar uma tremenda denúncia contra Oskar, uma informação que a Gestapo não poderia
ignorar. E então Oskar Schin-dler iria parar na Montelupich e, em vista de anteriores acusações raciais contra ele, provavelmente acabaria sendo mandado para Auschwitz.
Assim Amon ficou horrorizado com a insistência de Oskar em tratar aqueles condenados, como se fossem parentes pobres viajando de terceira classe mas sendo enviados
para um destino normal. Pouco depois das duas horas, uma locomotiva puxou toda a mísera fila de vagões para a linha principal da estrada de ferro, e as mangueiras
de novo foram enroladas. Schindler levou Amon e sua sela para casa. Amon podia ver que Oskar estava ainda preocupado e, pela primeira vez, desde que existia a relação
entre os dois, deu ao amigo alguns
conselhos sobre como viver.
- Você tem de relaxar - disse Amon. - Não pode sair correndo atrás de cada carregamento de presos que sai do campo. Adam Garde, engenheiro e prisioneiro da
Emalia, notou também sintomas dessa mudança em Oskar. Na noite de 20 de julho, um SS apareceu na caserna de Garde e despertou-o. O Herr Direktor telefonara ao corpo
da guarda e dissera que precisava ver profissionalmente o engenheiro Garde em seu gabinete. Garde encontrou Oskar ouvindo o rádio, com o rosto afogueado, uma garrafa
e dois copos na sua frente sobre a mesa. Por detrás da escrivaninha havia agora um mapa em relevo da Europa. O mapa nunca estivera ali nos dias da expansão germânica
mas Oskar parecia ter um vivo interesse no recuo das frentes alemãs. Nessa noite, o seu rádio estava ligado com a estação Deutschlandsender, e não - como usualmente
acontecia - com a BBC da Inglaterra. Estava sendo transmitida uma música inspirada, o que, freqüentemente, significava o prelúdio de notícias importantes.
Oskar parecia estar ouvindo com avidez. Quando Garde entrou, ele se pôs de pé e convidou o jovem engenheiro a sentar-se. Serviu o conhaque e estendeu um copo a Garde.
- Houve uma tentativa para matar Hitler - disse Oskar. A notícia fora transmitida no começo da noite, e a informação era que Hitler sobrevivera ao atentado.
A estação tinha prometido que ele logo
falaria ao povo alemão. Mas até agora isso não ocorrera. As horas se passavam, e nada de Hitler. Agora a estação estava tocando Beethoven,
com insistência, como acontecera por ocasião da queda de
Stalingrado.
Oskar e Garde continuaram ali sentados durante horas. Um even to sedicioso, um judeu e um alemão ouvindo juntos - a noite inteira, se necessário fosse - para apurar
se o Führer tinha morrido. Adam Garde, é claro, sentia também o peito ardendo de esperança. Notou que os gestos de Oskar eram lentos, como se a possibilidade de
o líder estar morto lhe tivesse afrouxado os músculos. Bebia sem cessar e insistia
com Garde para fazer o mesmo. Se fosse verdade, disse Oskar, então os alemães, os alemães triviais como ele próprio, poderiam começar
a redimir-se. Simplesmente porque alguém próximo de Hitler tivera a coragem de removê-lo da face da terra. Oskar soprava nuvens de fumaça.
- Será o fim da SS - prenunciou ele. - Até amanhã de manhã,Himmler já deverá estar na cadeia. Oh, Deus meu, o alívio de ver osistema liquidado!
O noticiário das 10 horas da noite apenas repetiu a informação anterior. Houvera um atentado contra a vida do Führer mas fracassara, e o Führer ia falar à nação
dentro de poucos minutos. Quando se passou uma hora e Hitler não falou, Oskar animou-se com uma fantasia
que seria popular em relação a muitos alemães com a aproximação do fim da guerra.
- Nosso sofrimento terminou - disse ele. - O mundo voltouà sanidade. A Alemanha poderá juntar-se aos Aliados contra os russos.As esperanças de Garde eram
mais modestas. Na pior das hipóteses, esperava que se restabelecesse um gueto nos antigos moldes de Franz Josef. Os dois continuaram bebendo, enquanto a música ressoava;
parecia
cada vez mais provável que a Europa seria nessa noite agraciada com a morte vital à recuperação do seu equilíbrio mental. Eram de novo cidadãos do Continente; não
mais o prisioneiro e o Herr Direktor. As promessas da rádio de transmitir uma mensagem do Führer se repetiam, e cada vez Oskar ria mais enfaticamente.
Chegou a meia-noite e eles passaram a não dar mais atenção as promessas da rádio. Sentiam a respiração mais leve naquela nova Cracóvia pós-Führer. Previam que na
manhã do dia seguinte todo mundo estaria dançando nas praças, sem medo de castigo. A Wehrmacht prenderia
Frank no Castelo de Wawel e sitiaria o complexo da SS na Rua Pomorska.Um pouco antes de uma hora da manhã, a palavra de Hitler foitransmitida de Rastenberg. Oskar
se convencera a tal ponto de que jamais teria de ouvir de novo aquela voz, que, por uns poucos segundos não lhe reconheceu o timbre, apesar de tão familiarizado,
e julgou que era apenas um porta-voz do Partido, contemporizando. Mas Garde também
ouviu e, logo na primeira palavra, soube de quem era a voz "Meus camaradas alemães!", começou a voz. "Se eu lhes falo hoje,
é em primeiro lugar para que possam ouvir a minha voz e saber que estou perfeitamente bem; em segundo lugar, para que fiquem sabendo de um crime sem paralelo na
história da Alemanha."
O discurso terminou quatro minutos depois, com uma referência aos conspiradores. "Desta vez, acertaremos nossas contas com eles de acordo com os métodos que nós,
nacionalsocialistas, estamos habituados a adotar."
Adam Garde nunca aderira à fantasia a que Oskar se entregara no decorrer daquela noite. Pois Hitler era mais do que um homem; era um sistema com ramificações. Mesmo
que morresse, não estava na natureza de um fenômeno como Hitler desaparecer no espaço de uma só noite.
Mas Oskar passara aquelas últimas horas acreditando, com uma convicção febril, na morte do Führer, e quando se evidenciou que tudo não passara de uma ilusão, foi
o jovem Garde quem assumiu o papel de consolador, ao passo que Oskar mergulhou numa tristeza quase melodramática.
- Foi vã a nossa esperança de libertação - disse ele servindo mais duas novas doses de conhaque e abrindo sua caixa de cigarros. - Leve para você esta garrafa de
conhaque e uns cigarros e trate de dormir. Teremos de esperar um pouco mais pela nossa liberdade.
Na confusão do conhaque, das notícias e de sua súbita inversão a altas horas da noite, Garde não estranhou que Oskar estivesse falando em "nossa liberdade", como
se a situação deles fosse equivalente, ambos prisioneiros, que tinham de esperar passivamente para serem liberados. Mas de volta ao seu beliche, Garde pensou: "É
espantoso que Herr Direktor tenha falado daquela maneira, como alguém facilmente dado a fantasias e a acessos de depressão. Em geral, ele é tão pragmático." A Rua
Pomorska e os campos nas cercanias de Cracóvia fervilhavam de rumores, naquele fim de verão, a respeito de iminentes novas providências a respeito dos prisioneiros.
Tais boatos preocuparam Oskar em Zablocie, e em Plaszóvia Amon foi informado extra-oficialmente que os campos seriam dispersados. De fato, aquela reunião sobre segurança
nada tinha a ver com salvar Plaszóvia dos guerrilheiros, mas sim com o próximo fechamento do campo. Amon chamara Madritsch, Oskar e Bosch a Plaszóvia apenas para
dar a si mesmo uma coloração protetora. Tornou-se então plausível para ele ir a Cracóvia falar com Wilhelm Koppe, o novo chefe de polícia da SS no novo Governo-Geral.
Amon sentou-se na outra extremidade da mesa de Koppe, com um falso ar de preocupação, estalando as juntas dos dedos como se estivesse tenso com a perspectiva de
uma invasão de Plaszóvia. Contou a Koppe a mesma história que contara a Oskar e aos outros - organizações de guerrilheiros tinham surgido no campo, sionistas de
dentro das cercas de arame farpado tinham conseguido estabelecer comunicação com radicais do Exército do Povo Polonês e com a Organização de Combate Judaica. Como
podia compreender o Obergruppenführer, era difícil impedir esse tipo de comunicação; mensagens podiam entrar no campo escondidas dentro de um pão. Mas ao primeiro
sinal de rebelião ativa, ele - Amon Goeth -, como comandante, teria necessidade de agir sumariamente. A pergunta que Amon queria fazer era, se ele primeiro atirasse
e depois comunicasse oficialmente a Oranienburg, o eminente
Obergruppenführer Koppe lhe daria o seu apoio? Nenhum problema, respondeu Koppe. Realmente não tinha simpatia por burocratas. Em anos passados, como chefe de polícia
da Wartheland,
tinha comandado a frota de caminhões de extermínio, que transportavam Untermenschen para zonas rurais e, então, pondo o motor em funcionamento, bombeavam o gás do
escapamento para dentro dos caminhões trancados. Essa também era uma operação clandestina, que não necessitava ser transmitida oficialmente aos burocratas.
A resposta de Koppe foi que Amon devia usar seu próprio critério; se assim agisse, ele o apoiaria.Oskar tinha percebido na reunião que Amon não estava realmente
preocupado com os guerrilheiros. Se soubesse na ocasião que Plaszóvia ia ser liquidado, ele teria compreendido o verdadeiro significado da representação de Amon.
Pois Amon estava preocupado com Wilek Chilowicz, o chefe de polícia judeu do campo. Amon usara freqüentemente Chilowicz como seu agente no mercado negro. Chilowicz
conhecia bem Cracóvia. Sabia onde vender farinha, arroz, manteiga, que o comandante retinha para si subtraídos aos suprimentos do campo. Conhecia os negociantes,
que se interessariam por produtos da oficina de jóias de fantasia, em que trabalhavam prisioneiros tais como Wulkan. Amon estava preocupado com toda a panelinha
de Chilowicz: a Sra. Marysia Chilowicz, que desfrutava de privilégios graças à sua posição como esposa de Wilek; Mietek Finkelstein, um associado; a irmã de Chilowicz,
Sra. Ferber; e o marido, Sr. Ferber. Se existia uma aristocracia em Plaszóvia, era composta pela família Chilowicz. Tinham poder sobre os prisioneiros, mas sua posição
era uma faca de dois gumes: sabiam tanto sobre Amon quanto sobre qualquer mísero maquinista na fábrica Madritsch. Se e quando Plaszóvia fechasse, eles fossem transferidos
para outro campo, Amon estava certo de que tentariam se aproveitar do que sabiam sobre suas transações, assim que se vissem numa posição desvantajosa. Ou assim que
estivessem com fome. Naturalmente, Chilowicz estava também preocupado, e Amon percebia
nele a dúvida quanto a lhe ser permitido sair de Plaszóvia. Amon decidiu usar a própria preocupação de Chilowicz como uma alvanca. Chamou ao seu gabinete Sowinski,
um auxiliar SS recrutado da Alta Tatras da Tchecoslováquia, para uma conferência. Sowinski seria encarregado de procurar Chilowicz e embromá-lo com um oferecimento
de fuga. Amon tinha certeza de que Chilowicz se apressaria em aceitar a transação.
Sowinski saiu-se bem da sua missão. Disse a Chilowicz que tinha condições de retirar do campo todo o seu clã num grande caminhão movido a lenha. Mas se usasse gasolina
em vez de lenha, era possível caberem umas seis pessoas na fornalha destinada à lenha. Chilowicz interessou-se pela proposta. Sowinski precisaria, naturalmente,
de entregar um bilhete a amigos do lado de fora do campo, que providenciariam um veículo. Sowinski levaria o clã de caminhão ao ponto do encontro. Chilowicz estava
disposto a pagar o serviço em diamantes. Mas acrescentou que, como prova de confiança mútua, Sowinski teria de fornecer-lhe uma arma.
Sowinski relatou as condições da transação ao comandante, que lhe deu uma pistola calibre 38 com o pino limado. A arma foi entregue a Chilowicz, que evidentemente
não teria a oportunidade nem a necessidade de testá-la. Isso contudo permitiu a Amon jurar tanto a Koppe quanto a Oranienburg que encontrara uma arma em poder do
prisioneiro. Foi num domingo, em meados de agosto, que Sowinski se encontrou com a família Chilowicz no galpão de material de construção e os escondeu no caminhão.
Depois desceu a Rua Jerozolimska, que ia dar no portão. Ali haveria formalidades de rotina; depois o caminhão estaria livre de seguir caminho. Na fornalha vazia,
nas pulsações dos cinco fugitivos, havia a febril, quase insuportável, esperança de deixar Amon para trás.
No portão, contudo, achavam-se Amon, Amthor e Hujar, mais o ucraniano Ivan Scharujew. Procederam a uma inspeção minuciosa. Com um meio sorriso, depois de vistoriar
a plataforma do caminhão, eles deixaram a fornalha por último. Fingiram surpresa ao descobrir
a infeliz família Chilowicz, como sardinhas em lata dentro da fornalha.
Assim que Chilowicz foi arrastado para fora, Amon "encontrou" a arma ilegal enfiada em sua bota. Os bolsos de Chilowicz estavam repletos de diamantes, subornos que
lhe haviam sido dados pelos desesperados prisioneiros do campo.
Prisioneiros, em seu dia de folga, souberam que Chilowicz achava-se no portão, sob sentença. A notícia provocou o mesmo temor, a mesma confusão de emoções que desencadeara
um ano antes, na noite em que Symche Spira e os seus OD haviam sido executados. E nenhum prisioneiro podia decifrar o significado daquele fato em relação às suas
próprias chances.
A família Chilowicz foi executada, um a um, com tiros de pistola. Muito amarelo devido a uma doença do fígado, no auge de sua obesidade, resfolegando como um tio
velho, foi Amon quem colocou o cano da arma na nuca de Chilowicz. Mais tarde, os corpos ficaram em exibição na Appellplatz, com tabuletas pregadas no peito: AQUELES
QUE VIOLAM LEIS JUSTAS PODEM ESPERAR UMA MORTE SEMELHANTE.
Naturalmente, esta não foi a moral que assimilaram os prisioneiros ante aquele espetáculo.Amon passou a tarde preparando dois longos relatórios, um para Koppe, outro
para a Seção D do General Glück, explicando como tinha salvo Plaszóvia de uma conspiração incipiente - quando um grupo de conspiradores tinha tentado fugir do campo
- executando todos os líderes. Não terminou a revisão de ambos os relatórios senão às 11 horas da noite. Frau Kochmann era muito lenta para um trabalho tão tardio;
assim, o comandante mandou acordar Mietek Pemper para ser levado à sua casa. Na sala da frente, Amon declarou tranqüilamente ao rapaz que acreditava que ele tinha
sido cúmplice na tentativa de fuga de Chilowicz. Atônito, Pemper não soube o que responder. Lançou um olhar ao redor, em busca de alguma inspiração; viu, então,
que a bainha da perna de sua calça estava descosturada. Como poderia sair do campo, com a roupa naquele estado?, perguntou.
O raciocínio de franco desespero de sua resposta satisfez Amon. Ordenou que o rapaz se sentasse e deu-lhe instruções a respeito de como os relatórios deviam ser
datilografados e as páginas numeradas. Amon bateu com os dedos espatulados nas folhas de papel.
- Quero um serviço de primeira classe - disse ele.
Pemper refletiu: "Assim são as coisas aqui - posso morrer agora por ser um fugitivo, ou mais tarde, por ter lido as justificativas de Amon."
Quando Pemper estava saindo da casa com os rascunhos na mão, Goeth seguiu-o até o pátio e gritou uma última ordem, em tom afável:
-Quando você datilografar a lista dos insurretos, quero que deixeespaço acima da minha assinatura, onde possa ser inserido mais umnome. Pemper concordou com um
gesto de cabeça, discreto como qualquer secretário profissional. Parou meio segundo, procurando uma
inspiração, alguma resposta rápida, que inverteria a ordem de Amon de um espaço extra. O espaço para o seu nome. Mietek Pemper. Naquele odioso silêncio tórrido da
noite de domingo, na Rua Jerozolimska, nada de plausível lhe ocorreu.
-Sim, Herr Commandant - respondeu Pemper.
Ao encaminhar-se para o Prédio da Administração, Pemper lembrou-se de uma carta que Amon lhe dera para datilografar no início do verão. Era dirigida ao pai, um editor
vienense, cheia de preocupação
filial por uma alergia, que estivera incomodando o velho na primavera anterior. Amon esperava que a alergia já tivesse deixado em paz o seu velho pai. A razão de
Pemper ter-se lembrado daquela carta, entre tantas outras, era que meia hora antes de ele ter sido chamado ao gabinete de Amon para taquigrafá-la, o comandante tinha
arrastado para fora uma jovem que trabalhava no arquivo e a executado. A justaposição da carta e da execução provou a Pemper que, para Amon, assassinato e alergia
eram eventos de igual valor. Se dizia a um datilografo que deixasse espaço em branco, onde pudesse ser inserido o próprio nome, a única coisa a fazer era deixar
o espaço. Pemper passou mais de uma hora datilografando, e, no final, deixou o espaço destinado ao seu nome. Não obedecer à ordem seria ainda mais prontamente fatal.
Corria um boato, entre os amigos de Stern, que Schindler tinha em mente algum plano a respeito dos prisioneiros, alguma tática para salvá-los, mas nessa noite os
boatos de Zablocie não significavam mais nada. Mietek continuou datilografando; Mietek deixou em cada um dos dois relatórios o espaço para a sua sentença de morte.
E todos os carbonos que ele tão laboriosamente gravara na mente
- todas aquelas provas ficariam perdidas, anuladas pelo fatal espaço, que ele estava deixando no final da lista de Amon. Quando ambos os relatórios tinham sido
datilografados à perfeição, ele retornou à casa do comandante. Amon manteve-o esperando junto à janela, enquanto permanecia sentado lendo os documentos. Pemper pensou
que talvez o seu próprio corpo fosse exibido depois na Appellplatz, com alguma frase declamatória: QUE ASSIM PEREÇAM TODOS OS JUDEUS BOLCHEVIQUES!
Por fim, Amon veio até a janela.
Pode ir para a sua cama - disse ele.
Herr Commandaní?
Eu disse, pode ir para a cama.
Pemper retirou-se. Caminhava agora com passos menos firmes. Depois do que ele tinha visto, Amon não podia deixar que ele continuasse vivo. Mas talvez o comandante
julgasse que não havia pressa em matá-lo. Entrementes, um dia de vida sempre era vida.
O espaço em branco acabou sendo utilizado para um prisioneiro idoso que, através de entendimentos imprudentes com homens como John e Hujar, tinha revelado que possuía
diamantes escondidos em algum lugar fora do campo. Enquanto Pemper mergulhava no sono de um condenado que teve a sua pena comutada, Amon mandou chamar o velho prisioneiro
à sua casa e ofereceu-lhe a vida em troca de revelar onde estavam escondidos os diamantes. Depois de conseguir a informação,evidentemente mandou executá-lo e acrescentou-lhe
o nome no relatório a Koppe e Oranienburg, juntamente com a sua modesta alegação de ter extinguido a centelha de uma rebelião.
Capítulo 30
As ordens, rotuladas OKH (Alto-Comando do Exército) já se achavam sobre a mesa de Oskar. Devido à situação da guerra, informava o Diretor de Armamentos que KL Plaszóvia
e, portanto, o campo da Emalia teriam de ser desativados. Os prisioneiros da Emalia seriam enviados para Plaszóvia, à espera de redistribuição. O próprio Oskar devia
encerrar a sua operação Zablocie o mais rapidamente possível, retendo no recinto apenas os técnicos necessários ao desaparelhamento da fábrica. Para mais instruções,
ele devia dirigir-se à Junta de Evacuação, OKH, Berlim.
A reação inicial de Oskar foi um acesso de fúria. Ofendia-o o tom, o senso de um funcionário distante resolvendo desobrigá-lo de quaisquer compromissos. Havia um
homem em Berlim - ignorante do pão do mercado negro que ligava Oskar aos seus prisioneiros - que considerava razoável que o dono de uma fábrica abrisse seus portões
e deixasse que seus trabalhadores fossem levados para qualquer outra parte. Mas a pior arrogância era o fato de que a carta não definia a "redistribuição".
O Governador-Geral Frank era mais honesto e tinha feito um discurso notório algum tempo antes: "Quando, finalmente, ganharmos a guerra, então, pelo que me toca,
poloneses, ucranianos e toda essa ralé podem ser transformados em picadinho de carne ou qualquer outra coisa que se queira." Frank tivera a coragem de dar um nome
preciso ao processo. Em Berlim, eles falavam em "redistribuição" e, com isso, se consideravam justificados.Amon sabia o que significava "redistribuição" e, na próxima
visita de
Oskar a Plaszóvia, disse-lhe francamente do que se tratava. Todos os homens de Plaszóvia seriam enviados a Grõss-Rosen. As mulheres iriam para Auschwitz. Grõss-Rosen
era um vasto campo de pedreiras na Baixa Silésia. A Terra & Pedra da Alemanha, grande empreendimento da SS com filiais em toda a Polônia, Alemanha e territórios
conquistados, consumia os prisioneiros de Grõss-Rosen. Os processos em Auschwitz eram, naturalmente, mais diretos e modernos. Quando a notícia da extinção da Emalia
chegou às oficinas da fábrica e se espalhou pelas casernas, alguns dos presos de Schindler julgaram que era o fim de todo o santuário. Os Perlman, cuja filha abandonara
a sua cobertura de ariana para interceder por eles, empacotaram os seus cobertores e conversaram filosoficamente com seus vizinhos de beliche. Emalia lhes dera um
ano de tranqüilidade, um ano de sopa, um ano de sanidade. Talvez fosse o bastante. Mas agora eles se consideravam condenados à morte. Era o que as suas vozes deixavam
transparecer.
O Rabino Levartov estava também resignado. Chegara a hora do seu acerto de contas com Amon. Edith Liebgold, que fora recrutada por Bankier para o turno da noite
nos primeiros dias do gueto, notou que, embora Oskar passasse horas falando solenemente com os seus supervisores judeus, não mais fazia ao seu pessoal promessas
mirabolantes.
Talvez se sentisse tão perplexo e humilhado quanto os outros, com aquelas ordens de Berlim. Assim, não parecia mais ser o profeta que Edith conhecera na noite em
que, pela primeira vez, ela viera a Emalia, mais de três anos antes.
Ainda assim, no final do verão, quando seus prisioneiros fizeram as trouxas e marcharam de volta a Plaszóvia, corria entre eles o boato de que Oskar falara em comprá-los
de volta. Dissera isso a Garde; dissera a Bankier. Quase podiam ouvi-lo falando - aquela certeza sincera, aquele
rouquenho tom paternal. Mas, ao subirem os prisioneiros a Rua Jerozolimska, passando pelo Prédio da Administração, fitando com espanto de recém-chegados as turmas
puxando carretas da pedreira, a memória das promessas de Oskar era quase como uma sobrecarga de amargura.
A família Horowitz estava de volta a Plaszóvia. O pai, Dolek, no ano anterior conseguira a transferência de todos eles para a Emalia, mas agora ali estavam de novo,
Richard, de seis anos de idade, a mãe, Regina. Niusia, com onze anos, de novo costurava pêlos em vassouras e via, das altas janelas, os caminhões subindo para o
morro do forte austríaco, e a fumaça negra das cremações erguer-se no céu. Plaszóvia continuava como era quando ela saíra de lá no ano anterior. Era-lhe impossível
acreditar que aquilo tudo teria um fim.Mas o pai de Niusia acreditava que Oskar faria uma lista de pessoas e conseguiria tirá-las dali. A lista de Oskar, na mente
de alguns deles, passara a ser mais do que uma mera tabulação. Era uma Lista. Uma esperança que talvez se concretizasse. Uma noite, na casa de Amon, Oskar falou
na idéia de levar judeus consigo para fora de Cracóvia. Era uma noite tranqüila, no final do verão. Amon parecia satisfeito de vê-lo. Em vista do estado de saúde
do comandante - tanto o Dr. Blancke como o Dr. Gross o haviam advertido que, se não moderasse a comida e a bebida, acabaria morrendo - ultimamente os visitantes
em sua casa tinham escasseado. Instalados na sala, eles bebiam, com a recente moderação de Amon. De repente, Oskar tocou no assunto. Queria levar seus trabalhadores
especializados para a sua fábrica na Tchecoslováquia. E também talvez precisasse de mais alguns prisioneiros de Plaszóvia.
Procuraria a ajuda da Junta de Evacuação para encontrar um local adequado,em alguma parte na Morávia, e recorreria à Ostbahn para fazer o transporte de Cracóvia
para sudeste. Deu a entender a Amon que ficaria grato com o apoio que dele recebesse. A palavra gratidão sempre
excitava Amon. Sim, acedeu ele, se Oskar conseguisse a cooperação de que precisava de todas as juntas em questão, Amon permitiria que fosse feita uma lista de prisioneiros.Quando
o acordo ficou acertado, Amon quis jogar cartas. Gostava de blackjack, uma versão do vingt-et-un francês. Era um jogo difícil para os oficiais subalternos fingirem
perder, sem tomar a coisa muito óbvia.
Não permitia bajulação excessiva. Era, portanto, um jogo para valer, e isso agradava a Amon. Além do mais, nessa noite Oskar não estava interessado em perder.
Pagaria muito bem a Amon por aquela lista.
O comandante começou apostando modestamente, em cédulas de 100 zlotys, como se os seus médicos lhe houvessem aconselhado moderação também no jogo. Mas passou a aumentar
as apostas, e quando chegaram a 500 zlotys, Oskar recebeu a combinação mais alta de cartas, um ás e um valete, o que significava que Amon teria de pagar-lhe o dobro
da aposta.Amon mostrou-se desconsolado por ter perdido mas não se irritou.
Mandou que Helen Hirsch lhes trouxesse café. A moça entrou, uma paródia da criada de um cavalheiro, muito engomada, vestida de preto, mas com o olho direito fechado
pela inchação. Helen era tão pequena que Amon tinha de se abaixar para espancá-la. Agora ela já conhecia Oskar, mas não levantou os olhos para ele. Havia quase um
ano que ele lhe prometera tirá-la dali. Sempre que aparecia na casa de Amon, dava um jeito de esgueirar-se pelo corredor até a cozinha para perguntar como ia ela.
Já era alguma coisa, mas não alterava a suasituação na vida. Poucas semanas antes, por exemplo, pelo fato de a sopa não estar na temperatura correta - Amon era exigente
com respeito a sopa, sujeiras de mosca no corredor, pulgas nos cães - o comandante tinha chamado Ivan e Petr e lhes ordenado que levassem Helen ao vidoeiro no jardim
e sumariamente a fuzilassem. Observara-a da janela, enquanto ela caminhava na frente da Mauser de Petr, implorando baixinho ao jovem ucraniano: "Petr, quem você
vai matar? Ê Helen, Helen que lhe dá bolos! Como vai poder atirar em Helen?" Petr, respondendo da mesma maneira, de dentes cerrados:
"Eu sei, Helen. Não queria, mas sou obrigado. Se me negar, sou eu quem ele vai matar." Ela curvara a cabeça, apoiando-a na casca manchada da árvore. Tantas vezes
já havia perguntado a Amon por que ele não a matava, ela queria morrer com simplicidade, aborrecê-lo com a sua aceitação. Mas não era possível. Estava tremendo tanto
que Amon o notou. Seus joelhos dobravam. Ouviu então Amon gritar da janela:
- Tragam de volta a cadela. Não faltará ocasião de liquidar comela. Mas, por enquanto, talvez ainda seja possível educá-la.
Em meio de seus acessos de selvageria insana, havia breves fases em que ele tentava personificar o patrão benigno. Um dia, dissera a Helen que ela era realmente
uma criada muito bem-treinada. "Se depois da guerra você precisar de uma referência, eu lhe darei todas as que quiser." Helen sabia que era só da boca para fora,
um devaneio. E voltara para Amon o seu ouvido surdo, o que tivera o tímpano perfurado por uma pancada. Sabia que cedo ou tarde iria morrer, vitimada pela fúria de
Amon. Naquela vida, o sorriso de um visitante era apenas um conforto momentâneo. Nessa noite, colocou uma enorme cafeteira de prata ao lado do Herr Commandant -
ele continuava bebendo incríveisquantidades de café, com quilos de açúcar - fez uma mesura e retirou-se. Uma hora depois, quando Amon já tinha perdido 3.700 zlotys
e queixava-se amargamente do seu azar, Oskar sugeriu uma variação nas apostas. Ia precisar de uma criada em Morávia, disse, quando se mudasse para a Tchecoslováquia.
Lá, ser-lhe-ia difícil conseguir uma tão inteligente e bem-treinada como Helen Hirsch. Todas elas eram camponesas.
Assim, propôs que jogassem uma rodada, apostando o dobro ou nada.
Se Amon ganhasse, Oskar lhe pagaria 7.400 zlotys. Porém se perdesse, a sua dívida subiria a 14.800 zlotys.
-Mas se eu ganhar - disse Oskar - você terá de ceder HelenHirsch para a minha lista.Amon queria pensar melhor na proposta. Mas Oskar ponderou
que, de qualquer jeito, ele teria de abrir mão da criada, pois ela ia ser mandada para Auschwitz. Amon estava tão habituado com Helen que lhe era difícil perdê-la.
Quando pensava em um fim para ela, provavelmente sempre fora liquidá-la ele mesmo, num ímpeto passional. Se a perdesse nas cartas, estaria obrigado, com o espírito
esportivo de um autêntico vienense, a desistir do prazer pessoal daquele assassinato. Em outra ocasião, Schindler tinha pedido que Helen fosse destacada para trabalhar
na Emalia. Mas Amon recusara. Havia apenas um ano que parecera a todos que Plaszóvia iria durar algumas décadas, e que o comandante e sua criada envelheceriam juntos,
ou pelo menos até que algum erro cometido por Helen encerrasse abruptamente o vínculo
entre eles. Um ano antes, ninguém teria acreditado que aquele relacionamento terminaria porque os russos tinham chegado às portas de Lwów. Quanto a Oskar, a sua
proposta fora feita em tom displicente. Não parecia haver, em sua oferta a Amon, nenhum paralelo com Deus e Satã, apostando nas cartas almas humanas. Não perguntou
a si mesmo que direito tinha de incluir a jovem numa aposta. Se perdesse, a sua chance de tirá-la dali de algum outro modo seria bem precária. Mas naquele ano todas
as chances eram precárias. Até mesmo as de Oskar.
Oskar levantou-se e procurou na sala uma folha de papel com cabeçalho oficial, na qual escreveu para Amon assinar, caso este perdesse a aposta: "Autorizo que o nome
da prisioneira Helen Hirsch seja incluído em qualquer lista de mão-de-obra especializada, a ser utilizada por Herr Oskar Schindler em sua fábrica DEF." Amon deu
as cartas e Oskar recebeu um 8 e um 5; Oskar pediu mais cartas e recebeu um 5 e um ás. Devia ser o suficiente. Depois, Amon deu as cartas para si mesmo. Primeiro
foi um 5, depois um rei.
- Meu Deus do céu! - exclamou Amon, que praguejava com muita distinção, considerando-se demasiado requintado para usar palavreado obsceno. - Perdi. - E soltou
uma risadinha; mas não estava achando nada divertido. - Minhas primeiras cartas foram um 3 e um 5. Com um 4 eu estaria garantido. E então recebi este maldito rei.
Terminada a partida, ele assinou a autorização. Oskar juntou todas as fichas que tinha ganho nessa noite e devolveu-as a Amon.
-Cuide bem da moça por mim - recomendou ele - até chegar a hora de eu mandar buscá-la.
Na sua cozinha, Helen não podia saber que acabava de ser salva por um baralho.
Capítulo 31
E determinado ponto de qualquer discussão sobre Schindler, os sobreviventes amigos de Herr Direktor apertam os olhos, abanam a cabeça e se empenham na tarefa quase
matemática de descobrir a soma de suas motivações. Pois um dos sentimentos mais comuns aos judeus de Schindler é ainda: "Não sei por que ele fez tudo aquilo." Para
começar, pode-se dizer que Oskar era um jogador, um sentimental que amava a luminosidade, a simplicidade de fazer o bem; que Oskar era por temperamento um anarquista,
que se comprazia em ridicularizar o sistema; e que sob a sua jovial sensualidade havia a capacidade de se indignar com a selvageria humana, de reagir a essa selvageria
e de não se deixar dominar. Mas nem todos esses motivos somados explica a tenacidade com que, no outono de 1944, ele preparou um abrigo final para a sua gente da
Emalia.
E não só para aquela gente. Em princípios de setembro ele foi em seu carro a Podgórze e visitou Madritsch, que àquela altura empregava mais de 3 mil prisioneiros
em sua fábrica de uniformes. Essa fábrica seria agora desmontada. Madritsch receberia de volta suas máquinas de costura e seus operários desapareceriam.
- Se trabalhássemos em conjunto - propôs Oskar - poderíamos salvar mais de quatro mil prisioneiros. Os meus e os seus. Poderíamos dar-lhes proteção em Morávia. Madritsch
seria sempre, e com razão, reverenciado pelos seus prisioneiros sobreviventes. O pão e as galinhas contrabandeados para dentro de sua fábrica eram pagos do seu próprio
bolso e com sérios riscos. Poderia ser considerado um homem mais equilibrado do que Oskar. Não tão entusiástico, não tão sujeito a obsessões. Nunca tinhasido preso.
Mas fora muito mais humano do que seria prudente e,se fosse menos sagaz e enérgico, teria acabado em Auschwitz.
Agora Oskar apresentava-lhe uma visão de um campo Madritsch-Schindler em alguma parte na Alta Jeseniks; algum enevoado, seguro e pequeno povoado industrial. Madritsch
sentiu-se atraído pela idéia mas não se apressou em dizer sim. Via que, embora a guerra estivesse perdida, o sistema SS tinha se tornado não menos, porém, mais implacável.
Tinha razão de presumir que, infelizmente, os prisioneiros de Plaszóvia - nos próximos meses - seriam destruídos nos campos de morte a oeste. Porque, se Oskar era
pertinaz e alucinado, também o eram o Escritório Central da SS e seus operadores, os comandantes dos Campos de Concentração.
Madritsch, porém, não deu um "não" definitivo. Precisava de tempo para pensar melhor. Embora não pudesse dizer isso a Oskar, é provável que ele temesse se empenhar
num projeto de sociedade com um sujeito temerário e demoníaco como Schindler.
Sem ter recebido uma resposta clara de Madritsch, Oskar resolveu agir.
Foi para Berlim e lá convidou o Coronel Erich Lange para jantar. Em conversa, afirmou-lhe que poderia dedicar-se inteiramente à manufatura de granadas, se conseguisse
transferir sua maquinaria pesada. Lange era crucial. Podia garantir contratos; podia fornecer as
recomendações de que Oskar necessitava para convencer a Junta de Evacuação e os funcionários alemães em Morávia.
Mais tarde, Oskar diria desse sombrio oficial do estado-maior que ele o ajudara concretamente. Lange estava ainda naquele estado de exaltado
desespero e repulsa moral característico de muitos homens que tinham trabalhado dentro do sistema, mas nem sempre pelo sistema.
- Podemos conseguir isso - disse Lange - mas vai ser preciso algum dinheiro. Não para mim. Para outros.Apresentado por Lange, Oskar conversou com um oficial da Junta
de
Evacuação no OKH, na Rua Bendler. Era provável, disse esse oficial, que, em princípio, a evacuação fosse aprovada. Mas havia um obstáculo maior. O Governador cum
Gauleiter da Morávia, que administravaa região do seu castelo em Liberec, seguia a política de manter os campos de trabalho de judeus/ora de sua província. Nem a
SS nem a Inspetoria de Armamentos conseguira até então fazê-lo mudar de atitude.
Um homem com quem discutir esse impasse, disse o oficial, era um engenheiro veterano da Wehrmacht na Inspetoria de Armamentos, chamado Sussmuth. Oskar poderia discutir
com Sussmuth quais os locais disponíveis, na Morávia, para a execução do seu plano. Em todo o caso, Herr Schindler podia contar com o apoio da Junta de Evacuação.
- Mas o senhor deve compreender que em vista das pressões, sob as quais vive o pessoal da Junta, e da redução que a guerra trouxe aos seus confortos pessoais, eles
provavelmente dariam uma resposta mais rápida, se o senhor pudesse compensá-los de alguma forma. Nós, pobres
funcionários da cidade, estamos com falta de presunto, charutos, bebidas, roupas, café... todo tipo de coisas.
O oficial parecia pensar que Oskar carregava consigo a metade dos produtos do tempo de paz da Polônia. Em vez de remeter aos
cavalheiros da Junta um pacote de presentes, Oskar teve de comprar artigos de luxo aos preços do mercado negro de Berlim. Um velho senhor no balcão do Hotel Adlon
pôde adquirir excelentes schnapps para Herr Schindler por um bom preço, cerca de 80 RM a garrafa. E não se podia
mandar aos membros da Junta menos de uma dúzia de garrafas. Mas o café era como ouro, e havanas estavam por um preço absurdo. Os cavalheiros poderiam precisar de
muita pressão para conseguirem vencer a resistência do Governador da Morávia.
Em meio às negociações de Oskar, Amon Goeth foi preso.Alguém devia tê-lo denunciado. Algum oficial subalterno invejoso, ou um cidadão apreensivo, que estivera na
casa do comandante e ficara chocado com o estilo sibarita de Amon. Um investigador da SS chamado Eckert iniciou uma devassa nas transações financeiras de Amon. Não
cabiam às investigações de Eckert os disparos de Amon contra prisioneiros. Mas os desfalques e as negociatas no mercado negro lhe eram pertinentes, assim como as
queixas de alguns dos seus oficiais subalternos sobre a maneira excessivamente severa como ele os tratava.
Amon estava de licença em Viena, hospedado com o seu pai, o editor, quando a SS veio prendê-lo. Deram também uma busca em um apartamento que o Hauptsturmführer Goeth
mantinha na cidade e descobriram 80 mil RM escondidos, cuja proveniência Amon não pôde explicar satisfatoriamente. Além disso, encontraram, empilhados até o teto,
cerca de um milhão de cigarros. Ao que parecia, o apartamento de Amon em Viena era mais um depósito de mercadorias do que um pied-à-lerre.À primeira vista poderia
parecer surpreendente que a SS - ou antes,
os oficiais do Escritório Central de Segurança do Reich - se dis-pusessem à tarefa de prender um funcionário tão eficiente como o Hauptsturmführer Goeth. Mas já
haviam investigado irregularidades em Buchenwald e tentado encurralar Koch, o seu comandante. Tinham até procurado juntar provas para prender o notório Rudolf Hõss
e interrogado uma judia vienense, que se suspeitava estivesse grávida daquele astro do sistema de campos de concentração. Por isso Amon,furioso em seu apartamento,
enquanto o revistavam, não podia ter muita esperança de impunidade.
Amon foi levado para Breslau e colocado numa prisão da SS para aguardar outras investigações e o julgamento. Os oficiais deram prova de sua ingenuidade, quanto à
maneira como eram conduzidos os negócios em Plaszóvia, indo à casa de Amon para interrogar Helen Hirsch, sob suspeita de estar envolvida nas negociatas do comandante.
Nos meses
seguintes, duas vezes ela foi levada às celas no subsolo do quartel-general da SS em Plaszóvia para interrogatório. Fizeram-lhe perguntas sobre os contatos de Amon
no mercado negro - quem eram os seus agentes, como ele fazia funcionar a oficina de jóias em Plaszóvia, a oficina de alfaiate, de estofamento. Ninguém a espancou
ou ameaçou.
Mas estavam convencidos de que ela era membro de uma gangue que a atormentava. Se Helen por acaso tivesse sonhado com uma improvável e gloriosa salvação, não teria
ousado sequer pensar que Amon seria preso pela sua própria gente. Sentia-se agora à beira da loucura na sala do interrogatório, quando eles tentaram atrelá-la a
Amon. Chilowicz poderia ajudá-los, disse-lhes ela. Mas Chilowicz estava morto.
Eram policiais por profissão; após algum tempo, decidiram que ela nada podia dizer-lhes, exceto umas poucas informações sobre a cozinha suntuosa na casa de Goeth.
Poderiam ter-lhe perguntado a respeito de suas cicatrizes mas sabiam que não adiantava acusar Goeth de sadismo. Ao tentar investigar sadismo no campo de Sachsenhau-sen,
tinham sido expulsos do recinto por guardas armados. Em Buchenwald haviam entrado em contato com uma testemunha importante, um NCO disposto a testemunhar contra
o comandante, mas o informante ora encontrado morto em sua cela. O chefe do grupo de investigadores ordenara que amostras de um veneno encontrado no estômago do
NCO fossem ministradas a quatro prisioneiros russos. Viu-os morrer,
obtendo assim a prova contra o comandante e o médico do campo. Embora o comandante houvesse sido condenado por assassinato e sadismo, era uma justiça estranha. Antes
de tudo, fez com que o pessoal do campo se unisse e liquidasse com todas as provas vivas. Assim, os homens do Escritório V não interrogaram Helen a respeito de
suas cicatrizes. Continuaram perguntando-lhe sobre negociatas e acabaram por deixá-la em paz.
Investigaram também Mietek Pemper, que teve a prudência de não lhes revelar muito a respeito de Amon, certamente nada sobre seus crimes contra seres humanos. Ouvira
apenas rumores das falcatruas de Amon. Representou o papel do datilografo profissional, alheio a todo material confidencial. "O Herr Commandant nunca discutiria
tais assuntos comigo", insistia ele. Mas a sua representação era motivada pela mesma incerteza de Helen Hirsch. Se existia uma circunstância, que mais provavelmente
garantia a ele a chance de sobrevivência, era a prisão de Amon. Pois não havia desfecho mais certo de sua vida do que este: quando os russos chegassem a Tarnow,
Amon ditaria as suas últimas cartas e depois assassinaria o datilografo. Portanto, o que preocupava
Mietek era que soltassem Amon cedo demais. Mas os investigadores não estavam interessados somente na questão das especulações de Amon. O juiz da SS que interrogou
Pemper fora informado pelo Oberscharführer Lorenz Landsdorfer que o Hauptsturmführer Goeth permitira que o seu funcionário judeu datilografasse as diretrizes e os
planos a serem seguidos pela guarnição de Plaszóvia, no caso de o campo ser atacado por guerrilheiros. Ao explicar a Pemper como devia datilografar os planos, Amon
mostrara-lhe cópias de planos similares para outros campos de concentração. O juiz se alarmou tanto com essa revelação de documentos secretos a um prisioneiro judeu
que ordenou a prisão de Pemper.
Pemper passou duas semanas terríveis numa cela do quartel da SS. Não foi espancado mas interrogado regularmente por vários investigadores do Escritório V e por dois
juizes da SS. Julgou ler nos olhos daqueles homens a conclusão de que a coisa mais garantida era fuzilá-lo. Um dia, durante um interrogatório sobre planos de emergência
para Plaszóvia, Pemper perguntou a seus interrogadores:
- Por que me manter aqui? Uma prisão é uma prisão. Dessa maneira, estou sob sentença de prisão perpétua.
Era um argumento calculado para provocar uma solução, ou o soltavam ou lhe davam um tiro. Quando terminou a sessão, Pemper passou algumas horas de ansiedade, até
tornarem a abrir a porta de sua cela. Levaram-no para fora e o devolveram ao campo de Plaszóvia.
Não foi a última vez, porém, que ele seria interrogado a respeito de questões relativas ao Comandante Goeth. Em vista de Pemper ter sido preso, os auxiliares de
Amon não pareceram
muito dispostos a falar em seu favor. Eram cautelosos. Bosch, que tanto se servira das bebidas do comandante, declarou ao Untersturmführer John que era perigoso
tentai subornar aqueles decididos investigadores do Escritório V. Quanto aos superiores de Amon, Scherner
se fora, destacado para caçar guerrilheiros, e acabaria sendo morto numa emboscada nas florestas de Niepolomice. Amon estava nas mãos de homens de Oranienburg, que
nunca tinham jantado na Goeihhaus
- ou, se tinham jantado, saíram de lá escandalizados ou invejosos.
Após ser libertada pela SS, Helen Hirsch, agora trabalhando para o novo comandante, Haupisturmführer Büscher, recebeu um bilhete
amistoso de Amon, pedindo-lhe que fizesse um embrulho de roupas, alguns romances e histórias policiais, e algumas bebidas para reconfortá-lo
em sua cela. A Helen pareceu a carta de um parente. "Queira ter a bondade de me remeter o seguinte:", dizia ele, e terminava com: "Esperando
tornar a vê-la dentro em breve."Enquanto isso, Oskar fora à cidade de Troppau para ver o engenheiro Sussmuth. Levava consigo bebidas e diamantes, mas nesse caso
não foram necessários. Sussmuth disse a Oskar que já havia proposto a instalação
de pequenos campos de trabalho judeus nas cidades fronteiriças da Morávia, a fim de manufaturar peças para a Inspetoria de Armamentos. Naturalmente, esses campos
estariam sob o controle central de
Auschwitz ou Grõss-Rosen, pois as áreas de influência dos grandes campos
de concentração cruzavam a fronteira polonesa-tchecoslovaca.
Mas havia mais segurança para prisioneiros em pequenos campos de trabalho do que se poderia esperar na grande necrópole do próprio Auschwitz. Evidentemente, Sussmuth
não conseguira fazer aprovar o seu plano. O Castelo de Liberec tinha vetado a sua proposta. Ele nunca tivera influência alguma. O apoio que Oskar conseguira do Coronel
Lange e dos membros da Junta de Evacuação é que poderia realmente representar alguma influência.
Sussmuth tinha, em seu escritório, uma lista de locais adequados para receber fábricas evacuadas da zona de guerra. Perto de Zwittau, a cidade natal de Oskar, junto
a uma aldeia chamada Brinnlitz, havia uma grande fábrica de têxteis de propriedade de dois vienenses, os irmãos Hoffman. Anteriormente, eles negociavam com manteiga
e queijos em sua cidade de origem mas tinham-se mudado para a Sudetenland atrás das legiões (exatamente como Oskar fora para Cracóvia) e se tornado magnatas da indústria
têxtil. O anexo inteiro da fábrica estava desocupado e sendo utilizado para guardar máquinas de tecelagem obsoletas.
A zona era servida pela estação de estrada de ferro em Zwittau, onde o cunhado de Schindler administrava os vagões de carga. E um ramal da estrada passava próximo
dos portões da fábrica.
- Os irmãos Hoffman são especuladores - disse Sussmuth, sorrindo.
- Têm certo apoio do Partido local - o Conselho Municipal e o chefe do distrito estão no bolso deles. Mas você pode contar com o apoio do Coronel Lange. Escreverei
imediatamente para Berlim
- prometeu Sussmuth - recomendando a utilização do anexo Hoffman.
Oskar conhecia desde a infância a aldeia alemã de Brinnlitz. O caráter racial da aldeia transparecia em seu próprio nome, pois os tchecos a teriam chamado de Brnenec,
da mesma forma que uma Zwittau tcheca se teria tornado Zvitava. Os cidadãos de Brinnlitz não gostariam
muito da perspectiva de ter mil e tantos judeus em suas cercanias. A população de Zwittau, de onde eram recrutados alguns dos operários dos Hoffman, tampouco gostaria
dessa contaminação - já quase no fim da guerra - em seu rústico complexo industrial.
Em todo caso, Oskar foi fazer uma rápida vistoria do local. Não se aproximou do escritório dos Irmãos Hoffman, pois isso daria ao irmão mais inflexível, o que era
diretor da companhia, motivo de suspeita.
Mas conseguiu penetrar no anexo, sem qualquer dificuldade. Era uma antiquada caserna industrial de dois andares, construída em torno de um pátio. O andar térreo
tinha o pé-direito alto e estava cheio de velhas máquinas e engradados de lã. O sobrado devia ter sido destinado
aos escritórios e equipamentos mais leves. O seu piso não agüentaria o peso das grandes prensas. O andar de baixo serviria para as novas oficinas da DEF, o escritório
e, a um canto, o apartamento de Herr Direktor. No andar de cima seriam instalados os prisioneiros.
Oskar gostou muito do local. Voltou para Cracóvia ansioso por dar andamento ao projeto, fazer as despesas necessárias, conversar de novo com Madritsch, pois Sussmuth
podia encontrar também um local para Madritsch se instalar - talvez mesmo dentro de Brinnlitz. Na volta, ele constatou que um bombardeiro dos Aliados, derrubado
por um caça da Luftwaffe, tinha caído sobre duas cabanas do campo. A fuselagem enegrecida jazia retorcida entre as ruínas das cabanas
Apenas uma pequena equipe de prisioneiros permanecia na Emalia para encerrar a produção e cuidar da fábrica. Tinham visto o bombardeiro cair em chamas. Dois homens
jaziam lá dentro,
carbonizados A equipe da Luftwaffe, que viera para levar os corpos, dissera Adam Garde que o bombardeiro era um Stirling e os homens australianos Um deles segurava
os restos queimados de uma Bíblia inglesa; devia ter caído com ela na mão. Dois outros tinham descido de pára-quedas
nos subúrbios. Um fora encontrado morto por efeito dos ferimentos, ainda com os arreios. Os guerrilheiros tinham encontrado primeiro o outro e o mantinham escondido
em alguma parte. Os aviões australianos estavam jogando suprimentos para os guerrilheiros, na floresta virgem situada a leste de Cracóvia.
Se Oskar precisasse de alguma confirmação, ali estava a prova. Aqueles homens tinham vindo de longínquas cidadezinhas, dos confins da Austrália, para apressar a
queda de Cracóvia. Imediatamente ele telefonou ao funcionário encarregado do material circulante, no escritório do Presidente Gerteis da Ostbahn, e convidou-o a
jantar para discutirem a necessidade potencial da DEF de obter vagões-plataforma. Uma semana depois da conversa de Oskar com Sussmuth, os membros da Junta de Armamentos
de Berlim informaram ao Governador da Morávia que a fábrica de armamentos de Oskar ia ser instalada no anexo da tecelagem de Hoffman, em Brinnlitz. Os burocratas
do Governador nada mais podiam fazer. Sussmuth disse por telefone a Oskar que
apressasse a escrita da transação. Mas Hoffman e outros membros do Partido na área de Zwittau já estavam conferenciando e aprovando resoluções contra a intrusão
de Oskar na Morávia. O Kreisleiter o Partido em Zwittau escreveu a Berlim, queixando-se de que prisioneiros judeus da Polônia poriam em perigo a saúde dos alemães
moravianos. Muito provavelmente haveria um surto de meningite cerebrospinal pela primeira vez, desde tempos imemoriais, e a pequena fábrica de armamentos de Oskar,
de dúbio valor para o esforço de guerra, atrairia bombardeiros dos Aliados, com o resultante prejuízo da importante tecelagem dos Hoffman. A população de criminosos
judeus no campo Schindler seria maior do que a pequena e decente população de Brinnlitz e se tornaria um câncer no honesto flanco de Zwittau.
Um protesto dessa ordem não teve chance de ser atendido, pois foi direto para o escritório de Erich Lange, em Berlim. Apelos dirigidos a Troppau eram obstaculizados
pelo honesto Sussmuth. Não obstante, surgiram cartazes nos muros da cidade natal de Oskar: MANTENHAM
AFASTADOS OS CRIMINOSOS JUDEUS. E Oskar estava pagando. Estava pagando ao Comitê de Evacuação em Cracóvia para ajudar a apressar as guias de transferência da sua
maquinaria. O Departamento da Economia em Cracóvia precisava ser encorajado para providenciar a liberação de depósitos bancários.
A moeda corrente não tinha muito valor naqueles dias; sendo assim ele pagava em mercadorias - quilos de chá, sapatos de couro, tapetes, café, peixe enlatado. Passava
as tardes nas ruas estreitas junto à praça do mercado de Cracóvia regateando os preços exorbitantes de tudo o que os burocratas desejavam. Se assim não fizesse,
ele tinha certeza de que o deixariam esperando até o último judeu ir para Auschwitz Foi Sussmuth quem avisou Oskar de que pessoas de Zwittau escreviam à Inspetoria
de Armamentos, acusando-o de atuar no mercado negro.
- Se estão mandando cartas - disse Sussmuth - pode apostar que as mesmas cartas estão sendo endereçadas ao chefe de polícia da Morávia, o Obersíurmführer Otto Rasch.
Portanto, aconselho-o a ir travar conhecimento com Rasch e mostrar-lhe que sujeito encantador você é.
Oskar tinha conhecido Rasch quando ele era chefe de polícia da SS de Katowice. Por sorte, Rasch era amigo do diretor da Ferrum AG em Sosnowiec, de quem Oskar tinha
comprado o aço para a sua fábrica.
Mas apressando-se em ir a Brno para chegar antes dos informantes,
Oskar não confiou apenas no sentimento frágil de amizades por tabela. Levou consigo um diamante lapidado no estilo brilhante que, em determinado momento, ele exibiu
na entrevista. Quando o diamante rolou sobre a mesa e foi parar ao lado de Rasch, essa foi a garantia de que Oskar precisava para o seu plano.
Mais tarde, Oskar calculou que gastara 100 mil RM - quase 40 mil dólares - a fim de facilitar a transferência de sua fábrica para Brinnlitz. Poucos dos sobreviventes
iriam considerar exagerado o cálculo; havia mesmo os que abanavam a cabeça e opinavam: "Não, mais! Na certa a quantia foi bem maior."Oskar tinha feito o que chamava
de lista preparatória, a qual entregara
no Prédio da Administração. Havia mais de mil nomes na lista - os nomes de todos os prisioneiros do campo da Emalia e mais alguns nomes novos. O de Helen Hirsch
figurava entre eles e Amon não estava mais lá para discutir a respeito de sua criada.
Essa lista ter-se-ia alongado se Madritsch tivesse ido para a Morávia com Oskar, que juntamente com Titsch continuava insistindo com Madritsch. Os prisioneiros de
Madritsch mais íntimos de Titsch sabiam que a lista estava sendo compilada, e que podiam aspirar a ela. Titsch disse-lhes sem rodeios que eles deviam fazer o possível
para entrar na lista. Em meio de toda a papelada de Plaszóvia, os nomes nas doze páginas da lista de Oskar eram os únicos com acesso ao futuro.Mas Madritsch continuava
sem decidir se queria fazer uma aliança com Oskar e acrescentar os seus 3 mil prisioneiros ao total.
Aqui também existe uma incerteza própria das lendas quanto à exata cronologia da lista de Oskar. A incerteza não se refere à existênciada lista - uma cópia dela
pode ser vista ainda hoje nos arquivos do Yad Vashem. E tampouco há incerteza, como veremos, quanto aos nomes lembrados por Oskar e Titsch no último minuto e acrescentados
no final do documento. Os nomes na lista são explícitos. Mas as circunstâncias encorajam divagações. O problema é que a lista é lembrada com uma veemência que lhe
tira a nitidez. A lista é um bem absoluto.
A lista é vida. Em todo o seu pequeno redor abre-se um precipício. Alguns daqueles cujos nomes apareceram na lista contam que houve uma festa na casa de Goeth, uma
reunião de membros da SS e empresários para comemorar o tempo de existência do campo. Alguns
chegam mesmo a acreditar que Goeth compareceu à festa mas, como a SS não soltava ninguém sob fiança, isso não é possível. Outros acreditam
que a festa se realizou no próprio apartamento de Oskar acima da sua fábrica. Durante mais de dois anos, ele dera lá excelentes reuniões.
Um prisioneiro da Emalia se lembra de uma madrugada em 1944 quando estava de plantão noturno e Oskar saiu do seu apartamento por volta de uma hora da manhã, escapulindo
do alarido dos seus convidados e trazendo consigo dois bolos, duzentos cigarros e uma garrafa de bebida para o seu amigo vigia. Na festa de graduação de Plaszóvia,
onde quer que se tenha realizado, os convivas incluíam Dr. Blancke, Franz Bosch e, segundo informações, o Oberführer Julian Scherner, de férias de sua luta contra
os guerrilheiros. Madridtsch também tinha comparecido, assim como Titsch. Segundo contou Titsch mais tarde, foi nessa festa que Madritsch informou pela primeira
vez a Oskar que não iria para a Morávia com ele.
- Já fiz tudo o que podia pelos judeus - disse-lhe Madritsch, confiante.
Era uma alegação razoável, e ele não se deixou persuadir, apesar das insistências de Oskar e Titsch. Madritsch era um homem justo; por isso mais tarde lhe seriam
prestadas merecidas homenagens. Mas simplesmente não acreditava que Morávia poderia funcionar. Se acreditasse, é bem provável que tivesse feito a tentativa. O que
se sabe ainda a respeito daquela festa é que a urgência exigia a sua realização imediata, pois a lista Schindler teria de ser entregue naquela mesma noite. As versões
contadas pelos sobreviventes coincidem todas nesse particular. Se havia algum exagero nessas versões, este provavelmente se baseava em prévias conversas com Oskar,
que era dado a enfeitar as suas histórias. Mas, no começo de 1960, o próprio Titsch confirmou a verdade substancial desses fatos. Talvez o novo e temporário Comandante
de Plaszóvia, o Hauptsturmführer Büscher, tivesse dito a Schindler: "Basta de confusões, Oskar! Temos de finalizar toda a documentação e transporte." Talvez houvesse
alguma outra forma de prazo de entrega imposto pelo Ostbahn quanto à disponibilidade do transporte.
Assim, no final da lista de Oskar, Titsch datilografou, acima das assinaturas oficiais, nomes de prisioneiros de Madritsch. Quase setenta foram acrescentados por
Titsch, pelo que ele próprio e Oskar podiam lembrar-se. Entre esses, figurava a família Feigenbaum - a filha adolescente do casal sofria de um incurável câncer dos
ossos; e o jovem Lutek com a sua duvidosa capacidade de consertar máquinas de costura. Agora eles estavam todos transformados pela escrita de Titsch em peritos
em munições. No apartamento havia cantorias, conversas em voz alta e risadas, uma névoa de fumaça de cigarros e, a um canto, Oskar e Titsch discutindo nomes de pessoas,
esforçando-se por acertar a ortografia de patronímicos poloneses.
No final, Oskar teve de segurar o pulso de Titsch, dizendo que eles já tinham ultrapassado os limites toleráveis, e que as autoridades iam protestar contra o tamanho
da lista. Titsch continuou procurando lembrar-se de nomes, e na manhã seguinte iria acordar maldizendo-se por só ter-se lembrado de um certo nome quando já era demasiado
tarde.
Mas agora ele estava no seu limite de resistência, angustiado com aquela tarefa. Parecia-lhe quase uma blasfêmia, como se só de pensar em pessoas ele as estivesse
recriando. Não era a tarefa que o revoltava. Era a prova de no que se transformara o mundo - o que tornava o ar pesado no apartamento de Schindler, tão irrespirável
para Titsch.
Todavia, a lista era vulnerável devido ao coordenador do pessoal, Mareei Goldberg. O novo Comandante, Büscher, que estava ali simplesmente para fechar o campo, pouco
se importava com os nomes que compunham a lista mas apenas com os seus limites numéricos. Portanto,
Goldberg era quem tinha o poder de fazer alterações. Já era voz corrente entre os prisioneiros que Goldberg era subornável. Os Dres-ner sabiam disso. Juda Dresner
- tio do Chapeuzinho Vermelho Genia, marido da Sra. Dresner, a quem em outros tempos havia sido recusado um esconderijo na parede, e pai de Janek e da jovem Danka
- Juda Dresner sabia. "Pagamos a Goldberg", dizia simplesmente a família para explicar como fora incluída na lista Schindler mas nunca se saberia qual tinha sido
o preço do suborno. Presumivelmente, Wulkan, o joalheiro, tinha conseguido ser incluído juntamente com a mulher e o filho pelo mesmo processo.
Poldek Pfefferberg foi informado da existência da lista por um NCO da SS chamado Hans Schreiber. Rapaz de vinte e poucos anos, Schreiber tinha tão mau nome como
qualquer outro SS em Plaszóvia, mas Pfefferberg caíra nas suas boas graças de um modo que de vez em quando acontecia no relacionamento entre prisioneiros e membros
da SS. Tudo tinha começado no dia em que coubera a Pfefferberg, como líder do grupo de sua caserna, a responsabilidade de limpar vidraças.
Ao inspecionar o serviço, Schreiber encontrara uma nódoa, e começara a descompor Poldek de um modo que, freqüentemente, significava o prelúdio de uma execução.
Pfefferberg perdeu a paciência e disse a Schreiber que ambos sabiam que as vidraças estavam absolutamente limpas e que, se Schreiber queria um pretexto para matá-lo,
devia agir o quanto antes. A explosão de Pfefferberg contraditoriamente divertira Schreiber. Depois disso, às vezes Schreiber parava Pfefferberg para perguntar-lhe
como ele e sua mulher estavam passando, e de vez em quando lhe dava uma maçã para Mila. No verão de 1944, Poldek apelara desesperadamente para ele a fim de arrancar
Mila de um vagão cheio de mulheres que iam ser mandadas de Plaszóvia para o terrível campo de Stutthof no Báltico. Mila já se achava nas fileiras, entrando nos vagões
de gado, quando Schreiber veio correndo, sacudindo um pedaço de papel e chamando-a pelo próprio nome. Em outra ocasião, um domingo, ele apareceu embriagado na caserna
de Pfefferberg e, diante de Poldek e de alguns outros prisioneiros, começou a chorar pelo que ele chamava de "coisas horríveis" que fizera em Plaszóvia. Disse que
a sua intenção agora era expiar suas culpas na Frente Leste. Algum tempo depois, acabou lá se alistando.
Mas antes ele disse a Poldek que Schindler tinha uma lista e que Poldek devia fazer o impossível para ser incluído nela. Poldek foi ao Prédio da Administração para
implorar a Goldberg que acrescentasse o seu nome e o de Mila à lista. Naquele último ano e meio, Schindler freqüentemente fora procurar Poldek na oficina de carros
do campo e sempre lhe prometera que o salvaria. Poldek, porém, se tornara um soldador tão competente que os supervisores da oficina, que precisavam prestigiar a
si mesmos, nunca abririam mão dele. Agora Goldberg
tinha a mão pousada sobre a lista - ele próprio já se incluíra nela - e aquele velho amigo de Oskar, anteriormente um convidado assíduo
no apartamento da Rua Straszewskiego, esperava ter o seu nome incluído na lista por uma questão sentimental.
Você tem diamantes? - perguntou Goldberg.
Está falando sério? - perguntou Poldek.
Para esta lista - disse Goldberg, homem de prodigioso poder contingente - é preciso ter diamantes. Agora que o amante vienense de boa música, o Hauptsturmführer
Goeth fora preso, os irmãos Rosner, músicos da corte, estavam livres para batalhar para entrar na lista. Dolek Horowitz, que no passado conseguira transferir sua
mulher e filhos para a DEF, agora também persuadiu Goldberg a incluí-lo na lista juntamente com sua família. Horowitz sempre tinha trabalhado no depósito central
de mercadorias em Plaszóvia e conseguira economizar uma pequena fortuna. Agora esse dinheiro passou para as mãos de Mareei Goldberg. Entre os incluídos na lista
figuravam os irmãos Bejski, Uri e Moshe, oficialmente com as profissões de montador de máquinas e projetista.
Uri tinha alguns conhecimentos de fabricação de armas e Moshe um dom para forjar documentos. As especificações da lista são tão pouco explicitas que não é possível
saber se foi por causa dessas aptidões que eles tinham sido incluídos. Josef Bau, o cerimonioso noivo, em dado momento seria incluído, mas sem o saber. Convinha
a Goldberg manter todo mundo em suspenso quanto à lista. Considerando a natureza de Bau, é possível presumir que, se ele houvesse procurado pessoalmente Goldberg,
só poderia ter sido com a condição de que sua mãe, sua mulher e ele próprio fossem todos incluídos. Só tarde demais Bau iria descobrir que apenas o seu nome estava
na lista para Brinnlitz.
Quanto a Stern, Herr Direktor o incluíra desde o início. Stern era o único padre confessor que Oskar alguma vez tivera, e as suas sugestões exerciam grande influência
sobre ele. Desde o primeiro dia de outubro, nenhum prisioneiro judeu tivera permissão de sair de Plaszóvia, quer para marchar para a fábrica de cabos condutores
ou para qualquer outra finalidade. Ao mesmo tempo, os encarregados das prisões polonesas tinham começado a destacar guardas para as casernas, a fim de impedir os
prisioneiros judeus de negociar pão com os poloneses. O pão ilegal atingiu tal preço que seria difícil pagá-lo em moeda corrente.
No passado, podia-se trocar um pão por um casaco, 250 gramas por uma camisa limpa. Agora - como com Goldberg - era preciso ter diamantes.
No decorrer da primeira semana de outubro, Oskar e Bankier foram
por algum motivo a Plaszóvia e, como de costume, visitaram Stern no Escritório de Construção. A mesa de trabalho de Stern ficava num corredor próximo ao antigo gabinete
de Amon. Lá era possível falar com mais liberdade. Stern contou a Schindler o que se estava passando com o preço inflacionado do pão de centeio. Oskar voltou-se
para Bankier e murmurou:
- Providencie para que Weichert receba 50 mil zlotys.
O Dr. Michael Weichert era diretor do antigo Auxílio Mútuo Comunal Judaico, agora rebatizado Escritório Judaico de Compensação. Ele e seus auxiliares tinham permissão
para operar por questões de aparência e, em parte, porque Weichert mantinha conexões com gente de alta categoria na Cruz Vermelha Alemã. Embora muitos judeus-poloneses
nos campos o tratassem com compreensível desconfiança, e embora essa desconfiança motivasse o seu julgamento depois da guerra - ele foi absolvido - Weichert era
exatamente o homem capaz de providenciar rapidamente 50 mil zl de pão e fazer com que a mercadoria entrasse em Plazóvia.
Stern e Oskar prosseguiram em sua conversa. Os 50 mil zl eram um mero obiter dieta em relação aos assuntos que discutiam sobre a insegurança do momento e sobre Amon
e como ele devia estar passado na sua cela em Breslau. Naquela mesma semana o pão do mercado negro foi contrabandeado para o campo, escondido sob fardos de roupa,
carvão e sucata. E naquele mesmo dia o preço voltou ao seu nível normal. Era um belo caso de conivência entre Oskar e Stern, a que se seguiriam outras instâncias.
Capítulo 32
Pelo menos um dos prisioneiros da Em ai ia, dos riscados por Gold-berg para dar lugar a outros
- parentes, sionistas, especialistas e subornadores - iria culpar Oskar por sua exclusão da lista.
Em 1963, a Sociedade Martin Buber receberia uma lamentável carta de um nova-iorquino, ex-prisioneiro da Emalia. Segundo ele, na Emalia, Oskar tinha prometido libertação.
Em troca, o pessoal do seu campo deixara-o rico com o seu trabalho. Contudo, alguns deles se viram excluídos da lista. Esse homem via a sua própria omissão como
uma traição pessoal e - com toda a fúria de alguém que tivera de passar por tremendos sofrimentos para pagar pela mentira de outro homem - culpava Oskar por tudo
o que acontecera depois: por Gróss-Rosen, pelo abominável penedo de Mauthausen de onde prisioneiros eram lançados e, finalmente, pela marcha para a morte, com a
qual a guerra terminaria. O curioso é que a carta, cheia de justa cólera, mostra com exatidão
gráfica que a vida na lista era uma questão exeqüível, ao passo que a vida fora dela era uma tortura. Mas parece injusto condenar Oskar pela manipulação de nomes
praticada por Goldberg. As autoridades do campo, no caos daqueles últimos dias, assinariam qualquer lista que Goldberg lhes apresentasse, desde que não excedesse
muito drasticamente o número de 1.100 prisioneiros. Oskar tinha obtido uma concessão; não podia ele próprio policiar Goldberg o tempo todo.
Passava os dias argumentando com burocratas, as noites bajulando-os com jantares.
Tinha, por exemplo, de receber autorizações de embarque para as suas máquinas Hilo e prensas de metal, que dependiam de velhos amigos do escritório do General Schindler,
alguns dos quais atrasavam o andamento dos papéis, enquanto investigavam problemas, que poderiam vir a prejudicar o salvamento dos 1.100 prisioneiros de Oskar.
Um desses homens da Inspetoria criara um problema, alegando que as máquinas de fabricação de armamentos de Oskar tinham-lhe chegado às mãos por meio da seção de
concessões da Inspetoria de Berlim, e sob aprovação da seção de licenças, especificamente para uso na Polônia. Nenhuma das duas seções fora notificada do projeto
de mudança para Morávia. Ambas tinham de ser notificadas; podia se passar um mês até concederem a autorização. Oskar não dispunha de um mês. Plaszóvia estaria deserta
até o final de outubro; todos os prisioneiros estariam já em Gróss-Rosen ou Auschwitz. No final, o problema foi solucionado com os habituais presentes de suborno.
Além dessas preocupações, Oskar temia os investigadores da SS que tinham prendido Amon. Receava ser preso ou - o que dava na mesma - ser acirradamente interrogado
sobre seus contatos com o ex-comandante. E demonstrou prudência, antecipando o que ia acontecer,
pois sabia que a explicação que Amon oferecera pelos 80 mil RM encontrados em seu apartamento, fora: "Oskar Schindler me deu esse dinheiro para que eu fosse menos
severo com os judeus." Portanto, tratou de se manter em contato com amigos seus na Rua Pomorska, os quais poderiam informá-lo sobre a direção que o Escritório V
estava adotando com referência às investigações sobre Amon. Finalmente, como o seu campo em Brinnlitz estaria sob a supervisão superior de KL Gróss-Rosen, ele já
entrara em contato com o Comandante
de Gróss-Rosen, Slurmbannführer Hassebroeck. Sob a gerência de Hassebroeck, mil prisioneiros iriam morrer pelo sistema Gróss-Rosen, mas quando Oskar conferenciou
com ele pelo telefone e viajou para a Baixa Silésia a fim de visitá-lo, a impressão que deixou era de não estar em absoluto preocupado com o comandante. Agora, ele
já estava habituado a lidar com assassinos de classe e notou que Hassebroeck parecia até ser-lhe grato por ampliar o império Gróss-Rosen incluindo neste a Morávia.
Pois Hassebroeck pensava realmente em termos de império. Controlava 103 subcampos. (Brinnlitz seria o número 104 e, com os seus mil prisioneiros e sua indústria
sofisticada, representaria um acréscimo importante.) Dos campos de Hassebroeck,
78 ficavam localizados na Polônia, 16 na Tchecoslováquia, 10 no Reich. Era um conjunto bem maior do que Amon jamais conseguira. Com tantos subornos, bajulações e,
ainda, formulários a preencher ocupando-o na semana em que o campo de Plaszóvia era desmantelado, Oskar não poderia ter encontrado tempo para controlar Goldberg,
mesmo que tivesse meios para fazê-lo. De qualquer forma, a descrição que os prisioneiros fazem no campo em suas últimas vinte e quatro horas é de agitação e caos,
enquanto Goldberg - Senhor das Listas , no centro, esperava ofertas.
O Dr. Idek Schindel, por exemplo, procurou Goldberg para ser transferido para Brinnlitz, juntamente com seus dois irmãos mais moços.
Goldberg se recusou a dar uma resposta e Schindler só iria descobrir na noite de 15 de outubro, quando os prisioneiros de sexo masculino estavam sendo levados para
os vagões de gado, que ele e seus irmãos não estavam na lista Schindler. Mesmo assim, eles se juntaram à fila dos que partiam. Houve, então, uma cena semelhante
a uma gravura admoestatória do Juízo Final: os pecadores tentando esgueirar-se na fila dos justos e sendo descobertos pelo anjo da Justiça, naquele caso o Oberscharführer
Müller, que se adiantou para o médico e o fustigou na face esquerda e na direita, de novo esquerda e direita com o seu chicote de couro, enquanto lhe perguntava,
com uma risadinha: "Por que quer entrar nesta fila?"
Schindel seria destacado para permanecer com o pequeno grupo encarregado de destruir Plaszóvia e depois seguiria viagem com um vagão cheio de mulheres doentes para
Auschwitz. Seriam postos numa cabana em algum canto de Birkenau e ali deixados para morrer. Contudo,
ignorados pelos funcionários e excluídos do regime habitual do campo, sobreviveriam. Schindel seria mandado para Flossenburg e então , juntamente com seus irmãos
- ingressaria na marcha da morte.
Com a sua vida por um fio, ele conseguiria sobreviver, mas seu irmão mais moço seria assassinado na marcha, no penúltimo dia da guerra. Esta é uma imagem da maneira
como a lista Schindler, sem nenhuma malícia da parte de Oskar mas com muita malícia da parte de Goldberg, ainda atormentava sobreviventes, como os atormentou naqueles
dias desesperados de outubro .Todo mundo tem uma história a contar sobre a lista. Henry Rosner entrou na fila para Brinnlitz, mas um NCO notou o seu violino e, sabendo
que Amon iria querer música, se fosse solto da prisão, mandou
Rosner de volta. Rosner então escondeu seu violino sob o capote, firmando-o debaixo do braço. Depois tornou a entrar na fila e transpôs o portão rumo aos vagões
de Schindler. Rosner fora um dos prisioneiros a quem Oskar fizera promessas, e portanto sempre estivera na lista. O mesmo se dava com os Jereth: o velho Sr. Jereth
da fábrica de embalagem e a Sra. Chaja Jereth, incluída inexatamente na lista como uma Metallarbeiterin - metalúrgica. Os Perlman também estavam incluídos, como
antigos trabalhadores da Emalia, assim como os Levartov.
O fato era que, apesar de Goldberg, Oskar conseguiu incluir na lista a maioria das pessoas que queria, embora deva ter havido algumas surpresas entre elas. Um homem
com tanta experiência da vida como Oskar não poderia se surpreender muito de ver o próprio Goldberg entre os habitantes de Brinnlitz.
Mas havia alguns acréscimos mais bem-vindos do que Goldberg. Poldek Pfefferberg, por exemplo, que fora acidentalmente esquecido e depois rejeitado por Goldberg pelo
fato de não possuir diamantes, fez saber que queria comprar vodca - a compra seria paga em roupas ou pão. Quando adquiriu a garrafa, ele conseguiu permissão para
ir levá-la à Rua Jerozolimska, onde Schreiber estava de plantão. Entregou a garrafa a Schreiber e pediu-lhe que forçasse Goldberg a incluir Mila e ele na lista.
Sabe que Schindler - disse ele - teria nos inscrito se tivesse se lembrado. - Poldek não tinha dúvida de que estava negociando sua própria vida.
Sei - concordou Schreiber. - Vocês dois devem ser incluídos.E um enigma para a mente humana que um homem como Schreiber, num tal momento, não perguntasse a si mesmo:
"Se este homem e sua mulher merecem ser salvos, por que não todos os outros?" Quando chegou o momento, os Pfefferberg estavam na fila para Brinnlitz. E também,
para sua grande surpresa, Helen Hirsch e sua irmã mais nova, cuja sobrevivência sempre fora a obsessão de Helen.Os homens da lista Schindler embarcaram no trem num
domingo, 15 de outubro. Ainda levaria toda uma semana até a partida das mulheres.
Embora os 800 homens houvessem sido mantidos isolados durante o embarque e fossem para dentro de vagões de carga reservados exclusivamente para o pessoal de Schindler,
na composição havia também outros carros transportando 1.300 prisioneiros, todos com destino
a Grõss-Rosen. Ao que parece, alguns temiam ter de fazer uma parada em Grõss-Rosen, a caminho do campo de Schindler, mas a maioria acreditava que a jornada seria
direta. Estavam resignados a suportar a longa viagem para a Morávia - aceitavam a perspectiva de passar algum tempo dentro dos vagões, em entrocamentos e desvios.
Talvez tivessem de esperar horas a fio até que passasse o tráfego com prioridade.
A primeira neve caíra na semana anterior; iria fazer frio. Cada prisioneiro recebera apenas 300 gramas de pão para todo o percurso da viagem e. ím cada vagão havia
apenas um balde de água. Quanto às funções fisiológicas, teriam de usar um canto do vagão, ou, se muito aglomerados, urinar e defecar em pé onde se achavam. Mas,
no final, apesar de todos os desconfortos e sofrimentos, eles chegariam ao estabelecimento de Schindler!
As 300 mulheres da lista entrariam nos vagões no domingo seguinte, no mesmo estado de espirito esperançoso.
Alguns prisioneiros notaram que Goldberg não viajava com mais bagagem do que eles. Certamente possuía contatos fora de Plaszóvia a quem devia ter confiado os seus
diamantes. Os que ainda esperavam influenciá-lo em favor de um tio, um irmão, ou irmã, deram-lhe espa ço suficiente para se sentar confortavelmente. Os outros agacharam-se,
com os joelhos encostados no queixo. Dolek Horowitz segurava nos braços seu filho Richard, de seis anos. Henry Rosner fez um ninho de roupas no chão para Olek, de
nove anos. Foram três dias. Às vezes, em desvios da estrada de ferro, a respiração dos passageiros congelava nas paredes do vagão. O ar era sempre
escasso mas, quando se respirava com mais força, era gélido e fétido. O trem finalmente parou, ao cair de uma friorenta tarde de outono. As portas foram destrancadas
e esperou-se dos passageiros que desembarcassem com a rapidez de homens de negócios que tivessem compromissos marcados. Guardas SS corriam entre eles, gritando ordens
e censurando-os por cheirarem mal. "Dispam tudo!", esbravejavam os NCO. "Tudo para a desinfecção!" Os prisioneiros empilharam as roupas e marcharam nus para dentro
do campo. Por volta das seis da tarde, continuavam nus e perfilados na Appellplatz desse amargo destino.
Havia neve nas cercanias; a superfície do chão estava congelada. Não era um campo Schindler. Era Grõss-Rosen. Os que tinham pago a Goldberg fitaram-no com um ódio
assassino, ao passo que os SS de sobretudo caminhavam ao longo das filas, chicoteando as nádegas dos que tremiam ostensivamente. Assim foram mantidos na Appellplatz
a noite inteira, pois não havia
cabanas disponíveis. Só a uma hora avançada da manhã do dia seguinte os prisioneiros foram postos ao abrigo. Ao se referir àquelas dezessete horas em que tinham
estado expostos a um frio indizível, que penetrava até o âmago, os sobreviventes não mencionam morte alguma.
Talvez a vida sob o jugo da SS, ou mesmo na Emalia, tenha-os deixado preparados para suportar uma noite como aquela. Embora mais amena do que nas noites anteriores,
ainda assim a temperatura era mortífera.
Naturalmente alguns deles estavam demasiado empolgados com a perspectiva de Brinnlitz para se deixarem abater pelo frio.
Mais tarde, Oskar veria os prisioneiros que haviam sobrevivido ao frio e ao enregelamento. Certamente, o idoso Sr. Garde, pai de Adam Garde, conseguiu sobreviver
àquela noite, assim como os pequenos Olek Rosner e Richard Horowitz.
Por volta das 11 horas da manhã seguinte, eles foram conduzidos aos chuveiros. Poldek Pfefferberg, levado para lá com os outros, olhou
desconfiado para o chuveiro acima de sua cabeça, sem saber se era água ou gás que iria jorrar. Era água! Mas antes de ser ligada, barbeiros ucranianos passaram entre
eles, raspando-lhes a cabeça, os pêlos púbicos, as axilas. Os prisioneiros ficavam imóveis, olhando fixo em frente,
enquanto os ucranianos trabalhavam com navalhas sem gume. "Está muito cega", queixou-se um dos prisioneiros. "Não!", replicou o ucraniano
e desfechou um golpe na perna do prisioneiro para mostrar que a lâmina não estava tão cega assim.
Depois dos chuveiros, receberam uniformes listrados e foram para a caserna. Os SS mandaram que todos se sentassem em fileiras, como remadores de galeras, um homem
de costas entre as pernas de outro atrás dele e, por sua vez, estreitando com as pernas o companheiro sentado na sua frente. Mediante esse processo, dois mil homens
couberam em três cabanas. Kapos alemães, armados de porretes, se instalaram em cadeiras
contra a parede e ficaram de vigia. Os homens estavam de tal forma comprimidos - cada centímetro do espaço do chão ocupado - que levantar-se dali e ir à latrina,
mesmo quando os Kapos o permitiam, significava
caminhar por sobre cabeças e ombros, ouvindo protestos.
No centro de uma cabana havia uma cozinha onde estavam sendo preparados sopa de nabos e pão assado. Poldek Pfefferberg, voltando da latrina, encontrou a cozinha
sob a supervisão de um NCO do Exército polonês, que ele conhecera no começo da guerra. O NCO deu a Poldek um pouco de pão e permitiu que ele dormisse junto ao fogo
da cozinha. Os outros, porém, passavam as noites comprimidos naquela corrente humana. Todos os dias deviam se perfilar na Appellplatz e ficar ali em silêncio durante
dez horas. Ã noite, porém, depois de ser distribuída a sopa rala, eles tinham permissão para caminhar em redor da cabana e falar uns com os outros. Mas, às nove
horas, soava um apito; era o sinal para retornarem às suas estranhas posições em cadeia.
No segundo dia, apareceu um oficial SS na Appellplatz procurando o escriturário que compusera a lista Schindler. Ao que parecia, a lista não tinha chegado de Plaszóvia.
Tremendo em seu uniforme de pano ordinário, Goldberg foi conduzido a um escritório, onde lhe disseram que datilografasse de memória a lista. No final do dia ele
ainda não tinha terminado o trabalho e, de volta às casernas, foi cercado de pedidos finais de inclusão. Ali, na amarga obscuridade, a esperança da lista continuava
incitando e atormentando, embora até aquele momento o único resultado com que agraciara os nela inscritos fora traze-los a Gróss-Rosen. Cercando Goldberg, Pemper
e outros, começaram a pressioná-lo para na manhã seguinte colocar no papel o nome do Dr. Alexander Biberstein. Alexander era irmão de Marek Biberstein, que fora
aquele primeiro, otimista presidente da Judenrat de Cracóvia. No inicio da semana Goldberg confundira Biberstein, dizendo-lhe que ele estava na lista. Só depois
de já ter sido embarcado, o médico descobriu que não estava incluído no grupo Schindler. Mesmo num lugar como Gröss-Rosen, Mietek Pemper tinha bastante confiança
no futuro para ameaçar Goldberg de represálias depois da guerra, se o nome de Biberstein não fosse acrescentado.
Então, no terceiro dia, os 800 homens da lista de Schindler, agora revisada, foram apartados, levados à estação de despiolhamento para mais um banho, tiveram permissão
para se sentar por algumas horas, e logo se puseram a especular e a conversar como aldeões em frente de suas cabanas. Depois, mais uma vez marcharam para o desvio
da estrada de ferro. Com uma pequena ração de pão, entraram nos vagões de gado. Nenhum dos guardas encarregados de embarcá-los admitiu saber para onde eles iriam.
Todos se agacharam no chão conforme as ordens. Procuravam manter gravado em suas mentes o mapa da Europa Central e continuamente calculavam a passagem do sol, especulando
sua direção por lampejos de claridade através de pequenos ventiladores de tela de arame, no alto, quase no teto dos vagões. Olek Rosner foi erguido até o ventilador
do seu vagão e disse que podia ver florestas e montanhas. Os entendidos afirmavam que o trem estava viajando na direção sudeste. Tudo indicava um destino tcheco
mas ninguém
ousava dizer o que estava pensando.
Essa jornada de cerca de 150 quilômetros levou quase dois dias; quando as portas se abriram, na madrugada do segundo dia, eles estavam na estação de Zwittau. Desembarcaram
e foram levados através da cidade ainda adormecida, uma cidade que paralisara em fins da década
de 1930. Até as frases escritas nos muros - MANTENHAM OS JUDEUS FORA DE BRINNLITZ - soavam estranhamente para eles, como slogans de antes da guerra. Naqueles últimos
tempos, tinham vivido num mundo em que até a própria respiração lhes era regateada. Parecia quase uma agradável ingenuidade da população de Zwittau querer
recusar-lhes um mero local.
Uns cinco ou seis quilômetros entre colinas, seguindo o desvio da estrada de ferro, chegaram ao pequeno povoado industrial de Brinnlitz, e na tênue claridade da
manhã viram na sua frente a sólida estrutura do anexo Hoffman transformado no Arbeitstager (Campo de Trabalho) Brinnlitz, com torres de vigia, cercado por arame
farpado, um quartel da guarda dentro do recinto e, mais adiante, o portão da fábrica e os dormitórios do campo.
Quando a fila de prisioneiros transpôs o portão, Oskar apareceu no pátio da fábrica usando um chapéu tirolês
Capítulo 33
Esse campo, como a Emalia, havia sido equipado a expensas de Oskar. De acordo com a regra burocrática, todos os campos de fábricas eram construídos ã custa do dono.
Considerava-se que qualquer industrial recebia incentivos suficientes relativos à mão-de-obra barata para justificar um pequeno gasto de arame e madeira. Na realidade
os industriais bem-amados da Alemanha, tais como Krupp e Farben, construíam seus campos com material doado pela SS, assim como uma grande abundância de mão-de-obra.
Oskar não estava entre os bem-amados e nada recebia. Tinha conseguido arrancar de Bosch uns poucos vagões de cimento, pelo que Bosch teria considerado um desconto
no preço do mercado negro. Da mesma fonte conseguiu duas a três toneladas de gasolina e óleo combustível para uso na produção e remessa de mercadorias. Da Emalia
ele tinha trazido uma parte do arame farpado. Mas em redor do anexo Hoffman, totalmente desnudo, ele tinha de instalar cercas de alta tensão, latrinas, um quartel
para os cem guardas da SS, escritórios, um ambulatório e cozinhas. Para aumentar a despesa, o Slurmbannführer Hassebroeck já viera de Grõss-Rosen para uma inspeção;
partira com um fornecimento de conhaque e louças e o que Oskar descrevia como "chá aos quilos!" Hassebroeck tinha também recebido honorários de inspeção e contribuições
para o compulsório Auxílio de Inverno arrecadadas pela Seção D, sem dar de volta nenhum recibo. "O carro dele tinha uma capacidade considerável para esse tipo de
coisas", declararia Oskar mais tarde. Em outubro
de 1944, ele não tinha a menor dúvida de que Hassebroeck já estava adulterando os livros de contabilidade de Brinnlitz.
Inspetores enviados diretamente de Oranienburg tinham também de ser agradados. Quanto às mercadorias e equipamento da DEF, grande parte achava-se ainda em trânsito
e iria necessitar de 250 vagões de carga para o transporte total. Era espantoso, dizia Oskar, como, no descalabro em que se achava o Estado, funcionários da Ostbahn
podiam, se devidamente encorajados, desencavar tal número de vagões. O aspecto estranho da situação, do próprio Oskar, muito lampeiro, com o seu chapéu tirolês,
ao emergir no frio pátio, era que, ao contrário de Krupp e Farben e todos os outros empresários que mantinham escravos judeus, ele não tinha a menor intenção de
lucro. Não tinha plano algum de produção; não existiam em sua cabeça diagramas de vendas. Embora quatro anos antes, ele houvesse chegado a Cracóvia com a firme intenção
de ficar rico, agora não alimentava mais nenhuma ambição. Ali, em Brinnlitz, a situação industrial era extremamente precária.
Muitos dos perfuradores, prensas e tornos não haviam ainda chegado e os novos pisos de cimento teriam de ser preparados para suportar o peso das máquinas. O anexo
estava ainda cheio de maquinaria velha de Hoffman. Além disso, por aqueles 800 supostos operários de munição, que tinham acabado de transpor o portão do anexo, Oskar
estava pagando 7.50 RM por dia de mão-de-obra especializada, 6 RM por operários comuns. Isso somava quase US$14.000 por semana para o trabalho masculino; quando
as mulheres chegassem, a quantia ultrapassaria US$18.000. Portanto, Oskar estava cometendo um estrondoso erro comercial mas comemorava o seu erro exibindo um chapéu
tirolês. As ligações sentimentais de Oskar também tinham sofrido alterações.
A Sra. Emilie Schindler viera para Zwittau morar com ele em seu apartamento térreo. Brinnlitz, ao contrário de Cracóvia, ficava muito
perto de sua cidade para permitir a Emilie uma desculpa para sua separação do marido. Para uma católica, a questão agora era formalizar a separação ou recomeçar
a viver com Oskar. Parece ter havido, no mínimo, uma tolerância entre os dois, um grande respeito mútuo. A primeira vista, ela poderia parecer um zero matrimonial,
uma esposa injustiçada que não sabia como resolver o seu dilema. A princípio alguns prisioneiros se preocuparam com o que ela pensaria, quando descobrisse que espécie
de fábrica e que espécie de campo Oskar dirigia.
Não sabiam ainda que Emilie daria a sua discreta contribuição, baseada não em obediência conjugai mas nas suas próprias idéias.
Ingrid viera com Oskar para Brinnlitz a fim de trabalhar na nova fábrica mas estava residindo fora do campo e só permanecia ali no horário de trabalho. Havia um
positivo esfriamento naquela ligação e ela nunca mais tornaria a viver com Oskar. Mas não daria mostra alguma de animosidade e no decorrer dos meses seguintes Oskar
iria freqüentemente visitá-la em seu apartamento. A picante Klonowska, a chique patriota polonesa, ficara para trás em Cracóvia; também naquele caso não parecia
ter havido amarguras. Oskar continuaria em contato com ela durante as visitas a Cracóvia e ela tornaria a ajudá-lo sempre que a SS causasse problemas. A verdade
era que, embora suas ligações com Klonowska e Ingrid estivessem esfriando com muita cordialidade, seria um erro acreditar que ele estivesse se tornando um marido
fiel. No dia da chegada, Oskar disse aos homens que eles podiam confiar na vinda de suas mulheres. Acreditava que elas chegariam com um pouco mais de atraso do que
eles. A jornada das mulheres, contudo, seria diferente. Após uma curta viagem, partindo de Plaszóvia, a locomotiva levou-as, juntamente com centenas de outras prisioneiras,
para dentro do campo de Auschwitz-Birkenau. Quando se abriram as portas dos vagões, elas se viram numa imensa interseção divindindo o campo.
Experientes homens e mulheres da SS, falando com calma, começaram a classificá-las. A seleção das mulheres prosseguiu com aterradora indiferença. Quando uma não
se movia com suficiente rapidez, era espancada com um porrete; o golpe, porém, não tinha nada de pessoal.
Era uma classificação. Para as seções SS do desvio de Birkenau, tratava-se apenas de um tedioso dever. Conheciam todos os apelos, todas as histórias. Conheciam cada
subterfúgio de que alguém quisesse lançar mão.
Sob os holofotes, as mulheres, aturdidas, perguntavam umas às outras o que aquilo significava. Mas mesmo em seu espanto, com os sapatos já se enchendo de lama, que
era o elemento maior de Birkenau, elas tinham consciência de mulheres SS apontando para elas e dizendo a médicos uniformizados que mostrassem algum interesse, "Schindlergruppe!'"
E os bem-trajados jovens médicos se afastavam, deixando-as em paz por algum tempo.
Depois do banho. Algumas delas esperavam ser tatuadas. Sabiam dessa prática em Auschwitz. A SS tatuava o braço das pessoas que pretendia usar. Mas se tencionava
liquidá-las, não se dava a esse trabalho.
O mesmo trem que trouxera as mulheres da lista, transportara também mais cerca de duas mil que, não sendo Schindlerfrauen, passavam pelas seleções normais. Rebecca
Bau, excluída da lista Schindler, tinha passado e recebido um número; a robusta mãe de Josef Bau também ganhara uma tatuagem naquela grotesca loteria de Birkenau.
Uma menina de quinze anos, vinda de Plaszóvia, tinha olhado para a sua tatuagem e ficara encantada porque tinha dois cincos, um três e dois setes - números venerados
no Tashlzg, ou calendário judaico. Com uma tatuagem, podia-se sair de Birkenau e ir para um dos campos de trabalho de Auschwitz, onde pelo menos havia chance de
sobrevivência.
Mas as mulheres Schindler, sem tatuagem, receberam ordem de tornar a vestir-se e foram levadas para uma cabana sem janelas no campo feminino. Ali, no centro do piso,
havia um fogào de ferro encaixado em tijolos. Era o único conforto. Não havia sequer um catre. As Schindlerfrauen teriam de dormir de duas ou de três numa fina enxerga
de palha. O chão de argila era úmido, a água brotava dele e encharcava as enxergas e cobertores esfarrapados. Era como a casa da morte, no coração de Birkenau. Elas
se deitaram ali e cochilaram, geladas e desconfortáveis, naquela extensão de lama.
Era frustrante para quem tinha imaginado um local acolhedor, uma aldeia na Morávia. Era uma cidade enorme mas percebia-se que sua existência era efêmera. Em determinado
dia, mais de 250 mil poloneses, ciganos e judeus ali residiam por um curto espaço de tempo. Havia
milhares mais em Auschwitz I, o primeiro e menor campo, onde morava o Comandante Rudolf Höss. E na grande área industrial chamada
Auschwitz III, mais alguns milhares trabalhavam enquanto tinham
forças. As mulheres Schindler não haviam sido precisamente informadas das estatísticas de Birkenau ou do próprio ducado de Auschwitz.
Contudo, podiam ver, por detrás das bétulas a oeste do enorme conjunto, uma constante fumaça erguendo-se de quatro fornos crema-tórios e numerosas piras. Acreditavam
que agora estavam à deriva e que seriam arrastadas para lá. Mas, nem com toda a capacidade de imaginar e de transmitir boatos, que caracteriza a vida numa prisão,
elas poderiam calcular quantas pessoas seriam ali envenenadas com gases, em um dia, quando o sistema estivesse em pleno funcionamento. O número era - de acordo com
Hóss - nove mil.
As mulheres ignoravam igualmente que tinham chegado a Auschwitz numa ocasião em que o desenvolvimento da guerra e certas negociações secretas entre Himmler e o conde
sueco Folke Bernadotte estavam impondo uma nova direção ao seu prosseguimento. O segredo dos centros de extermínio não pudera ser guardado, pois os russos tinham
escavado o campo de Lublin e encontrado as fornalhas contendo ossos humanos e mais de quinhentos tambores de gás venenoso. Essas descobertas haviam sido publicadas
pela imprensa do mundo inteiro, e Himmler, que queria ser tratado com seriedade, como o óbvio sucessor do Führer depois da guerra, estava disposto a fazer promessas
aos Aliados de que ia cessar o uso de gases venenosos contra os judeus. Mas essa ordem só foi emitida por ele em meados de outubro - não há certeza da data. Uma
cópia foi para o General Pohl em Oranien
Mengele de cabelos prateados adiantou-se para ela e perguntou-lhe com voz macia a idade da filha; depois a esmurrou por ter mentido. Mulheres
que caiam, quando golpeadas nessas inspeções, eram arrastadas por guardas, ainda meio inconscientes, até a cerca eletrificada que circundava o campo e atiradas contra
os arames. Já tinham arrastado Regina até o meio do caminho, quando ela se recuperou e implorou-lhes que não a fizessem morrer eletrificada, que a deixassem voltar
para a sua fileira. Os carrascos a soltaram e, quando ela se esgueirou de volta para o seu lugar, lá estava a sua frágil filha, muda e imobilizada em cima das pedras.
Essas inspeções podiam ocorrer a qualquer hora. As mulheres Schindler foram chamadas uma noite e ficaram de pé na lama, enquanto suas cabanas eram revistadas. A
Sra. Dresner, que certa vez havia sido salva por um jovem OD, saiu da cabana com Danka, sua alta filha adolescente, e ali ficaram naquele estranho lamaçal de Auschwitz
que, como a lendária lama de Flandres, não congelava, quando tudo mais já congelara - as estradas, os telhados, o viajante.
Tanto Danka quanto a Sra. Dresner tinham saído de Plaszóvia com as suas roupas de verão, que eram as únicas que lhes restavam. Danka usava uma blusa, um casaquinho
leve, uma saia marrom. Como começara a nevar naquela tarde, a Sra. Dresner tinha sugerido a Danka que rasgasse um pedaço do seu cobertor e o usasse enrolado debaixo
da saia. Mas, durante a inspeção da cabana, o SS descobriu o cobertor rasgado.
O oficial, que se achava diante das mulheres Schindler, chamou a Alteste do grupo - uma holandesa que até a véspera nenhuma delas conhecia - e disse que ela seria
fuzilada juntamente com qualquer outra prisioneira que estivesse usando um pedaço de cobertor sob a roupa. A Sra. Dresner sussurrou a Danka que se desvencilhasse
do pedaço de cobertor e que ela o levaria de volta para a cabana. Era uma idéia viável. A choupana ficava ao nível do chão. Uma mulher da fila de trás podia esgueirar-se
pela porta adentro. Como em outra ocasião, Danka obedecera sua mãe na questão do esconderijo na parede na Rua Dabrowski, em Cracóvia, obedeceu agora, puxando de
sob a saia a tira do cobertor mais ordinário de toda a Europa. De fato, enquanto a Sra. Dresner estava na cabana, o oficial da SS passou pela fila e scolheu a esmo
uma mulher da idade da Sra. Dresner - provavelmente a Sra. Sternberg - e mandou que a levassem para algum lugar pior do campo, ura lugar onde não mais era possível
cogitar da Morávia. Talvez as outras mulheres enfileiradas não quisessem compreender
o que significava aquele simples ato de eliminação. Na verdade, era uma prova de que nenhum grupo especial das chamadas "prisioneiras industriais" estava a salvo
em Auschwitz. Nenhuma identificação das Schindlerfrauen as manteria imunes por muito tempo. Já houvera outros grupos de "prisioneiros industriais" que tinham desaparecido
em Auschwitz. A Seção W do General Pohl tinha mandado de Berlim, no ano anterior, trens carregados de operários judeus qualificados. 1. G. Farben, precisando de
mão-de-obra, fora informado pela Seção W que podia selecionar o seu pessoal naqueles transportes.
E, efetivamente, a Seção W sugerira ao Comandante Hóss que descarregasse os trens na fábrica de I. G. Farben, a certa distância dos crematórios em Auschwitz-Birkenau.
Dos 1.750 prisioneiros, todos homens, do primeiro trem, mil foram imediatamente eliminados nas câmaras de
gás. Dos quatro mil nos próximos quatro transportes de trens, 2.500 foram imediatamente para as "casas de banho". Se a administração de Auschwitz não se detinha
para I. G. Farben e o Departamento W, não iria ter escrúpulos com relação às mulheres de um obscuro fabricante de panelas.
Morar em cabanas, como as das mulheres Schindler, eqüivalia a viver ao ar livre. As janelas não tinham vidraças e serviam apenas para amparar um pouco as golfadas
de ar frio sopradas da Rússia. A maioria das mulheres sofria de disenteria. Estropiadas por eólicas, elas se arrastavam na lama, em seus tamancos, para o tambor
de aço que lhes servia de latrina. A mulher que cuidava da limpeza do tambor recebia pelo seu serviço um prato de sopa extra. Mila Pfefferberg, tomada por uma crise
de disenteria, saiu uma noite cambaleando da sua cabana. A mulher de plantão - que não era má pessoa e que Mila conhecera em menina - insistiu que ela não podia
usar o tambor, teria de esperar pela próxima prisioneira que viesse utilizá-lo e então Mila ajudaria a outra a esvaziá-lo. Mila argumentou mas não conseguiu demover
a mulher. Sob as frias estrelas, aquele serviço do tambor se tornara uma espécie de profissão; havia regulamentos. Com o tambor como pretexto, a mulher de plantão
passara a acreditar que ordem, higiene e sanidade eram possíveis.
A mulher seguinte chegou arquejante, curvada e desesperada. Era muito jovem. Nos pacíficos dias de Lodz, Mila a tinha conhecido como uma respeitável senhora casada.
Assim as duas obedeceram e arrastaram o tambor uns 300 metros pela lama. A moça que ajudava Mila na penosa tarefa perguntou: "Onde está Schindler agora?"
Nem todas as mulheres Schindler faziam essa pergunta ou a faziam naquele tom ferozmente irônico. Havia uma operária da Emalia, chamada Lusia, uma viúva de vinte
e dois anos, que estava sempre repetindo:
"Vocês vão ver, vai tudo dar certo. Um dia ainda vamos sentir o calor da sopa de Schindler em nosso estômago." Ela própria não sabia por que continuava repetindo
essas afirmações. Na Emalia, nunca fora inclinada a fazer planos. Trabalhava no seu turno, tomava sua sopa e dormia. Jamais predissera eventos grandiosos. Sempre
se contentara com a sobrevivência do momento. Agora estava doente e não havia explicação para as suas profecias. O frio e a fome a estavam
desgastando; no entanto, surpreendia-se a si mesma por repetir as promessas de Oskar.
Mais tarde, durante sua permanência em Auschwitz, elas foram removidas para uma caserna mais próxima dos crematórios e não podiam saber se iriam para os chuveiros
ou para as câmaras de gás.
Entretanto, Lusia continuou repetindo a sua mensagem de esperança. Ainda assim, os azares do campo tendo-as impelido para aquele limite geográfico do mundo, aquele
pólo, aquele fosso, o desespero não se fazia sentir muito entre as Schindlerfrauen. Ainda se podiam ver mulheres entretidas com conversas de receitas de cozinha
de antes da guerra. Quando os homens chegaram a Brinnlitz, o abrigo era apenas um arcabouço. Nos dormitórios, ainda sem leitos, tinha sido espalhada palha no chão.
Mas o ambiente era aquecido pelo vapor das caldeiras. Naquele primeiro dia, tampouco havia cozinheiros. Sacos de nabos se empilhavam no que seria a cozinha e os
homens os devoraram crus. Mais tarde foi feita uma sopa e assado o pão e o engenheiro Finder começou a determinar os encargos de cada um. Mas desde o início, a não
ser que houvesse algum SS vigiando, o trabalho era vagaroso. É misterioso como um grupo de prisioneiros podia perceber que o Herr Direktor não mais tomava parte
em nenhum esforço de guerra. O ritmo de trabalho em Brinnlitz era astucioso. Como Oskar não parecesse interessado na questão de produção, a lentidão passou a ser
a vingança dos prisioneiros, o seu protesto.
Era uma coisa maravilhosa aquele atraso do trabalho. Por toda parte na Europa, os escravos trabalhavam até o limite de suas 600 calorias por dia, na esperança de
conquistar as boas graças de algum chefe de turma e atrasar a transferência para o campo da morte. Mas ali, em Brinnlitz, havia a intoxicante liberdade de usar a
pá em ritmo lento e ainda assim sobreviver.
Essa inconsciente política de atuação nào se evidenciou nos primeiros dias. Havia ainda muitos prisioneiros ansiosos por suas mulheres. Dolek Horowitz tinha a mulher
e a filha em Auschwitz; os irmãos Rosner as suas mulheres. Pfefferberg sabia o impacto que algo de tão vasto e terrível, como Auschwitz, causaria em Mila. Jacob
Sternberg e seu filho adolescente preocupavam-se com a Sra. Clara Sternberg. Pfefferberg recorda-se de homens agrupando-se em redor de Schindler, na oficina da fábrica,
perguntando-lhe onde estavam suas respectivas mulheres.
- Vou trazê-las para cá - retorquia Schindler mas não entrava em explicações. Não dizia abertamente que a SS em Auschwitz talvez precisasse ser subornada. Não contava
que tinha enviado a lista com os nomes das mulheres ao Coronel Erich Lange ou que ele e Lange pretendiam ambos trazê-las para Brinnlitz de acordo com a lista. Nada
disso. Simplesmente: "Vou trazê-las para cá."
Aguarnição da SS, que se instalou em Brinnlitz naqueles dias, deu a Oskar motivo para alguma esperança. Eram reservistas de meia-idade, convocados para permitir
que os SS mais jovens pudessem seguir para alinha de frente. Não havia tantos lunáticos como em Plaszóvia e Oskar
sempre os mantinha amenizados com as especialidades de sua
cozinha - comida simples porém abundante. Numa visita ao quartel dos reservistas, ele fez o seu habitual discurso sobre as capacidades especializadas
dos seus prisioneiros, a importância das suas manufaturas. Disse que granadas antitanques e invólucros para um projétil ainda
estavam na lista secreta. Pediu que a guarnição evitasse penetrar nas oficinas
da fábrica, pois isso iria perturbar a atividade dos trabalhadores. Oskar podia ler nos olhos daqueles homens o pensamento de que aquela cidade tranqüila lhes convinha.
Imaginavam a si mesmos esperando ali que terminasse o cataclismo. Não queriam se intrometer nas oficinas, como um Goeth ou um Hujar. Não queriam que Herr Direktor
desse queixa deles.
Todavia, o oficial de comando da guarnição ainda não chegara. Estava vindo do seu posto anterior no campo de trabalho em Budzyn, que, até os recentes avanços russos,
tinha fabricado peças de aviões de bombardeio. Oskar sabia que ele devia ser mais jovem, mais atento,
mais intrometido. O provável era que não aceitasse muito facilmente que lhe fosse negado o acesso ao campo.
Enquanto supervisionava as obras do preparo de pisos de cimento, da abertura de rombos no teto para se encaixarem as grandes máquinas Hilos, ocupado com as providências
para abrandar os NCOs e lutando contra o constrangimento íntimo de se readaptar à vida matrimonial com Emilie, Oskar foi preso uma terceira vez.
A Gestapo apareceu na hora do almoço. Oskar não estava em seu gabinete, pois seguira de carro naquela manhã para Brno, a fim de tratar de um negócio. Um caminhão
vindo de Cracóvia acabara de chegar ao campo carregado de algumas riquezas portáteis de Herr Direktor - cigarros, caixas de vodca, conhaque, champanha. Certas pessoas
diriam mais tarde que o carregamento era de propriedade de Goeth, que Oskar concordara em guardar na Morávia em troca do apoio de Goeth aos seus planos em Brinnlitz.
Como fazia um mês que Goeth estava preso e sem autoridade, os artigos de luxo no caminhão podia ser considerados de propriedade de Oskar.
Era o que pensavam os homens que estavam descarregando o caminhão e que ficaram nervosos à vista dos membros da Gestapo do pátio da fábrica. Gozavam de privilégios
de mecânicos e assim lhes ia permitido guiar o caminhão até um riacho no sopé de uma colina, onde jogaram nas águas as caixas de bebida. Os duzentos mil cigarra
foram escondidos sob um grande transformador na usina de força.
Era significativo que houvesse tanto cigarro e tanta bebida no caminhão, sinal de que Oskar, sempre dado a negociar mercadorias, tencionava agora dedicar suas atividades
financeiras ao mercado negro.
O caminhão estava sendo levado de volta à garagem, quando soou a sirene para a sopa do meio-dia. Em dias anteriores o Herr Diretor tinha comido com os prisioneiros;
os mecânicos esperavam quede" fizesse de novo nesse dia, pois assim poderiam explicar-lhe o que acontecera com o precioso carregamento do caminhão.
Efetivamente, Oskar voltou de Brno pouco depois mas foi detido no portão por um dos homens da Gestapo, postado ali com a mão erguida e que lhe ordenou que saltasse
imediatamente do carro.
- Esta é minha fábrica - um prisioneiro ouviu Oskar responder, irritado. - Se quer falar comigo, pode entrar no meu carro. Oi então, siga-me até o meu gabinete.
Ele entrou guiando no pátio, com os dois homens da Gestapo caminhando rapidamente de cada lado do veiculo.
Em seu gabinete, os homens perguntaram a Oskar sobre suas conexões com Goeth, com as pilhagens de Goeth. Ele respondeu que tinha ali umas tantas malas pertencentes
a Goeth e que as estava guardando, a seu pedido.
Os homens do Escritório V pediram para ver as malas; Oskar levou os ao seu apartamento, onde os apresentou formal e friamente a Frau Schindler. Depois foi buscar
as malas e abriu-as. Estavam cheias de roupas civis e velhas fardas do tempo em que Amon era um esbelto NCO SS. Depois de revistar as malas, os homens deram voz
de prisão Oskar.
Emilie, então, tornou-se agressiva. Eles não tinham o direito, dá-se ela, de levar o seu marido, a não ser que explicassem por que o estavam prendendo. As autoridades
em Berlim não iam ficar satisfeitas cai aquilo, acrescentou.
Oskar aconselhou-a a calar-se e disse-lhe apenas que telefona" à amiga dele, Klonowska, e lhe pedisse para cancelar os seus compromissos marcados.
Emilie sabia o que o recado significava. Klonowska repetiria a sua atuação telefônica, ligando para Martin Plathe em Breslau, para o pessoal do General Schindler,
todos eles gente importante. Um dos homens do Escritório V colocou algemas nos pulsos de Oskar. Depois ele foi conduzido de carro para a estação de Zwittau e escoltado
no trem até Cracóvia.
A impressão que se tem é que essa prisão o assustou mais do que as duas anteriores. Não há histórias de coronéis da SS apaixonados, que tivessem partilhado uma cela
com ele e bebido a sua vodca. Contudo, mais tarde, Oskar recordou-se de alguns detalhes. Ao ser escoltado pelos
homens do Escritório V pela grande loggia neoclássica da estação central de Cracóvia, um homem chamado Huth aproximou-se do grupo. Era um engenheiro civil de Plaszóvia,
que sempre se mostrara obsequioso para com Oskar, mas tinha a reputação de ter praticado muitos atos secretos de bondade. Talvez tenha sido um encontro acidental
mas dá a impressão de que Huth podia estar trabalhando em combinação com Klonowska. Huth insistiu em apertar a mão alegemada de Oskar. Um dos homens do Escritório
V protestou.
-Acha que deve realmente apertar a mão de prisioneiros? - perguntou ele a Huth.
Imediatamente o engenheiro fez um discurso em favor de Oskar. Esse era o Herr Direktor Schindler, um homem muito respeitado em toda Cracóvia, um importante industrial.
-Nunca vou poder pensar nele como um prisioneiro - acrescentou Huth. Qualquer que fosse o significado desse encontro, Oskar foi colocado num carro e levado através
da sua tão conhecida cidade até a Rua Pomorska. Deixaram-no num quarto como o que ocupara durante sua primeira prisão, com uma cama, uma cadeira e uma pia, mas com
grades na janela. Oskar estava preocupado, embora demonstrasse uma tranqüilidade de urso. Em 1942, quando lhe tinham dado voz de prisão um dia depois de ele ter
completado trinta e quatro anos, os rumores de que havia câmara de tortura nos porões da Rua Pomorska eram indefinidos e aterradores. Agora não eram mais indefinidos.
Sabia que o Escritório V o torturaria, se estivesse realmente decidido a incriminar
Amon. Nessa noite Herr Huth veio visitá-lo, trazendo numa bandeja um jantar e uma garrafa de vinho. Huth tinha falado com Klonowska. O próprio Oskar nunca esclareceu
se Klonowska arranjara de antemão aquele "encontro casual". De qualquer modo, Huth disse-lhe que Klonowska
estava apelando para os seus velhos amigos. No dia seguinte, ele foi interrogado por um grupo de doze investigadores, um deles, juiz do Tribunal da SS. Oskar negou
que tivesse dado dinheiro para que o comandante, nas palavras da transcrição do testemunho de Amon, "tivesse condescendência com os judeus".
Eu posso ter-lhe dado dinheiro como empréstimo - admitiu Oskar.
Por que um empréstimo? - quiseram saber os investigadores. Dirijo uma indústria de guerra essencial - replicou Oskar, repetindo o seu velho refrão. - Tenho uma turma
da mão-de-obra especializada. Se meus trabalhadores são perturbados, é prejudicial para mim, para a Inspetoria de Armamentos, para o esforço de guerra. Quando eu
descobria que no meio dos prisioneiros em Plaszóvia havia um metalúrgico competente para um trabalho especializado, então naturalmente pedia-o ao comandante. Eu
tinha pressa e não queria me sujeitar a burocracias. O meu interesse era a produção e o que significava para mim e para a Inspetoria de Armamentos. Em consideração
à ajuda prestada pelo Herr Commandam nessas questões, é possível que eu lhe tenha feito um empréstimo. Essa defesa envolvia certa deslealdade para com Amon, seu
antigo
anfitrião. Mas Oskar não teria hesitado. Com os olhos brilhando de transparente franqueza, tom baixo, a ênfase discreta - sem dizer palavras precisas - deu a entender
aos investigadores que o dinheiro lhe fora extorquido. Mas isso não os impressionou, e eles tornaram a trancafiá-lo na cela.
O interrogatório prosseguiu em um segundo, terceiro e quarto dias. Ninguém o ameaçou mas os policiais se mostraram irredutíveis. No final, teve de negar qualquer
espécie de amizade com Amon. Não foi preciso um esforço muito grande; de qualquer modo, ele detestava profundamente o comandante.
-Não sou um homossexual - defendeu-se ele para os cavalheiros do Escritório V, aproveitando-se de boatos que ouvira sobre Goeth e suas jovens ordenanças.
O próprio Amon nunca compreenderia que Oskar o desprezava e estava disposto a incriminá-lo perante o Escritório V. Amon sempre tivera ilusões a respeito de amizades.
Em seus momentos sentimentais, acreditava que Mietek Pemper e Helen Hirsch amavam o seu patrão. Os investigadores provavelmente não o informariam de que Oskar estava
na Rua Pomorska e teriam ouvido, sem dizer palavra, Amon insistindo com eles: "Chamem o meu velho amigo Schindler. Ele poderá depor a meu favor."O que mais ajudou
Oskar, quando se viu diante dos investigadores, foi provar que tinha tido poucas conexões comerciais com ocomandante. Embora às vezes houvesse aconselhado Amon ou
lhe indicado contatos, jamais participara de transação alguma, nunca recebera um zloty com as vendas de Amon das rações da prisão, ou anéis da oficina de ourivesaria,
ou roupas da fábrica de confecções ou móveis da seção de estofamento. Deve também tê-lo ajudado o fato de suas mentiras parecerem tão fracas, até mesmo para policiais,
e de quando ele dizia a verdade ser irresistivelmente convincente. Nunca dava a impressão de estar grato por acreditarem na sua palavra. Por exemplo, quando os cavalheiros
do Escritório V pareceram começar a admitir a possibilidade de haver alguma verdade na alegação de que o empréstimo de 80 mil RM fora concedido na base da extorsão,
Oskar perguntou-lhes se, no final, o dinheiro lhe seria devolvido, o dinheiro que pertencia a Herr Direktor Schindler, o impecável industrial. Um terceiro fator
a favor de Oskar era que suas credenciais provaram ser autênticas. O Coronel Erich Lange, quando o Escritório V lhe telefonou, insistiu na importância de Schindler
para o esforço de guerra. Sussmuth, consultado pelo telefone em Troppau, disse que a fábrica de Oskar estava envolvida na produção de "armas secretas", não era,
como veremos mais adiante, uma declaração falsa. Mas, quando dita incisivamente, era enganadora e de peso desvirtuado. Pois o Führer prometera "armas secretas".
A expressão era carismática e agora oferecia uma proteção a Oskar. Contra uma expressão como "armas secretas", qualquer onda de protesto dos burgueses de Zwittau
não produzia efeito algum.
Mas, mesmo para Oskar, a sua prisão oferecia perigos. Por volta do quarto dia, um dos interrogadores visitou-o não para interrogá-lo mas para cuspir nele. O cuspe
escorreu pela lapela da roupa de Oskar. O homem vociferou contra ele, chamando-o de amigo de judeus, de ir para a cama com judias. Era uma tática bem diferente do
legalismo dos interrogatórios. Mas Oskar não tinha certeza se aquilo não fora planejado, se não representava a verdadeira denúncia que impulsionara a sua prisão.
Após uma semana, Oskar enviou uma mensagem, transmitida por Huth e Klonowska, para o Oberführer Scherner. Na mensagem dizia que o Escritório V estava pressionando-o
de tal maneira, que ele achava que não poderia proteger por muito mais tempo o antigo chefe de polícia. Scherner abandonou sua missão de contra-atacar guerrilheiros
(que em breve o mataria) e compareceu à cela de Oskar no dia seguinte. Era um escândalo o que o Escritório estava fazendo, disse Scherner. E quanto a Amon?, perguntara
Oskar, calculando que Scherner iria dizer que era também um escândalo.
- Ele merece de sobra o castigo - replicara Scherner. Parecia que todo mundo estava desertando Amon. - Não se preocupe - tinha acrescentado Scherner, antes de sair.
- Vamos tirá-lo daqui.
Na manhã do oitavo dia, eles o soltaram. Oskar tratou de partir imediatamente - dessa vez, sem exigir transporte. Bastava-lhe ver-se solto na fria calçada. Atravessou
Cracóvia de bonde e foi a pé até a sua antiga fábrica em Zablocie. Ainda havia ali uns poucos zeladores poloneses; do seu gabinete no andar de cima ele telefonou
para Brinnlitz e avisou a Emilie que estava livre.
Mosh Bejski, um projetista de Brinnlitz, lembra-se da confusão, enquanto Oskar estava fora - os boatos, as perguntas a respeito do que significava aquela prisão.
Mas Stern, Maurice Finder, Adam Garde e outros tinham consultado Emilie sobre a comida, a distribuição de trabalho, a provisão de leitos no campo. Foram os primeiros
a descobrir que Emilie não era uma mera figura de proa. Não era uma mulher feliz e sua infelicidade tornara-se mais amarga com a prisão de Oskar pelo Escritório
V. Pareceu-lhe uma injustiça da sorte a SS vir intrometer-se na reunião ainda não bem concretizada do casal. Mas a Stern e aos outros parecia evidente que ela não
estava ali para cuidar do pequeno apartamento do andar térreo simplesmente por dever matrimonial. Havia também outro motivo, que se poderia chamar de compromisso
ideológico. Numa parede do apartamento via-se uma imagem de Jesus, com o coração exposto e em chamas. Stern vira a mesma
reprodução em casas de católicos poloneses. Mas não havia nenhum ornamento semelhante em qualquer dos dois apartamentos de Oskar em Cracóvia. O Jesus do coração
exposto nem sempre era tranqüilizador, quando visto em cozinhas polonesas. Mas no apartamento de Emilie era o símbolo de uma promessa pessoal: a promessa de Emilie.
Em princípios de novembro, Oskar voltou de trem. Estava com a barba por fazer e cheirava mal, depois de tantos dias na prisão. Espantou-se, ao saber que as mulheres
continuavam em Auschwitz-Birkenau. No planeta Auschwitz, onde as mulheres Schindler moviam-se com tanta
cautela, com tanto medo como qualquer viajante espacial, Rudolf Hõss reinava como o fundador, o construtor do campo - seu gênio supremo. Leitores do romance de William
Styron, A Escolha de Sofia,* o identificavam como o patrão de Sophie. Um patrão bem diferente do que Amon fora para Helen Hirsch; mais imparcial, polido, equilibrado;
ainda assim, porém, o infatigável sacerdote daquela província caníbalesca. Embora na década de 1920 ele tivesse assassinado um professor do Ruhr, por ter denunciado
um ativista alemão, e cumprido pena pelo crime, nunca assassinou com as próprias mãos prisioneiro algum de Auschwitz. Considerava-se um técnico. Era apologista das
cápsulas à base de cianureto, que soltavam vapores de gás, quando expostas ao ar, e travara uma longa contenda pessoal e científica com seu rival, o Kriminalkommissar
Christian Wirth, que tinha jurisdição sobre o campo de Belzec e era chefe da corrente partidária do monóxido de carbono. Tinha havido um dia terrível em Belzec,
testemunhado por um oficial químico da SS, Kurt Gerstein, quando o método do Kommissar
Wirth levara três horas para liquidar um grupo de judeus atulhados nas câmaras. Uma prova de que Hõss era a favor de uma tecnologia mais eficiente é parcialmente
confirmada pelo crescimento contínuo de Auschwitz e o declínio de Belzec.
Em 1943, quando Rudolf Hõss deixou Auschwitz para ocupar o posto de Chefe Interino da Seção D em Oranienburg, o local já se tornara em algo mais do que um campo.
Era mais do que uma excelente organização. Era um fenômeno. O mundo moral parecia não ter-se deteriorado tanto quanto se invertera, transformado num buraco negro,
sob a pressão de toda a malícia humana - um local em que tribos e histórias eram absorvidas e vaporizadas e a linguagem passava a ter novos significados. As câmaras
subterrâneas eram chamadas "porões de desinfecção", as câmaras ao nível do solo "casas de banho", e o Oberscharführer Moll, cuja função era ordenar a inserção dos
cristais azuis para dentro dos tetos dos "porões", costumava gritar para os seus assistentes.
"Muito bem, agora vamos lhes dar algo para mastigar!"
Hõss voltara a Auschwitz em maio de 1944 e reinava sobre o campo todo na ocasião em que as mulheres Schindler estavam ocupando uma caserna em Birkenau, bem junto
do posto do humorista Moll. Segundo a mitologia Schindler, foi com o próprio Hõss, que Oskar batalhou
pelas suas 300 mulheres. Certamente Oskar teve conversas telefônicas e outros entendimentos com Hõss. Mas tinha também de tratar com o Sturmbannführer Fritz Hartjenstein,
Comandante de Auschwitz II - isto é, de Auschwitz-Birkenau - e com o Untersturmführer Franz Hõssler, o encarregado, naquela grande cidade, do subúrbio das mulheres.
O certo é que Oskar agora mandou uma moça com uma valise cheia de bebidas, presunto e diamantes para negociar com aqueles funcionários.
Alguns dizem que Oskar, depois de mandar a moça, fez ele próprio uma visita, levando consigo um associado, influente oficial na S. A. (Sturmabteilung ou Tropa de
Assalto), o Standartenführer Peltze, que, segundo ele revelou mais tarde a amigos, era um agente britânico. Outros alegam que Oskar se manteve afastado de Auschwitz
por uma questão de estratégia e preferiu ir a Oranienburg e à Inspetoria de Armamentos em Berlim, para tentar pressionar Hóss por outros lados.
A história que Stern iria narrar publicamente, anos mais tarde, num discurso em Tel Aviv é a seguinte: depois de Oskar sair da prisão, Stern procurou-o e - "pressionado
por alguns dos meus camaradas" - implorou-lhe que fizesse algo decisivo a respeito das mulheres atoladas em Auschwitz. Durante essa conferência, uma das secretárias
de Oskar entrou na sala - Stern não mencionou o nome. Schindler olhou para a moça e apontou para um dos próprios dedos, em que brilhava um anel com um grande diamante.
Perguntou-lhe se ela gostaria de possuir aquela vistosa jóia. A moça demonstrou vivo interesse, segundo Stern, que cita as palavras de Oskar: "Pegue esta lista de
mulheres; arrume uma valise com a melhor comida e a melhor bebida que encontrar
na minha cozinha. Depois siga para Auschwitz. Deve saber que o comandante tem uma queda por garotas bonitas. Se tiver sucesso na sua missão, ganhará este anel.
E outras coisas mais."
E uma cena digna de um daqueles episódios do Velho Testamento, quando, pelo bem de uma tribo, uma mulher é oferecida ao invasor. E também uma cena da Europa
Central, com seus grandes diamantes coruscantes e suas transações com a carne de uma mulher. De acordo com o que conta Stern, a secretária partiu para Auschwitz.
Como dois dias depois ela ainda não tivesse voltado, o próprio Schindler - acompanhado do obscuro Peltze - foi resolver o assunto.
Segundo a mitologia Schindler, Oskar realmente mandou uma das suas amantes para dormir com o comandante - fosse ele Hóss,
Hartjenstein ou Hóssler - e deixar diamantes no travesseiro. Alguns, como Stern, dizem que foi "uma das secretárias", mas outros citam o nome de uma Aufseher, bonita
lourinha da SS, naqueles últimos tempos a amante de Oskar e servindo na guarnição de Brinnlitz. Mas, ao que parece, essa moça continuava ainda em Auschwitz, juntamente
com as Schindlerfrauen.
Segundo a própria Emilie Schindler, a emissária era uma jovem de vinte e dois ou vinte e três anos, natural de Zwittau, e seu pai fora um velho amigo da família
Schindler. Ela voltara recentemente da Rússia ocupada, onde tinha trabalhado como secretária na administração alemã. Era uma boa amiga de Emilie e se oferecera como
voluntária para a tarefa. É pouco provável que Oskar tivesse pedido um sacrifício sexual de uma amiga da família. Embora ele fosse um pilantra nessas questões, esse
lado da história é certamente um mito. Não sabemos até onde foram as transações da moça com os oficiais de Auschwitz. Sabemos apenas que ela penetrou naquele reino
de horrores e atuou corajosamente. Oskar mais tarde contou que, em suas negociações com os dirigentes da necrópole Auschwitz, mais uma vez eles tentaram convencê-lo
de que as mulheres, depois de passarem algumas semanas ali, nào valiam mais grande coisa para o trabalho. Por que ele não esquecia aquelas suas trezentas Schindlerfrauerí?
Não seria difícil substituí-las por outras trezentas do infindável rebanho que chegava constantemente a Auschwitz. Em 1942, um NCO SS lhe fizera a mesma proposta
na estação de Prokocim: "Não vale a pena insistir só no nome dessas mulheres, Herr Direktor."
Agora, como em Prokocim, Oskar repetiu a sua costumeira alegação.
Há no grupo técnicas insubstituíveis na manufatura de armas. Eu mesmo as treinei durante anos. Elas são operárias especializadas, como não podem ser facilmente encontradas.
Os nomes eu sei. Um momento - disse o oficial. - Vejo aqui na lista uma menina
de nove anos, filha de uma tal Phila Rath. E mais uma menina de onze anos, filha de Regina Horowitz. Está querendo me dizer que uma menina de nove e outra de onze
anos são especialistas em munições?
-Dão polimento em granadas de 45 milímetros - retorquiu Oskar.
- Foram selecionadas por causa de seus dedos compridos, que podem atingir o interior da granada de maneira que a maioria dos adultos não consegue.
Tal conversa, em apoio à moça amiga da família, era mantida por Oskar em pessoa ou por telefone. Oskar transmitia notícias sobre as negociações ao círculo mais íntimo
dos seus prisioneiros, que se encarregavam de passá-las aos homens nas oficinas. A alegação de Oskar de que precisava de crianças para polir o interior das granadas
antitan-ques era uma farsa escandalosa. Mas ele já a usara mais de uma vez. Em 1943, uma órfã chamada Anita Lampel foi chamada uma noite à Appellplatz de Plaszóvia
e lá deparara com Oskar discutindo com uma mulher de meia-idade, a Alieste do campo das mulheres, que argumentava, usando mais ou menos as mesmas palavras que Hõss/Hõssler
diriam depois, em Auschwitz:
- Não me venha com essa de que precisa de uma menina dequatorze anos para a Emalia. Não pode afirmar que o Comandante Goeth permitiu colocar uma menina dessa
idade no seu grupo para a Emalia. - (A Altesle temia, naturalmente, que, se a lista de prisioneiros para a Emalia tivesse sido adulterada, ela é quem seria a culpada.)
Naquela noite, em 1943, Anita Lampel ouvira, atônita, Oskar, que jamais vira as suas mãos, alegar que ele a escolhera pelo valor industrial do comprimento de seus
dedos, e que o Herr Commandant dera a sua aprovação. Anita Lampel estava em Auschwitz, mas agora era uma moça alta e não mais precisava da alegação dos dedos compridos,
que passou a ser usada em favor das filhas da Sra. Horowitz e da Sra. Rath.
O contato de Schindler tivera razão em dizer que as mulheres haviam
perdido quase por completo o seu valor industrial. Nas inspeções, mulheres jovens como Mila Pfefferberg, Helen Hirsch e sua irmã não podiam evitar que as eólicas
da disenteria as deixassem curvadas e envelhecidas. A Sra. Dresner perdera todo o apetite, até mesmo pela sopa de ersatz. Danka não conseguia convencer sua mãe a
se aquecer um pouco, ingerindo-a. Isso significava que ela logo se tornaria uma Mussulman. O termo era uma gíria do campo, derivada do que as pessoas se lembravam
de ter visto em jornais cinematográficos sobre a fome em países mulçumanos. O nome era dado às prisioneiras, que cruzavam a linha que separava os vivos esfaimados
dos praticamente mortos.
Clara Sternberg, de quarenta e poucos anos, foi isolada do grupo Schindler e transferida para um local, que se poderia descrever como uma cabana Mussulman. Ali,
cada manhã, as mulheres moribundas eram enfileiradas diante da porta e se procedia a uma seleção. Às vezes, era Mengele quem as examinava. Das 500 mulheres nesse
novo grupo de Clara Sternberg, podiam ser apartadas umas cem em determinado dia; em outro dia, 50 mulheres. Coloriam o rosto com a argila de Auschwitz e, se possível,
mantinham as costas retas. E era preferível engasgar a tossir...
Foi depois de uma dessas inspeções que Clara sentiu que não lhe restavam mais reservas para continuar a esperar, para correr o risco diário. Tinha em Brinnlitz um
marido e um filho adolescente; agora, porém, eles lhe pareciam mais remotos do que os canais do Planeta Mane. Não podiam imaginar Brinnlitz, ou o marido e o filho
vivendo lá. Então saiu cambaleando pelo campo das mulheres à procura dos fios elétricos. Quando da sua chegada, tivera a impressão de que as cercas eletrificadas
estavam por toda parte. Agora, que precisava delas, não conseguia encontrá-las. Cada vez que dobrava uma esquina, via-se em outra rua enlameada, que a frustrava
com as suas cabanas igualmente miseráveis. Quando viu uma conhecida de Plaszóvia, uma cracoviana como ela própria, Clara se deteve. "Onde fica a cerca elétrica?",
perguntou à mulher. A pergunta parecia razoável à sua mente perturbada e Clara não tinha dúvida de que a amiga, se tivesse algum sentimento de fraternidade, iria
apontar-lhe o caminho para a cerca. A resposta que a mulher deu a Clara era igualmente insana mas tinha um ponto de vista firme, um equilíbrio, um cerne perversamente
lógico.
- Não se mate na cerca, Clara - insistiu a mulher. - Se o fizer, nunca irá saber o seu destino.
Aquele argumento sempre fora o mais poderoso junto a suicidas em potencial. Se você se matar, nunca irá saber como terminou a história.
Clara não tinha maior interesse na história. Mas, de certa forma, a argumentação surtiu efeito. Ela recuou; quando voltou à sua cabana, sentiu-se mais perturbada
do que quando saíra à procura da cerca. Mas a amiga de Cracóvia - com as suas palavras - conseguira que ela eliminasse do pensamento o suicídio como uma opção. Algo
de terrível aconteceu em Brinnlitz: Oskar, o viajante moraviano, se ausentara. Estava negociando com panelas e diamantes, bebidas e charutos, por toda parte na província.
Algumas das mercadorias eram cruciais. Biberstein fala dos remédios e instrumentos cirúrgicos que chegavam ao Krankenstube, em Brinnlitz. Nenhum desses últimos artigos
era de distribuição normal. Oskar deve ter negociado os remédios com os depósitos da Wehrmacht, ou talvez com a farmácia de um dos hospitais maiores em Brno. Qualquer
que fosse a causa de sua ausência, ele estava fora quando um inspetor de Gróss-Rosen chegou a Brinnlitz e visitou a oficina com o Untersturmführer Josef Liepold,
o novo comandante, sempre disposto a aproveitar qualquer chance para se intrometer na fábrica. O inspetor trazia ordens de Oranienburg de passar em revista os subcampos
de Grõss-Rosen, recolhendo as crianças para serem usadas nas experiências científicas do Dr. Josef Mengele, em Auschwitz. Olek Rosner
e seu pequeno primo Richard Horowitz, que acreditavam não necessitar ali de um esconderijo, brincavam correndo um atrás do outro ao redor do anexo e em meio de máquinas
de tecelagem abandonadas. Também se achava nas imediações o filho do Dr. Leon Gross, o médico que tinha tratado da recente diabetes de Amon, que ajudara o Dr. Blancke
na Aktion de Saúde e que tinha ainda outros crimes pelos quais responder. O inspetor observou ao Untersturmführer Liepold que aqueles meninos não eram, evidentemente,
operários essenciais de munição. Liepold - baixo, moreno, não tão doido quanto Amon - era ainda assim um oficial convicto da SS e não se deu ao trabalho de defender
os garotos.
Mais adiante, durante a inspeção, o filho de nove anos de Roman Ginter foi descoberto. Ginter conhecia Oskar desde o tempo em que o gueto fora fundado, pois fornecera
sucata da Emalia à metalúrgica de Plaszóvia. Mas o Untersturmführer Liepold e o inspetor não tomaram
conhecimento de quaisquer relações especiais. O filho de Ginter foi mandado sob escolta para o portão juntamente com os outros meninos. O filho de Francês Spira,
com dez anos e meio de idade, mas alto e aparentando uns quatorze anos, estava nesse dia trabalhando no alto de uma comprida escada, limpando as janelas de um segundo
andar, e escapou do reide.
As ordens eram para que também fossem arrebanhados os pais dos meninos, talvez porque isso anularia o risco deles se revoltarem dentro dos subcampos. Portanto, Rosner,
o violinista, Horowitz e Roman Ginter foram presos. O Dr. Leon Gross correu à clínica para negociar com a SS. Estava rubro de indignação. O esforço era para provar
àquele inspetor de Grõss-Rosen que ele estava lidando com um prisioneiro responsável, um amigo do sistema. O esforço de nada adiantou. Um SS Umerscharführer, com
uma arma automática, recebeu a missão de escoltá-los a Auschwitz.
O grupo de pais e filhos viajou de Zwittau até Katowice, na Alta Silésia, em um trem de passageiros comum. Henry Rosner esperava hostilidade dos outros passageiros.
Em vez disso, uma mulher atravessou o vagão e acintosamente deu a Olek e a cada um dos outros um bico de pão e uma maçã, o tempo todo de olhos pregados no sargento,
desafiando-o a reclamar. O Umerscharführer, porém, tratou-a com polidez formal. Mais tarde, quando o trem parou em Usti, ele deixou os prisioneiros sob a guarda
de seu auxiliar e dirigiu-se para o café da estação, trazendo de volta biscoitos e café pagos do seu próprio bolso. Ele, Rosner e Horowitz se puseram a conversar.
Quanto mais o Unterscharführer falava, menos parecia pertencer à mesma laia de Amon, Hujar, John e todos aqueles outros.
- Estou levando vocês para Auschwitz - disse ele - e depois tenho de voltar a Brinnlitz, acompanhando umas mulheres. Assim, ironicamente, os primeiros homens de
Brinnlitz a descobrir que suas mulheres iam sair de Auschwitz foram Rosner e Horowitz, quando eles próprios estavam a caminho de Auschwitz.
Rosner e Horowitz ficaram radiantes. Contaram a seus filhos que aquele bom homem ia levar suas mães para Brinnlitz. Rosner perguntou ao Umerscharführer se podia
entregar uma carta a Manci, e Horowitz pediu-lhe o mesmo para Regina. As duas cartas foram escritas em pedaços de papel que o Umerscharführer lhes forneceu, o mesmo
papel que ele usava para escrever à própria mulher. Em sua carta Rosner indicava a Manci um endereço em Podgórze onde encontrá-lo, no caso de ambos sobreviverem.
Quando Rosner e Horowitz tinham terminado de escrever, o SS pôs as cartas no bolso. "Onde estava você nestes últimos anos?", pensou Rosner. "Começou sendo um fanático?
Aplaudiu quando os deuses no rostro esbravejavam: 'Os judeus são a nossa desgraça'?"
No decorrer da viagem, Olek tinha escondido o rosto no braço de Henry e se pusera a chorar. A princípio não quis revelar qual era a sua mágoa. Quando finalmente
falou, foi para dizer que estava desolado por ter arrastado Henry para Auschwitz, e assim ser a causa da morte do seu próprio pai. Henry poderia ter tentado acalmá-lo
pregando-Ihe mentiras mas não teria adiantado. Todas as crianças tinham conhecimento das câmaras de gás. E respondiam com petulância, quando se tentava enganá-las.
O Unterscharführer curvou-se. Não podia ter ouvido as palavras de Olek mas havia lágrimas em seus olhos. Isso causou espanto ao menino
- como se espanta qualquer criança, quando vê um animal de circo andar de bicicleta. Fitou o homem. O que lhe parecia surpreendente era que aquelas lágrimas eram
fraternais, lágrimas de um companheiro de cativeiro.
- Sei o que vai acontecer - disse o Unterscharführer. - Nósperdemos a guerra. Você será tatuado e vai sobreviver. Henry teve a impressão de que o homem
estava fazendo promessas não ao menino mas a si mesmo, armando-se com a garantia de que - dentro de cinco anos, talvez, quando se lembrasse daquela viagem de trem
- poderia usar aquela lembrança para aliviar sua consciência.Na tarde em que tentara encontrar a cerca eletrificada, Clara Sternberg ouviu uma chamada de nomes e
o som de risadas femininas na direção das cabanas das Schindlerfrauen. Então saiu de sua cabana úmida e viu as mulheres Schindler enfileiradas por trás da cerca
interior do campo feminino. Algumas delas estavam vestidas apenas com blusas
e calças compridas. Mulheres esqueléticas, sem a menor chance de sobrevivência. Mas estavam tagarelando como meninas. Até a SS loura parecia feliz, pois também
seria liberada de Auschwitz.
- Schindlergruppe! - gritou ela. - Vocês vão para as saunase depois vão tomar o trem. - A SS loura parecia ter o senso da importância do momento.
Das cabanas em redor, prisioneiras fadadas a morrer olhavam com uma expressão vazia as alegres eleitas de Schindler. Não se podia deixar de observá-las porque elas,
subitamente, estavam como que fora de proporção com o resto do campo. O fato não alterava nada, é claro. Não passava de um evento excêntrico; não tinha o menor significado
na vida da maioria; não invertia o processo ou diminuía a fumaça no ar. Mas para Clara Sternberg a cena era intolerável. Como o era também
para a Sra. Krumholz, de sessenta anos, quase agonizando numa cabana reservada às mulheres mais velhas. A Sra. Krumholz começou a discutir com a Kapo holandesa
à porta da sua cabana.
-Vou me reunir às outras - anunciou ela.A Kapo apresentou uma série de argumentos, e no final declarou:-Você estará melhor ficando aqui. Se for, vai morrer num vagão
de carga. Além disso, terei de explicar por que a deixei partir.- Pode dizer aos seus superiores - declarou a Sra. Krumholz- que foi porque eu fazia parte da lista
Schindler. Os registros confirmarão o meu nome. Quanto a isso, não há dúvida. Durante cinco minutos elas discutiram e, no decorrer da discussão, falaram de suas
famílias, apurando as origens uma da outra, talvez à procura de um ponto vulnerável na lógica estrita da disputa. Acabaram descobrindo que o sobrenome da holandesa
era também Krumholz e as duas começaram a discutir a procedência de suas
famílias.
Creio que o meu marido está em Sachsenhausen - disse a Sra. Krumholz holandesa.
O meu marido e o meu filho foram para Mauthausen, creio eu - disse a Sra, Krumholz de Cracóvia. - Eu devo ir para o campo Schindler na Morávia. E para lá que vão
aquelas mulheres diante da cerca.
Elas não vão a parte alguma, acredite-me - assegurou a Sra. Krumholz holandesa. - Ninguém aqui vai a parte alguma, a não ser numa direção. Pois eu acho que elas
vão para alguma parte - insistiu a primeira Sra. Krumholz. - Por favor! Mesmo que as Schindlerfrauen estivessem iludidas, ela queria participar daquela ilusão. A
Kapo holandesa finalmente compreendeu isso e deixou que a Sra. Krumholz tentasse seguir o seu destino. Uma cerca erguia-se agora entre a Sra. Krumholz, a Sra. Sternberg
e o resto das mulheres Schindler. Não era uma cerca eletrificada. Não obstante, fora erguida de acordo com o regulamento da Seção D, com pelo menos dezoito fios
de arame. Os fios eram mais juntos na parte superior. Na inferior eram esticados paralelamente, com uma separação de uns quinze centímetros. Mas entre cada grupo
de paralelos havia um espaço de menos de trinta centímetros. Naquele dia,
segundo testemunhas e o depoimento das próprias mulheres, tanto a Sra. Krumholz como a Sra. Sternberg conseguiram atravessar a cerca e ir reunir-se às mulheres Schindler
para participar daquele sonho de salvação. Arrastando-se por uma abertura de talvez uns vinte e dois centímetros, suspendendo o arame, rasgando a roupa e a carne
nas farpas, elas lograram se colocar entre as eleitas da lista Schindler. Ninguém as deteve, porque ninguém acreditou naquela possibilidade. Para as outras mulheres
de Auschwitz, era de qualquer modo um exemplo irrisório.
Qualquer outra fugitiva, depois de vencer a primeira cerca, iria deparar com outra e mais outra, até a última de alta voltagem. Mas para Sternberg e Krumholz não
existiam outras cercas. As roupas que elas tinham trazido do gueto e remendado tantas vezes na enlameada Plaszóvia agora pendiam dos arames. Nuas e com o sangue
brotando de arranhões, elas correram a juntar-se às mulheres Schindler.
A Sra. Rachela Korn, condenada, aos quarenta e quatro anos, a uma cabana de hospital, fora também arrastada pelo vão da janela por sua filha, que agora a mantinha
ereta na coluna Schindler. Era como uma festa de aniversário tanto para ela como para as outras duas. Todas as mulheres pareciam estar congratulando-as. Na casa
de banho, as mulheres Schindler foram barbeadas. Moças letonas rasparam a passeata de piolhos de suas cabeças, axilas e púbis. Depois do banho de chuveiro, foram
levadas nuas para a cabana do oficial intendente, onde lhes forneceram roupas de gente que morrera.
Quando se viram de cabeça raspada e com roupas disparatadas, as mulheres se puseram a rir - um riso de meninas. A figura da frágil Mila Pfefferberg, pesando agora
uns trinta e poucos quilos, enfiada num vestido que pertencera a uma senhora gorda, a fez rolar de rir. Meio mortas e vestidas de trapos com cifras pintadas, elas
saltitavam e arremedavam manequins numa passarela e desatavam em risadas, como colegiais.
O que Schindler vai fazer com todas essas velhas? - Clara Sternberg ouviu uma SS perguntar a uma colega.
Isso não é da conta de ninguém - replicou a outra. - Ele que abra um asilo de velhos, se quiser.Quaisquer que fossem as expectativas, era sempre apavorante entrar
nos trens. Mesmo com baixa temperatura, havia sempre uma sensação
de abafamento aliado à escuridão. Ao entrar num vagão, as crianças sempre corriam para onde houvesse alguma fresta de claridade.
Foi o que fez Niusia Horowitz nessa manhã, colocando-se contra uma parede de onde se soltara uma ripa. Quando ela olhou pela abertura,
pôde ver do outro lado da linha férrea as cercas do campo dos homens. Notou que havia aqui e ali crianças espalhadas, olhando para o trem e acenando as mãos. Parecia
haver uma insistência muito pessoal naqueles gestos. Niusia achou estranho que uma das crianças fosse
tão parecida com o seu irmão de seis anos, que estava a salvo com Schindler. E o menino ao lado dele era um sósia de seu primo Olek Rosner. Então compreendeu. Era
Richard. Era Olek.
Voltando-se, ela puxou sua mãe pela roupa. Então Regina olhou para fora, passou pelo mesmo cruel processo de identificação e pôs-se
a soluçar. A essa altura a porta do vagão já fora trancada; as duas se viram comprimidas na quase total escuridão. Cada gesto, cada rastro de esperança ou pânico
era contagioso. Todas as outras puseram-se também a soluçar. Manei Rosner, junto à cunhada, espiou pela abertura, viu o filho e desatou em pranto.
Um troncudo NCO tornou a abrir a porta do vagão e perguntou quem estava fazendo todo aquele barulho. Nenhuma delas tinha motivo para se apresentar, mas Manei e Regina
forçaram a passagem e apresentaram-se diante do homem.
- É meu filho quem está lá do outro lado - disseram ambas.E Manci acrescentou: - Quero que ele veja que ainda estou viva.
O NCO mandou que elas descessem para a plataforma. As duas se postaram diante dele, sem entender qual era a sua intenção.
- Seu nome? - perguntou o NCO a Regina.
Ela deu o seu nome e o viu procurar algo sob o cinto de couro. Julgou que ele estivesse puxando do revólver. Mas o que tinha na mão era uma carta do marido para
ela. O homem entregou também carta de Henry Rosner. Depois fez uma breve narrativa da partida dos seus maridos de Brinnlitz. Manei pediu que ele permitisse que elas
entrassem debaixo do vagão, entre os trilhos, como para urinar. Isso às vezes era permitido quando os trens sofriam um atraso maior. O NCO deu-lhes a permissão.
Assim que Manei se viu debaixo do vagão, soltou o agudo assobio que costumava usar na Appellplatz de Plaszóvia para ser localizada por
Henry e Olek. Olek ouviu o assobio e pôs-se a acenar com a mão. Em seguida, virou a cabeça de Richard e apontou na direção de suas mães, espiando por entre as rodas
do trem.
Depois de muito acenar, Olek estendeu o braço, puxou a manga da camisa e mostrou os números tatuados ao longo de seu antebraço. Naturalmente, as mulheres responderam
com acenos de mão e aplaudiram o jovem Richard, quando ele suspendeu também a manga da camisa para mostrar a sua tatuagem. "Vejam!", estavam dizendo os meninos,
com suas mangas enroladas, "nós temos permanência." Mas, entre as rodas, as mulheres estavam num frenesi de ansiedade.
- O que aconteceu com eles? - perguntavam uma para outra.- Em nome de Deus, o que estão fazendo aqui? - Mas as cartas talvez explicassem melhor as coisas.
Então, elas as abriram e leram; depois as guardaram e recomeçaram a chorar. Em seguida, Olek estendeu a mão e mostrou que tinha umas poucas
batatas.-Veja só! - gritou ele, e Manei pôde ouvi-lo distintamente. -Não precisa se preocupar porque não estou passando fome.
Onde está seu pai? - gritou Manei.
Trabalhando - respondeu Olek. - Logo ele estará de volta do trabalho. Estou guardando essas batatas para ele.
Ai, meu Deus! - murmurou Manei para a cunhada. - As batatas na mão dele são toda a sua comida.
O pequeno Richard foi mais franco.
- Mamushka, Mamushka, Mamushka! - gritou ele. - Estoucom tanta fome!
Mas também mostrou umas poucas batatas nas mãos e disse que ia guardá-las para o pai. Dolek e o violinista Rosner estavam trabalhandona pedreira.
Henry Rosner foi o primeiro a chegar. Adiantou-se para junto da cerca, erguendo o braço esquerdo nu.
-A tatuagem! - gritou, triunfante. Mas ela podia ver que eleestava tremendo, ao mesmo tempo suando e com frio. A vida em Plaszóvia não tinha sido suave mas lá lhe
era permitido dormir na oficina de pintura e repousar das horas que passara tocando Lehar na casa de Amon Goeth. Aqui, a banda que, às vezes, acompanhava as fileiras
marchando para as "casas de banho", não tocava o tipo de música de Rosner.
Quando Dolek apareceu, Richard conduziu-o até a cerca, de onde ele podia avistar as duas mulheres de faces encovadas, mas ainda bonitas, espiando de sob o vagão.
O que ele e Henry mais temiam era que as mulheres se oferecessem para ficar. Não poderiam ficar com os filhos no campo dos homens, e se achavam numa situação favorecida
no trem, que certamente se poria em marcha naquele mesmo dia A idéia de uma reunião de família era ilusória e os dois homens junto à cerca de Birkenau recearam que
as mulheres optassem por morrer ali. Portanto, Dolek e Henry falaram com falsa animação - como pais em tempo de paz que tivessem decidido levar os filhos para passar
o verão no Báltico, a fim de que as mães pudessem ir descansar em Carlsbad.
-Cuide de Niusia - gritou Dolek repetidas vezes, lembrandoà sua mulher que eles tinham também uma filha, a filha que se achavano vagão acima da cabeça de Regina.
Finalmente, alguma sirene misericordiosa soou no campo dos homens. Os homens e os meninos tiveram então que deixar a cerca. Manci e Regina subiram molemente de volta
ao trem e a porta fechou. Ficaram quietas. Nada mais poderia surpreendê-las. O trem partiu à tarde, com as habituais incertezas. Mila Pfefferberg acreditava que,
se o destino delas não fosse o campo de Schindler, metade das mulheres comprimidas nos vagões não resistiria mais uma semana. Ela própria julgava que os seus dias
estavam contados. Lusia adoecera com escarlatina. A Sra. Dresner, tratada por Danka mas esvaiando-se em disenteria, parecia agonizante.
Mas no vagão de Niusia Horowitz, as mulheres viam montanhas e pinheiros pela fenda da ripa. Algumas delas, quando crianças, tinham estado naquelas montanhas, e reconhecê-las,
ainda que de dentro dos fétidos vagões, lhes dava uma injustificada sensação de férias. E sacudiam
as companheiras sentadas em meio daquela imundície toda. "Estamos
quase chegando", prometiam às outras. Mas aonde? Mais uma falsa chegada liquidaria todas elas.
Na fria madrugada do segundo dia, elas receberam ordem de sair dos vagões. Podiam ouvir o silvo da locomotiva em alguma parte na neblina. Cristais de gelo sujo se
penduravam nas subestruturas do trem e o ar as congelava. Mas não era o ar pesado, pungente de Auschwitz. Estavam em algum desvio ferroviário não identificado. Marcharam,
sentindo os pés dormentes em seus tamancos, todas elas tossindo. Logo viram mais adiante um grande portão e, mais além, uma vasta construção de alvenaria de onde
se erguiam chaminés; pareciam iguais às que haviam ficado para trás em Auschwitz. Um grupo de homens SS esperavam ao portão, batendo as mãos para afugentar o frio.
O grupo ao portão, as chaminés - tudo parecia parte de uma horrenda
continuidade. Uma jovem ao lado de Mila começou a chorar.-Eles nos fizeram viajar dias e dias até aqui só para nos transformar em fumaça de chaminé! - disse ela.-Não
- replicou Mila -, não desperdiçariam assim o seu tempo. Poderiam ter feito isso em Auschwitz.
Porém o seu otimismo era como o de Lusia - ela não poderia dizer o que o motivava.Ao se aproximarem do portão, perceberam que Herr Schindler estava entre os homens
SS. A primeira coisa que notaram foi a sua famosa estatura, o seu físico atlético. Podiam ver-lhe as feições sob o chapéu tirolês, que ele ultimamente usava para
comemorar a volta à terra natal. A seu lado, achava-se um oficial SS baixo e moreno. Era o Comandante de Brinnlitz, o Untersturmführer Liepold. Oskar já tinha descoberto
- as mulheres logo iriam perceber - que Liepold, ao contrário de sua guarnição de meia-idade, ainda não perdera a fé naquela proposição denominada "a Solução Final".
Contudo, embora ele fosse o respeitado representante do Sturmbannführer Hassebroeck e a suposta encarnação da autoridade no campo, foi Oskar quem se adiantou quando
as mulheres enfileiradas pararam. Elas o fitavam com olhares atônitos. Um fenômeno na névoa. Algumas sorriram. Mila Pferfferberg, como as outras mulheres postadas
naquela fileira, recorda que foi um momento da mais profunda e devota gratidão, um momento indescritível. Anos depois, uma das mulheres que havia participado daquela
viagem, lembrando aquela manhã, tentaria explicar isso diante de uma equipe da televisão alemã. "Ele era o nosso pai, a nossa mãe, a nossa única fé. Nunca nos falhou."
Oskar, então, começou a falar. Era mais um dos seus discursos absurdos, cheios de promessas mirabolantes.
- Nós sabíamos que vocês viriam - disse ele. - De Zwittau nos avisaram. Quando entrarem no nosso prédio encontrarão sopa e pão esperando-as. - E depois, displicentemente,
com uma segurança pontifícia, acrescentou: - Não têm de se preocupar com mais coisa alguma.
Agora estão comigo. Palavras contra as quais o Untersturmfúhrer era impotente. Embora irritassem Liepold, Oskar não tomou conhecimento dessa irritação.
Enquanto Herr Direktor conduzia as prisioneiras para dentro, não havia nada que Liepold pudesse fazer para interferir naquela segurança. Os homens sabiam. Estavam
na sacada de seu dormitório, olhando para baixo. Stemberg e o filho procurando pela Sra. Clara Sternberg.
Feigenbaum pai e Lutek Feigenbaum, procurando Nocha, sua frágil filha. Juda Dresner e o filho Janek, o velho Sr. Jereth, o Rabino Levartov, Ginter, Garde e até
Mareei Goldberg, todos forçando a vista para descobrir suas respectivas mulheres. Mundek Korn procurava não só por sua mãe e irmã como por Lusia, a otimista, pela
qual ele tinha um interesse especial. Bau agora foi tomado de uma melancolia da qual nunca mais se livraria de todo. Pela primeira vez sentiu que, definitivamente,
sua mãe e sua mulher jamais chegariam a Brinnlitz. Mas o joalheiro Wulkan, vendo Chaja Wukan abaixo, no pátio da fábrica, percebeu agora com espanto que existiam
pessoas que intervinham e conseguiam milagrosos salvamentos.
Pfefferberg acenou para Mila um pacote que estivera guardando para lhe oferecer - um novelo de lã roubado de um dos caixotes que Hoffman deixara para trás, e uma
agulha de aço que ele fabricara no departamento de soldagem. O filho de dez anos de Francês Spira também estava olhando do alto da sacada. Para se impedir de gritar,
ele enfiara o punho na boca, pois havia muitos SS no pátio.
As mulheres cambalearam pelas pedras do calçamento vestidas com os trapos trazidos de Auschwitz. Tinham as cabeças raspadas. Algumas estavam demasiado doentes e
enfraquecidas para serem reconhecidas com facilidade. Não obstante, era um grupo espantoso. Não surpreenderia ninguém saber mais tarde que em nenhuma outra parte
da Europa devastada ocorrera uma reunião semelhante. Que nunca houvera e jamais haveria, um salvamento de Auschwitz como aquele. As mulheres foram então levadas
para o seu dormitório separado.
Havia palha no chão - os leitos ainda não tinham sido providenciados. Uma moça SS serviu-lhes, de uma enorme terrina, a sopa de que Oskar lhes falara no portão.
Era substanciosa, nutritiva. Em sua fragrància havia o sinal sensível do valor de outras imponderáveis promessas. "Vocês não têm de se preocupar com mais coisa alguma."
Mas não podiam aproximar-se de seus homens. Por enquanto, o dormitório das mulheres estava de quarentena. O próprio Oskar, a conselho de sua equipe médica, preocupava-se
com as possíveis doenças por elas trazidas de Auschwitz. Havia, porém, três pontos em que o isolamento podia ser rompido.
Um era um tijolo solto acima do beliche do jovem Moshe Bejski. Os homens passariam as noites seguintes de joelhos no colchão de Bejski, comunicando mensagens pela
parede. Por outro lado, havia no andar térreo uma pequena clarabóia que dava para as latrinas das mulheres. Pfefferberg empilhou ali caixotes, fazendo um cubículo,
onde um homem podia sentar-se e transmitir mensagens. Finalmente, de manhã cedo e tarde da noite, havia uma insólita agitação na barreira de arame entre a sacada
dos homens e a das mulheres. Era ali que o casal Jereth se encontrava; o velho Sr. Jereth, de cuja madeira fora construída a primeira caserna da Emalia; sua mulher,
que precisara de um refúgio na ocasião das Aktionen no gueto. Os prisioneiros ostumavam brincar a respeito dos diálogos entre o Sr. e a Sra. Jereth: "Seus intestinos
funcionaram hoje, minha querida?", perguntava gravemente o Sr. Jereth à mulher, que acabara de chegar das cabanas assoladas de disenteria de Birkenau.
Em princípio, ninguém queria ir para uma clínica. Em Plaszóvia a clínica tinha sido um lugar perigoso, onde o Dr. Blancke aplicava o seu tratamento terminal de injeção
de benzina. Mesmo ali em Brinnlitz, havia o risco de súbitas inspeções, do tipo que já levara dali os meninos. De acordo com os memorandos de Oranienburg, uma clínica
de campo de trabalho não deveria ter ninguém sofrendo de doença grave. Não era uma casa de misericórdia. Havia sido fundada para prestar os primeiros socorros a
acidentes de trabalho. Mas quer eles quisessem
ou não, a clínica de Brinnlitz estava repleta de mulheres. A adolescente Janka Feigenbaum foi internada lá. Sofria de câncer e ia morrer, mesmo que estivesse no
melhor dos hospitais. Mas, pelo menos, estava no melhor lugar que as circunstâncias permitiam. A Sra. Dresner foi levada para lá, assim como dúzias de outras mulheres,
que não podiam comer e reter o alimento no estômago. Lusia, a otimista, e duas outras moças estavam com escarlatina e não podiam ser
internadas na clínica. Foram, então, instaladas em leitos no porão,junto ao calor das caldeiras. Apesar do atordoamento de sua febre, Lusia tinha consciência do
calor prodigioso daquele porão.
Na clínica, Emilie trabalhava tão silenciosa quanto uma freira. Os que estavam bem de saúde em Brinnlitz, os homens que desmontavam as máquinas de Hoffman e as levavam
para um depósito mais adiante, mal a notavam. Um deles disse mais tarde que ela era apenas uma esposa
calada e submissa. Os doentes que se recuperavam o conseguiam apoiados no espírito inventivo de Oskar, na grande trapaça que era o campo de Brinnlizt. Até as mulheres,
que ainda se agüentavam em pé, concentravam suas atenções no grandioso, mágico, oniprovidente Oskar.
Manci Rosner, por exemplo. Um pouco mais tarde na história de Brinnlitz, Oskar aparecera no setor dos tornos mecânicos; onde ela trabalhava no turno da noite, e
entregara-lhe o violino de Henry. Durante uma viagem, para falar com Hassebroeck em Grõss-Rosen, ele tinha arranjado tempo para ir ao depósito e descobrir lá o violino.
Custara-lhe cem RM reavê-lo. Ao entregar o instrumento a Manci, ele lhe sorrira de um modo que parecia prometer-lhe a devolução eventual do próprio violinista.-
O mesmo instrumento - murmurara ele. - Mas... por enquanto...
uma música diferente. Era difícil para Manei, diante de Oskar c do violino milagroso, ver por trás da pessoa do Herr Direktor a sua silenciosa esposa. Mas, para
os moribundos, Emilie era mais visível. Alimentava-os com se-molina, que arranjava sabe Deus onde, preparada em sua própria cozinha e levada para a Krankenstube.
O Dr. Alexander Biberstein acreditava que a Sra. Dresner estava perdida, mas Emilie alimentou-a com colheradas de semolina, durante sete dias consecutivos, e a disenteria
cedeu. O caso da Sra. Dresner parece confirmar a declaração de Mila Pfefferberg de que, se Oskar não as houvesse salvo de Birkenau, a maioria delas não teria resistido
uma semana mais. Emilie cuidou também de Janka Feigenbaum, a jovem de dezenove anos, com câncer dos ossos. Lutek Feigenbaum, irmão de Janka, que trabalhava na oficina
da fábrica, às vezes via Emilie saindo do seu apartamento no andar térreo, com um caldeirão de sopa feita em sua própria cozinha, para a moribunda Janka. "Ela devia
ser dominada por Oskar", diria Lutek. "Como éramos todos nós. Mas não, Emilie era dona de si mesma." Quando os óculos de Feigenbaum se quebraram, Emilie providenciou
o conserto. A receita ficara no consultório de algum médico em Cracóvia desde o tempo do gueto. Ela pediu a alguém que ia a Cracó-via que recuperasse a receita e
trouxesse de volta os óculos já prontos.
O jovem Feigenbaum considerou o gesto de uma bondade acima do comum, especialmente dentro de um sistema que positivamente desejava a sua miopia, que planejava tirar
os óculos de todos os judeus da Europa. Há muitas histórias a respeito de Oskar fornecendo óculos novos para vários prisioneiros. Quem sabe se algumas das bondades
de Emilie nessa questão dos óculos não foram absorvidas pela lenda de Oskar, da mesma forma que os feitos de heróis menores eram obliterados pela figura de um Rei
Arthur ou de um Robin Hood?
Capítulo 34
Os médicos da Krankenstube eram os Drs. Hilfstein, Handler, Lewkowicz e Biberstein. Estavam todos preocupados com a probabilidade de uma epidemia de tifo. Porque
tifo não era apenas um risco para a saúde; era, por edital, um motivo para fechar Brinnlitz, colocar de volta os contaminados nos vagões de gado e mandá-los para
morrer na caserna ACHTUNG TYPHUS! de Birkenau. Numa das visitas matutinas de Oskar à clínica, cerca de uma semana depois da chegada das mulheres, Biberstein avisou-o
de que havia mais dois casos suspeitos entre as mulheres. Dor de cabeça, febre, mal-estar, dores generalizadas por todo o corpo eram os sintomas. Biberstein estava
esperando que aparecesse dentro de poucos dias a característica erupção tifóide. As duas doentes suspeitas precisavam ser isoladas em alguma parte da fábrica.
Não era necessário Biberstein dar muitas explicações sobre a doença a Oskar. A contaminação do tifo provinha da picada do piolho. Os prisioneiros eram infestados
por incontroláveis populações de piolhos. A doença levava talvez duas semanas incubada. Podia estar agora incubada em dez, cem prisioneiros. Mesmo com a instalação
dos novos beliches, as pessoas dormiam muito amontoadas. Amantes transmitiam uns aos outros os piolhos virulentos, quando se encontravam, rápida e secretamente,
em algum recanto escondido da fábrica. Os piolhos do tifo eram tremendamente migratórios. Parecia agora que sua energia iria vencer as resistências de Oskar.
Assim, quando Oskar ordenou uma unidade de despiolhamento-chuveiros, uma lavanderia para ferver as roupas, uma aparelhagem dedesinfecção - a ser construída no andar
superior, não era uma ordem administrativa sem razão de ser. A unidade funcionaria com vapor quente bombeado dos porões. Os soldadores deviam trabalharem turnos
constantes no projeto. E eles trabalharam de boa vontade, pois era isso que caracterizava as indústrias secretas de Brinnlitz. A indústria oficial era simbolizada
pelas máquinas Hilo, erguendo-se do novo piso de cimento das oficinas. Tanto Oskar como os prisioneiros,conforme observou mais tarde Moshe Bejski, estavam interessados
em que as máquinas fossem instaladas corretamente, pois davam ao campo um aspecto convincente. Mas as indústrias não registradas de Brinnlitz eram as que contavam.
As mulheres tricotavam com lã surrupiada dos sacos da Hoffman, deixados para trás. E só paravam e assumiam um zelo industrial, quando algum oficial SS ou NCO passava
pela fábrica a caminho do gabinete do Herr Direktor ou quando Fuchs e Shoenbrun, os ineptos engenheiros civis ("Não chegavam aos pés dos nossos engenheiros", dizia
mais tarde um prisioneiro), saíam de seus escritórios.
O Oskar de Brinnlitz era o mesmo Oskar do qual se lembravam os antigos empregados da Emalia. Um bon vivant, um homem de hábitos desregrados. No final de seu turno,
Mandel e Pfefferberg, encalorados de trabalhar na instalação dos canos de vapor, dirigiram-se para um tanque de água situado logo abaixo do teto da oficina. Alcançaram
o local subindo uma escada e atravessando um passadiço. A água ali era quente e lá de cima não se podia ser avistado por quem estivesse embaixo. Chegando ao alto,
os dois soldadores tiveram a surpresa de ver que o tanque já estava ocupado. Oskar boiava nele, nu e musculoso.
Uma SS loura, a mesma que Regina Horowitz subornara com um broche, com os seios flutuando na superfície, fazia-lhe companhia. Ao perceber a presença deles, Oskar
fitou-os muito francamente. O pudor sexual era, para ele, um conceito, algo como o existencialísmo, muito louvável, mas de difícil compreensão. Os soldadores notaram
que, nua, a SS era deliciosa.
Pediram desculpas e retiraram-se, abanando a cabeça, assobiando baixinho, rindo como colegiais. Lá em cima, Oskar se deliciava como Zeus, em folguedos libertinos.
Afinal a epidemia não se espalhou. Biberstein considerou que tinha sido evitada graças à unidade de despiolhamento de Brinnlitz. Quando a disenteria cedeu, ele atribuiu
isso à comida. No seu depoimento, nos arquivos do Yad Vashem, Biberstein declara que, no início do campo, a ração diária era de mais de 2.000 calorias. Em todo o
sofrido inverno do continente europeu, somente os judeus de Brinnlitz estavam sendo bem alimentados. Entre milhões, apenas a sopa dos mil prisioneiros de Schindler
era nutritiva.
Havia também o mingau. Mais adiante, numa estrada que partia do campo, junto ao riacho onde os mecânicos de Oskar tinham recentemente despejado as bebidas provenientes
do mercado negro, erguia-se um moinho. Munido de um passe de trabalho, um prisioneiro podia ir até lá, com alguma incumbência de um dos departamentos da DEF. Mundek
Korn lembra-se de ter regressado ao campo, carregado de comida.
No moinho, o prisioneiro simplesmente amarrava as calças nos tornozelos e afrouxava o cinto. Então o moleiro seu amigo enchia-lhe as calças com farinha de aveia.
O prisioneiro tornava a apertar o cinto e voltava ao campo - um grande repositório, de valor inestimável - e passava pelas sentinelas com o andar meio torto, até
entrar no anexo.
Uma vez lá dentro, outros prisioneiros afrouxavam-lhe as calças nos tornozelos e a farinha escorria, aparada em recipientes apropriados.
No departamento de projetos, o jovem Moshe Bejski e Josef Bau já tinham começado a forjar passes do tipo que permitia aos prisioneiros irem ao moinho. Oskar foi
um dia ao departamento e mostrou a Bejski documentos estampados com a chancela da autoridade de racionamento do Governo-Geral. Os melhores contatos de Oskar para
alimentos do mercado negro situavam-se ainda na área de Cracóvia. Podia providenciar embarques por telefone. Mas na fronteira da Morávia, era preciso exibir os documentos
de liberação do Departamento de Alimentação e Agricultura do Governo-Geral. Oskar mostrou os carimbos dos papéis, que tinha na mão, e perguntou a Bejski se podia
copiá-los.
Bejski era um excelente artífice e capaz de trabalhar horas a fio, sem dormir. Confeccionou então para Oskar a primeira de muitas chancelas oficiais, que iria produzir.
Seus instrumentos eram lâminas de navalha e vários pequenos utensílios de corte. Seus carimbos tornaram-se os emblemas da absurda burocracia de Brinnlitz. Fabricava
carimbos do Governo-Geral, do Governador da Morávia, carimbos que adornavam falsas licenças de viagem, que permitiam aos prisioneiros ir de caminhão a Brno ou Olomouc,
onde se abasteciam de quilos de pão, gasolina do mercado negro, farinha, tecidos e cigarros. Leon Salpeter, um farmacêutico de Cracóvia, outrora membro da Judenrat
de Mark Biberstein, era o encarregado do depósito em Brinnlitz. Ali os míseros suprimentos enviados de Grõss-Rosen por Hassebroeck eram estocados, juntamente com
legumes, farinhas e cereais comprados por Oskar com a autorização dos carimbos minuciosamente copiados por Bejski, com a águia e a cruz gamada do regime.
- É preciso lembrar - recorda um ex-prisioneiro do campo de Oskar - que a vida era árdua em Brinnlitz mas, comparada à de qualquer outro campo, era um paraíso!
Os prisioneiros pareciam estar conscientes de que a comida era escassa em toda parte; mesmo fora dos campos, poucos podiam saciar sua fome.
E Oskar? Cortava Oskar suas rações no mesmo nível que as dos prisioneiros? A resposta foi uma risada indulgente.
- Oskar? Por que haveria Oskar de cortar suas rações? Ele era o Herr Direktor. Quem éramos nós para discutir suas refeições? - E depois, franzindo a testa, no caso
de alguém julgar essa atitude subserviente. - Vocês não compreendem. Éramos gratos por estar ali. Não havia outro lugar para nós.
Como em seu casamento, Oskar continuava sendo, por temperamento, um absenteísta, mantendo-se afastado de Brinnlitz por longos períodos. Às vezes Stern, abastecedor
das necessidades diárias do campo, passava a noite acordado, esperando por ele. No apartamento de Oskar,
Itzhak e Emilie eram as pessoas que ficavam de vigília. O erudito contador sempre dava a interpretação mais leal às perambulações de Oskar pela Morávia. Em um discurso
anos mais tarde, Stern diria: "Ele viajava dia e noite, não somente para comprar alimentos para os judeus no campo de Brinnlitz - usando papéis forjados por um dos
prisioneiros - mas para nos comprar armas e munições, prevendo o caso de a SS resolver matar-nos, quando batesse em retirada."
A imagem de um Herr Direktor incansavelmente providente é um crédito à afeição e à lealdade de Itzhak. Mas Emilie teria compreendido que nem todas as ausências tinham
a ver com a qualidade humana do gangsterismo de Oskar.
Durante uma dessas ausências de Oskar, Janek Dresner, de dezenove anos, foi acusado de sabotagem. Na realidade, Dresner não tinha nenhuma prática de metalurgia.
Em Plaszóvia passava o tempo no departamento de despiolhamento, estendendo toalhas aos SS, que vinham tomar um banho de chuveiro ou uma sauna, e fervendo as roupas
crivadas de piolhos dos prisioneiros. (Ele fora contaminado de febre tifóide pela picada de um piolho e sobrevivera somente porque seu primo, o Dr. Schindel, diagnosticara
a sua doença como sendo uma angina.)
A suposta sabotagem ocorreu porque o supervisor alemão, engenheiro Schoenbrun, transferira-o do torno para uma das grandes prensas de metal. Os engenheiros tinham
levado uma semana para acertar a metrificação da máquina mas a primeira vez que Dresner ligou o botão e começou a usá-la, provocou um curto-circuito que rachou uma
das lâminas. Schoenbrun passou uma descompostura no rapaz e se dirigiu ao escritório para fazer um relatório incriminador. Cópias da queixa de Schoenbrun foram datilografadas
e remetidas às Seções D e W em Oranienburg, a Hassebroeck em Grõss-Rosen e ao Untersturmführer Liepold, em seu escritório, junto ao portão da fábrica.
Pela manhã, Oskar ainda não tinha voltado. Assim, em vez de remeter os relatórios, Stern tirou-os da mala postal do escritório e escondeu-os. A queixa dirigida a
Liepold já havia sido entregue em mão mas esse oficial pelo menos foi correto, nos termos da organização que ele servia e que não o autorizava a enforcar o rapaz
até haver recebido autorização de Oranienburg e Hassebroeck. Dois dias depois, Oskar ainda não tinha aparecido. "Deve andar numa farra e tanto!", comentavam os maliciosos
na oficina. Não se sabe como Schoenbrun descobriu que
Itzhak estava retendo a correspondência. Saiu furioso do seu escritório, dizendo a Stern que o nome dele seria acrescentado aos relatórios. Stern parecia ser um
homem de infinita calma; quando Schoenbrun terminou de esbravejar, o prisioneiro explicou que tinha retirado os relatórios da mala postal por achar que Herr Direktor
devia, por uma questão de cortesia, ser posto a par do seu conteúdo antes de serem remetidos. Herr Direktor, disse Stern, ficaria naturalmente horrorizado de descobrir
que o prisioneiro causara estragos no valor de 10 mil RM em uma de suas máquinas. Parecia justo, acrescentou Stern, que fosse dada a Herr Schindler a chance de acrescentar
suas próprias observações ao relatório.
Finalmente, Oskar apareceu no seu carro. Stern interceptou-o e contou-lhe a respeito das acusações de Schoenbrun. O Untersturmführer Liepold estivera esperando para
falar também com Schindler e parecia ansioso por fazer valer sua autoridade dentro da fábrica, usando o caso de Janek Dresner como pretexto.
- Eu presidirei ao interrogatório - disse Liepold a Oskar. - Cabe-lhe, como Herr Direktor, fornecer a declaração assinada, atestando a extensão do prejuízo.
- Espere um instante - retorquiu Oskar. - Foi a minha máquina que quebrou. Eu é que vou presidir ao interrogatório.
Liepold argumentou que o prisioneiro estava sob a jurisdição da Seção D. Mas a máquina, respondeu Oskar, estava sob a autoridade da Inspetoria de Armamentos. Além
disso, ele realmente não podia permitir um julgamento na oficina da fábrica. Se Brinnlitz fosse uma fábrica de confecções ou de produtos químicos, então talvez não
causasse muito impacto na produção. Mas tratava-se de uma fábrica de munições engajada na manufatura de componentes secretos.
- Não permitirei que a minha força de trabalho seja perturbada - declarou Oskar.
O argumento de Oskar venceu a discussão, talvez por que Liepold tivesse resolvido ceder, pois tinha medo dos contatos de Oskar. Assim, o tribunal se reuniu à noite
na seção de implementos de máquinas da DEF, tendo Herr Oskar Schindler como presidente; os outros membros eram Herr Schoenbrun e Herr Fuchs. Uma jovem alemã sentou-se
ao lado da mesa judiciária para anotar o processo e, quando o jovem
Dresner foi levado para o recinto, deparou com um tribunal solene e plenamente constituído. Segundo um edital de 11 de abril de 1944, da Seção D, o que aguardava
Janek era o primeiro e crucial estágio de um processo que, em vista do relatório de Hassebroeck e da resposta de Oranienburg, deveria terminar com o seu enforcamento
na oficina da fábrica, na presença de todo o pessoal de Brinnlitz, inclusive seus pais e sua irmã.
Janek notou que nessa noite não havia em Oskar o menor vestígio de sua familiaridade habitual. Conhecia a personalidade de Oskar, pelo que outros diziam, sobretudo
seu pai, e agora não podia compreender o que significava a expressão severa do Herr Direktor, enquanto lia as acusações de Schoenbrun. Estaria ele realmente indignado
cora o dano causado à máquina? Ou seria uma expressão estudada?
Quando a leitura terminou, o Herr Direktor começou a fazer perguntas.
Não havia muito o que Dresner pudesse responder. Alegou que não estava familiarizado com a máquina. Explicou que a sua instalação apresentava dificuldades. Estava
nervoso e tinha cometido um erro.
Afirmou ao Herr Direktor que não tivera a menor intenção de sabotagem. Schoenbrun aparteou que, se Janek não tinha competência para trabalhar na fabricação de armamentos,
não devia estar ali. O Herr Direktor lhe afirmara que todos os prisioneiros tinham experiência na indústria de armamentos. No entanto, ali estava o Hätling Dresner,
alegando ignorância.
Com um gesto colérico, Schindler ordenou ao prisioneiro que descrevesse detalhadamente tudo o que fizera na tarde fatídica. Dresner começou a falar sobre os preparativos
para pôr a máquina em funcionamento, a sua instalação, a prova dos controles, a ligação da força, a súbita partida do motor, a ruptura do mecanismo. Enquanto Dresner
falava, Herr Schindler mostrava-se cada vez mais agitado; começou á andar de um lado para outro, fitando ferozmente o rapaz. Dresner estava descrevendo a alteração
que fizera em um dos controles, quando
Herr Schindler parou, de punhos cerrados, olhar furibundo.
O que está dizendo? - perguntou ao réu. Dresner repetiu o que tinha dito.
Ajustei o controle de pressão, Herr Direktor.
Oskar adiantou-se e aplicou-lhe um murro no queixo. A cabeça de Dresner vibrou mas de alegria, pois Oskar - de costas para os outros juízes - piscou-lhe o olho com
uma expressão que não deixava dúvida. Depois, gesticulando no ar com seus grandes braços, mandou que o rapaz se retirasse.
-A estupidez de vocês, seus malditos! - repetiu ele várias vezes. - Não posso acreditar!
Em seguida, voltando-se, apelou para Schoenbrun e Fuchs, como se eles fossem os seus únicos aliados.
-Eu gostaria que eles tivessem inteligência bastante para sabotar uma máquina. Então, pelo menos, eu poderia arrancar-lhes a pele! Mas o que se pode fazer com gente
assim? São um total desperdício de tempo. - Tornou a cerrar os punhos e Dresner recuou ante a ameaça de outro murro. - Fora daqui! - berrou Oskar.
Ao passar pela porta, Dresner ouviu Oskar dizer aos outros que era melhor esquecer tudo aquilo e que tinha "um bom conhaque Maretell lá no meu gabinete".
Essa hábil subversão pode não ter satisfeito Liepold e Schoenbrun, pois o processo não chegara a uma conclusão formal; não terminara em um julgamento. Mas eles não
podiam queixar-se de que Oskar tivesse evitado um interrogatório ou tratado a questão com leviandade.
O relato que Dresner fez anos mais tarde do incidente faz supor que Brinnlitz mantinha os seus prisioneiros com vida por meio de uma série de truques rápidos, quase
mágicos. De qualquer modo, a estrita verdade é que Brinnlitz, tanto como prisão quanto como empreendimento industrial, era, por sua natureza e num sentido literal,
uma ininterrupta, fascinante e total tramóia.
Capítulo 35
Pois a fábrica não produzia absolutamente nada. "Nem uma só granada", dizem ainda os prisioneiros de Brinnlitz, abanando a cabeça. Nem uma só granada de 45mm manufaturada
na DEF podia ser usada, nem um só revestimento de foguete. O próprio Oskar contrasta a produção da DEF nos anos de Cracóvia com a de Brinnlitz.
Em Zablocie, os utensílios esmaltados manufaturados somavam 16.000.000 RM. Em igual período, a seção de munições da Emalia produziu granadas no valor de 500.000
RM. Entretanto, Oskar explica que em Brinnlitz, "em conseqüência da diminuição da produção de esmaltados", não havia praticamente produção alguma. A produção de
armamentos, diz ele, deparou com "dificuldades de início de produção". Mas o fato é que ele conseguiu remeter um caminhão de "peças de munição" avaliadas em 35.000
RM, no decorrer dos meses em Brinnlitz. "Essas peças", informou Oskar mais tarde, "haviam sido transferidas para Brinnlitz, já meio fabricadas. Fornecer menos ainda
(para o esforço de guerra) era impossível, e a desculpa de 'dificuldades de início' tornava-se cada vez mais arriscada para mim e os meus judeus, porque o Ministro
de Armamentos Albert Speer aumentava seus pedidos de mês para mês."
O perigo da política de Oskar de não-produção era dar-lhe má reputação junto ao Ministério de Armamentos, além de enfurecer as outras administrações. O sistema da
fábrica era fragmentado: uma oficina produzia as granadas, outra os fusos, uma terceira acondicionava explosivos e reunia os componentes. Dessa forma, segundo se
raciocinava, um reide aéreo contra a fábrica não poderia desmantelar o escoamento das armas. As granadas de Oskar, despachadas em trens de carga para outras fábricas
mais além na ferrovia, eram inspecionadas ali por engenheiros que ele não conhecia e que estavam fora de sua influência. Os produtos da Brinnlitz, invariavelmente,
deixavam de ser aprovados pelo controle de qualidade. Oskar costumava mostraras cartas com reclamações a Stern, a Finder, a Pemper ou Garde. E soltava gargalhadas
estrondosas, como se os homens que escreviam as críticas fossem burocratas de ópera-bufa.
Mais tarde, ocorreu um caso semelhante no campo. Na manhã de 28 de abril de 1945, Stern, Mietek e Pemper estavam no gabinete de Oskar; os prisioneiros corriam um
perigo extremo, pois tinham sido, como veremos, condenados todos à morte pelo Sturmbannführer Hassebroeck. Nesse dia, Oskar estava completando trinta e sete anos;
uma garrafa de conhaque já fora aberta para comemorar o seu aniversário. Na mesa via-se um telegrama da fábrica de montagem de armamentos perto de Brno. O telegrama
dizia que a granadas antitanques de Oskar eram tão mal fabricadas que não tinham passado em nenhum dos testes de controle de qualidade. Eram calibradas imprecisamente
e, pelo fato de o metal não ter sido temperado na temperatura exata, espatifavam-se quando testadas.
Oskar estava extasiado com o telegrama, passando-o a Stern e Pemper para que o lessem. Pemper recorda-se de que ele fez uma das suas declarações fantásticas: "É
o melhor presente de aniversário que eu poderia ter recebido. Porque sei agora que nenhum pobre infeliz foi morto com um produto meu."
Esse incidente revela algo sobre dois frenesis contrastantes. Há certa demência num industrial como Oskar, que se regozija quando não fabrica. Mas há também uma
tranqüila loucura no tecnocrata alemão que, já depois de Viena ter caído em mãos do inimigo e de os homens do Marechal Koniev terem abraçado os americanos no Elba,
ainda considera que uma fábrica de armamentos no alto de uma colina tem tempo para melhorar sua performance e contribuir condignamente para os grandiosos princípios
de disciplina e produção.
Mas a questão principal que se impõe, com o incidente do telegrama no dia do seu aniversário, é como Oskar pôde se manter durante aqueles meses, os sete meses que
precederam aquela data.
O pessoal de Brinnlitz lembra-se de uma série de inspeções e conferências. Homens da Seção D vistoriavam a fábrica com listas na mão. O mesmo faziam os engenheiros
da Inspetoria de Armamentos. Oskar sempre convidava-os para almoços e jantares, amaciava-os com presunto e conhaque. No Reich não restavam mais muitos bons almoços
e jantares. Os prisioneiros, nos tornos, fornalhas, prensas de metal, notavam que os inspetores uniformizados cheiravam a álcool e cambaleavam pela fábrica. Há uma
história contada por todos os prisioneiros sobre certo inspetor que se gabou, numa das últimas visitas à fábrica, antes do término da guerra, que a ele Schindler
não ia seduzir com agrados, almoços e bebidas. Nas escadas que levavam dos dormitórios para o andar térreo da fábrica, conta a história que Oskar fez o homem tropeçar,
rolar da escada, um tombo que lhe rachou a cabeça e quebrou-lhe uma perna. O pessoal de Brinnlitz, entretanto, não consegue identificar ao certo quem era esse SS.
Há quem diga que era Rasch, chefe de polícia da Morávia. O próprio Oskar nunca mencionou o caso. A anedota é uma dessas histórias que refletem a imagem que os prisioneiros
faziam de Oskar, como um protetor que abrange todas as possibilidades. E de justiça, é preciso admitir que os prisioneiros tinham o direito de espalhar esse tipo
de fábulas. Eram eles os que corriam maior risco. Se as fábulas lhes falhassem, seriam eles os maiores prejudicados.
Os inspetores eram tapeados na Brinnlitz, graças à inexorável astúcia dos trabalhadores categorizados de Oskar. O calibre das fornalhas era fraudulentamente manipulado
pelos eletricistas. A agulha do ponteiro registrava a temperatura correta, enquanto o interior da fornalha estava de fato centenas de graus abaixo da temperatura
registrada.
"Escrevi aos fabricantes", dizia Oskar aos inspetores de armamentos. E adotava a expressão grave e preocupada de quem vê os seus lucros se desgastarem. Culpava
a oficina, os supervisores alemães incompetentes. E tornava a falar em "dificuldades de início de produção", insinuando que haveria futuras toneladas de munições,
uma vez resolvidos os problemas.
Nos departamentos de máquinas operatrizes, como nas fornalhas, tudo parecia normal. As máquinas davam a impressão de estar perfeitamente calibradas mas de fato tinham
um micromilímetro a menos. A maioria dos inspetores que lá apareciam sempre saíam não só munidos de cigarros e conhaque mas com uma vaga simpatia pelos espinhosos
problemas que aquele bom sujeito estava enfrentando.
Mais tarde, Stern sempre diria que Oskar comprava caixotes de granadas de outros fabricantes tchecos para constar, durante as inspeções, que eram de sua fabricação.
Pfefferberg conta a mesma coisa. Em todo caso, Brinnlitz perdurou graças aos estratagemas inventados por Oskar.
Havia ocasiões em que, para impressionar as hostis autoridades locais, ele convidava importantes funcionários para uma visita à fábrica e um bom jantar. Mas sempre
eram homens cuja competência nada tinha a ver com assuntos de engenharia ou produção de armamentos. Depois da temporada do Herr Direktor na Rua Pomorska, Liepold,
Hoffman e o Kreisleiter local do Partido escreveram a todas as autoridades do seu conhecimento - locais, provinciais ou de Berlim - queixando-se dele, de seu moral
e conexões, denunciando suas infrações raciais e do código penal. Sussmuth informou-o a respeito da quantidade de cartas que chegavam a Troppau. Oskar, então, convidou
Ernst Hahn a visitar Brinnlitz. Hahn era subcomandante do Escritório Central de Berlim, encarregado de serviços às famílias da SS. "Tratava-se de um bêbado inveterado",
diz Oskar com a sua costumeira superioridade de réprobo. Hahn levou consigo um amigo de infância, Franz Bosch, que, como Oskar já comentara na sua narrativa, era
também "um bêbado notório". Além disso, era o assassino da família Gutter. Entretanto, Oskar, engolindo o seu desprezo, deu-lhe as boas-vindas, pelo valor, como
relações-públicas, que o sujeito tinha.
Quando Hahn chegou à cidade, estava usando exatamente a esplêndida, impecável farda que Oskar desejava, ornamentada de galões e condecorações, pois Hahn era um SS
da velha guarda, dos primeiros tempos de glória do Partido. Junto com esse deslumbrante Standartenführer chegou um igualmente ofuscante adjunto.
Liepold foi também convidado e veio de sua casa alugada fora do recinto do campo, para jantar com os visitantes. Desde o começo da noite, ele ficou desnorteado.
Porque Hahn adorou Oskar: os bêbados sempre o adoravam. Mais tarde Oskar descreveria as fardas como "pomposas". Mas, pelo menos, Liepold se convenceu de que, se
escrevesse cartas com queixas a autoridades distantes, era provável que fossem parar na mesa de algum companheiro de bebida do Herr Direktor, e que isso poderia
vir a representar um perigo para si mesmo. Pela manhã, Oskar foi visto atravessando Zwittau de carro, rindo com aqueles homens glamourosos de Berlim. Os nazistas
locais, perfilados nas calçadas, batiam continência à passagem de todo aquele esplendor do Reich.
Hoffman não se deixou embromar tão facilmente quanto os outros. As trezentas mulheres de Brinnlitz não tinham, segundo as próprias palavras de Oskar, "a menor possibilidade
de trabalhar". Já ficou dito que muitas delas passavam os dias tricotando. No inverno de 1944, para aqueles cujo único agasalho era o uniforme listrado, o tricô
não constituía um hobby sem utilidade. Contudo, Hoffman apresentou uma queixa formal à SS a respeito da lã que as mulheres Schindler tinham roubado de caixotes no
anexo. Considerava o caso um escândalo, que vinha mostrar as verdadeiras atividades da suposta fábrica de munições de Schindler. Quando Oskar visitou Hoffman, encontrou
o velho muito exaltado.
- Solicitamos a Berlim a sua remoção - informou Hoffman. - Desta vez incluímos declarações autenticadas, informando que sua fábrica está funcionando em infração
com as leis econômicas e raciais. Sugerimos a nomeação de um engenheiro reformado da Wehrmacht para administrar a fábrica e transformá-la em algo decente.
Oskar ouviu Hoffman, pediu desculpas, tentou parecer contrito. Depois telefonou ao Coronel Erich Lange, em Berlim, e pediu-lhe que retivesse a petição da panelinha
Hoffman em Zwittau. Ainda assim, para evitar um processo judicial, Oskar teve de gastar 8.000 RM e durante todo aquele inverno as autoridades de Zwittau, tanto civis
como do Partido, perseguiram-no, chamando-o à prefeitura para informá-lo das queixas de vários cidadãos a respeito dos seus prisioneiros ou do estado de seus escoadouros.
A otimista Lusia teve uma experiência pessoal com inspetores SS que exemplifica o método Schindler. Lusia continuava no porão - passaria lá o inverno inteiro. As
outras moças haviam melhorado e foram transferidas para cima, a fim de se recuperarem. Mas parecia a Lusia que Birkenau a contaminara com um veneno de um efeito
ilimitado. Sua febre não cedia; suas juntas estavam inflamadas; carbúnculos se formavam em suas axilas. Quando um arrebentava e cicatrizava, outro aparecia. O Dr.
Handler, contra a opinião do Dr. Biberstein, lancetou alguns com uma faca de cozinha. Lusia continuou no porão, bem alimentada, mas de uma palidez mortal, contaminada.
Em toda a extensão da Europa, aquele era o único espaço em que ela podia sobreviver. Lusia sabia disso e só esperava que o imenso conflito passasse por sobre sua
cabeça.
Naquele buraco aquecido, no subsolo da fábrica, a noite e o dia eram irrelevantes. No momento em que a porta no alto do porão se escancarou, tanto podia ser qualquer
hora do dia ou da noite. Ela estava habituada a visitas mais silenciosas de Emilie Schindler. Ouviu botas nos degraus e se retesou na cama. Soaram-lhe como uma Aktion.
Efetivamente, era Herr Direkior acompanhado de dois oficiais de Grõss-Rosen. A Lusia pareceu que aquelas botas tinham vindo para espezinhá-la. Oskar estava ao lado
deles, enquanto olhavam na obscuridade ambiente as caldeiras e o leito da enferma. Ocorreu a Lusia que talvez ela fosse a escolhida do dia. O sacrifício que era
preciso oferecer-lhes para que se fossem, satisfeitos. Estava parcialmente escondida por uma caldeira mas Oskar não fez nenhuma tentativa para escondê-la e se adiantou
mesmo até sua cama. Os dois cavalheiros da SS pareciam afogueados, com o andar inseguro; por isso Oskar teve chance de falar com ela. Suas palavras foram de uma
estupenda banalidade mas Lusia nunca as esqueceria: "Não se preocupe. Está tudo bem."
Postou-se bem junto da cama, como para afiançar aos inspetores que não se tratava de um caso infeccioso.
- Uma judia - disse ele, tranqüilamente. - Eu não quis colocá-la na Krunkenstube. Inflamação das articulações. De qualquer jeito, está liquidada. Os médicos
não lhe dão mais do que trinta e seis horas de vida.
Depois ele começou a dissertar sobre a água quente, de onde provinha, e o vapor para a seção de despiolhamento. Apontou para manômetros, encanamentos, cilindros.
Deu a volta na cama dela como se fosse algo neutro, parte dos mecanismos. Lusia não sabia para onde olhar, se devia abrir ou fechar os olhos. Tentou parecer em coma.
Talvez fosse um pouco excessivo, mas Lusia achou plausível, no momento em que, conduzindo os SS de volta à base da escada, Oskar lhe lançou um sorriso disfarçado.
Permaneceria ali seis meses e retornaria à superfície na primavera, para voltar a ser mulher em um mundo alterado.
Durante o inverno, Oskar armazenou um arsenal independente. De novo aparecem as lendas. Alguns dizem que as armas tinham sido compradas da resistência tcheca, no
final do inverno. Mas Oskar fora, em 1938 e 1939, um óbvio nacionalsocialista e pode ter receado negociar com os tchecos. De qualquer modo, a maioria das armas provinha
de uma fonte impecável, do Obersturmbannführer Rasch, SS e chefe de polícia da Morávia. O pequeno depósito secreto incluía carabinas e armas automáticas, algumas
pistolas, granadas de mão. Mais tarde, Oskar descreveria a transação com a sua habitual displicência: adquirira as armas "a pretexto de defender minha fábrica, em
troca de um anel de brilhante para a mulher de Rasch".
Oskar não dá detalhes de sua atuação no gabinete de Rasch, no Castelo Spilberk, em Brno. Entretanto, não é difícil imaginá-los: o Herr Direktor mostrando-se preocupado
com um possível levante dos seus escravos; com a continuação da guerra, está disposto a morrer, na sua mesa de trabalho, empunhando uma arma automática, depois de
ter, num gesto compassivo, liquidado sua mulher com uma bala, a fim de protegê-la de algo pior. O Herr Direktor menciona também a chance de os russos chegarem até
o seu portão.
-Os meus engenheiros civis, Fuchs e Schoenbrun, os meus honestos técnicos, a minha secretária de língua alemã, todos eles merecem que se lhes dêem meios para resistir.
Naturalmente, são palavras bem pessimistas. Eu preferiria falar de assuntos mais caros aos nossos corações, Herr Obersturmbannführer. Sei de sua paixão por jóias
finas. Permite que lhe mostre esta peça, que encontrei a semana passada?
E assim o anel aparecia junto ao mata-borrão de Rasch, e Oskar murmurando: "Logo que vi este anel, pensei em Frau Rasch."
Uma vez de posse das armas, Oskar nomeou Uri Bejski, irmão do falsificador de carimbos, guarda do arsenal. Uri era um rapaz de baixa estatura, bonito, cheio de vida.
As pessoas notavam que ele vivia entrando no apartamento dos Schindler, como se fosse um filho. Emilie gostava muito de Uri e entregou-lhe as chaves do apartamento.
Frau Schindler mantinha também uma relação maternal com o filho sobrevivente de Spira. Costumava levá-lo à sua cozinha e dar-lhe fatias de pão com margarina.
Depois de selecionar um pequeno corpo de prisioneiros para treinamento. Uri levou um de cada vez ao depósito de Salpeter, para ensinar-lhe o manejo do Gewehr 41
W. Assim se formaram três esquadrões do comando, compostos de cinco homens cada um. Alguns daqueles treinados por Bejski eram bem jovens, como Lutek Feigenbaum;
outros eram veteranos poloneses, tais como Pfefferberg, e ainda outros, que os prisioneiros de Schindler apelidaram "a turma de Budzyn".
A turma de Budzyn era constituída de oficiais judeus e integrantes do Exército polonês, que tinham sobrevivido à liquidação do campo de trabalho de Budzyn sob a
administração do Untersturmführer Liepold. Este último trouxera-os para o seu novo posto de comando em Brinnlitz. Eram uns cinqüenta e trabalhavam nas cozinhas de
Oskar.
Os prisioneiros se recordam que eles eram muito politizados. Tinham sido doutrinados com o marxismo durante sua prisão em Budzyn e ansiavam por uma Polônia comunista.
Parecia uma ironia que, em Brinnlitz, eles vivessem nas aquecidas cozinhas do mais apolítico dos capitalistas, Herr Oskar Schindler.
Era boa a convivência deles com o grosso dos prisioneiros, os quais, a não ser pelos sionistas, eram apenas adeptos da sobrevivência. Vários da turma tomavam lições
particulares com Uri Bejski sobre armas automáticas, pois, no Exército polonês dos anos 30, não existiam armas tão sofisticadas.
Nos últimos e mais movimentados dias do poder de seu marido em Brno - durante alguma festa ou recital de música no castelo - se Frau Rasch tivesse olhado bem no
cerne do diamante, que lhe fora doado por Oskar Schindler, terá visto ali refletido o seu pior pesadelo e do seu Führer. um judeu marxista armado.
Capítulo 36
Velhos companheiros de bebida de Oskar, entre outros Amon e Bosch, às vezes pensavam que ele estava sendo vítima de um vírus judaico. Não se tratava de uma metáfora.
Acreditavam nisso em termos virtualmente literais e não culpavam em absoluto o enfermo. Tinham visto o mesmo acontecer a outros bons homens. Alguma área do cérebro
era dominada por uma servidão meio bacteriológica, meio mágica. Se lhes perguntassem se era infecciosa, eles diriam que sim, altamente infecciosa. Teriam citado
o caso do Oberleutnant Sussmuth, como um exemplo conspícuo do contágio.
Oskar e Sussmuth conspiraram no decorrer do inverno de 1944-45 para transferir outras três mil mulheres de Auschwitz, em grupos de 300 a 500 de cada vez, para pequenos
campos na Morávia. Oskar fornecia sua influência, a parte financeira, os subornos para essas transações.
Sussmuth encarregava-se da burocracia. Nas fábricas de tecelagem da Morávia havia escassez de mão-de-obra e nem todos os proprietários abominavam a presença de judeus
com tanta virulência quanto Hoffman. Pelo menos cinco fábricas alemãs na Morávia - em Freudenthal e Jagerndorf, em Leibau, Grulich e Tratenau - aceitaram esses grupos
de mulheres e organizaram um campo em seu recinto. Nenhum desses campos era de maneira alguma um paraíso, e, em sua administração, os SS podiam ter mais autoridade
do que Liepold jamais poderia esperar ter em Brinnlitz. Mais tarde, Oskar descreveria essas mulheres como "vivendo sob regime suportável". Mas o tamanho reduzido
desses campos têxteis já era por si só uma ajuda à sobrevivência das prisioneiras, pois as suas guarnições eram compostas de homens mais velhos, menos exigentes,
menos fanáticos. O tifo estava sempre rondando e a fome pesando no vazio das costelas. Mas esses estabelecimentos pequenos, quase rurais, em sua maioria escapavam
às ordens de extermínio, que nessa primavera eram freqüentes nos campos maiores.
Mas, se a septicemia judaica infectara Sussmuth, no caso de Oskar os sintomas eram galopantes. Com a conivência de Sussmuth, Oskar tinha solicitado mais 30 metalúrgicos.
É um fato evidente que ele perdera o interesse em produção. Mas via, com aquele lado coerente de sua mente, que se sua fábrica quisesse ter validade de existência
junto à Seção D, ele necessitaria de mão-de-obra qualificada. Quando se examinam outros eventos daquele inverno insano, nota-se que Oskar queria os 30 homens extras,
não por estarem eles habituados a manusear tornos e máquinas mas simplesmente porque eram mais 30 homens. Não é demasiado fantástico dizer que ele os desejava com
a paixão total que caracterizava o exposto coração em chamas de Jesus pendurado na parede de Emilie. Como esta narrativa tem tentado evitar a canonização do Herr
Direktor, ainda tem de ser provada a noção, de que o sensual Oskar era um salvador de almas.
Um desses 30 metalúrgicos, um homem chamado Moshe Henigman, deixou um relato público de sua inacreditável libertação. Pouco depois do Natal, 10 mil prisioneiros
das pedreiras de Auschwitz III - de estabelecimentos tais como a fábrica da armamentos Krupp Weschel-Union e a Terra e Pedra, da usina de petróleo sintético e da
fábrica de peças de avião da Farben - foram separados e encaminhados para Grõss-Rosen. Talvez algum planejador acreditasse que, uma vez chegando à Baixa Silésia,
eles poderiam ser distribuídos entre os campos de fábricas da região. Se era esse o esquema, não foi o que compreenderam os SS que marchavam com os prisioneiros;
tampouco levaram em consideração o frio implacável ou como ia ser alimentada a coluna. Os claudicantes, os que tossiam, eram apartados no início de cada estágio
e executados. Dos 10 mil, conta Henigman, no final de dez dias restavam vivos apenas 1.200. Mais ao norte, os russos de Koniev tinham atravessado o Vístula, ao sul
de Varsóvia, e se apossado de todas as estradas no trajeto da coluna para o nordeste. O reduzido grupo de prisioneiros foi então levado para um acampamento da SS
próximo a Opole. O comandante local entrevistou os prisioneiros e fez-se uma lista dos trabalhadores qualificados. Mas as seleções prosseguiram diariamente, e os
rejeitados eram fuzilados. O homem que ouvia o seu nome sendo chamado nunca sabia o que esperar: se um pedaço de pão ou um tiro. Contudo, quando foi chamado o nome
de Henigman, levaram-no para um vagão com mais 30 outros, sob a vigilância de um SS e um Kapo, e o trem rumou para o sul. "Deram-nos comida para a viagem", recorda
Henigman. "O que nunca antes acontecera."
Mais tarde Henigman falou na maravilhosa irrealidade de sua chegada a Brinnlitz. "Não podíamos acreditar que existisse ainda um campo, em que homens e mulheres trabalhavam
juntos, em que não havia espancamentos nem presença de nenhum Kapo." Sua reação é marcada por uma pequena hipérbole, pois havia segregação em Brinnlitz.
Ocasionalmente, a amante loura de Oskar aplicava um tapa com a palma da mão e, certa vez, quando um menino roubou uma batata da cozinha e foi denunciado a Liepold,
o comandante obrigou-o a ficar o dia inteiro em pé num banco no pátio, com a batata enfiada na boca, a saliva escorrendo-lhe pelo queixo, e a tabuleta SOU UM LADRÃO
DE BATATA pendendo-lhe do pescoço. Mas, para Henigman, esse tipo de coisa não merecia ser relatado. "Como se pode descrever", pergunta ele, "a mudança do inferno
para o paraíso?"
Quando encontrou Oskar, recebeu a recomendação de primeiro fortificar-se. "Avise aos supervisores, quando estiver em condições de trabalhar", disse o Herr Direktor.
E Henigman, ante aquela estranha inversão da política dos campos, sentiu que não somente chegara a um local de paz mas que estava vivendo um sonho.
Como 30 funileiros fossem apenas um fragmento dos 10 mil, é preciso repetir que Oskar era apenas um deus menor dos salvamentos. Mas como qualquer espírito tutelar,
ele salvou igualmente Goldberg e Helen Hirsch, e tentou salvar a vida do Dr. Leon Gross e de Olek Rosner. Com a mesma e desinteressada eqüidade, ele fez uma dispendiosa
transação com a Gestapo, na região de Morávia. Sabemos que foi um contrato, mas não sabemos o quanto lhe custou. Certamente, uma fortuna.
Um prisioneiro chamado Benjamin Wrozlawski, um dos implicados na transação, pertencera anteriormente ao campo de trabalho de Gliwice. Ao contrário do campo de Henigman,
Gliwice não ficava na região de Auschwitz mas era bastante próximo para ser considerado um dos campos subsidiários de Auschwitz. Em 12 de janeiro, quando Koniev
e Zhukov lançaram a sua ofensiva, o horrendo reino de Hõss e todos os seus satélites ficara na iminência de uma captura. A providência que se tomou foi embarcar
os prisioneiros em Ostbahns e remetê-los para Fernwald. Mas Wrozlawski e um seu amigo, chamado Roman Wilner, pularam para fora do trem. Uma forma popular de fuga
era através dos ventiladores afrouxados nos tetos dos vagões. Mas os prisioneiros que se aventuravam a fugir dessa maneira freqüentemente eram baleados por guardas
postados no topo dos vagões.
Wilner foi ferido durante a fuga mas conseguiu escapar juntamente com Wrozlawski, passando por tranqüilas localidades na fronteira da Morávia. Finalmente, eles foram
presos numa daquelas aldeias e levados para o centro da Gestapo em Troppau.
Assim que chegaram, foram revistados e metidos numa cela; um oficial da Gestapo apareceu e disse que nada de mal lhes ia acontecer Mas eles não tinham motivo algum
para acreditar na sua palavra. O oficial disse ainda que, apesar do ferimento de Wilner, não ia transferi-lo para um hospital; simplesmente ele seria levado de volta
ao campo.
Wrozlawski e Wilner ficaram trancafiados numa cela durante quase duas semanas. Era preciso entrar em contato com Oskar e ser estabelecido o preço do resgate. Entrementes,
o oficial continuava falando com eles, como se estivessem sob uma custódia protetora; mas os prisioneiros cada vez mais achavam a idéia absurda. Quando a porta se
abriu e os dois foram levados para fora, presumiram que iam ser fuzilados. Ao invés, foram conduzidos para a estação ferroviária por um SS, que os escoltou num trem
que seguia na direção sudeste, para Brno.
A chegada a Brinnlitz teve para ambos a mesma qualidade surrealista, deliciosa e inquietante, que tivera para Henigman. Wilner foi internado na clínica, sob os cuidados
dos médicos Handler, Lewkowicz, Hilfstein e Biberstein. Quanto a Wrozlawski, levaram-no para uma espécie de zona de convalescença, instalada - por medidas extraordinárias
que logo seriam explicadas - a um canto do andar térreo da fábrica. O Herr Direktor visitou ambos e perguntou como se sentiam. A pergunta despropositada alarmou
Wrozlawski, assim como o local onde o haviam instalado. Temia, conforme contou anos mais tarde, que do hospital fosse levado para ser executado, como acontecia em
outros campos. Passaram a alimentá-lo com o substancioso mingau de Brinnlitz; Schindler freqüentemente vinha vê-lo. Mas Wrozlawski confessa que permanecia confuso
e lhe era difícil compreender o fenômeno Brinnlitz.
Graças a um acordo entre Oskar e a Gestapo provincial, 11 fugitivos vieram aumentar a já abarrotada população do campo. Cada um deles tinha escapulido de uma coluna
ou saltado de um vagão de gado. Vestindo as roupas listradas, eles tinham tentado manter-se escondidos.
Normalmente, todos deviam ter sido fuzilados.
Em 1963, o Dr. Steinberg, de Tel Aviv, testemunhou mais outro exemplo da ousada, contagiosa e indubitável generosidade de Oskar. Steinberg era o médico de um pequeno
campo de trabalho nas montanhas Sudeten. O Gauleiter em Liberec mostrou-se menos capaz, quando a Silésia caiu nas mãos dos russos, de manter os campos de trabalho
fora de sua saudável província da Morávia. O campo em que Steinberg estava preso era um dos muitos novos campos espalhados entre as montanhas. Era um campo da Luftwaffe,
encarregado da manufatura de algum componente não-especificado de aviões. Ali viviam 400 prisioneiros. A comida era ruim, relata Steinberg, e o trabalho tremendamente
duro.
A par dos rumores sobre o campo de Brinnlitz, Steinberg conseguiu um passe e tomou emprestado um caminhão da fábrica para ir ver Oskar. Ao chegar, descreveu-lhe
as condições desesperadoras no campo da Luftwaffe; diz ele que Oskar concordou imediatamente em ceder-lhe parte das provisões de Brinnlitz. A questão principal,
que preocupava Oskar, era sob que pretexto Steinberg poderia vir regularmente a Brinnlitz apanhar os sortimentos. Ficou decidido que ele usaria como desculpa obter
assistência regular dos médicos na clínica do campo.
A partir daquela data, conforme declara Steinberg, duas vezes por semana ele ia a Brinnlitz e voltava para o seu campo com um sortimento de pão, semolina, batatas
e cigarros. Se acontecia Schindler estar por perto do depósito, na hora em que Steinberg estava fazendo o carregamento, ele lhe dava as costas e afastava-se do local.
Steinberg não relaciona a quantidade exata de alimentos mas dá a sua opinião de médico de que, se não fossem as provisões de Brinnlitz, 50 dos prisioneiros no campo
da Luftwaffe teriam morrido, antes da primavera.
A não ser o resgate das mulheres em Auschwitz, o mais espantoso de todos os salvamentos realizados por Oskar foi o dos prisioneiros da Goleszów, uma fábrica de cimento
dentro de Auschwitz III, de propriedade da SS. Como se viu com os trinta metalúrgicos, durante todo o mês de janeiro de 1945, os pavorosos feudos de Auschwitz estavam
sendo desmantelados, e, em meados do mês, 120 trabalhadores da pedreira de Goleszów foram jogados para dentro de vagões de gado. A jornada deles seria tão dura quanto
tantas outras mas terminaria de maneira melhor do que a maioria. Vale a pena observar que, como os homens de Goleszów, quase todos os outros prisioneiros na área
de Auschwitz estavam sendo mandados para outros locais. Dolek Horowitz foi para Mauthausen. O jovem Richard, porém, foi deixado para trás com outras crianças pequenas.
Os russos iriam encontrá-lo mais para o fim do mês, num campo de Auschwitz abandonado pela SS, e afirmariam veridicamente que ele e outros meninos tinham sido retidos
ali para experiências médicas. Henry Rosner e Olek, de nove anos (aparentemente não mais considerados úteis para os laboratórios), partiram de Auschwitz numa coluna,
obrigados a marchar cinqüenta quilômetros; os que ficavam para trás eram baleados. Em Sosnowiec, foram atulhados em vagões de carga. Como uma especial gentileza,
um guarda SS, encarregado de separar as crianças, deixou Olek e Henry ficarem no mesmo vagão. Dentro, o vagão estava tão cheio que todos tinham de se manter de pé.
À medida que alguns homens morriam de frio e sede, um senhor, que Henry descreveu como "um judeu inteligente", ia suspendendo-os em seus cobertores nas argolas destinadas
a amarrar cavalos, presas no teto. Dessa maneira sobrava um pouco mais de espaço para os vivos. A fim de dar mais conforto a Olek, Henry teve a idéia de içá-lo em
seu cobertor da mesma maneira, preso nas argolas. O menino não somente melhorou a sua posição mas, quando o trem parava em estações ou desvios, passou a gritar para
alemães lá fora que jogassem bolas de neve pelos gradis do vagão. A neve caía no interior e os homens lutavam por uns poucos cristais de gelo.
O trem levou sete dias para chegar a Dachau; durante esse tempo morreu a metade dos passageiros que viajavam no vagão de Rosner. Quando, finalmente, a locomotiva
parou e a porta se abriu, um cadáver rolou lá de dentro. Olek, saltando na neve, quebrou um pingente de gelo debaixo do vagão e pôs-se a lambê-lo desesperadamente.
Assim eram as viagens na Europa, em janeiro de 1945.
Para os prisioneiros da pedreira de Goleszów foi ainda pior. O conhecimento de embarque para os seus dois vagões de carga, preservado nos arquivos do Yad Vashem,
mostra que eles viajaram sem comida durante mais de dez dias, com as portas trancadas e tão congeladas que não podiam ser abertas. R., um rapazinho de dezesseis
anos, recorda que eles raspavam o gelo das paredes internas para aliviar a sede.
Mesmo chegando a Birkenau, não foram desembarcados. O processo de matança estava em seus últimos dias de fúria. Não havia tempo para se ocupar dos prisioneiros,
que eram abandonados em desvios, tornavam a partir, ligados a locomotivas, que arrastavam seus vagões mais uns oitenta quilômetros - e novamente desligados. Eram
levados até os portões de campos, cujos comandantes se recusavam a recebê-los sob a alegação inegável de que lhes faltava valor industrial, e porque de qualquer
modo facilidades - acomodações e rações - estavam por toda parte no seu limite.
Às primeiras horas de uma madrugada em fins de janeiro, eles foram desligados do trem e abandonados num desvio da estrada em Zwittau. Oskar conta que um amigo seu
telefonou da estação para dizer que se ouviam gritos humanos e as paredes no interior dos vagões sendo arranhadas. Os apelos eram feitos em muitas línguas, pois
os homens ali trancados eram, segundo informações, eslovacos, poloneses, tchecos, alemães, franceses, húngaros, holandeses e sérvios. O amigo que deu o telefonema
era muito provavelmente o cunhado de Oskar, que lhe pediu que mandasse os dois vagões para o desvio de Brinnlitz.
Era uma manhã de um frio tenebroso - 30 graus abaixo de zero, diz Stern. Mesmo o preciso Biberstein diz que a temperatura era no mínimo de 20 graus abaixo de zero.
Poldek Pfefferberg foi acordado em seu leito, apanhou as ferramentas de soldagem e saiu caminhando na neve até o desvio, para serrar as portas que o frio tornara
rígidas como ferro. Ele também podia ouvir os gemidos espectrais vindos do interior.
E difícil descrever o que ele viu, quando finalmente as portas puderam ser abertas. Em cada vagão uma pirâmide de cadáveres, com os membros em estranhas contorções,
ocupava o centro do vagão. Os cem ou cento e poucos homens ainda vivos exalavam um mau cheiro terrível, tinham a pele enegrecida pelas queimaduras do frio e estavam
esqueléticos. Nenhum deles pesava mais do que 35 quilos.
Oskar não se achava no desvio mas dentro da fábrica, onde um canto aquecido da oficina estava sendo preparado para receber os prisioneiros de Goleszów. As últimas
velhas máquinas de Hoffman foram desmontadas e transportadas para as garagens. Uma camada de palha foi espalhada no chão. Schindler já tinha ido ao gabinete do comandante
para se entender com ele. O Untersturmführer Liepold não queria receber os prisioneiros de Goleszów; nisso ele era igual a todos os outros comandantes naquelas últimas
semanas. Liepold frisou que ninguém podia alegar que aquela gente podia ser considerada útil para a fabricação de munições. Oskar admitiu isso mas garantiu que os
inscreveria no seu livro e pagaria 6 RM por dia a cada um deles. "Posso usá-los depois de se recuperarem", declarou Oskar.
Liepold reconheceu dois aspectos do caso. O primeiro, que nada podia conter Oskar. O segundo, que um acréscimo no campo de Brinnlitz e nos honorários de mão-de-obra
podiam muito bem agradar Hassebroeck. Assim, Liepold se dispôs a registrar prontamente os homens com datas atrasadas; desde o momento em que os prisioneiros de Goleszów
entraram pelo portão da fábrica, Oskar já estava pagando para tê-los ali.
Dentro da oficina, eles foram enrolados em cobertores e se deitaram na palha. Emilie veio do seu apartamento, seguida de dois prisioneiros carregando um enorme caldeirão
de mingau de aveia. Os médicos trataram com ungüentos as ulcerações causadas pelo frio. O Dr. Biberstein disse a Oskar que aquela gente precisava de vitaminas, embora
tivesse certeza de que não se podia encontrá-las na Morávia.
Entrementes, os 16 cadáveres congelados foram colocados num galpão. Olhando-os, o Rabino Levartov sabia que, com aqueles membros retorcidos pelo frio, seria difícil
enterrá-los segundo os rituais ortodoxos, pois estes não permitiam que se quebrassem ossos. Entretanto, Levartov sabia que a questão teria de ser discutida com o
comandante. Liepold tinha instruções da Seção D determinando que a SS incinerasse os mortos. Na sala das caldeiras as condições eram perfeitas, pois as fornalhas
industriais eram quase capazes de volatizar um cadáver. Contudo, Schindler já recusara, por duas vezes, permissão para incinerar os mortos.
A primeira vez tinha sido quando Janka Feigenbaum falecera na clínica de Brinnlitz. Liepold ordenara imediatamente que o seu corpo fosse incinerado. Oskar soube
por Stern que isso seria algo abominável para os Feigenbaum e para Levartov, e sua resistência à idéia talvez proviesse também do resíduo católico de sua própria
alma. Naquele tempo, a Igreja Católica opunha-se firmemente a cremações. Além de recusar a Liepold o uso da fornalha, Oskar deu ordem aos carpinteiros para fabricarem
um caixão e ele próprio forneceu um cavalo e uma carroça, permitindo que Levartov e a família fossem escoltados por uma guarda até o bosque, onde a jovem seria enterrada.
Feigenbaum pai e filho tinham caminhado atrás da carroça, contando os passos desde o portão, a fim de que, quando terminasse a guerra, eles pudessem reaver o corpo
de Janka.
Liepold se enfurecia com essas concessões aos prisioneiros de Brinnlitz. Alguns deles chegam mesmo a comentar que Oskar tinha para com Levartov e a família Feigenbaum
mais delicadeza e cortesia do que costumava ter para com Emilie.
A segunda vez que Liepold quis usar as fornalhas foi quando faleceu a velha Sra. Hofstatter. A pedido de Stern, Oskar mandou fabricar outro caixão e colocar no interior
uma placa de metal com os dados biográficos da Sra. Hofstatter. Levartov e um minyan, um quorum de dez homens que recitam o Kaddish para o defunto, tiveram permissão
de deixar o campo para assistir ao funeral.
Stern diz que foi por causa da Sra. Hofstatter que Oskar fundou um cemitério judaico na paróquia católica de Deutsch-Bielau, uma aldeia próxima do campo. Segundo
ele, Oskar fora à paróquia da igreja no domingo em que a Sra. Hofstatter morreu e fez uma proposta ao padre. Um conselho da paróquia, convocado às pressas, concordou
em vender-lhe uma pequena área de terra logo atrás do cemitério católico. Não resta dúvida de que alguns membros do conselho resistiram à proposta, pois naquela
época a lei canônica era rigidamente interpretada em suas provisões sobre quem podia e quem não podia ser enterrado em terreno consagrado.
Outros prisioneiros de certa autoridade dizem, entretanto, que o terreno para o cemitério judaico foi comprado por Oskar, na ocasião da chegada dos vagões de Goleszów
com o seu dízimo de corpos retorcidos. Em um relatório feito mais tarde, Oskar dá a entender que foram os cadáveres de Goleszów que o levaram a comprar o cemitério.
Segundo um relato, quando o padre da paróquia apontou uma área atrás do muro da igreja reservada aos suicidas e sugeriu que os mortos de Goleszów fossem enterrados
ali, Oskar respondeu que aqueles mortos não eram suicidas mas sim vítimas de um genocídio.
De qualquer forma, os mortos de Goleszów e o falecimento da Sra. Hofstatter devem ter ocorrido mais ou menos na mesma ocasião e foram todos sepultados com os rituais
completos, no único cemitério judaico de Deutsch-Bielau.
E óbvio, pela maneira como se referiam ao sepultamento, que a cerimônia teve uma enorme força moral para os prisioneiros da Brinnlitz.
Os corpos retorcidos desembarcados dos vagões de carga pareciam menos do que humanos. Vê-los era como constatar a precariedade da vida. A coisa inumana não carecia
de alimentação, banho, aquecimento. A única maneira de devolver-lhe a humanidade era por meio do ritual. Portanto, os ritos de Levartov, o exaltado canto gregoriano
do Kaddish adquiriam para os prisioneiros da Brinnlitz uma gravidade muito maior do que a mesma cerimônia poderia ter tido, na relativa tranqüilidade da Cracóvia
de antes da guerra.
A fim de manter o cemitério judaico em ordem para o caso de futuras mortes, Oskar empregou um Unterscharführer SS, como guardião, e lhe pagava regulamente.
Emilie ocupava-se com suas próprias transações. Munida de um maço de papéis falsificados por Bejski, ela fez dois prisioneiros colocarem, num caminhão da fábrica,
um carregamento de vodca e cigarros e mandou que eles a levassem à grande cidade mineira de Ostrava, próxima da fronteira do Governo-Geral. No hospital militar,
ela conseguiu acordos com diversos contatos de Oskar para levar de volta ao campo ungüentos para queimaduras de frio, sulfa e as vitaminas que Biberstein julgava
ser impossível obter. Tais jornadas eram agora rotineiras para Emilie. Ela estava se tornando uma viajante, como o seu marido.
Após aquelas primeiras mortes, não houve outras. Os prisioneiros que tinham vindo de Goleszów eram Mussulmen, e o princípio básico dessa condição era a sua irreversibilidade.
Mas havia em Emilie uma pertinácia que não lhe permitia aceitar isso. Não os deixava em paz com os seus caldeirões de mingau. "Daquela gente que fora salva de Goleszów",
disse o Dr. Biberstein, "ninguém teria permanecido com vida sem os cuidados dela." Nas oficinas, começaram a ser vistos homens tentando parecer úteis. Um dia um
almoxarife judeu pediu a um deles que levasse um caixote para a oficina. "O caixote pesa trinta e cinco quilos", disse o rapaz, "e eu peso trinta e dois. Como é
que vou poder carregá-lo?"
Naquela fábrica de máquinas ineficientes, manipuladas por espantalhos vivos, Herr Amon Goeth apareceu num dia de inverno, depois de ter sido solto da prisão, para
apresentar seus respeitos aos Schindler. O tribunal libertara-o em Breslau por causa de sua diabetes. A roupa que ele usava era velha e poderia ter sido um uniforme
despojado das insígnias. As especulações quanto ao motivo dessa visita perduram até hoje. Alguns julgaram que Goeth estava em busca de um auxílio financeiro, outros
que Oskar era depositário de algo - dinheiro ou outro valor qualquer, resultado de uma última transação de Amon em Cracóvia, e na qual Oskar talvez houvesse atuado
como intermediário de Amon. Outros, que trabalhavam no escritório de Oskar, acreditam que Amon chegou mesmo a pedir um cargo de gerência em Brinnlitz. Ninguém poderia
dizer que lhe faltava experiência. O fato é que todas as três versões dos motivos que levaram Amon a aparecer em Brinnlitz possivelmente são corretas. Mas é pouco
provável que Oskar tivesse alguma vez atuado como intermediário de Amon.
Quando Amon passou pelo portão do campo, era visível que a prisão e as atribulações o haviam emagrecido. Seu rosto se afilara. As feições eram mais como as com que
Amon chegara a Cracóvia, no Ano-Novo de 1943, para liquidar o gueto, mas ao mesmo tempo diferentes, pois agora a sua tonalidade variava entre o amarelo da icterícia
e o cinza da prisão. E alguém, que tivesse a coragem de fitá-lo nos olhos, veria neles uma nova expressão de passividade. Contudo alguns prisioneiros, erguendo os
olhos de seus tornos, vislumbravam aquela figura do fundo de seus piores pesadelos, passando sorrateiramente por janelas e portas, atravessando a fábrica em direção
ao gabinete de Herr Schindler.
Galvanizada com aquela presença, Helen Hirsch só desejou que ele sumisse de novo. Mas outros o vaiaram, quando Amon passou, e cuspiram de lado. Mulheres mais maduras
ergueram seu tricô para ele num gesto de desafio. Pois havia vingança na prova de que, apesar de todos os horrores cometidos por ele, Adão ainda labutava e Eva tecia.
Se Amon desejava um emprego em Brinnlitz - e havia poucos outros lugares para onde podia ir um Hauptsturmführer reformado -, Oskar convenceu-o a desistir da idéia,
ou lhe pagou para desistir. Assim, o encontro entre os dois foi do tipo de todos os outros anteriores. Por cortesia, Oskar levou-o a dar uma volta pela fábrica;
na passagem pela oficina, a reação contra Amon foi ainda mais forte. De volta ao gabinete, houve quem ouvisse Amon exigindo de Oskar que punisse os prisioneiros
por aquele desrespeito e Oskar respondendo em tom vago, prometendo que faria algo a respeito daqueles judeus perniciosos e expressando sua habitual consideração
por Herr Goeth.
Embora a SS o tivesse posto em liberdade, o inquérito sobre seus negócios não cessara. Um juiz do tribunal SS aparecera em Brinnlitz, poucas semanas antes, para
interrogar de novo Mietek Pemper sobre a atuação administrativa de Amon. Antes de se iniciar o interrogatório, Liepold sussurrara a Pemper que devia ter cuidado,
pois o juiz poderia querer levá-lo a Dachau para o executar, depois de ele ter prestado o seu testemunho.
O prudente Pemper tinha feito o possível para convencer o juiz de que o seu trabalho, no escritório central de Plaszóvia, sempre fora sem nenhuma importância.
De alguma forma, Amon soubera que os investigadores da SS tinham vindo atrás de Pemper. Pouco depois de chegar a Brinnlitz, ele encurralou o seu ex-datilógrafo num
canto do escritório de Oskar, querendo saber que perguntas o juiz lhe fizera. Pemper julgou ver, com justa razão, nos olhos de Amon, um ressentimento por seu antigo
prisioneiro ser ainda uma fonte viva de testemunho para o tribunal da SS. Evidentemente, Amon devia se sentir impotente ali, emagrecido, acabrunhado em seu velho
uniforme, superado pela autoridade de Oskar. Mas nunca se podia ter certeza. Continuava sendo Amon, e tinha o hábito de comandar.
- O juiz me proibiu de falar com quem quer que seja sobre o meu interrogatório - respondeu Pemper.
Amon mostrou-se indignado e ameaçou ir queixar-se a Herr Schindler. A ameaça, como se pode calcular, dá a medida da nova impotência do ex-comandante de Plaszóvia.
Nunca antes ele tivera de recorrer a Oskar para que um prisioneiro fosse castigado.
Quando da segunda noite da visita de Amon, as mulheres já estavam se sentindo triunfantes. Ele não as podia tocar. Até Helen Hirsch, elas conseguiram persuadir a
não temê-lo. Mas ainda assim, o sono de Helen voltara a ser inquieto.
A última vez que Amon foi avistado pelos prisioneiros já estava se preparando para tomar o carro que o levaria à estação ferroviária de Zwittau. Nunca antes Amon
fizera três visitas a algum lugar, sem causar a desgraça de algum pobre miserável. Era óbvio agora que ele não tinha mais poder algum. Todavia, nem todos os prisioneiros
estavam armados de suficiente coragem para encará-lo, antes de sua partida.
Trinta anos mais tarde, no sono dos veteranos de Plaszóvia em Buenos Aires ou Sydney, em Nova York ou Cracóvia, em Los Angeles ou Jerusalém, Amon continuava sendo
uma imagem de pavor.
- Quando se olhava para Goeth - disse Pfefferberg - o que se via era a cara da morte.
Assim, nos seus próprios termos, Amon Goeth nunca fracassou totalmente.
Capítulo 37
Quando Oskar completou 37 anos, o aniversário foi comemorado por ele próprio e todos os seus prisioneiros. Um dos metalúrgicos tinha manufaturado uma pequena caixa
para botões de camisa e abotoaduras; quando o Herr Direktor apareceu na oficina,
Niusia Horowitz, a menina de doze anos de idade, foi empurrada para a frente, a fim de pronunciar em alemão a sua pequena saudação ensaiada.
- Herr Direktor - disse ela num tom de voz que ele teve de se curvar para ouvir -, todos os prisioneiros lhe desejam um feliz aniversário.
Era um Shabbat, o que vinha a calhar, pois a população de Brinnlitz sempre se lembraria da data como festiva. De manhã cedo, à hora em que Oskar começou a comemorar
o aniversário com conhaque Martell em seu gabinete, exibindo um telegrama insultuoso dos engenheiros de
Brno, dois caminhões carregados de pão branco entraram no pátio do campo. Uma parte da mercadoria foi para a guarnição e até mesmo para Liepold que, depois do que
bebera na véspera, estava dormindo até tarde em sua casa na aldeia. Essas dádivas eram necessárias para impedir que a SS reclamasse da maneira pela qual Herr Direktor
favorecia os prisioneiros. Estes receberam cada um três quartos de um quilo de pão. Examinavam o pão, enquanto o saboreavam. Havia especulações a respeito de onde
Oskar o conseguira em tal quantidade. Talvez a explicação em parte estivesse na boa vontade de Daubek, o gerente local do moinho, que virava de costas, enquanto
os prisioneiros de Brinnlitz enchiam de farinha as calças. Mas naquele sábado o pão foi realmente comemorado mais em termos da magia do evento.
Embora o dia seja lembrado como festivo, não havia de fato muito motivo para júbilo. No decorrer da semana anterior, chegara um telegrama do Herr Commandant Hassebroeck
de Gróss-Rosen dirigido a Liepold de Brinnlitz, dando-lhe instruções a respeito das providências a tomar com relação aos prisioneiros do campo, no caso de uma aproximação
dos russos. Devia-se proceder a uma seleção final, dizia o telegrama de Hassebroeck. Os velhos e os incapacitados seriam imediatamente fuzilados e os em boas condições
de saúde levados para fora do campo em direção a Mauthausen.
Ainda que os prisioneiros na oficina da fábrica nada soubessem a respeito do telegrama, sentiam um medo instintivo de algo semelhante. Durante toda aquela semana
tinham-se espalhado rumores de que poloneses haviam sido trazidos para cavar imensas sepulturas nos bosques adiante de Brinnlitz. O pão branco parecia ter chegado
como um antídoto daqueles rumores, uma garantia de futuro. Contudo, a impressão geral era que começara uma era de perigos mais sutis do que os do passado.
Se os operários de Oskar nada sabiam sobre o telegrama, o mesmo acontecia com o próprio Herr Commandant Liepold. O telegrama fora entregue primeiro a Mietek Pemper
no escritório contíguo ao gabinete de Liepold. Pemper abrira-o no vapor, tornara a fechá-lo e levara-o diretamente a Oskar, que o leu e depois voltou-se para Mietek.
- Muito bem - rosnou ele. - Vamos ter de dizer adeus ao Untersturmführer Liepold.
Pois tanto a Oskar como a Pemper parecia que Liepold era o único SS na guarnição capaz de obedecer a um tal telegrama. O vice-comandante era um homem de quarenta
e tantos anos, um Oberscharführer chamado Motzek. Ainda que Motzek fosse capaz de matar motivado pelo pânico, proceder ao frio assassinato de 1.300 seres humanos
estava além das suas forças.
Dias antes do seu aniversário, Oskar fez uma série de queixas confidenciais a Hassebroeck a respeito do comportamento excessivo do Herr Commandant Liepold. Em seguida,
visitou Rasch, o influente chefe de polícia de Brno, e fez a mesma espécie de acusações contra Liepold. Mostrou a ambos, Hassebroeck e Rasch, cópias de cartas que
tinha escrito ao General Glücks, em Oraniemburg. Oskar estava contando que Hassebroeck se lembrasse de generosidades passadas e da promessa de futuras vantagens
se resolvesse a fazer pressão para a transferência de Liepold, sem se dar ao trabalho de investigar o comportamento do Untersturmführer com relação aos prisioneiros
de Brinnlitz.
Era uma manobra característica de Schindler - a mesma que aplicara no jogo de cartas com Amon. A aposta agora abrangia a salvaguarda de todos os homens de Brinnlitz,
de Hirsch Krischer, Prisioneiro N° 68821, mecânico de automóveis de 48 anos, a Jarum Kiaf, Prisioneiro
N° 77196, operário não-especializado e sobrevivente dos vagões de Goleszów; e incluía também as mulheres, Berta Aftergut de 29 anos, metalúrgica, N° 76201, e Jenta
Zwetschenstiel, de 36 anos, N° 76500. Oskar reforçou as queixas contra Liepold, com um convite ao comandante para jantar no seu apartamento, dentro da fábrica. Era
o dia 27 de abril, véspera do aniversário de Schindler. Por volta das onze horas daquela noite, os prisioneiros que trabalhavam na fábrica espantaram-se ao ver o
comandante embriagado cambaleando pela oficina, apoiado ao sóbrio Herr Direktor. Em sua passagem, Liepold tentou focalizar trabalhadores individualmente. Esbravejando,
ele apontou para a grande viga mestra acima das máquinas. O Herr Direktor até então o mantivera fora da oficina mas agora ali estava ele, a definitiva autoridade
punidora.
- Malditos judeus! - berrou ele. - Estão vendo aquela viga? É lá que vou enforcar vocês. Todos vocês!
Oskar guiou-o pelo ombro, murmurando-lhe:
- Muito bem, muito bem. Mas não esta noite, não lhe parece? Em alguma outra ocasião...
No dia seguinte, Oskar procurou Hassebroeck e outros com as suas previsíveis acusações. O homem perambula bêbado pela oficina, esbravejando ameaças de execuções
imediatas. Eles não são operários! São técnicos altamente especializados, empenhados na manufatura de armas secretas etc. etc. E ainda que Hassebroeck fosse responsável
pela morte de milhares de trabalhadores das pedreiras, e acreditasse que toda a mão-de-obra judaica devia ser liquidada, quando os russos avançassem, não podia deixar
de concordar que a fábrica de Herr Schindler devia ser tratada como um caso especial.
Liepold, disse Oskar, estava sempre declarando que gostaria de ir para a frente de batalha. Era jovem, era saudável, estava disposto. "Está bem", respondera Hassebroeck,
"vou ver o que se pode fazer a respeito." Enquanto isso, o próprio Comandante Liepold passou o aniversário de Oskar de cama, refazendo-se do jantar da véspera.
Em sua ausência, Oskar fez um espantoso discurso de aniversário. Estivera comemorando o dia todo mas ninguém se lembra de falta de clareza nas suas palavras. Não
temos em mão o texto desse discurso, mas há outro, pronunciado dez dias depois, na noite de 8 de maio, do qual possuímos uma cópia. Segundo os que os ouviram, ambos
os discursos seguiam a mesma linha de pensamento, isto é, ambos continham promessas de sobrevivência.
Todavia, chamá-los de discursos é reduzir-lhes a finalidade. O que Oskar estava tentando, instintivamente, era ajustar a realidade, alterar a imagem que tanto os
prisioneiros como os SS faziam de si mesmos. Muito antes, com obstinada certeza, ele garantira a uma turma de seus operários, entre eles Edith Liebgold, que sobreviveriam
à guerra. E adotara o mesmo dom de profecia, quando recebera as mulheres de Auschwitz, naquela manhã de novembro, e lhes declarara: "Agora estão a salvo, estão comigo."
Não se pode ignorar que, em outra época e em outras condições, o Herr Direktor poderia ter-se tornado um demagogo, no estilo de Huey Long, de Louisiana, ou John
Lang, da Austrália, cujo dom era convencer os ouvintes de que eles estavam todos unidos para escapar por um triz às maldades dos outros homens.
O discurso de aniversário de Oskar foi em alemão, à noite, na oficina, para os prisioneiros ali reunidos. Um destacamento da SS teve de ser chamado para montar guarda
numa reunião tão ampla; também estavam presentes os empregados civis alemães. Quando Oskar começou a falar, Poldek Pfefferberg ficou de cabelo em pé. Olhou em redor
as fisionomias impassíveis de Schoenbrun e Fuchs, e as dos SS com suas armas automáticas. "Vão matar esse homem", pensou ele. "E então tudo estará perdido."
O discurso frisava duas promessas principais. Em primeiro lugar, a grande tirania estava chegando ao seu final. Falava dos guardas SS, postados junto às paredes,
como se eles também estivessem presos e ansiando por serem libertados. Muitos deles, explicou Oskar aos prisioneiros, haviam sido recrutados, sem o próprio consentimento,
para a Waffen SS. A segunda promessa de Oskar era que ele permaneceria em Brinnlitz até ser anunciado o término das hostilidades. "E mais cinco minutos", acrescentou.
O discurso, como os últimos pronunciamentos de Oskar, acenava para os prisioneiros com a promessa de um futuro, ao mesmo tempo que anunciava a sua irredutível intenção
de não deixar que eles fossem parar nas valas comuns nos bosques. Lembrava-lhes o quanto investira neles e os fez criar novo ânimo.
Contudo, pode-se imaginar o quanto as palavras de Oskar confundiram os SS que as estavam ouvindo. Tranqüilamente, ele insultara a organização da SS. Pemper saberia,
pela reação dos guardas, se eles iam protestar ou engolir o que fora dito. Oskar advertia-os também de que permaneceria em Brinnlitz até o fim, e que portanto seria
uma testemunha.
Mas Oskar não se sentia tão otimista quanto parecia. Mais tarde, confessou que, na ocasião, estava preocupado com qual seria a atuação das unidades militares com
relação a Brinnlitz, quando batessem em retirada da zona de Zwittau. Chegou mesmo a dizer: "Estávamos em pânico com o que os guardas SS poderiam fazer, em desespero
de causa." Deve ter sido um pânico mudo, pois prisioneiro algum, comendo o pão branco do aniversário, parece ter percebido. Oskar estava também preocupado com o
fato de algumas unidades de Vlasov terem sido postadas nos arredores de Brinnlitz. Essas tropas eram membros da ROA, o Exército Russo de Liberação, formado no ano
anterior, a mando de Himmler, com vastas fileiras de prisioneiros russos no Reich, e comandadas pelo General Andrei Vlasov, um ex-general soviético capturado três
anos antes diante de Moscou. Constituíam uma tropa perigosa para a população de Brinnlitz, pois seus componentes sabiam que Stalin iria querê-los de volta para um
castigo especial e que os Aliados os devolveriam à Rússia. Portanto, as unidades de Vlasov estavam tomadas de violento desespero eslavo, que alimentavam com vodca.
Quando batessem em retirada, em busca das tropas americanas a oeste, ninguém sabia que atrocidades poderiam cometer.
Dois dias depois do aniversário de Oskar, várias ordens chegaram à mesa de Liepold. Uma delas anunciava que o Untersturmführer Liepold havia sido transferido para
o batalhão de artilharia Waffen SS, nas proximidades de Praga. Embora Liepold não pudesse ter ficado radiante com a ordem, parece que fez suas malas e partiu, sem
protestar. Dissera muitas vezes nos jantares oferecidos por Oskar, sobretudo após a segunda garrafa de vinho tinto, que teria preferido estar numa unidade de combate.
Ultimamente, um bom número de oficiais graduados, da Wehrmacht e da SS, comandando as forças em retirada, comparecera a jantares no apartamento do Herr Direktor.
As conversas à mesa eram sempre no sentido de incitar Liepold a tomar parte ativa nos combates. Ele nunca se havia deparado com as provas que os outros convidados
possuíam, de que a causa estava perdida.
É pouco provável que Liepold tenha procurado falar com Hasse broeck, antes de sua partida. As comunicações telefônicas eram precárias, pois os russos tinham cercado
Breslau e estavam bem próximos de Grõss-Rosen. Mas a transferência não teria surpreendido ninguém da roda de Hassebroeck, pois Liepold freqüentemente fizera diante
deles profissão de patriotismo. Portanto, deixando o Oberscharführer Motzek no comando de Brinnlitz, Josef Liepold partiu para os campos de batalha, um linha-dura
que obteve o que desejara.
Com Oskar, os acontecimentos não se fizeram esperar silenciosamente. Nos primeiros dias de maio, ele descobriu, não se sabe bem como - talvez até com telefonemas
a Brno, onde as linhas ainda estavam funcionando -, que um dos armazéns onde costumava negociar tinha sido abandonado. Com meia dúzia de prisioneiros, Oskar partiu
de caminhão para saquear o armazém. Havia vários bloqueios nas estradas para o sul; em cada um eles exibiam seus papéis mirabolantes, forjados, segundo narrou Oskar,
"com carimbos e assinaturas das altas autoridades de polícia da SS na Morávia e Boêmia". Quando chegaram ao armazém, encontraram o prédio cercado pelo fogo. Os depósitos
militares das vizinhanças haviam sido incendiados e também houvera reides aéreos com bombas incendiárias. Na direção do interior da cidade, onde a guerrilha tchecoslovaca
estava lutando de casa em casa com a guarnição, podiam-se ouvir tiroteios. Herr Schindler deu ordem ao caminhão para recuar até a plataforma de carga do armazém,
arrombou as portas e descobriu que o interior estava repleto de cigarros de uma marca chamada Egipski.
Apesar desta e de outras despreocupadas pilhagens, Oskar assustou-se com os boatos, provenientes da Eslováquia, de que os russos estavam executando a esmo civis
alemães. Mas, pelo noticiário da BBC de Londres, que ouvia todas as noites, ele se reconfortou ao saber que a guerra poderia terminar antes de os russos alcançarem
a área de Zwittau.
Os prisioneiros também tinham acesso indireto à BBC e sabiam da realidade dos fatos. Durante toda a permanência em Brinnlitz, os técnicos de rádio Zenon Szenwich
e Artur Rabner consertavam permanentemente um ou outro dos rádios de Oskar. Na oficina de solda, Zenon ouvia com um audiofone o noticiário das duas horas da tarde
da Voz de Londres. Durante o turno da noite, os soldadores ligavam o rádio para ouvir as notícias das duas horas da madrugada. Certa noite, um guarda SS, ao entrar
na fábrica para levar um recado ao escritório, descobriu três prisioneiros em redor de um rádio. "Estávamos consertando o aparelho para o Herr Direktor", desculparam-se
eles, "e só um minuto atrás conseguimos fazê-lo funcionar."
No início do ano, os prisioneiros esperavam que a Morávia seria tomada pelos americanos. Como Eisenhover tinha parado no Elba, eles agora sabiam que a Morávia cairia
na mão dos russos. O círculo de prisioneiros mais próximos de Oskar estava compondo uma carta em hebraico, explicando quem era ele. A carta poderia ser eficaz, se
apresentada às forças americanas, que não somente tinham um considerável componente judaico mas também rabinos de campanha. Assim, Stern e o próprio Oskar consideravam
de importância vital que o Herr Direktor fosse encontrado primeiro pelos americanos. Em parte, a decisão de Oskar era influenciada pela característica idéia que
a Europa Central fazia dos russos, considerando-os bárbaros, homens de uma religião estranha e duvidosa humanidade. Mas, à parte essa idéia, se alguns dos relatos
do leste mereciam crédito, os seus receios se justificavam.
Isso, porém, não o debilitava. Estava atento e em febril expectativa quando, na madrugada de 7 de maio, lhe chegou a notícia, transmitida pela BBC, da rendição
da Alemanha. A guerra na Europa ia cessar à meia-noite do dia seguinte, terça-feira, 8 de maio. Oskar acordou Emilie, e o tresnoitado Stern foi chamado ao gabinete
do Herr Direktor para comemorarem juntos a rendição. Stern via que Oskar estava confiante quanto à guarnição da SS, mas ter-se-ia alarmado, se pudesse adivinhar
como ele iria demonstrar nesse dia a sua confiança.
Na oficina, os prisioneiros mantinham as suas rotinas. Talvez até tivessem trabalhado melhor do que nos outros dias. Mas à tarde, o Herr Direktor desfez aquela falsa
aparência de normalidade, transmitindo pelo alto-falante para todo o campo o discurso de Churchill anunciando a vitória. Lutek Feigenbaum, que compreendia inglês,
parou, atônito, junto à sua máquina. Para outros, a voz rouquenha de Churchill marcou a primeira vez, que, depois de tantos anos, eles ouviam a língua que iriam
falar no Novo Mundo. A voz personalíssima, tão familiar quanto a do Führer, agora morto, espalhou-se até os portões e torres de vigia, mas a SS recebeu-a com sobriedade.
Suas mentes não mais se voltavam para o interior do campo. Seus olhos, como os de Oskar, se focalizavam - porém com muito mais agudeza - nos russos. De acordo com
um telegrama anterior de Hassebroeck, eles deveriam estarem atividade nos bosques verdejantes. Ao invés, esperando pelo soar da meia-noite, fitavam o rosto negro
da floresta, especulando se lá haveria guerrilheiros. Um agitado Oberscharführer Motzek mantinha-os em seus postos e o dever também ali os mantinha. Pois o dever,
como tantos dos seus superiores iriam alegar perante os tribunais, era a própria essência da SS.
Naqueles dois dias inquietos, entre a declaração da paz e sua efetivação, um dos prisioneiros, um ourives chamado Licht, estivera fazendo um presente para Oskar,
algo mais expressivo do que a caixinha de metal para abotoaduras, que lhe dera no seu aniversário. Licht estava trabalhando com ouro de uma original proveniência,
que lhe fora fornecido pelo velho Sr. Jereth da fábrica de embalagens. Ficara combinado - até os homens de Budzyn, marxistas convictos, sabiam disso - que Oskar
teria de fugir depois da meia-noite. A vontade de marcar essa fuga com uma pequena cerimônia era a preocupação do grupo - Stern, Finder, Garde, os Bejski, Pemper
- mais ligado a Oskar. Num momento em que eles próprios não tinham certeza se chegariam a ver a paz, é admirável que se preocupassem com presentes de despedida.
No entanto, só dispunham de metal inferior. Foi o Sr. Jereth quem sugeriu algo melhor. Abriu a boca para mostrar a sua ponte de ouro.
Se não fosse por Oskar, disse ele, a SS teria ficado com este ouro. Meus dentes estariam numa pilha em algum depósito da SS, juntamente com o ouro das bocas de Lublin,
Lodz, e Lwów.
Era, é claro, uma oferta adequada, e Jereth foi insistente. Mandou que um prisioneiro, que tivera alguma prática odontológica em Cracóvia, lhe arrancasse a ponte.
Licht derreteu o ouro e, na tarde de 8 de maio, estava gravando numa placa uma inscrição em hebraico. Era um verso talmúdico, que Stern citara para Oskar no escritório
de Buchheister, em outubro de 1939. "Aquele que salva uma só vida salva o mundo inteiro."
Nessa tarde, numa das garagens da fábrica, dois prisioneiros estavam ocupados removendo o estofo do teto e das portas do Mercedes de Oskar, aí inserindo pequenos
sacos com os diamantes de Herr Direktor e recolocando cuidadosamente o forro de couro de forma a deixar a superfície lisa. Para eles, também, era um dia estranho.
Quando saíram da garagem, o sol estava se pondo por detrás das torres, onde os caminhões continuavam carregados mas fatidicamente inativos. Era como se o mundo inteiro
estivesse esperando por uma palavra decisiva.
A palavra decisiva parece ter sido transmitida à noite. De novo, como no seu aniversário, Oskar deu instruções ao comandante para reunir os prisioneiros na oficina
da fábrica. De novo os engenheiros alemães e as secretárias, já com os seus planos de fuga arquitetados, compareceram à reunião.
Entre eles achava-se Ingrid, a amante do Herr Direktor. Ela não partiria de Brinnlitz na companhia de Schindler. Ia fugir com o seu irmão, um jovem veterano de guerra
que um ferimento aleijara.
Considerando que Oskar dava-se a tanto trabalho para prover seus prisioneiros com artigos negociáveis, é provável que tenha fornecido à sua amante meios de sobrevivência.
Mais tarde, os dois iriam encontrar-se, em termos amistosos, em alguma parte no Ocidente.
Como no discurso de aniversário de Oskar, guardas armados estavam postados junto às paredes. Ainda faltavam seis horas para a guerra terminar e os SS tinham jurado
jamais abandonar seus postos. Olhando-os, os prisioneiros tentavam calcular o que lhes ia no íntimo.
Quando foi anunciado que o Herr Direktor ia falar novamente, duas prisioneiras que eram taquígrafas, a Srta. Waidmann e a Sra. Berger, apanharam cada uma lápis e
papel e se prepararam para anotar o que ele diria.
Por se tratar de um discurso ex tempore, pronunciado por um homem que sabia que logo se tornaria um fugitivo, era mais enfático falado do que na versão escrita Waidmann-Berger.
Ele repetia os termos do seu discurso de aniversário mas parecia torná-los conclusivos, tanto para os prisioneiros quanto para os alemães. Declarava os prisioneiros
os herdeiros da nova era; confirmava que todos os outros ali presentes - os SS, ele próprio, Emilie, Fuchs, Schoenbrun - estavam agora precisando ser resgatados.
"A rendição incondicional da Alemanha", disse ele, "acaba de ser anunciada. Após seis anos de matança cruel de seres humanos, as vítimas estão sendo pranteadas e
a Europa agora está tentando voltar à paz e à ordem. Eu gostaria de lhes pedir - a todos os que juntamente comigo viveram esses tão duros anos - que mantenham uma
ordem e disciplina incondicionais, a fim de que possam dentro de poucos dias retornar aos seus lares destruídos e saqueados, buscando sobreviventes de suas famílias.
Dessa forma, evitarão o pânico, cujas conseqüências seriam imprevisíveis."
Não se referia, é claro, a pânico entre os prisioneiros. Referia-se a pânico entre os homens postados junto às paredes. Estava convidando os SS a partirem e os prisioneiros
a deixar que eles se fossem. O General Montgomery, disse ele, comandante das Forças Aliadas em terra, proclamara que se devia agir de um modo humano para com os
vencidos, e todos - ao julgar os alemães - precisavam diferenciar a culpa do dever. "Os soldados na frente de batalha, assim como os homens que cumpriam o seu dever
não devem ser responsabilizados pelos atos de um grupo que se dizia alemão."
Oskar estava fazendo a defesa de seus compatriotas, a qual todo prisioneiro que sobrevivera até aquela noite iria ouvir reiteradamente mil vezes nos anos vindouros.
Entretanto, se alguém adquirira o direito de fazer essa defesa e de lhes darem ouvidos com - pelo menos - tolerância, esse alguém certamente era Herr Oskar Schindler.
"O fato de milhões entre vocês, seus pais, filhos, irmãos, terem sido aniquilados mereceu a desaprovação de milhares de alemães e, mesmo nos dias de hoje, milhões
deles ignoram a extensão desses horrores."
Oskar acrescentou que, pelos documentos e relatos encontrados em Dachau e Buchenwald no começo daquele ano, e seus detalhes transmitidos pela BBC, muitos alemães
tinham sabido "dessa monstruosa destruição". Portanto, mais uma vez ele lhes pedia que agissem de um modo justo e humano, que deixassem a justiça ao encargo dos
que eram autorizados a aplicá-la. "Se tiverem de acusar uma pessoa, façam a acusação na direção certa. Pois na nova Europa haverá juízes, juízes incorruptíveis,
que saberão fazer justiça."
Em seguida, ele falou do seu relacionamento com os prisioneiros naquele último ano. Seu tom era quase nostálgico mas temia também ser julgado em conjunto com os
Goeths e os Hassebroecks.
"Muitos de vocês sabem das perseguições, chicanas e obstáculo que, a fim de proteger os meus trabalhadores, tive de vencer durante esses anos passados. Se já era
difícil proteger os modestos direitos do trabalhador polonês, arranjar-lhe trabalho e impedir que fosse mandado à força para o Reich, defender o seu lar e suas pequenas
propriedades - a tarefa de proteger o trabalhador judeu muitas vezes parecia insuperável."
Oskar descreveu algumas das dificuldades e agradeceu-lhes por terem-no ajudado a satisfazer as exigências das autoridades responsáveis pelos armamentos. Em vista
da escassez de produção de Brinnlitz, os agradecimentos soavam irônicos. Mas não eram proferidos com ironia. O que o Herr Direktor estava dizendo, num sentido bem
literal era: "Obrigado por me ajudarem a passar a perna no sistema."
Prosseguiu em seu apelo ao pessoal de Brinnlitz: "Se após uns poucos dias aqui, as portas da liberdade se abrirem para vocês, lembrem-se de quanta gente nos arredores
da fábrica procurou ajudá-los com alimentos e roupas. Esforcei-me ao máximo para lhes fornecer mais alimento e prometo fazer o máximo, no futuro, para protegê-los
e salvaguardar-lhes o pão de cada dia. Continuarei a fazer tudo o que puder por vocês até cinco minutos depois da meia-noite.
"Não invadam as casas das vizinhanças para roubar e saquear. Provem que são dignos dos milhões de vítimas desta guerra e abstenham-se de praticar atos individuais
de vingança e terror."
Confessou que os prisioneiros jamais tinham sido bem-vindos na região. "Os judeus Schindler eram tabu em Brinnlitz." Mas existiam preocupações maiores do que vingança
local. "Confio aos Kapos e contramestres a tarefa de manter a ordem nesse campo, no interesse da proteção de todos vocês. Agradeçam a Daubek, gerente do moinho,
cujos esforços para arranjar-lhes mais alimento foi além das raias da possibilidade. Em nome de vocês todos, agradeço agora ao bravo Daubek, que tanto fez pelo nosso
campo.
"Não me agradeçam pela sua sobrevivência, mas sim à sua gente, que trabalhou dia e noite para salvá-los do extermínio. Agradeçam aos destemidos Stern e Pemper e
uns poucos outros que, pensando em vocês e preocupados com a sua sorte, especialmente em Cracóvia, diariamente enfrentaram a morte. A honra neste momento torna um
dever nosso vigiar e manter a ordem, enquanto estivermos juntos aqui. Peço-lhes, insistentemente, que não tomem senão decisões humanas e justas.
Quero agradecer aos meus colaboradores pessoais pelo quanto se sacrificaram para me ajudar na minha tarefa."
O discurso de Oskar, passando de um tema a outro, repetindo pontos de vista, retornando desordenadamente a outros, atingiu o máximo de sua temeridade. Voltando-se
para a guarnição SS, agradeceu-lhes por terem resistido à barbaridade de sua missão. Alguns prisioneiros pensaram: "Ele nos pediu para não provocarmos esses guardas
mas o que está ele próprio fazendo?" Pois a SS era a SS, de Goeth e John e Hujar e Scheidt. Havia coisas que um membro da SS aprendia, coisas que fazia e via, que
limitavam a sua humanidade. Os prisioneiros achavam que Oskar estava agora desafiando perigosamente esses limites.
"Eu gostaria", continuou ele, "de agradecer aos guardas SS aqui reunidos que, sem serem consultados, foram convocados pelo Exército e pela Marinha para este serviço.
Como chefes de famílias, há muito eles já se deram conta do quanto a sua tarefa era desprezível e insensata. Neste campo agiram de um modo excepcionalmente humano
e correto."
O que os prisioneiros não percebiam, atônitos e um tanto estimulados com a ousadia de Herr Direktor, era que Oskar estava terminando a tarefa que começara na noite
de seu aniversário. Estava anulando os SS como combatentes. Pois, se eles ficavam ali, imóveis, engolindo aquela versão do que era "humano e correto", então nada
mais lhes restava fazer a não ser abandonar o campo.
"E finalmente", disse Oskar, "solicito a todos que mantenham um silêncio de três minutos em memória das inúmeras vítimas, que pereceram nestes anos cruéis."Todos
obedeceram. O Oberscharführer Motzek, Helen Hirsch, Lusia, que só na semana anterior deixara o porão, Schoenbrun, Emilie e Goldberg, ansiosos para que o tempo passasse,
ansiosos por abandonar o campo, mantinham-se em silêncio entre as gigantescas máquinas Hilo no final da mais ruidosa das guerras.
Terminados os três minutos de silêncio, os guardas SS abandonaram rapidamente o recinto. Os prisioneiros permaneceram. Olharam em seu redor, em dúvida se eram agora
realmente os donos do campo. Quando Oskar e Emilie se encaminhavam para o seu apartamento a fim de fazer as malas, os prisioneiros os rodearam. O anel de Licht foi
oferecido. Oskar levou algum tempo admirando-o; mostrou a inscrição a Emilie e pediu a Stern que a traduzisse. Quando perguntou onde eles tinham arranjado o ouro
e soube que era a ponte dentária de Jereth, os que o cercavam pensaram que ele ia rir; Jereth fazia parte do comitê e, exibindo um sorriso banguela, já esperava
por uma caçoada.
Mas Oskar, com um gesto solene, colocou o anel no dedo. Embora ninguém houvesse realmente compreendido o que estava acontecendo, aquele era o instante em que os
prisioneiros tinham acabado de readquirir sua identidade, e em que Oskar Schindler passara a depender das suas dádivas.
Capítulo 38
Nas horas que se seguiram ao discurso de Oskar, a guarnição SS começou a desertar. Dentro da fábrica, aos comandos selecionados entre o pessoal de Budzyn e outros
elementos da população presidiária, já haviam sido distribuídas as armas que Oskar armazenara. Esperava-se poder desarmar os SS em vez de travar luta com eles. Não
seria prudente, como explicara Oskar, atrair ao campo unidades exacerbadas, batendo em retirada. Mas a não ser que se chegasse a um improvável acordo, as torres
iam ter de ser tomadas com granadas. A verdade, entretanto, foi que os comandos tiveram apenas de formalizar o desarmamento descrito no discurso de Oskar.
Os guardas no portão principal entregaram quase com gratidão as suas armas. Nos degraus escuros que levavam ao quartel da SS, Poldek Pfefferberg e um prisioneiro
chamado Jusek Horn desarmaram o Comandante Motzek, Pfefferberg espetando as costas do homem com o dedo e Motzek, como qualquer homem normal de mais de quarenta anos
e ansioso por rever o seu lar, implorando-lhes que o poupassem. Pfefferberg tomou a pistola do comandante; Motzek, após uma curta detenção, em que gritou pelo Herr
Direktor para salvá-lo, foi solto e pôs-se a caminho de casa.
As torres, sobre a tomada das quais Uri e outros companheiros deviam ter passado horas especulando e planejando, já haviam sido abandonadas. Alguns prisioneiros,
com armas entregues pelas guarnições, foram colocados nas torres para indicar a quem passasse por lá que a velha ordem continuava a ser mantida ali.
Quando soou a meia-noite, não havia homens ou mulheres SS visíveis no campo. Oskar chamou Bankier ao seu gabinete e lhe entregou a chave de um depósito especial.
Tratava-se de um depósito de reabastecimentos navais e estivera situado, até a ofensiva russa na Silésia, em alguma parte na região de Katowice. Sua finalidade era
provavelmente reabastecer as tripulações das lanchas de patrulhamento do rio e do canal. Oskar descobrira que a Inspetoria de Armamentos queria alugar um depósito
para aquele material numa área menos ameaçada. Oskar conseguiu o contrato de estocagem - "com a ajuda de alguns presentes", contou ele depois. E assim dezoito caminhões
carregados de casacos, uniformes e roupas de baixo, tecidos de algodão e lã, bem como meio milhão de bobinas de linha e uma grande quantidade de sapatos, tinham
passado pelo portão de Brinnlitz e sua mercadoria descarregada e estocada no depósito. Stern e outros declararam mais tarde que Oskar sabia que ficaria de posse
daquele estoque, quando terminasse a guerra, e tencionava distribuir a mercadoria entre os seus prisioneiros para que eles tivessem material com que começar a negociar.
Em um documento escrito mais tarde, Oskar alega a mesma coisa. Diz que se esforçou por obter o contrato de estocagem "com a intenção de prover com roupas os meus
protegidos judeus no fim da guerra... Peritos judeus da indústria têxtil calcularam o valor do meu estoque em mais de US$ 150.000 (no câmbio de tempo de paz)". Ele
tinha em Brinnlitz homens capazes de fazer essa avaliação - Juda Dresner, por exemplo, que fora proprietário de uma loja de tecidos na Rua Stradom; Itzhak Stern,
que trabalhara durante anos numa companhia têxtil.
No ritual de transferir a preciosa chave para Bankier, Oskar estava vestido com o uniforme listrado de prisioneiro, assim como sua mulher, Emilie. A inversão, pela
qual ele estivera trabalhando desde os primeiros tempos da DEF, agora mostrava seus resultados. Quando ele apareceu no pátio para se despedir, todos julgaram que
aquele era um disfarce provisório, que logo seria descartado, quando o Herr Direktor se encontrasse com os americanos. Contudo, o fato de ele envergar aquela roupa
grosseira era um impulso, que nunca poderia ser descartado como algo inconseqüente. Num sentido mais profundo, Oskar permaneceria para sempre um penhor para Brinnlitz
e para a Emalia.
Oito prisioneiros tinham-se prontificado a acompanhar Oskar e Emilie. Eram todos jovens mas incluíam um casal, Richard e Anka Rechen. O mais velho era um engenheiro
chamado Edek Heuberger, porém quase dez anos mais moço do que os Schindler. Mais tarde, Heuberger iria narrar os detalhes daquela jornada extravagante. Emilie, Oskar
e um motorista viajariam no Mercedes. Os outros os seguiriam num caminhão carregado de alimentos, cigarros e bebidas para serem negociados ou trocados. Oskar parecia
ansioso por partir.
Um braço da ameaça russa, o de Vlasov, se fora. As tropas já tinham marchado para longe dali. Mas presumia-se que outro se estenderia a Brinnlitz na manhã seguinte,
ou até antes. Do assento traseiro do Mercedes, em que Emilie e Oskar se achavam sentados com os seus uniformes listrados - não, é preciso admitir, com o ar de prisioneiros;
mais como um casal burguês a caminho de um baile à fantasia -, Oskar continuava dando conselhos a Stern, ordens a Bankier e Salpeter.
Mas era visível que ele tinha pressa de partir. Todavia, quando o motorista, Dolek Grünhaut, tentou acionar o Mercedes, o motor não funcionou. Oskar saltou do assento
traseiro para espiar sob o capo. Estava alarmado - um homem diferente daquele que fizera um discurso tão incisivo poucas horas antes. "O que está acontecendo?",
perguntava
ele repetidamente. Grünhaut levou algum tempo para encontrar o defeito, pois não era o que tinha presumido. Alguém, apavorado com a idéia da partida de Oskar, tinha
cortado os fios.
Pfefferberg, que se reunira aos outros prisioneiros para dar adeus ao Herr Direktor, correu à oficina de solda, voltou com sua caixa de ferramentas e pôs-se a trabalhar.
Estava suando e com as mãos trêmulas, pois perturbava-o a urgência que sentia em Oskar, o qual olhava a todo momento para o portão, como se os russos fossem surgir
naquele instante. Não era um receio improvável - outros no pátio se atormentavam
com a mesma possibilidade irônica - e Pfefferberg estava levando muito tempo para terminar o trabalho. Mas, finalmente, quando Grünhaut girou a chave de contato,
o motor funcionou.
Assim o Mercedes partiu, seguido do caminhão. Todos estavam muito nervosos para despedidas formais, mas uma carta, assinada por Hilfstein, Stern e Salpeter, atestando
os antecedentes de Oskar e Emilie, foi entregue a Schindler. O comboio passou pelo portão e, na estrada que cortava o desvio, dobrou à esquerda em direção a Havlíckuv
Brod, para Oskar a parte mais segura da Europa. Havia algo nupcial naquela jornada, pois ele, que chegara a Brinnlitz com tantas mulheres, estava partindo com a
própria esposa. Stern e os outros permaneceram imóveis no pátio. Após tantas promessas, eles eram agora donos de si mesmos e teriam de arcar com o peso e as incertezas
dessa nova situação.
O hiato durou três dias e teve a sua história e seus perigos. Com a partida dos guardas SS, o único representante da máquina de matança que restou em Brinnlitz foi
um Kapo alemão que viera de Gróss-Rosen com os homens Schindler. Era um homem com antecedentes assassinos na própria Gróss-Rosen e que fizera inimigos em Brinnlitz
também. Uma turba de prisioneiros arrastou-o do seu leito para o saguão da fábrica e, sem dó nem piedade, o enforcou na mesma viga com que o Untersturmfürer Liepold
havia recentemente ameaçado o pessoal da fábrica. Alguns prisioneiros tentaram intervir mas não conseguiram conter a fúria dos justiceiros. Foi um evento,
o primeiro homicídio da paz, que muitos dos prisioneiros de Brinnlitz iriam para sempre abominar. Tinham visto Amon enforcar o pobre engenheiro Krautwirt na Appellplatz
de Plaszóvia, e este enforcamento, apesar de ter sido por motivos diferentes, desagradou-os profundamente. Pois Amon era Amon, um ser irremediável.
Mas aqueles enforcadores eram seus irmãos.
Quando o Kapo parou de estrebuchar, largaram-no dependurado acima das máquinas silenciosas. Isso, porém, deixou os assistentes perplexos. Supostamente, aquele
espetáculo devia alegrá-los mas, ao contrário, trouxe-lhes dúvidas. Finalmente, alguns homens, que não haviam participado do enforcamento, cortaram a corda e incineraram
o corpo. O desfecho mostrou como se tornara diferente o campo de Brinnlitz, pois o único corpo jogado nas fornalhas que, por decreto, deviam ter sido usadas para
cremar os mortos judeus, foi o cadáver de um ariano.
A distribuição das mercadorias do depósito naval continuou no decorrer de todo o dia seguinte. Metragens tinham de ser cortadas das grandes peças de tecidos. Moshe
Bejski disse que cada prisioneiro recebeu três jardas, juntamente com um conjunto completo de roupas de baixo e algumas bobinas de algodão. Algumas mulheres começaram
nesse mesmo dia a confeccionar as roupas que iam usar para sair do campo. Outras preferiram deixar intato o tecido, a fim de que, negociado, garantisse a sua sobrevivência
nos dias vindouros.
Foi distribuído também um suprimento dos cigarros Egipski, dos que Oskar se apoderara no armazém incendiado, e cada prisioneiro recebeu uma garrafa de vodca do depósito
de Salpeter. Poucos a beberiam, pois era demasiado preciosa.
Ao escurecer da segunda noite, uma unidade Panzer apareceu na estrada proveniente de Zwittau. Escondido atrás de um arvoredo junto ao portão e armado de fuzil, Lutek
Feigenbaum teve o ímpeto de disparar a arma, assim que despontou o primeiro tanque. Mas se conteve.
Os veículos foram passando. O apontador de um dos tanques, no final da coluna, compreendendo que a cerca e as torres de vigia significavam que talvez houvesse criminosos
judeus escondidos ali, girou o canhão sobre o eixo e disparou dois obuses no campo. Um explodiu no pátio, o outro na varanda das mulheres. Foi uma exibição inconseqüente
de rancor e, por prudência ou espanto, nenhum dos prisioneiros armados contra-atacou.
Quando desapareceu o último tanque, os homens dos comandos ouviram gemidos vindos do pátio e do dormitório das mulheres no andar superior. Uma jovem fora ferida
por fragmentos do obus. A vitima achava-se em estado de choque mas a vista dos seus ferimentos desencadeara nas companheiras toda a dor reprimida naqueles últimos
anos. Enquanto as mulheres choravam, os médicos de Brinnlitz examinaram a jovem e constataram que os ferimentos eram superficiais.
O grupo de Oskar viajou as primeiras horas de sua fuga na retaguarda de uma coluna de caminhões da Wehrmacht. Naquela noite já eram possíveis feitos dessa natureza,
e ninguém os perturbou. Atrás deles, podiam-se ouvir engenheiros alemães dinamitando instalações e, ocasionalmente, havia o clamor de alguma distante emboscada dos
guerrilheiros tchecos. Na proximidade da cidade de Havlíckuv Brod, eles deviam ter ficado mais para trás, porque foram detidos por guerrilheiros tchecos postados
no meio da estrada. Oskar continuou fazendo-se passar por um prisioneiro.
- Essa boa gente e eu somos fugitivos de um campo de trabalho. A guarda SS e o Herr Direktor fugiram. Este é o automóvel do Herr Direktor.
Os tchecos perguntaram-lhes se tinham armas. Heuberger desceu do caminhão e veio participar da discussão. Confessou que tinha um fuzil.
Muito bem, disseram os tchecos, mas é melhor que nos entreguem todas as armas em seu poder. Se os russos os interceptarem e descobrirem as armas, poderão não entender
a razão de vocês estarem armados. A melhor defesa está nos seus uniformes de prisão.
Naquela cidade, a sudeste de Praga e no caminho para a Áustria, ainda havia a probabilidade de encontrar unidades hostis. Os guerrilheiros encaminharam Oskar e os
outros para a Cruz Vermelha tcheca, cuja sede ficava na praça da cidade. Lá eles poderiam passar em segurança o resto da noite.
Mas, quando chegaram à cidade, o pessoal da Cruz Vermelha sugeriu que, devido à incerteza da paz, provavelmente estariam mais bem protegidos na cadeia local. Os
veículos foram deixados na praça, à vista da sede da Cruz Vermelha, e Oskar, Emilie e seus oito companheiros carregaram as suas poucas malas e dormiram nas celas,
destrancadas, da cadeia.
Quando de manhã voltaram à praça, descobriram que ambos os veículos tinham sido pilhados. Todo o estofamento do Mercedes fora rasgado, os diamantes haviam desaparecido,
assim como os pneus do caminhão e peças do motor. Os tchecos não se perturbaram com o incidente, dizendo que todo mundo devia esperar perder alguma coisa em tempos
assim. Talvez até tenham suspeitado de que Oskar, com seu cabelo louro e olhos azuis, era um SS fugitivo.
O grupo perdera o seu transporte mas havia um trem de partida para Kaplice, e eles o apanharam, ainda vestidos com os seus uniformes listrados. Heuberger diz que
seguiram no trem "até chegar à floresta,e então caminhamos". Em alguma parte naquela região fronteiriça, bem ao norte de Linz, era provável que encontrassem os americanos.
O grupo estava percorrendo a pé uma estrada, que cortava um bosque, quando deparou com dois jovens americanos mascando chicletes, sentados ao lado de uma metralhadora.
Um dos prisioneiros de Oskar dirigiu-se a eles em inglês.
- A ordem que temos é de não deixar passar ninguém nesta estrada - disse um dos americanos.
- Mas será proibido circundar a estrada através dos bosques? -perguntou o prisioneiro.
O GI continuou mascando. Uma estranha raça, sempre mascando!
- Acho que não - respondeu finalmente o GI.
Assim eles deram a volta pelos bosques e, ao retornar à estrada meia hora depois, esbarraram com uma companhia de infantaria marchando para o norte em coluna dupla.
Mais uma vez, recorreram ao intérprete e se puseram a falar com os oficiais de reconhecimento da unidade. O próprio comandante chegou num jipe, saltou, interrogou-os.
Foram francos, dizendo-lhe que Oskar era o Herr Direktor e eles judeus. Acreditavam estar em terreno seguro, pois sabiam pela BBC de Londres que as forças americanas
incluíam muitos americanos de origem alemã e judaica. O capitão disse-lhes que não saíssem dali e partiu sem explicação, deixando-os sob a guarda de dois soldados
de infantaria, meio embaraçados, que lhes ofereceram cigarros, tipo Virgínia, que tinham aquele aspecto quase reluzente - como o jipe, as fardas, os equipamentos
- que caracteriza uma grande e arrogante fábrica de qualidade, superior.
Embora Emilie e os prisioneiros tivessem receio de Oskar ser preso, ele próprio sentou-se na relva, aparentemente despreocupado, e respirou o ar da primavera. Estava
de posse de sua carta hebraica e sabia que Nova York era etnicamente uma cidade em que o hebraico não era desconhecido. Meia hora se passou e alguns soldados apareceram
caminhando informalmente pela estrada e não enfileirados como numa infantaria. Eram soldados judeus e entre eles havia um rabino de campanha. Mostraram-se muito
efusivos. Abraçaram o grupo todo, inclusive Emilie e Oskar. E disseram que eles eram os primeiros sobreviventes de campos de concentração com que o batalhão deparava.
Terminadas as saudações, Oskar exibiu sua carta judaica de referência; o rabino leu-a e pôs-se a chorar. Transmitiu os detalhes aos outros americanos. Houve aplausos,
mais apertos de mão, mais abraços. Os jovens GIs pareciam tão abertos, tão expansivos, tão infantis. Embora só uma ou duas gerações os separassem da Europa Central,
estavam tão marcados pela América que o espanto que causaram ao grupo não foi menor do que o que o grupo lhes causou.
O resultado foi que o grupo Schindler passou dois dias na fronteira austríaca, como convidado do comandante do regimento e do rabino. Beberam um excelente café autêntico,
como nunca mais tinham provado desde a fundação do gueto. E comeram opulentamente. Passados os dois dias, o rabino ofereceu-lhes uma ambulância capturada, na qual
eles viajaram até a cidade em ruínas de Linz. na Alta Áustria
No segundo dia de paz em Brinnlitz, os russos ainda não tinham aparecido. O grupo de comando preocupava-se com a obrigação de demorar-se no campo por mais tempo
do que seria necessário. Lembrando-se da única vez em que tinham visto a SS mostrar medo - fora a ansiedade de Motzek e seus companheiros naqueles últimos dias -
quando houvera um surto de tifo; resolveram pendurar tabuletas com a palavra TIFO ao longo de toda a cerca.
Três guerrilheiros tchecos apareceram uma tarde no portão e falaram pela cerca com os homens de sentinela. Estava tudo acabado agora, disseram eles. "Vocês estão
livres para ir para onde quiserem."Mas os comandos da prisão responderam que só sairiam quando os russos chegassem. Até lá, pretendiam ficar todos no campo.
A resposta demonstrava algo da patologia do prisioneiro, a desconfiança, adquirida após um tempo na prisão, que o mundo fora da cerca era perigoso e a liberdade
teria de ser readquirida por estágios. E também demonstrava a prudência deles. Ainda não estavam convencidos da partida da última unidade alemã. Os tchecos encolheram
os ombros e se foram.
Nessa noite, quando Poldek Pfefferberg fazia parte da guarda no portão principal, ouviu-se o ruído de motocicletas na estrada. As motocicletas não se afastaram,
como se dera com as Panzers, mas foram se aproximando do campo. Cinco motocicletas marcadas com o signo da caveira da SS estacaram ruidosamente junto à cerca. Quando
os SS - Poldek lembra-se de que eram muito jovens - desligaram os motores e se aproximaram do portão, houve uma violenta discussão entre os homens armados dentro
do campo para decidir se os visitantes deviam ser imediatamente baleados.
O NCO no comando do grupo de motocicletas pareceu compreender o perigo inerente à situação. Colocou-se a certa distância da cerca, com as mãos estendidas. Precisavam
de gasolina, disse ele. Presumia que, tratando-se de um campo com fábrica, Brinnlitz devia ter gasolina.
Pfefferberg aconselhou que era melhor supri-los de combustível e deixar que se fossem, a criar problemas abrindo fogo sobre eles. Outros elementos do regimento podiam
se achar na região e serem atraídos pelo ruído do tiroteio.
No final, os SS tiveram permissão para entrar no campo. Alguns dos prisioneiros foram até a garagem providenciar a gasolina. O NCO SS teve o cuidado de dar a entender
aos comandos do campo - que estavam vestidos com macacões azuis numa tentativa de parecer guardas informais, ou pelo menos Kapos alemães - que não estava estranhando
ver prisioneiros armados defendendo o seu campo.
- Espero que tenham notado que há um surto de tifo aqui -disse Pfefferberg, apontando para as tabuletas.
Os SS se entreolharam.
- Já perdemos duas dúzias de pessoas - disse Pfefferberg. -Temos mais cinqüenta doentes isolados no porão.
Essa informação pareceu impressionar os cavalheiros das caveiras.
Estavam cansados. Estavam fugindo. Isso já lhes bastava. Não queriam o perigo de contágio além de todos os outros perigos.
Quando a gasolina chegou, em latas de cinco galões, eles agradeceram, cumprimentaram e se retiraram do campo. Os prisioneiros ficaram observando, enquanto eles enchiam
os tanques e, com muita consideração, deixavam junto à cerca as latas que não tinham cabido nos carros laterais de suas motocicletas. Calçaram as luvas, acionaram
os motores, tendo o cuidado de não aumentar a rotação para não desperdiçar gasolina com floreios. O ruído foi desaparecendo do lado sudoeste rumo à aldeia. Esse
polido encontro foi o último que aqueles homens, reunidos no portão, teriam com qualquer um usando o uniforme da perversa legião de Heinrich Himmler.
No terceiro dia o campo foi liberado por apenas um oficial russo. Montado a cavalo, ele emergiu dos desfiladeiros por onde a estrada e o desvio ferroviário chegavam
a Brinnlitz. À medida que se aproximava, tornou-se visível que o cavalo era um mero pônei. Os pés magros do oficial, nos estribos, quase arrastavam no chão, e suas
pernas estavam comicamente dobradas sob o abdômen descarnado do cavalo. Parecia estar trazendo a Brinnlitz uma liberação pessoal, penosamente obtida, pois sua farda
estava surrada e a tira de couro que retinha o fuzil tão desgastada pelo suor, pelo inverno e pelos combates, que tivera de ser substituídas por uma corda. Os arreios
do cavalo eram também de corda.
O oficial era louro e, como os russos sempre se parecem com os poloneses, muito estranho e muito familiar. Após uma curta conversa em híbrido polonês-russo, o comando
no portão permitiu que ele entrasse.
Logo a notícia de sua chegada se espalhou por toda parte no campo. Quando ele desmontou, foi beijado pela Sra. Krumholz. Sorriu e pediu, em ambas as línguas, uma
cadeira; um dos homens mais jovens foi buscá-la.
Pondo-se de pé em cima da cadeira para dar a impressão de ser mais alto, o que, em relação à maioria dos prisioneiros não seria necessário, ele pronunciou em russo
o que parecia um discurso padronizado de libertação. Moshe Bejski conseguiu compreender o sentido principal. Eles haviam sido libertados pelo glorioso Exército Soviético.
Estavam livres para ir para a cidade, seguir o rumo da escolha de cada um. Pois, sob o regime soviético, como num céu fictício, não havia judeus nem cristãos, homens
nem mulheres, prisioneiros ou homens livres. Não deviam tirar mesquinhas vinganças na cidade. Os Aliados saberiam encontrar seus opressores e sujeitá-los a um solene
e justo castigo. A consciência de que agora estavam livres devia sobrepujar quaisquer outras considerações.
Desceu da cadeira, sorriu, como se quisesse dizer que, uma vez terminado o seu dever de porta-voz, estava pronto para responder a perguntas. Bejski e alguns outros
começaram a falar-lhe; ele apontou para si mesmo e disse, em iídiche-bielo-russo quebrado - do tipo que se aprende menos dos pais do que dos avós - que era judeu.
Agora a conversa adquiriu um tom mais íntimo.
Já esteve na Polônia? - perguntou-lhe Bejski.
Sim - admitiu o oficial. - Estou vindo agora da Polônia.
Restou algum judeu lá?
Não vi nenhum.
Os prisioneiros agora o cercavam, traduzindo ou transmitindo a conversa uns para os outros.
De onde é você? - perguntou o oficial a Bejski.
De Cracóvia.
Estive em Cracóvia há duas semanas.
Auschwitz? O que me conta de Auschwitz?
Ouvi dizer que em Auschwitz ainda restam uns poucos judeus. Os prisioneiros pareceram pensativos. O russo dava a impressão de que a Polônia era agora um vácuo, e
que, se voltassem para Cracóvia, iriam sentir-se como ervilhas secas chocalhando dentro de um pote.
- Há alguma coisa que eu possa fazer por vocês? - perguntou o oficial.
Alguns gritaram por comida. O oficial achava que poderia arranjar-lhes uma carroça cheia de pão e um pouco de carne de cavalo.
O carregamento chegaria antes do cair da tarde.
- Mas vocês devem e podem encontrar alimento na cidade - sugeriu o oficial.
Era uma idéia radical - que eles deviam simplesmente sair pelo portão afora e começar a fazer compras em Brinnlitz. Para alguns dos prisioneiros essa iniciativa
era ainda uma opção inimaginável.
Os rapazes mais jovens, como Pemper e Bejski, foram atrás do oficial, quando ele já ia sair do campo. Se não havia mais judeus na Polônia, não havia mais lugar algum
aonde ir. Não queriam que ele lhes desse instruções mas achavam que poderia esclarecer-lhes algumas dúvidas. O russo, que estava desamarrando da cerca as rédeas
de seu pônei, deteve-se um instante.
- Não sei - disse ele, encarando-os. - Não sei para onde vocês devem ir. Não escolham ir para o leste, isso eu posso lhes dizer. Mas tampouco sigam para o
oeste. - E recomeçou a desamarrar o nó das rédeas. - Em parte alguma gostam de nós.
Conforme lhes aconselhara o oficial russo, os prisioneiros de Brinnlitz finalmente saíram pelos portões, a fim de fazer a sua primeira tentativa de contato com o
mundo exterior. Os mais jovens foram os primeiros a se aventurar. Danka Schindel saiu no dia seguinte à liberação e escalou a colina coberta de bosques atrás do
campo. Lírios e anêmonas começavam florescer e os pássaros migratórios estavam chegando da África. Danka sentou-se por algum tempo na colina, saboreando o dia; depois
rolou para o sopé e estirou-se na relva, aspirando as fragrâncias e contemplando o céu. Demorou-se tanto ali que seus pais presumiram que os habitantes da cidade
ou os russos lhe tivessem causado algum mal. Goldberg também saiu cedo, talvez tivesse sido o primeiro a partir, para arrecadar seus bens em Cracóvia. E,
assim que pôde, emigrou para o Brasil.
A maioria dos prisioneiros mais velhos permaneceu no campo. Os russos agora tinham entrado em Brinnlitz, ocupando como quartel dos oficiais uma casa numa colina
acima da aldeia. Trouxeram para o campo um cavalo abatido, que os prisioneiros comeram esfaimadamente, alguns deles achando a comida demasiado rica, após tanto tempo
alimentando-se só com vegetais e pão e o mingau de Emilie Schindler.
Lutek Feigenbaum, Janek Dresner e o jovem Sternberg foram dar uma batida na cidade, que estava sendo patrulhada por elementos da resistência tcheca; a população
de Brinnlitz, de origem alemã, tinha receio dos prisioneiros liberados. O dono de uma mercearia disse-lhes que eles podiam levar um pacote de açúcar, que tinha no
seu estoque. O jovem Sternberg não resistiu, e, abaixando-se, enfiou na boca um punhado do açúcar, que o deixou terrivelmente indisposto. Estava descobrindo o que
o grupo Schindler já descobrira em Nuremberg e Ravensburg - que a readaptação à liberdade e à abundância tinha de ser gradual.
O objetivo principal da incursão à cidade fora conseguir pão. Feigenbaum, como membro do comando Brinnlitz, estava armado de uma pistola e um fuzil e, quando o padeiro
insistiu em que não tinha pão, um dos outros lhe disse: "Ameace-o com o fuzil." Afinal, o homem era um Sudetendeutsch e, em teoria, conivente com todos os seus algozes.
Feigenbaum apontou a arma para o padeiro e, atravessando a padaria, entrou na moradia dele, à procura de farinha escondida. Na saleta, encontrou a mulher e as duas
filhas do padeiro imobilizadas pelo medo. Pareciam tão apavoradas, tão semelhantes a qualquer família de Cracóvia durante uma Aktion, que Feigenbaum sentiu-se tomado
de uma grande vergonha. Cumprimentando-as com um gesto de cabeça, como se estivesse fazendo uma visita social, ele se retirou.
Mila Pfefferberg foi tomada da mesma vergonha, quando fez a sua primeira visita à aldeia. Ao entrar na praça, um guerrilheiro tcheco deteve duas jovens Sudeten e
as fez descalçar os sapatos para que Mila, que estava de tamancos, pudesse escolher o par que melhor lhe servia. Esse tipo de arbitrariedade a fez corar, e ela se
sentou, constrangida, na calçada para experimentar os sapatos. O guerrilheiro entregou os tamancos à jovem Sudeten e seguiu caminho. Mila então correu atrás da moça
e devolveu-lhe os sapatos. A Sudetendeutscherin, recorda Mila, não foi sequer cortês.
À noite, os russos apareciam no campo à procura de mulheres. Pfefferberg teve de encostar uma pistola na cabeça de um soldado que entrara no campo das mulheres e
agarrara a Sra. Krumholz. (Durante anos, a Sra. Krumholz iria caçoar de Pfefferberg, apontando para ele e acusando-o: "A única chance que tive de arranjar um homem
mais moço, esse patife estragou!") Três moças foram levadas - mais ou menos voluntariamente - para uma festa dos russos e voltaram três dias depois dizendo que tinham
se divertido muito.
O domínio de Brinnlitz provou ser negativo; dentro de uma semana, os prisioneiros começaram a sair do campo. Alguns, cujas famílias haviam sido aniquiladas, seguiram
diretamente para o Ocidente, desejando
nunca mais tornar a ver a Polônia. Os irmãos Bejski, usando o tecido e a vodea que tinham recebido para pagar a viagem, rumaram para a Itália e embarcaram num navio
sionista com destino à Palestina. Os Dresner atravessaram a pé a Morávía e a Boêmia e chegaram à Alemanha, onde Janek foi um dos dez primeiros estudantes a se matricular
na Universidade Bávara de Erlangen, quando ela voltou a funcionar no final do ano.
Manci Rosner retornou a Podgórze, onde tinha um encontro marcado com Henry. Libertado de Dachau juntamente com Olek, Henry Rosner estava um dia em um pissoir em
Munique, quando viu outro homem usando as roupas listradas de uma prisão. Perguntou-lhe onde ele estivera preso. "Brinnlitz", respondeu o homem e acrescentou
(inexatamente, como se viu mais tarde) que todo mundo, exceto uma velha senhora, tinha sobrevivido em Brinnlitz. Quanto a Manci, saberia da sobrevivência de Henry
através de um primo que entrou numa sala, onde Manei estivera esperando, e sacudiu no ar um papel com a lista dos nomes de poloneses liberados de Dachau.
- Manci! - exclamou o primo. - Dê-me um beijo. Tanto Henry como Olek estão vivos.
Regina Horowitz teve um encontro parecido. Levou três semanas para ir de Brinnlitz a Cracóvia, com sua filha Niusia. Lá chegando, alugou um quarto - graças à venda
de um dos produtos do depósito da Marinha - e ficou esperando por Dolek. Quando ele apareceu, os dois começaram a investigar o paradeiro de Richard, mas nada conseguiram
apurar. Um dia, naquele verão, Regina assistiu a um filme de Auschwitz que os russos haviam filmado e estavam exibindo grátis à população polonesa. Ela viu as famosas
seqüências do campo de crianças, que olhavam do outro lado de uma cerca ou eram conduzidas por freiras para longe dos fios de arame eletrificado de Auschwitz I.
Por ser tão pequeno e atraente, Richard aparecia em quase todas as tomadas.
Regina levantou-se gritando e saiu do cinema. O gerente e várias pessoas presentes tentaram acalmá-la na rua. "É o meu filho, o meu filho!", continuava ela gritando.
Agora que sabia que ele estava vivo, conseguiu descobrir que Richard havia sido entregue pelos russos a uma das organizações judaicas de salvamento. Admitindo que
seus pais
estavam mortos, a organização permitira que ele fosse adotado pela família
Liebling, velha conhecida dos Horowitz. O endereço foi fornecido a Regina; quando ela chegou à porta do apartamento dos Liebling, pôde ouvir Richard lá dentro,
tamborilando com uma panela e gritando: "Hoje vai ter sopa para todo mundo!" Quando ela bateu na porta, ele chamou a Sra. Liebling para atender.
Assim seu filho lhe foi devolvido. Mas depois de ele ter visto os cadafalsos de Plaszóvia e Auschwitz, sua mãe nunca mais pôde levá-lo a um playground, sem que Richard
ficasse histérico à vista das armações de ferro dos brinquedos.
Em Linz, o grupo de Oskar procurou as autoridades americanas, entregou a insegura ambulância e foi levado de caminhão a Nuremberg, para um grande centro para prisioneiros
de campos de concentração, que não tinham ainda para onde ir. Estavam descobrindo que, como já suspeitavam, a libertação não se processava sem muitas dificuldades.
Richard Rechen tinha uma tia em Constanz, junto ao lago, na fronteira suíça. Quando os americanos perguntaram ao grupo se havia algum lugar para onde eles pudessem
ir, falaram na casa dessa tia. A intenção dos oito jovens ex-prisioneiros de Brinnlitz era, se possível, ajudar o casal Schindler a atravessar a fronteira suíça,
no caso de subitamente irromper a vingança contra a Alemanha e, mesmo na zona americana, o casal ser injustamente punido. Além disso, todos os oito eram emigrantes
potenciais e acreditavam que seria mais fácil providenciar na Suíça a sua regularização.
Heuberger recorda-se de que o comandante americano em Nuremberg manteve um relacionamento cordial com o grupo mas se recusou a fornecer qualquer espécie de transporte
que os levasse para Constanz.
Assim, eles fizeram a jornada da melhor maneira que puderam, cruzando a Floresta Negra, ora de trem, ora a pé. Perto de Ravensburg, dirigiram-se ao campo de concentração
local e falaram com o comandante americano. Ali também permaneceram alguns dias como hóspedes, descansando e se alimentando muito bem, com rações do Exército. À
noite, conversavam até tarde com o comandante, que era de ascendência judaica; contavam-lhe histórias de Amon em Plaszóvia, de Grõss-Rosen, Auschwitz, Brinnlitz.
Esperavam que ele lhes fornecesse algum transporte para Constanz, possivelmente de caminhão. O comandante não podia ceder um caminhão mas lhes forneceu um
ônibus, juntamente com algumas provisões para a viagem. Embora Oskar ainda tivesse em seu poder diamantes no valor de 1.000 RM e algum dinheiro em espécie, ao que
parece, o ônibus não foi vendido e, sim, fornecido gratuitamente. Depois de suas negociações com os burocratas alemães, deve ter sido difícil para Oskar adaptar-se
a esse novo tipo de transação.
A oeste de Constanz, na fronteira suíça e na Zona de Ocupação francesa, eles estacionaram o ônibus na aldeia de Kreuzlingen. Rechen foi à loja de ferragens local
e comprou um alicate. Parece que o grupo ainda estava usando o uniforme da prisão, quando foi comprado o alicate.
Talvez o homem por trás do balcão estivesse influenciado por uma e duas considerações: (a) aquele era um prisioneiro e, se algo lhe fosse negado, poderia apelar
para os seus protetores franceses; (b) tratava-se na realidade de um oficial alemão, fugindo disfarçado, e talvez devesse ser ajudado.
A cerca de divisão da fronteira cortava Kreuzlingen ao meio e era guardada do lado alemão por sentinelas francesas da Sûreté Militaire. O grupo aproximou-se dessa
barreira, na orla da aldeia, e, depois de cortar os arames, esperou que a sentinela estivesse na outra extremidade para se esgueirar para o lado suíço. Infelizmente,
uma mulher da aldeia viu-os de uma curva da estrada e correu à fronteira para alertar franceses e suíços. Numa tranqüila praça da aldeia suíça, uma réplica exata
da existente no lado alemão, a polícia suíça cercou o grupo mas Richard e Anka escapuliram e tiveram de ser perseguidos e apanhados por um carro de patrulha. Dentro
de meia hora o grupo estava de volta ao lado dos franceses, que imediatamente revistaram todos eles e descobriram os diamantes e o dinheiro; trancafiaram-nos em
celas separadas, numa antiga prisão alemã.
Para Heuberger era claro que eles estavam sob suspeita de terem sido guardas de campo de concentração. Nesse sentido, o peso que eles haviam recuperado, como hóspedes
dos americanos, foi-lhes prejudicial, pois não pareciam tão subalimentados, como quando tinham saído de Brinnlitz. Foram interrogados separadamente sobre sua jornada,
sobre os valores que estavam levando. Todos podiam contar uma história
plausível mas não sabiam se os outros tinham contado a mesma coisa. Pareciam apreensivos, sentimento que não haviam nutrido com relação aos americanos, de vez que,
se os franceses descobrissem a identidade de Oskar e sua função em Brinnlitz, iriam normalmente considerá-lo culpado. Falseando a verdade, a fim de proteger
Oskar e Emilie, eles permaneceram ali uma semana. Quanto aos Schindler, seus conhecimentos do judaísmo eram suficientes para ultrapassarem os óbvios testes culturais.
Mas as maneiras de Oskar e sua condição física não tornavam muito crível a sua condição de ex-prisioneiro da SS.
Lamentavelmente, sua carta hebraica ficara em Linz, nos arquivos dos americanos.
Edek Heuberger, como líder dos oito prisioneiros, foi o mais interrogado; no sétimo dia de sua prisão, ao ser levado à sala do interrogatório, deparou com mais uma
pessoa, um homem em trajes civis, que sabia falar polonês e viera ali para comprovar a alegação de Heuberger de ter vindo de Cracóvia. Por alguma razão - porque
o polonês adotara uma atitude compassiva no interrogatório que se seguiu ou talvez devido à familiaridade da língua - Heuberger perdeu o controle, começou a chorar
e contou toda a história em polonês fluente. Os outros foram chamados um por um, colocados face a face com Heuberger e receberam ordem de contar em polonês a sua
versão da verdade.
Quando, no final da manhã, constataram que as versões eram idênticas, inclusive as dos Schindler, o grupo todo, reunido na sala do interrogatório, foi abraçado
por ambos os interrogadores. Diz Heuberger que o francês estava chorando. Todos se deliciaram com aquele espetáculo inédito - um interrogador em lágrimas. Quando
ele conseguiu
se controlar, mandou buscar um almoço para si próprio, seu colega, os Schindler e os oito prisioneiros.
Naquela mesma tarde, transferiu o grupo para um hotel à beira do lago em Constanz, onde eles passaram alguns dias com as despesas pagas pelo governo militar francês.
Nessa noite, quando Oskar se sentou à mesa do jantar no hotel, com Emilie, Heuberger, os Rechen e os outros, os seus haveres já tinham passado para as mãos dos soviéticos
e suas últimas jóias e dinheiro já
haviam desaparecido nos interstícios da burocracia de libertação. Estava agora a zero, mas muito bem alimentado, num bom hotel e com a sua "família". Dali por diante,
seu futuro seria sempre assim.
Epílogo
Estava agora encerrado o período heróico da vida de Oskar. A paz nunca o exaltaria tanto como a guerra o havia feito. Oskar e Emilie foram para Munique. Por algum
tempo moraram com os Rosner, pois Henry e o irmão tinham sido contratados para tocar num restaurante de Munique e, com isso, conseguido uma modesta prosperidade.
Um dos antigos prisioneiros de Oskar, encontrando-o no exíguo apartamento dos Rosner, espantou-se ao vê-lo com um paletó rasgado. As suas propriedades em Cracóvia
e Morávia, naturalmente, haviam sido confiscadas pelos russos, e o que lhe restara de jóias servira para comprar comida e bebida. Quando os Feigenbaum chegaram
a Munique, ficaram conhecendo a sua mais recente amante, uma sobrevivente judia, não de Brinnlitz, mas de campos piores. Muitos dos visitantes do seu apartamento
de aluguel, por mais indulgentes que fossem com relação às fraquezas do heróico Oskar, sentiam-se envergonhados por causa de Emilie. Continuava sendo um amigo
extremamente generoso e um excelente desencavador de coisas que ninguém mais conseguia encontrar. Henry Rosner recorda que Oskar descobriu um manancial de galinhas
em Munique, cidade onde não se encontrava uma só galinha. Procurava sempre a companhia dos seus judeus, os que tinham vindo para a Alemanha - os Rosner, os Pfefferberg,
os Dresner, os Feigenbaum, os Sternberg. Alguns cínicos diriam mais tarde que, na época, era prudente para qualquer um, que tivesse estado envolvido com campos de
concentração, manter-se em contato com amigos judeus, o que emprestava uma coloração protetora. Mas a ligação de Oskar ia além desse tipo de astúcia. Os Schindlerjuden
eram agora a sua família.
Através dos seus amigos judeus, ele soube que Amon Goeth havia sido capturado pelos americanos de Patton, no mês de fevereiro anterior, quando se achava internado
num sanatório da SS em Bad Tolz; estivera preso em Dachau; e, no fim da guerra, fora entregue ao novo Governo polonês. De fato, Amon fora dos primeiros alemães remetidos
para a Polônia a fim de serem julgados. Vários ex-prisioneiros foram chamados a depor no julgamento e, entre as testemunhas da defesa, o iludido Amon pensou em convocar
Helen Hirsch e Oskar Schindler. Oskar, porém, não compareceu aos julgamentos em Cracóvia. Os que compareceram tiveram a oportunidade de ouvir Amon, agora magro em
conseqüência da diabetes, apresentar uma defesa moderada mas sem qualquer vislumbre de arrependimento. Todas as ordens para os seus atos de execução e transporte
de prisioneiros haviam sido assinadas por seus superiores, alegou ele, e portanto o crime era deles e não seu. As testemunhas que narraram os assassinatos cometidos
com as próprias mãos pelo comandante, segundo Amon, estavam exagerando maliciosamente. Alguns prisioneiros tinham sido executados por sabotagem porque numa guerra
sempre havia sabotadores.
Mietek Pemper, esperando ser chamado para depor, sentara-se no recinto do tribunal, ao lado de outro ex-prisioneiro de Plaszóvia, que fitou Amon no banco dos réus
e sussurrou: "Esse homem ainda me apavora." Mas o próprio Pemper, como primeira testemunha da acusação, expôs uma lista detalhada dos crimes de Amon. A ele, seguiram-se
outros, inclusive o Dr. Biberstein e Helen Hirsch, que tinham recordações bem precisas e dolorosas. Amon foi condenado à morte e enforcado em
Cracóvia, no dia 13 de setembro de 1946. Havia exatamente dois anos que a SS o prendera em Viena, sob a acusação de atividades no mercado negro. De acordo com a
imprensa de Cracóvia, ele subiu à forca sem demonstrar remorso e, antes de morrer, fez a saudação nacionalsocialista.
Em Munique, o próprio Oskar identificou Liepold, que fora detido pelos americanos. Um prisioneiro de Brinnlitz acompanhou Oskar na identificação, e conta que Oskar
perguntou a Liepold, que protestava contra ele: "Você prefere que eu o identifique ou quer deixar isso para os cinqüenta judeus enraivecidos que estão esperando
lá na rua?" Liepold seria também enforcado - não pelos seus crimes em Brinnlitz, mas por assassinatos anteriores em Budzyn.
Provavelmente Oskar já tinha planejado tornar-se um fazendeiro na Argentina, dedicar-se à criação de nútrias, grandes roedores aquáticos, cuja pele é muito valorizada.
Presumia que o mesmo excelente instinto comercial, que o havia levado a Cracóvia em 1939, agora o induzia a atravessar o Atlântico. Perdera todo o dinheiro mas a
organização internacional de ajuda judaica, que conhecia os seus antecedentes, estava disposta a ajudá-lo. Em 1949 fizeram-lhe um pagamento ex gratia de USS 15.000
e deram-lhe uma referência ("A Quem Possa Interessar") assinada por M.W. Beckelman, vice-presidente do Conselho Executivo da organização:
O Comitê Americano da Junta de Distribuição investigou minuciosamente as atividades do Sr. Schindler no período da guerra e da ocupação... A nossa recomendação irrestrita
é que as organizações e pessoas, a quem o Sr. Schindler possa procurar, façam todo o possível para ajudá-lo, em reconhecimento pelos seus eminentes serviços...
Sob o pretexto de administrar uma fábrica nazista de trabalhos forçados, primeiro na Polônia e depois na Sudetenlândia, o Sr. Schindler conseguiu recrutar como seus
empregados e proteger judeus e judias destinados a morrer em Auschwitz e em outros infames campos de concentração... Testemunhas relataram ao nosso Comitê que o
"campo de Schindler em Brinnlitz era o único, nos territórios ocupados pelos nazistas, em que nunca foi morto um judeu, ou mesmo espancado, mas, ao contrário, sempre
tratado como um ser humano."
Agora, quando ele vai iniciar uma nova vida, devemos ajudá-lo, como ele ajudou os nossos irmãos.
Quando Oskar embarcou para a Argentina, levou consigo uma dúzia de famílias Schindlerjuden, pagando a passagem de muitos deles. Juntamente com Emilie, ele se instalou
numa fazenda na província de Buenos Aires e lá trabalhou durante quase dez anos. Os sobreviventes protegidos de Oskar, que não o viram durante aqueles anos, acham
difícil imaginá-lo como fazendeiro, já que ele nunca fora um homem capaz de se adaptar a rotinas. Dizem alguns, e talvez seja verdade, que a Emalia e Brinnlitz tiveram
êxito, durante a sua excêntrica administração, graças à competência de homens como Stern e Bankier. Na Argentina, Oskar não tinha esse apoio, apenas o bom senso
e a experiência de vida rural de sua mulher.
Durante a década em que Oskar se dedicou à criação de nútrias, ficou provado que a criação dos animais, em vez de sua captura em armadilhas, não produzia peles de
boa qualidade. Muitas outras criações desse tipo fracassaram naquele período; assim, em 1957 os Schindler foram à falência. Emilie e Oskar mudaram-se para uma casa
cedida pela B'nai B'rith em San Vicente, um subúrbio ao sul de Buenos Aires, e por algum tempo Oskar procurou trabalho como representante de vendas. Entretanto,
um ano depois ele partia para a Alemanha. Emilie permaneceu na Argentina.
Oskar passou a residir num pequeno apartamento em Frankfurt Tentou arranjar capital para comprar uma fábrica de cimento e cogitou da possibilidade de o Ministério
das Finanças da Alemanha Ocidental pagar-lhe uma grande indenização pela perda de suas propriedades na Polônia e na Tchecoslováquia. Mas nada conseguiu. Alguns dos
sobreviventes de Oskar consideraram que o fato de o Governo alemão não lhe pagar o que devia era devido à atuação de remanescentes do hitlerismo infiltrado no funcionalismo
público mais categorizado. Mas a reivindicação de Oskar provavelmente fracassou por motivos técnicos, não sendo possível detectar malícia burocrática na correspondência
endereçada pelo Ministério a Oskar.
A empresa Schindler de cimento foi fundada com capital do Comitê de Distribuição e com "empréstimos" de vários judeus Schindler, que tinham feito fortuna na Alemanha
do pós-guerra. Mas durou pouco. Em 1961 Oskar tornou a falir. Sua fábrica fora prejudicada por uma série de invernos rigorosos e pela suspensão das atividades da
indústria de construção. Mas alguns dos sobreviventes Schindler acreditam que o fracasso da companhia dele foi causado pelo temperamento irrequieto de Oskar, avesso
ao trabalho de rotina.
Naquele ano, sabendo que Oskar estava em dificuldades, os Schindlerjuden radicados em Israel convidaram-no a visitá-los com despesas pagas. Apareceu um anúncio na
imprensa de língua polonesa, em Israel, convidando todos os antigos internos do Campo de Concentração Brinnlitz, que tinham conhecido "o alemão Oskar Schindler",
a entrarem em contato com o jornal. Em Tel Aviv Oskar teve uma maravilhosa recepção. Os filhos do pós-guerra de seus sobreviventes o festejaram. Estava mais corpulento
e com as feições mais pesadas. Mas, nas festas e recepções, aqueles que o tinham conhecido, notaram que ele era o mesmo indômito Oskar. O mesmo senso de humor e
voz rouquenha, o escandaloso charme à Charles Boyer, a sede insaciável tinham sobrevivido a suas duas falências.
Era o ano do julgamento de Adolf Eichmann e a visita de Oskar a Israel despertou certo interesse na imprensa internacional. Na véspera do início do julgamento de
Eichmann, o correspondente do Daily Mail de Londres escreveu um artigo sobre o contraste entre os antecedentes dos dois homens. Citou o preâmbulo de um apelo dos
Schindlerjuden de ajuda a Oskar. "Não esqueçamos os sofrimentos no Egito, não esqueçamos Haman, não esqueçamos Hitler. Mas, em meio aos injustos, não esqueçamos
os justos. Lembremos de Oskar Schindler."
Havia certa incredulidade entre os sobreviventes do Holocausto sobre a idéia de um benigno campo de trabalhos forçados como o de Oskar, e essa descrença foi formulada
por um jornalista numa entrevista coletiva de Schindler, em Jerusalém.
- Como pode o senhor explicar - perguntou o jornalista - que conhecesse todos os membros da SS na região de Cracóvia e mantivesse com eles transações regulares?
- Naquele estágio dos acontecimentos - respondeu Oskar - seria meio difícil discutir o destino dos judeus com o Chefe Rabino de Jerusalém.
O Departamento das Escrituras do Yad Vashem, mais para o fim da permanência de Oskar na Argentina, tinha-lhe pedido uma declaração geral de suas atividades em Cracóvia
e Brinnlitz. Agora, por iniciativa do próprio Departamento e sob a influência de Itzhak Stern, Jakob Sternberg e Moshe Bejski (que fora o falsificador de carimbos
oficiais de Oskar e era agora um respeitável advogado), os curadores do Yad Vashem começaram a cogitar de um tributo oficial a Oskar. O secretário da junta era o
Juiz Landau, que presidia ao julgamento de Eichmann. O Yad Vashem solicitou e recebeu grande quantidade de testemunhos sobre Oskar. De todas as declarações, quatro
lhe faziam críticas. Embora todas essas quatro testemunhas admitam que, sem Oskar, teriam perecido, criticam os seus métodos de negociar nos primeiros meses da guerra.
Dois dos quatro depoimentos depreciativos foram escritos por um pai e o filho, que no começo desta narrativa são mencionados pela letra C. Em sua fábrica de esmaltados
na
Cracóvia, Oskar tinha instalado Ingrid, sua amante, como Treuhänder. Um terceiro testemunho é da secretária de C. e repete as alegações de espancamentos e maus-tratos,
queixas essas que Stern transmitira a Oskar em 1940. A quarta crítica é de um homem que alega ter tido, antes da guerra, uma participação na fábrica de esmaltados
de Oskar, quando ainda se chamava Rekord - participação esta, declarou ele, que Oskar teria posteriormente ignorado.
O Juiz Landau e seu conselho devem ter considerado insignificantes esses quatro depoimentos, comparados com a profusão de testemunhos de outros Schindlerjuden, e
abstiveram-se de comentá-los. Como todos os quatro acusadores declararam que, de qualquer forma,
Oskar os tinha salvo, deve ter ocorrido ao conselho perguntar por que, se Oskar cometera quaisquer crimes contra eles, tinha feito tão extravagantes esforços para
salvar-lhes a vida.
A municipalidade de Tel Aviv foi a primeira a homenagear Oskar. No dia de seu aniversário, ao completar cinqüenta e três anos, ele inaugurou uma placa no Parque
dos Heróis. A inscrição descreve-o como o salvador de 1.200 prisioneiros de Brinnlitz. Ainda que esse seja um número inferior ao dos resgates realmente havidos,
essa inscrição declara que a placa simboliza amor e gratidão. Em Jerusalém, dez dias mais tarde, ele foi proclamado um Justo, título israelita peculiarmente honroso,
baseando-se na concepção de que, entre os não-judeus, o Deus de Israel sempre coloca uma proporção de Justos. Oskar foi também convidado a plantar uma alfarroba
na Avenida dos Justos que leva ao Museu do Yad Vashem. A árvore ainda lá está, marcada por uma placa, num pequeno bosque formado por árvores plantadas em homenagem
a outros Justos. Uma árvore para Julius Madritsch, que alimentou ilegalmente e protegeu os seus trabalhadores de um modo nunca visto entre os Krupps e os Farbens,
ergue-se também no bosque, assim como uma para Raimund Titsch, o supervisor de Madritsch em Plaszóvia. Naquele terreno pedregoso, poucas dessas árvores comemorativas
atingiram mais do que uns três metros de altura.
A imprensa alemã publicou histórias dos salvamentos de Oskar durante a guerra e das cerimônias do Yad Vashem. Esses relatos, sempre elogiosos, não lhe tornaram a
vida mais fácil. Ele era vaiado nas ruas de Frankfurt, atiravam-lhe pedras, um grupo de trabalhadores gritou-lhe insultos, dizendo que deviam tê-lo queimado com
os judeus. Em 1963, Oskar esmurrou um homem que o chamara de "Beija-judeu", e o sujeito deu queixa dele na Justiça. No tribunal local, o menoscategorizado do poder
judiciário alemão, Oskar foi admoestado pelo juiz que o condenou a pagar uma multa. "Eu seria capaz de me matar", escreveu ele a Henry Rosner em Queens, Nova York,
"se isso não trouxesse tanta satisfação aos meus inimigos."
Essas afrontas aumentaram a sua dependência em relação aos sobreviventes, que eram sua única segurança emocional e financeira. O resto de sua vida, Oskar todo ano
passaria alguns meses com eles, vivendo satisfeito e cercado de homenagens em Tel Aviv e Jerusalém, comendo de graça num restaurante romeno na Rua Ben Yehudah, Tel
Aviv, embora às vezes tendo de se sujeitar ao zelo filial de Moshe Bejski para limitar as doses triplas de conhaque que ele costumava tomar à noite. No final, Oskar
retornaria sempre à outra metade de sua alma: a parte deserdada; o modesto, exíguo apartamento a umas poucas centenas de metros da estação ferroviária central de
Frankfurt. Escrevendo naquele ano de Los Angeles a outros Schindlerjuden radicados nos Estados Unidos, Poldek Pfefferberg insistiu com todos os sobreviventes para
que doassem pelo menos um dia de salário por ano a Oskar Schindler, cujo estado ele descrevia como de "desalento, solidão e desilusão".
Os contatos de Oskar com os Schindlerjuden continuaram numa base anual. Era uma questão de época do ano - seis meses com tratamento de herói em Israel, seis meses
na penúria de Frankfurt. Vivia de bolsos vazios.
Um comitê de Tel Aviv, do qual faziam de novo parte Itzhak Stern, Jakob Sternberg e Moshe Bejski, continuou a lutar tentando conseguir do Governo da Alemanha Ocidental
uma pensão adequada para Oskar. O motivo alegado por eles era o seu heroísmo durante a guerra, os bens que perdera e o seu precário estado de saúde. Contudo, a primeira
reação oficial da Alemanha foi condecorá-lo com a Cruz do Mérito em 1966, numa cerimônia presidida por Konrad Adenauer. Só em 1? de julho de 1968, o Ministério das
Finanças teve o prazer de informar que, a partir daquela data, pagaria a Oskar uma pensão de 200 marcos por mês. Três meses depois, ele recebeu o título pontifício
de Cavaleiro de São Silvestre das mãos do Bispo de Limburg.
Oskar ainda se mostrava disposto a cooperar com o Departamento da Justiça Federal, na busca dos criminosos de guerra. Nessa questão, ele parece ter sido implacável.
No seu aniversário em 1967, forneceu informações confidenciais relativas ao pessoal da SS em Plaszóvia. Uma transcrição de seu depoimento mostra que ele não hesitou
em depor, mas também que foi uma testemunha escrupulosa. Se nada ou pouco sabe de determinado SS, declara-o francamente. É o que diz de Amthor; do SS Zugsburger;
de Fräulein Ohnesorge, uma das violentas supervisoras.
Não hesita, entretanto, de chamar Bosch de assassino e explorador. E conta que reconheceu Bosch numa estação de estrada de ferro em Munique, em 1946; aproximou-se
dele e perguntou-lhe se depois de Plaszóvia ele ainda conseguia dormir. Bosch, revela Oskar, achava-se então de posse de um passaporte da Alemanha Oriental. Um supervisor
de nome Mohwinkel, representante em Plaszóvia da Fábrica de Armamentos Alemã, é também frontalmente acusado de "inteligente, porém brutal". Sobre Grün, o guarda-costas
de Goeth, Oskar conta a história da tentativa de execução do prisioneiro Lamus, na Emalia, que ele próprio impediu com o suborno de uma garrafa de vodca. (A história
é corroborada por muitos prisioneiros em seus depoimentos no Yad Vashem.) Com referência ao NCO Ritschek, Oskar diz que esse oficial tinha má reputação mas que não
está a par dos crimes que ele possa ter cometido. Não tem certeza, tampouco, se a foto que lhe mostrou o Departamento da Justiça é realmente de Ritschek. Apenas
uma pessoa na lista do Departamento da Justiça merece os seus elogios incondicionais: o engenheiro Huth, que tinha ajudado Oskar por ocasião da sua última prisão.
Huth. afirma ele, era muito respeitado e benquisto pelos próprios prisioneiros.
Ao entrar na casa dos sessenta, Oskar começou a trabalhar para os Amigos Alemães da Universidade Hebraica. Essa atividade era fruto da insistência dos Schindlerjuden,
preocupados em dar a Oskar uma nova finalidade na vida. O seu trabalho era angariar fundos na Alemanha Ocidental. E mais uma vez usou seu charme e sua velha capacidade
de engambelar, junto a funcionários e homens de negócios. Ajudou também a estabelecer um esquema de intercâmbio entre crianças alemãs e israelitas. Apesar
da precariedade de sua saúde, ele continuava vivendo e bebendo como um rapaz. Estava apaixonado por uma alemã chamada Annemarie, com quem travara conhecimento no
Hotel Rei Davi em Jerusalém. Annemarie seria a cavilha emocional do fim de sua vida. Sua mulher, Emilie, continuava vivendo, sem nenhuma ajuda financeira
da parte do marido, na sua casinha em San Vicente, ao sul de Buenos Aires. E lá continua no momento em que está sendo escrito este livro. Como em Brinnlitz, Emilie
permanece uma figura de discreta dignidade. Em um documentário da televisão alemã em 1973, ela falou - sem nenhum ressentimento ou mágoa de esposa abandonada - sobre
Oskar e Brinnlitz, sobre a sua própria atuação naquele campo. Perceptivelmente, ela observou que Oskar nada fizera de notável antes da guerra: tampouco fora excepcional,
quando terminou o conflito. Portanto, fora uma sorte que naquele bárbaro e violento período, entre 1939 e 1945, Oskar tivesse encontrado pessoas que fizeram
vir à tona os seus mais profundos talentos.
Em 1972, durante uma visita de Oskar ao escritório executivo, em Nova York, dos Amigos Americanos da Universidade Hebraica, três Schindlerjuden, sócios de uma grande
companhia de construção em Nova Jersey, juntamente com outros setenta e cinco prisioneiros Schindler arrecadaram USS 120.000 para dedicar a Oskar um andar no Centro
de Pesquisas Truman da Universidade Hebraica. Nesse andar ficaria exposto um Livro da Vida, contendo um relato das operações de resgate e uma lista com os nomes
das pessoas que haviam sido salvas por Oskar. Dois desses sócios, Murray Pantirer e Isak Levenstein, tinham dezesseis anos de idade quando Oskar os levou para Brinnlitz.
Agora, os filhos de Oskar tinham-se transformado em seus pais, seu melhor recurso, a fonte de sua honra.
Nessa ocasião Oskar já estava muito doente. Os médicos que o tinham examinado em Brinnlitz - entre eles Alexander Biberstein - sabiam do seu estado. Um deles advertiu
os amigos mais íntimos de Oskar: "Esse homem não devia estar vivo. Seu coração continua batendo de pura teimosia."
Em outubro de 1974, ele sofreu um colapso em seu pequeno apartamento perto da estação ferroviária de Frankfurt e morreu num hospital no dia nove. Seu atestado de
óbito certifica que um adiantado endurecimento das artérias do cérebro e do coração provocaram o colapso final. Em seu testamento ele manifestou o desejo - que transmitira
a muitos dos seus Schindlerjuden - de ser enterrado em Jerusalém.
Em duas semanas, o pároco franciscano de Jerusalém deu permissão para que Herr Oskar Schindler, um dos filhos menos devotos da Igreja, fosse enterrado no Cemitério
Latino de Jerusalém.
Passou-se mais um mês até o corpo de Oskar ser levado, num pesado ataúde, pelas ruas repletas da Velha Cidade de Jerusalém para o cemitério católico, de onde se
descortina o Vale de Hinnom, denominado Gehenna no Novo Testamento. Na foto que a imprensa publicou do cortejo podem ser vistos - entre uma porção de outros judeus
Schindler - Itzhak Stern, Moshe Bejski, Helen Hirsch, Jakob Sternberg, Juda Dresner.
Em todos os continentes, sua morte foi recebida com pesar.
APÊNDICE;
Patentes de SS e Seus Equivalentes no Exército;
OFICIAIS

Oberst-gruppenführer General;
Obergruppenführer Tenente-General;
Gruppenführer General-de-Divisão;
Brigadeführer General-de-Brigada;
Oberführer (sem equivalente no Exército);
Standartenführer Coronel;
Obersturmbannführer Tenente-Coronel;
Sturmbannführer Major;
Hauptsturmführer Capitão;
Obersturmführer Primeiro-Tenente;
Untersturmführer Segundo-Tenente;
GRADUADOS;
Oberscharführer Suboficial;
Unterscharführer equivalente a sargento;
Rottenführer equivalente a cabo;


só repassando



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