terça-feira, 31 de maio de 2011 By: Fred

Lançamento Gênesis do Conhecimento - A Essência do Dragão - Ressurreição - Andrés Carreiro


ANDRÉS CARREIRO

A ESSÊNCIA DO
DRAGÃO:
RESSURREIÇÃO

Novo Século
2010

Dedico este livro à Tereza e ao Juan, que, nos momentos
difíceis de uma vida atípica, nunca me criticaram pelo
caminho tomado, sempre me amaram.

Nel mezzo dei cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura,
ché la diritta via era smarrita.
DANTE ALIGHIERI

[...] alcançar cem vitórias em cem batalhas não é o ápice da
excelência.
Subjugar o exército inimigo sem lutar é o verdadeiro ápice
da excelência.
SUN TZU

Os amigos que me restam são de data recente; todos os
outros foram estudar a geologia dos campos-santos.
MACHADO DE ASSIS

SUMÁRIO

1. LI-SEUG
2. ADEUS, HONG KONG
3. REVELAÇÃO
4. O LIMIAR DE UMA ESPÉCIE
5. DESTINO ou ACASO?
6. AEROK
7. PRIMEIRO DIA
8. SEGUNDO DIA
9. TERCEIRO DIA
10. QUARTO DIA
11. ÚLTIMO DIA
12. VINGANÇA
13. CAMPO DE BATALHA
14. EXTERMÍNIO?
15. OBSCURIDADE REVELADA
16. RUMO AO PLANETA MARTE
17. NIIEFGÖNST
18. VARIÁVEIS
19. RESSURREIÇÃO
20. EPÍLOGO?


CAPÍTULO I
LI-SEUG

Há três mil anos...
Apenas um pequeno movimento de vento, acompanhado de
um leve silvo, foi percebido por Shoi. Uma fração de
segundos separava a espada do inimigo de sua estimada
cabeça. O arco feito pelo movimento da arma branca foi
interrompido pelo forte golpe desferido rapidamente por sua
própria espada. Tempo não era luxo naquele momento.
Tomando rapidamente a posição de atacante e não mais de
defensor, Shoi penetrou sua lâmina no ventre de seu
adversário. Naqueles instantes de silêncio, só se ouvia o
pulsar do coração constantemente refletido em suas
têmporas e a forte respiração emitida pelos dois guerreiros.
O sangue quente escorria na empunhadura e fazia um curto
caminho até sua mão. O contraste com o frio naquele dia era
extremamente visível, a ponto de o vapor exalar, como
nuvens, do sangue e dos corpos quentes ao se chocarem
com os primeiros raios de sol, que timidamente apareciam
nas horas mais quentes do dia; só que havia a dificuldade em
usar a classificação "quente" em tão terrível inverno. Olhos
arregalados encaravam o adversário e as pupilas aos poucos
se movimentavam, demonstrando o fim iminente. Uma vez
demonstrando olhos mortos, a espada foi retirada do ventre
empalado com uma força ainda maior, fazendo o corpo de
seu oponente cair como uma marionete desprendida das
cordas sustentadas por mãos de um descuidado titeriteiro.
Aqueles momentos eram tão rápidos como os reflexos de
Shoi, pois não tardava absolutamente nada até outro inimigo
aparecer, e novamente, com a rapidez de um tigre, Shoi
aumentava sua coleção de almas. Um a um os adversários
caíam a seus pés, mas a facilidade inicial tornava-se um
misto de dificuldade e cansaço. Os braços começavam a
pesar mais, e a concentração, ainda que determinada,
também começava a falhar. Um jogo para fortes. A paciência
e o momento certo tornavam-se elementos fundamentais
para um bom resultado e só nesses momentos surgiam
lendas vivas como Shoi. Uma luta em iguais condições
tornava-se o máximo em termos de glória. Não havia
riqueza, troféu, nada palpável. Somente a honra e a
satisfação da justiça. Não há nada como a consciência e a
honra, seguidas nos moldes da justiça guerreira. A própria
personificação do real combate entre homens. Nada se in-
terpondo à dança mortal sobre um palco de sangue e carne.
Somente um homem contra outro homem, e nada mais.
Depois de vencer facilmente alguns daqueles bandoleiros,
enfrentara um verdadeiro desafio em sua jornada guerreira.
O homem já havia matado alguns de seus amigos e aquilo
não poderia ficar impune. O bandoleiro, usando roupas
típicas daquela região, com seu chapéu forrado de pele,
olhos pequenos e maliciosos, dentes podres e barba densa,
desafiava Shoi fazendo movimentos com suas armas,
imitando um gesto de provocação. Aceitou o significado do
gestual e, como de costume, partiu para o ataque.
Desviando-se rapidamente dos golpes mortais desferidos,
cravou a pequena espada no ventre do adversário. Contudo
sentiu algo duro. Aquele bandoleiro usava um peitoral de
couro e ferro e a espada não conseguiu penetrar na proteção.
Reflexo em dia, não perdeu tempo e aparou dois golpes das
espadas e pulou para trás. Teria de pensar rapidamente em
como feri-lo de modo letal. Naquele segundo, as espadas do
bandido faziam um vôo mortal em sua direção com ausência
de qualquer piedade. Golpes para matar rápido. Chegara ao
ponto de um simples defensor naquele embate. Teria de
mudar rapidamente de posição. Ao defender os golpes
pesados, parecia defender golpes de uma pesada marreta.
Aquele homem, além de habilidoso, possuía força
extraordinária. Levaria seus esforços e sua técnica ao
máximo para vencê-lo. Perder, contudo, não estava na
ordem do dia para Shoi.
Enquanto o habilidoso bandoleiro golpeava sem parar, Shoi
percebeu uma falha na proteção peitoral daquele homem.
Uma tira de couro prendia o peitoral à proteção das costas e
deixava vulnerável a parte entre pescoço e ombro. Ali
encontrou a resposta para seu dilema. Deu sucessivos passos
para trás e o homem, furioso com seu insucesso até então,
correu raivosamente na direção de Shoi. Por ser mais
dinâmico, Shoi conseguiu afastar-se bem para fazer aquilo
que pretendia. De frente para o adversário, manteve a
posição desafiadora, ereto como um tronco de pinheiro, até
que inflamado de raiva o bandoleiro correu com a espada
direita em riste e a esquerda em posição defensiva. Em
fração de segundos, Shoi percebeu o momento certo e
desviou. O homem projetara seu corpo todo à frente, com o
intuito de ser mais rápido e forte, e deixou aquela parte
desprotegida de sua anatomia na posição perfeita para o
abate. Segurando rapidamente a espada ao contrário, enfiou-
a entre o pescoço e ombro, usando a força de seu oponente.
A lâmina penetrou a carne até chegar à empunhadura e o
adversário rendeu-se quase morto naqueles poucos instantes
de agonia. A arma pulsou as batidas do coração daquele
infeliz. Shoi colocou o pé entre ombro e peito e puxou a
espada de volta ao ar frio daquela manhã. De joelhos, ainda
com um filete de vida, Shoi interrompeu sua queda e passou
a espada no pescoço do moribundo, decepando-lhe a
cabeça. Dividido em dois, finalmente as partes encontraram
a neve maculada de sangue quente. O combate exauriu as
forças de Shoi. Se tivesse de enfrentar outro igual, temia por
sua própria vida. Contudo afastou esse pensamento e
continuou. Olhou ao redor e viu somente mais um em pé e
disposto a combater. Respirou, tentou reunir o máximo de
forças e seguiu em frente em seus objetivos. O homem
parecia bem mais baixo e magro em relação ao último. Usava
roupas simples, aparentemente sem armadura por baixo, e
apenas uma espada. Observava aquele outro bandido e
planejava rapidamente sua pequena estratégia de combate.
Após um jogo de paciência e estudo de seu último
adversário, Shoi resolveu atacar, mas o bandido foi mais
rápido fazendo um ferimento em sua perna. Apesar da dor, a
adrenalina permitiu uma sensibilidade não maior que um
pequeno arranhão. Aproveitando-se da projeção à frente em
que se encontrava do oponente, segurou sua espada de
modo inverso com a lâmina posicionada abaixo de seus
dedos mínimos fortemente apertados, como fizera no final
do combate do adversário anterior. Shoi estocou para trás e
atravessou-o, começando pela parte inferior das costas.
Virou-se rapidamente e, fazendo um caminho em diagonal
com a lâmina, terminou com a ponta dela rasgando carne e
pele perto do pescoço daquele pobre infeliz, que, por um
instante em sua miserável vida achou-se vantajoso em
função de um ferimento produzido na perna de seu
habilidoso oponente. Assim caiu o último obstáculo do dia.
Impressionante era a fantástica concentração demonstrada
em combate por Li-Seug Shoi, dos Li-Seugs.Tudo se
transformava em uma única entidade, ou seja, guerreiro e
ambiente se fundiam em desempenho perfeito. Não eram
apenas boatos as histórias contadas. Shoi estava entre os
melhores guerreiros daquela remota região, no extremo
nordeste da Ásia. Toda uma vida de experiências em
combate e treinos estafantes não significava absolutamente
nada, mas nada mesmo, se um guerreiro não voltasse para
contá-las aos seus e, em nova oportunidade, o ciclo da
necessidade continuasse um caminho em que sua destreza
guerreira seria posta à prova mais uma vez. Assim construiu-
se a vida de Shoi. Uma profissão muito arriscada, porém
extremamente necessária em dias tão difíceis. Entretanto,
sua sensibilidade nunca foi abalada por tão dura vida. Em
comunidade sempre foi o mais prestativo à seu povo e seu
interesse por conhecimento nunca foi diminuído, dando-
lhe, por mérito, a capacidade de um líder nato. Assim,
quando todos os líderes Li-Seugs morreram, sobrou a Shoi
mais essa tarefa, a qual aceitou imbuído da convicção e da
responsabilidade exigida de qualquer um realmente
merecedor de tão pesado fardo, afinal, cabia a um líder, nos
moldes culturais dos Li-Seugs, a proteção e a manutenção de
seu povo.
Mesmo exausto daqueles instantes anteriores, em que uma
chuva de sangue e morte foi o resultado de tão necessária
empreitada, Shoi levantou sua cabeça e olhou atentamente,
já diminuindo sua fúria assassina, constatando uma
recompensa extremamente desfavorável. Não sobrara quase
ninguém de seu reduzido grupo. Apenas mais dois estavam
vivos e de pé. Naquele campo coberto da mais alva neve
maculada por rajadas em vermelho, Ji, grande amigo e
habilidoso guerreiro, e o menino Goo estavam de pé como
montanhas intransponíveis, imóveis, como se naquele
momento o tempo estivesse paralisado e nada mais existisse
vivo em tão sombria cena. Quebrando o uivo suave pro-
duzido pelo vento, Shoi respirou fundo e gritou para seus
dois estáticos companheiros:
— Ji! Goo! Conseguimos! — tomava fôlego mais uma vez. —
Estou indo até vocês.
Com passos lentos e difíceis, Shoi foi em direção aonde os
amigos estavam. Ao encontrar Ji, um forte abraço selou o
fim daqueles momentos de vida e morte. Logo em seguida
passou a mão na jovem cabeça de Goo elogiando-o por seu
feito corajoso.
Os acontecimentos nos quais Shoi e seus dois restantes
companheiros foram colocados não tinham nenhum
objetivo que não fosse o de defesa. Por sinal era algo
extremamente exigido deles nos últimos tempos. Os ataques
constantes de bandoleiros estavam cada vez piores. A defesa
de seu povo era uma necessidade. Mas seu reduzido grupo,
os Li-Seugs, encontrava-se numa posição desfavorável. O
grupo já não era próspero como no passado e estes últimos
ataques deixaram seqüelas que dificilmente poderiam ser
restauradas. Estavam, naquele momento, quase extintos.
Somando os sobreviventes deste último combate, eram
pouco mais de dez pessoas, ou, mais precisamente, treze
pessoas. Número modesto para um grupo que, num passado
longínquo, dominou aquela região. Domínio não à base da
força, mas do comércio e da troca de conhecimento. A
realidade daqueles dias apresentava-se diferente e não
restava mais nada a fazer a não ser uma nova estratégia para
uma tentativa de sobrevivência. Teriam como única opção o
abandono de suas terras. Essa mudança seria uma ofensa para
os ancestrais, mas com número extremamente reduzido, a
vida nômade tornava-se uma das terríveis opções; a outra
seria a morte. Reduzidos, a oposição à idéia de Shoi não seria
rechaçada. Afinal, o leque estava fechado.
Depois do abraço em Ji, Shoi verificou se ainda restava
algum ferido em campo, mas infelizmente sua procura não
encontrou bons resultados. Começou, com a companhia de
Ji e Goo, a procurar algo de valor nos cadáveres dos
bandoleiros. Shoi não gostava da atitude em si, mas aqueles
tempos não permitiam filosofias sofisticadas. Goo encontrou
uma coisa surpreendente numa bolsa presa a um cavalo.
Havia um filhote de lobo totalmente negro enrolado em
trapos. O pequenino, esboçando vitalidade, abriu seus
diminutos olhos para o menino. Este o envolveu, junto aos
trapos, dentro de sua roupa, próximo à barriga, fazendo dos
bracinhos o apoio perfeito para a jovem criatura.
— Olhem! — gritou o menino.
Eles viram o filhote como um símbolo de sorte, pois a
fragilidade do animalzinho conseguia superar o mais terrível
dia. Frio e morte não conseguiram distrair aquele lobo de sua
luta pela sobrevivência. Shoi passou a mão na cabeça peluda
do lobinho.
— Pelo menos temos mais um novo Li-Seug — disse Shoi.
— Estes bandidos devem tê-lo encontrado ao norte. Seu
passado é um mistério. Contudo, seu futuro será percorrido
conosco.
Apesar de não demonstrar, o que mais Shoi temia nos
últimos tempos confirmou-se. Não poderiam mais ficar.
Andaram entre os mortos em direção a sua aldeia,
carregando alguns mantimentos — principalmente arroz,
trazidos pelos bandoleiros — e, em um lugar onde não havia
a mácula da morte e da violência, acenderam uma fogueira
para permanecer algumas horas. Descansariam um pouco.
— Acredito na necessidade de descanso, queridos amigos —
disse Shoi demonstrando em sua grossa voz um cansaço
pouco comum.
— Concordo plenamente! Por sinal, o que restou com vocês
para comermos? — roncos eram ouvidos provenientes da
barriga do jovem Goo enquanto perguntava aos dois
fatigados guerreiros.
Acomodações foram providenciadas. Shoi e Ji fizeram uma
pequena barreira com neve para protegê-los dos ventos
gélidos em sua breve estada no local. Shoi sugeriu uma
permanência não maior que três horas, para encontrarem o
mais rápido possível seus parentes e providenciarem sua
mudança. Enquanto o fogo crepitava, comiam carne de caça
seca com um pouco de arroz, sobras daquilo que um dia foi
uma grande fartura. O descanso e o alimento aos poucos
faziam seus esperados efeitos. Durante o descanso, deitados
em cobertores de pele e próximos ao fogo, Shoi, um
interessado por lendas antigas, contava histórias para sua
diminuta platéia. Grandes guerreiros, cavaleiros, história dos
deuses, riquezas, etc., constituíam os enredos por ele
contados. Ji e o jovem Goo não se cansavam de escutar
aquelas histórias, principalmente da maneira contada por
Shoi. Em função de sua juventude, os outros jovens Li-Seugs
permitiam-se alguma intimidade com Shoi. Chuva de
perguntas e questionamentos, coisa que não acontecia com
contadores bem mais velhos em função de um misto de
respeito e temor, sempre caíam aos ouvidos de Shoi quando
se dispunha a contá-las. Apesar de os mais velhos acharem
inoportunos os questionamentos, Shoi não se importava
com tal atitude de sua platéia. Até gostava, pois dava a
informalidade e a humildade tão apreciada por ele. Aquilo
era como uma conversa, porém uma conversa
profundamente informativa sobre os costumes e lendas de
seu povo.
A primeira lenda contava a história de um comerciante. Esse
comerciante deu origem ao povo Li-Seug.Toda a tradição e
expansão dos Li-Seugs tiveram origem na arte do comércio.
Suas caravanas, muito famosas no passado, iam a terras já há
muito tempo esquecidas. Todo um intercâmbio de cultura e
riquezas circundava esse povo. Dizia-se daqueles tempos
memoráveis que cada componente dos Li-Seugs possuía dez
cavalos e que os jantares eram fartos; especiarias de todo o
mundo freqüentavam as suntuosas mesas forradas com a
mais bela e macia seda. Ah, como gostaria de viver tempos
assim!, resmungava consigo Shoi. Mas os tempos pioraram.
Os Li-Seugs descobriram a outra faceta da ganância.
Quiseram demais e acabaram declinando como comer-
ciantes. Somava-se a isso o problema de guerras
intermináveis entre os clãs instalados nas rotas comerciais.
Um antigo provérbio dizia: Aos não sábios, o poder da
incapacidade de adaptar-se, e foi exatamente isso que
aconteceu aos Li-Seugs.
— Caso tivesse vivido esse tempo, tentaria outros lugares
para expandir nossas relações — disse Ji.
— Eu fico imaginando as guloseimas dos antigos — enchia-se
de saliva a boca do guloso Goo. — Imaginem tanta fartura
nos dias de hoje.
— Ah! Meus amigos! Disto devemos tirar preciosas lições —
afirmava Shoi. — Quem não se adapta, morre. Assim é no
combate também. A um guerreiro, a adaptação é
fundamental para o combate, pois não há lição suficiente
que nos prepare ao real.
— Shoi! Shoi! — Freneticamente chamava Goo. — Conte a
história do deus dragão, por favor!
— Conte Shoi, isso mesmo, conte, por favor!
— Tudo bem, tudo bem, eu conto — Shoi ria com a
insistência dos amigos.
A lenda do deus dragão tornara-se a predileta entre os Li-
Seugs. Contava a incrível história do início dos tempos,
quando vários deuses se enfrentaram em um combate,
durando aproximadamente mil gerações. A lenda contava
como o deus dragão foi o vitorioso nesse grandioso combate.
Uma epopéia com todos os detalhes. Histórias de amor,
traição e vingança construíam o enredo desse conto. Shoi
contava-a de forma muito atraente para seus ouvintes, mas
pessoalmente a tinha apenas como uma simples lenda. Há a
parte dos ensinamentos desse deus aos humanos, dando-lhes
seus espíritos.Toda a essência do ser humano vinha da
criação do deus vitorioso da guerra das mil gerações.
— Cante aquela canção — pediu Goo. — Como é mesmo?
-Vou cantá-la - disse Shoi. Preparou-se e, meio desafinado,
pois não tinha muito talento para cantorias, emitiu as
palavras da letra:

Antes de o primeiro homem
Sentir a luz penetrar em seus olhos,
Havia uma Era de ontem,
Governada por deuses gloriosos.
Oh, deus Dragão!
Volte de seu longo exílio forçado.
Traga de volta a redenção
Para seu filho maltratado.
Retire-nos das trevas,
Escuridão eterna, miséria.
Ofereça-nos regras,
Viveremos tua glória.
Volte, volte, Dragão.
Não há esperança sem ti.
Volte, volte, Dragão.
Para um dia podermos sentir
O amargo sabor
De, verdadeiramente, existir.

Todos ouviram a canção mesmo o intérprete não sendo dos
melhores.
— Já pensou se tivéssemos um deus como este a nosso lado?
— disse Goo com um volume de voz e articulação como se
não dormisse há dias. Acariciava o filhote, distraidamente.
— Não acredito nisso, apesar de ser um belo conto — Shoi
olhava com olhos de ternura para o pequeno com o filhote
no colo. —Vejo por um ponto diferente essa história de
crescimento, afinal o deus dragão venceu por ser honrado e
não o mais forte.
— Só estava sonhando acordado.
— Ah! Sonhar é algo bom, fugimos por alguns instantes de
nossa realidade, porém, meu jovem — neste momento Shoi
colocou a mão no ombro de Goo —, não permita o domínio
desse estado em detrimento do presente e de nossas
realidades atuais.
— Eu sei! Eu sei! — Goo bocejava, alternando palavras.
Todos se calaram. Nesses instantes de silêncio, Shoi
começou a sentir o ferimento provocado por seu último
adversário. Examinando o rasgo no tecido de suas calças,
verificou um corte superficial, nada para se preocupar.
Apenas mais um troféu de combate que não deixaria ves-
tígios no futuro. Shoi, analisando, agora com mais calma e
consciência, percebeu uma perda de força por parte de seu
rival no momento do golpe de espada, por isso o pouco
estrago produzido. Aliviado por sair ileso deste evento,
aproveitou para descansar o máximo que pudesse, afinal
deveriam partir o quanto antes e decisões deveriam ser
tomadas de imediato. Instantes depois, com a normalidade
restabelecida, uma lágrima escorreu de seu olho direito.
Grandes amigos foram para junto dos deuses, e suas perdas
seriam irreparáveis. Lágrimas e mais lágrimas desciam de
seus olhos inflamados conforme as lembranças daquele dia
passavam como uma volta no tempo em sua mente.
Simplesmente virou-se para o lado, escondendo seu
momento de fragilidade manifestado fisicamente, sentindo
respeito e saudade por aqueles que não existiam mais. Mas
como líder recém-eleito, não poderia demonstrar esse tipo
de condição, afinal, cabia-lhe a tarefa da esperança,
esperança motivacional para os não possuidores dela. Apesar
da tristeza, Shoi constituiu em sua mente a idéia da possível
sobrevivência de seu povo. Sua tristeza, naquele instante,
era apenas pelos parentes e amigos queridos, agora falecidos.
Faria de tudo para aquelas mortes não serem em vão.
Duas horas se passaram e os três levantaram-se, não com a
energia totalmente restauradas, mas com a disposição
daqueles que precisam cumprir seus compromissos, e nesse
caso vida e morte alternavam a frágil liderança numa corrida
atípica. Um dos Li-Seugs vigiara na noite anterior, em um
ponto estratégico, e constatou a vinda de bandoleiros para a
aldeia de Shoi. Pegou seu cavalo e avisou-os do perigo.
Então Shoi juntou alguns homens da tribo e esperaram perto
do acampamento dos ladrões antes que qualquer ação
prejudicial fosse causada aos Li-Seugs. Por isso o combate foi
na parte da manhã; mal amanhecera quando tudo aconteceu.
Entretanto como as noites são longas e os dias curtos no in-
verno, o descanso foi bem rápido; teriam tempo suficiente
para chegar à aldeia com luz natural banhando seus rostos
sofridos.
Cinco quilômetros os separavam do campo de batalha.
Caminharam mais um pouco e Shoi viu seus cavalos
vagando a esmo, como se seus donos nunca os tivessem
domado. Com um chamado indistinguível mesmo para a
língua dos Li-Seugs, Shoi chamou-os. Os cavalos foram em
sua direção, deixando um rastro de neve remexida. A
obediência era espetacular. Cavalos treinados a obedecer e
que lembravam um fiel soldado cumprindo ordens de seu
comandante. Os Li-Seugs eram exímios adestradores de
cavalos, herança deixada há muitas gerações por seus
ancestrais comerciantes. Não perderam tempo e carregaram
os cavalos com sua bagagem, e os outros cavalos dos
guerreiros mortos foram colocados em fila, amarrados para
que não saíssem da ordem.
— Goo! Contou os cavalos? — perguntava Shoi à frente da
comitiva.
— Sem problemas, chefe! Temos os vinte cavalos aqui! —
falou Goo com sua voz ainda juvenil.
— Goo, venha até aqui. Vamos todos juntos — gritou com
entusiasmo Ji.
— Esse menino é muito esforçado e um grande guerreiro.
Não conheço caso como o dele — conversava Shoi com Ji.
— Talvez seja sorte, talvez não. Contudo, mesmo assim,
qualquer pessoa precisa, também, de muita sorte para o que
fazemos.
— Mas, mesmo assim, sorte não faltou para esse menino,
fora a esperteza dele no combate. Lembra como desde
pequenino observava os treinos dos guerreiros, escondido
muitas vezes?
— Lembro muito bem. Mas não vamos pensar nisso agora.
Deixe a vida seguir seu curso — o excesso de preocupações
não permitia a Shoi momentos prolongados de conjecturas.
Caminhando pela conhecida trilha, Shoi elaborava um plano
de fuga para apresentar aos seus. Uma imensidão branca com
pontos florestais despontava em seu campo de visão. A
perna, apesar de não ter acontecido nada grave, pulsava uma
dor não muito forte, porém constante. O balançar dos
cavalos em marcha lenta, com seus cascos fazendo sons
abafados contra a neve, convidava à distração. O
pensamento viajava a lugares pouco prováveis. Tornava-se
uma espécie de entorpecente para uma mente perturbada e
cansada, apesar de Shoi não ter completado nem vinte e
cinco anos de existência. Em outros tempos, essa idade seria
considerada uma idade imatura, contudo, a situação exigia
amadurecimento rápido, e Shoi demonstrava uma vocação
extremamente precoce ao assunto.
A luz do dia não se apresentava forte. A noite aproximava-se
quando a diminuta comitiva chegou próxima à vila dos Li-
Seugs. Foram recepcionados pelos poucos que sobreviveram
aos últimos combates, a maioria composta de mulheres e
crianças pequenas. O único homem presente, o velho e
sábio mestre Sue, estava à frente do comitê de recepção.
— Tão poucos voltaram! — mestre Sue balançava a cabeça
lamentando o ocorrido. — Meus filhos, vocês estão bem?
Estão feridos?
— Estamos bem na medida do possível — respondia Ji nem
um pouco animado com o resultado mostrado ao mestre.
— Conseguimos, desta vez, evitar a chegada do inimigo aqui
— disse Shoi. — Mas infelizmente o preço foi alto, mestre
— neste momento, Shoi desmontou do cavalo e indicava
com o braço o local aonde Goo deveria levar os animais. Ji
seguiu seus passos e também desmontou de sua montaria.
— Mestre Sue, precisamos descansar, mas, pela manhã, bem
cedo, vamos nos reunir e decidir nosso destino daqui para a
frente — disse Shoi ao mestre que demonstrava alegria por
ver seu pupilo vivo.
— Sim, meus filhos, descansem, pois vocês merecem mais
do que ninguém. Acredito que não há mais sobreviventes,
estou certo?
— Sim, mestre, só nós três conseguimos sobreviver. Foi uma
perda lastimável — lamentou Ji.
Shoi foi à sua yurt, uma tenda típica da região. Apesar de
não ser uma construção fixa, era a forma tradicional utilizada
como moradia pelos Li-Seugs. As tendas, bem pequenas,
comportavam não mais que duas pessoas. O motivo de sua
metragem estava exatamente nas baixas temperaturas
vivenciadas no inverno. Em locais pequenos, o calor era
mais fácil de isolar. Uma estrutura feita com varas de
madeira sustentava o lugar, as paredes eram forradas com
tecido grosso e reforçadas com peles de animais há muito
tempo caçados. O chão também era forrado com peles
grossas e felpudas, possibilitando um isolamento térmico do
chão gelado característico das regiões de inverno forte. Sua
cama, elevada a alguns centímetros do chão, aproveitava-se
dos alicerces da tenda para seu uso próprio. Ali, além do
tradicional forro com peles, havia uma cobertura de seda
rústica, não tão boa quanto às comercializadas no passado,
mas servia muito bem para o propósito determinado e, além
de ser confortável, evitava o contato direto com as desagra-
dáveis peles. Shoi retirou sua indumentária mais pesada,
composta de uma roupa básica feita em tecido grosso, um
peitoral de couro forrado com placas de ferro e seu cinto
ricamente trabalhado com a espada curta presa por uma
meia bainha. Suas botas de couro e as peles que o protegiam
do frio, feitas em formato de roupas para dar mais agilidade
ao guerreiro, também foram retiradas e colocadas com as
outras peças. Shoi, exausto, deitou-se na cama e dormiu
muito rápido. Todavia, não foi um sono tranqüilo. Pesadelos
e mais pesadelos, sem um sentido lógico, assombraram. Shoi
durante aquela noite. Um misto de fatos vividos com
situações absurdas povoou seus malignos sonhos.
Acostumado desde criança com esses pesadelos, não se
abalava mais com isso. Shoi possuía essa fantástica
habilidade, principalmente com os pesadelos sem nenhum
nexo. Uma mistura de gemidos e sons provenientes das
constantes reviravoltas ressonava quase imperceptivelmente
da pequena yurt.
Na manhã seguinte, bem cedo, com o sol ainda escondido,
Shoi alimentou-se, sentindo seu corpo descansado, mas
havia nele um pouco de cansaço mental, proveniente da
noite cheia de maus sonhos. Todo o ritual de vestir suas
indumentárias fora completado em menos de quinze
minutos, herança de sua experiência adquirida em combate.
Aproveitou o silêncio ainda existente na vila para caminhar
um pouco.
Ouviu um barulho estranho vindo da orda, uma yurt maior,
de mestre Sue. Chamou-o com um tom de voz bem baixo,
para os outros não acordarem. Do meio da abertura da tenda
saiu uma cabeça idosa, com olhos cinzentos e rosto
macilento.
— É você, Shoi?
— Sim, mestre, sou eu.
— Entre, filho, entre, por favor. Vamos conversar. Estou
ansioso por isso.
— Sim, mestre.
Shoi entrou na orda de mestre Sue. Sua barraca era bem
maior que a de Shoi, com alguns objetos pessoais
colecionados pelo idoso mestre. Sentou-se no chão. Mestre
Sue também se sentou só que de frente para Shoi. Os
anciões da vila e as famílias com mais de três componentes
tinham direito a uma yurt maior.
— Conte-me, filho, o que aconteceu no caso dos
bandoleiros.
— Conseguimos interceptá-los e nos escondemos perto do
acampamento dos malditos. Atacamos pela manhã — Shoi
coçava a cabeça. - A batalha foi dura, mas conseguimos
eliminá-los com eficiência. Não sobrou ninguém.
— Lamento muito a perda de nossos companheiros, filho —
mestre Sue, nesse momento, colocou a mão no ombro de
Shoi. — Mas acredito em seu empenho, e ainda estamos
aqui graças a você.
— Obrigado, mestre. Suas palavras são reconfortantes.
— Não se preocupe, vamos orar aos deuses para receber bem
nossos filhos perdidos.
— Sim, mestre Sue. Vamos orar.
Os dois abaixaram suas respectivas cabeças, em
demonstração de respeito, murmurando alguma coisa
semelhante a uma oração, mas indistinguível aos ouvidos de
possíveis ouvintes naquele recinto; a maneira típica de os
Li-Seugs orarem. Não havia uma oração preestabelecida ou
ritual propriamente dito. A tradição oral ensinava-lhes a
história dos deuses e a única coisa ensinada a eles a respeito
de religião era uma busca sincera dentro de si para a
comunicação, via oração, com os deuses. Essa comunicação
era feita espontaneamente, não havendo necessidade de
frases feitas. O único detalhe nisso tudo estava exatamente
no coração desprovido de sentimentos não apropriados para
este diálogo. Terminada a oração, mestre Sue perguntou a
seu aflito pupilo:
— O que lhe aflige, meu rapaz?
— Mestre, eu sei que não é unanimidade entre nosso povo a
saída de nossas terras, mas só vejo esta como única
alternativa à nossa sobrevivência.
— Ora, Shoi, não estamos em posição de discutir isso. Mais
do que nunca os Li-Seugs precisam de alguém para liderá-
los; e esse alguém é você, meu filho.
— Agradeço mais uma vez suas palavras de incentivo,
mestre.
— Não há de quê.
— Mestre, o senhor lembra de algum lugar que lhe pareça
seguro em direção ao Sul, onde provavelmente é mais
quente que aqui?
— Há um lugar — mestre Sue puxava pela memória. — Eu
lembro muito bem. Este lugar fica bem na direção onde
apontaste. Deixe-me ver os mapas dos antigos.
Mestre Sue levantou-se e em um pequeno baú encontrou
vários pergaminhos empoeirados, há muito tempo
esquecidos. Começou então a abri-los. Um pouco de poeira
começou a entrar nas vias respiratórias de Shoi, provocando-
lhe tosses e espirros alternados. De repente o velho homem
fez um som estranho pela boca, lembrando um grito, só que
em um som baixo, de comemoração.
— Aqui está! Aqui está! — falava com ar de comemoração o
velho mestre. — Achei o mapa. Era uma antiga rota utilizada
pelos antigos para o Sul. Havia, se não me engano, um
entreposto comercial de nosso povo em algum lugar por
aqui.
— Talvez seja um bom lugar para ficarmos.
— Acho que me lembro, quando criança, de estar nesse
lugar. Caso seja o mesmo, então estaremos salvos por um
bom tempo.
— Pelo menos é, sem dúvida, um risco menor irmos para lá,
do que ficarmos ou andarmos sem rumo.
— Exatamente, meu filho! Exatamente!
— Pelo mapa, mestre, nós poderíamos traçar um tempo
estimado de chegada?
— Creio que sim, filho. Podemos, sim!
— Quanto, mais ou menos, levaria para chegar?
— Se não me falha a memória, cada distância de um dedo
equivale aproximadamente a duas semanas — fazia um
muxoxo mestre Sue. — Portanto, acredito em uns dois
meses de viagem.
— Até que é um tempo razoável.
— Razoável é; ideal, não — contestava mestre Sue, com um
sorriso tranqüilizador.
— Não temos alternativas, não é?
— Não.
— Eu acredito, sinceramente, nesse caminho que
trilharemos. Acredito nessa alternativa — dizia Shoi com
convicção inabalável.
— Ao líder cabe essa missão. Confio em você, meu filho.
Acredite sempre em si, pois seu coração é puro. Não deixe
de confiar em seus instintos. Também acredito no sucesso
dessa nossa empreitada.
Shoi curvou-se diante de seu mestre, em respeito ao antigo
professor, saiu da tenda e constatou, pela ardência nos olhos,
um novo dia amanhecendo. Não percebera o tempo
utilizado na conversa, mas não se importava. O plano,
auxiliado por mestre Sue, tinha grandes chances de ser bem-
sucedido. Não havia sol naquele novo dia. O tempo estava
completamente nublado, mas até aquele momento não
aparentava a possibilidade de neve. O céu tinha matizes de
branco e cinza claro. De repente, Shoi ouviu um barulho
abafado, de cavalgada sobre a neve. O som tinha as
características de apenas um animal galopando, a toda a
velocidade. A imagem começava a ficar mais nítida. Uma
mulher usando roupas de guerreiro. O rosto, branco como a
mais delicada porcelana, sustentava uma beleza simétrica. Os
cabelos lisos e negros quase cobriam os olhos castanhos da
mulher. Era Zhi, irmã mais nova de Shoi, voltando da vigília
nas fronteiras do Leste. Shoiu sentiu um alívio por ver a
irmã viva. A possibilidade era mínima de ataques-surpresa
vindos daquela direção, afinal, a troca de guarda seria feita
naquele dia e a notícia teria chegado. Tudo indicava uma
rotina normal. Agora o grupo estava completo com o
retorno de Zhi.
Mulheres eram aceitas nos Li-Seugs, diferentemente de
outras aldeias da região, nos mesmos cargos que os homens.
A degradação dos Li-Seugs possibilitou essa precoce atitude.
Não havia opções, e a solução demonstrou-se fabulosa e
pouco previsível nas antigas idéias Li-seugs. Zhi era uma boa
guerreira e apresentava-se sempre para cuidar das fronteiras.
Quando Shoi contou-lhe o acontecido do dia anterior e
expôs sua solução para resolverem seus problemas, Zhi
apoiou-o, e confiou a seu irmão sua fidelidade e sua espada
para defenderem o restante dos Li-Seugs do extermínio.
Shoi pediu a ajuda de Zhi, Ji e Goo para reunir o restante do
grupo. Na reunião, expôs sua alternativa para o problema.
Como a maioria era de mulheres, sendo mais flexíveis e
adaptáveis em situações necessárias, não houve oposição às
idéias de Shoi. Todos concordaram, apesar de a tradição
ancestral estar ligada profundamente àquela terra,
interpretando a solução como a melhor possível. Mesmo
entre os homens, como já era predefinido, não houve
oposição, pois só havia Ji, o menino Goo e mestre Sue. Tudo
funcionava com uma precisão ainda melhor. Shoi
encontrava-se mais otimista do que nunca, pois a
unanimidade o estimulava a seguir o caminho traçado por
ele e pelas circunstâncias.
Os Li-Seugs não perderam tempo. Reuniram tudo o que
precisavam. Comida, peles, animais de montaria e de carga,
objetos pessoais, etc., tudo era reunido da melhor maneira
possível. Quarenta animais compunham o plantei. Não
sendo mais que treze pessoas, os outros cavalos poderiam
carregar muita carga. E poderiam se dar ao luxo de ir boa
parte do caminho montados em suas bestas. Todo o processo
de desmonte e preparação para a fuga rumo ao Sul levou
cerca de três dias. Antes de saírem de suas queridas terras,
fizeram uma oração em silêncio, com o intuito de
homenagear os recém-falecidos, que deram suas vidas pela
defesa de seu povo e sua cultura, e para os antigos ancestrais
há muito tempo enterrados naquelas sagradas e antigas
terras. Com a convicção dos que acalmaram e justificaram
suas atitudes aos antigos senhores, sentiram-se prontos para
partir. Formaram duas fileiras de vinte cavalos cada e a
caravana seguiu viagem rumo a uma terra melhor, onde
poderiam começar uma nova vida, e talvez, quem sabe,
reconstruir e restituir uma antiga glória pertencente aos Li-
Seugs. Não haveria homenagem melhor aos espíritos
ancestrais que uma antiga glória restituída.
Um mês se passara desde a saída da aldeia mais ao norte. A
primavera começava a desabrochar junto a terras um pouco
mais quentes, os animais da comitiva tinham acesso a pasto
fresco, não necessitando mais de fenos e complementos de
cereais. As águas de rios próximos começavam a surgir
novamente, seguindo seus antigos cursos. Era uma época
muito bonita, porém, também, possuía seus inconvenientes.
Os insetos perturbavam um pouco, mas só de não
precisarem mais usar roupas pesadas já era uma sensação de
alívio para qualquer pessoa.
Shoi, observando o velho mapa de mestre Sue, verificou
alguns desenhos dos marcos de referência e sua localização
exata e constatou a veracidade dos cálculos com poucos
critérios utilizados pelo estimado mestre. O cálculo de um
mês para chegar ao ponto determinado, naquele momento e
localização, estava muito próximo da realidade. Reunidos
numa roda, todos estavam devidamente acomodados, Shoi
relatou aos seus parentes a situação atual.
— Irmãos e irmãs. Ainda falta um mês, aproximadamente,
para chegarmos ao nosso ponto final. Gostaria, dos
responsáveis, um relato de nossa situação atual. Alimentos,
condições dos animais e opiniões, se as tiverem.
— Shoi — começou mestre Sue. — Acredito na durabilidade
de nossas reservas de alimento até o momento de nos
instalarmos nas novas terras. Creio que serão suficientes até
a primeira colheita. Mas devemos nos precaver.Tudo que é
comestível encontrado pelo caminho deve ser estocado,
para possíveis eventualidades.
— Os animais estão melhores, principalmente depois do fim
deste horroroso inverno — interrompia de modo inocente o
menino Goo. - Não há sinal de doenças ou algo do gênero.
— As novas pastagens renovaram os ânimos dos cavalos —
dizia Zhi.
— Com a primavera, há uma esperança de novos tempos —
completava de modo filosófico, mestre Sue. — Tenho
certeza de nosso sucesso nesta empreitada. Shoi nos trouxe
até aqui sãos e salvos e nada há de nos acontecer.
— Suas palavras me estimulam muito, mestre, porém não
teríamos sucesso se não tivéssemos a cooperação de todos
aqui. Estamos ligados em nossas necessidades e acabamos
formando uma única entidade. Portanto, o sucesso é nosso e
não de uma única pessoa.
— Sua modéstia é típica dos grandes líderes - rebatia com
ternura mestre Sue. — Não desmereça seus feitos, pois, se
errássemos, você seria o culpado na visão da maioria.
—Agradeço mais uma vez, porém continuo com minhas
convicções.
—Vamos ao que interessa. Precisamos saber o que fazer
daqui para a frente! — interrompeu Ji.
— Concordo e peço desculpas por desvirtuar o assunto —
disse mestre Sue.
— Tudo bem, mestre. Não se preocupe, concordo com suas
idéias — Ji balançava a cabeça positivamente.
— Acredito no tempo de um mês, afinal os mapas não
mentiram para nós — comunicou a todos Shoi. — Não
vamos desanimar agora. Continuem com suas tarefas e
conseguiremos vencer esta jornada.
Todos se ergueram e foram cumprir seus deveres à
continuidade das rotinas do grupo; assim, levantariam o
acampamento e prosseguiriam com a viagem e seus planos.
Tudo se manteve tranqüilo nos quinze dias seguintes. A
viagem tornou-se muito menos estafante, pois o clima
ajudava, menos, obviamente, quando as chuvas da
primavera davam o ar da graça. Nem a chuva era tão
desagradável quanto uma tempestade de neve, por isso
ninguém reclamava. A noite, naquele dia específico,
aparentava uma estabilidade pouco vista naquela época do
ano. Um belo céu estrelado apresentava-se aos olhos mais
tristes, exibindo um espetáculo visual sem precedentes.
Milhares de pontinhos luminosos enfeitavam aquela bela
noite. Via-se um pedacinho do universo naquela janela
estrelada. Nebulosas, estrelas, planetas muito distantes e uma
bela lua minguante complementavam o espetáculo. O grupo
acampou num pequeno descampado onde uma tenda
coletiva foi armada, desta vez com a proteção de tecidos e
não as excessivas peles utilizadas no inverno. Uma fogueira
foi acesa próxima à barraca onde se cozinhava arroz para os
próximos dias. Todos se reuniam para ouvir as histórias
contadas por mestre Sue e Shoi. Todos se divertiam, pois
cada um contava de uma forma pessoal os antigos contos Li-
Seugs. Não era surpresa, pois se sabia que em uma tradição
oral, o importante era a preservação da essência dos contos e
não a transmissão total, preto no branco, das histórias. Todo
o contador fazia pequenas adaptações para melhorá-las ao
seu bel-prazer. Todos comiam, ouvindo atentamente as
histórias, rindo e conversando entre si, quando um barulho
nunca ouvido antes chamou a atenção deles.
Era um barulho ensurdecedor. Um chiado estranhíssimo. De
repente, o pequeno Goo que estava ao lado de Andarilho, o
filhote de lobo negro, apontou com seu pequeno dedo para
o céu. Um ponto luminoso, parecido com uma estrela,
movia-se de um jeito totalmente inédito àquela gente. O
ponto começava a aumentar rapidamente. Com ele trazia o
estranhíssimo som aumentando proporcionalmente à
medida que se aproximava.
— Pelos deuses! O que é aquilo?
O objeto estranho passou pela cabeça dos Li-Seugs,
obviamente a uma altura elevadíssima, e seguiu uma
trajetória reta. E todos estavam com os olhos fixos no
estranho ponto luminoso. Ninguém ousou se mexer, num
misto de medo e curiosidade. O ponto de repente parou
abruptamente a cerca de dois quilômetros do local de onde
estavam começou, então, segundos depois, a descer num
ângulo perfeito de noventa graus em relação a sua trajetória
original. E, no pouso, um clarão iluminou todas as terras ao
seu redor como se o dia voltasse por alguns segundos. Shoi
imediatamente chamou Ji e Zhi para pegarem seus cavalos e
verificarem o que significava aquilo. Apesar de estarem com
um medo fora do comum, a curiosidade falou mais alto.
Pediram que mestre Sue orasse por eles. Mestre Sue pediu,
nos instantes antes da partida, que todos tomassem cuidado,
pois aquilo era totalmente desconhecido. Todos,
devidamente montados, seguiram na direção nordeste onde
o objeto havia pousado. Não levou nem dez minutos a
chegada no local. Pararam alguns metros do ponto inicial do
clarão. Amarraram seus cavalos para que não debandassem.
Seguiram com passos de fantasma até o local exato.
— Silêncio! Temos de ir bem devagar — dizia Shoi com a
voz mais baixa possível, quase um sussurro.
O local estava todo chamuscado, porém não havia mais
nenhum vestígio de fogo nem um odor de queimado
excessivo. O objeto estava no chão, intacto, sem movimento
algum. Shoi, Ji e Zhi aproximaram-se cada vez mais. Aquela
coisa tinha um formato muito estranho aos olhos deles.
Como uma flecha gigante, tinha quatro bolhas negras ovais
acima da ponta, não possuía abertura alguma aparente. Tinha
cores intensas, preto, vermelho, verde. Cores de metal
prateado, queimado. Coisas que lembravam, com muito
esforço e criatividade, barbatanas e chifres que saíam da pele
daquele objeto, como as penas colocadas atrás de uma
flecha. Nada parecido com aquilo havia sequer povoado os
sonhos mais profundos dos que estavam presentes. Shoi
aproximou-se bem perto dele e tocou-lhe com mãos
trêmulas. Estava quente, mas numa temperatura suportável.
Ficaram por meia hora olhando aquela aberração vinda do
céu.
— Será alguma coisa dos deuses que caiu acidentalmente? —
perguntou Ji a Shoi.
— Não sei.
— É melhor voltarmos — disse Zhi.
— Você tem razão. Vamos voltar, pois não há nada aqui para
nós — respondeu Shoi.
Quando deram as costas para a flecha gigante dos deuses, um
barulho saiu das entranhas daquilo. Eles, assustadíssimos,
olharam com espanto e pavor na direção contrária ao seu
caminho. Uma espécie de porta abriu-se diante deles. Uma
luz intensa, a ponto de deixá-los sem uma visão decente,
iluminou-os. Tentando se proteger com as mãos, fazendo
uma espécie de aba, Shoi viu algo mexendo-se dentro do
estranho objeto. De repente saiu uma criatura monstruosa,
com aproximadamente três metros de altura. Trajava uma
espécie de armadura totalmente preta, porém a luz intensa
não permitia ver com mais detalhes. De seu elmo,
observando seus pequenos visitantes, a criatura aproximou-
se levantando sua pata num gesto pacífico. A viseira que
cobria o rosto da criatura foi removida por ela mesma e
olhos amarelos com um rasgo negro apareceram. Não é
possível!, pensava Shoi. Aquele rosto era-lhe conhecido de
alguns desenhos antigos mostrados por mestre Sue.
Naqueles instantes de contato, todos se ajoelharam, como se
cultuassem uma divindade, mas em uma atitude mais de
espanto do que de adoração. Sentimentos confusos. A
criatura esboçou algo parecido com um sorriso e
pronunciou, com sua voz grossa e metálica, algo indecifrável
para os ouvidos daquelas três pessoas. Shoi encarou-o mais
uma vez e disse com espanto e euforia nunca sentidos por
ele em sua existência:
— Pelos espíritos ancestrais dos Li-Seugs! Eu não acredito...

CAPÍTULO 2
ADEUS, HONG KONG

No ano de 1985 da Era Cristã...
Margareth Du Bois trabalhava há cinco anos na firma de
consultoria Smith & Johnson Associados, com sua matriz
localizada na cidade de Londres. No primeiro ano de
trabalho naquela firma, apareceu a oportunidade de
transferência para a filial de Hong Kong. A curiosidade de
passar algum tempo em terras orientais mais as
oportunidades oferecidas por seus superiores fizeram-na
aceitar o posto imediatamente. Sua formação em Direito
Internacional mais a experiência de oito anos em outra
instituição do mesmo gênero deram-lhe as condições
perfeitas, conseqüentemente, ao cargo de representante
legal e responsável direta pela filial de Hong Kong. Apesar
de sua descendência belga, seu coração e seu espírito eram
completamente ingleses. Há três gerações sua família residia
na Inglaterra e uma vontade, de origem não definida, de
conhecer e viver em outros lugares, lógico que não por um
período muito longo distante da amada Inglaterra, já
rondava seus sonhos desde o curso de Direito feito na
Universidade de Oxford. A tarefa da firma, em Hong Kong,
seria a de fornecer consultoria jurídica e assessoria legal para
empresas inglesas instaladas por lá e grandes grupos
financeiros locais. Obviamente, o competente corpo de
advogados seria mais que suficiente para atender seus
poderosos clientes, não necessitando da presença da Srta. Du
Bois na maioria dos casos. Portanto, Margareth Du Bois
usava parte considerável de seu tempo para os assuntos
internos exigidos por uma firma daquele porte. Somente
uma exceção a retirava das rotinas internas necessárias na
filial da Smith & Johnson Associados. Os assuntos do maior
cliente deles tinha um luxo totalmente exclusivo. Para esse
cliente, Du Bois dedicava-se pessoalmente.
O maior cliente da empresa Smith & Johnson Associados
não era um cliente de origem inglesa, tampouco européia.
Esse cliente possuía um poderoso império comercial, com
empresas de importação e exportação, laboratórios de
pesquisa e desenvolvimento nas áreas de medicina,
tecnologia, têxteis, etc. Um conglomerado com mais de 250
empresas espalhadas por sessenta países. Sua matriz ficava
em Hong Kong. Foi um cliente dificílimo de conquistar,
pois não aceitaria qualquer firma de advocacia para
representá-lo. O histórico de competência da Smith &
Johnson Associados forneceu-lhe credenciais mais que
suficientes para o privilégio dessa tarefa. Portanto, um
cliente tão importante assim não deveria ser tratado por
subalternos da firma. Srta. Du Bois fazia com que sua
presença sempre estivesse disponível para um cliente tão
especial. A Seug Corporation era uma das mais poderosas
empresas do mundo e um cliente extremamente
representativo, tanto na parte financeira quanto na posição
de prestígio que representar esse cliente fornecia.
Margareth, numa manhã nublada de segunda-feira, chegou
habitualmente às oito horas em ponto ao trabalho.
Acomodou-se em sua poltrona e começou a analisar alguns
papéis da Seug Corporation. Cinco minutos se passaram e
sua secretária entrou no bem decorado gabinete, estilo
georgiano, com uma bandeja de café. Colocou a xícara num
espaço vago na mesa, serviu-a com delicadeza e depositou a
bandeja em um aparador próximo à entrada. Sentou-se de
frente a Margareth e abriu a agenda com uma caneta na
mão. Em um ritual diário, começou a recitar os
compromissos agendados àquele dia.
— Srta. Du Bois, hoje a senhorita tem um encontro com o
Sr. Seug, na sede da Seug Corporation, marcado para as duas
horas da tarde — destacou com precisão a dedicada
secretária.
— Muito bem, Stephanie. Prepare os procedimentos para
minha ida. Alerte o motorista, separe a pasta com os
documentos e o processo.
— Sim, senhorita. Estará tudo pronto e providenciado até as
duas horas.
— Hoje você irá comigo, esteja pronta também.
— Como desejar. Mais alguma coisa?
— Não, pode voltar aos seus afazeres.
A jovem Stephanie levantou-se da cadeira e dirigiu-se para
sua sala em frente ao gabinete de Margareth. Apesar dos
velhos estereótipos que a beleza feminina sempre carrega, a
eficiência sempre foi a marca registrada nos serviços da
jovem Stephanie. Margareth sabia, pela convivência, do
potencial da jovem. Ela mesma sofreu muito com os
estereótipos da beleza no princípio de sua carreira, mas essa
carga de preconceitos não foi páreo para sua dedicação e seu
talento. A nomeação como responsável da filial de Hong
Kong não fora por acaso. A firma Smith & Johnson
Associados não lhe daria esse cargo se sua capacidade
estivesse aquém das expectativas desejadas. Apesar da
dedicação ao trabalho e de seus trinta e cinco anos, sua
fantástica beleza escondia sua real idade, muitas vezes não
sendo tratada com a seriedade desejada. Contudo, seu
potencial e sua determinação derrubavam qualquer tipo de
impressão negativa no primeiro minuto de contato,
demonstrando, assim, a grande profissional existente
naquele belo rosto. Reafirmava sempre a presença da
lutadora nas pequenas batalhas corporativas do dia a dia.
Margareth concentrou-se no trabalho e o tempo passou
como num piscar de olhos. Extremamente envolvida na
papelada depositada sobre a mesa, foi despertada de seu
universo de preocupações por uma batida na porta. O jovem
rosto de Stephanie apareceu de súbito no vão da porta
entreaberta.
— Já é meio-dia, senhorita. Deseja almoçar em seu gabinete?
— Muito obrigada, Stephanie, mas hoje vou almoçar naquele
restaurante aqui pertinho.
— Tudo bem.
—Vá almoçar também, e esteja pronta daqui a duas horas.
— Sim, senhorita.
Margareth Du Bois desceu do edifício, andou um pequeno
quarteirão sentindo os odores urbanos de poluição e fritura,
e entrou num restaurante típico de Hong Kong. O
proprietário, um velhinho com olhos orientais vivos e
atentos, recebeu-a como se recebe uma velha amiga. E com
certeza havia uma espécie de relação entre ambos. Não
muito profunda, porém, uma relação de cliente e prestador
que se conheciam há muito tempo. Desde que chegara a
Hong Kong, ela freqüentava esse restaurante próximo à
empresa. Margareth cumprimentou o simpático senhor e
acomodou-se em um banco no meio do balcão do
restaurante. Pegou o cardápio e o leu atentamente. Depois
de um curto período, pediu, com um sorriso amigável, uma
sopa de macarrão com frutos do mar. Por sinal era seu prato
preferido naquele restaurante. Apesar de ter uma posição
social muito favorável, Margareth era uma mulher simples e
gostava das coisas simples da vida em seus momentos
privativos. Por isso a constante freqüência em um restauran-
te pequeno e popular. Mas não só a simplicidade e a boa
comida atraíam-na ao estabelecimento. As histórias contadas
pelo idoso proprietário também se tornaram um convite e
um motivo forte para sua presença ali. Ela sonhava, num
futuro próximo, escrever um livro relatando sua estada no
Oriente e um segundo livro sobre o folclore local. E neste
segundo caso, o idoso proprietário, Sr. Lee, era uma de suas
principais fontes.
— Aqui está seu prato, senhorita — dizia, com um sorriso, o
Sr. Lee.
— Obrigada, Sr. Lee. Hoje não tenho muito tempo, pois
tenho um compromisso após o almoço.
— Comer rápido faz mal, senhorita. Devemos respeitar
nossas necessidades.
— Infelizmente hoje não posso me dar a esse luxo.
— Ora, senhorita! Por quê?
— Meu compromisso é com o proprietário da Seug
Corporation. Nosso melhor cliente lá na empresa.
O Sr. Lee olhou-a com um ar diferente do normal. Coçou o
queixo, mas logo foi interrompido por outros clientes
famintos sentados ao balcão. Todos satisfeitos com o
atendimento, o Sr. Lee voltou sua atenção novamente à Srta.
Du Bois.
— Interessante. Muito interessante. Estava lembrando de
uma velha história contada por meu avô sobre a família
Seug.
— Que história? — interessou-se Margareth.
— Dizem que o poder e o dinheiro dessa família advêm de
um pacto feito há milênios com uma entidade não deste
mundo.
— Não imaginava que os Seugs pertenciam ao imaginário da
cultura local.
— Ah! Há mais na história dessa gente do que se imagina.
— Isso é lenda, Sr. Lee — Margareth esboçava um sorriso
forçado.
— Bem, isso eu não posso dizer com certeza, mas essa
história é conhecida há muito tempo — dizia com seu inglês
ao estilo oriental.
— Pessoas bem-sucedidas trazem esse estigma em suas
biografias. Essas lendas são formadas por força do
inexplicável. É mais fácil pensar assim em vez de saber a
verdade.
— E que verdade seria esta, senhorita?
— A verdade está no esforço e no trabalho dedicados da
família Seug em seus negócios.
— Mas nós acreditamos no esforço das pessoas aqui,
senhorita, porém, desde que me conheço por gente, a
família Seug é a mais poderosa da região e seu poder está
muito além do que imaginamos. Diz a lenda, que há muitos
anos os ancestrais dos Seugs foram aprisionados e escra-
vizados por um deus, ou criatura, de outro mundo, não se
sabe ao certo, e este deus ou coisa que o valha, como
recompensa, deu-lhes riquezas nunca antes imaginadas. Mas
o preço por sua riqueza está intimamente ligado à servidão e
à fidelidade a ele. E apenas uma lenda e nada mais,
senhorita. No fundo acredito que são abençoados, no
mínimo. Enfim...
— Tudo bem, Sr. Lee. Respeito sua opinião — disse
Margareth, apesar de não acreditar na história e ainda
defender a tese de que era apenas intriga e boataria daqueles
enciumados do sucesso alheio. Para não se incomodar mais
com o assunto, resolveu se calar e concentrar-se no
encontro que teria mais tarde.
Terminada a refeição, Margareth pagou e cumprimentou o
Sr. Lee, dizendo-lhe ter interesse posteriormente naquela
história dos Seugs, e que a contasse num momento mais
oportuno. O Sr. Lee sorriu com seu jeito cortês dizendo-lhe
que em uma próxima oportunidade estaria à disposição.
Em pouco tempo, Margareth Du Bois encontrava-se
novamente na empresa. Juntou-se a Stephanie e pegou o
material necessário para a reunião na Seug Corporation. As
duas se dirigiram ao estacionamento e entraram no
automóvel negro de quatro portas da empresa. Apesar do
agito ainda existente em função da hora do almoço, a viagem
até a sede da Seug foi muito tranqüila, não prejudicando o
tempo determinado de chegada. Margareth aproveitou esses
instantes de viagem para analisar um pouco mais, os papéis
levados consigo. Chegando próximo ao ponto final da
viagem, já era possível ver o prédio da Seug. O edifício
imponente, um ponto destacado na própria Hong Kong, era
o que tinha de mais moderno em termos arquitetônicos.
Não tinha nem um ano de inaugurado e utilizava os
equipamentos mais avançados para a época. Funcionalidade,
alta tecnologia e beleza num único lugar. Um dos prédios
mais altos daquela região. Uma vez lá, a porta automática do
estacionamento abriu-se. O automóvel entrou e estacionou-
se próximo ao elevador exclusivo da presidência. Margareth
e Stephanie entraram no elevador e foram saudadas por uma
voz eletrônica, um tanto artificial: Sejam bem-vindas à Seug
Corporation. A porta abriu e depararam com a secretária da
presidência, sentada, trajada elegantemente atrás de uma
mesa.
— Sejam bem-vindas. O Sr. Li-Seug as aguarda no escritório
— ela disse.
— Obrigada — respondeu Margareth.
As decorações da ante-sala e da sala possuíam traços
minimalistas. Uma mistura de metal escovado, vidro e
concreto. Nada era supérfluo. Um tributo ã valorização dos
espaços vazios. Nenhuma pessoa com claustrofobia sentiria
agonia em uma ambiente tão grande e limpo visualmente.
Seguiram a secretária até a porta da sala do Sr. Seug. Esta, por
sua vez, abriu-a e as conduziu com educação para dentro do
ambiente. O Sr. Li-Seug levantou-se de sua cadeira e
cumprimentou as duas mulheres formalmente, com todas as
regras de etiqueta características de homens bem-educados.
Apesar da formalidade, sua simpatia e o sorriso expressado
em sua face eliminavam qualquer resquício de posição social
ou esnobismos normais em homens de sua posição. Seug, na
opinião de Margareth, era um cavalheiro perfeito e ao
mesmo tempo a simplicidade em pessoa. Uma vez todos
acomodados, o assunto que levou Margareth até a Seug
Corporation foi iniciado.
— Srta. Du Bois, como vai o processo de transferência da
sede da Seug Corporation? - perguntou em tom baixo, mas
audível, Sr. Seug.
— Está tudo pronto, Sr. Seug - disse Margareth.
— Interessante! Muito interessante!
— Só preciso que o senhor assine estes papéis para os
trâmites legais.
— Muito bem. Onde assino?
— Aqui e aqui — Margareth apontava lugares tracejados nos
papéis.
Li-Seug assinava os documentos entregues por Margareth.
Seus planos consistiam na transferência da sede para outro
país. Afinal, o acordo assinado entre China e Reino Unido,
no ano anterior, não agradava os empresários locais. O
fantasma do comunismo somado à incerteza dos
acontecimentos futuros fizeram a Seug Corporation tomar
essa atitude. Apesar da devolução de Hong Kong acontecer
em meados de 1997, não queriam correr riscos
desnecessários, antecipando assim essa transferência
preventiva.
— Não podemos correr o risco de estarmos aqui quando os
comunistas assumirem — disse Li-Seug.
— Apesar de compreender sua preocupação, Sr. Seug, acho
precipitada sua atitude, afinal a China não tem motivos para
anexar Hong Kong de imediato. Haverá, com certeza,
respeito deles em relação ao tratado feito com o Reino
Unido.
— No fundo também não sou tão alarmista, mas se aprendi
alguma coisa nesta vida é que prevenção nunca é demais. Eu
não estou disposto a correr riscos. Não gostaria de apressar
minhas atitudes numa conjectura pessimista. Portanto,
antecipo a transferência exatamente para fazê-la
calmamente.
— Claro, Sr. Seug. Compreendo perfeitamente sua posição,
apenas expus uma opinião sem maiores comprometimentos.
— Não se preocupe, não estou ofendido. Afinal, o trabalho
de vocês é orientar seus clientes da melhor maneira
possível.
— Perfeitamente, senhor.
— Gostaria de saber quando poderei mudar?
— Tudo está em ordem, Sr. Seug. No prazo máximo de um
mês, não mais do que isso. Apenas a burocracia-padrão.
Li-Seug levantou-se da confortável poltrona onde sentara há
pouco. Perguntou se as duas mulheres desejavam beber
alguma coisa. Elas recusaram. Depois, ele foi até sua mesa,
pegou alguns papéis e voltou a sentar-se na poltrona onde
estivera.
— Srta. Du Bois. Gostaria de informá-la que seus serviços
serão necessários e imprescindíveis para a Seug Corporation
aqui em Hong
Kong e informo de minha satisfação em relação aos serviços
prestados pela Smith & Johnson Associados.
— Muito obrigada pela confiança, Sr. Seug. Falo em meu
nome e em nome da empresa.
— Devo partir daqui a uns dois meses. Acione a matriz de
Londres da Smith & Johnson Associados para fazer minha
assessoria pessoal e da filial londrina da Seug Corporation.
— Perfeitamente.
— Acho que estamos entendidos em relação a este assunto.
Em relação a minha mudança, como estão os papéis
alfandegários?
— Estão encaminhados e devo ter essa questão resolvida em
no máximo uma semana — disse Margareth, observando
alguns papéis em seu colo.
— Muito bem, então. Vou providenciar tudo para minha
jornada rumo a Londres — disse Li-Seug. — Acho que
discutimos tudo por hoje.
— Sim, senhor. Já estamos indo e desejamos uma boa tarde
ao senhor.
— Boa tarde para vocês também.
Margareth e Stephanie levantaram-se e foram conduzidas
pela secretária de Seug até o elevador. Li-Seug sentou-se em
sua mesa, concentrando-se em alguns afazeres ainda
pendentes. Assinou uma pilha de papéis necessários para o
funcionamento de suas empresas e, assim que terminou,
chamou sua secretária. A moça veio atendê-lo em poucos
segundos da melhor maneira possível.
— Em que posso servi-lo, Sr. Li-Seug?
— Faça-me um favor, senhorita. Avise Zhi para vir aqui
quando terminar seu trabalho.
— Sim, Sr. Li-Seug.
A secretária foi imediatamente localizar a Srta. Zhi.
Comunicou-a do pedido de Li-Seug e, assim que suas
obrigações foram resolvidas, seguiu imediatamente à sala da
presidência. Ao ver o Sr. Seug sentado à mesa de trabalho,
dirigiu-se a ele e, com um olhar fraternal, encarou-o. Por sua
vez, Seug também a encarou com a mesma intensidade. Ele
se levantou e abraçou Zhi com naturalidade.
— Querida Zhi, tenho notícias favoráveis em relação a nossa
mudança.
— Shoi, meu irmão, devemos preparar tudo e comunicar
"você sabe quem" — disse Zhi num som apenas audível por
Li-Seug Shoi.
— Eu sei! Eu sei.Você tem algo mais a fazer aqui por hoje?
— Não Shoi. Já cumpri com minhas obrigações neste dia de
trabalho.
— Então vamos para casa e resolveremos as pendências por
lá mesmo.
— Sim, meu irmão.
Os dois fizeram os últimos arremates para suas respectivas
saídas da empresa. Foram juntos até um carro estacionado na
garagem e este seguiu rumo ao lar. Durante toda a breve
viagem, os dois não trocaram nenhuma palavra. Não por
antipatia, mas Li-Seug Shoi não era muito de diálogo quando
se encontrava em movimento num veículo a motor.
Chegaram até a mansão dos Li-Seug e saltaram do veículo.
Seguiram pela porta da residência, uma bela porta toda
entalhada, e foram recepcionados por um mordomo. Este
fez os cumprimentos de praxe e os deixou em paz em
poucos minutos.
— Vou falar com Tlüogodärami sobre os acontecimentos do
dia — disse Shoi para Zhi.
— Tudo bem. Vá, querido irmão. Daqui a pouco irei
encontrá-los.
— Até logo, então.
Li-Seug Shoi subiu a escadaria de sua suntuosa casa. Uma
bela decoração ao estilo clássico ornava sua residência. No
segundo andar, caminhou por um corredor relativamente
grande, pelo menos em relação aos corredores existentes na
residência. Foi até o final deste, onde deparou com uma
porta de madeira também totalmente entalhada ao modo
oriental. Adentrou no recinto. Ali se encontrava uma
imensa sala com um pé-direito extremamente elevado.
Aquele ambiente, uma grande biblioteca, alojava milhares de
livros. Seu real tamanho só seria mensurável aos olhos dos
observadores privilegiados, oportunamente colocados diante
de tão gigantesco lugar. A entrada dessa biblioteca
encontrava-se no segundo andar do recinto. Shoi desceu
uma escada reta, em metal, para o primeiro andar. Seguiu até
o final do recinto, sendo observado por milhares de volumes
que cobriam todos os lados da biblioteca. Ali, bem no final,
havia um vulto, e este, por sua vez, encontrava-se encoberto
por uma espécie de biombo translúcido. Shoi aproximou-se
e puxou uma cadeira ali existente. Sentou-se, respirou por
dois segundos e encarou de modo amigável o vulto atrás do
biombo.
— Tlüogodärami? Está ocupado?
— Não, Shoi. Estava apenas lendo um pouco. Nada de
importante - disse o vulto com uma pronúncia perfeita,
porém não humana.
— Nossos planos estão correndo perfeitamente bem. Recebi
a equipe da empresa de advocacia e estaremos prontos para
nossa mudança daqui a uns dois meses.
— Ah! Bom! Muito bom ouvir essa notícia.
—Vamos começar a embalar tudo. Mandaremos tudo de
navio para Londres e de lá poderemos fazer uma baldeação
em uns dos navios cargueiros da Seug. Este, por sua vez, nos
levará até nosso objetivo final, sem sermos perturbados.
— Gostaria de saber se dará para você, meu amigo, vir
conosco? - perguntou o vulto para Shoi.
—Terei de ficar algum tempo em Londres.Tratarei de
algumas coisas pendentes e depois nos encontraremos.
Fique tranqüilo. Goo e Ji vão acompanhá-lo nessa jornada.
— Claro! Não estou nervoso, pelo contrário, estou tranqüilo.
Tenho total confiança em vocês, meus amigos.
— Uma vez terminada essa etapa, poderemos iniciar o
segundo estágio de nossos planos.
— Não será fácil, Shoi! Mas conto com a ajuda de vocês;
tenho absoluta certeza de nosso sucesso nessa empreitada.
— Os Li-Seugs estão à sua disposição e somos simpatizantes
de sua causa.Vamos até o fim para conseguirmos esse
objetivo.
Nesse instante, Zhi chegou acompanhada por Ji e Goo.
Todos desejaram uma boa tarde a Tlüogodärami e este
retribuiu o gesto com a mesma educação. Acomodaram-se
da melhor forma possível. Conversaram sobre a mudança e
as confirmações dadas por Margareth Du Bois sobre os
trâmites legais. Naqueles instantes de conversa, decidiram a
antecipação da mudança em um mês, pois não havia moti-
vos para esperar.
— Não há necessidade de esperarmos dois meses — disse Ji.
— A transferência pode levar algum tempo, mas nossa
presença física não será necessária aqui. Acredito que um
mês é o tempo ideal para prepararmos tudo.
— Que assim seja! — disse Shoi.
—Todos nós concordamos com a antecipação. Vamos
trabalhar para isso acontecer o mais rápido possível —
afirmou Ji.
Todos saíram do recinto, menos Shoi. Este ainda ficou
conversando com Tlüogodärami. Conversaram sobre os
velhos tempos. Riram juntos, ao modo dos velhos amigos.
Havia uma relação entre os dois de eterna amizade. "Irmãos
das circunstâncias", dizia sempre Tlüogodärami.
— Amigo Shoi. Tivemos muita sorte durante todos estes
anos. Entretanto, o tempo se esgota. Esta é a época exata
para empreendermos nossos objetivos. Nossa existência
depende exclusivamente de nossas atitudes. Tenho dentro
de mim a sensação do sucesso. Portanto vamos em frente.
— Com certeza,Tlüogodärami. Com certeza.

Quarenta dias se passaram desde a conversa na biblioteca da
mansão dos Li-Seugs. O embarque seria naquele dia. Não era
um dia dos mais belos. Chovia torrencialmente. Trovões
assustavam qualquer um com seus barulhos repentinos. Os
raios abriam fendas brilhantes no céu negro. A luz irradiada
pelos raios iluminava as nuvens como se o dia tentasse fugir
de uma prisão de sombras, mas em instantes voltavam a
encobri-lo com seu véu misterioso e negro.
Havia um último contêiner sendo carregado na mansão dos
Li-Seugs. Esta, por sua vez, encontrava-se completamente
vazia. Somente ar e poeira habitavam aquela outrora
movimentada residência. No vazio das salas, o barulho da
chuva batendo nas janelas ecoava pelos corredores não mais
habitados.
Enquanto o momento exato da viagem não chegava, Shoi
estava em um depósito pertencente à Seug Corporation. Ali
se encontrava um dispositivo metálico no gigantesco espaço
existente dentro do depósito. Só pessoas autorizadas pela
Seug Corporation trabalhavam naquele recinto. Naquele
mesmo local, uma espécie de máquina industrial, des-
montada pela metade, exibia-se sendo o centro das atenções
e atividades. Os funcionários trabalhavam com afinco nos
dois dispositivos ali presentes. Não mais que de repente, um
pequeno caminhão fechado foi autorizado a entrar no
depósito. Todos os funcionários pararam suas funções para
observar a chegada do veículo. As portas traseiras do cami-
nhão foram abertas e surgiu algo parecido com um homem.
Naquele momento não se distinguia direito o que seria
aquilo. Era alto demais para um homem comum. Possuía
três metros de altura e seu corpo era disforme em
comparação a qualquer humano normal, porém não se podia
definir direito o que era exatamente este ser. Um grande
manto preto com capuz encobria a criatura. Shoi foi
imediatamente na direção daquele ser gigantesco.
— Bem-vindo, Tlüogodärami! Como foi a viagem até aqui?
— Nada mal. Apenas um pouco desconfortável. Nada que
um pouco de sono não resolva.
— Pronto para esta nova viagem?
— Sim, meu amigo. Estou pronto há muito tempo!
Todos os presentes observavam a criatura com olhos de
admiração e respeito. Depois de alguns instantes, os
funcionários voltaram às suas funções. Todos eles do clã dos
Li-Seugs. Começaram, então, as operações com os dois
dispositivos ali presentes. A máquina industrial teve suas
duas partes afastadas para os cantos do depósito. Um dis-
positivo metálico, uma espécie de caixa, foi levada ao meio
do local onde estavam as duas metades da máquina. Um
painel nesse dispositivo foi acionado por um dos
funcionários responsável por aquela função. O objeto abriu
uma espécie de tampa. Demonstrou ser uma espécie de
casulo. Tlüogodärami direcionou-se ao casulo e observou-o
por alguns segundos. Shoi o acompanhou.
— Boa viagem e bons sonhos, meu nobre amigo.
— Obrigado — Tlüogodärami, depois de agradecer a Shoi,
disse com sua voz peculiar a todos os presentes. —
Agradeço a vocês todos por estes anos de acolhida e
amizade. Estamos fazendo história, hoje, meus amigos.
Finalmente este dia chegou e dentro de algum tempo vamos
subir os outros degraus de nossa jornada. Hoje é o início
verdadeiro das operações que vão mudar o mundo para
sempre. Muito obrigado a todos e nos veremos no ponto de
chegada.
Entrou, portanto, no casulo acomodando-se de bruços.
Neste momento uma espécie de cauda escamosa podia ser
vista, saindo timidamente do manto, mas apenas uma
diminuta ponta. Bem acomodado dentro do casulo, este foi
fechado, e os homens começaram as operações. Shoi
acompanhou tudo de muito perto e pessoalmente
programou o casulo. Assim que as condições ideais de
hibernação foram ativadas e verificadas, um pequeno
guindaste levantou a cápsula de hibernação a uma altura de
aproximadamente um metro. Por sua vez, o objeto foi
coberto pelas metades separadas da máquina industrial. Esta
foi montada impecavelmente, não deixando rastro do
conteúdo fantástico existente nela.
A preciosa carga foi colocada em um contêiner e levada até
o porto de Hong Kong. Shoi acompanhou essa etapa e
encontrou-se com Goo e Ji.
— Cuidem bem de nosso amigo.
— Pode deixar com a gente, Shoi — respondeu Goo.
— Daremos nossas vidas, se for necessário, para que tudo
ocorra bem - comunicou Ji.
— Vão com toda a paz e que os deuses os protejam, meus
irmãos. Adeus.
O navio cargueiro da Seug Corporation estava pronto. A
chuva recomeçara novamente e Shoi observava o cargueiro
zarpar nas águas um pouco revoltas. Em pé, com um guarda-
chuva em mãos, via aos poucos o navio desaparecer e um
milhão de pensamentos povoavam sua mente. Mas a
esperança de sucesso tornava-se cada vez mais uma certeza
e nada iria impedir este fim. Deu mais uma olhada e não viu
mais vestígios do navio. Andou um pouco e resolveu ir
embora. Foi em direção a um automóvel, onde um motorista
o esperava. Entrou no carro e partiu, deixando um rastro de
partículas de água, como se fosse uma temporária neblina,
porém uma neblina de esperança e otimismo.

CAPÍTULO 3
REVELAÇÃO

No ano de 2.015 da Era Cristã...
Andrew S. Carter, o tipo de pessoa empreendedora, não
passava um dia sem ter uma boa idéia. Nasceu em 1975, na
cidade de Nova York, e teve uma infância tranqüila, quase
idílica. Vindo de uma família de empreendedores, seu pai
era dono de uma empresa na área aeronáutica sediada no
Estado de New Jersey. Foi um aluno brilhante e suas
escolhas acadêmicas estavam intimamente ligadas à área de
atuação de sua família. Formou-se em Engenharia
Aeronáutica. Contudo, antes mesmo de se profissionalizar,
acompanhava seu pai ao trabalho sempre que podia. Seus
sonhos de infância estavam repletos de momentos
imaginativos ligados ao mundo da aeronáutica. Sonhava em
um dia construir naves espaciais e ser um astronauta. Queria
ser um desbravador do universo, assim pensava em sua tenra
infância. Com o tempo, naturalmente, seus pensamentos
foram amadurecendo e muitos desses sonhos
desapareceram, mas o espírito empreendedor aumentou
cada vez mais. Trabalhou duro junto de seu pai e
aumentaram o prestígio da empresa a padrões nunca antes
imaginados. Muita da tecnologia fundamental das aeronaves
de passageiros devia-se ao desenvolvimento de uma nova
tecnologia, extremamente recente, produzida pessoalmente
pela família Carter.
Há cerca de uma década, a família Carter participou da
concorrência para o desenvolvimento de uma aeronave.
Essa aeronave deveria decolar e alcançar o espaço sideral
sem a necessidade de propulsores descartáveis e ainda ser
uma aeronave totalmente reutilizável. O objetivo principal
era a viagem fora da atmosfera terrestre, possibilitando um
menor tempo de vôo comercial. E se o projeto fosse muito
bom, poderia ser utilizado pelo Programa Espacial dos
Estados Unidos ou da União Européia. Sócios na iniciativa da
abertura daquela concorrência, ambos apresentavam
interesse pelos projetos realizados pelos concorrentes. Nessa
concorrência participaram grupos do mundo inteiro. No
final, a família Carter perdeu para um grupo chinês. A
decepção foi grande, a princípio, pois Andy pensava em
realizar um sonho de infância. Mas, apesar de tudo, muito
do que fora desenvolvido utilizou-se nas melhores e mais
seguras aeronaves de vôo comercial. O excelente projeto e o
protótipo apresentados não agradaram os responsáveis pelos
projetos espaciais, porém conseguiram contratos com muitas
empresas do ramo aeronáutico. Despertou, também, o
interesse de um poderoso investidor da área privada. Esse
investidor manteve contato com a família Carter por um
bom período. Havia um negócio milionário e a
oportunidade de levar o projeto Black Mustang 03A, aquele
rejeitado, adiante. Infelizmente, o pai de Andy não viveu
para ver o projeto feito em conjunto com seu filho e
funcionários colher os frutos no final. Seu já conhecido
problema cardíaco finalmente ceifou sua vida em 2013.
Depois da morte do pai, Andy Carter prometeu não deixar o
legado paterno desaparecer e lutaria para que a empresa
continuasse o rumo bem-sucedido deixado pelo saudoso Dr.
Carter.
Num dia comum, bem tranqüilo por sinal, Carter chegou a
seu escritório como fazia todos os dias. Foi até a linha de
projetos e verificou cada item projetado por seus
engenheiros. Tudo se encaixava perfeitamente. A rotina era
mantida, como de costume, e o trabalho andava
normalmente. Voltando à sua sala, mal se acomodou em sua
cadeira e o telefone tocou. Deixou tocar duas vezes e
atendeu. Passou uma meia hora falando e desligou com uma
empolgação juvenil. O telefonema era da empresa
interessada em patrocinar o projeto Black Mustang 03A. A
pessoa do outro lado da linha confirmou interesse no projeto
e perguntou a Carter se havia a possibilidade de um
encontro com ele. Carter, demonstrando uma satisfação fora
do comum naquele dia, confirmou a possibilidade do
encontro conforme a necessidade da empresa. Esta, por sua
vez, indicou-lhe que receberia em breve mais instruções,
pelo correio, dos procedimentos necessários para aquele en-
contro de negócios.
Carter esperou pacientemente, porém não conseguia parar
de pensar na possibilidade de levar seu mais querido projeto
adiante. O pensamento não lhe saía da cabeça. Faria, dentro
de suas possibilidades, o melhor para a concretização desse
tão sonhado negócio. Quando a ansiedade começou a
diminuir e a rotina voltava aos poucos ao seu ritmo, numa
pacata manhã de domingo, Andy encontrava-se deitado em
seu sofá vendo um desses seriados antigos reprisados nas
manhãs desses dias de descanso. Foi surpreendido pelo
toque de sua campainha. Um entregador, não dos correios, e
sim de uma empresa de entregas particulares, trazia consigo
um pacote marrom com um centímetro de espessura, do
tamanho de um envelope comum. Andy assinou o canhoto
dos papéis burocráticos e pegou o inesperado objeto.
Agradeceu ao funcionário sendo retribuído da mesma forma
e fechou a porta. Sentou-se à mesa e observou por alguns
instantes, não mensuráveis, aquele pacote. Era marrom-
escuro e havia alguns códigos de barra e carimbos de
inspeção da empresa prestadora do serviço de entrega. Fora
essas características normais de uma entrega, a cor era quase
perfeita, cobrindo todo o pacote. Ao canto direito deste
podia-se ver claramente um logotipo dourado e o nome da
empresa. Neste momento Carter sentiu seu coração disparar.
Finalmente seu tão esperado pacote transpôs a barreira do
imaginário. Apesar da ansiedade explícita demonstrada por
ele naquele momento, respirou fundo, colocou o pacote
repousando sobre a mesa e aguardou alguns minutos para
abri-lo. Acalmou-se tomando um café preto enquanto
observava.
Depois de seus sentimentos estarem controlados, Andy
pegou um estilete e abriu meticulosamente o pacote,
fazendo uma abertura com a destreza de um cirurgião, e
retirou o conteúdo. Havia nele uma pequena carta dobrada,
um cartão de crédito, um cartão com um número de
telefone, um telefone celular e passagens de avião. De forma
bastante controlada, Andy desdobrou a carta e leu seu tão
esperado conteúdo. Nela havia os seguintes dizeres, em
inglês:

Prezado Dr.Andrew S. Carter,
É com grande satisfação que chegarmos a esta etapa de nossa
negociação. Observamos por anos a concorrência dos
programas espaciais em que o senhor participou. Em nossa
avaliação, o projeto chefiado pelo senhor é exatamente o
que procurávamos. Disponibilizamo-nos a patrocinar seu
projeto e solicitamos um encontro pessoal para o
fechamento dessa empreitada. Ficaríamos profundamente
felizes se o senhor pudesse comparecer à nossa sede
mundial, no Brasil, para a devida negociação. Adiantamo-
nos, em caso de disponibilidade de sua parte, em fornecer-
lhe toda a infra-estrutura necessária para esse encontro. Há
no pacote em suas mãos as passagens de ida e de volta, um
aparelho de telefone, um cartão de crédito para suas
despesas em terras brasileiras e um número de telefone.
Utilize este celular recebido pelo senhor e ligue para o
número fornecido, confirmando sua disponibilidade. Caso
haja esta, estaremos esperando-o no dia 20 de agosto. Não se
preocupe com nada. Quando sua presença for confirmada,
estaremos à sua disposição para guiá-lo em sua estada no
Brasil. Um de nossos executivos estará esperando-o no
aeroporto. Aguardamos sua chegada com a certeza de
fazermos um bom negócio. Desejamos desde já uma boa
viagem e boa sorte.
Respeitosamente,
Li-Seug Shoi
Presidente da Seug Corporation.

Andy parou por algum momento, como de costume, para
refletir sobre a situação. Meu Deus! Por que tão longe este
encontro?, assim pensava ele de cinco em cinco segundos,
mas logo se acalmou, racionalizou e organizou todas as peças
deste quebra-cabeça, pesando as possibilidades e
desmistificando seus temores. Nada poderá me impedir!,
começou a pensar naquele momento, mais confiante do que
nunca, jogando qualquer receio para fora de sua mente
totalmente concentrada naquilo em que realmente
interessava ao empreendimento. Depois dessa breve
reflexão, tomou as primeiras medidas necessárias para iniciar
esse processo. Estava preparado desde o telefonema dado
pela Seug Corporation especificamente para esse momento.
Portanto não havia empecilhos. Seguiu a recomendação da
carta e telefonou com o novo celular em mãos para o
número indicado no pequeno cartão de papel vindo no
pacote. Uma voz feminina o atendeu em um inglês
impecável e, como se estivesse há tempos disponível para
esse trabalho, a confirmação da viagem aconteceu da
maneira mais simples possível. Apenas uma afirmativa da
parte de Andy foi mais que suficiente, tornando essa
comunicação rápida ao extremo. Era como se tudo estivesse,
e provavelmente isso se confirmou pela rapidez absurda da
negociação ao telefone, pronto e a fagulha proporcionada
pelo telefonema detonou aquilo previamente montado com
precisão de um experiente relojoeiro. Dia vinte de agosto
estava próximo. Tinha exatamente uma semana para se
preparar. Tempo mais que suficiente, pois Andy era
extremamente frugal e montar uma mala não seria
problema. Até se tivesse meia hora não o seria. A empresa
estava em boas mãos, não precisariam dele por um bom
tempo, afinal não havia tantos trabalhos assim e os já
existentes estavam muito bem encaminhados. Por uma
fortuita coincidência as circunstâncias eram favoráveis. Isso
alimentava cada vez mais seu moral em relação ao negócio.
Havia uma conjunção de fatores que resultaria num sucesso
estrondoso, isso na boa-fé de Andy Carter, porém esse
otimismo exacerbado não o prepararia para seu verdadeiro
destino.
A semana seguiu seu curso como se os dias não passassem de
horas. Mal se deu conta e dia vinte de agosto chegou com a
velocidade de um raio em um dia ruim de tempestade. Tudo
obviamente estava nos eixos, e Andy saiu de New Jersey
com a mente totalmente concentrada em seus futuros
negócios com a Seug Corporation. Chegou ao aeroporto com
três horas de antecedência e foi fazer todos os trâmites legais
para seu embarque. Apesar das confusões corriqueiras dos
trâmites, em função da reforçada segurança nos aeroportos,
foi uma tranqüilidade atípica aquele dia vinte. Andy
resolveu tudo em menos de uma hora e só lhe restou esperar
seu vôo. Andando pelos vastos corredores do aeroporto,
encontrou um café e pediu um hambúrguer com refrige-
rante. Imaginava se esse tipo de comida americana existia
naquele país e fez a pequena refeição como uma despedida
provisória até voltar para a América. Após a refeição, tomou
um café preto em um copo de trezentos mililitros. Andava
pelo aeroporto mais uma vez e viu lugares perto das placas
indicativas dos vôos.Viu vários lugares vagos e escolheu um
para sentar enquanto esperava sua hora. Havia no banco ao
lado uma revista semanal de notícias esquecida pelo antigo
dono. Pegou-a instintivamente e se caso o dono aparecesse
reclamando-a, devolveria sem maiores discussões. Deu uma
folheada inicial e depois leu algumas notícias sobre política e
cotidiano. Adorava ver as resenhas de livros contidas nessas
revistas, mas naquela edição não havia nada que lhe
chamasse a atenção. Terminada a leitura, depositou-a
novamente em seu lugar original. Esperou mais alguns
minutos, entretido com pensamentos perdidos até a hora do
embarque. Dirigiu-se ao portão de embarque. Uma vez
dentro do avião, acomodou-se em sua poltrona
confortabilíssima, pois a Seug Corporation havia mandado a
ele passagens de primeira classe. Uma hora depois, almoçou
um menu de primeira qualidade, como os servidos em
restaurantes de categoria elevada, situação à qual não estava
acostumado em função de seu estilo de vida simples,
dedicado exclusivamente ao trabalho, mas não reclamava
daquele luxo. De certa forma o agradava aquilo tudo.
Entretanto não desviava seu pensamento do que realmente
importava. Uma vida dedicada à aeronáutica não se troca por
algumas migalhas de luxo e riqueza, princípio impulsionador
na vida de Carter. Após o delicioso almoço servido pelos
comissários de bordo, Andy adormeceu profundamente.
Não teve nenhum sonho e foi um sono contínuo, sem
interrupções. Quando acordou, sua mente estava leve, com a
sensação de dormir por séculos. Apesar de seu bem-estar, foi
acordado com um leve sacudir de uma comissária de bordo.
Ficou surpreso quando se deu conta do fim da viagem. O
sono o transportou, assim foi essa sensação estranha, até o
término de sua viagem. O avião havia pousado suavemente,
sem maiores complicações. Por isso a surpresa de Andy. Mas
logo caiu em si e voltou ao velho foco. Levantou-se,
mexendo-se de forma não muito chamativa, alongando o
corpo depois das muitas horas de sono vividas no avião.
Pegou sua mala de mão e saiu pela porta onde uma
comissária indicava a saída. Depois de passar pelos trâmites
legais de desembarque,
Andy esperou sua bagagem. Na verdade não passava de uma
mala média, apenas contendo o básico para viagens de
negócio.
Andando pelo saguão do aeroporto, um homem o abordou
cordialmente.
— Dr. Andrew Carter? — perguntou um jovem homem
oriental com sotaque britânico.
— Sim, sou eu.
— Bom dia, Dr. Carter. Deixe-me apresentar. Meu nome é
Li-Seug Goo e trabalho para a Seug Corporation. Bem-vindo
ao Rio de Janeiro.
— Muito obrigado.
— Espero que sua viagem não tenha sido cansativa.
— Não, não. De maneira alguma. Para ser sincero, dormi a
viagem toda.
— Então está muito disposto, suponho.
— Sim.
— Por gentileza, acompanhe-me até o carro.
De repente mais dois homens de terno e gravata
apareceram. Seguranças que acompanhavam Li-Seug Goo.
Estes, com uma gentileza rara entre os de sua profissão,
ofereceram-se para levar a bagagem de Andy. Não houve
dúvida em consentir, pois não queria promover cons-
trangimentos e demonstrava assim confiança para com seus
anfitriões. Andaram todo o saguão do aeroporto e foram para
o estacionamento. Ali se encontrava um carro e mais dois
seguranças. Colocada a bagagem no porta-malas, um dos
seguranças assumiu a direção enquanto um segundo
colocou-se ao seu lado. Andy e Li-Seug Goo entraram no es-
paçoso assento traseiro. Os outros dois dirigiram-se a um
automóvel semelhante àquele usado por Andy e Goo. Os
carros saíram e por alguns minutos Andy observou a
paisagem. Entraram numa freeway (espécie de via expressa)
e a paisagem tornava-se um nítido contraste entre o que
havia de mais moderno com a pior das situações miseráveis.
Um país estranho, pensou Carter. Saindo da estrada a cidade
já podia ser vista e o contraste tornava-se mais ameno. Uma
cidade moderna, apesar dos focos de pobreza serem ainda
bastante nítidos, como qualquer outra do mundo, fazendo
com que preconceitos adquiridos por Andy fossem
derrubados naquele instante. Ele imaginava algo como nos
filmes, uma selva ou coisa assim, e deparou com uma grande
metrópole. Li-Seug Goo virou-se para Andy e começou,
amistosamente, a falar.
— O Brasil é um país maravilhoso, Dr. Carter. O senhor irá
gostar muito. Apesar de ser uma terra de contrastes, há nele
um povo muito trabalhador. Fazemos muitos bons negócios
aqui. E espero que sua estada também seja proveitosa nesse
sentido. A Seug Corporation tem muito interesse em seu
projeto. Mas esses pormenores serão tratados mais tarde.
— Também tenho interesse em nossa parceria, Sr. Goo.
Concordo com o senhor em relação ao Brasil. É sem dúvida
uma terra de contrastes, mas confesso que meus
preconceitos foram derrubados aqui e agora. Vejo que o Rio
de Janeiro é uma cidade como qualquer outra, com seus prós
e contras.
— Ah! Também acreditava, antes de vir morar aqui, em um
lugar diferente. Apesar do calor no verão, não tem muita
diferença com o resto do Ocidente.
— Sem dúvida.
— Deseja beber algo?
— Água, se tiver.
— Sim, pois não.
Enquanto bebia a água oferecida por Goo, Andy observou
que estavam numa estrada muito arborizada e subiam uma
ladeira.
— Para onde estamos indo, Sr. Goo?
— Desculpe-me por não lhe informar, eu me esqueci
completamente desse detalhe — disse Goo com sinceridade.
— Estamos indo para a mansão onde o Sr. Shoi reside. Ele
ordenou pessoalmente que o levasse para lá.
— Não precisava se incomodar, eu poderia ficar num hotel.
— Não se preocupe. E um costume de nosso povo hospedar
nossos convidados, mesmo em se tratando de negócios. E,
além disso, é um dos negócios que mais interessa à Seug
Corporation.
— Entendo.
— Sr. Shoi deseja o mais completo sigilo em relação a essa
transação. E a proximidade do senhor a ele possibilita uma
negociação um pouco mais facilitada. Lembre-se de que o
Rio de Janeiro é uma cidade muito grande e o deslocamento
seria um transtorno desnecessário. Por isso fazemos questão
de tê-lo como nosso hóspede durante sua estada aqui no
Brasil.
— Tudo bem, eu aceito e agradeço a atenção direcionada a
mim.
— É o mínimo que poderíamos fazer.
O carro começou a diminuir seu ritmo constante. Houve
uma pausa e este manobrou para direcionar-se a um portão
gigantesco de metal. Aquele portão deveria ter uns três
metros de altura aproximadamente, calculou Andy. Uma vez
aberto o carro adentrou na mansão, subindo um pequeno
aclive até chegar à construção propriamente dita. Neste
caminho havia um jardim em estilo oriental muito bem
cuidado mesclado com a vegetação nativa. A casa era de
uma beleza exótica para os padrões de Andy. Em um estilo
colonial brasileiro, era coberta por eras, fazendo-a parecer
uma construção produzida pela natureza. Em contraposição,
o teto era de um vermelho impecável, sem uma única marca
de limo, contrastando com o verde natural da casa. O carro
parou e um senhor de aproximadamente trinta e cinco anos
esperava no alpendre da residência. Li-Seug Goo saiu
primeiro e, num gesto cordial, convidou Andy Carter a sair
também. O senhor de trinta e cinco anos aproximou-se de
Carter e estendeu-lhe a mão.
— Dr. Andrew Carter, é uma prazer recebê-lo. Deixe-me
apresentar-me. Eu sou Li-Seug Shoi.
— Prazer em conhecê-lo, também - Andy retribuiu o
amistoso gesto.
— Espero que tenha feito uma boa viagem.
— Foi ótima, Sr. Shoi.
— Fico feliz em saber.
— Muito obrigado.
— Não há de quê. Sinta-se em sua própria casa.
— Muito obrigado - agradeceu Carter mais uma vez.
— Se gosta de alguma bebida ou fumar, temos os melhores
de ambos. Charutos, cigarrilhas, uísque, vinhos, tudo o que
há de melhor. Fique à vontade para ir até a sala de fumar ou
se preferir solicite ao Sr. Oliveira aquilo que mais o agrade.
— Talvez mais tarde, Sr. Li-Seug.
— Sinta-se em sua casa.Vou acompanhá-lo até seus
aposentos. Siga-me, por favor.
Um empregado dos Li-Seugs, devidamente uniformizado
com uma roupa ao estilo oriental com camisa branca e calças
pretas, acompanhou-os carregando a mala de Andy. Ao
passarem pelos cômodos da residência, Andy ficou extasiado
com a decoração. Lembrava muito um palácio chinês antigo.
Havia também muito de outras culturas, como tapetes
persas, porcelanas japonesas e cristais tchecos. O pé-direito,
bastante alto, dava-lhe uma imponência aos olhos. Havia
uma grande escadaria ao final da ante-sala, onde uma sala era
dividida em duas pela escadaria, porém eles não subiram ao
nível superior por ela. Foram a uma porta que se encontrava
na sala da direita, e nela entraram numa pequena sala onde
dois elevadores os esperavam. No segundo andar, foram
recepcionados por uma sala íntima que nada mais era que
um cruzamento, o ponto inicial de quatro corredores ali
existentes. A minúscula comitiva seguiu para o corredor ao
lado do elevador esquerdo. Seguiram mais alguns passos até
chegarem ao quarto destinado a Andy. Li-Seug Shoi fez
questão de abrir-lhe a porta. Entraram no aposento,
decorado de forma muito minimalista, bem diferente do
resto da casa, mas com todo o conforto que um quarto de
hotel cinco-estrelas poderia proporcionar. Havia um
banheiro, portanto era uma suíte. Uma cama de casal, uma
escrivaninha, uma poltrona, um armário e uma cômoda
mobiliavam aquele lugar. Estavam muito bem dispostos no
ambiente, tornando-o agradável. Aquele quarto estava do
modo mais agradável possível aos olhos frugais de Andy. Li-
Seug Shoi voltou-se para ele e falou com uma voz muito
tranqüila.
— O Sr. Oliveira colocará sua mala aqui, se quiser ele poderá
arrumar suas roupas no armário.
— Agradeço a gentileza, mas não será necessário. Por força
do hábito, prefiro arrumá-las sozinho, afinal não são muitas
coisas.
— Tudo bem. O jantar será servido às nove horas. O Sr.
Oliveira o chamará uma hora antes. Aproveite o tempo
como melhor lhe convier.
—Vou aproveitar e descansar mais um pouco.
— Ah! Esteja disposto, pois teremos muito que conversar
esta noite, meu caro doutor. Até mais tarde.
— Até mais tarde.
As portas foram fechadas e Andy guardou o conteúdo de sua
mala no armário. Separou uma roupa para o jantar de logo
mais e aproveitou para pegar seu velho livro de cabeceira
para ler um pouco. Sentou-se à mesa e abriu as páginas já
desgastadas e aproveitou depois para ver alguns papéis do
projeto. Cansou-se um pouco daquilo e foi até a pequena
sacada existente no quarto e lá se sentou numa cadeira de
metal. Enquanto bebia um refrigerante retirado de uma
geladeira existente no quarto, seus pensamentos vagavam
pelas possibilidades daquele futuro negócio. Após uma hora,
amassou a latinha de alumínio e jogou-a numa cesta de lixo
próxima a uma escrivaninha como se simulasse uma partida
de basquete. Olhou para os papéis e o velho livro
displicentemente colocados na mesa. Desistiu de olhá-los e
sentiu um pouco de cansaço. Tirou seus sapatos e deitou-se
na cama. Acabou dormindo um sono bem leve, alternado
entre pensamentos que lembravam sonhos e acordadas
esporádicas. Andy tinha uma facilidade pouco comum em
entrar num estado de semi-sono, muito proveitoso em
situações como esta. Era famoso por nunca perder a hora em
compromissos importantes ou no próprio cotidiano. Desde
pequeno treinara essa habilidade e naquele dia não seria
diferente. Durante seus alternados despertares, olhava para
um rádio-relógio com seus números luminosos no tom
verde. Assim mantinha o controle do tempo e
surpreendentemente conseguia descansar muito bem. A
única exceção em sua vida aconteceu durante o vôo de hoje,
onde um sono profundo consumiu totalmente sua
consciência.
Um toque foi ouvido na porta e a voz do Sr. Oliveira
ultrapassou a barreira física da madeira ressonando aos
ouvidos de Andy. Com um sotaque meio estranho, o Sr.
Oliveira repetiu três vezes o alerta de que já eram oito da
noite.
— Dr. Carter? Dr. Carter? Já são oito da noite — dizia o
empregado, tomando todo o cuidado para não ser
inconveniente. Andy abriu a porta com cordialidade.
— Obrigado, Sr. Oliveira. Estarei às nove horas na sala de
jantar.
— Quando faltar uns cinco minutos, virei até o senhor e o
levarei ao recinto onde ocorrerá o jantar. Boa noite — falou
o educado empregado.
Depois de uma respiração profunda, concentrou-se e fez
todo o ritual para se vestir. Tomou um banho rápido e
colocou a roupa separada momentos antes do descanso.
Olhou-se no espelho, penteou seus cabelos, deu o nó na
gravata e olhou para o relógio. Ainda faltavam quinze
minutos e aproveitou para levar uma pasta com documentos
sobre o projeto Black Mustang 03A, muito importantes para
empreender uma discussão mais séria sobre o assunto,
obviamente após o jantar. Abriu a porta e esperou o Sr.
Oliveira.
Oliveira chegou com uma pontualidade britânica. Não havia
discrepância de tempo ao chegar.
— Podemos ir, Dr. Andrew?
— Sim.
— Por aqui, doutor.
Os dois homens seguiram o corredor até o cruzamento dos
elevadores. Desta vez, o Sr. Oliveira conduziu Andy ao
corredor em frente às portas do elevador. O curto corredor
desencadeava nas grandes escadarias vistas horas antes.
Desceram os inúmeros degraus e foram à sala da direita, em
relação à escada. Andaram pelo belo e imponente cômodo
até chegarem à próxima sala, esta, sim, o derradeiro destino.
Como na sala anterior, este lugar possuía uma decoração
imponente. Totalmente ao estilo oriental, mas mantendo o
padrão da casa com misturas. Entretanto o padrão oriental
predominava, com seus vermelhos e dourados. Uma grande
mesa estabelecia-se no centro desse cômodo. Andy calculou
mais ou menos umas trinta cadeiras rodeando a mesa. Um
salão para grandes famílias, pensou Andrew Carter.
Contraditoriamente, o grande salão estava vazio. Foi
recepcionado apenas por quatro pessoas existentes ali. Sr.
Shoi foi ao encontro dele, de forma muito educada e cortês.
— Caríssimo Dr. Carter, conseguiu descansar?
— Consegui, sim.
—Aproxime-se doutor. Quero apresentar-lhe minha família
— Shoi conduziu Andy pelo salão ao encontro de seus
parentes. — Esta, doutor, é minha irmã Zhi.
— Prazer em conhecê-la, senhorita — deduziu a condição
civil de Zhi pois achava-a jovem demais para o matrimônio.
— O prazer é todo meu, Dr. Andrew.
— Goo o doutor já conheceu hoje pela manhã — apontou
tranqüilamente Shoi.
— Como vai doutor? — disse Goo.
—Vou bem, Sr. Goo.
— Este aqui é Ji, meu primo e um grande amigo.
— Prazer em conhecê-lo, doutor.
— Prazer em conhecê-lo, Sr. Ji.
Terminada a formalidade das apresentações, todos se
sentaram à mesa. Shoi à cabeceira; Andy e Zhi,
respectivamente, à sua direita e, Ji e Goo à sua esquerda.
Cinco serviçais estavam à disposição nesse pequeno jantar.
Enquanto comiam o delicioso cardápio, uma conversa
descontraída sobre a vida acontecia naquela sala. Nada sobre
negócios, pelo menos não diretamente, foi comentado ali.
Shoi não queria causar constrangimento em seu convidado.
Claro que alguns itens e elogios ao projeto Black Mustang
03A foram comentados durante a conversa, mas nada
profundo em relação a isso. Algumas especulações
displicentes também aconteceram de maneira não
comprometida de ambos os lados. Assim era o espírito
daquelas pessoas que tinham em comum um interesse
mútuo sobre as possibilidades que ambas poderiam
compartilhar. Andy descobriu a importância das pessoas à
mesa. Eram todos os responsáveis de mais alto grau da Seug
Corporation. Portanto, nenhuma pessoa à mesa estava
simplesmente fazendo sala para um convidado. Todos, e
absolutamente todos, tinham interesse neste negócio. Uma
deliciosa sobremesa, na opinião de Andy, foi servida, e todos
degustaram o manjar com uma lentidão desproporcional ao
resto do jantar. Terminado o jantar, Zhi, Ji e Goo
despediram-se de Andy, retirando-se respectivamente para
seus aposentos. Li-Seug Shoi pediu a Andrew Carter que o
acompanhasse ao seu escritório para começarem as
discussões sobre o projeto Black Mustang 03A.
Uma vez acomodados em poltronas existentes no pequeno
gabinete, travaram uma discussão sobre o assunto.
— Meu caro doutor. Gostaria de ouvir de sua própria boca
sobre seu projeto Black Mustang 03A.
— Basicamente é um novo conceito em transporte e
aeronave espacial. Não há a necessidade de propulsores
descartáveis e desenvolvemos uma economia de energia
nunca antes imaginada. Conseguimos desenvolver um novo
motor muito mais econômico e há também uma
compactação dos reatores produtores de energia para a nave.
Onde antes era inconcebível utilizar um reator nuclear, nas
proporções necessárias para a nave, hoje é algo,
teoricamente, concebível e de tamanho espetacularmente
diminuto.
— Seu projeto é realmente fantástico — disse Shoi. — Diga-
me qual foi o motivo da recusa?
— Eu poderia indicar dois motivos para a recusa dos
programas espaciais: o primeiro é o alto custo desses
reatores, totalmente fora de questão em relação ao
orçamento disponível de ambos; o segundo motivo é a não
necessidade de um projeto de autonomia tão grande.
— Quando projetou o Black Mustang 03 A, não pensou
nesses fatores de adequação às necessidades de seus clientes?
— Pensei, mas não resisti em ir um pouco além. Eu queria
algo que impulsionasse a exploração espacial. Deixei-me
levar por um pequeno sonho de infância misturado a uma
audácia, digamos assim, no sentido de despertar o interesse
destes programas para o assunto. Sem falsa modéstia,
viabilizamos de certa forma a exploração espacial.
— Ah! Interessante! Mas soube por fontes seguras que sua
empresa ganhou um bom dinheiro, mesmo não ganhando a
concorrência.
— Ganhamos, sim. Principalmente no setor de
aerodinâmica. O projeto, com essa aerodinâmica,
proporciona uma economia de 50% de combustível.
Vendemos a idéia, depois de algumas negociações, com
empresas do ramo de construção de aeronaves comerciais.
Elas obtiveram bons resultados, chegando muito perto dessa
economia dita anteriormente. Claro que o projeto ficou
mutilado, mas os ganhos de economia e segurança na
aviação já valeram o esforço.
— Serei franco com o senhor, Dr. Carter. Estamos
interessados em seu projeto, mas não mutilado, e sim em sua
totalidade.
— Todo, o senhor disse?
— Sim.
— Meu Deus! Isso é inacreditável. Até os reatores?
— Com certeza, meu caro doutor.
— Acredito que o senhor tenha noção exata dos custos desse
projeto.
— Não perdemos tempo. Acompanhamos os projetos para os
programas espaciais, um por um, pois sabíamos da
possibilidade de algo realmente interessante acontecer nessa
iniciativa. Há momentos em que devemos abrir nosso leque
de possibilidades. Por mais que invistamos em alta
tecnologia, sempre há pessoas, como o senhor, dispostas a
superar qualquer expectativa.
— Agradeço a confiança, Sr. Shoi.
— Estamos fazendo muito progresso aqui. Amanhã, às nove
horas da manhã, discutiremos o assunto e entraremos em
detalhes mais profundos. Está bom para o senhor? —
perguntou Shoi.
— Perfeito, Sr. Shoi. Trouxe comigo uma pasta com detalhes
mais profundos sobre o projeto. Se o senhor não se importa,
gostaria de deixá-la aqui. Posso?
— Claro, claro!
— Boa noite — desejou Andy com sua esmerada educação.
— Boa noite, doutor. O Sr. Oliveira irá acompanhá-lo até
seus aposentos.
Assim que a porta do gabinete se abriu, o Sr. Oliveira foi ao
encontro de Andy, conduzindo-o como um cão fiel ao
aposento onde seu conduzido encontrava-se hospedado.
Andy aproveitou que ainda não tinha sono e caminhou até
uma das janelas. Enquanto relaxava, observando o céu limpo
daquela noite, pensava no sucesso até agora das negociações.
Sabia da possibilidade do interesse da Seug Corporation pelo
projeto, mas seus anos de experiência com os negócios
sempre o colocaram numa posição onde ter ansiedade e
expectativas fora do comum não era permitida. Cautela e
sobriedade são as palavras-chave nesse negócio. Mas a
conversa com Li-Seug Shoi foi mais proveitosa do que
imaginara. Acreditava em alguma coisa mais modesta em
relação ao projeto, algum derivado menos custoso. Mas a
produção na íntegra agradava demais Andy. Bebeu um copo
de água e preparou-se para dormir. A noite já avançava e era
preciso restabelecer as energias para o dia seguinte. Deitou-
se e dormiu, com alguma dificuldade, atormentado por
pensamentos otimistas e confusos.
Portas fechadas, Li-Seug Shoi esperou por alguns minutos a
volta de seu empregado. Após uns dez minutos, batidas
fracas podiam ser ouvidas na porta do gabinete. Oliveira
entrou no gabinete, pedindo permissão, e foi ao encontro de
Shoi.
— Dr. Andrew encontra-se neste momento no quarto
reservado a ele.
— Muito Obrigado, Sr. Oliveira. Pode se retirar para seus
aposentos, também.
— Boa noite, Sr. Li-Seug
— Boa noite.
Mais uma vez, Shoi esperou seu empregado ir. Sentou-se na
poltrona onde havia tido a conversa com Andy e quando
percebeu o silêncio profundo envolvendo a casa, levantou-
se até uma estante atrás de sua mesa. Deu meia-volta para
certificar-se de sua solidão. Abriu a porta do gabinete, olhou
para os dois lados, trancou-a por segurança e voltou ao seu
rumo original. De frente à pequena estante, puxou-a como
se pesasse alguns gramas. A estante movimentou-se de
forma a não fazer nenhum barulho. Atrás do forro traseiro
desta, havia dois puxadores de metal. Shoi os segurou e
puxou contra si, para devolver a estante ao seu devido lugar.
Uma vez atrás dela, encontrava-se numa pequena sala. Ao
seu lado direito havia um monitor com imagens do gabinete
transmitidas ao vivo. Assim, quem estivesse dentro,
controlaria a hora mais conveniente de sair. Desceu uma
estreita escada num canto da sala. Esta escada dava para um
corredor estreito, subterrâneo e úmido. Em seu final uma
porta o esperava aberta. Shoi adentrou no recinto posterior à
pequena porta. Havia um amontoado de livros, mas não
bagunçados. Estavam em pilhas muito bem arquitetadas,
dando- lhes um ar ordenado, mas não habitual. Ali se
encontrava uma criatura com uns três metros de altura
envolta em um manto negro com um enorme capuz
encobrindo-lhe o rosto. A criatura fez um gesto com o que
seria sua mão para que Shoi se aproximasse. Este se
acomodou em uma poltrona ali existente.
— Meu amigo, Li-Seug Shoi! Diga-me quais notícias trazes
contigo? — A voz metálica da criatura produzia uma
sensação de eco no recinto.
— O engenheiro norte-americano já chegou e falamos sobre
o projeto da nave produzido pela empresa dele.
— Estamos chegando a um ponto importante de nossa
missão, meu amigo.
— Amanhã fecharemos negócio com ele, Tlüogodärami.
— Que tipo de pessoa ele é, Shoi?
— Parece ser uma boa pessoa. Usamos técnicas para perceber
isso no jantar e ele passou essa impressão. Mas nunca se
sabe. Posso dizer com certeza que é uma pessoa com
espírito empreendedor. Um apaixonado por viagens
espaciais e um excelente engenheiro.
— Uma pessoa com essas credenciais será muito útil. Vamos
arriscar uma coisa, Shoi. O projeto do bom doutor é
fantástico e é uma chance clara de resolvermos nosso
problema. Vamos revelar mais ao Dr. Andrew sobre nossos
objetivos. Uma pessoa como ele poderá ser necessária em
nossa missão. Afinal, ninguém conhece o projeto melhor do
que ele. Traga-o amanhã aqui, após fechar o contrato com
ele. Vamos revelar a verdade, meu amigo.
— Tem certeza, Tlüogodärami?
— Tenho. Mas prepare-o um pouco para o que está por vir.
Pode ser chocante para o doutor me ver sem uma prévia
preparação.
— Fique tranqüilo, Tlüogodärami. Vou preparar o espírito do
Dr. Carter para isto. Mais alguma recomendação?
— Não. Pode ir e descanse para amanhã.
— Adeus, Tlüogodärami.
— Adeus, meu amigo.
Shoi seguiu o caminho de volta até seu quarto. Tlüogodärami
voltou para seu estudo. Este consumia toda a cultura humana
que lhe caía em suas escamosas patas. Seu esconderijo
possuía além dos livros, muitos computadores e umas telas
de vídeo que monitoravam os cômodos principais da casa e
seu exterior. Assim sabia previamente o que acontecia na
residência. Observou algumas horas antes a conversa de Shoi
com o engenheiro e descobriu nele, além de suas
habilidades profissionais, uma pessoa sincera, alguém em
que se possa confiar. Pegou um livro para ler e no título
estava escrito An Essay on Man, de Ernst Cassirer.
Deliciava-se com a literatura e a produção filosófica dos hu-
manos. Achava a escrita produzida uma manifestação
cultural fantástica de seus pequenos amigos.
O dia amanheceu e Andy desceu para tomar seu desjejum
com os Li-Seugs. Assim o fizeram e, logo em seguida, Shoi,
apresentando uma pequena novidade, convidou-o a
conhecer seu centro de pesquisas no Brasil. Foram até um
pátio da casa onde se encontrava um helicóptero. Subiram
na aeronave e seguiram seu rumo. Andy ficou admirado
com a vista da cidade do alto. Achou-a deslumbrante.
— Esta é uma bela cidade, Sr. Shoi.
— Com certeza, Dr. Carter — Shoi esforçava-se para ser
compreendido perante o barulho produzido pela aeronave.
Chegando ao laboratório, os dois visitaram as instalações e
Andy ficou muito impressionado com a tecnologia de ponta
dos Li-Seugs. Chegando ao escritório de Shoi, começaram as
discussões finais sobre o patrocínio do projeto Black
Mustang 03A.
— Dr. Carter, estamos dispostos a patrocinar seu projeto
praticamente na íntegra. Precisamos apenas fazer pequenas
modificações no projeto. Por exemplo, é de fundamental
importância que a nave seja invisível aos radares.
— Invisível? Mas por quê? Quais são seus objetivos, Sr. Shoi?
Espero que não sejam militares, pois assim vou embora.
— Por favor, não me entenda mal. Não há nada de militar
nisso. Quero contar a verdade. Mas não por enquanto.
Quero que chefie pessoalmente o projeto aqui neste
laboratório e participe da missão a qual está destinado esse
projeto.
— Como assim?
— Nosso objetivo é a exploração espacial, ou algo próximo a
isso. O senhor está convidado a tripular a nave.
— Nossa! Não consigo acreditar, com todo o respeito, Sr.
Shoi. Não que duvide do senhor, mas é algo no mínimo
estranho. O senhor há de concordar comigo.
— Não se preocupe, Dr. Andrew. Eu sei que a princípio
parece estranho, mas conforme o tempo passar, suas
respostas virão. Esse projeto ajudará um grande amigo e
mentor.
— Não consigo ver como uma viagem espacial tripulada
possa ajudar alguém, Sr. Shoi.
— Vou lhe contar uma história, Dr. Andrew, e acredite, por
mais absurda que possa parecer, ela é a pura verdade. Há
muito tempo, diria mais de três mil anos, uma nave
misteriosa chegou ao meu povo e um visitante vindo do
espaço encontrava-se nela.
— Ora, Sr. Shoi. Isso deve ser alguma lenda. Como o senhor
pode acreditar em algo acontecido três mil anos atrás.
— Simples, meu amigo. Eu estava lá.
— O senhor está dizendo-me que tem mais de três mil anos
de idade?
— Sei que parece absurdo aos seus ouvidos, mas garanto-lhe
que é a pura verdade.
— Desculpe-me, mas isso tudo parece loucura. Como posso
trabalhar para pessoas assim, sem saber exatamente o que
querem. Vocês podem ser terroristas ou coisa assim. E três
mil anos? Isso me cheira a fanatismo religioso! — certo
sarcasmo podia ser sentido na voz de Carter. — Nunca ouvi
tamanho absurdo.
— Não! O senhor entendeu tudo errado. Não somos
terroristas nem fanáticos. E posso provar. Venha conhecer
meu amigo do espaço. Ele é a única prova de o que o que
lhe digo é a pura verdade.
— Pelo amor de Deus, homem! Não posso acreditar nisso
tudo! E loucura em demasia — uma sensação de mal-estar
tomava conta de Andy. Aquilo se tornara um pesadelo.
Entrara numa negociação com loucos e a dúvida tomou
conta de seus pensamentos.
— Dê-me um voto de confiança, por favor. E tudo que peço.
Posso garantir que não há loucura, nem é um plano
terrorista. Veja só uma coisa, Dr. Carter, a Seug Corporation
existe a mais de cem anos e somos uma empresa idônea e
responsável. Aposto tudo que antes de nos visitar o senhor
tenha pesquisado sobre a Seug.
— Com certeza pesquisei — respondeu mais calmo Andy.
— Darei uma hora para o senhor se decidir. Venha comigo e
saiba a verdade ou pode ir embora se desejar. Mas pese em
sua balança a credibilidade que a Seug tem e a possibilidade
de realizar seu sonho de construir sua nave e ir ao espaço —
Shoi levantou-se de sua mesa, colocou rapidamente a mão
no ombro de Andy e saiu da sala.
Andy ficou abismado com aquela situação. Não podia
acreditar no que ouvira. Mas conforme pediu o Sr. Shoi, foi
pesando os prós e os contras daquilo tudo. De repente era
uma pessoa desequilibrada, mas inofensiva, pensou Andy.
Queria ver até onde aquilo ia e decidiu seguir em frente, pois
o que teria a perder era mínimo. Mesmo decidido a dar um
voto de confiança a Shoi, Andy manteve seu ceticismo.
Uma hora depois, Shoi voltou à sala.
— O senhor vem ou não vem, Dr. Carter?
— Eu vou. Não quero ser um convidado mal-educado. E
também fui instigado a saber a verdade. Vamos.
— Peço um favor, Dr. Andrew. Abra sua mente, pois o que
está para saber é aterrador. A oportunidade adquirida neste
momento pelo senhor é algo há muito escondido. O senhor
será o primeiro não Li-Seug a conhecer meu amigo.
Foram até o helicóptero. A viagem foi bem rápida e o
silêncio de vozes humanas predominou durante todo o
percurso. Andy continuava cético. Ao chegarem, foram
recepcionados por Zhi, Goo e Ji.
— Tlüogodärami esta esperando por nós, Shoi — disse Ji.
— Tlüogodärami? O que é isso? — perguntou Andy.
— Meu amigo, Tlüogodärami, Dr. Andrew. O ser que quero
lhe apresentar para confirmar o que eu disse.Venha por
aqui.
Todos seguiram Shoi. Foram até o gabinete. Shoi certificou-
se de não haver mais ninguém observando-lhes e trancou a
porta do gabinete. Puxou a estante e convidou Andy a entrar
ali. Andy entrou hesitante, mas impulsionado pela
tranqüilidade dos outros que entraram sem pestanejar. Que
coisa mais absurda. Passagens secretas numa casa em terras
distantes. Seriam uma seita ou algo do tipo?, perguntava-se
Andy Carter. Agora que chegou até ali iria até o fim, pois
seguindo a lógica, nada daquilo fazia sentido, e especular só
traria mais medo à tona. Seguiram até o corredor estreito
onde a porta mais uma vez encontrava-se aberta. Shoi
entrou primeiro enquanto o resto da comitiva veio a seguir.
Andy ficou impressionado com a quantidade de livros e o
tamanho do lugar. Ao fundo via-se uma criatura com um
manto com capuz negro. Andy começou a entrar em
pânico, enquanto Shoi o tranqüilizava.
— Não se preocupe, Dr. Andrew. Ele é um grande amigo.
A criatura se aproximou deles andando de quatro. Um cão
negro o acompanhava. Ao chegar perto o suficiente para
conversar, posicionou- se de pé e depois ficou numa posição
sentada, assim parecia. Passava sua pata na cabeça do cão no
intuito de tranqüilizá-lo. Retirou o capuz e o manto e Andy
pôde ver o ser na íntegra.
— Meu Deus! Não acredito em meus olhos! E quem eu
imagino que seja! — falou espantado Andy.
— Isso mesmo, Dr. Andrew. E o que o senhor imagina.
Apresento- -lhe Tlüogodärami.
— Nossa! Um dragão de verdade. Mas como é possível? Eles
são produtos da imaginação humana. Não pode ser verdade!
— Garanto-lhe, meu caro doutor, que sou verdadeiro —
disse Tlüogodärami em sua característica voz metálica.
Andy ficou um pouco em estado de choque. Shoi, Goo e Ji
ajudaram-no a sentar em uma poltrona perto de
Tlüogodärami. Enquanto voltava ao normal, observava
Tlüogodärami sem parar. O dragão observava-o esboçando o
que seria uma espécie de sorriso.
— Calma Dr. Andrew. Temos muito que conversar — disse-
lhe Tlüogodärami. — Não é a primeira vez que vejo essa
reação, meu caro. Shoi e todos que estão aqui a tiveram ao
me encontrar. Apesar do medo existente em seus
semblantes, confundiram-me com algum deus de suas
crenças. Isso ajudou a amenizar nosso encontro.
Andy começou a digerir a situação. Aceitou-a de forma mais
tranqüila e resolveu ficar mais receptivo à novidade.
— Devo-lhe desculpas, Sr. Shoi. Confesso não ter acreditado
em sua história.
— Não fique constrangido. Entendo totalmente sua atitude.
Ela só demonstra o tipo de pessoa que é. Por isso o senhor
teve o privilégio de conhecê-lo. Mas lembre-se: o que viu
aqui deverá ficar em total segredo.
— Não direi uma só palavra.
— Sua integridade é um pré-requisito inestimável, Dr.
Andrew.
— Aproxime-se, doutor — disse Tlüogodärami. — Não tenha
medo. Espero que tenha paciência, pois vou lhe contar toda
a história de meu povo e como vim parar aqui.
— Estou à disposição e muito curioso para ouvi-lo, senhor.
— Por favor, me chame de Tlüogodärami, sim. Aposto que
seremos grandes amigos.
Então Tlüogodärami contou-lhe toda a história dos dragões.

CAPÍTULO 4
O LIMIAR DE UMA ESPÉCIE

A grande explosão, o fator crucial da formação do universo,
trouxe consigo no devido tempo um fenômeno raro, isso em
comparação ao tamanho gigantesco entre galáxias, chamado
vida. A vida é algo nascido com o universo. Uma parte
deste. Quando determinados fatores e acontecimentos se
unem, ela surge com força e perdura por muitos anos.
Apesar de existir em todo o universo, de um modo geral, são
acontecimentos raríssimos. Há nesse fenômeno um padrão
interessante. Apesar de sua raridade há uma semelhança
próxima em todo o fenômeno vida. Basicamente é o mesmo
processo. Combinação de compostos químicos, clima
favorável e alguma estabilidade são alguns desses fatores para
sua existência. Os planetas com essas características são em
número diminuto. Uma comparação seria um grão de areia
em uma praia. Algo insignificante em comparação ao todo.
Apesar de escasso, é o acontecimento mais belo e complexo
de todo o universo. Como um metal raro em uma mina de
ferro, suas características em vários pontos superam o resto
do abundante ferro.
O planeta conhecido hoje como Terra é um berço
espetacular desse fenômeno conhecido como vida. Em seus
cinco bilhões de anos de existência, a grande maioria desses,
compartilhados com a vida, não conheceu um momento
sem ela depois de seu surgimento. Se a geração de vida é um
fenômeno raríssimo em todo o universo, imagine a vida
inteligente. E tão raro que estatisticamente parece
impossível sua existência, porém, contrariando qualquer
estatística, esta existe e acontece de forma a consagrar a
beleza de tal fenômeno. Nos planetas com características
proporcionais ao da Terra, quando acontece isso em suas
extensas histórias, acontece apenas uma vez. E se a forma de
vida inteligente é bem-sucedida e desenvolve seu ápice,
com milhões e milhões de anos de evolução, pode chegar a
ser eterna e continuar sua jornada com a história do
universo, interpretando-o e entendendo-o. O planeta Terra,
na loteria dos mundos propícios à vida, ganhou a chance de
desenvolver vida inteligente. Os homens, com sua jornada
evolutiva, chegaram aos pré-requisitos para entrar nessa
estatística quase impossível de acontecer. A humanidade é
um demonstrativo dos fatores que levam a vida inteligente a
se tornar bem-sucedida. Mas, mesmo nessa jornada bem-
sucedida, há fracassos. Na história evolutiva do homem
houve altos e baixos. Espécies de homens, como os
neanderthais, sumiram sem deixar rastro, a não ser seus
restos mortais fossilizados. Exames genéticos desvendaram
alguns pontos de nossa história evolutiva. O homem
moderno, ou Homo sapiens, descende de uma única família
sobrevivente de uma era difícil. Durante sua jornada,
aqueles homens souberam usar suas habilidades para
sobreviver, mesmo sendo geneticamente semelhantes a
outros Homo sapiens. Eles conseguiram desenvolver e
ampliar seu leque de características destacando-se naquele
momento de seus próximos. Seus sistemas simbólicos, ou
simbolismo, estavam desenvolvidos a um ponto em que sua
jornada pôde finalmente continuar. O simbolismo é de suma
importância para compreendermos o homem. Sem isso ele
estaria extinto ou viveria como os outros animais.Viveria de
um modo funcionalista, apenas suprindo suas necessidades
básicas. Comer, dormir, reproduzir-se, etc., uma vez essas
necessidades supridas, não haveria a necessidade de fazer
mais nada a não ser repeti-las no dia seguinte. O simbolismo
separou o homem da simples necessidade. Podemos aqui
distinguir como é tênue a linha que separa o sucesso do
fracasso. Por isso é estatisticamente quase impossível. Mas
não impossível. Sem simbolismo não há esse sucesso. Não
adianta a existência de um cérebro desenvolvido se esse
pequeno detalhe não existir. A capacidade de imaginar,
criar, entender, interpretar, etc. nos separou da vida
corriqueira, dos outros organismos, e nos colocou em um
patamar onde podemos alçar vôos mais altos. O que vale
para o homem vale também para a vida inteligente no
universo. Não exatamente do mesmo jeito, pois nada é
totalmente igual, e sempre há suas especificidades. Mas de
uma maneira geral, guardadas essas pequenas diferenças, na
essência, esse padrão acontecido com o homem no planeta
Terra serve de padrão geral ao resto do universo.
Indo mais fundo em nosso exemplo, podemos perceber que
o homem coloca a si mesmo como fator principal de sua
existência. O simbolismo, a capacidade de imaginar, constrói
um universo particular. O homem cria seus problemas e
questionamentos. Suas frustrações e pesadelos estão
intimamente ligados às suas criações. De certa maneira, o
homem deixa para trás sua história biológica e assume boa
parte da direção de seu "destino". Entretanto, por mais que
compreenda a si mesmo, por mais que tente controlar e
absorver sua realidade física. No seu mundo particular, o ser
humano não consegue ter um domínio total, um controle
predominante. Existem sempre fatores externos penetrando
em seu pequeno universo, mudando sua vida, seus rumos.
Sua extraordinária capacidade de se adaptar é o fator
fundamental para a continuidade de sua jornada como
espécie. Então temos aqui o somatório do imaginário com os
fatores externos. Uma luta interna contra si e contra tudo.
Até agora bem-sucedida, mas até quando? Isso nem a mais
sábia de todas as criaturas do universo poderia determinar.
Ou seja, há fatores internos e externos na relação sucesso-
fracasso na vida dos seres providos de inteligência, a casta
mais nobre da vida em todas as galáxias. O simbolizar, o
classificar, o entender e o encaixar em um modelo criado
fizeram com que este ser, o ser humano, conseguisse
construir outro fator para seu sucesso. Falo aqui da criação
da identidade. O homem criou-a e usou-a de muitas formas.
Numa situação primária, foi o detalhe entre a união ou a
desunião do homem. Aqueles que conseguiram desenvolvê-
la tiveram melhor sucesso na jornada da vida. A identidade
ou a identificação do homem com seu semelhante é um dos
fundamentos para seu grande sucesso. Esse detalhe criou a
civilização, a sociedade. O homem se associou aos seus, e
juntos construíram um objetivo. Claro que esse pequeno
detalhe na vida do homem foi uma faca de dois gumes. Da
mesma maneira que a alteridade é fundamental para a
identidade, esta também é um fator de discriminação. O
homem em função de sua identidade, ou seja, o dividir-se
em grupos e identificar-se com eles, trouxe um equilíbrio
muito tênue para sua existência. Guerras foram travadas por
grupos que se identificavam com ideais e idéias diferentes.
Apesar de ser uma situação perigosa, muito do
desenvolvimento da humanidade se deveu a isso. Várias cul-
turas foram pequenas chamas, pequenos tijolos da
construção de uma humanidade totalmente diversificada. A
diversidade de culturas, idéias e desenvolvimento
tecnológico foram os fundamentos para a criação do mundo
visto no final do século XX da Era Cristã. Toda essa
diversidade de criações e idéias providenciarão o sucesso do
que virá a ser um dia uma única civilização humana. A
civilização do homem, que apesar de suas diferenças,
pequenas e insignificantes, andará junta em função do
próprio homem, fator máximo de uma identidade. Este
homem do futuro andará rumo ao ideal do conhecimento, e
as pequenas mazelas do passado não mais os afetará. Claro
que enquanto o homem não for confrontado com um outro,
ou seja, um ser de outra espécie com a mesma capacidade de
inteligência, essa identidade universal entre homens não
existirá ou irá demorar muito tempo para se desenvolver.
O exemplo do homem ilustra bem esse fenômeno,
principalmente em seu padrão, regra geral, em sua essência,
para a existência e o desenvolvimento da inteligência.
Acontecer esse fenômeno da vida inteligente é raríssimo e
só uma vez torna-se quase um padrão, como já foi dito; mas
e se isso acontecesse novamente em um mesmo planeta? E
quase impossível, estatisticamente, a vida inteligente
acontecer uma única vez; imagine duas vezes. Não haveria a
menor possibilidade, porém, contrariando toda e qualquer
lógica possível, isso aconteceu em um pequeno planeta azul
chamado Terra. A Terra de nosso exemplo anterior. Antes
mesmo de algo parecido com um homem vagar no planeta,
houve outra espécie encaixada nas características essenciais
para entrar na categoria de vida inteligente. Uma espécie
inteligente, vivenciando situações semelhantes às vividas
pelo homem. Uma segunda espécie inteligente. Na verdade
essa espécie seria a primeira e o ser humano a segunda
espécie com essas características em todo o planeta Terra.
Aproximadamente no ano 80 milhões antes da Era Cristã,
uma espécie, ainda que não encaixada naquele momento em
nossa categoria de inteligência, começou seus pequenos
passos evolutivos rumo a esse caminho. Há 80 milhões de
anos surgiram na Terra os primeiros dragões. O dragão
primitivo viveu numa era extremamente competitiva. Sua
capacidade de voar possibilitou-lhe vantagens que
resultariam em qualidades futuras. O vôo era uma vantagem,
mas não amenizava o fardo de ser uma criatura vivente em
um período tão inóspito.
O dragão primitivo foi contemporâneo dos últimos
dinossauros. Os grandes lagartos possibilitaram uma vida
infernal, duríssima por assim dizer, para os primeiros de uma
espécie que futuramente dominaria o mundo. Sua
construção corpórea, seu aspecto exterior pouco mudou.
Não houve significativas mudanças em seu aspecto externo
até chegar no ponto da inteligência. O processo evolutivo,
seja de qualquer espécie e em qualquer grau de inteligência,
cobra seus tributos no sentido em que a criatura original
modifica-se extremamente em relação ao seu primeiro
exemplar. Os dragões tiveram mudanças significativas em
suas composições corpóreas ao longo de sua jornada
evolutiva, porém, em relação ao primeiro dragão, muito se
manteve, sendo a maioria dessas mudanças acontecidas no
campo cerebral. Sua constituição física se adequou tão
perfeitamente às exigências de uma vida extremamente
competitiva que qualquer mudança drástica não levaria aos
bons resultados de sua constituição original.
Um comportamento observado em uma parcela dos
primeiros dragões foi a cooperação mútua. Esse
comportamento não se caracterizava como uma regra geral,
mas futuramente resultaria em mais um pequeno sucesso na
batalha da vida. Comumente, guardadas as devidas
proporções e características, assemelhava-se muito com um
formigueiro ou cupinzeiro. Havia uma cooperação mútua
nesses pequenos grupos, possibilitando momentos
complexos, ou seja, divisões de tarefas. Caça, guarda, etc.,
estavam sendo criadas instintivamente por esses seres. A
pesar de ser um comportamento vantajoso para os dragões, a
grande maioria da espécie não apresentava esse
comportamento. Portanto, aqueles que o possuíam eram
uma pequena fatia, uma diminuta parcela em relação ao
todo. Geralmente esses pequenos grupos com características
de cooperação agrupavam-se em cavernas. O grupo cavava,
retirando com a boca os minerais indesejados, ampliando
assim o espaço interno conforme a necessidade.
As características colecionadas por alguns dragões foram
essenciais para seu sucesso. Há 65 milhões de anos, 15
milhões de anos após o surgimento dos dragões, dois grupos
distintos apareceram: o dragão errante e o dragão da
caverna. Apesar de diferenciarem-se pouco evolutivamente
e as condições de sucesso serem até aquele momento muito
bem-sucedidas no que diz respeito a suas respectivas
sobrevivências, isso iria mudar radicalmente. As jornadas
seguidas pelos dois grupos iriam mudar suas vidas para
sempre. Um deles sobreviveria com uma eficiência
destacada não só entre os de sua espécie como aos outros
seres viventes naquele pequeno planeta azul. Há 65 milhões
de anos a maré mudou. A vida passou por um processo
drástico e cruel de seleção natural. A situação foi tão dura,
drástica, por assim dizer, que a vida quase se extinguiu
totalmente naquele período. Um asteróide atingiu a Terra e
levou o planeta a um período de mudanças radicalmente
opostas aos vividos até então. A prova estava lançada e os
participantes do jogo da vida preparados, ao seu modo, para
a luta pela sobrevivência. A condição de vida de alguns
dragões, os da caverna, pouco mudou, pois os efeitos
provocados pelo asteróide não prejudicaram muito seu estilo
de vida, afinal, dentro das cavernas não houve mudanças
significativas. Enquanto a vida se extinguia aos poucos, os
dragões da caverna aproveitaram-se das carniças dos animais
moribundos e alimentaram-se delas até os dias mais felizes
de um cotidiano restaurado à sua normalidade.
Depois da catástrofe do final do período cretáceo, os dragões
sobreviveram com relativo sucesso. Sua vida nas
profundezas das cavernas preparou-os para o período de
escuridão. Depois desse evento, sua primazia na Terra era
absoluta. Claro que não foi de forma alguma fácil para eles,
mas num jogo mortal provocado pelo acaso, sua vitória foi
evidente. Por milhões de anos, seu estilo de vida seguiria um
padrão evolutivo lento. Sua condição de irracionalidade
continuaria por milhões de anos até um momento curioso
de sua lenta evolução mudar totalmente a perspectiva de
uma rotina muito bem-sucedida, mas praticamente
estagnada, de seres que começariam sua jornada de fato no
restrito grupo dos providos de inteligência e
autoconsciência. Há aproximadamente 12 milhões de anos
antes da Era Cristã, um salto evolutivo levaria a espécie,
antes estagnada há milhões de anos, a uma jornada evolutiva
de quase um milhão de anos, em que resultaria no auge
evolutivo natural e derradeiro deles. Durante esse pequeno
período de anos, em comparação ao todo, os dragões
chegaram à aurora de sua espécie.
O início do desenvolvimento das civilizações de dragões
seguiu, por assim dizer, etapas peculiares. A capacidade
mental extremamente avançada, diferenciando-o das outras
espécies, somada à capacidade de imaginar, interpretar seu
mundo a sua maneira, levou-o a caminhos nunca antes
traçados por qualquer dragão. Dos primeiros grupos com
características avançadas criaram-se as mais variadas
tecnologias de sobrevivência. Agricultura e indústria
primitiva logo seriam desenvolvidas. Pequenos grupos se
uniram formando grupos maiores, e todo o processo
histórico envolvendo essa espécie possibilitou a criação de
17 nações de dragões. Estamos exatamente no ano
11.000.596 antes da lira Cristã. Essas 17 nações eram
totalmente autônomas, espalhando-se pelo mundo.
Obviamente elas tinham origens próximas de um grupo
único que com os processos históricos e o longo tempo de
colonização do mundo tiveram o resultado relatado há
pouco. Em ordem de desenvolvimento decrescente,
apresento-lhes os nomes das 17 nações existentes naquele
período: Okinst, Cobat, Arkon, Shirz, Vonziturk, Tatakis,
Gernost, Kun, Muskatzo, Maranonk, Gingard, Zinuard,
Boikon, Branon, Atlunz, Mokant e Ur. Cada uma possuía
língua diferenciada e cultura própria. O contato era mínimo
entre elas. Não havia um comércio forte entre elas, apesar
do comércio ser uma atividade utilizada pelos dragões, mas
não se transformou no estilo de vida de nenhuma das
civilizações. A mais sofisticada, Okinst, não diferenciava
muito em seu modo de vida dos humanos do século XVIII.
Houve muitas guerras no passado dessas nações por
interesses diversos, mas, a partir do ano 11.000.596, elas
finalmente viveriam em paz durante mil anos. Durante esses
mil anos de paz entre essas nações, houve poucas mudanças
em sua vida. Obviamente muito conhecimento foi criado
durante esse período, mas a tradição da cultura prevaleceu
por muito tempo.
Nesse período, os dragões mantinham, apesar dessa certa
distância entre povos, características universais. As cidades
construídas pelos dragões eram verdadeiras obras-primas em
termos arquitetônicos. Nessa área estavam muito avançados,
pois suas exigências culturais produziam esse avanço.
Originalmente os dragões das cavernas tornaram-se a
espécie sobrevivente e essa característica foi levada à seu
ápice em termos de sofisticação. As cidades dos dragões
foram construídas como verdadeiras fortalezas subterrâneas.
Uma torre altíssima rasgava o céu e afilava-se conforme se
distanciava do nível do solo. A base, mais larga, não
demonstrava a verdadeira grandiosidade dessas cidades, pois
a grande maioria das construções era inferior ao nível do
solo. O núcleo pulsante desse tipo de cidade encontrava-se
exatamente no meio da arquitetura, ou seja, muito abaixo do
solo. A parte exterior mostrava uma beleza fantástica. Esta
era gigantesca. Os dragões conheciam técnicas de
construção tão sofisticadas que as possibilidades tornaram-se
vastas. A estrutura agüentava a gigantesca torre. Quase nada
poderia derrubá-la. Linhas retas e totalmente lisas cobriam a
edificação. Entre as belas linhas retas, encontravam-se
baixos-relevos, onde se retratavam fatos do passado. Essas
cenas em baixo-relevo contavam antigas lendas e fatos do
cotidiano dos dragões. Muitos personagens, numa maioria de
contribuintes do conhecimento acumulado, estavam
retratados nessas cenas. Na base, havia uma grande entrada.
E outras saídas do grande edifício localizavam-se nos
patamares superiores. De um tom de pedra marrom-
acinzentado, essa maravilhosa construção contrastava com
seus arredores totalmente preservados. Havia certa
consciência de preservação ambiental na cultura dos
dragões, pois sabiam, por uma lógica simples, que, se a área
habitada por eles sofresse interferências muito brutais de
suas escamosas patas, em pouco tempo, não poderiam
continuar a viver naquele lugar.
A cultura dos dragões, de um modo geral, baseava-se em
filosofia e astronomia. Os contempladores de estrelas e os
pensadores gozavam de uma maior respeitabilidade entre os
seus. O ensino básico de um jovem dragão começava entre
os de sua família e posteriormente completado nos grandes
centros de ensino e pensamento, localizados geralmente nas
grandes cidades de cada nação. Todo o conhecimento dos
dragões localizava-se nesses centros. Os dragões possuíam
uma escrita e esta era o mais simples possível. Não havia
nessa sociedade o papel, portanto livros eram objetos
inexistentes. Seus registros foram impressos em placas de
uma liga metálica chamada krür, criada originalmente na
nação Ur, e em sua composição havia até ouro. Tinham
grande durabilidade e todos os interessados podiam
consultá-las. Sua confecção encontrava- se nas mãos dos
mais renomados artesãos e seus respectivos países. Só a
mistura de metais para fazer a liga exigia um artesão
específico. Os escritos apareciam, nessas placas, em baixo-
relevo, como nas moedas humanas. Outro artesão era
designado para essa função. Todo um trabalho esmerado,
minucioso e elegante era o mínimo que se esperava do
artesão. Afinal, o conhecimento deveria durar por muitos
anos. A visão de uma placa, com seu tom semelhante ao
cobre, tornava-se indescritível, tamanha sua beleza. Até sua
leitura exigia um toque especial. O curioso nesse processo de
registro e leitura estava na forma como eram interpretadas.
Os dragões desenvolveram a habilidade de lê-las um pouco
diferente. Como se fossem uma mistura de cegos e pessoas
com visão, eles liam-nas com uma velocidade espetacular,
utilizando os dois sentidos, visão e tato. Todo o registro de
seus conhecimentos encontrava-se obrigatoriamente nessas
placas de krur. Em relação à contemplação dos astros, esta
estava intimamente ligada ao estilo arquitetônico dos
dragões. Todo o edifício possuía um observatório em seu
terraço. Como possuíam bastante altura, podendo chegar até
dois quilômetros, o ambiente e as circunstâncias tornavam-
nos a escolha mais prática e adequada. A astronomia dos
dragões estava em um patamar avançado, levando ao limite a
tecnologia possível utilizada em um planeta. Muitos
aprenderam em relação aos astros e ao seu próprio planeta,
e, certa vontade coletiva, um chamado, os levava a desejar o
rompimento da barreira que os separava dos astros. Esse
fascínio pelo céu ficou por muito tempo limitado ao nível
do chão, preso pela gravidade de seu planeta natal. Mas,
futuramente, surpresas e uma visão completamente
diferente desse período chegariam aos dragões.
Estes mil anos de paz entre as nações só foram possíveis
mediante tuna semelhança entre suas políticas internas. Não
havia o conceito moderno de política propriamente dita
entre dragões nem a figura do político naquele período.
Nesta área todas as nações iam direto ao ponto principal.
Todos aqueles que possuíam um grande destaque em áreas
técnicas naturalmente comandavam suas respectivas áreas,
porém isso nunca era feito solitariamente. Um grupo dos
melhores encarregava- -se, quando necessário, de prestar
esse serviço público. Podemos dizer que havia pouca
semelhança com o estilo do homem nesse sentido. A
aparente anarquia vivida pelos dragões estava longe de se
assemelhar ao conceito bruto da palavra. Algumas
características culturais de organização datadas de tempos
pré-históricos demonstram que a capacidade de organização
e respeito às regras preestabelecidas por todos estava inserida
no cotidiano dessa espécie. Corrupção era uma palavra quase
inexistente, pois o castigo e a vergonha de tal ato seria o fim
de uma vida muito valorizada. Portanto, a parte de
agricultura era comandada pelos agricultores, a parte da
indústria pelos industriais, riquezas acumuladas pelos
tesoureiros e assim ia para todos os ramos econômicos e
políticos do cotidiano das nações. Claro que esse tipo de
organização só é possível em função das características dos
dragões. Esta foi a forma que encontraram para sobreviver e
assim trouxe bons resultados por muitos anos. Organização é
um ponto delicado em que os povos devem achar a melhor
maneira de se conduzirem. A humanidade é um exemplo de
dezenas de fórmulas organizacionais. O diálogo entre áreas
estreitava-se bastante, obviamente não sendo totalmente
oficial, mas os diálogos e reuniões aconteciam
freqüentemente. Em momentos de crise ou catástrofes, a
capacidade de organização dos dragões surpreenderia os
padrões humanos. Temos um padrão organizacional
totalmente descentralizado, porém real e viável. A figura
central de um líder propriamente dito foi esquecida na
cultura dos dragões por muito tempo. A abstrata nação, ou o
sentido de nação, tornou-se seu líder, e tudo o que estava ao
alcance de um dragão para o bem-estar de sua nação não era
mensurado esforços para obtê-lo. A Justiça também estava
num patamar extra-oficial. Quando havia a necessidade
desta, uma comissão formava-se para as devidas
deliberações. Nessa parte delicada da organização, os dragões
demonstravam certa fragilidade, pois uma complexidade
exigida nessa área da Justiça pouco se fazia presente. Não
havia nada semelhante a uma polícia investigativa e casos de
injustiça foram muito freqüentes, apesar dos poucos casos de
crime acontecidos nessa civilização de um modo mais
amplo.
Nesse universo cultural, no ano 10.999.600 antes de Cristo,
nasceu um dragão que mudaria todo o pensamento das
nações de dragões. Mist Tlüogodärami de Okinst foi este ser
que mudou o rumo de uma espécie. Mist Tlüogodärami foi
uma espécie de prodígio não reconhecido em sua infância.
Era filho de uma família de diplomatas e teve desde tenra
idade contato com muitas nações de dragões. Sua família, a
família Tlüogodärami, era originária da nação Okinst. Mist
Tlüogodärami aprendeu vários idiomas dos povos
estrangeiros e seu leque de conhecimento foi vastíssimo em
comparação aos demais dragões. Com a idade de 15 anos,
quando um dragão era considerado adulto naquele período,
continuou sua jornada, a partir daquele momento, com
independência, pelo mundo. Dedicou mais trinta anos de
sua vida viajando e adquirindo conhecimento. Fez amizades
por todo o planeta e isso lhe dava liberdade de ir e vir.
Aprendeu e ensinou nos grandes centros de conhecimentos
das nações. Sua fama cresceu a cada ano, e seus co-
nhecimentos propiciaram a elaboração de grandes sonhos. O
principal sonho de Mist Tlüogodärami era o de unir todas as
nações de dragões do planeta, onde não haveria mais esse
tipo de diferenciação entre os de sua espécie. Com seu
conhecimento adquirido durante trinta anos de estudos e
peregrinação, criou, nesse ínterim, uma língua universal,
onde todas as línguas das nações foram mescladas. Essa
língua procurou uma fundamentação histórica nas línguas
do passado, em que, segundo Mist Tlüogodärami, todas as
línguas modernas se originaram de uma língua-mãe. Apesar
da característica histórica, a língua-mãe já estava extinta há
muito tempo e sua recriação não passava de uma invenção
atual, sendo apenas uma tentativa de recriação da antiga
língua há muito perdida.
Conforme os anos caminhavam, mais as idéias de Mist
Tlüogodärami maturavam-se e se espalhavam. Suas idéias de
união conseguiram atravessar as fronteiras do mundo
conhecido. Muitos contemporâneos começaram a refletir
sobre as idéias de universalidade entre os de sua espécie.
Nesse contexto, houve divergências. A unanimidade estava
totalmente fora de questão nesse assunto. Conforme mais e
mais dragões adquiriam essas informações, a tensão
aumentava entre os povos. A paz não foi destruída, mas um
período de tensão interna e externa foi criado a partir do
surgimento e de questionamentos de Tlüogodärami.
Obviamente a força da tradição falou mais alto e, enquanto o
sistema funcionasse, as idéias não passavam de meras idéias e
nada mais.
Mist Tlüogodärami de Okinst morreu com 63 anos. Abalou
as estruturas de sua sociedade, mas não mudou quase nada
em sua época. Seu nome nunca foi esquecido, suas idéias
seriam reconhecidas muitos anos depois de sua morte e o
devido valor à sua figura encontraria os mais fantásticos
reconhecimentos que nenhum dragão poderia imaginar
receber.

CAPÍTULO 5
Destino ou Acaso?

Antigos relatos descrevem vários momentos da vida de Mist
Tlüogodärami de Okinst. Momentos vividos publicamente.
Tais relatos foram armazenados e interpretados depois de
minuciosas entrevistas com aqueles que os testemunharam.
O mais famoso acontecimento da vida de Tlüogodärami
contido nos relatos conta o embate filosófico entre Mist
Tlüogodärami e Drü Ieucont, um famoso pensador da época.
Os dois fizeram seu embate filosófico no centro de estudos
da nação Cobat. Drü Ieucont era um opositor ferrenho de
Tlüogodärami, um defensor feroz da tradição. Segundo
Ieucont, o sucesso da civilização dos dragões estava
intimamente ligado a um sistema frágil e que qualquer
mudança levaria a uma catástrofe total das civilizações.
Tlüogodärami, por outro lado, como já foi dito antes, era a
favor de mudanças drásticas nas culturas e nas divisões entre
dragões. Esse memorável embate de pensamentos começou
da maneira mais cordial, como mandava a tradição entre
pensadores, porém não houve intimidações de ambos os
lados.
Os dois representantes de pensamentos antagônicos
encontraram-se em um grande salão oval dentro do centro
de estudos. Muitos dragões compareceram para ouvi-los,
pois ambos tinham uma popularidade gigantesca na nação
Cobat. O belo salão parecia uma pequena arena, porém os
únicos combates travados ali estavam no âmbito do
pensamento. Revestido de um granito negro, polido ao
extremo, dava ao ambiente um aspecto elegante. Os lugares
estavam divididos em níveis como se fossem grandes janelas
de um edifício com a vista para o centro do embate. Um
nível acima do outro se preenchia com dragões ansiosos pela
exposição e pelo embate de linhas de pensamento tão
famosas.
A sala oval era muito bem iluminada. Pequenas chamas
produziam a luz do ambiente. A chama tinha seu potencial
de iluminação ampliado por um espelho côncavo de metal
polido. Quando todos os lugares foram completados e mais
nenhum ser podia entrar confortavelmente, os acessos
foram vetados a qualquer um que ainda quisesse participar.
Os dois antagonistas encontravam-se um de frente para o
outro distanciando-se em uns dez metros,
aproximadamente. Como Drü Ieucont era integrante da
nação Cobat, possuía o privilégio de iniciar o embate. Todos
mantinham um silêncio, naquele momento inicial, profundo
e respeitoso. Ieucont fez uma rápida reverência a
Tlüogodärami, recebendo o mesmo tratamento de seu
opositor. Ieucont olhou os ouvintes, depois encarou
Tlüogodärami como quem começaria enfim a expor seus
questionamentos.
— Diga-me, Mestre Mist Tlüogodärami da nação Okinst -
disse Drü Ieucont o mais cordialmente possível —, como
podes acreditar em tão surpreendente teoria se não há
registros ou provas concretas da possibilidade de algum
sucesso em tão extraordinária mudança de comportamento.
— Mestre Drü Ieucont, deverias pensar além do simples
visível ou do simples tangível. Minha proposta visa a um
salto para um futuro no qual nossos ganhos serão ilimitados.
— Não consigo entender sua visão. Seu argumento não
aparenta ter força suficiente para quebrar qualquer
paradigma. Não vejo como a união pura e simples das nações
poderia fazer com que nossas vidas melhorassem. Veja que
temos apenas o tangível ou o visível, palavras estas
proferidas por ti, como única prova de sucesso ou fracasso
para qualquer argumentação - encarava com olhos vidrados
para Tlüogodärami, andando de um lado para o outro.
— Quero aqui expor meu pensamento mais uma vez se Drü
Ieucont, ilustríssimo pensador, e demais dragões aqui
presentes permitirem que o faça.
— Por favor! Estaríamos honrados se defender seus
pensamentos, para que eu possa ter a oportunidade de tentar
compreendê-los mais uma vez, Mestre Tlüogodärami da
nação Okinst.
— Sua atenção às minhas palavras é uma verdadeira honra -
após proferir essas palavras,Tlüogodärami fez uma
reverência a Drü Ieucont.
Tlüogodärami fechou os olhos, respirou profundamente sem
que ninguém percebesse seu movimento respiratório. A
personificação de suas idéias em imagem passava-lhe
nitidamente em sua concentrada mente. Conhecia-as e
pensara nelas há anos e, conseqüentemente, conseguia vê-
las de modo tão sofisticado, produto de sua dedicação.
— Ilustríssimo Drü Ieucont da nação Cobat. Minha idéia de
união e igualdade está mais que provada pela simples e
natural reflexão sobre nossa própria existência. A união de
nossos ancestrais trouxe-lhes benefícios a curtíssimo prazo.
A escalada evolutiva seguiu outro caminho depois desse
movimento unificador. Não podemos desprezar a força que
a unificação promove nos seres vivos. Dos insetos aos
dragões temos provas mais que suficientes desses benefícios.
Mas meu pensamento não se restringe ao passado. Não,
meus caros dragões! Penso no futuro. Acredito que nossa
existência depende única e exclusivamente do ato de união
entre as 17 nações. Sabemos que a partir do momento de
nossa autoconsciência não podemos mais depender única e
exclusivamente da vida natural para suprirmos nossas
necessidades. A natureza, meus caros, é implacável e,
enquanto não desenvolvermos mais tecnologia que
possibilite nossa emancipação, uma possível extinção torna-
se algo viável e inevitável; diria até próximo, apesar de não
haver um conhecimento que possibilite essa previsão.
Portanto, tudo que construímos e criamos, no caso de uma
extinção, seria esforço desnecessário, perda de tempo, por
assim dizer. Acredito no fim da era do separatismo, listamos
estagnados há gerações infindáveis. Apesar de nos
considerarmos "seres superiores", não conseguimos sair
dessa estagnação. Nossa cultura separatista não nos
possibilita um passo à frente. Afirmo com total convicção
que é uma questão de tempo o fim de nossas nações. Uma
encruzilhada, senhoras e senhores, apresenta-se diante de
nós. Ou escolhemos a união, o desenvolvimento mútuo de
tecnologia, gastando nosso tempo com isso à nossa própria
sobrevivência, ou escolhemos o futuro próximo da extinção.
Talvez não em nossa geração nem de nossos filhos ou netos,
entretanto, algum dia, precisaremos combater essa
possibilidade e, se não estivermos preparados, todo o
esforço, toda a beleza, todo o conhecimento e nossas
histórias serão apenas matéria decomposta, e nada,
absolutamente nada, revelará nossa existência neste
universo. Minha luta é pela vida e nada mais —
Tlüogodärami olhava para seus ouvintes com os olhos mais
tranqüilos que um dragão poderia expressar. Deu uma
pequena pausa de alguns segundos, pensando e refletindo
sobre o que dissera. Com a pata no queixo acariciava seu
pequeno chifre atrofiado nascido naquele local de seu corpo.
Com seu dedo apontado para o alto, num reflexo
involuntário, retomou seu discurso. — Dito isso, meus
caros, planejei nestes últimos anos de minha vida uma
estrutura em tempo médio, para que possamos fazer essa
transição pacificamente e não muito traumática no que diz
respeito às nossas regras culturais. Tenho projetos essenciais
para nossa sobrevivência. Devemos nos concentrar nas áreas
do conhecimento que nos tire dessa estagnação. O espírito
incansável da busca de conhecimento é um elemento
fundamental para o sucesso da empreitada. O melhor
conhecimento de nossos corpos está na mira principal de
meu projeto. Sem um profundo conhecimento de nossos
sistemas biofísico e bioquímico não estaremos preparados
para os desafios do amanhã. Devemos conhecer a natureza
mais profundamente e descobrir o que ela nos reserva, suas
potencialidades. Na parte de astronomia, um dos maiores
desejos dos dragões, e todos aqui presentes não deixarão que
eu minta, é a possibilidade de explorar o universo, as
estrelas. Precisamos desenvolver tecnologia para
quebrarmos a barreira do céu. Não temos a menor idéia do
que podemos descobrir neste vasto universo, e tudo aquilo
que seja bom não hesitaremos em desenvolver para nossa
própria vantagem. Não proponho nada absurdo. Apenas
temo por nossa sobrevivência — ao terminar de
falar,Tlüogodärami colocou-se na posição de repouso típica
dos dragões, ou seja, como se estivesse deitado de bruços
com a cabeça levantada e as asas contraídas, cobrindo seu
escamoso e reluzente corpo de dragão. Encarou Drü
Ieucont, esperando os típicos questionamentos. Claro que
Tlüogodärami desejava convencer Drü Ieucont, mas sua
experiência fazia-o não acreditar nessa possibilidade, porém
os dragões ouvintes poderiam, em boa parte, convencer-se
de que ele tinha total razão em suas explanações.
Naturalmente, isso sempre acontecia quando falava e não
esperava menos daquela vez.
Um período de silêncio predominou, excedendo não mais
que alguns míseros minutos, não só de ambos os lados do
embate como em toda a sala oval. Drü Ieucont levantou-se e
caminhou de um lado para o outro, como tradicionalmente
fazia, começando, assim, seus questionamentos — Mist
Tlüogodärami da nação Okinst - Drü fazia sua introdução
preferida, repetindo sempre o nome de seu opositor —,
devo confessar-lhe e aos dignos presentes neste embate de
pensamentos que seu argumento é persuasivo, porém, meu
caro e ingênuo pensador, não vejo como suas palavras
possam romper o âmbito do universo contido nelas. Serei
mais claro em minhas palavras. Seu pensamento não passa
de pura fantasia. Pelos registros das trajetórias dos dragões,
nada parecido com suas especulações jamais foi registrado.
Prova viva disso está em nossa existência até o presente dia.
Devo dizer aqui da liberdade de pensamento. Esta é um
direito de cada um de nós. Mas levá-las a um nível
especulativo como o feito pelo Mestre Tlüogodärami não me
parece salutar. Não podemos simplesmente fazê-lo sem um
argumento pautado em provas irrefutáveis. Lamento muito,
mas não conseguiu me convencer mais uma vez. Não
podemos mudar assim, simplesmente. A harmonia da
constituição de uma civilização é profundamente tênue.
Qualquer abalo sem uma justificativa forte nos levaria às
catástrofes proferidas por você. Não tenho mais nada a dizer.
Saúdo-lhe e peço permissão para retirar-me deste embate —
Drü Ieucont levantou-se, apoiou-se em suas pernas traseiras
e fez uma reverência de despedida. Nesse momento foi
ovacionado pela platéia presente. Tlüogodärami ficou
surpreso com a quase unanimidade da ovação para Ieucont.
Até aquele momento, nunca tinha sofrido tamanha derrota
intelectual e em tão pouco tempo de embate. Após a saída
de Ieucont, os espectadores foram saindo, deixando o salão
oval quase vazio. Poucos ficaram e estes poucos observavam
o derrotado Tlüogodärami com dúvidas em relação à
credibilidade de suas idéias. Tlüogodärami não se abalou
tanto, apesar de nunca ter sofrido tamanha derrota.
Acostumara-se a no mínimo deixar os dragões com quem
dialogava com dúvidas e suspeitas. Contudo estava
preparado, de certa forma, para não convencer um grande
número de dragões. Aquele ano de 10.999.539 foi a última
vez que Tlüogodärami foi visto em público. Seu espírito não
foi destruído, mas os acontecimentos ocorridos em Cobat
fizeram-no calar-se para sempre. Dois anos depois, em
10.999.537 antes da Era Cristã,
Tlüogodärami morreu desacreditado por muitos, e a rotina
das nações, com suas entranhadas tradições, continuou por
muitas gerações. Apesar de desacreditado em vida por
muitos, suas idéias e os registros destas permaneceram.
Alguns levaram suas idéias adiante, preservando-as. En-
tretanto, ainda que lembrado e estudado, continuou em um
patamar menor, até que dias mais difíceis o tornaram um ser
à frente de seu tempo e de certa maneira a melhor
alternativa para criaturas desesperadas.
O planeta Terra é um planeta com vida e de certo modo está
vivo. Não em um sentido exato. Vivo, pois, como em
qualquer organismo, suas variações e mudanças são
constantes, nunca mantendo uma estabilidade muito
duradoura. Por ser um planeta relativamente jovem,
diferentemente de muitos de seu próprio sistema solar, está
sempre em mutação. As mudanças ocorridas naturalmente
são uns dos grandes fatores, contudo, há outro fator
determinante para provocar tais mudanças. Os organismos
vivos muitas vezes provocam essas mudanças. Uma
superpopulação de gafanhotos pode mudar o ambiente à sua
volta terrivelmente em poucas horas. Um organismo
profundamente complexo como os dragões, apesar de haver
certa consciência ecológica, já dita, em suas culturas,
também pode ser um fator de mudanças. Os dragões por
muito tempo prosperaram com seu modo de vida. Mas tal
modo, como previu Tlüogodärami, ficou totalmente
obsoleto. Sua estagnação cultural e tecnológica levou-os aos
dias mais difíceis de suas vidas até então. A população
cresceu em progressão geométrica. Escolhas por degradar
seu meio ambiente foram mal planejadas, deteriorando áreas
antes preservadas, modificando assim os climas. A fome foi
um flagelo terrível. A superpopulação provocou o
aparecimento de doenças terríveis em graus nunca antes
imaginados. A desconfiança das nações provocou um
isolamento ainda maior entre elas. A paz estava abalada. A
paz que perdurou por mais de mil anos arruinou-se
completamente. Tlüogodärami demonstrou que não era um
simples alarmista. Não mais que trezentos anos após sua
morte foram suficientes para comprovar suas teorias. Tudo
estava aparentemente perdido.
Guerras, fome, doenças e morte. O quadro travado por essa
civilização deixava-lhe numa situação difícil. A primeira
civilização com inteligência do planeta Terra estava por se
extinguir. Cem anos se passaram com essa tétrica situação.
Isoladas e totalmente deterioradas, as nações por suas
próprias iniciativas, durante esses cem anos de terríveis
dissabores, fizeram tentativas no desenvolvimento de
tecnologias. Nessas áreas avançaram muito, porém a não
comunicação tornou o conhecimento adquirido
profundamente incompleto. Durante os cem anos de crise
geral, uma das terríveis doenças surgidas em tal flagelo foi a
Murksturgi, chamada assim pelos dragões, que destruía os
fetos ainda em seus ovos. Os poucos que sobreviviam
vinham com deformações genéticas. De deformações
corpóreas à total falta de cérebro, poucos nasciam com
condições saudáveis. Tal doença, a Murksturgi, estava
afetando a genética dos dragões quase irrecuperavelmente.
A natureza escolhera os dragões para a extinção. Isso se
tornou óbvio para muitos naquele período.
A horrenda mão ameaçadora da natureza forçou os dragões
de todas as nações do planeta Terra a se reunir. As previsões
de Mist Tlüogodärami de Okinst haviam se concretizado de
uma forma muito mais terrível que o imaginado. Aos
poucos, as nações começaram a se fundir, e o debate e a
troca de informações começaram a fazer alguns efeitos
benéficos. Uma grande reunião feita na nação Okinst, local
onde Tlüogodärami nascera, foi o ponto final da desunião
das nações de dragões. O discurso feito e aprovado por todos
os representantes das nações foi lido por um dos
descendentes diretos de Tlüogodärami. Como seu ancestral
famoso, concordou e acreditou sempre no pensamento de
seu parente. Gebst Tlüogodärami, pertencente à décima
segunda geração direta de Mist Tlüogodärami, foi a
responsável pela leitura do documento impresso em krür, no
grande centro da cidade—torre de Okinst. Como única
sobrevivente da família Tlüogodärami e de idade avançada,
foi de comum acordo a importância do simbolismo da última
Tlüogodärami fazer a leitura para todos os presentes e uma
forma de retratação com o próprio Mist Tlüogodärami.
No centro cheio de representantes de todas as nações, assim
está registrado o discurso da fêmea de dragão da família
Tlüogodärami dos Okinst:
Aos digníssimos dragões das dezessete nações que compõem
nossa civilização.
Nós vivíamos e ainda vivemos numa era de trevas. No
passado, o pensador Mist Tlüogodärami de Okinst tentou
nos alertar de nossas próprias responsabilidades para com o
futuro. Não acreditamos em suas sábias palavras. Pagamos
por nossa ignorância. Contudo, há tempo. Sempre há tempo
para a boa vontade. Percebemos nossos erros e tivemos a
sorte de possuirmos o pensamento e os esquemas de
Tlüogodärami para a construção de nossa civilização. Não
percamos mais tempo, digníssimos! A única chance, a única
luz neste infindável túnel escuro está absolutamente na
questão de uma unificação duradoura e pacífica. Não
ficaremos mais passivos aos sabores da natureza. Devemos e
vamos fazer a unificação. Isso nos trará a capacidade de
darmos continuidade à nossa espécie. Não percamos mais
tempo. Cada dragão vivente neste planeta deve contribuir
para nossa sobrevivência. Seremos operários para algo maior.
Nada poderá nos exterminar. Lutaremos até o último dragão.
A convenção aprovada por todos será exposta aqui.

1. Todos deverão falar a mesma língua. Será obrigatório o
ensino da língua geral criada por Mist Tlüogodärami
de Okinst e todos os textos deverão ser traduzidos para
a língua geral em um prazo máximo de 50 ciclos.
2. Com o fim da família Tlüogodärami, o nome passa a
ser título de honra. Será determinado um dragão que
receberá esse honrado nome e conseqüentemente
será o responsável por nossa sobrevivência em caso de
catástrofe ou risco para nossa espécie. Dele será a
responsabilidade de tomar decisões para nossa
sobrevivência.
3. Daremos prioridade ao desenvolvimento de pesquisas
para nossa sobrevivência. Não haverá mais tabus
culturais envolvendo a pesquisa científica. Não haverá
limites desde que sejam pacíficos ou para nossa defesa.
4. Todos os dragões são iguais e têm os mesmos direitos e
deveres. O dragão possuidor do título Tlüogodärami
enquadra-se nesta lei e só poderá usufruir de seus
direitos e deveres em casos excepcionais. Todo dragão
é um potencial Tlüogodärami, portanto deverá receber
o conhecimento necessário para exercer seus deveres
como tal.

Com essas leis simples conduziremos nossa nova civilização
com responsabilidade e bom-senso. Não devemos perder a
esperança de dias melhores e trabalharemos para uma vida
melhor. Pela visão e pela ajuda fornecidas pelo pensador
Mist Tlüogodärami de Okinst, retratamo-nos e pedimos
humildemente desculpas pela atitude de nossos ancestrais.
Em nome de todas as Nações da civilização dos Dragões,
fazemos esse pedido à última representante da família
Tlüogodärami. Para a fêmea Gebst Tlüogodärami, pedimos
desculpas por nossa ignorância e suplicamos a aceitação de
nosso mais sincero arrependimento aos atos intoleráveis que
nossos ancestrais produziram para com seu honrado e sábio
parente.

Tal documento foi o primeiro passo para o grande avanço da
civilização dos dragões. A união foi algo que impulsionou
sua tecnologia. Em duzentos anos estavam começando um
caminho de avanço tecnológico nunca antes visto por
qualquer dragão. A luta contra as fatalidades da vida
continuava terrível. As doenças e a deterioração genética
continuavam. Contudo, as conquistas tecnológicas, os
avanços e as descobertas científicas em uma velocidade
compensadora os faziam caminhar. Pesquisas concentradas
nas áreas biológicas tornaram possível o encontro dos
códigos genéticos existentes nos núcleos das células. Após
isso, não tardou muito para os dragões verificarem as
vantagens em conhecer e manipular esses códigos. Seguindo
a cronologia das pesquisas científicas na área de biologia, os
dragões em pouco tempo começaram a manipular os códigos
genéticos e mapearam, depois de muitos anos de profunda
pesquisa, as funções de cada combinação. Um novo dragão
surgia depois desse conhecimento. O momento da
emancipação dos desgostos produzidos pela natureza estava
começando. O dragão segurava as rédeas de seu caminho
evolutivo. Não dependeria mais do acaso para sua jornada. O
antigo código genético foi restaurado. Os dragões voltaram a
possuir sua antiga forma, não mais deformada pela impiedosa
natureza. Doenças de natureza genética não mais assolavam
os dragões. Agora seus nascimentos poderiam ser
controlados e consertados ainda na célula-mãe. Entretanto,
as doenças de caráter externo, causadas por bactérias e vírus,
seguiram outros caminhos.
Na área microbiológica, desenvolveram-se alguns vírus
alterados geneticamente para combater as doenças externas.
Não deu certo por longos períodos, pois as mutações das
doenças exigiam uma demanda por novas soluções. Era um
caminho sem fim até o desenvolvimento dos mecânicos, ou
robôs. Os dragões desenvolveram vida artificial em sua
jornada tecnológica, e esta se apresentava de toda a forma
possível. Robôs semelhantes aos próprios dragões. Pequenos
para manutenção de instalações quaisquer. E tão pequenos
que poderiam alojar-se em vírus, bactérias ou células e
comandá-las a partir do corpo do hospedeiro. Uma
nanotecnologia desenvolvida para o uso do bem-estar de um
povo. Os nano-robôs eram compostos por partes artificiais e
partes orgânicas. Não só serviam para o uso medicinal como
para pequenos reparos. As cidades dos dragões, em pouco
tempo, tornaram-se grandes organismos artificiais auto-
suficientes, pois tudo era controlado pelos dragões. Os nano-
robôs promoveram a criação, também, da assepsia perfeita,
pois seu tamanho possibilitava a destruição do menor vírus
possível de existir. Com a genética e com a nanotecnologia,
os dragões puderam viver muito mais com seus corpos, e sua
qualidade de vida chegou a um patamar quase perfeito.
Com o advento da robótica, os sistemas computacionais
foram criados juntos. Não havia mais a necessidade da
utilização de placas de krür. As máquinas podiam armazenar
e refletir sobre conhecimentos adquiridos. A base de
armazenamento de dados foi construída a partir do
conhecimento dos próprios sistemas cerebrais dos dragões.
Neurônios artificiais, modificados geneticamente e aliados
aos nano-robôs, construíram o computador mais avançado
até então. Sua capacidade de armazenamento crescia
conforme a necessidade. Com tal tecnologia, os dragões
começaram a crescer intelectualmente em progressão
geométrica.
A conquista do espaço, a primeira fronteira fora do planeta
Terra, chegou depois de exaustivo trabalho. O
desenvolvimento dos primeiros transportes espaciais foi uma
conseqüência inevitável, por assim dizer, dos
contempladores de estrelas. Os velhos instintos, chamando-
os para as estrelas, foram essenciais para estimulá-los a essa
demanda. Os primeiros propulsores levaram-lhes ao espaço.
O crescimento tecnológico levou-os a possibilidades
inacreditáveis para qualquer dragão do passado. Junto aos
estudos de astrofísica e engenharia, muito foi descoberto e
aproveitado ao desenvolvimento de mais tecnologia. As
fontes de energia cresciam com esse desenvolvimento.
Fissão nuclear, fusão nuclear, energia solar, bio-eletricidade,
controle da anti-matéria tiveram seus mantos descobertos, e
o manto da ignorância afastado para sempre dessas áreas do
saber. Os dragões chegaram aos cálculos que possibilitaram
conhecer e usar as forças da astrofísica. As dobras de espaço-
tempo existentes naturalmente no universo foram
mapeadas.
Tarefa árdua e complexa, estas foram o máximo alcançado
por esse povo. Graças à compreensão do universo, aos
cálculos mais precisos e à observação, os dragões chegaram a
ter uns dos mapas de dobras espaço-tempo mais complexos
de todos os povos existentes nas galáxias. Conseguiram
desenvolver transportes viáveis com velocidades maiores
que a da luz. Sistemas magnéticos avançados aliados a
sistemas rotacionais possibilitavam o conforto dos
tripulantes desses transportes velocíssimos. Os transportes se
beneficiaram com o desenvolvimento de elementos
químicos artificiais. Os dragões conseguiram estabilizar
muitos elementos e novas ligas e substâncias foram
imprescindíveis à criação dos transportes. Os transportes,
com seus materiais mais resistentes, conseguiam chegar a
cinqüenta vezes a velocidade da luz e cada passo dado na
direção tecnológica ampliava a velocidade conseguida a cada
ciclo futuro. A velocidade, aliada às dobras de espaço-tempo,
fazia com que todo o universo estivesse ao alcance dos
dragões.
Podemos observar, na história tecnológica produzida pelos
dragões, detalhes curiosos. A tecnologia que possibilitou seu
bem-estar e o crescimento de sua civilização não é mérito
de uma área de saber específica. Todas as áreas do saber
contribuíram para o desenvolvimento de todas as metas
estabelecidas pelos dragões.
O planeta Dianvinst, como os dragões chamavam a Terra,
ficou inviável para suas ambições. Sua instabilidade não
possibilitava segurança por mais que a tecnologia avançasse.
E por retribuição ao seu planeta natal, os dragões
providenciaram a mudança definitiva para outro local. Havia
a quase 11 milhões de anos um quinto planeta no sistema
solar, um planeta localizado entre Marte e Júpiter. Esse
planeta era totalmente desprovido de vida. Não possuía
sequer uma atmosfera. Contudo, seu tamanho estava
próximo ao de Dianvinst, excedendo um pouco mais o
tamanho deste, porém a gravidade excessiva era desprezível,
tamanha a pouca diferença entre Dianvinst e ele. Os dragões
batizaram-no de Tidianvinst, traduzindo seria Segunda Terra
dos Dragões. O planeta era perfeito para as ambições dos
dragões. Neste, artificialmente, criaram uma atmosfera. A
água, tão necessária à vida na Terra, foi trazida, aos poucos,
para o novo planeta. Todo o clima era controlado
artificialmente. Como se tratava de um planeta morto, sem
atividades vulcânicas ou coisas do gênero, mostrava-se o
ambiente perfeito e definitivo para o crescimento de uma
civilização. Em mil anos de trabalho duro, o planeta tornou-
se o novo lar dos dragões. Apesar de recursos naturais ine-
xistentes praticamente, o planeta abastecia-se dos recursos
provenientes dos outros planetas ao redor dele. Além de
criarem esse novo planeta, ou melhor, moldá-lo às suas
necessidades, os dragões colonizaram todo o sistema solar.
Havia no sistema tudo do que precisavam. O planeta
Dianvinst teve seu sistema ecológico restaurado. Toda e
qualquer construção existente nele foram destruídas ou
desmanteladas. Apenas uma pequena estação permaneceu
para observações da vida. O planeta voltou ao seu padrão
ecológico natural, após muitos anos de intervenção dos
dragões em seu curso de vida. Tirando a pequena estação,
todo e qualquer traço da existência de dragões naquele
pequeno planeta azul apagara-se completamente. Com isso
chegaram ao clímax de sua consciência ecológica.
Devolvendo ao planeta a possibilidade de seguir seu rumo
sem mais intervenções.
O sistema solar era o lar da civilização mais próspera
existente em todo o universo. De um povo quase dizimado
por doenças e crises, tornaram-se a civilização mais
sofisticada de todas as galáxias. Sua prosperidade parecia não
ter fim. E não foi necessária a transposição das fronteiras do
sistema solar para obtê-las. Assim começou a verdadeira
jornada dos seres vindos do planeta Dianvinst.

CAPÍTULO 6
AEROK

A grande civilização dos dragões prosperou. E como
prosperou. O ano era exatamente o de 10.992.520 antes da
Era Cristã. Sete mil anos se passaram desde a morte de Mist
Tlüogodärami de Okinst, e sua tão sonhada civilização
tornara-se uma realidade e prosperava com paz, justiça e
crescimento tecnológico. A população de dragões estava em
um número estável havia muitos anos. Um pouco mais de
dez bilhões de dragões habitava o sistema solar, sendo que
80% destes habitavam o planeta Tidianvinst, quinto planeta
do sistema solar localizado entre Marte e Júpiter. Mortes e
nascimentos tornaram-se eventos raros, pois a vida de um
dragão foi prolongada ao extremo, e os nascimentos pos-
suíam um controle altamente rígido. Nesse sistema populoso
havia um jovem nascido em uma leva autorizada pelos
conselhos reguladores competentes há vinte e cinco anos.
Este jovem chamava-se Krueur Skli Aerok. Krueur foi
preparado para assumir funções específicas baseadas em sua
vocação e vontade. Toda a sua educação estava voltada para
isso. Krueur foi preparado para se tornar um pensador,
filósofo, cientista e diplomata. Na nova sociedade criada
pelos modernos dragões, a educação baseada na filosofia e
nas relações entre dragões estava no patamar básico de
qualquer educação. Afinal, mesmo um cientista deve possuir
a educação de um pensador para ter a mais sofisticada ética
possível. Portanto, a sociedade dos dragões tinha como
fundamento dela mesma a capacidade de pensamento de
seus componentes, não necessitando de mais nada para
justificar a existência da própria sociedade. Uma sociedade
avançada tecnologicamente que possuía uma formação
inicial baseada no pensar a si mesma como possibilidade
social. O início de tudo estava enraizado no entender a si
mesmo como indivíduo e como sociedade altamente
estruturada.
Havia uma pequena base, implantada no planeta que viria a
ficar conhecido como Marte, planeta chamado nessa época
de Niiefgönst, especializada no monitoramento de um
quadrante específico do sistema solar. A pesquisa dessa base
estava ligada aos acontecimentos fora dos padrões
preestabelecidos. Observação de asteróides, cometas, etc.,
tudo era monitorado por essa pequena base instalada em
Niiefgönst. Apesar de sentir uma vocação para relações
entre dragões, o primeiro posto de trabalho de Krueur estava
intimamente ligado a esse serviço de monitoramento.
Depois do término de sua formação no planeta Tidianvinst,
foi imediatamente direcionado para seu primeiro trabalho.
O dia do embarque chegou e Krueur Aerok estava muito
ansioso para assumir sua primeira função. Pegara um grande
transporte na área de embarque de passageiros direcionados
a Niiefgönst. Chegando ao local indicado, assumiu sua
cabine para descansar. A cabine comportava apenas um
dragão, tornando o ambiente um pouco claustrofóbico. Com
o ímpeto característico dos jovens não se importou com a
viagem levemente desconfortável. Enquanto esperava o
término desta, entreteve-se com diversos pensamentos e
projeções para seu futuro. Às vezes, apesar de viver em uma
sociedade altamente estável, ficava ansioso por seu futuro.
Não uma ansiedade desconfortável, e sim um suave
sentimento por uma indeterminação comum a qualquer ser
vivente. Sua juventude, por mais preparo e conhecimento
adquirido em seu planeta natal, não o permitia ter muitas
certezas sobre a vida. Seus olhos, antes distraídos com seus
pensamentos e anseios, voltaram ao estado de alerta
corriqueiro. Uma sensação estranha despertou Krueur de seu
sonho acordado. O transporte havia chegado ao seu destino.
Em um segundo recuperou-se completamente de seu estado
idílico e voltou às velhas rotinas e aos procedimentos para o
desembarque. A nave fez uma parada antes em uma estação
de treinamento no próprio planeta Niiefgönst. Ah fariam
uma adaptação de dois dias em função da menor gravidade
daquele planeta. Na estação outro dragão, aparentemente
bem mais velho, chegou próximo a Krueur. Tinha uns dois
metros e meio de altura e suas escamas reluziam um matiz
em oliva claro e escuro, predominando o escuro. Seus olhos
foram de encontro aos de Krueur e este correspondeu ao
pequeno gesto amistoso.
— Como vai, jovem amigo? - disse o dragão desconhecido.
—Vou bem, meu caro. E o senhor?
— Estou indo na melhor paz existente neste sistema solar! —
ria o amistoso dragão. — A propósito, meu nome é Harnink
e me direciono para a estação de pesquisa e monitoração
deste planeta!
— Prazer em conhecê-lo, meu caro Harnink. Meu nome é
Krueur e também estou assumindo meu primeiro posto de
trabalho nesta estação. Seremos companheiros de trabalho,
então — disse Krueur ao seu amistoso novo amigo.
— Com certeza, meu jovem amigo. Você é o novo
responsável pela monitoração de uns dos pontos específicos,
certo? Estou indo para assumir o comando do programa,
meu amigo.
— Oh! Sim!
—Veja bem, este serviço, apesar de ser necessário às
pesquisas científicas e aos fenômenos prejudiciais, é
extremamente fácil, pois, como todo o dragão sabe, não
acontece nada desde nossa fundação como civilização única,
porém nunca se sabe, meu jovem amigo, nunca se sabe.
— Quem sabe? Nossos sistemas de monitoramento são
eficientes, enquanto estivermos monitorando poderemos
dormir em paz e observar os belos fenômenos naturais deste
vasto universo. O que poderia ser tão ruim numa rotina de
observação? Acho que nada — nesse momento os dois se
acomodaram em um lugar cheio de outros dragões. O som
das conversas formava um ruído aparentemente único e
constante.
— Está claro que o projeto é de alta rotatividade, meu jovem
amigo. Pelo que sei vão substituir uma boa parte dos dragões
que lá trabalham. Afinal, apesar de tranqüilo, não é um
serviço lá muito compensador. Mas não desanime, pois logo
você poderá conquistar trabalhos melhores. Tudo tem um
começo e quaisquer experiências obtidas na vida são válidas
para sempre, sejam boas ou ruins.
Os dois dias passaram rápido, pois o grupo que iria para a
estação de pesquisa se reuniu e as conversas seguiam rumos
agradáveis aos ouvidos de Krueur. Os novos amigos fizeram-
no não perceber as adaptações sofridas por seu corpo.
Estavam confinados em alojamentos com a gravidade
controlada, onde aos poucos a gravidade natural do planeta
foi estabelecida para melhor conforto de seus habitantes.
Niiefgönst, o quarto planeta do sistema, tinha um grande
campo de pesquisa e indústria e entre os vazios daquele
planeta desolado havia uma cidade, construída aos moldes
dos dragões, chamada de Yfunst Ghiar. Essa cidade, a única
existente no planeta com a aparência de uma verdadeira
cidade, tornou-se um pequeno pedaço desgarrado de
Tidianvinst. A única diferença em relação às existentes em
Tidianvinst estava em seu aspecto externo, pois a aparência
do local não indicava a presença de indícios de uma
civilização colonizando aquele lugar. A desolação vermelha
do quarto planeta continuava praticamente intacta. As
famosas torres arquitetônicas características dos dragões,
estas pontilhando todo o planeta Tidianvinst, não se
encontravam no deserto vermelho. Em seu lugar, uma
montanha escavada naturalmente pela erosão identificava o
local exato da cidade. A única característica incomum no
local estava na grande entrada localizada na base da
montanha. Esta cidade, Yfunst Ghiar, foi o primeiro lugar
que Krueur conheceu antes de se estabelecer em seu destino
derradeiro. O grupo destinado à estação de monitoramento
fez uma pequena escala de menos de um dia na cidade.
Naquele mesmo dia, todos foram direcionados para um
pequeno transporte aéreo. A estação de pesquisa e
monitoramento ficava a alguns quilômetros das fronteiras
conhecidas da cidade e não havia uma ligação direta entre
ambas. O único modo de chegar à cidade consistia em
utilizar um transporte de superfície.
Krueur observava a paisagem pela pequena escotilha
existente ao seu lado no transporte. A assolação vermelha
daquele planeta possuía algo belo e terrível, ao mesmo
tempo, no íntimo pensamento de Krueur. A beleza mortal
do deserto, onde nada poderia sobreviver sem as medidas
artificiais providas por aqueles vindos de fora. Mortal e ao
mesmo tempo domado. Duas forças poderosas, porém
antagônicas, mantidas por um delicado equilíbrio. Equilíbrio
sem data para ser desfeito. O transporte sobrevoava os
campos desertos do quarto planeta não se elevando muito
em relação ao nível do chão. Uma montanha se aproximava
e em seu pico havia uma pequena estação em forma de meia
bolha totalmente blindada por um metal acinzentado escuro
e sem brilho, como que oxidado. O transporte se acoplou à
bolha, e seus passageiros desembarcaram ordeiramente.
Seguiram um caminho até um grande salão, completamente
vazio. Ah apareceu um velho dragão, cumprimentou a todos
e se dirigiu a Harnink. Este o acompanhou até a entrada por
onde passara o velho dragão. Duas horas mais tarde os dois
dragões voltaram e o velho embarcou no transporte sem dar
explicações. Momentos depois, saiu um grupo de
aproximadamente 20 dragões, aparentando idades diversas.
Estes seguiram o caminho do velho dragão embarcando no
transporte. Harnink chamou seu grupo para que se
aproximassem, pois tinha algumas recomendações.
— Meus amigos, o honorável Granges, o dragão que falou
comigo há algum tempo foi o responsável direto por esta
estação. Temos uma função dupla aqui — disse Harnink
observando o semblante de cada dragão de sua equipe —, e
esta está ligada ao monitoramento do quadrante 5620 até
5630. A primeira função é a de observação atenta de
qualquer objeto estranho. Vou explicar melhor. Um
exemplo do que quero dizer é que, se algum objeto, como
um asteróide, estiver perigosamente em rota de colisão com
qualquer planeta do sistema ou instalação espacial,
deveremos calcular e orientar os responsáveis para que nada
aconteça. O segundo trabalho é o de pura observação dos
fenômenos cósmicos. Deveremos enviar às instituições
interessadas os dados coletados aqui.
— Sr. Harnink, já estão estabelecidas de alguma forma nossas
funções aqui? — interrompeu cortesmente uma jovem
fêmea que pertencia ao grupo.
— Sim, minha jovem. Todos estão previamente estabelecidos
em funções específicas. Todos aqui foram escolhidos para
funções que poderão exercer com muita competência. Seus
históricos de treinamento os designaram para essas funções.
Portanto, não haverá nenhuma dificuldade. Cada um de
vocês receberá um alojamento individual e lá haverá mais
instruções sobre suas funções na estação. Descansem um
pouco e estudem as instruções. Daqui a três horas, vamos
começar nosso trabalho — o grupo seguiu Harnink até este
mostrar o setor de alojamentos. Todos foram para seus
respectivos lugares de descanso.
Krueur observava atentamente ao seu redor, como de
costume, e observava a simplicidade do lugar. Um ambiente
bruto, de certo ponto de vista, funcional em sua essência.
No caminho ao alojamento, viu os grandes sistemas
computacionais. Sem dúvida a estação estava provida com o
que havia de mais moderno na observação e na inter-
pretação de dados. Mas essa tecnologia não o confortava em
nada, pois não lembrava um lar de verdade. Esses
pensamentos foram aos poucos esquecidos, pois a realidade
o chamava definitivamente. Estudou suas funções. Nada
daquilo estava além de sua capacidade. Após aproxima-
damente três horas de estudo e relaxamento, dirigiu-se para
seu posto dentro da estação de monitoramento. Harnink
encontrava-se próximo e cumprimentou com um pequeno
aceno de cabeça todos que passavam por ali. Krueur
observava em seu visor um pequeno ponto e palavras
apareciam indicando que tudo estava bem. Assim a rotina de
Krueur começou.

Cinco meses se passaram e Krueur estava totalmente à
vontade com seu trabalho. Fizera amizade facilmente com
todos ali e Harnink demonstrava ser um bom líder de
equipe, pelo menos assim pensava Krueur. Seu trabalho na
estação também o provia de conhecimento sobre o espaço.
Apesar de não ser muito emocionante, não a emoção que
outras funções exercem no imaginário geral, aprendeu as
sutilezas de seu ofício, de maneira a sentir pequenas
emoções provenientes de pequenos fenômenos naturais
observáveis naquela estação. Harnink fazia uma pequena
reunião com sua equipe todos os dias para levar aos seus
colegas informações relevantes provenientes de dados
fornecidos por outras unidades.
— Meus amigos, o Centro de Estudos de Fenômenos
Espaciais solicitou uma varredura nos quadrantes 5620,
5621, 5622, 5623 e 5624. Por isso vamos, por hoje, dar total
prioridade a esses quadrantes. Krueur, você tem trabalhado
com o quadrante 5621 e será o responsável por este — disse
Harnink encarando-o. — Dois dragões deverão unir-se a
você para a monitoração. Os dados de cada instante devem
ser enviados imediatamente para o centro de estudos. Bom
trabalho!
Todos agradeceram às orientações de Harnink e dirigiram-se
para seus postos. Krueur, por estar acostumado com o
quadrante 5621, seria o responsável por esse
monitoramento. Dois grandes amigos feitos naquela estação
colocaram-se à disposição para esse trabalho mútuo. Junur, o
maior dragão naquela estação, era um desses amigos. Com
pouco mais de três metros de altura, possuía escamas de um
padrão raríssimo entre os dragões. Apesar da tonalidade ser
basicamente verde- escura, reluzia um brilho azulado, raro
de se ver. Junur era o mais velho da estação, depois de
Harnink, pois seus chifres e suas barbatanas evidenciavam
mais idade que a maioria ali. Na opinião de Krueur, Junur
transformou-se num bom amigo. A segunda componente da
pequena equipe era uma fêmea chamada Pakemank. Suas
escamas possuíam lima tonalidade quase negra, e sua altura
era de aproximadamente dois metros e meio. Também criara
laços fortes de amizade com Krueur e, portanto, a pequena
equipe estava totalmente à vontade e preparada para sua
tarefa diária.
Os três amigos se acomodaram em seus postos. Cada um
possuía um sistema computacional e uma tela para o
monitoramento. Enquanto enviavam os dados, ficavam
observando qualquer movimento estranho vindo da tela.
— O que é isso na tela? — perguntou Junur a Krueur.
— O que exatamente? — questionou Krueur.
— Há um ponto na tela que não condiz com os mapas
estelares e está identificado com o número 789564-213.
— Claro! Este é um pequeno detrito espacial, provavelmente
um pequeno pedaço de rocha ou coisa do gênero. Os
sistemas computacionais já calcularam sua rota passada e
futura e não representa nenhum risco para nós. É um
meteoro errante, nada mais.
— Pelos dados que tenho aqui, isso foi detectado há uns três
ciclos e está próximo de nós. Mas como você disse, não há o
que temer — disse com voz suave Junur.
— As chances de provocar algum estrago são praticamente
nulas. O sistema mostra uma chance em trezentas bilhões,
ou seja, é uma possibilidade nula, como disse - comentou
Pakemank para os dois dragões.
— Enviem a próxima leva de dados para o centro, meus
amigos.
— Sim, Krueur — responderam quase ao mesmo tempo os
dois dragões.
Harnink passava, como sempre, em revista para detectar
algum problema. Observou Krueur e sua equipe e dirigiu-se
a eles.
— Como vão, meus amigos? — perguntou Harnink.
— Todos os dados estão sendo enviados para o centro, como
solicitado — disse Krueur. — Nada de novo apareceu nos
rastreadores. Tudo está bem.
— Bom! Muito bom!
Harnink seguiu seu caminho observando as outras equipes.
Na tranqüilidade de sempre, Junur puxou conversa com os
dois amigos.
—Vocês terão folga amanhã?
— Quase todos nós teremos folga. Parece que Furtink e eu
vamos trabalhar - disse Krueur.
—Você vai perder a presença de Tlüogodärami na cidade,
Krueur? Nossa! É uma oportunidade única de vê-lo. Dizem
que este último Tlüogodärami é muito sábio — ponderou
Pakemank.
— Não poderei ir e acho que não iria mesmo que fosse
possível.
— Por quê?
— Serei sincero com vocês. Não acredito muito nessas
tradições. Quero dizer, elas não me afetam como afeta a
maioria dos dragões. Nossa estrutura é forte demais e não há
necessidade de uma figura recheada de tanto simbolismo.
Somos mais do que isso — Krueur sentira que expusera suas
opiniões inconvenientemente. Sabia que certos assuntos
eram intocáveis entre dragões e suas palavras atravessaram a
tênue fronteira estabelecida pelo tabu.
— Espere um pouco, Krueur. Respeito sua opinião, afinal
você ainda é muito jovem e é normal quando estamos nessa
idade questionarmos as coisas da vida — disse Junur. —
Porém este é nosso modo de vida e tem dado certo por
milhares de anos. Observe a grandeza de nossa colonização.
Nossos ancestrais saíram de seu planeta natal para colonizar
o sistema solar e, quem sabe, num futuro vindouro, a galáxia.
— Concordo que nosso modo de vida nos levou ao ápice. Só
me questiono se isso é realmente necessário. Não acredito
nessa política. Deveríamos ser mais independentes. Talvez,
e não me levem a mal, Tlüogodärami esteja ultrapassado —
apesar de se sentir constrangido pelo caminho seguido por
aquela discussão, Krueur ainda tentava argumentar para
amenizar a situação.
— As idéias de Mist Tlüogodärami nos levaram a ser o que
somos hoje — disse Pakemank. — Não devemos subestimar
essa herança, Krueur.
— Não questiono. Acho Mist Tlüogodärami um grande
pensador, mas deveríamos refletir um pouco mais sobre nós
mesmos e pararmos de delegar assuntos tão importantes para
apenas um dragão ou dois.
— Entendo — a voz de Pakemank refletia constrangimento
por chegarem a um assunto delicado.
— Contudo, perdoe-me por minha insolência. Acho que
exagerei em meus pensamentos. Prometo fazer uma reflexão
melhor — rendeu-se por fim depois de perceber o
constrangimento de seus amigos. Aquilo não levaria a
absolutamente nada.
— Por favor, meu caro Krueur, nunca pare de pensar —
disse Junur. - Se há algo maravilhoso em nossa sociedade é a
liberdade de pensamento. Se Tlüogodärami tivesse
sucumbido à tradição, não teria produzido seus famosos
pensamentos, porém concordo que devamos dedicar mais
reflexão ao que questionamos.
— Sim, e peço desculpas mais uma vez. Fui agressivo em
meu argumento e não é assim que devemos proceder,
mesmo não concordando com determinado assunto — um
silêncio tomou de assalto aquele momento por alguns
segundos até que a rotina dos três voltou ao normal.
— Pena você não poder ir junto, Krueur. Iríamos nos
divertir muito na cidade — lamentou Pakemank quebrando
o silêncio e tentando dar um novo ar à conversa.
— É uma pena, mas alguém tem de fazer o serviço —
comentou Junur, esboçando um riso descontraído para
demonstrar que estava em paz com o amigo.
— Podem ir sem remorso. Divirtam-se e aproveitem. Numa
próxima ocasião iremos todos para a cidade e vamos nos
divertir.
O trabalho transcorreu com muita tranqüilidade. Os amigos
se despediram e seguiram rumo aos alojamentos. Krueur
combinara com Furtink assumir no segundo turno de
trabalho e foi repousar em seu alojamento.
No dia seguinte, todos os dragões da estação seguiram juntos
para a cidade de Yfunst Ghiar. Lá foram ver Tlüogodärami,
que estava visitando-a e faria um embate de conhecimento,
à moda antiga, com os mestres do centro de conhecimentos
daquela cidade. Todos sabiam que os embates não passavam
de mera formalidade, pois ninguém na sociedade dos
dragões, exceto Krueur em seu íntimo, se colocava contra
Tlüogodärami. Afinal, o Tlüogodärami, acima de tudo, era
escolhido por defender as idéias que construíram a
sociedade dos dragões. Portanto, o embate tornou-se mais
uma forma de os dragões comuns conhecerem uma
personalidade de sua sociedade.
Furtink foi até a sala de monitoramento e observava todas as
telas, verificando se havia alguma anomalia nos dados.
Alguns robôs de manutenção estavam presentes para as
revisões de rotina, aproveitando a estação vazia. De seu
computador, Furtink observava os dados de cada
observatório e se distraiu com a presença dos robôs.
Observava atentamente as máquinas fazendo as varreduras
ópticas de cada pedaço daquela sala. Um dos robôs estava
conferindo cada sistema computacional, como se interagisse
com os sistemas apenas com o olhar. Furtink alternava os
momentos em que observava sua tela e os curiosos
autômatos. Ah! Mais um dia rotineiro..., pensou ele.
Realmente a rotina corria tranqüilamente, como sempre, e o
turno de Furtink demorava — em seu entender - a passar.
Estava quase adormecendo, quando viu algo estranho na
tela. Havia um sinal de alerta do centro de estudos,
solicitando uma verificação no quadrante 5621. Furtink,
ainda atordoado com o marasmo, entrou em estado de
apreensão rapidamente. Direcionou seu sistema
computacional para o equipamento responsável pelo
quadrante 5621. Ali observou que o objeto classificado com
o número 789564-213 estava piscando, indicando uma
anormalidade. Furtink procurou mais dados sobre o objeto e
os sistemas apontavam uma mudança de rota aparentemente
não natural. As estatísticas de colisão aumentavam. Os
números não paravam de mudar. Sem saber ao certo o que
fazer, foi rapidamente ao encontro de Krueur, em seu
alojamento.
— Krueur? — perguntou Furtink. — Você está ai? — Krueur
abriu a porta imediatamente. — Krueur, venha comigo
depressa! Há algo errado e preciso de ajuda.
— O que foi?
—Vamos rápido! Eu explico ao chegarmos lá.
Os dois dragões foram imediatamente até a sala de
monitoramento. Furtink explicou rapidamente e
resumidamente o problema para Krueur. Observando os
acontecimentos na tela, os dois não tiveram dúvida a
respeito do que fazer. Com as mudanças drásticas que o
objeto fazia e as estatísticas indicando perigo, alertaram
imediatamente os órgãos competentes.
—Vamos, Furtink! Devemos avisar o máximo possível de
dragões, liste objeto está perigosamente em rota de colisão
com o planeta Tidianvinst.
—Já ativei o sistema de alerta e estou enviando os dados
detalhados.
Enquanto esperavam respostas dos centros especializados e
de defesa, os dois dragões observavam os dados captados
pelo sistema de monitoramento. Ficaram perplexos com o
que viram, pois nada havia de natural no comportamento
daquele objeto. Aquilo que parecia um mero pedaço de
rocha fez o que nenhum dragão ou sistema computacional
poderia imaginar. Mudou, como que artificialmente, sua rota
em direção a Tidianvinst num instante incomensurável. Até
poucos minutos antes dos alertas, o objeto passava por sua
rota natural até fazer a guinada drástica para Tidianvinst.
— O que será este objeto? — disse Krueur.
— Não sei, mas não é natural!
— Será que dará tempo de defesa, afinal está muito próximo
de Tidianvinst.
— O sistema computacional indica um acréscimo de
velocidade. As chances de defesa são pífias se continuar
nesse ritmo.
— Qual o tamanho do objeto?
— Não mais que dois doroks .
— É bem pequeno, mas temos de tentar alguma coisa.
Os jovens dragões estavam ansiosos por notícias. Um alerta
na tela de Krueur indicava uma notícia do centro de defesa
do sistema solar alertando sobre o objeto e indicando que ele
não representava perigo, pois seria destruído na atmosfera
artificial de Tidianvinst. Aquilo trouxe um pouco de alívio
para os dois, mas a ansiedade não passara, pois ainda
esperavam a notícia derradeira da destruição do objeto.
Tidianvinst era altamente povoada e temiam a possibilidade
de alguma catástrofe advinda daquilo. Neste ínterim, a
equipe voltara de seu passeio pela cidade. Krueur alertara
imediatamente Harnink. Este por sua vez convocou todos
para seus postos e concentraram-se na monitoração do
objeto. Equipe a postos, todos criaram expectativas difusas
em relação ao acontecimento.
Algum tempo passou e o objeto saiu dos registros dos
sistemas computacionais. Todavia, a notícia tão esperada
ainda não viera. Uma mistura de alívio, especulações e
incertezas tomou conta da equipe da estação de
monitoramento. Um som produzido por conversas paralelas
ecoava pela sala. De repente Krueur, que não tirou os olhos
de sua tela, chamou a atenção de todos. Um silêncio
imediato predominou no ambiente. Krueur olhou abismado
para seus compatriotas, sem entender direito o que havia
acontecido.
— O que está acontecendo? — disse Krueur. — A atmosfera,
segundo estes dados, não destruiu o objeto. Aquilo caiu na
região 42 do planeta Tidianvinst.
— Vamos esperar por mais notícias — simulando
tranqüilidade, Harnink falou aos ali presentes, tentando
acalmá-los. —Vamos esperar!

CAPÍTULO 7
PRIMEIRO DIA

Há mistérios espalhados por todo o universo. Talvez, algum
dia, uma criatura ou uma civilização compreenda uma parte
desses mistérios. Entender todos os mistérios seria uma
tarefa quase impossível. Todavia, não se pode determinar ao
certo se vai ou não acontecer. O mistério é uma espécie de
"característica" daquele que não o conhece. Aparentemente
essa redundância parece óbvia, contudo, é uma questão de
referencial. Esses mistérios eram, digamos assim, exclusivos
dos dragões, pois o não conhecimento de outras entidades
com inteligência fazia com que qualquer situação nova fosse
inédita culturalmente. Há nisso uma sensação de solidão.
Dos bilhões de mistérios existentes no universo àquela raça,
um, em especial, destacou-se dos demais. Aparentemente
frágil e inofensivo, um corpo celeste ou alguma coisa do
gênero apresentaria sua faceta aos que ignoravam totalmente
sua existência. Viajando há milhões de anos, um pequeno e
misterioso corpo, aparentemente rochoso, vagou por
inúmeros lugares. O objeto cosmopolita presenciou
inúmeros fenômenos em sua trajetória. Nascimento e morte
de estrelas, planetas desertos, planetas em início de
formação, cometas, outros corpos rochosos, talvez até outras
galáxias. Seu destino final, incerto até então, foi finalmente
encontrado. O corpo rochoso, quebrando qualquer teoria
física possível, desviou sua rota original e caiu em um
planeta do sistema solar dos dragões. Como que planejado há
muito tempo, esse objeto caiu no populoso planeta
Tidianvinst. Alguma coisa acionou o pequeno corpo celeste,
ocasionando sua chegada ao planeta. Como um pedaço de
ferro atraído por um gigantesco imã, o corpo foi atraído à
rota de Tidianvinst. Aquilo foi uma mudança inesperada no
cotidiano dos dragões, pois o menor pensamento sobre algo
do tipo seria rechaçado por inúmeras teorias e sistemas de
defesa. Sua vida pacífica não estava preparada para ações
inteligentes vindas de tora. O objeto mudou sua trajetória,
como que possuído de inteligência totalmente anormal.
Outrora, seguindo um curso natural, por onde muitos
objetos passavam, este mudou repentinamente a
naturalidade da situação e direcionou-se para Tidianvinst.
Imediatamente foi envolvido por bilhões de robôs-células,
mas estes não conseguiram fazer absolutamente nada. O
objeto criou, antes mesmo de atingir Tidianvinst, uma
superfície incandescente com temperatura altíssima.
Combateu, de forma inesperada, seus pequenos inimigos,
indiferente à situação. Os robôs não suportaram a
temperatura e foram totalmente destruídos. Pequenos
soldados mortos em campo de batalha. A primeira barreira
contra o inimigo inesperado apresentou-se inútil ao que se
destinava. A velocidade do objeto foi acelerada ao máximo
de sua capacidade. Rasgou a atmosfera do planeta, sem ao
menos alterar sua temperatura interna. O atrito com o
oxigênio produziu uma camada de fogo superficial na
pequena rocha espacial. Com a temperatura estável, não se
deixou modificar pelas condições externas, mantendo sua
integridade. Ao atingir a superfície, no quadrante 42 de
Tidianvinst, destruiu uma área muito populosa daquele
planeta. A explosão foi ouvida a quilômetros. Um grande
cogumelo de fumaça nasceu da desgraça daquela situação. As
ondas de choque foram sentidas. Tudo naquele ponto foi
destruído. Uma cratera com cinco quilômetros de extensão
e um quilômetro de profundidade foi aberta. Aquilo destruiu
várias torres e expôs as vísceras de uma das cidades
subterrâneas dos dragões. Milhões morreram
instantaneamente com o choque. Vidas ceifadas, projetos
destruídos, esperanças arruinadas. Contra todas as
probabilidades e teorias aplicáveis, bem no fundo da cratera,
estava intacto o objeto vindo do espaço. Ali repousava como
se nada tivesse produzido, adormecido em seu ninho
macabro construído de rochas, materiais sintéticos, ligas me-
tálicas, corpos escamosos e sangue. Indiferente estava a isso
tudo com sua textura irregular e imobilidade atual. A
temperatura no ambiente, aos poucos, voltava à sua
normalidade. Ah continuou estático, não se movia ou
apresentava qualquer indício de vida ou inteligência. Quem
o visse e não possuísse histórico daquilo, diria que tal objeto
jazia há anos naquele lugar, tanta inércia aparentava. Mas o
oceano de destruição produzido ali não permitia uma
dissimulação do terrível objeto. A aparência era de quem
esperava alguma coisa ou alguém. Contudo, ninguém
poderia dizer ao certo. Um mistério mortal, assassino, es-
preitava na terra dos dragões. Imediatamente os órgãos de
defesa dos dragões alertaram seus melhores especialistas e
suas melhores tecnologias para avaliar os estragos e se o
objeto estranho havia deixado algum rastro. Fenômeno tão
estranho nunca fora presenciado por nenhum componente
daquela raça avançada. Mesmo nunca presenciando tal
fenômeno, os dragões calculavam probabilidades de
desastres e, apesar de confiarem em sua cultura e sua
tecnologia, no fundo, pelo menos assim imaginavam,
saberiam como lidar com a pior das catástrofes. Até aquele
presente momento não sabiam com certeza com o que
lidavam. Por isso mandaram convocar seus melhores
especialistas e os seres mais próximos envolvidos na
situação. Com a união dos melhores e o esforço mútuo,
resolveriam o problema, desvendando o enigma proposto
pelo acaso.
Krueur posicionou o sistema para observar algum estrago no
planeta. Em poucos segundos, imagens do planeta
Tidianvinst chegavam com a terrível tragédia estampada em
suas preocupantes imagens. Os dragões ali presentes ficaram
horrorizados com a tragédia. Harnink tentava diminuir a
sensação de pânico existente naquele ambiente. Seus traços
faciais apresentavam enorme preocupação, desmentindo
qualquer tentativa de apresentar calma aos seus pares.
— Dragões! Mantenham-se calmos, por favor. Tudo o que
podíamos fizer foi feito. Não houve falhas de nossa parte.
Avisamos os órgãos competentes rapidamente.
— Posso dizer, apesar de minha pouca vivência —
acrescentou Krueur —, que aquilo não era natural.
Senhores, a avaliação que faço é de que estamos lidando
com alguma coisa estrangeira.
— Possível, mas pouco provável, meu caro Krueur —
interrompeu Harnink. — Há outras possibilidades. Um
fenômeno magnético ou algo assim. Não podemos descartar
nada.
— Sim! Devemos esperar! Tomara que sejamos rápidos.
— Seremos, meus caros, seremos. Nossa civilização tem
mais de sete mil ciclos e se não soubéssemos resolver
problemas, de qualquer escala, não teríamos sobrevivido
para ver este dia. Vamos esperar.
Algum tempo depois, uma mensagem chegou à estação. Esta
solicitava a presença de Harnink e dos componentes
responsáveis pela tarefa de monitorar o ocorrido a dirigirem-
se à cidade de Yfunst Ghiar, onde deveriam contribuir com
suas experiências. Imediatamente Harnink solicitou a
presença de Krueur e Furtink. Pediu a ambos que se
preparassem. Os dois correram para seus alojamentos e
arrumaram seus pertences. Krueur Aerok olhava com medo
e incerteza para seus pertences. Pegou apenas o necessário,
pois seu sentimento era de profundo desprendimento das
coisas materiais. Não conseguia ver sentido nelas, pois algo
catastrófico havia ocorrido aos seus compatriotas. Tal
sentimento de perda tornou-se um dos sentimentos mais
profundos e doloridos que Aerok havia sentido em sua
breve existência. Respirou fundo, acalmou-se lembrando de
sua missão ainda em andamento, e se organizou. Foi
despertado de seu casulo de meditação ao sentir o som de
uma voz chamando-o pelo nome completo. Pegou suas
coisas e dirigiu-se direto ao local de embarque e
desembarque da estação. Um transporte apareceu na estação
com o intuito de levar seus passageiros o mais rápido
possível para a cidade. Ao embarcar, Krueur sentiu que seria
a última vez que veria a estação de monitoramento. Olhou
para a face de Harnink, este por sua vez esforçando-se para
passar tranqüilidade em seu semblante e, depois, virou-se
para Furtink. Os três embarcaram e seguiram direto para a
cidade.
Com a presença de Tlüogodärami na cidade de Yfunst Ghiar,
esta se tornou um refúgio do caos vivido em Tidianvinst. As
comunicações com Tidianvinst foram estabelecidas de
maneira a poderem fazer decisões conjuntas entre
Tlüogodärami e o conselho residente no planeta atacado. Os
especialistas da estação de monitoramento que avistaram a
mudança de trajetória do objeto foram convocados a se
reunir com Tlüogodärami e o conselho para ajudá-los a
tomar medidas imediatas.
O transporte, onde Krueur Aerok encontrava-se, seguia com
toda a velocidade à cidade de Yfunst Ghiar. Em meio ao
deserto vermelho, a grande montanha começava a
despontar no horizonte. O tempo passava rápido e a
montanha se aproximava. O transporte parou por alguns
segundos ao pé da montanha. Uma grande entrada surgiu,
abrindo-se da terra, como que produzida por um terremoto,
absolutamente do nada. Ao entrarem, o sistema fechou a
entrada, produzindo um pequeno barulho, potencializado
pelos ecos produzidos na antecâmara. Um grande portão,
dentro da antecâmara, abriu-se, mostrando um caminho
iluminado. O transporte seguiu-o. Aerok observava os
baixos-relevos que forravam todas as paredes daquele
caminho. Aquilo tudo lhe lembrava seu planeta natal. Os
baixos-relevos contavam histórias dos colonizadores do
planeta Niiefgönst e da construção da cidade. A grande
velocidade do transporte não permitiu observar mais, apenas
quando a velocidade diminuía em certos trechos. Detalhes
não foram percebidos. A grande luz existente no fim do
caminho aproximava-se. Quando o transporte terminou sua
pequena jornada, uma imensa cidade subterrânea revelou-se
aos olhos dos transportados. A cidade do planeta era uma das
mais belas de todo o sistema solar. Talvez por estarem longe
de seus lares originais, os dragões dali resolveram reproduzir
um ambiente que lhes passasse o conforto do verdadeiro lar.
Era, sem a menor dúvida, uma cidade pulsante. Muito
povoada, os dragões iam e vinham seguindo suas obrigações
diárias. Sistemas de transportes altamente sofisticados, uma
mistura de trens com elevadores poderiam ser utilizados em
praticamente todos os pontos da cidade. Aerok observava
com mais intensidade a beleza da cidade, com suas
construções internas, sua irregularidade e sua população. Ah
o pequeno transporte seguiu um caminho que os levou até a
edificação onde estavam reunidos Tlüogodärami, as
autoridades da cidade e os representantes de Tidianvinst, via
sistema de comunicação, tipo de videoconferência.
Rapidamente desembarcaram e foram conduzidos por
dragões especialmente designados para essa específica tarefa.
A reunião seria em um grande salão da edificação. Ao
chegarem, Aerok observava atentamente o ambiente. Um
grande salão, totalmente vazio, somente com o
comunicador e sua grande tela e muitos dragões. Esse
ambiente era totalmente claro e bastante iluminado. Em um
granito branco, artificialmente fabricado, totalmente polido,
dava ao ambiente sua característica mais marcante
esteticamente. Havia uma sensação glacial naquele lugar,
apesar da temperatura controlada. Os dragões se destacavam
no ambiente, contrastando com seus vultos escuros. No
lugar de honra da reunião, estava o famoso Tlüogodärami.
Este, por sua vez, conversava com alguns dragões próximos.
O som dos diálogos fundidos formava um ruído totalmente
indecifrável. Krueur possuía pensamentos próprios em
relação à cultura de seu povo. Sua visão de Tlüogodärami
tornou-se um pouco diferente dos demais dragões. Algumas
dúvidas pairavam sobre o simbolismo do título, mas no
fundo não poderia acreditar nisso nem no certo misticismo
atribuído ao possuidor daquele título. O verdadeiro
Tlüogodärami estava morto há muito tempo. Tamanha
responsabilidade não poderia ser atribuída a um único
dragão, pelo menos assim Aerok pensava. Mas
inesperadamente, sem explicação nenhuma, certo
sentimento de alívio e conforto foi despertado em seu
âmago ao deparar com a imagem de Tlüogodärami. Por mais
que contestasse em seu íntimo a questão cultural, seu
sentimento o traíra desconfortavelmente.Tornou-se
impossível fugir daquele vínculo de identidade. A sensação
de ter alguém com quem contar naquele fatídico período
dava-lhe o conforto necessário para continuar. Pensamentos
e sentimentos antagônicos fluíam na mente de Krueur
Aerok, criando sensações inesperadas e inéditas.
Um dos condutores, que levou o pequeno grupo vindo da
estação de monitoramento até o grande salão, aproximou-se
de Tlüogodärami e fez um breve comentário ao pé do
ouvido. Depois de pronunciadas as palavras, Tlüogodärami
imediatamente apontou seu olhar para Harnink e seus
companheiros. O condutor voltou e disse a Harnink que se
aproximasse, com seus companheiros, de Tlüogodärami.
Imediatamente a ordem foi cumprida. Breves cumprimentos
foram trocados.
— Meu caro Harnink. E um prazer conhecê-lo. Pena não
ser em um momento mais pacífico. Quem são esses ao seu
lado? — perguntou Tlüogodärami.
— Digníssimo Tlüogodärami, estes dois são meus
companheiros de trabalho na estação de monitoramento.
Foram eles que detectaram o pequeno corpo estranho antes
da catástrofe — Harnink olhava atentamente para o
semblante sereno de Tlüogodärami. — Seus nomes são
Krueur e Furtink.
— Sejam bem-vindos a esta reunião, meus jovens dragões.
Precisaremos de todas as pistas necessárias para avaliar da
melhor forma possível esta situação — Tlüogodärami olhava
para os dois jovens dragões com intensidade, transmitindo-
lhes a mais completa tranqüilidade.
Os dois jovens retribuíram o olhar com alguma timidez. A
presença de alguém tão ilustre provocava, muitas vezes, esse
tipo de atitude. Reunidos no grande salão, como era o
costume dos dragões desde os períodos mais remotos de sua
civilização, começaram imediatamente após a chegada de
Krueur e seus amigos o debate para investigar os últimos
acontecimentos terríveis. Os dragões posicionaram-se em
frente à grande tela, onde nela transmitiam-se as imagens ao
vivo dos dirigentes de Tidianvinst. Tlüogodärami
posicionou-se como uma espécie de interlocutor, ora
olhando para a tela, ora olhando para os dragões presentes
no recinto.
— Meus compatriotas, nós estamos em estado de alerta e
apreensão. Precisamos decidir o que fazer para resolvermos
esta situação catastrófica — Tlüogodärami expunha com
simplicidade os fatos aos presentes e aos dirigentes. — Como
todos já devem estar cientes, um objeto, aparentemente um
corpo rochoso, caiu no quadrante 42 de nosso planeta,
Tidianvinst. Por isso, organizadamente, vamos determinar as
prioridades para agirmos da melhor maneira possível.
Sabemos que muitos dragões morreram. Não sabemos o
número ao certo, mas calcula-se algo em torno de um
milhão de dragões. Nunca, desde nossa unificação, tantos
morreram. Um número desse tipo relacionado à morte
nunca seria previsto, tão absurda seria essa suposição. A
situação vivida demonstra-se totalmente diferente do que
supúnhamos. Não vou demorar mais em minhas palavras,
pois cada minuto é importante para solucionarmos a
situação. Gostaria de ouvi-los.
— Deveríamos, em primeiro lugar, mandar uma equipe com
nossos melhores especialistas, em todas as áreas
relacionadas, para avaliar os estragos e encontrar alguma
pista do que seria isso tudo — disse um dos dragões
posicionados mais à frente.
— Sim, mas devemos relacionar os especialistas e suas
respectivas áreas — Tlüogodärami completava o pensamento
do dragão anterior.
— Vamos precisar de um grupo de engenheiros, de
estrutura, sistemas de energia, comunicação, médicos,
especialistas em astrofísica, geologia espacial, mecanismos
robóticos e equipamentos para ajudar a remover
sobreviventes e possíveis fragmentos do objeto vindo do
espaço — disse um dos dirigentes exibido na grande tela.
— Concordo plenamente, meu caro. Precisamos mobilizá-los
— sugeriu Tlüogodärami.
— Os engenheiros, equipamentos, robôs e tudo o mais já
foram imediatamente convocados para essa tarefa, porém
nossos melhores especialistas em geologia e astrofísica estão
fora do planeta — disse outro dirigente.
— O honorável Srin Harnink está conosco neste momento.
Acredito que ele seja o dragão adequado para essa missão.
Seu trabalho em geologia espacial é muito famoso entre nós
— recomendou Tlüogodärami.
— Estou à disposição para a missão — Harnink levantou-se
imediatamente ao ouvir a sugestão de Tlüogodärami.
— Sabemos que podemos contar com sua voluntariedade,
meu caro Harnink — respondeu Tlüogodärami. — Despeça-
se de seus amigos, pois precisamos de você no local da
catástrofe. Vá e bom trabalho.
— Obrigado, honorável Tlüogodärami.
Harnink aproximou-se de Krueur e Furtink. Olhou para seus
colegas de trabalho e esboçou um suave sorriso.
— Acho que é aqui que nos despedimos. Espero vê-los o
mais rápido possível. Espero ser útil nessa missão.
— Até logo, Harnink — disse Furtink.
— Até logo.
— Foi um prazer trabalhar com o senhor, Harnink — disse
Krueur.
— Até logo, meu jovem. Foi também um prazer, mas
acredito que trabalharemos juntos novamente. Não contem
com a possibilidade de se livrar de mim tão facilmente —
Harnink esboçava um sorriso para Krueur.
Depois da despedida e dos cumprimentos, Harnink foi
conduzido para fora do salão branco. Os ali presentes, os
dirigentes e Tlüogodärami continuaram os diálogos. Por fim,
dariam uma pequena pausa e monitorariam a incursão da
equipe, ali mesmo no salão branco.

Harnink foi imediatamente conduzido à nave especialmente
preparada para levá-lo, o quanto antes, para Tidianvinst. A
viagem foi rápida, para os padrões. Os trâmites foram
anulados em função do ocorrido. Todos os convocados
reuniram-se próximos ao quadrante 42. Muitos especialistas
em várias áreas estavam reunidos ali com voluntários para
ajudar no que fosse necessário. Havia dois robôs gigantescos,
que lembravam aranhas de seis pernas. Possuíam a função
de guindaste e teriam a capacidade de retirar qualquer
obstáculo existente no caminho. Os componentes da equipe
ganharam vestes especiais. As elegantes armaduras possuíam
a função de proteção, caso houvesse radiação no local. Além
da proteção, funcionavam como pequenos sistemas
computacionais e de comunicação com a equipe. Havia
milhares de robôs do tamanho de um dragão comum, com a
aparência característica destes, a não ser por suas partes
evidentemente artificiais. Dezenas de naves, de tamanho
satisfatório, fariam o serviço de transporte para equipa-
mentos, robôs e os especialistas. Quando todos estavam
preparados, embarcaram imediatamente nas naves. Estas,
por sua vez, seguiram cautelosamente para o quadrante 42,
onde encontrariam seu interesse principal.
As naves sobrevoavam o quadrante 42, quando encontraram
as beiradas da cratera. Um vôo de reconhecimento foi
executado a fim de escolherem o melhor lugar possível para
o pouso. Havia um lugar milagrosamente pouco destruído,
bem próximo ao epicentro da explosão. A equipe
desembarcou com todo o cuidado possível. Alguns robôs e
robôs celulares foram soltos na área para uma varredura mais
precisa. A equipe constatou a não presença de radiação ou
qualquer agente tóxico na área. Mesmo não representando
perigo, não ousaram retirar suas roupas especiais por
precaução e um pouco de medo.
Um robô voltou de uma pequena expedição, trazendo
notícias. As novidades interessaram a todos, principalmente
Harnink. O robô fez um relatório de um possível corpo
estranho encontrado a uma distância curta de onde a equipe
estava. Harnink, com alguns outros especialistas, seguiram
ao local desconhecido.
— Com o corpo, ou uma parte dele intacta, poderemos
determinar a origem disso tudo — disse Harnink.
— Siga por aqui, senhor — disse o robô responsável pelo
achado.
— Ative uma proteção de robôs-células, só por precaução —
pediu Harnink aos outros especialistas estabelecidos no local
de pouso. —Voltarei em breve, com boas novas.
Harnink, alguns dragões e robôs seguiram o caminho até o
esperado achado. Entre os destroços, seu caminho foi lento
e difícil. Ao caminharem, finalmente encontraram o suposto
local da queda. Um buraco com três metros de diâmetro e
uns dez metros de profundidade foi determinado como o
local da queda do objeto.
— E aqui mesmo o local? — perguntou Harnink ao robô.
— Sim — respondeu a máquina,
— Precisaremos de um dos robôs grandes para entrarmos
nesta profunda abertura. Contudo, em primeiro lugar, vamos
mandar alguns robôs celulares para analisar o local e um
robô normal para monitorar.
Uma nuvem de robôs celulares entrou na abertura, seguida
por um robô com formato de dragão. Os pequenos robôs
sobrevoaram o buraco, fazendo uma manobra de queda
livre, onde todos penetraram rapidamente. Neste rasante
executado pelas pequeninas máquinas, havia o corpo
rochoso repousado no ponto mais profundo, como
derradeiro destino delas. O robô em forma de dragão
posicionou-se e iluminou o local. Com seus olhos artificiais,
transmitia para Harnink as imagens do local.
Harnink verificou as imagens e uma sensação de surpresa
provocou-lhe certo mal-estar. Não imaginara a probabilidade
de o objeto estar totalmente intacto. Entretanto, foi isso que
as imagens demonstravam. Pelos cálculos do sistema
computacional, o objeto tinha exatamente as medidas
detectadas na estação espacial do quarto planeta. Não havia
perdido nada de sua composição original. No imaginário de
Harnink, aquilo seria quase impossível, pois o sistema de
defesa contra objetos estranhos já havia rechaçado outros
muito maiores, não permitindo que caíssem intactos no
planeta. Um pouco confuso pela discrepância provocada
pela nova situação, Harnink se recompôs e solicitou a
presença do robô gigante para fazer a tarefa de guinchar
aquele objeto. Enquanto isso, Harnink esperou a presença da
grande máquina e dos outros dragões.
Um suave som de badaladas constantes soava nos campos
devastados pela catástrofe ocorrida no planeta dos dragões.
O robô caminhava, com suas seis pernas, pelo terreno
difícil. Aproximou-se do objeto espacial achado e
comunicou mais uma vez seus planos. Todos escutaram e
posicionaram-se para executar a tareia.
O robô gigante posicionou-se com suas seis pernas em volta
da abertura. Primeiro tentou usar um de seus sistemas de
guincho composto por um poderoso sistema magnético.
Usou-o, a princípio, moderadamente. Demonstrando-se
ineficiente, aumentava-se gradativa- mente a capacidade do
sistema magnético. Nada, absolutamente nada aconteceu. O
corpo rochoso parecia ter vontade própria. Não cedia um
milímetro que fosse. Então a máquina usou sua capacidade
máxima. De repente o corpo começou a ceder. Por um
breve instante, a luta parecia ganha. Contudo, a máquina
perdeu mais uma vez. Com o sistema magnético não houve
um resultado satisfatório. Como alternativa, resolveram
amarrar o corpo rochoso a um cabo sintético de altíssima
resistência. Dois robôs da forma de dragões levaram o cabo
até o objeto e amarraram-no firmemente. O cabo estava
conectado a um sistema de roldanas de alta resistência
existente na máquina. Ao guinchá-lo, a máquina usou sua
potência máxima. Desta vez, apesar do esforço excessivo, o
robô de seis pernas conseguiu retirar o objeto da fenda.
Após elevá-lo para perto de seu ventre metálico, a máquina
começou a caminhar. Afastou-se não mais que dois metros
do buraco, quando uma pane iniciou-se em seu sistema. A
máquina perdeu o equilibro e caiu. Sua queda provocou um
pequeno tremor. Todos os que ali presenciaram o fato
assustaram-se com o ocorrido. O corpo rochoso soltou-se de
suas amarras e ficou próximo ao robô tombado. O pequeno
tremor foi provocado mais pela queda do objeto que
propriamente a queda do robô. A rocha espacial afundara
alguns centímetros no terreno devastado.
Harnink e os outros se aproximaram do objeto. Eles
olhavam abismados para o acontecido. Não conseguiam
entender o ocorrido.
- Esta rocha deve ter uma densidade absurdamente alta.
Nunca vi algo assim antes — constatou Harnink. —Vamos
esperar um pouco para planejarmos novamente os
procedimentos necessários para retiramos esta coisa.
E assim eles aguardaram por algum tempo.

CAPÍTULO 8
SEGUNDO DIA

Todos aqueles reunidos no salão branco estavam, em graus
diferentes, com alguma ansiedade. Acompanhavam
atentamente as transmissões vindas de Tidianvinst. Tudo o
que acontecia na área da queda, desde a chegada do grupo,
foi monitorado com minúcia pelos ali presentes.
Tlüogodärami andava de um lado para o outro, disfarçando
como podia suas sensações. Krueur acompanhava tudo dali.
Quando o objeto foi retirado da fenda e o pequeno acidente
aconteceu, surpresa foi o sentimento predominante naquele
belo salão branco. A tecnologia dos dragões não foi páreo
para uma simples rocha e isso os deixou perplexos. Após o
acontecido, esperaram as próximas novidades.
Harnink ordenou aos robôs celulares que cercassem o objeto
para uma tentativa de análise de sua composição química.
Um dia inteiro se passou e nada aconteceu. O mundo dos
dragões estava absolutamente apreensivo. Não conseguiam
acreditar naquilo tudo e na falta de capacidade de lidar com
um objeto aparentemente simples, vindo do espaço. Os
robôs tentavam penetrar a dura estrutura do objeto, mas não
conseguiram uma amostra para análise. Um dia de tentativas
que não trouxeram bons resultados. Desistindo por algum
tempo, Harnink não detectou perigo em relação àquela
rocha. O grupo resolveu intensificar e priorizar o
salvamento de possíveis sobreviventes. Aquilo ficaria para
depois, com um equipamento mais adequado e um labo-
ratório de análise onde tudo poderia ser resolvido e questões
seriam respondidas o quanto antes. Como precaução, o
grupo expedicionário resolveu deixar um robô monitorando
o objeto. Nada poderia fugir de seus olhos. Não queriam
arriscar.
Krueur, aproveitando a pausa nos trabalhos ali no salão
branco, resolveu dialogar com Tlüogodärami. Apesar de seus
questionamentos culturais, sentia no sábio e famoso dragão
um conforto paterno. Com alguma timidez, a presença de
alguém tão ilustre causava essa sensação nos mais jovens,
aproximou-se dele.
— Ilustríssimo Tlüogodärami, qual sua opinião sobre isso
tudo?
— Não ouso falar nada até conseguirmos dados suficientes,
meu jovem dragão.
— Não acha um pouco prematuro o desinteresse
momentâneo pelo objeto?
—Talvez, sim, meu jovem. Mas em momentos como estes
vividos por nós, temos de tomar decisões que nem sempre
são compartilhadas por todos. Veja bem, o objeto foi
encontrado e apresenta um comportamento estável.
Mediante isso, podemos priorizar nossos compatriotas,
vítimas da catástrofe.
— Concordo que as vítimas são prioridades máximas, porém
o que vimos esse objeto fazer está longe de ser classificado
como normal. Sua trajetória e seu comportamento
apresentavam uma anormalidade totalmente inexplicável.
Por isso temo que algo além daquilo que imaginamos possa
provocar mais catástrofe.
— É um risco calculado, meu jovem. Em certos momentos
devemos fazer escolhas. Agora se as escolhas são boas ou
ruins só o tempo dirá. A própria densidade, por exemplo,
desta rocha é absurdamente exagerada. Nunca lidamos com
algo assim. Mas até você com sua ansiedade e suspeita deve
concordar que há uma boa chance de não passar de um
novo material vindo de fora e nada mais — Tlüogodärami
fitava Krueur com seus olhos tranqüilos.
— Sim, há alguma chance — disse Krueur com alguma
contrariedade.
— Sinto em seu semblante que ainda não o convenci.
— Não se sinta ofendido, ilustríssimo Tlüogodärami, mas
creio que o objeto deveria ainda ser nossa prioridade. Não
consigo explicar o porquê. Talvez influenciado pelo que vi
na estação de monitoramento.
— Lamento não convencê-lo. Mas os jovens são assim
mesmo. Quando seu amadurecimento chegar, você vai
entender que devemos pesar muito bem nossas alternativas
antes de tomarmos uma decisão definitiva.
— Peço desculpas, ilustríssimo Tlüogodärami. Não é que eu
discorde do senhor, mas há em mim um sentimento
estranho. Só queria compartilhá-lo. Mas suas palavras sábias
são novas luzes em minha mente. Desculpe-me por
importuná-lo com minhas ansiedades.
— Não leve para esse lado, meu jovem. Todas as idéias são
válidas. Não perca esse espírito, jamais. Agora vá descansar,
estamos todos precisando de um pouco de descanso.
— Eu vou descansar. Muito obrigado, honorável
Tlüogodärami.
— Disponha, meu jovem. Agora vá com paz e sabedoria.
Todos se acomodaram como puderam no salão branco.
Apesar de exaustos, seu sentido de dever a cumprir e
curiosidade de saber boas novas não permitiam um descanso
completo.
O grupo expedicionário em Tidianvinst procurava por
sobreviventes, mas não encontraram ninguém vivo. Muitos
cadáveres em início de decomposição tornavam o ar
insuportável. Os robôs estavam recolhendo os cadáveres e
os levaram a um lugar determinado que ficara responsável
por depositá-los provisoriamente. O ambiente possuía uma
atmosfera de destruição e morte. A rocha continuava
estática, como esperavam quase todos. Nenhum sinal
apresentava perigo. Sua inércia exalava eternidade desde que
a deixasse repousar naquele lugar.
Harnink caminhava entre os destroços, e as visões dos
dragões mortos e de belas cidades arruinadas perturbavam-
no. Lembrara que há muito tempo perdera a capacidade de
dar a devida importância a essas pequenas coisas da vida.
Uma mudança em seu ser desencadeou- se mediante a cena
de destruição. Em uma pausa nas buscas, resolveu descansar
um pouco.
— Um pensamento não consegue fugir de minha mente —
questionava-se Harnink. — Às vezes só damos valor a
alguma coisa quando a perdemos. Estava tão absorto em meu
trabalho, tão despreocupado com a vida estável que
levávamos... Nunca dei o valor devido ao nosso planeta, à
nossa cultura. Digo, o valor de verdade.
— Entendo o que quer dizer, Sr. Harnink — disse um dragão
voluntário perto dele. — Também compartilho desse seu
sentimento.
— Esta situação servirá como referência para o futuro.
Admiraremos muito mais nossos feitos e nos
conscientizaremos de nossa vulnerabilidade. Precisamos
trabalhar para anular esse problema.
— Não há dúvida disto.
— Sejamos otimistas, acima de tudo. Por mais controlada que
seja nossa vida, nunca temos o controle real de tudo.
Sempre há brechas, porém não podemos deixar essa
paranóia nos destruir. Admirar nossos feitos, nossas cidades,
são coisas válidas. Neste momento admiro-as mais que tudo.
Temos de achar um equilíbrio nesta equação. Segurança
com estabilidade.
— Compreendo.
— Não se preocupe, meu amigo. Talvez eu esteja falando
demais. A paisagem desolada vista por meus olhos não é o
melhor alimento para minha mente cansada. A confiança de
que resolveremos isso deve ser nosso lema.
Ali permaneceram por mais algum tempo. O descanso e a
reflexão ajudaram aos dragões presentes a continuar suas
tarefas. Harnink levantou-se acompanhado pelos outros do
grupo e continuou sua missão. Olhava para os lados e via que
no fundo não estava sozinho fisicamente, obviamente, e
mentalmente. Ele compreendia que suas abstrações, seus
pensamentos e sentimentos mais íntimos eram
compartilhados por bilhões de outros dragões, seus
compatriotas, seus irmãos, sua identidade, sua razão de
existir.
O segundo dia da catástrofe foi um dia sem muitas
novidades. Fora o trabalho de rotina na remoção dos mortos
e da procura de possíveis sobreviventes, nada de novo
apareceu naquela desolação total. Um dia aparentemente
pacífico. As horas correram e a rotina se formava. No início
do terceiro dia, algo inusitado aconteceu. Uma fissura com
linhas profundamente perfeitas, apareceu na rocha. O robô
deu um alerta e a atenção de todos voltou-se para a causa
daquilo tudo.

CAPÍTULO 9
Terceiro Dia

O alerta soou com força assustadora nos comunicadores da
equipe. Exaustos pelos esforços, com poucas horas de sono,
todos atenderam imediatamente do inesperado aviso. Algum
tempo depois do alarme, uma aglomeração de dragões e
máquinas estava diante da rocha vinda do espaço. Harnink
levantou questões sobre o acontecido com seus pares. O
robô relatou exatamente o que havia acontecido. O corpo
celeste estava intacto até que em uma fração de segundos
uma pequena racha- dura apareceu. Apenas um detalhe
deixava o fato realmente estranho. A rachadura em si
possuía um padrão simétrico, como que fabricada por patas
habilidosas ou uma tecnologia avançada. Depois da abertura
da fenda, nada mais aconteceu. Os robôs celulares tentaram
penetrar na parte interna do objeto, não obtendo resultado
nenhum. Não conseguiram analisar a rocha, pois parecia
feita do mesmo material da parte externa.
— Definitivamente, esta rocha não é natural — disse
Harnink.
— Com certeza, meu caro Harnink — disse uma voz no
comunicador, vinda do salão branco do planeta Niiefgönst.
— O que devemos fazer? — perguntou um dos voluntários
ao lado de Harnink.
— Devemos observar mais um pouco.
— Por quanto tempo?
— O necessário para determinar uma estabilidade.
— E depois?
— Vamos retirá-la a qualquer custo. Devemos solicitar um
equipamento mais potente — nesse momento, Harnink
encarava toda a equipe com expressão de preocupação.
— Paramos as buscas por sobreviventes?
— Sim. Mas antes vou confirmar com o conselho de
Tidianvinst e do planeta Niiefgönst — Harnink estabeleceu
comunicação com os conselhos. - Estamos dispostos a
observar o comportamento do objeto. Temos suas
aprovações?
— Faça o que achar melhor, Harnink. Confiamos em você.
O grupo estabeleceu-se ao redor do objeto. Robôs cercavam-
no monitorando-o com leitura a laser. Os robôs celulares
formavam uma pequena película sobre a rocha, para que
qualquer mudança em seu comportamento fosse sentida
imediatamente. Como um ardiloso vilão, a rocha parecia
brincar com seus antagonistas. Parecia planejar
minuciosamente seus movimentos. Um movimento por
vez, e surpresas apareciam aos olhos dos dragões ali
presentes. Harnink começava a se perguntar se não deveria
ter ouvido o conselho de Krueur. Aquilo demonstrou um
histórico de comportamento totalmente anormal. Ob-
viamente, como cientista, Harnink deveria se manter neutro
e buscar as verdadeiras respostas sem nenhum preconceito
estabelecido, porém o conjunto da obra produzido por
aquela coisa levava-o a especular cada vez mais sobre algo
vindo de uma civilização alienígena.
— Esta rocha é muito estranha — um dos componentes da
equipe ponderou.
— Enquanto eu estiver na condição de cientista, não poderei
chegar a nenhuma conclusão sem as devidas pesquisas -
comunicou Harnink aos seus. - Contudo, meu bom-senso e
meus olhos não me enganam. Devemos ter absoluta cautela
sobre esta estranha rocha.
- Diga-nos, em sua opinião, o que seria isto? — disse um
dragão ao seu lado.
— Vou falar como um leigo e não na condição de cientista.
Meu bom-senso diz que estamos lidando com tecnologia
estrangeira - as palavras de Harnink provocaram um espanto
em todos os presentes.
— Tem certeza? Não seria algo nosso? Algum fruto de
pesquisa.
— Isto não tem nada a ver com nossa tecnologia. Posso dizer
que nunca vi material como este, com esta densidade.
Conheço a geologia de 15 planetas e centenas de luas e
nunca vi algo parecido. Convenhamos: isto não é produto
nosso. Caso o fosse, os responsáveis já teriam aparecido.
— Em nossos registros, nunca tivemos nada, absolutamente
nada, em relação a contato com estrangeiros. Nem contato
direto, muito menos a descoberta de vestígios de alguma
civilização.
— Claro está que os fatos históricos não nos ajudam — disse
Harnink. — Uma vez minha especulação confirmando-se,
lidaremos com algo totalmente novo.
— Realmente, se pensarmos assim, tudo faz certo sentido.
— Não vamos mais especular, dragões — Harnink pediu,
olhando profundamente nos olhos de seus companheiros.
— Devemos esperar pelos resultados vindos de pesquisa
séria e não especulações provenientes de primeiras
impressões.
O grupo resolveu descansar um pouco. Acomodaram-se em
estruturas móveis. Sua simplicidade era extrema e havia
apenas lugares para o descanso dos dragões. A estrutura
móvel possuía isolamento térmico e de ar, possibilitando
uma atmosfera não nociva, diferente da encontrada do lado
de fora. Os grandes quadrados negros, como aparentavam os
alojamentos móveis, quase desapareciam sobre os escombros
e cinzas do local onde estavam instalados. Ali seus sonos
foram parcialmente recuperados. Algumas horas se passaram
e os componentes da equipe estavam novamente em suas
posições. Nenhum movimento foi detectado. Harnink
solicitou a presença da maior nave disponível, pois precisava
levar a rocha para um lugar mais estéril, onde começariam as
pesquisas necessárias para determinar exatamente o que seria
aquilo.
— Alguma previsão de chegada da nave? — perguntou
Harnink.
— A qualquer momento ela chegará — disse uma voz em
seu comunicador. Harnink esperava com ansiedade a
presença da nave. Suas especulações sobre algo estrangeiro
consumiam seu ser. Queria saber a verdadeira história do
objeto, fosse o que fosse.
— Alguma mudança na rocha? — perguntou Harnink ao
robô responsável pela equipe de monitoramento.
— Nada ainda, senhor. Como se estivesse sempre nesta
posição.
— Provavelmente não há mais perigo. Preparem-se para
evacuar a área, pois a nave solicitada fará seu trabalho daqui
a instantes.
— Sim, senhor.
Os robôs começaram a debandar de suas posições de guarda.
Um barulho leve, mas constante, começava a ficar mais
claro no ambiente.
O barulho, característico dos sistemas de propulsão da nave,
aproximou-se lentamente. Uma manobra-padrão. Qualquer
movimento brusco poderia provocar algum acidente não
desejado. O grande triângulo mesclado de negro e cinza
sobrevoava o local da queda. A nave possuía dimensões
bastante razoáveis. Estava longe de ser a maior nave
construída pelos dragões, contudo calculava-se que poderia
cumprir seu trabalho com perfeição.
— Pedimos permissão para pousar — ouvia-se nos
comunicadores da equipe.
— Aguarde a ordem, por favor — Harnink organizava o
grupo para se afastar o máximo possível. Todos se afastaram
a uma distância segura.
— Estão autorizados.
A nave lentamente começou sua manobra para pouso.
Como uma pluma, a nave pousou aparentando não pesar
mais que um grama. Alguns especialistas em retirada de
objetos saíram da nave. Um deles, um dragão alto e forte,
direcionou-se para Harnink. Esse dragão também trajava a
roupa especial-padrão, usada pela equipe. Dentro de seu
visor, percebia-se uma tonalidade de escamas marrom-clara.
Com seus olhos verdes de pupilas negras rasgadas,
observavam com espanto os acontecimentos daquele
ambiente devastado.
— Salve, Sr. Harnink. Meu nome é Hurk e sou o responsável
pelo transporte desta coisa, seja lá o que ela for — disse o
amistoso componente da nave.
— Salve.
— Trouxemos o que havia de melhor para erguermos a
rocha. Mas pelo visto superestimamos o peso dela.
— Não se deixe enganar pelo tamanho desta pedra, ela possui
uma densidade nunca antes vista por nós. Acredite, ela é
muito pesada.
— Não se preocupe, Sr. Harnink. O material pode rebocar
um asteróide grande se quiséssemos. Se isto não conseguir,
nada poderá.
— Não duvido de sua competência, só peço cautela.
— Teremos, com certeza.
— Então façam seu trabalho.
O grupo preparava-se para amarrar o objeto. Uma espécie de
goma foi aplicada na rocha. Aquele material tinha uma
tonalidade rosada, como se fosse feito de carne viva. Após a
aplicação do produto, um cabo imenso feito de material
totalmente sintético aproximou-se da rocha por meio das
patas habilidosas de robôs que o conduziam ao destino
derradeiro. A ponta do cabo abriu-se como uma flor na
primavera e totalmente automática envolveu a rocha com a
goma rosada. Desta não se via mais nada. O objeto vindo do
espaço parecia uma continuidade do cabo. Com essa etapa da
tarefa concluída, todos voltaram para a nave. Colocando-se
em seus postos, a tripulação começou a ativá-la. Um
pequeno barulho unido a um tremor começou a ecoar na
região. Os propulsores erguiam o grande triângulo. A nave,
lentamente, colocava-se sobre o objeto. Quando o cabo de
ligação chegou a uma tensão onde parecia um grande poste
totalmente reto com nuances azuis, a nave ficou estática.
— Estamos prontos? — perguntou Hurk à sua tripulação.
— Sim! - ouviu-se o conjunto das vozes da tripulação numa
harmonia espontânea.
— Vamos gradativamente aumentar a potência dos
propulsores até chegarmos ao ponto ideal.
A nave aumentou gradativamente sua força. Os dragões da
equipe expedicionária observavam de longe aquela situação
tão esperada. O espanto começou a dominar as faces dos
dragões que testemunhavam aquele fato. A nave
gradativamente aumentava sua propulsão. O cabo criava uma
tensão gigantesca. Estalos podiam ser ouvidos ao longe. Mais
força e nada acontecia. Quando chegou à potência máxima,
o suave som produzido originalmente deu lugar a um som
muito mais forte e desagradável. O objeto começou
finalmente a ser erguido. Todos em terra comemoravam o
sucesso da operação. Festa em forma de vozes felizes
dominava o ambiente onde se encontrava o grupo. Por
pouco tempo foi assim. O burburinho deu lugar ao total
silêncio. Apenas o som dos propulsores e estalos cada vez
mais freqüentes eram ouvidos. Uma onda de choque,
totalmente visível aos que ali estavam, foi emitida de dentro
da ponta do cabo. Aquele fenômeno repetiu-se várias vezes.
Aos poucos a nave perdeu a potência inicial e caiu derrotada
e quase destruída. A potência foi gigantesca.Tombando no
chão, a nave explodiu, não permitindo a saída de
sobreviventes. O cabo manteve-se intacto, por assim dizer.
Entretanto, a ponta estava queimada.
A rocha espacial acomodou-se alguns metros após seu ponto
original. E ali continuou.
Harnink não acreditava no que seus olhos testemunhavam.
Ficou por algum tempo paralisado e milhões de
pensamentos e sentimentos confusos tomaram conta de seu
consciente sempre centrado. Não acreditava naquilo tudo.
Como removeriam aquela rocha? Não conseguia imaginar
mais nada. Para completar seu pesadelo, o objeto começou a
abrir. Como uma esfera com dobradiças, a fenda aumentou,
chegando ao ponto de ter 90° de abertura. Ninguém ousou
aproximar-se do objeto.
— O que está acontecendo? — questionou Harnink.
— Estamos lidando com algo comprovadamente perigoso —
disse uma das testemunhas.
— Harnink? - disse uma voz no transmissor.
— Sim?
— Diga-nos o que aconteceu.
— Infelizmente não posso relatar nada. Sei tanto quanto
vocês... A situação é grave. Está além de qualquer fenômeno
natural. Precisaremos de muito mais reforços.
— Veremos. Vamos reunir o máximo possível de dragões e
recursos para esta empreitada.
No salão branco, os dragões também não conseguiam
entender como falharam numa missão aparentemente
simples. Tlüogodärami conversava com os dirigentes, e sua
tranqüilidade característica desaparecia gradativamente.
Tensão e apreensão podiam ser quase sentidas naquela
atmosfera. Krueur mantinha-se afastado da maioria, em um
dos cantos do salão. Ah meditava, ao modo característico
dos dragões, deitado de barriga, com suas patas dianteiras
unidas e para a frente, asas fechadas cobrindo o corpo,
pescoço erguido e olhos fechados. O abalo do cotidiano, das
vidas perfeitas criadas pelos dragões, provocava sensações
nunca antes sentidas por Krueur. Não poderia de forma
alguma argumentar que estava absolutamente só em seus
sentimentos. Sabia da angústia geral provocada pelos últimos
acontecimentos. Contudo, precisava de alguns momentos só
para si. Repensar a vida e a nova realidade. A casca do ovo
fora rompida. A vida dos dragões, antes perfeita, construída
pedra por pedra, por milhares de anos, na verdade
demonstrou a fragilidade de uma casca de um ovo de dragão.
Estômago, coração e o próprio sistema nervoso não
funcionavam como deveriam. Turbilhões de sensações
bioquímicas convidavam a uma pausa. Aos poucos a
aceitação da nova realidade estabilizava corpo e mente.
Tlüogodärami aproximou-se de Krueur. Não esperando ser
interrompido por Tlüogodärami naquele momento, Krueur
olhou-o surpreendido.
— Meu jovem, você demonstrou uma perspicácia, uma
sensibilidade fora do comum. Talvez se tivéssemos ouvido
sua opinião com menos preconceito não estaríamos nesta
situação e vidas poderiam ser poupadas.
— Ilustríssimo Tlüogodärami, mesmo que eu tenha
especulado e acertado, nada nos preparou para algo assim. E
até agora a rocha estrangeira é um mistério para qualquer
dragão deste sistema solar. Não o censuro, pois até eu
gostaria de estar errado.
— Entendo, meu jovem. Nunca gostaríamos de enfrentar
situações como estas, porém este é o caso típico em que o
nosso poder de escolha começa a ser validado a partir de
como devemos enfrentar e não se queremos enfrentar.
— Este é o ponto principal, ilustríssimo Tlüogodärami. Como
devemos enfrentar este problema?
—Você é um jovem inteligente e muito mais sábio que
muitos dragões mais velhos. Por isso gostaria de saber se tem
a vontade necessária para trabalhar ao meu lado.
— Seria uma verdadeira honra — aquela proposta de trabalho
desmontara o conceito sobre a tradição e o posto de
Tlüogodärami. A honra que sentia, para Krueur, devia-se às
características daquele específico dragão e não a seu status.
— Tenho certeza que sim, meu jovem.
— Mas antes de aceitar, devo fazer uma confissão para o
senhor. Não sou um crente da função de Tlüogodärami. Não
acreditava nessa função até o presente momento. Achava
um simbolismo arcaico de nossa cultura. Desculpe-me pela
sinceridade. Vejo com outros olhos a situação. Vi que o
cargo não é apenas um símbolo arcaico.Vejo-o como um
símbolo de identidade e união — em sua sinceridade,
Krueur falara coisas que ainda não havia refletido direito.
Falou com mais sentimento na voz do que com a razão.
— Não peça desculpa de jeito nenhum, meu jovem. A
idolatria é um mal. Por isso o cargo não é para qualquer um.
Modéstia à parte, um Tlüogodärami é um símbolo de
conduta para todos os dragões. Não somos mais nem menos
que qualquer dragão. Apenas um guia e um símbolo de
nossa civilização. Lembre-se que quem imaginou tudo isso
foi um dragão desacreditado. Assim como hoje você foi
desacreditado por mim, o primeiro Tlüogodärami foi
desacreditado por muitos. Seus questionamentos são sempre
válidos, mesmo sobre o título de Tlüogodärami. Se o
primeiro não questionasse sua cultura, não teríamos a base
de nossa civilização. E a chave de nosso sucesso é mudar
quando necessário. A mudança não é ruim. Contudo,
devemos ter o bom-senso de pensar para não seguirmos
caminhos sem volta. Resumindo, não fico ofendido por seus
questionamentos. Isto é a essência do dragão.
— Bom, sendo assim, eu aceito trabalhar com o senhor.
— Aprenderemos muito um com o outro, meu jovem.
Tlüogodärami conduziu o jovem Krueur e apresentou-o
como
seu novo assistente e aprendiz. Assim, sem querer ou
almejar tal cargo, Krueur conquistou em pouco tempo um
cobiçado trabalho que poderia no futuro dar-lhe prestígio
inigualável entre os de sua espécie. Apresentações feitas, um
burburinho ecoava pelo grande salão branco. Mais uma vez
aquele grandioso ambiente era tomado pelo som produzido
por conversas paralelas. Um chamado de Harnink provocou
um silêncio imediato no ambiente.
— Alguém está escutando-me — perguntava com voz
angustiada Harnink.
— Estamos, Harnink — disse o operador do comunicador.
— Temo ter notícias nada boas para relatar.
— Diga-nos logo do que se trata.
A imagem onde os dirigentes de Tidianvinst apareciam foi
imediatamente substituída pelas imagens em tempo real da
equipe de Harnink. Parecia que o pesadelo não teria um fim.
Alguma coisa estava mudando na rocha espacial. Algo
monstruoso, hediondo, terrível e inesperado. O pior estaria
por vir.

Harnink tentava desesperadamente comunicar-se com a
base de operações no grande salão branco. A situação tomara
um rumo inesperado.
Ao promover sua abertura ao ângulo de 90°, instantes
depois, uma espécie de tentáculo começou a sair da rocha,
primeiramente com uma velocidade imperceptível, aos
pouco aumentando. O tentáculo possuía a aparência de uma
raiz de árvore. Sua textura rachada e aparentemente seca era
totalmente desmentida por sua incrível flexibilidade. Após o
surgimento do primeiro tentáculo, um segundo seguido de
um terceiro brotaram da rocha. Começavam com tamanho
proporcional ao seu lugar de origem. À medida que eles se
alastravam, seu tamanho dobrava a cada dorok. Tempos
depois o tamanho dos tentáculos tornara-se desproporcional
à rocha, porém ela continuava alimentando suas estranhas
criações, no centro daquele fenômeno assustador. O
crescimento tornou-se apavorante. Os tentáculos davam
origem a novos tentáculos tão grandes quanto os primeiros.
A pequena área onde estavam rocha e equipe fora
totalmente dominada pela criatura. Tecendo uma irregular
colcha rapidamente o solo da área desaparecia dando lugar
ao pulsante e macabro ondular dos tentáculos. Um raio de
aproximadamente 50 metros já estava dominado. Os robôs
celulares combatiam a criatura, porém sua regeneração
demonstrara uma condição fantástica. Cada ferimento
provocado pelos diminutos robôs era preenchido
rapidamente. Não restando recursos até o presente
momento naquele lugar, os dragões localizados ali sentiram
certo pânico. A situação fugira do controle, assim pensavam
muitos dos presentes. Aquele tornou-se o momento de fugir
e trazer uma alternativa eficiente. A equipe de Harnink
preparava-se para abandonar o local.
— Não temos mais capacidade para combater isto.
Precisamos de nossos melhores recursos — disse Harnink
pelo comunicador.
— Você tem razão, Harnink. Retire sua equipe rapidamente.
Os transportes estão a caminho — disse a voz no
comunicador.
Harnink reuniu sua equipe o mais longe possível daquilo
tudo. Esperavam os transportes com ansiedade. Alternavam
olhares ora para o céu, ora para a criatura. Os robôs e os
pequeninos robôs celulares fizeram uma espécie de barreira
protetora na equipe. Os robôs posicionaram-se de costas
para os dragões, não deixando nada despercebido.
— Fiquem todos calmos, por favor. Sairemos daqui em
poucos instantes. Os transportes estão vindo em nossa
direção. Rapidamente estarão aqui — Harnink passava e
tentava inspirar confiança nos dragões presentes.
Enquanto esperavam sua saída dali, a morte começou a
sorrir para aqueles dragões. Os tentáculos tomaram
proporções absurdamente irregulares. Não havia um padrão
naquele fenômeno. Um braço formado por um conjunto de
tentáculos seguiu o grupo até o ponto de embarque. Os
robôs deram alerta e tentaram combater a criatura. Por um
tempo conseguiram controlar a situação. Os robôs celulares
faziam sua parte tentando destruir a estrutura molecular da
criatura. Mas a situação desproporcional tomou o sentido
mais lógico. Os robôs foram destruídos e a frente de
combate não existia mais. Desesperados, os dragões tentaram
fugir utilizando sua capacidade de voar. Na tentativa de tirar
a roupa protetora para que suas asas pudessem ser colocadas
à prova, o tempo exigido para a retirada foi uma assinatura
de suas respectivas sentenças de morte. Um por um, os
dragões foram envolvidos pelos tentáculos. Aos poucos sua
respiração cessava. Seus corpos foram transportados à
camada inferior dos tentáculos. Harnink adiara por alguns
instantes sua morte, correndo o máximo que pudera. O
instinto de sobrevivência falou mais alto naquele instante.
Um único pensamento passava por seu cérebro: o de
sobreviver a qualquer custo. O cientista, dragão centrado,
desaparecera mediante esta prova de vida.
O dragão primitivo avivara-se no âmago de Harnink.
— Tenho que sobreviver — balbuciava sem parar. — Tenho
que sobreviver!
— Harnink! Estamos ouvindo você! — disse uma voz em seu
comunicador.
— Tenho de sobreviver!
— Escute! Aqui é o transporte, estamos sobre você.
— Tenho de sobreviver!
Realmente Harnink estava sob o transporte. Não percebeu e
não ouviu o chamado. O transporte tentou por três vezes
resgatá-lo. Todas as tentativas fracassaram miseravelmente.
Os tentáculos aproximavam-se de Harnink. Seus extintos
tiraram-lhe a razão. A primeira reação ao contato com o
tentáculo foi o de um animal acuado. Sem alternativa, pelo
menos assim pensava, pulou na criatura com a ferocidade
primitiva de um grande caçador das savanas. Com suas
garras, procurava retalhar os tentáculos. Poucos estragos
podiam ser percebidos neles, mas suas patas estavam
extremamente feridas. Suas unhas desapareceram, dando
lugar a pontas ensangüentadas. Seus músculos das patas
dianteiras perdiam as forças. Sua mandíbula já perdera os
dentes na tentativa de agredir os bizarros tentáculos. Robôs
vindos do transporte tentaram resgatá-lo. Não conseguiram.
Um grande tentáculo, com uma velocidade absurda,
empalou o transporte, provocando o colapso da nave. Este
explodiu, matando definitivamente as esperanças dos
espectadores desta dança mortal.
Com a boca ensangüentada, quase o sufocando e envolvido
praticamente pelos ásperos tentáculos, ainda podia-se ouvir
alguns sons semelhantes a palavras.
— Tenho... deeee... sobrevi... ver...
Suas pupilas se estabilizaram sem apresentar movimento aos
estímulos luminosos. A vida deixou aquele corpo para
sempre. Como uma besta comandada por ordens repetitivas,
um tentáculo levou o corpo de Harnink à camada inferior,
enterrando-o sob camadas de outros tentáculos. Um túmulo
indigno para um dragão digno de sua espécie. Um herói, um
cientista, um dragão que nunca negara ajuda aos seus.
O salão branco em peso não acreditara na situação absurda
vista por todos. Aquilo estava em um patamar absurdo e
assustador ao mesmo tempo. O desespero tomou conta da
mente de todos os presentes no salão. A criatura, mostrada
pelo visor, crescia em progressão geométrica. Precisavam
tomar providências rápidas, pois a criatura aproximava-se da
fronteira da destruição original, ameaçando as áreas intactas
do planeta.
— Isso saiu totalmente do controle. Precisamos achar uma
solução definitiva — disse Tlüogodärami. —Alguma
sugestão?
— Existe uma possibilidade, a princípio. Temos alguns
sistemas de remoção de rochas à base de raio laser
extremamente potentes. Poderíamos usar para combater
essa criatura. Pelo observado até agora, ela se regenera
rapidamente. Os lasers poderiam ser utilizados para destruí-
lo até seu ponto inicial. O problema é que eles estão fora das
fronteiras do sistema solar, e levaria dois dias para chegarem
até aqui. Poderíamos usar todos os robôs celulares para
manter a massa estável até a chegada dos sistemas a laser —
sugeriu uns dos dirigentes de Tidianvinst.
— Cada segundo é muito importante. Devemos mandar
todos os robôs celulares para conter aquela criatura — disse
Krueur.
— Então o que esperamos? - disse Tlüogodärami.
— A ordem já foi dada e os robôs celulares estão a caminho
— respondeu o dirigente.
— Não podemos deixar isso barato, em memória dos que
perderam a vida nestes fatídicos dias — disse Tlüogodärami.
— E o mínimo que podemos fazer. Vamos vencer este mal.
"Vamos, sim!", ouvia-se a concordância de todos.

As massas de robôs celulares chegavam aos poucos,
tentando envolver a gigantesca criatura. A impressão de
fumaça esverdeada provocada por aqueles robôs cobriu a
criatura. Só a fumaça verde era vista nas fronteiras
devastadas. A contenção durou pouco tempo. Cada vez mais
robôs celulares chegavam ao esforço de combate, porém
tornavam-se inúteis na função de estabilização. A criatura
continuava, não com a mesma aceleração, a crescer. Os
pequenos robôs faziam suas coreografias aéreas envolvendo
a criatura da melhor maneira possível, mas aos poucos seus
resultados tornavam-se insatisfatórios. Enquanto a fumaça
verde impedia da melhor maneira possível o avanço da
criatura, um êxodo foi promovido às pressas daquelas áreas.
Relatos chegavam descrevendo invasões por tentáculos nas
áreas inferiores das cidades. Uma situação demasiadamente
inesperada. A expansão não era só horizontal, mas vertical
também. Aos poucos a fumaça verde de robôs celulares foi
diminuindo, e a expansão da criatura voltou com força total,
como se perseguisse o tempo perdido. Não havia mais robôs
celulares suficientes para contê-la. Parecia que nada dava o
resultado esperado. As torres, envolvidas pelos tentáculos,
desabavam uma por uma. Conforme crescia, mais destruição
e mais velocidade alcançava a criatura. Em pouco mais de
seis horas, metade do planeta padeceu deste terrível mal.
Naves e mais naves retiravam-se do planeta Tidianvinst.
Aqueles com chance de sobreviver fugiam de qualquer jeito.
Não havia tempo para ligações materiais. A vida estava em
primeiro plano. Apesar de muitas vidas salvas, a maioria da
população sucumbia aos prazeres da criatura. Muitos
morreram dessa maneira. Por mais sofisticada que fosse a
tecnologia dos dragões, esta não foi páreo para a criatura,
tornando- se ineficiente para promover um êxodo maior. O
fantástico planeta
Tidianvinst perdia totalmente suas características. A cada
segundo, milhares de anos de trabalho desapareciam
absurdamente.

Krueur olhava abismado para aquilo tudo. Não tiveram
tempo nem de executar o plano com os lasers. Agora era
inútil pensar nessa alternativa. Todos aguardaram passivos
enquanto recuperavam-se do impacto dos acontecimentos.
A grande tela não transmitia mais nada. A incerteza tomou
conta dos participantes do salão branco. Algumas horas
depois, adentravam no salão os dragões dirigentes de
Tidianvinst. Haviam escapado antes da chegada da criatura.
As ordens a partir daquele instante seriam proferidas
exclusivamente do planeta Niiefgönst.
— Algo tem de ser feito! Não podemos ver nosso mundo
destruído sem fazermos absolutamente nada que possa deter
esses terríveis fatos — fazia um breve discurso um dos
dirigentes vindos de Tidianvinst.
-Vamos pensar em algo. Nossos melhores especialistas estão
concentrados para determinar uma solução final — disse
outro dirigente.
— Apresenta-se a nós uma decisão difícil, neste momento —
comentava Tlüogodärami. — Agir sem pensar, com grande
chance de fracasso ou elaborar um plano minucioso e nosso
tempo se esgotar? Precisamos achar um meio-termo. Algo
eficiente e rápido.
— Este é o ponto crucial. E apresento outra questão —
comentou Krueur —, será que essa coisa que destruiu
metade de nosso planeta não está escondendo mais
nenhuma ardilosa surpresa?
— Não entendi — disse Tlüogodärami.
— Imaginemos: de onde isso saiu? Com certeza é uma
criatura orgânica. E como todo o organismo a reprodução é
uma característica natural. Agora, se essa criatura se
reproduzir, não só o planeta Tidianvinst estará ameaçado,
mas todo o nosso sistema e nossa própria raça.
— Seu ponto de vista é ousado, meu jovem Krueur Aerok —
disse Tlüogodärami. — Meu convívio breve com você
demonstrou a relevância de suas palavras. Não poderemos
descartar essa possibilidade. Tentaremos a destruição da
criatura antes que suas palavras se concretizem.


CAPÍTULO 10
QUARTO DIA

O quarto dia, após a catástrofe, chegou não trazendo boas
notícias. O planeta havia sido totalmente envolvido. O
parque industrial produtor da atmosfera fora destruído
totalmente. Tornara-se, novamente, um planeta morto.
Morto como em sua origem. O trabalho de centenas de anos
para torná-lo um verdadeiro lar fora ignorado pela besta
originária de algum ponto do universo. O planeta em si,
apesar de não possuir mais atmosfera, criou a aparência de
uma entidade única. O grande entrelace de tentáculos
pulsava dando-lhe a aparência de vida. Uma entidade de
tamanho planetário.
Antes de ser totalmente tomado pela criatura, os últimos
sobreviventes foram retirados. A situação precária do
planeta não permitia a existência da vida. Todos os
sobreviventes foram alocados nas várias colônias espalhadas
no sistema solar. O moral da civilização foi levado ao grau
mais baixo. Uma mistura de prostração e ódio tornaram-se
os sentimentos mais comuns. A não compreensão daquele
evento dominava o imaginário dos sobreviventes. Dos seus
oito bilhões de habitantes, menos de um bilhão sobreviveu.
Um verdadeiro holocausto dizimou a maioria dos dragões.
Um dia para nunca mais ser esquecido.
Os acontecimentos tornaram a cidade de Yfunst Ghiar a
capital provisória do mundo dos dragões. Essa cidade
recebeu o máximo que sua capacidade permitia de
habitantes exonerados de seus lares. Apesar do esforço e da
escassez de lugares, foram recebidos como se ali tivessem
nascido. A receptividade e a solidariedade foram
fundamentais para a continuidade dessa civilização. Com o
advento do completo domínio promovido pela entidade
surgida da rocha espacial, providências foram tomadas. Uma
nova reunião, com o máximo de dragões presentes, foi
convocada. Na cidade havia um lugar onde muitos dragões
poderiam se acomodar e assistir à reunião. Quanto mais
deles comparecessem, melhor seria. Esse lugar daria origem
à ampliação da cidade, e o local estava ainda em sua estrutura
de escavação. A pedra escavada rusticamente destacava-se
em suas paredes. Robôs e máquinas maiores limpavam e
preparavam um sistema de som para que todos pudessem
ouvir. Um tablado gigantesco se sobressaía no centro do
gigantesco salão. Os dirigentes, tecnocratas, Tlüogodärami e
sua equipe estariam nesse tablado, juntamente a ilustríssimos
componentes da sociedade dos dragões. Uma grande tela foi
trazida para o monitoramento do planeta. Esse
monitoramento estaria na planilha de trabalho das estações
espaciais próximas a Tidianvinst. Em menos de doze horas o
local tornou-se uma realidade viável. Transportes estavam à
disposição para levar os interessados. Rapidamente o salão de
pedra encheu-se de dragões. A maioria acomodada
rusticamente não se incomodava com a situação. O dever os
chamava. Aquela era uma situação onde ninguém poderia se
abster. A abstenção não passava pela mente de ninguém,
apesar do duro impacto sofrido.
Meia hora depois dos últimos lugares serem preenchidos no
tablado, a reunião teve início. Tlüogodärami foi escolhido
para fazer uma breve exposição da situação e acalmar os
corações dos dragões ali presentes. O velho dragão, tão
respeitado pelos seus, aproximou-se do centro do tablado.
Olhava com emoção os milhares de dragões presentes. Fez
um gesto com a cabeça, olhando para baixo, suspirou como
que sugando energia vital e iniciou seu discurso.
— Meus irmãos dragões. Não preciso dizer que passamos
pela maior crise de nossas existências. Nem as guerras, a
fome e as doenças genéticas anteriores à formação de nossa
civilização foram tão terríveis como estes últimos quatro
dias vividos por todos nós. Muitos sofreram mais que outros.
Mas o sentimento de revolta e dúvida são os mesmos. Agora
é o tempo de resolvermos este problema e reconstruirmos
nossa grandiosa civilização. Quando chegarmos ao fim desta
desgastante situação, poderemos chorar pelos mortos e por
nossas perdas. No entanto, agora é o período de lutarmos
por nossa sobrevivência. Somos, há muitos anos, nossas
próprias criações. Alteramo-nos geneticamente para
fugirmos dos desígnios da natureza, da mutação não
desejada, da extinção. Sobrevivemos a tudo isso e somos
vencedores nessa existência. Prolongamos nossas vidas ao
máximo. Mortes foram fenômenos naturais raramente
existentes. Só os extremamente velhos podiam se dar ao
luxo de morrer ou de ser reconstruído. Em quatro dias nossa
realidade mudou. Esta hedionda entidade ceifou vidas e mais
vidas. Por isso, peço aos que possuem o conhecimento que
participem e sugiram idéias. Todos nós seremos responsáveis
por nossa sobrevivência a partir de hoje. Não perderei mais
tempo, pois este é curto e cada segundo representa uma
chance a mais de vivermos finalmente a paz e prosperidade
tão almejadas e que acreditávamos tê-las até quatro dias
atrás. Comecemos, então, nosso debate.
Um silêncio respeitoso surgiu após as palavras de
Tlüogodärami. Todos os dragões estavam refletindo sobre a
nova realidade. A popularidade de Tlüogodärami superava
qualquer idolatria sem sentido. Seu simbolismo era uns dos
pilares da identificação dos dragões com sua cultura, com
seu grupo. O cargo exigia o dragão mais especial. O dragão
que se encaixasse perfeitamente nas características e ideais
do Tlüogodärami original. Cessado o momento de reflexão, a
reunião teve seu verdadeiro início. As imagens transmitidas
da superfície assustavam cada vez mais. O caos estava
instaurado. O planeta parecia completamente perdido. Os
dragões desenvolveram uma cultura pacífica e nunca haviam
desenvolvido alguma arma ou sistema de defesa capaz de
deter o inimigo surgido em suas atuais realidades. Tudo era
ditado por seu pequeno universo. Suas tecnologias
funcionaram perfeitamente durante todos os anos de suas
existências no sistema solar. A prova derradeira, aquilo que
seria a comprovação de sua superioridade, tornou-se inútil
até o presente momento da reunião.
Krueur observava os diálogos e via seus compatriotas
perdidos em seus devaneios. A suspeita de uma possível
reprodução daquela criatura tornou-se uma possibilidade
inegável. Tal possibilidade grudara na mente de Krueur. Não
conseguia pensar em outra possibilidade mais sinistra do que
esta. Para desviar seu insistente pensamento concentrou-se,
ao máximo de sua capacidade, na reunião. Plesk, o dirigente
do planeta Niiefgönst, discursava. Era um dragão bem
pequeno para os padrões. Possuía menos de dois metros de
altura. Sua potência vocálica compensava sua baixa estatura.
A voz ecoava pelo salão improvisado, transmitindo força e
confiança. Podia-se perceber que Plesk era um dragão muito
velho. Geralmente esses cargos mais altos estavam des-
tinados aos mais velhos. A hierarquia dos dragões tinha uma
profunda ligação com a idade. Idade e conhecimento, pois
estes andavam juntos. O mais velho e sábio de sua área de
atuação assumia um cargo desse tipo. O estilo simplório de
política encaixava-se bem na cultura dos dragões. Sua
capacidade de harmonia social chegou ao ápice. Essa ca-
racterística já era uma herança das 17 nações. Quando seus
conflitos de cultura e tradição cessaram, construíram a
sociedade mais organizada das galáxias. E seu pilar máximo
estava na consciência de cada dragão. O dragão tornou-se
um profundo contribuinte da harmonia existente. Cada um
fazia sua parte, quase que naturalmente, para a manutenção
de sua sociedade. Liberdade de pensamento sempre existiu,
porém a sociedade, para cada dragão, sempre foi prioridade
em suas vidas. Desvios de caráter, rebeldia e crimes
deixaram de existir conforme a sociedade seguiu uma
evolução tecnológica. O que era raro em tempos primordiais
tornara-se extinto nos últimos cinco mil anos. Plesk possuía
escamas num tom de marrom bem simétrico. Contudo
percebia-se um desgaste nas escamas, característico dos
dragões muito velhos. Elas estavam bem opacas. Prova final
de sua idade avançada. A eloqüência de suas palavras
demonstrava sua revolta pessoal com a situação vivida por
todos. Discursava sem parar, com a energia de um jovem
dragão.
— Dragões de todas as partes de nosso sistema solar estão
hoje presentes aqui para definirmos uma resolução definitiva
para este caos, esta terrível ameaça que destruiu nosso
querido planeta, sede de nossa civilização. O planeta
Niiefgönst tem orgulho de acolher quantas vítimas forem
necessárias. Mas nossa realidade demonstra que o que
sobrou de nossas colônias não dará conta de tantos
refugiados. Precisamos priorizar a alocação desses dragões.
Por isso chamo o honradíssimo dirigente de ciência e
conhecimento para expor as possibilidades para esta questão
— Plesk estendeu sua pata dianteira para chamar Okotanst, o
dragão dirigente de ciência e conhecimento.
— Acredito, e serei bastante sucinto, que a melhor
alternativa é colocar esses dragões o quanto antes em estado
vegetativo. A hibernação torna-se a opção mais adequada.
Quando estivermos com nossa capacidade recuperada,
poderemos retirá-los desse estado para que se tornem
produtivos novamente — disse Okotanst. Seu tom
esverdeado também transmitia sua idade. Como Plesk, devia
ser muito velho. Como prometido, fora sucinto em seu
pensamento.
— E como faríamos isso? Precisaremos de pelo menos meio
bilhão de cápsulas para atender a essa demanda — disse
Virters, o dirigente supremo do sistema solar.
— Teremos de mobilizar o parque industrial de nossas
colônias para suprir essa necessidade. Acredito que em um
mês poderemos estar com todas prontas. Mandaríamos os
dragões aos locais de fabricação espalhados pelo sistema e lá
permaneceriam até dias mais felizes — respondeu Okotanst.
— Então acho que ninguém discordará dessa alternativa,
certo? Não podemos perder muito tempo - disse Virters com
suas barbatanas compridas pendentes em seu queixo.
Ninguém no salão refutou a idéia de Okotanst.
Virters comunicou a ordem a alguns dragões próximos. Estes
dirigiram-se para os comunicadores próximos ao tablado.
Comunicavam as outras colônias sobre as decisões tomadas.
Enquanto faziam suas tarefas, a reunião continuava.
Tlüogodärami levantou-se de sua posição e dialogava com
seus colegas de reunião.
— Precisamos decidir as alternativas para salvar Tidianvinst
— disse Tlüogodärami. — Há alternativas, com certeza. Só
precisamos achá-las.
— A pergunta que me faço é a seguinte, honorável
Tlüogodärami: como destruir essa criatura com incrível
capacidade de regeneração? — perguntava Okotanst.
— Sim! Também me faço essa pergunta — disse Virters.
— Minha pergunta é estritamente retórica, meu caro Virters
— argumentava Okotanst. - Minha intenção é provocar
nossas mentes. Vejam bem, os robôs celulares foram inúteis
contra a rocha. Esta demonstrou ser feita de um material
extremamente resistente. Todavia, os tentáculos podem ser
destruídos, só que sua regeneração é absurdamente rápida.
Precisamos usar uma alternativa que destrua toda a estrutura
de tentáculos a ponto de não haver tempo de regeneração.
Nossa sorte, por assim dizer, é que nosso alvo é restrito. Cito
aqui algumas alternativas para eliminação. Sistemas a laser
poderiam ser utilizados no planeta em vários pontos
diferentes, eliminando a criatura. Em segundo lugar,
poderíamos utilizar micro-ondas para desestruturar sua
composição; e, em terceiro, utilizaríamos refletores solares
para aquecer o planeta a ponto de matá-la por completo —
Okotanst encarava profundamente os dirigentes ali
presentes demonstrando em seu olhar certa desilusão com
suas alternativas. — Obviamente precisaríamos de bastante
tempo para armar esses esquemas. Nossa sorte é que a
criatura não tem mais espaço para expandir-se. Acho que
teremos tempo de sobra para esse feito.
— Tenho uma questão — expunha Tlüogodärami. — Meu
assistente, Krueur Aerok, levantou-a e demonstra-se
extremamente plausível. Estamos lidando com uma entidade
aparentemente orgânica e se essa criatura tiver a capacidade
de se reproduzir? E se a aquela rocha era um mero "ovo"?
Nossas conclusões sobre com quem estamos lidando são
profundamente irregulares e imprecisas. Convenhamos, não
sabemos com o que estamos lidando. Não sabemos ainda. A
situação aconteceu rápido demais.
— A própria expansão da criatura pode ser caracterizada
como uma forma de reprodução — rebateu Okotanst.
— Não quero discordar de seu conhecimento. Devemos nos
preparar para tudo — argumentou Tlüogodärami.
— Mesmo que a alternativa de seu assistente torne-se
realidade, primeiro devemos refletir um pouco. De todas as
criaturas conhecidas, sabemos que os sistemas de
reprodução são profundamente complexos. O desta criatura,
se semelhante ao exemplo de seu limiar, deverá levar algum
tempo — Okotanst fazia gestos tranqüilos enquanto
argumentava com Tlüogodärami. — Claro que devemos nos
preparar para tudo, ilustríssimo Tlüogodärami, mas esta
provavelmente é a última de nossas preocupações.
— Devo discordar do honrado dirigente. Este é um problema
grave, sim — disse Krueur. — Uma vez essa criatura
espalhando-se, quais são as alternativas de sobrevivermos?
Não precisa ser um especialista para saber que nossas
chances são nulas.
Todos olharam com espanto a audácia do jovem dragão.
Gestos de reprovação partiam de todos os cantos. Apenas
Tlüogodärami apoiava seu assistente. Aprendera que aquele
jovem possuía uma sensibilidade para calcular riscos. Suas
palavras não eram meros devaneios juvenis. Apesar de não
haver reprovações verbais, o clima ficou desagradável.
Krueur sentiu a reprovação no ar e resolveu se abster de
fazer qualquer outro comentário.Tlüogodärami dirigia-se aos
dirigentes, demonstrando profundo descontentamento com
a intolerância ao jovem dragão. O breve nervosismo deu
lugar à calma necessária à continuação dos debates.
Tlüogodärami, apesar de restabelecido de sua pequena
revolta, resolveu insistir um pouco mais.
— Conjeturemos um pouco. No caso de esta criatura
reproduzir- se à semelhança de seu início, quais seriam
nossas alternativas? — um silêncio predominou por alguns
instantes. Este foi quebrado pela voz aguda de uns dos
dirigentes.
— Talvez haja uma alternativa — disse o dirigente.
Kranst era quem se manifestava. Seu cargo era o de dirigente
de energia. Um sábio dragão como todos os ali presentes, no
entanto, sua aparência demonstrava um ser com menos anos
que os demais. Kranst ganhou fama no passado por
desenvolver os sistemas atuais de energia do sistema solar.
— E qual seria essa alternativa? — perguntou Virters.
— Sim, digníssimo dirigente, exponha suas idéias —
encorajava Plesk.
— Permitam que ele se expresse — recomendou
Tlüogodärami.
Kranst dirigiu-se para o centro do tablado, acomodando-se
da melhor forma possível. Com a pata no queixo,
demonstrando reflexão, começou a falar.
— Procurando nas crônicas da fundação de Tidianvinst,
podemos verificar que os fundadores trouxeram do planeta
Dianvinst a seguinte tecnologia: fissão nuclear. Eram usinas
alimentadas por material radioativo. A energia necessária
para a fundação foi retirada desta tecnologia, hoje
ultrapassada. A grande questão é que essas usinas nunca
foram desativadas totalmente. Localizam-se nos locais mais
profundos das cidades de Tidianvinst. Cada uma tem seu
antigo dispositivo. Minha idéia 6 a seguinte e apenas a vejo
como solução desesperada no caso de a teoria do jovem
Krueur se confirmar e não tivermos tempo de agir de outra
maneira. Essas usinas podem ser ativadas de qualquer lugar
do sistema solar. Pelos dados que tenho, continuam intactas,
pois a criatura não chegou ainda em patamar tão profundo.
Desencadearíamos uma reação nuclear fazendo com que o
planeta fosse totalmente devastado. Garanto que nada
sobraria da criatura. Contudo temos algumas ressalvas que
devo expor. A primeira seria a contaminação do planeta
inteiro. Levaríamos anos para descontaminá-lo. A própria
reação poderia durar alguns anos, isso seria um sério
problema. A segunda, se errarmos os cálculos, o planeta
poderá ser destruído em trilhões de pedaços. Acredito que
em caso extremo, a alternativa apresentada é aceitável.
— Aceitável? — resmungou Virters.
— Sim!
— Perderíamos o planeta!
— Evitaríamos nossa completa destruição — comentou
Kranst.
— Entendo o que o dirigente Kranst quer dizer. Não há
bônus sem ônus. Se preciso for, deveremos considerar com
respeito essa alternativa — argumentava Tlüogodärami.
— Mas isso é extremo demais, Tlüogodärami — contra-
argumentou Virters.
- Extremo demais? Extremo demais seria colocar nossa
espécie em perigo por apego a um planeta condenado —
Tlüogodärami demonstrava expressões muito sérias. Estas
últimas palavras fizeram o dirigente supremo e os demais
pensarem sobre a possibilidade.
— Tudo bem, mas só o faremos como última alternativa —
disse finalmente Virters. — Nós ainda possuímos uma gama
de possibilidades. Portanto, não percamos a esperança.
Continuaram seus debates, discutindo problemas menores.
O público participava ativamente. As primeiras providências
foram tomadas e aguardavam olhando as imagens vindas de
Tidianvinst.

Com um pulsar orgânico e repulsivo, o planeta Tidianvinst
vivia sua nova realidade. O emaranhado de tentáculos seguia
fazendo espirais, atropelando outros emaranhados. O
aspecto orgânico era evidente.
Como uma massa única, o planeta em sua superficialidade
assemelhava-se a um único organismo gigantesco. O local da
queda já não podia ser localizado a olho nu. Os vestígios de
uma grande civilização muito menos. Apesar de a atmosfera
ter sido destruída, em função do não funcionamento das
máquinas responsáveis pela produção de ar, uma suave e
nova atmosfera pairava sobre a nova superfície, possuindo
uns cinco metros de altura. A criatura produziu seu próprio
meio ambiente. Gases dos mais diversos tipos compunham a
nova atmosfera. Esta, por sua vez, lentamente, aumentava
seu espaço. Aparentemente era este um processo lento da
criatura outrora rápida em suas surpresas.
No final do quarto dia a vida praticamente estava estagnada
naquele planeta. Ledo engano. Pequenos redemoinhos feitos
totalmente de tentáculos começaram a aparecer em todos os
pontos do planeta. Um por um faziam aberturas ritmadas.
Abre e fecha, fecha e abre. Assim aqueles redemoinhos
comportavam-se. Direita, esquerda, não havia propriamente
um padrão em seus comportamentos. Um tentáculo, como
surgido de um truque de mágica mambembe, brotava de
dentro dos buracos oscilantes. Os tentáculos cresciam até
fecharem completamente, com suas estruturas corpóreas, as
fendas produzidas pelos respectivos redemoinhos. Nas
pontas dos tentáculos, movimentos peristálticos embalavam
ao ritmo de um vento inexistente. Um inchaço na ponta
interrompeu os movimentos. A própria estrutura do
tentáculo passava a impressão de rigidez naquele momento.
As pontas romperam-se e as tiras lembravam pétalas de
flores estranhas. No centro do tentáculo, uma espécie de
pedra apareceu. Uma pedra semelhante ao objeto vindo do
espaço e provocador da catástrofe em Tidianvinst. Robôs
aéreos sobrevoavam o novo fenômeno. Todas as imagens
foram registradas por seus receptores e transmitidas
diretamente ao planeta Niiefgänst. A criatura, como que
profetizada por Krueur, cumpriu a "profecia". As palavras do
jovem dragão confirmaram-se na realidade e aquilo não era
desejado por ninguém naquele salão. Seu poder de oráculo
estava fundamentado simplesmente em um pensamento
racional e lógico. As vidas sofisticadas dos velhos dragões
tiraram-lhes a perspicácia, os instintos necessários para
deduções daquele tipo. As quantidades excessivas de
informações não foram absolutamente necessárias às
deduções tão simples feitas por Krueur Aerok.
As imagens chegavam, em tempo real, ao grande monitor
instalado no improvisado salão da cidade de Yfunst Ghiar.
Todos os dirigentes e dragões existentes no recinto olhavam
espantados, ora para o monitor, ora para Tlüogodärami. Este,
por sua vez, esboçava um pequeno sorriso de satisfação. Não
pela catástrofe confirmada, mas pela ironia do destino. Suas
soberbas não permitiram compreender a simplicidade da
verdade. Não acreditavam no que viam diante dos olhos.
Todos pensaram, por poucos segundos, em Krueur e o
descrédito dado a ele horas antes.
— Nossos maiores temores se confirmaram — disse
prontamente Tlüogodärami.
— Deixamo-nos cegar pela falsa esperança de estabilidade da
criatura — disse Plesk.
— Não nos resta alternativa nenhuma, a não ser a que eu
sugeri — ressaltou Kranst.
—Vamos nos acalmar, dragões. Temos de pensar em todos
os riscos. E se explodirmos Tidianvinst e a criatura persistir
em sua jornada de destruição? — disse Virters.
— Isso eu posso garantir. Seja qualquer um dos resultados
citados, nada sobreviverá a essa reação em cadeia —
argumentou Kranst.
— Devo lembrá-los que o quarto dia está terminando e
medidas rápidas e certeiras devem ser tomadas —
Tlüogodärami solicitava aos demais ainda demonstrando
calma.
O público presente no salão improvisado manifestava-se a
favor da destruição. Era a única chance que tinham para
terminar, de uma vez, com aquele pesadelo. Influenciados e
até convencidos, os dirigentes aceitaram a proposta no
desespero dos fatos. Não poderiam perder mais tempo.
Todos sentiam uma exaustão extrema. Uma sensação de
incerteza predominava naquele salão. O fracasso, mais uma
vez, não poderia ser permitido. As vidas restantes, as vidas
que dariam origem ao recomeço da civilização dos dragões,
não poderiam ser perdidas por orgulho ou preconceito. A
individualidade estava longe do pensamento de todos. O
grupo deveria sobreviver. A decisão foi a mais extrema
tomada até então.
A reunião foi encerrada. O quinto dia começara. O público
debandou da área rapidamente deixando-a vazia. Os
dirigentes, recomendado por Kranst, seguiram rumo à
estação de energia existente no planeta Niiefgönst. Lá
encontrariam os mecanismos necessários para lazer o que
tinha de ser feito. Havia uma nos limites da cidade, bem nas
profundezas das estruturas citadinas. Chegando lá, o
dirigente apresentou-se ao responsável pela estação. A
equipe existente se prontificou a ajudar no que fosse
necessário.
— Espero que façamos o melhor para nosso povo —
lamentava Virters.
— Estamos fazendo a coisa certa, meu caro Virters —
Tlüogodärami consolava o contrariado Virters.
Kranst procurou o sistema computacional da estação de
energia e começou a fazer todos os procedimentos
necessários para a execução da tarefa. Levaria algum tempo,
pois uma reação daquela não era tão simples de executar.
-Você demonstrou ser fiel aos seus pensamentos, Krueur. E
isso poderá salvar seu povo — disse Tlüogodärami ao seu
novo assistente.
— Não fiz mais que minha obrigação de cidadão de uma
civilização que me deu tanto — Krueur olhava comovido
para Tlüogodärami.
—Você fez mais do que pensa, meu jovem. Você resgatou a
essência do pensamento de Mist Tlüogodärami. Um dragão
desacreditado que só teve o devido reconhecimento muitos
anos mais tarde. De certa forma você conseguiu aquilo que
nem o primeiro Tlüogodärami conseguiu.
Krueur, que era um contestador amador da própria cultura
de seu povo, tornara-se nesses últimos cinco dias muito
próximo dos acontecimentos e da própria cultura em ação.
A ironia disso tudo lhe promovia uma sensação de conforto.
Só não era uma sensação completa porque compartilhava da
dor e das perdas de seus compatriotas.
Uma hora depois, Kranst conseguira programar todos os
procedimentos para a reação das usinas nucleares. Naqueles
instantes finais, todos se entreolharam, receosos ainda do
que fariam. Respiraram fundo. Tentaram recriar o melhor
dos otimismos. Neste último instante, todos balançavam suas
cabeças positivamente. Kranst concentrou-se e pronunciou
a ordem ao sistema computacional.
— Pode iniciar a reação.

CAPÍTULO 11
Último Dia

No espaço, numa distância próxima a Tidianvinst, brilhava,
iluminado pelos raios do sol, um dos grandes projetos de
engenharia da grande raça dos dragões. Vagando pelo vácuo,
havia uma estrutura fenomenal. Uma grande torre projetava-
se em uma de suas pontas. Larga em sua base, afilava-se cada
vez mais chegando ao ponto mais alto. Lembrava uma
cidade ao estilo dos dragões; uma cidade flutuante. Não
possuía, obviamente, a proporcionalidade nem a riqueza de
detalhes de uma cidade construída em um planeta, mas a
semelhança, na estrutura básica, era incrível. De sua base
larga, projetava-se para baixo uma meia esfera oval,
lembrando a metade de um ovo de dragão. Sua tonalidade
prateada dava-lhe uma beleza incomparável, principalmente
iluminada pelos raios vindos do sol. Imperceptível, seu
movimento rotatório aumentava o efeito de seu brilho. A
estação espacial Orgada transformara-se numa especial
"obra-prima" do mundo arquitetado pelos dragões.
Os acontecimentos e as fatalidades ocorridas em Tidianvinst
tiveram, na bela estação prateada Orgada, o mesmo impacto
emocional igualmente sentido em todas as colônias do
sistema solar. Todavia, a rotina fora mantida em função da
possível necessidade de ajudar o planeta natal. A única
anormalidade nesses cinco dias foi apenas o aumento do
tráfego constante de naves de refugiados, utilizando a
estação como entreposto. Ali, as rotas mais adequadas seriam
projetadas para melhor orientar os pobres sobreviventes. A
vida na estação seguia, para o estilo dos dragões, padrões
rígidos. Essa rigidez consistia na rotação de turnos de
trabalho, tripulação dividida em quatro grupos, cada um
destes sendo responsável por um dos turnos da estação. A
voluntariedade desse povo fazia a vida circular com
normalidade, mesmo existindo um aumento na rigidez.
O quinto dia da tragédia começou como qualquer outro. O
grupo destinado ao específico turno assumia suas funções,
como sempre, na estação Orgada. A rotina ocorria conforme
o esperado. Em uma fração de segundos essa harmonia
mecânica produzida por seres orgânicos destruiu-se
totalmente pelo som de um alarme. Todos os dragões
correram para os comunicadores mais próximos. Sabiam que
o alarme sonoro daquele tipo representava algum problema
grave. Os outros componentes dos grupos restantes saíram
de seus momentos de descanso para atender prontamente ao
inesperado chamado. Os corredores encheram-se de
dragões. Um matiz predominantemente marrom e verde
cobriu todos os cantos da estação. Semelhantes a uma ma-
nada de animais selvagens correndo para terras mais
quentes, dragões apertavam-se nos corredores tornando-os
inadequados para momentos como esses. As passagens
laterais funcionavam como válvulas abertas, aliviando o
excessivo tráfego daqueles seres fantásticos. Ao encontrarem
seus lugares, onde exerceriam suas especiais funções, o
tumulto diminuía expressivamente. Ao chegarem,
procuravam os monitores mais próximos. Nesses monitores
um dragão surgiu e ordenou à estação e a todas as naves
próximas ao planeta Tidianvinst uma retirada imediata para
os respectivos pontos determinados. Especificamente, a
estação deveria ir para as coordenadas 3434 2565 8672. A
ordem consistia, uma vez chegando à coordenada
especificada, em permanecer no local até segunda ordem.
A responsável pela exuberante estação, Janusty, era um
dragão fêmea com o extraordinário dom de comandar e ser
obedecida. Com seus dois metros e meio de altura e uma
tonalidade verde-azulada, conseguia o que queria de seus
subordinados. Sabia dosar perfeitamente o tom de sua voz e
transmitia confiança àqueles aos quais fazia contato. Sua
carga de conhecimento e seu dom de comando faziam-na
candidata perfeita para, no futuro, assumir um cargo de
dirigente no sistema solar. Mas por ser relativamente jovem,
seus passos ainda consistiam em trabalhos menos
chamativos, no entanto, de profunda responsabilidade e
importância. Ao perceber o alarme vindo do quarto planeta,
imediatamente identificou-o como uma coisa desagradável.
Sabia em seu íntimo que o pesadelo em Tidianvinst estava
apenas começando. Certo desgosto e mal-estar tomaram
conta de seu ser por alguns instantes. Não permitiu a
proliferação de tais sentimentos e rapidamente os controlou.
Deveria a todo custo cumprir suas funções exemplarmente.
Não havia margem para fracassos. Munida dessas
convicções, respirou fundo, trincou os dentes por alguns
segundos e seguiu seu caminho até seu posto, onde
coordenaria as ações da estação. Uma das primeiras nos
corredores, Janusty correu imediatamente para o seu posto.
Este ainda estava incompleto, faltando muitos dragões,
porém, em menos de cinco minutos, todos os postos
subordinados diretamente a ela foram preenchidos por todos
os dragões responsáveis de todos os turnos. Quatro dragões
especialistas ocupavam o lugar de um. Era praxe nesses
momentos a presença de todos os especialistas em seus
postos, mesmo os com turnos vencidos. Com as ordens
dadas, só restava a Janusty e a sua tripulação executá-la com
maestria.
— Posicionando a estação à direção das coordenadas 3434
2565 8672 — ordenou Janusty.
Sim, senhora!, ouviam-se alguns dragões.
Sim, senhora!, ouviam-se todos os subordinados.
— Ativar todos os propulsores da estação Qrgada — Janusty
observava o comportamento firme de sua tripulação mais
próxima com seus olhos verdes de dragão.
A estação tinha dois propulsores visíveis em sua estrutura.
Ambos possuíam a função básica de corrigir a órbita da
estação e ajudar no suave movimento rotacional. Esses dois
propulsores eram infinitamente inferiores comparados ao
poder de velocidade da estação. Sob a camada polida da parte
inferior desta, a que lembrava um ovo de dragão ao meio,
escondia-se o verdadeiro sistema de movimento. Sessenta
propulsores de última geração encontravam-se abaixo da
estrutura aparentemente desprovida. Com a ordem dada, os
propulsores apareceram. Seus receptáculos abriram-se,
ocultando suas tampas, e, projetando-se dos pequenos
buracos, surgiram os propulsores. Todos saíram, com a
harmonia de uma dança exaustivamente ensaiada, de suas
respectivas aberturas. Como que comandados por uma
entidade inexistente a qualquer pensamento, grupos de
propulsores tomaram posições diferentes. A distribuição dos
posicionamentos fazia parte da manobra da estação Orgada.
A antes monolítica estação tornou-se uma espaçonave
altamente veloz e manobrável. A tripulação trabalhava com
todo o empenho e comprometimento possível e
característico dos dragões. Não fazia o menor sentido para
um dragão não fazê-lo dessa forma. Caso estivesse
insatisfeito com suas obrigações, o descontente tinha total
liberdade para procurar outro serviço que o apetecesse. Ao
modo de uma linha de produção robótica, os dragões
trabalhavam harmoniosamente. As ordens de Janusty eram
seguidas à risca. Seu modo suave, porém firme, fazia as
engrenagens funcionarem. Depois do período mais tenso, e
a caminho da posição indicada, todos, aos poucos,
começaram a relaxar. Um forte sentimento de dever
cumprido tomou conta da estação. Todavia a dúvida rondava
àqueles inquietos seres. O porquê disso era a pergunta do
dia. Sabiam, certamente, que se corria algum tipo de perigo.
O perigo propriamente dito tornou-se uma incógnita sem
resposta breve.
— Qual é o motivo de nosso deslocamento, Sra. Janusty? —
perguntou um dos dragões responsáveis pelo sistema de
propulsão. — Tidianvinst corre algum perigo grave?
— Há o perigo por todos da tal entidade — respondeu com
sinceridade Janusty. — Agora o que fizermos está
intimamente ligado ao nosso contra-ataque.
— Será que resolveremos rápido este problema? -
questionava o dragão.
— Com certeza. Aconteça o que acontecer, nunca
desistiremos de tentar combater aquilo que nos afeta
diretamente. Está em nosso ideário. Nosso glorioso mundo
não foi construído por criaturas covardes — disse a sincera
Janusty.
— Estávamos ameaçados pela entidade? Difícil de acreditar!
Mas se solicitaram nossa imediata retirada, esperemos os
próximos acontecimentos.
— Faço de suas palavras as minhas — Janusty esboçava um
sorriso para o dragão questionador.
O tráfego de naves aumentou, pois muitas continuavam
próximas a Tidianvinst. Muitas delas compartilharam a
posição ordenada para a estação Orgada. Temendo o
desconhecido, pediram asilo provisório à estação. Esse asilo
foi concedido imediatamente pela própria Janusty,
demonstrando sua preocupação com os dragões desgarrados.
Os dragões recebidos provisoriamente na estação
carregavam consigo as dúvidas e os anseios compartilhados
por todos. Dúvidas são mais cruéis que a certeza de alguma
coisa. O tatear no escuro, não sabendo exatamente por onde
andar, aumentava os anseios de todos os dragões, seja no
planeta Niiefgönst, sejam nos que estavam fora. O
conflitante sentimento de confiança contrabalançava as
sensações. Sabiam e confiavam suas vidas aos mais sábios.
Encontravam conforto nisso.Tinham a total convicção de
não estarem sozinhos, mesmo em situações extremadas
como as vividas em Tidianvinst nos últimos cinco dias. A
fuga dos dragões, mesmo a maioria não sabendo em que
patamar se encontrava, foi acionada definitivamente.
De certa forma, o que ocorreu na estação Orgada foi uma
síntese da situação vivida por todos os que se encontravam
perto de Tidianvinst. Guardadas as devidas proporções, afinal
a estação Orgada era muito grande, a semelhança dos fatos
foi muito próxima. Medo, incerteza, preocupação e vontade
de sobreviver estavam na ordem do dia. Por serem uma
civilização muito centrada na própria sociedade, semelhança
de sentimentos e atitudes não tinha nada de extraordinário
para eles.

No planeta Niieigönst, o grupo de dirigentes encontrava-se
diante de uma grande tela, pela qual informações eram
passadas sobre o procedimento executado por eles. Kranst,
dirigente de energia, fazia os últimos ajustes até pronunciar a
ordem final. "Pode iniciar a reação" foram suas últimas
palavras até aquele momento. Indubitavelmente, a incerteza
dominava as mentes exaustas daqueles dragões. As opções
ou alternativas eram extensas em demasia para uma previsão
precisa. A única grande certeza disso estava pautada na total
aniquilação da criatura. Caso, por algum milagre
inexplicável, esta continuasse a existir, nada mais poderiam
fazer para combatê-la. Só uma fuga covarde, talvez, salvasse
alguns dragões. Teriam de viver errando pelo universo,
sempre preocupados com o futuro. A decadência seria a
opção única e exclusiva no caso de a criatura sobreviver.
Viveriam por mais alguns anos até desaparecerem
completamente. Mas essas conjecturas pouco passavam pelas
mentes dos dragões ali presentes. Chegaram a um nível
extremo para resolverem seus problemas e a não solução
deste seria a verdadeira derrota. Não pensavam na
desagradável derrota. Queriam vitória a lodo custo. Mesmo
destruindo seu amado planeta, construído pelos
antepassados mortos e por muitos ainda vivos.
— Demos um passo importante para nossa sobrevivência —
disse Tlüogodärami com seu semblante apaziguador.
— Será mesmo, Tlüogodärami? — perguntou o descrente
dirigente Virters. — Os acontecimentos até agora nos
deixam em desvantagem.
— Nada é indestrutível, meu caro Virters. A energia nuclear
é antiga, está até em desuso por nós, porém é extremamente
destrutiva. Uma das mais poderosas forças "naturais" do
universo. O processo não é natural, claro. A energia aberta
por nós o é — disse Tlüogodärami.
— Tlüogodärami tem total razão — confirmou Kranst. — Se
isso não resolver, nada mais irá. Não estaríamos lidando com
a física de nosso próprio universo. Estaríamos vivendo uma
era louca. Não seria real. Um pesadelo pouco provável.
— Vamos monitorar tudo. Solicitaremos grupos de naves
para analisar o planeta. Tentaremos de tudo. Desistir não está
em nossos planos disse Tlüogodärami. - Como já repeti
várias vezes, chegamos a um ponto extremo. Resolveremos
nosso problema inesperado e renasceremos dos escombros
de Tidianvinst.
— Se houver alguma Tidianvinst para renascermos — disse
Virters. Desculpe-me por meu pessimismo, mas estamos
arriscando demais.
— Arriscando demais? Arriscaríamos se estivéssemos
preocupados em salvar nossa materialidade e não nosso povo
— comentou firmemente Tlüogodärami. — E mesmo
Tidianvinst não sobrevivendo à reação em cadeia, esta
sempre existira como ideal. O ideal dos dragões.
— Tidianvinst foi fruto do trabalho de muitos. Não poderia
desaparecer assim. Não é justo.
— O trabalho daqueles construtores não teria sentido se não
fosse à benesse de todos. O que fazia do planeta ou o que era
não estava centrado em sua arquitetura ou estrutura. Não,
meus amigos. Estava em sua população — discorria
Tlüogodärami. — Portanto, salvando o maior número de
dragões possível, salvaremos aquilo que fez Tidianvinst o
que era.
O assunto transcorreu ainda um pouco. As lamentações
eram inevitáveis. Tratar com o desconhecido provocava
sentimentos dessa ordem. O "tentar novas alternativas"
sempre passava por muitas mentes desconsoladas. Não
poderiam voltar em suas atitudes. O que havia sido feito não
teria mais volta. Agora era esperar pelas conseqüências.
Nas profundezas de cada cidade dos dragões, havia uma
primitiva usina nuclear desativada há muitos anos. Estas
eram controladas pelas unidades maiores. Sua existência e
manutenção ainda no mundo sofisticado dos dragões devia-
se à simples idéia de utilizá-las numa emergência de energia.
Serviam como reserva estratégica. Nunca, em sã
consciência, utilizariam da forma orquestrada pelos
dirigentes. Os últimos fatos os levaram a essa impensável
atitude. Ainda intactas, apesar do resto do planeta sucumbir
à vontade da criatura vinda do espaço, estas receberam a
ordem extrema e começaram seus processos derradeiros.
Uma por uma, entraram em colapso. O calor no local
tornara-se insuportável. As rochas das estruturas começaram
a derreter, formando uma espécie de lava artificial. Não
havia mais volta. As cidades caíam em ruínas e grandes
crateras formavam-se. Os tentáculos entrelaçados
queimavam como se fossem simples lenha. O planeta inteiro
ficou salpicado por pontos incandescentes. Cogumelos de
fumaça brotavam das crateras e dissipavam-se rapidamente
conforme o ar ficava rarefeito. Aos poucos o planeta tornou-
se um simulacro de um sol nascido artificialmente. A
criatura tentava, em vão, reagir ao ataque desconhecido, sem
obter sucesso. O calor chegara a níveis extremos. Dez vezes
mais forte que o calor do sol, nenhuma rocha-ovo
sobreviveu. Semelhantes a carvões incandescentes,
queimavam e pulverizavam-se. Nada da criatura restara
naquele mar de fogo. Uma recriação dos piores infernos tor-
nara Tidianvinst um caldeirão de fogo. O planeta tornou-se
vermelho vivo e não havia sinal de nenhuma forma de vida.
Cinco dias se passaram e a reação provocada pelos dragões
aumentava a cada dia. Sondas robóticas analisavam o planeta
constantemente e imagens eram transmitidas o tempo todo.
A reação não parecia ter fim. O pior passou de especulação à
realidade. As esperanças minguaram absolutamente. O
planeta tornara-se inabitável. O grupo original do grande
salão branco, os mesmos que detonaram o processo nuclear
no planeta Tidianvinst, dissiparam-se, colocando-se em
posições mais úteis. Krueur acompanhava Tlüogodärami em
sua peregrinação pelas colônias. A figura dele, aos olhos de
Krueur, tornava-se cada vez mais diferente do que imaginara
em seu recente passado. Compreendera perfeitamente a
importância, para seu povo, da figura histórica de
Tlüogodärami.Vira na prática o que constatara refletindo. A
esperança nos semblantes dos ajudados por Tlüogodärami
reforçava sua nova visão. Percorreram todas as colônias,
ajudando os refugiados a aceitarem a realidade provisória.
A hibernação começou gradualmente nas colônias.
Conforme as cápsulas saíam das fábricas, os dragões
refugiados diminuíam seus números proporcionalmente. As
instalações estavam prontas. Estas eram lugares
improvisados, como o espaço da última reunião antes da rea-
ção em cadeia. Conforme o tempo passava, melhoravam os
ambientes. A população destinada a este fim era numerosa
demais. Não havia tempo para pormenores. Os dragões
entendiam a situação e havia pouca reclamação. Muitos se
conformavam simplesmente para poder esquecer o
acontecido dos últimos tempos. Tlüogodärami ajudava com
sua presença sempre que possível. Discursava para levantar
o moral daqueles sofridos dragões.
"Meus amigos dragões. Cada compreensão e aceitação da
nova realidade é exatamente a ajuda de que precisamos. Por
não podermos manter uma infra-estrutura adequada para
todos, precisamos que alguns se sacrifiquem por um curto
período. Assim que pudermos, todos voltarão a uma rotina
próxima do normal. Eu, Tlüogodärami dos dragões, prometo.
Nossa civilização sempre se baseou na confiança. Nossa
essência é fundamentada na confiança e na união. Por isso
faremos o melhor para sanar este terrível destino que nos
flagela incansavelmente. Não desistamos simplesmente de
viver, não desistamos de nós mesmos".
Tlüogodärami sempre repetia estas palavras aos grupos. Se
não pessoalmente, fazia-as serem repetidas em seu próprio
nome. Nesse momento de crise, sua imagem se tornou mais
forte do que nunca. Na escuridão, na incerteza, os
funcionais dragões conseguiram o conforto e a força
necessários para continuarem mediante a imagem
encorajadora de Tlüogodärami.
Um chamado inesperado quebrou a rotina de Tlüogodärami.
Imediatamente fora chamado para voltar ao quarto planeta,
capital provisória do sistema solar, para discutirem as
novidades. Solicitou a presença de Krueur, este por sua vez
apresentou-se imediatamente diante de Tlüogodärami.
— Mandou chamar, ilustríssimo?
— Sim, meu caro Aerok.
— O que deseja de mim?
— Algo bem simples, meu jovem. Como você sabe, foste
testemunha ocular de todos os acontecimentos até então.
— Sim, senhor.
— Portanto, acredito que, por algum motivo inexplicável,
você tem o direito de vir comigo novamente ao planeta
Niiefgönst. Convocaram-me para algo importante. Alguma
coisa relacionada a Tidianvinst.
— Estou à sua disposição.
— Prepare-se. A viagem será bem curta.
— Então, se não há mais nada, vou me preparar.
— Até mais tarde, então, meu jovem.
— Até mais tarde, ilustríssimo.
Krueur correu rapidamente para se preparar. Não havia
muita bagagem. Estava em situação improvisada como
muitos. Acompanhar Tlüogodärami exigia uma vida frugal.
Pegou apenas seus objetos mais íntimos e voltou na direção
onde se encontrava Tlüogodärami. O famoso dragão
esperava por seu novo ajudante. Outros dragões voluntários
faziam companhia a ele. Krueur os cumprimentou com um
simples movimento de cabeça e teve seu gesto retribuído da
mesma maneira por todos ali presentes. Embarcaram na
nave exclusiva de Tlüogodärami. O dispositivo espacial era
bem simples, porém a velocidade era bastante elevada.
Como um pássaro de linhas simples, a negra nave recebia
sua importante tripulação.
— Diga-me, jovem Aerok, tem alguma teoria do que se trata
exatamente esta pequena reunião — Tlüogodärami
perguntava com sua simpatia característica.
— Como o senhor disse há pouco, estaremos discutindo
Tidianvinst. Das duas uma: ou o planeta tem salvação e
iniciaremos a futura reconstrução. Diga-se de passagem, uma
alternativa pouco provável.
— Por quê? — Tlüogodärami demonstrava uma curiosidade
profunda.
— Porque os últimos atos em Tidianvinst são irreversíveis.
Radiação, no mínimo, é algo difícil de descontaminar. Em
curto prazo, não adiantaria discutirmos tal alternativa.
— Ah! Entendo. Prossiga, meu jovem.
— Nos resta a segunda alternativa. O planeta está condenado.
Provavelmente saberemos, mais cedo ou mais tarde, as
conseqüências de nossos atos.
— Diga-me sinceramente, Aerok: você realmente
concordava com a alternativa da reação em cadeia?
— Concordei naqueles instantes e concordo até o presente
momento — a nave deu uma leve sacudidela ao levantar
vôo. — Colocamos na "balança da vida" nossas opções e a
vida pesou mais. A questão era desconhecida. Ainda o é.
Fizemos o necessário e estamos vivos. Guardadas as devidas
proporções, creio em nosso sucesso. Aconteça o que
acontecer, nossa civilização preservada é o indicativo desse
sucesso. Precisamos manter esse curso. Pelo menos assim eu
suponho.
— Como sempre, suas teorias são surpreendentes. Não
fogem, contudo, da verdade. Sua suave rebeldia para com
nossos costumes deu- lhe a perspicácia necessária para
analisar os fatos de forma isenta. Sua capacidade de acertos
nada mais é que sua visão quase externa de nosso mundo.
Não leve para um lado negativo minhas palavras. Às vezes
você parece uma criatura estrangeira. Isso não é ruim, pelo
contrário. Apenas consegui isolar simplesmente seu
fantástico dom.
— Serei sincero com o senhor, ilustríssimo Tlüogodärami.
Muitas vezes sinto-me confuso. Nem tudo eu compreendo
bem. Quero dizer: aquilo que tenho refletido. Muitas vezes
sinto um antagonismo interno.
— Aceite uma verdade de um velho dragão, Aerok. Todo o
ser provido de alguma inteligência é a encarnação do
antagonismo. Todos nós somos muitas vezes contraditórios
em si. Não estranhe essa situação. Isso faz parte de nossa
formação, da própria vida. Quando somos mais velhos,
queremos no fundo acreditar na estabilidade, na certeza das
coisas. Esquecemos que muitas vezes as alternativas são
antagônicas. Essas oposições de alternativas, de pensamento,
nos levam para caminhos completamente diferentes. No
fundo de nossos subconscientes, preferimos esquecer tal
contradição. Mas ela está sempre presente, mesmo ignorada.
— Esta é a síntese de minhas questões - refletia Krueur.
— Descanse um pouco, meu jovem. Estes últimos dias
tornaram-se cada vez mais pesados para todos nós.
— Sim, senhor.
Krueur tentou relaxar um pouco. Não conseguia. Seus
pensamentos o tornavam sempre alerta. Acomodou-se em
seu assento. Como a configuração corpórea dos dragões era
peculiar, seus assentos nada mais eram que uma espécie de
mesa anatômica, onde qualquer dragão poderia acomodar-se
deitado de barriga para baixo e suas patas dianteiras
apoiavam-se em suportes próximos à cabeça. A anatomia
desses assentos encaixava-se perfeitamente ao corpo de
qualquer dragão. A posição mais confortável para qualquer
um daqueles tempos esquecidos.
A viagem terminou relativamente rápido. A nave não foi
muito exigida, pois estava próxima do planeta Niiefgönst.
Sobrevoava os desertos vermelhos, com o sol a pino. A
desolação daquele lugar sempre chamava a atenção de todos.
Difícil tornava-se a crença de algo viver naquele planeta
deserto. Em suas entranhas, porém, a vida existia. A
continuação de uma fantástica civilização pulsava nos
subterrâneos de um ponto específico daquele lugar. Uma
grande entrada abriu-se na parte superior da montanha. A
nave entrou sem cerimônia e a entrada fechou-se
instantaneamente. A pressurização estabeleceu-se
novamente e um completo breu tomou conta da área.
Momentos depois, a escuridão foi banida por uma
iluminação forte, dando ao ambiente um matiz especial.
Dragões devidamente uniformizados com belas armaduras
negras recepcionaram os tripulantes da nave. Caminharam
um pouco e foram conduzidos a uma espécie de elevador.
Este rapidamente conduziu a pequena comitiva às
profundezas da cidade. Bem próximo aos limites
construídos, o governo provisório encontrava-se instalado.
Vários dragões oriundos das burocracias de Tidianvinst
trabalhavam naquele lugar. Tlüogodärami foi recebido, após
sua chegada, pelo próprio dirigente Virters. As formalidades
de cumprimentos seguiram seus tradicionais rituais e Virters,
em seguida, levou-os ao seu local de trabalho.
Os dirigentes Kranst, Plesk e Okotanst encontravam-se na
sala de Virters com seus respectivos ajudantes. Jannsky, a
nova dirigente de defesa, encontrava-se ali, também. Uma
bela fêmea para os padrões dos dragões. Maior que a beleza,
sua inteligência destacava-se, tornando essa beleza
secundária. Uma fêmea, acima de tudo, com atitude. A
relação de gêneros na sociedade dos dragões era bastante
harmônica. Não havia diferença entre machos e fêmeas em
suas exteriorizações biológicas. A relação de tamanho e força
eram as mesmas. A diferença óbvia estava em seus sistemas
reprodutivos. Estes por sua vez inutilizados geneticamente,
pois a reprodução tornara-se um interesse coletivo. Dragões
só nasciam artificialmente há pelo menos cinco mil anos. O
sistema consistia em um casal de dragões misturarem seus
genes para a formação de um novo dragão. Este recebia
sistemas artificiais e algumas modificações para potencializar
suas habilidades, porém havia limites. Não queriam
padronizar a sociedade com "robôs" de carne e osso.
Respeitavam a naturalidade da vida desde que esta não
ameaçasse suas existências. As diferenças culturais também
não existiam, pois no imaginário desses seres nunca se criou
essa relação de poder. Machismo, feminismo ou qualquer
tipo de preconceito nunca existiu na sociedade dos dragões.
Por isso não era surpresa fêmeas assumirem cargos de alta
patente. Isso era extremamente comum, e era impensável
algo contrário a essa situação. Durante estes quase sete mil
anos de corrida espacial, existiram fêmeas com o título de
Tlüogodärami. Dos doze Tlüogodärami existentes até aquele
momento, excetuando Mist Tlüogodärami, foram sete
fêmeas a assumir a honraria. Assim os dragões viviam.
Tlüogodärami entrou com Krueur na sala de Virters. O
cômodo estava devidamente instalado ao estilo de
Tidianvinst. Assentos, sistemas computacionais e até mesmo
um aposento à parte ao descanso tio dirigente encontrava-se
naquele lugar. Uma espécie de mesa localizava-se
centralizada na sala. Havia uns três robôs fazendo trabalhos
diversos. Um deles manipulava o sistema computacional. A
sala possuía uma decoração ao estilo antigo. Pedras polidas
no chão, com desenhos aleatórios, de uma beleza
incomparável. Os mesmos desenhos subiam pelas paredes,
nos espaços onde não havia as placas de krür. Chamou a
atenção de Krueur um baixo-relevo com uma cena bem
antiga. Pelo aspecto da placa, esta era bem antiga,
provavelmente de antes da colonização espacial. Ah
visualizava-se dois dragões lutando entre si. Dois dragões
brigando?, pensava Krueur incrédulo. Virters convidou
Tlüogodärami e Krueur para acomodarem-se. Expressava
angústia e ansiedade em seu semblante. Todos os dragões se
acomodaram e preparavam-se para ouvi-lo. Virters
aproximou-se de Krueur, percebendo o interesse do jovem
pelo baixo-relevo.
— Vejo que está interessado pela imagem exposta aqui,
jovem Krueur.
— Interessante! Dois dragões brigando? Nunca havia visto
algo do tipo.
— Isso remonta tempos que não voltarão. Quando o
rompimento da fronteira do espaço não passava de um
sonho impossível, não éramos sequer uma parte do que
somos hoje. Isso remonta uma época, uma cultura extinta. A
palavra já não é usada há muitos anos, só por especialistas
que buscam fatos passados.
— Guerra!
— Isso mesmo, jovem Krueur. E, obviamente, uma imagem
simbólica. O dragão da direita representa Okinst, uma das
antigas nações primitivas, e a outra, Cobat, outra nação.
Eram as mais poderosas daqueles tempos de violência, e a
guerra era quase comum naqueles dias.
— Já estudei alguns trabalhos sobre o assunto. A placa de
krür é original?
— Sim, meu jovem. Ela é originária do planeta Dianvinst.
Nosso planeta natal. Nosso berço, hoje preservado como se
nunca houvesse dragões naqueles belos campos, naqueles
infindáveis mares azuis — os dragões estavam prontos para
começarem a reunião. — Podemos conversar depois sobre
esses assuntos. Falar sobre nossos ancestrais dá-me um
prazer incomparável.
— Seria um prazer ouvi-lo, dirigente.
Virters e Krueur acomodaram-se em seus respectivos
assentos e a reunião começou.
— Meus estimados amigos. Não guardei segredo sobre o que
falaríamos. Não! De forma nenhuma. O assunto, como
adiantei, é sobre Tidianvinst. Não tenho boas notícias para
revelar, infelizmente.
— Conte-nos logo! — demonstrou-se angustiado Plesk.
— Calma — disse Virters. — É mais complicado do que
parece.
— Estamos atentos, meu caro Virters — Tlüogodärami o
fitava com a ternura de um pai afetuoso.
-Vamos começar, então. Observem a tela no fundo desta
sala. Imagens valem mais que simples palavras.
A tela mostrava um planeta em chamas. Lembrava um
pequeno sol ou um planeta em formação. As palavras no
canto inferior da tela diziam que se tratava de Tidianvinst.
Os dragões se entreolhavam, espantados com as cenas
catastróficas. Mas, pelo menos, assim pensavam a princípio,
o planeta estava no lugar, não explodira. Questionamentos
surgiram e indagações sobre os últimos acontecimentos.
Tlüogodärami foi o primeiro a comentar e querer saber mais.
— Parece-me que a criatura não resistiu à reação,Virters.
— Nossas análises demonstram que nada resistiu ao nosso
recurso final.
— Tivemos sucesso, então — disse Plesk, demonstrando
alguma felicidade.
— Neste caso, sim. Estamos relativamente salvos deste
problema.
— Então o que nos traz aqui, meu caro Virters? — perguntou
Tlüogodärami.
— Há um problema mais sério, meus amigos. Uma de nossas
suspeitas poderá torna-se realidade em pouco tempo. Nossas
análises e nossos dados informam que o planeta está
completamente comprometido. A reação das usinas
continua aumentando, e muito do material radioativo segue
caminho ao núcleo do planeta. O planeta apresenta
rachaduras profundas e a sua total destruição é uma mera
questão de tempo, infelizmente.
— Não podemos fazer absolutamente nada? - perguntou
Plesk.
— Infelizmente, nada — disse Kranst. — Fomos eficientes
na destruição da criatura, mas o preço foi alto. Uma vez
desencadeada a reação, só terminaria quando o material
perdesse a radioatividade. Isso pode levar milhões de anos e
o planeta não resistirá tanto tempo. Talvez não resista sete
dias. Sabíamos dos riscos e aceitamos o possível preço.
— Exatamente. Sabíamos dos riscos. Como eu disse, não há
bônus sem ônus — completou Tlüogodärami.
— Não fomos nós que condenamos Tidianvinst, foi aquela
criatura hedionda — comentou Okotanst. — Não havia
alternativa, sejamos francos. Tentamos de tudo e não
conseguíamos resultados satisfatórios. Fizemos o necessário
e ponto-final. Vamos esperar o planeta condenado
encontrar seu destino derradeiro e recomeçar.
— Não poderia ter dito melhor, meu caro Okotanst —
elogiava Tlüogodärami ao conformado dirigente de ciência e
conhecimento. — Estou satisfeito em vê-los com este
espírito de luta e vontade de renascer, principalmente
depois desta catástrofe. Conseguiremos com total certeza.
— E há alternativa, Tlüogodärami? — perguntou Virters.
— Ah! Sempre há, meu amigo, sempre há. Poderíamos nos
colocar na posição de derrotados e desistir de tudo, esperar a
morte e deixar nossa cultura morrer. Não criamos isto tudo
para ter um final assim, não mesmo. Posso garantir que,
enquanto existir um dragão vivo, nossa cultura ainda existirá.
— Suas palavras, ilustríssimo Tlüogodärami, são os últimos
estímulos para continuarmos e reconstruirmos nossa
civilização — comentava com empolgação Okotanst.
— Muito bem, dragões. Precisava dizer-lhes isso
pessoalmente. Não é uma notícia que se dê friamente.
Vamos esperar a destruição inevitável de Tidianvinst e
analisarmos qual a melhor maneira de voltarmos às nossas
realidades — disse Virters.
— Precisaremos saber exatamente qual rumo tomar a partir
dessa realidade —Tlüogodärami olhava para seus
compatriotas enquanto falava. — Mas essa decisão não pode
ser tomada por poucos. E uma decisão coletiva. Todos
devem participar.
— Exatamente. E todos participarão — completou Virters.
Depois de mais algumas conversas sem muita importância,
todos se retiraram da sala de Virters. Tlüogodärami e Krueur
resolveram permanecer no planeta Niiefgönst até a
inevitável destruição de Tidianvinst.
— Mais uma vez sua forma de pensar lhe serviu bem, jovem
Krueur.
— Têm horas que preferia estar errado, Sr. Tlüogodärami.
Agora que estou desligando-me do assunto, contabilizo
minhas perdas. Não ouvi falar mais de minha família. Não os
encontrei nas listas de sobreviventes. Estou só. Sou o último
Aerok vivo. Meus pais estão mortos. Certa revolta, mediante
essa situação, começa a ganhar corpo em minha mente.
— Prossiga, jovem Krueur.
— Eu estava observando uma placa antiga de krür na sala do
dirigente Virters. Um baixo-relevo encenando uma briga de
dois dragões. Virters disse-me que aquilo representava uma
guerra entre antigas nações de dragões.
— Sim! O que mais?
— E se estamos lidando com um inimigo? E se passarmos
novamente por isso? Sei que me deixo levar por sentimentos
impostos pela revolta que sinto, mas minha vontade é de
vingança. Quero, neste momento, mais que tudo, destruir
essas criaturas que tentaram nos eliminar da face do
universo.
— E, sem dúvida, um pensamento perigoso, jovem Krueur.
Contudo, receio certa coletividade nessa linha de
pensamento. Estamos ainda sob o impacto dos
acontecimentos e profundamente confusos. Quando nossos
corações se acalmarem, nossas mentes começarão a
raciocinar e essa temática virá à tona. Não tenha dúvida
disso.
— Meu desejo, talvez, seja momentâneo.
Independentemente disso, a questão é se esta é a linha mais
correta a seguir. Disso não faço absoluta certeza.
— Ninguém o faz, jovem Krueur. Teríamos de possuir o
poder de adivinhação, e isso me parece pouco palpável —
Tlüogodärami tocava o ombro, com sua pata dianteira, do
jovem dragão com a atitude de um pai atencioso. Krueur
sentia-se confortável. Além de ter a companhia de alguém
tão famoso, podia ter a liberdade de conversar sobre o que
quisesse. Tlüogodärami não fazia restrições a assunto
nenhum. Era um liberal, sem preconceitos. Os dois seguiram
para o coração da cidade, prontos para os inevitáveis
acontecimentos previstos àqueles dias.

Tidianvinst definhava a cada dia de sua condenada
existência. A pressão estava seguindo níveis insuportáveis.
Uma sucessão de explosões aconteceu no terceiro dia após a
reunião dos dirigentes. As ondas eram visíveis na superfície
de Tidianvinst. As chamas dançavam uma coreografia de
morte orquestrada pelas sucessivas explosões. Depois de um
dia nessa situação catastrófica, uma reação em cadeia
gigantesca provocou uma explosão nunca antes vista por
qualquer dragão. O planeta existente naquela órbita não
existia mais. A grande explosão foi seguida de destroços
lançados a milhares de quilômetros. Um cinturão de rochas
formou-se naquele local. Tidianvinst morrera fisicamente.
Seus restos mortais vagariam eternamente em sua antiga
órbita. O túmulo indigno para o lar dos dragões. Um
monumento de rochas em homenagem à miséria, à
covardia, ao desconhecido. O belo planeta adotado pelos
dragões encontrara seu verdadeiro fim. Nunca uma previsão
fora tão indesejada aos dragões. Como desejariam estar
errados. Um dia lamentável na extraordinária história de um
sofisticado povo.
Todos assistiram aos últimos acontecimentos, estáticos. O
sentimento de Krueur começou a brotar na mente de cada
dragão sobrevivente naqueles posteriores dias após a
explosão de Tidianvinst. Uma nova realidade apresentava-se
aos dragões. Um novo mundo desconhecido surgia. Seriam
capazes de enfrentá-lo? Eles estariam dispostos a tudo, isso
não era dúvida para ninguém. Refletiriam muito antes de
agir e alguma coisa seria feita. Só não se sabia ao certo o quê.

CAPÍTULO 12
Vingança

Milhões de rochas vagavam livres por uma específica órbita
existente no sistema solar. O cinturão tornou-se um lugar
difícil de manobrar. As diversas rochas, de todos os
tamanhos possíveis, tornavam a vida da nave azul diferente
de sua rotina habitual. Um mês se passou desde a explosão
de Tidianvinst e os dragões analisavam a área com extremo
cuidado. Rocha por rocha, poeira por poeira, nada passava
despercebido aos analistas. Sondas ajudavam no trabalho da
nave azul de pesquisa. Bailavam livres entre as rochas,
desempenhando seu papel crucial no teatro da vida. O vai e
vem das sondas lembrava filhotes de algum ser, ora
explorando o mundo afora, ora voltando à proteção de uma
mãe atenciosa.
A responsável pela nave supervisionava pessoalmente os
andamentos das análises. As notícias eram boas e as
projeções futuras indicavam a mesma tendência. Janusty
observava atentamente os cientistas sob sua
responsabilidade. Seu sucesso na estação Orgada abriu-lhe
portas importantes em sua carreira, e um dos trabalhos mais
complexos até aquele momento, a análise dos destroços de
Tidianvinst, fora destinado a ela. O dragão mais adequado do
quadro de especialistas em comando de naves. A própria
dirigente de defesa Jannsky escolhera seu nome depois de
seus últimos feitos. Sentia-se honrada em servir aos seus
compatriotas. Não havia recompensa maior para um dragão.
Seu sentido de sociedade reforçava-se nesses momentos de
crise.
Uma base especial fora montada no planeta Niiefgönst.
Nessa base, todas as informações colhidas pela nave dirigida
por Janusty eram analisadas e relatórios constantes foram
enviados ao comitê chefiado por Virters e Tlüogodärami.
Em intervalos aproximados de uma hora, Janusty enviava as
informações e mantinha diálogos constantes. Para um maior
controle, a órbita fora dividida em unidades distintas. Ao
todo formavam 1.250 delas. Ao fim de uma hora de
trabalho, fazia-se o envio dos últimos dados coletados, e
Janusty dialogava com os responsáveis pela base no planeta
Niiefgönst.
—Janusty? Você me ouve?
— Ouço perfeitamente. Há um pouco de estática, mas nada
que impeça a boa compreensão.
— Alguma novidade?
— Nada de novo. Estamos trabalhando ao máximo e tirando
alguns vestígios de radiação, nada mais há para se relatar.
Ainda não achamos vestígios da criatura. Se algo for
encontrado, enviaremos a notícia logo em seguida.
— Estaremos esperando.
— Fiquem tranqüilos. Não há com que se preocupar.
— Vocês já enviaram os últimos dados coletados?
— Mandaremos em poucos instantes. Estamos terminando
de analisar o ponto 90.
— Quando chegar ao término da análise, avise-nos do envio.
— Eu o farei.
— Até mais tarde, então.
— Até mais tarde.

Três semanas se passaram e o trabalho tornou-se rotineiro.
Não havia novidade nenhuma. Se não fosse o difícil pilotar
na zona de rochas, o trabalho em si seria pouco estimulante.
Até aquele período, nada foi encontrado. Mas aquele
específico dia demonstrou uma quebra na rotina da
tripulação. No início dos trabalhos do segundo turno os sis-
temas computacionais apontavam para um pequenino objeto
vagando pelo vácuo. Não maior que a ponta do dedo de um
dragão. Os sistemas apontavam para o objeto e valia a pena
analisá-lo. Como era procedimento, uma pequena
quantidade de robôs celulares envolveu o objeto e em
seguida uma sonda robô aproximou-se, absorvendo a carga
de informações enviada pelos diminutos companheiros de
trabalho. Duas horas de análise profunda indicavam que o
material era orgânico e sua constituição ou seu código
genético exibia uma seqüência diferente e não conhecida
pelos dragões. Na segunda etapa, mais robôs celulares
entraram no serviço para a total descontaminação da
amostra. A radioatividade e as impurezas tiveram um fim
naquele objeto orgânico. A amostra foi conduzida para um
recipiente hermeticamente fechado. Os robôs celulares
fizeram os últimos procedimentos de descontaminação,
ajudando a selar o recipiente. O robô-sonda armazenou o re-
cipiente metálico dentro de si e seguiu o rumo até a nave
comandada por Janusty. Ela e os cientistas da nave azul
observavam, ansiosos, os procedimentos. Assim que o
objeto seguiu para a nave, Janusty entrou imediatamente em
contato com a base no planeta Niiefgönst.
— Estamos na escuta, Janusty.
— Nossa busca encontrou algo muito procurado por nós.
Encontramos o que seria uma amostra da criatura.
— Você já conhece o procedimento. Termine a busca neste
ponto e vá até a estação Orgada. Entregue a amostra e volte
de onde parou.
— Entendido.
— Onde foi encontrada a amostra?
— No ponto 986. Estávamos quase finalizando esse ponto
quando o sistema apontou para algo estranho.
— Ótimo, envie-nos os relatórios e siga direto para a Orgada.
— Tudo bem. Até logo.
— Até logo.
O robô chegou à nave e, numa ante-sala fechada, foi
devidamente descontaminado da radiação emitida pelas
rochas oriundas de Tidianvinst. Depois, dois dragões com
roupas protetoras, as tradicionais roupas pretas,
acompanhados de quatro robôs, conduziram a sonda até um
lugar devidamente seguro. Robôs celulares devidamente
recolhidos, a nave iniciou os procedimentos para seguir
rumo à estação espacial Orgada. A nave saiu do cinturão de
rochas e seguiu para a estação. Janusty calculou as
coordenadas, acionou os sistemas magnéticos para evitar os
efeitos da aceleração e, quando chegaram à posição mais
adequada, a nave impôs uma velocidade de um décimo da
velocidade da luz. Em pouco menos de quinze minutos, a
nave chegou ao seu destino. As manobras-padrão de aportar
e desaportar, os cálculos das rotas e procedimentos-padrão
demoravam mais que a viagem em si, no caso de uma
distância tão curta para os padrões dos dragões. Janusty
pedira autorização para aportar na estação.
— Nave Muskatzo 02 pedindo autorização para aportar.
— Um momento, por favor.
— Estou na espera — alguns minutos depois, a voz no
comunicador voltou.
— Entrada 54, por favor. Bem-vinda à Estação Espacial
Orgada.
— Obrigada.
Janusty sentia-se voltando ao lar. Afinal, há menos de dois
meses comandara aquela estação. A nave seguiu o padrão
utilizado ultimamente para a descontaminação. A entrada 54
fechou-se e uma nuvem de robôs celulares, muito intensa,
começou o trabalho de descontaminação. Após dez minutos
de trabalho dos pequeninos, estes desapareceram e jatos de
líquidos transparentes, lembrando água quente, foram
jogados na nave. Uma corrente de ar foi o terceiro
procedimento. Por mais dez minutos permaneceram no
local. Ao término dos procedimentos de descontaminação,
um portão oposto ao de entrada abriu-se para a nave
continuar sua curta jornada. Um tubo acoplou-se a uma das
entradas da nave e a conexão das duas fora estabelecida.
Robôs adentraram na nave de Janusty e esperaram a carga
preciosa. Logo em seguida o novo responsável pela estação
veio receber pessoalmente Janusty.
— É um prazer recebê-la novamente nesta estação, Janusty.
— O prazer é todo meu, meu amigo — respondia Janusty ao
novo responsável.
— Esta carga é muito aguardada no planeta Niiefgönst.
— Realmente. Assim que todos os testes estiverem prontos
aqui na estação, as análises devem ser mandadas
imediatamente aos órgãos responsáveis, e todo o cuidado
deve ser tomado com relação a esse material. Em hipótese
alguma deve ser manipulado levianamente. Lembre-se que é
parte de uma criatura com um grande poder de regeneração
e devemos ter absoluta certeza de que a amostra está inativa.
Após todos os procedimentos e pesquisas, deve ser destruída
imediatamente.
- Tomaremos todos os cuidados — respondeu o responsável
pela estação Orgada. - Não se preocupe. Já fomos
devidamente avisados e os especialistas mais adequados já se
encontram na estação para executar todos os procedimentos.
Com a amostra entregue aos mais competentes, Janusty e
sua bela nave azul seguiram sua atual rotina de busca no
cinturão de rochas, fixada em sua mente, como que
programada, a idéia das possibilidades e potencialidades
daquele material responderiam muitas questões relativas aos
últimos acontecimentos da recente história dos dragões. O
pensamento aparecia em sua mente periodicamente. O peso
da responsabilidade atribuído àquele pequeno objeto era
fabulosamente grande, porém, com o tempo e a rotina
estabelecidos, sua ocupada mente deu lugar a outros
pensamentos, deixando hipotéticas especulações no âmbito
da imaginação.
O material passou por uma centena de experiências antes de
se chegar aos primeiros resultados significativos. O material
era orgânico, pois possuía código genético com
combinações das bases nitrogenadas. Contudo era um
código não registrado em seu todo. Havia semelhança,
todavia, com os códigos conhecidos pelos dragões. O
mapeamento desse código foi feito em sete dias e os
significados das seqüências em um mês. Simulações nos
sistemas computacionais determinaram cada função contida
nos códigos. Entendiam toda a essência daquela criatura e
fizeram comparações. Muitas seqüências apresentavam
modificações artificiais, demonstrando manipulação dos
códigos. Nesse momento, a descoberta das manipulações
indicava o primeiro indício concreto de que a criatura era
proveniente de uma possível vida inteligente. Quais os
objetivos originais ninguém no mundo dos dragões poderia
determinar ao certo, mas as conseqüências reais e atuais
foram sentidas na carne deles. Houve uma divulgação dos
resultados, afinal, na cultura dos dragões não havia segredo
de nenhum assunto. A comunicação e o direito à
informação eram livres aos que se interessassem por elas.
Com os últimos acontecimentos, não era de se estranhar um
interesse maciço pelas informações. O sentimento
expressado por Krueur tornou-se cada vez mais comum
entre os dragões. Os sentimentos de vingança, injustiça e
impotência tomaram conta dos corações daquele povo
centrado e erudito. Instintos e sensações há muito
esquecidos começavam sua jornada de volta à realidade dos
dragões. O dragão primitivo, aquele personagem que matava
para não morrer e que lutava uma batalha por dia para
apenas repeti-la no dia seguinte, começava a despertar de
sua letargia envolvida por camadas de cultura e tecnologia.
As opiniões separadas tornaram-se pequenos grupos tímidos,
e estes começavam a crescer, chegando a patamares mais
significativos. Esses pequenos grupos crescentes uniam-se, e
quando os dirigentes perceberam esses movimentos, metade
da população já era adepta de um projeto de vingança contra
seus agressores, e a outra metade, apesar de não participar
formalmente, simpatizava com a causa. Palavras antigas,
como guerra e matar, há muito tempo não utilizadas,
voltavam ao vocabulário dos até então pacíficos dragões. A
vontade de vingança tomou proporções tão gigantescas que
as palavras de cautela de Tlüogodärami, a figura mais
significativa de sua cultura, não faziam o habitual efeito.
Tlüogodärami tomou uma posição, apesar de perigosa,
oposta aos demais. Não acreditava na vingança, pois muito
se perdera e o inimigo era nebuloso. O próprio Krueur,
depois de muito refletir, sentiu a incerteza de Tlüogodärami
e não acreditava mais nessa alternativa. Pelo menos não se
sentia bem pensando nela. Krueur apoiava
incondicionalmente a opinião de Tlüogodärami. Mas como
era dever de todo dragão, a idéia coletiva predominaria na
decisão final de Krueur. Não abandonaria seu povo, mesmo
não concordando com a opinião de todos.
Várias reuniões foram armadas naqueles tempos. Muitas
idéias vieram à tona. Tlüogodärami e Krueur tentavam
amenizar a onda de vingança vigente nos últimos tempos,
sem obter o mínimo sucesso. Suas opiniões eram votos
vencidos nessas reuniões. A ala mais radical dos favoráveis a
uma retaliação aos ainda desconhecidos inimigos propunha a
formação de um exército com todos os dragões disponíveis.
Sua proposta se baseava no treinamento de todos os dragões
nas antigas artes da guerra e da disposição dos recursos ainda
existentes à criação dos equipamentos necessários. Uma
idéia a princípio simplória e até ingênua, mas que ganhou
muita força naqueles tempos de confusão e incerteza.
O caminho seguido pelos discursos das inúmeras reuniões
indicava a aprovação das idéias dos radicais. A última e
maior delas, na qual todos os dragões ativos votariam, foi
transmitida para todo o sistema solar. Várias colônias
espalhadas pelo sistema solar preparavam-se para informar
toda a sua população sobre essa derradeira reunião que
decidiria o destino de todos. Mais de um bilhão e meio de
habitantes assistia à reunião. Os debates começaram e a
maioria esmagadora estava a favor dos esforços de guerra.
Tlüogodärami tentava a todo custo persuadir os dragões a
pensar bem, a refletir naquilo que desejavam. Em seu
discurso, isto se destacava.
— Meus amigos dragões. Sei e observo o sentimento de
vingança aflorar com força em nossas mentes. Não discuto
se é justo ou não. Obviamente o impacto sofrido por todos
nós merece o mínimo de justiça. Nada mais justo que
sentimentos como vingança e justiça surjam nesses
momentos. Caso optemos por esse caminho, não
percorreríamos um caminho desconhecido? Com quem
exatamente estaríamos lidando? Estaríamos à altura dessa
demanda? Seríamos capazes de vencer uma guerra com um
inimigo desconhecido? São perguntas obrigatórias para nossa
avaliação. Não podemos nos dispensar de pensá-las —
enquanto discursava, o público observava Tlüogodärami
com respeito, apesar do pensamento diferente. — Tentemos
imaginar todas as situações. A vitória total e absoluta é a mais
confortável delas. Destruiríamos essa espécie infeliz que nos
trouxe a desgraça. Uma segunda situação seria encontrarmos
uma civilização ao mesmo nível tecnológico existente entre
nós. Quem ganharia? Talvez nós? Talvez eles? Ou
simplesmente empataríamos, levando a uma guerra que
causaria nossas destruições mútuas. Ninguém venceria e não
ganharíamos nada com isso. A terceira e última situação é a
mais aterradora. E se perdermos miseravelmente? Aonde
tudo isso nos levaria? Não quero influenciar a opinião de
vocês, dragões, pois nossa liberdade não tem preço que
valha sua retirada, mas antes de decidirmos nosso destino,
devemos pensar e analisar os riscos com essas perguntas, e
seja qual for nossa decisão será fruto, espero, dessa simples
reflexão. Seja qual for a decisão tomada aqui, quero que sai-
bam e não tenham dúvida disso: eu estarei ao lado de vocês
— ninguém se manifestou e o respeito para com
Tlüogodärami foi decididamente cumprido. — Isto é o que
tenho a dizer. Na posição de Tlüogodärami dos dragões é
meu dever orientá-los sempre que for necessário.
— Prometemos pensar no assunto, honorável Tlüogodärami
— disse Virters, o dirigente supremo. — Agora o dragão
Brukst Rugyra deseja a palavra. — Rugyra simplesmente era
um dos líderes do movimento pró-guerra.
— Dragões sobreviventes. Colocaram-nos nesta situação de
sobreviventes. Quem? Nós devemos nos perguntar em todos
os instantes de nossas agora miseráveis existências. Não
sabemos, ainda. Mas nossa momentânea ignorância não nos
impede de sabê-lo. Nossa civilização foi arrasada sem prévio
aviso. Covardemente arrasada. Não é uma simples questão
filosófica de justiça. Precisamos realmente da verdadeira
justiça. Justiça no antigo sentido da palavra. Estas "coisas",
motivo de nosso flagelo, devem pagar no mínimo com o
mesmo sofrimento passado por nós. Eu respeito o ponto de
vista do honorável Tlüogodärami e acredito ser unânime
esse respeito. Contudo acredito que neste período pós-
apocalíptico tivemos tempo o bastante para refletir muito.
As conclusões, meus caros dragões, já foram definitivamente
resolvidas. A guerra é iminente e indispensável para que
tenhamos o mínimo de justiça. Não devemos temê-los.
Temos total capacidade de enfrentá-los. A herança de nossos
ancestrais, toda a gama de conhecimento adquirida por
tantos anos, nos dará a força necessária para não só em-
preender uma guerra, como para vencê-la. Não há
alternativas. Ou vencemos ou vencemos. Não há derrota.
Devemos banir essa palavra de nosso vocabulário. Não
faremos isso, contudo, de forma aleatória ou leviana. Vamos
planejar os mínimos detalhes dessa empreitada. A palavra de
ordem nestes últimos tempos só pode ser uma: vingança —
logo após seu discurso, Rugyra, comovido, ouvia as vozes
que em um só som repetiam sem parar a palavra vingança.
"Vingança, vingança, vingança". Tlüogodárami não
conseguia acreditar, por mais que as evidências fossem
claríssimas, naquilo que presenciava.
A votação aconteceu logo após o discurso de Rugyra. Virters
aceitou como encerrada a parte das argumentações e deixou
a cargo dos dragões a decisão de aceitar ou não a guerra.
Todos utilizaram seus sistemas computacionais pessoais para
opinarem na votação. Não foi surpresa para ninguém,
mesmo para Tlüogodärami, a vitória esmagadora da facção
pró-guerra. Krueur, ao lado de Tlüogodärami, testemunhava
com a mesma sensação de seu novo mentor os
acontecimentos. Mais de 98% de aprovação ao pró-guerra.
Os sistemas computacionais processaram as informações
praticamente em tempo real. Resultados esclarecidos e
irrefutáveis, a reunião foi finalizada. Todos agora esperariam
as estratégias e os preparativos para a guerra. Tlüogodärami e
Krueur saíram da reunião conformados, afinal as projeções
não eram otimistas para suas idéias.
— Nossa! Viveremos mais um impacto de novidades em
nossas vidas antes pacíficas e prósperas, jovem Krueur. Será
para melhor ou pior?
perguntava-se Tlüogodärami.
— Não faço idéia, Sr. Tlüogodärami. Depois de muito pensar,
tornei-me contra essa situação. Ainda sou, mas farei o
necessário e não abandonarei nosso povo. Dentro de pouco
tempo, quando começarem os treinamentos, vou me
apresentar como voluntário.
— E uma pena. Se quiser continuar trabalhando para mim
será tão útil como servindo no exército.
— Eu agradeço a confiança, Sr. Tlüogodärami. Sempre estarei
à sua disposição. Mas preciso vivenciar essa experiência.
Como todos no fundo não sabem, também não sei aonde
estou metendo-me. Sinto, porém, essa necessidade.
— Também tenho essa necessidade, jovem Krueur. Não
ficarei passivo a isso tudo. E creio que nenhum dragão
existente neste sistema solar vá ficar.
— Nenhum ficará.
— Nenhum mesmo.
— Foi um prazer, mais uma vez, trabalhar para o senhor. Até
qualquer dia honorável Tlüogodärami.
— O prazer foi meu, jovem Krueur. Até qualquer dia.
Os dois dragões se despediram com um típico cumprimento
de cabeça. Durante estes meses de convivência seus
conceitos de um em relação ao outro mudaram
radicalmente. O respeito predominava naquela nova e
recente relação. Um laço eterno de amizade envolvia
aqueles dois dragões. Seriam amigos até o final de suas
mortais existências.
Estratégias e simulações nos sistemas computacionais
começaram a surgir nos encontros entre os dirigentes.Todas
as idéias sugeridas nesses encontros passavam pelo tipo de
simulação existente nos sistemas computacionais. Inúmeras
sugestões apareceram e foram filtradas até se chegar àquelas
que representavam chance real de vitória. Assim os dragões
começaram sua empreitada rumo à guerra, começando
simplesmente pelo mundo das idéias, afinal não praticavam
guerra há muitos anos. Sendo um conceito extinto, tiveram
de recriá-lo do zero.
O primeiro ponto estava em conhecer o inimigo de verdade.
Para isso fora desenvolvidas sondas do tamanho e formato
de naves comuns, porém não eram tripuladas por dragões.
Seriam totalmente autônomas. Os cálculos da trajetória do
objeto tornavam-se difusos chegando a certo ponto. Havia,
pelos cálculos, duzentos e cinqüenta e seis possibilidades, ou
caminhos originários, por onde a criatura poderia ter
chegado. Não houve hesitação da parte dos dragões em
construir mais de trezentas sondas. Com estrutura de naves
ultramodernas, poderiam viajar a grandes velocidades. Os
dragões já possuíam, há muito tempo, mapas das localizações
das dobras naturais de espaço-tempo em muitos pontos do
universo. Seus sofisticados telescópios possibilitaram esse
mapeamento e cálculos avançados determinaram as exatas
localizações dessas dobras com um erro aproximado de vinte
quilômetros entre as coordenadas. A precisão era bastante
avançada e corrigida constantemente pelos sistemas
computacionais sensíveis à expansão do universo. Esses
cálculos de localizações só foram possíveis graças ao padrão
harmônico descoberto no universo pelos dragões.
Experimentalmente já haviam testado essas possibilidades
antes da catástrofe de Tidianvinst. Já haviam percorrido os
sessenta e cinco mil anos-luz de distância entre o sistema
solar e o fim da galáxia em pouco mais de dois dias de
Dianvinst. Obviamente houve a junção da tecnologia,
podendo obter velocidades nunca antes imaginadas com o
conhecimento das localizações das dobras naturais.
Observaram que havia realmente variações no espaço-
tempo, porém o tempo em todo o universo é contínuo e
variável ao mesmo tempo. Simplificando, o tempo pode
correr de forma diferente em dois pontos diferentes, mas
não há retrocesso. Não se pode viajar no tempo. Com essa
física nas mãos, os dragões poderiam encontrar facilmente
seus inimigos. Tudo dependeria apenas de alguma paciência
e de muito trabalho.
Com as sondas prontas, estava pronta a primeira etapa dos
esforços de guerra. Assemelhavam-se a belas naves de
tripulantes. Com seu tom metálico, possuíam decorações em
cores vivas em algumas de duas partes. Cada uma possuía
potentes propulsores; sua quantidade era de dez para cada
uma. O sistema de comunicação com o sistema solar seria
impossível se não fosse a solução encontrada pelos dragões.
Cada sonda deixaria, em pontos devidamente determinados,
pequenos dispositivos de comunicação. Estes ajudariam a
transmitir um milhão de vezes mais rápido que num sistema
tradicional por ondas de rádio ou transmissão a laser.
Poderiam, no sistema solar, obter informações praticamente
em tempo real. Cada dispositivo era do tamanho de dois
dedos de dragão. Como eles eram muito pequenos, cada
nave-sonda poderia carregar milhares deles. Cada sonda,
obviamente, não poderia usufruir de sua total capacidade de
velocidade. O trabalho de busca iria exigir um tempo bem
maior. Nada poderia ficar despercebido nessa busca frenética
pelo inimigo desconhecido. Uma por uma, as sondas
seguiram seus caminhos e seriam constantemente
monitoradas por estações localizadas no décimo segundo
planeta do sistema solar. Apesar de extremamente frio, seria
o local mais adequado para esse serviço. Pouca interferência
influenciaria nas transmissões e, para auxiliá-los, havia
estações espaciais espalhadas pela órbita do décimo segundo
planeta do sistema, um planeta-anão sem nome específico.
Os materiais bélicos, como naves de combate, armas e
sistemas auxiliares, conheceram seu início na mesma época
do desenvolvimento das sondas. Todo o conhecimento,
antes usado exclusivamente para o bem-estar dos dragões,
foi potencializado para a destruição do inimigo. A nave mais
poderosa, onde um novo mundo se construiria, teria um
tamanho colossal. Com metade do tamanho do satélite
natural de Dianvinst, apesar de estar longe de ter a mesma
massa, a nave consumiria a maior parte do tempo dos
dragões. Seu tamanho nunca fora imaginado antes, mas as
apostas e as necessidades exigiam algo com essas medidas.
Várias colônias nos satélites naturais do sexto planeta, o
planeta Srun, voltaram suas indústrias para a construção da
nave. Esta teria sua doca na órbita do planeta Srun. A
extração de materiais provinha de dez destes satélites e as
indústrias propriamente ditas, as que construiriam as peças
pré-moldadas, estavam em vinte e cinco estações espaciais
localizadas bem próximas às docas. As naves menores, que
dariam o dinamismo necessário à guerra, podiam ser
identificadas por três modelos. Um para cinco tripulantes, as
kofgtkas, com maior poder de destruição. A segunda, a
kofgtti, era para dois tripulantes e era tão mortal quanto à
primeira, porém mais ágil. E a terceira, a nave de infantaria,
conhecida como kofgt, para um tripulante, extremamente
rápida e ágil, com um poder de destruição um pouco menor,
mas tão mortal quanto às duas primeiras. As estimativas
contavam com a construção de um bilhão destas pequenas
naves. A própria nave principal, quando foi finalizada, teve a
capacidade de construí-las para reposição.
A grande nave, a principal de todas, ao seu término teria a
aparência de três globos unidos, descaracterizando um
pouco suas formas arredondadas; na frente da nave, havia
um entroncamento que lembrava uma tromba de elefante
no formato quadrado e retorcido ao ventre da nave. De sua
traseira, sairia os propulsores que dariam altíssima velocidade
à nave. Dois objetos em forma de cilindros cercaram a nave
dos dois lados, e propulsores existiam ali para melhor
manipular a nave e manobrá-la com perfeição. Seu tamanho
quase planetário exigiu o máximo de precisão possível. Em
seu núcleo, houve o equivalente a cinco grandes cidades dos
dragões, onde todos residiriam em suas horas vagas e
poderiam usufruir de certa normalidade. Uma grande
entrada foi construída no ventre da nave, onde asteróides
devidamente analisados eram recolhidos para a extração de
materiais. Toda a indústria dos dragões existiu nesse novo
mundo móvel. Como nômades espaciais, viveriam suas
existências assim, até obterem sua sonhada vingança.
Havia, basicamente, cinco armas desenvolvidas pelos
dragões. Estas, por sua vez, derivaram algumas outras, mas
nada que fugisse muito do original. O potencial de reação
em cadeia atômica testemunhada em Tidianvinst produziu a
primeira delas. Uma bomba atômica muito semelhante à
feita pelos humanos, porém dez mil vezes mais mortal e
destrutiva que qualquer bomba produzida pela futura raça
que habitaria o planeta Dianvinst. Essas pequenas usinas de
destruição estavam acopladas em pequenas naves não
tripuladas por motivos óbvios. Poderiam ser lançadas de
qualquer distância e só detonariam ao atingirem seus
objetivos. Um presente especial para seus algozes. Os lasers,
antes usados somente na indústria e em sistemas de
comunicação, foram elevados ao patamar de armas de
guerra. O calor gerado por um feixe de laser era bastante
eficiente nas simulações produzidas pelos sistemas
computacionais. Com as informações obtidas com a amostra
trazida por Janusty, esse desenvolvimento tornou-se
possível. O nível mínimo de destruição era o equivalente ao
de destruir uma criatura igual a que destruiu Tidianvinst. Os
mais poderosos poderiam facilmente dividir um grande
asteróide em dois. A terceira arma foi desenvolvida ,i partir
da radioatividade. Os dragões desenvolveram uma arma que
produzia um projétil feito de plasma radioativo. Este saía de
um canhão e, quando atingisse o alvo desejado, detonaria
uma reação em cadeia pulverizando tudo à sua volta. Uma
arma para patas habilidosas, pois não tinha a precisão das
bombas atômicas. Das indústrias e pesquisas da área química,
os dragões desenvolveram um gel incendiário oxigenado.
Produziria combustão mesmo na falta de oxigênio. Esse gel
chegava a altas temperaturas, quase iguais aos da superfície
do sol. Seria usado nos ataques direto ao planeta dos
inimigos; poderiam facilmente torná-lo num sol artificial.
Esse gel encontrava-se em cápsulas relativamente frágeis
que, uma vez atiradas no alvo, detonavam a combustão logo
após sua destruição.
Das quatro armas apresentadas aqui, nenhuma se comparava
ao que foi desenvolvido nesta. Uma bomba-buraco negro.
Esta, produto do mais sofisticado conhecimento em física,
produzia um buraco negro artificial que sugaria tudo o que
estava à sua volta. Por ser artificial, durava não mais que
meia hora, mas era extremo seu poder de destruição. A arma
mais temida pelos dragões, pois apesar de sua existência e da
capacidade de manipulá-la, a situação poderia fugir do
controle. Uma arma para situações extremas. Só em último
caso seria usada. Contudo, não hesitariam em usá-la contra
seus famigerados inimigos. Essas armas, por possuir
propriedades profundamente perigosas, só seriam usadas
pela grande nave principal, onde teriam armazenagem e
proteção adequadas.
Não se faz guerra sem soldados. Não há guerra sem cérebros
ativos. O preparo dos soldados desta guerra começara algum
tempo depois do envio das sondas. Os sistemas
computacionais simularam toda a capacidade de guerra das
estruturas corpóreas dos dragões. Exercícios e técnicas
foram desenvolvidos ao máximo. Havia o treinamento
simulando situações de todos os tipos imagináveis, e havia os
implantes neurônicos, onde informações básicas eram
fornecidas de forma simples para os cérebros dos soldados.
Conforme a indústria e a demanda exigiam mais dragões, a
reserva de dragões em estado de hibernação despertava de
seus sonos profundos para servirem aos seus compatriotas. O
pacífico e erudito dragão, aos poucos se tornava um
guerreiro; um guerreiro moderno e mortífero. Os
treinamentos eram ministrados em todos os pontos do
sistema solar onde houvesse dragões disponíveis. Todos re-
ceberam treinamento e implantes. Cada dragão seria
necessário para o combate que estaria por vir. Os que se
destacavam no treinamento, seguiam para outros
treinamentos mais específicos, formando grupos de
guerreiros de elite. Estes receberiam comandos. A divisão
dos dragões em termos militares seguia o próprio ritmo de
suas vidas, ou seja, eram bem simples. Havia poucas patentes
definidas, ou você comandava ou era comandado. O
comando central com os dirigentes, um segundo patamar
dos comandantes de campo e o terceiro com os soldados.
Simples assim. Como era uma prática em desuso, a prática da
guerra, os dragões usaram seu cotidiano como modelo para
essa recriação.
No início do treinamento, Krueur alistou-se no exército dos
dragões e começou em uma das primeiras turmas. Em sua
curta jornada de vida, para os padrões de seu povo, havia
estado em muitos lugares e em empregos diferentes para um
jovem. Agora enfrentava, como muitos, mais um desafio em
sua curta vida. O começo de tudo foi difícil, mas como
Krueur era bastante jovem, adaptou-se bem à disciplina de
um exército. Aprendera muito e já estava simulando vôos
com naves de um tripulante. Sua última simulação foi a mais
importante de sua inicial carreira como guerreiro, pois ali se
destacara com honra e exímia habilidade. Já se destacara
antes em todas as etapas do treinamento e o teste final
definitivamente abriu-lhe portas importantes. No dia da
simulação, Krueur apresentava-se confiante, mas não
demonstrava arrogância. Sua simplicidade e suas idéias não
permitiam atitudes desse gabarito. Trajava o típico uniforme
negro, ou armadura, onde teria proteção total. Este,
diferente dos antigos trajes, fora desenvolvido para a guerra
e fazia com que o desgaste físico do soldado fosse reduzido a
quase zero. O comandante treinador, um robô que simulava
um dragão de verdade, chegou até o grande grupo de mil
dragões treinados e disse-lhes com sua voz artificial e
tranqüila:
— Senhoras e senhores. Vamos executar nossa última
simulação deste treinamento básico e nada mais justo que
treinemos contra nossas próprias forças. Aqui temos mil
simuladores de naves, uma para cada dragão neste recinto.
Vocês serão divididos em dois grupos antagonistas e os
vencedores poderão alçar vôos maiores em suas carreiras de
guerreiros.Vocês receberão a cor correspondente de seus
times. Coloquem- -se em fila e boa sorte para vocês.
As filas andavam e os dragões recebiam suas cores
correspondentes. Krueur ficou no grupo verde. Esse grupo
disputaria a hegemonia contra o grupo marrom. Foi
conduzido ao seu posto por robôs auxiliares onde o
colocaram em seu simulador. Nada mais era que um
simulado do assento da pequena nave e, quando o dragão
acomodava-se nele, um visor simulando um canopy descia e
encobria seu campo de visão. Um capacete que captava
todos os comandos da nave desceu sobre a cabeça de
Krueur. Esse capacete funcionava como o comando,
tornando nave e piloto uma entidade só. O piloto tornava-se
o cérebro da nave e suas reações seriam as mesmas. As
imagens do combate simulado deslumbravam qualquer um
com seu realismo. Todos os detalhes estavam inseridos ali.
Os componentes do grupo comunicavam-se entre si, mas só
em seus respectivos grupos. Cada grupo tinha uma
freqüência diferente para não haver vazamento de
estratégia.
A simulação começara e os grupos simulavam um combate
de emboscada. O grupo verde seria surpreendido pelo grupo
marrom. O início começou devagar, mas aos poucos ganhou
força. Krueur, diferentemente da maioria, percebeu
imediatamente pelos dados fornecidos pelas telemetrias da
nave que havia algo estanho próximo a eles. Tentou
comunicar sua conclusão aos seus companheiros.
— Amigos, aqui é Aerok. Há algo estranho nas coordenadas
15648 52987 32548. Precisamos verificar o que é isso.
Vamos mandar um grupo para inspecionar e alertar a todos,
caso seja o grupo marrom.
— Entendido. Um grupo de cinco naves já foi enviado,
Aerok. Fique de prontidão — disse uma voz no
comunicador.
— Já estou preparado. E recomendo que vocês também
estejam — Krueur ativou as armas disponíveis em sua
pequena aeronave.
— São eles! Estão nos atacando! Vamos morrer! — e o grupo
depois de avisá-los foi abatido imediatamente sem o menor
tempo de reação. Os dragões derrotados eram conduzidos
para fora dos simuladores e assistiam ao combate numa
grande tela em recinto separado, ao lado da sala de
simulação.
Como dois enxames de abelhas em direções opostas, os
grupos entraram em conflito direto. Krueur, demonstrando
inteligência e improviso, abatia todas as naves que cruzavam
seu caminho. Assim que os grupos se desvencilhavam,
Krueur seguiu seus adversários por trás e fez um ataque
inesperado. Uma por uma as naves foram abatidas e o
número de dragões ia diminuindo. Quando percebiam o
ataque-surpresa e tentavam uma reação, Krueur girava sua
nave em espiral para cima, confundindo seus adversários.
Enquanto o grupo marrom se agrupava, Krueur colecionava
mais abates ao seu histórico. Conseguiu o incrível número
de duzentos abates. Todos do grupo verde foram abatidos
depois de meia hora, menos Krueur e cinco componentes
do grupo marrom. Com incríveis manobras em forma de
oito, um por um, seus adversários foram abatidos, sobrando
apenas Krueur como único sobrevivente.
— Parabéns, soldado Krueur. Você foi o único vencedor —
disse uma voz no comunicador. No equilíbrio que fora o
combate, Krueur se destacara irrefutavelmente.
Ao sair de seu simulador, foi aclamado por todos os seus
companheiros de treinamento. O comandante-robô do
grupo chegou perto de Krueur e convidou-o a acompanhá-
lo. Os dois seguiram por um caminho, onde se encontrava o
responsável pelo setor de treinamento. O responsável
cumprimentou-o com um satisfatório elogio.
— Parabéns, meu jovem. Você terminou seu treinamento
com louvor. Será indicado para o grupo de elite de nossos
soldados. Prepare seus objetos pessoais, pois será transferido
para o treinamento avançado, aqui mesmo no planeta
Niiefgönst.
— Obrigado, senhor. Aproveitarei esta oportunidade
dedicando-me ao máximo.
— Temos absoluta certeza que sim, jovem Krueur — disse o
responsável pelo setor.
Krueur seguiu seu caminho. Recolheu seus pertences e
seguiu para o treinamento avançado. Neste, conseguiu se
destacar e tornou-se um dos soldados de elite mais bem
treinados dos exércitos dos dragões. Mas sua verdadeira
prova ainda estaria por vir. A futura guerra que iria travar
com o inimigo ainda desconhecido naqueles tempos de
início de corrida armamentista. Mesmo aprovado com
louvor em seus treinamentos de duração de três anos,
Krueur continuava seu treino intensamente, esperando a
futura guerra.
A sonda 103 seguia seu curso pelo imenso universo, depois
de vagar por 15 anos analisando os pontos determinados
pelos dragões de suas estações no décimo segundo planeta
do sistema. Seguira um caminho complicado entre dobras
naturais e velocidades astronomicamente superiores à da
luz; a nave-sonda distanciara-se três milhões de anos-luz do
sistema solar. Seus sensores captaram algo diferente e
resolveu seguir o caminho onde essa atividade suspeita
originava-se. Quando observou o que encontrara,
imediatamente enviou imagens e dados diretos para o
sistema solar dos dragões. Essas imagens eram
impressionantes. Um sistema inteiro de planetas dominados
pela massa de tentáculos, os mesmos tentáculos que
destruíram Tidianvinst, porém algo estava bem diferente do
encontrado em Tidianvinst. Os tentáculos estavam
fossilizados. Um mundo totalmente diferente do conhecido
pelos dragões avistava-se naquela formação estranha. Como
um arquipélago surgido de uma erupção vulcânica
submarina, aquilo era uma aberração naquela parte do
universo. Todos os planetas estavam fundidos pelos
tentáculos fossilizados transformando aquilo em uma massa
gigantesca e única. Enquanto analisava o local, a sonda 103
foi interceptada por algo desconhecido. Imediatamente
parou de transmitir e foi reduzida a partículas
imperceptíveis a olho nu.
Na estação de recepção de dados das sondas, no décimo
segundo planeta do sistema solar, as imagens e informações
chegavam quase que instantaneamente. Os dragões sediados
nessa base analisavam, com a ajuda dos sistemas
computacionais, as informações novas transmitidas de todo
o universo. As informações enviadas pela sonda 103
chamaram a atenção dos analistas. Depois de quinze anos
buscando informações importantes para iniciarem sua
esperada vingança, finalmente encontraram a peça que
faltava neste misterioso quebra-cabeça. Olhos vidrados, o
sangue gelava nas veias, e a emoção era totalmente
incontrolável. Um turbilhão de sentimentos tomou conta
dos participantes daquela estação. A notícia se espalhou
rapidamente. Em três dias, todos no sistema solar já
conheciam as novidades. Não sabiam se comemoravam ou
lamentavam. Depois desses anos de espera, o sentimento de
vingança começara a diminuir. Mas como o dragão não era
uma espécie que voltava em suas idéias, não por qualquer
motivo, mantiveram o sentimento de ódio para impulsionar
a tão planejada guerra.
A construção da grande nave, a máquina final de guerra,
encontrava-se com mais de 90% de sua estrutura pronta. Sua
concepção possuiu momentos de tentativa e erros. Nada
daquele tipo fora construído antes. A demora consistia na
complexidade do dispositivo bélico e com a situação de
protótipo. Entretanto, os erros foram poucos, pois as
simulações produziam condições quase perfeitas. Demoraria
menos de um ano para seu término. Os dirigentes fizeram
uma visita de inspeção e convidaram Tlüogodärami para
juntar-se a eles. Tlüogodärami recebera o cargo de
conselheiro, por seus méritos e por possuir o título com
mais simbolismo da cultura dos dragões. Teria o mérito, ao
qual sempre o teve não oficialmente, de interferir em
qualquer assunto, expondo suas opiniões. Em seu transporte,
os dirigentes admiravam o tamanho espantoso da
espaçonave. Quem testemunhasse tal obra de engenharia,
admitiria que quinze anos de construção fora um tempo
curto para a confecção de uma máquina daquele porte. Ao
se aproximarem, os três globos fundidos com a tromba de
forma quadrada, e sua frente lembrando chifres fundidos de
um antílope, desapareciam somente sendo vistas de longe.
Aproximando-se, os detalhes eram mais nítidos. Armas,
muitas armas, podiam ser vistas em suas laterais. Canhões de
todos os tipos pontilhavam sua estrutura externa. Uma
última linha de defesa caso seus outros sistemas de defesa
falhassem. Da ponta da espécie de tromba retorcida havia
uma entrada para aquele mundo à parte. O transporte dos
dirigentes penetrou por ali. A entrada se fechara e podiam-
se ver milhões de naves de guerra enfileiradas em vários
hangares. Tudo possuía proporções monstruosas. Entraram
por uma passagem onde túneis fortemente iluminados
levariam ao núcleo da nave. O transporte acoplou-se em
uma base presa a uma esteira de alta velocidade. Uma vez
presa, começou a acelerar confortavelmente até atingir uma
velocidade onde a paisagem externa já não se distinguia
mais. Um leve tranco causado pela desaceleração indicava o
fim da rápida viagem. Podia-se, conforme a base
desacelerava, observar que havia milhares de esteiras
daquele tipo, como faixas de uma rodovia psicodélica. No
final do caminho, a bela cidade interna revelava todo o seu
esplendor aos visitantes. Muitos robôs de todos os tipos
trabalhavam intensamente para o término das obras. A
própria cidade interna da grande nave era um conceito
totalmente novo para os dragões em termos de moradia. Em
vez das labirínticas cidades tradicionais, onde a beleza se
baseava em muitos casos na desarmonia de suas formas, esta
demonstrou uma extrema organização; uma harmonia nos
mínimos detalhes. Seu planejamento tornou-se visível ao
primeiro contato das retinas dos visitantes. Corredores
largos e construções belíssimas respeitavam os conceitos
estéticos da cultura. Tudo absolutamente novo, contudo
com ressonâncias em seu passado histórico e cultural. A
nave se dirigiu para uma pequena torre, simbolizando as
cidades destruídas no passado. Esse edifício seria o centro
nervoso político deste mundo totalmente novo. Ali os
comandantes, as estratégias e os dirigentes trabalhariam. O
edifício fora decorado com os tradicionais baixos-relevos de
base à ponta. Suas linhas perfeitas e simétricas davam o
toque final. Totalmente negro, contrastava com os tons
claros, quase brancos, do resto da cidade. Sua silhueta
afilava-se chegando ao cume e era a construção mais alta da
cidade interna. Todas as construções podiam ser vistas dali e
perdia-se a vista total da cidade no horizonte de tão
gigantesca e grandiosa que era.
O transporte sobrevoou as construções aproximando-se da
torre negra, e diminuiu sua velocidade. Foi perdendo aos
poucos altitude e atravessou em uma entrada especial. Os
passageiros desembarcaram e foram direto para a futura sala
de Virters. Podia-se ver a mesma decoração existente em
sua sala no planeta Niiefgönst. Muitos artefatos salvos de
Tidianvinst existentes na antiga sala agora decoravam a sala
nova. Os baixos-relevos de krur com os dois dragões lutando
destacava-se naquele recinto. Sua antigüidade podia ser vista
por olhos não treinados. Rústica, porém bela. Tlüogodärami
acomodou-se em um assento e admirava a bela vista criada
por seus contemporâneos.
- Não há dúvida de que esta espaçonave é uma façanha de
engenharia, meu caro Virters — disse o velho dragão. —
Pena que seu propósito seja a destruição.
- Ora, Tlüogodärami. Não poderemos viver em paz
enquanto tivermos essa mácula ameaçando-nos — disse
Virters. — Não entenda isso como produto para destruição,
e sim como prevenção e um novo recomeço.
- Eu compreendo perfeitamente seu ponto de vista e de
nossos compatriotas, meu caro Virters — o semblante de
Tlüogodärami emitia tranqüilidade. — Contudo, meu
pensamento é público, preferia gastar nosso tempo com
nossa própria reconstrução. Por outro lado, sei que tudo é
uma questão de escolha, e como tudo na vida, há sempre a
possibilidade de ser bem-sucedida.
- Honradíssimo Tlüogodärami, também não escondo um
desejo, mesmo que mínimo, de viver em paz. Mas a escolha
foi do inimigo e não nossa. Eles desencadearam o processo.
Agora devem arcar com as conseqüências de seu ato vil e
cruel.
- E o que temos em relação ao inimigo, caro Virters? —
perguntou Tlüogodärami.
- Já está nas patas de nossos melhores especialistas. Eles têm
uma civilização há três milhões de ciclos-luz de distância
daqui. Se não fosse nosso conhecimento das dobras de
espaço-tempo, nunca os encontraríamos. E pelo jeito não
dominam esse conhecimento, pois teriam voltado com
certeza para nos impor mais um flagelo.
- Agora que sabemos onde se escondem, quais são nossas
prioridades?
—Vamos aguardar o término desta máquina. Testaremo-na
e seguiremos nosso plano.
- E sobre meu pequeno plano de reserva? — Tlüogodärami
encarava Virters com seriedade.
- O conselho aprovou sua sugestão, Tlüogodärami. Um
espaço já foi reservado no planeta Niiefgönst para este fim.
Estamos construindo uma estação e a instalaremos no
planeta Dianvinst. Não vejo a necessidade disso, mas o
conselho aprova como recurso final. E não custará muito de
nossos recursos, pois a base mais forte, no planeta
Niiefgönst, já dispõe de toda a estrutura necessária.
- Sinto-me aliviado por isso. Não podemos deixar pequenos
detalhes como estes despercebidos em função da
grandiosidade das coisas. Isso, meu amigo, pode significar
nossa sobrevivência.
- Não vamos perder. Seu excesso de zelo é apenas mais uma
conveniência, meu amigo.
- Meu zelo é apenas mais uma garantia neste jogo da vida,
Virters - Tlüogodärami desviou seu olhar da bela vista
oferecida pela grande janela. — Mais uma garantia,Virters.
- Não discordo totalmente. Não queria ser
grosseiro,Tlüogodärami.
- Não o foi,Virters. Não se preocupe com nada.
E assim os dragões conversavam na iluminada e bela sala na
torre negra, torre esta que era como ébano reluzente
destacado numa cidade feita de marfim. Mais dirigentes
chegavam à sala de Virters e os preparativos à guerra, o
desencadear do processo, eram orquestrados em seus
mínimos detalhes.

Um ano se passou desde a recepção das informações da
sonda 103. Os últimos dois meses foram de extremo
movimento no sistema solar. Colônias inteiras deixadas sem
viva alma tornaram-se regra no sistema solar. Todos
migraram para a grande nave, batizada de Tidianvinst Ti, ou
"Nova Tidianvinst", na tradução da língua dos dragões. Aos
poucos os dragões se acomodavam ao seu novo estilo de
vida. Tidianvinst Ti tornara-se seu novo "planeta", seu novo
lar. Tlüogodärami preparou um plano de emergência que
consistia numa simples solução em caso de catástrofe total
da empreitada promovida por seu povo. Duas bases, com
alguns voluntários em estado de hibernação, robôs e toda a
estrutura necessária para recomeçar seriam instaladas em
dois planetas do sistema solar. Uma seria colocada no
planeta Dianvinst, berço dos dragões, seu planeta natal. A
segunda base seria montada aproveitando-se da estrutura do
planeta Niiefgönst, o mais desenvolvido após a catástrofe.
Tlüogodärami encontrava-se nos últimos tempos entre os
dois planetas, supervisionando pessoalmente os andamentos
da construção das estruturas. Uma pequena usina alimentada
com reservas de materiais construiria os robôs celulares para
a manutenção das bases. Teoricamente essa manutenção
seria praticamente eterna, pois os pequeninos robôs eram
resistentes ao tempo. Tlüogodärami sobrevoava o planeta
Dianvinst e ficava impressionado com a beleza do planeta
que deu origem à sua raça. Este foi preservado e
reconstruído para tornar-se reserva ambiental dos dragões.
O berço de muitas vidas continuaria por milhões de anos,
assim planejavam. Havia um respeito por parte dos dragões
àquele planeta. Seus extensos oceanos, suas belas florestas,
sua fauna exuberante, tudo despertava emoções a qualquer
dragão felizardo que pudesse testemunhar tamanha
combinação de belezas naturais. A base localizava-se no
largo oceano existente entre duas grandes massas de terra.
Uma vez com as patas na base, Tlüogodärami fez a super-
visão final. Conversara com o robô, seu cicerone na base.
- Falta mais alguma coisa?
- Não, senhor. Tudo está perfeito, como determinado —
respondia a simpática máquina.
- Folgo em saber. Vou lacrar esta base com este sistema de
segurança — Tlüogodärami exibia uma placa em sua pata
dianteira com tonalidade de krur e inscrições no alfabeto
dos dragões, com dois dragões unidos, decorando-a. —
Voltaremos em duas possíveis situações: ou em nossa
possível vitória, para liberar nossos compatriotas aqui em
estado vegetativo, ou no caso de uma possível derrota,
pouco provável, onde poderemos recomeçar nossas vidas
mais uma vez.
- Cuidaremos para que esteja à disposição quando vocês
voltarem de sua jornada.
- Assim espero, meu amigo mecânico.
Tlüogodärami fechou a base e seguiu ao seu transporte.
Emergindo da água salgada, a nave seguiu rumo ao planeta
Niiefgönst, e Tlüogodärami supervisionou a base instalada
nesta também. Com tudo pronto e devidamente fechado,
seguiu para a nave Tidianvinst Ti. O sistema estava
completamente esvaziado de dragões e só faltavam
Tlüogodärami e sua pequena tripulação no transporte para
completar esse vazio no sistema solar. Estes não tardaram
em chegar a Tidianvinst Ti. Com a chegada deles, nada mais
impedia a partida da grande máquina de guerra.
Naquele instante nada impediria a jornada dos dragões. Com
um pouco mais de dois bilhões de soldados treinados e uma
armada incrível, tentariam a sorte contra seus algozes e só o
tempo determinaria o futuro dessa jornada. A escolha fora
feita e a guerra começaria, inevitavelmente.


CAPÍTULO 13
CAMPO DE BATALHA

Mais um dia começava na nova cidade dos dragões. O
movimento nas vias era intenso. Os dragões retomavam suas
vidas da melhor forma possível. Suas mudanças haviam sido
graves e a volta de algo semelhante ao seu anterior cotidiano
trazia algum conforto para suas atormentadas cabeças.
Krueur estabelecera-se na cidade e trabalhava diretamente
para as forças armadas. Naquele dia, teria tempo suficiente
para voltar a sua velha rotina anterior aos grandes
acontecimentos da recente história dos dragões. O novo
centro de estudos permitia a qualquer dragão adulto o
ingresso livre e irrestrito aos seus conhecimentos. Muitas
placas antigas de krür foram salvas da destruição e milhares
de anos de conhecimento filosófico estavam registrados
naqueles preciosos documentos armazenados nesse novo
centro. Toda a história do pensamento dos dragões
encontrava-se neles. Um privilégio, de certo ponto de vista,
para qualquer dragão interessado no assunto.
No imenso arquivo, Krueur sentia-se feliz em manusear
aquelas preciosidades produzidas por seus ancestrais. Era
possível sentir o peso e os anos de conhecimentos contidos
ali. Era como se fosse um vínculo físico com aqueles que já
não estavam entre eles há muito tempo. No grande salão
feito com o material branco existente em toda a cidade, o
ambiente demonstrava todo o seu esplendor. Colunas retas
espalhavam- -se pelo salão com uma harmonização
profundamente precisa. No alto da construção podiam-se
ver os lugares onde as antigas placas estavam armazenadas.
Centenas de robôs faziam ziguezagues entre as prateleiras,
manuseando, conservando ou retirando as placas para
aqueles que as solicitavam. A cor levemente bronzeada da
liga de krür conferia um contraste belo ao branco da
arquitetura. No patamar inferior, entre as colunas retas,
ficavam os dragões concentrados em suas pesquisas e
estudos. Havia muitos dragões naquele ambiente,
contrastando com a situação um silêncio quase absoluto
predominava no ar daquele centro de estudos muito bem
iluminado. Quando um dragão dirigia-se a um robô
responsável pelas placas, gesticulava suas palavras o mais
baixo possível. Um robô ajudava Krueur trazendo os
documentos relacionados por ele.
- Eu gostaria da placa do sábio Trunkerost, sobre a questão
do Subconsciente: influência na vida real, número 2387 —
recomendou quase sussurrando Krueur ao robô, enquanto
observava a lista dos documentos.
- Será providenciado o mais rápido possível, Sr. Aerok —
orientava a máquina.
Ao receber a antigüidade, Krueur debruçou-se nela, lendo-a
com afinco. O velho hábito de ler com as patas há muito se
perdera, pois a nova tecnologia de armazenagem de
informações combinada com um recipiente transparente
protetor que envolvia a placa não permitia este artifício de
leitura existente há milhares de anos. Só os olhos naqueles
tempos modernos faziam esse papel. A beleza daquele
material, mesmo com artifícios para conservá-lo, não se
perdia de jeito nenhum. A técnica artesanal de confecção
das peças possuía um trabalho profundamente esmerado.
Não parecia confeccionada por patas de dragão. Talvez a
mais alta tecnologia presente em sua civilização não
reproduzisse esse trabalho perfeito aos olhos dos dragões.
Uma arte há muito perdida e apenas visível na herança
deixada pelos antepassados. Mesmo não usando as técnicas
antigas de leitura, Krueur com seus poucos anos de vida,
para um dragão moderno, mergulhava nas palavras como se
estas não existissem. Seus anos de estudo e pensamento
possibilitavam tal habilidade. Podia quase ver imagens
materializadas mediante ao som das palavras ditadas em seu
cérebro. Cada palavra lida naquela placa despertava um
turbilhão de idéias e era quase real. Ironicamente, a placa
tratava de um assunto parecido. Os antigos filósofos
gostavam de romancear seus textos, e pequenas histórias
apareciam relatadas naquelas placas. O dragão experiente
deveria interpretá-las para achar as chaves necessárias para
sua real compreensão. Desprendido de sua exterioridade,
Krueur apresentava expressões faciais conforme seguia sua
leitura; elas expressavam seus sentimentos e demonstravam
um vínculo desenvolvido entre mente e corpo. Uma ligação
sutil e pessoal com o mundo externo naqueles instantes de
êxtase intelectual. Essa harmonia foi interrompida por um
som diferente a tudo naquele mundo utópico. Um alarme
bem conhecido daqueles cidadãos soava intensamente em
todos os cantos possíveis da nave Tidianvinst Ti. Krueur
despertou como se estivesse acordando de um bom sono e
rapidamente dirigiu-se a um dos elevadores próximos ao
centro de estudo. O robô, atento ao seu redor,
imediatamente recolheu a placa, depositando-a em seu lugar
original. O destino final de Krueur seria guiado pelo
simbolismo existente no alarme. Aquilo era o alarme para se
prepararem para o combate, e todo o cidadão morador
daquela estrutura estava preparado para a iminente guerra.
Krueur correu imediatamente a um elevador que o levasse
para seu posto. Já naquele momento, como uma grande
colméia atacada, muitos dragões haviam respondido ao
chamado, congestionando os elevadores. Depois de algum
tempo, ele embarcou em um dos elevadores disponíveis. O
elevador expresso levava-o, e muitos outros dragões, à base
de operações onde assumiria seu posto.
Tidianvinst Ti vagava por uma galáxia próxima à galáxia de
sua origem. A grande nave de combate confeccionada pelos
dragões errava exibindo sua beleza exótica por aquela região
estrangeira. Ali havia um pequeno sistema solar com cinco
planetas desabitados. Não havia vida naquele velho sistema e
quando se diz vida é a de qualquer tipo. Nem uma simples
bactéria vivia naquele lugar desolado. Com sua simplicidade,
os dragões batizaram o pequeno sistema com o número
3496582 05, em que a primeira carreira de números
representava a ordem de descoberta do sistema nas
pesquisas, e a segunda carreira, a galáxia ao qual pertencia o
pequeno sistema solar. A grande nave rumava para seu
campo de batalha e não havia sido testada na prática. O
pequeno sistema solar serviria para os testes reais. Qualquer
problema seria solucionado antes de um combate real. Não
desejavam fracassar logo na primeira incursão ao mundo de
seus inimigos. Os primeiros treinos reais começaram
naquele sistema. Alarmes em tempos aleatórios eram soados
ao preparo das equipes. Esse tipo de treino acontecia
constantemente e não mantinha um padrão determinado.
Outro treino era o de saída das pequenas naves. Os
esquadrões formavam-se rapidamente e a grande nave servia
como perímetro de defesa. As manobras e posições
simulavam um ataque à grande nave e isso foi treinado uma
vez ao dia, pelo menos, enquanto permaneceram no sistema
3496582 05. Os sistemas computacionais simulavam
situações das mais diversas e os grupos seguiam as
simulações treinando ao máximo a capacidade das naves.
Um dos pequenos planetas desabitados servia de alvo para
treino de artilharia. Os esquadrões simulavam como alvo
inimigo e atacavam o pequeno planeta impiedosamente. Um
enxame daquelas pequenas naves concebidas pelos dragões
possuía um poder mortal para qualquer espécie. Depois dos
sucessivos treinos, o planeta encontrava-se totalmente
desfigurado, desprovido de suas características primitivas.
Permaneceram nesse ritmo por seis meses. Tudo o que
puderam imaginar de situações possíveis simularam naquele
pequeno sistema. Sabiam que podiam vencer esta guerra e
vingar suas perdas no passado. O último treino, especial na
opinião dos dragões, utilizaria o poder bélico da grande
nave. Os planetas ali presentes seriam destruídos e saberiam
ao certo, de forma experimental, o poder que suas patas
escamosas sustentavam naqueles tempos difíceis e drásticos.
Janusty tornara-se a comandante da nave Tidianvinst Ti por
seus méritos e seu impecável histórico acumulado oriundo
de seu recente passado. O conselho de guerra ordenara o
treino final onde seria testada ao máximo a capacidade
destrutiva da grande nave dos dragões. O último alarme
ouvido por Krueur, no centro de estudos, indicava
exatamente esse treino derradeiro. Haveria um treino básico
simulando um ataque com as naves menores, no final do
ataque orquestrado pelas pequenas, todas recuariam
imediatamente e o caminho ficaria livre para o ataque
fulminante da gigantesca espaçonave. Janusty comandava de
seu gabinete todas as operações. Estava interligada com
todos os departamentos competentes e sua capacidade de
liderança foi posta à prova nesse último treino.
Krueur se preparava no posto onde prestava serviço e
rapidamente colocara sua vestimenta militar. Todos os que
se submetiam aos serviços militares diretos usavam a roupa
negra. Uma armadura completa que exercia uma proteção
adequada para aquele que a utilizava, economizando e
protegendo ao máximo a energia e o corpo do dragão
guerreiro. Para sua surpresa, naquele dia, não trabalharia em
uma nave individual.
— Krueur Aerok? — perguntava o dragão responsável pelos
arranjos antes do combate.
— Sim, sou eu.
—Você foi designado para as unidades maiores Kofgtka. Seu
posto será o de artilheiro, Aerok.
Krueur ficou levemente surpreso, mas aprendera que ordens
não se discutiam e seguiu-a ao pé da letra, sem
questionamentos. Sabia, por seus méritos, que um soldado
de elite não exerceria funções aquém das que foi
exaustivamente treinadas. As unidades maiores, ou unidades
Kofgtka, chamadas assim pelos dragões, eram as naves
tripuladas por cinco deles. A nave possuía mais poder de
destruição que qualquer outra das naves pequenas. Possuía
uma aparência simples, pois a nova indústria de guerra
preocupava-se mais com eficiência do que com estética. Sua
frente pontuda e reta diferenciava-se totalmente em relação
à traseira, onde a nave apresentava robustez. Sua estética
desajeitada e irregular escondia seu real poder de fogo. Podia
carregar bombas nucleares com capacidade de destruição
indescritíveis. Krueur treinara pouco com essas naves em
comparação às pequenas de um só dragão, mas estava
preparado para tudo. Não gostava, no fundo, de comparti-
lhar a responsabilidade de sua própria vida a terceiros.
Contudo, com uma guerra por vir, começava a acreditar que
a confiança em seus pares tornava-se essencial naquela
peculiar situação. Não havia alternativas naquele momento
vivido por todos. Acomodou-se na posição designada e
concentrou-se em sua tarefa. Naquele momento fazia parte
de uma equipe e conhecia perfeitamente as conseqüências
da má vontade de um componente no resultado geral do
grupo.
Todos devidamente preparados, as naves menores saíram.
Seguiram uma trajetória determinada e o planeta alvo
começou a ser bombardeado com o poder de fogo das
diminutas naves. Esse ataque modificou drasticamente a
superfície apresentada momentos antes. Uma destruição
total por assim dizer, daquele já castigado planeta,
apresentava-se aos olhos dos analistas mais meticulosos,
porém era só o começo. As naves, após essa manobra de
ataque, retornaram ao perímetro mais seguro e mantiveram
suas posições em defesa da nave Tidianvinst Ti. Nesse ín-
terim, Krueur com sua tripulação na Kofgtka preparava-se
para ir com um grupo de mais quinhentas mil naves. As
Kofgtka fariam a manobra em posição unida com as naves
médias, Kofgtti, sendo as naves médias direcionadas ã defesa
do grupo das maiores e sua função secundária foi a de limpar
a área de ataque de possíveis resistências do inimigo. Para
evitar desperdícios, as naves Kofgtka atirariam, em seu total,
cem bombas atômicas, mas a simulação ensaiaria o uso da
capacidade total das bombas, ou seja, apenas algumas naves
atirariam as bombas de modo aleatório. Nenhuma delas
saberia ao certo se faria ou não o bombardeio real. Só o
comando sabia quais naves efetuariam esse bombardeio. As
cem bombas foram o suficiente para arruinar o planeta. Este
explodiu cinco minutos após a última detonação. As naves,
por sua vez, estavam longe o suficiente para não sofrerem
danos com seu próprio poder bélico. A nave de Krueur não
atirou realmente nenhuma bomba, mas os sistemas
computacionais indicaram um tiro simulado com noventa e
oito chances em cem de acerto. Como Krueur era o
artilheiro designado, ficou satisfeito e aliviado por completar
bem essa simulação. Sua tripulação fora excepcional
também, aliviando um pouco a pressão da desconfiança
inicial imaginada por Krueur. Receberam ordens para voltar
e todas as naves se recolheram dentro da grande nave de
guerra. Com o planeta-alvo destruído, a Tidianvinst Ti
manobrava para retirar-se daquele pequeno sistema solar. O
comando calculava a melhor trajetória de retirada e este foi
seguido à risca.
— Avise-me quando chegarmos a uma posição segura —
disse Janusty a um de seus subordinados.
— Sim, Sra. comandante — disse o dragão.
— O que faremos agora, comandante Janusty? — perguntou
Tlüogodärami, convidado pelos dirigentes a acompanhar a
operação no comando da nave.
— Honorável Tlüogodärami, assim que estivermos a uma
distância segura, vamos testar na prática o poder das
bombas-buraco negro. Mas antes bombardearemos a área
com nossas mais potentes bombas e limparemos o
perímetro com as bombas-buraco negro.
— Será um espetáculo no mínimo interessante — disse
Tlüogodärami sentindo-se preocupado. Destruição era algo
novo no pensamento e na vida dos dragões; e destruição
produzida por eles mesmos era algo mais novo ainda em seu
cotidiano.
— Nosso objetivo é puramente experimental, Sr.
Tlüogodärami. A grande verdade é que não sabemos ao
certo qual é nosso poder real. Por mais que as máquinas
simulem esse poder, algo tão novo não pode ser medido sem
o subsídio do empirismo. Com este, podemos criar uma
cultura da guerra.
— Ora, Tlüogodärami, não se preocupe — disse Virters,
também presente à sala de comando.
— Acho que transmiti algo errado ac meu pensamento, meus
amigos — afirmou Tlüogodärami. — Não estou preocupado
com nada. Só não estou acostumado, como todos aqui, a esse
tipo de espetáculo.
A conversa entre a comandante e os ilustres dirigentes
corria tranqüilamente até que o som da voz de um dragão
ecoou pela sala, interrompendo bruscamente a amistosa
conversa.
— Comandante Janusty, nós chegamos ao perímetro seguro
— disse o dragão subordinado.
— Ótimo. Avise a todos os responsáveis para se prepararem
ao ataque final.
— Sim, senhora.
Realmente a nave Tidianvinst Ti encontrava-se bem distante
das fronteiras do sistema solar 3496582 05. O sistema,
aquela distância, só era visível como um pequeno grupo de
estrelas. A nave posicionou rapidamente sua frente em
direção ao sistema. Dentro dela, os dragões corriam ou para
suas funções determinadas ou para monitores que davam
uma visão daquele sistema solar. Janusty ordenou, assim que
eles chegassem à posição correta, o envio das bombas
nucleares de nível máximo. Em relação ao aproveitamento
das reações nucleares, essas bombas eram o que havia de
mais potente dos produtos derivados dessa tecnologia.
Nenhuma bomba atômica feita pelo homem no século XX
da era humana chegaria aos pés de tão poderosa e terrível
arma. Essas bombas eram conduzidas em seus projéteis em
forma de nave não tripulada. Detonariam somente na
posição determinada pelo comando.
Vinte delas foram enviadas ao sistema e detonadas em
pontos previamente determinados. Sua potência estava num
patamar tão poderoso que uma delas seria muito mais
poderosa que todas as cem bombas atiradas pelas unidades
Kofgtka. Num piscar de olhos, pequenos sóis brotaram nas
posições determinadas. A reação conforme se desenvolvia
provocava o aumento dos sóis artificiais e estes se uniram
numa forma disforme de energia, consumindo assim o
pequeno sistema solar, privando o universo da presença
natural daquele pequeno sistema. O que restou foi nada mais
que poeira espacial espalhada aleatoriamente no vácuo e
nem uma única estrela de nêutrons conseguiu se formar no
antigo lugar do sol. O macabro espetáculo bélico foi assistido
por bilhões de dragões com atenção e silêncio. O
desconforto de um lado e a sensação de poder do outro
eram antagonistas no pensamento de cada cidadão daquela
nave bélica. A bomba-buraco negro foi enviada após a
estabilização das poderosas bombas atômicas. A reação,
assim que a bomba chegou ao centro do pequeno sistema
solar, iniciou-se imediatamente. O buraco negro aumentava
até torna-se provisoriamente estável. Todas as partículas
existentes naquele lugar seguiam o rumo de sua extrema
gravidade. A própria nave Tidianvinst Ti sentiu o poder
daquela gravidade, sendo arrastada para ela. Contudo, seus
poderosos propulsores anularam o efeito com algum
esforço. Os dragões na sala de comando ficaram assustados
com tal poder. Só voltaram à tranqüilidade quando o efeito,
após vinte minutos, cessou. Após descobrirem que tal poder
só deveria ser usado em última instância e com distância
muito longa do local de detonação, deram por encerrados os
testes.
— Acredito que está mais que experimentado nosso poder de
fogo — disse Virters. — Sairemos agora rumo ao nosso
objetivo, comandante Janusty?
— Certamente, Sr. Virters. Vamos seguir o caminho de
nosso destino final, ainda em velocidade lenta, e depois de
tudo revisado, poderemos impor velocidade astronômica
nesta nave — Janusty explicava da forma mais direta
possível.
A nave Tidianvinst Ti vagou pelo espaço sideral por algum
tempo, um pouco mais de um ciclo de Dianvinst, pois o
trajeto foi seguido com muita cautela. Mesmo levando um
ciclo, a viagem fora extremamente rápida, afinal, a distância
era absurdamente longa. Nenhum dragão havia, até aquele
momento, chegado tão longe no espaço. Três milhões de
ciclos-luz seria um projeto posterior sem data fixa para esta
civilização, mas os acontecimentos do passado anteciparam
o encontro dessa civilização com esta parte do universo.
Ao chegarem à fronteira de segurança, determinada pela
sonda e os cálculos, todos os dragões da nave Tidianvinst Ti
mantiveram-se alertas, pois a guerra estaria provavelmente
para começar. Tlüogodärami argumentara, e isso foi
relativamente bem aceito, que deveriam tentar antes de
tudo, em nome de sua civilização avançada com mais de
sete mil anos, um diálogo com aquelas supostas criaturas, e
talvez conseguirem algum acordo, se fosse possível, para
evitar qualquer tipo de catástrofe. A questão era como
manifestar de forma universal o sentido de paz ou diálogo
com aqueles ainda desconhecidos seres. Como seriam? Os
acontecimentos em Tidianvinst não davam subsídios para
conclusões absolutas. Longe disso. Por mais que estivessem
preparados e desenvolvidos naquele momento, ainda
andavam em zona obscura. No comando da nave todos os
dirigentes e comandantes estavam reunidos para discutirem
a melhor forma de contato.
— Esta suposta civilização, suposta porque sinceramente não
posso afirmar com certeza se o são, deve ter alguma coisa
em comum conosco apesar da distância e de mundos
completamente diferentes que nos separam — argumentava
Tlüogodärami. — Devemos encontrar um método simples e
direto para tentarmos uma comunicação com eles. Nosso
ódio e sede de vingança nos trouxeram até aqui, meus
amigos. Mas sinto a necessidade de uma tentativa pacífica de
nossa parte em respeito à nossa própria civilização, fundada
na paz e na construção de um mundo justo e próspero.
Estaríamos contrariando os princípios que nos fundaram se
ao menos não tentássemos algo mais ao estilo de nossa
civilização.
— Não vejo como contrariá-lo, Tlüogodärami — disse
Virters. — Acho que também ninguém discorda de sua
argumentação — todos faziam sinais de afirmação às
palavras de Virters. — Contudo, e faço de suas palavras as
minhas: como faremos para nos comunicar com esse povo?
Precisamos pensar e muito na melhor alternativa.
— Sabemos muito pouco de nossos algozes — Janusty
começou a expor sua opinião. — O mais universal possível
em termos de comunicação é a aproximação pacífica, sem
reação a princípio. Dependendo do comportamento de
nosso inimigo, poderemos evoluir na negociação. Não
consigo ver nada mais universal do que a demonstração de
contato pacífico. Qualquer outro símbolo íntimo nosso
poderia não ser correspondido da maneira que o vemos.
— Também imaginei tática semelhante — comunicou
Tlüogodärami. — Não vejo de outra maneira este primeiro
contato. Se pudermos impedir uma guerra, acho que será
válido, porém não devemos mandar nenhum dragão para
essa missão. Vamos mandar nossos robôs semelhantes a nós.
Assim, depois desse contato inicial, poderemos assumir de
onde os robôs começaram a futura diplomacia com os
estrangeiros.
— Concordamos, então — afirmou Virters que teve apoio
total dos que participavam da reunião. — Comandante
Janusty irá providenciar o pequeno comitê de contato com
os estrangeiros.
— Vou mandar três naves do tipo Kofgtka, com quinze
dragões artificiais. Elas estarão desarmadas como
demonstração de nossa boa vontade — disse Janusty.
Como planejado, três naves partiram rumo ao gigantesco
aglomerado de planetas disforme e profundamente bizarro
aos olhos dos dragões. Os quinze robôs faziam as funções de
uma tripulação comum àquelas naves. Seus tamanhos eram
despercebidos em comparação à nave Tidianvinst Ti. O
comando aguardava ansiosamente aos acontecimentos
posteriores, e a inquietação no ambiente podia ser sentida
por qualquer um presente. As naves seguiram
cautelosamente até as proximidades do território inimigo.
Como sua forma disforme era planamente distribuída, a
massa do aglomerado de planetas não exercia força de
gravidade proporcional a sua massa real. Se fosse uma massa
compacta, aquilo produziria uma gravidade altíssima. Os
robôs monitoravam as proximidades durante seu percurso.
Ao se aproximarem de uma parte do aglomerado, receberam
a ordem de permanecer ali, pois estariam em uma posição
segura e não ameaçadora. Mesmo parados, não deixavam de
analisar a área onde se encontravam para verificarem a
presença de alguma força estrangeira. Nada aparecia em seus
dados. Tudo indicava uma solidão profunda, como se só eles
estivessem ali esperando. Contudo, não desistiriam tão fácil.
Por mais tempo que o estimado, as naves permaneceram na
zona de segurança determinada enquanto esperavam algum
tipo de contato. O comando estava quase desistindo dessa
alternativa quando os sensores detectaram a aproximação de
um objeto com tamanho adequado a uma espécie de nave.
Esperaram mais dados para uma confirmação mais precisa.
Os próximos dados indicavam um tamanho não muito
diferente das Kofgtka e sua trajetória indicava um
movimento artificial, demonstrando que era manipulada por
alguém. Não mais que alguns instantes, a nave estrangeira
encontrava-se diante das três naves dos dragões. Pouca
distância separava os dois grupos. A nave ficou estacionada
diante deles como se os observasse de modo traiçoeiro;
lembrava uma cobra fingindo-se de morta, entretanto atenta
a tudo, pronta para dar o bote.
A tecnologia estrangeira demonstrou ser profundamente
estranha para os dragões. Aquela pequena nave possuía uma
aparência nunca imaginada por qualquer um deles. Havia
uma mescla de tecnologia sofisticada com uma mistura
orgânica. O lado artificial era bem distinto do lado orgânico
daquela nave. Como um polvo gigante, seus inúmeros
tentáculos mantinham-se contraídos como um punho
fechado, dando- lhe a aparência de um botão de rosa
hediondo. Havia um brilho na parte orgânica como se aquilo
transpirasse uma substância viscosa e transparente. Sua
ponta, uma espécie de boca nunca vista antes, mantinha
contrações ritmadas como um relógio preciso e, no entanto,
eram pouco percebidas em função de sua pífia magnitude.
Um vulcão ainda em estágio inicial. Essa massa
aparentemente orgânica repousava sobre a mais sofisticada
tecnologia. Como um receptáculo feito sob medida, cobria a
base da nave até sua parte traseira, onde poderosos
propulsores se localizavam. Todo o engenho e a sofisticação
tecnológica podiam ser observados naquela parte da
espaçonave. A própria contradição encontrava-se resumida
naquela tecnologia, assim pensaram muitos dragões. A nave
continuava observando os visitantes como se não tivesse
reação ou não visse coisa nenhuma à sua frente. Os dragões
ficaram intrigados com aquela situação. Eles tentaram, de
toda maneira, uma comunicação, todavia, nenhuma resposta
vinha da parte antagônica. Os sistemas computacionais,
quebrando o silêncio do inútil contato, indicavam o
movimento de inúmeros objetos como aquele vindo na
direção dos embaixadores e da nave Tidianvinst Ti.
Imediatamente Janusty ordenou as manobras-padrão tanto
ensaiadas naqueles anos de exílio. O velho e conhecido
alarme soou por todos os cantos da nave Tidianvinst Ti. Os
dragões ouviam no alarme o início daquilo há muitos anos
planejado e refletido. Sabiam que a grande guerra, aquela
onde seu futuro seria determinado, começaria naqueles
instantes onde o som ecoava por todos os cantos.
As três naves Kofgtka receberam ordens para partirem
imediatamente, retornando para a grande nave. Mal
receberam a informação e a nave estrangeira, antes
estacionada e inofensiva, seguiu em direção a eles. Sua
velocidade significava um ato de agressão e aquilo que
apenas indicava uma suposição tornou-se realidade. A nave
atacou os diplomatas e de dentro daquela espécie de boca
saiu em altíssima velocidade uma substância altamente
corrosiva. As três naves foram atingidas com precisão
cirúrgica e em pouco tempo pararam de funcionar,
consumindo-se naquela estranha reação química provocada.
Aquele foi o exato instante do início de uma guerra de
proporções nunca antes vistas entre duas espécies separadas
por milhões de anos-luz.
As primeiras impressões indicavam a presença de uma
civilização avançada. Os dragões teriam um trabalho duro
nessa guerra, mas estavam dispostos a combatê-la a qualquer
custo. Seu preparo os indicava para essa tarefa. Os
acontecimentos do passado não poderiam ficar impunes ou
poderiam voltar a acontecer; um ciclo vicioso se formaria
entre essas civilizações quase desconhecidas uma para outra.
Krueur Aerok seguiu como qualquer componente daquela
gigantesca nave à sua posição previamente indicada por
inúmeros treinamentos. No tumulto dos acontecimentos,
Krueur pegou sua velha conhecida Kofgt, onde obtivera
tanto sucesso no passado. Contudo, agora a realidade era
outra e poderia não voltar depois desse combate, afinal
aquilo não era mais uma simulação. Um peso na consciência
surgira naquele instante e o sentimento de medo começava
a dominá-lo.
Rapidamente conseguiu achar um equilíbrio entre seus
sentimentos para fazer aquilo que deveria ser feito.
Obviamente seu medo não passou, pois o pensamento da
futura morte o assombrava o tempo todo, entretanto sabia
que se deixar dominar por aquilo só iria levá-lo mais rápido
para o túmulo. Entre o temer e o acontecer, lutaria com
todo o seu empenho para não concretizar seus piores
pesadelos. Voltou ao seu cotidiano não permitindo sua
derrota antes mesmo de começar o combate. Acomodado
no tradicional assento dos dragões, onde o dragão
posicionava-se como se fosse em uma motocicleta de
corridas humana, observava atentamente os visores
esperando autorização para sair em combate. Levas e levas
de naves eram liberadas. Havia um quase congestionamento
naquele suposto tumulto, porém a situação transcorria
conforme o ensaiado. Questões que exigiam velocidade
davam a falsa impressão de caos, entretanto, tudo seguia o
protocolo e não havia atrasos ou caos verdadeiros até o
momento da saída de Krueur. O visor da pequena nave
Kofgt indicava a preparação para o combate. Aerok
preparou-se, fazendo os procedimentos-padrão. Verificava
todas as armas disponíveis naquele dispositivo de guerra,
"engatilhando-as" ao combate. Com a tensão à flor da pele,
Krueur não desgrudava seus olhos da tela principal,
esperando a autorização derradeira, onde seguiria para o
campo de batalha. O reflexo alternado, como uma luz que
pisca, de uma imagem sobre suas pupilas indicava o
momento tão esperado e temido. A nave manobrava junto a
milhares de outras, seguindo o caminho como um cardume
de peixes nadando sobre um oceano nebuloso e turbulento.
Aquela manobra inicial era relativamente lenta em
comparação ao potencial da nave, contudo o procedimento
não era muito demorado. Eles passavam pelo portão final
rumo ao vácuo do espaço. Krueur estava entre eles.
Guerreiros há muito treinados para aquele dia especial.
As naves estrangeiras seguiam o mesmo rumo iniciado pela
primeira, no momento do contato com as naves designadas
pelos dragões para a fracassada tentativa de diplomacia. A
formação daquelas naves não estabelecia nenhuma estratégia
a princípio. Sua desordem não estabelecia ainda uma
informação precisa sobre possíveis formações de combate
desenvolvido pelos estrangeiros. A única coisa observável
neles estava na compactação que suas naves faziam,
tornando aquela gigantesca quantidade de espaçonaves
quase uma entidade única. Assim permaneceram até chegar
ao seu alvo. Ao se aproximarem da contra-ofensiva dos
dragões, a massa compacta de naves estrangeiras se
espalhou, ampliando ainda mais seu campo de batalha.
Demonstrando intenção de uma manobra de defesa,
compactando-se, e uma manobra de ataque, dissipando-se.
Krueur observava atentamente a manobra do inimigo, cada
vez mais concentrado em sua missão, não permitindo mais
que o medo o subjugasse. Com controle total de sua mente,
o ataque começou. O choque de duas forças concebidas por
duas civilizações foi inevitável. Os arsenais foram postos à
prova. Um combate de proporções gigantescas foi
desencadeado.
Krueur logo a princípio abatera duas naves com seus
canhões de curto alcance. Como o combate era muito
próximo, não convinha usar um poder de fogo maior, pois
poderia ser catastrófico para ele próprio e os companheiros
combatentes ao seu lado. Descobrira que elas não possuíam
muita resistência, sucumbindo facilmente ao poder de fogo
dos dragões. Contudo, Krueur observava que, apesar de não
possuírem muita resistência, eram letais quando pegavam
alguma nave de seus companheiros. Não deviam ser
subestimadas e todo o cuidado era pouco naquele campo de
batalha obscuro. Enquanto abatia mais algumas naves
estrangeiras com alguma facilidade, os sensores detectaram
duas naves perseguindo-o perigosamente. Naquele
momento a necessidade de decisões rápidas foi requisitada
pelo problema. Rapidamente, Krueur solicitou ao sistema
computacional uma trajetória onde pudesse sair do tumulto
maior e levar seus perseguidores a um campo mais aberto. O
sistema respondeu ao seu apelo demonstrando a trajetória
mais adequada. Krueur confirmou o desejo de segui-la e
assim o fez. As naves o perseguiam implacavelmente.
Periodicamente tentavam atirar com suas armas corrosivas
sem obter, contudo, o sucesso desejado. Krueur manobrava
em ziguezague para despistar qualquer tentativa de atingi-lo
com suas armas. Instantes depois a nave conseguira sair
daquele campo congestionado seguindo caminho mais livre.
Seus possíveis algozes continuavam a perseguição
obstinadamente, tornando o caminho de Krueur
perigosíssimo. Tentara manobras de todos os tipos, mas as
duas naves alienígenas pareciam ler seus mais íntimos
pensamentos. Seus canhões eram inúteis, pois, ao atirar, as
naves desviavam facilmente com o privilégio do local
oriundo do tiro estar no campo de visão dos próprios. Estava
quase desistindo quando subitamente uma idéia passou-lhe
pela mente. Seria altamente arriscado, mas poderia dar certo,
afinal todas as manobras-padrão treinadas ã exaustão não
funcionaram até aquele momento. Krueur aos poucos
abaixava a nave imperceptivelmente e numa manobra
arriscadíssima parou literalmente sua pequena nave usando
os propulsores dianteiros. Não sentira a brusca frenagem em
função do sistema magnético que compensava tal efeito
nocivo. As duas bizarras naves passaram em alta velocidade
alta sobre a cabeça de Krueur, sem perceber a manobra a
tempo. Rapidamente retomou o curso em sua anterior
velocidade e agora perseguia seus rivais. Antes que uma
delas escapulisse de seu campo de tiro, usou toda a potência
de suas armas contra elas, aproveitando o campo aberto e
sem outros companheiros. Sem perceber o que as atingira,
as duas naves estrangeiras estavam totalmente destruídas,
impossibilitadas de voltar ao combate. Com a raiva e a
confiança característica dos guerreiros vitoriosos, Krueur
voltou ao epicentro do combate, destruindo todas as naves
que apareciam diante de si. A nave Tidianvinst Ti usava,
também, seu poder de fogo para abater algumas naves
errantes que escapuliam da zona de combate. Casulos de
sobrevivência seguiam caminho para a nave-mãe, escoltados
por algumas naves Kofgtti e Kofgtka. Algumas horas depois,
seguindo esse ritmo, o combate se encerrara com a vitória
absoluta dos dragões. Na zona de combate, vários restos de
naves de ambos os lados, tendendo infinitamente mais para
o lado dos estrangeiros, vagavam pelo espaço infinito. Um
alívio tomara conta de Krueur naqueles momentos de
vitória. Seu treinamento demonstrara-se profundamente
eficiente e a confiança crescera a partir daquele instante.
Seguindo o caminho para casa, Krueur, ao pousar, avistou a
empolgação e a festa promovida por seus conterrâneos.
Aquele dia seria, desde já, de descanso e comemoração, pelo
menos momentaneamente.
Janusty dialogava com os dirigentes sobre o sucesso da
primeira empreitada. O ânimo estava em alta naquele
recinto. As vozes juntas formavam um único som em
freqüência mediana, expressando literalmente o
contentamento dos dragões ali presentes. Naquele instante
os dragões batizaram seus inimigos com uma expressão de
sua língua geral. Aquelas criaturas estrangeiras passaram a se
chamar mocubrinles. Expressão esta que significava
"criatura hostil estrangeira". Um silêncio tomou conta do
recinto quando Janusty começou a falar.
— Nossa vitória hoje foi incontestável e destruímos
completamente a força mandada por esses mocubrinles. A
campanha aqui neste sistema deformado será curta mediante
a prova irrefutável vista hoje em batalha - os olhos de
Janusty deixavam transparecer seu orgulho e confiança.
— Não há a menor dúvida, comandante — disse Virters. —
Nossa vitória é apenas o início de uma guerra vitoriosa.
Apesar de estes mocubrinles serem sofisticados, não foi uma
tarefa difícil de cumprir. Parabéns a todos os participantes
dessa empreitada, e que mais vitórias venham e nos levem
ao fim desta guerra com honra e dignidade — Virters
caminhava de um lado para o outro, encarando os ali
presentes. Todos balançavam suas cabeças positivamente,
concordando com as palavras do supremo dirigente. —
Quais são as informações sobre a integridade da nave,
comandante Janusty?
— Não sofremos absolutamente nada na nave-mãe —
respondia prontamente Janusty. — Perdemos mil duzentos
e cinqüenta e três naves, sendo a maioria esmagadora do
modelo Kofgt e infelizmente tivemos cento e vinte e uma
baixas. Desde os acontecimentos no planeta Tidianvinst, nós
não havíamos perdido tantas vidas.
— É lamentável — disse Vinters, demonstrando profundo
pesar e sendo retribuído por seus pares com o mesmo
sentimento. — Não deixemos essas vidas destruídas em vão,
meus amigos. A melhor forma de homenageá-los será com
vitórias nesta guerra; e cada dragão presente nesta
espaçonave não deve pensar diferente desta simples idéia.
Acredito que se dermos nosso melhor, nada nos impedirá de
chegarmos à sonhada vitória — todos, como que
coreografados para uma peça teatral, concordavam com cada
palavra proferida por Virters. Todos, menos um: o dragão
com áurea simbólica mais importante nas mentes daquele
sofrido e sofisticado povo. Num canto, obscurecido pelos ali
presentes, Tlüogodärami observava seus companheiros,
concentrado no que foi dito no movimentado recinto.
A cautela foi um princípio sempre utilizado por
Tlüogodärami em suas reflexões. Apesar de compreender os
princípios básicos fomentadores daquela guerra, sempre
tivera um pé atrás em relação àquilo tudo. A situação em si
era extremamente perigosa. Apesar do respeito obtido
pessoalmente e por seu simbólico título, sofrerá o mesmo
destino, guardadas as devidas proporções, do primeiro
Tlüogodärami, sendo praticamente desprezado em suas
colocações. Entretanto, sua presença era imposta por si
mesmo nestas reuniões. Sabia que seus compatriotas
estavam obcecados pela sede de vingança e enxergavam de
forma limitada os perigos existentes naquela situação. Numa
posição desconfortável desde o início daquilo tudo,
colocara-se no papel de contestador para que o campo de
visão daquela situação ampliasse o horizonte dos dragões.
Como a maioria do que fora proposto por ele foi significa-
tivamente desprezada, não perdia mais seu tempo discutindo
questões menores. Apenas tentava refletir sobre aquilo tudo
observado por seus experientes olhos de dragão, pois, se
algum dia a situação fosse coberta pelo manto da desgraça e
do fracasso, poderia ajudar os seus sabendo exatamente quais
as soluções para sanar antigos erros. A cegueira imposta pela
arrogância dos dirigentes alimentava o silêncio de Tlüogo-
därami. Antes uma figura respeitada em qualquer ambiente
do mundo dos dragões, agora não passava de uma figura
retrógrada e passiva, na opinião daqueles que tinham o
poder, fazendo com que o silêncio fosse bem recebido pelos
dirigentes.
A sonoridade da reunião foi quebrada pela presença de um
jovem dragão militar que se dirigiu imediatamente, após sua
entrada, ao encontro de Janusty. Comentou algumas coisas
ao pé do ouvido e retirou-se imediatamente sem fazer a
menor cerimônia, como se estivesse muito atarefado.
Mediante a rápida saída do jovem dragão, Janusty comentou
com Virters as últimas novidades. Este não teve dúvidas e,
não pensando duas vezes, compartilhou a notícia com todos
ali presentes.
— Capturamos o que parece ser um dos mocubrinles.
Finalmente saberemos o que são essas criaturas e poderemos
aprender mais com sua bizarra tecnologia e suas verdadeiras
intenções — falava empolgado com as possibilidades até
então. Apesar dos ataques sofridos no passado, nenhum
dragão havia tido contato com criaturas alienígenas na vida;
seria um acontecimento fantástico se não fosse a condição
terrível daqueles dias iniciais de guerra.
Os presentes na sala de Janusty, até mesmo Tlüogodärami,
foram conduzidos até um local não acessível a todos naquela
nave. Diante de pequenas aberturas cobertas com
superfícies transparentes reforçadas, havia uma sala de
pesquisa com vários robôs especializados. Ali se encontrava
uma das estruturas orgânicas com sua parte tecnológica
totalmente destruída. A estrutura, semelhante a um botão de
rosas fechado hediondo, enrugado e seco, encontrava-se
centralizada no recinto especial, cercada por robôs prontos
para executarem suas funções mediante as ordens dadas
pelos dragões. Os dragões acomodaram-se, alguns nas
pequenas escotilhas, outros observando uma tela onde ima-
gens eram geradas mostrando todos os acontecimentos ali
vividos naquele ambiente de pesquisa especial. Os robôs
começaram a operação determinada e com bastante esforço
e paciência, conseguiram abrir a estrutura. Uma criatura,
com a metade do tamanho de um dragão mediano, saiu
surpreendendo os que ali presenciavam tal operação. Nada
os prepararam para o que viram. A criatura não se
assemelhava em absoluto com nada visto por eles. Seu corpo
totalmente desestruturado rastejava pela sala, não se
distanciando da abertura forçada pelas máquinas. Sua pele
enrugada lembrava a casca de uma árvore morta, porém
demonstrou uma flexibilidade tremenda. Não aparentava
possuir ossos, pois seus movimentos eram absolutamente
livres. Contorcia-se como que sofrendo espasmos aleatórios
e emitia um som perturbador sentido, até mesmo, fora do
recinto mediante a vibração das superfícies transparentes.
Os robôs tentavam uma aproximação e a conseqüência disso
estava na retaliação provocada pelo ser estrangeiro.
Rastejando, chacoalhava o que parecia uma cabeça de
medusa, com tentáculos semelhantes a galhos secos. Na
verdade, por não possuir uma constituição próxima das
criaturas viventes em Dianvinst, não se podia definir o que
era exatamente. Sua cor marrom-acinzentada começou a
mudar como que refletindo a luz decomposta. Tons de azuis
e vermelhos diversos, alternando com pretos, cinzas e
brancos, provocavam um espetáculo à parte. Abismados
com o que viam, os dragões alternavam seus olhos ora para
as telas e escotilhas, ora para seus companheiros próximos.
O espetáculo alienígena perdeu seu encanto quando a
criatura parou de emitir suas cores psicodélicas e
rapidamente dirigiu-se para dentro do que restou da nave.
Antes de entrar, pôde-se perceber uma espécie de órgão
sensorial, parecido com uma mancha negra no centro dela,
se era realmente o centro de uma criatura tão deformada.
Uma reação química começou a acontecer diante dos olhos
assustados daqueles espectadores. Um vapor branco
começou e invadir toda a sala. Não havia mais imagens
nítidas dos acontecimentos internos. Os robôs tentavam
conter a reação, mas eram rapidamente destruídos. Seus
membros mecânicos derretiam como que atacados por um
ácido poderoso. Momentos depois do bizarro
acontecimento, a fumaça branca foi substituída por uma
explosão, e o que era branco tornou-se chamas. Uma
fornalha de alta temperatura foi criada naquele recinto.
Depois de breves momentos, tudo se extinguiu como se
nada tivesse acontecido. A nave e o ser foram pulverizados,
sobrando uma tentativa de cratera no local onde antes se
encontravam. Cinzas denunciavam a existência de alguma
coisa ali presente antes dos acontecimentos testemunhados
pelos dragões, e nada mais. Os robôs estavam em precária
situação, apesar de muitos ainda estarem operantes. O
recinto de pesquisa sobreviveu não se rompendo,
demonstrando a eficiência de sua estrutura reforçada. Ao
levar à nave, os dragões temiam a existência de algum
artefato bélico e sabiam que a sala resistiria bem, caso
acontecesse algo semelhante ao que realmente aconteceu
naquele recinto.
Virters refletiu sobre as possibilidades daquilo tudo. Estava
com um tesouro em suas patas. Poderia ampliar seu poder se
conquistassem aqueles mocubrinles. Como uma serpente
venenosa, depositou seu veneno no imaginário dos outros
dirigentes. Encontrava-se secretamente com cada um e
expunha seu ponto de vista em relação às possibilidades
daquela conquista. Todos os dirigentes se corromperam com
o futuro poder. Tlüogodärami, obviamente, foi deixado de
lado nesse assunto. Virters sabia que não conseguiria
corrompê-lo. Secretamente sonhava com o futuro. Sua
atitude pretensiosa e sua ganância deturpavam sua visão da
realidade. Decidiu não atacar de imediato a massa disforme
de planetas. Queria a todo custo que fosse mantido intacto.
Conquistariam os mocubrinles e iniciariam uma nova era no
universo, com os dragões reinando absolutos. Senhores do
universo e ele, Virters, seria a autoridade máxima daqueles
senhores.
Sessenta dias se passaram desde o primeiro combate e ainda
havia esperança nos semblantes dos agora guerreiros
dragões. Em termos de estratégia pouco evoluíram. O
campo de batalha apresentava-se grande demais para ainda
chegarem a um veredicto e um ataque final. Havia incursões
dos estrangeiros em todos os dias daquela guerra longe de
casa. A estagnação, contudo, não desanimava em nada os
dragões. Não haviam acumulado sequer uma única derrota
até aquele momento e a cautela era aceita como estratégia
maior para a grande vitória, inevitável no consciente
coletivo daqueles seres de Dianvinst e Tidianvinst. Aqueles
combates diários desviavam uma boa parte dos recursos, por
isso a estagnação. As poucas sondas enviadas para mapear e
monitorar o conglomerado de planetas não conseguiam, até
aquele momento, avançar muito no território do inimigo.
Apesar de inúmeras informações obtidas nesses sessenta dias
de Dianvinst, não eram absolutamente suficientes à
construção de uma estratégia viável para um ataque
eficiente. Mas em relação a isso, até aquele momento,
elaboravam planos para um maior sucesso da missão de
exploração.
O sexagésimo dia de guerra guardou uma surpresa quase
decisiva para aquele combate em seu todo. A rotina indicava
pelo menos um ataque por dia dos estrangeiros. Em algumas
ocasiões houve mais de um, mas no todo o padrão indicava
um, sempre com o insucesso do inimigo. Aquele padrão
tático repetitivo perdera totalmente o sentido para os
dragões. Talvez não tivessem toda a capacidade de gerir uma
guerra ou aquilo representava uma resistência fraca. Até
quando poderiam mandar naves de ataque tornara-se uma
incógnita, contudo não poderiam mandar para sempre.
Muitos compartilhavam esse pensamento, e como o sucesso
da defesa sempre fora eficiente, não estavam preocupados
com aqueles ataques diários. Desviando totalmente de
qualquer padrão, o sexagésimo dia quebrou rotinas
recentemente adquiridas. O dia começara normalmente e os
alarmes de preparação soaram para aqueles convocados para
os combates do dia. Os dragões mantinham um rodízio bem
variado, pois nunca precisavam usar suas forças totalmente.
Um combatente comum não precisava lutar mais que uma
vez a cada cinco dias. A comandante Janusty encontrava-se
na área de monitoramento, onde centenas de dragões
estavam enfileirados, monitorando seus sistemas
computacionais. Nada poderia escapar despercebido diante
da nave Tidianvinst Ti. Não diferente de outros momentos,
durante o expediente de trabalho, o ataque foi identificado
nos sistemas. Quebrando quaisquer expectativas repetidas,
nada como aquilo fora detectado antes. O número de naves
inimigas em direção à grande nave estava num patamar
numérico ainda não calculado pelos sistemas
computacionais. Mesmo não possuindo um número exato, a
quantidade de naves visíveis pelos sistemas nunca tora
observada até aquele momento. Eram pelo menos mil vezes
mais abundantes que os ataques anteriores e seguiam com
velocidade maior que a padrão. Os avisos de perigo
começavam a brilhar nos monitores dos dragões ali
presentes; nada como aquilo era esperado ou sequer
imaginado.
Krueur encontrava-se em sua base de comando, esperando o
alarme. Fora escalado para pilotar sua Kofgt naquele dia.
Encontrava-se entediado quando de súbito o alarme sonoro
ressoou por todas as áreas habitadas na nave Tidianvinst Ti.
Aquele específico alarme só fora ouvido em treinamento e
logo seu coração disparou. O som possuía um significado
bastante marcante, mesmo só ouvido em treinamento; o
alarme significava a convocação de todos os soldados
disponíveis. A defesa de hoje exigiria força total dos dragões.
Krueur rapidamente correu para sua pequena nave e
posicionou-se para o combate. Todos os dragões presentes
fizeram o mesmo. Suas naves dirigiram-se em um comboio
organizado, para um patamar geral, onde outras unidades
encontravam-se reunidas. As liberações dessas unidades
estavam adiantadas e não demorou muito para que Krueur e
seus companheiros dragões fossem para suas posições de
defesa no espaço. Nesse ínterim, Krueur aproveitou para se
informar sobre os últimos acontecimentos. Buscou a
freqüência de seu comando e recebeu suas ordens. No
pequeno monitor próximo aos seus olhos, procurava
diagramas informando o que estava acontecendo. Ficou
surpreso com a quantidade de naves alienígenas rumando
em direção de Tidianvinst Ti. O dia definitivamente estava
seguindo um rumo atípico. Krueur ouvia atentamente os
diálogos vindos das freqüências.
O Kofgts das unidades 2067 devem se posicionar nos pontos
indicados nos sistemas computacionais. Confirmem pelo
transmissor o entendimento — KRUEUR, ENQUANTO OUVIA
AS ORDENS, OBSERVAVA NO MONITOR AS COORDENADAS
ENVIADAS PARA ELE.
O Kofgt unidade 2067-550 confirmando a ordem — disse
Krueur, respondendo ao pedido anterior. Logo em seguida
recebeu a afirmação no monitor indicando que estava livre
para seguir as coordenadas.
As naves do inimigo chegavam aos bilhões. De todas as
posições imagináveis, aquelas naves apareciam atraídas pelo
conflito; insetos atraídos pelo néctar precioso e necessário.
Depois de sessenta dias, um novo comportamento do
inimigo surgia diante dos olhos confusos dos guerreiros
dragões. Os grandes aglomerados dissipavam-se tomando
uma posição inédita até então. De qualquer lado existente na
grande nave dos dragões, havia naves inimigas em grandes
quantidades rumando naquelas respectivas direções. Krueur
percebeu aos poucos que as pequenas naves Kofgts estavam
formando um escudo protetor de naves envolvendo todos
os lados da nave Tidianvinst Ti. Como um véu, as naves
tentariam formar um escudo de defesa, uma linha de frente
para eliminar a insurreição alienígena. Como não havia o
suficiente para cobrir a nave toda, literalmente, a sensação,
ao longe, era de uma névoa rala envolvendo a grande nave.
Em poucos instantes, a formação de defesa estava feita e
restou aos dragões a amarga espera do ataque do inimigo.
Krueur não tirava os olhos de seus monitores e da escotilha
existente na nave, alternando movimentos de sua cabeça
para dar conta da pequena tarefa. Sua pata dianteira estava a
postos com o dedo no gatilho para começar os tiros de
defesa. Encontrava-se totalmente envolvido naquela função.
A nave e Krueur, naqueles instantes de tensão, tornaram-se
uma só entidade. Os sentidos mais primitivos despertaram
naquele momento. Audição, visão, olfato e tato estavam
mais ampliados do que nunca. Assim parecia na mente de
Krueur. Não sabia se era por certo nervosismo ou se
realmente aquilo estava acontecendo, mas no mínimo era
assim que se sentia. Pronto para defender a si e seu povo
contra aquele inédito ataque dos mocubrinles.
A espera terminou abruptamente. As naves mocubrinles
começaram seus ataques em escala nunca antes vista.
Seguiam em grupo, enquanto as naves dos dragões tentavam
abater ao máximo seus inimigos. A barreira formada pelos
dragões cumpria sua função, enquanto a grande massa de
naves inimigas se afunilava mediante essa barreira imposta.
Krueur nunca havia visto tantas naves juntas e batera de
longe, logo nos primeiros minutos, seu recorde de naves
abatidas. E o mais terrível era que não paravam de aparecer.
Brotavam na frente de Krueur como água de uma nascente e
não havia perspectivas de cessação daquele ataque. As
poucas violações acontecidas eram estancadas, por assim
dizer, com os tiros vindos da nave Tidianvinst Ti até um
substituto conseguir colocar-se na posição do companheiro
abatido. Os sensores da grande nave apontavam, e esta
informação chegou a todos os envolvidos no combate, que a
grande parte da aglomeração estava na parte dianteira da
Tidianvinst Ti. Tudo levava a crer que estavam interessados
em atacar a parte onde havia a arma derradeira da nave. Os
dragões se questionavam como sabiam daquilo se não havia
contato direto, a não ser o combate entre aquelas duas
entidades. Demonstravam ser um inimigo respeitável com
inteligência ainda mais superior ao que os dragões
imaginavam até aquele momento. Os dragões responderam
com duas estratégias. A primeira, bem-sucedida, foi abrir
caminho naquele caos e colocar uma frota de naves acima
do turbilhão de naves e fazer um ataque por dois flancos. A
segunda foi retirar uma quantidade de naves da parte traseira
e reforçar a parede de naves na parte dianteira. O combate,
anteriormente bem-sucedido aos dragões, começou a entrar
num estado de equilíbrio. A maior parte do combate
encontrava-se na parte dianteira e os dragões achavam que
aquele ataque inimigo teria seu fim mediante apenas uma
questão de tempo. A vitória dessa vez seria mais difícil,
porém outro resultado não passava pela mente dos dragões.
No calor do combate, Krueur continuava em sua posição,
combatendo o máximo que podia. Quando a concentração
de mocubrinles passou a estar na parte dianteira, Krueur
recebeu ordens imediatas para reforçar aquele flanco.
Imediatamente rumou para as coordenadas estipuladas pelo
comando, e o combate recomeçou tão intenso como antes.
As naves apareciam aos milhões e cada vez mais estava
difícil de abatê-las. Demonstravam padrões de manobras não
vistas até então e o medo tomou conta de Krueur. Uma boa
parte das naves foi obrigada a retirar-se de suas posições fixas
para combater mediante a habilidade do inimigo. Não
diferente de muitos, Krueur Aerok foi obrigado, também, a
sair de sua posição predeterminada para combater com mais
eficiência. O combate livre trouxe mais eficiência, a
princípio, para ele e os demais. Mas, ainda assim, o número
de naves pertencente aos dragões era demasiado inferior.
Krueur continuava combatendo como se aquela situação não
tivesse fim. As naves os perseguiam e, durante o caminho
congestionado, tentava abater o máximo possível. Conforme
o tempo passava, essa eficiência tornou-se discutível. Seu
rendimento não estava mais adequado, mediante o cansaço
produzido pelo combate. Mas ainda assim seu espírito
guerreiro não permitia desistir tão fácil de sua posição.
Durante uma perseguição, depois de oito horas de combate
ininterruptas, a nave de Krueur sofreu uma pane energética
e seu sistema de defesa interrompeu o funcionamento
constante. Não acreditara naquilo nos primeiros instantes,
depois procurou consertar de alguma maneira aquela
perigosa situação. Não obteve sucesso. De repente uma parte
dos sistemas começou a funcionar e verificou uma carga
baixíssima. A nave de Krueur, naqueles instantes de pane,
fora atingida duas vezes, sem trazer-lhe muito prejuízo. Os
sistemas apontavam, depois de sua volta parcial, a vinda de
doze naves na direção de Krueur. Este, por sua vez, testou a
eficiência de suas armas, não obtendo os resultados
esperados. Ficou apreensivo mediante a situação e pensou
rapidamente no que fazer. Suas armas não funcionavam e a
nave estava seriamente sem energia. Calculou a distância
para uma fuga para Tidianvinst Ti e começou o trajeto até
ela.
Na fuga, Krueur sentiu a falta de rendimento de sua nave e
estava quase impossível fugir de seus algozes. Quando
chegou até um perímetro próximo à nave Tidianvinst Ti,
fora atingido impiedosamente pelas naves inimigas. Numa
fração de segundos, tempo não suficiente para piscar os
olhos, apertou o gatilho de ejetar a cápsula de sobrevivência.
Um segundo depois disso e teria sucumbido com sua
pequena nave. Rapidamente, a defesa da grande nave
destruiu ou afastou seus perseguidores. Em estado de choque
por seu quase falecimento, Krueur não conseguia refletir
direito sobre o ocorrido. Sua cápsula rumava sofrivelmente
para a nave-mãe, quando foi interceptada por uma nave-
reboque, que estava rumando para a nave levando sua carga
viva. Foi a primeira vez que perdera um combate e isso
trouxe muito o que refletir sobre toda aquela situação.
Igual a Krueur, milhões de outros dragões sofreram do
mesmo mal. As baixas também estavam em um patamar
nunca antes visto desde os acontecimentos em seu querido
planeta Tidianvinst. Mesmo assim o combate estava no auge
de seu desenrolar. Quando os dragões acharam que estavam
revertendo o quadro trágico daquela covardia numérica, o
inimaginável aconteceu. Os sensores da grande nave
Tidianvinst Ti alertaram ao comando e às naves dos dragões,
a vinda de uma segunda leva de naves alienígenas tão
numerosa como a primeira. Essa nova leva de naves seguiu
em massa para a parte traseira da grande nave dos dragões. O
comando tentou reagrupar suas naves, mas o combate exis-
tente na parte dianteira não permitiu um rearranjo eficiente.
Muitos dos combatentes convocados estavam no calor do
combate sem poder se preocupar com ordens, pois
poderiam custar suas preciosas vidas. Bilhões de naves
alienígenas não tiveram dificuldades de atravessar a
enfraquecida parede formada pelas naves dos dragões. Os
sistemas de defesa da nave Tidianvinst Ti começaram a
funcionar alucinadamente. Um forte clarão formou-se
mediante os tiros empreendidos pelos canhões de defesa. A
parte dos propulsores começou a ser atingida pelos ataques
e, rompendo qualquer barreira imposta ou defesa arquitetada
pelos dragões, bilhões de naves alienígenas invadiram o
sistema de propulsão. Muitas delas se chocaram diretamente
com a nave, produzindo explosões e a quantidade
astronômica delas começou, depois de um árduo trabalho
destrutivo, a aniquilar os propulsores da nave Tidianvinst Ti.
A destruição foi incomensurável, deixando uma ferida
profunda na maior obra de engenharia e tecnologia
produzida pelos dragões.
Janusty em sua sala de comando foi rápida em convocar suas
naves de volta. Precisariam de todos para tentar conter a
enorme destruição provocada pelo inimigo. As armas da
nave Tidianvinst Ti tentaram a todo custo suprir a falta de
seus combatentes no campo de batalha. Quando a maioria
voltou para a nave-mãe, numa atitude desesperada, ordenou
o lançamento das armas mais poderosas dos dragões. Estas
por sua vez localizavam-se na frente da nave. Três projéteis
saíram dos canhões dianteiros. As naves mocubrinles, vendo
a saída daqueles projéteis, seguiram com força máxima para
atacar a já danificada frente da nave. Sem calcular os riscos, a
atitude empreendida pelos dragões mostrou-se desastrada.
As bombas detonaram próximas demais da nave Tidianvinst
Ti e algo inimaginável aconteceu. Três buracos negros se
formaram, e um foi sugado pelo outro até sobrar apenas um.
A grande gravidade do fenômeno sugou tudo próximo.
Naves dos dragões, naves dos mocubrinles, absolutamente
tudo. A grande nave-mãe começou a ser sugada. Vários
destroços da parte dianteira voavam para o buraco,
desmanchando a bela obra de engenharia. Durante vinte
minutos ficaram à mercê do fenômeno artificialmente
criado, impotentes. Quando este finalmente terminou seu
ciclo, uma massa astronomicamente densa e pequena tomou
seu lugar. A parte dianteira ficou seriamente danificada,
como carne em decomposição avançada. Contudo, a parte
da frente da nave-mãe ficou livre de seus algozes a um custo
extremado e desnecessário. Os dragões não esperavam um
desfecho como esse. Os danos foram gravíssimos e
demoraria muito para serem reconstituídos em sua total
plenitude.
Todos os dragões disponíveis seguiram rumo aos trabalhos
de contenção das áreas destruídas. A área da parte traseira já
fora hermeticamente fechada pelo sistema computacional e
os dragões avaliariam os verdadeiros estragos, que a
princípio eram muitos e graves.Todos os propulsores foram
destruídos e muito oxigênio fora desperdiçado até todo o
sistema isolar aquela parte da nave.
Virters imediatamente chamou Tlüogodärami e juntos
dirigiram- -se à sala de comando onde a comandante Janusty
se encontrava.
— Bom os senhores terem chegado, temos muito que
conversar — disse Janusty com expressões não muito
cordiais.
— Quais foram os estragos, comandante? — perguntou
Virters, também de forma direta e expressando
preocupação.
— Não sabemos ao certo as extensões dessas destruições, mas
sabemos que foram gravíssimas. Os acontecimentos deste
dia podem ter nos custado a guerra, senhores.
— Não é possível, somos muito superiores que esta raça de
infelizes - disse Virters emocionalmente abalado.
— Sinceramente, dirigente Virters, superiores ou não,
tivemos uma terrível derrota hoje — disse Janusty ao
abalado dirigente supremo.
— Ilustríssimo Tlüogodärami, diga algo que possa iluminar
este período de trevas vivido por nós — Virters olhava para
Tlüogodärami reproduzindo um olhar exigindo esperança.
— Nossas atitudes foram arrogantes, meu caro Virters. Agora
só nos resta aceitar a derrota e tentar nos preparar o melhor
possível para o tempo futuro — pronunciou-se
Tlüogodärami surpreendentemente calmo naquele ambiente
nervoso. —Vamos analisar aquilo que nos sobrou e fazer o
melhor com isso.
— Sei que não o ouvi como deveria, ilustríssimo
Tlüogodärami. Peço-lhe desculpas. Mas não posso acreditar
nesta derrota. Conseguiremos sair desta, de alguma maneira.
— Aceite o preço de nossa arrogância,Virters. E não disse
que sairemos derrotados. Sobreviver a esta sucessão de erros
torna-se uma vitória — Tlüogodärami caminhava encarando
seus pares, ainda transmitindo calma.
— O que a senhora nos diz, comandante Janusty —
perguntou Virters.
— Não temos dados exatos, mas perdemos muitos dragões.
Nosso arsenal de naves foi reduzido drasticamente e
teremos de repor isso o quanto antes. E o problema mais
grave está na nave-mãe. Ela está totalmente ilhada neste
sistema. Não podemos nos mexer até conseguirmos
consertar totalmente os propulsores e, se me lembro bem, é
a parte mais complexa da nave. No caso de destruição total,
isso levará muito tempo.
— E sem o poder de locomoção, não poderemos suprir
nossas necessidades de matérias-primas — completou
Tlüogodärami aos demais.
— O quanto exploramos daquele asteróide capturado antes de
virmos para o sistema dos alienígenas?
— Próximo de setenta por cento dele, Sr. Tlüogodärami —
disse a comandante Janusty.
— Isso não é uma boa notícia — Virters estava visivelmente
decepcionado com a notícia.
— Não mesmo — pronunciou-se Tlüogodärami. — Teremos
de fazer economia drástica de nossos recursos e tentar de
todas as formas sobreviver a este período sombrio de nossas
vidas.
— Isso não é justo,Tlüogodärami.
— Poderia não ser quando nosso planeta foi atacado pela
primeira vez, mas este segundo período de trevas foi uma
escolha nossa e daqui para a frente devemos consertar
nossos erros.
— Entendo e me arrependo de não ouvi-lo.
— Não coloque todo o peso do mundo sobre suas costas,
meu caro Virters. Somos todos responsáveis. De agora em
diante vamos procurar fazer o melhor para nosso povo e
aceitar nossa momentânea derrota.
— Sim.
— Agora vou para meus aposentos para refletir um pouco
sobre isto. Precisando de alguma coisa, me contatem —
Tlüogodärami despediu-se de Janusty e Virters.
—Vamos nos reunir com todos os dirigentes e discutir a
situação assim que tivermos dados mais consistentes —
informou Virters. — Quando a comandante Janusty estiver
com esses dados, informará a todos.
— Gostaria de recebê-los também, comandante — pediu
educadamente Tlüogodärami.
— Enviarei o quanto antes, ilustríssimo.
— Vou refletir também sobre isso, Janusty, e quando estiver
com mais dados, mande chamar-me imediatamente — disse
Virters, enquanto Tlüogodärami já se encontrava longe
daquela conversa.
— O mais rápido que eu puder averiguar, dirigente.
Um período trágico apresentou-se para os dragões. Não era
seu feitio fugir de suas responsabilidades e tentariam a todo
custo consertar sua nave e fugir para quem sabe reconstruir
mais uma vez sua extraordinária civilização. Tlüogodärami
saiu da sala de comando extremamente pensativo e retirou-
se aos seus aposentos para refletir sobre aquilo tudo. A seu
ver, estava mais que na hora de impor energicamente seu
ponto de vista, alertando e freando os egos daqueles dragões
não libertos das glórias passadas.

CAPÍTULO 14
EXTERMÍNIO?

Dois estrondos foram sentidos em toda a nave Tidianvinst
Ti. Com alguma confusão relacionada a um sono
inadequado, Krueur não sabia se ouvira mesmo os estrondos
ou aquilo não passava de um sonho ruim. Naquela altura,
pouco importava a real situação. Tudo estava perdido
mesmo e muito em breve a guerra acabaria com o
extermínio dos últimos dragões. Cinco anos se passaram
desde a primeira derrota sofrida por eles. Aquela primeira
derrota foi o início do fim. Durante esse período crítico da
guerra, o inimigo usara sua força total, obtendo uma vitória
esmagadora contra os dragões. A destruição do sistema de
propulsores da nave e de boa parte dos canhões das armas
mais poderosas deixaram os dragões numa situação perigosa
e irreversível. Mas na época os dirigentes acreditaram e
fizeram toda a população da nave acreditar na possibilidade
da vitória. Como os estragos foram grandes, não houve
recursos para restaurá-los devidamente. O inimigo, apesar de
enfraquecido, não deu um segundo de trégua durante esses
longos e penosos cinco anos. Apesar de toda a economia
promovida na nave Tidianvinst Ti, os recursos chegaram a
patamares impraticáveis à empreitada desejada por aquela
civilização.
Durante o período de contenção dos danos, os dragões se
desgastaram muito nessa tarefa. O máximo que conseguiram
para não deixar o contingente de soldados diminuto foi o
simples isolamento das áreas destruídas. Depois disso,
durante um ano mantiveram as defesas exemplarmente, mas
a era de ouro daquela civilização havia sucumbido aos seus
mais íntimos desejos. A decadência derradeira começou de
fato após um ano da destruição dos propulsores e
conseqüentemente a vida naquele ambiente artificial decaiu
com o passar dos últimos quatro anos.
Virters e os outros dirigentes, aos poucos foram depostos
nos quatro anos de decadência final. No caso específico de
Virters, este cometera suicídio ao saber que suas pretensões
não seriam concretizadas e não suportando a derrota, há
muito tempo prevista por pouquíssimos dragões
desprezados, não agüentou imaginar o que viria nos
próximos anos. A anarquia e a divisão dentro da nave
tomaram proporções só vistas antes da fundação daquela
sociedade maravilhosa. A divisão tornou o que era apenas
uma possibilidade em algo inevitável. Divididos, os dragões
aceleraram sua derrota e as sutis engrenagens sociais para o
bom funcionamento dos dragões desapareceram
completamente, tornando-os irreconhecíveis desde então.
Krueur ficara na facção do exército. Estes negociavam com
os mineradores, industriais e o setor de alimentos a defesa da
estrutura. Apesar de considerar-se uma facção, o exército
tinha suas rupturas internas. Milhões de divisões tornaram-
se autônomas, tornando as manobras militares impraticáveis.
Tudo estava perdido. Cada um por si. Quando muitos
dragões morreram e a sanidade voltou ao consciente
coletivo daquela sociedade, uma luz no fim do túnel surgiu
para iluminar as trevas vividas por eles. Tlüogodärami
promovera, como uma espécie de conciliador, a unificação
daqueles últimos e sofridos dragões. Tornara-se o dirigente
supremo daquela sociedade. A princípio não desejava este
cargo, mas seu dever não permitiu outra atitude perante
situação tão catastrófica. Adotou uma política primitiva,
porém eficiente. Nos primórdios da civilização, onde os
dragões não possuíam organização ao estilo moderno, seu
sistema simples tornara-se eficiente. Tudo girava ao redor do
líder e este governava com mão de ferro. Naqueles tempos
de guerra e anarquia, onde os instintos mais primitivos
afloravam nos dragões, medidas proporcionais faziam-se
necessárias. Governando com mão de ferro, respeitando
obviamente seus princípios filosóficos, Tlüogodärami
conseguiu restabelecer a ordem na medida do possível.
Aquilo só foi possível porque mesmo na mais profunda
escuridão, onde o ato de sobreviver falava mais alto que
qualquer princípio, a figura de Tlüogodärami continuava
respeitada pelos dragões. Nasceram e cresceram aprendendo
a respeitar aquela figura quase mitológica e seus
representantes diretos na simbologia dos dragões. Mesmo o
estado mais primitivo de vida não conseguiu apagar do
consciente coletivo o significado de e o respeito atribuído a
Tlüogodärami. Só este ser, carregado de simbolismo,
conseguiria alterar a situação vivida.
Organizados novamente, conseguiram impedir a derrota
derradeira. Adiavam provisoriamente, pois o perigo externo
continuava com sua força restabelecendo-se a cada dia.
Naquele último ano os velhos projetos de Tlüogodärami
foram levados adiante. Seus mais brilhantes pensadores e
cientistas se reuniram para tornar reais seus planos mais
secretos. Esses planos foram mantidos em absoluto segredo
por um ano inteiro e o momento certo chegou, quando um
dragão não envolvido naquilo tomaria conhecimento
daquela situação. Tlüogodärami chamou dois soldados a sua
presença, para cumprirem suas ordens o mais rápido
possível.
- Meus amigos, preciso de um grande favor — disse
docemente Tlüogodärami para os dois jovens soldados. —
Sejam discretos, é o que peço.
- O que o senhor desejar, ilustríssimo — respondeu um dos
soldados.
- Na última contagem de vivos verifiquei a existência de um
piloto de combate chamado Krueur Skli Aerok. Aqui estão
as informações necessárias para localizá-lo. Tragam-no a
mim o mais rápido possível e diga-lhe que o chamo à minha
presença. Acredito que não se recusará, pois é um velho
amigo.
- Sim, senhor! — responderam quase que num único som os
dois soldados.
Seguindo as orientações fornecidas por Tlüogodärami, os
dois jovens soldados seguiram seu rumo. Não seria difícil
achá-lo, pois depois da derrota sofrida há cinco anos, a
grande cidade existente no coração da nave estava
completamente vazia e abandonada, servindo vez ou outra
como fonte de matérias-primas necessárias à continuidade
da guerra. A população sobrevivente estava alojada nos
outros patamares da nave Tidianvinst Ti. Krueur possuía um
alojamento perto da saída das naves de guerra; quando
solicitado ao combate, estaria próximo de sua nave para
exercer seu já frustrante trabalho. Ao ouvir os estrondos,
Krueur depois de despertar de fato de seu perturbado sono,
saiu automaticamente para seu posto de comando, onde
esperava por ordens para entrar mais uma vez em combate.
Ao chegar lá recebeu de seus superiores a notícia de que não
haveria até aquele momento nenhum combate. Perguntara
sobre os sons que ouvira e recebeu como resposta apenas a
notícia de um ataque pequeno já controlado. Como o sono
demoraria a voltar, resolveu ficar com seus companheiros
conversando sobre banalidades, o tipo de assunto que faz a
dor da realidade sumir por alguns instantes.
Os dois jovens soldados chegaram sem muito esforço até o
alojamento indicado e descobriram que Krueur não estava
lá. Começaram a perguntar sobre seu paradeiro aos
transeuntes presentes nos corredores, até que avistaram um
dragão com símbolos de piloto estampados em seu uniforme
negro. Este dragão informou-lhes que possivelmente o
piloto Aerok estaria perto do comando dos pilotos de
ataque, na plataforma cinco. Imediatamente munidos dessa
informação seguiram o caminho indicado. Ali havia um
grupo com aproximadamente quinze dragões em uma
conversa descontraída. Podia-se ouvir o ressonar das risadas
bem longe do ponto de origem. Um dos dragões da roda de
conversa saiu dela e seguiu em direção aos soldados. Estes
interceptaram o dragão desgarrado para mais informações.
- Salve, piloto! — cumprimentou um dos soldados. —
Saberia informar-me sobre o paradeiro de Krueur Skli
Aerok, também piloto?
- Os senhores vão encontrar a quem procuram ali naquele
descontraído grupo de dragões — disse o amistoso
guerreiro.
- Agradecemos a informação — fazendo uma reverência, o
outro soldado agradeceu.
Não perderam tempo nenhum e rapidamente dirigiram-se
ao barulhento grupo. Chegando lá o som de risadas e
palavras deu lugar ao silêncio. Todos observavam os jovens
soldados. Estes, por sua vez, não deixaram intimidar-se pelo
silêncio repentino e perguntaram o mais diretamente
possível aquilo que queriam saber.
- Procuramos por Krueur Skli Aerok. Algum de vocês é o
Sr. Aerok? — perguntou um dos jovens soldados.
- Então sua procura acabou — respondeu Krueur
demonstrando cordialidade. — Eu sou Krueur Skli Aerok.
Em que posso ser útil?
- Precisamos conversar em particular, Sr. Aerok. Viemos
sob ordens do ilustríssimo Tlüogodärami - ao ouvir o nome
de Tlüogodärami,
Krueur despertou em sua mente a lembrança do convívio
com seu amigo e todas as situações presenciadas naqueles
dias fatídicos. Afastaram-se do grupo para que pudessem
conversar mais intimamente. Krueur despediu-se de seus
companheiros e seguiu com os dois jovens até um lugar
mais reservado.
- Falem, por favor, falem — disse Krueur.
- Tlüogodärami pediu que o senhor nos acompanhe, pois
deseja falar-lhe pessoalmente.
- E do que se trata esse assunto?
- Não sabemos. Só recebemos ordens para escoltá-lo até a
presença do ilustríssimo — como não tinha nada a perder e
sabia possuir uma marcante amizade com Tlüogodärami, não
impôs resistência ao pedido do velho amigo, resolvendo ir
com os dois soldados até seu destino derradeiro.
O caminho foi um pouco tumultuado por causa das
contenções e economias. Muitos caminhos alternativos mais
rápidos foram vetados para o fim de economizar energia e
recursos. Mesmo assim não foi muito demorado e assim que
chegou ao gabinete destinado ao dirigente supremo, Krueur
foi anunciado pelos dois jovens dragões.
- Ilustríssimo Tlüogodärami? Trouxemos Krueur Aerok.
- Muito obrigado, meus jovens amigos. Faça-o entrar, por
favor.
- Sim, ilustríssimo.
Escoltado pelos dois soldados, Krueur adentrou no gabinete
onde Tlüogodärami se encontrava. Muitos objetos de arte e
cultura encontravam-se naquele ambiente. Muitas das
antigas placas de krür adornavam as paredes, principalmente
as placas ilustradas com belos desenhos. Muitas ele já havia
visto nos arquivos da extinta cidade, dentro da nave. Ao
avistar o famoso amigo, Krueur foi rapidamente ao encontro
dele, fazendo um cumprimento mais íntimo, cumprimento
habitual daqueles que se conhecem há muito tempo.
Tlüogodärami correspondeu do mesmo jeito e seus olhos
expressavam a mais profunda satisfação e esperança.
- Como vai, meu caro amigo Krueur?
—Vou bem, Sr.Tlüogodärami, na medida do possível. E o
senhor?
- Também tento tornar a vida um pouco menos amarga,
meu amigo. Venha por aqui e se acomode, pois
precisaremos conversar — Tlüogodärami conduziu Krueur
até um ambiente naquele grande gabinete onde poderiam se
acomodar. Devidamente acomodados, a conversa seguiu um
curso natural. — Qual é seu pensamento em relação a esta
guerra, jovem Krueur?
- No começo concordei com a incursão e até me alistei para
de alguma maneira ajudar nossos compatriotas, porém, com
o passar dos anos, tornou-se uma verdadeira catástrofe. Isso
mesmo antes de chegarmos ao combate real.
- Por que uma catástrofe, Krueur?
- Os riscos eram grandes e desnecessários, Sr. Tlüogodärami.
- O investimento foi maciço e não nos preparamos para o
pior.
- Interessante! E por que não nos preparamos para esta
situação?
- Fazendo uma análise de mim mesmo e de meus
companheiros, pude verificar certa arrogância existente na
idéia de vitória.
- Continue, por favor, continue — Tlüogodärami estimulava
o jovem em seus pensamentos.
- Fomos, de certa forma, levados a acreditar que nossa
vitória seria fácil, simples. Deixamos que nosso
conhecimento acumulado produzisse a pretensão de
deduzir, de prever tudo a nossa volta. Estávamos totalmente
enganados. Infelizmente, nossa derrota está próxima. Seria
uma lição valiosa se sobrevivêssemos a este holocausto.
- Talvez a lição seja de grande valia, meu caro Krueur.
- Mas como, Sr. Tlüogodärami, ainda acredita na vitória?
- Não exatamente, meu caro Krueur. Chegamos num
patamar sem volta, infelizmente, porém nem tudo está
perdido.
- Como assim? — Krueur questionava seu ilustre amigo.
- Durante estes anos todos, mesmo antes da guerra, na
construção desta nave, refleti muito sobre tudo isso. Sabia
desde o início da possibilidade de derrota. Ela sempre existiu
por menor que fosse e nossa realidade atual corroborou essa
idéia. Estávamos lidando com algo desconhecido, meu
amigo. Como ter tanta certeza de uma vitória se não
sabíamos ao certo com quem lidávamos? Um erro básico
ocultado por nossa arrogância. Ainda temos a tecnologia
para derrotá-los, mas com as condições atuais, com nossa
economia destruída, não adianta nada estar munido dela. A
verdade não é se seremos derrotados nesta guerra infeliz,
mas quando seremos. Mas isso não quer dizer que seremos
destruídos.
- Estamos ilhados aqui, Tlüogodärami. Sem uma vitória,
como poderemos sobreviver? — Krueur prestava muita
atenção ao seu interlocutor.
—Você chegou ao ponto crucial, meu amigo — com uma
risada de satisfação, o semblante de Tlüogodärami exalava
uma confiança contagiante.
- Ainda não consigo entender.
- Preste atenção, Krueur, ao que vou lhe dizer, pois você
será uma peça importante neste sistema elaborado. Há
alguns ciclos negociei incessantemente com o dirigente
Virters a construção de duas bases. Elas são cápsulas de
sobrevivência para nossa espécie. Nelas estão contidos todos
os nossos conhecimentos. Há alguns dragões em estado
suspenso armazenados e uma infinidade de tecnologia
pronta para desencadear nossa reconstrução, caso não
fôssemos felizes nesta empreitada frustrada.
- E onde estão essas bases?
- Uma delas está em nosso planeta natal, Dianvinst; a
segunda está no quarto planeta, exatamente nas profundezas
de sua capital. Ambas estão aptas a fornecer o necessário
para nossa reconstrução. Não poupei esforços e diplomacia
para chegar a este resultado.
- E como faremos para ativá-las? Pelo que sei a única nave
capaz de chegar a Dianvinst seria esta, mas a destruição de
nossos sistemas de pro- pulsão a desabilita para essa tarefa. E
nenhuma de nossas naves menores tem tecnologia
suficiente para empreender uma viagem tão longa.
- Talvez você esteja enganado, jovem Krueur. Neste ano de
trabalho como dirigente, fiz com que se construísse uma
nave para levar apenas um dragão nela. Ela não tem a
tecnologia de uma grande nave como esta, mas poderá ser
útil em sua própria maneira. O navegante levará consigo um
suplemento de medicamentos e tecnologia para viver por
até um bilhão de ciclos, se for o caso. E em estado de
suspensão, não sentiria o tempo longo de viagem.
Infelizmente não conseguimos construir uma nave que
possa alcançar velocidades astronômicas e que tivesse o
tamanho certo. Não há matéria para isso. Pelo que pude ave-
riguar a grande questão não é a velocidade em si, mas a
conservação do piloto. O tamanho diminuto da espaçonave
não permite um sistema de contenção dos efeitos de altas
velocidades. Qualquer ser vivo sem este sistema morreria
com as forças promovidas pela aceleração. Como disse
anteriormente, faltam-nos recursos, e a tecnologia para
manipular as matérias-primas que possuímos no momento
não permite produzir a situação ideal, ou a nave ideal.
- Neste caso a tecnologia e a escassez não nos favorecem.
- Exatamente, Krueur. A viagem será longa para nosso
piloto. Mas não vejo isso como um problema grave. Nosso
silêncio por alguns milhares de anos poderá ser útil para
nossa reconstrução e, quando estivermos realmente
preparados, poderemos contra-atacar.
- Então cometeríamos o mesmo erro do passado,
Tlüogodärami — Krueur olhava fixamente, sentindo-se um
pouco decepcionado com o velho amigo.
- Lamentavelmente, não poderemos deixar passar isto em
branco, Krueur. Quando procurávamos nosso inimigo,
lançamos várias sondas para procurá-los. Uma delas esteve
aqui e foi destruída, mandando antes disto as informações
com que nos baseamos para enfrentá-los. A origem daquele
corpo celeste veio exatamente daqui, confirmando nossos
cálculos. Só que uma das sondas enviou-nos recentemente
informações sobre nosso inimigo. Enquanto estávamos em
guerra, elas vasculharam o universo e encontraram a fonte
original disto tudo. Este local não passa de uma colônia,
Krueur — Tlüogodärami parecia preocupado.
- Como? — Krueur não acreditava nas palavras do ilustre
dragão.
- Infelizmente não são boas notícias. Estas entidades
funcionam como uma doença degenerativa. Crescem como
um tumor, destruindo vários locais no universo. E tudo
começa com aquele pequeno asteróide-ovo. A sonda
descobriu o exato local, original, de onde tudo isso teria
começado. E não é uma visão animadora. Se o aglomerado
disforme de planetas a nossa frente parece gigantesco, o
epicentro do império dessas criaturas é mil vezes, pelo
menos, maior que esse local onde travamos guerra. Não é
uma questão de escolha, Krueur. Isso pode se tornar
perigoso e não teremos paz se algum dia o universo inteiro
estiver dominado por essas entidades. Não correremos os
mesmos riscos, pois desta vez conhecemos com quem
lidamos e teremos de aprender a nos adaptar a isso. Nunca
deixe de se informar sobre o inimigo e não o subestime.
Teremos de elaborar estratégias e melhorar infinitamente
nossas armas. Nossa força terá de sobrar para que possamos
enfrentá-lo dignamente.
- Confesso que preferia não saber dessas informações,
Tlüogodärami. Já escolheram o piloto para a nave ou fui
chamado aqui para indicar alguém? O que não faltam são
pilotos com muita experiência em nossas tropas.
- Infelizmente não é tão simples assim, Krueur. O piloto da
nave que salvará nossa civilização deve ter características
especiais. Não basta simplesmente ter talento como piloto.
O único capaz de entrar nas bases sem destruí-las deverá ser
um Tlüogodärami. Estou muito velho para esta missão. Por
isso fiz minha escolha, já faz algum tempo, do dragão que
me substituirá. E uma de nossas funções no cargo de
Tlüogodärami. Como sou dirigente, também, vou dar a esse
dragão a incumbência de governar nosso povo. Um jovem
sábio, com bom-senso e discernimento foi encontrado e
este demonstrou ser mais sábio que muitos dragões
detentores do poder, fora seu talento como piloto, que em
cinco anos de guerra sobreviveu dando tudo de si para seu
povo, mesmo não concordando com a situação em si.
- E quem seria este dragão? - Krueur demonstrava uma
curiosidade inocente.
- E ainda este dragão demonstra modéstia, apesar de tantas
qualidades. Meu escolhido é você, Krueur — levantando-se,
Tlüogodärami colocou sua pata dianteira no ombro de
Krueur, encorajando o jovem.
- Não posso aceitar, Tlüogodärami. Não sou capaz de
executar tamanha tarefa.
- Muitas vezes não somos capazes de observar e entender
nossos próprios talentos, Krueur.Vejo em você todas as
qualificações para me substituir. E você verá que as tem tão
logo assuma essa demanda. Tornar-se Tlüogodärami é a
maior honraria de seu povo. Não a despreze.
- Não estou desprezando-a, longe disso. Só que fui pego de
surpresa. Mas se o senhor consegue ver além de meus
próprios olhos, quem sou eu para questioná-lo. Apesar de
temeroso, aceito a incumbência.
Exatamente como se dará isso? — o sentido de dever não
permitia Krueur negar suas ordens, porém escondia
perfeitamente seus íntimos temores em relação a isso tudo.
Um pensamento de fracasso não saía de sua mente.
- Ótimo, então. Apesar de a responsabilidade ser gigantesca,
você entenderá rapidamente que é o único capaz de exercê-
la, meu jovem amigo. Reflita um pouco. Darei a você algum
tempo e depois entraremos em detalhes mais funcionais.
Fique aqui e não saía. Vou trazer alguns dragões que saberão
dar-lhe orientação mais adequada. Fique, descanse um
pouco, coma alguma coisa e voltaremos a nos falar em breve
— Tlüogodärami levantou-se e saiu do recinto. Foi até a sala
anterior à sua e contatou alguns dragões pelos sistemas de
comunicação.
Krueur levantou-se e não conseguia ficar quieto. Não
acreditava naquilo tudo. Acostumara-se com a rotina da
guerra e contava os dias até sua morte. Contudo, não
poderia recusar um pedido de seu amigo, com quem
aprendera muito em certo período de sua ainda jovem
existência. Havia um recipiente com pedaços de carne pro-
cessada seca; lembrara-se que seu estômago roncava
implorando por algum alimento. Carne era um luxo
existente para poucos naquela época de escassez. A ração
diária, apesar de nutrir os soldados adequadamente, não
tinha o fator da satisfação provocada por comida de verdade
saboreada em papilas gustativas devidamente umedecidas
por saliva. Não fez cerimônia e comeu com sofreguidão os
pedaços de carne existente no recipiente. Um bem-estar
tomou conta de si. Há muito não sentia isso, apesar de não
ser carne pura. Mesmo assim o sabor estava lá. Voltou ao
local onde começara sua conversa com Tlüogodärami e,
acomodando-se ao modo dos dragões, deitado com a cauda
envolvendo seu corpo como um muro que protege um
castelo, pensou muito na nova vida que levaria daquele
instante em diante, aceitando, aos poucos, a nova realidade.
Cerca de uma hora depois, Tlüogodärami entrou com dois
outros dragões. Apresentou-os como chefes de pesquisas
que exerceram seu trabalho com maestria para a missão
designada a Krueur.
- Como vão, meus amigos? — disse Krueur amigavelmente.
—Vamos bem, jovem Sr. Tlüogodärami — a resposta foi um
pouco inusitada, pois Krueur acabara de saber de sua
indicação e já era chamado pelo nome de Tlüogodärami.
- Jovem Krueur, farei com que cada dragão saiba da boa
nova. Ainda está disposto? — perguntava o velho
Tlüogodärami para Krueur.
- Não posso recusar sua proposta,Tlüogodärami. Faço-a por
meu povo, não por decisão própria. Contudo exercerei a
função como se a tivesse desejado desde tenra idade.
- Esta é a essência do dragão, jovem Krueur Tlüogodärami. O
alicerce de nossa sociedade baseou-se exatamente no sentido
de dever que cada dragão carrega consigo. Erramos no
passado e talvez ainda cometamos algum erro no futuro,
porém este sentido de dever para com toda a comunidade
nos diferencia de qualquer espécie neste universo, sejam as
conhecidas de nosso sistema solar, sejam quaisquer outras
existentes neste vasto universo. Isso é nosso maior símbolo
e tenho certeza que se no final só existir você de nosso
povo, enquanto estiver vivo nossa essência também o estará.
Os cientistas explicaram a Krueur e Tlüogodärami todas as
funções da nave preparada para levar Krueur numa longa
jornada de tempo indeterminado até o ponto de origem da
civilização dos dragões. O velho Tlüogodärami, após os
detalhes expostos pelos cientistas, explicava a nova situação
ao seu sucessor. Tentaram umas dez vezes simular a saída da
nave e o cerco promovido pelos estrangeiros não permitia a
eficiência desejada. Todas as tentativas foram verdadeiros
fracassos e estavam procurando imaginar uma maneira
segura de despachar a nave que traria esperança para a raça
dos dragões. Tlüogodärami explicou o plano para Krueur.
—Você entrará na nave e será escoltado por nossos
melhores pilotos com suas naves devidamente equipadas.
Eles terão a tarefa de levá-lo até um patamar seguro, onde
sua jornada começará. Quando estiver seguro, utilize o
sistema de alta velocidade desenvolvido por nossos cientistas
e, uma vez no ponto certo, desvencilhe-se do sistema e siga
a trajetória determinada.
- Sim, eu o farei.
- Lembre-se de acionar o sistema de sobrevivência em altas
velocidades. Ele é extremamente precário e não durará
muito, somente o tempo suficiente para estar seguro. Não
olhe para trás, jovem Tlüogodärami. Precisamos que sua
tarefa seja bem-sucedida. Lembre-se de que muitos se
sacrificarão para o sucesso dessa jornada.
- Minha escolta será de quantas naves? — Krueur perguntou
para se situar.
- Quinhentos dos nossos melhores soldados. Entretanto, não
serão somente eles. Haverá muito mais. Planejamos um
ataque ao inimigo e entraremos com força total. Enquanto
estiverem distraídos, você e sua escolta seguirão para fora do
alcance dessas criaturas bestiais. Precisamos apenas esperar o
momento certo. Não tardará muito esse momento.
Precisamos apenas esperá-lo um pouco.
- Entendo.
- Sua bagagem foi preparada. Levará consigo toda a nossa
cultura, história, ciência e tecnologia e todos os códigos
genéticos de nossa espécie. Também levará algumas de
nossas placas de krür mais preciosas e antigas. Durante estes
anos, nossos pesquisadores, engenheiros e cientistas
desenvolveram inúmeros projetos. Desenvolva-os, pois
poderão ser a diferença entre vitória e derrota. Não permita,
caso haja uma segunda guerra, uma derrota baseada na
arrogância. Procure desenvolver-se sempre. Busque estar
um passo à frente de seu inimigo e não deixe a simplória
vaidade desencadeada pela beleza e pelo poder que a tecno-
logia nos dá desviá-lo do caminho seguro. Saber dosar
ousadia e cautela é uma dádiva rara.
- Farei o melhor possível.
- E quando estiver em apuros, lembre-se daquele jovem
dragão que era muito sábio, porém não compreendido.
Volte sempre ao básico quando a situação parecer
impossível e recomece sempre, não subestimando a si
mesmo e ao seu inimigo.
- Não se preocupe. Cumprirei meu papel com toda a
dedicação possível — Krueur passava tranqüilidade em suas
atitudes. Parecia ter entendido logo de imediato sua nova
função e não deixava a desejar no papel que lhe foi
designado.
— Tome isso aqui, jovem Tlüogodärami — Tlüogodärami
deu a Krueur uma pequena placa de krür. Ele observou
atentamente aquele pequeno objeto bronzeado. Nunca
havia na vida observado um trabalho tão esmerado. Pensara
que não se fazia esse tipo de trabalho nos dias atuais.
- Belo objeto,Tlüogodärami — observava a placa que
possuía, dentro de uma espécie de ovo estilizado, inscrições
e símbolos representando a história de seu povo. Podia ver o
nome das dezessete nações e no centro duas cabeças de
dragões, antagonistas, unidas pelo pescoço - Nunca vi uma
placa tão bela.
- Esta é a chave para entrar nas bases. Somente o
Tlüogodärami a possui. Proteja-a de todas as formas
possíveis.
—Vou protegê-la.

Durante vinte e seis dias eles esperaram. Parecia um período
de tempo infindável. O velho Tlüogodärami estava
preparando as mentes dos dragões da grande nave, e seu
sucessor tornara-se em pouquíssimo tempo conhecido. A
semelhança psíquica com o velho Tlüogodärami deu a
Krueur o carisma necessário para conquistar cada dragão
vivente naquela nave espacial. A pequena nave de Krueur
passou por inspeções constantes e sua preparação era
repetida todos os dias, esperando a oportunidade exata para
o sucesso da missão. Depois de vinte e seis dias a hora
chegou e tudo estava pronto. Krueur trajava um uniforme
novo. Sua armadura negra era extremamente sofisticada. O
formato seguia o padrão muscular de seu dono, dando-lhe
linhas mais minimalistas. Possuía um capacete, mas antes de
adentrar na nave, ainda não o vestira. O velho Tlüogodärami
estava reunido no hangar com muitos dragões e esperavam
o embarque de Krueur. Junto à nave, havia quinhentas ou-
tras com seus pilotos devidamente acomodados, esperando
apenas que o novo Tlüogodärami decolasse. Krueur
apareceu ao público, sendo ovacionado por eles. Ficou um
pouco constrangido, pois não se acostumara aos protocolos
inerentes de sua função. Cada dragão presente via na figura
do novo Tlüogodärami esperança e sentiam nele a
verdadeira figura de um líder. As associações com o passado
sempre ajudavam a construir essa imagem, pois os antigos
Tlüogodärami sempre ajudaram seus ancestrais de uma
maneira ou de outra e não passava na mente daqueles
esperançosos dragões a mínima possibilidade de fracasso
empreendido por um Tlüogodärami, seja ele quem for.
- Meus amigos — disse o velho Tlüogodärami ao público
presente —, nosso novo Tlüogodärami carrega consigo uma
grande responsabilidade. Não vou demorar muito, mas
devemos demonstrar nossa crença em sua jornada e
desejarmos do fundo de nossas consciências que ele tenha o
sucesso necessário. Agora nosso Tlüogodärami vai falar
algumas palavras — Tlüogodärami cedeu o lugar a Krueur
naquele momento.
- Dragões. Não tenho outra intenção a não ser o sucesso
desta demanda a mim exigida. Abraço meu posto e a minha
demanda com a responsabilidade que sempre cultivei como
dragão e cidadão. Nunca deixei de cumprir minhas
responsabilidades e prometo não abandonamos, apesar de
não saber ao certo quanto tempo esta viagem levará, seja
qual for a situação. Eu voltarei e mesmo que não haja mais
nenhum vestígio de nossa presença neste sistema
deformado, honrarei a memória de cada dragão que já
habitou esta nave e aos nossos mortos destruídos naquele
dia fatídico no planeta Tidianvinst — depois dessas curtas
palavras, mais uma vez Krueur foi ovacionado pelos dragões
ali presentes. Com os protocolos cumpridos, avistou sua
nave, para onde se dirigia. O velho Tlüogodärami
acompanhou Krueur até ela. Olhando para o velho amigo,
Krueur fez um cumprimento mais íntimo. Foi cor-
respondido imediatamente, como se o velho Tlüogodärami
fosse uma espécie de pai. — Diga-me, ilustríssimo, qual é
seu verdadeiro nome? — Tlüogodärami se assustou
levemente com a pergunta, pois havia muitos anos que não
pronunciava seu nome verdadeiro.
- Meu verdadeiro nome é Suktus. Xajsed Oprust Suktus —
respondeu Tlüogodärami ainda surpreso com a pergunta.
- Então até um dia, velho amigo Xajsed Oprust Suktus.
- Até um dia, Krueur Skli Aerok Tlüogodärami.
Uma ponta de flecha se assemelharia com a nave de Krueur.
Toda em tons prata, havia quatro bolhas ovais negras bem
abaixo da ponta e um estágio descartável anexado, onde o
sistema de propulsão mais forte e o protetor de forças se
encontravam. Adentrou na nave. Havia os painéis, todos
ligados, um assento ao estilo dos dragões e uma câmara para
a suspensão. O espaço era diminuto, porém não precisaria de
muito.
Podia ver nos painéis as imagens dos dragões ainda
observando a nave. Um aviso sonoro disparou avisando para
todos se retirarem do recinto. Krueur se acomodou em seu
assento para a decolagem. O sistema computacional acionou
a nave e um suave barulho podia ser ouvido naquele hangar.
As outras naves de escolta começaram seus procedimentos e
todos começaram suas jornadas. Uma sinfonia de
propulsores tomou conta do ambiente. Um grupo de naves
saiu na frente enquanto a nave de Krueur levantou vôo e
logo em seguida foi acompanhada do restante de sua escolta.
A saída da grande nave dos dragões correspondeu às
expectativas, pois as outras pequenas naves de combate
davam a devida cobertura, tornando o ambiente próximo
razoavelmente tranqüilo. Contudo, não duraria para sempre
e a escolta conduziu a nave de Krueur pelo caminho ainda
perigoso. Os transmissores emitiam uma miscelânea de
comunicados vindos das naves de combate. Usavam uma
freqüência exclusiva para não serem detectados, pois não
sabiam até aquele momento se o inimigo utilizava sistema
semelhante ou coisa parecida. Krueur ouvia atentamente às
transmissões, orientando-se dos acontecimentos, pois nunca
se encontrara naquela situação. Sua nave não possuía armas
e sentia- se desprotegido, pois até aquele momento
conduzira naves de combate devidamente armadas, em que
o sucesso dependia exclusivamente dele — e entenda
sucesso por sobrevivência. Apesar de o medo e do receio
existirem, procurou confiar em sua escolta. Se a missão
fracassasse, não haveria muito tempo de vida. Era tudo ou
nada naquele momento.
A esquadra de naves começou sua jornada pelo lado oposto
ao dos combates. Seguiu discretamente as linhas da
superfície da nave Tidianvinst Ti até acharem que não
seriam mais vistos. Pelos planos do velho Tlüogodärami, os
dragões tentariam levar o combate exatamente para o lado
oposto ao da fuga. Tudo acontecia como o planejado e as
quinhentas naves mais a de Krueur afastavam-se aos poucos
de sua nave-mãe. Quando Tidianvinst Ti não passava de um
ponto luminoso nas escotilhas das naves em fuga, houve
uma esperança coletiva de que tudo daria certo. Logo este
sentimento coletivo foi desarmado, pois aquilo que temiam
aconteceu. Os sistemas apontavam a vinda de naves
estrangeiras. Ainda não se tinha o número exato, mas
seguiriam o procedimento para essa situação. Krueur seguiria
sua viagem até o ponto exato onde usaria o estágio para sair
daquele sistema, escoltado por vinte e cinco naves, e o
restante faria uma barreira de resistência para que a fuga
fosse a mais amena possível.
O grupo se separou e, enquanto Krueur afastava-se, a
resistência já sabia a exata quantidade de naves vinda para
aquele lado. Eram exatamente, segundo os sistemas, mil e
oito naves alienígenas. Um alívio tomou conta dos
combatentes, pois aquilo demonstrava uma manobra-padrão
alienígena. Apenas acreditaram numa separação do grupo de
combate maior e seguiram seus parâmetros para destruir
todos que estivessem naquele combate. Não perceberam
que aquilo era uma fuga. Os sistemas da nave Tidianvinst Ti
transmitiram aos combatentes uma varredura daquele lugar
e não havia suspeitas de mais naves dirigindo-se para aquela
área. Isso confirmava o que se imaginara anteriormente.
As quatrocentos e setenta e cinco naves foram de encontro
aos seus inimigos e o combate começou. Aqueles
combatentes escolhidos à risca honraram a confiança
daqueles que os escolheram. As naves estrangeiras
combateram de modo franco e aberto, num choque de
frente com as naves dos dragões. No primeiro encontro
muitos foram abatidos de ambos os lados e a balança pendia
para os alienígenas, porém o equilíbrio foi estabelecido e o
combate tornava-se duríssimo. Como uma seleção macabra,
os fortes e mais aptos sobreviviam para empreender um
combate mais demorado e técnico. As naves alternavam
situações de ataque e defesa, até que apenas seis naves dos
dragões sobraram contra apenas uma dos alienígenas. Os seis
perseguiram o último sobrevivente e o destruíram numa
manobra conjunta. Aquele combate tornara-se duríssimo,
custando a vida dos melhores combatentes dos dragões,
porém obtiveram a vitória necessária para o bom funcio-
namento da missão. Seguiram seu rumo até reencontrarem
Krueur e sua escolta.
Quando as seis naves se encontraram com as outras, Krueur
lamentou a perda daquelas vidas e demonstrou via
comunicador sua dor e seu lamento. Contudo, não perderam
ainda o foco do que tinham que fazer e conseguiram chegar,
depois de algumas horas, ao ponto determinado à partida de
Krueur. A nave Tidianvinst Ti e o gigantesco aglomerado de
planetas dos alienígenas já não eram visíveis a olho nu, eram
apenas mais dois pontos minúsculos luminosos naquele
vasto universo. Krueur tomara a iniciativa e se despediu de
seus companheiros.
- Adeus, meus amigos, vocês contribuíram para que a
esperança dos dragões não se extinga.
- Nós é que agradecemos por esta honra, ilustríssimo
Tlüogodärami — respondeu um dos combatentes.
— Farei de tudo para não fracassar e eu voltarei, não sei ao
certo quando, mas voltarei, e mudaremos esta situação
algum dia, não permitindo que os dragões entrem no
esquecimento da vasta história do universo.
— Adeus, ilustríssimo — respondeu outro combatente via
comunicador.
— Até quem sabe algum dia.
Krueur esperou os combatentes seguirem o caminho de
volta e quando não eram mais visíveis e a solidão tomou
conta de seu ser, agiu conforme as instruções. Calculou a
trajetória no sistema computacional e ativou os propulsores.
A nave empreendeu uma velocidade astronômica e, apesar
dos estabilizadores, Krueur podia sentir amenamente a
aceleração. Apesar de estar acostumado a esse tipo de
sensação herdada de seus anos de combate, aquela era
diferente, estava muito além daquilo que sentia
anteriormente. Dois dias depois, Krueur não dormira
absolutamente nada e se sentira totalmente enjoado. Aos
poucos a nave foi desacelerando e seu precário estabilizador
chegara ao seu período útil funcionando muito mal.
Entretanto, apesar do mal-estar, Krueur sobrevivera e mais
uma diminuta vitória somava-se às demais até aquele
momento.
Sentia-se exausto e resolveu descansar por algum tempo.
Depois que o cansaço e a náusea sumiram e a concentração
voltou ao seu estado normal, Krueur preparou a nave para
sua longa viagem. Ativou o sistema pré-programado e
ativara a câmara de suspensão. A grande tampa abriu-se e
Krueur imediatamente acomodou-se dentro da apertada
estrutura. Havia ali dentro um encaixe perfeito com a
armadura negra de Krueur, onde esta faria parte, também,
do equipamento. Uma leve pressão foi sentida em suas
costas, como se a câmara se integrasse à armadura. Após
alguns segundos sentiu seus olhos pesados e adormeceu em
um sono pesado, onde a escuridão seria sua companheira
naquela longa viagem. A nave se desconectou do estágio e
seguiu seu longo percurso até o planeta Dianvinst.

Treze dias de Dianvinst se passaram desde que o novo
Tlüogodärami seguira em sua missão. Para obter o sucesso, o
velho Tlüogodärami não economizara em absolutamente
nada. Conseqüentemente, gastara seus últimos recursos e
não havia uma resistência aceitável para defender a nave
Tidianvinst Ti. Já não havia em número suficiente naves de
combate e seria suicídio tentar alguma coisa com elas. O
velho Tlüogodärami determinou naqueles dias derradeiros
que todos deveriam aproveitar os momentos que lhes
restavam para se desligarem daquela guerra, pois
lamentavelmente já estava perdida. Algum pânico
aconteceu, mas a crença no sucesso do novo Tlüogodärami
em sua empreitada amenizou a situação. Os dragões
tentaram restabelecer um pouco seus cotidianos há muito
perdidos, entregando-se aos raros prazeres que ainda
restavam naquela miséria toda. Os ataques estavam mais
freqüentes e a resistência interna tornara-se cada vez mais
ineficiente. Nestes treze dias, tentaram aproveitar ao
máximo o que podiam. Os últimos canhões de defesa da
nave Tidianvinst Ti foram destruídos completamente nos
sucessivos ataques e a última linha de defesa externa
sucumbira em sua própria decadência.
O velho Tlüogodärami encontrava-se em sua sala de onde
ainda governava, quando recebeu a notícia dos poucos
militares ainda na ativa.
— Senhor, nossas defesas não são suficientes para evitar a
destruição da nave. O que devemos fazer? — disse um dos
soldados encarregado de informar o infortúnio ao velho
Tlüogodärami.
— Não há mais nada que possamos fazer. Façam o que
melhor convier a vocês. Não há mais nada que os impeça.
Eu libero todos e declaro extinta nossa pátria. E cada um por
si neste momento — no momento mais crítico daquela
situação, os soldados não esperavam que seu comandante
tivesse esse tipo de reação. Contudo, sabiam que as
alternativas coletivas eram nulas e acataram a ordem, um
pouco decepcionados, e informaram aos últimos
sobreviventes a total liberdade que desfrutariam a partir
daquele momento. Fariam o que quisessem.
Alguns dragões tentaram fugir, mas foram interceptados
pelo cerco de naves alienígenas. A quantidade delas
igualava-se ao grande ataque de cinco anos atrás, onde o
começo do fim dos dragões desencadeara-se. A
desorganização foi generalizada. Alguns grupos de
resistência aguardavam nos hangares, caso a nave fosse
invadida, para impor alguma dificuldade ao inimigo. Não
queriam vender suas vidas por um preço barato. Algumas
naves dos dragões estavam pousadas com suas armas
apontadas para as entradas da nave. Armas manuais foram
distribuídas aos interessados na defesa. A maioria esperava
em seus alojamentos, aguardando o fim de um modo mais
sereno. Tlüogodärami encontrava- -se ainda em seu gabinete
e também preparou seu espírito para o pior: a morte.
Não havendo mais resistência externa na nave Tidianvinst
Ti, as naves estrangeiras apertaram o cerco. Dividiram-se em
dois grupos e uma delas invadiu, até certo ponto
inesperadamente, a nave em suas entranhas. Quando estas
chegaram aos hangares, encontraram a fraca resistência e,
apesar de algumas delas sucumbirem ao pequeno grupo de
dragões, não tardou para cumprirem essa pequena etapa da
invasão. Numa questão de instantes, os hangares ficaram
repletos das naves alienígenas. O segundo grupo sobrevoava
a parte externa da nave e atirou exatamente no ponto onde
se encontrava um dos estabilizadores, onde uma de suas
funções era o de prover gravidade artificial à nave. O
mecanismo possuía um alto grau de sensibilidade e, sob fogo
inimigo, rapidamente se desestabilizou. As tropas de
alienígenas, com suas formas hediondas e seus mecanismos
exóticos de locomoção, invadiram a nave acompanhados por
artefatos bélicos indescritíveis aos olhos dos dragões. Faziam
prisioneiros a cada ponto percorrido. Tlüogodärami
encontrava-se desligado de tudo, foi acordado de seu transe
por um estrondo e um tremor. Depois, mais alguns tremores
e uma grande sacudidela o derrubaram. Caído no chão,
acreditou por alguns instantes que o fim se aproximava
muito rapidamente. Mas não foi isso que aconteceu.
Sentindo-se um pouco nauseado, sentiu também,
contraditoriamente, uma sensação de leveza. Quando se
interou da realidade, percebeu que estava flutuando e
observava muitos objetos seguindo essa mesma tendência.
Percebera que os estabilizadores da nave haviam sido
desativados e a falta da gravidade artificial proporcionou
aquele momento novo. O velho Tlüogodärami abriu suas
asas, coisa que não fazia há anos, e só assim conseguiu se
locomover naquele hostil ambiente. Aproximou-se da porta
e verificou o som de vozes. Abriu e viu muitos dragões
usando do artifício de suas asas para locomoção. Contudo,
suas jornadas tornaram-se curtíssimas. A nave em pouco
tempo se infestou das criaturas estrangeiras. Seu aspecto
bizarro provocava um medo incontrolável aos muitos
dragões contemplados pela companhia nada desejada.
Imediatamente, Tlüogodärami se afastou da porta e esperou
no fundo de sua sala os próximos momentos.
Guindirs era um dragão naqueles tempos de guerra não
muito envolvido com o ambiente bélico. Trabalhava na
supervisão de uma fábrica de alimentos processados e
naqueles últimos dias de guerra conseguiu aflorar o guerreiro
existente em sua essência. Tomou a decisão de formar um
dos grupos de resistência e liderou seus dragões até a
chegada dos estrangeiros. Conseguiu com muito esforço
retardar por alguns instantes a entrada daqueles indesejáveis,
porém, como já se esperava, seu trabalho não durou muito.
Depois de perder metade de seus dragões, foi identificado
pelos alienígenas como o líder daquele grupo de resistência.
As criaturas pareciam todas iguais, assim pensava Guindirs.
Naquele tumulto de alienígenas surgiu um que aparentava
ser diferente. Apesar de ser visivelmente da mesma espécie,
possuía o dobro do tamanho dos outros, como se fosse mais
velho ou algo assim. Guindirs foi levado à presença desse
alienígena diferente. Podia-se ver que além de seu maior
tamanho, possuía mais daqueles tentáculos estranhos como
se fossem chifres longos e flexíveis. Um dos tentáculos
segurou Guindirs pelo pescoço e, de dentro de um orifício
existente na parte mecânica da criatura, podia-se ouvir
palavras distinguíveis. A língua geral de Dianvinst, a língua
usada pelos dragões há mais de sete mil anos estava sendo
pronunciada por aquelas criaturas horrendas. Apesar de um
sotaque desagradável, Guindirs entendia perfeitamente
aquelas palavras.
— Quem é o líder? — perguntou o mocubrinle grande.
- Líder? — questionou-se Guindirs.
- Quem é o líder? — voltou a perguntar a criatura.
- Não sei!
- Quem é o líder de vocês? — desta vez a criatura
demonstrou agressividade, apertando o pescoço de
Guindirs. Em pânico, resolveu falar.
- Não possuímos líder, senhor, porém, nos últimos tempos,
nosso povo é governado pelo ilustríssimo Tlüogodärami. Ele
pode ser considerado nosso líder.
- Onde está Tlüogodärami?
- Eu não sei!
- Onde Tlüogodärami está?
- Eu juro que não sei! — neste momento sentiu seu pescoço
mais do que nunca apertado. Sentia uma sensação estranha.
Sua cabeça estava pesada e uma forte pressão tomava conta
de si. Quase desmaiou, mas sentiu a normalidade voltar a si.
A criatura continuava, contudo, segurando-o pelo pescoço.
Tomado de um medo extremo, resolveu colaborar, pois só
queria que aquilo tudo acabasse. — Não sei onde ele está,
mas posso levá-los até o local onde costuma se encontrar.
- Mostre o caminho.
- Sim, senhor.
Guindirs mostrou o caminho até a sala de Tlüogodärami. As
criaturas alienígenas não tiveram dificuldade em invadir a
sala onde se encontrava Tlüogodärami. Guindirs foi levado e
o alienígena grande entrou com outros alienígenas
menores. Tlüogodärami olhava para eles com seus olhos
transmitindo raiva por aquilo tudo. Indiferentes aos
sentimentos transmitidos por Tlüogodärami, simplesmente
o levaram junto aos outros dragões capturados. A guerra
havia acabado. Os mocubrinles deram o xeque-mate nesta
partida da vida.
Um clarão de luz fez com que as pupilas dos olhos amarelos
de Krueur se contraíssem, formando apenas dois rasgos
estreitos. Confuso, olhava para o teto de sua pequena nave,
não compreendendo bem o que estava acontecendo.
Conforme as horas passavam e sua força e consciência
voltavam a um estado normalizado, Krueur entendia bem
sua real situação. Percebeu que estava próximo de seu
objetivo. Contudo guardava a sensação de o tempo não ter
passado. Sentia-se como se tivesse fechado os olhos por um
segundo e de repente abrira-os novamente e sua missão
chegara à um outro patamar. Não sentira o tempo passar,
como se não tivesse dormido por nenhum momento. O
cansaço e a estranheza que sentia denunciavam o contrário,
mas, para sua mente, apesar dos efeitos físicos, o tempo não
havia passado. Levantou-se e foi diretamente até o sistema
de computação da nave para saber onde e quando
exatamente estava naquele momento. Assustou-se com o
tempo calculado pela nave. Quase onze milhões de ciclos se
passaram, aproximadamente, desde os acontecimentos da
guerra que escapara com maestria. E estava a um dia de
distância do planeta Dianvinst. Podia observá-lo de uma das
escotilhas. Seu belíssimo tom azulado contrastava com as
extensões de terra multicoloridas e o branco das nuvens
formadas pelos vapores de água. Aquela bela visão do
planeta natal de seu povo o emocionara profundamente.
Sentia-se finalmente em casa, de alguma maneira, apesar de
não ter nascido naquele planeta. Contudo, ali era o berço de
sua civilização e ali reconstruiria a antiga glória de seu povo.
Acomodou-se no assento e começou a trabalhar no pouso.
A pequena nave não possuía muita energia, apenas o
suficiente para um pouso suave no território do planeta.
Ativou o sinal para que recebesse alguma resposta da estação
descrita pelo velho Tlüogodärami. A própria nave há uns
três dias havia feito a mesma tarefa, mas não recebera
nenhuma resposta. Krueur estava preocupado, pois contava
com a existência daquela estação. Aquilo era crucial para o
sucesso da missão. O planeta era grande e talvez a estação
ainda não tivesse recebido a mensagem enviada, assim
pensava Krueur, o novo Tlüogodárami. No dia seguinte não
recebeu nenhuma resposta e aquele momento tornou-se
crítico. Tlüogodärami devia tomar uma decisão o mais
rápido possível. Naquele momento não havia muita
alternativa e resolveu pousar no planeta. Procurou o melhor
lugar para pousar naquele momento, calculando com o
sistema computacional. Procuraria a estação após se
estabelecer no planeta Dianvinst. O sistema computacional
traçou a melhor rota e começou a executar o pouso. Das
escotilhas, Tlüogodärami podia ver as chamas formadas pela
fricção da carenagem de sua espaçonave com a atmosfera de
Dianvinst. Após alguns segundos, a luz avermelhada das
chamas deu lugar ao escuro. Uma noite bela apresentava-se
aos olhos de Tlüogodärami. A nave aos poucos desacelerava
e nos visores podia-se ver o local do pouso. Um
descampado cercado por algumas árvores foi o local
determinado para o pouso ao norte do continente maior de
Dianvinst. A nave finalmente se preparou para pousar e,
quando o fez, Krueur sentiu que uma parte da missão havia
se cumprido, porém muito ainda devia ser feito e cumpriria
custe o que custasse.
Enquanto a nave esfriava, Tlüogodärami se preparava para
descer e sentir novamente uma atmosfera amigável e
natural. Algum tempo depois do pouso os sistemas
computacionais alertaram Tlüogodärami de presenças
próximas à nave.Verificou as pequenas criaturas,
estranhando aquele evento. Nunca soubera da existência
desse tipo de animal em seu planeta, mas como muito
tempo se passara, pensou que devia ser alguma variação dos
antigos animais existentes em Dianvinst. Resolveu sair e
fazer contato com aquelas pequenas criaturas conterrâneas.
Tlüogodärami saiu por uma das escotilhas negras e quando
desceu da nave e colocou suas patas no solo, postou-se sobre
as patas traseiras e imediatamente viu as criaturas.
Realmente, nunca as havia visto ou tomado conhecimento
sobre a espécie. Demonstravam alguma inteligência, pois
logo percebeu que trajavam roupas feitas artificialmente,
provavelmente confeccionadas por elas mesmas. Retirou seu
capacete e sentiu o ar puro daquela região, rico em odores
naturais, invadir seus pulmões. Há anos não experimentava
essa sensação. A simplicidade dos atos básicos deu lugar à
atenção despertada pelas criaturas. Tlüogodärami olhou-as e
estas corresponderam a seus gestos. Deu uma gargalhada de
satisfação e esboçou um sorriso, demonstrando atitude
amistosa. As criaturas, ao olharem para o rosto de
Tlüogodärami sem o capacete, ajoelharam-se mediante sua
presença, como se vissem algo sagrado ou divino.
Acontecia, ali, o primeiro contato de duas criaturas nascidas
no mesmo planeta, com a mesma capacidade intelectual,
mas separadas pelo tempo até aquele exato instante. Nascia
uma parceria potencialmente promissora, mas ainda não
sabiam disso. Tlüogodärami encontrou a tribo dos Li-Seugs.

CAPÍTULO 15
OBSCURIDADE REVELADA

Nos subterrâneos da mansão Li-Seug, na cidade do Rio de
Janeiro, um encontro nunca imaginado pela maioria dos
habitantes da Terra aconteceu nos alicerces daquela
grandiosa construção. Ali, Andrew Carter ouvia com
absoluta disposição o que seu interlocutor relatava. Palavra
por palavra era registrada no subconsciente de Andy. Não
sabia se a grande emoção ou o medo inconsciente
produziam tal efeito, ou se era mera curiosidade, mas aquela
situação inusitada e aquelas palavras pronunciadas pela voz
metálica grudavam como que livres de futuro esquecimento.
Seu campo visual não conseguia desvencilhar-se da face do
dragão. Seus quase três metros de altura, com rosto bestial,
chifres, pele escamosa e olhos amarelos penetrantes estavam
marcados quase a fogo na mente de Carter. O fascínio e a
curiosidade daquele dia mantinham-se vivos, ainda que estes
já estivessem revelados. Toda aquela história fantástica
parecia ficção científica ou coisa do gênero. Nunca em seus
mais terríveis delírios poderia imaginar algo tão
desvencilhado do cotidiano humano. Contudo, sua visão da
criatura e a certeza de estar totalmente lúcido causavam-lhe
ainda alguma estranheza, mesmo sabendo que aquilo tudo, a
princípio, consistia na mais completa realidade, nua e crua.
Fantástica, sim, mas totalmente real. Seus anfitriões, os Li-
Seugs, ouviam atentamente o relato do dragão, mesmo
tendo experimentado inúmeras vezes as palavras proferidas
por Tlüogodärami, prestavam atenção como se fosse a
primeira vez. Talvez suas atenções não se focassem na
história em si, e sim ao ouvinte atento. Tlüogodärami parou
por alguns segundos, enquanto comia alguma coisa, olhou
para um relógio digital perto de uma mesa e verificou que
estava tarde, a noite já encobria o céu com seu manto negro,
e achou que falara demasiadamente. Voltou ao diálogo com
Carter, depois de mastigar e engolir o alimento.
— Dr. Carter, basicamente esta é minha história — disse
Tlüogodärami enquanto acariciava Andarilho, o lobo negro
que permanecia ao seu lado, ora mastigando alguma coisa
dada por ele, ora olhando para Carter com seu olhar lupino
de profunda tristeza.
— É inacreditável. Não que eu duvide da história, mas não
esperava de nenhuma maneira tomar conhecimento de algo
assim — argumentava Andy. — Acreditei que esta viagem
só seria mais uma de negócios e o senhor há de convir que
tais informações são surpreendentes, no mínimo.
— Peço desculpas, mas não havia outra maneira de
convencê-lo, Dr. Carter. Pesquisamos sua vida e, pelos
dados colhidos, a integridade é algo predominante em seu
ser. Portanto, não trabalharia conosco caso não soubesse
mais sobre nós — disse Tlüogodärami.
— Entendo. E depois de sua chegada ao nosso planeta, o que
aconteceu? — perguntou Carter.
— Os Li-Seugs me adotaram; se posso dizer assim. Aprendi
seu idioma e trocamos informações. Consegui sobreviver
estes anos todos graças a eles, pois minha existência seria
solitária e desastrosa, e ajudei no que pude essas pessoas
maravilhosas. Minha gratidão é eterna. Confesso que houve
momentos em que não acreditava ser possível retomar o
projeto de reconstrução de minha civilização. Contudo, nos
últimos duzentos anos da história da humanidade, um salto
tecnológico pôde ser apreciado por meus velhos olhos.
Percebi que a oportunidade havia chegado. Saímos do
interior da China e construímos um império corporativo
onde poderíamos desenvolver tecnologia e angariar recursos
para levar tal projeto adiante. Fomos extremamente bem-
sucedidos. Shoi e seu povo descendiam de um grupo de
comerciantes e não foi difícil conseguir retomar sua antiga
vocação.
— O que aconteceu com a nave? Pelo que entendi, ela
desceu intacta ao nosso planeta — perguntou curioso Andy
Carter.
— A nave entrou em colapso pouco tempo depois de meu
pouso — explicava o dragão. — Ela foi construída de
maneira precária, afinal, meu povo estava num momento de
escassez. Ainda assim serviu-me bem. Somando-se a isso a
idade que possuía, as peças deste jogo tornaram-se
desfavoráveis. Ela talvez não tivesse dez milhões de anos,
pois o tempo realmente é relativo, principalmente
utilizando-se as passagens naturais das dobras espaciais, mas
ainda assim andamos muito tempo e ela não conseguiu
voltar à ativa.
— Esta nave ainda se encontra com vocês?
— Certamente. Ela é objeto de estudo há muitos anos.
Contudo, nunca conseguimos reproduzi-la. Todavia,
retiramos boas idéias dela e muito de seus dados foram
preservados. Vou levá-los ao planeta Marte para decodificá-
los com o equipamento presente por lá — Tlüogodärami
olhou mais uma vez para o relógio e voltou sua atenção a
Shoi. — Acho que já conversamos em demasia por hoje.
Amanhã falaremos mais e acredito que o Dr. Carter precise
se alimentar e descansar. Afinal, é muita novidade para
assimilar em tão pouco tempo. Meu caro amigo Shoi: leve-o
para jantar e descansem, pois teremos muito para conversar
e negociar.
— Sim,Tlüogodärami. Iremos imediatamente.
Todos os presentes se levantaram e cumprimentos de "boa-
noite" foram trocados. Carter apertou a pata de
Tlüogodärami com o tradicional cumprimento humano e foi
correspondido cortesmente pelo dragão. Sentiu a força
daquela pata, apesar da delicadeza imposta por Tlüogodärami
no ato em si, e não só o potencial de sua força física como a
força da sabedoria de uma criatura tão antiga e vivida. Surgia
o início de uma grande amizade, assim sentia Carter.
Cruzaram o corredor escuro e saíram na passagem do
escritório da mansão. Shoi sugeriu a Carter que, se fosse de
sua vontade, poderia ir ao seu aposento e fazer sua refeição
por lá. Carter aceitou de bom grado, pois começara a relaxar
após o contato com Tlüogodärami e o cansaço físico e a
fome começaram a tomar conta de sua fisiologia. Não sentira
o tempo passar durante o contato com o dragão. Após
chegar ao seu quarto, recebera sua refeição trazida pelo Sr.
Oliveira. Comeu com sofreguidão e deitou-se
imediatamente, perturbado pelos pensamentos adquiridos
durante este dia inusitado. Depois de uma hora pensando,
rendeu-se ao mais profundo sono e, como que transportado,
acordou com os raios do sol em sua face, indicando a aurora
do novo dia.
Andy desceu e foi recepcionado pelos Li-Seugs com a mesa
do café da manhã posta. Tomou seu desjejum e logo depois
foi conduzido por Shoi ao local onde Tlüogodärami se
encontrava costumeiramente.
— Bom dia, meu caro doutor. Como passou a noite? —
dirigiu-se o dragão a Carter.
— Bom dia, Tlüogodärami. Apesar do dia fantástico, não tive
problemas para uma boa noite de sono.
— Hoje faremos ótimos negócios, Dr. Carter — Shoi
esboçava um sorriso cordial.
— Com absoluta certeza — reafirmava Tlüogodärami.
No refúgio onde Tlüogodärami se ocultava do resto da
humanidade, havia uma extensa biblioteca. Livros
espalhados por toda a parte e arrumados de diversas
maneiras. Havia livros organizados em estantes de madeira
maciça ricamente entalhada e escurecida pelo tempo. Os
volumes se alternavam ora para belíssimos e antigos
volumes ricamente encadernados, ora para brochuras
envelhecidas. Contudo, sentia-se que cada peça da extensa
biblioteca era admirada igualmente por seu dedicado dono.
Outros volumes, diversos também, encontravam-se
empilhados como que muito estudados, com diversas
marcações que lembravam cabelos de papel brotando
daquelas junções de folhas prensadas. A maior parte das
pilhas de livros estava próxima a uma espécie de mesa
adaptada onde visivelmente fora projetada para um ser
desprovido de uma corriqueira anatomia humana poder
utilizá-la funcionalmente e com o devido conforto. Ao
centro da biblioteca, duas poltronas do tipo Barcelona, forro
negro contrastando com o aço inox de sua estrutura,
encontravam-se sobre um rico e antiguíssimo tapete persa
tecido com a mais macia e nobre lã de ovelhas. Posicionadas
como se fossem assentos de um espetáculo, tinham a maior
parte do tapete como palco. Tlüogodärami conduziu Shoi e
Carter às poltronas, acomodando- os nelas sem muito
esforço. Por sua vez, Tlüogodärami posicionou-se deitado,
ao modo dos dragões, com suas patas para a frente. Sua
cauda circulava seu corpo e a ponta encontrava-se quase
com suas patas dianteiras e seu pescoço mantinha-se ereto,
com seu olhar penetrante não desviando um segundo sequer
de seus interlocutores.
— Bom, Dr. Carter. Seu projeto Black Mustang 03A serve
muito bem ao nosso propósito — disse Shoi tentando iniciar
a conversa.
— Meus compatriotas, Dr. Carter, principalmente o grande
Tlüogodärami, meu antecessor, propôs aos líderes de meu
povo a condução de um projeto como reserva em caso de
emergência. Apesar de os dragões daquela época terem
ficado cegos pela sede de vingança e arrogância oriunda de
nossa avançada e quase perfeita sociedade, pelo menos era o
pensamento corrente, foi permitido ao último Tlüogo-
därami, antes de mim, conduzir tal projeto. Foi uma espécie
de milagre dentro de tantos sentimentos provocados por
tempos estranhos e difíceis. Mas por razões sem a menor
lógica, mediante obviamente a conjuntura daqueles tempos
como parâmetro, Tlüogodärami conseguiu executar seu
projeto de emergência. Este nada mais era que a construção
de duas estações, onde nossa cultura e tecnologia estariam
armazenadas como reserva em caso de catástrofe. A tarefa
não foi fácil, pois apostamos alto demais naquela guerra e a
possibilidade de derrota foi pouco cogitada pelos dragões
naqueles tempos. Quando fui conduzido para a missão de
reconstruir meu povo, meu superior mandou-me
diretamente ao planeta Terra, berço de nossa civilização e
lugar mais adequado à sobrevivência de qualquer
componente de minha espécie. Contudo, o planeta Terra
tem características de um ser vivo gigantesco. Sua superfície
é extremamente instável e a estação existente aqui foi
destruída pelas constantes mudanças do planeta, situação
constatada nos anos sessenta do século XX por uma equipe
chefiada por Shoi. Afinal, dez milhões de anos não são dez
anos. Infelizmente, tive de adiar meu projeto por algum
tempo. Minha nave estava totalmente incapacitada e, apesar
do avanço tecnológico dos dragões, não sou o guardião de
tão alto conhecimento. Portanto, tive de esperar e me
conformar com tal situação. Mas como vocês humanos
dizem: "o mundo dá muitas voltas". Nos últimos duzentos
anos, houve uma guinada no rumo tecnológico da
humanidade e a evolução dessa tecnologia seguiu um rumo
profundamente rápido. A partir do momento em que o
homem colocou seus pés na Lua no final dos anos sessenta,
minhas esperanças se renovaram. A segunda estação está
numa cidade dos dragões localizada no planeta conhecido
por vocês como Marte. Essa específica estação encontra-se
em condições mais estáveis por causa do próprio planeta,
mais estável, e localiza-se em uma estrutura resistente, pois
esta cidade tinha o que havia de mais moderno naqueles
tempos perdidos. Marte, para nós dragões, era uma espécie
de campo de pesquisa e extração de matérias raras. Apesar
de ter vida inexistente, possui fontes ricas no que diz
respeito à construção de tecnologia. Portanto, meu caro
doutor, seu projeto nos convém, pois abre a possibilidade de
tornar o inalcançável durante quase três mil anos em
alcançável.
— Bem, no que eu puder ajudar, acho que nosso negócio
está feito — Carter balançava a cabeça positivamente. —
Tudo aquilo que o projeto Black Mustang 03A for útil estará
à disposição da Seug Corporation.
— Compraremos do senhor esse projeto, Dr. Carter — Shoi
gesticulava demonstrando a importância daquele ato. — O
senhor não sairá perdendo de jeito nenhum nesta história.
Pagaremos a quantia de dois bilhões de euros pelo projeto e
convidamos o senhor a participar deste com um salário de
cinco milhões de euros anuais. O que o senhor acha?
— Meu Deus! E muito mais do que imaginava. Claro que
aceito a proposta.
— E se me permite, Shoi, gostaria de convidar o Dr. Carter
para participar de nossa missão. Nada mais justo que o
idealizador do projeto poder experimentar sua própria
criação, na prática — disse Tlüogodärami num tom de voz
amistoso.
— Concordo com você, Tlüogodärami. A presença do Dr.
Carter seria muito bem-vinda.
— Confesso que seria um sonho muito antigo tornando-se
realidade, meus caros. Aceito, também, este convite.
— Possuímos um projeto de uma nave invisível aos satélites
e radares da Terra. Seu projeto, doutor, entraria com os
sofisticados mecanismos de propulsão e tudo o mais. A
modificação idealizada por nós seria apenas na parte
externa, mantendo seu projeto original quase na totalidade.
— E quando começaríamos o projeto em si — Andy Carter
não conseguia esconder sua ansiedade.
— O quanto antes, Dr. Carter — disse Tlüogodärami.
— Temos em mente o seguinte: o senhor voltará para os
Estados Unidos, e pegará tudo que for necessário para sua
mudança, como objetos pessoais, plantas do Black Mustang
03A, protótipos, etc. Resolva as pendências com sua
empresa — explicava Shoi objetivamente.
— Sim, entendo.
—Toda a estrutura da Seug Corporation estará à sua
disposição. Um de nossos velozes cargueiros fará o
transporte. Nossas equipes nos Estados Unidos estarão de
prontidão para servi-lo da melhor maneira. Não pouparemos
recursos, Dr. Carter. Gastaremos até o último centavo em
prol desse projeto — Shoi observava com expressão de
profunda convicção para Andy.
— Não tenho a menor dúvida sobre isso, Sr. Shoi.
— Tomamos a liberdade de disponibilizar um de nossos
aviões para sua ida e seu respectivo retorno. Quando o
senhor quiser, poderá partir.
— Acredito que amanhã mesmo poderei partir.
— Então estará tudo pronto para amanhã de manhã. Temos
toda a estrutura para o início do projeto localizado ao norte
deste país. Paralelamente ao nosso projeto, haverá outro
para o desenvolvimento de um foguete, onde este levará um
satélite ao espaço. Esta é nossa fachada, Dr. Carter. Assim
que a nave estiver pronta, o foguete desviará os olhares e
será lançado conjuntamente à nossa missão. A floresta
amazônica camuflará o local da construção, pois possuímos
instalações subterrâneas para não levantar suspeitas, abaixo
do local oficial do foguete. Tentaremos produzir o máximo
possível de interferência para que nada seja localizado. Mas
isso está ainda em nosso futuro e estamos ainda abertos a
sugestões — Shoi olhava para Tlüogodärami e este balançava
sua cabeça afirmativamente.
— Quero agradecer ao doutor por seu envolvimento — disse
Tlüogodärami. — O senhor é peça fundamental para o
sucesso de nossos planos.
— Eu é que agradeço aos senhores, pois há nisto muito mais
que dinheiro. Sinto-me honrado em participar - agradecia
Carter aos seus anfitriões e agora companheiros.
— Nós também estamos honrados com sua presença, Dr.
Carter.
Alguns pormenores foram estabelecidos e resolvidos
naquela reunião. Andy Carter preparou-se para sua viagem
de volta, como planejada há pouco tempo. O avião levou-o
de volta ao seu país de origem e lá tudo ocorreu conforme o
combinado. Os funcionários da Seug Corporation
demonstraram eficiência excepcional nessa área. Os mean-
dros burocráticos e os inconvenientes de transportar objetos
fora de uma escala aceitável não tiveram muito trabalho, a
não ser o de assinar alguns papéis. Sua empresa foi deixada
nas mãos de seus executivos mais eficientes e o dinheiro
injetado pela venda do Black Mustang 03A renovou as
possibilidades do negócio familiar de Carter. Pouco mais de
um mês e Andrew Carter voltara para assumir seu posto de
engenheiro principal no projeto secreto da Seug
Corporation, imaginando naquele momento a ignorância
total da humanidade em relação ao obscuro segredo detido
por ele. Mesmo encontrando-se com Tlüogodärami
inúmeras vezes, ainda havia um sentimento de
incredulidade e loucura pairando em seu mais íntimo
pensamento. Custou algum tempo para aceitar a nova
situação, ou melhor, assimilar aquilo ao que considerava
normal. O envolvimento com o trabalho ajudou. Suas
preocupações passavam não mais para questionamentos da
própria realidade, e sim à concretização de seu querido
projeto espacial melhorado pela tecnologia da Seug
Corporation. Contudo, mais alguns anos seriam necessários
para concretizar aquilo que fora requisitado para fazer.

Quase dois anos e meio se passaram desde o envolvimento
de Andy Carter no projeto patrocinado pela Seug
Corporation. Seu sonho estava quase se realizando. Aos
poucos a nave criava forma e tornava-se uma realidade
palpável. Realmente a Seug Corporation não economizara
recursos para o projeto. Profissionalmente, Carter não teve
reclamações, pois se encontrava no paraíso dos engenheiros
aeronáuticos. Como pessoa, possuía igual sorte. Poucos no
mundo realmente poderiam chegar tão perto das realizações
de Carter. Além de deter consigo uma história secreta
conhecida por pouquíssimas pessoas, seu sonho de infância
aproximava-se a cada segundo movimentado no ponteiro do
relógio. O espaço sideral seria alcançado em pouco tempo e
logo sujaria as solas de suas botas com solo marciano.
No primeiro ano de trabalho, Carter fez inúmeras sugestões
aceitas prontamente pela cúpula da Seug Corporation. Uma
das sugestões resolvia perfeitamente o problema do disfarce
do vôo tripulado a caminho de Marte. O foguete de fachada
teria a falsa missão de explorar o sistema solar com
velocidade nunca antes tentada por nenhuma agência
espacial. Carter sugerira o uso de estágios gigantescos
acoplados ao estágio principal onde o sistema de satélite
estaria disposto. Em um dos estágios, a nave estaria
estrategicamente escondida. A justificativa de gigantescos
estágios propulsores estava exatamente na velocidade de
viagem exigida como nova meta para esse tipo de pesquisa.
Tlüogodärami e a família Li-Seug encontravam-se residindo
ali desde o início do projeto e acompanhavam a fase final
deste atentamente, compartilhando das mesmas ansiedades
conforme o projeto criava corpo.Tlüogodärami residia
especificamente na base de lançamento. Todos os
envolvidos ou eram do clã dos Li-Seugs ou profundamente
ligados ao grupo. Portanto sua estada não era mistério para
ninguém. Sua anatomia nada humana circulava por todos os
lugares e, apesar de diferente dos humanos, sentia-se
totalmente à vontade. Periodicamente se reunia com Shoi e
Carter para discutirem detalhes importantes relacionados ao
projeto. Não existia um dia sequer que isso não acontecesse.
Obviamente privava sua presença nas partes de fachada, pois
o projeto de disfarce atraía a curiosidade da imprensa e forte
inspeção tanto nacional quanto internacional. Os governos
mundiais não imaginavam o verdadeiro objetivo do
empreendimento da Seug Corporation. O esquema fora
muito bem arquitetado e o clã Li-Seug possuía um vínculo
com Tlüogodärami indestrutível. Iriam até o final com seu
amigo custasse o que custasse.
Faltando apenas seis meses para o lançamento, as
expectativas eram gigantescas. Carter dirigia-se para a sala
onde Tlüogodärami se encontrava para mais uma reunião.
Trajando um jaleco longo, seu semblante expressava sua
total dedicação. Barba por fazer e olheiras profundas não
indicavam sua verdadeira obstinação. O cansaço era apenas
físico e sua mente estava completamente em sintonia com
os demais. Apesar de ter ganhado peso e fumado mais do
que deveria, ainda gozava de boa saúde. Olhara para seu
relógio de pulso e o atraso evidenciava-se pelo
comportamento frenético de suas pernas impondo
velocidade maior que o padrão pelos corredores da base.
Chegara à porta da sala levemente ofegante e
cumprimentara informalmente Shoi e Tlüogodärami, dada a
intimidade criada durante o período de trabalho e da convi-
vência freqüente. Shoi, sentado em uma poltrona, trajava
uma camisa de linho branca e calças cinzas. Seu cabelo
impecavelmente arrumado refletia as luzes frias das
luminárias. Tlüogodärami encontrava-se numa posição
pouco usual para os dragões. Sentava-se ao modo humano,
pelo menos na medida do possível, e lembrava uma figura
dos contos de fadas, onde seu manto negro contrastava com
a fumaça emitida por seu cachimbo também negro ao estilo
churchwarden. Um odor levemente ácido, proveniente do
cachimbo de Tlüogodärami, lembrava muito o cheiro de
couro curtido com pinheiro queimado. Carter sabia, há
muito tempo, que o dragão era uma das poucas criaturas
deste mundo capazes de fumar latakia pura proveniente da
Síria.
— Desculpe-me pelo atraso, senhores. Um dos testes
provocou esse imprevisto.
— Ora, Dr. Carter, não há esta necessidade. Estamos entre
amigos — disse Tlüogodärami realmente em um tom de voz
suave transmitindo sua situação de não ofendido pelo
pequeno atraso de Carter.
— Espero que o teste tenha ocorrido como planejado —
disse Shoi.
— Tudo ocorreu conforme o planejado. O início do teste
atrasou em função de alguns imprevistos no preparativo.
Nada que possa preocupar-nos no que diz respeito ao
andamento do projeto.
— Perfeito, Dr. Carter — disse Shoi. — Semana que vem
teremos o projeto finalizado?
— Certamente, Sr. Shoi. Apenas pequenos detalhes
impedem o projeto de chegar ao seu fim. Esses detalhes
serão eliminados no prazo de uma semana, no máximo.
— Sim, meu caro doutor. Tranqüilizo-me com suas palavras
— Tlüogodärami exalava fumaça azulada enquanto sua voz
metálica expressava suas opiniões. — Nosso treinamento
começará após o término do projeto. Precisamos nos
preparar às condições inóspitas encontradas no espaço e em
Marte.
— Faremos testes diários na nave em busca de qualquer
problema durante os seis meses restantes ao lançamento.
Isso diminuirá o risco de falha — apesar do cansaço físico
evidente, a explicação dada por Andy Carter demonstrava
uma mente ávida por mais desafios, tornando-se a
contradição personificada.
— O caro doutor terá de se ausentar muito do projeto, porém
acredito que estará em boas mãos com a equipe — disse
Shoi.
— Não há dúvida em relação a isso. Minha presença já não se
faz tão necessária.
Depois de discutidos mais alguns pormenores, o dragão
colocou seu cachimbo descansando sobre uma mesinha
próxima e levantou-se. Dirigiu-se a um móvel com inúmeras
gavetas e ali pegou alguns objetos estranhos. Chamou Carter
e Shoi, compartilhando a visão de seus objetos.
— Veja isto, meus amigos — Tlüogodärami segurava uma
pequena placa com baixos-relevos, onde um símbolo antigo
dos dragões podia ser observado. — Isto, meus amigos, é a
peça-chave para nossa missão. Talvez se eu a perdesse
durante algum momento nestes três mil anos aqui na Terra
nossa missão seria profundamente prejudicada. Sem isso,
não serei reconhecido na cidade localizada em Marte. Uma
antigüidade mesmo quando meu povo estava vivo. Todos os
Tlüogodärami o tiveram em mãos.
— E este aqui, Tlüogodärami? — perguntou Carter.
— Este representa o poder dado ao dirigente supremo. Com
eles juntos, sou a autoridade máxima dos dragões. Mas como
vocês humanos dizem, foi um presente de grego. Do que
adianta receber tão grandes honrarias se não há mais a
civilização que as criou. Mesmo que minha jornada seja
totalmente bem-sucedida, não pretendo exercer essas fun-
ções para sempre. Assim que completar todos os objetivos
desta jornada, meu povo viverá como nos dias antigos, antes
das catástrofes acontecidas há mais de dez milhões de anos.
Nunca tive vocação nem para dirigente, muito menos para
soldado. Mas como cidadão, consciente de meu dever para
com os dragões, não pude recusar este fardo.
— Um fardo pesado para qualquer um, eu diria — disse Shoi.
— Não há dúvida — reafirmou Carter.
— São apenas lamentos de um velho dragão, meus amigos.
Fico feliz por compartilhar minha esperança com vocês. O
futuro é incerto e cada vez conseguimos subir os degraus da
vida com bastante sucesso.
O dragão remexia outras gavetas, organizando algumas
coisas pertencentes ao seu passado. Trouxe à tona de um
mar de miscelâneas um recipiente hermeticamente fechado,
muito semelhante à pequena placa. Com sua escamosa pata
dianteira, abriu-a apertando uma espécie de dispositivo. Dali
retirou uma espécie de cápsula prateada. Olhou para Carter e
a entregou.
— Como o senhor demonstrou uma amizade fora do
comum, mesmo esta história parecendo louca, gostaria que
recebesse isto de presente.
— E o que seria isto?
— Isto, meu amigo, é o segredo de minha longevidade e da
longevidade dos Li-Seugs. Tecnologia dos dragões. Esta
pequena cápsula se instalará em seu corpo e a partir deste
momento não terá mais qualquer doença ou oxidação. Ela
tem validade de mil anos. Junto com Shoi, decidimos que o
senhor é digno de compartilhá-la conosco. Aceitando este
presente, nos daria muita honra.
— Claro que aceito — disse Carter surpreendido com o
presente. — Só um louco recusaria essa oportunidade.
— É só tomar como se fosse um remédio comum e a
"mágica" da tecnologia vai despertar — disse Shoi, animado.
Andy Carter tomou a cápsula e depois de um dia, sentiu seu
corpo rejuvenescer. A sensação era extremamente
prazerosa. Nunca em sua existência sentira-se tão bem.
Todas as dores crônicas, principalmente na coluna, suas
dores de cabeça constantes por causa de uma sinusite
sumiram como se fosse "mágica". Tlüogodärami e Shoi
disseram que a cápsula era uma pequena usina, onde
espécies de robôs orgânicos, chamados de robôs celulares,
fariam o papel de mantenedor de suas funções orgânicas. Há
anos a humanidade sonhara com essa tecnologia. Muito se
falava em nanotecnologia, mas até aquele momento nada
significativo fora criado. Contudo, Carter desfrutava de seus
benefícios, ironicamente recebendo a herança de uma
civilização há muito extinta, com tecnologia existente antes
da própria existência dos homens na face da Terra.
Durante os seis meses finais do projeto melhorado do Black
Mustang 03A, nada ocorrera à nave, correspondendo esta a
todas as expectativas planejadas. A tripulação fora composta
por Shoi, Ji, Zhi, Goo, Tlüogodärami e Carter. Todos os
componentes da tripulação fizeram constantes simulações
para dominarem com perfeição o manuseio daquela
espaçonave. A saúde deles foi monitorada durante aqueles
seis meses finais e, como esperado, todos estavam bem.
Conforme se aperfeiçoavam, o tempo passava e o grande dia
se aproximava, meses se tornaram semanas, e semanas em
dias, até sobrar apenas algumas horas para o evento há muito
aguardado.

CAPÍTULO 16
Rumo ao Planeta Marte

A notícia de um grande evento sempre atraiu um número
incalculável de pessoas. Sejam simples curiosos, repórteres,
políticos ou celebridades, não importa a que tipo de evento,
e sim suas grandiosidades. Essas classes de pessoas são
atraídas como hienas sobre uma carcaça de zebra ou algo
parecido. A proposta oferecida por uma das maiores, se não
a maior, empresa do mundo à exploração espacial iniciava
uma nova era para a humanidade. Portanto, o lançamento
do foguete de fachada empreendido pela Seug Corporation
atraiu muitas pessoas, de todos os escalões da sociedade
mundial. Shoi Li-Seug, com Tlüogodärami, planejou
minuciosamente cada detalhe daquele importante dia.
Quanto mais pessoas vissem a decolagem, menos seriam
questionados por eventos estranhos. Afinal, eles não
estavam "escondendo nada" do grande público, a não ser um
pequeno detalhe inapropriado ao conhecimento da
humanidade, e até aquele momento só dizia respeito ao
restrito grupo do alto escalão da Seug Corporation. Assim
funcionava aquela fachada. Seria, portanto, o álibi perfeito.
O grupo designado para essa missão treinou
incansavelmente os procedimentos de pilotagem e
aterrissagem da espaçonave. Nada poderia dar errado. Todos
os mínimos detalhes foram cuidadosamente calculados com
a maior precisão possível. A nave, em si, fora concebida
para ser invisível aos radares. Sua aparência estranha não era
novidade para a humanidade. Já se construía, há anos, aviões
com esse conceito. As linhas retas e quebradiças davam à
nave um aspecto de quebra-cabeça em terceira dimensão.
Comprida e estreita parecia um foguete usado nas missões
Apoio, porém seu aspecto em linhas retas dava uma nova
dimensão ao conceito de foguete. Não se tratava na verdade
de um foguete. Era uma nave completa, sem a necessidade
dos inconvenientes estágios balísticos. Nada do tipo fora
concebido até então pela humanidade. Sua forma bizarra
servia perfeitamente aos propósitos originais. Não houve de
maneira nenhuma preocupações com aparências ou pompa
nesta missão arquitetada por Tlüogodärami. O único luxo
imposto por Tlüogodärami fora o batismo da nave. Como
isso pertencia tanto à cultura humana como à cultura dos
dragões, naturalmente não houve espanto por essa
reivindicação. Em homenagem ao projeto de Andy Carter, a
espaçonave chamou-se Mustang.
Dia 1º de julho de 2018, às seis horas da manhã, seria um dia
que mudaria todo o rumo da humanidade, se tudo ocorresse
perfeitamente. Naquele horário, todos já estavam prontos
para o procedimento de entrada na espaçonave. Vários
componentes da equipe especial da Seug estavam
preparando o caminho para os missionários. Todos usavam
trajes espaciais projetados para as condições fora da Terra.
Esses trajes lembravam muito os antigos trajes dos dragões.
Na verdade, o antigo uniforme de Tlüogodärami serviu
como base de pesquisa e desenvolvimento dessas novas
indumentárias. Tlüogodärami, por sua vez, usava seu antigo
traje, há muito tempo conservado por ele e os Li-Seugs.
Totalmente negro, tinha a forma estilizada da musculatura
dos dragões e coberto de símbolos apenas legíveis a
Tlüogodärami. Suas asas colavam-se ao corpo e eram
totalmente cobertas pelo traje. Apenas o formato estilizado
lembrava a existência delas. Assim vestido, o dragão
lembrava mais um réptil gigante, como que suas asas de
membranas delicadas jamais tivessem existido. Seu capacete
também lembrava uma cabeça de dragão com pouca
expressão e seu olhar morto quase se fundia ao resto do
traje. Os trajes humanos tomaram emprestado o estilo. Eram
também negros e com um capacete arredondado possuidor
de uma viseira também negra que cobria todo o campo da
face. Nas costas e na frente havia pequenas protuberâncias
onde se localizavam dispositivos que reciclavam o ar e
regulavam a umidade. Não era tão bela como a armadura de
Tlüogodärami, mas conseguia reproduzir boa parte de sua
funcionalidade. A nave encontrava-se ao nível do chão, em
posição horizontal, e os seis missionários adentraram na
nave negra como se fossem se fundir ao dispositivo. Na sala
de comando, havia cinco poltronas confortáveis bem fixadas
e painéis de controle com grandes telas de cristal líquido,
encontrando-se estas à frente de cada componente. No
centro da apertada sala, havia um local especial para
Tlüogodärami. Uma espécie de poltrona desenhada
especialmente para o dragão. Nitidamente a criatura se
colocaria de bruços naquela poltrona especial, e realmente
se posicionou dessa maneira. Ao se posicionar, perto de suas
patas dianteiras, Tlüogodärami ativou as travas que serviram
como cinto de segurança. Duas traves acolchoadas em forma
de "L" envolveram-no confortavelmente. O resto da
tripulação acomodou-se em suas poltronas, onde havia
sulcos para o encaixe das protuberâncias existentes em seus
uniformes. Apertaram seus cintos de três pontas. Até aquele
momento não fariam mais nada a não ser esperar. Os outros
procedimentos estavam a cargo do pessoal de terra. Atrás
deles, dentro da nave, havia uma espécie de alojamento
montado, onde poderiam descansar e fazer as tarefas básicas
do dia a dia. Na parede ao fundo do alojamento, uma
escotilha selava a área dos equipamentos. Um transporte
com pneus gigantescos onde em cada suposto eixo havia três
pneus posicionados em forma de triângulo, mais trajes
reservas compunham aquele ambiente. Ferramentas das
mais diversas também estavam armazenadas ali. Um braço
mecânico com uma pinça em sua ponta estava retraído a um
canto do teto e serviria como guindaste à retirada do
transporte ali armazenado. Ao fundo desse compartimento,
localizava-se o coração da nave. Aquela parede selava o
sistema e o reator que impulsionaria a nave espacial, e
apenas uma escotilha hermeticamente fechada dava acesso
ao perigoso ambiente.
O silêncio na cabine de comando fora quebrado por uma
voz metálica muito conhecida daquela tripulação.
— Meus amigos. Estamos prestes a começar nossa jornada
— disse Tlüogodärami em tom de discurso. — Não tenho
palavras para agradecer a generosidade de vocês. Apesar de
ser um problema exclusivo, nunca estive ou me senti só
nesta jornada, pois vocês estiveram todos estes anos à meu
lado e ainda continuam de livre e espontânea vontade. Meus
mais sinceros agradecimentos e que nossa jornada seja
impecável.
Todos fizeram gestos, comovidos com as poucas palavras
proferidas por Tlüogodärami. A nave fora fechada e cabos
presos à espaçonave entraram em tensão. Ela fora erguida e
levada para um caminhão especialmente adaptado para
carregá-la ao local onde esta seria escondida em sua
camuflagem de estágio balístico. O procedimento de
camuflagem durou cerca de meia hora. E mais uma hora e
meia para ser acoplado ao foguete oficial. A montagem
completa do artefato balístico tornou-o absurdamente
gigantesco aos padrões da Terra. Este, por sua vez, repousava
sobre um caminhão gigantesco. A plataforma móvel foi
levada por um elevador de carga até a superfície. Os raios de
sol da manhã penetraram o fundo do silo onde duas portas
se contraíam liberando a passagem. Aos poucos o que era
apenas uma ponta de foguete tornou- se o próprio. Os
convidados e curiosos ficaram espantados com a obra de
engenharia, e não houve um que não ficasse de boca aberta
com a façanha da Seug Corporation. Um dos executivos fez
um discurso enaltecendo o feito da iniciativa privada e a
nova era da corrida espacial. Todos os presentes aplaudiram
e mais meia hora se passou até o foguete se posicionar em
seu derradeiro local de lançamento. A tripulação da Mustang
observava os acontecimentos externos mediante à
transmissão enviada pela sala de controle em terra. Nos alto-
falantes espalhados pela base, uma contagem regressiva fora
transmitida. A contagem de vinte números decrescente foi
acompanhada pelas pessoas presentes ao lançamento. Após a
contagem, as ignições dos estágios ativaram-se e
gradativamente aumentaram. O foguete finalmente
começava a levantar vôo. Conforme ganhava altitude, sua
aceleração aumentava. Quinze minutos depois, a terrível
notícia foi transmitida para o mundo todo. Uma pane
causada por problemas elétricos havia provocado a
inutilização do foguete, sendo este destruído como forma de
proteção para que seus pedaços não caíssem em cima de
ninguém. Durante dias, a Seug Corporation deu detalhes do
empreendimento desastroso e suas ações nas bolsas de todo
o mundo despencaram violentamente. Contudo, as coisas
foram apaziguando-se e a empresa pouco sofreu, pois seu
tamanho e poder não tinham quase limites.

Durante a contagem regressiva, não houve ninguém da
tripulação da Mustang que não se sentisse emocionado. A
grande maioria ali nunca havia estado em tal situação.
Somente Tlüogodärami experimentara tal sensação, porém
havia três mil anos que não a tinha e nunca fora dessa
maneira, pois a tecnologia desenvolvida pelos dragões, com
seus estabilizadores e tudo o mais, tornava a viagem
altamente tranqüila, como se não tirasse as patas do chão. A
força da gravidade aumentava gradualmente. Todos faziam
força para suportá-la. Uma sensação estranha,
principalmente porque se encontravam na posição vertical.
Nove minutos depois a gravidade já não existia e a
velocidade se estabilizou. Todos continuaram suas funções
preestabelecidas. Continuamente, sem olhar para trás, o
monitoramento tomava todo o tempo da tripulação. Nada
poderia falhar. Os rádios não paravam de transmitir várias
freqüências, tornando muitas vezes a união dos sons
incompreensível. Andy e Goo sentiram um leve enjôo, mas
não chegaram a ter refluxo. Uma pausa nas transmissões e
um som de alarme pôde ser ouvido em todo o veículo.
Aquele sinal indicava o novo procedimento a ser executado.
— Todos preparados? — perguntou Shoi para a tripulação.
Em um quase único som, todos responderam
monossilabicamente o tradicional e esperado "sim".
Quatorze minutos depois do lançamento, Tlüogodärami
ativou o sistema para desacoplar o estágio falso do foguete.
Assim que o falso separou-se do restante, os estágios
verdadeiros pararam de funcionar e uma contagem
regressiva de um minuto ativou-se. O estágio falso abriu-se
ao meio como uma noz e finalmente a nave espacial
Mustang provou o vácuo do espaço sideral. Em menos de
dois segundos, a Mustang ativou seu sistema de propulsão e
ganhou certa distância dos restos do foguete. Terminada a
contagem regressiva, as partes explodiram, formando uma
bola de fogo alimentada pelo oxigênio líquido e o
combustível do projétil; do planeta Terra pôde-se ver o
peculiar espetáculo pirotécnico.
Sob a proteção da carenagem da Mustang, a tripulação
comemorava timidamente o sucesso daquela primeira etapa.
O primeiro dominó fora derrubado, agora era só ver a
seqüência cair para chegar ao objetivo final. Tlüogodärami
sentia-se satisfeito pelo sucesso e finalmente pôde fazer a
diferença exigida por sua missão nesta vida, e o fardo não era
leve, porém já havia iniciado e não via maiores problemas
até chegarem a Marte.
- Esta primeira etapa foi um sucesso — disse Shoi para todos
ali presentes. — Manteremos as transmissões interrompidas
para não levantarem suspeitas.
- Qualquer que seja nosso destino, tão cedo não haverá volta
ao planeta Terra. Portanto, estamos por nossa conta a partir
daqui — disse Tlüogodärami.
- Sistema ativado para a aceleração em dez minutos — disse
Goo, e Ji observava na tela as condições e equações para
corrigir a rota da Mustang.
Após dez minutos, como prometido, a nave Mustang
começou sua aceleração até alcançar a velocidade de 100 mil
quilômetros por hora necessária para conseguir chegar a
Marte em aproximadamente trinta dias. Apesar da
aceleração menor que a experimentada na decolagem, todos
se acomodaram devidamente em seus assentos para suportar
o incômodo da aceleração. A nave seguia seu rumo com
seus propulsores nucleares aumentando gradativamente seu
potencial conforme a aceleração exigia mais energia. A certa
distância, os propulsores lembravam uma estrela ou corpo
celeste em diminuto movimento.
Durante quase trinta dias, a rotina na nave foi das mais
monótonas. O trabalho de monitoração dos sistemas não
exigia muito da tripulação e o revezamento amenizava ainda
mais essa função. Basicamente, tirando os afazeres diários
naturais dos seres vivos e as pequenas tarefas exigidas pela
nave, foram dias regados a conversa e contos de histórias há
muito tempo esquecidas pela humanidade; afinal,
excetuando-se Andy Carter, todos ali poderiam ser
considerados fósseis vivos. Seus feitos em relação à
longevidade de suas vidas não foram superados por nenhum
homem ou dragão até aquele momento. Tlüogodärami
recontava com muita motivação suas histórias como
soldado, os acontecimentos no planeta Tidianvinst e sua
vida na civilização dos dragões antes dos terríveis
acontecimentos que os levaram à guerra. Por sua vez, Shoi
relembrava sua vida antes e depois de conhecer
Tlüogodärami. Lembravam do velho mestre Sue que nunca
aceitou a presença de Tlüogodärami e falecera um ano
depois do encontro, recusando-se a modificar seu destino e
desejando a morte mais do que tudo. Hoje em dia acredita-
vam que o velho mestre sofria de algum problema mental
característico das idades avançadas ou simplesmente fora
muita informação nova para sua mente extremamente
vivida. Goo, por outro lado, demonstrou ter um senso de
humor bastante aguçado e todos riam com suas piadas e
brincadeiras. Tinha o dom de imitar muitas pessoas, e suas
imitações de Tlüogodärami provocavam risadas peculiares
no dragão. Ji demonstrava ser um bom ouvinte, porém
nunca perdera sua timidez e ouvia mais do que falava. Neste
período, Zhi e Carter começaram a se envolver de maneira
mais íntima, porém nada que alguém na nave pudesse
perceber e nem eles conseguiam determinar com certeza o
que estava acontecendo a ambos. Talvez ali começassem as
primeiras emoções do que poderia ser algo mais sério no
futuro.
No trigésimo dia, como calculado, a nave estava muito
próxima de seu objetivo. A tripulação largou a rotina
adquirida durante o mês e retomou os procedimentos
treinados para aquela situação. Com todos posicionados em
seus lugares, começaram a desaceleração da espaçonave.
Feita a desaceleração, a nave seguiu para a órbita do planeta.
Todos aproveitaram o momento de calmaria para olhar o
planeta através das escotilhas diminutas espalhadas pela
Mustang. Depois de alguns segundos de contemplação, a
tripulação da Mustang voltou aos seus lugares, sem esconder
suas admirações, evidentes em suas expressões faciais.
- Custo a acreditar no que vejo — disse Andy a todos os
presentes. — É um sonho! Finalmente chegamos ao planeta
vermelho.
- Daqui ele não parece tão vermelho — comentou Goo com
seu peculiar humor.
- Esta etapa é a parte mais difícil, meus amigos —
Tlüogodärami falava num tom de voz mais sério que o
normal. — Devemos lembrar que este planeta é inóspito
para qualquer ser nascido no planeta Terra. Precisamos
achar a localização exata da cidade antes de pousarmos.
Vamos nos concentrar nisso, para o sucesso tornar-se
absoluto.
Todos voltaram suas atenções para Shoi, depois das palavras
de Tlüogodärami. Muito atentos, captavam cada palavra
proferida por ele.
— Sabemos que provavelmente a cidade está localizada
entre a região chamada de Argyre e a Calota Polar Sul.
Circularemos o planeta usando nossos scanners para mapear
e mandaremos uma freqüência igual à usada há trinta anos
para determinar o ponto exato de sua localização — neste
momento, Shoi transferiu um mapa para os monitores da
tripulação, baseado em fotos de satélite do planeta, e ali
estavam as regiões bem destacadas.
Naqueles instantes de aproximação ao planeta Marte, a
tripulação comprometeu-se com suas tarefas há muito
treinadas. A nave chegava cada vez mais perto da órbita
planetária e, conseqüentemente, a força produzida pelos
motores diminuía até ficar mínima, para que a nave não
entrasse na atmosfera marciana. Um satélite pequeno, não
muito maior que um ser humano, desacoplou-se da nave
Mustang. Uma medida de segurança para que pudessem
saber com exatidão sua localização no deserto planeta
vermelho. Após esse desacoplamento, a nave seguiu a
trajetória planejada. Os scanners rondavam a região sempre
que a nave passava entre Argyre e a Calota Polar Sul, e dados
eram acrescentados aos sistemas computacionais da nave.
Shoi e Tlüogodärami, principalmente, não conseguiam tirar
seus olhos dos dados recebidos. Um sinal enviado também
saía freqüentemente da nave, com o intuito de receber
alguma resposta. Toda vez que a nave passava por aquela re-
gião, mais dados obtinham-se, porém a freqüência enviada
não recebia resposta alguma. Há cerca de trinta anos, usando
grandes instalações de telecomunicações da Seug
Corporation, Shoi enviou uma freqüência idêntica ao
planeta Marte durante um ano e obtiveram a resposta tão
esperada. A equipe de cientistas da Seug conseguiu, com o
auxílio de Tlüogodärami, decodificar alguns dados existentes
na velha nave que o trouxera de volta ao sistema solar, e essa
freqüência, apesar de primitiva, teria resposta caso a base
instalada na cidade dos dragões em Marte ainda estivesse
intacta. O resultado positivo trouxe esperança ao velho
dragão e a corrida para alcançá-lo começou no segundo
depois da confirmação da resposta à freqüência enviada. Por
isso repetiam a experiência, pois recebendo uma resposta à
freqüência, o local da cidade poderia ser determinado
facilmente.
Uma sensação de preocupação invadiu a espaçonave depois
de três dias sem resposta. Talvez a freqüência estivesse fraca
demais ou coisa do tipo. Um misto de preocupação e
ansiedade quebrou a rotina do ambiente interno e impôs
medidas mais radicais.
- Quais são as possibilidades disponíveis para este caso? —
perguntou Shoi à tripulação da Mustang.
- Talvez pudéssemos aumentar a freqüência da transmissão
para que a possibilidade de encontro de uma resposta
pudesse ser ampliada — disse Carter aos demais.
- Esta solução simples deve resolver nosso problema -
comentou Tlüogodärami de modo incentivador. — Até que
ponto podemos ampliar a freqüência, Dr. Carter?
- Se não me engano, o máximo é trinta vezes maior ao
utilizado. Há também outra possibilidade, um pouco mais
arriscada. Contudo temos todas as condições favoráveis aqui.
- E qual seria, Dr. Carter? — perguntou Shoi.
- Na verdade é mais um complemento à amplificação do
sinal. Caso não obtenhamos sucesso nesta primeira tentativa,
poderemos entrar na atmosfera do planeta e rodear a região
com a nave o mais próximo possível, aumentando a
capacidade da transmissão.
- Não devemos descartar qualquer alternativa — interveio
Tlüogodärami. - Parece plausível a proposta oferecida pelo
Dr. Carter. Afinal, não temos nada a perder.
- Todos em seus assentos e vamos colocar em prática essa
primeira idéia — Shoi solicitou e foi atendido prontamente.
A freqüência foi aumentada ao seu máximo. As esperanças
aumentaram proporcionalmente. Desta vez, acreditavam,
obteriam sucesso. A nave Mustang circulou a órbita de
Marte por mais dois dias e, apesar dos esforços a bordo,
nada, absolutamente nada progrediu durante estes últimos
tempos. Não houve alternativa a não ser a entrada na
atmosfera do planeta, como sugerido por Andy Carter.
Resolveram não mais esperar e usaram sua última carta neste
jogo de nervos. A tripulação já sentia alguns sintomas do
estresse por causa das tentativas frustradas e pelo exaustivo
trabalho dos últimos dias. Ainda assim o otimismo não os
abandonou e continuaram em frente. Naquele momento
decisivo, a tripulação da Mustang manteve-se em seus
lugares, e os preparativos para a entrada naquela atmosfera
inóspita foram providenciados. A nave Mustang, que até
aquele momento lembrava vagamente um foguete negro,
revelou uma de suas facetas. Suas asas que quase ocupavam
todo o espaço de suas laterais abriram-se, tornando-a
semelhante a um pássaro negro. Escudos saíram dos
compartimentos da barriga da nave, seguindo a
aerodinâmica desta, para protegê-la do atrito da atmosfera
marciana, rica em dióxido de carbono, sendo este atrito
produtor de calor. Os escudos protegiam até a ponta da nave
e, uma vez no ambiente estável, seriam descartados.
Chegando o momento exato da entrada na atmosfera, onde
o ponto exato iria levá-los próximo ao local desejado,
lentamente a nave penetrava na atmosfera do planeta Marte.
Mais momentos de estresse se amontoavam à coleção já
adquirida pela tripulação. Todos sentiam a tensão no ar, pois
sempre esse tipo de operação encaixava-se naquilo que
podemos chamar de momento crítico. Qualquer erro levaria
anos de trabalho ao fracasso e esquecimento. Todos
mantinham seus olhos ora nos controles, ora nas luzes
emitidas através das escotilhas. Shoi comandava essa
operação, pois obtivera excelência nos treinamentos.
- Calma! Estamos indo muito bem! — Shoi tentava passar
tranqüilidade.
- Mais cinco minutos e poderemos estabilizar a nave —
disse Tlüogodärami.
Assim que passaram pela entrada na atmosfera, e o calor não
era mais um problema, os escudos, como planejado,
soltaram-se da nave, ainda incandescentes, e começaram o
mais lentamente possível a sobrevoar a região demarcada
nos mapas. Scanners e a freqüência foram ativados e o
processo de busca começou. Cinco horas depois finalmente
captaram alguma coisa nos sensores. Animados, investiram
mais forte o sinal na pequena região indicada.
- Realmente há indícios de que ela está próxima, mas
precisamos de uma confirmação.Vamos descer um pouco
mais a nave para obtermos um melhor resultado — disse
Tlüogodärami com sua característica voz metálica.
- Vamos descer até o limite de cinco mil metros e sobrevoar
a região encontrada pelos sensores — sugeriu Carter. Todos
concordaram.
A nave desceu até o limite preestabelecido e ampliaram ao
máximo a freqüência. Algum tempo se passou e, para alívio
da tripulação, os sensores indicavam com precisão o local da
cidade dos dragões. Todos comemoraram a façanha.
Olhavam estupefatos para o mapa e felicitavam-se por mais
uma vitória naquele jogo, porém algo os surpreendeu.
Uma onda muito forte saída do local da cidade dos dragões,
podendo ser vista a olho nu, foi exatamente em direção à
nave. Todos largaram o momento de euforia e colocaram-se
em seus respectivos lugares. Algo estranho estava
acontecendo. De repente a nave deu um forte tranco, e uma
pane elétrica tomou conta do local. A nave estava
completamente desativada e aquilo não era nada bom.
Tlüogodärami assumiu o comando e tentava fazer alguma
coisa.
- Precisamos ativar a nave novamente, se não vamos cair —
disse Tlüogodärami.
- Vou tentar chegar ao reator e ligar a energia de emergência
- disse Shoi.
- Estamos perdendo altitude — disse Goo olhando pelas
escotilhas frontais.
- Não vá, Shoi. É muito perigoso. Não dará tempo - disse
Carter.
- Precisamos retomar o controle manualmente e tentar fazer
um pouso de emergência. É nossa única chance.
—Vamos todos nos concentrar nisso — disse Tlüogodärami.
A nave perdia absurdamente altitude e começava a sair do
prumo. Tlüogodärami, Shoi e Carter conseguiram estabilizá-
la a muito custo, fazendo uma força extrema nos manches.
Estabilizada, começaram a perceber a contínua perda de
altitude e planejaram rapidamente um pouso de emergência.
A nave seguia seu caminho mortal e avistaram um local sem
muitos acidentes geológicos. Não possuíam o luxo da
escolha e decidiram por aquele local mesmo. Conforme a
nave aproximava-se do solo marciano, a parte frontal era
mantida elevada ao máximo possível. Quando a parte
traseira arrastou-se pelo solo, rapidamente o resto dela
chocou-se com as rochas e abriu-se um rasgo naquele solo.
Com o impacto, a nave aos poucos se arrastava e o bico
tendeu a penetrar mais fundo no solo, fazendo um efeito de
alavanca. Conseqüentemente a Mustang capotou e de
cabeça para baixo finalmente parou sua terrível trajetória.
Todos devidamente amarrados em seus cintos de segurança,
ainda sofriam os efeitos do pouso forçado. Ji, que não era de
muita conversa, foi o primeiro a se manifestar.
— Estão todos bem? — perguntava ao resto da tripulação.
Todos, aos poucos, manifestavam-se positivamente e a
situação não era nada favorável. Estavam de cabeça para
baixo e aos poucos se soltavam dos cintos. Shoi verificou a
integridade de cada tripulante e constatou que nada grave
havia acontecido aos seus, a não ser o grande susto
produzido pela queda. Tlüogodärami estava próximo do
grupo e não conseguia tirar um pensamento de sua mente: O
que faremos agora? O que faremos?


CAPÍTULO 17
Niiefgönst

"Estão todos bem?"
Perguntas deste tipo ecoavam livremente naquela cabine.
Talvez não acreditassem no fato de que estavam todos bem
e que, apesar da situação difícil, ninguém havia se ferido.
Apesar da capotagem, um tremendo inconveniente, a
aterrissagem em condições de emergência saíra quase
perfeita, afinal todos estavam vivos e aparentemente a
Mustang não sofrerá danos graves em sua carenagem.
Conseguiram diminuir o impacto com as manobras de
emergência. Contudo a capotagem deixou a nave
terrivelmente mal posicionada e ainda não se sabia se
conseguiriam fazer os sistemas elétricos voltarem à
normalidade. Ainda amarrados em seus cintos,
recuperavam-se do impacto psicológico proveniente da
situação adversa. Aos poucos, soltavam-se das amarras e
reuniam-se no teto da nave. Tlüogodärami, apesar de
preocupado com a situação, tentava demonstrar calma
naquele momento desfavorável.
— Já tentei fazer alguma coisa para esta nave funcionar por
meus controles e não obtive sucesso, infelizmente — disse
Tlüogodärami aos demais.
—Vou até o fundo da nave para verificar os reatores — disse
Carter. — Contudo, vou sozinho, pois caso haja algum
vazamento de material radioativo, a situação se tornará
perigosa para todos.
— Então vá, Dr. Carter, e verifique nossas chances —
recomendou Shoi.
Carter verificou o capacete do traje e seguiu rumo à última
escotilha interna onde encontraria os reatores. Antes de
entrar, pegou um contador Geiger-Müller na cabine
antecessora dos reatores e verificou o transporte de terra
caído, porém seus peculiares pneus amorteceram a queda,
deixando-o de cabeça para baixo e intacto aparentemente.
Ficou tentado em verificar as condições do transporte,
todavia voltou imediatamente ao princípio básico de sua
tarefa. Chegou até a escotilha, menor que as outras
existentes na nave e, como o sistema eletrônico de travas da
escotilha não estava funcionando, abriu-a manualmente
com algumas ferramentas encontradas na cabine. Não foi
uma tarefa fácil, mas como conhecia todo o projeto da nave
em suas mais profundas minúcias, sabia exatamente aonde ir
para destravar aquela escotilha. Abriu uma tampa, à força,
para ter acesso ao mecanismo de trava. Depois de fazer uma
alavanca com um pedaço de aço existente para possíveis
reparos, estocado ali na cabine, destravou o sistema de
travas, destruindo-o perpetuamente. Uma vez aberta,
escorregou para dentro da pequena escotilha e ligou uma
lanterna manual que não fora danificada pelo impacto vindo
da cidade dos dragões. Havia naquele compartimento dois
reatores nucleares pequenos. Um dos grandes trunfos do
projeto Black Mustang 03 A estava diante dos olhos de
Andy Carter. Fez um exame superficial nos reatores,
utilizando o contador Geiger-Müller e confirmou a
segurança de ambos. Depois procurou as chaves manuais
para reativá-los. Contudo, as inúmeras tentativas de ativação
apresentaram-se frustradas. Carter não conseguia entender a
situação. Era como se o material radioativo alimentador dos
reatores estivesse inativo. O que fosse aquilo vindo da
cidade desativara os reatores em sua essência energética. Ao
sair do compartimento, frustrado pelo fracasso em ativar a
nave Mustang, veio-lhe uma imagem esperançosa. O
transporte poderia não estar danificado e essa idéia renovou
as esperanças de Carter. Procurou entrar por uma escotilha
lateral e engatinhando pelo teto dirigiu-se ao assento
principal. Olhando para cima, procurou a chave de ignição
daquele carro e, quando a ativou, um alívio tomou conta de
sua alma atormentada. O motor estava funcionando e, por
alguma razão, até aquele momento não imaginada por
Carter, o transporte não fora afetado pela onda. Desligou-o e
correu o mais rápido que pode pelos caminhos intrincados
da nave Mustang até chegar aos seus companheiros na
cabine principal. Uma vez reunidos com seus
companheiros, relatou os fatos a eles.
— Temos alguns problemas, meus amigos — relatava Andy
Carter. — Os reatores da nave estão totalmente inoperantes.
E como se o material radioativo de um momento para outro
perdesse suas propriedades. Em resumo, todo o urânio
perdeu sua meia-vida, tornando-se chumbo. A nave está
condenada e só uma troca do material radioativo poderia
torná-la viável novamente. Como nossas condições atuais
não permitem tal feito, fazê-la voar novamente está fora de
cogitação.
— E agora? — perguntou Zhi. Todos aparentavam
acompanhar a pergunta dela.
— Não sei se vocês ouviram o som do motor do transporte,
mas este está funcionando, apesar de sua posição
desfavorável.
— Ouvimos, sim — afirmou Tlüogodärami.
— Nossas esperanças de continuidade estão agora
exatamente naquele transporte — disse Shoi.
— Mas todos os dados da localização da cidade estão contidos
no computador da nave. Mesmo o transporte funcionando,
como vamos saber para onde ir — questionava-se Ji.
— Podemos copiar para o computador do transporte os
dados contidos na nave — sugeriu Goo.
— Mas como se não há energia para transferi-los — disse Ji.
— A idéia de Goo é simples e boa — disse Tlüogodärami
com sua voz metálica. — Há como transferir esses dados
para o transporte de forma segura, Dr. Carter?
— Há esta possibilidade. Podemos retirar o disco rígido da
nave, mas isso pode de alguma maneira danificá-lo. E um
pouco perigoso.
— Entendo — murmurou Tlüogodärami.
— Uma segunda alternativa seria isolarmos os sistemas
computacionais da nave e transferirmos o conteúdo do disco
rígido para o transporte. Para isso, devemos fazer uma
ligação energética do transporte diretamente ao sistema
computacional da nave. Como existe uma ligação com o
intuito de transferir dados ao transporte, essa parte não será
um problema. Precisamos apenas transferir energia do
transporte para o sistema da nave, contudo não devemos
simplificar as coisas, pois se houver uma transmissão forte
demais, há a possibilidade de tudo ser destruído.
— E o senhor sabe exatamente como proceder nesse caso?
— perguntou Shoi.
— Confio mais na transmissão de energia do que na retirada
do disco rígido. Há risco em ambas as alternativas, mas
temos mais chances de sucesso na transferência, pois
conheço os mínimos detalhes deste projeto.
— Por que a retirada do disco rígido torna-se um problema,
Dr. Carter? - perguntou Tlüogodärami.
— Há uma total incompatibilidade dele com o sistema do
transporte. Esse disco rígido foi desenvolvido especialmente
para a nave Mustang e o transporte não possui as condições
ideais para seu total desempenho. Há o risco de se danificar
e perdermos os dados contidos nele. Como ainda há outra
possibilidade mais confiável, apesar de delicada, acredito que
não precisaremos apelar a esta opção, ainda. O sistema está
preparado para receber a energia do transporte e regular sua
intensidade ao uso adequado do próprio sistema
computacional.
— Acho que temos uma posição definida nessa situação.
Tentaremos a alternativa sugerida pelo Dr. Carter — disse
Tlüogodárami aos demais da tripulação. - Na situação atual,
não temos muito a perder.
— Realmente — comentou Shoi. —Alguma outra sugestão?
Todos concordaram com a alternativa. Divididos em duas
equipes e orientados por Andy Carter, os tripulantes da
Mustang, inclusive Tlüogodärami, começaram os
procedimentos para a tentativa de fornecer energia aos
sistemas computacionais da nave. Shoi, Goo e Carter
seguiram para a cabine onde o transporte e os materiais
necessários se localizavam.
— Dr. Carter! Aqui estão os fios de reserva! — Goo alertava a
ambos da localização dos fios, armazenados em caixas
brancas fixadas numa das paredes internas da nave.
— Há mais que o suficiente para levarmos energia ao sistema
— disse Carter observando a quantidade de fios expostos nas
caixas abertas.
Enquanto preparavam as conexões para a transferência de
energia, Carter procurava, mediante seu conhecimento
profundo do projeto, a área do transformador de energia que
eliminaria os riscos de destruição dos sistemas
computacionais. Com vários papéis diante de seus olhos,
certificava-se de tudo com esmero para não cometer erros.
Quando se sentia cansado ou preocupado, andava para ver
os procedimentos da preparação dos cabos de energia e,
após se acalmar, retomava seu pensamento e reafirmava seus
cálculos e linhas de raciocínio para aquela execução. Com
toda a minúcia do trabalho, levaram um pouco menos de
três horas para executar aquele improviso. Shoi se
encontrava no transporte enquanto Goo e Ji esperavam do
lado de fora. Carter estava na cabine intermediária entre o
sistema computacional da cabine principal e a que continha
o transporte. Cabos passavam de forma improvisada por
todos os ambientes da nave como que indicando a
demarcação de um caminho seguro. E não mais que
segurança era esperado naquela delicada situação. Zhi e
Tlüogodärami olhavam atentamente para as telas de cristal
líquido espalhadas pela cabine, esperando um bom resultado
no final das contas. Shoi ativou o motor do transporte e este
emitiu seu som característico. Após se desvencilhar da
posição ingrata de estar de cabeça para baixo em relação aos
comandos, correu para a chave ligada ao cabo para ativá-la.
Olhou para seus companheiros do lado de fora, pela
escotilha, e esperava um sinal positivo de ambos. Ji e Goo
olhavam alternadamente, ora para Shoi, ora para a entrada
da cabine onde Carter permanecia. Com um sinal de
positivo, Carter autorizou a ativação da chave. Ji, da mesma
maneira, levantou seu polegar dando a Shoi o subsídio
necessário para ativar a chave do cabo. Shoi não pestanejou
e ativou a chave em milésimos de segundos após a
confirmação de Ji. Iluminado pelas luzes vindas de todos os
lados do transporte, torcia pelo sucesso. Carter
imediatamente dirigiu-se para a cabine principal e com o
zelo de Tlüogodärami e Zhi, foi até o local onde o
transformador estava instalado. Parou por alguns segundos,
passou mentalmente o projeto por sua perturbada mente,
respirou profundamente e ativou a outra chave localizada no
transformador. Interjeições podiam ser ouvidas na cabine
principal. Estas expressavam alegria por causa do sucesso
obtido na operação. Carter respirou mais uma vez, e desta
vez era um suspiro de alívio, e correu para chamar os Li-
Seugs para ajudarem aos demais na transferência dos dados
para o transporte. Shoi ficou no transporte para verificar a
eficácia da transferência de dados e controlar o andamento
do fluxo de energia enviada aos sistemas computacionais da
Mustang.
Tlüogodärami ergueu seus companheiros para poderem se
acomodar o melhor possível nos assentos. Enquanto se
prendiam com os cintos de três pontas, tentavam se adaptar
à posição desconfortável. Contudo, a tarefa foi amenizada
em função da gravidade menor exercida pelo planeta.Todos
acomodados,Tlüogodärami se dirigiu abaixo de seu assento, e
com um pulo inesperado segurou-se nos apoios das mãos.
Com um movimento de força pura, colou seu corpo ao
assento, como se não existisse a influência da gravidade
opondo-se ao movimento. Estabelecida a conexão com o
transporte, os dados transferiram-se em pouco mais de dez
minutos. Tlüogodärami conferia, junto aos demais, se havia
ainda informações relevantes para serem enviadas ao
transporte. Depois de verificar que não existia nada mais
importante naquele sistema computacional, desceu
novamente de seu assento e ajudou os demais em suas
respectivas descidas. A energia cessou seu fluxo e o sistema
computacional foi desativado para sempre. Reunidos
novamente no teto da cabine principal, conversavam sobre
os novos problemas surgidos. A tripulação levantou a
questão da saída do transporte da nave e aquilo se tornou
problemático por alguns instantes.
— Como tiraremos o transporte desta nave? — perguntou
Shoi aos seus pares.
— Isto é um grande problema, pois a saída está obstruída por
estarmos de cabeça para baixo — disse Tlüogodärami.
— Não exatamente, Tlüogodärami — disse Carter ao ouvir as
palavras do dragão.
— Não entendi, Dr. Carter.
— Existe uma escotilha no piso daquela cabine do mesmo
tamanho da localizada acima. Era para facilitar as operações
de montagem e foi selada após o término da construção. Sua
abertura é possível mediante ato manual. A camada de
cerâmica externa seria facilmente destruída se forçássemos
com o transporte.
— E o que estamos esperando? — disse Goo com seu
habitual entusiasmo.
—Vamos com alguma cautela, pois até agora ela foi essencial
nesta demanda — disse Carter aos demais.
— Mais uma vez nosso caro Dr. Carter tem total
razão.Vamos planejar cuidadosamente os procedimentos —
disse Tlüogodärami.
— Abaixo do piso há uma trava manual que une toda a
estrutura interna daquela parte da Mustang — Carter
relatava a situação aos demais. — Alguém deve abrir o
alçapão e destravar a escotilha. Depois a força do transporte
fará o trabalho de abri-la, teoricamente.
— Vamos recolher tudo que for importante na nave e
carregar o transporte — disse Shoi.
— Então vamos agir! — concluiu Tlüogodärami.
Tudo que aparentava importância fora armazenado no
transporte. Alimento, ferramentas, os trajes reservas, tudo
colocado adequadamente naquele veículo. Entretanto, o
espaço dentro dele ficou limitado aos assentos da tripulação.
Aquele realmente era um caminho sem volta e todos
estavam conscientes disso. As atitudes tomavam um
caminho quase militar, pois o ambiente e a situação vivida
até aquele momento tornaram-se drásticos e limitados.
Tlüogodärami prontificou-se a abrir a escotilha enquanto a
tripulação acomodava-se da melhor maneira possível em
seus lugares. Depois de enfrentarem alguma dificuldade em
se prenderem nos cintos de segurança e estarem
devidamente pressurizados em seus trajes, esperavam apenas
a atitude de Tlüogodärami para saírem da nave Mustang. O
dragão trajando sua roupa do tempo da guerra subiu com
habilidade sobre o transporte tombado e procurou o alçapão
no chão onde jazia a alavanca que destravaria aquela oculta
escotilha. Uma vez localizada, abriu-a e encontrou uma
espécie de chave vermelha. Como Andy Carter havia
orientado, ele torceu a chave continuamente, e de repente,
quando ouviu um som de rangido, a estrutura tremeu
assustadoramente, fazendo com que o chão, agora teto da
nave, afundasse em sua direção. Contudo essa deformação
não chegou a provocar grandes estragos e imediatamente
adentrou no transporte de terra e acomodou-se em um
assento similar ao encontrado na Mustang. Com o transporte
devidamente selado e motores funcionando, estavam
prontos para transpor mais uma barreira imposta até aquele
momento.
— Todos prontos? — perguntou Tlüogodärami.
— Sim — Shoi respondia por todos.
O transporte começou a mover-se no apertado espaço.
Manobras de vai e vem faziam com que a tração nas rodas
conseguisse adquirir força suficiente para subir as pequenas
paredes da nave. Os pneus batiam de um lado ao outro até
que um grande impulso fez com que a escotilha esboçasse
uma abertura, mas logo depois voltou a se fechar. Não
desistindo, o transporte continuou sua manobra e, conforme
desenvolvia seu movimento, mais esboços de uma abertura
definitiva aconteciam. Os movimentos contínuos
começavam a destruir tudo em volta daquela cabine. Mas
antes que houvesse mais estragos, o transporte finalmente
conseguiu romper aquela barreira. A escotilha abriu-se
completamente, com suas portas impactando-se nas laterais
da Mustang, e o transporte finalmente encontrou a
atmosfera marciana sobre sua couraça metálica. A tripulação
aproveitou o ensejo daquela manobra arriscada e, quando o
transporte estava numa posição de noventa graus,
aproveitaram aqueles milésimos de segundo para colocá-lo
em sua posição normal. Como havia chegado muito mais
para a direita ao estar em noventa graus, conseguiu se
segurar com a tração exercida por seus pneus e não caiu
novamente dentro da escotilha. Houve uma comemoração
contida dentro do transporte e naquele momento
precisavam determinar onde exatamente estavam em Marte.
— Goo e Zhi, procurem em seus sistemas algum sinal do
satélite deixado por nós na órbita de Marte — determinou
Shoi.
— Espero que aquela onda que nos abateu não tenha
danificado o satélite — disse Carter.
-Também espero boas notícias, caro doutor — disse
Tlüogodärami, escondendo sua preocupação.
— O que seja aquilo, provavelmente foi direcionado a nós —
disse Ji aos demais.
—Vamos aguardar — respondeu Shoi.
Nem dois minutos se passaram e mais uma sensação de
alívio tomou conta da tripulação. O satélite continuava
operante e mandava sinais para o transporte. Eles
descobriram que a nave havia caído a um raio de
aproximadamente quatrocentos quilômetros de distância do
local onde se localizava a cidade dos dragões. Uma vez
sabido o local exato onde estavam, trataram de calcular a
direção exata para rumar à cidade dos dragões.
— Caímos depois da região de Argyre, mais precisamente ao
nordeste desta — disse Shoi, observando os dados enviados
pelo satélite.
— Bom, teremos que rumar para o Sul — completou Ji. —
Até aqui a situação apresenta-se fácil. Estamos no Norte e
queremos ir para o Sul — todos contiveram risadas para não
constranger Ji. Mas ele mesmo seguiu o espírito da equipe e
riu de sua própria colocação. — Deixando um pouco o
humor de lado - agora falava com sua típica seriedade —, os
mapas apresentam certa facilidade na primeira etapa da
viagem. Argyre é uma espécie de deserto plano. Mas depois
dela, há um terreno bastante acidentado.
— Torceremos para que não haja nenhum grande obstáculo
para impedir nossa chegada — disse Goo à tripulação.
— Mesmo que haja algum obstáculo, este veículo foi
planejado para atravessar quaisquer tipos de obstáculos
impostos em terrenos acidentados — disse Andy Carter,
respondendo aos anseios de Goo.
O transporte seguia o caminho preestabelecido mediante
informações obtidas do satélite instalado pela nave Mustang
na órbita de Marte. Carter, Tlüogodärami e Shoi decidiram
guiar o transporte com o máximo de cuidado pela primeira
parte do caminho, pois um terreno rico em irregularidades
tornava-se perigoso mediante a imprudência de qualquer
espécie. Sacudidas notavam-se à todo momento. Aos
poucos, com os ânimos voltando a um estado normal e
deixando-se envolver pela rotina monótona da viagem,
perceberam a gravidade menor exercida pelo solo marciano.
Como não havia necessidade de todos se dedicarem à
direção do veículo, a maioria deixava-se entreter com a
paisagem do planeta. Carter, por exemplo, não tivera tempo
de observar a materialização de seus mais profundos sonhos
de tenra infância. Um estalo mental tomava conta de si.
Sim!, pensava ele, Finalmente estou em Marte! Não
conseguiu, perante tal pensamento, conter sua emoção. Não
sendo um homem demonstrador de seus sentimentos, não
externou estes, porém isso não diminuía sua profunda
emoção por uma vitória pessoal quase impossível em
circunstâncias normais. O impossível tornara-se possível e
viu a frase tão usual personificada em sua própria realidade.
Tlüogodärami conduziu o veículo boa parte do tempo até
ali, tomando o máximo cuidado em sua condução. Quando
chegaram à região de Argyre propriamente dita,
Tlüogodärami permitiu-se descansar um pouco, pois o
terreno era bem menos acidentado que o padrão encontrado
até aquele momento. Goo e Ji, entediados com a viagem,
dirigiram o veículo no trecho tranqüilo daquele caminho
misterioso. Carter, também entediado, puxou conversa com
o dragão, para diminuir a monotonia causada pela
interminável viagem.
— Tlüogodärami, o que pretende realmente ao chegar à
cidade dos dragões — perguntou Carter não contendo uma
curiosidade há muito reprimida por sua postura educada. —
Desculpe-me por fazer pergunta tão impertinente, mas não
consigo sanar esta minha curiosidade.
— Não há o que se desculpar, meu caro doutor. Pretendo dar
uma segunda chance ao meu povo.
— Isto ficou evidente, mas penso se não há outra motivação
para esta reconstrução?
— Não compreendo. Há motivo maior que o de regenerar
um erro do passado? — perguntou o dragão ao curioso
Carter.
— Penso que, talvez — Carter procurava as melhores
palavras para dizer aquilo —, haja sentimentos ocultos nesta
missão.
— Sentimentos ocultos?
— Serei franco, Tlüogodärami. Não há a possibilidade de o
estímulo a esta missão ser motivado por um certo
sentimento como a vingança?
— Ah! Vingança! — o dragão esboçava um sorriso amistoso
como se Andy Carter compartilhasse consigo um
pensamento. — Sabe, Dr. Carter, não negarei que já possuí
por algum tempo tal sentimento. Talvez esse sentimento de
vingança fosse o primeiro estimulo à minha sobrevivência.
Mas três mil anos de reflexão sobre tudo o que vivi no
passado, tudo o que meu povo viveu e sofreu, deram-me
uma nova perspectiva disso tudo, e o sentimento, antes forte
e jovem, morreu asfixiado por sua própria falta de
capacidade de subjugar argumentos mais lógicos.
— Espero não ter sido impertinente em minha pergunta —
desculpava-se Andy Carter ao dragão.
— Não, claro que não. Sei que entre humanos há sempre um
sentimento contraditório em relação ao se falar a verdade.
Por não querermos enxergá-la, torna-se ofensiva muitas
vezes. Contudo não a temo. O sentimento de vingança
levou meu povo ao declínio. Não posso deixar que isso
ocorra novamente.
— A vingança corrói a consciência, deixando-nos cegos.
— Exatamente. E essa cegueira abre precedentes para coisas
piores. Os dragões não morreram em paz, Dr. Carter. A
vingança contra um inimigo desconhecido tornou-os
corruptos. Corromperam-se com as possibilidades de
riquezas e poder que conseguiriam caso derrotassem aquelas
criaturas. Acabou, contudo, do jeito que acabou.
— Mas pelo menos o antigo Tlüogodärami, seu antecessor,
conseguiu não ser cegado pela vingança nem pela
corrupção.
— E um pensamento assustador, Dr. Carter. De tantos
milhões de dragões sobreviventes, apenas um conseguiu
enxergar e até planejar alternativas para a sobrevivência de
seu próprio povo.
— Olhando por esse ponto de vista, realmente torna-se
assustador.
— Imagine caso meu antecessor fosse seduzido pelo
sentimento de vingança e pela arrogância advinda da
tecnologia avançada desenvolvida pelos dragões: não
estaríamos aqui conversando.
— Realmente assusta muito!
— O mais assustador disso tudo, e até diria decepcionante, é
que apenas um dragão tenha pensado nisso. Apenas um!
Claro que eu compartilhava de muitas idéias de
Tlüogodärami, mas por algum tempo a vingança me
alimentou. E acredito que muitos dragões não queriam, bem
no fundo de suas consciências, aquela guerra. Contudo,
ninguém contestou quaisquer atitudes tomadas, apenas o
velho Tlüogodärami à sua maneira, assim como o primeiro
Tlüogodärami o fez em sua época por outras motivações
históricas.
Carter observava pela escotilha a paisagem árida de Marte.
Estava refletindo sobre os argumentos apresentados pelo
dragão sobre as motivações e sentiu-se, até aquele
momento, satisfeito com suas palavras. Contudo, estimulado
por seu companheiro humano, Tlüogodärami sentiu-se à
vontade para continuar divagando sobre suas conclusões
durante tão elevado tempo de reflexão permitido pelo exílio
no planeta Terra.
— Levantemos uma hipótese, meu caro doutor — disse
Tlüogodärami retomando a conversa com Carter. — Quanto
tempo existe entre aquela guerra travada pelos dragões e o
tempo atual? Acredito que quase onze milhões de anos seja
tempo mais que suficiente para o limiar e a decadência de
qualquer civilização alienígena ou para nós mesmos. E uma
soma de tempo considerável. Portanto, mesmo alimentado
por sentimentos de vingança, a hipótese de ainda existir
alguma criatura ou civilização para alimentar tal sentimento
é quase improvável.
— "Quase improvável" é a expressão correta, Tlüogodärami.
Se algo que vi durante nossa amizade é que o improvável
torna-se palpável com muita facilidade.
— Claro que seres que existiam apenas no patamar mítico,
como os dragões, aparecerem diante dos olhos da
humanidade, seria um fato pouco provável. Mas estamos
lidando com um fator de não conhecimento da existência de
uma espécie, tida apenas como lenda ou criação da mente de
algum antepassado humano. A ignorância torna-a
improvável. Contudo, mediante exemplos bem
estabelecidos, quase onze milhões de anos é um período
mais que suficiente para esse tal inimigo tornar-se uma mera
lenda — Tlüogodärami dava uma suave risada perante a
comparação que fizera com a palavra lenda.
— Olhando por esse prisma, é bem provável a não existência
desses inimigos. Contudo a hipótese de ainda estarem vivos
existe, apesar de improvável.
— Exatamente, Dr. Carter. Não cometerei erros iguais aos
feitos no passado. O fato de ser muito improvável a
existência deles não quer dizer que a nova civilização dos
dragões não esteja preparada para enfrentá-los. Só não
seremos os primeiros a dar o primeiro passo em relação a
isso. Não buscaremos vingança por algo novamente
desconhecido. Isto é quase um paradigma universal para
qualquer ser vivente com inteligência neste gigantesco
universo. Por mais inteligentes e sofisticados que sejamos,
não há razão sem emoção. O sentimento e a construção dos
símbolos que nos fazem ser o que somos; aquilo que
respalda nossa identidade, nossas crenças, nosso caráter
construído é totalmente unido à razão. Sem a união dos
dois, não há inteligência capaz de prosperar no universo.
Quero dizer com isso que seríamos apenas robôs se não
tivéssemos esse algo a mais. Contudo, terei de dar prioridade
ao racional. Por isso sentimentos exacerbados, como os
estimulados no passado, não poderão ser os pilares principais
de uma guerra.
Tlüogodärami subitamente interrompeu a conversa com
Carter. Reparou pela mesma escotilha observada muitas
vezes por Andy Carter que o dia marciano se extinguia e as
sombras intensas daquele planeta tornavam a situação
profundamente perigosa. Shoi, que era espectador da
calorosa conversa travada entre Carter e Tlüogodärami,
percebeu a expressão preocupada do dragão e constatou ao
olhar pela escotilha aquilo que preocupava seu amigo.
Olhou, ao mesmo tempo em que Tlüogodärami, para a tela
de cristal líquido e verificaram que estavam próximos do fim
da cratera Argyre Planitia. Obviamente só passaram por um
pequeno pedaço da região, pois a cratera tinha uma distância
aproximada de mil e oitocentos quilômetros. Não havia
alternativa para aquela situação a não ser parar e esperar o
dia recomeçar. Shoi e Tlüogodärami estavam em sintonia
em relação à atitude a ser tomada.
— Não há o que fazer, meus amigos — disse Shoi. —Vamos
pernoitar aqui mesmo e esperarmos a luz do novo dia nos
conceber alguma segurança novamente.
Todos concordaram e realmente precisavam de descanso
para repor a energia perdida diante de tantas situações
preocupantes. Muito apertado, o transporte não fornecia a
melhor das acomodações para uma noite tranqüila de sono,
mas não havia alternativas naquela situação. Contentaram-se
com o que possuíam. Acomodaram-se da melhor maneira
em seus assentos e tentaram dormir um pouco. Não foi uma
noite das mais interessantes para a tripulação. Todos tiveram
sonos leves perturbados por constantes despertares e, no dia
seguinte, com o retorno da iluminação, não estavam em
seus melhores dias. Eles fizeram um rápido desjejum com a
comida trazida, o que não era grande coisa, contudo estavam
mais que habituados àquela comida desidratada e com sabor
pouco acentuado. Apesar de cansados, conseguiram repor
parte da energia e a vontade de conseguir aquele objetivo
alimentava cada espírito presente no transporte. A vontade
promovia a energia necessária para continuarem a missão
com a obstinação de que precisavam.
A jornada continuava na mesmice tornada habitual. A
aparência do local transmitia certa semelhança com um
deserto liso, sem dunas gigantescas. Segundo as informações
enviadas pelo satélite, estavam quase saindo da parte do
caminho que passava por Argyre Planitia.
À olho nu não se via ainda este fim. Depois de constatarem
a aproximação via satélite, não demorou muito para verem
uma imagem diferente nas escotilhas que serviam de pára-
brisas, e essa imagem foi um pouco assustadora. Um paredão
gigantesco brotava na linha do horizonte a cada metro
percorrido pelo transporte. Todos voltaram suas atenções ao
paredão rochoso. Apesar de ser o fim daquele trecho, não
tinham muitos motivos para comemorar. Aquilo não havia
sido planejado. Ao chegarem muito próximo da escarpa,
verificaram que aquele exato local onde o transporte chegara
não possuía nenhum lugar seguro para transpor a barreira
natural.
— Ah! Deus! Mais um problema! — resmungava Ji.
— Ora, Ji! Não seja rabugento! — comentou Goo.
— Não há necessidade de desespero. Vamos achar algum
lugar mais adequado para subir esse paredão — disse
Tlüogodärami com seu tranqüilizador tom.
— O que o satélite nos diz, Zhi? — perguntou Shoi à irmã.
— A área será fotografada e dentro de algum tempo o satélite
nos mandará essas imagens e poderemos escolher para onde
ir.
Em meia hora as imagens começaram a chegar ao
transporte. Todos começaram a analisar aquelas fotografias
para escolher o melhor lugar para transpor a barreira natural.
Não foi fácil. O satélite mandava imagens seqüenciais e a
cada pedaço vindo não se encontrava alternativa. Depois de
quinze imagens à direita do transporte, avistaram um lugar
apropriado para transpor a barreira. Com certeza o lugar
daria uma subida segura para o transporte, sem colocar a
missão em risco.
— Qual a distância dessa rampa natural? — Carter percebeu
que era bastante distante do lugar em que se encontravam.
— O satélite calcula aproximadamente uns cem quilômetros
- informou Zhi.
— Ter quatrocentos quilômetros de raio do local de nossa
queda à cidade dos dragões não traduz a verdadeira realidade
do caminho — disse Ji.
— Não adianta reclamar, meu caro Ji. Ainda bem que temos
escolha. O que são mais cem quilômetros para quem
transpôs uma barreira planetária? — disse Tlüogodärami com
a intenção de animar Ji e o resto da tripulação.
— Sim, Tlüogodärami. Compreendo o que quis dizer —
respondeu prontamente Ji.
O transporte virou à direita e seguiu o caminho paralelo à
escarpa. Até aquele momento seguiram numa velocidade
cautelosa. Não passavam de sessenta quilômetros por hora e
todos já estavam cansados daquilo. Tlüogodärami, sentindo
certa ansiedade no ar, começou a questionar se não
poderiam andar mais rápido.
— Este transporte não se locomove mais depressa do que
essa velocidade? — perguntou o dragão a Carter.
— Podemos chegar a uns duzentos por hora — disse Carter.
— Contudo, não é recomendável por causa do caminho
desconhecido.
— Acho que podemos ver, só um pouco, o que este
transporte pode fazer — sugeriu Goo, com um brilho nos
olhos exalando aventura.
— Como esta cratera não apresenta nenhuma grande falha
no caminho, acho que não faria mal um pouco mais de
velocidade — disse por fim Carter, convencido de que
poderiam ousar mais.
Tlüogodärami concordou e prontamente impuseram, aos
poucos, mais velocidade àquele veículo. Depois de algum
tempo, o carro alcançou um pouco mais de duzentos
quilômetros por hora. Os pneus de cada eixo, empilhados
em três, rodavam alucinadamente. A pouca gravidade do
planeta provocava sensações apenas conhecidas dos mais
ousados pilotos de automobilismo. Um leve rastro de poeira
indicava a trajetória do veículo. Todos mantinham os olhos
na direção e contornavam os limites seguros da escarpa
como se essa fosse protegida por um campo de força
daqueles de ficção científica. O ponto onde a subida se
encontrava estava mais próximo a cada minuto passado. Em-
polgados com a sensação de liberdade que só a velocidade
possibilita, não perceberam uma falha no caminho. Havia
um rochedo naquele, e só deram-se conta tarde demais. As
rodas passaram por cima da rocha e finalmente foram
colocadas à prova naquele tipo de situação. Enquanto um
dos pneus era travado por um ponto de atrito, o pneu acima
girava e assumia a posição, transpondo a pequena barreira.
No geral, a pedra fez o transporte se projetar no ar.
Mantiveram a calma habitual e continuaram impondo
velocidade. O bem localizado ponto de massa do transporte
não permitiu que este capotasse. Os sons de risos nervosos
ressonavam no ar e alguns minutos depois o silêncio
predominou mediante a imponente presença da saída.
Realmente aquele pedaço da escarpa poderia ser transposto
com muito mais facilidade, contudo ainda era perigosamente
íngreme e teriam de tomar todos os cuidados possíveis.
Contudo parecia a subida de uma duna gigantesca e Carter
sugeriu a subida em ziguezague para uma maior segurança.
Seguiram de um lado ao outro da subida, movimentando-se
como que costurando, com seus peculiares movimentos. Ao
término daquela subida, depararam com um resto de
caminho bastante acidentado. As emoções obtidas embaixo
não poderiam ser repetidas e a cautela tornou-se novamente
necessária. Com alguns inconvenientes durante o percurso,
mas nada grave, finalmente chegaram ao ponto indicado
onde supostamente estaria a cidade dos dragões.
Um morro com uns dois quilômetros de diâmetro,
quatrocentos metros de altura e relativamente plano em seu
topo dormia imponente em seu sono geológico diante do
transporte vindo do planeta Terra. Tlüogodärami observava
fascinado aquele monte. Não acreditava que depois de
milhões de anos ainda o reconhecia. Mantivera em sua
essência o formato muito próximo ao que ele se lembrava.
— Finalmente chegamos, meus amigos — falava o dragão
com exaltação na voz metálica. — Não tenho palavras para
exclamar minha felicidade.
— Onde fica a entrada? — perguntou subitamente Goo,
interrompendo o êxtase de Tlüogodärami.
— Boa pergunta. Se não me falha a memória, no lado leste há
uma entrada - disse Tlüogodärami, lembrando-se depois das
palavras de Goo, que ainda faltavam detalhes ao fim daquela
missão. —Vamos até lá!
O transporte direcionou-se para a posição leste do monte e,
contornando-o rapidamente, chegou até um local
nitidamente artificial. Apesar de encontrar-se em ruínas,
havia ali os fragmentos de uma antiga e suntuosa civilização.
Os restos demonstravam uma sofisticação somente
compreendida por seres capazes de construir algo tão
maravilhoso como os dragões; e os seres humanos possuíam
essa capacidade. Tlüogodärami reconheceu a entrada e
imediatamente procurou sua caixa. Dentro daquela caixa, ele
tirou uma pequena placa ricamente ornada, muito
semelhante à própria caixa. Depois solicitou que deveria sair
do transporte e verificar mais de perto a entrada. Todos
pressurizaram seus trajes e Tlüogodärami imediatamente saiu
do transporte para a inóspita atmosfera marciana. Subiu
algumas ruínas e procurava uma espécie de fechadura
existente perto daquele portão. Depois de uma hora
procurando, encontrou finalmente aquilo que buscava. Por
pouco não percebera o encaixe daquela fechadura, coberto
por poeira e detritos. Limpou o melhor que pôde e
imediatamente encaixou a pequena placa de krür, e umas
luzes começaram a piscar como se aquele sistema fosse novo
em folha. Tlüogodärami imediatamente se afastou em di-
reção ao transporte e o gigantesco portão que selava há
muito tempo aquela cidade tornou a se abrir mais uma vez.
Dentro do transporte novamente Tlüogodärami ordenou
que passassem sem medo sob aquele portão. Lentamente o
portão se escancarava, e o transporte subiu pelas ruínas à
frente dele.Visivelmente emocionado, Tlüogodärami não
conseguia conter sua felicidade.
- Meus amigos, sejam bem-vindos à cidade de Yfunst Ghiar
do planeta Niiefgönst!

CAPÍTULO 18
Variáveis

O transporte adentrou aquela passagem aberta por
Tlüogodärami. Apesar de estar em ruínas do lado de fora,
aquela primeira parte da cidade encontrava-se totalmente
intacta. A antecâmara aparentava ser uma área de transição
ou rápida quarentena. Podia-se ver rocha escavada
rusticamente nas extensas paredes, no centro de uma parede
escavada, à frente do transporte, havia mais um portão que
dessa vez encontrava-se intacto em relação ao portão
externo. Não houve a necessidade de intervenção, pois o
portão se abriu sozinho revelando facilmente seus segredos.
Entraram em um túnel totalmente cilíndrico, extremamente
largo, muito bem iluminado e feito de metal claro polido.
Devia ter um diâmetro aproximado de cinqüenta metros.
Depois de oito minutos naquele cilindro, passaram deste
para outro estágio do caminho. Depois do fim do túnel,
assustaram-se com o que viram. Havia naquela câmara um
gigantesco ecossistema que lembrava muito o planeta Terra.
Uma estrutura gigantesca, servindo de ponte, atravessava
todo aquele ecossistema como se fosse uma passarela de
turistas em um parque temático. O lugar era de uma
grandiosidade inexplicável. Aos olhos dos humanos da
tripulação, aquilo se tornava a síntese do extraordinário.
Nunca até aquele momento poderiam imaginar um pedaço
da Terra localizado no desértico planeta Marte. Árvores e
plantas ocupavam aquela área. As copas das árvores
simulavam um extenso tapete verde. Ao longe, parecia um
conglomerado de nuvens verdes, dando uma leve sensação
de maciez. Um pequeno éden no subterrâneo do deserto
alienígena. Carter, ao deslumbrar aquele ambiente pela
lateral do transporte, calculou pelo menos uns sessenta
quilômetros de cada lado. Na verdade não se podia estimar
ao certo a distância, pois as visões laterais se perdiam em
horizontes artificiais. A única sensação confiável era a de
estarem descendo cada vez mais fundo. Ao passarem
próximos a cascatas de água, entraram em mais um túnel, e
este parecia idêntico ao anterior.
Atravessado o túnel, chegaram finalmente a uma parte da
cidade dos dragões. O ambiente estava intacto, como tudo
ali dentro. Não havia um grão de poeira em nada. Algum
desavisado poderia pensar que aquela cidade ainda era
habitada por alguns seres. Entretanto, o absoluto silêncio do
ambiente e o vazio de vida denunciavam o abandono. Por
isso mesmo encontrá-la intacta e excepcionalmente limpa
tornava-a impressionante aos olhos da ex-tripulação da nave
Mustang. As construções dos dragões mantinham uma
lógica impecável. Embora fossem feitas no subterrâneo,
possuíam a magnitude das mais sofisticadas obras de
engenharia. Havia corredores de passagem que poderiam ser
comparados com as ruas humanas, porém muito largos e
sem local para a passagem de transporte. Os supostos
edifícios demonstravam riqueza nos mínimos detalhes.
Placas em baixo-relevo decoravam muitas das construções
contando partes da história dos dragões. Contudo, algumas
construções aparentavam independência, como se fossem
edifícios ao estilo humano, e outras se integravam às paredes
escavadas, outras ainda se integravam do chão ao teto, das
mais variadas formas imaginadas. O transporte tornou-se
minúsculo em proporção à grandiosidade daquela
construção e não imaginavam que aquele trecho da cidade
era apenas um início bastante tímido da grandiosa cidade e
do que fora a civilização dos dragões, somente Tlüogodärami
imagina isso.
Resolveram parar por algum tempo, pois o pior da missão já
acabara; assim concluíram depois dos últimos
acontecimentos. Poderiam procurar com calma a estação e
parecia que Tlüogodärami sabia exatamente onde esta se
localizava. Procuraram um lugar para ficar, e naquela cidade
deserta não faltavam opções. Na direção oeste daquele
pequeno trecho da cidade, eles encontraram alguns
pequenos alojamentos quase terminados em suas
construções e totalmente vazios, o que dava a sensação de
legalidade, pois naquele lugar não existia vestígio de
nenhum antigo morador. Saíram do transporte e sentiram-se
como se estivessem no planeta Terra, a não ser pela
gravidade baixa. Acomodaram-se naquele alojamento, onde
puderam descansar finalmente com algum conforto. Com o
alívio proporcionado pela resolução dos problemas até ali, o
sono foi arrebatador. Todos sem exceção dormiram como
mortos.
Carter foi o último a acordar do grupo. Dormira como se
fosse transportado no tempo. Era como se fechasse os olhos
e no minuto seguinte os abrisse novamente, mas totalmente
renovado. Um sono semelhante ao que tivera viajando ao
Brasil para fazer o negócio de sua vida com a Seug
Corporation. Olhou para o pulso e percebeu um segundo
depois que não estava com relógio. Perguntou a Goo que
passava ao seu lado e este informou do tempo exato em que
estavam ali. Calculara um sono de aproximadamente quinze
horas. Nada mau para uma pessoa que costumeiramente
dormia não mais que seis horas por dia. Levantou-se e foi
direto ao encontro do grupo, que comia tranqüilamente algo
semelhante a um café da manhã. Todos estavam sem seus
capacetes, e Carter surpreendeu-se com isso. Não ousara
retirá-lo por desconhecer as condições da cidade. Ao se
aproximar ainda mais, seus amigos o encorajaram a retirar o
capacete.
— Bom dia, Dr. Carter — disse Tlüogodärami quando Carter
se aproximou do grupo. — Vejo que ainda usa seu capacete.
Aconselho a tirá-lo, pois além de ser mais confortável, há
total segurança em fazê-lo, como o próprio doutor pode
constatar.
— Bom dia,Tlüogodärami. Como chegaram a essa conclusão?
— Simples. Shoi e eu fizemos uma análise do ar daqui com o
dispositivo instalado no veículo e este indicou que o ar é
exatamente igual ao da Terra. Depois fomos para a parte
empírica e até agora não morremos — o dragão dava um
discreto riso.
— Com esse respaldo, também retirarei o meu.
Logo depois de retirar o capacete, Carter se reuniu ao grupo
e compartilhou da comida desidratada. Não era a melhor das
refeições, mas saciava a fome perfeitamente e mantê-lo-ia
bem disposto durante o longo dia de trabalho que
provavelmente teria. Enquanto se alimentavam, Carter
puxou conversa mais uma vez com o dragão. Não conseguia
conter a curiosidade alimentada pelas maravilhas que viu até
aquele momento.
— Por que a cidade está intacta, Tlüogodärami?
— Da mesma forma que podemos retardar a morte, a cidade
funciona como uma entidade viva. A nanotecnologia,
pesquisada e sonhada pelo homem era uma realidade bem
presente há onze milhões de anos em meu mundo, Dr.
Carter. Portanto, o sistema até hoje funciona, e funciona
muito bem!
— Aquela gigantesca floresta também é impressionante.
— Aquele ecossistema não é natural, Dr. Carter. Não fizemos
objeções à modificação genética das plantas para se
adaptarem a região inóspita de Marte. Sem essa mudança em
seus códigos, não haveria a menor possibilidade de vida
aqui, Dr. Carter, como também nos modificamos, caso
contrário morreríamos escolhidos pela loteria da extinção.
Carter se calou, refletindo sobre aquilo dito pelo dragão. Em
seu mundo, estes assuntos eram extremamente polêmicos e
conhecer uma espécie livre de tais questões morais
demonstrava-se intensamente fascinante. Após a refeição
frugal, eles decidiram seguir caminho, pois a cidade era bem
grande e intrincada, e com um transporte sobre rodas aquilo
demoraria um bom tempo para a chegada ao destino final, a
estação onde Tlüogodärami reiniciaria a jornada de seu
povo.
Durante o início do caminho, não havia um ser naquele
veículo que não olhasse deslumbrado para a cidade. Até
Tlüogodärami, que já conhecia aquele lugar, olhava como se
fosse sua primeira vez, também. Mas houve algo que
chamou a atenção de todos. Uma edificação gigantesca se
sobressaía de tudo ali construído. O edifício possuía um
revestimento da mais bela e polida pedra existente.
Tlüogodärami explicou que aquela rocha estava por todos os
cantos, pois nada mais era que rocha marciana, porém com
o polimento esmerado tornava-se uma rocha belíssima.
Rapidamente a edificação foi reconhecida por Tlüogodärami
e este afirmou que ali era uma espécie de centro ad-
ministrativo, fórum, arquivo e museu, tudo ao mesmo
tempo. Aquilo indicava que estavam no centro antigo da
cidade, e o edifício simbolizava além de suas funções citadas
o marco zero da construção da cidade de Yfunst Ghiar.
Resolveram parar mais uma vez e contemplar um pouco a
grandiosidade do lugar. Saíram do transporte e adentraram a
construção. Por dentro havia as famosas placas de krür tão
citadas por Tlüogodärami e logo de cara algo assustador
chamou a atenção dos viajantes. Algumas placas gigantescas,
com dez metros de altura, nitidamente mostravam cenas de
guerras primitivas. Dragões estilizados, com musculatura
acima da média se digladiavam em pleno ar. Corpos muti-
lados e vencedores alternando lados indicavam um
cotidiano de guerra infindável. Depois placas totalmente
lisas, umas três de tamanho tão grande como as dezenas
anteriores, estavam curiosamente depositadas antes daquilo
que realmente assustou a todos ali, menos o dragão
Tlüogodärami. Naquelas placas, logo a seguir, havia várias
figuras deformadas que pouco lembravam a composição
física de um dragão, mas ao mesmo tempo indicavam que
eram dragões. As contraditórias criaturas possuíam
deformações de todas as espécies. Diferentes dos guerreiros
mutilados existentes nas placas anteriores, aqueles
nitidamente deformaram-se por outro motivo. Parecia o
trabalho de um artista surrealista contido naquelas placas.
Mas em vez de guerra, aquelas criaturas deformadas
construíam objetos e, a cada objeto criado, uniam-se aos
demais, formando a imagem de um dragão gigantesco.
— Ah! — admirava-se Tlüogodärami. — Essas placas de krür
são muito antigas, porém são cópias das originais, bem
menores, por sinal. As primeiras mostram o período de caos
que minha civilização viveu antes de seu surgimento
propriamente dito. O símbolo dos dragões abraçados é a
representação de Tlüogodärami e como suas idéias mudaram
nossa história. Depois as placas sem nada representam as
trevas, pois sabemos muito pouco desse período, apenas que
foi a época inicial de nossa decadência. Estes dragões
deformados são os pais fundadores da última grande
civilização dos dragões. Eles, apesar de extremamente
doentes, uniram-se para de alguma maneira mudar o rumo
hediondo reservado a eles pela história evolutiva dos
dragões.
— Nossa! Nunca vi baixos-relevos tão perfeitos! Nem as
efígies das mais raras e bem concebidas moedas de ouro se
comparam à beleza dessas placas — disse Shoi ao amigo
dragão.
— Tirou as palavras de minha boca — disse Carter.
— São como hieróglifos sofisticadíssimos — disse Zhi. —
Uma síntese de como seria a linguagem escrita da
humanidade se continuasse usando essa forma de
representação. Os dragões chegaram ao auge no que se
refere a isso.
— Bondade sua, Zhi — disse Tlüogodärami demonstrando
alguma modéstia. — Contudo é o que chamaríamos de arte
em nossa civilização, claro que não chegamos nem perto dos
humanos no que se refere à arte propriamente dita.
Contudo, admirávamos isso diante de nossos olhos, e muito.
O esplendor daquelas placas de krür chamou a atenção por
muito tempo dos ali presentes. Poder-se-ia admirá-las por
dias seguidos sem ao menos se cansar daquilo observado.
Cientes da falta de disponibilidade de tempo deixaram para
outra oportunidade a chance de observar mais a história dos
dragões. No breve caminho de volta ao transporte, algo
estranho naquele universo de silêncio despertou a atenção
do grupo. Tiveram a nítida impressão de movimento muito
próximo. Um vulto foi visto por Shoi e Tlüogodärami,
escondendo-se à direita deles. Depois as suspeitas foram
confirmadas e mais dois vultos seguiram na mesma direção
do primeiro. O sentimento de medo incontrolável
manifestou-se neles. Aquela sensação promoveu os instintos
de homens e dragão. O que será aquilo?, pergunta
corriqueira na mente daquele grupo expedicionário.
— Devem ser robôs — disse Tlüogodärami aos demais. —
Entretanto, vamos entrar no transporte até termos certeza
absoluta das condições de segurança.
Todos entraram e rapidamente tentaram usar os sensores do
transporte para descobrir alguma coisa. Aparentemente, na
entrada da construção, não havia nada. Contudo, estavam
cientes daquilo visto e esperavam para encontrar uma
resposta mais convincente. Depois de algum tempo de
espera, os vultos exibiram suas verdadeiras formas. Dois
robôs construídos pelos dragões apareceram diante do
transporte. Tlüogodärami olhou-os desconfiado, pois
pareciam construídos com peças de outras máquinas.
Reconhecia por alto as peças de diferentes modelos inseridas
em uma única máquina e ambos os robôs tinham formas
completamente diferentes. As máquinas, contudo,
lembravam e muito a anatomia dos dragões. Na realidade
pareciam dragões trajando armaduras e as mesclas de peças
diferentes o tornavam um turbilhão de cores oxidadas e
metal bronzeado exposto em um pouco mais de três metros
de altura. Como dois cães fiéis ao dono, abriram passagem
para algo inusitado até aquele momento. Um dragão vivo
passava entre os robôs. Diferentemente de Tlüogodärami,
aquele dragão possuía menos de dois metros de altura, com
escamas tendendo a um vermelho-castanhado e amarelo
forte. Seus olhos possuíam um azul profundo e frio e sua
face não demonstrava qualquer expressão ao encarar o
transporte usado pelo grupo liderado por Tlüogodärami.
Trajava um manto de cor verde-escuro que lhe cobria a
maior parte do corpo, e este manto estava bem roto com
algumas partes danificadas. Até a lapela e punhos das
mangas, com tiras de metal com inscrições, estavam
desgastadas pelo tempo. Suas asas estavam fora do traje e
abriram-se alçando um breve vôo terminado bem próximo
ao veículo. Observava atentamente o que para ele era um
objeto estranho, e tocou levemente, com cautela, o
transporte vindo da Terra.
— Deus! Veja Tlüogodárami, é outro dragão! — exclamou
Goo ao observar a criatura aproximando-se.
— Não estou entendendo. Não deveria haver nenhum
dragão acordado. Segundo o velho Tlüogodärami, há poucos
dragões em estado de suspensão e só quando eu ativasse a
estação é que eles voltariam à vida.
— Talvez ele tenha acordado para nos recepcionar — disse
Shoi.
— Não creio. Mas tudo é possível. Algo não se encaixa.
— Como assim? — perguntou Carter.
— A indumentária é estranha. Ela é um símbolo de luto
entre os dragões. Contudo a que ele está usando é típica dos
escalões mais altos dos dirigentes. Se não me engano, já vi o
dirigente Virters usando traje muito parecido na catástrofe
antes da guerra. E veja o estado daquela vestimenta. Parece
velha como que extremamente usada.
— O que vamos fazer? — perguntou Shoi ao dragão.
— Esperem aqui.Vou sair e conversar com nosso amigo —
Tlüogodärami parecia preocupado com aquela surpresa.
Tlüogodärami saiu do transporte sozinho e com o capacete
recolocado. Por trás do visor olhava com cautela para o
dragão e suas máquinas. Imediatamente, após a abertura da
escotilha por onde Tlüogodärami saiu, o dragão de traje
verde-escuro retrocedeu e observou-o de longe. Os robôs
imediatamente se colocaram em posição defensiva, como se
guardassem algo muito precioso. Por trás dos robôs, ainda
observando Tlüogodärami com seu traje negro, o dragão
com um movimento de mãos afastou os robôs de seu
caminho e movimentou- se lentamente na direção de
Tlüogodärami. Os robôs iam atrás de seu mestre, não
desgrudando seus olhos artificiais de Tlüogodärami. Então o
dragão subitamente começou a falar uma língua somente
conhecida por Tlüogodärami; a língua geral dos dragões. Aos
ouvidos daqueles humanos da Terra, os sons guturais
lembravam ora uma linguagem, ora um rosnar articulado.
— Quem é você, dragão? — disse o dragão na língua geral de
Tidianvinst, encarando Tlüogodärami. — Por que trajas uma
roupa de guerreiro?
Educadamente, Tlüogodärami retirou o capacete e encarou
com seus olhos amarelos de dragão seu compatriota há
muito tempo separado de seu povo. Emitindo o mesmo som
gutural com sua voz metálica, respondeu à pergunta daquele
dragão.
— Meu nome é Krueur Aerok — disse Tlüogodärami ainda
não revelando seu atual nome. - Meus trajes são realmente
de guerreiro, pois participei da guerra travada por nosso
povo há muito tempo. E quem é você, meu amigo?
— Meu nome é Souki Vendurs. Sou o líder deste lugar vazio
— as palavras ditas pelo dragão chamado Vendurs soaram
estranhas aos ouvidos de Tlüogodärami. - Se você está aqui,
Aerok, quer dizer que vencemos a guerra. Onde estão os
outros dragões?
— Isso é uma longa história, meu amigo. Nossos
compatriotas morreram, é tudo que posso dizer de imediato.
A questão que se impõe aqui é como você não está em
estado de suspensão?
— Isso também é uma longa história, Aerok.
— Acho que temos muito que conversar. Devo informar
antes de tudo que não estou sozinho.
— Mas você disse que todos os dragões morreram. O que
quer dizer com isso?
—Você entendeu errado. Não são dragões, porém são meus
amigos e amigos de nosso povo.
— E eles provavelmente estão neste dispositivo de onde
você saiu.
— Exatamente!
— Então os traga aqui para nos conhecermos, Aerok.
Tlüogodärami foi imediatamente ao transporte e seus cinco
amigos saíram demonstrando algum receio.
— Não se preocupem. Apesar de peculiar a história deste
dragão, acho que ele é inofensivo — disse Tlüogodärami aos
seus companheiros.
— Ele quer conhecê-los e como gesto de boa vontade, nós
não podemos negar este obséquio.
— Confiamos em você, Tlüogodärami — disse Shoi.
— Reitero as palavras de Shoi e digo que também confio em
você - disse Carter.
— Obrigado, meus amigos. Não deixarei nada de ruim
acontecer com vocês.
Um a um foram saindo do transporte e Tlüogodärami
conduziu-os à presença de Vendurs. Este observou intrigado
e pela primeira vez esboçou alguma expressão.
— O que são seus amigos, Aerok? Que tipo de criaturas elas
são?
— São humanos, Vendurs. E são de nosso planeta natal
Dianvinst.
— Ah! São como animais de estimação ou coisa semelhante
— aquilo foi mais uma afirmação do que uma pergunta
proferida por Vendurs.
— De forma alguma, meu caro. Eles são tão inteligentes
como nós. Graças a eles é que neste dia estamos
conversando.
— Um povo inteligente, então. E pensávamos que só nós é
que éramos providos de inteligência. Mas como nunca ouvi
falar nestes tais de humanos?
— Não poderia, pois eles são posteriores à nossa destruição.
Em nosso planeta de origem, nasceu outra raça capaz de
pensar e criar, assim como nós.
— Então eu os respeito, Aerok. Se forem amigos dos dragões,
também são meus amigos.
Tlüogodärami apresentou cada um deles e apesar das
barreiras de linguagem, os gestos de gentileza são universais
entre os seres inteligentes e nesse caso não foi diferente.
Tlüogodärami falava o nome de cada componente de sua
tripulação e Vendurs fazia um leve aceno com a cabeça
como gesto de cumprimento e recebia o mesmo gesto em
resposta. Tlüogodärami e os cinco humanos foram
convidados a seguir
Vendurs para que informações pudessem ser trocadas entre
os dragões. Dentro da construção onde as placas de krür
ornavam o ambiente, seguiram até um grande salão
iluminado por luz vinda de fora. Ali se sentaram em uma
espécie de acolchoado, e Carter, curioso, não conseguiu
identificar o material, mas não era nem tecido nem espuma,
isso ele podia afirmar. Os dois robôs não deixavam seu
mestre por nada e com um a cada lado, Vendurs acomodou-
se ao estilo dos dragões naquele acolchoado. Tlüogodärami
fez o mesmo.
— Aerok, eu estou aqui há pelo menos uns trinta ciclos de
Dianvinst. Não sei ao certo como aconteceu, mas acordei
dentro de uma cápsula de suspensão num depósito de
dejetos. Lembro-me que fui voluntário para a estação
organizada pelo ilustríssimo Tlüogodärami. Na verdade eu
era um técnico em construção eletrônica; com meus
conhecimentos montei com dejetos expurgados da cidade
estes dois robôs que me servem muito bem. Contudo, os
últimos trinta ciclos foram solitários até que há algum tempo
nesta cidade começou a acontecer coisas estranhas.
— A que tipo de coisas você se refere? — questionou
Tlüogodärami ao dragão.
— Não sei dizer ao certo, mas é como se ela esperasse a
chegada dos dragões que foram à guerra. Muito dos sistemas
desativados começaram a funcionar novamente, apesar da
manutenção sempre ter sido constante durante todos esses
anos.
— Disse ter acordado há trinta ciclos — Tlüogodärami
traduzia as perguntas e respostas aos seus companheiros.
— Sim.
— Há trinta anos mandamos o primeiro sinal para Marte —
agora Tlüogodärami falava em inglês com Shoi.
— Sim, Tlüogodärami. Foi há uns trinta anos mesmo.
— Interessante. De alguma forma ele foi retirado do estado
de suspensão após o envio do sinal. Mas isso não poderia
acontecer.
— Por acaso eu ouvi a criatura humano dizer a palavra
Tlüogodärami, Aerok? — perguntou Vendurs a
Tlüogodärami com seu semblante inexpressivo.
— Desculpe-me, Vendurs. Explicarei adiante isso. Mas posso
garantir que sua solidão acabará em breve.
— O que aconteceu com a guerra, Aerok?
— Nós perdemos, infelizmente, e essa derrota se perdeu no
passado.
— Por quê?
— Faz muito tempo que isso aconteceu.
— Quanto exatamente?
— Quase onze milhões de ciclos de Dianvinst —
Tlüogodärami falava como se desse uma péssima notícia.
— Impossível. Onze milhões de ciclos é muito tempo. Se
você diz quem ser, um guerreiro daquela época, como pode
estar vivo até hoje?
— Não quando se viaja nas condições às quais me submeti —
Tlüogodärami continuava sua tradução livre.
— Levando-se em conta a veracidade de suas afirmações, por
que você e só você, Aerok, sobreviveu?
— O Tlüogodärami me incumbiu à missão de voltar e
reconstruir nosso povo.
— Mas por que você? Se não estou enganado, somente o
Tlüogodärami pode reconstruir nosso planeta.
— Certamente. Eu sou o Tlüogodärami.
— Não, meu amigo. Eu conheci o verdadeiro Tlüogodärami e
sei que não é você.
— Antes de partir nesta missão, fui declarado o novo
Tlüogodärami e dirigente supremo dos dragões.
—Você? — o tom de voz de Vendurs soava desprezo.
Depois de ouvir as palavras de Tlüogodärami sobre sua
condição, Vendurs começou a ofegar de maneira doentia.
Levantou-se inundado de ódio e agora sua face inexpressiva
deixava claro seu mais profundo sentimento. Olhou para
todos ali e seu tom de voz mudou completamente. Berrava
assustadoramente e encarava Tlüogodärami falando na
língua geral de Tidianvinst.
— Basta! Eu sou por direito o verdadeiro dirigente supremo e
como ousa encher meus ouvidos com mentiras.
— O que disse? — Tlüogodärami não deixava a tentativa de
intimidação afetá-lo. — Isso é loucura de sua parte. Posso
provar.
— E como pretende fazer isso?
— Eu possuo a insígnia de Tlüogodärami e só um
Tlüogodärami possui este símbolo — por um segundo,
Tlüogodärami desejou não falar sobre a insígnia, pois ela era
a chave para tudo, inclusive ativar a estação.
— Mostre-me a insígnia, então — Vendurs entendeu em sua
loucura que com a insígnia tornar-se-ia aquilo que de fato
durante trinta anos cultivou em sua perturbada mente.
Rapidamente Tlüogodärami virou-se para Shoi.
— Acho que estamos em perigo. Vocês devem correr o mais
rápido que puderem.Vão até o transporte. Eu os
acompanharei.
Vendurs ouviu as palavras de Tlüogodärami e entendeu por
seus movimentos o que ele tinha dito para os humanos.
Numa fração de segundos mandou seus robôs obstruírem a
passagem da tripulação. Tlüogodärami fez um movimento de
cabeça e o grupo entendeu que deveriam correr. O dragão
seguiu seus companheiros, e tentava de todo modo impedir
a ação daqueles robôs. Um dos braços mecânicos do robô
tentou atingir a cabeça de Tlüogodärami, enquanto Vendurs
esbravejava palavras inaudíveis. O dragão se esquivou, mas o
outro braço atingiu-o em cheio no queixo. Surpreendido
com o golpe e sentindo suas conseqüências, Tlüogodärami,
atirado ao chão, via seus amigos correrem pelas passagens
em direção ao transporte enquanto um dos robôs os
perseguia. Virou novamente na direção de seu algoz
mecânico e viu somente o braço direcionado ao seu rosto.
Depois do impacto, ficou totalmente inconsciente.

O caos substituiu o que fora antes silêncio e escuridão.
Tlüogodärami subitamente acordou mediante pancadas
desferidas por seu algoz.Vendurs observava-o novamente
com seu olhar frio e inexpressivo. Quando constatou que
Tlüogodärami estava realmente acordado, parou de
esbofeteá-lo e continuou em silêncio. Tlüogodärami fora
desprovido de seu traje e naquele momento encontrava-se
preso pelas patas a uma espécie de coluna. Com um olhar
inquisidor, Vendurs esboçou suas primeiras palavras.
— Onde está a insígnia, ilustríssimo Tlüogodärami? — disse
Vendurs com tom de ironia na parte final referente ao título
de Tlüogodärami.
— Com certeza está muito bem guardada, Vendurs. Onde
estão meus amigos?
— Cale-se! Isso não é mais de seu interesse. Mas saiba que
sofrerão conseqüências terríveis mediante sua
insubordinação.
—Você está indo contra todos os ideais de nossa civilização.
— Civilização? — Vendurs ria sinistramente. — Pelo que me
consta, ilustríssimo, nossa civilização é composta por apenas
dois dragões.
— Se você participou do projeto da estação de resguarda,
sabe muito bem que essa condição mudará rapidamente.
— Sim, estou ciente de tudo. Mas quando isso acontecer, eu
serei o Tlüogodärami e sua existência será um mero grão de
areia pulverizado numa galáxia gigantesca.
—Você está completamente louco e pagará por isso — pela
primeira vez em muito tempo, Tlüogodärami demonstrava
ódio em sua voz.
— E quem vai me punir? Você? Aquelas criaturas
repugnantes? Não me faça rir, ilustríssimo.
Um dos robôs aproximou-se de Vendurs e balbuciou em seu
ouvido palavras que Tlüogodärami não conseguiu distinguir.
Ele observou calmamente com seu típico olhar frio e
retirou-se sem dar maiores explicações. Ao observar com
mais calma o local onde estava, reconheceu-o de imediato.
Vendurs o levara até o salão ainda por construir onde houve
muitas decisões que mudaram o destino dos dragões.
Tlüogodärami teve um pensamento sinistro, pois sabia que
ali se encontrava a estação e logo encaixou as peças do
quebra-cabeça. Aquele dragão louco realmente queria
roubar-lhe sua posição de status e só precisava da insígnia
para adquirir o título e sua história. Não era possível que
depois de tudo que passara durante a guerra e o exílio na
Terra, sua missão fracassasse miseravelmente daquele jeito; e
ainda expusera seus amigos a uma condição de perigo. A
raiva começava a possuí-lo, como nunca antes acontecera.

Enquanto Tlüogodärami segurava um robô, o grupo correu
para o transporte e, quando eles viram o dragão ser agredido
pela máquina, instintivamente quiseram ajudar o amigo. O
segundo robô, contudo, estava no encalço deles e o instinto
de sobrevivência falou mais alto naqueles segundos de
desespero; tentariam um resgate depois. Rapidamente
entraram no transporte e tomaram suas posições. Fecharam
hermeticamente as escotilhas e deram ignição ao veículo. O
robô foi em sua direção e como um dragão de verdade pulou
em cima do transporte. Shoi deu marcha à ré imediatamente
e a inércia fez o trabalho esperado. O robô escorregou e
deixou-se tomar pelas leis da física, caindo na frente deles.
Com a velocidade certa o veículo deu um "cavalo de pau" e
tomou a direção oposta, impondo o máximo de velocidade
possível. O robô foi atrás, mas de longe não conseguiu im-
por a mesma velocidade e, com alguns minutos, despistaram
a máquina. Esconderam-se num dos edifícios comuns,
camuflando-se naquele universo construído. Ao longe,
observavam o robô procurando por eles, sem o sucesso
desejado pela máquina.
— O que faremos, Shoi? — perguntou Andy Carter.
— Esperar.
— Esperar?
— Sim, Dr. Carter. Esperaremos até o robô desistir. Depois
vamos segui-lo e ver o que vão fazer com Tlüogodärami.
— Mas não é arriscado? Podem matar Tlüogodärami.
— Pelo que pude entender, Dr. Carter, o dragão precisa de
Tlüogodärami para encontrar a insígnia do título, importante
para os objetivos planejados por ele.
— Como você sabe disso. Tlüogodärami depois da confusão
parou de traduzir o diálogo.
— Ora, Dr. Carter. Eu convivi três mil anos com
Tlüogodärami e não foi só ele quem aprendeu nossos
idiomas. Também aprendi o dele e acompanhei a conversa.
— Brilhante! — Carter estava exultante. — Pelo menos não
estamos no total escuro.
— Exatamente! — disse Shoi com a mesma exultação. —
Vamos esperar e seguiremos a máquina e, quando estiverem
distraídos, resgataremos Tlüogodärami das mãos insanas
daquele dragão.
Ficaram espreitando a máquina que por algumas horas
procurou incansavelmente por eles. Depois dessas horas de
procura, desistiu e rumou numa direção diferente daquela
iniciada na perseguição. Com muita cautela, seguiram o robô
em seu caminho desconhecido.
— Calma, pessoal, muita calma! — pedia Shoi à tripulação. —
Vamos ter o máximo de cautela.
— Afinal, para onde está indo este robô? — perguntou Goo a
Shoi.
— Se meus instintos de guerreiro ainda não me
abandonaram, ele está voltando ao seu mestre e
conseqüentemente a Tlüogodärami, também.

O robô de Vendurs recebera a mensagem de seu
companheiro e este o avisou que estava voltando seguido
pelas criaturas trazidas por Tlüogodärami. Imediatamente
aproximou-se de seu mestre e criador e sussurrou-lhe a
notícia ao pé do ouvido. Vendurs dialogava passionalmente
com Tlüogodärami, quando foi subitamente interrompido
por seu robô.
— Sr. Vendurs, as criaturas seguem o número um e estão
próximas.
— Obrigado. Vamos nos ocultar por algum tempo.
— Sim, senhor.
Saíram sem dar explicações. Ocultaram-se em uma caverna
escavada na rocha nua perto dali, com visão privilegiada do
local. Alguns minutos depois o robô entrou no salão
escavado na rocha e viu Tlüogodärami preso a uma espécie
de coluna. Imediatamente parou diante do dragão e ficou
estático como se fosse uma estátua. O transporte adentrou
no salão com velocidade máxima, dirigindo como se fosse
num circuito de corridas, e fazendo uma curva, chocou-se
com o robô e lançou-o bem longe do ponto original. As
escotilhas do veículo se abriram e Shoi e Ji saíram para
socorrer Tlüogodärami. Ficaram chocados com a situação
vivida pelo amigo e rapidamente tentaram soltá-lo.
— Shoi,Ji, tomem cuidado! Vendurs ainda está por perto.
— Não se preocupe, Tlüogodärami.Vamos tentar soltá-lo —
disse Shoi.
O material das amarras de Tlüogodärami parecia matéria de
outra dimensão. Estava totalmente unido, sem fissuras, e não
conseguiam compreender como aquilo poderia ter sido
colocado ali.
— Como vamos soltá-lo, Shoi? - perguntou Ji.
— Não sei, parece aço fundido à sua carne.
— E um produto artificial e não metal — disse Tlüogodärami.
Desfaz-se com algum tipo de solvente ou reagente.
—Vou pegar um pé de cabra lá no transporte — sugeriu Ji.
— Vá o mais rápido que puder, meu amigo — pediu Shoi,
muito preocupado. — Ficarei aqui e tentarei alguma coisa.
Shoi usava seu pé dando golpes dos mais diversos, mas nada
daquilo adiantava. O material continuava intacto. Num
piscar de olhos, Ji estava de volta com pés de cabra e Andy
Carter o acompanhou carregando mais algumas ferramentas.
Ji e Shoi fizeram alavancas no material, mas só fizeram suas
mãos latejarem de dor. Nada mudou. Carter observou o
material e havia trazido um maçarico de plasma para tentar
cortar aquilo. Colocou o visor de proteção e começou, bem
longe da carne de Tlüogodärami, a tentar libertar o amigo
dragão daquelas estranhas amarras. Enquanto conseguia
algum progresso, foi interrompido por Ji. Desligou o
maçarico e tirou a proteção, quando viu o robô derrubado
pelo transporte movimentando-se em sua direção. Shoi e Ji
pegaram os pés de cabra como se fossem espadas e ficaram
numa posição defensiva, prontos para o que viesse. Andy
Carter ligou o maçarico novamente, mas dessa vez usaria a
ferramenta como arma, também. A entidade cibernética foi
com toda a sua habilidade para cima dos Li-Seugs. Voltando
à velha prática, Shoi e Ji combatiam a máquina com a
mesma destreza do passado. Usando os pés de cabra
defendiam-se e tentavam atacar o oponente de três metros
de altura. Contudo, o impacto do braço mecânico no pé de
cabra era de uma intensidade difícil de agüentar.
Rapidamente foram colocados fora de combate e lançados a
uns cinco metros de distância do inimigo. Apesar de
cansados, não perderam a perseverança típica e tentaram se
recompor novamente para voltarem ao combate. Carter
tentava destruir algum ponto vital da máquina com seu
maçarico e chegou a desferir alguns golpes que arranharam a
pele metálica do robô. Contudo não tardou para ser
colocado fora de combate. O robô segurou o corpo de Carter
e friamente arrancou-lhe a perna direita na altura do joelho.
O grito de dor foi algo assustador e sangue jorrou a ponto de
atingir Shoi e Ji. Como que descartando um pedaço de
sucata, o robô atirou Carter e seu membro decepado para
longe de si. Foi para cima de Shoi e Ji e desta vez foi
fulminante em sua atitude. Os golpes desferidos para cima
dos dois foram demais para suas resistências e rapidamente
perderam os sentidos. O robô lutava como se fosse uma
criatura bestial totalmente desprovida de qualquer ética ou
sentimento. Os robôs criados pelos dragões possuíam um
sofisticado sistema de programação que os tornavam quase
reais e pacíficos, mas estes, pertencentes ao dragão Vendurs,
não se encaixavam nestes preceitos. Portanto, com essa
característica, lutou bestialmente e venceu seus diminutos
oponentes.
Vendurs observava as frustradas tentativas de resgate de
Tlüogodärami. Saiu da caverna escavada na rocha nua e
aproximou-se do local onde Tlüogodärami continuava
amarrado. Passou pelos desacordados Shoi e Ji, com
profundo desprezo por eles. Os robôs se posicionavam atrás
de seu mestre enquanto Vendurs olhava para Tlüogodärami.
Numa atitude insana, chutou o corpo de Carter para o lado,
pois andava na posição semi-ereta.
— Diga-me onde está aquela maldita insígnia, ilustríssimo,
caso não queira sofrer o mesmo destino dessas criaturas
repulsivas.
Ódio e revolta tomavam conta do espírito de Tlüogodärami.
Nunca havia visto tamanha deslealdade na vida. Seu
raciocínio lógico e sua ética consumiam-se, tornando-se
naqueles instantes breves resquícios de uma consciência
desprendida, desaparecendo completamente, e dando lugar
a uma ira incontrolável.
— Souki Vendurs! — Tlüogodärami berrava externando toda
a sua raiva. — Não deveria nem pensar em fazer algo assim
com um dos seus, nem com um amigo dos dragões, canalha!
— sua musculatura começava a se enrijecer.
— Não diga asneira! — falava Vendurs sem alterar a voz.
— Suas atitudes acabaram de abrir os portões do inferno!
— Inferno? O que é inferno? —Vendurs demonstrava sua
ignorância em relação à palavra dos humanos.
— Dentro de pouco tempo entenderá o que digo, criatura
vil!
Olhos inflamados, Tlüogodärami fazia uma força
descomunal e suas amarras começavam a se romper. Num
piscar de olhos, soltara-se delas e olhava ensandecido para
Vendurs. Temendo a raiva de Tlüogodärami,Vendurs
ordenou aos robôs que o prendessem novamente. A ira
adormecida do dragão primitivo manifestava-se em
Tlüogodärami. A imagem de Carter gravemente ferido e dos
corpos estirados de Shoi e Ji, amigos de longa data,
alimentavam seus mais profundos instintos de destruição. A
tensão do momento não permitiu a ninguém ali ver alguns
detalhes. O transporte havia fechado suas portas e
discretamente dava marcha à ré e, quando os robôs se
posicionaram para deter Tlüogodärami, Zhi e Goo
aceleraram com tudo.
— Vamos, Goo, mantenha os freios dianteiros ativos
enquanto eu acelero — disse Zhi ao amigo.
— Entendido. Não perca a mira! — exaltou-se Goo com o
calor do momento.
Os pneus atritavam com o solo emitindo uma fumaça branca
intensa e alcançou velocidade suficiente, fazendo com que o
veículo se movimentasse de um lado ao outro sem sair do
lugar. Ao avistar o avanço dos robôs, Goo soltou os freios e
o transporte foi em direção a eles. Numa fração de segundo
não percebido no conflito, o veículo passou como um vulto,
atropelando as duas máquinas de Vendurs. O impacto
gigantesco provocou pane neles e o veículo foi parado
subitamente por uma parede de rocha, esmagando as
máquinas e sua própria dianteira. Na hora do impacto, até
Vendurs sofreu um leve encosto e por pouco não foi vítima
do veículo em alta velocidade. Caído, levantou-se e encarou
novamente Tlüogodärami, agora com raiva pelo acontecido.
Dentro do veículo, Zhi soltou seu cinto de segurança e
olhou para Goo.
—Você está bem, Goo?
— Sim, Zhi. E você?
— Bem. Mas acho que não poderemos repetir a dose —
ambos riram daquela breve situação. Abriram a escotilha e
saíram para auxiliar seus amigos feridos.
Ao saírem, o cenário era assustador. Tlüogodärami,
completamente descontrolado, andava de um lado para o
outro como uma fera acuada, enquanto Vendurs esbravejava
irritando mais seu adversário. Sem perder a empáfia,
Vendurs retirou seu manto de luto verde-escuro e
aproximou-se de Tlüogodärami, disposto a fazer o serviço
que seus agora destruídos robôs não tiveram a oportunidade
de executar. A esquerda, Tlüogodärami percebeu que havia
bastante espaço e ali seria um bom lugar para acabar com
aquela situação absurda. Desfraldou suas asas, com olhos
inflamados e raiva na mente, voou naquela direção planejada
e, seguindo seus passos, Vendurs também voou ao mesmo
local.
Pousaram na área aberta e os olhares dos dois dragões não se
desgrudaram. Os olhos inflamados e cheios de ódio de
Tlüogodärami fitavam os olhos azuis, frios e sarcásticos de
Vendurs. Andavam com as quatro patas no chão e enquanto
encaravam-se mutuamente, circulavam ao andar, ambos
esperando e analisando o primeiro passo um do outro. Uma
demonstração inevitável dos instintos suplantando qualquer
sofisticação social criada em milhares de anos. Respirações
alteradas, as análises continuavam enquanto o primeiro
dragão não alcançasse o estágio seguinte. Mesmo naquela
situação totalmente ancestral, havia uma ambivalência nela.
Apesar de totalmente dominado pela raiva nutrida pelo
sofrimento de seus amigos, Tlüogodärami não abandonara
totalmente sua razão. A convivência com os humanos
valeu-lhe lições importantes na arte da guerra e do combate.
As artes marciais, principalmente suas filosofias, vinham-lhe
à mente para auxiliar seus instintos brutos. O princípio
básico de que quem ataca primeiro tem o domínio de seu
adversário decidiu sua ação. Com velocidade acima do
melhor corredor humano, rumou para atacar seu adversário.
Vendurs mantinha sua frieza e, quando Tlüogodärami
atacou-lhe, foi surpreendido com a força de seu adversário.
Tlüogodärami segurou-lhe o corpo e usando a energia
cinética acumulada da corrida e com as costas arqueadas
como pêndulo, projetou Vendurs, arremessando-o a uns dez
metros. Este caiu no chão, levemente atordoado e com o
orgulho ferido. Não havia mais frieza em suas expressões e
parecia finalmente acordado para a realidade daquela
situação. Desejava, além de loucamente almejar o poder,
destruir definitivamente aquele dragão que queria tomar-lhe
o que naturalmente era seu de direito.
Mal teve tempo de respirar e Tlüogodärami novamente
corria em sua direção. Desta vez conseguiu se desviar e
acertou-lhe as costas com as patas traseiras. Tlüogodärami,
sentindo levemente o golpe, virou-se rapidamente e
desferiu golpes com as patas dianteiras. Unhas cortaram a
carne de Vendurs que sentiu pela primeira vez na vida sua
tez violada e expelindo sangue. As gotas rubras escorriam
pelo ombro escamoso, misturando-se com os tons
vermelhos-castanhados e amarelos naturalmente existentes.
Tentou fazer o mesmo, mas não obteve o mesmo sucesso
que Tlüogodärami.
Enquanto Vendurs tentava desferir golpes, Tlüogodärami
aproveitou-se daquela situação e segurou com firmeza as
patas dianteiras de seu adversário. Fazendo uma força
descomunal, pois Vendurs tentava a todo custo se
desvencilhar daquilo, levantou-se e usando uma das patas
traseiras como apoio pegou velocidade com a outra e jogou
seu inimigo contra uma parede de rocha escavada. Durante a
trajetória, Vendurs chocou-se no chão e arrastado como um
saco de carne encontrou o fim da linha naquela parede
escavada. Desta vez percorreu fantásticos quarenta metros.
Grande parte do impacto atingiu as costas.
Quando olhou para trás, viu alguns fragmentos de rocha
ainda existente desde a época da escavação. Ao olhar
Tlüogodärami furiosamente vindo ao seu encontro,
instintivamente pegou as rochas e atirou-as no dragão. As
primeiras não surtiram o efeito desejado, pois as esquivas
hábeis faziam bem seu papel. Contudo, observando o padrão
daquelas habilidades, Vendurs conseguiu acertar
Tlüogodärami no exato momento em que o dragão desviava
de uma pedra estrategicamente atirada para determinar seu
movimento, jogando logo em seguida naquela exata posição
de defesa outra pedra.
Atordoado, pois o fragmento de rocha acertou-lhe na região
da testa, Tlüogodärami lutava para manter os sentidos.
Cambaleou, sentindo o impacto, e naquele exato momento
sentiu medo de fracassar.
Sentindo o momento de fragilidade do oponente, Vendurs
pegou duas rochas, segurando-as firmemente nas patas, e
correu utilizando apenas as patas traseiras, para terminar de
vez aquele embate. Suas rudimentares armas desferiam
golpes na cabeça de Tlüogodärami e uma das vistas do
dragão foi danificada com aquilo. Encharcadas de sangue do
dragão ferido, as rochas presas naquelas garras faziam o
caminho macabro da morte ao se chocarem contra
Tlüogodärami.
Com uma dor alucinante na cabeça e cego de um olho, não
tardou para que novamente qualquer sentimento fosse
suplantado pelos instintos primitivos daqueles que desejam
sobreviver e, acima de tudo, vencer um combate. Raiva e o
sentido de dever a cumprir misturavam- -se na mente do
dragão. Não posso falhar! Há muito em jogo aquil, pensava
Tlüogodärami. Não havia alternativa naqueles segundos de
agonia do que atacar com tudo Vendurs para retomar o
controle da luta. Fechou as patas como punhos cerrados e
desferiu um soco no queixo de Vendurs. Este largou
imediatamente suas armas primitivas, paralisado
momentaneamente pelo golpe. Uma onda de impacto que,
atravessando seu cérebro, o forçou a dar alguns passos para
trás. Tlüogodärami aproveitou aqueles instantes de
vulnerabilidade e girou num semicírculo, usando a cauda
para derrubar Vendurs. Este caiu de lado, e, dando-lhe as
costas, Tlüogodärami mais uma vez desfraldava suas asas e
levantava vôo, indo próximo ao teto da caverna escavada.
Nutrido pelo ódio causado por quase vencer seu adversário e
fracassar nos últimos instantes, Vendurs trincava os dentes
enquanto via Tlüogodärami levantar vôo. A adrenalina e o
ódio funcionavam como analgésicos para as dores físicas; em
compensação, a dor sentida no ego só poderia ser curada
com sangue, e de preferência todo o volume de sangue de
Tlüogodärami espalhado pelo chão daquele salão. Levantou-
se, ainda com orgulho ferido, e desfraldou também suas asas,
perseguindo Tlüogodärami pelos mesmos caminhos aéreos.
Tlüogodärami sabia que não faria Vendurs fracassar
completamente com o golpe desferido no queixo, mas
aquilo daria tempo suficiente para planejar algo eficaz e
avaliar suas reais condições. Sentiu que as pedradas
desferidas por Vendurs tinham-lhe privado a visão de um
olho, e isso era uma desvantagem. A dor de cabeça havia
passado momentaneamente e o corpo ainda não sentia o
cansaço do combate. Sabia que rapidamente Vendurs se
recuperaria e a especulação tornou-se verdade. Em seu
encalço, ele seguia o mesmo caminho anteriormente
percorrido por Tlüogodärami e, a uma distância de não mais
que oito metros, os dois dragões, batendo as asas translúcidas
iluminadas pelas fontes artificiais, encaravam um ao outro.
—Vou te matar como nossos ancestrais faziam no período
primitivo, seu dragão repulsivo — berrava Vendurs,
rosnando após as palavras ditas.
— Renda-se agora e terei piedade de você, criatura doente!
— Tlüogodärami ainda sentia a cultura falar mais alto, apesar
de inundado de ódio.
— Render-me? Nunca!
— Que seja, então!
O que veio a seguir lembrava muito a placa de krür
mostrada por Tlüogodärami à tripulação da Mustang. Num
vôo certeiro, Tlüogodärami agarrou-se a Vendurs e, como
na imagem, estavam digladiando-se enquanto voavam. Após
a fusão de corpos em combate, caíram em espiral, pois não
conseguiram manter o vôo. Um pouco antes de se
chocarem com o chão, largaram-se, ganharam altitude e
começaram tudo novamente. Com fúria de ambas as partes,
tentavam se morder e, nesse quesito, por ser mais alto,
Tlüogodärami levava vantagem. Mordia alucinadamente o
pescoço de Vendurs e começava a fazer profundas feridas.
O sangue escorria e com dentes rubros continuava o ato
mecânico. Vendurs se desvencilhou, sentindo a derrota
aproximar-se. Num ato desesperado, virou-se de costas à
procura de algo para atacar o dragão. Neste ínterim,
Tlüogodärami agarrou-se às asas e, instintivamente, sem
pensar por um segundo sequer, mordeu a junção de uma
delas com as costas do dragão. Com dentes afiados e
determinados, rompeu couro, carne e tendões, fazendo com
que seu adversário caísse sem mais recursos para voar.
Durante a queda, desferia golpes com todas as patas na
cabeça de Vendurs e aquilo se tornou um ato de pura
insanidade e violência.
Caído no chão e já sem forças para continuar, Vendurs
apenas esperava fragilmente seu destino derradeiro.
Tlüogodärami, possuído pela insanidade, não queria parar
aquele combate. Agarrou a cauda do caído Vendurs e
atirou-o contra o chão. Atacava-o, quebrando-lhe os ossos
dos membros. Quando mais uma vez segurava a cauda para
jogá-lo contra uma parede de rocha, o corpo projetado de
Vendurs voou sem impor resistência e chocou-se
violentamente contra uma parede, escorrendo por ela até o
chão, perto de uma pequena rocha solta.
Quase desfalecido, Vendurs não agüentava mais as dores
sentidas. Corpo e mente estavam profundamente feridos,
praticamente destruídos. Seus delírios de grandeza não mais
frutificariam no mundo que um dia conhecera. Na verdade,
naquele exato momento de sofrimento, pensava exatamente
como chegara naquela situação. Lembrava que sua missão
original era auxiliar em caso de emergência Tlüogodärami na
reconstrução, caso fosse necessária. Em algum momento de
sua existência, o caminho se desvirtuou e nutriu durante
trinta ciclos de Dianvinst, na solidão daquela cidade-
fantasma, uma profunda pena de si mesmo. Teria de ser
recompensado por seu sofrimento e não via outra maneira, a
não ser tornar-se ele mesmo o salvador e guia dos dragões.
Sonhos estes destruídos. E a justiça, tão almejada, jamais
daria o ar da graça. Preferia morrer à vergonha de não ser
aquilo que minuciosamente planejara.Via, com um olhar
conformado, o rosto mutilado de Tlüogodärami, ainda
tomado do mais primitivo ódio.
— Mate-me, ilustríssimo! O que espera! Estou derrotado!
— Cale-se, criatura vil! Isso é pouco para pagar o que fez aos
meus amigos e ao que fez contra seu próprio conterrâneo.
— Mate-me, cretino! — gritava Vendurs usando suas últimas
forças.
Viu a pedra de rocha maciça perto do corpo de Vendurs.
Idéias povoaram sua cabeça. Darei um fim a esta história,
pensava por um segundo, e ainda dominado pelo rancor,
pegou a rocha imaginando a cabeça daquele dragão odioso
esfacelada após um impacto fulminante. Não teve dúvida,
segurou e levantou a rocha. Deveria ter uns trinta quilos ou
mais, não importava naquela altura dos acontecimentos.
Aproximou- se do dragão impotente, e este demonstrava um
ar de sucesso, afinal receberia exatamente o que ordenara
naqueles instantes derradeiros. Tlüogodärami olhou
fixamente para os olhos frios de Vendurs e quando se
preparava para matar aquele dragão que ousou destruir três
mil anos de espera, um turbilhão de sentimentos e
pensamentos dominou todas as células de seu corpo de
dragão. E então ficou estático com a rocha segura nas patas
dianteiras paralisadas.

CAPÍTULO 19
Ressurreição

Em momentos de profunda crise e desespero, às vezes
somos colocados em situações desvinculadas de nossas
rotinas. Situações estranhas que nos colocam à prova, e delas
a verdadeira essência do ser é demonstrada. Nestes
momentos, a verdade surge nua e crua, sem maquiagem ou
ornamentos. O caráter construído será levado ao seu mais
profundo desafio e, perante esses momentos, descobre-se se
foi moldado com argila crua, vulnerável a qualquer
intempérie, ou do mais bem concebido titânio, resistente e
sólido. A constituição cultural, os princípios e as filosofias de
um ser serão colocados à prova nessas situações extremas e o
resultado disso dará o aval do que é verdadeiro no universo
simbólico de uma criatura provida de inteligência. A
verdade dirá se é digno de possuir a capacidade de pensar e
criar, ou se continua selvagem como os ancestrais primitivos
de eras longínquas há muito tempo esquecidas. Se realmente
tornou-se autônomo, senhor de seu rumo, ou um escravo
das decisões aleatórias da natureza.
Tlüogodärami, com gosto de sangue de dragão na boca, uma
dor alucinante em seu olho direito perdido, ferido e exilado
por muito tempo, contemplava atônito o resultado de uma
raiva contida, a mistura e o embate entre o sofisticado e o
civilizado contra o selvagem e o primitivo. Ao olhar para o
corpo mutilado, ferido e imóvel de Vendurs, observava
quase a derrota daquilo que por muito tempo acreditara. O
ponto-final, a destruição de sua essência, estava exatamente
naquela pedra. Se matasse Vendurs daquela forma brutal,
nunca mais se recuperaria de ato tão repulsivo. Percebera
que chegara ao exato momento de uma escolha que,
dependendo do resultado, não teria mais volta. Deveria
matá-lo? Deveria deixá-lo viver? O conflito final entre o
instinto e a razão chegara a sua rodada final.
— Mate-me, ilustríssimo, e demonstre toda a sua glória e
poder! — disse Vendurs mais sarcástico do que nunca,
apesar de estar gravemente ferido.
— Cale-se, Vendurs. Chega!
—Vamos! Está esperando o quê?
Olhando aquele corpo decadente e sua própria condição,
com sentimentos confusos, não sabia ao certo ainda o ato a
tomar. Foi dominado por uma profunda tristeza. Não havia
prazer naquilo. Não podia continuar. A guerra fora vencida
e não havia mais necessidade de continuar com aquilo. Não
poderia reerguer a civilização dos dragões com as patas sujas
de sangue. Reconstruir com uma mácula na fundação. Isso
seria um fantasma eterno e não haveria redenção para
aquilo. Já havia tomado sua decisão.
— Não, Vendurs! Não vou matá-lo. Esqueça essa alternativa.
Você viverá e será julgado por seu crime. Matá-lo seria um
ato impensável para seres com minhas características.
Esqueça! Não haverá sangue na reconstrução da civilização
dos dragões. Já foi derramado muito sangue no passado e
muitas vidas destruídas por nada. Esse período de trevas
definitivamente encerra-se hoje e agora!
Vendurs não acreditava nas palavras de seu inimigo. Se
tivesse forças, cometeria suicídio, pois não agüentaria viver
aquele período de vergonha e fracasso. Tlüogodärami se
virou e com o olho bom, viu seus amigos próximos ao
transporte batido. Desfraldou as asas e voou rapidamente em
direção a eles. Ao pousar, viu Zhi chorando ao lado de
Carter. Shoi e Ji se recuperavam, acordados, do embate que
tiveram com os robôs. Carter continuava desacordado. A
perna decepada de Carter jazia perto do grupo com uma
poça de sangue contrastando com a rocha parda ao lado do
local do corte. Tlüogodärami caminhou em direção a Zhi.
Lágrimas escorriam pelo rosto da irmã de Shoi.
— Calma, Zhi. Carter é muito forte e irá viver — disse
Tlüogodárami, comovido pelas lágrimas da amiga.
— Dr. Carter não merecia tal sofrimento — Zhi tentava
manter a fluência das palavras, mas derramava-se em
lágrimas.
—Veja — apontou Tlüogodärami com seu dedo réptil para a
perna de Carter. — O corte está fechado. E nosso querido
Dr. Carter parece despertar de seu sono terrível.
— Ah! — Zhi exclamava e suas tristes lágrimas converteram-
se em lágrimas de felicidade.
Ainda atordoado e sem entender o que havia acontecido,
Carter olhava para seus amigos, que demonstravam
felicidade em seus sorrisos. Olhou para a perna, ou o que
havia sobrado, e começava a se lembrar dos acontecimentos
há pouco vividos.
— Minha perna! Como? Não sinto nada! — falava o
atordoado Andy Carter.
— Calma, doutor! — pedia Tlüogodärami. — Você está bem
e isso é um ganho precioso. Quando lhe dei aquela cápsula,
não era apenas um mero elixir de uma vida longa. Dentro de
algumas semanas sua perna renascerá, como em uma
salamandra. Não será um processo agradável, mas depois
desse período, será como se não houvesse acontecido
absolutamente nada.
Shoi se levantou e dirigiu-se a Tlüogodärami.
— Boa luta, velho amigo.
— Obrigado, meu caro Shoi. Mas é algo de que não posso me
orgulhar. Contudo, foi necessária e sou grato por não ter ido
adiante nessa minha fúria. Não conseguiria viver com isso.
— Não há o que lamentar - disse Shoi ao amigo. —Você fez
o necessário e não só seus amigos recentes estavam em
perigo, como tudo pelo que lutou foi colocado numa
situação catastrófica. Mas onde está a tal insígnia desejada
por Vendurs?
— Ah! - exclamou o dragão. - Escondi-a em local bem
seguro, ou pelo menos eu achava — Tlüogodärami olhava
para o transporte batido.
— Estava no transporte todo este tempo?
— Sim e Vendurs não desconfiou de nada. Pelo menos não
teve tempo de cogitar a possibilidade.
— Ainda teremos de procurar o local da estação e não temos
mais o transporte para nos locomover. Será que ainda está
longe?
— Mais perto do que imagina, meu amigo.
— Por quê?
— Porque já estamos ao lado dela. Foi em algum lugar nesta
área vazia que a estação foi construída. A entrada será fácil
de encontrar. Não foi à toa que Vendurs me trouxe aqui,
pois queria abrir a estação com minha insígnia.
— Faz todo o sentido.
— A insígnia é uma chave e não mais que isso. Abrir a
estação só seria o início do fim de Vendurs. Rapidamente
sua máscara cairia perante os dragões acordados e o sistema
não o reconheceria.
Tlüogodärami e Shoi entraram no transporte e rapidamente,
ao lado do assento de Shoi, num compartimento no chão,
retirou a velha e ornada caixa que Tlüogodärami carregou
por toda a vida na Terra. Dali retirou a insígnia, a mesma
que abriu os portões de entrada da cidade de Yfunst Ghiar.
Os dois dragões com pescoços unidos e opostos se
destacavam na peça cor de cobre escuro.
— Como eu disse há pouco, Shoi, esta é a chave e apenas
uma chave.
— Mas se era apenas uma chave, e Vendurs queria usá-la
para usurpar seu posto, por que tanta luta? — perguntou
Shoi, curioso.
— Ora, meu amigo, não poderia deixar tal responsabilidade
na mão de um louco. E sabe-se lá o que ele iria realmente
fazer. Quando o vi, percebi seu comportamento fora do
usual e seu linguajar peculiar denunciou sua confusão
mental. Todavia, como ele apareceu aqui totalmente
desperto, ainda é um grande mistério. Talvez obtenhamos
resposta mais consistente ao fim desta jornada.
— E o que são estes outros objetos dentro da caixa? —
perguntou Shoi com os olhos fixos na caixa aberta.
— Melhor que explicar, será vê-las em ação, meu velho
amigo — divagava Tlüogodärami manuseando aqueles
objetos nitidamente providos de alta tecnologia. — Este, por
exemplo, tem todos os códigos genéticos dos dragões. Toda
a história genética de meu povo está aqui neste minúsculo
objeto — Tlüogodärami segurava um pequeno dispositivo
com conexões, mas minúsculo em comparação à insígnia.
— Muito semelhante àquele dispositivo desenvolvido pela
Seug que trouxemos para cá — disse Shoi observando o
objeto na pata dianteira de Tlüogodärami.
— Exatamente, Shoi. Só que o que desenvolvemos tem outra
função mais prática. Diria diplomática, até. Vamos procurar
a entrada da estação para que minhas palavras tornem-se a
mais pura realidade.
Tlüogodärami dirigiu-se aos outros da tripulação e disse-lhes
que não demoraria e que toda a ajuda necessária para o
repouso de Carter seria providenciada em breve. Zhi
cuidaria de Carter enquanto Tlüogodárami saía com os
outros. Ji resolveu ficar com a amiga para ajudá-la no que
fosse necessário. Divididos pelas circunstâncias da vida,
Shoi, Goo e Tlüogodärami seguiram à procura da estação.
Havia uma entrada semelhante a uma caverna onde
Vendurs escondeu-se há pouco, antes da luta travada com
Tlüogodärami.
— Aposto que há algo interessante naquela caverna,
Tlüogodärami — disse Goo ao dragão.
— Confirmo sua aposta, meu caro Goo. Havia certa afinidade
de Vendurs com aquele lugar.
—Vamos ver o que realmente há de interessante ali —
reiterava Shoi.
Os três seguiram até a entrada da caverna. Ali não tinha uma
iluminação decente e precisaram usar algumas lanternas
trazidas do transporte. Os feixes de luz emitidos pelas
lanternas iluminavam um lugar escavado rusticamente,
como que esquecido há muito tempo. Parecia
propositadamente abandonado e natural. Não fizeram
cerimônia e adentraram na caverna. Mal começaram a andar
e depararam com um portão contrastante naquela caverna
mal escavada. Não havia mais dúvidas na cabeça dos três; ali
só poderia ser o que tanto procuravam naquela cidade.
Naquele portão deslumbrante, havia um local onde faltava
um detalhe. Aquele detalhe lembrava o formato da insígnia
de Tlüogodärami e provavelmente era a fechadura daquela
ornada porta. O dragão olhou emocionado para seus amigos
e teve reciprocidade de ambos. Finalmente, depois de
milhões de anos de espera e três mil anos de exílio e
planejamento, onde a incerteza dominou a vida de
Tlüogodärami, aquela história chegava ao fim. Uma nova era
nasceria a partir daquele momento e a vida mudaria a um
patamar nunca antes imaginado por nenhum humano no
planeta Terra. O nascimento de uma nova realidade estava
para acontecer dentro de apenas alguns segundos.
Delicadamente e não contendo a emoção, os dedos
escamosos de Tlüogodärami seguravam a insígnia e
lentamente levavam-na ao seu encaixe derradeiro. Encostou
a insígnia naquele encaixe e empurrou-a e um estalar ouviu-
se no ambiente. O portão escancarou-se e estavam livres
para cruzá-lo. Um robô recepcionou-os e, diferentemente
daqueles usados por Vendurs, parecia mais harmonioso em
sua forma artificial. Andando graciosamente, com
naturalidade, semelhante ao andar de Tlüogodärami, o robô
dirigiu-se educadamente, como demonstrava seu tom de
voz, a Tlüogodärami.
— Seja bem-vindo, Sr. Krueur Skli Aerok. Acompanhe-me,
por favor.
Shoi entendera perfeitamente as palavras harmoniosas da
máquina, porém Goo não entendera muita coisa, pois nunca
se dedicara ao aprendizado daquela língua extremamente
complexa de Tlüogodärami. Em sua língua, Tlüogodärami
solicitou ao robô que inserisse os dados contidos naqueles
pequenos dispositivos carregados por anos e prontamente a
máquina correspondeu às expectativas. Depois colocou o
dispositivo semelhante, desenvolvido pela Seug
Corporation. O autômato inseriu os dispositivos na região do
peito e rapidamente devolveu-os a Tlüogodärami. Naquele
instante ela começou a falar em inglês.
— Posso continuar a falar nesta língua, ou se preferirem,
posso mudar para mandarim ou o dialeto Li-Seug — disse o
robô surpreendendo a todos ali.
— Não, obrigado. Preferimos o inglês, língua comum a todos
de minha tripulação — Tlüogodärami falava em inglês com
o robô.
— Como queira — respondeu educadamente a máquina. —
Parabéns pelo cargo de Tlüogodärami Sr. Aerok, é um cargo
de muita responsabilidade — disse a máquina, interada dos
últimos acontecimentos da vida dos dragões.
— Obrigado, meu amigo — respondeu Tlüogodärami.
Andaram pelos corredores simples e encontraram uma sala
bem grande com muitos sistemas computacionais.
Tlüogodärami finalmente se sentia em casa depois de todo
aquele tempo. Muitos outros robôs apareceram, usando a
nova língua aprendida e dispostos a trabalhar pela causa da
reconstrução. Tlüogodärami dialogava com o robô que os
recepcionara e se interava do funcionamento daquela
estação.
— Quanto tempo para os outros dragões em suspensão
estarem em condições de voltar às suas vidas? — perguntou
Tlüogodärami ao robô.
— Não demorará muito, senhor — disse a Tlüogodärami. —
Será uma questão de alguns momentos, somente isso.
— Tenho amigos do lado de fora e um deles está gravemente
ferido. Apesar de possuir robôs celulares em seu corpo e
estes terem dado conta do recado em relação aos primeiros
socorros, ele e os outros precisam de ajuda. Traga-os aqui e
aloje-os adequadamente.
— Sim, senhor.
— Há um dragão chamado Vendurs lá fora, também
profundamente ferido. Não compreendo como ele estava
vivendo na cidade, mas este é perigoso. Ministre os socorros
necessários e o mantenha isolado até receber um castigo
adequado ou descobrirmos mais sobre seu passado.
— Sim, senhor, já foi providenciado.
Três robôs seguiram o caminho oposto transposto por Shoi,
Goo e Tlüogodärami, e rapidamente chegaram ao local onde
Carter, Zhi e Ji se encontravam. Deitado, ainda muito
atordoado pelos acontecimentos, Carter alternava sonos
leves com acordadas repentinas. Numa dessas acordadas, viu
os dragões prateados voando em sua direção e com a mão
apontava para eles. Zhi e Ji, a princípio, pensaram ser mais
alguma coisa vinda do dragão louco atirado a poucos metros
dali. Contudo, ao se aproximarem, descobriram que aqueles
robôs eram totalmente diferentes dos usados por Vendurs.
Educadamente, dois dos três pousaram perto deles e com
vozes suaves dirigiram-se aos ali presentes.
— Senhores, fomos mandados pelo ilustríssimo
Tlüogodärami para levá-los - disse uma das máquinas.
Surpreendidos por serem recepcionados com uma língua da
Terra, olharam atônitos um para o outro e, recuperando-se
do susto inicial, responderam prontamente aos robôs.
— Então vamos ao encontro de Tlüogodärami — disse Zhi
animada por Carter ser socorrido adequadamente.
O terceiro dragão artificial, enquanto os outros dois levavam
Zhi, Carter e Ji até a estação, dirigia-se até Vendurs. Este,
estirado naquele chão rústico, olhava para o robô mantendo
seu habitual sarcasmo.
Indiferente a qualquer sentimento expressado por Vendurs,
o robô segurou-o e dirigiu-se até a estação sem nada falar ao
dragão ferido.
Ao receber a notícia que seus amigos já se encontravam na
estação e que Vendurs também recebera os devidos
tratamentos, Tlüogodärami retomou seus afazeres naquela
estação. Aos poucos os dragões apresentavam-se a
Tlüogodärami e lamentavam junto a ele o ocorrido à sua
civilização. Tlüogodärami manteve a calma e incentivou-os a
continuar e incutiu em suas mentes a idéia de que tinham a
responsabilidade de reconstruir, ao seu lado, a gloriosa
civilização dos dragões.
A partir daqueles fatos, a fagulha inicial deu ignição ao
renascimento da civilização dos dragões e Tlüogodärami,
com poderes ilimitados, fato inédito até então naquele povo,
lideraria a tão aguardada e desejada reconstrução.

CAPÍTULO 20
Epílogo?

O mundo estava totalmente abalado. Há alguns meses
aquelas fotos de satélite mudaram a concepção de tudo o
que se acreditava até então. Ufologistas estavam histéricos e
dominavam as telas de televisão, dando explicações das mais
mirabolantes sobre os eventos constatados no planeta Marte.
O ano era o de 2.025 da Era Cristã e uma missão espacial
para aquele planeta já havia sido planejada há anos, contudo
foi acelerada mediante aquelas fotos assustadoras. Reuniões
com cientistas para entender o fenômeno apareciam por
todos os continentes. Houve uma espécie de pânico, ainda
em estágio pouco avançado, na humanidade. Os governos
democráticos se reuniram e fizeram uma missão conjunta
para verificar o que estava acontecendo no planeta
vermelho. Ufologistas defendiam a idéia de um ataque
promovido por greys e estas criaturas usariam o planeta
Marte como porto para o ataque final à Terra. Cientistas
acreditavam em mudanças geológicas no planeta. Contudo,
na verdade, ninguém sabia exatamente o que aquilo
significava. As fotos mostravam uma elevação geológica
com quilômetros de extensão, localizada entre o pólo sul do
planeta e a região de Argyre Planitia.
Major George Hunter, o mais graduado astronauta da
Agência Espacial Americana, encabeçaria a missão até
Marte. Um homem, com seus quarenta e cinco anos, mas
com a estrutura corpórea de um homem de vinte e cinco,
cabelos densos e grisalhos, rosto escanhoado e olhos cas-
tanhos profundos. Um ser moldado para servir ao seu país e
ao mundo no que se referia ao desbravar o espaço. Quase
um Hernán Cortês do século XXI. A missão consistia em
chegar até a órbita de Marte e verificar mais a fundo o que
estava acontecendo. Mandariam sondas-robôs para verificar
a grandeza real dos acontecimentos e voltariam para casa,
sem colocar em risco a vida do major e sua tripulação. Uma
equipe internacional seguiria o mesmo caminho que George
Hunter. Havia um astronauta russo, tão competente como
Hunter, chamado Liev Raskólnikov, um geólogo francês, o
Dr. François Verne, um químico inglês, Dr. Bernard
O'Connor, um físico indiano, Dr. Sidarta Siquim e o biólogo
americano, Dr. David Smith. A equipe de terra seria
formada por uma babel de pessoas vindas do mundo todo;
mais de mil pessoas. Dia nove de julho a nave foi lançada da
Flórida, Estados Unidos. O longo caminho de seis meses
seria percorrido por pessoas altamente preparadas e ansiosas
por aquele objetivo. Um longo caminho iniciara-se para um
fim inesperado até pelo mais lunático dos roteiristas de
filmes.

Sete anos se passaram desde a chegada da nave Mustang na
órbita do planeta Marte. Tlüogodärami, o último dragão
sobrevivente de uma guerra desastrada promovida por seu
povo, conseguira depois de muitos anos de espera e angústia
completar a primeira etapa de sua jornada. Desencadeara a
reconstrução de sua civilização e em sete anos muito já
havia sido feito. A pequena, para os padrões dos dragões,
cidade de Yfunst Ghiar crescera a um ritmo altíssimo.
Seguindo novas idéias trazidas por Tlüogodärami em seu
exílio, a cidade dos dragões tomou um caminho novo. Não
seria mais construída como uma simples torre e com
subterrâneos sofisticados. A cidade ganhava algumas
mudanças. No lugar da torre, havia um patamar da cidade
exposto a céu aberto e outros níveis abaixo do nível do solo
seguiam a velha tradição. A cidade estava vinte vezes maior
que a original. A colonização de Marte tomava corpo com o
plantio de árvores modificadas para transformar a atmosfera
em algo salutar para qualquer ser vivente do planeta Terra.
Tecnologia, para a colonização do planeta, não estava sendo
economizada. Estabilizadores gigantescos, instalados em
vários cantos do planeta regulavam o clima e, como ainda
estavam em fase de finalização, não trabalhavam
perfeitamente. Tudo seguia o ritmo de crescimento, em
progressão geométrica, e os dragões sabiam que as
modificações em Marte logo despertariam os interesses do
planeta Terra. A população de dragões começara a crescer e
Tlüogodärami tomou a decisão que daria o tempo necessário
para cada novo cidadão crescer normalmente, como era o
costume no planeta Tidianvinst. Poderia acelerar o
crescimento artificialmente, mas optou pela espera. Toda
aquela leva de dragões dos últimos sete anos era órfã. Todos
os códigos genéticos trazidos por Tlüogodärami foram
misturados seguindo o histórico familiar das antigas famílias
e respeitando a união oficial existente na época entre
dragões. Portanto aqueles pequenos dragões nunca
conheceriam seus pais. Com sete anos, um dragão já tinha
quase a constituição física de um adulto, mas não a
maturidade mental. Durante a história dos dragões, essa
idade variou muito, no tempo de Krueur, o Tlüogodärami,
era de aproximadamente vinte e cinco anos. Muitos robôs
substituíam os pais perdidos há milhões de anos e, apesar de
não ser o ideal, não havia alternativa melhor que esta. A
taxa de nascimento tomou uma escala industrial naqueles
tempos e as recombinações produziam milhões de ovos por
ano. Há três anos, já havia a fabricação de veículos espaciais
e já era possível retomar as indústrias de extração existentes
em todo o sistema solar. Apesar de ainda ser um embrião,
aos poucos a civilização dos dragões ressurgia forte e
grandiosa como nunca deveria ter deixado de ser.

Em janeiro de 2.026 finalmente a nave exploratória vinda da
Terra se aproximou de Marte. Apesar de altamente
disciplinada, a tripulação comandada por George Hunter
comemorava aliviada o sucesso daquela primeira etapa. A
comemoração, contudo, não foi longa. Ao chegar à órbita de
Marte, a nave internacional deparou com algo não esperado.
Duas naves com três vezes seu tamanho se aproximaram
lentamente. O aspecto delas lembrava coisa de ficção
científica e não pareciam com nada até aquele momento
construído na Terra.
— Meu Deus! O que são aquelas coisas — disse George
Hunter à sua tripulação.
— Parece que aqueles ufólogos estavam certos. Senhores:
estamos oficialmente tendo um contato imediato com forças
alienígenas — comentava David Smith.
— Mon Dieu! Espero que sejam pacíficos — François Verne
olhava atônito pela escotilha frontal.
Enquanto observavam pasmos para aquelas naves, ambas
chegavam delicadamente perto da nave internacional e,
como dois seguranças, ficaram uma em cada lado daquela
nave vinda da Terra. Usando a freqüência de rádio da nave,
os supostos alienígenas fizeram o primeiro contato.
— Pedimos desculpas pelo inconveniente, mas os senhores
serão conduzidos até a cidade de Yfunst Ghiar. Não se
preocupem, viemos em paz — DISSE UMA VOZ SUAVE, EM UM
INGLÊS IMPECÁVEL E A SUAVIDADE DAQUELA VOZ TRANQÜI-
LIZOU A TODOS ALI PRESENTES.
— O que foi isso? — perguntou o Dr. Sidarta Siquim.
— Os alienígenas falam inglês? — disse Raskólnikov.
— Jesus Cristo! Não consigo entender - disse o major
Hunter.
— Simples — talava com certeza absoluta, David Smith. —
Eles já estavam aqui há muito tempo e provavelmente
aprenderam nossa língua e a estão usando para se comunicar
conosco.
Como se fossem apenas uma nave, as três seguiram rumo à
cidade de Yfunst Ghiar. Atônitos com a quantidade de
novidades, observavam pelas escotilhas todas aquelas
informações novas. A nave sobrevoava o deserto marciano e
em alguns minutos os novos muros da cidade davam outro
aspecto à paisagem. Muitos robôs, como abelhas
construindo uma colméia, salpicavam na paisagem em
abundância. Mesmo inacabadas, muitas placas de krür
podiam ser vislumbradas nas paredes dos muros. Quatro
estátuas de dragões, gigantescas, uma ao lado da outra,
olhavam para o nada e pareciam guardar um portão. Naquela
abertura, a nave entrou e parou num hangar gigantesco,
onde muitos robôs em forma de dragões trabalhavam sem
dar muita atenção à vinda das naves.
— Onde estamos? — disse Bernard O'Connor bastante
assustado.
— Parece que estamos exatamente naquela formação
geológica vista pelas fotos de satélite — disse François
Verne.
— Calma, pessoal. Devemos nos manter calmos. Vamos
esperar e ver. Aparentemente são pacíficos — disse o major
George Hunter à sua tripulação.
Uma hora se passou e a escotilha da nave foi aberta. Os
sistemas da nave acusaram a violação e os seis ali presentes
ficaram verdadeiramente assustados com aquela situação.
Não sabiam se o ambiente era salutar. Uma voz humana os
recepcionou.
— Por favor, desculpem-nos pela violação de sua escotilha,
mas não havia alternativa. A nave não foi avariada e o
ambiente é totalmente compatível com a vida — disse a
voz.
Todos viram um vulto humano se aproximar, e realmente o
vulto tornou-se um homem diante dos olhos deles.
— Bom dia, senhores. Queiram perdoar mais uma vez pela
invasão. Meu nome é Andrew Carter e estou aqui para
colocá-los a par do significado disso tudo.
— O senhor é americano? — perguntou Hunter
surpreendido por encontrar um compatriota tão longe
assim.
— Sim, major. Nasci em Nova York e cresci em New Jersey.
— Está longe de casa, filho - disse o major Hunter.
— Há pelo menos dez anos, major.
— Deus!
Carter explicou toda a sua história, principalmente como
acabou parando ali, em Marte. Contou a história de
Tlüogodärami, a origem dos dragões, e o cético Hunter
olhava com seu estilo militar desconfiado para as
explanações de Carter. Contudo, a equipe de cientistas
ouvia-o com atenção redobrada.

Nas profundezas da antiga cidade de Yfunst Ghiar,
Tlüogodärami conversava com um dragão aparentemente
tão velho quanto ele. Observavam uma cápsula de suspensão
onde um dragão, depositado no dispositivo, dormia como se
nunca mais fosse levantar. Nitidamente preocupado,
Tlüogodärami conversava alternando olhares entre seu
interlocutor e a cápsula.
— Será que poderemos salvar a mente perturbada de
Vendurs? — perguntou Tlüogodärami ao dragão.
— Difícil, ilustríssimo. O subconsciente é um campo
extremamente complexo. O desvio de conduta de Vendurs
não poderá ser sanado imediatamente, se é que algum dia
seja possível fazê-lo.
— Como ele chegou a esse estado?
— Provavelmente por causa de um defeito na cápsula de
suspensão. Houve, segundo os dados, um vazamento na
cápsula e esta contaminação afetou-o quase que
definitivamente. Quando o senhor mandou o sinal há quase
quarenta anos, os sistemas da estação localizaram o
problema e resolveram descartar a cápsula. Só que acabaram
liberando um ser perturbado na cidade. Somando o
problema adquirido com a solidão, houve um aumento no
caso patológico.
— Lamento em saber disso. Tentarei de algum jeito melhorar
a vida de Vendurs. Ainda não sei o que fazer com ele.
Adiarei seu julgamento até saber com absoluta certeza se o
caso não possui uma solução definitiva.
— Caso exista alguma solução, deve levar anos para sanar o
distúrbio de Vendurs, ilustríssimo.
—Já soube de alguma resposta das sondas mandadas ao
antigo campo de batalha? - perguntou Tlüogodärami
bastante interessado na resposta.
— Sim, ilustríssimo. Infelizmente não são boas notícias.
— Não nutria esperança em relação a isso. Portanto, farei o
que o antigo Tlüogodärami recomendou. Vamos nos
preparar para o pior. Não há alternativas.
— Compreendo, senhor.
— Temos muito tempo, assim espero. E isso é apenas mais
uma tarefa nesta reconstrução.Vou refletir sobre isso e
arquitetar uma estratégia adequada.
— Perfeitamente, ilustríssimo.
— Agradeço as informações, meu caro Bergnst. Preciso tratar
agora de outros assuntos. Até logo mais.
— Até logo mais, ilustríssimo.
Ao sair daquele ambiente clínico, Tlüogodärami foi
imediatamente informado de que Andy Carter estava
dialogando com os humanos vindos do planeta Terra.
Esperou Carter terminar sua incursão diplomática para se
interar da situação pessoalmente com o amigo.

Após a apresentação de Carter, os astronautas foram
conduzidos para alojamentos mais apropriados, onde teriam
todo o conforto necessário para se recuperarem de uma
viagem tão exaustiva e se readaptarem à nova gravidade.
Durante a conversa, Carter ficou sabendo rudimentos da
missão internacional elaborada pelo planeta Terra. Como
previsto, descobriu que a reconstrução chamou a atenção da
Terra e basicamente estavam ali para analisar o que
acreditavam ser um fenômeno natural ou coisa do gênero.
Imediatamente, após o encontro com os astronautas,
Tlüogodärami foi ao encontro de Carter para saber
exatamente do que se tratava.
— Como foi, meu caro doutor? — perguntou curioso
Tlüogodärami.
— Foi um encontro neutro, eu diria. Não foram agressivos,
porém tomaram um susto enorme com minha presença.
— Naturalmente.
— Realmente, como suspeitávamos, não passamos
despercebidos pelos olhos eletrônicos da Terra. A
construção externa da cidade chamou a atenção a ponto de
mandarem pessoas para uma verificação do acontecido.
—Vou deixar nossos convidados assimilarem um pouco esse
turbilhão de idéias e irei pessoalmente falar com eles.
Gostaria que o caro doutor estivesse junto.
— Perfeitamente.
—Vou agora conversar com Shoi.
Tlüogodärami foi até onde Shoi se encontrava. Naquele
alojamento especial para Tlüogodärami, Shoi conversava
com um jovem dragão de cinco anos. O jovem era o irmão
de Tlüogodärami reconstituído a partir do código genético
de seus pais. Assim poderia ter um pouco de seus amados
pais de volta na forma de um parente. O jovem Amgot Skli
Aerok demonstrava ser uma criatura muito educada e in-
teressada. Perguntava muitas coisas para Shoi em relação aos
costumes dos humanos. Tlüogodärami interrompeu a
conversa dos dois.
— Meu jovem irmão Amgot: permita-me tomar algum
tempo do Sr. Shoi, pois precisamos conversar.
— Não há problema, meu irmão — disse Amgot com sua
educação muito semelhante à do irmão mais velho. —
Depois continuo minha conversa com mestre Shoi.
— Procure alguns amigos para se divertir e passar esse tempo
— recomendou Tlüogodärami.
— Sim, senhor.
Enquanto o jovem se retirava do ressinto, Tlüogodärami
caminhou com Shoi até uma sacada arredondada que tinha
vista para a cidade subterrânea ainda em construção. Os dois
dialogavam sobre os últimos acontecimentos e
Tlüogodärami queria saber a opinião do amigo.
— Não há dúvida de que é chegada a hora de revelar à
humanidade a sua existência e a existência desta maravilhosa
civilização — disse Shoi.
— Será, Shoi? Não é um pouco precipitado?
— Acredito que não, Tlüogodärami. Isso, mais cedo ou mais
tarde, teria de acontecer. A humanidade possui sabedoria
suficiente para absorver tal informação. Agora devemos
escolher como fazê-lo.
— Vou conversar com a tripulação dessa missão vinda da
Terra e determinarei como proceder.
— O que você determinar, meu velho amigo, estarei como
sempre ao seu lado.
— Obrigado, meu caro Shoi. Não saberia mais viver sem sua
grande amizade.
Tlüogodärami conversou mais um pouco sobre as
possibilidades de entrar em contato com a Terra. Depois de
esboçarem um plano, solicitou a presença de Carter para os
três dialogarem com o major Hunter e sua tripulação.
Chegando ao alojamento onde os seis se encontravam,
Carter e Shoi resolveram entrar primeiro para preparar os
espíritos daqueles que ainda não viram um dragão vivo.
— Senhores, gostaria de chamar sua atenção àquilo que vou
falar. Nosso anfitrião é um dragão, esteticamente falando,
como os de contos de fadas. Contudo, não deixem que o
preconceito ou idéias incutidas em suas mentes afetem este
primeiro contato — disse Carter.
— Senhores, meu nome é Li-Seug Shoi — apresentava-se
Shoi quando foi interrompido por um dos seis.
— O senhor é o presidente da Seug Corporation — afirmava
François Verne.
— Sim, meus amigos, mas conversarei sobre isso depois com
mais calma. O que quero dizer é que Tlüogodärami, nosso
anfitrião, é uma criatura das mais sofisticadas e não há
motivos para temores. Os dragões, provavelmente, são as
criaturas mais sofisticadas do universo.
As palavras de Shoi foram acompanhadas pelo som dos
passos dados por Tlüogodärami. Este usava seu manto negro
com um capuz cobrindo-lhe a face. Andava em pé para não
assustar a tripulação e educadamente tirou o capuz que lhe
cobria o rosto e cumprimentou aqueles presentes no
confortável alojamento.
— Senhores, em primeiro lugar, quero me apresentar. Meu
nome é Krueur Aerok e possuo um título dado por meu
povo chamado Tlüogodärami. Este título é dado pelo maior
conselheiro filosófico de minha civilização. Talvez eu não
seja merecedor de tal atribuição, contudo não fugi da
responsabilidade dada a mim. Portanto, podem me chamar
simplesmente de Tlüogodärami - todos olhavam contendo o
susto por causa da visão de um dragão de verdade diante de
seus olhos. — Em segundo, peço desculpas por este,
digamos, incidente diplomático entre nossos povos. Como
estamos fazendo profundas modificações neste planeta,
vocês poderiam correr perigo e achamos necessária a
condução da nave de vocês a um lugar mais seguro.
—Jesus Cristo! — olhava incrédulo George Hunter. — O
senhor me desculpe a franqueza, mas ver um dragão falante
é uma situação inesperada para todos aqui.
— Eu compreendo sua reação e não há pelo que se
desculpar. Só adianto que somos amigos e não faremos mal
nenhum a ninguém.
Tlüogodärami expôs a situação aos seis tripulantes. Contou-
lhes sobre sua vida e como foi longa e dura a jornada até
começarem a reconstrução de seu povo. A tripulação,
principalmente os cientistas, prestava muita atenção às
palavras proferidas pela voz metálica característica.
Combinaram que mandariam um vídeo onde os seis dariam
um depoimento sobre o estado de saúde de todos e, a seguir,
Tlüogodärami se revelaria ao mundo dos homens.
Concordaram com tudo exposto por Tlüogodärami e, após a
conversa, Shoi, Carter e Tlüogodärami conduziram seus
convidados para o local de onde gravariam o vídeo para ser
enviado ao planeta Terra.

Num local com câmeras da Terra, havia seis lugares onde a
tripulação se acomodou. Um robô pedia para que dessem
recados de que estavam bem ou coisa do gênero.
Organizadamente, cada um falou aos seus familiares,
compatriotas e ao mundo o que estava acontecendo em
Marte. Depois de uma hora de gravações, chegara a vez de
Tlüogodärami, junto de seus amigos Andy Carter e Li-Seug
Shoi, fazer seu pronunciamento. Tlüogodärami colocou um
manto verde característico não só do luto que seu povo
passava, mas também o símbolo do poder máximo exercido
por um dragão.
— Acho que estamos transpondo mais uma etapa que não
terá volta, meus amigos — disse Tlüogodärami.
— Um dia isso teria de acontecer — disse Shoi.
— A humanidade só terá benefícios com este novo vínculo
de amizade com os dragões — disse Carter.
— Espero fazer a coisa certa neste momento — disse
Tlüogodärami nitidamente nervoso.
— Não se preocupe, amigo. O que pode acontecer de errado?
— perguntou Shoi.
— Espero que nada. Gosto dos humanos e não gostaria de
fazer inimizade com eles, pois devo tudo o que tenho hoje a
vocês.
— Como Shoi falou há pouco, não se preocupe. Mas como
você constatou, o mundo é muito plural no sentido das
idéias, e unanimidade é algo difícil de conseguir,
principalmente entre os humanos.
— Até os dragões não são sempre unânimes em seus
assuntos — falava mais relaxado Tlüogodärami.
O mesmo robô responsável pela captura das imagens
conduziu os três até o lugar do pronunciamento. Enquanto
se posicionavam e olhavam para as câmeras, Tlüogodärami
olhou com sentimento de amizade para seus amigos e sentiu
que nunca esteve só durante seu exílio. Reconfortou-se com
aquele pensamento e estava pronto para falar a sete bilhões
de pessoas. O robô enquadrou-os e disse-lhes algumas
palavras.
Atenção, por favor! Um, dois, três, gravando...


ALIGHIERI, Dante. La Divina Commedia. Milano: Bietti, 1965.
SUN TZU. A Arte da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Dom Casmurro. São Paulo:Abril, 1971.
Titeriteiro: pessoa que movimenta marionetes.
4 Utilizo o calendário cristão para uma localização de tempo mais simplificada. Obviamente os
dragões não utilizavam esse tipo de calendário para determinar um período qualquer.
5 Um dorok tem aproximadamente 75 cm. Unidade de medida dos dragões.
Este, no caso, é o planeta Júpiter, batizado assim pelos humanos modernos. Srun significa "gás" na
língua dos dragões.



 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
A Essência do Dragão - Ressurreição - Andrés Carreiro
 
 
 
links ao final da mensagem
 
 
digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
Sinopse:
 
E se o ser humano não é a única espécie inteligente nascida no planeta Terra? E se esta forma de vida inteligente evoluiu de tal maneira que sua tecnologia possibilitou desbravar o Universo? Por que não deixaram nenhum vestígio de sua existência no planeta? Ficção científica? Fantasia? Aventura? Tire suas próprias conclusões e envolva-se nesta história! Conheça os Li-Seugs, Andy Carter e descubra qual é a missão de Tluogodarami. Veja os dragões como nunca foram retratados antes.
 
 
 
 
 
 

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