JUAN ARIAS
JESUS, ESSE GRANDE
DESCONHECIDO
TRADUÇÃO
RUBIA PRATES GOLDONI
OBJETIVA
2001
Para Roseana, que me ajudou a entender melhor a alma de
Jesus de Nazaré
SUMÁRIO
Prefácio
Preâmbulo
Capítulo 1
Como Jesus influenciou dois mil anos da vida do Ocidente
Capítulo 2
Jesus de Nazaré realmente existiu ou é apenas um mito?
Capítulo 3
Os evangelhos são confiáveis?
Capítulo 4
O que realmente se sabe de Jesus
Capítulo 5
É impossível escrever a vida de Jesus
Capítulo 6
Jesus pertenceu à seita dos fariseus ou à dos essênios de
Qumran?
Capítulo 7
Era Jesus um poeta?
Capítulo 8
Quem matou Jesus? Os judeus ou os romanos?
Capítulo 9
As hipóteses mais inverossímeis sobre Jesus
Capítulo 10
Jesus, sua família e sua relação com o sexo
Capítulo 11
Jesus quis fundar uma Igreja.?
Capítulo 12
O Jesus dos evangelhos apócrifos
Capítulo 13
Jesus e sua relação com as mulheres
Capítulo 14
Era Jesus um mago, um profeta ou um exorcista?
Capítulo 15
Temos conhecimento de palavras pronunciadas
originalmente por Jesus?
Capítulo 16
Revolucionário político ou pacifista revolucionário?
Capítulo 17
Quais são os traços psicológicos da personalidade de Jesus?
NOTA FINAL
PREFÁCIO DE PAULO COELHO
Se Jesus não tivesse existido, como seria hoje nosso mundo?
Como seria a arte, a música, todo nosso sistema de
pensamento? Mas o que sabemos do homem Jesus? O que
sabemos daquele homem de carne e osso, vida e
sentimentos? Juan Arias segue suas pegadas históricas, tão
tênues — quase invisíveis — quanto aquele poema que Jesus
escreveu na poeira do chão do Templo e que talvez só a
mulher adúltera tenha lido.
O livro de Árias é feito mais de perguntas que de respostas,
já que interrogar-se é próprio da natureza humana, feita de
sombras, luz e tempo. As respostas são bem poucas. Mas
quando pronunciamos o nome de Jesus, de que Jesus
estamos falando? Do judeu de Nazaré, rodeado dos
marginalizados de seu tempo? Do judeu que ousou desafiar o
sábado, a família e o Templo? Daquele que não tinha medo
do ser humano, nem de expressar seus sentimentos, de tocar
e de ser tocado, de escutar a voz das mulheres?
De que Jesus estamos falando? Do filho de Deus em nome
do qual o mundo foi banhado em sangue? Sabemos
realmente de que Jesus estamos falando?
Sobre esse personagem se escreveram milhões de livros ao
longo destes vinte séculos. Esta obra pretende recolher parte
do que já foi dito sobre esse grande desconhecido, por meio
de uma pesquisa rigorosa e, ao mesmo tempo, acessível. O
texto de Juan Arias, que também é jornalista, é claro e
agradável. Lemos fascinados até as hipóteses mais
surpreendentes e inverossímeis, bem como as mil
contradições que cercam a enigmática figura do profeta de
Nazaré.
O livro de Árias nos obriga a refletir sobre algumas
perguntas que certamente inquietarão o leitor. Será que
Jesus quis fundar uma nova Igreja? Se sua morte não tivesse
sido atribuída aos judeus, os campos de extermínio teriam
existido? O livro não teme abordar temas tabu nesse terreno.
Por isso, poucas vezes em um livro sobre Jesus se falou tão
abertamente de suas raízes judaicas. Será que Jesus não
queria apenas purificar a religião de Moisés de seu ranço
conservador e elitista? Não desejaria, sobretudo, levar a
religião de seus pais para além dos limites pretendidos pelos
judeus de seu tempo? E como era o tempo de Jesus? Num
tom poético e com grande simplicidade, Juan Arias aproxima
de nós o rumor de seus passos.
Quem era Jesus, esse grande desconhecido? O autor insinua,
não sem acerto, que talvez seja essa utopia que levamos
dentro de nós e que por isso ele adentra na aventura do
terceiro milênio vivo e controvertido.
Concordemos ou não, a discussão vale a pena.
Paulo Coelho
Rio de Janeiro, 28 de setembro de 2000
Preâmbulo
Este livro pretende ser, antes de mais nada, um ensaio
jornalístico que explique ao grande público algumas das
hipóteses — das mais sérias às mais extravagantes — sobre o
judeu da Palestina, Jesus de Nazaré, para alguns o Messias
anunciado a Israel pelos profetas, para outros o Filho de
Deus, para outros, ainda, apenas um agitador ou até um
impostor, não faltando quem duvide de sua própria
existência. Procurei recordar o que dele se sabe
historicamente e também o que dele se ignora, que é muito
mais.
Não se trata de uma obra para especialistas, ainda que tenha
sido concebida com rigor profissional, sem fins panfletários
e até com uma indisfarçada simpatia do autor por aquele
judeu inconformista que rompeu muitos tabus de seu tempo
e foi condenado à morte na cruz pelo simples pecado de ter
provocado, com suas utopias libertárias, os grandes poderes
da sua época: o religioso e o político. É um livro com mais
perguntas que respostas, com mais incertezas que certezas.
Um livro para ajudar a compreender e a pensar.
Mesmo consciente de que se trata, não de um personagem
qualquer da história e sim de alguém que condicionou
profundamente a consciência de mais de um bilhão de
pessoas que acreditam nele e em sua mensagem, tratei de
não ocultar nenhuma das histórias mais desconcertantes que
sobre Jesus, sua pessoa e sua obra se criaram e se escreveram
ao longo destes vinte séculos. E isto por puro escrúpulo
jornalístico.
Sei de antemão que esta espécie de crônica poderá ao
mesmo tempo agradar e irritar muita gente. Já pude
comprová-lo com uma reportagem sobre o assunto
publicada no suplemento dominical do jornal El País no
Natal de 1999. Recebi uma avalanche de cartas: desde as
mais iradas, que condenavam minha ousadia por ter
afirmado, entre outras coisas, que ninguém sabe quando
nem onde Jesus nasceu, tampouco a data de sua crucificação,
nem o que fez, ou por onde andou nos 18 anos de sua
juventude, ou quem realmente foi seu pai, até as de pro-
fessores de teologia que usaram meu texto para discuti-lo
com seus alunos no seminário.
Isso se deve ao fato de que nos achamos diante de um
personagem muito pouco conhecido historicamente, mas
que teve construídas, sobre sua realidade ou seu mito e
sobre a Igreja fundada pelos seus seguidores, imensas
esperanças e decepções, grandes santos e grandes
inquisidores. Um personagem diante do qual a história
nunca conseguiu manter-se indiferente nem pôde relegá-lo
ao esquecimento. E que, por isso mesmo, entra vivo e
controvertido na aventura do terceiro milênio.
Capítulo 1
COMO JESUS INFLUENCIOU DOIS MIL ANOS DA
VIDA DO OCIDENTE
O grande paradoxo do judeu Jesus de Nazaré é tratar-se de
um personagem sobre o qual mal sabemos se existiu, mas
que, ao mesmo tempo, influenciou como nenhum outro a
vida no Ocidente, e mais além, a ponto de haver um antes e
um depois dele. Jesus, de fato, é um marco divisor na
história do mundo.
Não deixa de ser estranho que a vida de um judeu que viveu
pouco mais de trinta anos na mais remota periferia do
Império Romano, cuja epopéia humana foi praticamente
ignorada pelos historiadores judeus e romanos da época,
tenha marcado tanto os últimos vinte séculos em todos os
planos da vida, do religioso ao político, passando pelo
cultural e artístico, sem esquecer a influência que exerceu na
ética e nos costumes.
Ninguém mais duvida que a história do Ocidente, e de certo
modo a do mundo inteiro, teria sido diferente sem o judeu
Jesus de Nazaré, adorado hoje como Deus por quase um
bilhão de fiéis. O mundo teria sido igual sem ele e sem tudo
aquilo que se construiu a seu redor, tanto de poder despótico
como de santidade? Sem dúvida, é difícil imaginar como
teriam sido os últimos vinte séculos sem a existência do
cristianismo, em tudo de positivo e de negativo que essa
religião criou.
Também poderíamos nos perguntar: que religião teria
dominado o Ocidente se o cristianismo não tivesse existido?
Como seríamos? Que visão teríamos hoje do sexo e da
mulher? E do pecado? Sem dúvida, nossa visão da política e
da sociedade, assim como boa parte de nossa ética e de
nossas artes, seria muito diferente.
Sem Jesus e sua Igreja, que música Bach teria composto? O
que teriam pintado Michelangelo, Rafael, Giotto, Zurbarán,
Ticiano, Donatello e até o modernista Stanley Spencer? E El
Greco, Murillo e Velázquez? Por acaso uma das obras mais
famosas e conhecidas de Dali não é justamente uma pintura
de Cristo? Para comprovar tudo isso, teria bastado visitar a
exposição dos diversos retratos de Jesus que a National
Gallery de Londres organizou no início de 2000.
Como assinalou o crítico de arte espanhol Francisco Calvo
Serraller, alguém que desconheça a história de Jesus e do
cristianismo pouco entenderá em visita aos grandes museus
tradicionais, como o Prado de Madri. O que demonstra a que
ponto Jesus influenciou, por exemplo, a arte durante
séculos. E o que teriam escrito Dante ou San Juan de la Cruz
e tantos outros escritores que se inspiraram em temas
religiosos cristãos? José Saramago, o Nobel de Literatura,
teria escrito O evangelho segundo Jesus Cristo, sua obra mais
polêmica, mais criativa e que mais dores de cabeça lhe
causou?
Como teria sido a humanidade se Jesus não tivesse
existido?
São muitas as perguntas que nos vêm à mente quando
pensamos em como a história humana dos últimos vinte
séculos teria sido diferente sem Jesus. Teria existido o
comunismo? O capitalismo teria sido o mesmo sem a ética
cristã-calvinista?
E muitas outras perguntas: tentemos eliminar dos livros de
história as guerras religiosas, as cruzadas, as inquisições e a
expansão missionária e vejamos o que resta. Retiremos das
grandes monarquias ocidentais e de suas lutas pelo poder seu
caráter cristão e vejamos como ficam mancas. E como teria
sido o Novo Mundo ibero-americano se os chamados
"conquistadores" não tivessem chegado com a cruz junto da
espada? Se em vez dos cristãos, impondo sua fé a ferro e
fogo, ali tivessem chegado os islâmicos, os budistas ou os
hindus? E na África negra?
O que teria acontecido com as culturas nativas dos povos
conquistados pelos cristãos com a cruz em punho? Teriam se
conservado muitas das culturas que os conquistadores
destruíram, temendo que fossem um empecilho para abraçar
a nova fé cristã? Basta pensar, por exemplo, em como são
diferentes as culturas orientais que não foram descobertas
pelos cristãos, como as da Índia, China e Japão.
O mundo teria sido outro e diferente sem o cristianismo. Se
melhor ou pior, é impossível saber. Muitas das culturas e
literaturas não teriam chegado até nós, já que foram legadas
à humanidade pelo trabalho dos monges cristãos. O
judaísmo, por seu lado, teria se restringido à Palestina e suas
raízes teológicas não teriam se universalizado através do fil-
tro do cristianismo. Sem a idéia, que a Igreja sustentou
praticamente até o papa João XXIII, de que os judeus foram
os assassinos de Jesus, teriam eles sido perseguidos?
Sei que a questão da participação da Igreja Católica na
perseguição e extermínio dos judeus é delicada e complexa,
mas é difícil deixar de referi-la. Como teria sido a percepção
da mulher e do direito e a própria imagem de Deus no
Ocidente, sem a existência do cristianismo nascido de um
ramo judeu?
O Ocidente está, de fato, ainda hoje, totalmente permeado
pela cultura judaico-cristã que impôs conceitos muito
concretos sobre temas fundamentais da vida, como o
sentimento de culpa, a noção de pecado, o valor do
sacrifício, a visão do dinheiro e da sexualidade, bem como
toda uma concepção do corpo e da alimentação. E também
da mulher.
O próprio fato de podermos fazer essas perguntas indica a
importância histórica que adquiriu depois da morte aquele
judeu considerado, em sua época, um louco revolucionário.
Imaginem como nossa sociedade ocidental teria sido
diferente sem os milhões de pessoas formadas ou
influenciadas pelas escolas, colégios e universidades
religiosas no mundo inteiro. Grandes personagens políticos,
de guerrilheiros e terroristas revolucionários de esquerda a
grandes ditadores, formaram- se, de fato, em colégios
religiosos.
A influência do cristianismo nas leis dos povos
Mas não é só. Há ainda a enorme influência do cristianismo
sobre as leis e o direito pelo mundo. Muitos países europeus
levaram anos para aprovar as leis do divórcio e do aborto por
causa da resistência da Igreja. O mesmo ocorreu com a pena
de morte, que o Vaticano ainda manteve em seu último
catecismo universal. Influência na ética e também nos
costumes. Quem não se lembra dos sermões contra as praias
e os biquínis nos púlpitos das paróquias nas missas de
domingo? Quanto a doutrina cristã de que o ato sexual só é
permitido para fins de procriação não terá condicionado os
costumes? E a cruzada contra os preservativos? Também não
foi pouca a influência da doutrina social da Igreja criada para
tentar conter a expansão do comunismo e a deserção da
classe operária.
E essa influência se fez sentir, direta ou indiretamente, não
só no Ocidente, mas em todo o mundo, já que os grandes
líderes de todos os países, inclusive os de minoria cristã,
formaram-se nas grandes universidades européias ou norte-
americanas. E a influência do papado como política chegou a
todas as partes. Isto foi evidente nas viagens internacionais
tanto de Paulo VI como de João Paulo II. Viajando como
chefes de Estado, sua presença, mesmo nos países com
pouca influência da Igreja, como os islâmicos e os hindus,
sempre mobilizou grandes multidões. É o caso, por exemplo,
da Índia, onde embora haja apenas uns 2% de cristãos,
milhares de pessoas foram ver os dois papas. O mesmo
ocorreu em países africanos predominantemente islâmicos
ou animistas.
Por quê, entre tantos profetas, só Jesus deixou
marcas?
Tanto na época de Jesus como depois, passaram pelo mundo
não poucos messias e redentores, visionários e profetas,
revolucionários religiosos, sociais ou políticos. Por que eles
não deixaram marcas e o rabino Jesus deixou? O que ele fez
ou disse para que sua religião ganhasse projeção universal,
mesmo tendo nascido numa parte esquecida do mundo?
Sem contar que ele, provavelmente, nunca pensou em
fundar nem uma nova religião, nem uma nova Igreja, mas
simplesmente propor uma forma diferente de viver as
relações humanas, baseada não mais no poder, mas na
fraternidade.
E o mais curioso é que toda essa influência na civilização
ocidental se deu em nome de uma pessoa que mal sabemos
se existiu, se foi algo criado por uma seita de judeus
dissidentes que precisavam acreditar na chegada do Messias
ou se foi um mito forjado pelas primeiras comunidades
fundadas pelos apóstolos, que precisavam perpetuar a
presença de Jesus na história depois da derrota que
significou sua morte na cruz.
Ele foi, sem dúvida, a figura mais poderosa, mais paradoxal,
contraditória e enigmática dos últimos vinte séculos. Em seu
nome se perseguiu e se assassinou, mas também se
evangelizaram continentes inteiros. Séculos de teologias e
manipulações não conseguiram apagar as marcas deixadas
pelo personagem real.
Há quem se pergunte se o cristianismo não tenta dar
respostas a perguntas que ninguém mais faz. Mas, enquanto
isso, seu poder continua intacto no limiar do novo milênio.
Um bilhão de pessoas continuam acreditando nele, seguindo
mais ou menos seus preceitos, condicionando sua
consciência às doutrinas impostas por sua Igreja, que dificil-
mente saberemos se Jesus teria ratificado. E o Vaticano, por
mais criticado e atacado que tenha sido, continua em pé,
com uma enorme ascendência na política internacional que
ninguém ousa questionar.
O peso político do Vaticano
Aqueles que, como eu, viveram trinta anos na Itália e
acompanharam profissionalmente as vicissitudes de cinco
papas, são testemunhas do peso que o Vaticano e seu aparato
continuam tendo, não só na Itália mas entre muitos outros
povos católicos do mundo, onde uma palavra do papa pode
condicionar leis importantes de um parlamento demo-
crático. A Itália foi, por exemplo, um dos países que mais
tempo levou para aceitar o aborto e o divórcio em sua
legislação civil, por causa da forte pressão contrária do
Vaticano, a que os políticos italianos de todas as cores, a
começar pelos comunistas, acabavam cedendo.
A Igreja Católica, apesar de seus cismas, de suas
contradições, do sistemático expurgo que faz dos teólogos
que não se submetem às suas normas e tentam pensar de
forma autônoma, continua viva e forte. Como disse alguém,
"os papas passam, mas a Igreja permanece". Ela está
convencida do dogma segundo o qual Deus lhe deu um
poder que exercerá até o final dos tempos e que nada nem
ninguém poderá arrebatar-lhe. Poderão persegui-la, mas não
anulá-la.
E a pergunta que muitos se fazem é se essa força que
sobreviveu a todas as vicissitudes da história, enquanto
outras instituições que pareciam eternas ficaram à margem
relegadas ao esquecimento, ainda tem algo a ver com a
distante figura de seu Fundador, de quem a própria Igreja,
hoje mais aberta, admite saber pouco — como ele realmente
foi, o que pregou e o que pretendia com seu anúncio de um
novo Reino para a humanidade.
E, no entanto, esse bilhão de pessoas que continua
acreditando na Igreja, e até muitos fora dela, não deixam de
ter curiosidade sobre aquele judeu nascido numa aldeia da
Palestina, que ficou como oculto e ofuscado entre os brilhos
de uma Igreja que começou pobre, partilhando seus bens,
perseguida e martirizada, e acabou transformando-se da
noite para o dia na Igreja e na religião do Império Romano.
Um império do qual a Igreja herdou muitos dos jogos de
poder mundano, enquanto se convertia na defensora das
classes dominantes. Assim, ela mesma dificultou sua
pregação daquelas bem-aventuranças do profeta maldito que
asseguravam paz aos perseguidos, felicidade aos pobres e
consolo aos aflitos e humilhados pelo poder.
Por isso, não são poucos os que, a vinte séculos de distância,
continuam a se perguntar se aquele profeta incômodo
existiu, e, se existiu, o que disse e fez realmente em vida e
como imaginava a Igreja por ele fundada, se é que alguma
vez pensou em fundá-la.
Capítulo 2
JESUS DE NAZARÉ REALMENTE EXISTIU OU É
APENAS UM MITO?
O simples fato de pôr em dúvida a existência de um persona-
gem como Jesus de Nazaré, que tanto influenciou a história
do mundo, poderia parecer uma piada de mau gosto. E, de
fato, durante quase 18 séculos ninguém o fez, já que os
quatro Evangelhos considerados pela Igreja Católica como
inspirados eram vistos como biografias históricas de Jesus.
Em 1791, porém, quando o historiador francês Constantin
François Voney começou a levantar sérias dúvidas sobre a
realidade histórica do profeta da Galiléia, surgiram as
primeiras perguntas. Seguiu-o alguns anos depois, em 1794,
outro historiador francês, Charles François Dupuis, que
também questionou a existência de Jesus.
A própria Igreja — cuja fé se funda justamente na pessoa
real, de carne e osso, de Jesus de Nazaré e não em um mito,
em um super- homem ou em uma idéia abstrata — só
começou a se preocupar com essa questão a partir do século
XVIII, quando a nova voga filosófica da Ilustração trouxe
consigo a famosa crítica histórica. Como quase não existiam
documentos da época de Jesus comprovando sua existência,
nem de parte dos judeus, nem dos romanos, toda a
credibilidade da Igreja se apoiava no suposto caráter
histórico dos quatro evangelhos e dos outros escritos do
chamado Novo Testamento.
Por isso, com o vendaval resultante da revisão do conceito
de historicidade, do qual nem as Sagradas Escrituras
escaparam, o rei ficou nu. Se os Evangelhos e outros
documentos cristãos não podiam ser considerados
históricos, mas apenas literários, e se não apresentavam a
figura histórica de Jesus, mas a visão que dele tinham as
primeiras comunidades cristãs, a Igreja ficava praticamente
sem argumentos científicos para provar que ele existira, fora
crucificado e ressuscitara como contam os evangelistas.
O terremoto da crítica histórica abalou os fundamentos dos
próprios biblicistas católicos e protestantes, que perceberam
que, de fato, uma coisa é um documento histórico e outra
um documento literário que revela antes de tudo a fé
religiosa de uma comunidade. Por isso foi fácil para alguns
considerarem que Jesus era um mito criado por uma seita
dissidente do judaísmo ortodoxo, que teria inventado a
figura do profeta porque precisava assegurar que o Messias já
havia chegado. Outros concluíram que na verdade se
concebera um Deus mítico que depois se personificou em
uma figura que existiu apenas na ficção e não na realidade.
Os partidários da hipótese do mito afirmam que não só Jesus,
mas também Paulo de Tarso — para alguns, o verdadeiro
fundador da Igreja Católica — são fruto de uma criação
literária de grupos que fundiram vários mitos religiosos, de
judaicos a gregos, passando por egípcios. Todos eles
acabaram dando razão a Voltaire, que já alertara que, no
mínimo, deve-se desconfiar do valor histórico dos
Evangelhos. E depois de Voltaire vieram historiadores e
filósofos, como A. Drews (O mito de Cristo, 1910), que
tendiam a pensar que era quase impossível saber alguma
coisa de Jesus como personagem histórico.
Mesmo os teólogos católicos começaram a se dar conta de
que, por incrível que pareça, as epístolas de São Paulo, por
exemplo, tidas como o primeiro testemunho literário de
Jesus, não dizem quase nada a seu respeito, nem traduzem o
menor interesse por sua pessoa concreta. Seria um sinal de
que o que interessava era mais o mito que a realidade?
A busca de rastros históricos de Jesus
Por isso a Igreja se pôs a vasculhar desesperadamente nos
documentos históricos da época, tanto judeus como
romanos, em busca de alguma pista sobre a existência real da
pessoa de Jesus. Mas as primeiras pesquisas foram muito
frustrantes. Em Filão de Alexandria, por exemplo, filósofo
que escreveu ainda em período posterior à morte de Cristo,
não se encontra uma única citação a Jesus em nenhum dos
cinqüenta escritos conservados deste autor. Isso, apesar de
seu reconhecido interesse pela intensa atividade das seitas e
dos movimentos dentro do judaísmo daquela época. E Filão
conhecia muito bem, por exemplo, Pilatos, de quem fala em
suas obras. Outro contemporâneo de Jesus, o historiador
Justo de Tiberíades, que de certo modo era também seu
conterrâneo, tampouco o cita, apesar de ter escrito uma
história da Palestina de Moisés até setenta anos depois do
nascimento do profeta. Era difícil para a Igreja aceitar que o
verdadeiro motivo de o historiador não mencionar Jesus
podia muito bem advir do fato de que sua figura e a ação dos
primeiros cristãos tivessem pouquíssima influência na
sociedade da época, não merecendo, portanto, a honra da
crônica.
Daí a alegria dos católicos ao descobrirem o famoso Flávio
Josefo, um judeu do final do século I, primeiro historiador a
mencionar Jesus e sua seita. E em duas passagens. Na
primeira, apenas indiretamente, ao comentar a morte por
apedrejamento de Santiago, um dos irmãos de Jesus. Esse
texto é o que costuma ser considerado mais autêntico.
Escreve Flávio Josefo: "Anás convocou os juízes do Sinédrio
e conduziu à sua presença o irmão de Jesus, dito o Cristo —
seu nome era Santiago —, e alguns outros. Acusou-os de
terem violado a Lei e entregou-os para serem apedrejados".
O texto consta no livro Antigüidades, publicado cerca de
sessenta anos depois da morte de Jesus. Embora a referência
direta seja a Santiago, irmão de Jesus que tivera muita
influência na criação da primeira comunidade judaico-cristã
devido a suas ótimas relações com as autoridades, Flávio dá
como certa a existência do tal Jesus, também chamado Cristo
ou Messias por seus seguidores.
O segundo texto se refere explicitamente a Jesus, mas é
também o mais controvertido. Diz o seguinte: "Por essa
época (durante o governo de Pôncio Pilatos, de 26 a 36 d.C.)
viveu Jesus, um homem sábio, se é que ele pode ser
chamado de homem, dados os portentos que realizou.
Mestre de homens que aceitam a verdade com prazer, atraiu
muitos judeus e muitos de origem grega. Era o Messias.
Quando Pilatos o condenou à cruz, depois de ouvir a
acusação que contra ele formularam nossos principais,
aqueles que de início o amaram não deixaram de fazê-lo.
Pois no terceiro dia apareceu-lhes vivo de novo, tendo os
divinos profetas vaticinado essas e outras maravilhas acerca
dele. E até hoje a seita dos cristãos não desapareceu."
A pergunta que não poucos historiadores se fizeram, em
relação, sobretudo, ao segundo texto de Flávio Josefo, é se
ele era inteiramente autêntico, pois sendo o famoso
historiador um judeu convicto, embora volúvel, dificilmente
teria feito esses elogios ao profeta que fora crucificado por
lutar contra a ortodoxia judaica. E muito menos teria acre-
ditado em sua ressurreição.
Por isso o teólogo espanhol Juan José Tamayo, comentando
em sua obra Por eso lo mataron o texto de Flávio, escreve o
seguinte: "Parece tratar-se de um texto muito manipulado,
sobre cuja autenticidade paira uma enorme dúvida." E, de
fato, há até quem chegue a pensar que o texto é totalmente
falso, pois parece antes refletir a pregação cristã sobre Jesus,
em tom completamente apologético, na linha de alguns
evangelhos.
Existe também uma versão árabe do mesmo texto, menos
enfática, que, segundo alguns, poderia ser o texto original,
que diz o seguinte: "Naquele tempo existiu um homem sábio
chamado Jesus. Sua conduta era boa e era considerado
virtuoso. Muitos judeus e pessoas de outras nações
tornaram-se seus discípulos. Os que se tornaram seus
discípulos não o abandonaram. Contaram que apareceu a
eles três dias depois de sua crucificação e que estava vivo;
assim talvez fosse o Messias de quem os profetas contaram
maravilhas".
Mas nada garante, tampouco, que essa versão árabe fosse a
verdadeira, embora nela a afirmação de que Jesus ressuscitou
parte dos discípulos e não do historiador. Sobre o texto de
Flávio, considerado praticamente o único de um historiador
judeu a se referir a Jesus como uma pessoa real que viveu
durante o reinado de Pôncio Pilatos, escreveram- se livros
inteiros, tanto contra como a favor.
Quem foi o historiador judeu Flávio Josefo?
Os que negam a autenticidade do texto de Flávio Josefo
garantem que as passagens citadas são interpolações
introduzidas pelos primeiros cristãos e que Flávio Josefo
jamais poderia ter feito semelhantes elogios a Jesus. Os que
defendem sua autenticidade admitem que sem dúvida houve
manipulação do escrito de Flávio — cuja conversão ao
cristianismo, hipótese formulada para corroborar a
autenticidade do texto, não tem a menor sustentação —,
pois é impossível que o historiador judeu fizesse profissão de
fé da messianidade de Jesus e, menos ainda, como se disse,
de sua ressurreição.
Esses defensores do texto, mesmo concordando que ele foi
manipulado pelos primeiros cristãos, acreditam, no entanto,
haver nele componentes suficientes para se concluir que,
antes das interpolações, ele já continha elementos que
permitiam afirmar que Josefo falava de Jesus como de
alguém que realmente existira. E que há passagens que não
poderiam ter sido modificadas por um cristão, como aquela
que se refere aos seguidores de Jesus como a uma "seita",
coisa que um cristão daquela época jamais escreveria.
César Vidal Manzanares em El judeo-cristianismo palestino
en El siglo I, livro em que defende um substrato de
autenticidade no texto de Flávio, afirma que, de fato, o
historiador parece ter conhecido bem o movimento
religioso de Jesus, o profeta inconformista, mas que decidiu
mantê-lo ostensivamente velado porque não queria referir-
se aos movimentos revolucionários que existiram naquela
época em seu país, a Palestina, e também porque
considerava o cristianismo uma seita que desacreditava o
judaísmo. Mas essa é apenas uma hipótese. O fato é que
Flávio, em tantos volumes sobre a história de seu país que
abrangem todo o período da vida de Jesus e os primeiros
trinta anos depois de sua morte, cita-o em duas escassas
ocasiões, e mesmo nelas não se sabe se o texto é autêntico
ou inserido por cristãos.
Mas quem era o famoso historiador judeu Flávio Josefo,
praticamente o único a fornecer uma pista sobre a existência
real do profeta Jesus, chamado Cristo (Messias em grego)
pelos primeiros cristãos? Sem dúvida, foi um personagem
muito controvertido e polêmico. Sabemos muito sobre ele
porque nos deixou uma alentada autobiografia em que conta
sua vida nos mínimos detalhes. Nasceu em Jerusalém por
volta de 37 d.C., sob o reinado do imperador Calígula. Vinha
de uma família de sacerdotes. Viveu três anos no deserto
como ermitão e era da seita dos fariseus, à qual, segundo
alguns, o próprio Jesus poderia ter pertencido.
Ainda jovem, Josefo foi a Roma para pleitear junto ao
imperador Nero a libertação de alguns sacerdotes judeus que
estavam presos. Ao que parece, caiu nas graças de Pompéia,
a mulher de Nero, que lhe concedeu o que queria e, além
disso, cumulou-o de presentes. Quando eclodiu a guerra
contra Roma em 66 d.C., foi general das tropas judias em
Jerusalém. Findo o conflito e feito prisioneiro, foi conduzido
a Vespasiano. Josefo, inteligente, profetizou sua iminente
entronização. Como sua previsão se cumpriu e Vespasiano
foi proclamado imperador, Josefo logo foi libertado e acabou
em Roma, onde Vespasiano o presenteou com uma bela vila
e lhe concedeu uma pensão vitalícia.
O certo é que o historiador acabou sob as graças dos
romanos e que seu livro A guerra dos judeus é um tanto
tendencioso, tendo sido o imperador Tito o promotor de sua
publicação. Nela se sustenta que não foram os judeus que
declararam guerra aos romanos, mas "um grupo de
bandoleiros e tiranos". Sua outra obra, As antigüidades, em
vinte volumes, é a que contém as duas passagens que se
referem a Jesus de Nazaré. Flávio a terminou aos 56 anos.
Ele mesmo diz que o livro tem caráter apologético e,
portanto, respeita poucos critérios históricos, embora
pretenda escrever toda a história de Israel. A obra não se
destinava aos judeus, e sim aos gregos e romanos.
Referindo-se a Josefo, John Dominic Crossan, em seu
famoso livro O Jesus histórico, diz o seguinte: "A questão
não é se Josefo era pró-romano e tornou-se anti-romano ou
se era anti-judeu e tornou-se pró-judeu. A seu modo, ele
sempre foi pró-romano e pró-judeu ao mesmo tempo, sem
mudar de atitude em nenhum momento. Mas o fato é que
começou defendendo os romanos perante os judeus e
terminou defendendo os judeus perante os romanos. Por
isso, ao ler suas obras, temos de estar sempre atentos e
examinar cuidadosamente em que ponto dessa linha de
mudança ou de evolução se situa cada texto em particular."
Shaye J. D. Cohen, em Josephus in Galilee and Rome,
escreve o seguinte sobre o historiador: "Josefo pode inventar
coisas, exagerá-las, insistir demais nelas, distorcê-las e
simplificá-las; mas, vez por outra, ele também diz a verdade.
Muitas vezes, no entanto, não é possível saber quando ele
está fazendo uma coisa e quando a outra."
Os historiadores romanos ignoram a existência de
Jesus
No que toca aos historiadores romanos, cabe destacar apenas
um escrito de Tácito, que foi pretor e cônsul, nascido em 56
d.C. Esse historiador, em sua obra Anais, escrita em 115
d.C., isto é, cerca de oitenta anos após a morte de Jesus,
conta que Nero incriminou os cristãos pelo incêndio de
Roma e os castigou para evitar que a suspeita do crime
recaísse sobre si. O texto diz o seguinte: "Nero apontou
como culpados e castigou com a mais refinada crueldade
uma classe de pessoas destacadas por seus vícios, que a
multidão chamava cristãos. Esse nome vem de Cristo, que
sofreu a pena de morte sob o reinado de Tibério, depois de
ter sido condenado pelo governador Pôncio Pilatos. Depois
de interrompida espontaneamente essa perniciosa
superstição voltou a eclodir não apenas na Judéia, onde esse
mal surgiu, mas também na própria capital [ou seja, em
Roma] onde confluíram e encontraram grande aceitação
todas as coisas mais horríveis e vergonhosas do mundo.
Assim, pois, os membros confessos da seita foram presos;
depois, em seus depoimentos, muitos se mostraram
convictos, não tanto pelo delito do incêndio, mas por seu
ódio pela raça humana. E entregaram a vida em meio ao
escárnio: foram cobertos com peles de animais e
despedaçados por cães, ou atados a cadáveres e incendiados,
como fachos noturnos, ao cair da noite. Nero cedera seus
jardins para esse espetáculo e exibiu-o também em seu circo,
misturando-se à multidão com roupa de auriga ou montado
em seu carro."
Os especialistas costumam atribuir pouca credibilidade a esse
texto, que foi escrito muito depois e se refere mais aos
primeiros cristãos que às notícias sobre o Jesus histórico. Os
poucos dados que fornece sobre Jesus já eram conhecidos e
podem simplesmente recolher informações das primeiras
comunidades cristãs. Descreve mais o que os cristãos já
diziam de Jesus, ou seja, que foi crucificado no reinado de
Tibério, depois de ter sido condenado por Pilatos. E mais
nada. Mais interessante é sua opinião sobre a primeira
comunidade cristã em Roma, odiada por Nero. Mas sobre
Jesus não diz quase nada.
O que dizem as fontes religiosas rabínicas?
Nas fontes rabínicas, isto é, nos comentários judeus às
Escrituras redigidos não antes do século II d.C., fala-se de
Jesus de Nazaré, mas, como era de se esperar, de forma um
tanto depreciativa. Porém, de qualquer forma, são
interessantes porque mostram Jesus como uma pessoa que
de fato existira e não como um mito criado por alguma seita
judia dissidente. O que as fontes rabínicas dizem de Jesus é,
sem dúvida, negativo, embora reconheçam que fazia
milagres, chamados "feitiçaria". Afirmam ser ele um
bastardo, sua mãe uma adúltera e seu pai um legionário
romano chamado Pantera. Vejamos algumas dessas afir-
mações recolhidas na obra de César Vidal:
"Jesus praticava a feitiçaria e a sedução, levando Israel pelo
mau caminho."
"Na véspera da Páscoa, Jesus foi justiçado."
"Tentava passar-se por Deus, para que o mundo inteiro fosse
pelo mau caminho."
"Se ele diz que é Deus, é um embusteiro e mentiroso; disse
que partiria e por fim voltaria. Disse isso, mas não cumpriu."
"Zombou das palavras dos sábios."
"Foi um transgressor de Israel, atormentado em meio a
excrementos em ebulição."
Em resumo, Jesus é considerado um farsante perigoso cuja
execução foi merecida. Mas, para efeito da discussão sobre se
ele existiu de fato ou apenas como mito, não resta dúvida de
que as maliciosas alusões a sua pessoa são também uma
prova de que as fontes rabínicas acreditavam em sua
existência real.
Hoje ninguém duvida que Jesus existiu e foi
crucificado como rebelde
As provas históricas da existência de Jesus de Nazaré em
fontes com alguma credibilidade científica fora do âmbito
religioso-cristão são, sem dúvida, quase inexistentes. E
mesmo essas poucas têm sua autenticidade questionada. Por
isso, muitos chegaram a duvidar abertamente que o profeta
de Nazaré tivesse existido. E, no entanto, pode-se dizer que
nas últimas décadas nenhum analista sério, de um lado ou de
outro, tem dúvidas quanto à realidade histórica de Jesus,
entregue à morte por Pôncio Pilatos e que deu lugar a um
movimento religioso que o tempo não conseguiu apagar.
A teoria do mito foi descartada porque todos concordam que
a característica fundamental do cristianismo é justamente ser
uma religião "histórica" e não "mítica". E quanto ao material
histórico existente sobre Jesus, mesmo sendo escasso, pensa-
se que é suficiente, pois há um consenso geral de que um
simples mito não poderia ter gerado tudo que gerou.
Argumenta-se que, assim como ocorre com Jesus, há
grandes personagens da história antiga sobre os quais não
existem muitos dados, e que nem por isso sua existência é
posta em dúvida.
Quanto ao conceito moderno de história, que é, sem dúvida,
muito mais preciso e rigoroso que o da antigüidade, acredita-
se que cada momento histórico possui o seu e que cada
época tem uma forma de transmitir os fatos. E que não
podemos julgar com critérios modernos o método usado
pelos historiadores de 2.000 anos atrás.
Claro que, quanto menos rigoroso for o conceito de história
e de crítica literária, mais fácil será manipular e fantasiar a
história. Mas, como dizia um teólogo moderno e
progressista, a verdade é que a história sempre se revestiu,
ontem e hoje, de grandes mentiras e manipulações. A
primeira advém do fato de sempre ter sido escrita pelos
vencedores e nunca pelos vencidos, pelos homens e nunca
pelas mulheres.
No futuro, os historiadores terão de escrever a história
consultando os jornais, as revistas, os noticiários da televisão
e a própria Internet. E que visão dos fatos poderão
apresentar esses historiadores do futuro, segundo o meio de
comunicação que lhes servir de fonte? Seria interessante
sabê-lo. O que é certo desde já é que o conceito de
histórico, ontem e hoje, é apenas uma aproximação parcial e
ideológica dos fatos, de qualquer espécie, até dos que temos
diante dos olhos, que, no mínimo, cada um interpretará à
seu modo e segundo o que mais lhe convier psicológica,
social ou politicamente.
Por outro lado, por mais que por vezes queiramos fantasiar
algumas coisas da vida, o certo é que a experiência ensina
que a realidade costuma ser mais forte que a maior das
fantasias, aderindo com força às dobras mais ocultas da
história. Certos pedaços de verdade muitas vezes vêm à tona
dos abismos das piores manipulações. Esse parece ser o caso
da existência real de Jesus.
A Igreja costuma dizer que para ela o que importa não são as
provas científicas da historicidade de Jesus, e sim a fé nele. E
que, mais do que no Jesus histórico, ela está interessada no
Jesus da fé. E ela faz bem, do seu ponto de vista, pois do
Jesus real mal sabemos que nasceu numa aldeia palestina
chamada Nazaré e que foi crucificado no reinado de Tibério,
sobretudo por ser um rebelde. Para a Igreja, isso dá e sobra.
Todo o resto entra nas sombras e no mistério da fé, onde ela
reina soberana e não há lugar para a história.
Capítulo 3
OS EVANGELHOS SÃO CONFIÁVEIS?
Vimos que as fontes históricas não-cristãs, tanto judias como
romanas, praticamente ignoram a pessoa do profeta de Naza-
ré, que, depois da morte, tanto influenciaria a história da
humanidade. A pergunta que qualquer cidadão comum deve
se fazer é: de onde vêm, então, as informações tão
detalhadas apresentadas pela Igreja sobre a vida e a morte do
judeu Jesus que deu origem ao cristianismo? Sem dúvida, dos
escritos cristãos ou canônicos que se encontram no Novo
Testamento, assim chamado para distingui-lo do Antigo
Testamento, constituído pela série de escritos da religião
judaica, anteriores ao nascimento de Jesus. Juntos, esses
textos formam o que se conhece como Bíblia.
Do Novo Testamento fazem parte, entre outros, os quatro
evangelhos, que são os textos mais conhecidos pelo grande
público. São atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João. Mas,
na realidade, ignora-se quem os escreveu. Junto dos
evangelhos aparecem as 13 cartas de São Paulo e outras oito:
uma dirigida aos hebreus; outra erroneamente atribuída ao
apóstolo Santiago; duas atribuídas a Pedro — também sem
fundamento, já que nelas fica claro, por exemplo, que o
autor não conheceu Jesus pessoalmente —; três atribuídas ao
apóstolo João, também não escritas por ele, e uma última
atribuída a São Judas Tadeu, mas também de autor
desconhecido.
Pertencem igualmente ao Novo Testamento os Atos dos
apóstolos, que parecem ter sido escritos por Lucas, o mesmo
que escreveu o terceiro evangelho, e, por último, o
Apocalipse, atribuído ao apóstolo São João, mas cuja autoria
desconhecemos, embora possa ter sido de fato escrito pelo
quarto evangelista.
Como os quatro evangelhos atuais foram
reconhecidos como inspirados?
Esses 27 textos são os únicos reconhecidos pela Igreja
Católica como autênticos. O que isso significa? Que existem
muitos outros evangelhos (mais de cem) e escritos,
atribuídos a outros tantos personagens das primeiras
comunidades cristãs, que a Igreja oficial não reconheceu
como "inspirados". Na verdade, trata-se de escritos que, no
momento de se decidir quais seriam introduzidos como
textos canônicos ou oficiais, pareciam menos confiáveis que
os outros. São os chamados "evangelhos apócrifos" que
acabaram sendo considerados, injustamente, falsos. Alguns
são citados pelos primeiros Padres da Igreja e ainda hoje
continuam a ser estudados por não poucos biblicistas. A
maior parte deles desapareceu e de alguns se conservam
apenas fragmentos. É evidente que esses evangelhos
também recolhiam as tradições orais das primeiras
comunidades.
A história de como os quatro evangelhos de Marcos,
Mateus, Lucas e João foram escolhidos pela Igreja como
autênticos e inspirados dentre os mais de cem que então
existiam é muito interessante. Um dos critérios da escolha
foi o dos milagres. Segundo a Igreja, alguns dos prodígios
dos evangelhos apócrifos eram pouco sérios ou muito fanta-
siosos. Mas houve outros motivos para decidir que somente
os quatro evangelhos escolhidos tinham sido inspirados pelo
Espírito Santo e os outros não.
Os quatro foram escolhidos entre cerca de sessenta. Santo
Irineu, no ano 205, assim o explicou: "O Evangelho é o pilar
da Igreja. A Igreja está espalhada pelo mundo inteiro e o
mundo tem quatro regiões. Convém, portanto que existam
quatro evangelhos." E também: "O Evangelho é o sopro do
vento divino da vida para os homens, e, assim como existem
quatro pontos cardeais, também devem existir quatro
evangelhos." Além disso, "o Verbo criador do Universo
reina e brilha sobre os querubins, e os querubins têm quatro
formas, por isso o Verbo obsequiou-nos com quatro
evangelhos". Curiosamente, os quatro escolhidos só foram
aceitos pelos Padres da Igreja pouco antes de serem
declarados inspirados.
A decisão oficial foi tomada no Concilio de Nicéia do ano
325, graças a um milagre, como se conta na obra intitulada
Libelus syndicus. O milagre foi que, dentre todos os
evangelhos que existiam, os quatro que conhecemos hoje
como inspirados foram voando sozinhos até o altar.
Outra versão diz que colocaram todos os evangelhos
existentes sobre o altar e os apócrifos foram caindo no chão,
só permanecendo os quatro escolhidos como autênticos.
Uma terceira versão conta que o Espírito Santo entrou no
Concilio de Nicéia sob a forma de pomba através de uma
janela, sem quebrar o vidro. Lá estavam reunidos todos os
bispos. A pomba pousou no ombro de cada bispo, dizendo-
lhe ao ouvido em voz baixa quais eram os quatro evangelhos
inspirados. E eram os de Marcos, Mateus, Lucas e João.
Por serem considerados canônicos ou oficiais pela Igreja, os
livros do Novo Testamento gozaram durante séculos de
credibilidade absoluta, sobretudo os quatro evangelhos, que
eram tidos como quatro biografias autorizadas de Jesus. Isto
é, os textos foram considerados documentos "históricos".
Faz apenas dois séculos que começaram a ser vistos mais do
que como documentos históricos, no sentido da
historiografia moderna, como textos literários sem pretensão
de contar o que Jesus fez em sua vida terrena, porém,
sobretudo e principalmente o que pensavam as primeiras
comunidades de cristãos sobre aquele profeta que pregava
uma alternativa à sociedade rígida e fechada de seu tempo e
apresentava um rosto mais paternal do Deus do Antigo
Testamento.
Os evangelhos não são material histórico, e sim
teológico
O fato é que não foi fácil para a Igreja oficial aceitar da noite
para o dia que os evangelhos não eram matéria histórica, e
sim teológica. Muitos biblicistas católicos foram perseguidos
por terem se somado ao grupo dos que defendiam uma
análise dos evangelhos objetiva e despida de falsos temores e
pudores, que estudasse os textos à luz dos critérios
modernos de historicidade. Mas por fim teve de se render
aos avanços da crítica literária aplicada também aos quatro
evangelhos. Estudados sob o prisma do que se considera um
documento histórico, viu-se depois que os evangelhos eram
outra coisa.
Os três primeiros foram chamados sinóticos, do grego syn-
orao, que significa "ver conjuntamente". Isto porque,
colocados em colunas paralelas, pode-se acompanhar nos
três a mesma narração com uma estrutura muito
semelhante. Ainda assim, apresentam não poucas
divergências ao narrar um mesmo fato ou ao citar uma
mesma fala de Jesus. Isto sem falar do quarto, atribuído a São
João, que, sendo o autor do mais tardio dos evangelhos, deve
ter conhecido os três anteriores e, no entanto, por vezes
segue uma trilha bem divergente. Sobre essas divergências
escreve Dominic Crossan: "As diferenças e discrepâncias
entre os vários relatos e versões não se devem
predominantemente aos caprichos da memória, nem a
divergências quanto ao destaque dado a cada coisa, mas a
diferentes interpretações teológicas perfeitamente
conscientes da figura de Jesus."
Por exemplo, da narração dos fatos ocorridos durante o
julgamento de Jesus pelas autoridades judias e romanas, de
sua morte e de sua suposta ressurreição, existem, como
muito bem observou Paul Win ter em Sobre o processo de
Jesus, mais de sete versões diferentes. E uma pergunta logo
nos assalta: como é possível que haja tantas diferenças e até
contradições entre fatos tão importantes para os primeiros
cristãos que os apóstolos, suas testemunhas oculares,
deveriam tê-los transmitido com grande exatidão?
Justamente porque quem escreveu os evangelhos não pre-
tendia fazer um trabalho de cunho histórico e sim teológico.
Assim, cada evangelista adaptou os acontecimentos a seus
interlocutores — o que não significa falseá-los
maliciosamente como pensaram alguns — para melhor
defender a tese de fé teológica que desejava transmitir.
Basta um único exemplo: as primeiras comunidades cristãs,
formadas ainda exclusivamente por judeus que decidiram
seguir os novos ensinamentos de Jesus, mas sem abandonar
de todo sua antiga religião judaica, foram muito atacadas pela
antiga seita dos fariseus que viam nelas uma heresia e um
perigo para a ortodoxia judaica. Essa animosidade dos
fariseus contra os primeiros cristãos condicionaria depois,
segundo muitos biblicistas, algumas passagens dos
evangelhos em que se atribui aos fariseus uma quase
obsessiva animosidade contra Jesus, que provavelmente não
existiu, ou pelo menos não nesse grau. E até se aventa a
hipótese de que, de início, Jesus pertencesse à seita dos
fariseus e que justamente por isso tinha com eles violentas
discussões sobre os tópicos da Lei judaica que eram tomados
ao pé da letra e que Jesus tentava abrir a novas perspectivas
universalistas.
Curiosamente, os fariseus não estão envolvidos na
condenação de Jesus à morte. Alguns deles até convidavam
Jesus para comer em sua casa. Só depois, ao iniciar-se a luta
dos fariseus contra os primeiros seguidores do Mestre, é que
aqueles se transformam nos grandes inimigos dos cristãos. E
isso se refletiu nos evangelhos, onde se atribuem aos fariseus
os mais variados ataques contra Jesus. Isto para mostrar às
primeiras comunidades cristãs que os fariseus que os
perseguiam já haviam sido os grandes detratores do Mestre
em vida.
Uma pergunta que alguém poderia fazer é se os evangelhos,
mesmo não sendo verdadeiras biografias de Jesus, não
refletem igualmente muitos aspectos reais de sua vida, pois
tampouco são meros tratados de pura especulação teológica
ou mística, mas relatos de fatos muito concretos de sua vida.
Foi tudo inventado? Não. Na verdade, os evangelistas,
mesmo com um critério de historicidade muito diferente do
nosso, pensam narrar a vida de Jesus nos evangelhos. O
autor de Atos dos apóstolos, que poderia ser o próprio Lucas
do terceiro evangelho, começa dizendo a Teófilo, o
destinatário de seu escrito, que em seu primeiro livro (o
Evangelho) tratou de "tudo o que Jesus fez e ensinou do
princípio até o dia em que subiu ao céu". Claro que não é
verdade. Ignora, por exemplo, entre outras coisas, mais de
18 anos da vida do profeta, isto é, toda sua infância e
juventude, ao mesmo tempo em que narra fatos reais
adaptando-os aos objetivos de sua pregação. O problema é
que, para os evangelistas, mais importante que os fatos era
sua interpretação.
Não conhecemos as versões originais dos evangelhos
Para entender melhor tudo isso é preciso remontar à época
em que, provavelmente, esses evangelhos foram escritos.
Em primeiro lugar, as versões originais não existem. O de
Mateus, por exemplo, que hoje temos em grego, pode ter
sido escrito em aramaico. E, como já dissemos, seus
verdadeiros autores são desconhecidos. O nome "evangelho"
já indica que não se tratava de traçar uma verdadeira história
de Jesus e sim de "anunciar" aos novos crentes uma "boa
nova", que é o que a palavra significa em grego.
Num tempo mais remoto, e tal como aparece na Odisséia de
Homero, "evangelho" significava "o presente que se dava ao
portador de uma boa notícia" ou "o sacrifício feito em ação
de graças por recebê-la". Entre os primeiros cristãos,
"evangelho" significava a Boa Nova, com maiúscula, a
Grande Notícia, isto é, o anúncio de que Jesus, o Messias
esperado pelos profetas de Israel, fizera-se realidade histórica
e estava sendo anunciado pelos apóstolos aos gentios e
pagãos. É só a partir do século II d.C. que a palavra passou a
designar os escritos que falavam desta Boa Nova.
O fato de os quatro evangelhos, os mais teológicos e os
escolhidos oficialmente pela Igreja, serem mais um anúncio
religioso que uma narração histórica deu margem ao
surgimento dos chamados evangelhos "apócrifos", que
pretendem preencher as lacunas dos oficiais, contando nos
mínimos detalhes principalmente a infância e a juventude
de Jesus, período sobre o qual os evangelhos canônicos não
dizem uma única palavra. Teriam eles recolhido elementos
da tradição desprezados pelos evangelistas oficiais, por
parecerem irrelevantes para seus objetivos teológicos? Ou
teriam sido simplesmente inventados para responder às
perguntas dos mais curiosos? Impossível saber.
As contradições internas dos evangelhos. Quando
foram escritos?
A preocupação da Igreja com as contradições existentes
entre os vários evangelhos ao narrar os feitos e ditos de Jesus
(nem sequer o famoso pai-nosso e o importante sermão das
bem-aventuranças aparecem da mesma forma) é
comprovada pelo esforço de resolvê-las, empreendido, já em
meados do século II por Taciano. Porque este, que era
discípulo de São Justino, teve a insólita idéia de fundir os
evangelhos num único livro sem divergências. Intitulou-o
Diatessaron. Parece que a obra foi escrita em sírio entre 170
e 180 d.C. Depois foi traduzida para o grego e é conhecida
como o evangelho "dos fundidos". Fiel à sua filiação à seita
dos gnósticos, Taciano elimina dos evangelhos todas as
alusões que pudessem servir à acusação de "comilão e
beberrão" que alguns faziam a Jesus.
Mais tarde, o próprio santo Agostinho, preocupado com as
discrepâncias entre os evangelhos, escreveu um livro
argumentando que se tratava de diferenças menores. O
famoso bispo africano, convertido ao cristianismo depois de
uma vida mundana e dissoluta, escreve que, ante um texto
bíblico que possa parecer discrepante da verdade, ele não
hesitaria em concluir que "ou o manuscrito é defeituoso, ou
o texto original foi mal traduzido, ou não o entendi". Isso
demonstra a preocupação que, já naquela época, os próprios
Padres da Igreja tinham em relação a textos que eles
piamente acreditavam serem históricos e que, justamente
por isso, não entendiam como podiam conter contradições
ou discrepâncias às vezes gritantes.
O evangelho de Marcos é o mais antigo?
Mas quando e como nascem os evangelhos e os demais
documentos do Novo Testamento? Quanto às datas, sua
fixação sempre deu dores de cabeça aos especialistas. As
discrepâncias entre elas chegam às vezes a trinta e até
quarenta anos. Atualmente, porém, existe uma espécie de
consenso de que esses textos foram escritos no período
entre 60 e 90 d.C., isto é, que são um tanto tardios.
O evangelho atribuído a Marcos parece ser o mais antigo e
poderia ter sido escrito por volta do ano 60. Certamente
antes de 70. Isso significa que deve ser considerado o mais
"histórico" ou o mais fiel? Os biblicistas dizem que não, que
está longe de ser o mais histórico, pois sua missão evidente é
apresentar Jesus como o Messias. Todo ele está centrado na
paixão de Cristo e na questão do sofrimento. E isso
provavelmente porque foi escrito no ano 64, pouco depois
de Nero ter acusado os cristãos de incendiarem Roma e
depois do martírio de Pedro e Paulo. Marcos escreve o
evangelho com o propósito de preparar os cristãos
perseguidos para a gloriosa segunda vinda do Messias. Essa
missão condiciona muitos dos feitos e ditos de Jesus
narrados em seu evangelho.
Pensou-se que Marcos poderia ter sido intérprete e
secretário de Pedro, mas essa hipótese foi descartada porque
ele parece não conhecer bem a Palestina nem os arredores
de Jerusalém, o que seria impossível para alguém que tivesse
convivido de perto com o apóstolo. Acredita-se por isso que
pode tratar-se de um cristão anônimo, de origem pagã. É
muito provável que tenha vivido em Roma ou em
Alexandria. Quanto à hipótese, que circulou durante muito
tempo, de que Marcos teria utilizado uma fonte de dados
sobre Jesus mais antiga que a dos outros sinóticos, hoje não
há como demonstrá-la. E mais: há, por exemplo, uma
passagem em que se vê claramente que Lucas, o terceiro dos
evangelistas, que escreveu depois de Marcos, usou uma
fonte mais antiga que este. Refiro-me à passagem da paixão
em que Marcos afirma que o senado judeu, o Sinédrio,
formado por 71 membros, reuniu-se na casa do sumo
sacerdote na noite seguinte à prisão de Jesus, o que não pode
ser verdade, pois contradiz todas as informações dos
historiadores da época e do próprio Talmud.
Em nenhum dos antigos documentos rabínicos se encontra
uma única referência à reunião do Sinédrio na casa do sumo
sacerdote. De fato, no evangelho de Lucas se diz
explicitamente que o Sinédrio se reuniu de manhã, não à
noite, e na Casa do Conselho Oficial. E muito provável que
Lucas tenha corrigido a passagem de Marcos baseando-se
numa versão mais antiga porque, além disso, não são apenas
os fatos concretos que divergem, mas também o próprio
vocabulário. O que leva Winter a afirmar: "As diferenças são
muito grandes para serem gratuitas e não podem ser
atribuídas a uma simples reescritura de Marcos por parte de
Lucas. O terceiro evangelho deve ter-se baseado, portanto,
numa narração da paixão anterior à de Marcos."
Existiu um evangelho secreto de Marcos antes do
canônico e um evangelho erótico?
Isso sem falar que há quem sustente que existiu um anterior
e secreto evangelho de Marcos que foi censurado. Sobre
esse assunto existe toda uma polêmica entre os especialistas.
Há quem acredite que o Marcos secreto, e depois censurado,
é posterior ao canônico e oficial, e há quem pense o
contrário. Segundo Crossan, o Marcos secreto é anterior. É
citado nos fragmentos de uma carta de Clemente de
Alexandria escrita em fins do século II, descoberta em 1958
por Morton Smith, da Universidade da Califórnia, num
mosteiro ortodoxo situado entre Belém e o mar Morto.
Há uma passagem muito concreta em que o Marcos secreto
difere claramente do Marcos oficial e posterior. Um texto
que criou muitos problemas, pois houve algumas seitas,
como os carpocracianos, que o interpretaram numa
perspectiva homossexual ou erótica. Por isso deve ter
desaparecido da versão oficial posterior. O texto é o
seguinte:
"E chegaram a Betânia. Havia ali uma mulher cujo irmão
morrera. Aproximando-se de Jesus, ajoelhou-se diante dele e
disse: 'Filho de Davi, tem misericórdia de mim.' Mas os
discípulos a afastaram. Jesus, encolerizado, saiu com ela para
o horto onde estava o túmulo e logo se ouviu um grande
grito vindo dali. Jesus aproximou-se e retirou a pedra tia
entrada do túmulo. E depois, entrando onde estava o jovem,
estendeu a mão e o ressuscitou tomando-o pela mão.
Erguendo os olhos, o jovem o amou e lhe pediu que o
deixasse ficar com ele. E ao sair do túmulo entraram na casa
do jovem, que era rico. Passados seis dias, Jesus disse ao
jovem o que devia fazer, e à noite este veio a ele com um
vestido de linho sobre o corpo nu. E ficaram juntos aquela
noite, pois Jesus ensinou-lhe o mistério do reino de Deus. E
depois, levantando-se, voltou-se para as margens do Jordão."
Alguns exegetas, entre eles Crossan, crêem que essa versão
constava do Marcos secreto e que depois foi censurada.
Pensa-se que podia tratar-se de um texto usado durante o
rito nudista do batismo, e que por isso alguns fiéis lhe deram
uma interpretação de cunho erótico, o que acabou fazendo
com que desaparecesse da versão canônica. Mas há quem
acredite que, mais do que eliminado, esse texto foi diluído
aqui e ali no evangelho oficial de Marcos. Haveria vestígios
dele, por exemplo, no curioso episódio em que Marcos
conta que, quando Jesus foi detido no Horto das Oliveiras,
"desamparando-o seus discípulos fugiram todos", mas que
"ia-o seguindo um mancebo, coberto com um lençol sobre o
corpo nu", que ao ser preso, "largando o lençol, escapou-
lhes nu".
Crossan chega a sustentar que no tempo de Clemente de
Alexandria havia três versões do evangelho de Marcos, o
secreto, o canônico e o erótico, e que o Marcos secreto deve
ter desempenhado um papel importante na liturgia do
batismo, pois, do contrário, teria sido destruído. Desses e de
outros textos se depreende, além disso, que Jesus não
batizava, limitando-se a curar os doentes, e que não havia
fundamento para a leitura homossexual do batismo nudista,
feita por algumas seitas dissidentes.
Tudo isso mostra a riqueza de textos que hoje teríamos se a
Igreja, em vez de limitar-se a aprovar apenas quatro
evangelhos canônicos, tivesse respeitado, sem censurar nem
destruir, tantos outros textos que as primeiras comunidades
cristãs utilizavam tão naturalmente como os que depois
seriam "canonizados", transformando os demais em heréti-
cos que mereciam ser queimados. Como de fato o foram.
O evangelho de Lucas apresenta a compaixão de Jesus
Acredita-se que o evangelho de Lucas, um dos três
sinóticos, tenha sido escrito por um médico, dada a atenção
e o conhecimento que ele demonstra nas questões da saúde.
Deveria tratar-se, além disso, de uma pessoa de alma
sensível, já que realça os aspectos mais humanos de Jesus.
Dedica-se a apresentar para os gentios que começavam a se
interessar pela nova religião a bondade e a misericórdia de
Jesus em relação aos pecadores e humilhados. Por isso
acredita-se que Lucas já não pertencia à primeiríssima
comunidade judaico-cristã, isto é, àquele grupo de cristãos
herdeiros diretos dos apóstolos, que eram todos judeus e
cuja única preocupação, como veremos, era tentar conciliar
o judaísmo antigo com as novas doutrinas do Mestre Jesus.
Tanto que, de início, houve dúvidas quanto à
obrigatoriedade da circuncisão dos pagãos que quisessem
ingressar na nova seita.
O evangelho de Lucas segue outra trilha. Tenta resgatar Jesus
mais como um judeu que revia o judaísmo para torná-lo
mais universal e menos escravo das normas, como um
personagem novo. Em seu evangelho há passagens
significativas, que não se encontram nos outros evangelistas,
referentes, por exemplo, à grande liberdade de Jesus com as
mulheres, um testamento social totalmente desprezado na
época. Como na cena em que Jesus almoçava na casa de um
fariseu e uma prostituta se atira a seus pés, ungindo-os com
bálsamo de um frasco de alabastro. Jesus defende-a das
críticas dos comensais dizendo-lhe que seus muitos pecados
haviam sido perdoados.
Por meio de Lucas sabemos, além disso, que na comitiva de
discípulos que acompanhavam Jesus durante sua pregação
havia "também algumas mulheres, que ele tinha livrado de
espíritos malignos e de enfermidades", o que é igualmente
insólito para a época. Entre elas cita Maria Madalena, de
quem diz que Jesus expulsara sete demônios. É também por
meio dele que conhecemos a famosa parábola do
samaritano. Lucas é também considerado o evangelista que
melhor ressaltou a necessidade de despojar-se das riquezas e
do supérfluo para poder seguir a doutrina de Jesus.
A coleção de mais de duzentas frases atribuídas a
Jesus (Fonte Q)
É bem provável que, para escrever seus evangelhos, Lucas e
Mateus tenham recorrido à chamada Fonte Q, ou Evangelho
Q, uma espécie de coleção de mais de duzentas frases
atribuídas a Jesus. Teriam sido pronunciadas por ele ao longo
da vida e transmitidas primeiro oralmente, depois por
escrito. Esta coleção foi conhecida originalmente como
Quelle ("fonte", em alemão), nome dado por H. J.
Holtzmann em 1861 e que J. Weiss abreviaria
definitivamente como Q, tal como é hoje conhecida.
Trata-se de um documento muito importante,
provavelmente um dos mais primitivos da primeira
comunidade judaico-cristã, que deve ter desaparecido depois
da escritura dos evangelhos de Mateus e Lucas. É pena não
ter chegado até nós, pois não sabemos se os evangelistas a
usaram literalmente ou se modificaram algumas de suas
partes. Tampouco sabemos se continha frases atribuídas a
Jesus, mas que, por motivos particulares, não foram
incorporadas aos evangelhos e, portanto, desapareceram
para sempre. Parece que a fonte Q começou a ser escrita em
ara- maico e terminou em grego, que é o texto que Mateus e
Lucas utilizam.
O evangelho de Mateus, que fascinou o cineasta
Pasolini
O evangelho que costuma ser o primeiro a aparecer no
Novo Testamento foi atribuído pela tradição ao apóstolo
Mateus, o coletor de impostos. Segundo Eusébio, Mateus
pregou por 15 anos na Palestina e, antes de ir pregar em
outras regiões, escreveu seu evangelho. Calcula-se que foi
escrito em 80 d.C., depois do de Marcos, e tampouco se tem
certeza absoluta de que o autor seja o apóstolo. E possível
que tenha existido uma versão original desse evangelho em
aramai- co, anterior à versão grega que chegou até nós. Foi
construído em parte com o evangelho de Marcos e em parte
com a Fonte Q. Era dirigido a um público do âmbito judaico-
cristão, revelando preocupação pela redução do número de
cristãos de origem judaica em relação aos de origem pagã, o
que acabaria rompendo o equilíbrio existente até então.
Os apóstolos são apresentados com uma aura de grande
dignidade, certamente para dar importância ao cristianismo
mais primitivo, baseado nos apóstolos, que eram todos
judeus. Nesse evangelho prevalece a idéia de que o
cristianismo propõe uma justiça superior à do Antigo
Testamento e mais limpa que a dos escribas e fariseus, que
reduziram a religião judaica a meras fórmulas. Na verdade,
Mateus tenta apresentar a nova doutrina de Jesus como o
aperfeiçoamento da Lei de Moisés e dos profetas, que
poderia ser resumida nos dois mandamentos fundamentais
de amor a Deus e amor ao próximo.
Segundo esse Evangelho, Jesus ensinou com autoridade, era
o Messias anunciado e esperado e trazia a salvação para
todos. Foi esse o evangelho que tanto fascinou o cineasta
italiano Pier Paolo Pasolini, que, apesar de ser ateu, quis
adaptá-lo ao cinema, realizando uma de suas melhores obras.
No filme, Pasolini quis que Maria fosse representada por sua
própria mãe. A obra nasceu de um desafio que Giovanni
Rossi, o sacerdote iluminado e fundador da Pro-Civitate
Christiana de Assis, na Itália, fez ao cineasta comunista.
Ofereceu-lhe hospedagem em sua comunidade encorajando-
o a ler os evangelhos. Pasolini aceitou o desafio. Dedicou
três dias à leitura, e quando saiu foi direto rodar O evangelho
segundo Mateus.
Para que se tenha uma idéia da estreita relação existente
entre os três evangelhos sinóticos, pode-se lembrar que há
340 passagens comuns entre Lucas e Mateus, 175 entre
Marcos e Mateus e 50 entre Marcos e Lucas. O evangelho de
Mateus contém 1.070 versículos: uns 330 próprios, uns 350
em comum com os de Marcos e Lucas, cerca de 175 em
comum com Marcos e 235 em comum com Lucas. E Lucas
contém 1.158 versículos: 541 próprios, uns 350 em comum
com Mateus e Marcos, perto de 75 em comum com Mateus
e 50 com Marcos.
O evangelho de João ou o evangelho do ''Verbo"
O último dos evangelhos, escrito por volta dos anos 90 d.C.,
é o de João, falsamente atribuído ao chamado "discípulo
amado", o único dos 12 do qual não se sabe se foi casado.
Modernamente, no entanto, alguns autores, entre eles César
Vidal, inclinam-se a aceitar a tese de que teria sido
realmente escrito pelo apóstolo João. Para tanto, consideram
a evidência de o evangelista aparecer como testemunha
ocular de alguns fatos e que sua língua é o aramaico, embora
escrevesse corretamente em grego.
César Vidal afirma que, mesmo que não fosse o apóstolo
João, deveria tratar-se de algum discípulo muito próximo de
Jesus. Seja como for, não se sabe ao certo quem é o autor
desse evangelho, que é o que mais difere dos outros. Pode
ter sido escrito pelo mesmo autor do Apocalipse. Trata-se de
um texto que não segue a linha dos três evangelhos
sinóticos. É como um evangelho à parte, construído sobre o
problema filosófico-teológico de que primeiro era o Verbo,
que era Deus. Foi chamado de "evangelho espiritual". É o
menos histórico de todos. Mais que sermões de Jesus, o que
ele apresenta são sermões sobre Jesus. Sua escassez de
narração se deve, sobretudo, à sua tese teológica. Nesse
evangelho se percebem não poucas influências da seita dos
gnósticos.
O substrato histórico dos evangelhos
Mas se os quatro evangelhos não são quatro biografias de
Jesus de Nazaré, não podendo, portanto, ser considerados
documentos históricos, não resta dúvida de que só por meio
deles podemos saber um pouco da vida e da personalidade
do profeta judeu, sobretudo no que se refere à sua atividade
pública.
Todos os autores modernos concordam em que neles
sobreviveu, apesar de todas as manipulações teológicas por
que passaram, o substrato de uma primeira tradição oral que
foi passando de um discípulo para outro, pois seria muito
estranho que os primeiros cristãos que conheceram os
apóstolos pessoalmente não se interessassem por saber quem
tinha sido Jesus em sua vida concreta. Antes de se fixarem
nos evangelhos, portanto, muitas daquelas informações
devem ter passado de pai para filho e ter sido objeto das
pregações dos cristãos primitivos.
Se bem que os especialistas também concordam em que é
quase impossível saber ao certo quais os feitos e ditos de
Jesus narrados pelos evangelhos que podem ser atribuídos a
ele, dada a grande quantidade de filtros por que as narrações
passaram antes de serem transcritas. Nesse ponto, cada um
dos biblicistas tem sua hipótese para tentar extrair dos
evangelhos aquilo que possam conter de autêntico. E
mesmo sobre aqueles feitos ou ditos consensualmente
históricos, nunca se saberá seu grau de fidelidade, dadas as
discrepâncias entre os evangelistas que os narram.
Se os evangelhos, que durante 18 séculos foram
considerados autênticas biografias históricas de Jesus, são
antes textos literários que refletem a fé dos primeiros
cristãos, os outros livros do Novo Testamento, das Epístolas
ao Apocalipse, passando pelos Atos dos apóstolos, contêm
ainda menos material histórico. Sua função é refletir a
atividade missionária dos primeiros discípulos e as polêmicas
que começavam a surgir entre as primeiras comunidades
cristãs ao terem de apresentar sua nova fé a outros povos,
estranhos a Israel e ao judaísmo.
Por isso os especialistas costumam dizer que, na verdade,
não existe apenas um Jesus histórico, mas muitos, tantos
quantos são os fragmentos de seu retrato retocado ao longo
dos primeiros séculos depois de sua morte.
Capítulo 4
O QUE REALMENTE SE SABE DE JESUS
Sempre se disse que a única coisa certa sobre Jesus de
Nazaré, se tanto, é que ele nasceu na Palestina e morreu
crucificado em Jerusalém. Contudo, sabemos mais algumas
poucas coisas sobre sua vida, embora, sem dúvida, o que
ignoramos é muito mais, pois mesmo aquilo que
oficialmente é tido como certo conta apenas com certo grau
de credibilidade, nunca de certeza absoluta.
O que se tem como certo foi extraído, como dissemos, dos
evangelhos, sobretudo dos de Mateus, Marcos e Lucas, mas
também do de João. Esses textos, apesar de serem mais
literários e teológicos, também deixaram algumas pistas da
vida e dos ditos do profeta judeu. Curiosamente, alguns fatos
da vida de Jesus que inspiraram não poucas obras de arte e
fazem parte do imaginário coletivo não pertencem aos
evangelhos oficiais e sim aos chamados "apócrifos".
Não se sabe quando nem onde Jesus nasceu
Por isso, tudo o que se sabe sobre Jesus, a começar pelo seu
nascimento, ou pertence às passagens dos evangelhos
canônicos consideradas menos confiáveis, ou aos apócrifos.
Assim, não sabemos realmente nem o ano, nem o dia, nem
o lugar onde Maria, a mãe de Jesus, o trouxe ao mundo.
Quanto ao ano, parece que foi durante o reinado de
Herodes, antes, portanto, do ano zero da era cristã, já que
Herodes morreu no ano 4 a.C. Assim, o monge Dionísio, o
Exíguo, no século IV, ao mudar o calendário para fazê-lo
começar no nascimento de Cristo, errou quatro anos, no
mínimo.
Sem dúvida, Jesus não nasceu em 25 de dezembro, e
provavelmente nem sequer no inverno, pois, se for verdade
o que Lucas relata, os pastores tinham seus rebanhos fora
dos estábulos, o que seria impossível no frio de dezembro.
Nenhum evangelista cita essa data, embora seja o dia em que
se comemora o Natal em todo o mundo cristão. Acontece
que, como a Igreja tinha que escolher uma data, optou por
aquela em que se celebrava a festa do Sol, que por sua vez
coincidia com o nascimento do deus pagão Mitra. E hoje
tudo leva a crer que Jesus não nasceu em Belém, como
afirmam os evangelhos de Mateus e Lucas (Marcos e João
nem mencionam seu nascimento), mas em Nazaré.
Segundo alguns biblicistas modernos, como Antonio Pinero,
a notícia de que Jesus nasceu em Belém deve-se à intenção
de fazer coincidir o nascimento do Messias com a profecia
de Miquéias, tal como aparece na Bíblia, que diz o seguinte:
"E tu, Belém Efrata, tu és pequenina entre os milhares de
Judá! Mas de ti há de sair aquele que há de reinar em Israel",
justamente um texto citado por Mateus quando narra o
episódio do nascimento.
É a partir daí que Mateus e Lucas constroem o relato do
nascimento em Belém. Mas de maneira bem diferente.
Mateus fala da ira de
Herodes que ordena a matança dos inocentes, o que Lucas
ignora. Lucas, ao contrário, fala de um recenseamento
decretado por César Augusto, que seria o motivo de os pais
de Jesus se mudarem para Belém, fato que Mateus ignora. E,
de fato, parece que não há provas históricas da existência
desse censo naquela época e naquele lugar. Crossan diz isso
com todas as letras: "Nunca houve um censo geral no tempo
de Augusto." Além do mais, o censo tinha uma finalidade
fiscal, e cadastrar alguém longe de seu local de trabalho teria
significado um verdadeiro pesadelo para a burocracia.
O mais provável é que Jesus tenha nascido em Nazaré. De
fato, nos evangelhos ele nunca é chamado de "Jesus de
Belém" e sim de "Jesus de Nazaré", que era como se
costumava chamar as pessoas, ou seja, pelo lugar de
nascimento ou pelo nome do pai. Neste caso, ele teria sido
"Jesus de José", mas nunca foi chamado assim,
provavelmente porque, como se sabe, os evangelistas não
davam importância a São José, que é apresentado acima de
tudo como um velho, devido à importância atribuída à
virgindade de Maria antes e depois do parto. Curiosamente,
o pai de Jesus é o grande desconhecido nos evangelhos e em
toda a tradição cristã. Talvez por isso existam tantas lendas
extra-oficiais sobre sua pessoa.
Mesmo nos evangelhos, perde-se a pista de Jesus depois de
seu nascimento, reaparecendo só depois de trinta anos, para
dar início à sua vida pública. Há um único episódio dele
rapaz, aos 12 anos: o da visita ao Templo de Jerusalém,
quando se perde dos pais e é encontrado três dias depois,
sentado entre os doutores da Lei, discutindo com eles. É a
cena em que Jesus recrimina aos pais o fato de o
procurarem. Um relato de conteúdo muito mais apologético
e teológico que histórico.
A verdade é que só os evangelhos apócrifos falam da
infância e da juventude de Jesus. O que fez ele durante esses
mais de vinte anos? Ninguém sabe. O que há são hipóteses,
algumas absurdas.
Jesus teve irmãos e irmãs?
Jesus teve irmãos? Constituiu sua própria família? E muito
pouco o que sabemos. Parece que a única certeza é que ele
teve, pelo menos, quatro irmãos: Santiago, José, Judas e
Simão, como aparece no evangelho de Marcos. E também
algumas irmãs, cujos nomes não são citados provavelmente
porque, naquele tempo, a mulher quase não tinha
importância na vida familiar e social.
Embora os irmãos e irmãs de Jesus sejam citados por um dos
evangelistas canônicos, a Igreja Católica, para pregar a
virgindade de Maria antes e depois do nascimento de Jesus,
nunca aceitou essa hipótese. Para contornar o problema,
inexistente para os protestantes que aceitam o texto literal e
não vêem inconveniente no fato de Jesus ter irmãos, os
católicos explicam o fato dizendo que o evangelista Marcos
se referia aos "primos" de Jesus e não a seus irmãos. Mas,
como se sabe, o texto em grego, língua em que esse
evangelho foi escrito, fala claramente de irmãos e não de
primos. Outra hipótese aventada para evitar a idéia de Maria
ter outros filhos é que se tratariam de meio-irmãos, isto é, de
filhos de um casamento anterior de José, seu pai, que era
viúvo.
A Igreja Católica sempre teve muitos atritos com os
protestantes por causa desse assunto. E hoje muitos
biblicistas católicos já explicam a virgindade da mãe de Jesus
de uma maneira simbólica. Acreditam que o profeta de
Nazaré nasceu de uma mulher normal, como todos os
humanos. E que o tema do parto virginal é antiqüíssimo,
encontrando-se em muitas religiões muito anteriores a Jesus.
Segundo os historiadores das religiões, nascer de uma mãe
virgem significava, na antigüidade, que a criança seria um
personagem importante. Por isso, os evangelistas, tendo que
anunciar aos primeiros cristãos que Jesus era o Messias
prometido pelos profetas ao povo de Israel, explicaram-no
dizendo que nascera de uma mulher virgem.
Foi carpinteiro ou pedreiro?
Quanto à possível profissão de Jesus durante os chamados
"anos obscuros" de sua vida oculta, há nos evangelhos
apenas uma alusão ao fato de exercer a mesma profissão do
pai, que não se sabe se era carpinteiro ou pedreiro. Em
ambos os casos tratava-se, naquela época, de um trabalho
inferior, de pobre, já que os ricos não faziam trabalhos
braçais ou manuais, reservados aos escravos. A hipótese de
que a família de Jesus pertencesse à casa de Davi ou à realeza
também foi descartada. Pertencia, sim, a uma família muito
pobre que vivia em Nazaré, uma espécie de aldeia tão
insignificante que não consta de nenhum mapa da época.
Talvez por isso os adversários de Jesus costumavam se
perguntar se de Nazaré poderia vir algo de bom.
No Antigo Testamento há uma lista das cidades da tribo de
Zabulão, mas Nazaré nunca é mencionada. E o historiador
Flávio Josefo, que era o responsável pelas operações
militares na região durante a guerra dos judeus, cita 45
cidades da Galiléia, mas não Nazaré. Por sua vez, no Talmud,
o texto de interpretações rabínicas, são mencionadas 65
cidades galiléias, e Nazaré tampouco aparece.
Portanto, nada se pode saber sobre Nazaré nos textos
literários hebreus escritos há 1.500 anos. A primeira alusão
histórica à cidade natal de Jesus aparece, segundo registra
Crossan, numa inscrição fragmentária gravada sobre uma
lasca de mármore cinza-escuro, procedente de Cesaréia,
descoberta em agosto de 1962 e que poderia datar do século
III ou IV d.C. No texto se lê o seguinte: "A décima oitava
classe sacerdotal (chamada) Hapises (estabelecida) Nazaré."
Mas a arqueologia nos deu recentemente mais notícias sobre
aquela minúscula aldeia de Nazaré. Parece que foi fundada
por volta do século II a.C. Ou seja, na época do nascimento
de Jesus, o povoado não tinha mais que duzentos anos. A
aldeia, situada a mais de 300m de altitude e com uma única
fonte antiga, vivia da agricultura. Mas, embora não passasse
de uma pequena aldeia, ficava a cinco quilômetros da
importante cidade de Séforis. Por isso há quem pense que
não estava tão isolada como se poderia imaginar, e que Jesus
pôde, na juventude, conhecer cidades maiores e ter contato
com gente diferente da que habitava sua aldeia.
Jesus sabia ler e escrever?
Também não se sabe nada sobre a formação intelectual de
Jesus, embora tudo leve a crer que ele sabia ler e escrever.
Na verdade, ele não deixou nenhum escrito, mas
conhecemos o episódio da mulher adúltera em que ele
escreve com o dedo sobre a poeira do chão do Templo de
Jerusalém. E a única ocasião, em toda sua vida, em que se faz
referência a um escrito de Jesus.
Sem dúvida, tinha uma boa formação intelectual para a
época. Conhecia muito bem as Escrituras e a literatura
rabínica. Por isso podia discutir com os sacerdotes do
templo, os fariseus e os saduceus, chegando até a provocá-
los com as suas interpretações da Lei.
Sua língua materna era um dialeto do aramaico falado em
Nazaré que só viemos a conhecer poucos anos atrás graças à
descoberta, na Biblioteca Vaticana, de um manuscrito, o
único que chegou até nós, que esteve perdido por séculos.
Era o mesmo dialeto falado pelo apóstolo Pedro. De fato, na
noite da Paixão, ele é apontado como um dos discípulos de
Jesus por "usar a fala dele", isto é, de Jesus.
Ele conhecia também o aramaico e o hebraico, e é possível
que até um pouco de latim e de grego. Mas nada disso
sabemos com certeza. Uma das hipóteses aventada por
alguns historiadores cristãos é que parece difícil que Jesus,
que estava destinado a desempenhar um papel tão relevante
entre os judeus de seu tempo, mesmo sem ser sacerdote
nem rabino oficial, tivesse passado mais de vinte anos
dedicando-se a um trabalho braçal, sem ler nem estudar. Por
isso há quem acredite que durante esses anos ele pode ter
viajado para fora da Palestina. Só assim se explica que tivesse
uma mente tão aberta, levando a crer que mantivera contato
com outras religiões e filosofias de seu tempo, e até que
tivesse sido iniciado nas artes Mágicas do Egito.
Foi casado?
Ninguém sabe ao certo quanto durou sua vida pública, que é
a única de que falam os evangelistas. Segundo os evangelhos
sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), durou só um ano e
depois ele foi crucificado. Segundo o quarto evangelho, o de
João, prolongou-se por três anos, já que fala de três festas de
Páscoa com os discípulos. Como se explica uma diferença
tão grande? É um indício da pouca importância que os
evangelistas davam à precisão de tempo e lugar. Para eles, o
que importava era a pregação de Jesus.
Sobre a relação de Jesus com as mulheres falaremos em
outro capítulo deste livro. O que sabemos com certeza é que
Jesus sempre defendeu as prostitutas contra os puritanos e
que rompeu com todos os esquemas e tabus em sua relação
com as mulheres, um ser que naquele tempo era totalmente
desprezado. Jesus alguma vez se casou? E, se não se casou,
como isso se explica, se entre os judeus era insólito um
homem não constituir uma família que lhe permitisse
descendência? É verdade que ele fez milagres? Que possuía
poderes especiais? Que sua ação missionária e profética
irritava as elites religiosas e políticas de seu tempo?
Um dos fatos que parecem mais certos é que os humildes o
seguiam com carinho e admiração, pois logo correu a notícia
de que aquele profeta excêntrico dizia que não era proibido
trabalhar aos sábados, o dia sagrado dos judeus, curava todos
os que sofriam de alguma doença e até ressuscitava os
mortos. É verdade que ele se considerava o Messias
prometido? Alguma vez se considerou Deus? Na busca de
resposta para essas duas últimas perguntas, correram rios de
tinta.
Como era Jesus fisicamente?
Já se disse que o Jesus dos cristãos é um homem sem rosto.
Os primeiros cristãos, influenciados por sua origem judia,
não tinham imagens nem pinturas de Jesus. Era proibido
reproduzir seu rosto. Como se pode observar nas
catacumbas de Roma, onde os apóstolos e os primeiros
cristãos se escondiam para fugir às perseguições dos
romanos, Jesus era representado por símbolos: um peixe, um
cordeiro ou principalmente um pastor. Nunca por imagens.
Mas as primeiras representações de Cristo não saíram da
fantasia de um artista, e sim de algumas relíquias em que o
rosto do profeta de Nazaré teria sido conservado,
principalmente na hora de sua morte. Fundamentalmente da
imagem que ficou impressa no famoso Santo Sudário de
Turim e na Santa Face, o pano com que Verônica teria
piedosamente enxugado o rosto de Jesus a caminho do
Gólgota. Das duas, sem dúvida, a mais importante é o Santo
Sudário, que se conserva na catedral de Turim, na Itália. É
um pano de 4,36m por 1,1m. Apresenta duas imagens do
mesmo homem, em tamanho natural, uma de frente e a
outra de costas. Esse homem, que tem as marcas dos cru-
cificados, mede 1,81m de altura e deveria pesar uns 77
quilos. Tem bigodes e barba comprida. E naquilo que
parecem hematomas ou manchas de sangue foram
descobertos vestígios de hemoglobina.
Trata-se, sem dúvida, de um documento científico curioso,
sobre o qual foram feitos mil estudos e se escreveram
centenas de livros. E foi submetido aos mais modernos
testes computadorizados. Até a Nasa estudou o curioso
tecido em seu programa Jet Propulsion Laboratory. É
interessante porque a dupla imagem está em negativo, mas
aparece em positivo na primeira fotografia que se fez, em
1898. Além disso, apresenta informações tridimensionais,
como se alguma coisa tivesse emanado do corpo e reagido
com o tecido. A imagem, além disso, não está pintada.
Segundo testes químicos, não contém nenhuma tinta.
A imagem apresenta feridas nas mãos, nos pés e no flanco
esquerdo. E as feridas na cabeça lembram uma coroa feita de
espinhos. Seria, portanto, a imagem de um crucificado. Mas
de quando data? Os primeiros testes de carbono 14,
realizados em 1988, foram decepcionantes, pois segundo
eles o tecido não era anterior à Idade Média. Mas em 1993
houve outro golpe teatral, com a convocatória em Roma de
cientistas internacionais, entre os quais estava um prêmio
Lênin, especialista russo em física nuclear e radioisótopos.
Esses cientistas rejeitaram os testes de carbono 14. Mas a
Igreja, prudente, absteve-se de qualquer comentário.
Uma coisa é certa: mesmo que um dia se chegue a
comprovar que a curiosa dupla imagem do Santo Sudário é
da época em que Cristo morreu, isso só serviria para
demonstrar historicamente como os rebeldes eram
crucificados na época, mas não provaria que a imagem
deixada por aquele corpo pertencia a Jesus de Nazaré. Ou
seja: Cristo continuaria sem rosto, já que a outra relíquia, a
do tecido de Verônica, não tem valor nem mesmo para a
Igreja, por aparecer nos evangelhos apócrifos.
Como foram surgindo da mão dos artistas, ao longo de 18
séculos, as infinitas imagens de Jesus? Sem dúvida, foram um
reflexo dos vários momentos da história. Por exemplo, as
primeiras pinturas de Jesus que apareceram depois de o
cristianismo se transformar em religião de Estado no tempo
dos imperadores romanos, no século IV, apresentam um
Jesus glorioso, quase um super-homem, para demonstrar que
ninguém era mais poderoso que ele. Um exemplo curioso é
o de uma caixa de mármore do século V em que Jesus, em
algumas cenas da Paixão, carrega a cruz sem o menor
esforço e aparece pregado na cruz com o rosto sereno e
despreocupado.
A partir da Idade Média, quando a religião cristã quis se
aproximar do povo sofrido, aconteceu exatamente o
contrário. A partir desse momento, apresenta-se um Jesus
sofredor e que desperta ternura e compaixão. Basta lembrar
das pinturas do italiano Correggio e do espanhol Velázquez.
O pintor holandês Jan Mostaert retratou Jesus com os olhos
banhados em lágrimas.
Depois chegariam as imagens de Jesus ressuscitado e
glorioso, como nas pinturas de Ticiano, em que o Mestre
evita o contato com Maria Madalena. A exposição da
National Gallery de Londres "Contemplando a salvação: a
imagem de Cristo", realizada de 26 de fevereiro a 7 de maio
de 2000, apresentou magistralmente essa infinita galeria de
artistas que ao longo dos séculos foram "inventando" o rosto
e a figura do profeta de Nazaré, que nunca saberemos como
foi.
Jesus era alto ou baixo, bonito ou feio?
Há quem insista em que Jesus deveria ser mais ou menos
como um judeu típico de seu tempo. E, portanto, nada de
cabelo louro nem de olhos azuis. Mas é evidente que os
judeus da época, assim como os de hoje, não são todos
iguais: há os altos e os baixos, os gordos e os magros, os
bonitos e os menos bonitos, os louros e morenos. Como era
Jesus? O Novo Testamento não dá praticamente nenhuma
dica de como Jesus seria fisicamente. Só existe uma
passagem no evangelho de Lucas sobre a qual alguns Padres
da Igreja especularam para dizer que Jesus devia ser baixo. É
a do publicano Zaqueu, que, tendo Jesus chegado a Jerico
"procurava ver a Jesus, para saber quem era: e não o podia
conseguir por causa da muita gente, porque era pequeno de
estatura. E correndo adiante, subiu a um sicômoro para o
ver". Quem era de estatura baixa, Zaqueu ou Jesus? Há quem
pense que, mesmo que o evangelista estivesse se referindo a
Zaqueu, se Jesus fosse um homem alto, de mais de 1,80m
como muitos o pintam, aquele conseguiria vê-lo.
Certamente foi nesse episódio de Zaqueu que os bispos do
Oriente se basearam para afirmar em sua Carta Sinodal de
839 que Jesus media l,35m.
A única coisa que sabemos de Jesus por intermédio dos
evangelhos é que ele vestia a túnica habitual dos homens de
seu tempo, não de seda, mas de linho ou algodão; que
calçava sandálias, usava um cajado e tinha um olhar
penetrante que fixava sem vacilação nos olhos dos
adversários. É possível que parecesse mais velho do que era,
pois, como se lê no evangelho de João, os judeus diziam que
ainda não fizera cinqüenta anos, quando não podia ter mais
do que trinta. O episódio da traição, em que Judas tem de
beijá-lo para apontá-lo aos soldados romanos, demonstra que
ele não devia ter nenhum traço físico destacável.
Nos primeiros séculos do cristianismo prevaleceram, entre
os Padres da Igreja, duas teses opostas, ambas extraídas de
dois textos, também contraditórios, da Bíblia. O primeiro é
do profeta Isaías que, referindo-se ao Messias prometido, diz
o seguinte: "Não há nele formosura; vê-lo-emos sem atrativo
para mais o desejarmos." Esse texto deu origem à idéia de
que Jesus devia ser feio e desprovido de qualquer encanto. O
outro texto, em que se inspiraram todos os que afirmaram
que Jesus era alto, bonito e sedutor, com uma figura
imponente, é o salmo em que se lê: "És o mais formoso
dentre os filhos dos homens; a graça derramou-se em teus
lábios; portanto Deus te abençoou para sempre".
Ao primeiro grupo, o dos que achavam que Jesus era mais
feio que bonito, pertencem: são Justino, que afirma que
Jesus era quase disforme; Tertuliano, que dizia que seu corpo
quase não parecia o de um homem de tão feio que era;
Comodiano, que o apresenta como um escravo de figura
abjeta; e santo Irineu, que afirmava que Jesus era "informus,
inglorius, indecorus".
Os adeptos da idéia do Salmo que descreve o Messias como
o mais belo dentre os filhos do Homem apresentam, ao
contrário, um Jesus pleno de beleza. No ano de 710, André,
um cidadão de Creta, afirma que Jesus tinha "as sobrancelhas
juntas, os olhos belos, o rosto alongado, o corpo um pouco
encurvado, mas de boa estatura". Em 800, em
Constantinopla, o monge Epitáfio, por sua parte, afirmava
que "Jesus media l,70m, tinha o cabelo louro e levemente
ondulado, sobrancelhas negras, uma ligeira inclinação do
pescoço, o rosto não redondo mas alongado, como o de sua
mãe, com quem se parecia em tudo". São imagens tomadas
das cartas de Lentulius Publius, de Jerusalém, e Nicephorus
Calixtus, dirigidas ao imperador César Augusto e pertencem
aos escritos apócrifos, o que demonstra que, no início, os
evangelhos hoje chamados apócrifos e considerados não
inspirados por Deus gozavam do mesmo respeito que todos
os outros, sendo citados como fontes autênticas.
O fato é que os cristãos de hoje não estão muito
preocupados em saber como era Jesus fisicamente, mas os
biblicistas ainda tentam descobrir, por meio das pistas
deixadas nos evangelhos, como era sua verdadeira
personalidade.
Como foram suas últimas horas de vida e como
faleceu?
Um dos episódios da vida de Jesus de que mais informação
se tem nos quatro evangelhos é o de sua prisão, tortura,
julgamento e condenação à morte. Mas, ao mesmo tempo,
são sem dúvida as passagens com maiores contradições e
divergências entre os diferentes evangelhos. Por quê?
Existem centenas de livros que procuram determinar como
foi o julgamento de Jesus e encaixar as diferentes versões
(são sete) que os evangelistas nos transmitiram.
O que não falta são perguntas. Por exemplo: foram as
autoridades judias ou as romanas que decretaram a morte de
Jesus? De que crime ele foi realmente acusado? As acusações
eram religiosas ou políticas? Se eram religiosas, como tudo
leva a crer, já que ele representava uma revisão da religião
judaica, por que não foi punido com a morte por
apedrejamento, como era normal nesses casos, e sim com a
crucificação, destinada aos sediciosos políticos? Entre sua
prisão e sua morte, passou-se um único dia, como dizem
alguns evangelhos, ou vários, segundo outros, ou meses?
Houve alguma testemunha ocular do julgamento perante o
Sinédrio e Pilatos? Como foi transmitido o relato do
julgamento?
Ele foi crucificado como todos os outros réus condenados a
essa pena capital ou de outra forma? Por que as autoridades
estranharam o fato de ele ter uma morte tão rápida, já que às
vezes os crucificados agonizavam por dias a fio? É possível
que o tenham baixado da cruz ainda vivo e ele depois tenha
viajado durante muitos anos pela índia, como alguém
chegou a pensar (logicamente, sem prova alguma)? Sabemos
realmente quais foram suas últimas palavras antes de morrer
na cruz? Foram reais os estranhos fenômenos que parecem
ter ocorrido durante sua morte?
Em relação às passagens dos evangelhos referentes à sua
ressurreição e às aparições aos apóstolos que, mortos de
medo ao ver que o Mestre fora crucificado ingloriamente e
que eles podiam ter o mesmo fim, foram se esconder nas
casas de amigos e parentes, é ainda mais difícil saber o que
eles podem ter de histórico. Sem dúvida, a ressurreição per-
tence exclusivamente ao âmbito da fé religiosa. Foi
considerada tão importante para a fé dos cristãos, que já
Paulo costumava comentar: "Se Jesus não tivesse
ressuscitado, toda nossa fé seria vã."
Mas se é evidente que ninguém jamais poderá provar que a
ressurreição foi um fato histórico, podemos perfeitamente
nos perguntar por que os apóstolos, depois de se
aterrorizarem tanto diante da crucificação, em poucos dias
mudaram tanto sua atitude, passando a desafiar a todos com
tamanha euforia que os acusaram de bêbados. Porque, de
repente, começaram a fazer sermões maravilhosos, a falar
línguas que nunca haviam estudado, e não só perderam o
medo, como também acabaram aceitando o martírio na
defesa da mensagem herdada do Mestre. Foi uma
transformação de caráter místico? O que realmente
aconteceu com eles para passarem por semelhante
metamorfose? Aqui a história tem pouco a dizer porque
mergulhamos no âmbito do Cristo da fé, que foge a qualquer
análise científica e racional.
Capítulo 5
É IMPOSSÍVEL ESCREVER A VIDA DE JESUS
Sem dúvida, sobre Jesus se escreveu mais do que sobre
qualquer outro personagem histórico dos últimos vinte
séculos, e, no entanto, é de quem menos sabemos. Existem
muitíssimas biografias dele, mas a pergunta que cabe fazer é
se hoje, com os elementos de que dispomos, extraídos das
fontes internas e externas ao cristianismo, é possível
escrever uma vida de Jesus. A resposta é categórica: não. De
fato, nenhum biblicista sério, seja católico ou protestante,
ousaria hoje afirmar o contrário.
Podem-se escrever ensaios — e muitos se escreveram ao
longo do tempo — sobre o personagem que tanto
influenciou a vida do Ocidente. Podem-se escrever ficções
que tenham como pano de fundo os relatos evangélicos,
mesmo sabendo que não se trata de documentos históricos e
que podem ter sido manipulados e filtrados por motivos
teológicos. Podem-se fazer estudos de todo tipo sobre as
Sagradas
Escrituras. E há uma infinidade deles. Basta pensar que só a
biblioteca do Pontifício Instituto Bíblico de Roma, dirigido
pelos jesuítas, possui mais de um milhão de obras sobre o
tema. Outro tanto pode ser encontrado na do Instituto
Bíblico de Jerusalém. Só que ninguém conseguiu apresentar
uma biografia do personagem Jesus, que continua sendo "o
grande desconhecido".
Mas, embora seja impossível escrever uma autêntica
biografia do profeta de Nazaré, não há dúvida de que no
personagem descrito pelos evangelistas devem ter ficado
vestígios, retalhos, fragmentos da verdadeira história de
Jesus. Mas como descobri-los? Todos os autores, mesmo os
que dispõem de boas ferramentas exegéticas, fracassaram
nesse intento. Por isso podem existir mil retratos de Jesus,
até os mais contraditórios, desde os que o apresentam como
um revolucionário, quase um guerrilheiro que queria salvar
Israel do jugo dos opressores romanos, até os que o mostram
como um místico pacifista que se interessava só pelas coisas
do céu e do espírito, alheio aos problemas e aflições de seus
contemporâneos.
Hoje conhecemos melhor a sociedade em que Jesus
viveu
Durante muito tempo, o estudo da figura de Jesus se fez sem
o conhecimento da situação da sociedade em que ele viveu e
morreu. Da situação social, mas também da religiosa e
política. Tal conhecimento era imprescindível para nos
aproximarmos da realidade histórica de Jesus. Hoje esse
esforço já foi feito e sabemos, senão tudo, muito mais sobre
a Palestina do tempo de Jesus. Ao mesmo tempo,
conhecemos melhor os hábitos e rituais religiosos dos judeus
daquele tempo e das numerosas facções e seitas judaicas que
existiam na época.
Tudo isso ajudou os especialistas a estudar com maior
conhecimento de causa as possíveis implicações da pregação
e dos milagres do profeta.
Mas, apesar de tudo, ainda é impossível saber ao certo o que
Jesus representou para sua sociedade, como era visto pelos
judeus de então, o que ele pensava das pessoas que o
seguiam. Também é impossível saber o que Jesus pensava de
si mesmo e se é mesmo verdade que se julgava o Messias
anunciado pelos profetas. Não sabemos o que realmente
pretendia com sua pregação nem como era o novo Reino
que ele anunciava aos judeus. Nem sabemos com absoluta
certeza por que o crucificaram tão jovem.
A Palestina daquele tempo, situada na periferia do Império
Romano, fervilhava de correntes políticas e religiosas. Elas
eram muito diferentes, por exemplo, na Judéia, na Galiléia e
em Samaria. Sabemos que Jesus, embora tenha nascido e
vivido muitos anos na aldeia de Nazaré da Galiléia, que era o
berço de todos os movimentos nacionalistas, guerrilheiros e
revolucionários, também atuou na Judéia e até em Samaria.
Por que Jesus não desapareceu da história como os
outros profetas de seu tempo?
Sabemos que naquele tempo havia muitos profetas que,
como Jesus, podiam se apresentar como messias e que,
como o profeta de Nazaré, faziam milagres, esconjuravam
demônios e anunciavam a chegada de tempos melhores para
Israel, sempre dominada por potências estrangeiras. Jesus era
mais um deles ou era diferente? E diferente em quê? Foi
compreendido por seus apóstolos? E se eles não o
compreenderam em vida, como aparece em várias passagens
do evangelho em que o Mestre lhes recrimina a cegueira, o
que nos garante hoje que a imagem e a personalidade de
Jesus que eles transmitiram às primeiras comunidades
cristãs, depois de sua morte, eram as verdadeiras e não as
míticas por eles criadas?
Por isso, quando se fala do Jesus da fé, que seria aquele
interiorizado pelas primeiras comunidades cristãs guiadas
pelos apóstolos, ninguém duvida de que se trata de um Jesus
interessante. Era aquele que proclamavam os primeiros
cristãos, a princípio quase todos judeus, que tanta fé tinham
no Messias Jesus que estavam dispostos a dar a vida por ele.
Uma fé tão interessante que permaneceu viva por 2.000
anos, apesar de tantas vicissitudes, contradições e até
traições à seu espírito primitivo.
Mas, por mais interessante que seja o Cristo da fé dos
cristãos, a pergunta continua de pé: era esse o verdadeiro
Jesus histórico condenado a morrer na cruz? Por que os
apóstolos que o conheceram de perto se negaram a
transmitir sua vida real? Por que nos ocultaram toda sua
infância e juventude? Por que estranharam tanto o fato de o
crucificarem? Por acaso não ouviam as coisas que ele ia
dizendo aqui e ali, suas provocações tanto ao Templo como
a César? O que realmente esperavam dele?
É uma curiosidade que dificilmente os cristãos poderão
saciar, a não ser que um dia surjam documentos inéditos
mais próximos do tempo em que os evangelhos foram
escritos, de testemunhas oculares e com maiores garantias
históricas. Esse sempre foi o sonho dos historiadores e
biblicistas, enquanto a Igreja repete que para ela basta o Jesus
da fé. Basta que ele tenha de fato existido e que não seja um
mito criado por alguém.
Por ora temos de nos conformar com os documentos
transmitidos pelos evangelistas anônimos, que não
conheceram Jesus pessoalmente, escritos entre quarenta e
noventa anos depois de sua morte.
Algumas perguntas imprescindíveis sobre Jesus
Mas, ainda que seja impossível descobrir como realmente
era o personagem Jesus, podemos, sim, fazer algumas
considerações e perguntas. Em primeiro lugar, é indiscutível
— coisa que muitos cristãos tendem a esquecer — que Jesus
era judeu, com muito orgulho. Viveu em uma aldeia judia,
bebeu da cultura judaica e praticou todos os seus ritos. E,
durante toda sua pregação, dirigiu-se, com raras exceções, ao
judeus contemporâneos a ele.
Parece que foi, isso sim, um judeu inconformista e crítico,
um mago que curava todos os doentes, mais por compaixão
que por gosto de realizar prodígios, e que tinha força para
tirar os demônios dos possessos. Há quem tenha negado a
possibilidade de Jesus fazer milagres, mas seria de estranhar
que as pessoas o seguissem apenas por causa de suas
pregações, que muitas eram-lhes incompreensíveis, e não
pelas curas que realizava. Sem dúvida, foi um taumaturgo e
um exorcista.
Tudo leva a crer que, embora anunciasse a chegada de um
novo Reino, isto é, de uma situação política, social e
religiosa que transformaria muitas coisas em Israel,
principalmente para os mais desafortunados, na realidade,
ele não era o clássico líder revolucionário nacionalista, com
a única missão de levantar o povo contra a dominação
romana. E muito menos o líder de um movimento
guerrilheiro violento.
Por isso, hoje muitos pensam que, apesar de ele ter sido
condenado à morte por crucificação, pena que os romanos
reservavam aos sediciosos, na verdade tratou-se de um
grande erro judicial. Porque Jesus nunca tentou levantar a
massa contra os romanos. É famosa sua frase "dai a César o
que é de César, e a Deus o que é de Deus". Jesus não pregou
a chegada de um Reino meramente temporal. Ele queria
uma revolução mais profunda, que não excluísse o espírito.
Era uma imagem diferente de Deus a que ele, em vão,
tentou inculcar. Um Deus mais próximo dos humilhados e
dos pobres.
Claro que o Reino que ele pregava não era puramente
religioso e espiritual. De fato, os apóstolos tiveram muitas
discussões, entre si e com o Mestre, para determinar quem
ficaria com os cargos mais importantes do novo Reino. Sinal
de que eles entenderam que também se tratava de uma nova
ordem política e social. Mas também é verdade que, sempre
que surgiam essas disputas, Jesus os recriminava por se
preocuparem demais com as coisas terrenas, e costumava
dizer-lhes que, em seu Reino, os primeiros seriam os últimos
e os últimos, os primeiros.
Por isso mesmo, é bem possível que Jesus tenha sido o mais
surpreendido quando foram prendê-lo para torturá-lo e
pregá-lo na cruz como subversivo político e social. Pois,
como já dissemos, se ele tivesse sido condenado por motivos
religiosos, como blasfêmia ou afronta contra o Templo, a
pena aplicada teria sido o apedrejamento, que era a prevista
para esses casos pela jurisdição judaica.
Surpreso Jesus e surpresos os apóstolos, que acreditavam que
Jesus seria um ganhador e não um perdedor, o filho dileto de
Deus, e não o que morre queixando-se que Deus o
abandonara. Eles acreditavam que o Mestre seria o novo Rei
dos judeus, um rei vitorioso que esmagaria todos os seus
inimigos e os invasores romanos. Por isso, ao vê-lo fracassar
e ser crucificado, eles fugiram aterrorizados e foram se
esconder nas casas de amigos e parentes, temendo sofrer o
mesmo destino.
Outra das perguntas sem resposta já foi feita aqui: como se
explica que os discípulos, depois de tudo isso, por acreditar
que Jesus ressuscitara dentre os mortos, tenham mudado tão
radicalmente sua atitude, sentindo-se cheios de coragem e
até de talento, chegando a entender línguas que nunca
haviam estudado.
Um Jesus multifacetado e contraditório
Outra questão em que deveríamos pensar é como, de um
personagem histórico como Jesus, de quem sabemos tão
pouco, puderam nascer tantos outros Cristos idealizados ao
longo dos séculos, inspirando bilhões de fiéis. O fato é que
nenhum outro personagem, nem mesmo mítico, teve uma
imagem tão multifacetada, tão contraditória, tão diferente
através dos séculos. Nenhum personagem foi, ao mesmo
tempo, tão amado e tão odiado. Por isso existem tantas
imagens de Jesus quanto pessoas que o aceitaram ou
rejeitaram. Porque também quem nunca acreditou em Jesus
Cristo tem uma imagem bem concreta dele.
Bem diferente, por exemplo, do que aconteceu com Buda,
que viveu alguns séculos antes de Jesus e é outro dos
personagens históricos a influenciar meio planeta. Acerca de
Buda não há tanta discussão e controvérsia como sobre a
figura de Jesus. Sua figura é mais linear, mais homogênea, e
pode provocar indiferença, mas nunca repulsa. Também
muita simpatia e afeto, e um grande respeito por sua doutri-
na sobre a iluminação interior como caminho para a
completa serenidade da alma.
Por que o profeta Jesus, que em seu tempo não passou de
mais um dos profetas que pululavam na Palestina, tanto que
foi praticamente ignorado pelas crônicas da época, causou
tamanha revolução na história, ao passo que os outros não
deixaram nenhum rastro? Sendo que eles também tiveram
seus seguidores e discípulos, suas doutrinas próprias e até
operavam milagres como Jesus.
Um dia, uma judia me sugeriu uma explicação. Justamente,
disse ela, por se tratar de um personagem do qual não se
sabe quase nada, tanto de sua vida como de sua pessoa física,
foi-se concentrando nele a grande utopia da história, a que
se aninha no fundo de cada ser humano, tenha ele a crença
que tiver. Essa utopia que é tecida com as mais nobres
aspirações, como a da paz e do amor universais, a da
libertação de todos os oprimidos da terra, com os anseios de
justiça para todos os humilhados, com o sonho do respeito à
liberdade de consciência e aos direitos fundamentais do
homem, a utopia da solidariedade universal e da luta contra a
solidão que oprime e mata, a da busca da diversidade como
riqueza para todos e não como confrontação racista.
Pode ser, de fato, que em Jesus de Nazaré, apesar de todas as
traições perpetradas em seu nome por uma parte da Igreja
que nasceu sob sua fé, cada ser humano continue a ver um
ideal pessoal, espiritual, social e até político. Como se nele se
projetassem os melhores sonhos de um mundo mais
humano e aberto ao mistério, a esse mistério da vida e da
morte que ninguém ainda soube decifrar satisfatoriamente,
cujo sentido a humanidade continua a buscar, como o do
mais complexo e difícil dos hieróglifos.
E isso apesar de todos saberem muito bem que o nome de
Jesus serviu, ao longo da história, de coringa para justificar
tantas ambições mesquinhas e tantas traições declaradas ou
ocultas. Mas, por fim, a utopia que ele representa acaba
derrubando todas as contra-figuras que sobre ele se
constroem.
Capítulo 6
JESUS PERTENCEU À SEITA DOS FARISEUS OUÀ DOS
ESSÊNIOS DE QUMRAN?
Jesus não veio de outro planeta. Foi filho de seu tempo, um
judeu piedoso que acreditava na Lei de Moisés e amava seu
povo. Ao se apresentar publicamente como alguém que
tentava interferir no destino religioso e social de seu país,
seria natural que, pelo menos antes de consolidar-se como
um profeta com doutrina própria e com um grupo de
discípulos que seguiam seus ensinamentos e sua aventura,
pertencesse a um dos muitos grupos e seitas que pululavam
naquele tempo na Palestina ocupada pelos romanos.
Na época em que Jesus viveu, havia três seitas a que ele
poderia ter aderido: a dos zelotes ou nacionalistas, a dos
fariseus e a dos essênios. Os zelotes opunham-se, se
necessário pela força, à dominação romana de Israel e
vinham da Galiléia, a mesma região de Jesus. Eram uma
espécie de grupo guerrilheiro, e parece que um dos que
integrariam o grupo de 12 apóstolos de Jesus militara entre
os zelotes.
Não poucos analistas acreditaram durante muito tempo que
Jesus foi um zelo te empenhado na liberação de seu povo do
jugo dos romanos. Ou que, pelo menos, fora um
simpatizante desse grupo revolucionário. Essa tese foi
sustentada, sobretudo, pelos movimentos revolucionários
que viam o profeta de Nazaré menos como um líder
religioso que como o líder político de um movimento de
libertação da Palestina.
A idéia de um Jesus revolucionário e zelote foi perdendo
força, e hoje é raro encontrar alguém que a defenda. O que
não exclui que Jesus, como bom judeu, abrigasse
sentimentos nacionalistas e até demonstrasse certa simpatia
pelos zelotes. Acontece que Jesus acreditava mais na força e
na ação de Deus sobre seu povo que nos métodos violentos
que sempre censurou em seus discípulos mais belicosos, que
queriam usar a espada e que às vezes se deixavam levar por
impulsos de luta violenta. Jesus lembrava-lhes que ele viera
trazer a paz e não a guerra.
Os manuscritos de Qumran causaram pânico entre os
cristãos
A partir de 1947, quando foram descobertos os famosos
documentos dos Essênios de Qumran, uma localidade
situada na Palestina, perto do mar Morto, pensou-se que
Jesus poderia ter sido um dos líderes dessa comunidade
religiosa que punha em questão alguns elementos da religião
judaica. Pensou-se que a doutrina de Jesus transmitida pelos
evangelhos poderia ter sido a doutrina dos essênios e que,
portanto, o próprio cristianismo primitivo teria nascido em
Qumran.
A descoberta daquelas centenas de pergaminhos que foram
conservados sem manipulação por mais de 2.000 anos
aconteceu por acaso quando um pastor, à procura de uma
cabra perdida, encontrou uma gruta onde achou algumas
ânforas com manuscritos em hebraico, aramaico e até em
grego. O achado agitou a comunidade científica
internacional. As escavações estenderam-se por vários anos,
durante os quais foram aparecendo mais grutas com mais
documentos.
Os veículos de informação do mundo inteiro se apossaram
da notícia, e todos só esperavam que os especialistas
conseguissem decifrar aqueles papiros, muitos deles
deteriorados. Sobre eles, mesmo antes de conhecer seu
conteúdo, houve muitíssimas especulações. O Vaticano
mesmo entrou em pânico, pois comentava-se que Jesus
poderia ter sido o famoso Mestre de Justiça mencionado
naqueles manuscritos dos monges essênios de Qumran.
Tratava-se de uma facção radical da conhecida seita dos
essênios, nascida vários séculos antes do nascimento de
Cristo e que durou até o ano 68 d.C., quando foi destruída
pelas tropas de Tito e Vespasiano, depois da segunda
destruição do Templo de Jerusalém.
Temia-se que os documentos de Qumran pudessem abalar
toda a originalidade do cristianismo se o revelassem uma
simples continuação histórica daquela comunidade crítica
em relação ao judaísmo tradicional. Os ânimos só serenaram
quando se conheceu seu conteúdo, depois de traduzido para
as línguas mais importantes. Na verdade, eram apenas cópias
de alguns livros da Bíblia, das Regras da comunidade de
Qumran e das discussões teológicas sobre os textos sagrados
das Escrituras.
Essas descobertas revelaram que a vida e a doutrina daqueles
essênios radicais, alguns dos quais eram sacerdotes
celibatários que viviam numa espécie de mosteiro, em volta
do qual, em prédios separados, moravam os casados, pouco
tinha a ver com a vida e a doutrina que Jesus proporcionava
a seus discípulos. E descartou-se, assim, a idéia de que Jesus
pudesse ter pertencido à seita dos essênios - que, segundo os
historiadores, chegou a reunir 4.000 membros - ou que
pudesse ser um dos líderes da facção de Qumran.
Mas os manuscritos de Qumran tiveram, por sua vez, uma
importância capital para o conhecimento da intensa vida
religiosa do tempo de Jesus, da interpretação que então se
fazia de certas passagens da Bíblia e da tensão que naquele
momento dominava a discussão teológica sobre o judaísmo
tradicional de saduceus e fariseus.
Os essênios de Qumran eram um grupo radical que
questionava a eficácia dos sacrifícios de animais que se
realizavam no Templo, a própria pureza do Templo e a
legitimidade da casta sacerdotal judaica tradicional. Eram
monges elitistas que se consideravam filhos da luz,
contrapondo-se aos outros, que seriam filhos das trevas. Mas
eram todos judeus e circuncidados.
De modo geral, os essênios acreditavam na iminência do fim
do mundo, e para eles o inimigo não era, como para os
zelotes, o invasor romano, mas o mal, o pecado e Satanás.
Por outro lado, acreditavam que o Deus de Israel acabaria
vencendo a morte.
Na realidade, entre a doutrina dos essênios e a de Jesus
existem diferenças suficientes para descartar a hipótese de
que o cristianismo tenha se originado desse grupo. Mas
também existem coincidências suficientes para provar que
há certa influência essênia na pregação de Jesus, ou pelo
menos na interpretação que as primeiras comunidades
cristãs fizeram dela.
As diferenças entre os monges de Qumran e Jesus
Entre as diferenças mais notáveis, há que se destacar que
Jesus nunca foi um monge e que nunca viveu com seus
discípulos em qualquer mosteiro. Eles eram pregadores
itinerantes e em constante contato com as pessoas,
especialmente as mais humildes. Por outro lado, uma das
doutrinas dos essênios era a total rejeição dos pagãos e dos
gentios, isto é, de todos aqueles que não pertencessem à fé
judaica. Jesus, ao contrário, e mais tarde o cristianismo,
apresentaram-se de saída como uma religião universal que
não fechava as portas a ninguém, pois anunciava um Deus
pai de toda humanidade.
Os essênios obedeciam a regras internas muito rígidas,
enquanto Jesus jamais impôs regra alguma a seus discípulos,
não permitindo nem sequer que fizessem jejum ou qualquer
outro sacrifício. E, enquanto os eleitos na comunidade
essênia eram todos celibatários, os apóstolos de Jesus, exceto
um, eram todos casados. E o próprio Jesus, embora não fosse
casado — do que também não se tem absoluta certeza —,
nunca exigiu o celibato dos seus, e ele mesmo foi muito livre
em sua relação com as mulheres, inclusive com as
prostitutas, numa época fundamentalmente machista, em
que a mulher era a grande excluída da sociedade, só
contando como mãe de seus filhos.
Outra diferença é que entre os essênios vigorava a regra de
excluir da comunidade todos aqueles que tivessem algum
defeito físico. Um de seus textos diz o seguinte: "Todo idiota
ou louco, todo bobo e gago, aqueles cujos olhos não vêem, o
coxo ou claudicante, o surdo, o menor de idade, nenhum
deles entrará na comunidade." Com Jesus era o contrário:
tinham preferência todos os aleijados, os doentes, os
leprosos, os possessos, os cegos e toda a miséria que a
sociedade costumava marginalizar.
Embora devamos aqui reconhecer que a Igreja Católica, ao
regulamentar, no Direito Canônico, a admissão de
candidatos para a comunidade de sacerdotes consagrados,
estabeleceria toda uma série de normas parecidas,
impedindo os portadores de algum defeito físico, como, por
exemplo, a falta de testículos, de receberem a ordenação
sacerdotal. A propósito, conta-se um caso engraçado de um
arcebispo de uma diocese de Andaluzia que tinha muito
senso de humor. Em seu seminário havia um seminarista
que não tinha um testículo, mas que era o melhor aluno e
queria ordenar-se padre. Os professores levaram o caso para
o arcebispo, que respondeu: "Bom, eu acho que deveríamos
deixar o rapaz ser ordenado. Afinal, o que é que ele vai
poder fazer com esse testículo?" E o rapaz foi ordenado.
Hoje a Igreja veda a entrada na vida sacerdotal ou religiosa
aos portadores do vírus da Aids, um gesto considerado
discriminatório por muitos bispos e teólogos.
Entre os essênios e Jesus havia, no entanto, algumas notáveis
coincidências. Primeiro, certas semelhanças entre ele e o
chamado Mestre de Justiça da seita, ambos chamados a ser
"enviado especial de Deus", ambos críticos do judaísmo
oficial e contrários ao sacerdócio do Templo de Jerusalém,
como assinalou o teólogo Tamayo.
Mas não é só isso. Ambos os movimentos tinham um caráter
apocalíptico, acreditavam em um iminente fim do mundo e
na chegada de um Messias salvador, que livraria Israel de
todos os seus males. E, por último, poderia ter origem
essênia o hábito de Jesus e seus discípulos de terem seus
bens em comum. Sabe-se que eles mantinham recursos
comunitários, guardados em uma sacola, para as despesas da
comunidade apostólica e para dar esmolas aos pobres. As
primeiras comunidades cristãs herdaram esse costume de
Jesus e seus apóstolos, tendo seus bens em propriedade
coletiva. Mas a prática não durou muito, por causa das brigas
e da desconfiança que suscitava, e acabou caindo em desuso.
Jesus era um simpatizante da seita dos fariseus
Mas, descartada a hipótese de que Jesus e os seus fizessem
parte da comunidade dos essênios de Qumran, por mais que
algumas de suas doutrinas possam ter influenciado o
cristianismo primitivo, o que parece mais provável é que
eles integravam o grupo dos fariseus, cuja doutrina era mais
próxima àquela que Jesus pregava. Não podemos esquecer
que foi um famoso fariseu de seu tempo, José de Arimatéia,
quem cedeu seu túmulo para que Jesus fosse enterrado
depois da crucificação. E foram alguns grupos de fariseus que
foram avisar Jesus, para que ele fugisse, ao saberem que
Herodes estava à sua procura para matá-lo.
Pois bem, uma pergunta se impõe de imediato: como é
possível que Jesus fosse um fariseu se os quatro evangelhos
apresentam os seguidores dessa seita como seus grandes
inimigos e perseguidores? A explicação que hoje se dá a essa
pergunta é muito simples. Parece que, quando os evangelhos
foram escritos — o que coincide com o momento em que as
primeiras comunidades cristãs começam a se afastar de suas
raízes judaicas para entrar em contato com os pagãos e
gentios, entre eles os romanos —, os fariseus eram o grupo
dominante do judaísmo, não vendo com bons olhos a
abertura do judeu-cristianismo para uma religião
universalista, perseguiram duramente os judeus-cristãos,
impedindo-os, por exemplo, de continuar entrando nas
sinagogas, como haviam feito até então os judeus circuncisos
convertidos a Jesus.
Nessas circunstâncias, os evangelistas atribuíram aos fariseus
do tempo de Jesus — que eram muito diferentes —, coisas
que correspondiam ao que eles estavam vivendo. Assim,
todos os ataques sofridos por Jesus, partissem de quem quer
que fosse, foram atribuídos aos fariseus. Todas as disputas e
os insultos a Jesus foram atribuídos a eles, quando o normal
seria que os maiores adversários de Jesus dentro do judaísmo
fossem, não os fariseus, que eram uma seita liberal —
acreditando até na ressurreição dos corpos — mas os
saduceus, que representavam a oficialidade do Templo.
Sem dúvida, Jesus deve ter tido seus conflitos com os
fariseus, sobretudo com os mais legalistas, mais atentos à
letra que ao espírito da Lei, mas não a ponto de eles serem
os grandes inimigos do Mestre. Tanto assim que não se fala
no envolvimento de nenhum fariseu durante o processo que
levaria Jesus à condenação e à morte na cruz. Na verdade,
muitos tinham sido tão amigos dele que até o convidavam
para comer em suas casas.
A postura dos evangelistas contra os fariseus foi tão dura que
"fariseu" virou sinônimo de "hipócrita", palavra que puseram
na boca de Jesus contra os fariseus. Agora uma coisa parece
certa: se Jesus não pertencesse de algum modo ao grupo dos
fariseus, estes não teriam perdido tempo discutindo com ele;
simplesmente o teriam desprezado ou ignorado, como mais
um louco que se fazia passar pelo Messias.
Hoje a verdade é muito diferente. Poucos sabem, por
exemplo, que boa parte das afirmações atribuídas
exclusivamente a Jesus já pertenciam à doutrina liberal dos
fariseus. Por exemplo, a famosa frase de Jesus, "o sábado foi
criado para o homem e não o homem para o sábado", usada
pelos fariseus para contrapor-se aos grupos mais tradicionais,
que faziam da lei sabática algo estritamente formal.
Igualmente, a regra de ouro "Não façais aos outros o que não
quiserdes que vos façam" vinha da doutrina farisaica, ao
mesmo tempo em que os fariseus recusavam a prática do
"olho por olho, dente por dente", também questionada por
Jesus ao pregar, ao contrário, o perdão e o amor aos
inimigos.
Acontece que os fariseus, além das normas escritas da Lei,
defendiam uma tradição oral não-codificada, em que
constava, por exemplo, que a circuncisão realizada no oitavo
dia não violava o sábado. Mesmo as questões de maior
controvérsia entre Jesus e os fariseus eram tópicos
doutrinários já em discussão entre os vários grupos de
fariseus, que tinham diferentes interpretações das leis e da
tradição judaicas. Tais discussões de Jesus com os diferentes
grupos de fariseus vêm provar que, mesmo que não
pertencesse estritamente à seita, ele, no mínimo, a conhecia
bem a fundo e adotara muitas de suas doutrinas.
A doutrina pregada por Jesus não era totalmente
original
O fato é que quase nenhuma das afirmações feitas por Jesus
é totalmente original. Nem sequer a do amor aos inimigos.
Tudo isso já aparecia em algum dos textos da literatura
rabínica que recolhem as discussões dos diferentes grupos
religiosos judaicos sobre a interpretação da Lei.
Jesus sempre atacou a interpretação estreita e legalista de
certos textos da Escritura e das Leis feita pelo grupo
conservador dos saduceus, algo semelhante ao que ocorre
hoje na Igreja Católica entre conservadores e progressistas
face à interpretação do Concílio Vaticano II.
O que deve ser verdade, sim, é que Jesus defendeu com mais
força e mais amplamente uma doutrina farisaica livre de suas
interpretações mais legalistas. Jesus fugia de tudo que fosse
submissão à letra da Lei, valorizando seu espírito.
Um exemplo típico é a lei sabática. Jesus nunca foi contra o
preceito do descanso sabático, e sim contra sua degeneração
que criava caricaturas, algumas das quais ainda vigoram entre
os judeus ortodoxos mais tradicionais, que, por exemplo, não
podem acender a luz elétrica ou dar corda ao relógio, no
sábado, porque o consideram um trabalho.
Mas o espírito da lei sabática era muito positivo. Tratava-se
de proibir qualquer atividade que impedisse dedicar o dia do
Senhor à oração e à meditação. Não era permitido nem
mesmo cozinhar para não roubar tempo às atividades do
espírito. Por isso, cozinhava-se no dia anterior. Algo
parecido com o que, na verdade, deveria ser o descanso
dominical para os cristãos, copiado, sem dúvida, dos
costumes judeus, mas que acabou desvirtuado, chegando-se
ao absurdo de às vezes se trabalhar mais no domingo, ou de
se fazer de tudo menos dedicar-se ao espírito. Hoje, Jesus
sem dúvida atacaria o domingo, como fez em sua época com
o sábado judeu.
No tempo de Jesus, também os saduceus levaram o descanso
sabático a tais extremos de rigidez que, se um burro caísse
num buraco, o camponês tinha que deixá-lo morrer, mesmo
que ele fosse sua única riqueza, sendo-lhe proibido resgatá-
lo, já que isso significaria trabalhar. Ou, se alguém tivesse
fome no sábado, como aconteceu com Jesus e seus
discípulos, não poderia colher espigas do campo para saciá-
la. Por isso, já existiam na época cerca de quarenta exceções
à regra, para evitar alguns dos absurdos defendidos pelos
saduceus.
Jesus, portanto, não foi um judeu iconoclasta que atacou a
religião de seus pais e de seu povo. Ele criticou, sim, os
exageros dos puritanos daquele tempo, que punham —
como fazem hoje não poucos cristãos — os preceitos
jurídicos das leis acima do espírito que elas representavam,
sujeitando a elas a consciência das pessoas.
Capítulo 7
ERA JESUS UM POETA?
Há uma faceta da personalidade de Jesus de Nazaré que os
evangelhos nunca tocam abertamente, mas que é evidente
em todas as suas páginas: sua veia poética. Há uma visão
poética da vida e das coisas, e até dos sentimentos, que se
reflete nas parábolas, alegorias, comparações e, em geral, em
sua fala e em sua visão geral dos fatos.
Há nesse judeu da Galiléia muita ternura, a par de uma
grande força de caráter. Se o poeta é quem sabe expressar
com palavras o sentido oculto das coisas e os sentimentos
mais íntimos do ser humano, Jesus foi um grande poeta. Eu
diria até que foi mais poeta do que místico, embora também
fosse um místico, no sentido de quem sabe ligar-se
facilmente às fontes divinas, às experiências religiosas mais
profundas.
A poesia está presente em toda a literatura judaica e rabínica.
A Bíblia, em sua maior parte, é escrita em verso. Todos os
grandes profetas do Antigo Testamento foram gigantes na
arte da poesia. Uma poesia por vezes suave, como a do
Cântico dos cânticos, ou profunda, de dilacerante denúncia,
como nos profetas Isaías e Jeremias. Ou de nostalgia e
esperança, como nos Salmos.
Toda a história de Israel, seus dramas, suas contradições,
paixões, profecias e até suas perseguições são como um
grande poema escrito nas pedras de suas lamentações. São as
queixas desesperadas de um povo que suplica ajuda a um
Deus em quem confia e por quem se vê abandonado. Há
quem sustente que os lamentos profundos do mais puro
flamenco são vestígios musicais da angústia dos judeus
dispersos e humilhados.
Jesus era profundamente judeu. Tinha alma judia. Conhecia
a dolorosa história de seu povo. Foi um poeta intuitivo que
nem os discípulos mais próximos conseguiram entender a
fundo. Fugia de seu alcance. Jesus, com o clássico humor
judeu, divertia-se dizendo que lhes falava por meio de
parábolas "para que não o entendessem".
A sensibilidade do tato
Jesus, poeta, tinha uma visão multifacetada das coisas. Não
tinha a inteligência do intelectual, mas a sabedoria do
camponês. Nunca escreveu nada em sua vida. Ou pelo
menos nada do que escreveu chegou a nós. Mas no que dele
ficou nas entrelinhas dos evangelhos se deduz que poderia
ter sido um grande poeta ou artista plástico. Porque suas falas
e parábolas estão cheias de imagens e metáforas, dois
elementos indispensáveis para todo bom poeta.
Tinha uma grande capacidade de criar imagens e uma sutil
sensibilidade que lhe permitia distinguir, só pelo tato, os
sentimentos dos que dele se aproximavam. A esse respeito,
há um caso muito curioso, narrado pelo evangelista Lucas:
"E aconteceu que tendo voltado Jesus, o receberam as
gentes: pois todos o estavam esperando. E eis que veio um
homem chamado Jairo, que era príncipe da sinagoga, e
lançou-se aos pés de Jesus, pedindo-lhe que viesse a sua
casa. Porque tinha uma filha única que teria 12 anos, e
estava morrendo. E sucedeu que enquanto Jesus ia
caminhando, molestavam-no os apertões do povo. E uma
mulher que padecia fluxo de sangue havia 12 anos, e tinha
dispendido com os médicos todo o seu cabedal, sem poder
de nenhum deles ser curada: chegou por detrás, e tocou a
orla do vestido de Jesus: e no mesmo instante lhe parou o
fluxo de sangue. Disse então Jesus: 'Quem é que me tocou?'
E respondendo todos que nenhum fora, disse Pedro e os que
com ele estavam: 'Mestre, as gentes te apertam e te
oprimem, e ainda perguntas: Quem é que me tocou?'
'Replicou todavia Jesus: 'Alguém me tocou: porque eu
conheci que de mim saía uma virtude.' Quando a mulher se
viu assim descoberta, veio toda trêmula e se prostrou aos pés
de Jesus."
Esse episódio parece remeter a uma antiga tradição, dado o
espanto com que os próprios apóstolos devem tê-lo contado
aos primeiros cristãos. Jesus, com sua sutil sensibilidade,
percebeu que o toque da mulher que roçara seu manto não
era mais um aperto das pessoas que se aproximavam com
entusiasmo. Fora um contato especial, que sua sensibilidade
logo captou. Aqui, o que menos importa é o milagre.
Realmente sugestiva é a capacidade do profeta de perceber
que alguém se aproximou dele com sentimentos diferentes
dos demais.
Não foi o poeta da cruz, mas da vida
Conta-se que Jesus não suportava ver alguém sofrendo:
doentes, cegos, paralíticos, leprosos, endemoninhados etc.,
e que por isso "curava a todos". Jesus não pertencia,
portanto, à futura teologia da cruz que alguns de seus
sucessores elaborariam, por mais que de seus ditos e feitos o
tenham levado infalivelmente ao sacrifício. Não era dos que
pensavam ser o sofrimento humano uma coisa maravilhosa,
que por si só salva e redime.
Ele era radical, severo, despojado, não tinha casa para dormir
e pregava o desapego dos bens materiais em prol da
liberdade de espírito. Mas não era um vitimista. Era, sim, um
poeta da vida e das coisas. Acusavam-no de não impor jejum
nem outros sacrifícios corporais a seus discípulos, como
fazia João Batista. Ele gostava de aproveitar as coisas simples
da vida, nunca buscando a dor. Por isso respondia que seus
seguidores logo teriam tempo de sofrer, pois a vida não é
nenhuma festa. Como quem diz que não é necessário
procurar a dor, já que ela se encarrega de nos encontrar.
Por isso era tão pouco rígido com uma das mais sagradas
preocupações dos judeus: o descanso sabático, o dia da
semana em que o judeu não pode fazer nada que represente
esforço, nem dar corda ao relógio. Um sábado em que os
apóstolos estavam com fome, Jesus permitiu- lhes colher
espigas no campo para com elas se alimentarem. Os judeus
ortodoxos ficaram horrorizados. E a quem lhe lembrava que
no sábado não se podia fazer nada, ele respondia que Deus
criara o sábado para servir ao homem e não o homem para
servir ao sábado.
Também não se preocupava em aparecer como asceta e
homem de sacrifícios, tanto que chegaram a acusá-lo de
beberrão e comilão porque não se recusava a compartilhar
uma boa mesa com os amigos, alguns dos quais eram fariseus
ricos. Ele apreciava os prazeres simples da vida.
Todas as suas comparações referiam-se aos fenômenos da
natureza, da qual, como bom poeta, era um grande
observador e amante. Assim, aconselhava as pessoas que se
preocupavam demais com o futuro, com ter o que comer ou
o que vestir, a olhar os lírios do campo que não tecem e
estão sempre vestidos de luz, e os pássaros do céu que não
semeiam nem plantam, mas que sempre têm o que comer.
E possível que o famoso milagre das Bodas de Caná, em que,
segundo o evangelista João, Jesus transformou a água em
vinho para evitar a vergonha aos noivos que tinham ficado
sem bebida, não seja histórico e tenha sido contado para
provar seus poderes messiânicos. Mas o simples fato de o
episódio ter sido introduzido pelo evangelista indica que este
sabia que não causaria estranhamento a nenhum dos
primeiros cristãos. Eles já estariam acostumados à imagem,
transmitida pelos apóstolos, de um Jesus que comparecia
sem problemas ao casamento de seus parentes e amigos, o
que, ainda hoje, é entre os judeus uma autêntica festa, uma
explosão de felicidade em que todos devem estar felizes e
em que não podem faltar o canto, a dança e a saudável
alegria que o bom vinho produz.
Do mesmo modo, seja ou não histórica a famosa instituição
da Eucaristia, atribuída por alguns a uma criação posterior do
apóstolo Paulo, o certo é que não era nada estranho para os
discípulos o fato de o rito mais importante do cristianismo,
celebrado faz 2.000 anos em memória do Mestre, ser uma
refeição ritual em que os elementos principais que
simbolizam o corpo e o sangue de Cristo são o pão e o
vinho, o que tem pouco de mítico e muito de poesia agrária.
Sua poesia era rural e não urbana
Acontece que a cultura de Jesus era rural, não urbana, por
mais que ele tenha estado muitas vezes em Jerusalém. Como
passou a infância e possivelmente a juventude em Nazaré,
uma aldeia de camponeses da Galiléia, conhecia
perfeitamente os ciclos naturais e suas estações. Vira de
perto o nascimento dos animais e a colheita dos frutos da
terra. Por isso, conhecia a diferença entre o joio e o trigo.
Por isso, em suas parábolas, ele fala dos vinhadeiros, dos
pastores e suas ovelhas e do bezerro assado para comemorar
a volta do filho pródigo. E ele sabia muito bem que um pôr-
do-sol avermelhado anunciava bom tempo para os
lavradores.
Conhecia as tempestades sobre o lago de Tiberíades, os
apetrechos da pesca e da lavoura. Entendia de sementes,
como a da mostarda, que dizia ser das menores que existem.
E entendia da levedura necessária para fazer crescer o pão,
que vira mil vezes sua mãe amassar e que provavelmente ele
mesmo sabia fazer.
Os gestos de ternura do profeta judeu para com os doentes,
as prostitutas, as crianças, os mais marginalizados pela
sociedade eram inumeráveis. Sua facilidade para se
aproximar de todas as categorias mais desprezadas pelas
elites de seu tempo é como um grande poema que se lê
facilmente em seus olhos. A parábola da dracma perdida, a
da viúva pobre do Templo, sua defesa da prostituta que
quebrou um rico frasco de essências para perfumar seus pés
de profeta andarilho, bem como a ira com que expulsou os
mercadores do Templo, que estavam transformando a casa
de Deus num covil de ladrões, são como poemas escritos na
pele de sua breve vida.
E as bem-aventuranças, esse desafio a todas as convenções
da história em que se profetiza que serão felizes os que
choram, assim como os que padecem fome e perseguição, os
que amam mais a paz que a guerra, os humilhados e não os
poderosos, porque no fim serão eles os consolados, os
saciados e os exaltados, o que seriam senão poesia? E não
seria essa poesia o oposto do grande poema de todos os
tempos, que canta a inveja e a admiração pelos ricos, pelos
que se fartam, pelos violentos, pelos fortes e pelos que riem
e se apoderam do mundo à força? E o pai-nosso? Não é o
grande poema que revoluciona a imagem tradicional do
Deus vingador e juiz implacável, pondo em seu lugar um
Deus pai que, a quem se ajoelha para pedir-lhe pão e perdão,
não dá pedra nem escorpião, e sim compaixão e esperança?
E também pão, pão de verdade, assado no forno, para que
ninguém passe fome sobre a terra.
Jesus escreveu um poema para salvar a vida de uma
mulher adúltera
Sempre se disse que Jesus nunca escreveu nada de próprio
punho e letra. Mas isso não é verdade. Ele o fez em pelo
menos uma ocasião.
Escreveu umas palavras misteriosas sobre o pó das pedras da
entrada do Templo. A cena, narrada no evangelho de João e
que um dia fascinou o cineasta e poeta italiano Pier Paolo
Pasolini, ocorreu quando um grupo de doutores da Lei
levaram a ele uma mulher flagrada em adultério. Era a hora
do amanhecer. Para provocar o profeta, que tinha fama de
ser demasiado compreensivo com os pecadores, sobretudo
com as mulheres e prostitutas, de quem chegou a dizer que
teriam melhor lugar no céu que os doutores da Lei,
disseram-lhe: "Mestre, esta mulher foi agora mesmo
apanhada em adultério. E Moisés na lei mandou-nos
apedrejar a estas tais. Que dizes tu logo?" O evangelista
comenta: "Diziam pois isto os judeus tentando-o, para o
poderem acusar." Queriam preparar-lhe uma armadilha.
Jesus leva um tempo para responder à provocação. Não
permitiria que aquela mulher adúltera, atirada a seus pés
como um saco de pecados, fosse condenada à horrível pena
de morte por apedrejamento público. O que ele faz?
Agacha-se e, com o indicador da mão direita, põe-se a
rabiscar umas palavras na terra. Os homens, que estavam em
pé e não podiam ver o que ele estava escrevendo,
impacientam-se e repetem sua pergunta. Então Jesus se
levanta e, olhando-os nos olhos, diz: "O que de vós outros
está sem pecado, seja o primeiro que apedreje." Ao escutar
essas palavras, diz o evangelho, "foram saindo um a um,
sendo os mais velhos os primeiros". Jesus então tornou a
agachar-se e continuou escrevendo no chão. Depois tornou
a se levantar e, embora o evangelho não o conte, pediu à
mulher que também se levantasse. Ao ver que todos os
acusadores haviam partido, perguntou-lhe: "Mulher, onde
estão os que te acusavam? Ninguém te condenou?" E ela
respondeu: "Ninguém, Senhor." Então Jesus lhe disse: "Nem
eu tampouco te condenarei."
O que Jesus escreveu no chão do templo era dirigido aos
acusadores da adúltera ou à mulher amedrontada jogada à
seus pés? Ninguém o saberá. Ou melhor, saberá, sim. A
única pessoa que pôde ler aquelas palavras logo apagadas
pelos pés dos fiéis que começavam a chegar ao templo foi a
mulher com o rosto junto ao chão. E aqueles versos, os
únicos escritos pelo profeta de Nazaré, morreram para
sempre docemente sepultados no coração da mulher. Não só
o que Jesus escreveu na poeira do templo judeu, mas toda a
cena da mulher adúltera é um poema de compaixão e
condenação da hipocrisia.
Assim, a primeira vez que Jesus, o profeta maldito, escreveu
algo na vida (seria um poema?) foi para salvar a vida de uma
mulher flagrada em adultério, que sofreria a terrível morte
por apedrejamento. E isso num contexto histórico em que a
mulher era a grande desprezada da sociedade, a quem nem
sequer era permitido aprender as Escrituras.
O último e comovente verso dito na cruz
Jesus morreu dando um grande grito enquanto agonizava
pregado em um lenho como um bandido qualquer,
enfrentando a Deus, seu Pai, por tê-lo abandonado à sua
sorte. Aquele grito de "Deus, por que me abandonaste?"
parece ser uma das passagens mais verdadeiras da narração
da paixão, pois devia ser inconcebível para os cristãos primi-
tivos ver Jesus, que consideravam o Filho de Deus,
desesperado e abandonado na hora suprema e dolorosa de
sua morte.
E, no entanto, aquele grito foi o verso mais realista e
dramático do poeta judeu que acabou atraindo para sua fé
bilhões de homens e mulheres ao longo da história. Porque
é o grito da humanidade aflita face ao desespero de não
compreender o enigma da vida; o grito de todos os seus
compatriotas, os judeus, nos infames campos de extermínio;
o grito de todos que se sentem injustamente humilhados
pelo poder ou pela avareza dos dominadores. O grito de
todos os torturados pelas ditaduras; o das mães que choram
seus filhos inutilmente sacrificados nas guerras; o grito que
sai de todos os manicômios do mundo face ao mistério
desesperador da mente torturada; o grito de dor de todos
que morrem sem saber por quê. O grito de medo de cada
recém-nascido diante do mistério da nova vida.
Aquele grito de terror do profeta judeu, abandonado por seu
Deus, é o verso desesperado que o ser humano tem de
pronunciar alguma vez ao longo de sua vida. Talvez aquele
grito de Jesus tenha servido, se não para dar sentido, ao
menos para aliviar todos os outros gritos de pavor da frágil
humanidade que continua a se perguntar, sem obter
resposta, de que serve tanta dor inútil espalhada pelo
mundo. E por que os inocentes são sempre os mais
perseguidos e sacrificados pelo poder.
Capítulo 8
QUEM MATOU JESUS?
OS JUDEUS OU OS ROMANOS?
Foram os judeus ou os romanos que mataram Jesus? Essa é
uma pergunta que a Igreja Católica se faz com interesse e
preocupação crescentes, ao descobrir, com a nova linha de
diálogo ecumênico entre cristãos e judeus, que a resposta a
essa pergunta resultou em séculos de desentendimento,
rancor, ódio e perseguição entre Roma e Jerusalém.
É evidente que desde muito cedo, quase desde o século II
d.C., tudo contribuiu para que se jogasse exclusivamente nas
costas dos judeus do tempo de Jesus o peso do processo, da
tortura e da condenação à morte na cruz do grande inocente
da história. A Igreja necessitou de muitos séculos —
praticamente até a chegada de João XXIII ao trono de Pedro,
em meados do século XX — para apagar de seus livros
litúrgicos da Semana Santa a horrível frase que os cristãos
rezavam toda Sexta-feira Santa: "pelos pérfidos judeus".
Como escreveu recentemente o escritor judeu Amos Oz, "a
Igreja Católica, durante milênios, dedicou-se a tachar os
judeus de assassinos de Deus". O escritor conta que, sempre
que perguntava à suas tias algo sobre Jesus, elas respondiam
que era melhor "falar de coisas mais agradáveis" e que o
assunto provocava as mesmas reações de nervosismo que as
conversas sobre sexo. E conta também uma conversa que
teve em um trem com umas freirinhas católicas que, quando
souberem que o escritor era judeu, perguntaram: "Mas como
vocês puderam fazer o que fizeram com Jesus, que era tão
bom?" Subentendia-se que, se Jesus era bom, os judeus eram
maus, por terem matado um homem bom como ele.
Seria injusto dizer que essa visão negativa dos judeus como
assassinos de Jesus, que a Igreja disseminou ao longo dos
séculos, foi o único motivo que levou à perseguição em
massa dos hebreus, que terminou no inferno dos fornos
crematórios e no novo gólgota dos campos de concentração.
Mas, sem dúvida, teve algo a ver, pelos menos
subliminarmente, com a passividade que uma parte da Igreja
e dos cristãos demonstraram diante desse horror nazista.
Porque o nazismo e a perseguição aos judeus ocorreu na
sociedade e na cultura fundamentalmente cristã, e não em
outros lugares da Terra dominados por outras crenças e
culturas religiosas.
Jesus foi condenado à morte pelos romanos
Hoje, no entanto, além de haver mais consciência de que os
judeus de hoje não têm nada a ver com aquilo que os
hebreus contemporâneos de Jesus eventualmente fizeram
ou deixaram de fazer — assim como os portugueses e
espanhóis atuais não têm culpa dos horrores cometidos pelos
conquistadores da América contra os nativos daquele
continente —, todos os estudos mais sérios estão chegando à
conclusão de que Jesus foi condenado à morte e executado
não pelos judeus, mas pelos romanos que naquele tempo
ocupavam a Palestina.
A essa conclusão chegou Paul Winter, sem dúvida o maior
especialista mundial na matéria, em sua obra magistral, Sobre
o processo de Jesus, depois de ter analisado com extrema
meticulosidade tudo o que se refere ao processo sofrido por
Jesus, aos motivos pelos quais foi conduzido à cruz e aos
autores da sentença de morte, distinguindo o que pode
haver de literário e de histórico nos relatos evangélicos e
sondando na história não-cristã do tempo de Jesus.
De fontes históricas não-judias sabe-se, por exemplo, que a
crucificação, a pena de morte a que Jesus foi condenado, não
estava entre as várias formas que os judeus tinham de infligir
a pena capital. Os judeus matavam por apedrejamento, pelo
fogo e por decapitação. Só mais tarde — de fato, isso não
aparece na Bíblia — foi introduzida uma quarta forma de
execução: o estrangulamento. Especulou-se muito sobre essa
forma de execução tardia. Parece que foi introduzida quando
alguns grupos judeus começaram a acreditar na doutrina da
ressurreição dos mortos com os mesmos corpos que tiveram
em vida. Para tanto, parecia-lhes que o executado por
estrangulamento chegaria à ressurreição com o corpo menos
mutilado do que, por exemplo, os mortos por
apedrejamento, os queimados ou decapitados.
Portanto, se Jesus tivesse sido condenado à morte pelos
judeus — afirma Winter e tantos outros especialistas —, não
teria sido condenado à pena de crucificação, que era o
suplício que os romanos daquele tempo reservavam aos
rebeldes políticos, mas a um dos métodos de execução
adotados pelas autoridades judaicas.
É verdade que, para evitar esse argumento, os que defendem
que Jesus foi condenado à morte pelos judeus apelam para
um texto do historiador Flávio Josefo, segundo o qual parece
que, na época de Antíoco Epifanes os judeus eram
condenados à crucificação por motivos religiosos. Mas,
como bem analisou Winter, o que ocorria é que os judeus
conheciam a prática da crucificação adotada pelos romanos
às vezes em massa, mas que eles nunca a usaram como
instrumento de condenação à morte.
Outros confundiram a crucificação com a prática judaica de
pendurar o corpo do executado, já morto, em um poste ou
uma árvore para o escarmento público, o que era uma coisa
muito diferente. De fato, as fontes rabínicas fazem uma
distinção entre a pena de crucificação (a suspensão de uma
pessoa viva, de que fala Flávio Josefo) e a exposição do corpo
dos executados por apedrejamento. Da primeira, as fontes
rabínicas indicam que era o tipo de morte "em
conformidade com a prática penal romana". Justamente o
autor do comentário de Nahum, do tempo de Antíoco IV,
menciona com repugnância a prática dos romanos de
"suspender homens vivos", prática da qual diz que "nunca se
fizera antes em Israel".
Por que os evangelhos não contam a verdade
histórica sobre a Paixão?
E curioso que não se possa deduzir das narrações dos quatro
evangelistas uma verdade clara e certa sobre quem matou
Jesus e por que fez isso, já que, sem sombra de dúvida, o
ponto mais crítico da vida de Cristo foi sua prisão, o
processo a que foi submetido depois de sua captura, as
torturas que sofreu, a condenação à morte na cruz e a
execução da sentença.
Esses episódios são prolixamente expostos nos quatro
evangelhos, ao passo que em alguns nada se diz, por
exemplo, do nascimento nem da infância de Jesus. Há quem
tenha visto na narração da paixão e morte de Jesus o
verdadeiro objetivo dos evangelistas, sendo tudo o mais uma
espécie de simples introdução a esses episódios. Por isso eles
não teriam se preocupado em narrar muitos outros
acontecimentos de sua vida historicamente muito
importantes, enquanto que, de sua morte, contam tudo nos
mínimos detalhes.
Tanta informação sobre a paixão e a morte de Jesus não é de
estranhar, pois é fácil compreender que, para seus primeiros
seguidores, o desenlace inesperado e cruento da vida do
profeta que lhes prometera implantar na terra um reino de
prosperidade e de liberdade deve ter sido um drama enorme.
De repente tudo desabava como um castelo de cartas, vendo
seu Mestre morrer vilmente pregado numa cruz como um
bandido sem que Deus movesse um dedo para impedi-lo. E
tiveram medo. E fugiram para se esconder, temendo acabar
sacrificados eles também.
Portanto, tudo levaria a crer que, pelo menos dos episódios
da paixão e morte testemunhados pelos apóstolos, teria
ficado uma memória histórica viva e que seus relatos nos
teriam transmitido os fatos com absoluta objetividade.
Nada disso. Os quatro relatos sobre a prisão, o julgamento e a
condenação de Jesus à morte tampouco são documentos
históricos, de acordo com os cânones modernos da
historicidade. Os quatro evangelistas que os narram estavam
mais preocupados em fazer coincidir as antigas profecias da
Bíblia com o que aconteceu na paixão de Jesus do que em
contar como os fatos realmente ocorreram. Assim como se
preocuparam mais em filtrar os fatos para acomodá-los às
necessidades das primeiras comunidades do que com sua
veracidade histórica. E por que isso?
Quando os evangelhos foram escritos — quarenta anos após
a morte de Jesus e alguns até sessenta ou setenta anos mais
tarde — por autores que não tinham conhecido Jesus e,
portanto, não foram testemunhas oculares dos fatos, já havia
muita discussão entre as primeiras comunidades sobre os
novos rumos do cristianismo primitivo, que já se abrira aos
gentios e era perseguido pelos romanos, ao mesmo tempo
em que ia se afastando cada vez mais de suas raízes judaicas.
Tudo isso esteve muito presente na hora de escrever os
evangelhos, e em particular os episódios da paixão e morte
de Jesus. Os relatos deixam transparecer a discussão sobre
quais foram os verdadeiros responsáveis por aquela morte, se
os judeus — que tinham voltado a perseguir os cristãos
primitivos que estavam levando os ensinamentos e a fé das
primeiras comunidades, formadas exclusivamente por
judeus, para outros povos fora de Israel — ou os romanos —
que estavam perseguindo a nova seita de origem judaica, ao
mesmo tempo em que começavam a se interessar por ela.
Só assim se explica que alguns episódios da paixão possam
ter, nos evangelhos, até sete versões diferentes. Acontece
que, como diz Winter, "os evangelistas escreveram suas
narrações com uma finalidade religiosa, não histórica. Não
pretendiam deixar um documento de pesquisa histórica, e
sim transmitir uma mensagem religiosa". Martin Dibelius é
da mesma opinião, lembrando que não houve testemunhas
oculares do interrogatório a que Jesus foi submetido durante
o processo que o condenou à morte.
Nem sequer o evangelho de Marcos, considerado o mais
antigo e que supostamente seria o mais fiel aos fatos, por
estar menos contaminado pelas discussões entre judeus e
novos cristãos, pode ser considerado um documento
histórico. Segundo C. Kingsley, "a tradição que chega até o
evangelista já era uma tradição interpretada" e, portanto,
filtrada pela fé.
As autoridades judaicas podiam condenar à morte na
época de Jesus ou essa era uma prerrogativa exclusiva
dos romanos?
Mas seria impossível negar que, apesar das contradições e
divergências evidentes que apresentam ao narrar um mesmo
fato, os quatro evangelhos, observados em seu conjunto,
contêm alguns episódios históricos sobre o julgamento e a
condenação de Jesus à morte. O difícil, neste caso, como no
resto dos evangelhos, é distinguir aquilo que pertence à
história do que está escrito em função da interpretação
religiosa dos fatos.
Como exemplo, basta lembrar que os três evangelistas
sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) afirmam que o processo
e a condenação de Jesus só se deram depois de um ano de
pregação pública, durante o qual o profeta esteve em
Jerusalém somente uma vez, enquanto o quarto evangelho,
o de João, diz que Jesus pregou por três anos e que ia todos
os anos a Jerusalém para as festividades da Páscoa. Quem diz
a verdade?
Segundo alguns relatos evangélicos, entre a prisão de Jesus e
sua crucificação passaram-se não mais que 24 horas, ao passo
que, segundo a narração de outros, teriam transcorrido
vários dias. Há inclusive quem afirme que todo o processo
pode ter durado meses e até um ano inteiro, durante o qual
Jesus teria sido interrogado várias vezes e por diversas
autoridades, tanto judias como romanas.
O fato é que algumas das narrações dos evangelistas
contradizem as leis e costumes judiciais daquele tempo. Mas,
infelizmente, as fontes não-cristãs da época também não são
muito claras quanto ao funcionamento da justiça no tempo
de Jesus, quando a Palestina estava sob ocupação romana.
Uma questão fundamental, por exemplo, é saber se os
tribunais judeus tinham então o poder de condenar à morte
por delitos religiosos, como a blasfêmia. Hoje parece
impossível responder com absoluta certeza a essa questão
crucial para saber quem decidiu condenar Jesus à morte.
Pelo pouco que sabemos, parece que os tribunais judeus da
época de Jesus tinham certa autonomia em questões legais,
com a exceção dos crimes políticos, reservados às
autoridades romanas. Havia um compromisso por parte de
Roma de não se imiscuir nem interferir nos assuntos
religiosos dos judeus sob ocupação romana.
Segundo o evangelho de Marcos, Jesus foi condenado pelo
Sinédrio, o superior tribunal judeu, pelo delito de blasfêmia.
O Sinédrio teria decretado que Jesus deveria morrer. Pois
bem, mesmo no caso, incerto, de que o Sinédrio tivesse
então o poder de condenar à morte, é sabido que o delito de
blasfêmia era castigado com a pena de apedrejamento e
nunca de crucificação, reservada, como já foi dito, aos casos
de rebeldia política e normalmente aplicada pelos romanos.
Mas se o Sinédrio condenou Jesus por blasfêmia,
considerando-o digno da pena de morte, e tinha poder para
condená-lo, por que o enviou a Pilatos, a autoridade romana
que não julgava os casos de rebeldia religiosa? Tampouco se
entende porquê, então, Jesus foi condenado à morte por
Pilatos, se já havia sido condenado pelo Sinédrio.
Sem dúvida, a narração de Marcos tem toda a aparência de
não ser histórica. E a pergunta é: qual a intenção de Marcos
ao criar essa história? O mais provável é que Marcos, que
escreveu seu evangelho em Roma, onde os cristãos eram
perseguidos, quisesse evitar jogar sobre as autoridades
romanas o peso da condenação à morte de Jesus, resolvendo
que o tribunal judeu já o havia condenado. Para tanto,
Marcos inventa uma noturna sessão de interrogatório na
casa do sumo sacerdote, quando se sabe historicamente que
o Sinédrio nunca se reunia na casa do sumo sacerdote. De
fato, os evangelistas Lucas e João nunca falam de um
julgamento de Jesus perante o Sinédrio, nem de sua con-
denação à morte por esse tribunal.
É verdade que Jesus foi cruelmente torturado antes de
morrer?
É verdade que Jesus foi cruelmente torturado antes e depois
da condenação à morte, como afirmam alguns evangelistas?
Também sobre esse episodio existem sérias dúvidas. Sabe-se
que não eram usuais essas torturas antes da condenação à
morte. O que havia naquele tempo entre os soldados
romanos era o costume, segundo rituais antigos, de se
zombar do réu depois de condenado à morte, vestindo-o,
por exemplo, de palhaço ou de rei. A narração sobre suas
torturas poderia ser fruto, pelo menos em parte, como em
outros episódios da paixão, do desejo de fazer coincidir as
profecias bíblicas, que diziam que o futuro Messias seria
escarnecido e torturado, com a história de Jesus. Mas
também não temos certeza quanto a esse fato.
Tampouco existe unanimidade quanto a quem executou a
detenção de Jesus no Horto das Oliveiras. Segundo os
sinóticos, Jesus foi preso por uma multidão armada "por
ordem dos príncipes dos sacerdotes, dos magistrados do
Templo, e dos anciãos". O evangelista João, ao contrário,
escreve que Jesus foi preso por uma coorte de soldados
romanos. Pois bem, parece estranho que o evangelista João,
justo quem manifesta em sua narração sentimentos mais
anti-judaicos e que escreveu já conhecendo os outros
evangelhos, tenha inventado, corrigindo- os, que Jesus foi
preso por soldados romanos.
O mais provável é que Jesus tenha sido preso por soldados
romanos depois de uma denúncia dos guardas do Templo,
que mandaram conduzido ao Sinédrio, já que a acusação que
pesava sobre ele era a de ter atentado contra a sacralidade do
Templo de Jerusalém, isto é, uma questão religiosa e não
política. Por que então acabou sendo acusado de um delito
político e não religioso?
Não sabemos por que foi crucificado
Ninguém sabe ao certo os motivos pelos quais Jesus foi
crucificado. Partindo do fato de que os romanos reservavam
a crucificação aos crimes políticos, tudo leva a crer que Jesus
foi acusado de rebeldia, e por isso condenado. De fato, uma
das coisas que parecem ser mais certas em todos os relatos
da paixão é a inscrição que Pilatos mandou pôr na cruz,
segundo o costume da época, para que todos soubessem por
que o réu estava sendo crucificado.
Na cruz de Jesus escreveram "Rei dos judeus". Isto é, que
fora condenado àquela morte tão cruel e humilhante por ter
afirmado que queria ser o Rei dos judeus, ameaçando assim o
poder de Roma sobre a Judéia. Como afirmou Pinero, "a
morte de Jesus nas mãos dos romanos é um fato histórico,
testemunhado até pelo historiador romano Tácito. Mas é
bem provável que os motivos de sua morte não fossem de
caráter religioso, e sim político. Jesus morreu condenado
pelos romanos como um perigoso revolucionário político".
Acontece que, como assinala o biblicista espanhol, para o
governante de uma nação militarmente ocupada como a
Palestina, era impensável não reprimir um movimento
messiânico (basta lembrar a entrada triunfal de Jesus em
Jerusalém, aclamado pela multidão) que poderia causar um
levante contra Roma, como acontecera em outras ocasiões.
A pregação de Jesus sobre um novo Reino para os judeus
podia ser explosiva.
Vejo que se trata de uma das questões mais delicadas de toda
a história de Jesus: saber quem mandou crucificá-lo, e por
quê. Sem dúvida, jamais saberemos toda a verdade dos fatos.
Pessoalmente, apesar de ter dito no início deste livro que
minha intenção era mais fazer perguntas que dar respostas,
penso o seguinte a esse respeito: Jesus era um profeta radical
e inteligente que estava começando a fazer muito barulho.
Mostrava conhecer muito bem as Escrituras e, por isso,
podia discutir com os doutores da Lei, com os saduceus e
com os fariseus. Não era, portanto, um profetinha como
tantos outros que vez por outra surgiam e desapareciam tão
rapidamente como haviam chegado.
Jesus era diferente. Sem nunca renegar sua condição de
judeu cioso da Lei, foi imensamente crítico em relação à
religião fossilizada de seu tempo. Nunca se proclamou
Messias nem Deus, mas os que o seguiam, diante dos
prodígios que realizava, sentiam-no como tal ou desejavam
que o fosse. E, por mais que ele às vezes protestasse, dizen-
do que não era ele, mas Deus quem operava os milagres, as
pessoas e até os próprios apóstolos acreditaram literalmente
que o novo Reino que ele anunciava era também um reino
temporal e concreto que devolveria a Israel a liberdade
perdida. E confiaram nele.
Jesus era um profeta mais religioso do que político. O que
ele pregava era a purificação da religião judaica, na qual fora
criado desde criança. Acreditava nas profecias bíblicas, que
anunciavam uma nova etapa espiritual em que todos os
homens seriam mais irmãos do que lobos, em que Deus seria
mais pai do que juiz dos homens e em que cada ser humano
se conscientizaria de sua própria dignidade como filho de
Deus, fosse ele leproso, prostituta ou doutor da Lei.
Para isso, seus contemporâneos deviam se conscientizar da
necessidade de acabar com a hipocrisia de uma religião que
se degradara e que seus dirigentes usavam em benefício
próprio. Daí sua condenação à rigidez da lei sabática e suas
diatribes contra o comércio que a Igreja da época realizava
no Templo, fazendo dele um mercado mais do que uma casa
de oração.
Pode ser que aqueles que se sentiram prejudicados em seus
interesses com a condenação de Jesus aos negócios feitos no
Templo - que Jesus chegou a tachar de "covil de ladrões" —
tenham denunciado o profeta às autoridades religiosas. A
estas, mais do que os ataques de Jesus aos abusos e excessos
da religião legalista, devia preocupar o barulho que Jesus
estava fazendo sem que se soubesse ao certo se sua pregação
tinha um caráter estritamente religioso ou também político e
social.
Não podemos esquecer que os hierarcas judeus eram então
nomeados pelo poder romano. Portanto, não queriam
problemas com o governador Pilatos, que não era, como
alguns evangelistas o representam, um homem bom e fraco
que fez todo o possível para salvar Jesus dos judeus que
queriam sua morte, mas um homem duro e violento que
amedrontava a todos.
Sendo assim, é possível que o próprio Pilatos tenha
contatado as autoridades do Sinédrio para saber o que estava
havendo com aquele profeta que o povo tanto seguia e de
quem se dizia que queria proclamar-se rei. E também é
possível que as autoridades judaicas, conhecendo o caráter
de Pilatos, tenham se amedrontado.
Por isso, não é improvável que elas próprias tenham falado
com Jesus, dentro ou fora de um processo legal, para saber
de sua própria boca o que estava acontecendo. Depois desses
interrogatórios, devem ter chegado à conclusão de que
dificilmente se poderia condenar Jesus por motivos
religiosos — se é que o Sinédrio tinha mesmo poderes para
condenar alguém —, já que Jesus em nenhum momento
desprezou nem atacou a religião judaica de seus pais,
pretendendo apenas aperfeiçoá-la e cumprir as profecias das
Escrituras, que anunciavam dias melhores para essa religião
que podia até abrir-se a outros povos.
É aí que o Sinédrio, temendo o governador, pode ter
enviado o profeta a Pilatos para que ele se encarregasse de
interrogá-lo e de verificar se era culpado de outro tipo de
rebelião que não fosse a religiosa. E a partir daí foi o poder
romano que resolveu se livrar do profeta incômodo,
condenando-o por proclamar-se, segundo as acusações, Rei
dos judeus. Por isso é possível afirmar, como fez Tamayo,
que, no final das contas, o julgamento de Jesus e sua
condenação à morte foram um grande erro judicial, já que
ele foi executado como um rebelde político e revolucionário
que pretendia levantar o povo contra o poder romano,
quando, na verdade, ele nunca tentara tal coisa, nem preten-
dia auto-proclamar-se rei dos judeus, mas anunciar um
reinado de paz e de respeito a todos, onde, por fim, os mais
humilhados tivessem seus direitos reconhecidos e os
poderosos se pusessem a serviço dos necessitados e
esquecidos pela sociedade. Sua revolução podia ser, sim,
religiosa e social, não política, mas foi por causa desta que o
assassinaram.
Quando Jesus foi assassinado? Tampouco se sabe ao certo.
Segundo o evangelista João, ele foi crucificado na quinta-
feira, 14 de nisan, na véspera da Páscoa, o dia mais
importante do calendário judeu. Mateus, Marcos e Lucas, ao
contrário, sustentam que Jesus foi crucificado na sexta-feira,
15 de nisan, o dia da grande festa da Páscoa. Mas o mais
provável é que esteja certo o evangelho de João, pois hoje
parece impossível que as autoridades judaicas permitissem
que um pleito levado ao governador romano, que poderia
resultar numa condenação à morte, fosse resolvido no
feriado mais importante para os judeus.
Apesar dos muitos cálculos que foram realizados, também
não foi possível determinar o ano da crucificação de Jesus
nem a idade que o profeta tinha na hora da morte, podendo
variar entre os 25 e os 32 anos.
Capítulo 9
AS HIPÓTESES MAIS INVEROSSÍMEIS SOBRE
JESUS
Sobre a vida de Jesus — justamente por se saber tão pouco
dele —— criaram-se mil histórias e hipóteses, até as mais
inverossímeis, como a de que ele não morreu na cruz e foi
viver na índia, que foi um extraterrestre que deixou este
mundo numa nave espacial e voltará em outra, ou de que é
apenas fruto do mito astral do Sol e da Lua. Nenhuma dessas
hipóteses goza de credibilidade entre os especialistas, mas
não se pode silenciar sobre essas histórias caso se queira
refazer todo o percurso do que já foi dito e escrito sobre o
famoso profeta judeu cujo nome deu vida à Igreja com o
maior número de fiéis no mundo.
Antes de analisar a extravagante hipótese de que Jesus não
teria morrido na cruz, acabando seus dias na índia, há que se
precisar um fato: poderia ser verdade que, durante os anos
da chamada "vida oculta" do profeta, isto é, desde sua
infância até o início da idade adulta, quando ele se apresenta
publicamente para pregar um novo Reino e cria a
comunidade de seus 12 apóstolos, Jesus não tivesse
permanecido inativo em sua aldeia de Nazaré, e sim viajado
fora da Palestina, chegando ao Egito e até mesmo à Índia.
Não existem provas que fundamentem essa tese, mas, para
muitos especialistas, continua sendo no mínimo curioso o
silêncio de Jesus acerca desses 18 ou 20 anos de sua primeira
juventude, dos quais nada sabemos e nem uma palavra
chegou a nós, seja por meio dos evangelhos, seja pelos
documentos históricos não-cristãos. Muitos se perguntam se
é possível que, durante tantos anos, Jesus tenha continuado
a trabalhar como carpinteiro ou pedreiro ao lado de José, seu
pai. E, nesse caso, como se explica que, ao aparecer em
público, ele mostrasse tanta sabedoria, tantos
conhecimentos, sabendo e praticando até rituais de magia de
cultos estranhos ao judaísmo?
Jesus, em muitas ocasiões, demonstra conhecer elementos
de outras religiões e culturas, principalmente as orientais. Às
vezes parece mais um seguidor das religiões egípcias ou
hindus que do próprio judaísmo, apesar de conhecê-lo
muito bem. Teria estado em contato com os gregos? Pensa-
se, de fato, que ele falava bem o grego, além do aramaico e
do hebraico. Onde o aprendeu? Por outro lado, não se pode
esquecer que da minúscula Nazaré partiam outrora as
grandes caravanas para o exterior, para Damasco, por
exemplo.
Jesus se casou e morreu na Índia?
A possibilidade de que Jesus tenha viajado por outros países
durante os vinte anos de sua juventude continua sendo uma
hipótese sem provas históricas, mas nem por isso absurda.
Daí nasceu a idéia de suas duas viagens à Índia, primeiro
como jovem profeta e mais tarde para fugir, depois de ter se
salvado da morte na cruz. Essa segunda hipótese, segundo a
qual Jesus teria acabado sua vida em Caxemira, constituindo
família e tendo filhos ali, ou a de que teria vindo de outro
planeta ou seria apenas uma continuação do mito primitivo
do Sol e da Lua, pertencem todas ao reino da fantasia. Mas
como nasceram essas hipóteses tão descabidas?
A idéia de que Jesus pode ter vivido em Caxemira até a
velhice pode ter sido criada por aqueles que não acreditaram
na ressurreição gloriosa de seu corpo. Sempre houve quem
achasse que Jesus podia ter sido baixado da cruz por seus
discípulos e pelas mulheres suas amigas ainda vivo,
ludibriando os soldados na confusão da festa da Páscoa.
Quem defende essa tese se apóia nos textos evangélicos
segundo os quais Pilatos não queria condenar Jesus,
sobretudo depois de sua mulher lhe pedir que tentasse salvá-
lo, pois havia sonhado com ele. Também contribuiu para
criar essa lenda o rumor de que Jesus falecera em seguida,
quando a agonia dos crucificados costumava se estender por
dias a fio. Além disso, como o dia seguinte era o sábado de
Páscoa, os cadáveres dos crucificados não poderiam
permanecer na cruz, sendo necessário baixá-los.
Baixaram Jesus vivo, ainda a tempo de salvá-lo? Os que
acreditam nisso imaginam que, para escapar de seus algozes,
Jesus fugiu para a índia. Quem defende essa idéia argumenta
que só assim se cumpriria a profecia de que Jesus levaria a
Boa Nova a todas as tribos de Israel. Pois bem, sabe-se que
dez das 12 tribos de Israel terminaram na diáspora. Salvo as
de Judá e Behamiã, que ocupavam o sul da Palestina, todas se
dispersaram depois de absorvidas pelo império persa, que foi
expandindo seus domínios pelas terras do atual Afeganistão,
do Paquistão e da Caxemira.
O curioso é que, mesmo se tratando de uma hipótese tão
extravagante, em Srinagar, capital da Caxemira, existe há
quase 2.000 anos o túmulo de Jesus, chamado "rosabal". No
mínimo se trata de um personagem cuja vida e cujos
ensinamentos coincidiam com os de Jesus de Nazaré. Existe
até um homem chamado Basharat Saleem que garante ser o
último descendente vivo de Jesus. O arqueólogo Hassnain,
diretor dos Arquivos, Bibliotecas e Monumentos de
Caxemira, estudou há anos a possibilidade de que Jesus tenha
estado duas vezes na Índia. Os estudos desse arqueólogo
foram analisados por Andreas Faber-Kaiser em sua obra
Jesus starb in Kaschmir (Jesus viveu e morreu em Caxemira).
Hassnain começou a se interessar pela hipótese de Jesus ter
estado em Caxemira depois de saber da existência de certos
documentos, citados nos diários dos missionários alemães
Marx e Franke, em que se narrava a vida de Jesus na índia e
nas regiões do Tibete e Ladakh durante os anos em que os
evangelhos nada dizem dele: dos 12 aos 29 anos. Nicolai
Notovitch, explorador do norte da índia no final da década
de oitenta do século XIX, já ouvira falar dos famosos
documentos. Chegando ao mosteiro budista de Hemis, este
contou ao lama chefe que ouvira falar de uns manuscritos
importantes que narravam a história de Jesus na Índia, que,
segundo lhe constava, estavam na biblioteca daquele
mosteiro e que queria consultá-los.
O personagem de Jesus cuja história coincide exatamente
com a narrada nos evangelhos chama-se, nesses
documentos, Isa. Segundo esses escritos, Jesus viveu seis
anos em várias cidades sagradas da índia, como Rajagriha e
Benares. De início, fora muito amado, ensinando as
Escrituras àquela gente. Mas começou a ser malvisto quando
se pôs a pregar a igualdade de todos os homens, num país
em que as castas estavam muito arraigadas. Por fim,
tentaram matá-lo, mas ele conseguiu fugir e se refugiou em
Gautamides, o país de Buda. Aos 29 anos, Jesus voltou a
Israel, onde começou sua vida pública.
Sobre sua segunda viagem à índia, depois de escapar da
morte na cruz, em que teria sido acompanhado, entre
outros, por Maria, sua mãe, e teria constituído família e tido
filhos, existem ainda hoje muitas lendas naquele país, onde
até se exibe o túmulo da Virgem.
Jesus foi um extraterrestre que voltará numa nave
espacial?
Há até quem acredite que Jesus não veio a este mundo em
carne e osso, mas que foi uma espécie de extraterrestre que
desceu à Terra numa nave espacial, como comandante
intergalático. E que um dia voltará em outra nave. De fato,
como afirma Josep Guijarro, muitos grupos de contato com
óvnis espalhados pelo mundo transformaram Jesus e sua
mensagem de redenção no eixo central de suas
comunicações.
Jesus seria um extraterrestre que voltará ao mundo vitorioso.
Já nas Sagradas Escrituras havia indícios dessa visão de Jesus
fazendo parte de um plano cósmico, como, por exemplo, as
carruagens de fogo, as colunas de fumaça, as nuvens de fogo
e os anjos. Para eles, o que a Bíblia chama anjos seriam
extraterrestres. E a famosa estrela vista pelos reis magos no
nascimento de Cristo não passaria de uma nave espacial que
os guiava. Esse fenômeno se pareceria muito com aquilo que
se relata nos atuais casos de aparecimento de óvnis. Do
contrário, como se explicaria, dizem os defensores da teoria
do Jesus extraterrestre, que uma estrela se movimentasse
durante meses e depois ficasse estática sobre a gruta de
Belém?
Também o episódio evangélico da transfiguração diante dos
apóstolos Pedro, Santiago e João ("e transfigurou-se diante
deles. E seu rosto ficou refulgente como o sol: e as suas
vestiduras se fizeram brancas como a neve") é explicado
como sendo mais um fenômeno do Jesus extraterrestre, pois
coincidiria com algumas aparições atuais de ovnionautas.
A própria ressurreição é, para os defensores dessa teoria,
uma prova contundente. Guijarro lembra que, na Academia
Conciliar de Moscou, encontra-se um famoso ícone
chamado "A ressurreição de Cristo", em que Jesus aparece
num receptáculo que lembra uma espaçonave oval apoiada
no chão. De seu exterior emana uma fumaça espessa que
oculta os pés dos anjos.
O próprio pantocrator da fachada da igreja românica de
Moarbes de Ojeda, em Palencia, Espanha, representa, para
eles, Jesus Cristo dentro de uma cápsula espacial. Para os
adeptos dessas teorias, é fundamental a pergunta que Jesus
faz a seus discípulos e que aparece no evangelho de Marcos:
"E vós, quem credes que sou?" Como se Jesus, ocultando sua
verdadeira identidade, quisesse saber se os discípulos tinham
descoberto seu segredo.
Segundo os adeptos das teorias do Cristo extraterrestre,
quando Jesus ressuscitou, ele subiu aos céus numa nave
espacial, e em sua segunda vinda retornará a qualquer
momento em outra nave espacial. Parece que essa mesma
crença circula não só entre eles, mas também em certo tipo
de espiritismo. Isso explicaria as muitas mensagens vindas de
outras galáxias, que estariam anunciando essa segunda vinda
de Jesus, o Messias judeu, que desta vez não virá com uma
cruz, mas chegará glorioso entre nuvens.
Para os iniciados, o Jesus extraterrestre está intimamente
ligado à luz do Sol. Por isso é tão importante para eles a
afirmação de Jesus no evangelho de João, quando diz: "Eu
sou a luz do mundo." Em Cuadernos de ufologia, Javier
Sierra e Manuel Carballal explicam um fenômeno que
ocorreu em 2 de fevereiro de 1988 nos céus espanhóis e que
poderia estar relacionado com a teoria da iminente chegada
de Jesus vindo dos astros. Sixto Paz afirma que recebeu o
seguinte contato: "Nossa tarefa é preparar, junto com vocês,
jovens da Terra, a volta e o retorno de Cristo."
É de acreditar que Jesus possa voltar ao mundo numa nave
espacial? Para muitos antropólogos, foi a psicose do medo do
novo milênio que fez recrudescer todas as teorias mais
estranhas sobre o fim do mundo e a segunda vinda de Jesus.
Nesse sentido, chegou-se a pensar que a nova Jerusalém, de
que fala o Apocalipse, não passaria de uma grande nave
cósmica.
O sociólogo americano Andrew Greeley tem uma teoria
acerca dessas fantasias. Diz ele que nossas Igrejas foram
perdendo todo o caráter mágico e misterioso que um dia
tiveram, que nelas não se acredita mais em milagres, e que
esse ambiente mágico foi substituído pelos óvnis e todas as
teorias ligadas aos extraterrestres.
O que dizer de todas essas teorias? No mínimo, provam que
a figura de Jesus ficou tão gravada no subconsciente religioso
e mítico das pessoas, mesmo as mais distantes da Igreja
oficial, que veio inspirar os fenômenos mais distantes da
racionalidade e da ciência experimental. Jesus, com seu
caráter mítico e utópico, é como um material maleável que
sempre serviu para impregnar até as idéias mais fantásticas.
Sem querer, foram os próprios evangelhos, com seu silêncio
sobre a verdadeira personalidade de Jesus e com a escassez
de dados históricos sobre sua vida, que acabaram
alimentando as hipóteses mais inacreditáveis sobre aquele
inquietante e, ao mesmo tempo, doce profeta de Galiléia.
Jesus foi um produto criado com elementos das
antigas divindades mitológicas?
E se Jesus fosse apenas um mito construído com elementos
das escatologias egípcias? É o que sustentaram, até o final do
século XIX, não poucos mitólogos, como Albert
Churchward e Joseph Welles. Os defensores da teoria mítica
pensam que se tentou incorporar ao personagem Jesus —
que não teria existido realmente — elementos de outros
deuses ou personagens religiosos mitológicos de séculos
anteriores a ele.
Para esses autores, há coincidências interessantes entre o
Jesus que os cristãos apresentam e os personagens e deuses
anteriores, como Hórus, do Egito; Mitra, da Pérsia; e
Krishna, da índia. Todos nascem de uma virgem. Hórus e
Mitra também nascem em 25 de dezembro. Todos fizeram
milagres, todos tiveram 12 discípulos que corresponderiam
aos 12 signos do zodíaco, todos ressuscitaram e subiram aos
céus depois de morrer. Hórus e Mitra foram chamados
Messias, Redentores e Filhos de Deus. Krishna foi
considerado a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e foi
perseguido por um tirano que matou milhares de crianças
inocentes. Além disso, Krishna também se transfigurou,
como Jesus, diante de seus três discípulos preferidos, foi
crucificado e subiu aos céus. Exatamente como o profeta de
Nazaré. Os mitólogos se perguntam: "Precisamos de mais
coincidências?".
Os adversários da historicidade do cristianismo e defensores
do Jesus mítico acreditam que muito do que aparece nos
evangelhos não passa de tradução judaica de mitos egípcios.
Assim, por exemplo, na ressurreição de Lázaro (um dos
episódios dos evangelhos a que se atribui menos
credibilidade histórica) tratou-se de aplicar a Jesus a história
da múmia de Al-Azarus, do mito egípcio de Hórus, que
ocorreu mil anos antes do nascimento de Jesus.
Na mesma linha, como o inimigo de Hórus era Satã, deduz-
se que daí teria vindo a teoria de satanás e dos demônios
contida nos evangelhos. Hórus, assim como Jesus mil anos
depois, também lutou no deserto, durante quarenta dias,
contra as tentações de Sata, numa luta simbólica entre a luz
e a escuridão.
O fato é que certas coisas que os evangelhos contam acerca
de Jesus — justamente as que têm menos credibilidade
histórica — se prestam para alimentar a teoria de que Jesus é
apenas fruto de uma continuação de deuses míticos da
antigüidade.
Jesus e as mitologias do Sol e da Lua
Uma das visões míticas atribuídas a Jesus é a da leitura lunar
e solar aplicada às principais deidades antigas. Segundo essas
teorias, o Sol gera religiões, ao passo que a Lua cria a magia.
Assim, alguns povos se guiaram religiosamente pela Lua e
outros pelo Sol. Nos mitos antigos, o Sol-Homem é gerado
pela Mãe-Noite, representada pela Lua ou pela estrela-d'alva,
representada por uma figura de mulher. Maria também foi
chamada Lua, um dos nomes mais antigos do Mundo, como
Mãe do Espírito. Daí Mara ou Maya, e depois Miriam, de
onde vem o vocábulo latino Maria.
Isso explica porquê, desde a mais remota antigüidade, a noite
entre 24 e 25 de dezembro se reveste de uma sacralidade
especial: por ser a data de nascimento do Sol. Por isso os
deuses da mitologia antiga nasciam em 25 de dezembro. Era
o que acontecia com o deus Marduk, deus babilônico de
origem suméria, cujo nome significa "bezerro do Sol". O
mesmo ocorria com a divindade Mitra, a divindade
tauriforme parida por uma pedra, sobre cujo templo se
ergueu o Vaticano. Exatamente como os cristãos fizeram
com o nascimento de Jesus, cuja data na realidade não se
conhece e há séculos é celebrado em 25 de dezembro.
Os defensores do mito de Jesus como prolongamento do
mito do Sol, que nas mitologias se confunde com a pedra,
afirmam que Jesus, como Filho do Sol, nasceu de um útero
pétreo, a gruta de Belém (também um dos episódios
evangélicos historicamente menos prováveis). E que, por ser
Filho do Sol-Pedra, acabaria dando a seu apóstolo mais
importante o nome de Pedra (Pedro), já que os egípcios
sustentavam que pedra era igual a luz e que o Sol se encerra
na pedra. Vem daí o nome das pirâmides, cujo equivalente
em hebreu é urrim-midim, que significa "fragmentos de
luz", e se aplicando a cada bloco de pedra usado na
construção das pirâmides e, ao mesmo tempo, à soma de
todos os seus blocos.
A mitologia da gruta-pedra associada ao Sol aparece no
nascimento de Zeus, parido à noite entre as paredes pétreas
de uma gruta, vindo seu nome da raiz indo-européia div,
que significa "sentir luz". Também Manco Capac, o "inca rei
dos reis", nasceu numa gruta e seu pai era o
Sol, como escreve o asteca Armando Carranza. Milhares de
mitos de divindades antigas repetem o modelo de um deus
filho do Sol e da Lua enviado à terra sob forma humana.
Se na mitologia antiga Jesus era o Sol, Maria, sua mãe, seria a
Lua. Daí a importância que a Igreja daria à figura de Nossa
Senhora, cujo culto permitiu, ainda que sem transformá-la
em deusa. Daí também a dificuldade da Igreja em admitir as
mulheres ao sacerdócio. É que, como nos mitos clássicos, ela
deve desempenhar apenas o papel da escuridão da noite e da
gruta, de onde nasce a vida. Somente ao Sol, à divindade
masculina, é que pertence a luz e, decididamente, o poder.
Jesus existiu, mas seus discípulos o mitificaram para
não se sentirem fracassados
Mas há outro modo de entender a afirmação de que Jesus,
mais que uma realidade histórica, foi um mito. Para alguns,
não é que Jesus não tenha existido, o que acontece é que o
Jesus que nos foi transmitido pelos evangelistas não é o real,
e sim fruto de uma mitificação do personagem. Um dos mais
radicais defensores dessa hipótese é o racionalista ilustrado
H. S. Raimarus, que viveu entre o os séculos XVII e XVIII.
Em sua obra Da pretensão de Jesus e seus discípulos,
publicada anonimamente em 1778, dez anos depois da
morte do autor, Raimarus sustenta que Jesus foi um messias
político que acabou fracassando e morrendo na cruz. Seus
discípulos, que acreditaram em sua messianidade, roubaram
seu cadáver e criaram o mito da ressurreição anunciando
que ele voltaria. Para eles, Jesus era o redentor que viria sal-
var a humanidade. E a partir daí se desenvolve o mito.
Em outra linha se situa a famosa obra Vida de Jesus, de D. F.
Strauss, publicada em 1835. Esse livro significou uma
revolução. Para Strauss, os apóstolos não tinham necessidade
de criar o mito de Jesus para evitar a sensação de fracasso.
Ele aceita que agiram de boa-fé e que acreditaram em sua
ressurreição e nas aparições posteriores. E explica o mito de
Jesus como tendo sido criado pela devoção popular. Uma
criação lenta que foi transformando o Jesus real e histórico
em um personagem completamente diferente, modelado
pela fé das diversas comunidades cristãs até transformá-lo na
figura atual venerada pela Igreja Católica. Para Strauss, que
foi professor em Tubingen, o Jesus atual é um personagem
idealizado, mitificado pela fé, que provavelmente nada tem a
ver com o que representou em vida.
Na visão hoje predominante entre os maiores especialistas
em questões de religião e de Bíblia, os evangelhos são, na
realidade, uma mescla de elementos históricos e teológicos;
as narrações dos evangelistas misturam traços do Jesus
histórico e do Jesus da fé, sendo que os aspectos históricos
foram perdendo importância para dar lugar ao Jesus inte-
riorizado pelos cristãos, às vezes com intenções puramente
de fé e religião, às vezes para adaptá-lo às exigências de uma
religião que por fim foi adotada e usada pelo poder. Por isso,
os próprios evangelhos apresentam retratos do Jesus
histórico muito diferentes, sendo impossível saber qual é o
verdadeiramente original.
Capítulo 10
JESUS, SUA FAMÍLIA E SUA RELAÇÃO COM O
SEXO
Um dos mais impenetráveis aspectos da vida e da
personalidade de Jesus é sua relação com a família e com o
sexo. Sempre foram temas tabu dos quais, ou não se quis
falar, ou foram tratados de forma apologética e pouco séria.
Mas também nesse aspecto ainda existem muitas perguntas
sem resposta.
Por exemplo, é verdade que Jesus teve uma relação difícil
com a mãe, Maria, com o pai, José, e com os irmãos? E
verdade que foi um filho um tanto rebelde e pouco apegado
à família? E crível que, dentro da cultura judaica de seu
tempo, ele não tenha constituído sua própria família? E,
nesse caso, como Jesus teria vivido sua sexualidade? É des-
respeitoso pensar, como fazem alguns, que ele poderia ter
sentido mais inclinação pelos homens que pelas mulheres?
Trata-se de um tema difícil, pois, pelo pouco que consta nos
evangelhos, Jesus parecia mais inclinado a ter muitas
amizades femininas, inclusive com famosas prostitutas
daquela época, o que era malvisto para um profeta e
pregador como ele.
Acredito sinceramente que a hipótese das possíveis
tendências homossexuais de Jesus carece de fundamento.
Aqueles que a sustentaram se apóiam numa famosa frase do
evangelista João em que afirma ser ele o discípulo amado de
Jesus. Por coincidência, o apóstolo João era o único dos 12
que não era casado. Mas é um argumento muito fraco,
principalmente porque não há provas de que o evangelista
João e o apóstolo solteiro fossem a mesma pessoa.
Também carece de credibilidade a suposta existência de um
evangelho erótico de Marcos de que algumas seitas teriam
feito uma leitura homossexual, e que por isso teria sido
censurado pela Igreja. O próprio Crossan, que parece crer na
existência desse evangelho de Marcos anterior ao canônico,
tende a pensar que não havia razão para que se fizesse dele
uma leitura homossexual, interpretando-o mais como
descrição de um ritual de batismo que os homens recebiam
nus.
Se Jesus não se casou, por que não o fez?
O que parece mais estranho é o fato de Jesus nunca ter se
casado, pois é evidente o amor e a simpatia que ele sempre
demonstrou pelas mulheres, numa sociedade em que esta
era pouco mais que um objeto. Como prova de que ele não
se casou basta a alegação que a Igreja sempre fez de que o
profeta preferiu ser livre, sem vínculos matrimoniais, para
poder dedicar-se melhor e com maior liberdade ao anúncio
da Boa Nova.
O curioso é que, nos últimos séculos, esse argumento tem
sido usado pela Igreja Católica para defender sua tese do
celibato obrigatório para os sacerdotes. Um argumento que é
refutado pelos numerosos casos de pastores protestantes ou
sacerdotes ortodoxos que realizam um grande trabalho de
evangelização, principalmente nas missões, sem que para
isso tenham que renunciar a ter uma mulher a seu lado. Ao
contrário, em muitos casos elas são suas melhores
colaboradoras. De fato, o grupo de Jesus e seus 12 apóstolos
sempre foi acompanhado por um outro, formado de
mulheres — algumas delas provavelmente suas esposas —
que os ajudavam em sua missão.
Tratava-se de um hábito que foi mantido nas primeiras
comunidades, como escreve o apóstolo Paulo. Em alguns
casos parece que, para não escandalizar os fiéis, as mulheres
que acompanhavam o missionário se faziam passar por sua
esposa.
Nos primeiros anos do cristianismo, o celibato sacerdotal
não tinha nenhum valor especial. O que se pedia aos bispos
era que fossem "maridos de uma só mulher", para dar o
exemplo àqueles que mantinham relações com várias
mulheres. Mas nunca se exigiu deles o celibato, do qual não
há nem sinal nos evangelhos. Apenas na comunidade
dissidente dos essênios, a dos monges de Qumran, existia
naquele tempo o celibato. Só muito mais tarde, quando
surge no cristianismo o estado monacal, é que a virgindade
começa a ter um valor espiritual e de entrega total à
comunidade.
O fato de que o tema do sexo e do celibato fosse tão
marginal para as primeiras comunidades cristãs, só tocado
quando se tratava de condenar suas aberrações, demonstra a
pouca importância que lhe davam Jesus e seus discípulos. Só
umas poucas vezes se diz nos evangelhos que os discípulos
ficavam perplexos frente a certas atitudes públicas de Jesus
em relação a algumas mulheres, como na conversa com a
mulher samaritana — ainda por cima, uma pagã —, no poço
de Jacó, quando se sabe que não era permitido aos homens
falar com as mulheres na rua, nem sequer os maridos com
suas esposas.
É sem dúvida difícil entender por que Jesus não se casou
nem constituiu família, considerando seu amor pelas
crianças, que ele eleva a símbolo e metáfora do melhor de
sua pregação, chegando a dizer que mais vale suicidar-se que
magoar uma criança. Nunca saberemos o verdadeiro motivo
pelo qual ele renunciou a um amor pessoal e a ter filhos.
Porque a hipótese erotizada de alguns analistas, segundo a
qual Jesus se casou em segredo com a prostituta de Magdala,
não merece a menor consideração. Numa cultura em que o
casamento não só não era proibido a ninguém, mas que
constituía, junto com a família, um dos pilares da sociedade
patriarcal palestina, imaginar a união secreta de Jesus com
quem quer que seja está além da mais fantasiosa imaginação.
Por que Jesus se relacionou mal com seus pais e
irmãos?
Em outro capítulo analisaremos a relação de Jesus com o
mundo feminino. Aqui, só queremos examinar sua relação
com a própria família, ou seja, como ele era como filho e
irmão. Devemos confessar que chegam a ser chocantes os
textos legados pelos evangelistas, que, nesse aspecto, são tão
unânimes e livres de contradições que parecem ser mesmo
históricos. Porque são textos duros. Tudo indica que as
relações de Jesus com seus familiares não foram nada
idílicas. Ao contrário, a impressão que se tem é que Jesus
não estava nem um pouco preocupado em parecer bom
filho nem bom irmão.
Em primeiro lugar, Jesus era malvisto em sua aldeia de
Nazaré. O evangelista Mateus conta que, quando Jesus
começou a ensinar na sinagoga de seu povoado, as pessoas,
assustadas, diziam: "Porventura não é este o filho do
carpinteiro? Não se chamava sua mãe Maria, e seus irmãos
Santiago, e José, e Simão, e Judas: e suas irmãs não vivem
elas todas entre nós? Donde vem logo a este todas estas
coisas? E dele tomavam ocasião para se escandalizarem." Mas
Jesus lhes disse: "Não há profeta sem honra senão em sua
pátria, e na sua casa. E não fez ali muitos milagres, por causa
da incredulidade de seus naturais." No evangelho de Marcos,
considerado o mais antigo, Jesus também diz que o profeta é
desprezado "entre os seus parentes".
Supondo-se que as palavras de Mateus não tenham um
segundo sentido, elas indicam, sem dúvida, que seus
conterrâneos tinham bem pouca consideração pela família
de Jesus. Assim, vendo Jesus transformado num profeta que
pretendia ensinar as pessoas, perguntavam-se como isso era
possível, vindo ele de uma família com tão pouca impor-
tância e estudo. Mas não ficou nisso: Lucas conta que, um
dia em que Jesus estava pregando, seus conterrâneos de
Nazaré "se encheram de ira. E levantaram-se, e o lançaram
fora da cidade: e o conduziram até o cume do monte, sobre
o qual sua cidade estava fundada, para o precipitarem. Mas
ele, passando no meio deles, se retirou".
Dizem os evangelhos que, em outras ocasiões, os irmãos e
irmãs de Jesus consideravam-no "louco". Ou seja, segundo
esses textos, a opinião que a família tinha dele não era das
melhores. E é ele mesmo quem diz que sua família não o
aceitava. Seria por essa razão que Jesus também não tinha
muito amor nem simpatia por seus parentes? O que é mais
grave se levarmos em conta a importância que a família tem
para os judeus e a união que costuma haver entre os
membros de uma mesma família.
O que de fato consta nos evangelhos é que, sempre que
alguém dizia a Jesus que seus irmãos ou seus próprios pais o
esperavam, costumava responder que, para ele, mais
importante que sua família carnal eram aqueles que seguiam
sua palavra. Uma atitude que ele manifestou desde bem
pequeno, como indica o enigmático episódio em que Jesus
se perde no Templo de Jerusalém e seus pais têm de
repreendê-lo. O evangelho de Lucas conta-o da seguinte
forma: "E seus pais iam todos os anos a Jerusalém no dia
solene da Páscoa. E quando fez 12 anos, subindo eles a
Jerusalém, segundo o costume do dia de festa, e acabados os
dias que ela durava, quando voltaram para casa, ficou o
menino Jesus em Jerusalém, sem que seus pais o
advertissem. E crendo que ele viria com os da comitiva,
andaram caminho de um dia, e o buscavam entre os
parentes e conhecidos. E como o não achassem, voltaram a
Jerusalém em busca dele. E aconteceu que três dias depois o
acharam no Templo, assentado no meio dos doutores,
ouvindo-os, e fazendo-lhes perguntas. E todos que o ouviam
estavam pasmados de sua inteligência e das suas respostas. E
quando o viram se admiraram. E sua mãe lhe disse: 'Filho,
por que usaste assim conosco? Sabe que teu pai e eu te
andávamos buscando cheios de aflição.' E ele lhes
respondeu: 'Para que me buscáveis? Não sabíeis que importa
ocupar-me nas coisas que são do serviço do meu Pai?' Mas
eles não entenderam a palavra que lhes disse."
Supondo-se que o texto de Lucas seja historicamente
verídico, certas coisas nele são surpreendentes. Primeiro,
salta aos olhos que Jesus, aos seus 12 anos, devia ser muito
independente e nas viagens não gostava de ficar ao lado dos
pais, mas com os amigos ou outros parentes. De outro modo
não se explicaria o fato de seus pais só perceberem que ele
não ia na caravana depois de um dia de viagem. Por outro
lado, o menino não só não pede desculpas aos pais, que lhe
dizem que sofreram muito com seu comportamento, como
os repreende por terem procurado por ele. Iriam deixá-lo
sozinho em Jerusalém com 12 anos? De fato, como afirma o
relato, seus pais não entenderam em nada a conduta do
filho. E Jesus não tem nenhum gesto de consolo para com
eles.
Alguma verdade deve haver nessa história, pois não existiria
razão para que fosse inventada, já que a atitude do jovem
Jesus não parece lá muito exemplar. Parece antes um ato de
desobediência aos pais e de certa arrogância. Tanto assim
que o evangelista — e isto tem, sim, toda a aparência de ter
sido adulterado para que Jesus não pareça demasiado rebelde
aos pais — acrescenta o seguinte: "E Jesus desceu com eles,
e veio a Nazaré e obedecia-lhes." Havia alguma necessidade
de frisá-lo? O que poderia fazer um menino de 12 anos, na
fechada cultura de uma aldeia palestina, senão obedecer aos
pais?
Jesus nunca exalta a família
Não há no evangelho uma exaltação de Jesus à família. E
mais: dá a entender que sua pregação se destina fatalmente a
separar as famílias a partir de dentro. Lucas diz isso
claramente quando recolhe as categóricas palavras do
profeta de Nazaré: "Vós cuidais que eu vim trazer paz à
terra? Não, vos digo eu, mas separação: porque de hoje em
diante haverá numa mesma casa cinco pessoas divididas, três
contra duas, e duas contra três. Estarão divididas: o pai
contra o filho, e o filho contra o seu pai, a mãe contra a
filha, e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora, e a nora
contra a sua sogra."
A Igreja passou séculos quebrando a cabeça em busca de
uma explicação para essa atitude de evidente rejeição da
família por parte de Jesus. Tentou sublimar essas passagens
difíceis e comprometidas dos evangelhos que, curiosamente,
os evangelistas não tentaram ocultar. Por quê? Difícil saber.
Em geral, os exegetas dizem que as passagens de difícil
compreensão ou que não poupam a imagem de Jesus nem
dos apóstolos costumam ser as mais antigas e menos
manipuladas. Devem ter chocado tanto os primeiríssimos
cristãos que foi difícil ocultá-las. Por exemplo, aquela em
que se conta que, na noite da Paixão, Pedro negou Cristo por
três vezes, por medo de ser identificado como um dos
apóstolos que seguiam Jesus. O fato deve ter causado tanto
escândalo desde o início que foi difícil ocultá-lo.
Uma das explicações que a Igreja sempre deu a essas
passagens em que Jesus parece viver em conflito com a
família, e vice-versa, é que ele estava tão compenetrado em
sua missão de profeta universal que dava pouco valor a tudo
que fosse terreno. Alegam que Jesus se preocupava acima de
tudo com sua mensagem. Mas sabemos que sua mensagem
era de amor universal. Não deveria incluir o amor aos seus?
Porque o fato é que Jesus foi extremamente carinhoso e
afetuoso com seus amigos mais íntimos, com as mulheres
que o acompanhavam e até com os publicanos e com as
prostitutas. Por que só com a mãe, o pai e os irmãos ele
haveria de ser tão rude?
Não seria tudo isso uma invenção dos evangelistas
para favorecer a liderança de Pedro contra a de
Santiago, o irmão de Jesus?
Alguns analistas modernos sugeriram uma curiosa explicação
de cunho histórico. Do mesmo modo, dizem eles, que toda
a animosidade dos fariseus contra Jesus que aparece nos
evangelhos teria sido inventada por motivos políticos do
tempo em que foram escritos, quando era grande o conflito
entre fariseus e cristãos, também toda essa animosidade de
Jesus contra sua família poderia ter sido inventada ou, pelo
menos, exagerada por motivos históricos e disputas entre as
primeiras comunidades.
Nas primeiras comunidades judaico-cristãs, os ânimos, de
fato, estavam muito divididos entre dois personagens: o
apóstolo Pedro, que, enquanto Jesus estava vivo, era
considerado o chefe dos outros apóstolos e a quem o Mestre
incumbira de fortalecer sua fé nos momentos de dificuldade
e de perseguição, e um dos irmãos de Jesus, Santiago, que foi
um personagem de primeira importância na fundação do
cristianismo primitivo. Santiago, que também acabou como
mártir, era muito bem-visto depois da crucificação de Jesus,
mesmo entre as elites de Jerusalém. Isso, de início,
contribuiu para gerar respeito pelas primeiras comunidades
de seguidores de Jesus, provindos todos do judaísmo.
Esse irmão de Jesus teve também um papel fundamental no
primeiro Concilio de Jerusalém, depois da dura polêmica
entre Paulo e Pedro sobre se os judeus convertidos ao
cristianismo deveriam ou não ser circuncidados. Santiago
serviu de árbitro e conseguiu que se chegasse a um acordo
diplomático: os convertidos não deveriam ser circuncidados,
mas deveriam manter alguns ritos judaicos ligados à higiene
e aos casamentos mistos.
Segundo esses analistas, o que pode ter acontecido é que os
partidários de Pedro — dentre os quais estavam os
evangelistas que depois escreveriam suas narrativas —- não
viam com bons olhos a influência que Santiago, o irmão de
Jesus, alcançara entre os primeiros cristãos. E muitos
preferiam Santiago a Pedro justamente por ser ele irmão de
Jesus. Que fizeram então? Desprestigiaram a família de Jesus
e deram a entender que ele não dava a menor importância a
seus laços de sangue, pois desde o princípio era Pedro seu
apóstolo e em quem o Mestre mais confiava.
Tudo isso teria a ver com a luta pelo poder entre as primeiras
comunidades cristãs, que depois desembocaria nos conflitos
entre os diversos patriarcados e entre estes e o papa de
Roma. Se a teoria do desprestígio da família de Jesus para
desautorizar Santiago, seu irmão, em favor de Pedro fosse
verdadeira, seria preciso rever todas as passagens em que se
fala da animosidade do profeta contra seus parentes. O que é
difícil, pois nunca disporemos de documentos confiáveis
que possam comprovar uma ou outra hipótese.
Sem dúvida, Jesus foi um radical em tudo, inclusive
com a família
Por outro lado, pelo pouco que se conhece do
temperamento de Jesus, não resta dúvida de que ele deve ter
sido uma pessoa muito radical, que pregava utopias
extremas. E é possível que alguns de seus familiares, em
algum momento, principalmente quando ele começou a
fazer milagres, a ser seguido por multidões e a perfilar-se
como o Messias que vinha preparar um novo Reino de
prosperidade para Israel, tenham tentado tirar proveito de
seus feitos, o que deve ter incomodado Jesus, sobretudo se
for verdade que, quando começou sua missão, riam dele,
achavam que estava louco e nem ligavam para o que dizia.
Do mesmo modo, é bem provável que nem seus pais nem
seus irmãos tivessem informações suficientes ou a formação
necessária para entender o caminho perigoso que Jesus tinha
empreendido, arriscando a própria vida. José, seu pai, não
passava de um obscuro operário, provavelmente da
construção, e sua mãe era uma simples jovem da aldeia que,
como todas as mães, devia adorar o filho, mas não podia
entender nem gostar que ele seguisse aquela tortuosa trilha,
que sua intuição de mãe, e de mãe judia, dizia-lhe que não
levaria a nada de bom.
Nesse sentido é sintomático que, dos quatro evangelistas que
narram os fatos da paixão, só João diga que Maria, a mãe de
Jesus, estava ao lado do filho no momento da crucificação.
Os outros três não falam dela, ao passo que relatam a
presença de outras mulheres, amigas de Jesus. E no dia
seguinte, quando essas mulheres, entre elas Maria Madalena,
foram até o sepulcro e o encontraram vazio, nem mesmo
João diz se entre elas estava a mãe de Jesus.
Também esse ponto sempre angustiou a Igreja, que muitas
vezes se perguntou como era possível que as mulheres
amigas de Jesus, mas não sua própria mãe, tivessem se
preocupado em recolher seu corpo. E também esse fato
insólito deu lugar a mil explicações pouco convincentes. O
mais provável é que Maria, a mãe de Jesus, estivesse não
apenas arrasada, mas surpresa de que seu filho, tão seguido e
amado pelo povo, que passara a vida "fazendo o bem", como
se diz num dos evangelhos, tivesse acabado morto daquela
forma tão humilhante. Um desconcerto ainda maior por ver
o filho condenado ao suplício que os romanos reservavam
aos piores malfeitores e aos rebeldes políticos.
Alguns teólogos e exegetas especularam que Jesus
certamente apareceu à mãe em sua casa antes que às outras
mulheres e aos apóstolos, e que por isso ela, que já sabia que
ele ressuscitara, não se preocupou em ir naquela manhã ao
lugar do suplício para procurar o corpo do filho. Mas aí
entramos no terreno do mistério, no qual nem os evan-
gelistas ousaram penetrar.
Capítulo 11
JESUS QUIS FUNDAR UMA IGREJA?
Uma das perguntas mais delicadas, comprometedoras e
complexas sobre Jesus de Nazaré é se ele quis fundar uma
nova Igreja e uma nova religião. Uma pergunta difícil, já que
a Igreja Católica e, em geral, as igrejas cristãs jamais
admitirão que não foram fundadas por Jesus por meio de
seus apóstolos. E estão convencidas de que o cristianismo é
uma nova religião, como o islamismo, o judaísmo e o
hinduísmo.
Contudo, não poucos especialistas se fizeram seriamente
essa pergunta. E muitos deles, a começar pelos modernistas,
foram condenados e perseguidos por terem questionado a
vontade de Jesus de fundar uma Igreja. Roma, ao contrário,
jamais teve dúvidas quanto ao fato de Jesus ter fundado sua
Igreja sobre Pedro, a quem deu o poder de governá-la e o
dom da infalibilidade para não errar em sua tarefa.
Para começar, vale deixar bem claro que, mesmo na
hipótese não provada de que não seja Jesus o fundador da
Igreja Católica ou que essa não seja a Igreja concebida por
ele, isso não diminui em nada a importância que essa
instituição religiosa e o cristianismo em geral tiveram e têm
na história. Tampouco diminui sua importância o fato de que
essa Igreja possa ter nascido da fé dos primeiros cristãos e da
concepção religiosa de Paulo de Tarso, considerado por
alguns autores o verdadeiro fundador do cristianismo, ao
fazer com que o cristianismo primitivo se afastasse de suas
originais raízes judaicas.
O problema aqui é outro: saber se Jesus teve em algum
momento a idéia de fundar uma religião nova, diferente da
que ele praticara e vivera em sua família, e se queria fundar
uma Igreja organizada da forma como é hoje a Igreja
Católica.
É uma questão de conteúdo, não apenas de forma. Sem
dúvida, mesmo supondo que Jesus quisesse fundar uma nova
Igreja, ele dificilmente abençoaria muitas coisas da Igreja
atual, sobretudo no que se refere ao modo como foi
organizado o governo central da Igreja no Vaticano, o estilo
do papado, copiado basicamente dos imperadores romanos,
e à própria estrutura da Igreja como monarquia absoluta. Já
muitos santos antigos, como Santa Rita de Cássia, sem falar
nos atuais bispos e expoentes da Teologia da Libertação,
criticaram duramente os excessos de uma Igreja mais
preocupada com os ricos e poderosos do que com os
desvalidos; muitas vezes contaminada pelos poderes mun-
danos e políticos. Uma Igreja rica, cheia de privilégios
concedidos pelos poderosos; muitas vezes intransigente e
inquisitorial. Tudo isso é público e notório, e são os próprios
cristãos mais engajados os que se encarregam de criticá-lo.
Talvez se trate de uma tradição antiga, quase das origens do
cristianismo, quando este, de início uma seita perseguida
pelos imperadores romanos, passou a ser a religião oficial do
Império, que a cobriu de privilégios e prebendas. Como diz
Crossan: "Custa muito manter a serenidade quando se lê o
relato do banquete imperial celebrado no encerramento do
Concilio de Nicéia." O relato diz o seguinte:
"Alguns destacamentos da guarda e do exército rodearam a
entrada do palácio com as espadas desembainhadas e,
passando por entre eles sem temor, os homens de Deus
adentraram nos aposentos privados do imperador, onde
alguns companheiros deste se encontravam à mesa,
enquanto outros jaziam reclinados em camas situadas nos
extremos do cômodo. A cena parecia um quadro do Reino
de Cristo, um sonho transformado em realidade."
O texto foi escrito por Eusébio, e Crossan o comenta nos
seguintes termos em seu livro O Jesus histórico.
"Novamente aparecem juntos o banquete e o Reino, mas
agora os convidados são bispos, todos do sexo masculino,
que comem reclinados em camas na companhia do próprio
imperador, esperando que outros os sirvam." E acrescenta:
"Talvez o cristianismo seja uma traição inevitável e
absolutamente necessária à figura de Jesus, pois, de outro
modo, todos os seus seguidores teriam morrido nas colinas
da Baixa Galiléia. Mas era preciso que essa traição se desse
em tão pouco tempo?"
Jesus pregou uma religião do coração, sem templos nem
catedrais
A pergunta é a seguinte: qual era a intenção de Jesus
quando, rodeado por um pequeno grupo de homens e
mulheres, de gente simples, pôs-se a criticar alguns aspectos
da religião judaica de seu tempo (como os teólogos
progressistas fazem hoje com o catolicismo) e a anunciar a
chegada de um "Reino" novo? O anúncio desse Reino
significava a fundação de uma nova religião e de uma nova
Igreja ou era simplesmente o anúncio de uma superação da
velha religião de seus pais, fazendo-a mais universal e
proclamando a centralidade da dignidade humana como o
próprio coração da religião. Propunha ele uma religião
diferente ou um reino puramente temporal, para expulsar os
romanos da terra de seus pais?
Nesse sentido, seria importante saber qual era a idéia de
Deus pregada por Jesus e se era uma idéia de Deus
"inventada" por ele ou extraída das raízes das Escrituras
antigas. Porque se diz que uma das características da nova
religião pregada pelo profeta de Nazaré era a idéia de um
Deus "pai", em contraposição ao Deus "juiz" do Antigo
Testamento; o Deus da compaixão e não o Deus da
vingança; o Deus, não do "olho por olho, dente por dente",
e sim do pai que recebe o filho pródigo, que deixara a casa e
dilapidara sua herança, com tanta festa e alegria que provoca
inveja no filho fiel que ficou em casa.
Mas acontece que essa imagem também está no Antigo
Testamento, mais exatamente no profeta Isaías, quando,
falando de Deus, ele diz que este é mais compreensivo que
uma mãe, pois enquanto uma mãe pode chegar a abandonar
um filho, Deus jamais faria isso.
Há um texto significativo no evangelho de João que também
é revelador da idéia que Jesus tinha da religião, do modo de
adorar a Deus e de toda a exterioridade da Igreja,
principalmente os templos. Ê a passagem em que Jesus fala
com a mulher samaritana junto ao poço. Havia uma grande
inimizade entre judeus e samaritanos. Estes eram
considerados pagãos por não reconhecerem a religião de
Israel. A samaritana provoca Jesus dizendo que seus
antepassados adoraram a Deus no monte em que estavam,
enquanto os judeus diziam que ele deve ser adorado no
templo de Jerusalém.
Duas igrejas disputando um lugar de culto. Jesus a
interrompe categórico: "Mulher, crê-me, que é chegada a
hora em que vós não adorareis o Pai, nem neste monte, nem
em Jerusalém (...). Mas a hora vem, e agora é, quando os
verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e
verdade."[Jo 4, 21.23]
Se essas palavras de Jesus são históricas — e a Igreja as
reconhece como tais —-, teríamos que nos fazer muitas
perguntas. Primeiro, é evidente que, se Jesus pensava num
novo tipo de religião, nela os lugares físicos de culto não
teriam a menor importância, já que, como ele diz, os
seguidores dessa nova religião teriam de render culto a Deus
não em igrejas, templos ou catedrais faraônicas, mas dentro
de si mesmos. Seria o coração, o espírito do homem, o
grande templo interior onde melhor poderiam se encontrar
com Deus.
Sobre essa passagem gastaram-se rios de tinta. Mas poucos se
aprofundaram nela para observar que se trata de uma dura
crítica a todo o fausto das igrejas erguidas por católicos e
protestantes. A mulher samaritana Jesus diz de forma muito
clara que no futuro, ou melhor, já a partir daquele momento,
pouco importará o Templo de Jerusalém — ou as catedrais
que um dia seriam erguidas em seu nome — já que nada
disso é importante para render culto ao Deus que habita o
coração de todas as pessoas e não a escuridão e
magnificência dos templos.
Poderia um profeta que tinha essa idéia do culto pensar em
fundar uma igreja que depois tiraria o ouro dos pobres para
enriquecer seus templos, uma igreja cujos seguidores se
pegariam em disputas para determinar, por exemplo, se a
Basílica de São Pedro é mais importante que as outras
catedrais do mundo, proibindo-se que a superem em
superfície construída? Sem dúvida que não. Se é que Jesus
pensou em uma Igreja, jamais seria uma como a atual, rica e
luxuosa. Mas, e quanto à doutrina?
Bonhoeffer, o teólogo protestante que morreu num campo
de concentração nazista, escreveu que "Jesus não chamou
para uma nova religião, e sim para a vida". Ou seja, para ele a
verdadeira religião era a vida, o modo de se comportar com
os outros e com Deus. E tudo o mais foi uma construção
posterior.
Segundo alguns teólogos modernos como Juan José Tamayo,
Jesus foi um fiel judeu sincero, radical, que freqüentava as
sinagogas, onde orava e pregava; que participava das festas
religiosas de seu tempo e que não fez nada além de
introduzir correções de fundo na legislação e nas instituições
religiosas, propondo "uma concepção alternativa da vida
religiosa voltada para a libertação integral do ser humano".
Jesus quis libertar os homens do peso das religiões
Por isso, há quem chegue a dizer que a missão de Jesus era a
de libertar o homem do peso das religiões antigas, a começar
pelo judaísmo, que impunham às pessoas "pesos
insuportáveis", sendo que aqueles que os impunham eram os
primeiros a esquivar-se deles. E que, justamente por isso,
dificilmente ele pensaria em fundar outra religião, com
novas estruturas que acabariam sufocando a consciência dos
fiéis.
Seria, então, uma heresia dizer que o que Jesus pretendeu foi
fazer com que as pessoas se conscientizassem de que a
própria religião, principalmente em seus aspectos
legislativos, culturais e rituais acaba sendo uma escravidão,
enquanto a verdadeira fé, a verdadeira espiritualidade teria
que ser a grande libertação de tudo aquilo que oprime as
consciências? Por isso Jesus era contra o comércio do
sacrifício de animais no Templo para conquistar a
benevolência de Deus, que acabava arruinando tantas
famílias pobres. Ele queria outro tipo de relação pessoal do
homem com Deus, baseada não no derramamento de sangue
nem no simples sacrifício pelo sacrifício (não jejuava nem
deixava seus discípulos jejuarem), como se fosse um Deus
sedento de dor, mas no amor e no respeito a tudo e a todos,
não só aos privilegiados e poderosos.
E bem possível que Jesus só pedisse a seus discípulos que,
depois de sua morte, eles se dedicassem a anunciar, dentro e
fora de Israel, aquelas idéias simples e libertadoras das
amarras das religiões, ensinando as pessoas a adorarem a
Deus "em espírito e em verdade", e anunciando aos mais
marginalizados daquela sociedade pobre e agitada — onde os
pobres e aleijados eram párias — que eles teriam um lugar
privilegiado no coração do Deus que não faz diferença entre
as pessoas e que, se a faz, é para aproximar-se dos
desprezados e humilhados pelo poder e não dos poderosos.
Mas, então, o que aconteceu depois de sua morte para que
aquele punhado de idéias revolucionárias — e ao mesmo
tempo simples e sem a menor pretensão de fundarem uma
nova religião — acabassem se transformando numa nova
Igreja institucionalizada à maneira da Sinagoga judia?
Responder a essa pergunta tem sido um difícil desafio para
não poucos historiadores e teólogos. Entre eles se destaca
César Vidal, com seus estudos sobre o judaico-cristianismo
dos primeiros dias da Igreja, em sua obra El judeo-
cristianismo palestino en El siglo I.
Os esforços realizados por esse autor para sondar aquele mar
complexo das primeiras comunidades cristãs vindas do
judaísmo e com ele e por ele contaminadas demonstram a
complexidade do problema e como podem existir leituras
muito díspares dos mesmos fatos históricos.
A conclusão a que chega esse historiador, de que a primeira
igreja judaico-cristã não teve pretensões de ordem política e
quase nem sociais, e sim espirituais e místicas, e que seus
membros não pertenciam às classes mais pobres da
sociedade, mas, pelo menos em parte, às classes médias,
contradiz, por exemplo, muitos autores que viram em Jesus
um revolucionário político-social. Um revolucionário
simpatizante do movimento dos zelotes, os guerrilheiros de
seu tempo, que acreditava que Deus libertaria Israel do jugo
dos romanos e cujo interesse primordial eram os párias da
sociedade judaica e não os ricos nem as classes médias,
embora tivesse contato com elas.
Foi a filosofia gnóstica a porta da nova teologia cristã?
O que a cada dia parece mais evidente a partir das pesquisas
já realizadas é que o judaísmo do tempo de Jesus não era
monolítico. Tinha mil vertentes e mil contaminações com
os povos de fora da Judéia, principalmente com o mundo
helênico e, em geral, com toda a bacia do Mediterrâneo.
Tratava-se de uma sociedade camponesa atravessada por
muitas inquietações em que pululavam movimentos
messiânicos e políticos de todo tipo.
Por isso, não era estranho que também as idéias de Jesus, o
profeta que causou tanta inquietação que acabaram
crucificando-o por ser perigoso, estivessem misturadas e
entrelaçadas com esses movimentos, que iam dos mais
radicais e políticos, como o dos zelotes, até os mais
espiritualistas, como o dos essênios de Qumran. E o que se
percebe na própria composição do grupo de 12 apóstolos,
muito diferentes entre si, e que por isso davam
interpretações às vezes opostas às palavras do Mestre.
Do mesmo modo, tudo leva a crer que aquelas diferentes
visões da doutrina de Jesus logo repercutiram na forma
como as primeiras comunidades cristãs interpretaram e
viveram a doutrina do profeta crucificado. E verdade que
todos os apóstolos acabaram dando a vida na defesa da fé no
Jesus Ressuscitado. O próprio Judas Iscariotes, considerado o
traidor, acabou sacrificando a vida com seu suicídio. Mas a fé
em Jesus não era idêntica para todos eles, nem para todos os
primeiros cristãos, apresentando diversos e importantes
matizes, a começar pela controvérsia entre os próprios
apóstolos sobre se os judeus convertidos a Jesus, que o
consideravam o verdadeiro Messias anunciado a Israel,
deviam ou não ser circuncidados, seguir os rituais judaicos e
freqüentar a sinagoga.
A prova de que a doutrina do profeta Jesus foi interpretada
de muitas formas está no fato de que logo surgiria aquilo que
as primeiras comunidades consideraram heresias ou desvios
da verdadeira doutrina, pregada, sobretudo, por Pedro e
Paulo. Apenas como exemplo, poderíamos recordar a
heresia dos grupos gnósticos, que teve uma enorme
importância no cristianismo primitivo ao longo do primeiro
século desta era e que, depois da perseguição sofrida por seus
seguidores, ficaria relegada ao esquecimento se, no final dos
anos 40, não tivesse sido descoberta a famosa biblioteca
gnóstica de Nag Hammadi, no Egito, onde foram
encontrados os famosos cinco evangelhos gnósticos (o de
Tomás, o dos egípcios, o da Verdade, o de Maria e o de
Felipe).
O gnosticismo era um misto de filosofia e religião que tentou
introduzir-se e conciliar sua doutrina com a do nascente
cristianismo, criando uma doutrina eclética baseada,
sobretudo, no pensamento, que alguns estudiosos das
religiões, como Adolf Harnak, chegaram a considerar a
primeira elaboração teológica do cristianismo.
Mas alguns estudiosos que se aprofundaram no tema da
gnose, como, por exemplo, César Vidal, estão convencidos
de que essa filosofia é anterior ao cristianismo e de que sua
importância reside no fato de ter tentado introduzir-se na
nova religião, nascida das raízes do judaísmo, dando lugar a
um tipo de religião eclética que se teria apropriado da figura
e da doutrina de Jesus de Nazaré para interpretá-la à luz de
suas idéias, ao mesmo tempo em que teria influenciado a
vertente esotérica do judaísmo. Logo se viu que seria um
duelo entre os dois pensamentos e que só um deles poderia
sobreviver. Como de fato aconteceu.
Os gnósticos eram um tanto esotéricos. Seus adeptos viam
Jesus mais como uma emanação da Ausência, do Pneuma ou
do Espírito do Pai, chamando-o Ophis, isto é, o símbolo da
Sabedoria divina manifesta na matéria. Muitos dos escritos
oficiais da Igreja, como o evangelho de João, os Atos dos
Apóstolos ou as Epístolas de Paulo, estão cheios de termos
emprestados dos gnósticos, como Pleroma (plenitude), Aeon
(emanação), Archonte (coroa ou dignidade), Adonai
(império), que é o décimo Sephirot da Cabala, ou fogo
consumidor, etc.
Os gnósticos aparecem também em muitos dos evangelhos
apócrifos, como no Livro da ascensão, de Elias, ou no
Evangelho, de Nicodemo. Os gnósticos tiveram figuras
importantes durante os primeiros anos do cristianismo,
como Valentim, que viveu em Roma de 136 a 165. Existe
até um evangelho atribuído a ele. Foi um dos primeiros
doutores da Igreja e quase foi eleito papa. E bem possível
que, se Valentim, que era egípcio, tivesse chegado ao trono
de São Pedro, os evangelhos considerados inspirados fossem
outros e não os atuais da Igreja.
O cristianismo acabou definitivamente com a gnose quando,
durante o reinado do imperador Teodósio (379-383 d.C.), a
Igreja Católica, que já desde Constantino começara a ser
vista com bons olhos e deixara de ser perseguida,
transformou-se oficialmente na religião do império. A partir
desse momento, junto com os privilégios concedidos à nova
religião do Estado, ordenou-se a perseguição de todo tipo de
heresia. Então se inicia o calvário dos gnósticos, ao mesmo
tempo em que os bispos ordenam aos monges queimar todas
as obras que contenham heresias contrárias ao catolicismo
oficial. Só que os monges, que já criticavam algumas atitudes
da cúpula eclesiástica, em vez de queimar os manuscritos
gnósticos, trataram de enterrá-los. Isso permitiu que che-
gassem até nossos dias e não desaparecessem para sempre.
Uma das coisas importantes dos evangelhos gnósticos é que
poderiam conter elementos da doutrina original de Jesus que
não passaram aos evangelhos canônicos. Trata-se de um
estudo ainda por aprofundar. Sem dúvida, a doutrina
gnóstica foi apresentada em contraposição à teologia católica
e cristã. Mas não podemos esquecer que a interpretação que
se fez dessa doutrina teve a ver com o fato de ter sido consi-
derada completamente herética e contrária ao cristianismo
oficial, desde o conceito que eles tinham da criação até ao da
redenção.
Os gnósticos não acreditavam na ressurreição nem nos
sacramentos e eram místicos
É conhecido o embate frontal de Paulo com os gnósticos
que haviam influenciado os cristãos de Corinto, que ele
considera seguidores de um Jesus diferente do que ele
pregava. De fato, os cristãos de Corinto não viam em Jesus
um personagem terreno, mas principalmente espiritual,
davam pouco valor à sua morte na cruz e negavam sua
ressurreição, ao mesmo tempo em que não davam
importância aos sacramentos e sim às experiências místicas.
Ou seja, um Jesus quase oposto ao pregado por Paulo, que
baseou sua teologia no Jesus crucificado e em sua
ressurreição com o mesmo corpo que tivera em vida.
Tratava-se, portanto, do confronto entre duas teologias,
entre duas visões de Jesus e de sua doutrina, das quais apenas
uma, a de Paulo, acabou triunfando, enquanto a outra, a
gnóstica, a perdedora, foi condenada e proscrita. Por isso
tem sido difícil, até agora, saber se nessa teologia condenada
à fogueira havia ou não elementos sobre Jesus mais
primitivos e históricos que no cristianismo de Paulo, que se
impôs como religião oficial.
Tudo isso é importante para a questão em pauta - se Jesus
quis fundar uma Igreja ou se ela foi sendo fundada por uns e
outros, com a disputa entre diferentes pensamentos
filosóficos e teológicos que foram se misturando, que
lutaram entre si pela própria hegemonia e que acabaram
configurando o catolicismo atual.
De fato, vendo como a nova Igreja foi se organizando, suas
lutas internas e as diferentes concepções de Jesus e de seus
ensinamentos existentes já nos primórdios da Igreja, é difícil
aceitar que ele tenha transmitido a seus apóstolos bases
claras e concretas da Igreja que ele queria fundar. Mas isso
não é tudo: a primeiríssima comunidade cristã, formada
ainda pelos apóstolos que conviveram com o Mestre e pelos
primeiros convertidos à fé em Jesus reconhecido como
Messias e vencedor da morte, tem muito pouco a ver com
uma religião totalmente nova, ou com uma Igreja fundada ex
novo seguindo os ensinamentos de Jesus.
Hoje, graças aos estudos do chamado "judaico-cristianismo
palestino" dos anos imediatamente posteriores à morte de
Jesus na cruz, sabemos muito bem que o núcleo inicial era
composto de judeus que continuavam observando fielmente
todas as leis de sua religião original, todos os seus rituais de
culto e de higiene e todas as prescrições, até as menores.
Eram todos circuncidados e freqüentavam regularmente os
cultos da Sinagoga. Daí as discussões sobre se os novos
cristãos (que então não se chamavam assim, já que o termo
cristão surgiu muito depois e com uma conotação antes de
insulto e desprezo por parte dos romanos) poderiam
começar a prescindir do cumprimento de algumas leis
judaicas como, por exemplo, o rito da circuncisão e os rituais
higiênicos, ou se deveriam continuar a cumpri-los
fielmente.
Na verdade, mais que de seguidores de uma nova religião,
tratava-se de seguidores do judeu Jesus de Nazaré, que
dissera em alto e bom som que sua missão não era "abolir" a
lei judaica de Moisés, mas "aperfeiçoá-la". A diferença de
fundo não estava na predicação de uma religião nova, mas
em aceitar que Jesus não fora um profeta a mais, e sim o
Messias anunciado nas velhas Escrituras. Daí se deriva talvez
a originalidade e a divergência entre os judeus-cristãos e os
cristãos posteriores, os de origem helênica, que já não eram
judeus, mas que Pedro curiosamente queria submeter à
circuncisão antes de entrarem no novo cristianismo. Um
sinal evidente de que para os apóstolos, o cristianismo não
era muito mais que um judaísmo aberto aos gentios e que
aceitava em seu seio outros povos estrangeiros à Palestina,
mas que tinham de aceitar, ao mesmo tempo, que Jesus fora
um judeu praticante, apesar de crítico.
A verdadeira ruptura ocorre com a chegada do judeu fariseu
Paulo, que de perseguidor dos cristãos transformou-se em
mais um apóstolo, provocando uma reviravolta no judaico-
cristianismo, que acabaria por se afastar de suas originais
raízes judaicas. Por isso há historiadores que afirmam que a
Igreja Católica atual, com sua teologia, foi mais obra de Paulo
que de Pedro, isto é, mais grega e aristotélica que judaica e,
portanto, já muito diferente do pensamento primitivo de
Jesus. Mas o certo é que a Igreja nunca chegou a se libertar
por completo de suas raízes judaicas, que ficaram, para o
bem e para o mal, presas nos meandros de sua doutrina e até
de seus rituais.
Foi o cristianismo primitivo algo radicalmente diferente do
judaísmo?
Hoje, quase todos os teólogos católicos concordam em que o
cristianismo primitivo, formado apenas por judeus que
dirigiam sua pregação exclusivamente a outros judeus, não
era algo completamente diferente da religião judaica. "O
judaico-cristianismo palestino não era uma nova religião",
afirma César Vidal, "embora, por convenção, todo mundo
estivesse disposto a entendê-lo dessa forma. Era uma
ramificação da religião judaica do Segundo Templo, tão
legítima quanto, por exemplo, a dos fariseus, a dos saduceus
ou a dos sectários de Qumran (...). Por isso sua apologética se
baseava fundamentalmente no Antigo Testamento, não
tanto interpretado à luz de Jesus, mas de certas passagens
consideradas identificadas com ele".
A própria abertura aos gentios, isto é, aos não-judeus, não
era uma idéia original dos seguidores de Jesus, pois havia
precedentes no judaísmo do Segundo Templo. Tanto que
uma das lutas de alguns grupos judeus contra os judeus-
cristãos se centrava na cooptação desses gentios para a
própria seita.
Segundo César Vidal, se houve alguma originalidade no
cristianismo posterior foi permitir aos gentios obter a
salvação sem precisarem antes se converter ao judaísmo.
Quanto à possível originalidade do movimento em seu
estágio carismático, concentrado nas manifestações do
Espírito Santo após a Ressurreição, quando os primeiros
apóstolos e cristãos aparecem como que possuídos pelo
Espírito, isso também não pode ser considerado uma
novidade do movimento. Porque todos esses dons do
Espírito já existiam nos antigos profetas do judaísmo. Sua
única novidade poderia estar no fato de os primeiros cristãos
garantirem que o Espírito descera sobre eles, enviado por
Jesus ressuscitado dentre os mortos.
Nessas primeiras comunidades não há indícios de que os
apóstolos, seguindo diretrizes de Jesus antes de morrer,
estivessem fundando uma nova Igreja hierarquizada. Nem
sequer existia um mecanismo para a sucessão dos 12
apóstolos. A verdadeira hierarquia era a dos diferentes dons
da profecia. Tinha maior autoridade na comunidade quem
demonstrasse que recebera mais dons do Espírito e
parecesse ter mais carisma e ser mais santo.
Só mais tarde, já no século II, as coisas começaram a mudar.
Então se esboça uma Igreja hierarquizada em que a posição
de poder tem mais força que a da profecia e do carisma. O
poder começa a se concentrar nos bispos, que se erigem nos
sucessores dos apóstolos. É um poder preponderantemente
masculino, do qual são excluídas as mulheres que tanta
importância tiveram no período do carisma e da profecia.
Começa a ser criada a hierarquia com poderes jurisdicionais,
copiados em parte do poder temporal dos imperadores, e até
se começa a ver com maus olhos os dons do Espírito, que
estavam na origem do primeiríssimo cristianismo, ainda
quando os apóstolos viviam.
Daí resultou a luta sobre a maior ou menor importância dos
sucessores dos vários apóstolos, com a criação, primeiro, dos
patriarcados orientais — que a princípio tinham idênticos
poderes —, até chegar à primazia da sucessão do apóstolo
Pedro, na sede episcopal de Roma, e o subseqüente
surgimento do papado, calcado, em muitas de suas
estruturas, no poder imperial. Isso originou as lutas dos
patriarcas entre si e os cismas provocados pela doutrina que
concedia ao patriarca de Roma (futuro papa) a infalibilidade
pontifícia e, portanto, um poder real e concreto sobre todos
os outros patriarcados.
A pergunta que nunca terá resposta é se essa religião e essa
Igreja, assim concebidas e organizadas, foram pensadas e
sonhadas por Jesus ou foram apenas a criação paulatina e
teológica de algo concebido só pelos seus seguidores,
estruturado e moldado por meio de toda uma série de
interpretações de um núcleo doutrinário original de um
profeta judeu. Daquele profeta, nascido na aldeia de Nazaré,
que intuíra que a verdadeira religião do mundo deveria ir
além do judaísmo de seus pais para abrir-se a todas as
pessoas, libertando-as do jugo das antigas religiões.
A outra pergunta sem resposta é se Jesus, voltando à terra,
reconheceria a atual Igreja católico-cristã como sua ou
inspirada naquilo que ele pregou e pelo qual foi conduzido à
horrenda morte na cruz, baseando-se essa Igreja, hoje, mais
sobre o Jesus da fé do que no verdadeiro Jesus histórico de
quem tão pouco sabemos. Essa Igreja, que se diz fundada por
Jesus, não será antes a herdeira de uma fé que foi sendo
construída ao longo dos séculos sobre os frágeis pilares de
sua verdade histórica, sobre seu mito e sobre os dogmas por
ela criados?
Capítulo 12
O JESUS DOS EVANGELHOS APÓCRIFOS
Há muita ignorância, inclusive entre os cristãos, sobre os
chamados evangelhos "apócrifos", que para muitos
continuam sendo sinônimo de falsos ou proscritos, quando
na verdade a Igreja Católica nunca os condenou. Durante
muito tempo alguns dos apócrifos — alguns dos quais se
referem ao Novo Testamento, outros ao Velho — formaram
parte da Bíblia e eram citados e admitidos como oficiais. Sua
paulatina exclusão começaria muito depois, quando a Igreja
os considerou pouco fidedignos.
Antigamente, chamavam-se "apócrifos" os textos de certas
seitas secretas ou clandestinas. Hoje, dentro do cristianismo,
consideram-se apócrifos os textos que não foram
definitivamente incluídos entre os chamados "canônicos" ou
"oficiais" que, no Novo Testamento, são só os quatro
evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João.
Os escritos apócrifos são mais numerosos do que se imagina.
Beiram uma centena, embora muitos deles tenham
desaparecido completamente e de outros só se conservem
fragmentos. Uma das melhores seleções de textos apócrifos
foi publicada, em três volumes, pela editora brasileira
Mercuryo, dirigida por Maria Helena de Oliveria Triecca.
Eles foram excluídos do cânone porque pareciam
"fantasiosos" demais. E verdade que, de modo geral, eles
estão escritos num estilo mais empolado e menos sóbrio que
o dos quatro canônicos. Mas nem sempre é assim. Há
passagens dos evangelhos apócrifos que poderiam muito
bem constar, tal e qual, nos oficiais, principalmente aquelas
que tratam dos "ditos" de Jesus.
Muitos desses evangelhos devem misturar elementos reais,
talvez transmitidos oralmente pelas primeiras comunidades
cristãs, com fantasias e textos apologéticos. Mas o mesmo
não acontece com os textos canônicos? E curioso que,
enquanto já nos acostumamos a certas passagens dos quatro
evangelhos considerados "inspirados", sem que, ao lê-las,
nos pareçam fábulas infantis, nos apócrifos tudo nos parece
exagerado. Quando se trata, por exemplo, de certos milagres,
costuma-se dizer que os relatados nos apócrifos são
inverossímeis porque têm demasiada imaginação e são
espetaculares demais, esquecendo-nos das dificuldades que,
pelo mesmo motivo, tiveram não poucos exegetas para
aceitar alguns milagres dos evangelhos oficiais.
Por exemplo, o milagre de Jesus caminhando sobre as águas,
o de sua transfiguração em um ser luminoso no monte Tabor
ou quando curava cegos cuspindo na terra e fazendo um
barro que lhes aplicava nos olhos, ou o da multiplicação dos
pães e dos peixes, ou o da transformação da água em vinho
nas bodas de Caná. Se esses milagres, em vez de constarem
dos evangelhos canônicos, aparecessem nos apócrifos,
diríamos que pertencem ao reino da fantasia. Mas nos
acostumamos a eles.
Diz-se também que o Jesus menino que aparece nos
apócrifos era travesso ou mágico demais, pois fazia prodígios
a torto e a direito. E até que era um Jesus de gênio ruim e
pouco amigo da família. Mas, e as dores de cabeça que
sempre deram à Igreja alguns textos dos evangelhos
canônicos que ela não pode expurgar? Por exemplo, quando
Jesus faz pouco-caso da mãe e dos irmãos, dando a entender
que os laços de família têm pouca importância no Reino de
Deus. Ou quando ele afirma que veio separar o filho do pai e
os irmãos entre si, ou quando insulta chamando alguns de
víboras, ladrões e hipócritas.
As diferenças entre os canônicos e os apócrifos podem ser
eventualmente notadas numa certa ênfase dos segundos no
terreno apologético. Devem ter sido escritos por cristãos que
precisavam defender-se de certas acusações dos pagãos e se
excediam na exaltação da figura de Jesus, não só como
homem perfeito, mas também como Deus, tentando, ao
mesmo tempo, preencher certas lacunas deixadas pelos
quatro evangelistas oficiais sobre certos períodos da vida de
Jesus, sobretudo de sua infância e juventude. Por isso é
difícil determinar se são episódios históricos que os quatro
evangelistas deixaram de narrar por não considerá-los
importantes para seus objetivos, ou se, na verdade, foram
inventados como um romance. Talvez nunca o saibamos.
Muitas obras de arte e até festas religiosas se inspiraram nos
apócrifos
É curioso, no entanto, que muito do que hoje os cristãos
aceitam em suas crenças e que inspirou boa parte da pintura
não se refere aos evangelhos oficiais, mas aos apócrifos; e
que não poucas passagens dos evangelhos que mais tarde
seriam considerados apócrifos são citadas e comentadas nos
escritos dos primeiros Padres da Igreja.
Na piedade cristã há passagens que muitos fiéis acreditam
pertencer aos evangelhos canônicos e, no entanto, são dos
apócrifos. Por exemplo, o nascimento de Jesus em uma gruta
ou caverna. Isso só se encontra nos apócrifos. No evangelho
de Mateus, diz-se que Maria estava com o filho numa casa
quando chegaram os três reis magos do Oriente. No de
Lucas, diz-se que ele nasceu em um estábulo. E nos de
Marcos e de João, não se menciona o nascimento.
O mesmo acontece quando se diz que os magos eram três
"reis". Isso só aparece nos apócrifos. Nos canônicos fala-se
apenas em "magos". Os nomes de Melquior, Gaspar e
Baltasar também só aparecem nos apócrifos. Ou o episódio
de Verônica, a mulher que, no caminho do calvário, enxuga
com um lenço branco o rosto ensangüentado de Jesus.
Também essa cena só aparece nos apócrifos. E, no entanto,
existe até uma relíquia do lenço de Verônica em que,
segundo a tradição, ficou impresso o rosto doloroso de Jesus.
Parece que esse episódio, que fazia parte de uma das
estações do exercício piedoso da via-crúcis, desapareceu nos
últimos tempos justamente por ser mencionado apenas nos
evangelhos apócrifos. O mesmo pode ser dito sobre os
nomes dos dois ladrões que foram crucificados com Jesus,
um a sua direita, Dimas, o bom, e outro a sua esquerda,
Gestas, o mau. Ou o do soldado romano, Longino, que
fincou uma lança no flanco de Jesus. Todos esses nomes só
aparecem nos apócrifos, bem como as festas de São Joaquim
e Santa Ana, os pais da Virgem Maria, celebradas conjunta-
mente no dia 26 de julho, ou a festa da Apresentação da
Virgem no Templo, em 21 de novembro.
A maioria dos apócrifos foram conservados em traduções e
não em sua língua original e foram escritos entre os séculos
II e IV d.C., quase todos depois dos evangelhos canônicos.
Acredita-se que alguns podem ser do século I. E há apócrifos
para todos os gostos: de Natal, de São José, da Infância de
Jesus, da Virgem Maria, de São Pedro e até de Pilatos. São
evangelhos que nos transmitem a idéia que as comunidades
cristãs daquele tempo tinham de Jesus. Foram mais
difundidos no Oriente que no Ocidente. No mundo da arte e
da literatura, os apócrifos inspiraram centenas de pintores e
literatos, de Dante, na Divina comédia, a Milton, no Paraíso
perdido. Até Calderón de la Barca, nos Autos sacramentais,
faz uso dos apócrifos. Também nos afrescos da famosa
basílica romana de Santa Maria Maior há cenas extraídas dos
evangelhos apócrifos.
A mão da parteira que tentou examinar Maria para saber se
continuava sendo virgem depois do parto ressecou
E graças a esses apócrifos, mais exatamente ao proto-
evangelho de Santiago, ou o da Natividade de Maria, que
sabemos muitas coisas da infância da Virgem, da qual os
evangelhos canônicos nada contam. Diz-se que os pais de
Maria, Joaquim e Ana, tinham boa posição social, mas eram
velhos e estéreis e envergonhavam-se disso, num contexto
cultural em que a fecundidade era um bem precioso. Por
isso, Joaquim, entristecido, deixou a mulher e foi para o
deserto com seus rebanhos, onde fez a seguinte oração:
"Não sairei daqui, nem comerei nem beberei enquanto o
Senhor não me visitar; que minhas orações me sirvam de
comida e de bebida."
Ao mesmo tempo, sua esposa Ana gemia de dor, dizendo:
"Chorarei minha viuvez e minha esterilidade." Até que
apareceu um anjo para anunciar-lhe que ela teria uma filha e
que o mundo inteiro falaria de sua prole. Chegaram então
dois mensageiros para dizer-lhe que seu marido Joaquim
estava voltando do deserto com seus rebanhos, pois um anjo
anunciara a boa nova também para ele. Joaquim, ao saber da
notícia, sacrificou a Deus dez ovelhas sem mácula, entregou
12 bezerros de leite para os sacerdotes do templo e matou
cem cabritos para dar de comer a todo o povoado.
Ana esperou o esposo na porta de casa e, quando ele
chegou, atirou- se a seus braços, dizendo: "Agora vejo que
Deus me abençoou grandemente, pois sendo eu viúva deixei
de sê-lo e sendo estéril vou conceber em meu ventre. E
naquela noite dormiram juntos." Depois de nove meses, Ana
deu à luz uma menina a quem deu o nome de Maria e que
amamentou em seus seios.
Conta esse evangelho apócrifo que Maria crescia cheia de
piedade religiosa e que uma série de donzelas judias
dedicava-se a entretê-la. E que, quando ela completou 12
anos, os sacerdotes se reuniram para decidir como escolher
seu marido. E mais uma vez é um anjo que vem resolver o
problema. Diz-lhes que reúnam todos os viúvos da região,
que cada um se apresente com um cajado, e que aquele em
que Deus fizer um sinal será o esposo de Maria. Chegando
ao templo, o sumo sacerdote Zacarias recolheu todos os
cajados. Depois da oração, pôs-se a devolver um por um.
José era o último. Enquanto os outros não receberam
nenhum sinal, quando José apanhou seu cajado uma pomba
começou a voar ao redor de sua cabeça. Então Zacarias disse:
"Coube a ti a sorte de receber sob tua guarda a Virgem do
Senhor."
Em outros apócrifos, o milagre foi o cajado de José florescer,
o que aparece em várias pinturas antigas. O evangelho
apócrifo continua contando que José se assustou diante do
milagre e disse: "Acontece que já sou um velho e Maria é
uma menina. Não gostaria de ser motivo de zombaria."
Zacarias lembrou-lhe que Deus castiga duramente quem se
opõe a seus desígnios, e José aceitou cuidar de Maria. O que
se segue é muito semelhante ao que se lê no Evangelho de
Lucas.
Mas há também um episódio provando a virgindade de
Maria que não aparece nos evangelhos oficiais. Os apócrifos
insistem na tripla virgindade: Maria não conheceu homem,
sendo, portanto, virgem antes do parto; e continuou sendo
virgem durante o parto e depois dele. Para provar essa tripla
virgindade, os apócrifos falam do teste da água que se fazia
com as mulheres sobre cuja fidelidade havia dúvidas. O
marido levava a mulher diante do sacerdote, que, enquanto
recitava algumas maldições, misturava água benta à poeira da
rua e fazia a mulher suspeita beber. Se a mulher não era
culpada, não acontecia nada; mas se era, ficava estéril. No
caso de Maria, beberam a água tanto ela como seu esposo
José.
O outro teste, a prova de sua virgindade apesar do parto, foi
feito por duas parteiras. Não há acordo entre dois apócrifos
quanto a seus nomes. Uma delas crê na virgindade de Maria;
a outra, não, e pede para examiná-la enfiando os dedos "em
sua natureza". A parteira examinou Maria e, ao constatar que
ela era virgem, deu um grito, pois se deu conta de que a mão
com que examinara as partes íntimas da Virgem "caíra
carbonizada". Desesperada, a mulher se ajoelha e pede a
Deus que se compadeça dela. E um anjo a tranqüiliza. Pede-
lhe que aproxime a mão carbonizada do menino recém-
nascido. Ela assim fez, e foi curada imediatamente. Assim,
Jesus recém-nascido fez seu primeiro milagre.
Justamente para provar que Maria foi virgem depois do parto
e que não teve relações com o esposo, apesar de os
evangelhos falarem de vários irmãos e irmãs de Jesus, os
apóstolos tentam explicar o fato contando que José era viúvo
quando se casou com Maria quase menina e que em seu
casamento anterior tivera quatro filhos e duas filhas. Seus
nomes eram: Judas, Josetos, Santiago, Simão, Lísia e Lídia.
Contam que José morreu com 111 anos, que tinha 93
quando se casou com Maria e que conservou a lucidez até a
hora da morte.
Jesus era um menino travesso que fazia prodígios para vingar-se de
seus inimigos
No evangelho árabe da infância, narra-se a história da
circuncisão de Jesus, realizada aos oito dias de seu
nascimento, conforme as prescrições judaicas. Conta o
evangelho que Jesus foi circuncidado na mesma gruta em
que nascera e que uma mulher velha recolheu seu prepúcio
e o colocou num vaso de alabastro cheio de óleo de nardo
envelhecido. Como a velha tinha um filho que era
comerciante de perfumes, Maria lhe disse: "Presta atenção
para não vender esse frasco, nem que te ofereçam trezentos
dinares." Mas foi esse o vaso que um dia a prostituta Maria
Madalena compraria, lavando com seu perfume os pés e a
cabeça de Jesus. Do prepúcio de Jesus conservam-se ainda
hoje algumas relíquias em várias igrejas católicas.
No evangelho apócrifo A infância de Jesus, atribuído a
Tomé, "filósofo de Israel" (que não deve ser confundido
com o texto gnóstico do Evangelho segundo Tomé ou
Dídimo) narra-se a infância de Jesus entre os cinco e os 12
anos. É um dos mais antigos, provavelmente do século I d.C.
Aliás, parece que todos os apócrifos que tratam da infância
de Jesus, cujos originais foram traduzidos para o grego, o
sírio, o latim e o eslavo, baseiam-se num texto que não foi
conservado e que deveria ser muito antigo.
Uma das finalidades dos evangelhos apócrifos foi,
justamente, saciar certa curiosidade dos primeiros cristãos
em conhecer a primeira infância de Jesus, da qual nada
contam os evangelhos canônicos, salvo de seu nascimento e
do episódio do atrito com os pais quando ele se perde no
Templo.
A imagem que aparece do Jesus-menino nesses evangelhos é
curiosa. São tantos os prodígios feitos pelo garoto que os
apócrifos foram considerados mais fruto da fantasia de seus
autores que de uma realidade histórica. Mas vale lembrar
que, da vida adulta narrada pelos evangelistas oficiais,
restaria bem pouco se fossem excluídos os milagres do
profeta de Nazaré. Por isso, embora os milagres de Jesus
sempre tenham sido o maior motivo de censura e polêmica
com os críticos do cristianismo, ao mesmo tempo sempre
foram uma parte essencial e inevitável da vida de Jesus, que
seria inconcebível sem seu poder de fazer prodígios, curar
doentes e libertar os endemoninhados.
O que dificultou a aceitação da veracidade dos apócrifos no
que diz respeito à infância de Jesus foi o fato de a maioria
dos milagres serem, de certo modo, gratuitos, oferecendo
uma imagem, nem sempre exemplar, do menino Jesus, pois
ele surge como um garoto às vezes irascível, às vezes
briguento ou vingativo. E às vezes genioso ou birrento.
Mas a verdade é que também não é lá muito exemplar a
única cena do Jesus adolescente apresentada nos evangelhos
canônicos, aquela passagem de Lucas de que falamos acima,
onde se conta o episódio em que o menino ficou no Templo
de Jerusalém discutindo com os doutores da Lei sem avisar
os pais, que o procuram desesperados temendo que tivesse
acontecido alguma desgraça. E nos apócrifos? Neles, em suas
várias versões, Jesus já desde muito cedo aparece fazendo
prodígios espetaculares, desde dar voz a uma muda até a
encantar serpentes. Chega até a devolver a figura humana a
um homem a quem algumas mulheres tinham transformado
em mulo com seus sortilégios.
Num momento, leões e dragões vêm deitar-se a seus pés
sem lhe fazer mal. Em outro, ele cura seu irmão Santiago de
uma picada de cobra e devolve a vida ao menino Zenão, que
morrera ao cair num poço, tendo sido Jesus acusado de
empurrá-lo. Mais adiante, contrariando o descanso sabático
que proíbe aos judeus realizar qualquer tipo de trabalho
manual, Jesus modelou, num sábado, 12 passarinhos de
barro, soprou sobre eles e os fez voar. Brincando com outras
crianças, todos modelavam figuras de animais em barro.
Jesus alardeou seus poderes e mandou que os seus
começassem a caminhar. E assim foi. Ao passar um dia pelos
365 ídolos que havia no Egito no chamado Capitólio, todos
se quebraram em pedaços.
Em alguns casos, seus milagres encerravam certa crueldade.
Uma vez alguém se atreveu a destruir umas poças que o
menino Jesus fizera. Indignado, ele disse: "Malvado, ímpio e
insensato, por acaso essa água te incomodava? Pois então,
secarás como uma árvore, sem que possas dar folhas, nem
raízes, nem frutos." E conta o evangelho apócrifo que o
menino ressecou. Os pais do menino foram chorando até
José, pai de Jesus, amaldiçoando-o por ter um filho que fazia
semelhantes coisas.
Outra vez um menino vinha correndo e tropeçou nele.
Jesus, irritado, lhe disse: "Não seguirás em teu caminho", e
na mesma hora, o outro caiu morto. Quem via essas coisas
perguntava-se de onde saíra aquele menino que
transformava em realidade tudo o que dizia. José, dada a
insistência das pessoas, chamou Jesus à parte e o repreendeu
dizendo: "Por que fazes essas coisas? Não vês que as pessoas
nos odeiam e nos perseguem?" Às vezes, José perdia a
paciência e sacudia o filho pela orelha. Mas às vezes Jesus,
depois de matar alguma criança que o contrariara, apiedava-
se dela e a ressuscitava.
Outros milagres eram mais inocentes. Quando tinha seis
anos, sua mãe o mandou com um cântaro de barro buscar
água no poço. Ao voltar, ele quebrou o cântaro. Então tirou
a roupa que o cobria e com ela recolheu a água, levando-a
assim à mãe, que ficou maravilhada com o prodígio. Em
outra ocasião, Jesus foi até a praça de sua aldeia, onde um
grupo de crianças estava brincando. Vendo Jesus, todas
foram se esconder, amedrontadas. Jesus transformou-os em
carneiros de três anos e chamou-os dizendo-lhes que se
reunissem com ele, que era seu pastor. Os meninos saíram,
todos transformados em carneiros. E, diante das mães das
crianças amedrontadas, Jesus disse: "Venham, crianças, va-
mos brincar." E imediatamente os carneiros tornaram a
transformar-se em pessoas.
No evangelho armênio da infância, narra-se uma conversa
do Jesus-menino com dois soldados que podia muito bem
estar nos evangelhos oficiais: "Jesus, desejoso de mostrar-se
ao mundo, encontra dois soldados rindo. Um deles, vendo o
menino sentado ao lado de um poço, pergunta-lhe: 'Menino,
de onde és? Aonde vais? Como te chamas?' Jesus respondeu:
'Se eu o dissesse, não entenderias.' O soldado tornou a
perguntar: 'Teus pais ainda vivem?' Jesus respondeu: 'Sim,
meu Pai vive e é Imortal.' O soldado respondeu: 'Como
assim, imortal?' E Jesus insistiu: 'Isso mesmo, Imortal desde
o princípio, e a morte não tem poder sobre Ele.' O soldado
voltou a insistir: 'Que é isso de que ele viverá sempre e tem
a imortalidade garantida?' Jesus lhe disse: 'Não serias capaz
de conhecê-lo nem de ter uma idéia aproximada d'Ele.' O
soldado tornou a perguntar-lhe: 'Quem, então, pode vê-lo?'
E Jesus: 'Ninguém.' O soldado voltou à carga: 'Mas onde está
teu pai?' E Jesus: 'No céu acima da terra.' E o soldado: 'Então
como podes ir aonde ele está?' Jesus respondeu: 'Já estive lá
e agora mesmo estou em sua companhia.' O soldado: 'De
verdade, não consigo entender o que dizes.' E Jesus: 'Por
isso é indizível e inexplicável.' E o soldado: 'Então, quem
pode entendê-lo?' Jesus lhe responde: 'Se me perguntares,
eu te explicarei.' E o soldado: 'Sim, por favor, explica-me.'" E
o evangelho acrescenta que Jesus explica-lhes sua origem
divina e temporal e que os soldados aceitam sua explicação e
se despedem dele.
Trata-se, sem dúvida, de um texto apologético parecido com
outros dos evangelhos canônicos criados pelos evangelistas
para defender a origem divina de Jesus antes de encarnar na
terra.
Os apócrifos atribuem exclusivamente aos judeus a morte de
Jesus
Os evangelhos apócrifos também falam dos episódios da
morte e da paixão de Cristo. Ou melhor, falavam, porque
muitos dos que tratavam desse assunto desapareceram e só
se conhecem por meio da citação de outros autores, como,
por exemplo, alguns dos Padres da Igreja.
Mas todos eles têm uma característica em comum, que é
tentarem isentar os romanos da culpa pela morte de Jesus,
atribuindo-a abertamente aos judeus. Vê-se que foram
escritos já quando os primeiros cristãos, ou tinham medo
dos romanos, que começavam a persegui-los, ou queriam
ganhar sua simpatia. Vê-se também que, quando esses evan-
gelhos foram escritos, desconheciam-se alguns hábitos dos
judeus do tempo de Jesus, como sublinhou Jesus Palacios.
Por exemplo, diz-se que, no momento da morte de Jesus,
em vez de rasgar-se ao meio "o véu do Templo" de
Jerusalém, como contam os evangelhos canônicos, ruiu "o
dintel do portão do Templo". Talvez, por ser difícil naquele
momento explicar aos cristãos o que era o véu do Templo,
preferiram dizer que o portão ruíra, sem saber que o Templo
judeu não tinha apenas uma porta de entrada, como as
igrejas católicas, mas muitas.
No evangelho apócrifo atribuído ao apóstolo Pedro, o bom
ladrão Dimas encrespa a multidão judia dizendo: "Que mal
ele vos fez?" E Jesus, ao expirar, exclama: "Força minha,
Força minha, tu me abandonaste!" em vez do "Deus meu,
Deus meu!" dos evangelhos canônicos, e relata que depois
de morrer tiraram os cravos de suas mãos.
No mesmo evangelho afirma-se que "os judeus, os anciãos e
os sacerdotes se deram conta do mal que haviam feito a si
mesmos (ao matar Jesus) e começaram a golpear o peito
dizendo: 'Malditas nossas iniqüidades! Eis que se abate sobre
nós o juízo e o fim de Jerusalém.'"
No evangelho dos nazarenos, que também se perdeu, dizia-
se que, aos pés da cruz de Jesus, "milhares de judeus
acreditaram nele", sendo, logicamente, impossível que aos
pés de sua cruz se reunisse tanta gente.
É claro que também nos evangelhos apócrifos, tal como
ocorre nos canônicos, e talvez até mais do que nestes,
misturaram-se elementos seguramente históricos com
explicações e acréscimos de caráter apologético, conforme
as necessidades e as polêmicas do tempo em que foram
escritos. Por isso, embora durante muito tempo tenham sido
considerados tão verossímeis quanto os canônicos, deles
tampouco se pode tirar uma idéia aproximada do que Jesus
fez e disse durante sua vida mortal. Os evangelhos são
também a narração literária daquilo que algumas
comunidades cristãs — no caso dos apócrifos, principal-
mente do Oriente — pensavam e acreditavam sobre o
profeta de Nazaré.
Capítulo 13
JESUS E SUA RELAÇÃO COM AS MULHERES
O aspecto mais revolucionário do profeta de Nazaré foi, sem
dúvida, a relação aberta que ele manteve com as mulheres,
numa época e no seio de uma religião, como a judaica, em
que a mulher era vista como um ser inferior e à inteira
disposição do homem, a ponto de ser considerada seu
"colchão".
Jesus rompe, em relação às mulheres, com todos os tabus
vigentes numa época em que elas não podiam ser colocadas
no mesmo plano que os homens, pois o marido era
considerado o Sol e a mulher a Lua, ou seja, um ser sem
nenhuma luz própria, refletindo apenas a que recebesse do
marido. Jesus não acata a situação de inferioridade das
mulheres de seu tempo e as trata de igual para igual,
esquecendo todas as proibições de que eram alvo e
associando-as a sua vida pública com absoluta normalidade.
Por mais que, como já dissemos, seja difícil conhecer
historicamente os aspectos concretos da vida de Jesus, não
há dúvida de que em relação à mulher existe uma grande
coincidência entre os textos evangélicos, tanto canônicos
como apócrifos. Todos eles apresentam o profeta judeu
ignorando olimpicamente o status de inferioridade da
mulher. E mais: para ele a mulher é como o símbolo de tudo
aquilo que deve ser resgatado à sua liberdade original, o
símbolo do novo modo de vida que ele pregava, no qual não
deveria haver discriminação entre homens e mulheres,
revolucionando assim o velho conceito de poder centrado
essencialmente no mundo masculino.
Daniel Boyarin, em sua obra Israel carnal, desenvolve um
trabalho muito nobre no intento de resgatar parte da
imagem negativa da mulher na cultura talmúdica, explicando
a vontade que havia, ao menos em certas correntes mais
abertas do judaísmo, para não excluir a mulher do âmbito
dos prazeres do sexo e para que o marido levasse em conta a
fragilidade da mulher e apreciasse suas qualidades.
Boyarin tenta ao mesmo tempo justificar por que se
mantinha a mulher tão excluída do estudo da Torá, que era a
prática mais prestigiosa dentro da cultura judaica, frisando
que essa prática era mais própria do judaísmo babilônico que
do palestino, no qual se aceitavam algumas exceções a tal
proibição.
"Obrigado, Senhor, por não me fazerdes mulher"
A obra de Boyarin é sincera, mas, apesar de seu esforço por
resgatar alguns aspectos favoráveis à mulher judia, nela fica
claríssimo que, assim como nas culturas antigas, também no
judaísmo a mulher era tida como um ser inferior ao homem.
Tão inferior que, em sua oração matinal, todo judeu devia
dar graças a Deus "por não me criardes mulher". Ao que a
mulher respondia em voz baixa: "Bendito seja o Senhor, que
me criou segundo sua vontade."
Existiram e existem ainda hoje diversas interpretações dessa
oração para demonstrar que não se tratava de desprezo pela
mulher, mas de um reconhecimento do papel sacrificado
que lhe cabia na sociedade e na família.
Segundo essas interpretações benevolentes, o homem judeu
daria graças a Deus porque a mulher, em seu papel essencial
de garantir a identidade judaica e de transmissora e
perpetuadora de suas tradições e da educação dos filhos, não
podia dar-se ao luxo de estudar as Escrituras, o que a
mantinha à margem da cultura de seu tempo. Por isso o
homem dava graças a Deus a cada despertar, por tê-lo
livrado de semelhante responsabilidade, permitindo-lhe
assim dedicar-se ao estudo.
Mas basta uma olhada no que realmente representava a
mulher na sociedade do tempo de Jesus para perceber que os
homens tinham mais de uma razão para agradecer ao
Altíssimo. A mulher, de fato, era tão desprezada que o
historiador judeu Flávio Josefo chegou a escrever que ela "é
inferior ao homem em todos os sentidos".
As mulheres judias viviam tão relegadas ao mundo
doméstico e era tão importante para elas a fidelidade ao
marido que, na rua, não podiam parar para conversar com
um homem, mesmo que fosse o próprio marido, para não
levantar suspeitas quanto a sua conduta. Em casa, tinham de
viver totalmente reclusas e andar com a cabeça coberta. No
Templo, podiam chegar só até o átrio; na sinagoga, nunca
podiam participar do culto nem fazer uso da palavra. Era
proibido ensinar-lhes as Escrituras, e elas tampouco podiam
estudá-las. Durante a menstruação, eram consideradas
impuras e corruptoras de tudo o que tocassem. E enquanto
aos homens era permitido divorciar- se, elas não podiam
fazê-lo por nenhum motivo. Parece que a única exceção era
reservada à mulher casada com o curtidor de peles, a quem o
rabino podia conceder o divórcio se ela provasse que não
podia suportar o mau cheiro do corpo do marido. Mas a
decisão dependia do arbítrio do rabino.
A mulher flagrada em adultério era condenada à morte por
apedrejamento público. A palavra da mulher tinha tão pouco
valor que ela não podia testemunhar junto aos tribunais.
Tampouco podia receber herança e sua autonomia era tão
limitada que, quando o marido morria, ela passava à tutela do
cunhado e, se este fosse solteiro, devia casar- se com ele. Em
algumas passagens da Bíblia, a mulher é classificada como
um bem patrimonial do qual o homem, pai ou marido, pode
dispor à vontade.
Segundo o Eclesiástico-. "É preferível a malícia de um
homem ao bem realizado por uma mulher." E o Livro dos
provérbios qualifica a mulher de "néscia", "turbulenta" e
"lunática". Mas Boayrin tem razão ao dizer que, no tempo de
Jesus, a situação da mulher era ainda pior fora do âmbito do
judaísmo, pois neste pelo menos se cultivava um grande
apreço pelo corpo e por suas funções reprodutoras e nunca
se privou a mulher, por exemplo, de desfrutar dos prazeres
do sexo.
Nas regiões vizinhas da Palestina, a mulher era considerada
pouco mais que um animal. No culto de Mitra, que então era
florescente e que, até o século IV, competiria com o
cristianismo primitivo, a mulher era excluída de todo tipo de
religião, só podendo abraçar a prostituição sagrada.
Para os pagãos, a mulher era "o pior dos males"
O mesmo ocorria entre os filósofos pagãos. Platão, por
exemplo, afirmava que não existia lugar para a mulher e que
até sexualmente os rapazes eram preferíveis às mulheres.
Sócrates ignorava a mulher por completo, como se ela não
existisse. Para Eurípedes, a mulher era "o pior dos males".
Para Aristóteles, que foi o inspirador de Santo Tomás e que
influenciaria toda a filosofia e a teologia ocidental, a mulher
"tem uma natureza defeituosa e incompleta". Por isso, na
Suma teológica de Tomás de Aquino, chega-se a pôr em
dúvida a existência da alma da mulher. E até Cícero escreveu
que "se não existissem as mulheres, os homens seriam
capazes de falar com Deus".
Para entender quão revolucionário foi Jesus em relação às
mulheres, convém não esquecer que, não só em sua época,
mas até nos tempos modernos, entre os leigos ilustrados, a
mulher continuou ocupando um lugar inferior ao homem.
Giordano Bruno, por exemplo, afirma que a mulher "é vazia
de todo mérito" e que nela "não há mais que soberba,
arrogância, orgulho, ira, falsidade e luxúria". O próprio
Nietzsche, em seu livro Assim falava Zaratustra, escreve:
"Vais com as mulheres? Não esqueças o chicote." E o grande
Dostoiévski escreveu: "Só o diabo sabe o que é a mulher, eu
não entendo nada dela."
No século XVIII, em pleno desenvolvimento da ciência,
sustentava- se que a mulher era inferior ao homem porque
seu cérebro pesa só 1.200 gramas, enquanto o do homem
1.320. Ainda hoje não existe uma única loja maçônica em
que as mulheres sejam admitidas, nem existem mulheres
rabinas, nem mulheres sacerdotisas católicas. Mesmo nas
democracias modernas, continuou a se negar à mulher o
direito ao voto até há bem pouco tempo.
O profeta de Nazaré, para quem a mulher nunca teve menos
dignidade que o homem e que a defendeu com unhas e
dentes contra os que o provocavam para que aceitasse sua
inferioridade, logo foi revisado por seus seguidores na Igreja
que leva seu nome. A começar por Paulo de Tarso, que
omite a presença das mulheres na morte e na ressurreição de
Cristo e que cunhou a frase, abençoada até hoje pela Igreja,
de que a mulher deve viver "submissa ao marido". Também
o grande Santo Agostinho, que, depois de muito ter
desfrutado do mundo feminino em sua vida libertina
anterior à conversão, o melhor que consegue dizer da
mulher é que "é um animal que se compraz só em olhar-se
no espelho". E hoje todas as Igrejas continuam sendo
profundamente masculinas em suas estruturas oficiais.
Jesus rompe com todos os tabus contra a mulher
Rompendo com todas as tradições culturais de seu tempo,
Jesus tratou as mulheres de igual para igual. Falava-lhes em
público, e elas o acompanhavam em suas perambulações
apostólicas ao lado dos outros discípulos; ele ensinava-lhes
sua doutrina, transgredindo as normas de sua religião
judaica. Ele as tocava e se deixava tocar e acariciar por elas,
até no caso da hemorroísa, que, além de ser pagã e,
portanto, pestilenta para os judeus, era impura por sofrer de
um fluxo de sangue.
Quando entra na casa de seu amigo Lázaro, Jesus exalta a
atitude de sua irmã Maria, que, ao contrário de Marta, sua
outra irmã, que se empenhava nas tarefas domésticas e no
preparo da comida, senta-se a seus pés para escutar suas
palavras. E claro que o profeta não quis recriminar a
solicitude de Marta, preocupada em tornar sua visita
agradável, mas sim sublinhar que a atitude de Maria era
digna de elogio, pois, contrariando a cultura de sua
sociedade, que vedava o estudo da Bíblia à mulher,
preocupa-se em conhecer os mistérios do novo Reino
proclamado por Jesus.
Ele defende uma prostituta que, entrando na casa de um
fariseu que o convidara para comer, quebra um frasco de
raras essências e banha com elas os pés do missionário
andarilho. Diante do fariseu que se escandaliza e que
comenta: "Se este homem fora um profeta, bem saberia
quem, e qual é a mulher que o toca, pois é pecadora", Jesus
toma a defesa dela, dizendo que essa mulher — que para ele
era apenas uma mulher, pois não julgava sua vida — se
comportara com mais delicadeza e diligência que ele.
Outra vez, quando outra mulher repetiu o mesmo gesto
ungindo com essências preciosas os pés e o cabelo de Jesus,
os apóstolos ali presentes irritam-se dizendo que teria sido
melhor gastar o dinheiro daquele bálsamo com os pobres. O
Mestre então os repreende dizendo que aquela mulher
intuíra melhor do que seus próprios discípulos o que ele
representava, e que ela sabia que logo seu corpo seria sacrifi-
cado na cruz. Jesus não deixava passar nenhuma
oportunidade, não apenas para repetir com palavras e gestos
que a mulher não era inferior ao homem, mas também para
exaltar suas qualidades, sobretudo sua sensibilidade, como
superiores às do homem.
A cena de Jesus salvando da morte por apedrejamento a
mulher que alguns velhos flagraram em adultério é tão forte
que só depois do Concilio de Trento passou a fazer parte dos
evangelhos canônicos. Até então, essa página fora sempre
censurada. Foi ignorada pelos autores gregos até o século XI
e só chegou ao conhecimento dos latinos no século IV,
graças a São Panciano de Barcelona e a Santo Ambrósio.
Decerto essa página não era aceita como autêntica por causa
da rígida disciplina contra o pecado de adultério vigente nas
primeiras comunidades cristãs, que, em vez de cultivar a
atitude de Jesus de defesa da mulher pecadora, preferiram
eliminar essa página do evangelho.
Mas essa é uma passagem fundamental para entender as
relações de Jesus com a mulher. Conta o evangelho que
levaram aquela mulher adúltera a seus pés para provocá-lo e
pô-lo à prova. Isso mostra que o profeta tinha fama de
sempre defender a mulher, e que aos sacerdotes incomodava
o fato de ele chegar a colocá-las como exemplo para os
homens. Por isso os sacerdotes querem saber se, em face do
grande pecado do adultério, ele também se atreveria a
defender aquela mulher. Não esperavam que ele não apenas
a defendesse, mas também os expusesse ao ridículo dizendo
que, se eles estavam tão limpos de pecado, isto é, se eles
nunca tinham praticado o adultério, que a apedrejassem. E
conta o evangelista que todos foram saindo, "sendo os mais
velhos os primeiros". Curiosamente, o único homem que
poderia ter atirado a primeira pedra era ele. Mas não o faz,
salvando a mulher da morte. Não lhe impõe penitências.
Despede-se dela com um carinhoso: "Vai, e não peques
mais."
Alguém escreveu que nesse dia Jesus restabeleceu em sua
sociedade a igualdade entre o homem e a mulher, pois se o
homem não era condenado à morte por adultério, a mulher
adúltera tampouco devia ser condenada. E há algumas
teólogas que afirmam que Jesus foi além: que nesse dia,
enquanto os homens se afastavam com o coração
endurecido, sem purificar-se de sua arrogância nem de seu
orgulho, a mulher adúltera voltou para casa reconciliada,
com a alma leve e em paz, nova, ressuscitada, levando no
coração, para nelas pensar por toda a vida, as únicas palavras
que Jesus escreveu com o dedo na poeira do chão do
Templo.
Além disso, nessa cena Jesus aparece como contrário à pena
de morte. E ele, que jamais defendeu a transgressão à Lei de
Moisés, que era a de seus pais, deixou claro, no entanto, que
era uma hipocrisia os homens poderem pecar impunemente
ao passo que, pela mesma falta, a mulher era condenada à
morte. Jesus poderia ter deixado que a Lei fosse cumprida à
risca, que apedrejassem a mulher, limitando-se a abençoá-la
e a perdoá-la na hora da morte, como fazem hoje os capelães
católicos com os condenados à cadeira elétrica ou como
fizeram em todas as guerras diante dos fuzilados ou à porta
dos fornos crematórios.
Mas não: Jesus começou por salvar a vida física da mulher,
que é o primeiro bem do ser humano e que ninguém, nem o
Estado, tem o direito de sacrificar. E só depois de salvar sua
vida é que ele tranqüilizou sua consciência, animando-a a
ser fiel daí em diante. Tão diferente dessa atitude do profeta
contra a pena de morte — à qual ele seria injustamente
condenado — é a que a Igreja continua a manter em seu
catecismo universal, onde defende sua legitimidade em
determinadas circunstâncias. O próprio Vaticano, como
Estado independente, manteve a pena de morte dentro de
seus muros, para seus cidadãos, até Paulo VI, que a aboliu
depois do Concilio Vaticano II.
Jesus nunca negou nada a uma mulher
Enquanto os outros profetas de Israel curavam só os homens
doentes, Jesus não fazia distinções e curava também as
mulheres e tirava delas os demônios. O próprio evangelista
Lucas diz que, junto com seus discípulos, seguiam Jesus
"também algumas mulheres, que ele tinha livrado de
espíritos malignos", entre elas a prostituta Maria Madalena,
"da qual Jesus havia expelido sete demônios".
Uma das mulheres curadas por Jesus foi a sogra de Pedro.
Conta o evangelho que o profeta entrou em sua casa, pegou
em sua mão e, depois de curá-la, sentou-se à sua mesa, onde
ela serviu comida a ele e a seus discípulos. São três gestos
bem significativos e revolucionários. Primeiro, um profeta
ou rabino que se aproxima de uma mulher, algo proibido;
segundo, pega em sua mão, mais proibido ainda; e, terceiro,
deixa que ela o sirva, apesar de impura por estar doente.
Não há uma única ocasião nos evangelhos em que Jesus
negue algum pedido feito por uma mulher. Mesmo no
episódio da cananéia que lhe implora a cura de sua filha
atormentada por um demônio, apesar de certa relutância
inicial — porque era uma mulher pagã e os profetas judeus
não deviam relacionar-se com os pagãos, e muito menos
lhes fazer favores —, Jesus acaba curando-a e elogiando a fé
da mãe. Menos brandos eram os discípulos, que, diante da
insistência da mulher que os seguia pedindo-lhe o milagre
para a filha, dizem a Jesus: "despede-a: porque vem gritando
atrás de nós".
Em geral os apóstolos estranhavam, quando não os
escandalizava, a atitude liberal de Jesus para com as
mulheres, uma categoria que também da parte deles merecia
pouca consideração. No episódio da samaritana, os
discípulos chegam a se retirar porque não podiam acreditar
no que seus olhos viam: uma espécie de flerte entre Jesus e
uma mulher samaritana, ou seja, uma inimiga da religião
judaica. Uma mulher que, como Jesus revelou, tivera cinco
maridos, e o que tinha não era dela. Isto é, uma super
pecadora, já que as mulheres não podiam ter nenhum
homem além do marido.
Jesus esquece o que essa mulher era e entabula com ela um
interessante diálogo sobre a água material e a água espiritual.
E acaba cometendo a maior das heresias: incumbi-la, apesar
de mulher e pecadora, de anunciá-lo em seu povoado para
que pudessem recebê-lo como profeta judeu. Por isso aquela
mulher pagã foi considerada a primeira missionária do
cristianismo, numa época em que as mulheres só podiam
viver fechadas em casa servindo ao marido e cuidando dos
filhos.
Jesus chegou a comparar a mulher com o novo Reino que
ele pregava. Um reino de liberdade, de igualdade e de
compaixão de Deus pela fragilidade humana. Jesus defendeu,
com gestos concretos, a igualdade da mulher com o homem:
não evitava seu trato, costumava fazê-la protagonista de seus
milagres e objeto de suas parábolas e muitas vezes a tomava
como exemplo para os homens.
Jesus era contra o divórcio porque só o homem podia se
separar
A Igreja tem insistido há séculos que Jesus foi um grande
opositor do divórcio. Não é verdade. E verdade que ele
discutiu o assunto repetidas vezes com os discípulos e com
os fariseus que o provocavam. O que Jesus contesta não é o
divórcio em si, mas o fato de que, no seu tempo, o divórcio
só fosse permitido aos homens e não às mulheres. Por isso
ele defende a mulher flagrada em adultério. O que Jesus diz
aos homens, numa sociedade em que eles podiam
impunemente repudiar a mulher e expulsá-la de casa, é que
não devem fazê-lo, uma vez que esse direito não era
concedido à mulher.
Por isso as palavras de Jesus não podem ser interpretadas no
contexto atual, em que a dissolução do casamento é
permitida a ambas as partes. Naquela época, a vítima, a parte
discriminada e que sempre saía perdendo era a mulher, não
o homem. Assim, o que Jesus fazia ao se opor ao divórcio —
como apontaram não poucas mulheres teólogas da libertação
—, era defender a mulher, que vivia à mercê da decisão do
homem de se desfazer ou não dela. Ainda mais porque não
era permitido à mulher refazer sua vida, tendo de ficar sob a
tutela da família.
Diferentemente da legislação grega, romana ou egípcia do
tempo de Jesus, a lei judaica não permitia à mulher pedir o
divórcio. O adultério era uma desonra apenas para o
homem, nunca para a mulher traída. Comentando esse fato
e as palavras de Jesus — "Todo o que repudiar a sua mulher
(...) a faz ser adúltera: e o que tomar a repudiada, comete
adultério", John Kloppenborg assim escreve: "Ao afirmar
que o homem que repudia a mulher e torna a se casar
comete adultério contra ela (...), Jesus dá como certo que a
honra não é (apenas?) androcêntrica, mas também ou
igualmente ginocêntrica. A honra continua a ser
considerada um pseudo-bem, mas agora pertence também à
mulher. Por isso, ao se divorciar da mulher e casar de novo,
o marido estaria "roubando" a honra dela. Na Palestina da
época de Jesus, onde não era permitido às mulheres pedir o
divórcio, não era fácil à mulher manter a dignidade. Esse é o
motivo pelo qual Jesus utiliza de forma tão surpreendente
um termo tão dramático como o do adultério. E assim
ressalta e põe em primeiro plano a honra da esposa, que
deve ser protegida e respeitada tanto quanto a do marido.
E como sublinha Crossan: "Não é que Jesus se opusesse ao
divórcio. Para condenar o divórcio, bastaria dizer que o
divórcio nunca é legal. Aqui o ataque, na verdade, se dirige
contra a 'honra androcêntrica' cujos efeitos debilitadores
transcendiam, em boa medida, o fato circunstancial do
divórcio. Era também a base da desumanização da mulher,
das crianças e dos homens não-dominantes".
De certo modo, aquela discriminação do tempo de Jesus,
que defendia só os direitos e a honra dos homens, é o que a
Igreja de Roma continua a perpetrar hoje quando a Sagrada
Rota permite a anulação do casamento canônico. Em geral,
são os homens que pedem à Igreja a anulação, e o
conseguem e nem sempre por meios honestos. O pior é que,
quando a Igreja declara nulo um casamento, o homem não
tem mais nenhuma obrigação para com sua ex-mulher.
No divórcio civil, hoje a mulher conta pelo menos com a
proteção da lei. A postura da Sagrada Rota se assemelha em
muito ao que se praticava no judaísmo do tempo de Jesus,
quando o homem, ao apresentar o libelo de repúdio, deixava
a mulher completamente desprotegida. E por isso que Jesus,
que sempre defendeu a mulher e a colocou no mesmo nível
que o homem, se opunha a um divórcio unilateral, em
prejuízo exclusivo da mulher.
Alguns se perguntam o que Jesus diria sobre o divórcio nos
dias de hoje. É algo que jamais saberemos. Talvez ele
defendesse, como os teólogos mais progressistas, que a
fidelidade é sempre um bem a perseguir, mas nunca imporia
cargas insuportáveis nem permitiria que se perpetuassem
situações dramáticas apenas por fidelidade a uma lei, levando
em conta sua famosa sentença de que "o sábado" — leia-se a
lei — "foi feito para o homem e não o homem para o
sábado". Ou seja, para ele a lei era só um instrumento para
libertar as pessoas, não para escravizá-las.
Há quem estranhe o fato de o profeta de Nazaré abordar tão
pouco a questão do sexo. É verdade que se trata de um tema
quase marginal nos evangelhos. Ali não se fala do aborto,
nem das relações sexuais, nem da vida íntima dos casais. Foi
a Igreja que, depois, fez do sexo um tabu e um dos pilares da
repressão da consciência.
Duas maneiras diferentes de entender o corpo e o sexo
Para entender por que Jesus falou tão pouco do assunto e, ao
mesmo tempo, por que era tão livre em seu trato com as
mulheres e até sentia certa predileção pelas prostitutas, de
quem chegou a dizer que, no reino de Deus, estariam à
frente dos próprios sacerdotes, deve-se lembrar a diferença
fundamental entre a concepção do corpo e do sexo do
judaísmo e do cristianismo posterior, contaminado pelo
helenismo e pelo platonismo. O judaísmo rabínico atribuía
ao corpo a mesma importância que mais tarde o cristianismo
atribuiria à alma.
Se é verdade que o cristianismo conservou muitas raízes
judaicas, a começar pelo sentimento de culpa e pelo sentido
trágico da vida, em matéria de sexo, porém, a mudança foi
radical. Enquanto para o judaísmo a alma é algo que vive
dentro do corpo, sendo este, sua carne, a verdadeira
realidade do homem, para o cristianismo, ao contrário, o que
define o indivíduo é a alma, sendo o corpo apenas um
instrumento passivo dela. Por isso o sexo era para os judeus
uma coisa positiva e digna de ser vivida com felicidade,
enquanto para os cristãos, por ser um elemento fundamental
do corpo e da carne, convinha reprimi-lo para deixar a alma,
o elemento essencial da pessoa, livre.
E aí se abriu um abismo que ainda continua intransponível.
São duas formas diferentes e até opostas de conceber a
realidade humana. São diferenças não apenas teológicas, mas
também sociais e culturais. Enquanto para o cristianismo, e
em parte para toda a cultura ocidental, a virgindade, por
exemplo, adquire um valor em si, para o judaísmo rabínico o
importante é a procriação, que garante a continuidade da
espécie e mantém viva a história humana. Essa é a razão de a
sexualidade ter um valor marcadamente religioso, assim
como a comida, estreitamente associada ao sexo no que ela
tem de prazer e de criadora de vida, ao passo que no
cristianismo a sexualidade foi estreitamente associada ao
mundo do pecado e do demônio e a comida passou a inte-
grar, ao lado da luxúria, os pecados capitais.
Assim se explica o fato de que Jesus nunca obrigasse seus
discípulos a jejuar, que aceitasse com prazer os convites dos
amigos, inclusive de gente rica, para seus banquetes, a ponto
de ser tachado de beberrão e comilão. Assim também se
explica que seu primeiro milagre tenha sido transformar
água em vinho para que a festa de casamento de uns amigos
pudesse continuar. Não é estranho, portanto, que todos os
apóstolos de Jesus, exceto um, fossem casados, só se
exigindo deles que tivessem uma única mulher, e ao mesmo
tempo fossem os primeiros bispos da Igreja. Só mais tarde, a
partir de um sínodo celebrado em Granada, a Igreja, mais
por razões de poder e para não dividir suas propriedades do
que por motivos pios, começou a impor o celibato
obrigatório a sacerdotes e religiosos.
Tendo presentes essas diferenças, tampouco choca o fato de
Jesus nunca ter entrado nos detalhes de como os casais
deviam viver e exercer sua sexualidade. Na cultura judaica
de seu tempo, apesar de a mulher — como em todas as
culturas de então — ser vista praticamente como um objeto
à disposição do homem, existia uma grande liberdade no
exercício da sexualidade entre marido e mulher, permitindo-
se tudo, incluído sexo oral e anal, desde que a mulher
concordasse.
Por isso era difícil imaginar um judeu conservando o
celibato ou a virgindade por motivos religiosos. Se alguns o
faziam, como, por exemplo, alguns profetas que se
dedicaram exclusivamente à pregação, era apenas para poder
dedicar todo seu tempo à sua missão sem ter de se ocupar
com a família. Esse pode ter sido o caso de Jesus, embora
sempre fique a pergunta de por que ele não se casou, sendo
a procriação e os filhos o bem maior para um judeu. O
exercício da sexualidade era sempre um bem e nunca um
pecado.
Sem dúvida, os judeus entenderam muito bem — e mais
tarde foi o judeu Freud quem melhor aprofundou a questão
— que a sexualidade traz nas entranhas um lado destrutivo
que é inevitável. Mas aceitavam que igualmente inevitável
era o desejo de exercê-la e que, em sua essência, ela era uma
força positiva que garantia a existência e a felicidade
corporal.
Uma concepção quase oposta é a defendida pelo
cristianismo, construída com clichês, primeiro do
helenismo, depois da concepção ocidental do corpo. Tanto é
que só no Concilio Vaticano II, e com mil matizes e
hesitações, veio a se aprovar um texto em que se começa a
vislumbrar o exercício da sexualidade como algo além de
mal menor para garantir a procriação e a perpetuação da
espécie, algo que pode ser também um "instrumento
humano de diálogo".
Mas daquilo ficou muito pouco, e a Igreja continua com uma
visão negativa do sexo, condenando seus excessos e desvios
como um pecado até maior que os pecados contra o espírito
e a liberdade, permitindo-se legislar — sem nenhuma
tradição nas Escrituras — até sobre o comportamento dos
casais na intimidade de seu quarto.
A Igreja está muito distante daquela liberdade de espírito de
Jesus em suas relações com as mulheres e da forma como ele
as associou à sua missão evangélica, sem distinção de sexo,
ao lado dos homens, seus discípulos. A Igreja Católica é hoje
a única instituição do mundo democrático que ainda
continua a discriminar a mulher, impedindo-a de subir até o
último degrau do sacerdócio, contrariando abertamente a
atitude do profeta de Nazaré que, segundo os Evangelhos
por ela aprovados, na manhã da ressurreição, apareceu antes
às mulheres que aos apóstolos que, mortos de medo,
esconderam-se.
E coube a elas confirmar aos frouxos discípulos que Jesus
não morrera para sempre, que nada morre definitivamente e
que tudo pode começar de novo. O que, por outro lado, toda
mulher, sobretudo se foi mãe, pode entender melhor que os
homens, pois é em suas entranhas e com seu sangue que a
vida refloresce a cada dia. Não seria isso o que Jesus intuiu
quando apresentou a mulher como o rosto de Deus e as
crianças, o fruto da mulher, como os únicos capazes de
entender os mistérios da sabedoria?
Os homens das Igrejas, os filósofos e escritores de todos os
tempos disseram coisas terríveis da mulher, mas também
disseram coisas sublimes como que é "a poesia de Deus" ou
que "se elas tivessem mais poder, haveria menos órfãos no
mundo". Sem dúvida, haveria menos guerras e violência.
O mundo, muito provavelmente, seria hoje muito diferente
se a história tivesse sido escrita também pelas mulheres e
não apenas pelos homens e se Deus, além de ser homem e
masculino, também refletisse o rosto e a alma da
feminilidade. O profeta maldito de Nazaré intuiu que a
mulher, mais do que o homem, é o símbolo mais visível do
rosto compassivo e não vingativo de Deus. E, por isso
mesmo, temível e perigosa para o poder. Jesus a defendeu
contra todos os poderes. E elas, as mulheres, amaram-no
mais que a ninguém, fiéis a ele até aos pés da cruz.
Capítulo 14
ERA JESUS UM MAGO, UM PROFETA OU UM
EXORCISTA?
Os milagres de Jesus, principalmente os que não estão
ligados a alguma cura, isto é, os de caráter mais mágico,
como os de andar sobre as águas, multiplicar pães e peixes e,
sobretudo, ressuscitar mortos, foram sempre um dos maiores
motivos de contestação fora da Igreja. Chegou-se a pensar
que todos os milagres dos evangelhos eram pura ficção,
inventados no primeiro século do cristianismo para
demonstrar aos pagãos os poderes de Jesus.
A crítica moderna, na época do racionalismo ilustrado,
negou veementemente a existência dos milagres narrados
nos evangelhos, afirmando que tinham sido inventados com
finalidades apologéticas. Os defensores da idéia de que o
cristianismo foi uma religião inventada afirmam, por sua
vez, que toda religião precisa de milagres para se afirmar e
que os primeiros cristãos também tiveram de atribuir a Jesus
uma boa porção de milagres para provar que se tratava de
uma nova religião. O que se pretendia com os milagres
atribuídos a Jesus era demonstrar que ele era superior a
outros magos e curadores de seu tempo e, portanto, que
tinha poderes divinos.
R. Bultman chama a atenção para o fato de que é o
evangelista Marcos quem narra mais milagres de Jesus e de
que Marcos, como helenizado que era, teria seguido os
cânones da mitologia ao escrever o evangelho. Segundo
Bultman, também é curioso que a famosa Fonte Q,
considerada muito antiga, praticamente ignore os milagres
de Jesus, ou seja, que enquanto existe um evangelho dos
"ditos de Jesus", nunca existiu um evangelho dos "milagres".
Outros autores, como Morton Smith, estão convencidos de
que Jesus era um mago e um verdadeiro exorcista que os
rabinos judeus consideravam possuído pelo demônio, em
nome do qual fazia seus prodígios, e que somente mais
tarde, quando os evangelhos foram escritos, Jesus teria sido
apresentado como um personagem divino que operava todo
tipo de milagres. Quem tem razão?
É claro que pode haver nos evangelhos alguns episódios
inventados ou retocados com fins apologéticos, mas a
característica mais evidente do profeta de Nazaré é que ele
fazia milagres, entendendo-se essa palavra como atos ou
prodígios que os outros mortais não eram capazes de
realizar, como curar um leproso, libertar um
endemoninhado de seus fantasmas, ressuscitar um morto ou
fazer um paralítico andar.
E mais: se o povo seguia Jesus — e o seguiam, sobretudo, os
mais pobres e marginalizados, os párias, os esquecidos —,
era, mais do que por suas palavras, por causa dos prodígios
que realizava. Um evangelista diz que Jesus "curava a todos".
Por isso até os exegetas mais críticos têm pouquíssimas
dúvidas de que um dos aspectos mais autênticos
apresentados nos evangelhos é a atividade milagrosa de
Jesus. São mais de duzentos os episódios em que Jesus, em
sua breve vida pública, aparece realizando algo prodigioso.
Jesus e seus milagres
Se excluíssemos da história de Jesus os seus milagres, pouco
nos restaria de sua vida, porque conhecemos apenas sua vida
pública e esta se baseia fundamentalmente em sua atividade
como curador e exorcista. E foi por meio de seus milagres
que sua missão de profeta e de anunciador de um novo
Reino foi se manifestando. Os milagres eram como o
carimbo que provava a autenticidade de suas palavras. Se ele
podia dizer a um paralítico que se levantasse, com mais
razão tinha autoridade para dizer que seus pecados haviam
sido perdoados.
Porque seus milagres não se destinavam apenas a mostrar
que ele era um mago maravilhoso, isto é, não eram feitos
para impressionar as pessoas, por pura vaidade ou em busca
de lucro. O que Jesus pretendia com seus milagres — além
de aliviar a dor das pessoas, já que ele não pertencia à
teologia do sofrimento — era, segundo não poucos teólogos
modernos, tornar crível sua doutrina nova, que
revolucionava os velhos esquemas de poder e anunciava
novos tempos em que o lobo pastaria pacificamente ao lado
da ovelha e as espadas seriam transformadas em arados.
Não havendo, portanto, dúvidas, segundo os historiadores e
biblicistas, quanto à atividade milagrosa de Jesus, o que cabe
perguntar-se é se, na realidade, era um mago como tantos
outros de seu tempo ou se era um homem com poderes
terapêuticos especiais ou, ainda, um homem tão
poderosamente religioso que era capaz de curar as pessoas e
expulsar os demônios.
Sobre a possibilidade de que Jesus conhecesse as artes
mágicas de seu tempo e que pudesse ter sido iniciado nelas,
sobretudo na magia egípcia, escreveram-se volumes inteiros.
Morton Smith, em seu livro Jesus the magician: Charlatan or
son of God,'?, não tem dúvidas de que, em Jesus, as
atividades mágicas predominaram sobre os ensinamentos
religiosos e que todos os componentes milagrosos do
cristianismo estavam prefigurados na magia daquela época.
Contudo, muitas das obras que podiam lançar alguma luz
sobre a atividade mágica de Jesus foram logo destruídas,
desde os tempos de Constantino, quando a Igreja começou a
ser cortejada pelo poder e os bispos receberam a ordem de
queimar todos os escritos chamados "heréticos", que eram
apenas os escritos que contradiziam as fontes oficiais. Assim
desapareceram para sempre centenas de escritos sobre Jesus
e suas atividades que hoje seriam valiosos para conhecer a
verdadeira natureza de seus milagres e a influência que a
cultura de seu tempo pode ter exercido em suas artes
mágicas.
Mas, segundo o pouco que restou, não há dúvida de que a
fama de Jesus se deveu principalmente às curas que ele
realizou. Há quem sustente que foi por causa destas que ele
morreu na cruz, porque a multidão de pobres o seguia
convencida de que era o novo Messias devido aos prodígios
que realizava. E que isso atemorizou as autoridades romanas
num momento em que a Palestina pululava de revoltas
nacionalistas contra a ocupação romana.
Aqueles que não aceitam a existência de milagres
interpretam as curas prodigiosas de Jesus como obra de um
grande terapeuta. Desde que se soube que certas doenças,
como a cegueira, a surdez, a mudez, a paralisia etc., podiam
ser causadas pela histeria e que sua cura repentina é possível
com o desaparecimento dessa histeria, os milagres de Jesus
são interpretados como curas naturais resultantes da fé que
ele infundia nos doentes, já que naquele tempo, quando não
se conhecia o fenômeno da histeria, as pessoas atribuíam as
curas a verdadeiros milagres.
Segundo alguns analistas, isso explicaria a passagem do
evangelho de Marcos em que se conta que Jesus não
conseguia fazer milagres em seu povoado de Nazaré, onde
não acreditavam nele e o consideravam um louco e lunático.
Justamente por não acreditarem em Jesus, ele não conseguia
curá-los, pois, segundo a teoria da histeria, para conseguir a
cura de um doente psíquico, este precisa acreditar no
terapeuta.
É assim que, hoje, muitos interpretam não poucos milagres
ocorridos na gruta das Aparições de Lourdes e no Santuário
da Virgem de Fátima. É a força da fé que faz andar os
paralíticos ou devolve a visão aos cegos.
Os milagres de Jesus suscitavam nas pessoas primeiro
surpresa, depois admiração e até medo. Era considerado um
grande mago, e isso talvez explique porquê, quando ele foi
detido, torturado e crucificado, as pessoas, decepcionadas,
abandonaram-no, pensando que se ele, que tinha
ressuscitado os mortos, não era capaz de se defender da
morte, era porque havia perdido seus poderes.
Para entender o que as pessoas daquela época podiam pensar
ao ver Jesus fazer prodígios é preciso lembrar que elas já
estavam habituadas a outros profetas milagrosos da história
de Israel e que os magos eram famosos na Samaria, onde não
se professava a religião judaica. Acontece que Jesus não
pertencia nem à classe sacerdotal, nem à linhagem dos
profetas e suas origens eram muito humildes. Por isso sua
família e seus conterrâneos se perguntavam como era
possível que aquele homem, de quem nada sabiam até que
apareceu em sua vida pública, pudesse fazer aqueles
prodígios ou ser um escolhido de Javé. Por isso preferiam
pensar que estava possuído por um demônio ou que era um
doente "lunático".
Quem sustenta que Jesus conhecia as artes dos magos de seu
tempo acredita que ele poderia tê-las estudado no Egito,
onde passou algum tempo, segundo afirma o evangelho de
Mateus. Em alguns escritos apócrifos, com efeito, diz-se que
Jesus esteve no Egito como trabalhador e que lá aprendeu as
artes mágicas.
Por outro lado, a Palestina esteve muito tempo sob
influências estrangeiras, principalmente fenícias e egípcias.
A persa, sobretudo, foi importante tanto para o
desenvolvimento do monoteísmo como da demonologia.
Também eram conhecidas na Palestina as práticas mágicas
gregas. Nos trezentos anos que separam a conquista de
Alexandre da aparição de Jesus, a Galiléia fora governada por
gregos e romanos.
Todas essas culturas aceitavam que o universo é povoado de
criaturas sobrenaturais, como anjos, demônios, espíritos do
além-túmulo etc.
Entre as práticas da magia clássica se encontram, por
exemplo, as maldições como conjuro. E tais conjuros já
aparecem na Bíblia. Jesus também usa as maldições, e os
evangelhos apócrifos da infância atribuem ao menino Jesus
vários prodígios ligados a suas maldições.
No Talmude, Jesus é acusado de prática de feitiçaria. E até
nos evangelhos ele é acusado de ser mago, quando se diz
que era um "agente do mal", um termo que significava
"mago" na linguagem do Código de Direito Romano, como
observou Isabel Herranz. Os primeiros cristãos eram
acusados, por seus inimigos e perseguidores, de praticar as
artes da magia. A própria prática da eucaristia, em que o pão
e o vinho se transformam na carne e no sangue de Jesus era
considerada como uma espécie de magia antropofágica
praticada pelos cristãos na clandestinidade. E sabe-se que, na
Igreja primitiva, o carisma da cura dos doentes e dos
exorcismos era um elemento primordial, que depois foi se
perdendo, provavelmente devido às acusações de que os
cristãos usavam a magia.
Já se realizaram estudos sobre os possíveis paralelismos entre
os famosos papiros mágicos egípcios e alguns milagres
realizados por Jesus. Assim como os magos egípcios, Jesus
utiliza em suas curas certas fórmulas mágicas e misteriosas,
como quando ressuscita a filha de Jairo usando a fórmula
mágica em aramaico "talitha cumi . O evangelista Marcos
traduz essas palavras como "menina, (eu te mando)
levantate". Mas durante muito tempo essa frase circulou
como uma fórmula mágica cujo significado ninguém sabia.
O episódio da ascensão de Jesus aos céus faria parte de outro
ritual mágico em que, depois de vários dias de purificação e
jejum, o mago conseguia essa ascensão misteriosa que
equivalia a alcançar a imortalidade. Apolônio de Tiana, que,
segundo a lenda, subiu aos céus como Jesus, disse que esta
era a verdadeira prova da divinização, o objetivo final da
magia.
Assim como os grandes magos e xamãs, Jesus retirou-se por
quarenta dias no deserto a fim de se preparar para a vida
pública de fazedor de prodígios. O que o demônio propõe a
Jesus em suas tentações são justamente coisas típicas dos
magos, como voar através das nuvens ou transformar pedras
em pães. Os evangelhos dizem que Jesus não caiu nas
tentações do demônio que lhe propunha fazer milagres
próprios dos magos, justamente para combater a idéia de que
fosse um mago como os de seu tempo.
Não há um único milagre realizado por Jesus que já não
fosse atribuído aos magos da época, desde acalmar uma
tempestade até ressuscitar um morto ou prever o futuro. E
até as condições para conseguir o milagre são muito
semelhantes às que constam nos manuais de magia antiga,
como a necessidade da fé no mago ou a de pedir a graça aos
deuses. A célebre frase de Jesus: "Pedi e dar-se-vos-á",
aparece de forma idêntica nos papiros mágicos. Há cenas,
como aquela em que Jesus mistura saliva com barro para pôr
nos olhos de um cego, que em seguida recupera a vista, que
pertencem claramente aos rituais de magia. E, por último, há
quem interprete a anotação, que sobreviveu no Novo
Testamento, de que Jesus pertencia "à ordem de
Melquisedec" como uma confirmação de que ele era um
iniciado, já que Melquisedec fora uma figura importante das
principais doutrinas antigas. As palavras "segundo a ordem"
demonstrariam que Jesus pertencia a um grupo iniciático e
que teria sido escolhido para perpetuar aqueles
ensinamentos.
Jesus e os magos
Que dizer de tudo isso? Sem dúvida, a Igreja sempre
ressaltou a diferença entre a atitude de Jesus ao fazer seus
milagres e a dos magos da antigüidade. Dizem que, enquanto
os magos faziam os milagres por interesse próprio e para
enriquecer, Jesus os fazia de forma altruísta e só para o bem-
estar dos demais. E que nunca pediu dinheiro para realizar
um prodígio. Muitos teólogos fazem questão de diferenciar a
atividade curativa de Jesus e a magia clássica. Para eles, as
curas e o exorcismo de Jesus estavam sempre ligados ao
perdão dos pecados, já que, na religião judaica daquele
tempo, as doenças ou possessões diabólicas costumavam ser
vistas como conseqüência dos pecados cometidos.
Segundo esses teólogos, a magia trabalha, ao contrário, com
a idéia de maldição, que seria a causa da perturbação e à qual
se tenta destruir com o ato mágico. Ainda segundo eles, há
também magias destinadas a provocar o mal a uma pessoa a
pedido do cliente. Mas a magia é só isso?
Dominic Crossan lembra as diferenças entre medicina,
milagre e magia no tempo do Novo Testamento e, portanto,
das primeiras comunidades cristãs da Palestina, descritas por
Howward Clark Kee: "A medicina é um método de
diagnóstico dos males do homem e uma prescrição dos
mesmos, baseada na combinação de uma teoria com a
observação do corpo humano, de suas funções e suas
disfunções. O milagre implica em postular que a cura pode
ser realizada recorrendo aos deuses, através de sua
intervenção, seja diretamente, seja por meio de
intermediário. A magia é uma técnica graças à qual, por
meio da palavra ou do gesto, se atinge um determinado fim,
que pode ser a solução dos problemas de quem recorre a ela
ou o prejuízo do inimigo causador do problema." Em outras
palavras, comenta Crossan: "Se a técnica é eficaz e consegue
superar essa força hostil, a ação é mágica. Mas se for
considerado que é fruto da intervenção de um deus ou uma
deusa, será um milagre. E se, ao contrário, é vista como um
meio de facilitar as funções naturais do corpo, seu nome será
medicina."
Segundo David Aune, um dos maiores especialistas nessa
matéria, os antropólogos modernos rejeitam a velha
dicotomia entre magia e religião, e é nessa linha que ele
afirma: "A magia e a religião estão tão estreitamente ligadas
que é praticamente impossível considerá-las duas categorias
socioculturais distintas."
A conclusão a que Crossan chega é que "há aspectos da
magia que são malignos, desumanos, patológicos e nocivos.
Mas isso ocorre também na religião, e em ambos os casos é
preciso identificá-los e denunciá-los". E acrescenta: "O
principal, em todo o caso, é que a distinção dogmática, que
implica afirmar que o que nós praticamos é religião e o que
os outros praticam é magia, deve sempre ser tida como tal,
ou seja, a mera confirmação política daquilo que se
considera legítimo e oficial, contraposto àquilo que não é
legítimo e não é oficial."
Não resta dúvida de que nem todos os magos de todos os
tempos eram iguais, e alguns acreditavam de verdade na
magia como uma força em si. Nem se pode reduzir a
verdadeira magia a um simples embuste ou jogo de
prestidigitação. A magia, em todos os tempos, a branca e a
negra, a positiva e a negativa, sempre foi uma coisa muito
séria e misteriosa que provavelmente ainda não foi
examinada a fundo por causa dos preconceitos que existem
contra ela por parte do mundo racionalista.
Mas isso não é tudo. Como afirmam não poucos autores, a
diferença entre os milagres e a magia é mais social ou
política do que prática. Na antigüidade, se um indivíduo
fazia certos prodígios e seus seguidores os consideravam
milagres, ele era aclamado como um ser divino. E seus
detratores imediatamente diriam que era um mago possuído
pelo maligno.
Nada impede, por outro lado, que Jesus tenha conhecido as
artes da magia pagã de seu tempo. Nem seria de estranhar
que fosse um homem extremamente sensível com uma
grande capacidade de sedução e de persuasão, dotado de
poderes psíquicos excepcionais que ele utilizava para aliviar
a dor e para convencer os homens de que a fé pode fazer
milagres.
Não sabemos se foi obra dele ou algo que seus sucessores lhe
atribuíram, mas nos escritos evangélicos é evidente que
Jesus, para que não o tomassem como mais um mago,
insistia em que não era ele que fazia os milagres, mas seu
Pai, e que nenhum milagre era possível sem a fé em Deus.
Alguns biblicistas, no entanto, tendem a estabelecer uma
diferença entre os milagres realizados por Jesus com alguma
finalidade benéfica, como as curas ou a expulsão dos
demônios, e os puramente gratuitos ou espetaculares, como
os de andar sobre as águas, acalmar as tempestades ou subir
aos céus. Para eles, estes seriam os únicos milagres
"inventados" pelos evangelistas, enquanto os verdadeiros
seriam aqueles realizados com sua força curativa e de
exorcista.
A conclusão de Crossan é que Jesus "em sua condição de
mago e taumaturgo, constituiu um fenômeno muito
problemático não apenas para seus adversários, mas também
para seus próprios seguidores". Entre os milagres de Jesus,
sem dúvida, o da ressurreição dos mortos representa o maior
desafio para os exegetas, já que a Igreja, nestes 2.000 anos de
história, nunca atribuiu aos numerosos santos e mártires
canonizados o milagre da ressurreição. É isso o que leva a
pensar que esses milagres poderiam ter sido introduzidos
pela Igreja primitiva para provar aos pagãos o caráter
"divino" de Jesus que, no entanto, nunca disse que era Deus.
Capítulo 15
TEMOS CONHECIMENTO DE PALAVRAS
PRONUNCIADAS ORIGINALMENTE POR JESUS?
Como já dissemos, não é fácil saber se os acontecimentos da
vida de Jesus narrados pelos evangelistas são históricos ou
foram manipulados pelos cristãos primitivos com fins
apologéticos. Mas, e as palavras pronunciadas pelo profeta de
Nazaré? São originais? Também foram inventadas? Podemos
crer na autenticidade de algumas delas? E original, por
exemplo, a importante oração do pai- nosso? E a condenação
dos ricos? E as bem-aventuranças?
As palavras que Jesus teria pronunciado ao longo da vida,
seus provérbios e sentenças, constavam da famosa Fonte Q,
que recolhia, sobretudo, seus ditos. Foi possível reconstruí-
la parcialmente a partir dos evangelhos de Mateus e Lucas,
que recorreram a essa Fonte para escrevê-los, ainda que,
sem dúvida, alterando muitas de suas sentenças originais.
Essa fonte era uma recompilação de frases do profeta Jesus
que gozou de grande prestígio nas primeiras comunidades
cristãs. Devia tratar-se de uma tentativa de recolher, assim
como os filósofos haviam leito com Epicuro, as palavras mais
famosas do Mestre, que os cristãos primitivos conheciam
pela tradição oral. Resquícios dessa Fonte aparecem nos
escritos dos primeiros Padres da Igreja, no evangelho apócri-
fo de Tomás e nos textos gnósticos.
As sentenças da Fonte Q foram escritas em aramaico e mais
tarde traduzidas para o grego. Mas não há consenso entre os
biblicistas quanto à sua autenticidade. É difícil saber se as
palavras de Jesus, antes de serem codificadas por escrito, já
haviam sido manipuladas, censuradas ou sofrido acréscimos
que, mais do que a Jesus, pertenciam à doutrina das
primeiras comunidades cristãs.
Há, sim, um consenso quanto à possibilidade — nunca a
certeza — de que algumas de suas frases tenham chegado a
nós de forma bastante literal. Utilizam-se vários critérios
para analisar a originalidade das palavras de Cristo. O
primeiro deles diz respeito à censura: seriam autênticas as
sentenças que, mesmo podendo criar problemas e até causar
certo escândalo entre as primeiras comunidades, nem por
isso foram expurgadas. Deviam estar tão arraigadas na
tradição, que foi impossível manipulá-las.
Outro critério igualmente utilizado pelos exegetas é o da
dificuldade: seriam autênticas as frases que, devido a seu
hermetismo, dificilmente poderiam ter sido acrescentadas
ou alteradas, já que, mesmo para os cristãos, não era nada
fácil entender o que queriam dizer ou aceitar seu significado
literal. Um exemplo disso são as palavras mais duras contra a
riqueza e o poder. De fato, algumas delas, como as da
maldição dos ricos ou as da bênção dos pobres, foram
amenizadas. Ao falar das dificuldades dos ricos para entrar
no Reino de Deus, acrescenta-se que os ricos podem ao
mesmo tempo ser pobres "de espírito". E na parábola em
que Jesus diz ser mais fácil um camelo passar pelo buraco de
uma agulha do que um rico obter a salvação, põe-se logo em
sua boca que "aos homens isto é impossível, mas a Deus
tudo é possível", atenuando a exigente sentença do Mestre.
Um último critério é a repetição: as frases ou sentenças de
Jesus que aparecem em vários evangelhos, inclusive nos
apócrifos, têm mais probabilidades de serem autênticas do
que aquelas que aparecem em um só.
A votação com bolas coloridas
Um bom exemplo da dificuldade de reconstruir as palavras
pronunciadas por Jesus durante sua vida pública é a
malograda experiência de Robert Funk, do Westar Institute.
Na tentativa de reconstruir as palavras de Jesus, convocou-se
um encontro internacional de especialistas na matéria.
Durante cinco anos, os eruditos trabalharam em diversas
universidades para discriminar as palavras que eles julgavam
ser realmente de autoria de Jesus das que, a seu ver, ele não
poderia ter pronunciado.
O esforço foi inútil, pois nem aqueles grandes luminares da
ciência bíblica conseguiram chegar a um acordo. O que eles
fizeram, então? Puseram cada uma das sentenças de Jesus
em votação, para que cada qual decidisse, segundo as
pesquisas que realizara, se a considerava autêntica ou não. A
votação foi feita com bolas de quatro cores. A vermelha
significava: "Isto foi dito por Jesus"; a rosa: "Jesus disse algo
parecido"; a cinza: "Isso não foi dito por Jesus, mas contém
idéias dele"; e a preta: "Isso não foi dito por Jesus e pertence
a uma tradição posterior".
A iniciativa foi muito criticada. Muitos se perguntaram se
era possível "submeter Jesus a votação". Houve quem a
tachasse de presunçosa e até de blasfema. Mas, na realidade,
todo o Novo Testamento é uma reconstrução, já que os
textos originais não chegaram a ser traduzidos. Mesmo The
Greek New Testament, a versão do Novo Testamento da
United Bible Societies, apresenta nas notas quatro graus de
confiabilidade do texto, assinalados com as letras A, B, C e
D.
Ou seja, os próprios evangelhos são considerados uma
reconstrução dos textos que chegaram a nós com diferentes
graus de credibilidade.
O trabalho desse grupo de especialistas com as bolas
coloridas foi publicado num livro intitulado The five gospels.
What did Jesus really say? O texto foi impresso nas quatro
cores usadas na votação. Entre as frases de Jesus impressas
em preto, isto é, tidas como não pronunciadas por ele e
pertencentes a uma tradição posterior, constam, por
exemplo, as importantes palavras da instituição da eucaristia,
quando Jesus oferece aos apóstolos o pão e o vinho,
dizendo-lhes que são seu corpo e seu sangue. Na mesma
linha, The Greek New Testament atribui a essas palavras a
letra C, isto é, o grau daquelas que dificilmente teriam sido
realmente pronunciadas por ele.
Em The Jive gospels, o evangelho com o maior número de
palavras de Jesus tidas como não pronunciadas por ele é o de
João. Não contém uma única frase considerada histórica. E
somente uma foi considerada como "algo parecido" ao que
Jesus poderia ter dito, aquela em que ele afirma: "Ninguém é
profeta na própria terra." Entre as frases consideradas
originais está a do evangelho de Marcos: "Dai a César o que é
de César, e a Deus o que é de Deus."
No Evangelho de Lucas, todos os especialistas concordaram
em que são originais as bem-aventuranças aos pobres, aos
famintos e aos que choram, assim como a do "amor aos
inimigos" e a parábola do Bom Samaritano. Essa parábola é
tão dura que a tradição a conservou sem retoques. Nela,
Jesus elogia a conduta do samaritano que se compadece de
um ferido abandonado por uns bandidos à beira da estrada,
enquanto um levita, isto é, um personagem da instituição
religiosa judia, passa ao largo sem se deter. Justamente,
existia uma grande rivalidade entre os judeus e os
samaritanos, considerados ateus e inimigos do judaísmo.
Jesus diz a seus apóstolos que sigam o exemplo do ateu
samaritano e não do crente religioso judeu, que não teve
compaixão pelo irmão ferido.
Segundo essa pesquisa realizada em várias universidades do
mundo, só uma escassa dezena de frases pode ter sido
pronunciada por Jesus tal como nos foi transmitida.
São originais as palavras do pai-nosso e das bem-
aventuranças?
Mas, então, o que dizer de palavras tão importantes como as
da oração do pai-nosso, que é a prece fundamental dos
cristãos? Foi ou não foi ensinada aos apóstolos, para que
estes depois a transmitissem aos cristãos primitivos,
chegando a nós tal como hoje é recitada por milhões de fiéis
em todo o mundo?
É quase certo que Jesus nunca ensinou tal oração a seus
discípulos. Pelo menos não sob a forma de oração, ainda que
esta contenha uma ou outra frase pronunciada pelo Mestre.
Trata-se, muito provavelmente, de uma oração que foi sendo
construída nas primeiras comunidades até fixar-se na forma
em que chegou a nós.
De fato, como Crossan registra agudamente, existem nos
textos sagrados três versões distintas do pai-nosso. Uma é a
que aparece no evangelho de Lucas como uma invocação ao
Pai, seguida de cinco súplicas. Poderia ser a versão recolhida
da Fonte Q: "Pai, santificado seja o teu nome. Venha a nós o
teu reino. O pão nosso de cada dia nos dá hoje. E perdoa-nos
de nossos pecados, pois também nós perdoamos a todo o
que nos deve. E não nos deixes cair em tentação." A outra
versão é a do evangelho de Mateus, mas a oração começa
dizendo: Pai nosso, "que estais nos céus", e nela se fazem
não cinco, mas sete súplicas. As duas súplicas novas são:
"Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu" e
"mas livrai-nos do mal". Pode ser que Mateus tenha
introduzido a fórmula usada em sua comunidade quando ele
escreveu o evangelho. A terceira versão é a da Didaché,
onde também aparecem sete súplicas em vez de cinco.
A oração começa no singular: "Pai nosso que estais no céu".
Poderia ser uma variante da versão conhecida por Mateus.
O fato é que todas as súplicas feitas no pai-nosso cristão
existem nas preces judias. Mas existe uma peculiaridade que,
segundo os exegetas, só pode ser de Jesus: chamar Deus de
"Pai" (Abba, em aramaico), um termo totalmente
desconhecido na tradição palestina pré-cristã.
Outro problema é se nessa oração, que pode ter sido
construída com frases de Jesus pronunciadas em diferentes
lugares e tempos, quando se fala do "pão nosso de cada dia"
está-se fazendo referência a algo espiritual e simbólico ou
simplesmente ao pão real, tirado do forno, que era o
alimento básico dos camponeses do tempo de Jesus. A
mesma coisa quando Jesus pede a Deus que perdoe nossos
pecados assim como nós "perdoamos aos nossos devedores".
Também aqui, segundo não poucos especialistas, Jesus se
referia às dívidas monetárias, que, de acordo com a tradição
judaica, deviam ser perdoadas pelo menos todo ano santo ou
de jubileu.
Como diz John Kloppenborg: "O pão e as dívidas eram
simplesmente os problemas mais imediatos que tinham de
enfrentar os camponeses galileus, os jornaleiros e os
habitantes das cidades que não integravam nenhuma elite."
O benefício mais evidente e imediato que proporcionava o
novo reino de Deus anunciado por Jesus era o alívio dessas
duas cargas, como sublinha Crossan.
E as bem-aventuranças? Na tradição cristã, tão ou mais
importantes que as palavras do pai-nosso são as chamadas
"bem-aventuranças", sobre cuja interpretação se escreveram
tantos livros. Trata-se de sentenças do profeta de Nazaré que
contrariam toda a lógica do mundo, toda a evidência de
qualquer sociedade de qualquer tempo e lugar. Quem se
atreveria a dizer que os pobres são os felizes? Ou os que
choram, ou os humilhados e perseguidos? Ou que os
famintos seriam saciados?
Mas é justamente por causa da dificuldade que essas
afirmações implicam que a maioria dos especialistas
considera as bem-aventuranças como realmente
pronunciadas por Jesus. E eram tão difíceis de aceitar que, ao
longo dos anos, foram sendo gradualmente edulcoradas.
Provavelmente, não se tratou de uma predica pronunciada
num só dia, mas de uma série de afirmações do Mestre que
depois foram reunidas, formando um único sermão, o
chamado "Sermão da montanha" ou "Das bem-aven-
turanças". Além disso, as bem-aventuranças não podem ser
interpretadas de forma isolada de outras afirmações de Jesus
sobre os ricos ou sobre as crianças, por exemplo, ou
separadas de certas parábolas.
Por outro lado, tais afirmações de Jesus não seriam
entendidas fora do contexto da pregação do chamado "Reino
de Deus", a expressão mais usada por Jesus durante toda sua
vida. Tratava-se da mensagem fundamental com que ele
anunciava um modo de vida diferente daquele que a
sociedade bem estabelecida costuma praticar e louvar. Como
tão bem explicou Crossan, quando Jesus usa a expressão
"Reino", "o tema em discussão não são os reis, e sim os
dirigentes; não é o reino, e sim o poder; não é um lugar, e
sim o Estado". E uma maneira completamente diferente de
ver a vida, os valores, as relações humanas.
Claro que não poucos, a começar pelos discípulos,
entendiam o discurso do reino de maneira mais literal, como
se a missão de Jesus fosse estabelecer um novo regime social
e político para libertar o povo de Israel do jugo dos romanos.
E por isso que as afirmações mais radicais de Jesus sobre a
vida que se deveria levar para participar desse novo "Estado",
dessa nova maneira de encarar o mundo e de usar o poder e
a riqueza, foram mais tarde objeto de glosas, acréscimos e
adulteração. Ou de interpretações burguesas.
As palavras mais autênticas de Jesus são as mais radicais
Hoje, os biblicistas defendem cada vez com maior firmeza a
tese de que a postura de Jesus perante a sociedade de seu
tempo — ou, caso se prefira, face ao modelo universal de
sociedade baseada na dominação dos poderosos sobre os
fracos, dos ricos sobre os pobres e dos valores temporais
sobre os espirituais - foi radical, sem interpretações nem
distinções. Jesus não foi um profeta de meias-tintas, de
arranjos para agradar a todos. Não foi um social-democrata.
Foi um homem de extremos: "Oxalá que tu foras ou frio, ou
quente; mas porque tu és morno, e nem és frio, nem
quente, começar-te-ei a vomitar de minha boca." "Vim
separar o pai do filho." "Dai a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus." "Amai a vossos inimigos, fazei bem
aos que vos têm ódio."
E nesse contexto que se devem entender as bem-
aventuranças e a doutrina sobre o novo reino anunciado por
Jesus, e que muito provavelmente constituem o núcleo mais
seguro e histórico de sua pregação.
Quando Jesus compara o reino de Deus com as crianças,
quando diz ao intelectual Nicodemo que, se ele quiser se
converter ao novo reino, terá de voltar ao ventre materno e
tornar a nascer, não está fazendo poesia, nem uma exaltação
da infância. Muito pelo contrário: o que está tentando dizer
é que Deus está mais perto daquilo a que o mundo não dá
valor. Jesus falava para os camponeses pobres da Galiléia. O
que era uma criança para aqueles trabalhadores? Certamente
não era uma metáfora poética sobre a inocência. E, apesar de
os judeus não praticarem o infanticídio, como outros povos
a seu redor, uma criança era o símbolo do que não tem
valor, do que carece de direitos próprios. Naquele tempo, o
pior insulto para um adulto era ser comparado a uma
criança.
O que significava comparar o reino a um grão de mostarda, a
menor das sementes? Por que não o comparou ao majestoso
cedro? Ou à levedura que faz a massa crescer nas cozinhas
simples das donas-de-casa? Jesus nunca comparou o reino de
Deus a realidades grandiosas, fortes, fastuosas, e sim ao que
há de mais humilde, pequeno e insignificante. Por isso,
quando ele falava da felicidade reservada aos pobres, não se
referia à pobreza como foi entendida mais tarde pelos
cristãos primitivos que pertenciam antes à classe média, isto
é, a pobreza oposta à riqueza. Não se referia aos "pobres de
espírito", expressão que Jesus certamente não usou e que foi
acrescentada às suas palavras. Os pobres, para ele e para a
sociedade daquele tempo, eram os mendigos, os sem casa e
sem trabalho, os leprosos que viviam à beira das estradas, os
famintos de verdade, isto é, os que morriam de fome.
E a bem-aventurança dos "perseguidos"? Também nesse
caso, tudo leva a crer que a interpretação posterior feita
pelos evangelistas foi fruto de uma interpretação das
primeiras comunidades, que entendiam essa bem-
aventurança como dirigida aos cristãos que eram vítimas de
perseguições por acreditarem na nova religião de Jesus. Nada
disso. Quando o profeta de Nazaré diz que são bem-
aventurados os perseguidos, ele se refere, segundo as
modernas traduções do grego, a língua em que os
evangelhos chegaram a nós, aos "perseguidos", aos
"ultrajados", aos "humilhados", aos "rejeitados" pela
sociedade, a todos os párias, os joões-ninguém, os que
sempre incomodam. Aqueles pobres diante dos quais, ainda
hoje, certa sociedade moderna diz que a pobreza "fede". Por
isso Jesus prometia — estava louco? — a felicidade para os
que fediam, que feriam o nariz da sociedade do bem-estar de
seu tempo. Do dele e de todos os tempos, porque a miséria
jamais será perfumada em nenhum lugar do mundo.
Capítulo 16
REVOLUCIONÁRIO POLÍTICO OU PACIFISTA
REVOLUCIONÁRIO?
Mesmo sabendo bem pouco sobre Jesus, podemos nos fazer
uma pergunta: ele foi um revolucionário político ou um
pacifista revolucionário? Trata-se de mais um dos pontos que
foram causa de divisão dentro e fora da Igreja, uma vez que
o profeta de Nazaré foi uma espécie de coringa para todos os
usos. Dele se serviram os ditadores, apresentando-o como o
defensor da ordem constituída; os revolucionários de todos
os tempos: maoístas, marxistas, castristas, zapatistas e até os
trabalhadores sem-terra do Brasil. Mas também os pacifistas,
os verdes, os ecologistas e até mesmo os budistas.
Os poderes conservadores e ditatoriais são, sem dúvida, os
que mais têm usado e abusado da figura de Jesus, para
defender a ordem, a propriedade, a família e a pátria. Todos
os ditadores sempre ficaram do lado de Jesus. Sempre
adoraram, e continuam adorando, aparecer aos olhos dos
súditos como devotos filhos da Igreja. Todos. Basta pensar
no caudilho Franco, na Espanha, ou nos diversos ditadores
da América Latina e da África.
Os ditadores sob palio, com concordatas de ouro assinadas
pelo Vaticano ou recebendo em público a comunhão da
mão de cardeais e papas, estão registrados em todos os
arquivos fotográficos da história. Lembro-me de casos muito
concretos de dois desses ditadores catolicíssimos. O
primeiro aconteceu durante a coroação do papa João Paulo I,
o pontífice que durou apenas 32 dias. Assistia à cerimônia o
general argentino Videla. Durante o ato, na praça de São
Pedro, os radicais soltaram sobre a multidão congregada em
torno do novo papa balões coloridos com um cartaz que
dizia: "Videla, assassino". Um desses balões acabou pousando
sobre o altar em que o papa estava oficiando a missa solene.
Um monsenhor retirou-o com um gesto de visível desgosto.
No dia seguinte, o semanário L'Expresso publicou uma
charge que mostrava Videla vestido de general
aproximando-se do papa para dar-lhe o abraço de
congratulação. Depois do abraço, o papa nota que alguns
pontos de sua batina branca em que o general encostara as
mãos estavam manchados de sangue.
O outro caso aconteceu na viagem do papa Wojtyla a
Santiago do Chile no tempo em que Pinochet ainda reinava,
apesar de a maioria dos chilenos lutar pela democracia. João
Paulo II foi visitar Pinochet no Palacio de la Moneda, o
mesmo onde Allende fora sacrificado. E Pinochet armou
uma cilada. Quando o papa saiu à sacada central do palácio
para abençoar as pessoas ali presentes, Pinochet se postou
atrás dele e, junto com o pontífice, também ele deu sua
bênção à multidão. Todos os ditadores adoram a religião e
sempre se sentem apoiados e protegidos pela fé católica.
Jesus nunca foi um homem da ordem
Mas uma coisa é certa: Jesus não foi um homem da ordem,
do sistema, conservador do status quo. Quanto a isso não há
a menor dúvida, e a Igreja nunca deveria tê-las alimentado.
O profeta de Nazaré sempre foi um inconformista, um
homem de ruptura do sistema estabelecido. Embora fosse
um bom judeu, sempre clamou contra o imobilismo de sua
religião, contra a escravidão do sábado, contra as leis que
oprimiam os homens, sobretudo os mais pobres, contra a
escravidão econômica dos sacrifícios do Templo.
Jesus, que não foi sacerdote nem membro da classe
dominante de seu tempo, nem amigo dos poderosos, tendo
chegado a qualificar Herodes de "raposa", não suportava o
peso de uma ordem política e social que estava a serviço dos
mais abastados, marginalizando aqueles que não tinham
recursos. Demonizou aquela sociedade que considerava
impuros todos os doentes e aleijados e lhes negava qualquer
ajuda, sustentando que seus males eram um castigo por seus
pecados.
O grande erro da Igreja foi ter passado de perseguida, nos
primórdios do cristianismo, a mimada, quando foi alçada a
religião de Estado pelos imperadores romanos. É bom
lembrar, também, que foi um ditador, Mussolini, que nos
tempos modernos fez do Vaticano um Estado independente
e, na prática, transformou o papa em rei, em chefe de Estado
com poderes absolutos.
A Igreja continuou sendo perseguida e fustigada ao longo
dos séculos, mas, curiosamente, não pelos poderes que
crucificaram Jesus, e sim pela massa de pobres dos regimes
ateus, que consideraram que a Igreja traíra sua vocação
original de defensora dos párias e dos desvalidos. Foi
justamente o Concilio Vaticano II que pediu perdão ao
mundo por essa traição da Igreja, perguntando-se se teria
existido o comunismo se a Igreja tivesse permanecido fiel a
sua missão fundamental de ser a defensora e guia dos pobres
e perseguidos, e não dos ricos e poderosos.
Mas se Jesus não foi um homem da ordem, e sim um
agitador de consciências, isso quer dizer que foi um
revolucionário? Que era mais um dos messias
revolucionários que tentavam sublevar os palestinos contra
o jugo dos romanos? Que pertencia à seita dos zelotes, o
grupo mais revolucionário e extremista de seu tempo? Foi
sua missão mais política do que religiosa?
E o que não poucos têm defendido ao longo dos séculos.
Provavelmente todos os movimentos revolucionários de
esquerda no mundo manifestaram, no mínimo, simpatia pela
figura de Jesus de Nazaré. E muitos até o tomaram como
bandeira de suas idéias extremistas. Dentro da própria Igreja,
chegou-se a falar em "teologia da revolução", algo bem
diferente e muito mais politizado que a chamada "teologia da
libertação".
Sem dúvida, tudo leva a crer que algum dos 12 apóstolos que
seguiam Jesus pelo menos passara pelo grupo extremista dos
zelotes. Também é verdade que, como bom judeu, Jesus não
devia estar nem um pouco contente de ver seu país sob o
domínio dos romanos. Talvez até simpatizasse com os
movimentos violentos que, em seu tempo, lutavam pela
libertação da Palestina. E muitos dos traços do novo reino
que ele anunciava podiam dar a entender que ele também
sonhava com um tempo em que Israel, livre de seus
opressores, pudesse reinar feliz e tranqüilo. Também em
certa ocasião deixou escapar que ele viera trazer a espada, e
não a paz, e criar a discórdia entre os membros de uma
mesma família. E é verdade que por momentos deve ter
tocado as raias da contestação política, posto que foi
condenado à morte como subversivo.
Não foi um simples agitador social
Nada disso. Jesus não foi um simples agitador social, por
mais que alguns de seus discípulos tenham por vezes
acreditado que o era. Por isso ele teve de resistir à tentação
dos apóstolos mais inflamados, que estavam dispostos a
utilizar métodos mais contundentes contra seus opositores.
Como na ocasião em que, depois de serem mau acolhidos
em uma aldeia, os apóstolos lhe perguntaram se ele não
queria que enviassem o fogo sobre seus moradores, para que
os consumisse. Jesus os repreende, dizendo-lhes com isso
que não o entenderam, pois não era essa a revolução que ele
viera promover.
E quando Jesus diz aos apóstolos que ele será preso e
condenado à morte, estes lhe respondem que têm ali
algumas espadas, o que indica que alguns deles andavam
armados. Mas de novo Jesus lhes pede que guardem suas
espadas, já que ele deve obedecer os desígnios de seu Pai.
Jesus tampouco foi um pacifista no sentido atual do termo. E
se é verdade que ele recriminou a máxima judia do "olho por
olho, dente por dente", propondo em seu lugar o amor aos
inimigos, também é verdade que essa doutrina já existia em
algumas seitas judaicas mais liberais. O que Jesus condena é a
vingança, não a violência. Ele apenas repudiava a violência
das armas. Por isso não foi um terrorista, como os zelotes,
ou como teriam preferido alguns de seus discípulos. Mas, em
outros sentidos, Jesus foi, sim, um adepto da violência.
Contra a violência que oprime os mais fracos.
Jesus foi um profeta sem papas na língua. Ele sempre tendeu
a usar uma linguagem dura e provocadora. Irritava-se e
intimidava. Chegou a insultar os poderosos abertamente:
chamou Herodes de "raposa", tachou de "lobos em pele de
cordeiro", de "cria de víboras" e de "hipócritas" as
autoridades do Templo, ou seja, o poder religioso que, até a
ocupação romana, dispunha sobre a vida e a morte das
pessoas. Por isso há quem sustente que o mataram não tanto
pelo que ele fez, mas pelo que disse.
Ele, sem dúvida, defendeu uma mudança radical, mas não
violenta. E uma mudança que ia além da simples revolução
política ou social. Para ele, não era suficiente que os
romanos abandonassem a Palestina. Gostaria que isso
acontecesse, mas não lhe bastaria. Se bastasse, ele teria sido
mais um dos tantos profetas e messias de seu tempo que
passaram sem deixar rastros na história. A dele foi uma
revolução mais profunda e global, que provavelmente nem a
própria Igreja entendeu por inteiro.
Sua revolução não se baseava nas armas, na força bruta, e
nem sequer na mudança para uma sociedade mais
democrática, aberta e justa. O que Jesus propôs foi uma
revolução a partir dos fundamentos mesmos do ser humano.
A religião — a de seu tempo e a de todos os tempos —, com
sua imagem de um deus vingativo e justiceiro, era a que
escravizava os homens e atava as consciências, a que
atemorizava e justificava a desigualdade social. Pois bem,
Jesus veio propor a grande revolução de um Deus que faz o
sol nascer para justos e pecadores, que não faz distinção
entre homens e mulheres, entre fiéis e infiéis, entre puros e
impuros, pois, como já anunciara o profeta Isaías, mesmo
que uma mãe, no auge da loucura, do desespero ou da
maldade possa abandonar um filho, Deus nunca o fará. É a
certeza suprema desse amor, que é maior que o mundo.
Isso explica por que sua revolução, que começava de dentro,
com a consciência da dignidade suprema da pessoa, foi
melhor entendida pelos escravos, pelos pobres, pelos
doentes, pelos humilhados. Melhor, sem dúvida, que os
poderosos, que sempre se valeram da religião para impor
pesos e jugos, que, como dizia Jesus, eles mesmos
ignoravam, por se sentirem acima da lei.
Rompe com todos os esquemas do poder tradicional
Jesus rompe revolucionariamente com esses esquemas. E
com todos os esquemas do poder opressor da sociedade,
chegando a defender que "o maior tem de servir ao menor".
Sua revolução era tão profunda que privilegiava todos
aqueles que a sociedade dos acomodados desprezava: das
prostitutas aos possessos, passando pelos leprosos — que
equivaliam aos aidéticos de hoje —, pelos mendigos, pelos
sem-teto e desempregados. Eles eram o que havia de mais
valioso como símbolo e metáfora da preferência de um Deus
que é acima de tudo Pai e Mãe, e que, como tal, tem
preferência pelo que de mais fraco e indefeso é dado à luz
pelas entranhas do mundo.
A revolução de Jesus era global e completa porque ele não se
limitava a atacar as estruturas sociais e políticas ao pregar a
fraternidade universal, mas também abrangia o misterioso e
obscuro reino interior das profundezas da psique e da
personalidade humana. E essa revolução incluía ricos e
pobres, sãos e doentes. Aí sim se tratava de dar uma
reviravolta na mentalidade humana e nas relações entre as
pessoas para criar um mundo mais digno de ser vivido.
Por isso sua revolução exigia a libertação de todos os medos,
a começar pelo medo de Deus; a libertação de toda
escravidão exterior, mas também das interiores como a da
falsa certeza, a da vontade de revanche contra o próximo, a
da inveja que paralisa, a da violência contra si mesmo, a da
pressa inútil que impede a contemplação do mistério e das
maravilhas da criação. Libertação de tudo o que impede o
homem de ser homem, a mulher de ser mulher e a criança
de ser criança.
Jesus muitas vezes condenou a pressa revolucionária dos
apóstolos, que queriam arrancar as pragas a todo custo,
correndo o risco de junto arrancar a erva sã. Nisso Jesus
antecipou Marx, que dizia que a principal virtude do
verdadeiro revolucionário não era a pressa, e sim a
paciência.
Acontece que todos os grandes revolucionários da história
sempre foram bons conhecedores do homem. Por isso
sabiam que as coisas grandes e boas jamais são construídas
com impaciência. Se isso é verdade no plano terrenal, é mais
verdadeiro ainda no mundo interior, onde toda evolução e
revolução tem de ser feita passo a passo, como no
desenvolvimento da inteligência de uma criança. Jesus sabia
que uma revolução global demanda tempo para se
consolidar, que, se não finca raízes, acaba abortando. É a
triste história de muitas revoluções fracassadas. Como ele
dizia, ninguém constrói uma fortaleza sobre um terreno de
areia. Sei que a palavra amor está prostituída, que em nossa
cultura ela perdeu significado, mas Tolstói já dizia: "Não
façais nada que contrarie o amor." Parece simples, mas aí
está a raiz de toda revolução duradoura. De fato, quase todas
as revoluções, a começar pela que a Igreja Católica iniciou
por influência de Jesus para mais tarde abandoná-la,
fracassaram porque, em vez de centrar o foco revolucionário
na recuperação da dignidade humana pisoteada, acabaram
elas mesmas pisoteando-a ao transformarem-se em
fascismos, nazismos, vazias ditaduras do proletariado e até
em santas inquisições.
Nesse sentido, o escritor italiano de esquerda Danilo Dolci
escreveu: "Revolução não quer dizer atear fogo na
prefeitura, dando motivo para que o inimigo aumente a
opressão. Revolução é curar o incurável; é tornar cada
homem responsável pela própria vida; é saber comunicar- se
com o próximo com paciente sabedoria."
A revolução é maior que a justiça, incluída a social. Porque
esta pode desembocar estruturalmente numa ordem
constituída, favorecendo por fim os que mais têm. Pode
acabar em reformismo. Só o respeito profundo da dignidade
humana pode mudar o mundo na raiz, impedindo que tanto
clamor de justiça termine em flagrantes injustiças.
Sua paz violenta
É sob essa luz que se deve entender uma passagem das mais
obscuras do evangelho, e, por isso mesmo, uma das mais
autênticas. E aquela em que Jesus diz: "O reino dos céus
sofre violência, e os que fazem violência é que o arrebatam."
Os espiritualistas sempre sustentaram que Jesus se referia à
violência "interior", isto é, que só entrariam no novo reino
aqueles que declarassem guerra às suas paixões interiores.
Sem negar que o homem tenha de lutar contra a porção
mais destrutiva de si mesmo, contra seu sentimento de
morte, é evidente que Jesus devia estar querendo dizer algo
mais. Sobretudo porque em seguida acrescenta outra frase
misteriosa: "Quem tem ouvidos de ouvir, ouça." No sermão
da montanha, ele afirma que nem toda violência é constru-
tiva, mas diz que são "bem-aventurados os que padecem
perseguição por amor da justiça". Mas quem é que se expõe à
perseguição por amor da justiça? Sem dúvida, quem
desmascara os poderosos que criam as situações de injustiça
que oprimem os mais fracos.
O texto anterior de Jesus aparece no evangelho em um
contexto muito sintomático. O profeta estava falando de
João Batista, dizendo que ele não é "uma cana sacudida pelo
vento", que não é alguém que vive e se veste com o
conforto dos que moram em palácios reais, e que ele era
"mais que profeta". Pois bem, esse mesmo João Batista que
Jesus tanto elogia era um profeta que usava toda a sua
violência verbal contra o poder, que gritava sua rebelião
contra a hipocrisia do rei, a quem disse na cara: "Não é lícito
ter a mulher de teu irmão." Ele o disse a Herodes, que
tomara Herodíades, a mulher de seu irmão Filipe. E por
dizer isso, Herodes mandou decapitá-lo.
Em certa ocasião, Jesus afirma não ter vindo ao mundo para
trazer a paz, e sim a guerra. Considerando que Jesus não
organizou uma resistência violenta ao sistema, nem foi um
terrorista nem um militante político no sentido estrito, cabe
perguntar o que ele entendia por paz e por guerra. E contra
quem ou contra quê era a sua guerra.
Como Jesus não foi um simples revolucionário nem um
mero pacifista, há quem tenha preferido falar de sua
"violência pacífica" ou de sua "paz violenta". Não seriam a
mesma coisa? Não. Dizer que Jesus foi um "revolucionário
pacífico" significa que a força de sua mensagem está na força
da revolução, mas que esta não é a das armas. A paz aqui
seria um adjetivo. Mas se dissermos que sua luta era por uma
"paz violenta", a ênfase recai na força intrínseca e profunda
do conceito de paz, que, para ser eficaz, tem de ser ao
mesmo tempo revolucionária. Ou seja, não se trata de uma
paz edulcorada, só de oferecer a outra face, e sim de uma
paz que crie justiça, que redima a pessoa, que faça com que
o mundo não seja apenas o reino dos violentos sem adjetivo,
mas também dos violentos pela paz e pela felicidade.
Por isso ele disse, em outra ocasião, que sua paz não era a
paz do mundo. Acontece que a sociedade, sobretudo a
capitalista ou neoliberal, tende a confundir a paz com a
ordem. Sobre esse ponto, posso contar um caso pessoal.
Quando na Espanha se completavam o que os seguidores de
Franco comemoraram como "25 anos de paz", cobrindo
cidades e aldeias com cartazes ostentando esse slogan, eu
estava em Roma e fui chamado a Madri para entregar o
prêmio de melhor toureiro do ano para El Viti. Nem bem
pus os pés no aeroporto, dei de cara com aqueles chamativos
cartazes de "25 anos de paz".
Durante o jantar do prêmio, em um hotel da capital, na
presença de quase mil pessoas, entre elas vários ministros do
Regime, pediram que eu dissesse algumas palavras. Era
difícil, pois eram tempos de censura, apesar dos 25 anos de
paz. Aproveitei para dizer que me entristecia que o
estrangeiro pensasse que os espanhóis não sabiam o que era
a democracia. Naquele tempo, na Espanha, não havia
eleições nem partidos políticos. Tratei de lembrar que,
curiosamente, a festa da tourada, tão própria da cultura
espanhola, é um exercício de "democracia direta", já que os
prêmios eram outorgados pelo presidente da praça, mas só
depois de ver o que a assistência pede com seus lenços
brancos. Os políticos não entenderam minha ironia.
Acrescentei que, ao chegar a Madri, tinha visto os cartazes
em comemoração dos "25 anos de paz" franquista. Comentei
que me alegrava o fato de terem sido 25 anos de "paz" e não
apenas de "ordem", posto que são duas coisas muito
diferentes, pois, enquanto "a ordem é imposta pelo poder, às
vezes até pela força", a paz, ao contrário, "é conquistada com
a autoridade das consciências", e por isso não é necessário
impô-la. E aí sim a polícia presente entendeu minha ironia
ou suspeitou dela, porque depois do jantar me levaram para
um interrogatório. Queriam saber o que eu quisera dizer
com aquilo, ao que respondi que "nem mais nem menos do
que escutaram".
Aí estava a diferença entre a "paz violenta" proposta por
Jesus e a "ordem", por mais revolucionária que seja. Porque a
ordem é imposta pela força bruta, com censura, tortura,
perseguições, com o medo. A paz, ao contrário, não precisa
se impor. É a diferença entre o ditador ou o militar, que
impõem uma ordem com o poder de que dispõem, e o
homem sábio, o mestre espiritual ou o profeta, que
conquista as consciências apenas com a sua autoridade
interior.
A ausência de guerra não é a mesma coisa que um estado de
paz. Na Espanha daquele tempo não havia guerra, mas sim
torturas e fuzilamentos; mas também não havia paz, porque
as pessoas tinham medo de expressar suas opiniões, porque
os jornais estavam sob censura, porque o país continuava
dividido entre vencedores e vencidos, e muitos eram
obrigados a viver no exílio.
Sem dúvida, a paz de Jesus era diferente; era criativa,
revolucionária, mas nascia da convicção, não do poder ou da
imposição. Ele jamais teria pronunciado a frase de Goethe:
"Prefiro a injustiça à desordem." Não. Jesus preferia a
desordem que cria o inconformismo, a defesa dos direitos
humanos à injustiça. Não era homem de "viver em paz",
acomodado, porque sabia muito bem — e o provou com a
própria vida — que ninguém pode viver descansando na
ordem que não o incomoda enquanto existir um único
homem humilhado ou escravizado.
Para Jesus, guerra não era apenas a luta com as armas.
Guerra, para ele, era toda estrutura social ou econômica
injusta; era guerra o totalitarismo, que impede a paz em
liberdade; era guerra a diplomacia, que à todo momento
impede dizer "sim, sim e não, não", como ele pedia; guerra
era toda cruzada em nome da religião. Por isso a Igreja está
em guerra sempre que discrimina, condena, humilha e
impele os homens a agirem contra a própria consciência por
temor a Deus.
Por isso, na Espanha, embora não houvesse guerra quando
se comemoraram os "25 anos de paz", tampouco havia paz;
tratava-se apenas de uma ordem imposta pela força e pelo
medo. Não era a paz do profeta da Galiléia, por mais que
Franco fosse levado em andores e sob pálio ou colocassem
em seu carro a relíquia do braço de Santa Teresa de Jesus,
que, curiosamente, foi a freira mais revolucionária e
inconfor- mista da história da Igreja.
Seu ataque à sacralidade do Templo
Jesus foi acusado de atentar contra a sacralidade do Templo.
E embora tenha sido condenado à morte por "sublevar o
povo e proibir que se pague o tributo a César", o que não era
verdade, a primeira acusação era mais séria. De fato, Jesus
propunha uma mudança radical na sociedade judaica, que
era teocrática. Por isso dera a entender que, no novo reino
por ele anunciado, o Templo, trincheira do poder judaico,
poderia ruir, já que cada ser humano se transformaria em
verdadeiro templo de culto.
Se não fosse por isso, a revolução proposta por Jesus teria
sido mais uma das muitas revoluções da história, pois a
experiência demonstra que, quando uma revolução aponta
em uma única direção, sem tocar as estruturas mais
profundas do ser humano, costuma acabar em integrismos.
Se é feita só no sentido cultural, pode acabar em ideologia;
ou em fascismo, se é somente política; e se for somente
moral, acabará em evasão espiritualista.
A de Jesus era uma revolução total. Por isso ele dizia que
não se pode guardar o vinho novo em odres velhos nem pôr
remendos de pano novo em um vestido velho. A mudança
que ele propunha era total. Era como começar de novo,
deixando para trás todas as correntes do passado.
Jesus não era um suicida, nem um louco, nem um
desesperado, nem um exibicionista. Nunca teria deixado que
o queimassem em praça pública. E mais: ele nunca quis
morrer. Contam os evangelhos que, ao perceber que
queriam prendê-lo, ele conseguiu fugir milagrosamente. Só
foi pego porque Judas o traiu.
A revolução que o profeta de Nazaré propunha se parecia
mais com aquela que, séculos mais tarde e seguindo seus
passos, foi realizada por Francisco de Assis que com a dos
revolucionários estritamente políticos. Era uma revolução
que desconcertava as elites, assim como a atitude de
Francisco desconcertaria seu pai, o rico mercador de Assis.
A de São Francisco foi uma revolução aparentemente
bucólica, poética, mas que, no fundo, era tão radical que
assustou a própria Igreja de Roma. Quando Francisco — ao
fundar a ordem franciscana com um punhado de seguidores
que viviam do que lhes davam de comer e falavam com os
pássaros do campo —, não quis nenhuma regra a não ser o
evangelho cumprido ao pé da letra, o Vaticano não quis
saber. Eles teriam que obedecer às regras aprovadas por
Roma, assim como as outras ordens religiosas.
Porque Francisco pregava a pobreza total de seus filhos; a
total liberdade de espírito, sem nenhuma regra além da
própria consciência. Ele rompera todos os tabus, vivia em
outra dimensão, possuía tanta força e autoridade e gozava de
tanta simpatia das pessoas que chegaram a compará-lo com
Jesus reencarnado. E isso preocupou Roma. E também o fato
de não querer ser ordenado sacerdote, alegando que Jesus
tampouco o fora.
Os novos teólogos afirmam que a verdadeira teologia de
Jesus era a da reconciliação dos homens com Deus e dos
homens com a natureza e com as coisas, como a que depois
tentou Francisco de Assis com sua oração da paz e seu Canto
às criaturas.
A grande revolução realizada por Jesus foi a de acabar com
as formas de religião que escravizam o homem com suas
exigências desumanas, abrindo-o para uma liberdade e uma
esperança novas e inéditas.
Com Jesus, o paciente revolucionário da história, os homens
recuperaram sua liberdade perdida, perderam o medo de
Deus e entraram em uma nova dimensão de relações
humanas, onde não há diferenças entre homens e mulheres,
judeus ou gentios, puro e impuro, sendo todos filhos do
mesmo Pai, que todos os dias faz o sol nascer para justos e
pecadores.
Capítulo 17
QUAIS SÃO OS TRAÇOS PSICOLÓGICOS DA
PERSONALIDADE DE JESUS?
Embora o conjunto de dados de que dispomos sobre a figura
do profeta de Nazaré não nos permita traçar sua biografia,
podemos, sim, esboçar alguns traços característicos de sua
personalidade, com a ressalva de que esse esboço tem um
caráter meramente interpretativo, fruto de uma visão
estritamente pessoal e, portanto, discutível.
Mergulhando nos escritos deixados nos evangelhos oficiais e
apócrifos, na visão que as primeiras comunidades cristãs
tinham daquele Jesus que não chegavam a entender por
completo, pelo que ele tinha de contraditório, chegando por
vezes a tentar corrigi-lo, podemos entrever alguns aspectos
de sua personalidade mais genuína. Por dois motivos:
porque são recorrentes e porque não eram fáceis de enqua-
drar, nem sequer nos esquemas dos profetas e messias
tradicionais de seu tempo.
Em uma religião como a judaica, a que Jesus professava, na
qual estava tão arraigada a idéia do sacrifício, da culpa, da
expiação dos pecados, do castigo de Deus à seu povo, da
perseguição e humilhação, Jesus se apresenta como uma
espécie de "psicólogo da felicidade".
Numa sociedade pobre como a dele, em que os miseráveis
viviam sem esperança, marginalizados e vistos como
esquecidos ou castigados por Deus e, por isso, assolados por
doenças e possuídos pelos demônios; num povo humilhado
como era o judeu daquele tempo, cuja terra fora ocupada
pelas tropas do Império Romano, que começava a pensar
que Iavé se esquecera dele, Jesus vem e se apresenta como
"o profeta do impossível".
Num momento histórico em que o homem e, mais ainda, a
mulher ou a criança, isto é, a pessoa humana, não tinha a
menor importância e qualquer um podia dispor sobre sua
vida ou sua morte, pois o que contava era a força e a
onipotência de Deus, que fazia o que queria com seus
súditos sem dar-lhes explicação; numa situação em que
reinava a teocracia e os deuses decidiam a história, Jesus se
apresenta em público não como o Filho de Deus, título que
mais tarde lhe dariam seus seguidores, e sim com o
provocador nome de "filho do homem", ou seja, apenas
como "o homem" dando a entender que ser homem, sem
adjetivos, já é a maior das dignidades.
Num mundo como o daquela época, em que existia a
escravidão e o povo vivia atormentado pelo medo, oprimido
sob o peso da Lei com maiúscula, sempre à mercê do
primeiro poder que resolvesse colocá-lo de joelhos, Jesus se
apresenta como o "libertador", aquele que não tolera as
correntes, que "cura a todos", que livra dos demônios e
perdoa os pecados, acabando com o sentimento de culpa e
dando um golpe na escravidão do sábado.
Numa sociedade — a daquele tempo, como a de hoje — que
primava pelo poder e a glória, em que os privilegiados e
temidos eram os homens do poder despótico, o profeta da
obscura Nazaré se apresenta ostensivamente como "avesso a
toda sombra de poder".
Num mundo em que reina a imaturidade, a incapacidade de
se relacionar, de abrir novos tipos de encontro entre os
homens, numa sociedade em que as pessoas temem o
próximo por temer a Deus e se trancam em suas casas e
vêem o outro mais como inimigo do que como próximo,
Jesus foi o "revelador de novas relações humanas".
Por último, numa sociedade em que, por não estar na moda,
a morte é temida, escamoteada ou banalizada e, sobretudo,
não é entendida nem aceita, Jesus vem fazer a grande
provocação, a maior da história, a de "mudar o nome da
morte", anunciando que ninguém morre para sempre.
Com esses traços é possível ao menos arriscar alguns flashes
da personalidade psicológica desse personagem que, por ser
tão diferente, mesmo dos outros santos e profetas que o
precederam, conseguiu não ser tragado pela história e, ao
longo dos séculos, incrustar-se em cada pessoa, prescindindo
até do elemento religioso, como espelho da utopia que se
aninha em todo ser humano.
O psicólogo da felicidade
Se há uma certeza sobre a personalidade de Jesus, é que ele
não foi um masoquista. Nunca amou a dor. Muito pelo
contrário: não a suportava. Nem para ele — antes de ser
preso, pediu a Deus que o livrasse da dor, pois não se sentia
nenhum herói desejoso de derramar seu sangue — nem para
os demais. Ele nunca exortou quem lhe pedia a cura de suas
dores a que as suportasse com resignação para merecer a
benevolência de Deus. Não. Dizem os evangelhos que ele
"curava a todos". E não só os judeus, mas também os gentios,
o que era uma blasfêmia, pois àqueles era vedado até mesmo
sentar-se à mesa com quem não compartilhasse sua fé. Os
gentios eram impuros e indignos de qualquer contato; que
dirá de serem curados. Jesus passa por cima da Lei e ajuda a
todos.
Claro que ele não era ingênuo e sabia que o homem
dificilmente poderá livrar-se da dor. Era um bom
conhecedor da psicologia humana e sabia que não só as
dores externas, mas também as internas, perseguirão o
homem até a sepultura. Nunca existirão remédios que as
curem por completo, por mais que a química possa aliviá-las
com seus paliativos. Ele estava ciente desse fato, mas não
deixava de lutar contra a dor. Sua idéia era que, quanto
menos dor houvesse no mundo, melhor. Por isso, não
deixava seus discípulos nem sequer jejuarem. Ele nunca foi
um asceta, como seu predecessor João Batista, mas sim um
desprendido das coisas, um ser livre, o que é bem diferente.
Jesus disse abertamente: "Eu não quero sacrifícios, e sim
misericórdia."
Mas não era um cínico que oferecesse felicidade falsa, de
fachada. Não oferecia uma felicidade barata, a preço de
liquidação. Como os bons psicanalistas, sabia que, para poder
chegar a certos remansos de paz e felicidade, sobretudo
interior, é preciso passar pela dura prova da purificação, do
desapego em relação a muitas falsas certezas que criamos
como escudo e defesa de nossos medos.
Tudo o que o rodeava tinha o sabor da vida, nunca da morte
ou da dor. Suas parábolas — que parecem ser das coisas mais
originais de sua pregação e, possivelmente, das mais bem
conservadas — eram carregadas de símbolos de felicidade
simples, mescladas com as coisas da vida: a videira, a
semeadura, os pássaros, as plantas, as sementes, a levedura
que faz crescer o pão, os animais do campo. Sua postura
diante da vida era sempre positiva. Só foi duro com aqueles
que despojavam os homens de suas pequenas felicidades,
com aqueles que usavam Deus para oprimi-los com cargas
insuportáveis e inúteis. Por isso ele foi avesso à dor, pois
entendia que a vida por si só já traz tamanha carga de dor
inevitável, dada a natureza frágil do ser humano, que não
devemos criar nem infligir mais infelicidade.
Curiosamente, ele nunca pregou o heroísmo. Nunca
estimulou seus discípulos a se imolarem nem sequer por
uma causa justa. A dele não era uma mística fascista. Sua
paixão eram os fracos, os que tropeçam, os pecadores.
Amava todas as fragilidades, talvez como símbolo daquilo
que suporta a maior carga de dor no mundo.
Ele sabia muito bem que, se os homens são sensíveis a algo,
é à felicidade, justamente porque a vêem distante,
inatingível, quase impossível, como uma culpa, às vezes
mais difícil de suportar que a própria dor. Hoje existe
somente uma constituição no mundo, a norte-americana,
que sanciona o "direito dos cidadãos à felicidade". Para
atingi-la, Jesus não apresentou fórmulas mágicas ou inéditas,
e sim uma coisa antiga como o mundo: perder o medo dos
deuses e tratar os outros como gostaríamos de ser tratados
por eles.
Uma prova de que Jesus sabia que a infelicidade provém não
apenas dos demônios exteriores do poder, daqueles que
causam dor ao homem, mas também dos demônios
interiores, da escravidão do inconsciente, da escuridão que
levamos dentro e não conseguimos ou temos medo de
iluminar, está em sua insistência para que o homem não
acumule motivos de desespero, de angústia, de desejos
inatingíveis. Por isso pregava a simplicidade da vida, o
desapego das coisas, o saber viver livre e confiante como os
pássaros do céu. Essa é sua receita.
Uma receita simples, e por isso mesmo difícil de realizar,
como as grandes receitas de cozinha, que, quanto mais
simples, mais difícil é conseguir o ponto. Difícil porque
exige uma nova disposição da alma; um novo olhar para o
próximo e saber renunciar a muitas certezas interiores às
quais nos agarramos como o náufrago à tábua de salvação.
No evangelho, justamente, relata-se um episódio que foi
muito estudado pelos psicanalistas. Conta-se que Jesus
chegou ao povoado de Gerasa, onde um homem vivia como
um monstro, acorrentado às portas do cemitério. Estava
possuído por vários demônios. Os habitantes pediram ao
profeta que o libertasse. E Jesus os atendeu. Mas os
camponeses tiveram de pagar por isso, pois Jesus mandou os
demônios daquele homem entrarem em uma manada de
porcos, que se precipitaram por um barranco, morrendo
todos. Nesse instante, o monstro recuperou sua liberdade
perdida e voltou aos seus curado. O que fizeram os
habitantes de Gerasa? Agradeceram a Jesus por ter devolvido
a liberdade a um de seus filhos? Não. Pediram-lhe que dei-
xasse o povoado o quanto antes, recriminando-o por tê-los
feito perder seus porcos.
Essa é uma espécie de parábola com um grande fundo
psicanalítico. Aquele homem possuído, escravo dos
demônios, teve de pagar um preço para obter a liberdade. Os
demônios interiores incomodam a todos nós, mas acabamos
nos acostumando a viver com eles. E quando nos livram
deles, ficamos como que nus, como se tivéssemos perdido
alguma coisa. Por isso tanta gente prefere a segurança da
não- liberdade ao risco da liberdade. Dispor-se a abrir mão
da riqueza que aqueles porcos de Gerasa simbolizavam, do
luxo, da segurança que a ordem proporciona, da certeza dos
dogmas etc., nem sempre é fácil. É algo que sabem muito
bem os psicólogos que analisam a complexa psique humana.
Mas é evidente que a felicidade proposta no programa de
Jesus, apesar de ser uma receita fácil, exige ingredientes
difíceis de trabalhar, como a sabedoria de não querer viver
acima das nossas possibilidades, muito menos à custa da
infelicidade dos outros; a clarividência de que, para iluminar
de alegria nossa casa interior, é necessário antes passar pela
cegueira causada pela fumaça anterior ao fogo. E que, no
final das contas, a felicidade não consiste em possuir muito,
mas em não desejar mais do que somos capazes de saborear
em paz e em harmonia, compartilhando-o com os outros.
O profeta do impossível
O famoso movimento estudantil de 68 teve uma feliz
intuição ao escrever o seguinte slogan nos muros da
Sorbonne: "Sejam razoáveis, peçam o impossível." Dois mil
anos antes, o profeta de Nazaré já se antecipara ao dizer: "Se
tiverdes fé, como um grão de mostarda, direis a este monte:
passa daqui para acolá, e ele há de passar, e nada vos será
impossível." Por isso Jesus foi apelidado "o profeta do
impossível". Mesmo seus milagres, ele nunca os apresentou
como algo extraordinário e sim como fazendo parte da
economia de Deus, que escuta as súplicas simples e
angustiadas de seus filhos.
Conseguir o impossível sempre foi uma tarefa dos homens,
por mais que na sociedade da ordem e do conformismo se
prefira o possível, o óbvio, o que não cria problemas, em
vez dos abismos do impossível, que nos aproxima do
mistério da divindade. Na obra teatral Calígula, de Albert
Camus, o jovem imperador diz a seu amigo Elicone: "Eu não
estou louco; nunca fui tão razoável como hoje, mas de
repente senti a necessidade imperiosa de coisas impossíveis."
E acrescenta: "Este mundo, tal como é, é insuportável. Eu
preciso da felicidade ou da imortalidade, alguma coisa louca
que não pertença a este mundo."
Como sempre, a literatura, o teatro, a poesia são o melhor
espelho dos desejos mais secretos e insondáveis do ser
humano. Uma característica desse ser humano frágil, que
nem bem nasce lança um grito de horror e de medo, é que
tem de acertar as contas com uma insatisfação de fundo que
sempre o acompanhará nos caminhos de sua vida: a insatis-
fação de desejar mais do que pode conseguir, o desejo de
Calígula pela impossível felicidade e eternidade. O jovem
imperador sabia que estava louco por pedir a eternidade, isto
é, o impossível. Jesus, ao contrário, sabia que os homens não
precisam estar loucos para desejar o impossível, porque esse
desejo nasce com eles. É como uma espora que estimulará as
pessoas a não se conformarem com a mediocridade, com a
ordem fácil e segura, e a buscar a vertigem do impossível, do
eterno, do que se nega a morrer, dessa felicidade impossível,
mas que ao mesmo tempo só poderá ser imaginada pelo ser
humano. Por que será?
A diferença fundamental entre a personalidade de Jesus e a
dos outros religiosos de seu tempo é que ele não atribuía à
onipotência dos deuses a possibilidade de os homens
atingirem a felicidade ou o impossível. Não eram os deuses
que tinham as rédeas do mundo e sim a fé pessoal de cada
indivíduo na força interior desse santuário onde mora o deus
oculto e silencioso. Nas mãos do homem estava o destino do
mundo. Deus não abandonava o homem; pedia-lhe apenas
que não o temesse e que confiasse em suas próprias forças,
sendo como é, um ser livre e não um robô controlado das
alturas.
Assim como os jovens de 68 pediam o impossível, ou seja,
"a imaginação no poder", para que o mundo fosse governado
não mais pelos burocratas, pelos acomodados, pelos que têm
medo de perder seus privilégios, pelos que vivem da
exploração do próximo, e sim pelos quixotes, pelos artistas,
pelos poetas, pelos inconformistas, pelos que não têm nada a
perder, do mesmo modo Jesus, em suas bem-aventuranças,
pedia algo muito semelhante: que os pobres, os famintos, os
perseguidos, os que choram, os humilhados, os leprosos, os
loucos, os sem poder fossem os criadores do novo reino,
onde a felicidade não fosse um luxo de poucos, mas o pão de
cada dia colocado em todas as mesas do mundo.
Uma importante revelação feita por Jesus foi a de que o
Deus que ele anunciava tinha uma estranha preferência, que
ia na contramão das preferências do mundo, pois ele amava
tudo o que era frágil, fraco, o aviltado e assolado pela dor.
Isso significava um grande desafio e ao mesmo tempo
provava que é possível atingir o impossível, pois nada mais
impossível, num mundo em que só os deuses e os poderosos
podem dar-se ao luxo de fazer milagres e de ser felizes, que
anunciar que, ao contrário, serão aqueles desprezados da
terra os que hão de entender melhor do que ninguém o que
são certas felicidades inalcançáveis para os que acreditam
que tudo têm e tudo podem.
Acreditar no impossível, como fazia o profeta de Nazaré, é
afastar do mundo as tentações coletivas do suicídio e do
desespero; é acreditar que nunca está tudo perdido, que a
árvore mais seca pode reflorescer, que das maiores ruínas da
história, das mais terríveis trevas dos campos de extermínio,
pode nascer algo novo e inédito, incompreensível, mas real.
Uma coisa tão difícil que o próprio Jesus teve de pagar um
alto preço por ela, sofrendo na pele a tentação do desespero
e do fracasso quando, a ponto de morrer na cruz como mais
um fracassado da história, pergunta-se surpreso e magoado
por que seu Deus o abandonara, se ele tinha acreditado na
loucura de convencer os homens de que é possível ser feliz
sem que seja à custa da infelicidade dos outros.
O artista do homem
"Eu sou feito de um modo terrível e maravilhoso", lê-se em
um dos salmos da Bíblia, o livro que melhor penetrou nos
abismos do mistério do homem. Esse verso do salmista foi
uma antecipação daquilo que o judeu Freud viria a descobrir
séculos mais tarde ao sondar as profundezas do
inconsciente, ou seja, que dentro do homem lutam duas
grandes pulsões, dois grandes instintos: o da vida e o da
morte, com os quais o ser humano tem de se haver. O que
equivale a dizer que no poço do homem existe, como afirma
o salmo, o mais maravilhoso e o mais terrível da
personalidade humana.
A Bertrand Russell atormentava o fato de o homem "levar
dentro de si mesmo sua condenação, a de ser capaz de
renegar a si mesmo". E toda a literatura do mundo não é
mais do que um esforço por analisar as miragens do ser
humano, com suas grandezas e baixezas, seus lampejos de
divindade e suas sombras demoníacas. O jornalista e escritor
Sérgio Zavoli escreveu: "A humanidade acorda todo dia em
nome do homem, e é nesse momento que o homem
descobre o valor sagrado que é o próprio homem."
Já se disse que o homem é a medida de todas as coisas. As
Igrejas dedicaram boa parte de seu tempo a estudar quem é
Deus em vez de analisar quem é o homem, que é a realidade
que temos nas mãos, e só através dela poderemos, talvez,
imaginar o rosto do divino, e não o contrário.
E esse é mais um dos traços característicos da personalidade
de Jesus de Nazaré. Por isso ele foi chamado "o artista do
homem". Porque ele se apresentou ao mundo não como
Deus — nunca afirmou isso —, e sim como algo tão simples
e elementar como "filho do homem", que em aramaico
significava simplesmente "homem". Jesus tomou essa
definição do profeta Daniel, mas ela já havia sido esquecida
pelos judeus de seu tempo. De fato, quando ele se apresenta
com esse epíteto, todos se perguntam: "Quem é esse filho do
homem?", sinal de que não tinham entendido. Em Daniel,
na verdade, essa expressão se referia mais exatamente a um
povo que haveria de vir. Mas também o profeta Enoch fala
do "filho do homem", referindo-se a um personagem
preexistente.
Os exegetas discutiram muito sobre o sentido que Jesus quis
dar a esse epíteto de "filho do homem" tomado das velhas
Escrituras. O certo é que os apóstolos não gostaram dele ou
não o entenderam, pois nunca o chamam assim, nem as
primeiras comunidades cristãs, que o substituíram por "filho
de Deus". E, no entanto, essa é a expressão mais usada por
Jesus para definir a si mesmo, o que significa que era a que
mais lhe agradava. De fato, quando Jesus, curioso por saber
como seus discípulos o viam, pergunta-lhes: "Quem credes
que sou?", Pedro não lhe responde que é o "filho do
homem", e sim "o filho de Deus vivo".
Diógenes perambulava com uma lanterna procurando um
homem, e não o encontrou. Sempre foi difícil encontrar um
verdadeiro homem no reino dos homens. Curiosamente, a
primeira vez que Jesus é chamado de "homem" é durante o
processo que o levou à morte, quando Pilatos o apresenta à
multidão dizendo "Ecce homo", "eis o homem". Era um
homem abatido, torturado, humilhado, sem poder,
condenado à morte, símbolo de tantos homens que na
história viram sua dignidade reduzida a um farrapo humano.
Mas Jesus não foi um deus do Olimpo, acima dos homens. O
que sempre o aproximou da humanidade, sobretudo da
sofredora, foi que ele nunca se envergonhou de ser o que
todos somos: um projeto inacabado de humanidade, um
feixe de desejos irrealizáveis, uma sede de infinito e uma
terrível capacidade de produzir felicidade ou infelicidade.
A criança como a grande obra de arte
O profeta de Nazaré tinha um fraco pelas crianças, a quem
eleva, como já fizera com a mulher, à metáfora do novo
reino, do novo modo de se relacionar com as coisas e as
pessoas. Aos discípulos, que estavam entre curiosos e
preocupados por saber que tipo de reino seria aquele de que
tanto falava o profeta, Jesus, para desconcertá-los ainda mais,
diz que, quem quiser entrar nele, terá de "transformar-se em
criança".
E em certa ocasião em que umas crianças se sentem atraídas
por aquele curioso e extravagante profeta de olhar ao mesmo
tempo doce e terrível, quando os discípulos tentam enxotá-
las como moscas, Jesus os recrimina e permite que elas
venham sentar-se em seu regaço. E em seu colóquio
noturno com o intelectual Nicodemo, que também sentia
curiosidade pelos ensinamentos do novo profeta, Jesus lhe
diz que tem de voltar a ser criança, pois o exorta a voltar ao
ventre materno para renascer.
Claro que essa predileção pelo mundo das crianças não era
gratuita, nem uma licença poética, nem sequer um gosto
pessoal. Era muito mais. Tinha um valor emblemático. Para
entendê-lo, devemos lembrar que, enquanto na nossa
sociedade a criança é sujeito de direitos, considerada uma
pessoa humana para todos os efeitos, com a mesma digni-
dade que o adulto, no tempo de Jesus não era assim. Na
Palestina e em todo o Oriente, a criança, assim como a
mulher, era pouco mais que um objeto. E, embora o
infanticídio não fosse permitido entre os judeus, nos povos
vizinhos era uma prática comum. Em Atenas e em Roma, a
criança não tinha direito à vida até que o pai não a legitimas-
se. O pai sempre podia eliminá-la. Platão, o grande poeta e
filósofo, defendia a morte das crianças que nasciam em
famílias pobres. Aristóteles, o pai da filosofia ocidental, o
grande inspirador de Santo Tomás, sustentava que se devia
tirar o alimento das crianças que nasciam deformadas. Em
Roma existe ainda a famosa rocha, ao lado do Campidoglio,
de onde os pais atiravam as crianças nascidas com algum
defeito físico.
Dentro do próprio judaísmo, as crianças eram excluídas de
tudo: do Templo, da sinagoga, da comunidade. Ainda hoje,
as crianças, tanto no primeiro como no terceiro mundo,
continuam sendo objeto de incrível violência; apesar das leis
que as protegem, continuam, na prática, sendo consideradas
pessoas de segunda classe, incompletas, a quem só cabe
obedecer aos mais velhos. Além disso, consideram-nas
possuídas por um egoísmo natural que as impede de serem
generosas e altruístas.
Pois bem: Jesus vem e não apenas defende as crianças, os
grandes excluídos e maltratados, como afirma, para grande
escândalo, que elas são os preferidos de Deus; e quem se
escandalizar com isso que se jogue no mar com uma pedra
amarrada no pescoço. Acima de tudo, afirma que, se os
adultos não forem como crianças, não poderão entender
Deus. Por que ele disse isso? Nunca o explicou, mas alguma
coisa deve ter visto na realidade concreta das crianças para
identificá-las com o paradigma do homem liberado, do ideal
humano.
Talvez o profeta tenha intuído que no coração das crianças
se encontram realidades e matizes humanos primigênios,
que depois são ofuscados pela maturidade e pelo cinismo dos
adultos, assim como o artista ou o poeta descobre numa
paisagem sensações e tonalidades que outros não vêem. Sem
dúvida, tudo o que vinha de Jesus parecia radical,
escandaloso, contraditório, na contramão da cultura de seu
tempo. A predileção de Jesus pelas crianças comoveu o
judeu Karl Marx, pouco suspeito de simpatia pelo
cristianismo. Sua filha Eleonor, a preferida, escreveu:
"Lembro que meu pai me contou a história do carpinteiro de
Nazaré, que foi crucificado pelos poderosos. Meu pai dizia
que podemos perdoar muitas coisas do cristianismo porque
ele nos ensinou a amar as crianças." A verdade é que, mais
que o cristianismo, quem ensinou a amar, a respeitar e a
admirar as crianças foi Jesus. O que a Igreja fez foi causar
sofrimento a milhões de mães cujos filhos morreram antes
de serem batizados, impedidos de subir ao céu por causa
daquela invenção do limbo das crianças, que, graças a Deus
— mas só depois de séculos —, foi eliminado do novo
catecismo universal aprovado depois do Concílio Vaticano
II.
Penso que a predileção de Jesus pelas crianças deve ser
configurada em sua predileção geral por tudo o que é frágil e
desprezado pela sociedade. Além disso, em certos aspectos
da infância o profeta via, como que antecipada, como diante
de um espelho, algumas das características das novas
relações que queria estabelecer entre os homens. Via, por
exemplo, como as crianças carecem, naturalmente, de
nossos medos adultos. As crianças só têm os medos que nós
lhes infundimos. Uma criança não teria medo de pegar uma
cobra na mão. Não teme as feras. Não vive vendo perigo em
tudo. Não tem medo de Deus. Teme apenas perder o amor, a
segurança dos pais, daqueles que a amam. E isso é o que
Jesus queria para seu novo reino, que só nos assustemos ante
a possibilidade de não sermos amados.
Mas não é só isso. As crianças não têm a noção de
indivíduo, nem de classe social. Para uma criança, todas as
crianças são iguais e interessantes porque podem brincar
com ela. Tanto faz se é de uma família rica ou pobre. Nem
mesmo o fato de falar outra língua a atemoriza. Elas se
entendem sem falar. Criança não tem medo de criança.
Os cristãos às vezes enchem a boca dizendo que Deus criou
tudo para todos, que tudo está a serviço de todos. Mas depois
vem a Igreja defender com sanha a propriedade privada, e
ninguém quer pôr à disposição dos outros, aquilo que tem.
Até as primeiras comunidades cristãs, que começaram
pondo os bens em comum, tiveram de se render à evidência
de que cada um é cioso daquilo que possui.
Para as crianças, isso é diferente. Elas só querem o uso das
coisas, não a propriedade. Por isso acham natural pegar o
brinquedo do amigo. Não entendem por que não podem
brincar com ele. Quando a criança abandona o brinquedo,
este não lhe serve mais. Não tem, como os adultos, o senso
de propriedade. São os pais que lhe dizem que deve
conservar as coisas, não quebrá-las, nem dá-las, nem
emprestá-las.
Como seria a sociedade se os adultos fossem capazes de se
comportar como crianças, com a mesma liberdade de
espírito? Sem dúvida, seria uma sociedade paradoxalmente
mais adulta que a atual, porque os adultos, ao contrário,
costumam se comportar repetindo os defeitos das crianças,
que elas cedo copiam dos adultos: somos volúveis, posses-
sivos, egoístas, desconfiados, acumuladores e individualistas.
Adultos que só sabemos brincar no jogo da guerra ou da
bolsa, ou de passar a rasteira nos outros.
Quando o escritor Paulo Coelho diz, para escândalo dos
sábios e adultos, que ele escreve para despertar a criança que
há dentro de todos nós, ou seja, essa porção de inocência
anterior ao paraíso perdido que nos fez horrivelmente
adultos, está intuindo uma grande verdade: a de que todos,
no fundo, gostaríamos de recuperar a singeleza e a esponta-
neidade das crianças, sua ausência de medos e preconceitos,
para ser menos complicados e mais capazes de felicidade,
sabendo brincar com uma simples folha de grama.
Jesus, revelador de novas relações humanas
Alguns psicólogos pensam que a humanidade, em média,
não superou a idade psicológica de um adolescente. Jung
dizia: "Até agora, o homem lutou apenas pela sobrevivência;
vivemos na primeira aurora da consciência." E se isso é
assim hoje, podemos imaginar como era há 2.000 anos,
quando vivia o profeta de Nazaré. Se bem que, nesse aspec-
to, as coisas não mudaram muito. Basta pensar que
continuamos com o absurdo das guerras no coração mesmo
da velha e civilizada Europa; com a violência e o atropelo
dos direitos mais elementares das pessoas.
E, apesar dos avanços da ciência, da biologia e da
informática, com suas facilidades para uma comunicação em
tempo real entre as pessoas, no mundo dos sentimentos, das
relações de amor e de amizade, no sexo, a humanidade ainda
vive encalhada no passado, numa idade quase adolescente.
Em meu livro de conversas com Fernando Savater (El arte
de vivir), o filósofo comenta que se um indivíduo que viveu
há cinco séculos de repente aparecesse em uma casa atual,
não saberia o que fazer. Ele se assustaria com os
interruptores de luz, com o telefone, com as torneiras de
água corrente, com tudo. Mas, se o sentarmos diante de um
televisor para assistir a uma telenovela, ele entenderia tudo,
porque nas relações humanas pouco ou nada mudou. Tudo
continua sendo primitivo, arcaico. Os mesmos ciúmes, as
mesmas traições, as mesmas intrigas, os mesmos sofrimentos
por não saber amar, os mesmos dramas existenciais e de
família.
Por isso existe uma espécie de esquizofrenia nos homens de
hoje, que, por um lado, estão conquistando os astros,
penetrando nas entranhas do genoma, esquadrinhando os
abismos mais insondáveis da tecnologia e, ao mesmo tempo,
vêem crescer o interesse pelo irracional, pela magia, pelo
invisível, pelo parapsicológico, pelo esotérico. O homem
está conseguindo dominar as forças mais terríveis da natu-
reza, a começar pela energia atômica; está conseguindo
ultrapassar a velocidade da luz, mas ainda não sabe ter uma
relação sexual pacífica ou uma amizade duradoura. Não sabe
entender os impulsos que recebe do inconsciente. As
relações humanas continuam neurotizadas.
Lutamos a vida inteira para ter sucesso, riqueza,
reconhecimento, status social, prestígio profissional e,
quando à noite voltamos para casa e apagamos as luzes para
dormir, na verdade não sabemos de que serve tanto esforço
por conseguir as coisas, se não temos tempo para vivê-las.
Ao nosso lado, os filhos, a mulher, os amigos, esforçam-se
em vão por criar um mundo de relações mais vivas, mais
intensas, para que não passemos pela vida como autômatos
que nem sabem a razão de tanto movimento.
O homem, que se sente forte e seguro na busca do êxito,
depois reluta para estabelecer uma amizade por medo de que
o comprometa; não confia nos outros porque os vê como
inimigos e competidores potenciais. Não confia seus
sentimentos a ninguém, porque tem medo de mostrar-se
como é, frágil, com dúvidas, inseguro, sem respostas para
tantos problemas existenciais.
Só os poetas entenderam, em cada momento histórico, a
força das relações humanas baseadas na amizade e não na
competição. Alexander O'Neil descrevia a amizade nestes
termos:
Um olhar limpo, um coração pulsando em nossa mão.
Amigo é o erro corrigido, não perseguido; é a verdade
compartilhada a solidão derrotada.
Amigo é uma grande empresa, um trabalho sem fim, um
espaço útil, um tempo fértil. Amigo será uma grande festa. Já
o é.
Estudando a psicologia do personagem de Nazaré, tem-se a
impressão de que ele possuía uma grande lucidez quanto a
esse desequilíbrio entre o homem que domina a natureza e a
pobreza de suas relações com os demais. Tanto que boa
parte da doutrina sobre o novo reino por ele anunciado
apontava para esse mundo das relações. Um mundo que
Jesus veio virar do avesso, invertendo os critérios e os
valores da sociedade.
Há um episódio emblemático da visão que Jesus tinha do
mundo das relações humanas, que não se deveriam basear
na aparência, na beleza nem na riqueza, e sim em algo mais
profundo. Um dia, ele se encontra com uma delegação
grega. O profeta sabia muito bem que, naquele tempo, os
gregos rendiam culto ao corpo, à beleza como tal. Basta
visitar hoje o museu da Acrópole em Atenas para admirar o
esbanjamento de beleza corporal nas esculturas gregas. Os
gregos estavam curiosos por conhecer aquele profeta
estranho de quem deviam ter ouvido falar.
Jesus, com sua fina ironia, típica da alma judia, conta-lhes
uma parábola que deve ter soado como provocação. Disse-
lhes que o homem é como um simples grão de trigo,
pequeno, insignificante, quase invisível, e que deve ser
sepultado na terra, onde só depois de apodrecer germinará.
Ou seja, que a vida provinha de uma purificação, de uma
apodrecimento, não de uma exaltação da beleza. Para os
gregos, a divindade era impassível face às paixões humanas
enquanto Jesus pregava o Deus da humanidade sofredora. As
divindades gregas privilegiavam os homens, cujos corpos
eram perfeitos. Não suportavam as imperfeições corporais. O
oposto do Deus de Jesus, que tinha preferência por tudo que
é fraco e frágil. E nisso ele se parecia às crianças, que para
brincar, para se relacionar, não reparam nos valores externos
ou estéticos, e sim na capacidade de comunicação, na
simpatia pessoal, no carinho, pouco lhes importando se o
outro é feio ou bonito, forte ou fraco.
Jesus, avesso ao poder
Um dos grandes erros da Igreja Católica foi negar-se a
entender que um traço fundamental da personalidade de
Jesus de Nazaré, seu fundador, foi ter sido sempre um
homem alérgico ao poder. Por isso se disse que o
cristianismo, em sua essência, é a religião que mais clara-
mente apresentou um Deus que "prefere os pobres e
humildes" aos poderosos e abastados. E Jesus nunca
escondeu sua aversão pelo poder, que considerava
responsável pelas injustiças que afligiam os desvalidos.
Ele foi avesso a todos os poderes: ao político e ao religioso.
Era também contrário a toda interpretação estreita da lei.
Como não era ingênuo, sabia muito bem que a sociedade
sem leis cai no caos. Mas não comungava com um poder
que usava a lei para escravizar seus súditos.
Nunca quis interferir nos poderes políticos. Aqueles que um
dia o instaram a dizer que não se devia pagar tributo ao
imperador, respondeu com a famosa frase que aconselhava
dar "a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus".
Mas não hesitou um só segundo em qualificar de "lobos em
pele de cordeiro", de "crias de víboras" e de "sepulcros
caiados" aqueles que usavam o poder em interesse próprio,
fazendo recair o peso sobre os mais indefesos.
E foi esse traço de sua personalidade que fez com que Jesus
fosse sempre amado, ou pelo menos respeitado, por todos os
movimentos revolucionários e por todos os párias. Seu
histórico, no que tange a suas relações com o poder
temporal, foi sempre claro e limpo, sem diplomacia nem
ambigüidade.
Já se disse que Jesus, com seu gesto de lavar os pés de seus
discípulos na quinta-feira anterior a sua crucificação — um
gesto que, dentro da Igreja, foi perdendo sua força inicial ao
longo dos séculos — virou de ponta-cabeça o conceito
tradicional de poder. Com esse gesto, inédito até então, o
profeta quis dizer a seus discípulos que, em seu novo reino,
quem se julgasse mais importante e poderoso deveria
começar servindo aos de baixo. Era uma mudança radical
numa sociedade em que os escravos serviam aos que tinham
propriedades e poder, e na qual sempre os de baixo tinham
de estar a serviço dos de cima.
Entre as centenas de milagres que Jesus realizou ao longo da
vida, nenhum foi feito para agradar a um poderoso. Ele
deixou clara a diferença entre poder e autoridade. Como se
sabe, o poder é imposto à força, seja com as leis, seja com as
armas e as guerras. A autoridade, ao contrário, se
conquistada, não se impõe. E o poder que os outros
reconhecem em quem consideram com autoridade para falar
ou decidir. É como uma força que nasce da pessoa. Por isso
o poder vence, mas não convence. A autoridade, ao
contrário, convence e não precisa vencer.
Os parâmetros para exercer o poder, nessa visão do profeta
judeu, eram diferentes dos do poder mundano. Tem mais
autoridade sobre os outros quem mais os ama e quem
melhor sabe demonstrá-lo. Não é um poder que vem de
fora, mas de dentro. Quando Jesus pede a Pedro que, nos
momentos de crise, seja o irmão mais velho dos outros após-
tolos, não lhe pergunta se ele é o mais poderoso ou mais
esperto — não o era —, ou mais santo — tampouco o era,
pois o negara covardemente na noite da paixão — e sim
quem mais o amava.
Uma pessoa na multidão que escutava Jesus gritou um dia:
"Fala como quem tem autoridade." Era a força de sua palavra
que tinha poder, até o poder de curar. E a autoridade que
reconheciam as multidões, pois Jesus não era sacerdote, nem
escriba, nem homem da instituição religiosa. Nem era rico
ou de família importante, como, por exemplo, Buda. Era
filho de um pobre trabalhador manual nascido na obscura
aldeia de Nazaré.
Mas, por ser avesso ao poder, nunca o enfrentou cara a cara.
Sua forma de contestar o poder que oprime era sua
predileção pelos mais pobres e humildes. E aquela era sua
maior revolução. Não foi fácil fazer- se entender, nem pelos
seus discípulos, nem pelas pessoas que o seguiam, que
teriam preferido que, além de autoridade, ele também
tivesse poder. Por isso quiseram coroá-lo rei, ao que ele se
opôs, fugindo.
Costumava dizer que o poder deste mundo necessita de
exércitos, de riqueza e de prestígio para manter-se de pé. O
dele, não. Bastava- lhe a força com que amava e abraçava os
fracos do mundo. Esse era seu único poder.
Os poderes religiosos de seu tempo, personificados,
sobretudo, nos escribas, que se julgavam donos da verdade e
queriam impô-la à força com leis que nem eles cumpriam,
Jesus os chamou "guias de cegos", que acabam caindo no
poço. E quando lhe respondiam: "Falando assim nos
ofendes", Jesus replicava que eles tinham se apoderado das
chaves da sabedoria, e que não só não eram capazes de
entrar eles mesmos, como também impediam a entrada aos
outros. Nunca foi suave nem manso com os detentores do
poder.
Dada essa verdade, não cabe dúvida de que a Igreja, com
seus agrados a todos os poderes da terra, ao longo dos
séculos foi-se afastando muito da mensagem original do
profeta judeu, que em essência era dura, clara, francamente
a favor dos humilhados.
Jesus mudou o nome da morte
A morte é nossa suprema condenação. É o fato mais
democrático da história, porque atinge a todos. Um dia a
ciência há de alongar a vida do homem, mas não conseguirá
destruir a morte. E, no entanto, essa hora suprema, a hora da
verdade e da imensa solidão, continua sendo a grande
incógnita do mundo. Por que o homem tem de morrer, se é
o único animal capaz de conceber a eternidade?
Na história de Jesus de Nazaré e na do cristianismo, existe a
grande loucura da ressurreição do corpo, difícil de encontrar
em outras religiões. Sobretudo a ressurreição concebida no
sentido do dogma católico, segundo o qual voltaremos a nos
encontrar com nosso corpo, mas em estado glorioso, sem
defeitos, nem doenças, nem morte.
É uma verdade histórica que os primeiros discípulos de
Jesus, amedrontados ao vê-lo morrer na cruz como um
malfeitor qualquer, fugiram e se esconderam, temendo
seguir seu caminho, e só quando tiveram certeza de que ele
tinha ressuscitado e continuava vivo é que começaram a
acreditar nele, a anunciá-lo e a dar a vida cruentamente na
defesa daquela verdade. Essa é, contudo, a única parte dos
fatos apresentados pelos evangelistas em que só é possível
acreditar por um ato de fé, já que aí a ciência não pode
interferir. Entramos no reino do mistério.
Sem dúvida, nem sempre houve acordo na teologia católica
sobre o dogma da ressurreição dos mortos e a possível
ressurreição de Jesus. Os teólogos mais liberais e
progressistas, como Hans Kung, sem negar que "alguma
coisa deve ter acontecido" aos apóstolos depois da morte de
Jesus para ficarem tão transtornados, tem dificuldade em
aceitar a ressurreição em sua versão literal. Algo semelhante
ao que acontece com outros dogmas, como o da virgindade
de Maria ou o da transubstanciação do pão e do vinho no
corpo e no sangue de Jesus.
A interpretação mais moderna da ressurreição é que Jesus,
sua pessoa e não apenas sua mensagem, de algum modo
continuou presente e vivo na história, e dessa presença se
alimentou sempre o cristianismo, que nunca considerou
Jesus um morto e sim um ressuscitado para a vida depois da
sua morte na cruz. Porque o argumento de que ninguém
encontrou seu cadáver é muito pobre, e a própria Igreja
preferiu não usá-lo, temendo que um dia os arqueólogos
pudessem encontrar seus restos mortais.
De qualquer modo, acho que o importante na história do
profeta de Nazaré é que ele legou ao mundo um novo
sentido para a morte: a convicção de que a morte não é algo
definitivo e irreversível. Jesus teve a coragem ou a loucura
de mudar o nome da morte. Para ele, o homem nunca
morre para sempre. Os filhos do Deus que ele anunciava são
chamados a vencer a morte, a dar tal sentido à vida que a
morte significa apenas parte de uma viagem, uma passagem,
um trânsito para uma nova luz, ou como se queira
interpretar.
Jesus chegou a dizer: "Em verdade, quem entender minhas
palavras não voltará a morrer." Era uma metáfora para
indicar que quem entra nessa nova dimensão de relações
humanas que ele anunciava olha a morte com outros olhos.
O importante para ele não é a morte, mas a vida. É verdade
que aqueles que o escutavam não entenderam suas palavras
assim. Tomaram-nas ao pé da letra e se escandalizaram:
"Quem crês ser? Até nosso pai Abraão morreu." E muniram-
se de pedras para apedrejá-lo.
Para Feuerbach, a ressurreição de Jesus era apenas "fruto da
aspiração humana por ter uma certeza imediata da própria
imortalidade". É possível. Mas a pergunta é: por que existe
essa aspiração humana? Seria possível que, nascendo o ser
humano com esse desejo profundo de eternidade, seja um
dos seres com vida mais breve sobre a terra?
O filósofo Savater afirma que "existe a cultura porque existe
a morte". Como os homens sabem que têm de morrer e ao
mesmo tempo não desejam morrer, mas perpetuar-se,
constroem pegadas de si mesmos para deixá-las para a
posteridade. É outro modo de dizer que o homem preferiria
não morrer e que, sabendo que isso é impossível, consola-se
construindo arte e cultura para ter a ilusão de posteridade.
Trata-se, sem dúvida, de um problema que os homens nunca
poderão resolver. Ninguém voltou da outra vida para provar
aos mortais que continua vivendo, apesar de todo o esforço
do espiritismo para contatar os mortos. E a ressurreição
cristã é tão-só um tópico de fé. Mas é certo que Jesus, que
era um grande conhecedor da alma humana, dos desejos
profundos dos homens, intuiu que uma verdadeira felicidade
é impossível sem que o homem dê alguma resposta à grande
incógnita da morte, a essa pena capital com que se nasce.
Pois se a felicidade passa, mais do que pelas trilhas do poder
e da riqueza, pelas sendas do amor e das relações entre as
pessoas, então é verdade que o amor exige o ingrediente da
eternidade, pelo menos no plano do desejo. Basta observar
como a linguagem humana usada na intimidade do amor é
cheia de palavras de eternidade. Ninguém quer que morra o
que se ama; ninguém imagina que pode acabar algo que o
levou às alturas da felicidade. Para cada amante, o
companheiro é eterno.
O mesmo poderia se dizer dos seres queridos. Ninguém
aceita que tenham desaparecido para sempre. Por isso
sonhamos com eles, sentimos às vezes sua presença quase
tangível, falamos com eles e pedimos sua ajuda. Sabemos
racionalmente que já não existem, que são apenas um
punhado de pó, que deles só nos resta a memória. Mas isso
não basta. Precisamos nos enganar sentindo que estão vivos.
É algo que acontece com todos, crentes e agnósticos. Faz
parte da mais profunda psicologia humana. Não nos
conformamos com o fato de que aqueles que um dia
amamos e nos amaram tenham deixado para sempre de
existir.
Essa foi a grande loucura de Jesus, sua grande intuição: a de
entender que o homem, mesmo sabendo que é inevitável,
não quer morrer, e que dentro dele alguém, um deus
misterioso e sem nome, pôs esse germe, não se sabe se
maldito ou bendito, de um desejo invencível de eternidade
e imortalidade.
Talvez Jesus tivesse razão ao dizer que só as crianças podem
entender isso. Que só uma criança ou quem não tenha
perdido toda a inocência é capaz de encarar com
naturalidade a vitória sobre a morte.
Lembro, a esse propósito, um caso com que quero terminar
este livro. Eu estava em Roma, passando de carro ao lado de
um cemitério. Comigo ia um menino de cinco anos, filho de
um colega jornalista. Como tantas crianças de cidade, nunca
tinha visto um cemitério. Ele me perguntou o que era
aquilo. Expliquei-lhe que ali descansavam os corpos dos que
tinham morrido. Ficou pensando por alguns segundos e
perguntou: "Então eles não estão mais vivos?" Respondi que
não, que a vida para eles já se acabara. O menino, sem
demonstrar nenhum mal-estar, tornou a pensar por alguns
segundos e disse: "Ah, mas depois vem o meu pai e levanta
todo mundo." Aquele menino não teria atirado pedras
contra Jesus, considerando-o louco por dizer que um dia seu
Pai, que é bom e poderoso, como são todos os pais e mães
para uma criança, "levantará da sepultura" todos os mortos
que tenham apostado na vida e não na morte.
Nota Final
O leitor que tenha chegado ao final desta viagem jornalística
ao desconhecido planeta de Jesus de Nazaré decerto terá,
junto a tantas perguntas, uma clara certeza: que o pouco que
sabemos do personagem basta para constatar que não se
parece em quase nada às imagens e caricaturas que dele se
fazem hoje em não poucas Igrejas supostamente inspiradas
em sua mensagem.
Certa vez, vi o nome de Jesus escrito com letras garrafais na
traseira de um caminhão que circulava carregado de porcos
pelas estradas do Brasil. Para quê?
Jesus foi e continua sendo um coringa fácil para encobrir
injustiças e misérias inconfessáveis, para defender a ordem
constituída de regimes ditatoriais. E usado até pela Igreja
Católica e sua Congregação da Fé — triste herança da
Inquisição — para tolher a liberdade de expressão,
amordaçando os teólogos mais comprometidos com o Jesus
que anunciou novos reinos de liberdade e misericórdia.
Pronunciamos o nome de Jesus até para espirrar. Se hoje ele
desse um passeio por este planeta, não sei se se irritaria ou
acharia graça ao ver tudo o que se construiu e destruiu em
seu nome, e que provavelmente tem muito pouco a ver com
o que ele pregava por aquelas aldeias pobres da Palestina,
cobertas de mendigos, leprosos e possessos. São justamente
os que não crêem nele, ou o vêem como um simples profeta
que criticou as injustiças do mundo, os que por vezes mais o
respeitam, e por isso se escandalizam ao ver como tantos
cristãos banalizam seu nome, sua memória e sua mensagem
de fraternidade universal.
É sintomático o fato de que Jesus, que em tudo se mostrava
radical, apaixonado, sempre oposto à ordem constituída,
defensor aguerrido de todos os fracos, tenha sido
transformado, em suas Igrejas, em um elemento
conservador, em um apelo à prudência mundana, em um
amigo de poderosos e ditadores, a quem o Vaticano nunca
nega suas bênçãos.
O incômodo profeta judeu da Palestina foi afastado de tudo o
que significa aventura, risco, criatividade, compaixão, amor
pelo prazer e pela vida. É um Jesus para mortos, para
amantes da dor, para aqueles que nada querem arriscar. Para
a paz burguesa, nunca para a revolução imaginativa. Mais
para quem não precisaria de seu consolo e de sua ajuda que
para aqueles a quem não resta outra esperança na vida que a
de um Deus que não os ameace com novos castigos, já
estando, como estão, bem castigados pela vida.
"Está certo que também apresentemos Jesus àqueles a quem
a vida sorri, já que Deus não é racista", comentava, irônico,
um teólogo da libertação; "mas que eles acabem sendo os
preferidos da Igreja, enquanto a grande fila de miseráveis
que ele mais amava continua para sempre na sala de espera,
isso já é demais".
É curioso que Jesus, que foi o que de menos diplomático
existiu na história, que pedia que se dissesse "sim ou não" e
que gritava as verdades aos quatro ventos, tenha inspirado,
na Igreja, a mais sofisticada das diplomacias, tanto que na
Escola Diplomática Vaticana se ensina os alunos a não
utilizarem toda uma lista de palavras em seus futuros
documentos. Uma das normas para esses diplomatas, por
exemplo, é que, quando tiverem de dar uma resposta
negativa em nome do papa a alguém importante, um
cardeal, um bispo ou um chefe de Estado, façam isso com
palavras tão ambíguas que nunca pareçam um não
definitivo, para poder um dia voltar atrás. E tudo em nome
de Jesus, que tantas vezes qualificou de hipócritas aqueles
que tendiam a confundir as pessoas com seus subterfúgios de
leguleios.
A personalidade de Jesus, pelo pouco que se pode entrever
nos vestígios que dele ficaram, pode agradar ou não. Pode
ser objeto de simpatia e respeito ou de repulsa. Mas o que
está claro é que ele não foi um homem de segundas
intenções, ele caminhou sempre dizendo o que pensava e
sentia, e que quem melhor o entendeu foram os últimos da
sociedade, que intuíam que ele era um curioso profeta que
semeava esperança entre os mais desesperados. Por isso
acabou mal.
Só uma vez vi o nome de Jesus num lugar em que, muito
provavelmente, ele teria gostado. Foi numa rua do Rio,
escrito em grandes letras pretas num caixote de madeira que
um menino de rua levava na mão, com uma escova velha e
um pouco de graxa, tentando convencer os transeuntes a
que deixassem engraxar seus sapatos.
Não sei quem tinha escrito aquele nome em sua única
propriedade. Provavelmente o menino nem sabia ler. Mas
ali o nome do profeta judeu não ficava mal. Seu nome
roçava a sujeira da rua cada vez que o menino apoiava seu
caixote no chão para engraxar os sapatos de um cliente. Sem
dúvida, ali Jesus deve ter-se sentido mais à vontade que nos
majestosos murais ou nos luxuosos estandartes dos desfiles
triunfais organizados nos quatro cantos do mundo nestes
2.000 anos de história cristã.
Lançamento Gênesis do Conhecimento Jesus - Esse Grande Desconhecido - Juan Arias links ao final da mensagem digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia Agradecimentos a Cláudia Lamarão pela doação do livro para o Memorial do Conhecimento Sinopse: Jesus é, sem dúvida, a figura histórica a respeito de quem mais se escreveu. O personagem de maior repercussão na história dos últimos vinte séculos e que influenciou profundamente a vida, a arte, a cultura, os costumes e a consciência das milhares de pessoas que crêem Nele. Mas quem foi este homem que ainda marca tanto nossas vidas, mesmo dois mil anos após sua morte? Um rebelde, um inconformista, um revolucionário? Em Jesus, esse Grande Desconhecido, Juan Arias procura responder a essas perguntas tão frequentes. Fruto de exaustiva pesquisa, o livro apresenta a história do homem de Nazaré de forma direta e acessível. Num relato de cunho jornalístico, revela-nos um Jesus como nunca se viu antes.
| ||||||||
|
0 comentários:
Postar um comentário