sexta-feira, 29 de julho de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> Anton Tchekhov - Contos diversos e um romance

A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos
Anton Tchekhov

ANTON Pavlovitch TCHEKHOV nasceu em Tapanrog, nas margens do mar de Azov, na Rússia, em 1860, e morreu em Hadenweilcr, na Alemanha, em 1904. Neto de camponeses,
recebeu
uma formação escolar precária, na província. Para prover às necessidades económicas da família e custear os seus estudos de Medicina, em Moscovo, Tchekhov escreve
contos humorísticos e crónicas, que publica em jornais. Em 1884 é editada a sua primeira recolha de contos. Datam também dessa altura as primeiras peças de teatro:
Os Malefícios do Tabaco (1886), Ivanov (1887, a mais importante das obras deste período), O Urso (1888), O Pedido de Casamento (1888) e O Casamento (1889). É com
a publicação de uma novela, Â lístepc (1888), que Tchekhov vê consolidada a sua posição de escritor. Dos jornais humorísticos em que colaborava, passa a escrever
para revistas literárias; e o conto, até então considerado género menor na Rússia, assume nova importância. Em 1890 viaja pela ilha de Sacalina, lugar de deportação
dos condenados a trabalhos forçados, e descreve-a num livro objectivo e comovente (1893). Viaja pelo estrangeiro em 1891, e compra uma propriedade nos arredores
de Moscovo. Preocupado com a sorte dos camponeses, manda construir escolas e estradas. Os anos de 1891 a 1897 são bastante férteis para a sua obra: desta época data
A Enfermaria nº 6, uma das suas novelas mais notáveis. Toda a dramaturgia
tchekjhoviana é caracterizada por uma aversão aos acontecimentos espectaculares ou "teatrais".
Entretanto, o encontro com a arte de Stanislavski e o Teatro de Arte de Moscovo é decisivo para o desenvolvimento da concepção cénica de Tchecov. A Gaivota (1896)
fracassa aquando da sua estreia em Moscovo, que coincide com o agravamento da tuberculose de que Tchekhov padecia há anos. Passa o Inverno de 1897-1898 em Nice,
e
em 1899 compra uma propriedade em Yalta, na Crimeia. Só após o seu casamento com Olga Knipper (1898), primeira actriz do Teatro de Arte, de Stanislavski, têm início
os seus triunfos dramáticos. É nos últimos anos de vida que Tchecov escreve as melhores peças da sua produção: O Tio Vânia (l 899), As Três Irmãs (1901) e O Pomar
das Cerejeiras, a sua obra-prima (1904). Ao lado de Gogol e Gorki, Tchekhov é dos maiores contistas da literatura russa. Debruçando-se piedosamente sobre os diversos
tipos sociais da época, Anton Tchecov não revela nas suas obras quaisquer tendências políticas ou religiosas, ao contrário de tantos escritores russos. Não obstante
a sua irreligiosidade, confere às coisas mais insignificantes um conteúdo densamente filosófico e uma tonalidade estranhamente mística.

Versão portuguesa de
Maria Luísa Anahory
e Editorial Verbo

Composto e impresso por
Gris, Impressores
Lisboa 1972

Livros RTP
Biblioteca Básica Verbo nº 67

ANTON TCHEKHOV
A ENFERMARIA Nº 6 e outros contos

A ENFERMARIA NÚMERO SEIS

I

No pátio do hospital existe um pequeno pavilhão rodeado de um autêntico matagal de cardos, urtigas e cânhamo silvestre. Tem o tecto oxidado, a chaminé meio destruída,
os degraus da entrada apodrecidos e cobertos de erva, e do estuque restam vestígios. A fachada dá para o hospital e as traseiras para o campo, e deste separa-o uma
vedação de madeira, pintada de cinzento e encimada por pregos. Estes pregos com os bicos para cima, a vedação e o próprio pavilhão oferecem aquele aspecto característico,
triste e repulsivo, que no nosso país apenas os hospitais e as prisões apresentam.
Se não tendes receio das urtigas, caminhemos pelo estreito atalho que conduz ao pavilhão, e lancemos um olhar ao que se passa no interior. Abrimos a primeira porta
e entramos no vestíbulo. Aqui, junto à lareira, há montanhas de objectos e roupas. Colchas velhas, batas esfarrapadas, calças, camisas de riscas azuis, sapatos rotos
e inúteis: todos estes trapos estão amontoados, amarrotados, remexidos, meio apodrecidos, emanando um cheiro pestilento.
Permanentemente deitado sobre este lixo, com o cachimbo entre os dentes, está o trapeiro Nikita, velho soldado reformado, de galões desbotados. Tem a expressão do
homem que gosta de beber; sobrancelhas arqueadas, que lhe dão o aspecto de um mastim das estepes e o nariz vermelho; de estatura baixa, seco e nervoso;mas tem um
físico que se impõe e possui mãos enormes. Pertence àquela classe de pessoas simples, cumpridoras do seu dever e obstinadas, que põem a ordem acima de tudo, sinceramente
convencidas de que o emprego da força é indispensável. Bate ao acaso, na cara, no peito, nas costas, em qualquer parte, com a certeza de que de outro modo não poderia
manter a ordem.

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Entramos em seguida numa divisão grande, muito espaçosa, que ocupa todo o pavilhão, salvo o vestíbulo. As paredes estão pintadas num tom azulado, e o tecto está
enegrecido como nessas isbás onde não existe chaminé: vê-se que acendem a lareira no Inverno e que esta deita muito fumo. As janelas estão protegidas por dentro
com varões de ferro. O chão é cinzento, e tem tábuas lascadas. Cheira a couve azeda, a fumo da torcida da lamparina, a percevejos e a amoníaco, dando este cheiro
nauseabundo a impressão de termos entrado numa jaula de feras.
Nesta sala estão dispostas várias camas, fixadas ao chão. Sempre sentados ou deitados, há homens envergando as fardas azuis do hospital, e tendo na cabeça gorros
como os usados noutros tempos para dormir. São os loucos.
São cinco ao todo. Apenas um é de origem nobre; os outros são operários. O primeiro, logo à entrada, é alto e magro, com bigode arruivado e lustroso, e olhos húmidos;
está sentado, com a cabeça apoiada nas mãos e o olhar perdido no vácuo. Passa os dias e as noites envolto em profunda tristeza, abanando a cabeça, suspirando e sorrindo
amargamente; raras vezes intervém na conversa e em regra não responde às perguntas. Come e bebe maquinalmente, quando o servem. A avaliar pela tosse que lhe rasga
o peito, pela magreza em que se encontra e pela palidez da face, sofre de um princípio de tuberculose pulmonar.
A seguir está um velhinho, mirrado mas muito vivo, que não pára de se mexer, com a sua barbicha em bico, e cabelo escuro e encarapinhado como o de um negro. Passa
o dia a andar de uma janela para a outra, ou então permanece sentado no seu catre, com as pernas cruzadas à maneira turca, assobiando como um pintassilgo, cantando
a meia-voz e rindo com um riso suave. A sua alegria infantil e animação bate no peito e abana a porta. É o judeu Moiseika, imbecilizado desde que há vinte anos perdeu
o juízo, quando um incêndio destruiu a sua oficina de chapéus.
É o único habitante da sala número seis a quem é permitido sair do pavilhão, e até do pátio do hospital, para a rua. É um privilégio de que desfruta há muito, provavelmente
devido ao seu tempo de recluso e ao facto de ser um doido tranquilo e inofensivo: é o bobo da cidade, que todos se acostumaram a ver pelas ruas, rodeado de garotos
e cães. Com a sua bata e o seu ridículo gorro, de alpergatas ou descalço, e às vezes até sem calças, vai e vem, parando nas portas das lojas e pedindo

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esmola. Aqui, dão-lhe uma côdea de pão, ali um kopek , de modo que volta ao pavilhão de estômago cheio e rico. Mas Nikita tira-lhe tudo quanto traz. O soldado fa-lo
com brutalidade, muito meticulosamente, passando revista aos bolsos e invocando Deus como testemunha de que não voltará a deixar sair o judeu, ao mesmo tempo que
afirma não haver coisa pior do que a desordem.
Moiseika gosta de fazer favores. Dá água aos seus companheiros, cobre-os quando estão a dormir, promete trazer-lhes dinheiro quando for à rua e confecciona-lhes
gorros novos. Dá ainda de comer ao seu vizinho da esquerda, que é paralítico. E faz tudo isto, não por compaixão ou considerações de carácter humanitário, mas para
imitar Gromov, o seu vizinho da direita, que o domina sem que ele disso se aperceba.
Ivan Dmitrich Gromov, de origem nobre, trinta e três anos, antigo oficial de diligências do julgado e secretário provincial, sofre de mania da perseguição. Permanece
deitado na cama, como um novelo, ou anda de um lado para o outro como se desse um passeio higiénico; é rara a vez em que fica sentado. Mostra-se sempre excitado,
inquieto, num estado de grande tensão, como se esperasse algum acontecimento confuso e indefinido. Basta o mais pequeno ruído no vestíbulo ou um grito no pátio para
que erga a cabeça e se conserve alerta: estão a perguntar por ele? Procuram-no? E nestes instantes o seu rosto reflecte grande inquietação e medo.
Agrada-me a sua cara comprida, de maçãs de rosto salientes, sempre pálida e infeliz, espelho de uma alma atormentada pela luta e por um sentimento de medo que nunca
o abandona. Tem uns tiques estranhos e doentios, mas os finos sulcos, que um profundo e sincero sofrimento deixou no seu semblante, denotam inteligência, e os seus
olhos deixam transparecer um brilho carinhoso e sadio. Agrada-me a sua personalidade: É cortês, prestável e extraordinariamente delicado no trato com toda a gente,
à excepção de Nikita. Quando alguém perde um botão ou a colher, levanta-se da cama no mesmo instante e entrega-lhos. Dá os bons-dias aos companheiros todas as manhãs,
e ao deitar-se deseja-lhes as boas-noites.
Além da tensão permanente e dos tiques, a sua loucura tem outra forma de manifestar-se. Por vezes, ao anoitecer, embrulha-se na sua

' Kopek: unidade divisionária da moeda russa (N. do T.)

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bata, e tremendo e batendo os dentes principia a andar com um passo rápido de um canto para o outro e por entre as camas. E como se tivesse um forte acesso de febre.
Pela maneira como pára de súbito e contempla os seus companheiros, nota-se que tem alguma coisa muito importante para lhes dizer; mas, reflectindo melhor, chega
à conclusão de que não lhe darão ouvidos ou não o compreenderão; sacode com impaciência a cabeça, e continua a caminhar. Mas depressa o desejo de falar se torna
mais forte e dá rédea solta à língua; fala com calor, apaixonadamente. () seu discurso é desordenado, febril, como em delírio; nem sempre se compreende o que diz;
mas mesmo assim deixa perceber, pelas palavras e pela voz, qualquer coisa que denota extrema bondade. Quando fala, distinguem-se nele o louco e o homem. É difícil
traduzir para o papel os seus desvarios. Fala da maldade humana, da violência que espezinha a justiça, da bela vida que com o andar dos tempos reinará na Terra,
das grades e das janelas, que a cada instante lhe recordam a obstinação e a crueldade dos opressores. Tudo é um caótico amontoado de coisas velhas mas não caducas.

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II

O funcionário Gromov, há doze para quinze anos, vivia na cidade com a família, em casa própria, situada na rua principal. Tinha dois filhos: Serguei e Ivan. Serguei,
quando frequentava o quarto ano, contraiu uma tísica galopante e morreu. Foi o princípio de uma série de calamidades que caíram subitamente sobre a família dos Gromov.
Uma semana depois do enterro de Serguei, o velho pai foi processado por desfalque e desvio de fundos, e não tardou em morrer na enfermaria da prisão, vitimado por
uma febre tifóide. A casa e o seu recheio foram vendidos em almoeda; Ivan Dmitrich e a sua mãe ficaram sem o mínimo recurso.
Antes, enquanto o pai era vivo, Ivan Dmitrich vivia em S. Petersburgo, estudava na Universidade, recebia todos os meses sessenta ou setenta rublos e não sabia o
que eram necessidades; depois, tivera que mudar completamente de vida. Via-se obrigado a dar lições muito mal pagas e a fazer escrita desde manhã à noite, mas não
deixava por isso de passar fome, pois mandava à mãe tudo quanto ganhava. Ivan Dmitrich não aguentou, perdeu a coragem, a sua saúde declinou e, abandonando os estudos,
foi para casa. Ali, na pequena cidade, graças a empenhos, obteve um lugar de professor. Mas não se entendeu com os seus colegas, nem lhe agradaram os alunos, e depressa
apresentou a demissão. A mãe morreu. Ivan vagueou sem trabalho durante seis meses, sem outro alimento além de pão e água, e entrou finalmente para oficial de diligências
do tribunal, cargo que ocupou até lhe ser concedida baixa por doença.
Nunca, nem mesmo nos seus anos de estudante, deu a sensação de ser um homem são. Foi sempre pálido, magro e constipava-se facilmente. Um copo de vinho causava-lhe
tonturas e ataques
histéricos. Gostava de companhia, mas o seu carácter irritável e os seus receios impediam-no de ter intimidade com alguém, e carecia de amigos. Falava sempre com
desprezo da gente das cidades, dizendo que a sua torpe ignorância e a vida sedentária que levavam eram qualquer coisa de degradante e repulsivo. Falava com voz de
tenor, alta e apaixonada, descontente e indignada, ou com entusiasmo e desassombro, e era sempre sincero. Chegava sistematicamente a uma conclusão, fosse qual fosse
o tema: a vida na cidade era desgostante e aborrecida; a sociedade carecia de nível, era uma vida absurda e obscura e os únicos elementos que contribuíam para lhe
dar algum imprevisto eram a violência, a grosseira corrupção e a hipocrisia. Os facínoras estavam prósperos e bem vestidos, enquanto os homens honrados se alimentavam
de migalhas. Faziam falta escolas, um jornal local com uma orientação honesta, um teatro, conferências públicas, coesão dos intelectuais. Nas suas apreciações sobre
as pessoas empregava grandes pinceladas de branco e negro, sem admitir nenhum outro tom de matiz: para ele, a humanidade dividia-se em honrados e canalhas, sem meio
termo. Das mulheres e do amor falava sempre apaixonadamente, com entusiasmo, mas nem uma vez esteve enamorado.
Na cidade, apesar da dureza dos seus julgamentos e do seu nervosismo, gostavam dele, e na sua ausência davam-lhe o carinhoso diminutivo de Vânia. A sua delicadeza
inata, o seu espírito prestável, a sua dignidade e pureza moral, a sua labita coçada, o seu aspecto doentio e as suas desgraças familiares despertavam um sentimento
bom, carinhoso e triste; além disso, era culto e tinha lido muito; e em tudo lhe faziam fé, sendo considerado na cidade um verdadeiro dicionário de consulta.
Lia muito. Passava largas horas no clube, acariciando nervosamente a barbicha e folheando revistas e livros; notava-se pela sua expressão que não lia, mas que devorava,
quase sem tempo de assimilar. Há que pensar que a leitura era para ele um hábito doentio, porque se lançava com igual avidez sobre tudo o que lhe chegava às mãos,
até mesmo jornais e calendários de anos anteriores. Em casa lia sempre deitado.

III

Uma manhã de Outono, com a gola do casaco subida e espezinhando a lama, Ivan Dmitrich dirigia-se por vielas e pátios traseiros a casa de um operário onde devia cumprir
um mandato judicial. listava de humor sombrio, como todas as manhãs. Numa das vielas passou por dois prisioneiros, carregados de correntes, conduzidos por quatro
soldados armados de espingardas. Muitas vezes se encontrara já com presos, e sempre despertavam nele sentimentos de piedade e mágoa; mas desta vez produziram nele
uma impressão especial e estranha. Pareceu-lhe que também o podiam carregar de grilhetas e conduzi-lo por entre a lama à prisão. Depois de resolver o assunto com
o operário, de volta a casa, encontrou ao pé dos Correios um inspector da Polícia, seu conhecido, que o cumprimentou e o acompanhou durante alguns passos. Isto pareceu-lhe
suspeito. Já em casa, durante todo o dia, não lhe saíam do pensamento os presos e os soldados com as espingardas; uma incompreensível inquietação de espírito impedia-o
de se concentrar na leitura. Ao cair da tarde não acendeu o candeeiro de petróleo no seu quarto, e a noite passou-a de vela, pensando que podiam prendê-lo, agrilhoá-lo
e metê-lo na prisão. Sabia-se inocente e podia mesmo assegurar que nunca mataria ninguém, não queimaria nem roubaria nada; mas seria acaso tão difícil cometer um
delito sem querer e sem intenção? Não seria admissível uma calúnia, um erro judiciário, enfim? Não é em vão que a secular experiência do povo diz que ninguém pode
estar seguro contra o risco de carregar com os alforjes do mendigo ou ir parar à cadeia. E o erro judiciário, com o actual sistema de administração da justiça, seria
muito possível, e nem teria nada de extraordinário. Aqueles que em virtude da sua profissão estão em contacto com os sofrimentos alheios, por exemplo, os juizes,

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os polícias e os médicos, com o decorrer do tempo insensibilizam-se a tal ponto, pela força do hábito, que ainda que o quisessem não poderiam olhar os seus clientes
senão com um sentimento de indiferença; por outro lado, não se diferenciam em nada do mujique que no curral degola carneiros e bezerros sem sequer se aperceber do
sangue. Com essa atitude convencional e insensível em relação à pessoa humana, para despojar um inocente de todos os seus direitos e bens, e condená-lo ao presídio,
o juiz apenas necessita de uma coisa: tempo. Apenas tempo para observar certas formalidades, para o que lhe pagavam, e tudo termina. Quem podia esperar justiça e
defesa naquela uldeiazinha suja, a duzentas verstas do caminho de ferro? E não seria ridículo pensar na justiça quando qualquer acção violenta era acolhida pela
sociedade como razoável e aceitável, enquanto qualquer acto de piedade, por exemplo, uma absolvição, provocava uma verdadeira explosão de sentimentos vingativos
de descontentamento?
Pela manhã Ivan Dmitrich levantou-se apavorado, com a fronte coberta de um suor frio e intimamente convencido de que de um momento para o outro podiam vir prendê-lo.
Se os dolorosos pensamentos da véspera tardavam tanto em abandoná-lo pensava era porque havia neles qualquer ponta de verdade. Realmente, não podiam acudir-lhe à
cabeça sem alguma razão.
Um guarda municipal passou lentamente diante da janela. Teria decerto as suas razões. Dois homens pararam em silêncio diante da casa. Por que motivo estavam silenciosos?
E para Ivan Dmitrich principiaram dias e noites de pesadelo. Imaginava que quantos passavam diante das suas janelas e entravam no pátio eram denunciantes e esbirros.
Pelo meio do dia costumava passar o chefe da Polícia. Na sua carruagem, puxada por dois cavalos, vinha da sua herdade nos arredores da cidade, e dirigia-se para
a sua repartição; mas Ivan Dmitrich achava sempre que ele ia demasiado depressa e com uma expressão especial: ia, sem dúvida, anunciar que tinha aparecido na cidade
um delinquente de grande importância. Ivan Dmitrich estremecia sempre que batiam à porta, e ficava angustiado quando a dona da casa recebia um hóspede novo; quando
se encontrava com polícias e guardas, sorria e assobiava para mostrar indiferença. Passava as noites sem pregar olho, sempre à espera de que o viessem prender; mas
suspirava e fingia ressonar para que a dona da casa imaginasse que dormia porque não dormir seria prova de que tinha remorsos na

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consciência. Que indicação! Os factos e a lógica levavam-no à convicção de que todos estes temores eram um absurdo e uma psicopatia, porque, na realidade, bem vistas
as coisas, a detenção e a cadeia não constituíam preocupação quando se possuía a consciência tranquila; mas quanto mais lógicos eram os seus raciocínios, tanto maior
e mais dolorosa era a sua inquietação espiritual, era como se um eremita quisesse abrir uma clareira na selva virgem para nela viver: quanto mais afanosamente trabalhava
com o machado, mais espesso e vigoroso crescia o bosque. Ivan Dmitrich, vendo a inutilidade dos seus intentos, acabou por desistir, deixou de ressonar e entregou-se
inteiramente ao desespero e ao medo.
Principiou a evitar as pessoas; procurava estar sòzinho. O cargo que ocupava, que já antes lhe desagradava, tornou-se-lhe insuportável. Temia que lhe fizessem uma
partida, que lhe metessem dinheiro no bolso a fim de o acusarem de cumplicidade, ou que ele próprio cometesse em documentos oficiais, sem querer, qualquer erro equivalente
a uma falsificação, ou perdesse uma soma que não fosse sua. Coisa estranha: nunca, em nenhuma altura, fora o seu pensamento tão lúcido nem a sua imaginação tão fértil
como agora, quando todos os dias descobria mil motivos diferentes para sentir sérias apreensões pela sua liberdade e a sua honra. Em contrapartida, diminuiu sensivelmente
o seu interesse pelo mundo exterior, sobretudo pelos livros, e a memória principiou a traí-lo.
Ao chegar a Primavera, quando a neve começou a derreter, apareceram num barranco ao pé do cemitério dois cadáveres em adiantado estado de decomposição uma mulher
e um rapaz com sinais de morte violenta. Na cidade não se falava senão nestes dois cadáveres e nos presumíveis assassinos. Ivan Dmitrich, para que não se pudesse
pensar que fora ele o autor do crime, caminhava sorridente pelas ruas, e ao encontrar qualquer conhecimento empalidecia e exaltava-se, insistindo em que não havia
nada mais revoltante que o assassinato de pessoas -fracas e indefesas. Mas não tardou a cansar-se desta hipocrisia, e depois de reflectir chegou à conclusão de que
na sua situação o melhor seria esconder-se na cave da casa. Ali permaneceu um dia, uma noite e outro dia, até que, morto de frio, depois de escurecer, caminhando
silenciosamente como um ladrão, meteu-se no quarto, onde se deixou ficar até de manhã sem se mexer, prestando atenção ao menor ruído. Às primeiras horas, antes de
o Sol nascer, chegaram alguns operários. Ivan Dmitrich bem sabia que tinham vindo chamados

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pela dona da casa, para arranjar o forno da cozinha; mas o medo levou-o a pensar que eram polícias disfarçados. Saiu dissimuladamente do quarto, e, aterrorizado,
sem gorro e sem casaco, deitou a correr pela rua. Perseguiam-no os cães a ladrar, alguém gritou nas suas costas, o vento silvava-lhe aos ouvidos. Ivan Dmitrich pensou
que toda a violência do mundo se unira atrás dele, tentando alcançá-lo.
Agarraram-no, levaram-no para casa, e mandaram a senhoria à procura do médico. O doutor Andrei Efimich, de quem falaremos mais adiante, receitou-lhe compressas frias
na cabeça e gotas de loureiro e ginjas; abanou tristemente a cabeça e saiu, dizendo à dona da casa que não voltaria, visto ser impossível fazer fosse o que fosse
quando as pessoas queriam endoidecer. Como em casa não o podiam tratar, Ivan Dmitrich foi pouco tempo depois levado para o hospital e aí o instalaram na sala de
doenças venéreas. Não dormia de noite, mostrava-se caprichoso e incomodava os vizinhos, e por isso não tardaram em levá-lo, por ordem de Andrei Efimich, para a enfermaria
número seis.
Passado um ano, na cidade tinham esquecido completamente Ivan Dmitrich; e os seus livros, que a dona da casa amontoara num trenó, sob um telheiro, foram levados
pelos garotos.

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IV

O vizinho da esquerda de Ivan Dmitrich, como já dissemos, era o judeu Moiscika. O da direita era um mujiquc adiposo, obeso, de cara inexpressiva e estúpida, um animal
imóvel, glutão e sujo, que de há muito havia perdido a capacidade de pensar e sentir. Emanava dele constantemente um cheiro fétido e asfixiante.
Nikita, encarregado da limpeza, batia-lhe sem dó nem piedade;mas o mais impressionante não era baterem-lhe, a isto ainda nos podemos acostumar , mas o facto de aquele
animal insensível não reagir de maneira alguma aos golpes, nem por um som ou um movimento, nem pela expressão do olhar, limitando-se a baloiçar ligeiramente como
um pesado barril.
O quinto e último habitante da enfermaria número seis era um homem que fora em tempos empregado dos Correios, onde fazia a selecção das cartas, fora um indivíduo
pequeno, magro, loiro, de expressão caritativa, ainda que levemente maliciosa. A julgar pelo seu olhar inteligente e tranquilo, de expressão serena e jovial, guardava
no seu íntimo um segredo muito importante e aprazível. Debaixo da almofada e do enxergão ocultava qualquer coisa que não mostrava a ninguém, não por medo de que
lho pudessem tirar ou roubar, mas por vergonha. As vezes aproximava-se da janela, de costas para os companheiros, colocava um objecto no peito e contemplava-o com
a cabeça inclinada; mas, se naquele momento alguém se aproximava, perturbava-se e escondia-o. Não era difícil, contudo, adivinhar o seu segredo.
- Dê-me os parabéns - dizia frequentemente a Ivan Dmitrich , fui proposto para a Ordem de Sto. Estanislau de segunda classe, com estrela. A segunda classe com estrela
é concedida apenas aos

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estrangeiros, mas comigo, não sei porquê, pretendem abrir uma excepção - e sorria, encolhendo os ombros, admirado. - Confesso que não contava com isso!
- Não entendo nada desses assuntos - respondia Ivan Dmitrich sombriamente.
- Mas mais tarde ou mais cedo hei-de consegui-lo, sabe? - prosseguia o antigo seleccionador de cartas, piscando o olho com astúcia. Obterei sem dúvida a Estrela
Polar sueca. É uma ordem que vale o esforço de a conseguir. Cruz branca e fita negra, e de muito bonito efeito.
Decerto, em nenhum outro local era a vida tão monótona como no pavilhão. De manhã, os doentes, à excepção do paralítico e do mujique gordo, lavavam-se no vestíbulo,
numa banheira, e secavam-se com as fraldas das suas batas. Em seguida tomavam chá em xícaras de folha, que Nikita trazia do pavilhão principal. A cada um correspondia
uma xícara. Ao meio-dia comiam sopa de couve e papas de farinha, e ao anoitecer jantavam as papas que tinham sobejado do almoço. Nos intervalos permaneciam deitados,
dormiam, olhavam pela janela e passeavam de um lado para o outro, e assim todos os dias. O próprio antigo seleccionador de cartas falava sempre das mesmas condecorações.
Eram muito poucas as caras novas que se viam na enfermaria número seis. Havia tempo que o médico deixara de admitir mais loucos, e não são muitos, neste mundo, os
aficionados de manicómios. Uma vez em cada dois meses aparecia no pavilhão Simião Lazarich, o barbeiro. Não vamos falar de como cortava o cabelo aos loucos e da
maneira como era ajudado por Nikita neste empreendimento, nem da confusão que se gerava entre os enfermos sempre que aparecia o barbeiro com o seu sorriso de alcoólico.
Ninguém mais aparecia no pavilhão. Os doentes estavam condenados, dia após dia, a verem unicamente Nikita.
Mas ultimamente corria pelo hospital um rumor muito estranho: dizia-se que o médico começara a visitar a enfermaria número seis.

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V

Estranho rumor!
O doutor Andrei Kfimich Raguin era um homem notável no seu género. Dizia-se que havia sido muito devoto na juventude, tencionando seguir a carreira eclesiástica;que
em 1863, ao terminar os seus estudos no liceu, se preparava para ingressar no seminário, mas que seu pai, doutor em Medicina e cirurgião, não o tomou a sério e declarou
categoricamente que não o consideraria como filho se ele se ordenasse pope. Não sei até que ponto isto é verdade, mas o próprio Andrei Ffimich confessou mais de
uma vez que nunca sentira vocação pela Medicina nem pelas ciências aplicadas em geral.
Fosse como fosse, ao terminar os estudos na Faculdade não se fez sacerdote. Não mostrava grande devoção e no início da sua carreira médica parecia-se tão pouco com
um pope como no momento em que principia a nossa história.
Tinha o aspecto pesado, vagaroso, de um mujiquc, e pelas suas feições, a barba, o cabelo liso, a compleição forte e grosseira, fazia lembrar um estalajadeiro gordo,
dado à bebida, e de maneiras bruscas. O seu rosto, de expressão grave, era sulcado por finas veias azuis, olhos pequenos e nariz vermelho. Muito alto e de ombros
largos, tinha braços e pernas enormes, e parecia capaz de matar uma pessoa de um só golpe. Mas o seu andar era suave e cauteloso, como ondulante; quando encontrava
alguém no estreito corredor, parava sempre primeiro, cedendo o lugar; e com voz que não era de baixo, como seria de esperar, mas fina e suave como de tenor, dizia:
"Perdão!" Um pequeno inchaço impedia-o de usar colarinhos duros, engomados, e por isso vestia sempre camisa de linho ou de algodão. A sua maneira de trajar não era
de médico. Os fatos duravam-lhe dez anos e a roupa nova, que

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costumava comprar na loja de um judeu, parecia tão coçada e enxovalhada como a anterior. Com a mesma labita, recebia os doentes, comia e fazia visitas. Não o fazia
por espírito de mesquinhez, mas porque nada se importava consigo próprio.
Quando Andrei Efimich chegou à cidade para tomar posse do seu cargo, o "estabelecimento de beneficiência encontrava-se num estado deplorável. Nas salas, corredores
e pátio do hospital, o cheiro era a ponto de tornar difícil respirar. Os servitas, as enfermeiras e seus filhos dormiam nas enfermarias dos doentes. Queixavam-se
de que as baratas, os percevejos e os ratos lhes tornavam a vida impossível. Na secção de cirurgia não conseguiam acabar com a erisipela. Apenas existiam dois bisturis
em todo o hospital; não dispunham de um único termómetro;e as banheiras serviam para guardar batatas. O inspector, a encarregada da roupa e o assistente roubavam
os doentes, e dizia-se do antigo médico, o predecessor de Andrei Efimich, que vendia de contrabando o álcool do hospital e tinha um verdadeiro harém constituído
por enfermeiras e doentes. Na cidade eram conhecidas todas estas irregularidades, e até as exageravam, mas toleravam-nas com a maior tranquilidade. Alguns argumentavam,
para as justificar, que no hospital só havia gente do povo e mujiques, que não tinham o direito de estar descontentes, pois em suas casas viviam muito pior. Não
era possível dar-lhes faisão!
Outros diziam que a cidade, só por si, sem a ajuda do zemstvo, não podia custear um bom hospital; e era graças a Deus que existia um, apesar de mau. E o zemstvo,
recém-constituído, não abria estabelecimentos sanitários na cidade nem nos arredores, a pretexto de que a cidade possuía já o seu hospital.
Depois de uma revisão geraljAndrei Efimich chegou à conclusão de que semelhante instituição hospitalar era imoral e altamente nociva para a saúde das pessoas. Parecia-lhe
que a única solução era mandar os doentes para casa e encerrá-la. Considerou, no entanto, que isto não dependia apenas da sua vontade e que não seria eficiente:
se se eliminasse a imundície física e moral de um local, aquela provavelmente transferia-se para outro. Havia que esperar que desaparecesse por si própria. Além
disso, se tinham aberto este hospital e o toleravam, era sinal de que as pessoas necessitavam dele; os males

' zemstvo: organismo autónomo com determinada tendência liberal, que, à escala provincial e distrital, mantinha hospitais e centros de ensino. Instituídos em 1864,
desapareceram em 1917 (N. do T.)

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desta vida e todas as suas vilanias são necessários, já que se convertiam com o tempo em qualquer coisa de útil, como o estrume em terra negra. Não há no mundo bem
que na sua origem não contivesse uma acção abjecta.
Uma vez tomada posse do seu cargo, Andrei Efimich não mostrou ligar grande importância a todas estas anomalias. Fez uma única coisa: pediu aos servitas e enfermeiras
que não dormissem nas enfermarias. Mandou também colocar duas vitrinas para os instrumentos. Quanto ao inspector, à encarregada da roupa, ao assistente e ao material
cirúrgico, continuaram nos seus antigos lugares.
Andrei Efimich apreciava no mais alto grau a inteligência e a honestidade, mas para organizar à sua volta uma vida inteligente e honesta faltava-lhe o carácter e
a fé no direito que lhe assistia. Não sabia em absoluto mandar, proibir e insistir. Era como se tivesse feito voto de nunca levantar a voz nem empregar o imperativo.
Custava-lhe dizer "dá-me" ou "traz-me" ;quando queria comer, pigarreava indeciso e dizia à cozinheira: "Se pudesse tomar uma chávena de chá...", ou "Se eu pudesse
comer...".Dizer ao inspector que deixasse de roubar ou despedi-lo, ou suprimir por completo aquele cargo inútil e parasitário, era superior às suas forças. Quando
o enganavam ou adulavam, ou lhe apresentavam uma conta que sabia ser falsa, tornava-se vermelho como um caranguejo e sentia-se culpado; mas, apesar de tudo, assinava.
Quando os doentes se queixavam de passar fome ou dos maus tratos das enfermeiras, atrapalhava-se e balbuciava, como se fosse ele o culpado:
Está bem, está bem, vou-me ocupar disso... Provavelmente trata-se de um mal-entendido...
De princípio Andrei Efimich trabalhou arduamente. Dava consulta todas as manhãs até à hora da comida, operava e, inclusivamente, assistia aos partos. As senhoras
diziam que diagnosticava com precisão as doenças, sobretudo em mulheres e crianças. Mas com o decorrer do tempo tudo isto acabou por aborrecê-lo, pela sua monotonia
e evidente inutilidade. Hoje recebia trinta doentes, amanhã eram trinta e cinco e depois de amanhã quarenta, e assim um dia após outro, um ano atrás do outro, sem
que a mortalidade diminuísse, continuando os doentes a afluir. Prestar uma assistência eficaz aos quarenta doentes que vinham à consulta desde manhã até à hora do
jantar' era fisicamente

' O jantar na Rússia era servido às três horas (N. do T.).

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impossível; redundava num logro. Se durante um ano tinha examinado doze mil doentes, segundo diziam, significava que tinha enganado doze mil pessoas. Internar os
doentes graves e tratá-los segundo as regras da ciência também não era possível porque as regras existiam, mas não havia ciência; e se punha de parte a filosofia
e se limitava a seguir com rigor as regras, como os outros médicos, necessitava para isso, acima de tudo, limpeza e arejamento, e não sujidade; e uma alimentação
sã, e não a sopa da repugnante couve azeda; e bons auxiliares, e não ladrões.
Além do mais, para quê impedir que as pessoas morram, se a morte é o fim normal e lógico de cada um? Que acontecia se um ricaço ou um funcionário vivia cinco ou
dez anos mais? Se se considera que o objectivo da Medicina consiste em aliviar a dor, surge a pergunta: Para quê aliviá-la? Em primeiro lugar, dizem que a dor leva
o homem à perfeição e, em segundo, que se a humanidade aprende, efectivamente, a aliviar as suas dores com a ajuda de pílulas e gotas, abandonará por completo a
religião e a filosofia, em que até agora encontrara não apenas defesa contra todos os males mas também a felicidade. Pushkin, na hora da sua morte, sofreu dores
horríveis, o pobre Heine esteve paralítico vários anos. Então, por que razão não havia de padecer doenças qualquer AndreiEfimich ou qualquer Mastriona Savishna,
cujas vidas não possuíam qualquer conteúdo e seriam completamente vazias e parecidas com as de uma ameba se não fossem os sofrimentos?
Acabrunhado com estas conclusões, Andrei Efimich abandonou tudo e deixou de ir diariamente ao hospital.

VI

A sua vida decorria da seguinte maneira: levantava-se geralmente às oito, vestia-se e tomava o chá. Sentava-se, em seguida, a ler no seu escritório ou ia ao hospital.
Ali, num corredor estreito e escuro, juntavam-se os doentes externos, esperando a hora de serem recebidos. Junto deles, fazendo muito barulho com as suas botas no
chão de ladrilhos, passavam os servitas e as enfermeiras transportando os mortos e os urinóis; as crianças choravam; soprava o vento; e caminhavam com aspecto abatido
os doentes internos, enfiados nas suas batas. Andrei Efimich sabia que para os doentes com febre, os tuberculosos e os sensíveis aquilo era um tormento, mas que
podia fazer? No escritório, esperava-o Serguei Sergueich, o assistente, um homem pequeno, anafado, de cara redonda barbeada e lavada, de maneiras suaves, que, com
o seu amplo fato novo, mais parecia um senador do que um assistente. Tinha numerosa clientela na cidade, usava gravata branca, e achava que sabia mais do que o próprio
médico, que não exercia clínica privada. A um canto do escritório estava uma grande imagem com a correspondente lâmpada e, a seu lado, um genuflexório forrado de
branco. Nas paredes havia retratos de prelados, uma vista do Mosteiro de Seviatogorsk e várias coroas secas de flores de aciano. Serguei Sergueich era um homem religioso
e gostava de sumptuosidade. A imagem fora adquirida por ele. Aos domingos, um doente, obedecendo às suas ordens, lia em voz alta o livro de orações, depois do que
o próprio Serguei Sergueich percorria todas as salas com o incensório, perfumando-as conscienciosamente.
Os doentes são muitos e o tempo pouco, pelo que tudo se reduz a um breve interrogatório e à receita de um remédio qualquer, um unguento ou uma purga de óleo de rícino.
Andrei Efimich deixa-se ficar sentado.

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com a cara apoiada numa das mãos, pensativo, e faz as perguntas maquinalmente. Serguei Sergueich, também sentado, esfrega as mãos e intervém de vez em quando.
- Padecemos doenças e sofremos doenças - proclama - porque não rezamos conforme é devido a Deus misericordioso.
Andrei Efimich não pratica cirurgia; perdeu o hábito, e a vista do sangue produz-lhe uma sensação desagradável. Quando tem que mandar abrir a boca a uma criança
para lhe examinar a garganta e o pequeno chora e se defende com as mãozinhas, o barulho causa-lhe náuseas e enchem-se-lhe os olhos de lágrimas. Apressa-se a escrever
a receita e faz um gesto para que a mãe leve quanto antes a criança.
Com a agradável sensação de que, graças a Deus, não tem doentes privados e ninguém virá incomodá-lo, Andrei Efimich instala-se no seu escritório, logo que chega
a casa, e começa a ler. Lê muito e sempre com intenso prazer. Gasta metade do seu ordenado em livros, estando três divisões do andar que ocupa a abarrotar com livros
e revistas velhas. O que mais lhe agrada são as obras de História e Filosofia. De Medicina assina apenas a publicação O Médico, que principia sistematicamente a
ler pelas últimas páginas. A leitura prolonga-se sempre durante várias horas, sem nenhuma interrupção, e não o cansa. Não lê com tanta rapidez e ânsia como noutros
tempos Ivan Dmitrich, mas devagar, e tratando de assimilar bem o sentido, parando com frequência nos parágrafos que mais lhe agradam ou que não entende. Ao lado
do livro está sempre uma garrafa de vodka e pepinos de salmoura ou uma maçã de conserva, tudo colocado em cima da toalha, sem pratos. De meia em meia hora, sem desviar
os olhos do livro, serve-se de um copo de vodka, bebe-o, e a seguir, sem olhar, procura às apalpadelas o pepino e come um bocado.
Às três horas aproxima-se silenciosamente da porta da cozinha, pigarreia e diz:
Se pudesse comer, Dariushka...
Depois do jantar, bastante mau e servido sem asseio, Andrei Hfimich, de braços cruzados, passeia pelas divisões da sua casa e medita. De quando em quando ouve-se
ranger a porta da cozinha e vê-se assomar a cara corada e sonolenta de Dariushka.
- Andrei Efimich, não serão horas de lhe servir a cerveja? - pergunta, solícita.
- Não, ainda não... - responde Andrei. - Prefiro esperar um pouco... Prefiro...
Ao cair da tarde costuma chegar Mikail Averianich, o chefe dos Correios, a única pessoa, em toda a cidade, cuja companhia não o aborrece.
Mikail Avcriunich fora em tempos um fazendeiro muito rico e servira na cavalaria; mas arruinara-se e, já na velhice, a necessidade obrigara-o a ingressar no Departamento
dos Correios. O seu aspecto era jovial e resplandecente de saúde, usava umas magníficas patilhas grisalhas, as suas maneiras denotavam boa educação e possuía uma
voz forte e agradável. Era bom e sensível, mas impulsivo. Se alguém vinha reclamar aos Correios, não aceitava os protestos ou começava a raciocinar por sua conta,
ficava muito corado, frenético, e gritava com voz de trovão: "Calem-se!" De tal modo que o departamento alcançara a reputação de um lugar onde as pessoas tinham
medo de ir. Mikail Averianich apreciava e estimava Andrei Efimich pela sua cultura e nobreza de espírito; e olhava o resto dos seus vizinhos com altivez, como se
fossem seus subordinados.
- Cá estou eu! - exclama ao entrar em casa de Andrei Efimich - Boas tardes, meu caro. Não está cansado de mim?
Os dois amigos sentam-se no sofá do escritório e fumam durante algum tempo em silêncio.
- Dariushka.se nos trouxesses cerveja... - diz Andrei Efimich.
A primeira garrafa bebem-na ainda em silêncio: o doutor pensativo e Mikail Averianich com o aspecto alegre e animado de quem tem qualquer coisa muito interessante
para contar. É o médico quem inicia sempre a conversa.
- Que pena - diz em voz lenta e baixa, abanando a cabeça e sem olhar o seu interlocutor (nunca olha as pessoas de frente) - que pena, caro Mikail Averianich, que
na nossa cidade não haja o que se chama ninguém que saiba e goste de manter uma conversa espirituosa, interessante! Para nós significa uma grande privação. Nem sequer
os intelectuais se elevam acima do vulgar; o nível do seu desenvolvimento, asseguro-lhe, não é melhor do que o das classes baixas. - Tem toda a razão. Concordo consigo.
- Você próprio sabe - continua o médico, em voz baixa, falando com lentidão - que neste mundo tudo carece de importância e interesse, excepção feita às supremas
manifestações espirituais do raciocínio humano. A inteligência marca nítidas fronteiras entre o animal e o homem, sugere o carácter divino deste último, e, em certo
grau, substitui a sua imortalidade, que não existe. Partindo desta base, o raciocínio e a única fonte do prazer. Nós, pelo contrário, não vemos nem sentimos junto
de nós manifestações do raciocínio: ou seja, vemo-nos privados do prazer. É certo que temos os livros, mas isso é muito diferente da conversa viva e da convivência.
Se me permite uma comparação não muito feliz,, os livros são as notas e a conversação o canto.
- Inteiramente certo.
Faz-se um silêncio. Dariushka sai da cozinha e com uma expressão de estúpido enlevo, com a cabeça apoiada no punho, pára no limiar da porta para escutar.
- Ai! - suspira Mikail Averianich. - Você pretende exigir inteligência às pessoas de hoje!
E começa a falar na vida de outros tempos, sã, alegre e interessante; na inteligência dos intelectuais na Rússia; e no seu alto conceito de honra e de amizade. Emprestava-se
dinheiro sem exigir uma letra de câmbio e era considerado vergonhoso não estender a mão para ajudar um companheiro necessitado. E que campanhas, que aventuras, que
brigas, que mulheres! E o Cáucaso, que maravilhoso país! A esposa de um chefe de batalhão, uma mulher muito estranha, costumava disfarçar-se de oficial e ir à tarde
para as montanhas, sozinha, sem companhia. Dizia-se que naquelas aldeias tinha amores com um pequeno rei.
- Rainha dos céus, mãezinha... - suspira Dariushka.
E como se comia! Como se bebia! E que liberais aqueles! Andrei Efimich ouve e não ouve; pensa em qualquer coisa e toma um gole de cerveja.
- Sonho frequentemente com pessoas inteligentes e que converso com elas - diz de súbito, interrompendo Mikail Averianich. - Meu pai deu-me uma excelente educação,
e, sob a influência das ideias dos anos sessenta, obrigou-me a formar-me em Medicina. Parece-me que, se nessa altura não lhe tivesse dado ouvidos, estaria agora
no próprio centro do movimento intelectual. Faria possivelmente parte de uma Faculdade. Claro que o raciocínio também não é eterno, mas um fenómeno passageiro. Mas
você sabe porque tanto me agrada. A vida é um engano nojento. Quando o homem que pensa alcança a maturidade e está consciente dos seus actos, sente-se sem querer
envolvido numa armadilha sem saída. Com efeito, contra sua vontade, em virtude de diversos acontecimentos fortuitos, foi arrancado do não ser para a vida... Para
quê! Quer saber o sentido e o fim da sua existência e não lhe

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dizem nada ou é estúpido o que lhe dizem. Chama e não lhe abrem. A morte vem, também contra sua vontade. E da mesma maneira que na prisão os homens ligados por um
infortúnio comum sentem um alívio quando se reúnem, também na vida uma pessoa não evita as ciladas quando os homens inclinados para as análises e generalizações
se juntam e passam o tempo trocando ideias orgulhosas e livres. - Neste sentido, a inteligência é um prazer insubstituível.
- Tem toda a razão.
Sem fixar o olhar no seu interlocutor, em voz baixa e pausadamente, Andrei Efimich continua a falar em homens inteligentes e em conversas com eles, enquanto Mikail
Averianich escuta atentamente, concordando: "Tem toda a razão."
- Você não acredita na imortalidade da alma? - pergunta de súbito o chefe dos Correios.
- Não, caro Mikail Averianich, não acredito, nem tenho razões para acreditar.
- Pois eu confesso que também tenho as minhas dúvidas. Apesar de que, quanto ao resto, tenho a sensação de que não hei-de morrer nunca. Às vezes penso: "Já são horas
de morrer, velho maduro!" Mas certa vozinha exclama do fundo do meu coração: "Não acredites, não morrerás!..."
Pouco depois das nove, Mikail Averianich retira-se. Ao vestir o casaco, na entrada, diz, suspirando:
- No entanto, a que lugar perdido nos trouxe o destino! E o mais desagradável de tudo é que teremos que morrer aqui. Ah!...

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VII

Depois de se despedir do amigo, Andrei Efimich sentava-se à mesa e recomeçava a ler. Nem o mais pequeno ruído perturbava o silêncio da tarde e da noite. Parecia
que o tempo se imobilizara juntamente com o médico e o seu livro; era como se não existisse mais nada senão esse livro e o candeeiro de petróleo, com o seu quebra-luz
verde. O rosto tosco de mujique do médico iluminava-se pouco a pouco com um sorriso enternecido e entusiasta perante os reflexos da inteligência humana. "Oh!, por
que razão o homem não é imortal? ", pensava. "Para que servem os centros e circunvoluções cerebrais, para quê a vista, a fala, o próprio sentimento, o génio, se
tudo isto vai parará terra e à posteridade, esfriará juntamente com a crosta terrestre, e depois, durante milhões de anos, seguirá unido com a Terra, sem nenhum
outro sentido e sem finalidade, girando em volta do Sol? Para arrefecer e depois percorrer o espaço, não valia a pena tirar o homem do não ser, com a sua inteligência
divina, e, a seguir, como para lhe pregar a partida, convertê-lo em barro."
O intercâmbio de matéria! Que cobardia consolar-se com este sucedâneo da imortalidade! Os processos inconscientes que se verificam na natureza estão inclusivamente
abaixo da estupidez humana, já que na estupidez, apesar de tudo, há consciência e vontade, e nos processos da natureza não há absolutamente nada. Só o cobarde, em
quem o medo da morte é superior à dignidade, pode consolar-se pensando que o seu corpo viverá com o tempo, na erva, numa pedra, num sapo,... Ver a própria imortalidade
no intercâmbio das matérias é tão absurdo como prometer um futuro brilhante ao estojo, depois que o valioso violino se estragou e deixou de servir.

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Quando soam no relógio as badaladas, Andrei Efemich instala-se na cadeira e fecha os olhos para meditar um pouco, e, sem dar por isso, movido pelos agradáveis pensamentos
que acabou de ler no livro, lança um olhar pelo passado e pelo presente. O passado é assunto que afasta, é melhor não o recordar. Quanto ao presente, passa-se em
grande parte o mesmo. Sabe que enquanto os seus pensamentos giram à volta do Sol, à semelhança da Terra arrefecida, a meia dúzia de passos, no pavilhão principal,
há gente que sofre vítima das suas enfermidades e da sociedade que a rodeia. Acaso há alguém que não dorme e luta com os insectos, alguém que contraiu erisipela,
ou geme sofrendo a dor de uma ligadura apertada. Talvez os doentes estejam a jogar às cartas com as enfermeiras e bebendo vodka. No ano passado foram enganadas doze
mil pessoas. Toda a organização hospitalar, tal como há vinte anos, assenta no roubo, nas discussões, nas intrigas, na protecção injusta, no logro grosseiro, continuando
o hospital a ser um estabelecimento imoral e nocivo, no mais alto grau, para a saúde das pessoas. Sabe que na enfermaria número seis, por detrás das grades, Nikita
espanca os doentes e que Moiseika percorre a cidade todos os dias pedindo esmola.
Por outro lado, sabe perfeitamente que, durante os últimos vinte e cinco anos, se produziu na Medicina uma mudança espectacular. Quando estudava na Universidade,
pensava que a Medicina teria em breve a sorte da Química e da Metafísica; agora, pelo contrário, a Medicina comovia-o, despertando nele admiração e até mesmo entusiasmo,
quando, à noite, se documentava lendo, efectivamente, que inesperada grandeza, que revolução! Graças aos anti-sépticos, realizavam-se operações que o grande Pirogov
considerava impossíveis até in spe. Os simples médicos de província decidiam fazer ressecções do joelho; entre cem laporotomias, apenas se registava um caso mortal;
e as pedras no rim eram consideradas uma doença tão insignificante que nem sequer havia nada escrito sobre ela. A sífilis curava-se radicalmente. E a teoria da hereditariedade,
o hipnotismo, as descobertas de Pastcur e de Koch, a higiene baseada na estatística, a medicina russa dos zemstvos? A psiquiatria, com a sua actual classificação
das doenças, com os métodos de diagnóstico e de tratamento, era qualquer coisa de inacreditável, em comparação com o

' Nikolai Ivanich Pirogov (1810-1881), cirurgião russo. As suas investigações deram começo à orientação anatómica experimental em cirurgia. Contribuiu muito para
o avanço da anestesia (N. do T.).

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que existia antes. Agora já não se deitava água fria na cabeça dos loucos, nem os metiam em coletes-de-forças; facultavam-lhes condições humanas de vida, e, segundo
publicavam os jornais, até lhes ofereciam espectáculos e bailes. Andrei Efimich sabia que, dentro desta ordem de coisas, uma vergonha como a da enfermaria número
seis só era possível, a duzentos verxtas do caminho de ferro, numa miserável cidade em que o presidente da Câmara e todos os vereadores eram semianalfabetos, que
viam no médico um sacerdote no qual era obrigatório acreditar sem a mais pequena crítica, ainda que deitasse na boca estanho derretido. Noutro lugar, desde há muito
que o público e os jornais teriam feito em pedaços esta pequena Bastilha.
E, então? pergunta a si próprio Andrei Efimich, abrindo os olhos. Qual é o resultado disto tudo? Temos os anti-sépticos, Koch, Pasteur, mas nada mudou na sua essência.
A morbidez e a mortalidade continuam na mesma. Celebram-se bailes e espectáculos para os loucos, mas no entanto não os deixam sair à rua. Ou seja, que tudo é absurdo
e vão e que, na sua essência, entre a melhor clínica de Viena e o meu hospital não existe qualquer diferença.
Mas o desgosto e um sentimento parecido com a inveja não lhe permitem ficar indiferente. A causa deve ser a fadiga. A cabeça pesa-lhe e inclina-se sobre o livro.
Põe a mão debaixo da cara como se fosse uma almofada e pensa: "Estou ao serviço de uma obra prejudicial e recebo dinheiro de pessoas a quem engano. Mas só por mim
não sou nada, uma simples partícula de um mal social necessário: lodosos funcionários do distrito são nocivos e recebem um ordenado que não mereceram... O que significa
que não sou eu o culpado de ser desonesto, mas sim o tempo... SE tivesse nascido duzentos anos mais tarde, seria um homem diferente."
Às três horas apaga o candeeiro de petróleo e dirige-se para o dormitório. Não tem sono.

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VIII

Dois anos antes, o zemstvo sentira-se generoso e votara a concessão de um crédito de trezentos rublos anuais para aumentar o pessoal do hospital da cidade até que
se inaugurasse outro mais apropriado. Para ajudar Andrei Efimich, requisitaram-se os serviços de Evgueni riodorich Kobotov. Era um médico muito jovem ainda não completara
trinta anos, moreno e alto, com as maçãs do rosto salientes e olhos pequeninos. Os seus antecessores, provavelmente, não eram russos. Chegara à cidade sem um kopek,
com uma maleta e uma mulher feia e jovem, que dizia ser sua cozinheira. A mulher trazia um filho de peito, Evgucni Fiodorich Kobotov usava gorro de pala e botas
altas, e no Inverno uma pelica. Tornou-se íntimo amigo do assistente Serguei Sergueich e do tesoureiro, mantendo-se afastado dos demais funcionários, a quem não
se sabe por que razão chamava aristocratas. Não tinha em sua casa senão um único livro: Últimas Receitas da Clinica de Viena para 1881, que levava sempre consigo
quando ia visitar um doente. De tarde jogava bilhar no clube, pois não apreciava jogos de cartas. Gustava muito de empregar na conversação palavras e expressões
como "pachorra", "pepinos de conserva", "não armes sarilhos", etc.
Ia duas vezes por semana ao hospital, percorria as enfermarias e recebia os doentes externos. 'A total falta de anti-sépticos e as ventosas irritavam-no, mas não
se decidia a fazer inovações com receio de poder com isso melindrar Andrei Efimich. Considerava este um velho farsante, tomando-o por um homem rico e invejando-o
no seu íntimo. De muito boa vontade ocuparia o seu lugar.

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IX

Numa noite primaveril de fins de Março, quando a neve desaparecera do chão e os estorninhos cantavam no jardim do hospital, o médico saiu até ao portão para acompanhar
o chefe dos Correios, seu amigo. Naquele preciso momento entrava no pátio o judeu Moiseika, que regressava com o seu pecúlio. Não trazia gorro e vinha sem meias,
com os pés enfiados nuns tamancos muito usados. Trazia na mão um saquito com as esmolas.
- Dá-me um kopek - pediu ao médico, tiritando de frio e sorrindo. • Andrei Efimich, que nunca soubera dizer que não, deu-lhe uma moeda de dez, kopcks.
"Que horror! pensou, olhando para os seus pés descalços, com os tornozelos delgados e roxos. Vem completamente molhado."
E, movido por um sentimento ao mesmo tempo de piedade e de repugnância, dirigiu-se ao pavilhão atrás do judeu, olhando a sua cabeça calva e os tornozelos. Ao ver
entrar o doutor, Nikita levantou-se num salto de sobre o montão de trapos onde estava deitado e colocou-se em posição de sentido.
- Olá, Nikita - disse Andrei Efimich em tom suave - era preciso dar umas botas a este judeu; senão pode apanhar um resfriamento.
- As suas ordens, meu senhor. Levarei esse assunto ao conhecimento do inspector.
- Sim, faz favor. Pede-lhe em meu nome. Diz que sou eu que peço.
A porta do vestíbulo que dava entrada para a sala estava aberta. Ivan Dmitrich permanecia deitado no seu catre, ergueu-se atento àquela voz estranha, tendo de súbito
reconhecido o médico. Estremecendo de cólera, pôs-se de pé, num salto, congestionado e com os olhos a sair das órbitas, e correu para o meio da sala.

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- Chegou o médico! - gritou, dando uma gargalhada. - Finalmente! Felicito-os, meus senhores, o médico dignou-se visitar-nos! Maldito réptil! - gritou, e, frenético
como nunca o tinham visto na enfermaria, deu com o pé uma pancada no chão. - Temos que matar este réptil! Não, matá-lo é pouco! Temos que o lançar ao fundo do poço!
Andrei Efimich, que o ouvira, olhou-o do vestíbulo e perguntou suavemente:
- E então, porquê?
- Porquê? - gritou Ivan Dmitrich, aproximando-se dele com ar ameaçador e agitando-se convulsivamente na sua bata. - Porquê? ladrão! - acrescentou com repugnância,
juntando os beiços como se se preparasse para lhe cuspir - Charlatão! Carrasco!
- Acalme-se - disse Andrei Efimich, sorrindo como quem se desculpa. - Asseguro-lhe que nunca roubei nada a ninguém, e quanto ao resto exagera provavelmente muito.
Noto que está muito zangado comigo. Peço-lhe que sossegue, se puder, e diga-me calmamente: quais os motivos do seu aborrecimento?
- Porque me tem aqui?
- Porque está doente.
- Sim, estou doente. Mas dezenas e centenas de loucos passeiam em liberdade porque, na sua ignorância, ninguém os distingue das pessoas sãs. Por que razão estes
desgraçados e eu temos que estar aqui em nome de todos, como cabeças-de-turco? O senhor, o assistente, o inspector e toda essa canalha do hospital estão moralmente
muito abaixo de nós. Porque havemos de estar encarcerados e não vocês? Onde está a lógica disto?
- O sentido moral e a lógica não tem nada a ver com isso. É tudo obra do destino. Encontram-se aqui os que foram internados, e aqueles que não foram passeiam-se
livremente, e é tudo. O facto de eu ser médico e você um doente mental não tem nada a ver para o caso, nem a moral nem a lógica; É simplesmente o destino.
- Não entendo essa estupidez... - balbuciou em surdina Ivan Dmitrich, e sentou-se no seu catre.
Moiseika, a quem Nikita não se atrevia a castigar em presença do médico, foi colocando em cima da cama nacos de pão, papéis e ossos, e ainda tiritando de frio principiou
a falar, com voz, rápida e cantante, em hebreu. Imaginava provavelmente que tinha aberto uma loja.

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- Deixe-me ir embora - disse Ivan Dmitrich com voz trémula.
- Não posso.
- Porquê? Porquê?
- Porque isso é uma coisa que não depende de mim. Avalie você próprio: que acontecerá se o deixar sair? Vá-se embora. Arrisca-se a ser preso pela gente da cidade,
ou pela Polícia, e voltarão a trazê-lo.
- Sim, sim, isso é verdade... - articulou Ivan Dmitrich, e passou a mão pela fronte. - É horrível! E que posso fazer? O quê?
A voz de Ivan Dmitrich e a sua cara jovem e inteligente, agitada por tiques nervosos, agradaram a Andrei Efimich. Sentiu desejo de lhe dizer alguma coisa carinhosa
e consoladora. Sentou-se junto dele no catre, ficou uns instantes pensativo e disse:
- Que há-de fazer, pergunta? Na sua situação o melhor seria fugir daqui. Mas infelizmente seria inútil. Prendê-lo-iam. Quando a sociedade se protege contra os delinquentes,
enfermos mentais e gente que incomoda em geral, não há ninguém que se possa defender. A única solução que lhe resta é dominar-se, procurando compreender que a sua
estada aqui é necessária.
- Não é necessária para ninguém.
- Visto que existem as prisões e os manicómios, alguém tem que lá estar; se não for o senhor serei eu, e se não for eu será outra pessoa. Aguarde; quando num futuro
longínquo deixarem de existir as prisões e os manicómios, não haverá mais grades nas janelas nem essas fardas. Isto sucederá, é claro, mais tarde ou mais cedo.
Ivan Dmitrich sorriu com ironia.
- Está a brincar - disse revirando as pálpebras. - As pessoas como você e o seu ajudante Nikita não se preocupam absolutamente nada com o futuro. Mas pode estar
certo, senhor, de que virão tempos melhores! Talvez me exprima de maneira banal, ria-se se quiser, mas resplandecerá a aurora de uma vida nova, triunfará a justiça
e nós estaremos de parabéns, eu já não assistirei a isso, rebentarei antes, mas vê-lo-ão os nosso bisnetos. Saúdo esse momento com toda a minha alma e alegro-me.
Alegro-me por eles! Avante! Que Deus os ajude, amigos!
Ivan Dmitrich levantou-se, com os olhos resplandecentes, e, estendendo as mãos em direcção à janela, prosseguiu com voz emocionada:
- Através destas grades os abençoo! Viva a justiça! Estou satisfeito!

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- Não vejo grandes motivos para se alegrar - replicou Andrei Efimich, a quem a atitude de Ivan Dmitrich, embora lhe parecesse teatral, agradara extremamente. - Não
haverá prisões nem manicómios, e a justiça, segundo a sua própria expressão, triunfará, mas não mudará a essência das coisas, e as leis da natureza serão as mesmas.
Os homens sofrerão doenças, envelhecerão e morrerão tanto como agora. Por melhor que seja a estrela que ilumina a sua vida, no final metem-nos num ataúde e lançam-nos
na fossa.
- Ha imortalidade?
- Não fale nisso!
- O senhor talvez não acredite nela.mas eu acredito. Numa obra de Dostoievski ou Voltaire, há alguém que diz que se Deus não existisse, tê-lo-iam inventado os homens.
Estou profundamente convencido de que se a imortalidade não existe, mais tarde ou mais cedo será superiormente inventada pela mentalidade humana.
- Bem dito - articulou Andrei Efimich, sorrindo satisfeito. - Agrada-me que você acredite. Com essa fé, até mesmo um enclausurado pode viver perfeitamente. Você
fez alguns estudos? •
- Sim, estive na Universidade, mas não cheguei a acabar a carreira.
- Você é um homem que sabe pensar. Em qualquer situação pode encontrar tranquilidade interior. O pensamento livre e profundo, que aspira a compreender a vida, e
o desprezo total pela estúpida vaidade humana são os dois bens supremos que o homem conhece, e você pode possuí-los ainda que viva atrás de grades. Diógenes viveu
num tonel, mas, apesar disso, foi mais feliz que todos os reis da Terra.
- Diógenes era parvo - rosnou Ivan Dmitrich, mal humorado. - Porque me fala de Diógenes e da compreensão humana? - explodiu subitamente, pondo-se de pé. - Eu amo
a vida, amo-a apaixonadamente! Sofro de mania da perseguição, um medo permanente que me tortura, mas há momentos em que me domina a sede de viver, e então receio
enlouquecer. Tenho uma ânsia de viver espantosa,espantosa!
Dominado pela agitação, deu uns passos pela sala e disse, baixando a voz:
- Quando sonho vejo fantasmas. Aparecem-me uns homens, oiço vozes, música, parece-me que passeio por um bosque à beira-mar, e sinto um tal desejo de ter interesses
na vida, fazer alguma coisa... Diga-me, que há de novo por aí? - perguntou Ivan Dmitrich. - Que novidades há?

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- Deseja saber da cidade ou de uma maneira geral?
- Bem, em primeiro lugar fale-me da cidade e depois em geral.
- Que posso dizer-lhe? A vida na cidade é de um aborrecimento que dá náuseas... Não há com quem trocar uma palavra, não há ninguém que se possa ouvir. Não há gente
nova. Quanto ao resto, chegou há pouco Kobotov, o jovem médico.
- Chegou antes de me terem internado. É um homem boçal, não é verdade?
- Sim, não é um homem culto. É estranho, sabe?... De uma maneira geral, nas nossas cidades não há estagnação intelectual, há movimento: quero dizer que nas cidades
deve haver gente capaz. Mas, não sei porque, mandam-nos sempre pessoas para quem não se pode nem olhar. Desgraça da cidade!
- Sim, desgraçada cidade! - suspirou Ivan Dmitrich e desatou a rir. - E, de um modo geral, que se passa? Que dizem os jornais e as revistas?
A sala estava já envolta em penumbra. O médico levantou-se e, sempre de pé, principiou a contar o que se publicava no estrangeiro e na Rússia, e qual a orientação
que se observava no campo das ideias. Ivan Dmitrich escutava atentamente e fazia perguntas; mas, de repente, como se recordasse qualquer coisa de horrível, agarrou
a cabeça com as mãos, deitando-se no catre, de costas para o médico.
- Que lhe aconteceu? - perguntou Andrei Efimich.
- Não ouvirá nem mais uma pergunta minha! - articulou grosseiramente Ivan Dmitrich. Deixe-me!
- E porque?
- Repito que me deixe! Que diabo está a fazer aqui? - Andrei Efimich encolheu os ombros, deixou escapar um suspiro e abandonou a enfermaria. Ao passar no vestíbulo
disse:
- Seria conveniente limpar isto, Nikita... Está um cheiro horrível!
- As suas ordens, meu senhor.
"Que rapaz tão interessante pensou Andrei Efimich, enquanto se dirigia ao seu andar. Desde que vivo aqui, creio que é a primeira pessoa que encontro com quem se
pode falar. Sabe raciocinar e interessa-se precisamente pelo que deve ser."
Durante a sua sessão de leitura e depois, ao deitar-se, não deixou de pensar em Ivan Dmitrich. Ao acordar, na manhã seguinte, recordou que na véspera conhecera um
homem inteligente e com interesse, tomando a decisão de ir visitá-lo na primeira oportunidade.

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Ivan Dmitrich permanecia na mesma posição da véspera, com a cabeça entre as mãos e as pernas encolhidas. Não se lhe via a cara.
- Boas tardes, meu amigo - disse Andrei Efimich. - Não está a dormir?
- Em primeiro lugar, não sou seu amigo - retorquiu Ivan Dmitrich, com a cara enterrada na almofada. - E, em segundo lugar, é inútil o seu interesse: não me arrancará
uma só palavra.
- É estranho... - balbuciou Andrei Efimich, perturbado. - Ontem estávamos a conversar tranquilamente e, de repente, você ofendeu-se e não quis continuar...Terei
talvez dito coisas que não lhe agradaram, ou manifestado alguma opinião contrária às suas ideias...
- Como posso acreditar em si? - disse Ivan Dmitrich,erguendo-se e olhando o médico com uma mistura de ironia e de inquietação; os seus olhos estavam injectados de
sangue. - Pode ir espiar e iludir para outro sítio; aqui não tem nada que fazer. Ontem compreendi bem as razões que o trouxeram.
- Que estranha fantasia! - sorriu o médico com ironia. - Imaginará você que sou um espião?
- Penso que sim... Um espião ou um médico a quem incumbiram da missão de me pôr à prova, é a mesma coisa.
- Que pessoa tão excêntrica que você é. Perdoe-me a expressão. - O médico sentou-se numa banquinha junto da cama e abanou a cabeça num gesto de reprovação.
- Suponhamos que tem razão - prosseguiu. - Admitamos que venho com a malévola intenção de o fazer falar para o denunciar. Podem levá-lo preso e a seguir condená-lo.
Mas estaria pior no tribunal e na prisão do que aqui? E ainda que o exilem e inclusivamente o

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mandem para o presídio, seria pior do que permanecer neste pavilhão? Creio que não .. .Então de que tem medo?
Estas palavras pareceram influir em Ivan Dmitrich, que se sentou calmamente.
Eram pouco mais de quatro da tarde, hora em que Andrei Efimich tinha por costume passear pelas divisões da sua casa e Dariushka lhe perguntava se queria cerveja.
Estava um dia tranquilo e claro.
- Depois do jantar saí a dar um passeio e vim até aqui, como pode verificar - disse o médico. - Está um tempo primaveril.
- Em que mês estamos? Em Março? - perguntou Ivan Dmitrich.
- Sim, em fins de Março.
- Há lama nas ruas?
- Não, nem por isso. No jardim já há veredas.
- Neste momento gostaria de dar um passeio de carro pelos arredores da cidade - ponderou Ivan Dmitrich, esfregando os olhos avermelhados como se despertasse do sono.
- E depois voltar para casa, para um escritório aquecido e confortável, e fazer que um bom médico me curasse a dor de cabeça... Já há tempos que não vivo como gente.
Isto aqui é um nojo! Um nojo insuportável!
Depois da excitação da véspera, estava cansado e falava com desalento. Tremiam-lhe os dedos e notava-se pela sua expressão que lhe doía muito a cabeça.
- Entre um escritório aquecido e confortável e esta sala não há a mais pequena diferença - respondeu Andrei Efimich. - O repouso e a satisfação não estão fora do
homem, mas dentro de si próprio.
- Que quer isso dizer?
- O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si próprio.
- Vá pregar essa filosofia para a Grécia, onde está calor e cheira a laranjas; o clima aqui não favorece. Com quem falei de Diógenes? Foi consigo?
- Sim, foi ontem comigo.
- Diógenes não precisava de um escritório e uma casa aquecida; a Grécia é um país quente; podia permanecer no seu tonel comendo laranjas e azeitonas. Mas se tivesse
vivido na Rússia, já não digo em Dezembro, mas mesmo em Maio, teria pedido uma casa. Ficaria gelado.
- Não. Pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio disse: "A dor é a exteriorização viva da dor: faz um esforço de

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vontade para mudar esta exteriorização, repele-a, deixa de te lamentar, e a dor desaparecerá." Isto é exacto. O sábio ou simplesmente o homem que pensa, que medita,
distingue-se precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. Está sempre satisfeito e nada o desgosta.
- Quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou descontente e desgosta-me a maldade humana.
- Não deve pensar assim. Se reflectir, compreenderá a significação de tudo o que é exterior, tudo o que nos inquieta. Há que tentar compreender a vida; nisso está
o verdadeiro bem.
- Compreender a vida... - replicou Ivan Dmitrich, franzindo o sobrolho. - O exterior, o interior... Perdão, mas não o compreendo. A única coisa que sei - concordou,
levantando-se e olhando irritado para o médico - a única coisa que sei é que Deus me criou com sangue quente e nervos, como está a ouvir! O tecido orgânico, se é
capaz de vida, deve reagir a qualquer excitação. E eu reajo! A dor respondo com gritos e lágrimas; à maldade, com indignação; à vilania, com asco. Quanto a mim,
isto é, na realidade, aquilo a que se chama vida. Quanto mais débil é o organismo, menos sensível se mostra e mais frouxamente resiste à excitação. E quanto mais
elevado, tanto mais sensível e enérgica é a sua reacção à realidade. Como pode ignorá-lo? É você médico e não sabe umas coisas tão elementares! Para desprezar a
dor, estar sempre satisfeito e não se preocupar com coisa alguma há que atingir esse estado - Ivan Dmitrich apontou para o mujique obeso, transbordante de gordura
-, ou então ter-se identificado com a dor até ao extremo de perder qualquer sensibilidade em relação a si próprio; ou seja, por outras palavras, deixar de existir.
Perdoe-me, não sou sábio nem filósofo - prosseguiu, irritado -, e não compreendo nada destas coisas. Não me sinto em condições de raciocinar.
- Pelo contrário, você raciocina até muito bem.
- Os estóicos a que você se refere eram homens notáveis, mas a sua doutrina estagnou há dois mil anos e não avançou mais, nem avançará, porque não é prática nem
tem vida. Apenas obteve um certo êxito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a ruminar toda a espécie de doutrinas; a maior parte das pessoas não chegou
a compreendê-la. Uma doutrina que preconiza a indiferença em relação às riquezas, às comodidades da vida, e o desdém pelos sofrimentos e a morte, é totalmente incompreensível
para a imensa maioria, já que esta não conheceu nunca as riquezas nem as comodidades. E desprezar o sofrimento significaria para ela desprezar a própria vida, visto
que o

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homem na sua essência é feito de sensações de fome, frio, desconsiderações, derrotas, e um medo perante a morte à semelhança de Hamlet. Nestas sensações está encerrada
a vida inteira: pode cansar-nos, podemos odiá-la, mas não desprezá-la. Assim, portanto, repito: a doutrina dos estóicos nunca poderá ter futuro. Pelo contrário,
aquilo que progride, conforme pode observar, desde o princípio do mundo até ao dia de hoje, é a luta, a sensibilidade perante a dor, a capacidade de responder às
excitações...
Ivan Dmitrich perdeu subitamente o fio ao discurso e calou-se, passando irritado a mão pela testa.
- Queria dizer qualquer coisa importante, mas não me recordo - declarou. - De que tenho estado a falar? Ah, é verdade! Já sei o que estava a dizer. Um estóico vendeu-se
como escravo para redimir o seu semelhante. Como vê, isso significa que também o estóico reagiu à excitação, visto que para realizar um acto tão generoso como o
de se aniquilar a si próprio para bem do próximo é necessário ter uma alma capaz de se indignar e de se compadecer. Aqui, nesta prisão, esqueci tudo o que aprendi;
possuía alguns conhecimentos que poderia recordar. E, se olharmos para Cristo? Cristo reagiu perante a realidade com as suas lágrimas, o seu sorriso, a sua tristeza,
a sua cólera, até mesmo com a sua angústia. Não foi com um sorriso ao encontro do sofrimento, nem desprezou a morte, mas, pelo contrário, orou no horto de Getsémani,
para que afastassem dele o cálix da amargura.
Ivan Dmitrich principiou a rir e sentou-se.
- Admitamos que a tranquilidade e a satisfação estão dentro do próprio homem, e não fora dele - disse. - Admitamos que há que desprezar o sofrimento e não se admirar
com coisa alguma. Mas em que se apoia você para o proclamar? Julga-se um sábio? Um filósofo?
- Não, não sou um filósofo, mas isto qualquer pessoa o deve proclamar, porque é sensato.
- Não, o que pretendo saber é porque se considera competente no que respeita à compreensão do mundo, o desprezo pelo sofrimento e tudo o mais. Acaso não terá sofrido
nunca? Tem alguma noção do que é o sofrimento? Diga-me: batiam-lhe quando era pequeno?
- Não, meus pais eram contrários aos castigos corporais.
- Pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. Era um funcionário público, de carácter violento, que sofria de hemorróidas, e tinha um grande nariz e pescoço amarelo.
Mas falemos de si. Em toda a sua vida nunca ninguém lhe tocou nem com um dedo, ninguém o assustou nem

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lhe bateu; tem uma saúde de ferro, cresceu amparado por seu pai, que lhe pagou os estudos, e depois obteve imediatamente uma sinecura. Vive de graça há mais de vinte
anos, numa casa com aquecimento e luz. tendo uma serviçal; deixam-no trabalhar como e quando quer; pode, inclusivamente, não fazer nada. É preguiçoso e frouxo por
natureza, por isso tratou de organizar a sua vida de modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. Abandonou tudo nas mãos do assistente e outros canalhas,
enquanto o senhor ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lia livros, entregava-se a meditações sobre toda a espécie de sublimes coisas estúpidas
- e aqui Ivan Dmitrich parou fitando o nariz vermelho do médico - bebia. Numa palavra, não sabe nada da vida, não a conhece em absoluto; da validade tem apenas uma
noção teórica. Se desdenha do sofrimento e nada o perturba, é por uma razão muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno, o desprezo pela vida, pelos
sofrimentos e pela morte, a compreensão do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto e a filosofia mais apropriada ao vadio russo. Você vê, por exemplo um mujique a bater
na mulher. Para quê meter-se de permeio? Que lhe bata; tanto faz, têm de morrer os dois mais tarde ou mais cedo; além do mais, quem bate não magoa com as suas pancadas
a quem as recebe, mas a si próprio. Embebedar-se é uma coisa estúpida e indecorosa, mas beber é morrer e não beber também o é. Aparece uma mulher com dor de dentes...
E então? A dor é o sinal do sofrimento e sem doenças é impossível viver; todos temos de morrer. Assim o quê, mulher? Vai-te daqui e deixa-me que pense e beba vodka.
Um jovem pede um conselho, pergunta que deve fazer, como viver. Outro, antes de responder, meditaria, mas você tem a resposta preparada: procura compreender o sentido
da existência ou aspira ao autêntico bem. E o que é esse fantástico "autêntico bem"? Não existe resposta, claro. A nós têm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo-nos,
mas isso é belo e racional, porque entre esta enfermaria e um escritório aquecido e confortável não há nenhuma diferença. É uma filosofia muito cómoda; não há nada
a fazer, a pessoa tem a consciência tranquila e considera-se sábio... Não, senhor, isso não é filosofia, não é pensamento, não é grandeza de ideias, mas preguiça,
mentalidade de faquir, hipóteses... Sim! - voltou a irritar-se Ivan Dmitrich - despreza o sofrimento, mas se lhe entalassem um dedo numa porta bradava aos céus!
- Talvez não - disse Andrei Efimich, sorrindo docemente.

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- Claro que sim! Mas se acaso ficasse paralítico ou se, suponhamos, um estúpido e insolente, valendo-se da sua posição e do seu prestígio, o ofendesse em público
e você tivesse conhecimento que o assunto ia ficar impune, compreenderia então o que significa isso de se conformar, no que se refere aos outros, ao sentido da vida
e ao autêntico bem.
- Isso é original - disse Andrei Efimich, rindo de satisfação e esfregando as mãos. - Impressiona-me agradavelmente o seu gosto pelas generalizações, e o que disse
de mim é simplesmente brilhante. Tenho que confessar que a conversa consigo me proporciona um prazer extraordinário. Bem, estive a ouvi-lo; agora faça o favor de
me ouvir a mim...

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XI

Esta conversa prolongou-se cerca de uma hora e produziu, segundo parece, uma profunda impressão em Andrei Efimich. A partir de então habituou-se a ir todos os dias
ao pavilhão. Costumava aparecer de manhã e depois do jantar, sendo frequentemente surpreendido ao entardecer a conversar com Ivan Dmitrich. Nos primeiros tempos
este mostrava-se insociável, desconfiando que Andrei Efimich vinha de má fé, e manifestando abertamente a sua hostilidade; mas depressa se acostumou a cie e a sua
brusquidão de antes transformou-se numa atitude indulgente e irónica.
Não tardou em propagar-se no hospital o rumor de que o doutor Andrei Efimich começara a visitar a enfermaria número seis. Ninguém, nem o assistente, nem Nikita,
nem as enfermeiras, compreendiam a razão dessa atitude, nem porque passava ali as horas mortas, ou de que assunto falava, e porque nunca receitava. As suas atitudes
causavam estranheza. Mikail Avcrianich frequentemente não o encontrava em casa, coisa que antes nunca acontecia. E Dariushka sentia-se desorientada, em virtude de
o médico ter deixado de tomar a sua cerveja a determinada hora, e até às vezes chegar tarde para comer.
Numa ocasião passava-se isto já em fins de Junho , tendo o doutor Kobotov tido necessidade de falar com Andrei Efimich, foi a sua casa; como não o encontrasse, procurou-o
no pátio, onde lhe disseram que o velho médico estava no pavilhão com os doentes mentais. Ao entrar no pavilhão, parou no vestíbulo ouvindo a seguinte conversa:
- Nunca chegaremos a um acordo, não conseguirá convencer-me - dizia Ivan Dmitrich, irritado. - O senhor não conhece nada do que é a realidade e nunca sofreu. A única
coisa que fez

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foi alimentar-se como uma sanguessuga com os sofrimentos alheios; eu, pelo contrário, sofri desde o dia em que nasci até ao dia de hoje. Por isso digo-lhe francamente
que me considero superior a si e mais competente em todos os sentidos. Você não é ninguém para me dar lições.
- Não pretendo de modo algum convertê-lo às minhas convicções - murmurava Andrei Efimich em voz baixa e como lamentando que não quisessem entendê-lo. - Não se trata
disso, meu amigo. Não se trata de você ter sofrido e eu não. As alegrias e os sofrimentos são efémeros. Ponhamo-los de parte, e que os leve o vento. Trata-se do
que você e eu pensamos; vemos, um no outro, duas pessoas capazes de pensar e raciocinar, e isto torna-nos solidários por mais diferentes que sejam os nossos pontos
de vista. Se você soubesse, amigo, como me aborrecem a loucura geral, a falta de talento, a torpeza, e como me alegra conversar consigo! Você é uma pessoa inteligente
e encanta-me a sua conversa.
Kobotov entreabriu a porta, lançando um olhar para a sala. Ivan Dmitrich, com o seu gorro de dormir, e o doutor Andrei Efimich estavam sentados no catre, um ao lado
do outro. O louco gesticulava, estremecia, amarfanhava-se convulsivamente na sua bata, enquanto o médico permanecia imóvel, com a cabeça baixa; e a sua face estava
corada e mostrava uma expressão abatida e triste. Kobotov encolheu os ombros, sorriu ironicamente e trocou um olhar com Nikita. Este encolheu igualmente os ombros.
No dia seguinte, Kobotov apresentou-se no pavilhão acompanhado pelo assistente. Pararam ambos à escuta, no vestíbulo.
- Parece-me que o nosso avô perdeu o tino por completo - disse Kobotov ao sair do pavilhão.
- Senhor, tende compaixão de nós, pecadores! - suspirou o devoto Serguei Sergueich, procurando não meter os pés nas poças para não sujar as recém-lustradas botas.
- Se quer que lhe diga a verdade prezado Evgueni Fiodorich, há tempos que estava a prever isto.

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XII

Depois disto, Andrei Efimich principiou a notar, à sua volta, uma atmosfera de mistério. Os servitas, as enfermeiras e os doentes, quando passavam por ele, fitavam-no
com olhar perplexo, começando logo a cochichar. Agora, Masha, a filhinha do inspector, com quem lhe agradava sempre encontrar-se no jardim do hospital, afastava-se
quando ele se aproximava para a acariciar. O chefe dos Correios, Mikail Averianich, ao ouvi-lo, já não dizia: "Tem toda a razão", antes balbuciava, dominado por
uma inexplicável perturbação: "Sim, sim, sim,...", olhando-o pensativo e triste. Sem causa aparente, principiou a aconselhar o amigo a que deixasse o vodka e a cerveja;
como pessoa delicada que era, não o dizia abertamente, mas com reticências, falando de um chefe de batalhão, excelente pessoa, ou do capelão de um regimento, outra
excelente pessoa, que eram vítimas da bebida, tendo-se curado por completo quando deixaram de beber. Também o seu colega Kobotov veio, duas ou três vezes, visitar
Andrei Efimich; e aconselhou-lhe igualmente que deixasse as bebidas alcoólicas, e sem motivo visível recomendou-lhe que tomasse brometo de potássio.
Em Agosto, Andrei Efimich recebeu uma carta do presidente da ('amara pedindo a sua comparência, a fim de tratar de um assunto de grande importância. À hora marcada,
ao chegar à Câmara Municipal, Andrei Efimich deparou com o chefe da Polícia, o inspector da escola do distrito, que era também vereador, Kobotov, e um indivíduo
gordo e loiro, que apresentaram como sendo médico. Este último, que possuía um apelido polaco muito difícil de pronunciar, vivia a trinta verstas da cidade, numa
granja destinada à criação de cavalos, e estava de passagem.

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- Temos aqui um assunto que lhe diz respeito - disse o vereador a Andrei Efimich, sentando-se à mesa depois dos cumprimentos da praxe. - Segundo Evgucni Fiodorich,
há pouco espaço para a farmácia no pavilhão principal e seria conveniente transferi-la para um dos pavilhões anexos. É um assunto a considerar, mas teria que proceder-se
a umas certas modificações.
- Sim, doutra forma seria impossível - disse Andrei Efimich, depois de reflectir uns momentos. - Sim, se reservassem, por exemplo, o pavilhão da esquina para farmácia,
creio que seriam necessários, pelo menos, quinhentos rublos. É uma despesa sem fundamento. - Fez-se um silêncio.
- Já tive a honra de informar, há dez anos - prosseguiu Andrei Efimich em voz baixa - que este hospital, tal como o temos agora, é um luxo que a cidade não se pode
permitir. Foi construído nos anos quarenta, quando havia mais recursos. A cidade gasta demasiado em obras desnecessárias e em cargos supérfluos. Creio que com o
mesmo dinheiro, com uma administração diferente, poderiam sustentar-se dois hospitais-modelo.
- Vamos pois mudar a administração! - disse vivamente o vereador.
- Já tive a honra de informar o seguinte: entreguem os serviços médicos ao zemstvo.
- Sim, entreguem o dinheiro ao zemstvo e ficará com todo - retorquiu, rindo, o médico loiro.
- É o que costuma acontecer - acentuou o vereador, que também rompeu a rir.
Andrei Efimich lançou ao médico loiro um olhar perturbado e disse:
- Temos que ser justos.
Novamente se fez uma pausa. Serviram o chá. O chefe da Polícia, evidenciando uma inexplicável perturbação, tocou por cima da mesa no braço de Andrei Efimich e disse:
- Tem-se esquecido de nós, doutor; claro que você é um eremita: não joga às cartas e não gosta de mulheres. Sentir-se-ia aborrecido connosco.
Principiaram todos a falar na monotonia da vida na cidade para um homem culto. Não havia nem teatro, nem música, e no último baile do clube estavam cerca de vinte
senhoras e apenas dois cavalheiros. Os jovens não dançavam, ficavam no bar ou jogavam às cartas. Andrei Efimich, com voz lenta e suave, sem olhar para ninguém, disse
que era

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uma pena, uma verdadeira pena, que as pessoas da cidade gastassem as suas energias, o seu coração e a sua inteligência a jogar às cartas e a criticar, e não soubessem
nem quisessem passar o tempo numa conversa interessante ou a ler; não queriam desfrutar dos prazeres que a inteligência proporciona. Somente a inteligência tinha
interesse e era importante; tudo o mais era ruim e interior. Kobotov, que ouvia atentamente o seu colega, perguntou-lhe de súbito: - Andrei Efimich, quantos são
hoje?
Obtida a resposta, o doutor loiro e Kobotov, no tom de examinadores conscientes da sua incapacidade, passaram a perguntar a Andrei Efimich que dia era, quantos dias
tem o ano e se era certo que na enfermaria número seis vivia um extraordinário profeta.
Em resposta à última pergunta, Andrei Efimich ruborizou-se dizendo:
- Sim, trata-se de um doente, mas é um jovem com muito interesse.
Não voltaram a perguntar-lhe mais nada.
Enquanto vestia o sobretudo, na antecâmara, o chefe da Polícia colocou-lhe a mão no ombro e disse com um suspiro:
- Chegou a hora de nós, os velhos, nos retirarmos para descansar!
Ao sair da Câmara, AndreiEfimich compreendeu que aquela reunião era constituída por uma comissão encarregada de se pronunciar sobre as suas faculdades mentais. Recordou
as perguntas que lhe tinham feito, corou, e, pela primeira vez na sua vida, sentiu profunda lástima pela carreira médica.
"Meu Deus pensou, recordando a maneira como os médicos acabavam de o julgar , não foi assim há tanto tempo que estudaram psiquiatria e ficaram aprovados; como podem
ser tão ignorantes? Não fazem a menor ideia do que é psiquiatria!"
E pela primeira vêz na sua vida sentiu-se ofendido e irritado.
Naquela mesma tarde esteve em sua casa Mikail Avcrianich. Sem sequer o cumprimentar, o chefe dos Correios aproximou-se dele, pegou-lhe em ambas as mãos e disse com
voz comovida:
- Caro amigo, meu querido amigo, dê-me uma prova de que crê na minha sinceridade e me considera seu amigo... Caro amigo! - e, sem deixar falar AndreiEfimich, prosseguiu
veementemente. - Lastimo-o pela sua cultura e nobreza de espírito. Oiça-me, amigo. A ética profissional obriga os médicos a ocultar-lhe a verdade, mas eu, como militar
que sou, digo-lhe lealmente: você está doente! Perdoe-me,meu caro, mas é verdade; há muito que se aperceberam disso quantos o

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rodeiam. O doutor Evgueni Fiodorich acaba de me dizer que, para bem da sua saúde, deve descansar e distrair-se, Ele tem toda a razão! É exacto! Dentro de alguns
dias entro de férias, e projecto mudar de ares. Prove-me a sua amizade: vamos juntos! Deitemos foguetes ao ar!
- Sinto-me perfeitamente bem - disse Andrei Efimich, depois de reflectir. - Não posso ir. Permita que lhe mostre a minha amizade de outra maneira.
Nos primeiros instantes a ideia de ir não sabia onde nem para quê, sem livros, sem Dariushka, sem cerveja, e a ideia de alterar por completo o regime de vida estabelecido
ao longo de vinte anos pareceram-lhe absurdas e fantásticas. Mas recordou a conversa na Câmara e o estado de espírito que sentira ao regressar a casa, e à ideia
de afastar-se algum tempo daquela cidade, onde gente estúpida o considerava louco, principiou a sorrir.
- E onde pensava ir?
- A Moscovo, São Petersburgo, Varsóvia,... Passei em Varsóvia os cinco anos mais felizes da minha vida. É uma cidade assombrosa! Venha comigo, meu caro!

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XIII

Uma semana mais tarde, Andrei Efimich era convidado a descansar, ou seja, a apresentar a sua demissão, facto que ele acolheu com indiferença, e na semana seguinte
partia com Mikail Averianich, na diligência, em direcção da estação de caminho de ferro mais próxima. Os dias estavam frescos e claros, o céu azul, e via-se nitidamente
a linha do horizonte. Levaram dois dias a percorrer as duzentas verstas que os separavam da estação, pernoitando duas vezes no caminho. Quando nas estações de serviço
lhes serviam chá em chávenas sujas ou demoravam a atrelar os cavalos, Mikail Averianich punha-se vermelho e gritava frenético: "Calem-se! Não aceito desculpas!"
E na diligencia não parava um instante de contar as suas viagens através do Cáucaso e do reino da Polónia. Quantas aventuras tivera, quantos encontros! Falava aos
gritos e com uma expressão tão estranha que dava a sensação de mentir. Além do mais, falava respirando para cima de AndreiEfimich e rindo às gargalhadas junto ao
seu ouvido. Isto incomodava o médico e não o deixava pensar e concentrar-se.
Por motivos de economia, compraram bilhetes de terceira, numa carruagem para não fumadores. Metade dos viajantes era constituída por pessoas bem vestidas. Mikail
Averianich não tardou em travar conhecimento com todos e, mudando de um lugar para outro, declarava aos gritos que não deviam ser utilizados aqueles incríveis comboios.
Era tudo uma fraude! Viajar a cavalo era outra coisa: percorria cem verstas num dia e sentia-se tão fresco como antes. E, na Rússia, as más colheitas foram devidas
ao facto de terem secado os pântanos de Pinsk. De uma maneira geral, passavam-se tremendas irregularidades. Exaltava-se, gritava e não deixava ninguém intervir.
Esta interminável conversa, semeada de gargalhadas e gestos expressivos, acabou por fatigar Andrei Efimich.

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"Qual de nós dois é o louco?" pensava irritado, "Eu que procuro não incomodar os outros passageiros, ou este egoísta, que se julga o mais inteligente de todos e
não deixa ninguém sossegado? "
Em Moscovo, Mikail Averianich envergou o casaco do uniforme militar sem dragonas e calças debruadas a vermelho. Andava na rua com boné militar e capote, e os soldados
faziam-lhe continência ao passar. Andrei Hfimich achava que o companheiro perdera tudo quanto de bom tivera noutros tempos, dentro dos seus hábitos senhoriais, guardando
apenas o lado mau. Queria ser servido, mesmo quando não era necessário. Via os fósforos na sua frente, sobre a mesa, mas chamava o criado para que lhos desse. Não
se importava de andar diante da criada em trajes menores; tratava por tu todos os criados, sem excepção, inclusivamente os velhos, e quando se zangava chamava-lhes
maltrapilhos e estúpidos. Tudo isto parecia a AndreiEfimich senhorial, mas repugnante.
Em primeiro lugar, Mikail Averianich levou o amigo a visitar a Virgem de Ivcria. Rezou fervorosamente, fazendo profundas genuflexões, com lágrimas nos olhos, e ao
terminar deu um profundo suspiro e disse:
- Mesmo não sendo crente, parece que se fica mais tranquilo quando se reza. Beije a imagem, meu caro.
AndreiEfimich perturbou-se e fez o que lhe disseram. Mikail Averianich, por sua vêz, entreabriu os lábios e, abanando a cabeça, recitou outra oração; novamente os
olhos se lhe marejaram de lágrimas. Foram depois ao Kremlin, onde viram o Canhão Rei e o Sino Rainha e até passaram a mão pelo bronze. Contemplaram as paisagens
que se estendiam até zamoskovorc Kie e visitaram o templo do Salvador e o museu de Rumiantsev.
Comeram num restaurante em Testov. Mikail Averianich examinou demoradamente a ementa, afagando as patilhas, e disse no tom de um gastrónomo habituado a sentir-se
nos restaurantes como em sua casa: - Vejamos o que tem hoje para nos dar, amigo!

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XIV

O médico ia a um sítio e outro, observava, comia, bebia, mas sempre dominado pelo mesmo sentimento: o aborrecimento que Mikail Averianich lhe produzia. Sentia desejo
de se ver livre do amigo, de o evitar, de se esconder, mas este julgava-se na obrigação de não se separar dele nem um instante e de lhe proporcionar o maior número
possível de distracções. Quando não havia nada para ver, procurava entretê-lo com a sua conversa. Andrei Efimich aguentou dois dias, mas ao terceiro alegou estar
indisposto e desejar ficar o dia inteiro no hotel. O amigo declarou que, nesse caso, também ele ficava. Era, de facto, indispensável descansar, senão acabariam estafados.
Andrei Efimich deitou-se, de bruços, no sofá e, cerrando os dentes, escutou o amigo assegurar calorosamente que, mais tarde ou mais cedo, a França acabaria por destronar
a Alemanha; que em Moscovo havia muitos patifes; e que só pelo aspecto não era possível apreciar as qualidades de um cavalo. O médico principiou a sentir zumbidos
nos ouvidos e palpitações, mas por delicadeza não se atrevia a pedir ao amigo que se fosse embora ou se calasse. Afortunadamente, Mikail acabou por se aborrecer
de estar no quarto do hotel, e depois de comer saiu a dar uma volta.
Quando ficou só, Andrei Efimich entregou-se ao prazer do descanso. Que agradável era estar imóvel, deitado no sofá, com a sensação de não haver mais ninguém no quarto!
Sem solidão é impossível a verdadeira felicidade. O anjo caído atraiçoou provavelmente a Deus, porque sentiu desejos de uma solidão que os anjos não conhecem. Andrei
Efimich queria pensar no que tinha visto e ouvido nos últimos dias, mas Mikail Averianich não lhe saía da cabeça.

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"E o facto e que tirou as suas férias e veio comigo por amizade, movido por um espírito generoso pensava o médico, irritado. - Não há nada pior que esta tutela de
um amigo. Parece que é bom, magnânimo e divertido, mas acaba por ser maçador. Insuportavelmente maçador. Acontece o mesmo com as pessoas que falam sempre de coisas
transcendentes e belas, mas que nós nos apercebemos que são estúpidas."
Nos dias seguintes, Andrei Efimich fingiu-se indisposto para não sair do quarto. Permanecia deitado no sofá, de cara voltada para a parede, sofrendo quando o amigo
se empenhava em distraí-lo com a sua conversa, mas descansando quando o outro saía. Irritava-se consigo próprio, por ter empreendido a viagem, e com o amigo, que
cada dia se mostrava mais falador e desenvolto. Era-lhe impossível fixar os seus pensamentos em qualquer assunto sério e elevado.
"É a realidade de que falava Ivan Dmitrich pensava, aborrecido com a sua mesquinhez. Nada disto faz sentido .. .Quando regressar a casa, será tudo como dantes..."
Em S. Petersburgo repetiu-se exactamente o mesmo: passava todo o santo dia no quarto, deitado no sofá, e apenas se levantava para beber cerveja.
Mikail Averianich continuava a insistir na ida a Varsóvia quanto antes.
- Para que hei-de ir, meu amigo? - dizia Andrei Efimich,com voz suplicante. - Vá você sozinho e deixe-me voltar para casa. Peço-lhe!
- De maneira nenhuma! - protestava Mikail Averianich. - - É uma cidade maravilhosa. Nela vivi os cinco anos mais felizes da minha vida!
Andrei Efimich não era um homem com força de vontade bastante para se manter intransigente, e fazendo das tripas coração foi a Varsóvia. Ali também não saía do quarto,
permanecendo deitado no sofá, e irritava-se consigo mesmo, com o amigo e com os criados, que se negavam tenazmente a compreender russo. Entretanto, Mikail Averianich,
sadio, animado e jovial como de costume, percorria a cidade de manhã à noite à procura de velhos conhecimentos. Uma ou outra noite não dormiu no hotel. Numa dessas
noites, passada Deus sabe onde, regressou de madrugada, num estado de grande agitação, vermelho e despenteado. Durante um grande bocado passeou de um lado para o
outro, resmungando para dentro;em seguida parou e disse: - A honra acima de tudo!

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Depois de novas idas e vindas, agarrou a cabeça entre as mãos e disse com voz trágica:
- Sim, a honra acima de tudo! Maldita a hora em que me ocorreu vir a esta Babilónia! Caro amigo - acrescentou, voltando-se para o médico -, despreze-me i joguei
e perdi! Dê-me quinhentos rublos!
Andrei Efimich contou o dinheiro e, em silêncio, entregou-o ao amigo. Este, ainda vermelho de vergonha e cólera, balbuciou um juramento incoerente e desnecessário,
enfiou o gorro e saiu para a rua. Ao regressar, duas horas mais tarde, esbarrondou-se numa poltrona, deixou escapar um sonoro suspiro e disse:
- Está salva a honra! Vamos, meu amigo! Não quero permanecer nem mais um minuto nesta maldita cidade. São uns malandros! Uns espiões austríacos!
Entrara o mês de Novembro quando os dois amigos regressaram à sua cidade, e as ruas estavam cobertas com uma espessa camada de neve. O lugar de Andrei Efimich fora
ocupado pelo doutor Kobotov, que vivia ainda na mesma casa, enquanto esperava que aquele voltasse e deixasse livre o andar do hospital. A mulher feia, a qucrn chamava
cozinheira, habitava já um dos pavilhões.
Corriam novos rumores pela cidade acerca do hospital. Dizia-se que a mulher feia tinha discutido com o inspector e que este se arrojara de joelhos aos seus pés,
pedindo-lhe perdão.
No dia seguinte ao seu regresso, Andrei Efimich teve de procurar novo alojamento.
- Meu amigo - disse-lhe timidamente o chefe dos Correios -, perdoe-me uma pergunta indiscreta: quais são os seus recursos?
Andrei Efimich contou o dinheiro em silêncio e disse: - Oitenta e seis rublos.
- Não me refiro a isso - insistiu perturbado Mikail Averianich,que não compreendera o médico. - Pergunto quais são os seus recursos de uma maneira geral.
- Já disse: oitenta e seis rublos... Não tenho mais nada.
Mikail Averianich tinha o médico na conta de uma pessoa honrada e nobre, mas suspeitava, no entanto, que disporia pelo menos de um capital de vinte mil rublos. Agora,
ao saber que era um mendigo, que não tinha de que viver, rompeu a chorar e abraçou-se ao amigo.

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XV

Andrei Efimich mudou-se para uma pequena casa com três janelas, propriedade da viúva de um operário, chamada Vitória. Tinha apenas três divisões, sem contar acozinha.
Duas das divisões, com janelas para a rua, eram ocupadas pelo médico; na terceira e na cozinha viviam Dariushka e a senhoria com três filhos. Às vezes vinha à noite
o amante da senhoria, um bêbado inveterado que assustava as crianças e Dariushka. Quando chegava, sentava-se na cozinha e começava a pedir vodka. A divisão era demasiado
pequena, e o médico, movido por um sentimento de compaixão, levava as crianças, que não paravam de chorar, e deitava-as no seu próprio quarto, no chão, facto que
lhe proporcionava grande satisfação.
Continuava a levantar-se às oito e, depois de tomar chá, sentava-se a ler os seus velhos livros e revistas. Já não tinha dinheiro para comprar novos. E fosse porque
os livros eram velhos ou talvez porque o ambiente era diferente, a leitura já não o atraía como dantes, e cansava-o. A fim de não cair em completa ociosidade, dedicou-se
a coligir um catálogo completo dos seus livros e a colar as respectivas etiquetas nas lombadas, e este trabalho mecânico e meticuloso suscitava-lhe mais interesse
do que a leitura; pela sua monotonia e minuciosidade, distrafa-o de uma maneira surpreendente. Não pensava em nada e o tempo passava com rapidez. Constituía uma
distracção o simples facto de descascar batatas, na cozinha, com Dariushka, ou escolher o trigo negro. Aos sábados e domingos ia à igreja. De pé, encostado à parede
e com os olhos fechados, ouvia os cânticos e pensava nos pais, na Universidade, nas religiões; sentia-se tranquilo e triste; e depois de sair da igreja, lamentava
que as cerimónias tivessem terminado tão depressa.

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Foi por duas vezes ao hospital a fim de visitar Ivan Dmitrich e conversar um bocado com ele. Mas de ambas as vezes Ivan Dmitrich se mostrou muito excitado e encolerizado;
pediu-lhe que o deixasse em páz, porque o aborreciam as palavras ocas; e disse que a única recompensa que esperava desses malditos patifes, por todos os seus sofrimentos,
era que o encarcerassem onde não estivesse ninguém. Seria que até isso lhe negariam? De ambas as vezes, quando Andrei Efimich se despediu dando-lhe as boas-noites,
o outro arreganhou os dentes e disse-lhe: - Vá para o diabo!
E Andrei Efimich hesitava em voltar uma terceira vêz,. Mas o certo é que sentia desejo de o fazer.
Antigamente, depois do jantar, Andrei Efimich dava um passeio pela casa, meditando; agora, desde o jantar ao chá da noite, permanecia deitado no sofá, voltado para
a parede, e deixava-se arrastar por pensamentos mesquinhos de que não conseguia alhear-se. Achava injusto que, depois de mais de vinte anos de serviço, não lhe tivessem
concedido uma pensão, nem o mais pequeno subsídio. É certo que não trabalhara com inteira consciência, mas a pensão era concedida por princípio a todos os funcionários,
honestos ou não. Porque a justiça moderna consistia precisamente em recompensar por meio de honrarias, condecorações e pensões vitalícias, não as qualidades morais
nem a capacidade intelectual, mas o simples facto de ter exercido um cargo, fosse qual fosse. Porque fariam dele uma excepção? Acabara-se-lhe o dinheiro. Sentia
vergonha de passar pela loja e encontrar a dona. Já lhe devia trinta e dois rublos de cerveja. Estava igualmente em dívida com a Vielova. Dariushka vendia dissimuladamente
os fatos velhos e os livros, e enganava a senhoria, dizendo que o médico receberia em breve uma quantia importante.
Sentia-se arrependido de ter gasto na viagem os mil rublos que tinha poupado. Que arranjo lhe fariam agora! Incomodava-o o facto de não o deixarem em páz. Kobotov
julgava-se na obrigação de visitar o seu colega doente. Toda a sua pessoa causava repugnância a Andrei Efimich: a expressão satisfeita, o tom indulgente, a palavra
"colega", as botas altas; o que mais o incomodava era que o médico se considerasse na obrigação de o tratar e pensasse que efectivamente o estava curando. De cada
vêz lhe trazia um frasco de brometo de potássio e pílulas de ruibarbo.

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Mikail Averianich julgava-se igualmente obrigado a visitar e distrair o amigo. Entrava sempre com afectada desenvoltura, ria sem vontade e tratava de o fazer acreditar
que tinha muito bom aspecto e que, graças a Deus, corria tudo pelo melhor. Poderia deduzir-se que considerava desesperada a situação do seu amigo. Não lhe tendo
pago a dívida de Varsóvia, sentia-se pouco à vontade, oprimido pela vergonha, e por isso tratava de rir com mais força e contar as coisas mais jocosas. As suas anedotas
e histórias eram intermináveis, masconstituíam um tormento tanto para Andrei Efimich como para ele próprio.
Quando Andrei Efimich estava presente, sentava-se no sofá, de cara para a parede, e ouvia-o cerrando os dentes. Na sua alma ia-se formando um sentimento de rancor
que aumentava depois de cada visita do amigo e lhe chegava até à garganta.
Para reprimir os sentimentos mesquinhos, procurava pensar que tanto ele como Kobotov e Mikail Averianich acabariam tarde ou cedo por morrer, sem deixarem na natureza
o menor vestígio da sua passagem. Se dentro de um milhão de anos passasse um espírito no espaço, junto ao globo terrestre, veria apenas terra e rochas nuas. Tudo
o resto - a cultura e as leis morais teria desaparecido; nem sequer cresceriam cardos. Que importavam a vergonha perante o tendeiro, o minúsculo Kobotov, a pesada
amizade com Mikail Averianich? Tudo isto não passava de um absurdo e de disparates.
Mas estas reflexões não lhe serviam já de nada. Apenas começava a imaginar o que seria o globo terrestre dentro de um milhão de anos, logo lhe aparecia, por detrás
de uma rocha escarpada, Kobotov com as suas botas altas e Mikail Averianich com o seu sorriso forçado. Até se lhe afigurava ouvir um murmúrio envergonhado: "A deusa
de Varsóvia lhe pagará qualquer dia, meu caro... Sem falta."

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XVI

Um dia, depois do jantar, quando Andrei Efimich estava deitado no sofá, apareceu Mikail Averianich. As coisas encaminharam-se de maneira que daí a pouco chegou Kobotov
com o brometo de potássio. Andrei Efimich ergueu-se pesadamente e sentou-se, apoiando as mãos no sofá.
- Hoje, meu caro - principiou Mikail Averianich -, tem muito melhor aspecto do que ontem. Acho-o muito bem! Sinceramente, acho-o muito bem!
- Já é tempo de corrermos com o azar, colega - declarou Kobotov. - Você é o primeiro, com certeza, a estar farto de tanta confusão.
- Havemos de nos curar! - exclamou jovialmente Mikail Averianich. - Ainda viveremos cem anos! É como lhe digo!
- Cem não digo, mas vinte - disse Kobotov para o consolar. - Isto não é nada, colega, não há razão para estar abatido... Não seja tão pessimista.
- Verão do que somos capazes! - acrescentou Mikail Averianich, com uma gargalhada, dando uma palmada nos joelhos do amigo. - Ainda havemos de dar que falar! No próximo
Verão, se Deus quiser, iremos ao Cáucaso e havemos de o percorrer a cavalo. E no regresso do Cáucaso, se não houver novidade, celebraremos o casamento - e Mikail
Averianich fez uma expressão maliciosa. - Havemos de o casar, querido amigo, havemos de o casar...
Andrei Efimich sentiu de repente que o rancor lhe subia à garganta. Principiou a bater-lhe aceleradamente o coração.
- Isto é infame! exclamou, erguendo-se com rapidez e retirando-se para a janela. - Não compreendem que é infame o que estão a dizer?

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Queria prosseguir em tom cortês, mas, contra sua vontade, cerrou os punhos e levantou-os acima da cabeça .
- Deixem-me! - gritou com voz transtornada, congestionado e trémulo. - Fora! Fora os dois, os dois!
Mikail e Kobotov puseram-se de pé e ficaram a olhá-lo, primeiro perplexos e depois com medo.
- Fora daqui! - prosseguiu gritando Andrei Efimich. - Sois abjectos, estúpidos! Não necessito nem da tua amizade, nem dos teus remédios, imbecil! Que infâmia tudo
isto! Que asco!
Kobotov e Averianich olharam-se desconcertados, recuaram até à porta e saíram para o vestíbulo. Andrei Efimich agarrou o frasco de brometo e atirou-o fora. O frasco
partiu-se com estrondo no umbral.
- Vão para o diabo! - gritou com lágrimas na voz, saindo para o vestíbulo. - Para o diabo!
Quando ficou só, Andrei Efimich, tremendo como se estivesse a arder em febre, estendeu-se no sofá e continuou a repetir demoradamente:
- Estúpidos! São uns estúpidos!
Quando se acalmou, o primeiro pensamento que teve foi o de que o pobre Mikail Averianich devia sentir uma vergonha terrível e que tudo aquilo era absurdo. Nunca
antes lhe sucedera nada igual. Onde estavam a inteligência e o tacto? Onde estava a compreensão das coisas e a equanimidade filosófica?
A vergonha e o descontentamento em relação a si próprio impediram-no de dormir durante toda a noite. De manhã, por volta das dez, dirigiu-se aos Correios para apresentar
as suas desculpas a Mikail Averianich.
- Não falemos do que aconteceu - disse este, comovido e dando um suspiro, enquanto lhe apertava a mão. - Esqueçamos tudo! Liubavkin! - gritou subitamente, de tal
modo que todos os empregados e o público estremeceram. - Traz uma cadeira. E tu, espera! - gritou a uma mulher que através do postigo lhe estendia uma carta para
registar. Não vês que estou ocupado? Esqueçamos o passado - prosseguiu em tom carinhoso, dirigindo-se a Andrei Efimich. - Sente-se, meu caro, peço-lhe encarecidamente.
Afagou os joelhos, em silêncio, durante uns instantes e disse em seguida:
- Nem me passou pela cabeça zangar-me consigo. Uma doença não é nada agradável, e eu entendo. A sua explosão de ontem assustou-nos,

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ao médico e a mim, e estivemos depois a falar em si largo tempo. Caro amigo, porque se nega a tomar a sério a sua enfermidade? Será razoável? Perdoe-me a minha amistosa
franqueza - balbuciou Mikail Averianich. - Você vive num ambiente que não pode ser mais desfavorável: falta de espaço, de higiene; não cuidam de si, carece de recursos
para se tratar... Querido amigo, o médico e eu suplicamos-lhe de todo o coração; escute o nosso conselho: interne-se no hospital! Terá uma boa alimentação, cuidados,
tratamento. EvgucniFiodorich, ainda que mauvais ton , verdade seja dita, sabe o que faz e pode-se confiar inteiramente nele, Deu-me a sua palavra em como se ocupará
de si.
Andrei Efimich sentiu-se comovido pelo sincero interesse e pelas lágrimas que de súbito brilharam nos olhos do chefe dos Correios.
- Não acredite nisso, meu estimado amigo! - murmurou, levando a mão ao coração. - Não acredite! É um engano! A minha única doença é que depois de vinte anos não
encontrei em toda a cidade mais do que um homem inteligente, e esse está louco. Não há qualquer doença; apenas entrei num círculo vicioso de que não há saída. Mas
tudo me é indiferente, e estou conformado com o que tiver que acontecer.
- Dê entrada no hospital, meu caro.
- É-me indiferente. Mesmo que seja na prisão.
- Dê-me a sua palavra de que obedecerá em tudo a Evgueni Fiodorich.
- Como queira, dou-lhe a minha palavra, mas repito-lhe que caí num círculo vicioso. Tudo, até o sincero interesse dos meus amigos, conduz agora a uma coisa: à minha
perdição. Perco-me e tenho o mérito de o reconhecer.
- Há-de restabelecer-se, meu caro.
- Para quê dizer isso? - replicou Andrei Efimich, irritado. - São raras as pessoas que não sentem no fim da sua vida o que eu sinto agora. Quando lhe diagnosticarem
qualquer coisa acerca dos rins ou do coração dilatado e você começar a tratar-se, ou se lhe disserem que está doido ou é um criminoso, numa palavra, quando as pessoas
lhe prestarem atenção, deve saber que caiu num círculo vicioso do qual já não poderá sair. Quanto mais se esforçar, mais se extraviará. É preferível que se renda,
porque nenhum esforço humano poderá salvá-lo. É assim que eu penso.

'Em francês no texto (N. do T.).

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Entretanto o público ia aumentando diante do postigo. Andrei Efimich pôs-se em pé e despediu-se. Mikail Averianich obrigou-o a dar novamente a sua palavra de honra,
e acompanhou-o até à porta da rua.
Naquela mesma tarde Kobotov, com a peliça e as botas altas, apresentou-se em casa de Andrei Efimich, dizendo-lhe, como se na véspera não tivesse acontecido nada:
- Tenho que consultá-lo sobre um assunto, colega. Pode acompanhar-me?
Pensando que Kobotov queria distraí-lo com um passeio ou proporcionar-lhe uma ocasião de ganhar algum dinheiro, Andrei Efimich vestiu o casaco e saiu com ele para
a rua. Sentia-se feliz por ter a oportunidade de poder reparar a sua falta da véspera e no seu íntimo estava agradecido a Kobotov, que nem sequer mencionara o incidente
que, segundo parecia, tinha perdoado. Da parte de um homem tão rude, era inesperada tanta delicadeza.
- Onde está o doente? - perguntou Andrei Efimich.
- No hospital. Já há algum tempo que gostava que você o visse. É um caso interessantíssimo.
Entraram no pátio do hospital e, sem se aproximarem do pavilhão principal, dirigiram-se ao pavilhão dos loucos. E tudo isto em silêncio. Ao entrarem, Nikita, conforme
o seu costume, pôs-se em pé de um salto e ficou em posição de sentido.
- Sobreveio uma complicação nos pulmões - disse Kobotov a meia voz, entrando com Andrei Efimich na enfermaria. - Espere aqui; volto já, vou buscar o fonendoscópio.
E saiu.

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XVII

Caía a noite. Ivan Drnitrich estava deitado no seu catre, com acara enterrada na almofada; o paralítico, imóvel, chorava suavemente, movendo os lábios. O mujiquc
gordo e o antigo seleccionador de cartas dormiam. Acalma era total.
Andrei Efimich sentara-se na cama de Ivan Drnitrich e esperava. Mas decorreu meia hora e, em vêz, de Kobotov, entrou na sala Nikita, trazendo uma bata, roupa interior
e uns sapatos.
- Tenha a bondade de se vestir, meu senhor - disse a meia voz. - Tem aqui a sua cama, venha - acrescentou, indicando um catre vago que, ao que parece, tinham trazido
pouco antes. - Não d nada; Deus há-de fazer com que recobre a saúde.
AndreiEfimich compreendeu tudo; sem dizer uma só palavra, mudou-se para o catre que Nikita lhe indicava e sentou-se nele. Ao ver que o guarda continuava à sua frente
à espera, despiu-se completamente, ao mesmo tempo que sentia invadi-lo uma sensação de vergonha. Em seguida vestiu a roupa do hospital; os calções estavam curtos
e a camisa comprida; a bata cheirava a peixe fumado.
- Deus queira que se restabeleça - repetiu Nikita.
Recolheu a roupa de Andrei Bfimich, saiu e fechou a porta atrás dele.
"Tanto faz" pensou AndreiEfimich, envolvendo-se envergonhado na bata e pensando que com a sua nova indumentária tinha o aspecto de um prisioneiro. Tanto faz... Tanto
faz um fraque como um uniforme ou esta bata..."
E o relógio? E o livro de apontamentos que guardava no bolso? E os cigarros? Que fizera Nikita à sua roupa? Agora, provavelmente não voltaria a vestir calças, casaco,
nem botas. Tudo isto parecia estranho e

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até incompreensível à primeira vista. Andrei Efimich continuava convencido de que entre a casa da Viclova e a enfermaria número seis não havia a mais pequena diferença,
que neste mundo era tudo um absurdo, vaidade das vaidades; mas as mãos tremiam-lhe, tinha os pés frios e sentia horror ao pensar que Ivan Dmitrich podia levantar-se
daí a pouco e vê-lo com esta bata. Pôs-se de pé, deu umas voltas e sentou-se novamente.
Esteve assim meia hora, uma hora. Tudo aquilo o cansava ao ponto de lhe produzir uma sensação de angústia. Seria possível passar ali um dia, uma semana, anos inclusivamente,
como aquela gente? Deixou-se estar sentado, levantou-se mais uma vez para dar um passeio, e voltou a sentar-se. Podia aproximar-se da janela, olhar, e recomeçar
os seus passeios de um lado para o outro. E depois? Continuar ali eternamente como uma estátua,e pensar? Não;era impossível.
Andrei Efimich estendeu-se em cima da cama, mas imediatamente se pôs de pé, limpou com a manga o suor frio que lhe escorria da fronte e notou como a sua cara cheirava
a peixe fumado. Voltou novamente aos seus passeios.
- Há aqui um mal-entendido... - articulou, abrindo os braços perplexo. - É preciso esclarecer as coisas, trata-se de uma confusão... - Neste momento Ivan Dmitrich
acordou. Sentou-se, apoiando a cara nas mãos. Cuspiu. Em seguida, lentamente, olhou o médico, sem que no primeiro momento desse sinal de ter compreendido alguma
coisa. Mas depressa o seu semblante sonolento adquiriu uma expressão rancorosa e matreira.
- Olá! Também a si o enclausuraram, amigo? - disse com voz rouca de quem acaba de acordar, piscando um olho. - Muito me alegro. Antes chupava você o sangue das pessoas
e agora chuparão o seu. Óptimo!
- Trata-se de um mal-entendido... - murmurou Andrei Efimich, a quem as palavras de Ivan Dmitrich tinham assustado. - É um mal-entendido... - repetiu, encolhendo
os ombros. Ivan Dmitrich cuspiu outra vêze deitou-se.
- Maldita vida! - resmungou. - E o pior de tudo é que não terminará com uma recompensa por danos sofridos, nem com uma apoteose, como na ópera, mas com a morte.
Vem os servitas do hospital, agarram o morto pelos braços e pernas e levam-no para a cave. Brrr! Que se há-de fazer!... Em contrapartida, no outro mundo teremos
a nossa festa... Voltarei aqui do outro mundo como uma

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sombra e assustarei estes canalhas. Farei com que lhes nasçam cabelos brancos..
Nesse momento, chegou Moiseika que, ao ver o médico, estendeu a mão.
- Dá-me um kopek - disse.

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XVIII

Andrei Efimich retirou-se para junto da janela e ficou a olhar o campo. Já estava escuro e no horizonte, para a direita, assomava uma Lua fria e alaranjada. Perto
da cerca do hospital, mais ou menos a cem braças de distância, erguia-se um edifício alto e branco, rodeado por um muro. Era a prisão.
"A realidade é isto", pensou Andrei Efimich, com um arrepio de medo.
Davam-lhe medo a Lua, os pregos da cerca e a luz longínqua duma fábrica. Andrei Efimich ouviu um suspiro nas suas costas. Voltou-se e viu um homem, com resplandecentes
estrelas e condecorações ao peito, sorrindo e piscando maliciosamente o olho. Isto fez-lhe igualmente medo.
Disse para si mesmo que na Lua e na prisão não havia nada de especial, que as pessoas psiquicamente sãs também ostentam condecorações e que, com o tempo, tudo apodreceria
e se converteria em pó. Mas de momento apoderou-se dele o desespero, agarrou-se com ambas as mãos às grades, sacudindo-as com todas as suas forças. Os sólidos barrotes
não cederam.
Depois, procurando afastar os seus temores, aproximou-se do catre de Ivan Dmitrich e sentou-se.
- Sinto-me muito diminuído, meu caro - balbuciou, tremendo e limpando as bagas do suor. - Muito diminuído.
- Dedique-se às suas filosofias - replicou Ivan Dmitrich em tom de gracejo.
- Meu Deus, meu Deus... Sim, sim,... Dizia você que na Rússia não há filosofia, mas que todos filosofam, até a escumalha. Mas que a escumalha filosofe não faz mal
a ninguém - disse Andrei Efimich

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como se sentisse vontade de chorar e de inspirar compaixão. - A que se deve esse riso irónico, meu caro? E como não há-de filosofar essa escumalha, se está descontente?
O homem inteligente, culto, orgulhoso e livre, semelhante a Deus, não tem outro recurso senão ir como médico a uma maldita cidade, suja e estúpida, e levar a vida
inteira a receitar ventosas, sanguessugas e sinapismos. Charlatanismo, espírito tacanho, vulgaridade! Ó meu Deus!
- Isso são patetices. Se não lhe agradava a carreira de médico, podia ter sido ministro.
- Nada, nada é possível. Somos débeis, meu caro... Eu era desapaixonado, raciocinava com clareza e sensatez, mas, desde que a vida me marcou, sinto-me diminuído...
sumido na minha insignificância. Somos débeis, não valemos nada... Você também, querido amigo. Você é inteligente e nobre; através do leite materno cresceram em
si altos propósitos; mas, apenas deu os primeiros passos na vida, cansou-se e adoeceu... Somos débeis, débeis!
Uma sensação da qual não conseguia libertar-se, além do medo e de um sentimento de mágoa, não deixava Andrei Efimich sossegado desde o entardecer. Percebeu por fim
que necessitava de tomar cerveja e fumar.
- Vou sair, meu caro - disse. - Direi que tragam uma vela... Não posso continuar assim... nesta situação...
Andrei Efimich aproximou-se da porta e abriu-a, mas imediatamente Nikita se levantou de um salto, tolhendo-lhe o passo. - Onde vai? Não pode sair! - disse. - Já
são horas de dormir.
- É só um instante; quero dar uma volta no pátio - explicou Andrei Efimich, espantado.
- Não pode ser, é proibido. Bem o sabe.
Nikita fechou a porta com um empurrão e segurou-a encostando-se a ela do lado de fora.
- Que mal pode acontecer, se sair? - perguntou Andrei Efimich, encolhendo os ombros. - Não percebo! Nikita, tenho que sair! - acrescentou com voz trémula. - Necessito
sair!
- Não faça escândalo; não pode ser - declarou Nikita peremptoriamente.
- Diabos me levem! - explodiu subitamente Ivan Dmitrich, levantando-se. - Com que direito não o deixa sair? Como se atrevem a ter-nos aqui encerrados? Creio que
a lei é bem clara: ninguém pode ser

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privado da sua liberdade sem uma sentença dos tribunais. Isto é uma violência! Uma arbitrariedade!
- Claro que é uma arbitrariedade! - repetiu Andrei Efimich, estimulado pelos gritos de Ivan Dmitrich. - Necessito sair, tenho de sair! Não tem o direito de mo impedir!
Já te disse que me deixes sair!
- Estás a ouvir, grande besta? - gritou Ivan Dmitrich, começando aos murros à porta. - Abre ou deito a porta abaixo! Criminoso!
- Abre! - gritou Andrei Efimich, tremendo. - Sou eu que o exijo!
- Continua! - respondeu Nikita do outro lado da porta. - Continua e verás!
- Ao menos, vai chamar Evgueni Fiodorich. Diz-lhe que lhe peço por favor...Não e mais do que um minuto.
- Evgueni Fiodorich vem amanhã, sem ser preciso chamá-lo.
- Nunca libertam! - prosseguiu, entretanto.
Dmitrich. - Deixam-nos apodrecer aqui! Ó meu Deus! Será possível que no outro mundo não haja Inferno e que estes miseráveis sejam perdoados? Onde está a justiça?
Abre, canalha; não posso respirar! - gritou com voz rouca, lançando-se contra a porta. - Vou-te partir a cabeça! Assassinos!
Nikita abriu a porta de um sacão, deu um forte empurrão a Andrei Efimich com as mãos e o joelho, desfechando-lhe um murro na cara. Andrei Efimich pensou que uma
enorme vaga de água salgada o envolvera e o arrastara até ao catre. Com efeito, sentia na boca um sabor salgado: devia ser sangue dos dentes. Como se estivesse a
afogar-se, agitou os braços e agarrou-se a uma cama, ao mesmo tempo que sentia que Nikita lhe dava mais dois murros nas costas.
Ivan Dmitrich deu um grande grito. Deviam estar igualmente a bater-lhe.
Depois seguiu-se um silêncio. A escassa luz da lua entrava por entre as grades e no chão projectava-se uma sombra que parecia uma rede. Aquilo era horrível. Andrei
Efimich deitou-se contendo a respiração; esperava, estupefacto, que o espancassem novamente, era como se alguém lhe tivesse espetado uma noz, remexendo-a várias
vezes,no peito e no ventre. A dor fez-lhe morder a almofada e cerrar os dentes, quando de repente, no meio do caos que reinava na sua cabeça, brilhou com clareza
o pensamento, terrível e insuportável, de que essa mesma dor deviam tê-la sofrido anos inteiros, dia após dia,

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aqueles homens que agora, à luz da lua, mais se assemelhavam a umas sombras negras. Como foi possível que durante mais de vinte anos não se tivesse apercebido nem
tivesse querido saber nada disto? Desconhecia, ignorava essa dor; o que significava que não era culpado. Mas uma consciência tão fria e rude como a de Nikita fê-lo
sentir um arrepio dos pés à cabeça. Levantou-se, tentou gritar com todas as suas forças, e correr para matar Nikita, e a seguir Kobotov, o inspector e o assistente;
depois acabaria com a própria vida. Mas do seu peito não saiu nem um som e as pernas não lhe obedeceram. Ofegante, arrancou do corpo a bata e a camisa, rasgou-as
e, perdendo os sentidos, caiu sobre o catre.

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XIX

Na manhã seguinte doía-lhe a cabeça, zumbiam-lhe os ouvidos e sentia um mal-estar geral. Não sentia vergonha ao recordar a sua fraqueza da véspera. Mostrara-se pusilânime,
assustara-o a própria Lua e expressara sinceramente ideias e sentimentos que jamais suspeitara existirem nele. Por exemplo, a ideia da insatisfação da escumalha
filósofa. Mas agora tudo lhe era indiferente.
Sem comer nem beber, jazia imóvel e silencioso.
"Tudo me é indiferente", pensava, quando lhe faziam qualquer pergunta. "Não responderei... Tanto me faz."
Depois do almoço, chegou Mikail Averianich, que lhe trazia um pacote de chá e uma libra de marmelada. Veio também Dariushka, que permaneceu de pé junto da cama durante
uma hora com uma expressão de surda amargura no rosto. Esteve o doutor Kobotov, que trouxe um frasco de brometo e ordenou a Nikita que arejasse a sala.
Andrei Efimich morreu a meio da tarde, vítima de um ataque de apoplexia. Sentiu primeiro profundos calafrios e náuseas; pareceu-lhe que qualquer coisa repugnante
invadia todo o seu corpo, até aos dedos, e que, subindo do estômago, lhe chegava à cabeça e lhe inundava os olhos e os ouvidos. Pareceu-lhe que via tudo verde. Andrei
Efimich compreendeu que tinha chegado ao fim e recordou que Ivan Dmitrich, Mikail Averianich e milhões de pessoas acreditavam na imortalidade. E se, de facto, fosse
verdade que existia? Mas não a desejava; apenas pensou nela um instante. Uma manada de veados de excepcional graça e beleza, cuja descrição lera na véspera, passou
junto dele; depois uma mulher estendeu-lhe a mão com uma carta registada... Mikail Averianich disse qualquer coisa. Em seguida tudo desapareceu e Andrei Efimich
perdeu a noção das coisas para sempre.

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Apareceram os servitas do hospital, agarraram-no pelos braços e pelas pernas e levaram-no para a capela. Ali ficou em cima de uma mesa, com os olhos abertos, iluminado
pela lua. Pela manhã chegou Serguei Sergueich, orou com devoção diante do crucifixo e fechou os olhos daquele que fora o seu chefe.
No dia seguinte fez-se o enterro. Apenas assistiram Mikail Averianich e Dariushka.

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VIZINHOS

I

Piotr Mikailich Ivashin sentia-se de muito mau humor: a irmã, uma rapariga solteira, fugira com Vlasich, um homem casado. Ao tentar afastar de si a profunda depressão
que se apoderara dele, e não o largava nem em casa nem no campo, Piotr Mikailich procurou agarrar-se ao seu sentimento de justiça e às suas honradas convicções (porque
sempre fora partidário da liberdade no campo!). Mas eram inúteis os seus esforços, e acabava sempre, contra sua vontade, por chegar à mesma conclusão: a de que a
estúpida ama, ou antes a irmã, se conduzira mal e que Vlasich a havia raptado. E isto era horroroso.
A mãe não saía do seu quarto, a ama falava a meia voz e não parava de suspirar; e a tia manifestava constantemente o desejo de se ir embora, e as suas malas tão
depressa eram colocadas na entrada como as levavam de novo para o quarto. Dentro de casa, no pátio e no jardim, reinava um tal silêncio que mais parecia haver alguém
morto. Piotr Mikailich tinha a impressão de que a tia, as serviçais e até os mujiques o olhavam com uma expressão enigmática e perplexa, como se quisessem dizer
"Seduziram a tua irmã, porque ficas de braços cruzados? ". Também ele se censurava a si próprio pela sua inactividade, ainda que, na realidade, não soubesse ao certo
o que devia fazer.
Assim passaram seis dias. No sétimo um domingo, depois do almoço um homem a cavalo trouxe uma carta. A direcção Para Sua Excel. Ana Nikolaievna Yvashina estava escrita
numa letra feminina que lhes era familiar. Piotr Mikailich julgou ver no sobrescrito, na letra e na palavra "Excel." meia escrita qualquer coisa de provocante, liberal.
E o liberalismo da mulher é obstinado, implacável, cruel,...

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"Preferirá a morte a fazer qualquer concessão à sua desgraçada mãe, a pedir-lhe perdão", pensou Piotr Mikailich quando ia à procura da mãe com a carta na mão.
Aquela estava na cama, embora vestida. Ao ver o filho ergueu-se impulsivamente e ajeitando os cabelos cinzentos, que se lhe tinham soltado da touca, perguntou secamente:
- O que há? O que há?
- Mandou... - disse o filho, entregando-lhe a carta.
O nome de Zina e até a palavra "ela" não se pronunciavam em casa. Falava-se de Zina de uma maneira impessoal: "mandou", "foi-se embora",... A mãe reconheceu a letra
da filha e o seu rosto transtornado endureceu. Os cabelos soltaram-se novamente da touca. - Não - disse, afastando as mãos como se a carta lhe tivesse queimado os
dedos. - Não, não, nunca! Por nada deste mundo!
A mãe rompeu em soluços histéricos provocados pela dor e pela vergonha; parecia sentir desejos de ler a carta; mas o orgulho impedia-a de o fazer. Piotr Mikailich
entendia no seu íntimo que devia abrir e ler a carta em voz alta, mas sentiu-se subitamente dominado por uma cólera como nunca experimentara. Correndo para o pátio
gritou ao homem que trouxera a missiva:
- Diz-lhe que não tem resposta! Não haverá resposta! Diz-lhe isto mesmo, imbecil!
E rasgou imediatamente a carta em pedaços. Depois, as lágrimas saltaram-lhe dos olhos, e sentindo-se duro, culpado e infeliz, saiu para o campo.
Tinha apenas vinte e sete anos, mas já era gordo, vestia como um velho, usava os fatos muito folgados e sofria de dispneia. Já possuía todas as manias do fazendeiro
solteirão. Não se apaixonava, não pensava em casar-se, e gostava unicamente da mãe, da irmã, da ama e do jardineiro Vasilich. Gostava de comer bem, dormir a sesta
e falar de política e de temas elevados... Terminara em tempos os estudos na Universidade, e agora encarava-os como uma obrigação inevitável para os jovens entre
os dezoito e os vinte e cinco anos. Pelo menos, os pensamentos que o atormentavam não tinham nada de comum com a Universidade nem com o que ali estudara.
O campo estava quente, com aquela calmaria que fazia prever chuva. O bosque exalava um ligeiro vapor e um cheiro penetrante a pinheiro e a folhas secas. Piotr Mikailich
parava frequentemente

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para limpar o suor da testa. Revistou os seus trigais de Outono e Primavera, percorreu os campos de cevada; e por duas vezes, numa clareira do bosque, espantou uma
perdiz com os seus perdigotos. Entretanto pensava constantemente que tão insustentável situação não podia prolongar-se eternamente e havia que pôr-lhe cobro de qualquer
maneira. Fosse como fosse, mesmo de um modo estúpido, absurdo; mas era necessário acabar com aquilo.
"Mas como? Que fazer", perguntava Piotr Mikailich a si próprio, olhando o céu e as árvores como se implorasse a sua ajuda.
Mas o céu e as árvores guardavam silêncio. As convicções honestas não lhe serviam para nada, e o seu senso comum segredava-lhe que o dilacerante problema só poderia
ter uma solução estúpida e que a cena com o homem que trouxera a carta não seria a última neste género. Sentia medo ao pensar no que ainda podia acontecer.
Voltou para casa ao pôr do Sol. Parecia-lhe nesse momento que o problema não tinha solução, Era impossível aceitar o facto consumado, mas também não era possível
não o aceitar, e não existia qualquer solução intermédia. Quando, de chapéu na mão e abanando-se com o lenço, ia andando pelo caminho e lhe faltava um par de verstas
para chegar a casa, ouviu uma campainha nas suas costas. Era um tilintar muito agradável de campainhas e guizos que lembrava um som de cristais. Só podia ser Mcdovski,
o chefe da Polícia do distrito, antigo oficial de hussardos que perdera todos os bens e a saúde, um homem doente, parente afastado de Piotr Mikailich. Era muito
amigo dos Ivashin e sentia por Zina grande admiração e carinho paternal.
- Vou a sua casa - disse aproximando-se de Piotr Mikailich. - Suba, eu levo-o.
Sorria jovialmente; era evidente que não sabia o que sucedera com Zina. Se por acaso lho tivessem dito, não teria acreditado. Piotr Mikailich sentiu-se numa situação
embaraçosa.
- Ainda bem - balbuciou, corando ao ponto de lhe saltarem as lágrimas, sem saber como esconder a verdade. - Gosto muito - prosseguiu, esforçando-se por sorrir ,
- mas,... Zina saiu e a mãe está doente.
- Que pena! - disse o chefe da Polícia, fitando pensativamente Piotr Mikailich. - E eu que contava passar a noite com vocês...

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Onde foi Zinaida Mikailovna?
- A casa dos Sinitski; depois parece que tencionava ir ao convento. Não tenho a certeza.
O chefe da Polícia acrescentou mais qualquer coisa é deu a volta. Piotr Mikailich seguiu para casa, e pensava horrorizado no que sentiria o chefe da Polícia quando
soubesse a verdade. Fazia cálculos; e sob esta desagradável impressão entrou em casa.
"Ajuda-me, Senhor, ajuda-me...", pensava.
Na sala de jantar, a tomar o seu chá, estava apenas a tia. Como de costume, a sua fisionomia apresentava a expressão de alguém, ainda que débil e indefesa, que não
permitia a ninguém que a ofendesse. Piotr Mikailich sentou-se do outro lado da mesa (não sentia grande afeição pela tia) e, em silêncio, principiou a tomar o chá.
- A tua mãe também hoje não comeu - disse a tia. - Tu, Petrusha, devias tomar cuidado. Morrer de fome não remedeia a nossa desgraça.
Piotr Mikailich achou absurdo que a tia se intrometesse em assuntos que não eram da sua competência e fizesse depender da partida de Zina a marcha dos acontecimentos.
Sentiu desejos de dizer uma impertinência mas conteve-se a tempo, e ao conter-se apercebeu-se de que chegara o momento oportuno para agir, e de que se sentia incapaz,
de sofrer por mais tempo; tinha de fazer qualquer coisa imediatamente, ou atirar-se ao chão gritando e dando cabeçadas. Imaginou Vlasich e Zina, liberais e contentes
consigo próprios, beijando-se debaixo de um arco, e todo o peso e o rancor que acumulara durante estes sete dias se concentraram em Vlasich.
"Um seduziu e raptou a minha irmã, outro virá e degolará a minha mãe, um terceiro roubar-nos-á ou incendiará a casa... E tudo isto sob a máscara da amizade, das
ideias elevadas e dos sofrimentos", pensou.
Não, não será assim! gritou de repente, dando um murro em cima da mesa.
Levantou-se de um salto e saiu a passos rápidos da sala de jantar. Na cavalariça estava selado o cavalo do feitor. Montou-o, e saiu a galope à procura de Vlasich.

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Desencadeara-se no seu íntimo uma verdadeira tempestade. Sentia a necessidade de fazer qualquer coisa de tremendo e fora do comum, ainda que depois tivesse de arrepender-se
a vida inteira. Acusar Vlasich de ser um miserável, dar-lhe uma bofetada e desafiá-lo em seguida? Mas Vlasich não era dos que se batem em duelo; e ao ser acusado
de miserável e esbofeteado, a sua única reacção seria sentir-se mais desgraçado e retrair-se ainda mais. Este género de pessoas infelizes e submissas são os seres
mais insuportáveis, os mais difíceis de tratar. Tudo neles permanece impune. Quando o homem infeliz, em resposta a uma observação merecida, olha com uma expressão
em que se reflecte a consciência da sua culpa, sorri amargamente e inclina docilmente a cabeça, parece que a própria justiça é incapaz de levantar a mão contra ele.
- Tanto faz. Dou-lhe uma chicotada à frente dela e dir-lhe-ei umas quantas coisas desagradáveis - decidiu Piotr Mikailich.
Cavalgava através do bosque e das terras baldias que lhe pertenciam, e imaginava a maneira como zina, querendo justificar o seu acto, invocaria os direitos da mulher
e a liberdade individual, afirmando que era exactamente igual o casamento religioso ou o civil. Discutiria como mulher as coisas que não podia compreender, e acabaria
provavelmente por lhe perguntar: "Que tens tu a ver com tudo isto? Com que direito te intrometes?
- Sim, não tenho direito nenhum - resmungava Piotr Mikailich. - Mas ainda bem... Quanto mais grosseiro for e menos direito tiver, melhor.
Estava um calor sufocante. Nuvens de mosquitos voavam muito baixo, ao rés do solo, e nos terrenos baldios choravam dolorosamente as aves-frias. Piotr Mikailich atravessou
o limite da propriedade, seguindo a galope através de um terreno completamente plano. Percorrera muitas vezes este caminho e conhecia cada matagal até à mais pequena
vereda. Aquilo que de longe, entre duas luzes, parecia uma rocha escura era uma igreja vermelha; Piotr podia recordá-la no seu mais ínfimo detalhe, inclusivamente
o estuque do portal; e lembrava-se dos carneiros que pastavam sempre no adro. Para a direita, a uma versta da igreja, avistava-se a mata do conde Koltovish. E para
lá da mata começavam as terras de Vasilich.

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Atrás da igreja e da mata do conde avizinhava-se uma nuvem enorme, que de vez em quando era iluminada por uns pálidos relâmpagos.
"Já está!", pensou Piotr Mikailich. "Ajuda-me, Senhor!"
O cavalo não tardou em dar sinais de fadiga, e o próprio Piotr Mikailich se sentia cansado. A imensa nuvem contemplava-o ameaçadora, como a aconselhá-lo a voltar
para casa. Sentiu receio.
"Hei-de demonstrar-lhes que não têm razão! pensou, tentando ganhar coragem. Dirão que é amor livre, liberdade individual; mas a liberdade consiste na abstenção,
e não na subordinação às paixões. Aquilo é depravação e não liberdade!"
Chegou ao grande lago do conde. O reflexo da nuvem dava-lhe um aspecto acinzentado e sombrio, e o lago emanava uma humidade densa. Junto ao dique, dois salgueiros,
um velho e outro novo, inclinavam-se um para o outro, amparando-se carinhosamente. Por este mesmo caminho, duas semanas antes, Piotr Mikailich e Vlasich tinham passado
a pé, cantando a meia voz uma canção estudantil: "Não amar e destruir a juventude..." Miserável canção!
Quando Piotr Mikailich atravessou a mata, soou um trovão e as árvores estremeceram, inclinando-se com a força do vento. Tinha de apressar-se, entre a mata e a fazenda
de Vlasich tinha ainda de atravessar o prado, de cerca de uma versta. Em ambos os lados do caminho alinhavam-se os velhos ciprestes, de aspecto tão triste e infeliz
como Vlasich, seu dono; assim como ele, eram esguios e tinham crescido desmedidamente. Nas folhas dos ciprestes e na erva tamborilaram grandes gotas; ao mesmo tempo
caiu o vento e espalhou-se um cheiro a terra molhada. Apareceu a cerca de Vlasich, com a sua acácia amarela que era igualmente esguia e crescera mais do que o normal.
Em determinado sítio onde a cerca caíra, via-se um pomar abandonado de árvores de fruto.
Piotr Mikailich já não pensava no bofetão nem na chicotada. Não sabia o que faria em casa de Vlasich. Acobardou-se. Sentia medo ao pensar na irmã e em si próprio,
e horrorizava-se com a perspectiva de a ver. Como se comportaria ela? De que iriam falar? Não seria preferível regressar antes que fosse tarde? Com estes pensamentos,
galopou em direcção à casa pela avenida das tílias, deixou para trás os grandes maciços de lilases e, de súbito, deu de frente com Vlasich.

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Este, de cabeça descoberta, com uma camisa de percal e botas altas, curvado sob a chuva, caminhava da esquina da casa ao portão. Seguia-o um trabalhador com um martelo
e uma caixa com pregos. Estivera decerto a consertar as madeiras das janelas batidas pelo vento. Ao ver Piotr Mikailich, Vlasich deteve-se.
- És tu? - perguntou sorrindo. - Óptimo.
- Sim, vim, como vês... - disse Piotr Mikailich suavemente, sacudindo a chuva com as mãos.
- Ainda bem, folgo muito - acrescentou Vlasich, sem estender a mão; não se decidia a fazê-lo e esperava que o outro o fizesse primeiro. - Esta chuva é muito boa
para a aveia! - prosseguiu, olhando o céu.
- Sim.
Entraram em casa em silêncio. Do lado direito da entrada havia uma porta que conduzia à saleta e daí directamente à sala; do lado esquerdo havia uma pequena divisão
que era ocupada no Inverno pelo leitor. Piotr Mikailich e Vlasich penetraram nesta última.
- Onde te apanhou a chuva? - perguntou Vlasich.
- Perto. Quando vinha a chegar a casa.
Piotr Mikailich sentou-se na cama. Agradava-lhe que a chuva fizesse aquele ruído e que o quarto estivesse às escuras. Era melhor assim: sentia menos receio e evitava
encarar o seu interlocutor de frente. O seu sentimento de cólera desaparecera; e o que sentia agora era receio e irritação consigo próprio. Tinha a intuição de que
começara mal e que desta sua iniciativa não resultaria praticamente nada.
Durante certo tempo permaneceram ambos em silêncio, simulando prestar atenção à chuva.
- Obrigado, Petrosha - principiou Vlasich pigarreando. - Agradeço muito teres vindo. É um acto generoso e nobre. Entendo-o e, acredita, dou-lhe grande valor. Podes
crer. - Olhou para a janela e prosseguiu, de pé, no centro do quarto.
- Tudo isto se passou em segredo, como se fosse às tuas escondidas. A consciência de que podias sentir-te ofendido e estivesses aborrecido connosco tem sido durante
estes dias uma nuvem na nossa felicidade. Mas permite que nos justifiquemos. Se guardámos segredo, não foi por falta de confiança em ti. Em primeiro lugar, tudo
se passou inesperadamente, movidos por um súbito impulso, e não havia tempo para raciocinar. Segundo,

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tratava-se de um assunto íntimo, delicado... Era por demais desagradável, fazer intervir uma terceira pessoa, ainda que tão chegada como tu. O principal é que confiámos
muito na tua generosidade. És um homem muito generoso e nobre. Fico-te infinitamente grato. Se alguma vêz, necessitares da minha vida, vem e toma-a.
Vlasich falava com voz suave e surda, monótona como um zumbido; e estava visivelmente emocionado. Piotr Mikailich sentiu que chegara a sua vez de falar e que escutar
e calar-se significaria, efectivamente, fazer-se passar por uma pessoa generosa e nobre na sua boa fé. E não eram essas as suas intenções. Levantou-se rapidamente
e disse, ofegante, a meia voz:
- Ouve, Grigori: sabes quanto te estimava e que não teria podido desejar melhor marido para minha irmã. Mas o que aconteceu é horroroso. Ainda tremo ao pensar nisso.
- Porquê? - perguntou Vlasich, com voz comovida. - Seria de tremer se tivéssemos procedido mal, mas não é o caso.
- Ouve, Grigori: sabes que não tenho preconceitos. Mas perdoa-me a franqueza: quanto a mim, procederam egoisticamente. É evidente que não o direi a Znu, ficaria
aflita, mas tu deves sabê-lo; a nossa mãe sofre a tal ponto que nem te posso explicar.
- Sim, isso é muito doloroso - suspirou Vlasich. - Não foi nada que não pensássemos, Petrusha, mas que podíamos fazer? O facto de as nossas acções desagradarem aos
outros não implica que sejam condenáveis. A vida é assim. Qualquer passo importante de uma pessoa tem forçosamente de desagradar a alguém. Se tu fosses combater
pela liberdade; farias igualmente sofrer a tua mãe. Que havemos de fazer! Aquele que coloca acima de tudo a tranquilidade dos seus familiares deve renunciar por
completo a viver segundo os seus ideais.
O clarão de um relâmpago resplandeceu no céu e o seu brilho mudou o rumo aos pensamentos de Vlasich. Sentou-se junto de Piotr Mikailich e principiou a divagar.
- E Petrusha, adoro a tua irmã - declarou. - Sempre que me dirigia a tua casa imaginava ir em peregrinação a fim de elevar as minhas orações a Deus, quando a verdade
é que as minhas orações se dirigiam a Zina. Agora a minha adoração aumenta todos os dias. Zina ocupa, aos meus olhos, uma posição mais elevada do que se fosse minha
mulher. Muito mais! - Vlasich ergueu os

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braços. É o meu santuário! Desde que ela vive aqui, entro nesta casa como se fosse um templo, é uma mulher excepcional, extraordinária, nobilíssima!
"Pronto, já começou com a sua ladainha!", pensou Piotr Mikailich. Mas a palavra "mulher" não lhe agradara.
- Porque não se casam legalmente? - perguntou. - Quanto pede a tua mulher para te conceder o divórcio?
- Setenta e cinco mil.
- Acho muito, e se tentasses que ela pedisse menos?
- Não baixará nem um kopek. É uma mulher terrível, irmão! - disse Vlasich suspirando. - Nunca antes te falara nela, porque me desagradava o assunto, mas visto que
as coisas se encaminharam neste sentido, vou-te contar. Casei-me, honestamente, movido por um respeitável, ainda que fugaz, sentimento. No nosso regimento, caso
te interessem os pormenores, havia um chefe de batalhão que se enamorou de uma jovem de dezoito anos; ou seja, falando claramente, seduziu-a, viveu com ela dois
meses, e abandonou-a. A rapariga ficou numa situação muito embaraçosa. Tinha vergonha de voltar para casa dos pais, além de que não a aceitariam, e fora abandonada
pelo amante: restava-lhe ir aos quartéis e vender-se. Os oficiais estavam indignados. Eles também não eram nenhuns santos, mas a infâmia era demasiado evidente.
Para mais, no regimento ninguém gostava daquele chefe. Para lhe fazerem ver a sua patifaria, compreendes, os tenentes e capitães principiaram a reunir dinheiro para
a desgraçada rapariga. E então, quando nós, os oficiais de patente inferior, havíamos feito uma colecta em que cada um dava entre cinco a dez rublos, a mim subiu-me
o sangue à cabeça. A situação pareceu-me indicada para realizar uma autêntica proeza. Fui ter com ela e manifestei-lhe ardentemente a minha simpatia. E quando ia
visitá-la e enquanto conversava com ela amava-a apaixonadamente, vendo nela uma mulher humilde e ofendida. Sim... daí resultou que uma semana depois a pedi em casamento.
Os meus superiores e camaradas acharam que semelhante casamento era incompatível com a dignidade de um oficial. Foi como deitar achas na fogueira. Eu, compreendes,
escrevi uma longa carta na qual afirmava que a minha acção devia ficar, na história do regimento, gravada com letras de ouro, etc. Mandei-a ao chefe e enviei cópias
aos meus camaradas. Estava exaltado, é claro, e

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houve uma troca de palavras duras. Pediram-me que abandonasse o regimento. Tenho guardado o rascunho em qualquer sítio, hei-de dar-to para que o leias. A carta foi
escrita com muita emoção. Poderás notar os honestos e sinceros sentimentos que me moviam. Solicitei a baixa ao quartel e para aqui vim com minha mulher. Meu pai
deixara algumas dívidas, eu carecia de dinheiro; quanto a ela, contraiu desde o primeiro dia muitas amizades, começou a presumir e a jogar às cartas, e tive de hipotecar
a propriedade. Portava-se mal, e foste tu, entre todos os meus vizinhos, o único que não foi seu amante. Ao fim de dois anos, dei-lhe, para que me deixasse em páz,
tudo o que então possuía, tendo ela partido em seguida para a cidade. Sim... e agora dou-lhe dois mil rublos por ano. É uma mulher horrível! É uma mosca que põe
a larva nas costas da aranha de tal modo que esta não a pode sacudir; e a larva agarra-se à aranha, chupando-lhe o sangue do coração. O mesmo faz esta mulher: agarrou-se
a mim, chupa-me o sangue. Odeia-me e despreza-me porque tive a estúpida ideia de casar com ela. A minha generosidade parece-lhe uma coisa miserável. Um homem inteligente
costuma dizer abandonou-me e
recolheu-me um estúpido. Pensa que só um desgraçado idiota podia ter procedido como eu. É isto, irmão, a mim causa-me uma amargura intolerável. Dir-te-ei, aqui para
nós, que o destino me persegue. Persegue-me ferozmente.
Piotr Mikailich escutava Vlasich, interrogando-se perplexo: como terá podido agradar tanto a Zina? Já não é jovem, tem quarenta e um anos, e franzino, peito estreito,
nariz comprido e alguns cabelos brancos na barba. Quando fala parece que zomba; tem um sorriso doentio e agita as mãos de modo desagradável. Não podia orgulhar-se
de ser saudável nem de possuir belas maneiras viris, e carece de espírito mundano e alegria. Em resumo: a julgar pelas aparências, é um ser pusilânime e indefinido.
Não tem gosto para se vestir, a sua expressão é triste, não se interessa por poesia nem pintura, porque "não correspondem às necessidades diárias", ou seja, porque
não as compreende, e não é apreciador de música, e mau administrador. A herdade encontra-se no mais completo abandono e está hipotecada; pela segunda hipoteca paga
doze por cento, além de que assinou letras no valor de dez mil rublos. Quando chega o momento de liquidar os juros ou mandar dinheiro à mulher, pede emprestado a
toda a gente, com a expressão de

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quem tem a casa a arder; e, simultaneamente, sem reflectir, vende todas as reservas de lenha para o Inverno por cinco ruhlos, e a palha por três, e depois manda
acender os fogões com as traves da cerca do pomar ou as velhas estacas do jardim de Inverno. Os porcos estragam a pradaria, e o gado dos mujiqucs come, no bosque,
as árvores novas, enquanto as velhas vão morrendo todos os Invernos. No pomar e no jardim as colmeias estão ao abandono, sendo utilizadas para deitar os baldes velhos.
Vlasich não tem qualquer aptidão e nem sequer possui a virtude comum e corrente de viver como as outras pessoas vivem. É ingénuo nos assuntos práticos, ingénuo e
fraco, e qualquer pessoa o pode enganar facilmente, sendo por alguma razão que os mujiqucs lhe chamam "o Simples".
E liberal e no distrito tem fama de vermelho, mas isso só lhe causa enfado. Na sua livre maneira de pensar não existe qualquer originalidade ou ênfase; indigna-se,
irrita-se e alegra-se sempre no mesmo tom, displicentemente, sem procurar tirar efeito. Não ergue a cabeça, nem mesmo nos momentos de grande exaltação, e permanece
sempre curvado. Mas o mais maçador de tudo é que até os seus bons e nobres ideais são expressos de forma que parecem banais e ultrapassados. Dá a impressão de que
está a falar de qualquer velho assunto, que leu há muito, quando com palavras lentas principia a falar, como se se tratasse de coisa muito profunda, das fases nobres
e lúcidas da sua vida, e de anos melhores; ou quando se entusiasma com a juventude que sempre andou à cabeça da sociedade; ou, ainda, quando censura os Russos porque
durante trinta anos vestem a mesma roupa e se esquecem de adquirir a sua alma mater. Quando passo a noite em sua casa, coloca, em cima da minha mesa-de-cabeceira,
livros de Pisarev e Darwin. E, se lhe digo que já os li, sai e volta com Dobroliubov.
Naquele distrito, chamavam a isto livre-pensamento, e era considerado por muitos como uma extravagância ingénua e inocente; no entanto, tornava-o a ele profundamente
infeliz. Significava para ele a larva de que falara antes: agarrara-se-lhe com toda a força e sugava-lhe o sangue do coração. No passado, o estranho casamento à
moda de Dostoievski, as longas cartas e as cópias escritas com uma letra ilegível, mas com profundo sentimento; os eternos equívocos, explicações e desilusões; em
seguida, as dívidas, a segunda hipoteca, o dinheiro que dava à

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mulher, novas dívidas que contraía todos os meses... e tudo isto sem proveito para ninguém, nem para ele nem para os outros. E presentemente, tal como antes, vive
ansioso, toma iniciativas, e mete-se em assuntos que lhe são alheios; como noutros tempos, assim que uma ocasião se apresenta escreve grandes cartas com as respectivas
cópias, mantém conversas fatigantes e triviais acerca da comunidade rural ou da necessidade de pôr de pé as indústrias de artesanato ou, ainda, da construção de
uma fábrica de queijos: conversas muito semelhantes umas às outras, ao ponto de parecerem saídas não de um cérebro vivo, mas de uma máquina. E, finalmente, este
escândalo de Zina, que não se sabe como terminará.
E entretanto Zina é jovem, tem apenas vinte e oito anos, é bonita, elegante e alegre; gosta de rir e conversar, agradam-lhe as discussões e é apaixonada por música;
tem bom gosto para se vestir, para escolher livros e móveis; e em sua casa não consentiria um quarto como este, a cheirar a coiro das botas e a vodka barato. É igualmente
liberal, mas na sua livre maneira de pensar adivinham-se a superabundância de energia, a vaidade de uma mulher jovem, forte e impulsiva, e a vibrante aspiração de
ser melhor e mais original do que as demais... Como pôde enamorar-se de Vlasich?
"Ele é um Dom Quixote, um fanático obstinado, um maníaco", pensava Piotr Mikailich, "e ela é tão suave, tão débil de carácter e conciliadora, como eu... Ambos nos
rendemos depressa e sem resistência! Enamorou-se dele; ainda que eu próprio o estime, apesar de tudo..."
Piotr Mikailich tinha Vlasich na conta de um homem bom e honesto, se bem que de vistas estreitas. Nas suas emoções e sofrimentos, no conjunto da sua vida, não distinguia
fins elevados, próximos ou remotos; via unicamente o tédio e a incapacidade de viver. O seu sacrifício e tudo aquilo que Vlasich denominava proeza ou impulso honrado
pareciam-lhe um inútil desgaste de energia, desnecessários tiros sem bala em que se queimava muita pólvora. A circunstância de Vlasich estar fanaticamente certo
da extraordinária honestidade e infalibilidade da sua maneira de pensar afigurava-se-lhe de uma ingenuidade quase doentia. E quanto ao facto de se haver esforçado
a vida inteira para misturar o mesquinho com o sublime, de se haver casado estupidamente
considerando essa acção uma tacanha, e de logo haver procurado outras mulheres, vendo nisso o triunfo de uma ideia, tudo isto era simplesmente incompreensível.
Apesar de tudo, Piotr Mikailich sentia afeição por Vlasich, pressentia nele uma certa força de vontade, sendo por isso incapaz de o contrariar.
Vlasich sentara-se junto dele para conversar, ao som da chuva, na obscuridade, principiando a pigarrear e disposto a contar coisas intermináveis, no género da história
do seu casamento. Mas Piotr Mikailich não conseguia prestar-lhe atenção, obcecado com a ideia de ir, dentro de instantes, encontrar-se com a irmã.
- Sim, não tiveste sorte na vida - disse suavemente. - Mas, perdoa-me, estamos a afastar-nos do ponto principal. Não era esse o assunto de que necessitávamos de
falar.
- Sim, sim, tens razão. Vamos ao que interessa - aquiesceu Vlasich pondo-se de pé. - Escuta-me, Petrusha: a nossa consciência está limpa. Não nos casou um padre,
mas o nosso matrimónio é perfeitamente legítimo. Não tentarei demonstrar-to, nem tens obrigação de me ouvir. As tuas convicções são tão independentes como as minhas
e, graças a Deus, não pode haver entre nós discrepância neste ponto. Quanto ao nosso futuro, não te deve meter medo. Trabalharei dia e noite, incansavelmente; numa
palavra, farei quanto esteja ao meu alcance para que Zina seja feliz. Terá uma vida agradável. Serei capaz, de o conseguir? Sim, conseguirei, irmão! Quando alguém
pensa constantemente numa única coisa, não lhe é difícil conseguir o que pretende. Mas vamos ter com Zina. Temos que lhe dar esta alegria.
Piotr Mikailich sentiu um aperto no coração. Levantou-se e seguiu Vlasich até à saleta, e daí à sala. Nesta divisão enorme e sombria, não havia senão um piano e
uma longa fila de velhas cadeiras, com incrustações de bronze, em que nunca alguém se sentava. Uma vela ardia em cima do piano. Da sala passaram em silêncio à casa
de jantar, outra divisão ampla e pouco confortável, em cujo centro havia uma mesa redonda de dobrar, com seis pés grossos, e sobre ela luzia igualmente uma vela.
O relógio, de caixa vermelha, semelhante à urna de um ícone, marcava as duas e meia.
Vlasich abriu a porta do quarto contíguo, dizendo: - Zinochka, chegou o Petrusha!

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Ouviram-se passos precipitados e Zina entrou na sala de jantar. Alta, um pouco forte e muito pálida, tal como Piotr Mikailich a vira pela última vêz, em casa: vestida
com saia preta, blusa vermelha e um cinto com uma grande fivela, Abraçou o irmão longamente, beijando-o no rosto.
- Que temporal! - disse. - Cirigori saiu e deixou-me sozinha em casa.
Não parecia perturbada, fitando o irmão com uma expressão sincera, diáfana, como dantes. Ao vê-la, Piotr Mikailich deixou de se sentir perturbado.
- Mas tu não costumas ter medo do temporal - disse, sentando-se junto da mesa.
- Sim, mas aqui os temporais são muito fortes, a casa é velha e, quando ecoa o trovão, estremece toda como um armário com loiça. À parte isso, é muito agradável
- continuou, e sentou-se em frente do irmão. - Aqui, cada quarto tem a sua recordação. No meu (o que é o destino!) o avô de Grigori desfechou um tiro em si próprio.
- Em Agosto, receberei algum dinheiro e arranjarei o pavilhão do jardim - disse Vlasich.
- Não sei porque recordo o avô quando há temporal - prosseguiu Zina. - E nesta sala de jantar mataram um homem.
- É verdade - confirmou Vlasich, olhando Piotr Mikailich, com os olhos muito abertos. - Nos anos quarenta, esta herdade foi arrendada por um francês chamado Olivier.
O retrato da filha ainda está nas águas-furtadas. Este Olivier, segundo contava meu pai, despregava os Russos pela sua ignorância e troçava constantemente deles.
Assim, exigia que o sacerdote, ao passar junto da quinta, tirasse o chapéu meia verxta antes de casa; e quando andava pela aldeia com a família, queria que mandasse
repicar os sinos. Com os criados e o pessoal menor ainda fazia menos cerimónias. Certa ocasião passou por aqui um dos elementos mais típicos da Rússia vagabunda,
alguém no género do estudante Jorna Hrut, de Gogol. Pediu que o deixassem pernoitar, agradou ao pessoal, tendo-lhe sido permitido ficar na arrecadação. Existem várias
versões. Uns dizem que o estudante revoltou os

' 1'erxomigem du um conto de Gogol intitulado Viy (N. do T.).

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camponeses; outros, que a filha de Olivier se enamorou dele. Não sei bem, mas o certo é que um dia Olivier chamou-o aqui e ordenou, em seguida, que lhe dessem uma
sova. Estás a ver? Enquanto ele permanecia sentado atrás desta mesa, bebendo como se nada fosse, os criados espancavam o estudante. Presume-se que o martirizaram.
O estudante morreu na manhã seguinte, tendo o seu cadáver desaparecido. Dizem que o deitaram ao lago de Koltovish. Iniciaram-se investigações, mas o francês pagou
vários milhões de rublos a quem de direito e partiu para a Alsácia. Chegara, muito a propósito, ao termo o prazo de arrendamento e assim acabou tudo.
- Que canalhas! - exclamou Zina, estremecendo. - Meu pai lembrava-se muito bem de Olivier e da filha. Dizia que era muito bonita e excêntrica. Penso que o estudante
fez ambas as coisas: revoltou os camponeses e seduziu a filha. Talvez nem sequer se tratasse de um estudante, mas de uma pessoa que viajasse incógnita.
Zinochka ficou pensativa: a história do estudante e da bela francesa parecia ter levado os seus pensamentos para muito longe. Piotr Mikailich chegou à conclusão
de que, exteriormente, Zina não mudara nada na última semana; apenas a achava um pouco mais pálida. O seu olhar era tranquilo, como se tivesse vindo em companhia
do irmão visitar Vlasich. Quanto a si, Piotr Mikailich sentia-se ligeiramente mudado. Efectivamente, antes, quando Zina vivia em casa, podia conversar acerca de
tudo, enquanto agora era incapaz de lhe perguntar sequer "Como vives aqui? ". Parecia-lhe uma pergunta torpe e desnecessária. Devia-se ter dado nela a mesma mudança.
Não se mostrava desejosa de falar na mãe, na casa, na sua história amorosa com Vlasich; não procurava justificar-se, não declarava que o casamento civil era melhor
que o religioso, não se mostrava receosa e permanecera tranquilamente meditando no caso de Olivier... E a que propósito principiaram, subitamente, a falar no francês?
- Têm ambos as costas molhadas da chuva - disse Zina sorrindo com alegria, afectada por esta pequena semelhança entre o irmão e Vlasich.
E Piotr Mikailich sentiu toda a amargura e todo o horror da sua situação. Recordou a casa vazia, o piano fechado e o quarto de Zina, cheio de luz, em que ninguém
entrava agora. Recordou que

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nas áleas do jardim deixaram de se notar as marcas dos seus pequenos pés e que um pouco antes do chá da tarde já ninguém tomava banho entre risos de alegria. Aquilo
que mais o atraía desde a sua mais tenra infância, que lhe agradava recordar quando sentado no sombrio ambiente do salão - claridade, pureza, alegria , tudo quanto
enchia a casa de vida e de luz, fora-se para não mais voltar, desaparecera e misturava-se com a grosseira e torpe história de um chefe de batalhão, de um tenente
generoso, de uma mulher corrompida, do avô que dera um tiro em si próprio... E principiar a conversa sobre a mãe ou imaginar que o passado podia voltar, significaria
não entender o que estava bem claro.
Os olhos de Piotr Mikailich encheram-se de lágrimas e a sua mão pousada sobre a mesa principiou a tremer, Zina adivinhou os seus pensamentos e os seus olhos resplandeceram
igualmente humedecidos de lágrimas.
- Vem cá, Grigori disse, dirigindo-se a Vlasich.
Retiraram-se para o vão da janela e principiaram a falar em voz baixa. Pela maneira como Vlasich se inclinava para ela e como ela olhava Vlasich, Piotr Mikailich
compreendeu mais uma vez que tudo acabara para sempre e não valia a pena falar. Zina retirou-se.
- Verás, irmão - principiou Vlasich depois de um curto silêncio, esfregando as mãos e sorrindo, - dizia-te há pouco que a nossa vida era feliz, mas afirmava-o para
me submeter, digamos, às exigências literárias. Na realidade, ainda não tivémos a sensação de felicidade, zina pensava constantemente em ti e na tua mãe e atormentava-se;
isso significava um sofrimento para mim. Ela é um espirito livre, decidido, mas, como não está habituada, pesa-lhe esta situação, além de ser ainda jovem. Os criados
chamam-lhe menina. Parece um facto sem importância, mas preocupa-a, é como te digo, irmão.
Zina trouxe um prato com morangos, era seguida por uma criadinha de aspecto submisso. A criada pousou uma caneca com leite em cima da mesa, fazendo uma profunda
reverência antes de sair... Tinha qualquer coisa de comum com os velhos móveis, dava a sensação de espanto e aborrecimento.
A chuva parara. Piotr Mikailich comia morangos enquanto Vlasich e Zina o olhavam em silêncio. Chegara o momento da conversa desnecessária mas inevitável, e os três
começaram a sentir o seu peso. Os olhos de Piotr Mikailich de novo se encheram de

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lágrimas; afastou o prato, dizendo que iam sendo horas de voltar, porque se fazia tarde e podia recomeçar a chover. Chegara o momento em que Zina, por decoro, devia
fazer incidir a conversa sobre os seus e a sua nova vida.
- Como vão as coisas lá por casa? - perguntou em tom sacudido, ao mesmo tempo que o seu pálido rosto se crispava ligeiramente. E a mãe?
- Já a conheces... respondeu Piotr Mikailich, desviando o olhar.
- Petrusha, tu tens pensado muito em tudo o que sucedeu - continuou ela, agarrando o irmão pelo braço, e Piotr percebeu como lhe era penoso falar. - Reflectiste
muito. Diz-me: podemos ter alguma esperança de que a mãe, um dia, se reconcilie com Grigori... e aceite toda esta situação?
Zina estava muito perto dele, olhando-o de frente, e Piotr admirou-se de a ver tão bonita, pensando que nunca antes se apercebera disso. E o facto de a irmã, tão
parecida fisicamente com a mãe, delicada e elegante, viver em casa de Vlasich e com Vlasich, ao lado daquela criada, da mesa de seis pés, numa casa onde haviam morto
um homem à paulada, e ainda o facto de já não voltar com ele para casa, e ficar ali a dormir, tudo lhe pareceu um incrível absurdo.
- Sabes como é a mãe... - disse sem responder à pergunta. Acho que devias pensar, fazer qualquer coisa, pedir-lhe perdão...
- Mas pedir perdão significa admitir que procedemos mal. Estou disposta a mentir para a sua tranquilidade, mas isso não resolverá nada. Conheço-a. Enfim, veremos!
- acrescentou Zina, contente por o pior ter passado. - Esperaremos cinco anos, dez, aguentaremos, e seja o que Deus quiser.
Deu o braço ao irmão e, ao passar pela saleta sombria, encostou-se ao seu ombro.
Saíram a porta. Piotr Mikailich despediu-se, montou a cavalo e principiou, a passo, a viagem de regresso. Zina e Vlasich seguiram uns passos com ele para o acompanhar.
Estava um fim de tarde aprazível e ameno e pairava no ar um maravilhoso cheiro a feno; no céu, por entre as nuvens, brilhavam as estrelas. O velho jardim de Vlasich,
testemunha de tantas histórias dramáticas, dormia

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envolto na penumbra, e despertava na alma de quem o atravessava um sentimento de melancolia.
- Hoje, depois do almoço, passei com Zina momentos verdadeiramente maravilhosos - disse Vlasich. - Estive a ler-lhe um artigo muito bem feito sobre a emigração.
Deves lê-lo, irmão! Vais gostar! É um artigo notável de seriedade. Não resisti e mandei uma carta à redacção para que a façam chegar ao autor. Apenas uma linha:
"Agradeço-lhe e aperto a sua honrada mão."
Piotr Mikailich esteve tentado a dizer "Não te metas onde não és chamado", mas calou-se.
Vlasich caminhava junto ao estribo direito e Zina junto ao esquerdo. Davam ambos a impressão de haver esquecido que tinham de voltar para casa, apesar de estar muito
húmido e já pouco faltar para chegarem à mata de Koltovish. Piotr Mikailich percebeu que esperavam qualquer coisa dele, ainda que não soubessem bem o quê, e sentiu
por ambos uma profunda piedade. Neste momento, enquanto caminhavam junto ao cavalo, pensativos e submissos, teve a profunda convicção de que eram infelizes e de
que não podiam ser felizes, parecendo-lhe o seu amor um erro triste e irreparável. A piedade e a consciência de que não podia fazer nada por eles produziam-lhe aquela
sensação de mal-estar em que para evitar o penoso sentimento de compaixão se está disposto a qualquer sacrifício.
- Virei algumas vezes passar a noite convosco.
Mas isto soava como uma concessão e não lhe agradou. Ao parar junto à mata de Koltovish, a fim de se despedir definitivamente, inclinou-se para a irmã, pôs-lhe a
mão no ombro e disse:
- Tens razão, Zina: fizeste bem!
E para não acrescentar mais nada e não romper em pranto, deu uma chicotada ao cavalo e desapareceu a galope por entre as árvores. Ao entrar na escuridão, voltou
a cabeça e viu que Vlasich e Zina regressavam a casa pelo caminho, ele em grandes passadas e ela saltitando conversando animadamente.
"Sou um pateta", pensou Piotr Mikailich. "Vinha para resolver este assunto e ainda o compliquei mais. Bem, que Deus os proteja!"
Sentia-se amargurado. Ao passar a mata meteu o cavalo a passo, parando depois junto ao lago. Precisava de se concentrar e pensar.

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Nascera a Lua, que se reflectia como uma coluna alaranjada vinda da outra margem do lago. Ouviu-se soar ao longe o ruído do trovão. Piotr Mikailich fixava a água
sem pestanejar, imaginando o desespero da irmã, a sua dolorosa palidez, e o firme olhar com que se esforçaria por ocultar a todos a sua humilhação. Imaginou o seu
problema, a morte e o enterro da mãe, o horror de Zina... Porque a supersticiosa e orgulhosa velha não podia deixar de morrer. Os terríveis acontecimentos futuros
desfilaram perante os seus olhos na superfície escura da água e entre as pálidas figuras das mulheres viu-se a si próprio, pusilânime, débil, com o semblante de
quem se sente culpado...
A cem passos, no extremo direito do lago, notava-se qualquer coisa imóvel e escura: seria uma pessoa ou um tronco de árvore? Piotr Mikailich recordou a história
do estudante que tinham lançado ao lago depois de morto.
"Olivier foi desumano, mas, no fim de contas, solucionou o problema, enquanto eu não resolvi nada, não fiz senão complicá-lo ainda mais", pensou, olhando a silhueta
escura que parecia uma aparição. - Ele dizia o que pensava, e eu não digo nem faço aquilo que penso. Nem sequer tenho a certeza do que na realidade penso..."
Aproximou-se da silhueta negra: era um velho tronco apodrecido, a única coisa que ficara de uma antiga construção.
Da mata e da propriedade de Koltovish chegava até ele um intenso perfume a muguet e ervas aromáticas. Piotr Mikailich prosseguiu o seu caminho à beira do lago, contemplando
tristemente a água, e ao recordar a sua vida convenceu-se de que nunca até aí dissera nem fizera nada do que pensava e que os outros lhe tinham pago na mesma moeda.
Isto fê-lo ver a sua vida passada tão sombria como aquela água em que se reflectia o céu da noite e se confundiam as algas. E pareceu-lhe que nada tinha já remédio.

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DÔ-DOCE

Olennka, filha do assessor do Colégio Plcmianikov, sentada no pátio, à soleira da sua porta, sonhava.
O tempo estava abafado, as moscas peganhentas, importunas, e era agradável pensar que em breve chegaria a noite. A leste passavam sombrias nuvens carregadas de chuva,
e de vêz, em quando corria uma leve aragem.
No meio do pátio, observando também o céu, estava Kukinc, o dono do Jardim de Tivoli, o café-concerto da cidade; Kukinc habitava um dos pavilhões anexos à casa.
- Mais! - proferiu com desespero. - Vem aí mais chuva! Todos os dias chove. Chove todos os dias. Parece de propósito. É desesperante. É a ruína!... Todos os dias
um prejuízo enorme...
Abriu os braços e continuou, dirigindo-se a Olennka:
- É isto a minha vida, Olga Semionovna. Dá vontade de chorar. Trabalhamos, afadigamo-nos, damos cabo de nós, não dormimos de noite; procuramos agir da melhor maneira;
e qual o resultado? Por um lado, um público ignorante, selvagem. Faculto-lhe as melhores operetas, variedades deslumbrantes, cançonetistas extraordinários; mas merece
o público o nosso esforço? Gosta é de palhaçadas; só

' Nenhum título nos parece mais apropriado do que aquele que adoptámos.
Tchekhov dá à sua heroína uma alcunha feita de um diminuitivo, muito terno e muito cordial, da palavra alma (Ducha), que é Dutchechok. (Existe um outro diminuitivo
ainda mais meigo e suave que é Dussia.) Se o leitor está interessado em saber, o título deste conto significa lioa-Alma, Querida-Alma, pequena-Alma, Pequeno-Coração,
Querida, encantadora, Perfeita,... e explicado isto ficará ao par do "exacto valor" do título de Tchekhov (N. do T.).
' Diminuitivo de Olga. De seu nome completo, Olennka chama-se como vamos ver, Olga Semionovna (N. do T.).

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aprecia coisas banais. Por outro lado, olhe para o tempo. Chove quase diariamente. Começou a chover a nove de Maio, continuando durante todo o mês e em Junho a mesma
coisa; é simplesmente aterrador. O público não comparece, mas sou obrigado a pagar a renda e os artistas.
Ao fim da tarde do dia seguinte, as nuvens voltaram a aparecer. Kukine exclamou com um riso histérico:
- Bem! Acabou-se! Que o jardim seja todo inundado e eu com ele! Que não tenha sorte nenhuma, nem nesta vida nem na outra! Que os artistas me arrastem perante a justiça!
E depois... que me condenem a trabalhos forçados na Sibéria, a morrer no cadafalso! Ah, ah, ha,...
No dia seguinte repetiu-se a mesma coisa. Olennka escutava Kukine sem pronunciar palavra, com ar sério, vindo-lhe às vezes as lágrimas aos olhos. Com o decorrer
do tempo, as infelicidades de Kukine comoveram-na; começou a gostar dele.
Kukine era um homem de pequena estatura, magro, tez, amarelenta, as fontes lisas. Falava com voz de falsete, retorcendo a boca. Tinha sempre uma expressão desesperada;
mas, apesar de tudo, despertou nela um sentimento verdadeiro, profundo.
Olennka estava permanentemente apaixonada por alguém e não podia passar sem isso. Gostara primeiro do pai, agora doente, que vivia sentado numa cadeira, num quarto
sombrio, respirando com dificuldade. Gostava da tia, que, lá de longe em longe, de dois em dois anos, vinha de Briannsk. E muito antes, quando ainda frequentava
o liceu, apaixonara-se pelo professor de Francês.
Olennka era uma jovem recatada, boa, caridosa, com um olhar doce e terno, muito saudável. Ao verem a sua face redonda e rosada, o pescoço macio e branco com um sinal
preto, o bom e ingénuo sorriso que transparecia no seu rosto quando lhe diziam qualquer coisa agradável, os homens pensavam: "Sim, não está mal..." E também eles
sorriam.
E quando ela falava, as senhoras, não podendo conter-se, agarravam-lhe impulsivamente a mão, dizendo com satisfação:
- Dô-Doce.
A casa em que vivia desde que nascera, e que o pai lhe legava em testamento, estava situada no extremo da cidade, no Bairro dos Ciganos, perto de Tivoli. Olga ouvia,
noite e dia, a música a tocar, os foguetes a estalar, tendo a impressão de que era Kukine a lutar

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contra o destino e a conquistar de surpresa o seu principal inimigo, o público indiferente.
O coração de Olennka palpitava suavemente; deixava-se ficar acordada e, quando Kukine voltava para casa de madrugada, ela batia docemente à janela do seu quarto,
não lhe deixando entrever, através das cortinas, mais do que o seu rosto e um ombro; e sorria-lhe ternamente...
Kukine fez o seu pedido, e casaram. E quando pôde contemplar á vontade o seu pescoço e os seus ombros sadios e gordos, abriu os braços com alegria, exclamando: Dô-Doce!
Sentia-se feliz; mas como no dia do seu casamento e durante toda a noite não parou de chover, a expressão de desespero não o abandonou.
Depois do casamento viviam bem. Olennka ocupava-se da caixa, tratava do jardim, registava as despesas, pagava os ordenados; e a sua face rosada, o seu sorriso encantador,
ingénuo, radioso, aparecia e desaparecia, ora no postigo da caixa, ora nos bastidores ou no restaurante.
Afirmava aos seus conhecidos não haver no mundo nada mais importante, mais sério e mais indispensável do que o teatro, e não ser possível sentir verdadeiro prazer
e ser-se humano senão através do teatro.
- Mas o público compreende? - perguntava ela. - O que ele gosta é de palhaçadas. Ontem demos o Pequeno Fausto e quase todos os camarotes estavam vazios; se Vanitchka1
e eu tivéssemos representado uma coisa banal o teatro estaria, acreditem-me, superlotado. Amanhã representamos, Vanitchka e eu, Orfeu nos Infernos; venham!
Olennka repetia tudo o que o marido dizia acerca do teatro e dos actores. Como ele, desprezava o público pela sua indiferença quanto à arte, e pela sua ignorância.
Durante os ensaios intervinha e corrigia os actores, vigiava os músicos e, quando no jornal local diziam mal do teatro, chorava e ia pedir explicações à redacção.
Os artistas gostavam dela. Chamavam-lhe "Vanitchka e eu" e "Dô-Doce". Olennka tinha pena deles, adiantava-lhes dinheiro e, se

' Diminutivo do Vânia (Ivan) (N. do T.).

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acontecia enganarem-na, chorava às escondidas, sem se queixar ao marido.
O Inverno também correu bem. Arrendaram o teatro da cidade, subalugando-o para digressões, uma vez a uma companhia prussiana, outra vez a um prestidigitador, ou
ainda aos amadores da cidade.
Olennka engordara e resplandecia de alegria. Kukine emagrecia, empalidecia, queixava-se de prejuízos enormes, se bem que os negócios não tivessem corrido mal durante
todo o Inverno. Tossia durante a noite, e ela fazia-lhe tomar infusões de framboesa e tília. Esfregava-o com água-de-colónia e embrulhava-o em xailes macios.
- Como és gentil - dizia-lhe, sinceramente, afagando-lhe os cabelos. - Como és bonito!
Durante a grande Quaresma, Kukine foi a Moscovo a fim de contratar uma companhia, e na sua ausência Olennka, não conseguindo conciliar o sono, ficava sentada à janela
contemplando as estrelas. E comparava-se às galinhas, que também não dormem de noite e se sentem inquietas quando não há um galo na capoeira.
Kukine, retido em Moscovo, escrevia que voltaria na Páscoa, dando as suas instruções para Tivoli. Mas, na noite de Domingo de Ramos, muito tarde, pancadas sinistras
ecoaram na porta da rua, batiam na pequena porta como num barril: Bum, bum, bum.
A cozinheira acordou e patinhando descalça nas poças de água, correu a abrir.
- Faça o favor de abrir - proferiu alguém atrás da porta, em voz cava. - Um telegrama!
Olennka recebera mais vezes telegramas do marido, mas desta vez, Deus sabe porquê, sentiu-se terrivelmente inquieta. Abriu com mão trémula e leu o que se segue:
"Ivan Petrovich, morto subitamente hoje, esperamos ordens, enterro segunda-feira."
No telegrama vinha escrito interro, e mais uma outra palavra incompreensível. O signatário era o director da companhia de operetas.
- Meu amor - soluçava Olennka. - Meu querido Vanitchka, meu amor. Porque te encontrei? Porque te conheci e amei? A quem deixas a tua pobre Olennka, essa pobre infeliz?...
Enterraram Kukine, na terça-feira, em Moscovo, no cemitério de Vagannkovo. Olennka voltou para casa no dia seguinte, e logo que

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chegou atirou-se para cima da cama e principiou a soluçar tão alto que a ouviam na rua e nos pátios vizinhos.
- Dô-Doce - diziam as vizinhas benzendo-se. - É aquela boa alma de Olga Semionovna; pobrezinha, como ela sofre!
Três meses depois, Olennka regressava um dia da missa, triste, de luto pesado,. Por coincidência, um dos seus vizinhos, Vassili Andreievitch Pustovalov, gerente
numa serração de madeiras do comerciante Babakaiev, que também regressava da missa, acompanhou-a pelo caminho.
Usava chapéu de palha, colete branco com uma corrente de ouro, parecendo mais um proprietário do que um comerciante.
- Tudo tem o seu tempo, Olga Semionovna - declarou pausadamente a Olennka, em tom de condolência. - Quando um dos nossos morre, cumpre-se a vontade de Deus, é necessário
encará-lo assim e aguentar o golpe com submissão.
Depois de acompanhar Olennka até à pequena porta despediu-se e continuou o seu caminho. Durante todo esse dia a sua voz profunda ecoou aos ouvidos de Dô-Doce, e
mal ela fechava os olhos, via a sua barba castanha; agradara-lhe muito.
E, segundo parece, Olennka também o impressionara, porque algum tempo depois uma senhora que mal conhecia veio tomar café em sua casa, e assim que se sentou principiou
a falar de Pustovalov, um homem de bem, sério, que qualquer mulher gostaria de desposar.
Três dias depois, veio o próprio Pustovalov visitá-la. Não esteve muito tempo - dez minutos -, falou pouco, mas Olennka começou a gostar dele.
E gostou tanto, que não conseguiu dormir nessa noite, escaldando como se tivesse febre.
Pela manhã mandou chamar a velha senhora. Em breve foi anunciado o noivado, seguindo-se a boda.
Pustovalov e Olennka viveram bem depois de casados. Pustovalov ficava na serração de madeira até à hora de jantar, em seguida vinha Olennka substituí-lo e ficava
até à noite no escritório passando facturas e entregando a mercadoria.
- A madeira - dizia ela aos compradores e aos seus conhecidos - vai aumentar anualmente vinte por cento. Ora vejam: antes vendíamos madeira daqui; agora, Vassitchka
tem que ir comprá-la ao governo de Moguiliov. E que despesas de

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transportes - dizia aterrada, tapando a cara com as mãos. - Que tarifas!
Parecia-lhe que há muito tempo se dedicava ao comércio de madeira e que, na vida, a coisa mais importante e mais necessária era a madeira. Encontrava qualquer coisa
de familiar nas palavras: trave, toro, tábua, prancha, tabuinha, costaneira.
Durante a noite, sonhava com montanhas de tábuas e tabuinhas. Filas intermináveis de carroças transportavam a madeira para longe da cidade. Olennka imaginava um
regimento completo de achas de doze, de cinco archinas1, de pé, declarando guerra à serração de madeiras. Via as achas, as traves lutando entre si, produzindo um
som surdo de madeira seca. Caíam, levantavam-se, empilhavam-se umas em cima das outras. Olennka dava um grito, e Pustovalov dizia-lhe ternamente:
- Olennka, que tens, minha querida? Benze-te.
As ideias do marido eram as suas. Se Pustovalov achava que estava calor no quarto ou que os negócios não progrediam, ela tinha a mesma opinião. O marido não gostava
de nenhum divertimento e não saía nunca nos dias de festa; ela também não.
- Vocês estão sempre em casa ou no escritório - diziam-lhe os amigos. - Deviam ir ao teatro, Dô-Doce, ou ao circo.
- Não temos tempo, nem Vassitchka nem eu, para andarmos pelos teatros - respondia Olennka pausadamente. - Somos pessoas de trabalho, não temos tempo para futilidades.
Para que servem todos esses teatros?
Aos sábados, Pustovalov e ela assistiam às matinas; nos dias de festa iam à primeira missa, e no regresso da igreja caminhavam lado a lado,, ternamente, ambos perfumados,
acompanhados pelo rumorejar agradável do vestido de seda de Olennka. Em casa, tomavam chá e comiam pãezinhos de leite com as mais variadas compotas; a seguir, comiam
brioches. Todos os dias, à sua porta, no pátio e mesmo lá fora, cheirava à boa sopa de beterraba, e carneiro ou pato assado. E em dias de abstinência, cheirava tão
bem a peixe que não se podia passar à frente da sua casa sem sentir vontade de comer. No escritório, o samovar estava sempre a ferver e ofereciam aos compradores
chá e biscoitos.

' l Medida linear usada na Rússia (N. do T.).

+96

Uma vez por semana, marido e mulher iam à estufa e voltavam lado a lado, ambos queimados do sol.
- Não nos podemos queixar, vivemos bem, graças a Deus - dizia Olennka aos seus conhecidos. - Que Deus permita a todos viverem como vivem Vassitchka e eu.
Quando Pustovalov ia ao governo de Moguiliov comprar madeira, Olennka aborrecia-se muito. Não dormia de noite e chorava. O veterinário militar, Smirnine, um jovem
que vivia no pavilhão de sua casa, vinha às vezes, à noite, visitá-la.
Conversava ou jogava com ela às cartas, distraindo-a. E principalmente as histórias familiares de Smirnine eram muito interessantes. Era casado e tinha um filho,
mas vivia separado da mulher, que o enganara. Agora, detestava-a e enviava-lhe quarenta rublos por mês, para manter o filho.
Ao ouvir isto Olennka suspirava, abanava a cabeça, e compadecia-se dele.
- Vamos, que Deus o acompanhe! - dizia-lhe conduzindo-o com uma vela acesa, até à escada. - Obrigada por ter vindo aborrecer-se comigo. Que Deus e a Rainha dos Céus
o protejam!
Exprimia-se sempre pausadamente, sensatamente, imitando o marido.
Quando o veterinário estava já à porta da rua, gritava-lhe:
- Sabe, Vladimir Plantonytch, devia reconciliar-se com a sua mulher. Devia perdoar-lhe, quanto mais não fosse pelo seu filho... O pequeno, com certeza, compreende
tudo.
E, quando Pustovalov chegava, falava-lhe a meia voz do veterinário e da sua infeliz vida de família. Ambos suspiravam, abanavam a cabeça e conversavam sobre o rapazinho
que sentia, sem dúvida, saudades do pai.
Em seguida, por uma estranha sequência de ideias, ajoelhavam-se ambos diante dos ícones, prostravam-se e rezavam a Deus para que lhes enviasse filhos.
Os Pustovalov viveram assim seis anos, calmos e tranquilos, num clima de amor e perfeito entendimento. Mas, de vez em quando, no Inverno, Vassili Andreievitch, depois
de ter tomado chá quente na serração, saía sem boné para entregar madeira. Apanhou frio e caiu à cama, doente; foi tratado pelos melhores médicos, mas o mal venceu-o;
morreu, depois de se ter arrastado durante quatro meses; e Olennka enviuvou novamente.

97

- A quem me deixas, meu querido! - soluçava ela, depois do enterro. - Como posso continuar a viver sem ti, infeliz e desafortunada que sou? Boa gente, tenham pena
de mim, uma autêntica órfã!
Usava vestido preto com crepes, tendo renunciado definitivamente a pôr chapéus e luvas. Saía raramente e apenas para ir à igreja ou visitar a campa do marido; levava
uma vida de freira.
Só ao fim de seis meses tirou os crepes e principiou a abrir as persianas. Começou a aparecer na praça com a cozinheira; mas que vida levava, que se passava em sua
casa? Apenas se podia imaginar.
Podiam tirar-se conclusões, porque, por exemplo, fora vista, tomando chá no seu pequeno jardim, com o veterinário, que lhe lia o jornal, ou ainda porque tendo encontrado
à porta um dos seus conhecidos, Olennka lhe dissera:
- Não existe em toda a cidade uma assistência veterinária permanente, por isso há tantos casos de doença. Ouve-se, constantemente, dizer que o leite provocou doenças
em algumas pessoas ou que contraíram esta ou aquela doença das vacas ou cavalos. Em suma, era necessário cuidar tanto da saúde dos animais domésticos como das pessoas.
Olennka repetia as ideias do veterinário e estava de acordo com ele em tudo. Era evidente que não podia viver, nem sequer um ano, sem uma afeição, e que encontrara
a felicidade à sua própria porta, no pavilhão.
Qualquer outra mulher teria sido criticada, mas ninguém podia pensar mal de Olennka: tudo na sua vida era fácil de compreender. Nem ela nem o veterinário se referiam
à mudança ocorrida nas suas relações procurando escondê-la; no entanto, isso não deu resultado, porque Olennka era incapaz de guardar um segredo.
Quando os camaradas de Smirnine, no regimento, o vinham visitar, Olennka, enquanto lhes servia o chá ou a ceia, dissertava sobre a peste e a tísica dos bovinos nos
matadouros municipais; e Smirnine ficava muito perturbado. Depois das visitas saírem, agarrava Olennka pela mão e dizia-lhe encolerizado, em voz áspera:.
- Já te pedi para não falares daquilo que não compreendes. Quando conversamos entre veterinários, peço-te que não te intrometas. Que maçada!

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De que devo então falar, Voloditchka!?
E beijava-o de lágrimas nos olhos, suplicando-lhe que não se zangasse.
E ambos eram felizes.
No entanto aquela felicidade não durou muito tempo. O veterinário partiu com o seu regimento e partiu sem ideia de voltar, porque o regimento fora transferido para
muito longe, quase para a Sibéria, e Olennka ficou só.
Estava agora completamente só. O pai morrera havia muito tempo e a sua cadeira jazia no sótão, abandonada, coberta de pó, com um pé partido. Olennka emagreceu, tornou-se
mais feia e aqueles que a encontravam já não a olhavam como noutros tempos, nem lhe sorriam. Era evidente que os melhores anos da sua vida haviam passado, tinham
ficado para trás. Começava agora uma vida nova, desconhecida, em que mais valia não pensar.
À noite, Olennka permanecia na soleira da porta, ouvindo tocar a música em Tivoli e estalar os foguetes; mas isso não despertava nela nenhum interesse.
Indiferente, olhava o pátio deserto, não pensava em nada e, quando chegava a noite, ia-se deitar e via em sonhos o seu pátio vazio. Bebia e comia por obrigação.
Mas principalmente, e isto era o pior, não tinha nenhuma opinião... Via objectos à sua volta, compreendia tudo o que se passava, mas não tinha opinião sobre nada,
não sabia de que falar.
E como é horrível não ter opinião! Vé-se, por exemplo, uma garrafa de pé, a chuva a cair, um mujique passar numa carroça; mas qual o sentido de tudo isso? Impossível
de o dizer, mesmo se lhe oferecessem mil rublos. Com Kukine, com Pustovalov, e depois com o veterinário, Olennka podia explicar tudo; teria dado a sua opinião sobre
fosse o que fosse. Presentemente, no íntimo dos seus pensamentos e da sua alma, havia o mesmo vazio que no pátio.
E era angustiante e amargo como se tivesse tomado absinto.
Pouco a pouco a cidade aumentava de todos os lados; o bairro cigano chamava-se agora Rua dos Ciganos; e onde fora o Jardim de Tivoli e as serrações de madeira construíram-se
casas, abriram-se ruas. Como o tempo passa! A casa de Olennka escurecera; o tecto

1 Diminutivo terno de Volodia (Vladimir), como os do género de Vanitchka,
Vassitchku (N. do T.).

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enferrujara, o alpendre abatera. O pátio estava todo coberto de ervas e urtigas. Olennka envelhecera, fizera-se feia.
No Verão ficava na soleira da porta e a sua alma, como antes, sentia-se triste, vazia, com um vago travo a absinto. E no Inverno permanecia junto da janela olhando
a neve.
Logo que pressentia a Primavera, que o vento lhe trazia o som dos sinos da catedral, invadiam-na subitamente as recordações do passado. Sentia o coração contrair-se
de prazer e lágrimas abundantes corriam dos seus olhos. Mas durava apenas um minuto. E era outra vez o vazio e o desconhecimento da razão por que vivemos.
A gata negra Bryska encostava-se a ela meigamente, fazendo ronrom, mas as suas carícias não comoviam Olennka. De que lhe serviam? Precisava de um amor que invadisse
todo o seu ser, toda a sua alma, todo o seu espírito, que lhe desse ideias, opiniões, uma linha de conduta, e que aquecesse o seu sangue envelhecido. E enxotava
Bryska de entre as pregas do vestido, dizendo-lhe, impaciente:
- Vai-te embora, vai-te embora!... Não precisas ficar aqui.
E isto, dia após dia, ano após ano. Nem uma alegria, nem uma opinião. O que dizia Mavra, a cozinheira, estava certo.
Num dia quente de Julho, ao cair da tarde, no momento em que passava pela rua a manada de vacas dos habitantes e que o pátio inteiro estava cheio de nuvens de pó,
alguém bateu, de repente, à pequena porta. Olennka foi ela própria abrir e, quando olhou, ficou estupefacta.
Diante da porta estava o veterinário Smirnine, cabelos já grisalhos, vestido à paisana. Olennka, recordando de súbito todo o passado, não pôde conter-se, e, rompendo
em pranto, apoiou a cabeça ao peito de Smirnine sem pronunciar uma palavra, não se apercebendo, na sua profunda emoção, como a seguir entraram em casa e se sentaram
a tomar chá.
- Meu querido - balbuciava ela, tremendo de alegria - Vladimir Plantonytch, de que país vos envia Deus?
- Quero instalar-me definitivamente aqui - explicou Smirnine. - Pedi a minha demissão e venho tentar a sorte na vida privada; quero deixar de levar uma vida de nómada.
É altura, aliás, de inscrever o meu filho no liceu. Já está crescido. Imagine que me reconciliei com minha mulher.
- E onde está ela? - perguntou Olennka.

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- No hotel com o meu filho; estou à procura de um apartamento.
- Meu Deus, Pai santo, mas ofereço-lhe a minha casa, em que é que não é um apartamento? Ah, meu Deus - perturbou-se Olennka, recomeçando a chorar -, mas não lhe
cobrarei nada! Fiquem aqui; para mim o pavilhão é suficiente: que alegria, Senhor!
No dia seguinte, já andavam a pintar o tecto da casa, a caiar as paredes e Olennka, de mãos nas ancas, ia e vinha, no pátio, dando ordens. O mesmo sorriso doutros
tempos iluminava o seu rosto. Revivia, voltara a ter frescura, como se tivesse acordado depois de um longo sono.
Por fim chegou a mulher do veterinário - uma senhora magra, feia, de cabelos curtos e expressão caprichosa -, e com ela um rapazinho, Sacha, pequeno para a idade
(já tinha nove anos), gordo, olhos azuis-claros e duas covinhas na face. Logo que o pequeno chegou ao pátio, correu para a gata, ouvindo-se o seu riso radioso.
Tiazinha - perguntou a Olennka -, a gata é sua? Quando ela tiver gatinhes, ofereça-nos um, a minha mãe tem medo dos ratos.
Olennka conversou com ele, deu-lhe chá e, de repente, sentiu uma sensação de calor e o coração palpitar-lhe docemente no peito, como se aquele pequeno fosse seu
filho.
E quando à noite ele estudava as lições, sentado na casa de jantar, Olennka olhava-o com ternura e compaixão, murmurando:
Meu querido, meu lindo tesouro... Meu filho, como és bonito! Que pele tão branca! Como és inteligente!
-- Dá-se o nome de ilha - soletrava ele - a um espaço de terra rodeado de água por todos os lados.
Dá-se o nome de ilha... - repetia ela.
E foi esta a primeira opinião que emitiu com convicção depois de tantos anos de silêncio e vazio nos seus pensamentos.
Já tinha outra vez opiniões, comunicando aos pais de Sacha durante a ceia como se tornara difícil para as crianças seguir o curso dos liceus; mas, no entanto, a
instrução clássica é bem melhor do que o ensino moderno, porque o liceu dá acesso a todas as carreiras. Podem vir a ser o que quiserem, doutores, engenheiros,...
Sacha começou a frequentar o liceu. A mãe foi para Kharkov, para casa da irmã, e não voltou. O pai partia todos os dias em viagem para examinar os animais e, às
vezes, ficava três dias sem voltar a casa.

101

E Olennka convenceu-se de que tinham abandonado completamente Sacha, que ninguém se importava com ele e que o deixavam morrer de fome. Levou-o consigo, para o pavilhão,
e instalou-o num pequeno quarto.
- Sachennka1 disse-lhe tristemente -, levanta-te, meu filho,! São horas de ir para o liceu.
Sacha levanta-se; veste-se, diz as suas orações, e senta-se para tomar o seu chá. Bebe três taças, come três grandes sequilhos e metade de um pão francês barrado
com manteiga. Ainda não está completamente acordado, por isso não se sente de muito bom humor.
- Não aprendeste bem a tua fábula, Sachennka - diz Olennka, olhando-o como se ele fosse partir para uma longa viagem. - Estou preocupada contigo. Esforça-te por
aprender, meu filho... Dá atenção aos teus professores!
- Ah! Não se preocupe, minha tia, peço-lhe! - diz Sacha.
Em seguida dirige-se para o liceu, minúsculo, com um grande boné e saco às costas. Olennka segue-o em silêncio.
- Saohennka - grita.
Sacha volta-se e Olennka mete-lhe na mão uma tâmara ou um bombom. Ao chegarem à rua do liceu, Sacha tem vergonha de ser seguido por uma mulher gorda e alta. Vira-se
e diz-lhe:
- Volte para casa, tia, agora já posso ir sozinho.
Olennka pára e olha, sem o perder de vista, até o ver entrar a porta do liceu.
Ah! Como gosta dele! De todas as suas afeições passadas, nenhuma fora tão profunda. Nunca antes o seu coração se submetera tão completamente, sem o mínimo pensamento
preconcebido, e com tanta alegria, como neste momento em que o sentimento maternal arde nela cada vez mais.
Por aquele rapazinho desconhecido, pelas covinhas do seu rosto, pelo seu boné, Olennka daria toda a sua vida; dá-la-ia com alegria, com lágrimas de emoção. Porquê?
Ah! Quem sabe porquê?
Depois de deixar a criança na escola, voltou serenamente para casa, tão contente, tão tranquila, tão cheia de amor. O seu rosto, mais jovem nestes últimos seis meses,
sorri e alegra-se. As pessoas que a encontram sentem prazer em vê-la; dizem-lhe:

' Diminutivo de Sacha (N. do T.).

102

- Bom dia, querida Olga Semionovna. Como tem passado, Dô-Doce?
Tornou-se muito difícil o curso dos liceus - explica Olennka na praça. - Não é nenhuma brincadeira,. Ontem, no segundo ano, passaram uma fábula para decorar, uma
tradução de latim e um problema... Como pode uma criança sair-se bem?
E principia a falar dos professores, das lições, dos livros escolares, tudo quanto ouve Sacha dizer.
Às três horas, jantam juntos. À noite, Olennka ajuda-lhe a fazer os exercícios e choram os dois. Quando o vai deitar faz sobre ele longos sinais da cruz e murmura
uma oração. A seguir, mete-se na cama e sonha com um futuro longínquo e incerto, quando Sacha, depois de terminar os estudos, for médico ou engenheiro, quando tiver
uma grande casa que seja dele, cavalos, um carro, quando se casar e tiver filhos...
Olennka adormece e pensa sempre nas mesmas coisas, e as lágrimas deslizam dos seus olhos fechados, sobre o seu rosto. A gata preta está deitada a seu lado. Faz ronrom:
rom...rom...rom...
De súbito, ouve-se um estrondo na pequena porta do jardim. Olennka acorda e deixa de respirar, gelada de pavor. O coração bate-lhe desordenadamente. Passado meio
minuto batem novamente.
"É um telegrama de Kharkov - pensa, começando a tremer. - A mãe exige que lhe mandem Sacha a Kharkov... Ah! Meu Deus..."
Sente-se desesperada; esfriam-lhe os pés, as mãos, a cabeça; é impossível que haja alguém mais infeliz do que ela no mundo... Mas passa mais um minuto; ouvem-se
vozes. É o veterinário que regressa do clube.
"Ah! - pensa -, Deus seja louvado!"
A pouco e pouco o peso no seu coração desaparece, sente-se de novo calma e satisfeita. Deita-se e pensa em Sacha. Dorme profundamente no quarto ao lado, dizendo
em sonhos, de vez em quando:
Dou-te uma sova! Deixa-me em paz! Não me batas.

103

UM ASSASSINATO

I

Na estação de Progonaia celebravam-se as vésperas. Perante a grande imagem pintada de cores garridas sobre fundo de ouro, agrupavam-se os empregados dos caminhos
de ferro, com suas mulheres e filhos, e também os lenhadores e serradores que trabalhavam nas imediações, ao longo da linha. Todos se mantinham silenciosos, fascinados
pelo brilho das luzes e pelo ruído da tempestade de neve que, apesar de serem já as vésperas da Anunciação se desencadeara quando já ninguém a esperava. Oficiava
o velho sacerdote de Vedeniapino, e os cânticos estavam a cargo do salmista e de Matvei Terekov.
Matvei resplandecia de felicidade; e desapertara o colarinho, no auge do entusiasmo. Cantava com voz de tenor, recitando no mesmo timbre, impregnado de um vigor
terno. Na altura de "A Voz do Arcanjo", principiou a agitar a mão como um director de orquestra e, esforçando-se por acompanhar a voz de baixo profundo do sacristão,
soltou um complicado trinado. Via-se que isso lhe causava uma satisfação intensa.
Terminadas as vésperas, dispersaram-se todos tranquilamente. Voltaram à penumbra, ao vazio, e àquele silêncio que apenas se nos depara nas estações de caminho de
ferro erguidas em pleno campo, ou nos bosques, quando o vento sopra e não deixa ouvir mais nada e quando se sente o vazio em redor e toda a angústia da vida que
decorre monotonamente.
Matvei vivia perto da estação, na pousada de um seu primo, mas não se sentia com disposição de regressar a casa. Deixara-se ficar com o cantineiro., por detrás do
balcão, conversando a meia voz:

105

- Tínhamos o nosso coro na fábrica de azulejos. E digo-lhe mais: apesar de constituído por simples operários, cantávamos, na verdade, maravilhosamente. Mandavam-nos
com frequência à cidade, e enquanto o vigário Joann oficiava na Igreja da Trindade o coro da diocese cantava à direita e o nosso à esquerda. A única coisa de que
se queixavam na cidade era de prolongarmos muito o canto, e de se tornar demasiado demorado. Bem, é verdade que principiávamos às sete horas o hino de Santo André'
e o hossana, e acabávamos depois das onze; assim, quando chegávamos à fábrica, passava da meia-noite. Que bem se estava lá! - suspirou Matvei. - Pode-se mesmo dizer
muito bem, Serguei Nikanorich. Pelo contrário, aqui, na casa familiar, não existe a mínima alegria. A igreja mais próxima está situada a cinco verstas; com a minha
falta de saúde não me é possível frequentá-la. Não têm cantores. Na nossa família não há sossego: só há barulho, blasfémias e sujidade. Comemos todos na mesma malga,
como os mujiques, e aparecem baratas na sopa... Deus não me dá saúde, Serguei Nikanorich. Se não fosse isso já me tinha ido embora há muito tempo.
Matvei Terekov não era velho. Tinha apenas quarenta e cinco anos, mas a sua expressão doentia, o rosto cheio de rugas, e a barbicha, branca, rala e transparente,
faziam-no aparentar muito mais. Falava com voz débil, cautelosa, e quando tossia levava as mãos ao peito; nesses momentos, notava-se-lhe uma inquietação no olhar,
como as pessoas muito apreensivas. Nunca dizia ao certo onde lhe doía, mas gostava de contar detalhadamente como numa ocasião, ao levantar um pesado caixote, sentira
uma profunda dor, e se lhe formara uma hérnia que o obrigara a abandonar o trabalho na fábrica de azulejos, e recolher a casa. Mas não sabia explicar o que era uma
hérnia.
- Para dizer a verdade não gosto do meu primo - prosseguiu servindo-se de uma chávena de chá. -- É mais velho do que eu, e pode parecer pecado criticá-lo; temo a
Deus nosso Senhor, mas não posso com meu primo. É um homem orgulhoso, muito sisudo, com maus modos; tortura a família e criados; e não vai à igreja. No domingo passado
pedi-lhe com carinho: "Primo, vamos à missa de Pakomovo", e ele replicou: "Não quero; o padre de Pakomovo joga às cartas." E também não veio hoje aqui, porque, segundo
diz, o sacerdote de Vedeniapino fuma e bebe. Não gosta dos padres! Reza ele próprio, em sua casa, a missa, as matinas e as vésperas,

106

servindo-lhe a irmã de sacristão. Começa com o Oremus e ela responde com uma voz muito fina, como uma galinha, "Senhor, tende piedade de nós!...". Um verdadeiro
pecado. Digo-lhe todos os dias: "Olha o que estás a fazer, primo. Arrepende-te", mas não me dá ouvidos.
Serguei Nikanorich, o cantineiro, encheu cinco chávenas de chá e levou-as numa bandeja à sala de espera das senhoras. Mal entrara, ouviu-se um grito:
Que maneiras são estas, focinho de porco? Nem sequer sabes servir?
Era a voz do chefe da estação. Seguiu-se um tímido murmúrio e logo outro grito, mal humorado e duro: Fora daqui!
O cantineiro voltou muito perturbado.
- Noutros tempos eu contentava condes e príncipes - murmurou. - Agora diz que não sei servir chá... Repreendeu-me à frente do sacerdote e das senhoras!
Serguei Nikanorich tivera em tempos muito dinheiro, e fora dono da cantina de uma estação de primeira classe, numa capital de província onde se cruzavam duas linhas
férreas. Nesses tempos usava fraque e relógio de ouro. Mas a vida começou a correr-lhe mal: investiu todos os seus recursos num serviço de luxo; os criados roubavam-no;
e, de mal a pior, passou para outra estação menos importante. Aí fugiu-lhe a mulher levando-lhe todo o dinheiro, e isso obrigou-o a mudar para uma terceira estação
ainda de menos categoria, onde já não se serviam pratos quentes. Depois, foi para uma quarta estação. Mudando com frequência e descendo cada vez mais, chegou a Progonaia,
onde só se vendia chá, vodka barato e, como aperitivo, ovos cozidos e um pastel em que não se conseguia cravar os dentes e que cheirava a breu, e a que ele próprio
chamava, em ar de graça, "pastel musical". Estava completamente calvo, tinha olhos azuis e salientes e usava umas espessas e cómicas patilhas que penteava frequentemente,
olhando-se num pequeno espelho. As recordações do passado perseguiam-no constantemente; não conseguia acostumar-se ao pastel musical, à grossaria do chefe da estação
e, sobretudo, aos mujiques que regateavam os preços, porque, segundo ele, regatear na cantina era tão indecoroso como numa farmácia. Sentia vergonha da sua pobreza
e humilhação, e este sentimento era o ponto dominante da sua vida.

107

- A Primavera, este ano, vem atrasada - disse Matvei, escutando o assobiar do vento. - E tanto melhor. Não gosto da Primavera. Há muita lama, Serguei Nikanorich.
Vem escrito nos livros que quando chega a Primavera cantam os pássaros e o sol aquece. Que tem isso de agradável? O pássaro não é mais do que um pássaro. A mim agrada-me
a boa sociedade; ouvir falar as pessoas, conversar sobre assuntos religiosos ou cantar em coro qualquer música bonita; mas os rouxinóis e as flores, que tenham muita
saúde!
Principiou novamente a falar na fábrica e no coro, mas o ofendido Serguei Nikanorich não havia maneira de se acalmar, e não parava de encolher os ombros e resmungar.
Matvei despediu-se, e dirigiu-se para casa.
Não havia gelo e já escorriam gotas dos telhados, mas a neve caía em farrapos grossos que se enrodilhavam no ar, e as suas nuvens brancas rodopiavam por cima da
via férrea. O carvalhal, que se estendia de ambos os lados dos carris, apenas iluminado pela Lua, que se escondia lá no alto atrás das nuvens, deixava ouvir um sibilar
agudo e prolongado. As árvores infundem medo quando um forte vendaval as açoita! Matvei caminhava pela estrada, ao longo da linha, protegendo a cara e as mãos, e
era empurrado pelo vento. De súbito, apareceu um cavalinho coberto de neve, um trenó resvalou pelas pedras nuas da estrada; e um mujique, com a cabeça tapada e todo
branco, fez estalar o seu chicote. Quando Matvei se voltou para olhar, já o trenó e o mujique tinham desaparecido, como se tudo tivesse sido uma visão, e Matvei
acelerou o passo, com um vago sentimento de medo.
Chegou à passagem de nível e à humilde casinha do guarda. A barreira estava levantada. Junto a ela tinham-se formado verdadeiras montanhas de neve e as estrigas
giravam como bruxas em noite de sábado. Naquele ponto cruzava a linha um velho caminho, importante noutros tempos, e a que continuavam a chamar calçada. Para a direita,
perto da passagem de nível e mesmo à beira da estrada, ficava a taberna de Terekov, que antes fora uma pousada. Ali, à noite, brilhava sempre uma luz. Quando Matvei
chegou, havia, em todos os quartos, inclusivamente no vestíbulo, um intenso cheiro a incenso. Seu primo Yakov Ivanich continuava a celebrar as vésperas. Num canto
do quarto do oratório, onde a cerimónia se realizava, estava uma redoma com velhas imagens, herdadas dos avós, em molduras douradas; e, à direita e à esquerda, havia
imagens

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antigas e modernas, algumas dentro de redomas. Sobre a mesa, coberta com uma toalha que tocava o chão, estavam dispostas uma imagem da Anunciação, uma cruz de cipreste
e um incensório. Ardiam as velas de cera. Junto da mesa havia uma estante. Ao passar pelo quarto do oratório, Matvei parou e assomou a cabeça. Yakov Ivanich estava
a ler junto da estante. Acompanhava-o nas orações sua irmã Aglaia, uma velha alta e magra, vestida de azul, com um lenço branco na cabeça. Estava também Dashutka,
a filha de Yakov Ivanich, jovem de dezoito anos, feia e sardenta, que andava sempre descalça e com o mesmo vestido que usava quando, de tarde, dava de beber ao gado.
- Glória a ti, que nos mostraste o caminho da luz! - entoava Yakov Ivanich em voz cantante, fazendo uma profunda reverência.
Aglaia, com o queixo apoiado nas mãos, acompanhou o cântico com uma voz fina e gritante. Em cima, do tecto, ressoavam também umas vozes confusas que ameaçavam ou
anunciavam qualquer coisa aziaga. No segundo andar, como resultado de um incêndio que deflagrara há muito tempo, não vivia ninguém; as janelas estavam pregadas;
e o chão, entre as traves, estava coalhado de garrafas vazias. Agora, soprava ali o vento e parecia ouvir-se alguém correr, tropeçando nas traves.
Metade do primeiro andar era destinada à taberna; a outra metade era ocupada pela família Terekov: de modo que, quando na taberna altercavam os viajantes embriagados,
ouviam-se nos quartos todas as palavras. Matvei ocupava um quarto junto à cozinha; nele havia um grande forno em que noutros tempos, quando aquilo era pousada, coziam
pão todos os dias. No mesmo quarto, atrás do forno, dormia Dashutka, que não tinha quarto só para si. Todas as noites cantavam os grilos e ouvia-se o barulho das
ratazanas.
Matvei acendeu uma vela e pôs-se a ler um livro que lhe emprestara o guarda da estação. Entretanto, tinham terminado as rezas, tendo-se ido todos deitar. O mesmo
fez Dashutka, que principiou a ressonar acto contínuo, acordando logo a seguir, para dizer bocejando:
- Não devias ter a vela acesa sem necessidade, tio Matvei.
- A vela é minha - replicou ele. - Comprei-a com o meu dinheiro.
Dashutka deu umas voltas na cama e não tardou a adormecer novamente. Matvei continuou a ler ainda um bocado porque não

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tinha sono e, quando terminou a última página, tirou um lápis do baú e escreveu na primeira: "Eu, Matvei Terekov, li este livro e acho que é dos melhores que tenho
lido, pelo que expresso a minha gratidão a Kuzma Nikolaievich Zhukov, suboficial da guarda da Direcção dos Caminhos de Ferro, proprietário deste livro precioso."
Significava para ele um dever de cortesia fazer tais anotações nos livros que lhe emprestavam.

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II

No dia de Nossa Senhora da Assunção, depois da partida do comboio correio, Matvei tomava chá com limão na cantina, conversando animadamente.
Escutavam-no o cantineiro e o guarda Zhukov.
Devo dizer-lhes - explicava Matvei - que me senti atraído pela religião, desde muito pequeno. Aos doze anos já lia a epístola na igreja, coisa que dava grande alegria
a meus pais, fazendo todos os anos uma peregrinação com minha defunta mãe. Enquanto os outros cantavam ou apanhavam caranguejos, eu costumava ficar com ela. Os mais
velhos animavam-me, sentindo eu próprio prazer em observar tão bom comportamento. E, sempre que minha mãe me mandava à fábrica, fora das horas de trabalho, era eu
o tenor do nosso coro, e não havia para mim maior alegria. Não é preciso dizer que não bebia nem fumava e que tomava banho frequentemente, e esta vida, conforme
se sabe, não agrada ao inimigo do género humano. O maldito quis perder-me e tratou de obscurecer o meu entendimento, como faz agora com o meu primo. Primeiro que
tudo, fiz voto de observar vigília às segundas-feiras e nunca comer carne. Com o decorrer do tempo, principiei a ser dominado por toda a espécie de fantasias. Na
primeira semana da Quaresma, até sábado, conforme ordenaram os santos padres, não se pode comer nada quente, ainda que as pessoas que trabalham e os débeis possam
tomar chá; mas eu não tocava em nada até mesmo ao domingo e depois, durante toda a Quaresma, não comia manteiga, e às quartas e sextas fazia jejum integral. Fazia
o mesmo nas vigílias menores. Na quaresma de S. Pedro, o pessoal da fábrica costumava tomar sopa de couve com esturjão, mas eu, procurando não ser visto, mastigava
um pedaço de

111

pão seco. Cada um tem a sua força, já se sabe, mas eu falo de mim: nos dias de vigília, não me custava nada jejuar, e quanto maior era o meu zelo mais feliz me sentia.
Apenas sentia fome, nos primeiros dias do jejum, mas depois acostumava-me, sentindo-me cada vez melhor, e ao fim de uma semana encontrava-me perfeitamente bem. As
minhas pernas estavam tão ligeiras que mais me parecia viver nas nuvens do que na Terra. Além do mais, impunha-me toda a espécie de obrigações: levantava-me de noite
para fazer reverências, arrastava pesadas pedras de um lugar para o outro, andava descalço na neve e, claro está, usava cilício. Mas, ao fim de algum tempo, quando
me ia confessar, pensei: "Este padre é casado, come carne e fuma. Como poderei confessar-me? Que poder tem para me absolver, se é mais pecador do que eu? Eu chego
a privar-me da manteiga e ele possivelmente come esturjão." Fui a outro padre, e este, por coincidência, era gordo, usava uma sotaina de seda, que fazia um ruído
semelhante às saias das senhoras e cheirava igualmente a tabaco. Fui praticar os meus jejuns para um convento, mas ali o meu coração não se sentia tranquilo; tinha
a sensação de que os monges não observavam as regras. Depois disto não havia nenhum serviço religioso que me satisfizesse: num sítio a missa acabava demasiado cedo;
noutro, não tinham cantado como deviam; num terceiro, o sacristão era fanhoso... Havia ocasiões, e que o Senhor perdoe este pecador, em que o meu coração estremecia
de raiva em pleno templo. Que oração era aquela? Achava que as pessoas não se benziam nem escutavam como era devido; em qualquer lado para que me voltasse, eram
bêbados, glutões, fumadores, libertinos, jogadores. Eu era o único que cumpria os mandamentos. O espírito maligno não dormia e, com o decorrer do tempo, agravava
aquele estado de coisas. Deixei de cantar no coro e de frequentar a igreja. Julgava-me um justo, e ao verificar a imperfeição da Igreja, desgostei-me; ou seja, à
semelhança do anjo caído, tornei-me soberbo no mais alto grau.
"Depois disto quis ter uma igreja só para mim. Aluguei a uma mulher surda um pequeno quarto, nos arredores, perto do cemitério, e converti-o num oratório no género
daquele do meu primo, ainda que no meu houvesse candelabros e um verdadeiro incensário. Neste oratório praticava as regras do santo monte de Atos; ou seja, as matinas
principiavam, diariamente, à meia-noite e nas festas mais solenes a missa durava dez e até mesmo doze horas. Os frades,

112

segundo as regras, permanecem sentados durante a leitura do Evangelho, mas eu, para me tornar mais agradável a Deus, costumava lê-lo de joelhos. Lia e cantava durante
largo tempo, com lágrimas nos olhos e suspirando, erguendo os braços, e assim que terminava a oração ia para a fábrica, sem dormir, e não parava de rezar durante
o trabalho. Por fim, principiou a correr um rumor pela cidade: Matvei é santo, Matvei cura os doentes e os loucos. Claro que não curara ninguém, mas é sabido que
quando aparece um cisma ou uma falsa doutrina, as mulheres nunca mais nos largam. Acodem como moscas ao mel. Principiaram a perseguir-me casadas e solteironas de
todas as espécies: faziam-me vénias, beijavam-me as mãos e afirmavam que eu era um santo. Uma delas chegou a ver-me com a cabeça aureolada. O oratório estava a tornar-se
pequeno, pelo que aluguei um quarto mais espaçoso, que se transformou numa verdadeira torre de Babel. O diabo apoderou-se de mim definitivamente e tapou a luz dos
meus olhos com a sua peçonha repugnante. Parecíamos todos possessos, Eu lia, e as casadas e solteironas cantavam, e assim, sem comer nem beber, permanecíamos de
pé dias inteiros. As mulheres principiavam de repente a tremer como se tivessem febre, e punham-se a gritar umas atrás das outras. Até metia medo! Eu também tremia
como um judeu no caldeirão. Nem eu próprio sei a razão, mas as minhas pernas começavam a agitar-se. Era prodigioso: saltava, gesticulando, mesmo contra a minha vontade.
A seguir vinham os gritos e a berraria, dançávamos, e corríamos uns atrás dos outros até cairmos exaustos. Assim, num momento de absurda loucura, caí no pecado da
luxúria. O guarda deu uma gargalhada, mas ao reparar que ninguém o seguia tornou-se sério, dizendo:
Isso chama-se "molokanismo". Já li algures que no Cáucaso todos o praticavam.
Mas não me fulminou um raio - prosseguiu Matvei, fazendo o sinal da cruz diante da imagem e murmurando uma oração. - Decerto intercedeu por mim, no outro mundo,
a minha defunta mãe. Quando na cidade já me consideravam santo, e mesmo senhoras e senhores me procuravam secretamente em busca de consolo, fui despedir-me do nosso
amo, Osip Varlamich. Era dia de perdão. Osip Varlamich aferrolhou a porta e ficámos os dois sós. Principiou a fazer-me um sermão. Devo dizer que Osip Varlamich era
um homem sem estudos, mas com muitos conhecimentos; todos o respeitavam e temiam, porque era rigoroso e trabalhador, e levava
uma vida exemplar. Foi durante vinte anos presidente do Município, desempenhando muito bem o seu lugar: empedrou a Rua Novo-Moskovskaia e mandou pintar a catedral
e as colunas, de cor de malaquita. Pois bem, fechou a porta e principiou: "Já há tempo que queria falar contigo, filho, de umas coisas e doutras... Julgas-te santo?
Nada disso, és um apóstata, um malvado herege...", e assim por diante.... Não sou capaz de reproduzir o bem que falou, com que talento, como se estivesse escrito,
a ponto de me comover. Falou durante duas horas. As suas palavras tocaram-me o coração, abriram-me os olhos. Acabei por romper num pranto. "Sê - disse-me - uma pessoa
como as demais: come, bebe, veste-te e reza como toda a gente; tudo o resto vem do diabo. O teu silício é coisa do demónio, assim como os teus jejuns e o teu oratório.
Tudo isso provém do teu orgulho."
"No dia seguinte, que era a primeira segunda-feira da Quaresma, Deus quis que caísse doente. Apareceu-me uma hérnia ao levantar um peso e levaram-me para o hospital.
Passei por grandes tormentos e chorei amargamente, sem parar de tremer. Pensava que do hospital ia parar ao Inferno, porque na realidade estive a ponto de morrer.
Padeci seis meses no leito de dor, e quando tive alta a primeira coisa que fiz foi acabar com os jejuns e senti-me pessoa outra vez. Quando se despediu, Osip Varlamich
insistiu: "Lembra-te, Matvei, que tudo aquilo que sai do normal vem do diabo." E agora como, bebo e rezo como toda a gente... Se, por exemplo, o pope cheira a tabaco
ou a vodka, não ouso censurá-lo, porque ele é um homem como qualquer outro. E logo que se diz que na cidade ou numa aldeia apareceu um santo que passa semanas sem
comer e impõe as suas regras, compreendo de quem tudo isso é obra. É esta, meus senhores, a história da minha vida. Agora, eu, como fez Osip Varlamich, trato de
convencer os meus primos, mas a minha voz clama no deserto. Deus não me concedeu esse dom.
O relato de Matvei não pareceu produzir qualquer efeito. Serguei^ Nikanorich não disse uma palavra e dedicou-se a retirar as sanduíches] do balcão. O guarda referiu-se
à fortuna de Yakov Ivanich, o primo de Matvei.
- Terá pelo menos trinta mil rublos - disse.
O guarda Zhukov, ruivo, de cara redonda - quando andava! tremia-lhe a face -, robusto e nédio, costumava, quando não estava| em presença dos seus superiores, refastelar-se
na cadeira de pernas

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cruzadas, e enquanto falava baloiçava-se e assobiava despreocupadamente, ao mesmo tempo que o seu rosto exprimia o contentamento de quem acaba de comer uma boa refeição.
Possuía algum dinheirinho, e falava sempre deste assunto como grande conhecedor da matéria. Dedicava-se à corretagem e qualquer pessoa que desejasse vender uma quinta,
um cavalo ou um carro usado recorria a ele.
Sim, tem com certeza de parte uns trinta mil rublos - concordou Serguei Nikanorich. O seu avô possuía uma enorme fortuna - disse, dirigindo-se a Matvei. -- Enorme!
O seu pai e o seu tio herdaram tudo. Seu pai morreu novo, seu tio foi o herdeiro, e depois, claro, foi tudo para seu primo Yakov Ivanich. Enquanto você andava em
peregrinação com sua mãe e cantava na fábrica, aqui não ficaram de braços cruzados.
- A si correspondiam-lhe quinze mil - disse o guarda, baloiçando-se. - A taberna pertence a ambos, quanto ao capital devia ser o mesmo. No seu lugar, tinha levado
o caso aos tribunais. Compreende-se. E depois, enquanto as coisas se esclareciam, ter-lhe-ia dado, a sós, uma boa sova...
Ninguém gostava de Yakov Ivanich porque, quando alguém professa crenças fora do comum, desagrada até mesmo àqueles que são indiferentes em matéria religiosa. Além
do mais, o guarda invejava-o porque se dedicava igualmente à venda de cavalos e carros em segunda mão.
Se não quer apresentar queixa contra seu primo, é porque você possui também bastante dinheiro - disse o cantineiro a Matvei, lançando-lhe um olhar de inveja. - Quem
tem recursos vive satisfeito, mas eu, por exemplo, creio que hei-de rebentar sem nunca ter saído desta miséria...
Matvei tratou de o convencer de que não tinha dinheiro algum, mas Serguei Nikanorich já não o ouvia; afluíam-lhe as recordações do passado e das ofensas que diariamente
sofria. A sua cabeça calva começou a transpirar, tornou-se corado, e principiou a pestanejar.
Maldita vida! exclamou furioso, arremessando a sanduíche ao chão.

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III

Dizia-se que o albergue fora construído no tempo de Alexandre I por uma viúva que ali se instalara com um filho. Chamava-se Avdotia Terekova. A todos quantos viajavam
na mala-posta, principalmente em noites de luar, o pátio sombrio, com o alpendre e o portão sempre fechado, infundia um sentimento de angústia e de vaga inquietação,
como se ali vivessem bruxos ou bandidos. E o cocheiro, sempre que passava no largo, voltava a cabeça e incitava os cavalos. Os viajantes ficavam de má vontade, porque
os donos se mostravam sempre muito austeros e cobravam muito caro. O pátio estava atravancado até ao Verão. Enormes porcos chafurdavam na lama, e os cavalos que
os Terekov negociavam andavam à solta. Por vezes, os cavalos, na sua ânsia de liberdade, fugiam do pátio e lançavam-se em galope desordenado pelo caminho, assustando
a quem por ali passava. Por essa altura, havia ali muito movimento e passavam longas caravanas com mercadorias. Davam-se casos como o ocorrido, trinta anos atrás,
quando os carreteiros enfurecidos mataram, numa contenda, um comerciante que ia de passagem: existia ainda, a meia versta da casa, a cruz de madeira meio apodrecida.
Passavam diligências com as suas campainhas e pesados trens senhoriais. Entre mugidos e nuvens de pó, cruzavam também manadas de vacas e touros.
Quando construíram o caminho de ferro, aquilo era um simples apeadeiro, que dez anos mais tarde se converteu na actual estação de Proganaia. A circulação pelo velho
caminho das diligências cessou] quase por completo: apenas se serviam dele os proprietários e os mujiques da comarca e na Primavera e no Outono os ranchos trabalhadores.
A pousada transformou*se em taberna. Ardeu o andar

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de cima, o tecto adquiriu uma cor amarelada, devido à oxigenação da chapa, e o alpendre ruiu, enquanto no pátio continuavam a chafurdar na lama os enormes porcos,
rosados e repugnantes. Como noutros tempos, fugia às vezes um cavalo, que, com a cauda encolhida, galopava desabridamente pelo caminho. Na taberna vendiam chá, feno,
aveia, farinha e também vodka e cerveja, para beber ao balcão ou levar. As bebidas alcoólicas eram vendidas em contrabando, e nunca era tirada a respectiva licença.
Os Terekov foram sempre muito religiosos, a ponto de serem conhecidos por os "Beatos". Mas, talvez porque viviam isolados, como ursos, afastavam-se das pessoas,
guiavam-se em tudo pela sua própria cabeça, mostravam-se propensos à fantasia e às divagações em matéria religiosa, e sustentavam que cada geração tinha a sua própria
fé. Avó Avdotia, a que construíra a pousada, pertencia ao velho rito, mas o filho e os dois netos (os pais de Matvei e Yakov iam à igreja ortodoxa, recebiam o clero
em sua casa e rezavam diante das novas imagens com a mesma devoção que diante das antigas. O filho, ao chegar à velhice, deixou de comer carne e fez voto de silêncio,
vendo em todas as conversas um pecado. Os netos apresentaram a particularidade de entenderem as escrituras à sua maneira, não como toda a gente, mas buscando nelas
um sentido oculto e afirmando que cada palavra sagrada devia conter um segredo. Matvei, o bisneto de Avdotia, lutou desde a infância com visões que quase lhe custaram
a vida. O outro bisneto, Yakov Ivanich, era ortodoxo, mas depois da morte da mulher deixou de frequentar a igreja e fazia as suas orações em casa. Influenciou sua
irmã Aglaia, que não ia à igreja nem deixava ir Dashutka. Dizia-se também de Aglaia que costumava ir na sua juventude a Vedeniapino, onde havia uma seita de flageladores
a que ela pertencia secretamente, e esse era o motivo por que usava lenço branco.
Yakov Ivanich era mais velho dez anos do que Matvei. Era um velho bem parecido, alto, barba comprida e grisalha quase até à cintura, e espessas sobrancelhas que
lhe davam uma expressão severa e vagamente perversa. Usava um jaquetão comprido de boa fazenda ou uma pelica preta, e gostava de andar sempre bem vestido, tratando
cuidadosamente da sua roupa; não descalçava os tamancos, mesmo quando o chão estava enxuto. Não frequentava a igreja porque, segundo ele, o ritual não era cumprido
à letra e porque os sacerdotes bebiam vinho fora da missa e fumavam. Lia com Aglaia as
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Escrituras e cantavam os salmos todos os dias em casa. Em Vedeniapino não liam a Epístola às matinas, e as vésperas não eram celebradas nem sequer por ocasião das
grandes festas; em compensação, Yakov Ivanich rezava em casa as orações correspondentes a cada dia, sem saltar uma só linha e lentamente, e nas horas vagas lia em
voz alta a vida dos santos. Cingia-se fielmente aos preceitos em todos os aspectos da vida; e assim, se em determinado dia da Quaresma era permitido beber vinho
"em recompensa do zelo no trabalho", tomava-o ainda que não sentisse desejos de beber.
Recitava as suas orações, cantava os salmos, incensava a casa e observava fielmente o jejum, não para alcançar favores de Deus, mas para observar a ordem estabelecida.
O homem não pode viver sem fé, e a fé deve adquirir uma expressão justa, de ano a ano, dia após dia, segundo determinada ordem, de tal modo que todas as manhãs e
todas as tardes Deus seja invocado precisamente com as palavras e os pensamentos que correspondem ao dia e hora. Há que viver e, portanto, rezar como é da vontade
de Deus; por isso é necessário cantar e recitar diariamente apenas o que é da sua vontade; quer dizer, segundo o ritual. Assim, o primeiro capítulo segundo S. João
só devia ser lido no dia da Páscoa, e desde a Páscoa até à Ascensão não se podia cantar o "Digníssimo". E assim por diante. A consciência desta ordem de coisas e
a sua importância proporcionavam a Yakov Ivanich uma profunda satisfação durante as; suas orações. Quando as circunstâncias o obrigavam a alterar aquela; ordem,por
exemplo, quando tinha de ir à cidade buscar provisões ou, ao banco, atormentava-se-lhe a consciência e sentia-se infeliz.
O primo Matvei, que chegara inesperadamente da fábrica e se] instalara na taberna como em sua própria casa, principiou a infringir! as regras desde o primeiro dia.
Negava-se a participar nas rezas em conjunto, comia e tomava chá a horas indevidas, levantava-se tarde e| às quartas e sextas-feiras tomava chá alegando que se sentia
fraco;| quase todos os dias, durante as rezas, entrava no oratório gritando* "Toma cuidado com o que fazes, primo! Arrepende-te, primo!'* Estas palavras faziam perder
a cabeça a Yakov Ivanich, e Aglaia, sem se poder conter, principiava a injuriá-lo. Ou então, pela calada da noite, Matvei entrava no oratório dizendo a meia voz:
"Primo, a| tuas orações não são gratas a Deus, porque está escrito: reconcilia-ti

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primeiro com teu irmão e vem então oferecer as tuas dádivas. E tu emprestas dinheiro a juros e vendes vodka. Arrepende-te!"
Nas palavras de Matvei, Yakov não via mais do que o habitual pretexto dos homens fúteis e negligentes que, se falam no amor ao próximo ou em reconciliar-se com o
irmão, é apenas para não orar, não jejuar e não ler as Sagradas Escrituras; e se falam com desprezo do lucro e dos juros é porque não têm amor ao trabalho. Porque
ser pobre e não economizar é muito mais fácil que ser rico.
Apesar de tudo, sentia-se preocupado e já não conseguia rezar como dantes. Apenas entrava no oratório e abria o livro, perturbava-o o temor de que seu primo viesse
incomodá-lo. E efectivamente Matvei não tardava em aparecer para gritar com voz emocionada: "Toma cuidado com o que fazes, primo! Arrepende-te, primo!" A irmã principiava
com as suas injúrias e Yakov, igualmente fora de si, gritava: "Sai da minha casa!", a que Matvei replicava: "A casa é de todos."
Yakov recomeçava a leitura e o canto, mas já não conseguia recuperar a calma e, mesmo sem dar por isso, ficava pensativo diante do livro. Apesar de considerar uma
estupidez as palavras do primo, começava também ultimamente a cismar que é difícil aos ricos entrar no reino dos céus; que comprara três anos antes, muito barato,
um cavalo roubado; que, ainda em vida da mulher, morrera nesta mesma taberna um homem em estado de embriaguez por causa do vodka...
Dormia mal de noite, com um sono muito leve, e ouvia Matvei, que também não podia dormir e não cessava de suspirar, com saudades da sua fábrica de azulejos. E enquanto
dava voltas na cama recordava o cavalo roubado, o bêbado e as palavras do Evangelho acerca do camelo.
Parecia que o invadiam as alucinações doutros tempos. E para cúmulo, apesar de já ser fins de Março, nevava todos os dias e o vento soprava no bosque como se fosse
Inverno; e parecia que a Primavera não chegava, não chegava nunca mais. O tempo predispunha ao tédio, às desordens, ao ódio, e de noite, quando o vento soprava no
telhado, tinha a impressão de que alguém vivia lá em cima, no andar vazio, e as visões principiavam, pouco a pouco, a surgir; e ardia-lhe a cabeça, não podendo conciliar
o sono.

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IV

Na segunda-feira da Semana Santa pela manhã, Matvei".ouviu no seu quarto Dashutka dizer a Aglaia:
-- O tio Matvei assegurou ontem que não é preciso jejuar.
Matvei recordou toda a conversa da véspera com Dashutka e sentiu-se irritado.
- Não mintas, rapariga! - disse com voz plangente, como se estivesse moribundo. - É impossível viver sem jejuar. O próprio Deus jejuou quarenta dias. A única coisa
que te disse foi que as pessoas doentes não devem fazê-lo.
- Acredita naquilo que te dizem na fábrica; eles te ensinarão o que se deve fazer - disse em tom de gracejo Aglaia, que estava a esfregar o chão (costumava fazer
este trabalho aos dias de semana, o que a punha de mau humor com toda a gente). - Já se sabe como jejuam na fábrica. Tu, pergunta ao teu tio pela víbora, que te
conte como ambos bebiam leite nos dias de jejum. Ele gosta de ensinar aos outros, mas esquece, por seu lado, o caso da víbora. Pergunta-lhe a quem deixou o dinheiro.
Matvei ocultava cuidadosamente de todos, como uma úlcera repugnante, que naquele período da sua vida em que velhas e novas acudiam ao oratório para saltar e correr
com ele mantivera relações com uma mulher de quem tinha tido um filho. Quando chegou a casa entregou-lhe tudo quanto amealhara na fábrica. Para as despesas da viagem
tivera que pedir emprestado ao senhorio; e depoisl restaram-lhe apenas alguns rublos, que reservou para chá e velas. Aí tal mulher comunicou-lhe mais tarde que o
filho tinha morrido, perguntava-lhe na carta que destino devia dar ao dinheiro. A carta em questão fora trazida da estação por um operário; Aglaia abrira-a e| lera-a,
e por isso recriminava depois Matvei diariamente.

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Não é brincadeira: novecentos rublos! - prosseguiu Aglaia. - Aí está, dar novecentos rublos a uma víbora, a uma perdida da fábrica! Oxalá rebentes! perdera o domínio
em si e gritava exaltadamente. - Calas-te? A minha vontade é fazer-te em pedaços, inútil! Dar novecentos rublos como se fossem um kopek! Podias tê-los deixado a
Dashutka, que é do teu sangue, e não a uma estranha; ou podias tê-los mandado a Belev, para os infelizes órfãos de Maria. Porque não rebentou a tua víbora? Seja
mil vezes maldita e malvada! Oxalá não tenha um só dia de felicidade na vida!
Yakov Ivanich chamou-a: era o momento de rezar as horas. Aglaia lavou-se, pôs o lenço" branco e precipitou-se para o oratório a reunir-se ao seu amado irmão, já
cheia de compunção. Quando falava com Matvei ou servia chá no albergue aos homens, era uma velha magra, sempre alerta e mal-humorada; mas no oratório a sua cara
adquiria uma expressão pura e devota, parecia rejuvenescer, e sentava-se calmamente e até comprimia os beiços num trejeito de humildade.
Yakov Ivanich principiou a ler o livro de horas com a voz tranquila e melancólica que sempre reservava para a Quaresma. Momentos depois parou a fim de prestar atenção
ao silêncio que reinava em toda a casa. Recomeçou a leitura com ar de satisfação. Tinha as mãos postas em atitude devota, com os olhos muito abertos, e abanava a
cabeça e suspirava constantemente. Mas nesta altura ouviram-se vozes. O guarda e Serguei Nikanorich acabavam de chegar de visita a Matvei. Yakov Ivanich não ousava
ler ou cantar quando havia gente estranha em casa, e agora, ao ouvir vozes, prosseguiu a leitura num sussurro e com lentidão. No oratório ouviu-se o cantineiro dizer:
- O tártaro de Schepovo trespassa o seu negócio por mil e quinhentos rublos. Pode pagar-se quinhentos rublos em dinheiro e assinar uma letra para o resto. Oiça,
Matvei Vasilich, peço-lhe o favor de me emprestar esses quinhentos rublos. Dar-lhe-ia dois por cento mensalmente.
- Onde quer que vá buscar esse dinheiro? - perguntou Matvei com espanto. - Onde vou buscá-lo?
- Os dois por cento mensais significam para si uma bênção do t-éu explicou o guarda -,e se guardar o seu dinheiro em casa, este será comido pela traça sem proveito
nenhum.

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Os visitantes partiram e voltou o silêncio. Mas, apenas Yakov Ivanich recomeçara a leitura em voz alta e o canto, ecoou uma voz do outro lado da porta:
- Primo, necessito de um cavalo para ir a Vedeniapino. Era Matvei. Yakov voltou a sentir-se inquieto.
- Qual há-de ser? - perguntou depois de meditar. - O baio levou-o um criado com um porco, e o potro necessito dele para ir a Shuteikino logo que acabe de rezar.
.
Primo, porque podes tu dispor dos cavalos e eu não? - perguntou Matvei, irritado.
- Porque vou tratar de negócios, e não passear.
- Os bens são de ambos; portanto os cavalos também. Devias compreender isto, irmão.
Fez-se um silêncio. Yakov, sem- recomeçar as orações, esperava que Matvei se afastasse.
- Primo - insistiu Matvei -, sou um homem doente e não quero a propriedade. Que vá com Deus, dispõe dela. Mas dá-me ao menos uma pequena parte para que possa sustentar-me
durante a minha doença. Dá-me essa parte e partirei.
Vakov calou-se. Tinha muito empenho em ver-se livre de Matvei, mas não podia dar-lhe dinheiro porque o tinha todo investido. Além do mais, na linhagem dos Terckov
não existia um único exemplo de repartição de bens. Reparti-los significava a ruína. *
Yakov continuava calado, à espera que Matvei se fosse embora, e não deixava de fitar a irmã, temendo que esta se intrometesse no assunto e recomeçassem os insultos
da manhã. Quando, finalmente Matvei se retirou Yakov retomou a sua leitura, mas já sem prazer algum. As genuflexões provocaram-lhe dor de cabeça e sentia o olhos
turvados; causava-lhe tédio a sua própria voz apagada tristonha. Quando um tal estado de depressão se produzia nele, à noite, atribuía-o à falta de sono; mas quando
o acometia de dia assustava-se, e então principiava a imaginar que os demónios lhe tinham subido à cabeça e aos ombros.
Terminadas as horas o melhor que pôde, descontente e irritado Yakov Ivanich partiu para Shuteikino. No último Outono tinham estado alguns operários a abrir uma vala
perto de Progonaia, tendo feito na taberna uma despesa de dezoito rublos; necessitava encontrar agora em Shuteikino o encarregado da obra a fim dí cobrar esse dinheiro.
O degelo e os nevões haviam deteriorado

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o caminho, que estava escuro e cheio de buracos; nalguns pontos parecia que se ia afundar. A neve dos lados estava abaixo do nível do caminho, e por isso Yakov tinha
de caminhar como se andasse na parte mais alta de um estreito terrapleno, sendo muito difícil encostar-se a um lado quando vinha alguém em direcção oposta. O céu
estava carregado desde manhã e soprava um vento húmido... Um grande grupo em fila indiana veio ao seu encontro: eram mulheres carregando ladrilhos. Yakov teve que
dar passagem, o cavalo enterrou-se na neve até à barriga, o trenó inclinou-se para a direita e ele, para não cair, teve que inclinar-se para a esquerda e assim permaneceu
enquanto o comboio de mulheres desfilava lentamente. Entre o sibilar do vento, ouviu os guinchos dos trenós e o resfolgar dos cavalos esquálidos. As mulheres diziam
entre si: "É o Beato", e uma delas, olhando o cavalo com comiseração, disse em voz rápida: Parece que vai haver neve até São Jorge. Que tormento!
Yakov sentia-se desconfortável, feito num novelo, e conservava os olhos meio cerrados por causa do vento. À sua frente passavam ora os cavalos, ora os ladrilhos
vermelhos. E, talvez porque permanecia numa posição incómoda e lhe doíam as costas, sentiu-se irritado, pareceu-lhe que o seu assunto não era assim tão importante
e que podia ter mandado um criado a Shuteikino noutro dia qualquer. De novo, como na noite de insónia anterior, recordou a história do camelo, e em seguida começou
a pensar no mujique que lhe vendera um cavalo roubado, e no bêbado, e nas mulheres que traziam os samovares de presente. É evidente que qualquer negociante trata
de obter o máximo de lucro, mas Yakov sentiu uma sensação de agonia ao pensar que tinha querido ir mais além do geralmente admitido; e incomodava-o pensar que naquele
dia tinha ainda que ler as vésperas. O vento batia-lhe na cara e produzia um zumbido na gola do sobretudo, como se lhe sussurrasse estas mesmas ideias, que trazia
do extenso campo branco... Ao olhar este campo, familiar desde a sua infância, Yakov lembrou-se de que essa mesma inquietação e essas mesmas ideias o haviam assaltado
nos seus jovens anos, quando tinha visões e a sua fé vacilava.
Sentiu medo de ficar sozinho no campo. Deu a volta e seguiu devagar o comboio de mulheres, enquanto estas riam e comentavam. O Beato regressa a casa.
Em casa,por ser Quaresma, não tinham cozinhado, nem acendido o samovar, pelo que o dia parecia compridíssimo. Yakov Ivanich já

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há um bom bocado que desatrelara o cavalo, mandara farinha para a estação e, por duas vezes, principiara a ler o saltério, mas restava todavia ainda muito tempo.
Aglaia esfregara todos os soalhos e, sem nada que fazer, dedicou-se a arrumar o seu baú, cuja tampa estava toda ornamentada por dentro com etiquetas de garrafas.
Matvei, esfomeado e triste, lia ou aproximava-se da estufa holandesa para contemplar os azulejos, que lhe faziam lembrar a fábrica. Dashutka dormia; depois, quando
acordou, foi dar de beber aos animais. Ao tirar água do poço partiu-se a corda, e o balde caiu à água. Um criado foi buscar um gancho para o pescar. Dashutka, descalça
e com os pés vermelhos como as patas de um ganso, seguiu atrás dele pela neve suja repetindo sem cessar que o poço era mais fundo do que o que podia alcançar o gancho;
mas o criado não lhe dava ouvidos, e provavelmente cansado voltou-se e dirigiu-lhe os piores impropérios. Yakov Ivanich, que saía neste momento para o pátio, ouviu
Dashutka responder-lhe com uma chusma de grosseiros insultos, que só podia ter ouvido aos bêbados na taberna.
- Que dizes, desavergonhada? - gritou horrorizado. - Que palavras são essas?
Dashutka olhou para o pai, perplexa, com cara de estúpida, sem compreender porque não se podiam pronunciar semelhantes palavras. Yakov Ivanich quis dar-lhe uma lição,
mas a rapariga pareceu-lhe tão selvagem e ignorante que, pela primeira vez, percebeu que ela não tinha fé nenhuma. E toda aquela vida passada no bosque, entre a
neve, entre bêbados e blasfémias, afigurou-se-lhe tão ignorante e selvagem como a própria moça, e, em vez de a repreender, fez um gesto de desalento e meteu-se no
seu quarto.
O guarda e Serguei Nikanorich tinham voltado para falar com Matvei. Yakov Ivanich lembrou-se que estes também não tinham fé alguma, sem que se preocupassem com isso,
e a vida pareceu-lhe estranha, insensata e sombria como a de um cão. Sem se dar ao trabalho de pôr o gorro, deu uma volta pelo pátio; em seguida saiu para a estrada
e principiou a andar de punhos cerrados. Começou a nevar, o vento agitava-lhe a barba, e Yakov não parava de abanar a cabeça, sentindo esta e os ombros oprimidos
por qualquer coisa, como se os diabos lhe tivessem trepado em cima. Afigurou-se-lhe que não era ele quem caminhava, mas uma fera, enorme e terrível, e que se gritasse
a sua voz ecoaria como um rugido pelo campo inteiro e pelo bosque, assustando toda a gente.

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V

Quando voltou para casa, o guarda tinha partido. O cantineiro, sentado no quarto de Matvei, fazia contas. Aparecia quase diariamente; antes vinha visitar Yakov Ivanich,
mas ultimamente era Matvei quem o atraía. Fazia as suas contas com a ajuda da tabuada, suarento e concentrado; ou pedia dinheiro; ou então, acariciando as patilhas,
contava, como estando uma vez numa estação de primeira categoria, preparara um ponche para uns oficiais, e como nos banquetes ele mesmo servia a sopa de esturjão.
A única coisa que lhe interessava eram as cantinas, e só sabia falar de pratos variados, de serviços e de vinho. Uma vez, quando estava a servir uma chávena de chá
a uma jovem senhora que estava a amamentar um filho, disse-lhe, com a intenção de ser agradável:
O peito da mãe é a cantina do filho.
Enquanto fazia as suas contas no quarto de Matvei e lhe pedia dinheiro emprestado, afirmando que em Progonaia a vida.se lhe tornara impossível, ia dizendo repetidas
vezes num tom lacrimejante: Para onde havia de ir? Diga-me, para onde havia de ir?
Em seguida Matvei entrou na cozinha e principiou a descascar batatas cozidas que tinha, decerto, guardadas desde a véspera. Tudo estava silencioso e Yakov Ivanich
pensou que o cantineiro se fora embora. Chamou Aglaia e, imaginando que não estava ninguém em casa, começou a cantar em voz alta, despreocupado. Cantava e recitava
as orações, mas mentalmente pronunciava outras palavras: "Perdoa-me, Senhor! Salva-me, Senhor!", e com uma invocação atrás da outra, não parava de fazer genuflexões
como se quisesse torturar-se. Abanava incessantemente a cabeça, de tal maneira que Aglaia o fitava assombrada. Yakov temia que Matvei entrasse, estava

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mesmo certo que este o faria, sentindo contra ele um rancor que nem as rezas e genuflexões podiam vencer.
Matvei abriu com suavidade a porta e entrou no oratório.
- Que pecado, que pecado! - disse em tom de censura, deixando escapar um suspiro. - Arrepende-te! Olha o que fazes, primo!
Yakov Ivanich, com os punhos cerrados e sem o olhar, para evitar bater-lhe, saiu rapidamente do oratório. Assim como o fizera antes na estrada, sentindo-se uma fera
enorme e terrível, atravessou também o vestíbulo para entrar no quarto cinzento, sujo e cheio de fumo, onde os mujiques costumavam tomar chá. Ali, caminhou durante
muito tempo de um lado para o outro, com passo tão pesado que a baixela tilintava nos aparadores e as mesas tremiam. Adquirira a clara noção de que a sua fé não
o satisfazia e já não podia rezar como dantes. Devia arrepender-se, voltar à razão, viver e orar doutro modo. Mas como consegui-lo? E se tudo isto fosse obra do
demónio e não fosse necessário mudar nada?... Qual o caminho a seguir? Que fazer? Quem poderia aconselhá-lo? Que sensação de impotência! Parou e, com a cabeça entre
as mãos, tratou de reflectir; mas o facto de Matvei se encontrar ali perto impedia-o de pensar tranquilamente. Dirigiu-se com rapidez para os quartos.
Matvei permanecia sentado na cozinha, diante de uma escudela com batatas que ia comendo. Junto da estufa, uma à frente da outra, Aglaia e Dashutka dobavam uma meada.
Entre a estufa e a mesa onde Matvei estava sentado tinham colocado uma tábua de engomar que tinha em cima um ferro frio.
- Prima •- suplicou Matvei -, dá-me um pouco de manteiga. Quem come manteiga num dia como o de hoje? - perguntou
Aglaia.
- Eu, prima, não sou frade, mas um simples paroquiano. E considerando a minha débil saúde, não só me está permitida a manteiga, como também o leite.
Sim, na fábrica permite-se tudo.
Aglaia tirou da cantoneira uma garrafa de azeite e colocou-a diante de Matvei, pousando-a com força sobre a mesa; e sorriu rancorosa, como se estivesse satisfeita
por ele ser um tão grande pecador.
-- Já te disse que não podes tomar alimentos com gordura! gritou Yakov.

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Aglaia e Dashutka estremeceram. Matvei, fingindo que não ouvia, deitou azeite na escudela e continuou a comer.
Estou-te a dizer que não podes ingerir comidas gordurosas! - repetiu Yakov com voz ainda mais alta, congestionado; e agarrando num ímpeto a escudela, levantou-a
acima da cabeça, arrojando-a violentamente ao chão. - Nem uma palavra! - vociferou frenético, apesar de Matvei não ter aberto a boca. Não pronuncies uma só palavra!
- repetiu, dando um murro na mesa.
Matvei levantou-se pálido.
Primo - disse sem cessar de mastigar -, primo, olha o que fazes.
Fora da minha casa, já! - gritou Yakov. Repugnava-lhe a cara enrugada de Matvei, a sua voz, as migalhas que se desprendiam do bigode, o simples facto de o ver mastigar.
Fora daqui!
Acalma-te, irmão! Deixaste-te dominar pelo orgulho de Satanás!
Cala-te! Yakov bateu com o pé no chão. - Sai daqui, demónio!
Se queres saber - prosseguiu Matvei em voz alta, pois também já começava a enervar-se -, és um apóstata e um herege. Os malditos demónios impedem-te de ver a verdadeira
luz; as tuas orações não sào gratas a Deus. Arrepende-te antes que seja tarde! Aquele que morre em pecado não tem salvação! Arrepende-te, primo!
Yakov agarrou-o pelos ombros, afastando-o da mesa. Matvei, ainda mais pálido, assustado e desnorteado, balbuciava: "Que estás a fazer? Que é isto? "; e resistindo,
esforçando-se por se libertar de Yakov, agarrou-o instintivamente pela camisa, desapertando-lhe o colarinho. Aglaia, imaginando que ele tentava matar Yakov, deu
um grito, empunhou a garrafa do azeite e vibrou, com todas as suas forças, um profundo golpe na fronte do seu odiado primo. Matvei cambaleou, e o seu rosto adquiriu
no mesmo instante uma expressão de tranquilidade e indiferença. Yakov, ofegante e excitado, satisfeito por a garrafa, ao bater na cabeça de Matvei, ter produzido
um som cavo como se fosse um ser vivo, agarrou-o para evitar que caísse e, repetidas vezes (havia de o recordar nitidamente), chamou a atenção de Aglaia para o ferro
de engomar. E quando o sangue lhe escorreu pelas mãos e se ouviu o pranto de Dashutka, quando a tábua de engomar caiu com estrondo e sobre ela escorregou pesadamente
o

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corpo de Matvei, Yakov só então sentiu que a sua ira se desvanecia, e compreendeu o que acabava de suceder.
- Que rebente o patife! - exclamou Aglaia com repugnância, sem largar o ferro de engomar. O lenço branco, salpicado de sangue, deslizara-lhe para os ombros e os
seus cabelos cinzentos estavam desgrenhados. - Era o que ele merecia!
Era um quadro horrível. Dashutka, sentada no chão junto da estufa, com a meada nas mãos, soluçava, balançando-se de trás para a frente e repetindo a cada inclinação:
"Ai, ai!" Mas nada horrorizava tanto Yakov como as batatas cozidas manchadas de sangue, e que temia pisar. Havia também uma coisa aterradora, que o oprimia como
um pesadelo, e representava um perigo maior, ainda que ao princípio não conseguisse entender de que se tratava: era o cantineiro Serguei Nikanorich, que se mantinha
no limiar da porta muito pálido e contemplando horrorizado o que sucedera na cozinha. Só quando aquele se voltou e, atravessando o vestíbulo, saiu para o pátio,
Yakov compreendeu de quem se tratava e foi atrás dele.
Enquanto limpava as mãos com neve, sem se deter, ia raciocinando. Lembrou-se de que o criado pedira licença para passar a noite em sua casa, na aldeia, e saíra havia
um bom bocado; na véspera tinham morto um porco e a neve estava salpicada de grandes manchas avermelhadas, assim como o trenó e até um dos lados do monte de lenha,
não sendo portanto de suspeitar que toda a família de Yakov estivesse manchada de sangue. Era monstruoso ocultar a morte, e mais monstruosa lhe parecia ainda a ideia
de que acorreria o guarda da estação e daria um assobio sorrindo ironicamente; viriam outros que lhe poriam as algemas assim como a Aglaia, levando-os em ar de triunfo
à sede do distrito e daí para a cidade; e pelo caminho todos os apontariam dizendo alegremente: "Vão ali os Beatos!" Era necessário deixar passar o tempo, fosse
como fosse, e não sofrer esta vergonha agora, mas mais tarde.
- Posso emprestar-lhe mil rublos... - disse ao acercar-se de Serguei Nikanorich. - Se disser alguma coisa não ganhará nada... e já não é possível ressuscitá-lo.
Não tinha outro remédio senão seguir o cantineiro, que nem sequer voltava a cabeça e cada vez apressava mais o passo. Prosseguiu:
- Posso dar-lhe mil e quinhentos...

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Parou ofegante, continuando Serguei Nikanorich sem abrandar o passo, temendo provavelmente que o assassinassem também. Só depois de atravessar a passagem de nível
e de ter percorrido metade do caminho da estação, voltou por momentos a cabeça e afrouxou o passo. Na estação e ao longo da via brilhavam já as luzes verdes e encarnadas.
O vento acalmara, apesar de continuar a nevar, e o caminho ficara de novo todo branco. Mas, quase ao chegar à estação, Serguei Nikanorich estacou, pensou uns segundos,
e voltou atrás com passo decidido.
- Dê-me os mil e quinhentos, Yakov Ivanich - disse a meia voz e tremendo. - De Acordo.

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VI

Yakov Ivanich guardava parte do seu dinheiro no banco da cidade e o resto tinha-o investido em hipotecas; só guardava em casa o indispensável para as despesas diárias.
Ao entrar na cozinha procurou às apalpadelas a caixa metálica dos fósforos e, à luz azulada do enxofre, pôde lançar um olhar a Matvei, que continuava estendido junto
à mesa, no mesmo lugar, mas já coberto por um lençol que apenas deixava a descoberto as botas. Os grilos cantavam. Aglaia e Dashutka não estavam nos quartos: encontravam-se
atrás do aparador, dobando a meada em silêncio. Yakov Ivanich, alumiando-se com uma palmatória, dirigiu-se ao seu quarto e tirou debaixo da cama a pequena arca em
que guardava o dinheiro. Desta vez tinha quatrocentos e vinte rublos em notas pequenas e trinta e cinco em moedas de prata; as notas exalavam um cheiro intenso e
desagradável. Depois de meter o dinheiro todo no gorro, Yakov Ivanich atravessou o pátio e saiu para a estrada. Olhou à sua volta, mas o taberneiro tinha desaparecido.
- É, lá! - gritou.
Junto à cancela da passagem de nível surgiu uma silhueta escura que se aproximou com passo indeciso.
- O que anda a fazer de um lado para o outro? - exclamou Yakov irritado ao reconhecer o cantineiro. - Aqui tem: falta qualquer coisa para os quinhentos... Não tinha
mais em casa.
- Está bem... Fico-lhe muito agradecido - balbuciou Serguei Nikanorich, agarrando avidamente o dinheiro e guardando-o nos bolsos.
Apesar da escuridão notava-se que não parava de tremer.

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Pode ficar tranquilo, Yakov Ivanich... Para que havia de falar? Estive lá mas já me tinha vindo embora. Não sei de nada... - e acrescentou com um suspiro: - Maldita
vida!
Permaneceram uns momentos silenciosos, sem se olharem.
- É inacreditável o que aconteceu por nada... - disse o cantineiro, tremendo. - Estava eu ali tão sossegado a fazer as minhas contas, quando se armou uma algazarra...
Aproximei-me da porta e você, por um pouco de azeite... Onde está agora?
- Continua na cozinha. Deviam levá-lo para qualquer sítio... Porque esperam?
Yakov acompanhou-o em silêncio até à estação, depois voltou para casa e aparelhou o cavalo a fim de levar Matvei a Limarovo. Pensava em transportar o cadáver para
o bosque e deixá-lo aí, no caminho. Diria depois a toda a gente que Matvei fora a Vedeniapino e não voltara; pensariam assim que teria sido morto por qualquer transeunte.
Sabia que não enganaria ninguém com isto, mas movimentar-se, fazer qualquer coisa, estar ocupado, não era tão doloroso como deixar-se ficar quieto e esperar. Chamou
Dashutka e transportaram ambos o cadáver de Matvei. Aglaia ficou para esfregar a cozinha.
No regresso Yakov e Dashutka encontraram a passagem de nível fechada. Passava nessa altura um longo comboio de mercadorias puxado por duas locomotivas que resfolgavam
penosamente, lançando chispas de fagulhas vermelhas. Quando chegou à passagem de nível, ao entrar na estação, a máquina da frente apitou estridentemente:
Apita... - articulou Dashutka.
Quando a última carruagem passou, o guarda foi abrir as cancelas, com todo o seu vagar.
És tu, Yakov Ivanich? - perguntou. - Não'te tinha conhecido, sinal de que vou ficar rico.
Quando chegaram a casa eram horas de dormir. Aglaia e Dashutka deitaram-se juntas num colchão que estenderam no chão da loja. Yakov acomodou-se no balcão. Não rezaram
nem acenderam a lamparina. Nenhum dos três pôde conciliar o sono até de madrugada, mas não pronunciaram uma só palavra. Tinham a sensação de que por cima, no andar
vazio, havia alguém que não parava de andar de um lado para o outro.

131

Dois dias depois vieram da cidade o comissário da Polícia do distrito e o juiz de instrução, e principiaram por passar uma busca ao quarto de Matvei e depois por
toda a casa. Em primeiro lugar interrogaram Yakov, que declarou que Matvei fora na segunda-feira, ao cair da tarde, a Vedeniapino com a intenção de jejuar e que
devia ter sido assassinado no caminho pelos serradores que trabalhavam na linha. Quando o juiz de instrução lhe perguntou por que razão Matvei aparecera na estrada
e o seu gorro em casa, sendo inadmissível que tivesse ido a Vedeniapino com a cabeça descoberta, e por que motivo na neve do caminho, junto ao cadáver, não tinham
encontrado nem uma gota de sangue, não obstante ter a cabeça esmigalhada e a cara e o peito cobertos de sangue, Yakov perturbou-se e respondeu atrapalhado:
- Não sei que dizer-lhe.
Sucedeu precisamente o que tanto temia: chegou o guarda, um polícia rural pôs-se a fumar no oratório e Aglaia invectivou-o, cobriu-o de insultos que tornou extensivos
ao comissário. E, a seguir, quando levaram Yakov e Aglaia para o portão, aglomeraram-se os mujiques, comentando: "Vão levar os Beatos!", e davam a impressão de que
estavam contentes.
O guarda declarou categoricamente que Yakov e Aglaia tinham assassinado Matvei para não repartirem os bens, dado que este possuía também o seu pecúlio; se não aparecia
era porque Yakov e Aglaia se tinham apoderado dele. Interrogaram igualmente Dashutka. Esta disse que o tio Matvei e a tia Aglaia se disputavam diariamente e quase
chegavam a vias de facto por causa do dinheiro; o tio era rico, porque chegara ao extremo de oferecer novecentos rublos à sua amada.
Dashutka ficou sozinha na taberna. Não vinha ninguém tomar chá ou vodka, e ela entretinha-se a fazer a limpeza dos quartos ou passava o tempo comendo mel e rosquilhas.
Mas alguns dias mais tarde interrogaram o guarda da passagem de nível e este disse que na segunda-feira, já tarde, vira Yakov e Dashutka que regressavam de Limarovo.
Dashutka foi também detida e levada para a prisão da cidade. Não tardou em saber-se por Aglaia que Serguei Nikanorich presenciara o feito; passaram-lhe uma busca
à casa; e encontraram dinheiro em lugar muito pouco apropriado, dentro de uma bota de feltro escondida debaixo do forno. Era tudo em notas pequenas; havia

132

trezentas de um rublo. Serguei Nikanorich assegurava que amealhara o dinheiro na cantina e que havia mais de um ano que não ia à taberna. Mas as testemunhas declararam
que ele era pobre e que ultimamente andava com muita falta de recursos. Além do mais, ia todos os dias à taberna, procurando obter um empréstimo de Matvei; o guarda
declarou que no citado dia acompanhara duas vezes o cantineiro à taberna para ajudar a obter o empréstimo. Recordaram também que na segunda-feira à tarde Serguei
Nikanorich não estava presente à chegada da composição mista, tendo-se ausentado. Foi igualmente detido e conduzido à cidade.
Onze meses depois realizava-se o julgamento.
Yakov Ivanich envelhecera muito, estava magro e falava com voz apagada como um doente. Sentia-se débil e miserável, diminuído, e parecia que os remorsos e as visões,
que não o tinham abandonado na prisão, o haviam feito envelhecer e emagrecer a sua alma tanto como o seu corpo. Quando se descobriu que se recusava a frequentar
a igreja, o presidente perguntou-lhe: É cismático?
- Não sei - respondeu ele.
Já não tinha fé em nada, e nada sabia nem compreendia. As suas antigas crenças surgiam-lhe agora como repulsivas, insensatas, duvidosas. Aglaia não se conformava
com a sua sorte e continuava maldizendo o defunto Matvei, a quem tornava responsável por todas as desditas. A Serguei Nikanorich, que antes usava patilhas, crescera-lhe
a barba; na sala de audiência suava e corava, envergonhando-se da sua farda de prisioneiro e de que o tivessem feito sentar no mesmo banco que uma classe de gente
ordinária. Justificava-se torpemente e na sua ânsia de demonstrar que durante o último ano não estivera na taberna discutia com todas as testemunhas, fazendo rir
o público. Dashutka engordara durante a sua estada na prisão; e não compreendia as perguntas que lhe faziam, limitando-se a dizer que se assustara muito quando mataram
o tio Matvei, mas depois passou-lhe tudo.
Foram os quatro culpados de assassinato com fins lucrativos. Yakov foi condenado a vinte anos de trabalhos forçados; Aglaia, a treze anos e seis meses; Serguei Nikanorich,
a dez anos; e Dashutka a seis.

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VII

Ao cair da tarde um barco estrangeiro ancorou na baía de Due, na ilha de Sacalina, para se abastecer de carvão. Pediram ao capitão para esperar até ao dia seguinte
de manhã, mas este não quis aguardar nem uma hora, alegando que, se durante a noite o tempo piorasse, corria o risco de partir sem carvão. No estreito de Tartária
o tempo pode mudar bruscamente em meia hora, e então as costas de Sacalina tornam-se perigosas; e já começava a refrescar, sendo a ondulação bastante forte.
Da colónia penal de Voievodskaia, o mais miserável e rigoroso de todos os presídios de Sacalina, levaram para as minas um grupo de prisioneiros. Havia que carregar
o carvão nas barcaças, que eram depois rebocadas por uma lancha a vapor até ao barco, que se encontrava a mais de meia versta da margem, onde devia principiar o
transbordo da carga; era um trabalho árduo quando a barcaça batia contra o barco; e as pessoas a custo conseguiam manter-se de pé por causa da ondulação. Os presidiários,
a quem tinham feito levantar dos seus catres, caminhavam sonolentos pela margem, tropeçando na obscuridade e fazendo soar as suas grilhetas. À esquerda apenas se
distinguia o escarpado da margem, extraordinariamente sombrio, e à direita, rodeado por uma densa escuridão, gemia o mar, emitindo um prolongado e monótono a...a...a...a...
Só quando o guarda acendia o cachimbo, alumiando por momentos o soldado da escolta, com a sua espingarda, e os dois ou três presidiários mais próximos, de feições
grosseiras, ou quando aproximava a lanterna da água, se podiam distinguir as cristas brancas das primeiras ondas.
Entre os presidiários encontrava-se Yakov Ivanich, a quem na colónia penal tinham dado o cognome de "Vassoura", por causa da sua comprida barba. Já ninguém o chamava
pelo seu nome e

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patronímico mas somente pelo diminutivo pejorativo de Yashka. Não era bem visto, pois três meses depois de ter chegado, movido por um irreprimível sentimento de
nostalgia, sem poder esquecer a sua terra natal, não resistiu à tentação de fugir; mas foi logo capturado, condenado a trabalhos forçados perpétuos e a levar quarenta
açoites. Os açoites repetiram-se mais duas vezes, sob a acusação de ter vendido a farda de presidiário, embora em ambas as ocasiões houvesse na verdade sido roubado.
A sua nostalgia principiou no preciso momento em que, quando o comboio de presidiários o levava a Odessa, parou de noite em Progonaia. Yakov, com o rosto colado
à janela, procurou descobrir a sua casa, sem ter conseguido o seu propósito em virtude da escuridão.
Não havia ninguém com quem pudesse falar da sua terra. Sua irmã Aglaia fora conduzida ao presídio através da Sibéria e Yakov não sabia onde se encontrava. Dashutka
estava em Sajalin, mas fora entregue como concubina a um colono de um lugar muito afastado. Não sabia nada dela, ainda que uma vez outro colono que fora parar à
colónia penal de Voievodskaia contasse a Yakov que Dashutka já tinha três filhos. Serguei Nikanorich prestava serviço como criado a um funcionário perto dali, em
Due, mas não seria fácil verem-se, pois o antigo cantineiro envergonhava-se dos seus conhecimentos entre os presidiários da baixa extracção.
O grupo chegou à mina e tomou posição junto ao embarcadouro. Dizia-se que não se poderia efectuar o carregamento porque o tempo continuava a piorar e o barco estava
em risco de zarpar. Viam-se três luzes. Uma delas movia-se: era a lancha a vapor, que se aproximara do barco e regressava, segundo parecia, para comunicar se o trabalho
se fazia ou não. Tiritando com o frio outonal e a humidade do mar, embrulhando-se na sua curta e andrajosa pelica, Yakov Ivanich olhava fixamente, sem pestanejar,
na direcção onde estava situada a sua aldeia. Desde que convivia no mesmo presídio com pessoas vindas de diferentes pontos russos, ucranianos, tártaros, georgianos,
chineses, fineses, ciganos, judeus - e desde que principiara a prestar atenção às suas conversas e observara os seus padecimentos, começara novamente a levantar
as suas preces a Deus, chegando à conclusão de que encontrara, por fim, a verdadeira fé, aquela por que tanto ansiavam e tanto tinham procurado, sem a descobrir,
todos os seus antepassados, desde a avó Avdotia. Já sabia tudo e descobrira onde está Deus e como havia que servi-lo. Não

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compreendia, porém, a razão por que a sorte das pessoas é tão diferente, por que motivo esta fé tão simples que Deus concedia graciosamente a uns juntamente com
a vida, lhe custara a ele o preço de tantos horrores e castigos que, a julgar pela evidência, se prolongariam até ao dia da sua morte. Isto fazia-lhe tremer os braços
e as pernas como se estivesse embriagado. Olhava fixamente as trevas, parecendo-lhe ver, através de milhares de verstas de escuridão, a sua terra natal, a sua província,
o seu distrito, Progonaia. Parecia-lhe ver a ignorância, o selvagismo, a insensibilidade e a torpe e bestial indiferença das pessoas que havia deixado ali. As lágrimas
toldavam-lhe os olhos, mas continuava olhando ao longe, onde apenas de distinguiam as pálidas luzes do barco, e sentia o coração oprimido e dominado pela nostalgia.
Sentia desejos de viver, de voltar para casa, de falar aí da sua nova fé, salvar da perdição nem que fosse uma só alma, e viver sem sofrimentos nem que fosse um
só dia.
A lancha chegou e o guarda anunciou em voz alta que o carregamento não se fazia.
- Para trás - ordenou. - Sentido!
Podia ouvir-se a azáfama suscitada no barco pelo levantar da âncora. Começava a soprar um vento forte e áspero. Em cima, na margem escarpada, rangiam as árvores.
Avizinhava-se a tempestade.

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O MENDIGO

- Meu bom senhor, tende a bondade de prestar a vossa atenção a um infeliz esfomeado. Há três dias que não como... Nem um tostão para pagar a noite no asilo... juro
por Deus! Fui durante oito anos professor rural e perdi o lugar em virtude das intrigas do zemstvo. Fui vítima de uma denúncia... Há um ano que estou desempregado...
O advogado Skvortsov contemplou a face do pedinte, azulada, enrugada, os olhos congestionados de alcoólico, as manchas vermelhas do rosto, e pareceu-lhe já ter visto
aquele indivíduo em qualquer outra parte.
Oferecem-me agora um lugar no estado de Kaluga - prosseguiu o mendigo -, mas não tenho recursos para a viagem. Ajude-me, meu bom senhor; fazei-me essa graça. É vergonhoso
andar a pedir, mas... as circunstâncias a isso me obrigam.
Skvortsov olhou as botas de borracha do indivíduo, uma de Inverno, outra de Verão, e lembrou-se subitamente:
- Oiça! - disse-lhe -, parece-me que o encontrei anteontem em Sadovia1, mas você disse-me então que era um estudante expulso da Universidade e não um professor de
aldeia. Lembra-se?
- Não, não,... não é possível - murmurou o pedinte perturbado -, sou um professor da província. Se quiser mostro-lhe os papéis.
- Pare de mentir. Fez-se passar por estudante e chegou mesmo a contar-me a razão por que tinha sido expulso. Lembra-se?
Skvortsov corou e afastou-se do maltrapilho com uma expressão de repugnância.

' Rua dos Jardins (N. do T.).

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- É vil, senhor! - gritou-lhe irritado. É uma burla. Vou mandá-lo para a esquadra, diabos o levem! Ser pobre, esfomeado, não lhe dá o direito de mentir tão descaradamente,
com tão grande inconsciência.
O maltrapilho pôs a mão no fecho da porta e como um ladrão apanhado em falta olhou o vestíbulo à sua volta.
- Eu não minto... - gaguejou -,posso mostrar-lhe os meus papéis.
- Quem acredita nisso? -- prosseguiu Skvortsov, indignado. - Explorar a simpatia que dedicamos aos professores de aldeia e aos alunos, é tão reles, tão cobarde,
tão infame.
Indignado, Skvortsov repreendeu o mendigo sem dó nem piedade. O maltrapilho, com a sua impudente mentira, provocara nele um sentimento de desprezo e indignação.
Melindrara o que Skvortsov tinha em maior apreço: a bondade, a sensibilidade, a comiseração. Com a sua mentira e o seu atentado à caridade, o indivíduo tinha como
que profanado a esmola que o advogado gostava, por bondade, de dar aos pobres. O indigente começou por se defender, jurou por todos os santos, mas por fim calou-se
e, atrapalhado, baixou a cabeça.
- Senhor - disse pousando a mão no coração -, efectivamente... menti... Não sou nem estudante, nem professor de aldeia; é uma pura invenção da minha parte. Pertenci
a um coro de cantores russos, donde me expulsaram pelo uso excessivo de bebidas alcoólicas. Mas que hei-de fazer? Que Deus me valha, como é possível não mentir?
Se digo a verdade ninguém me dá nada. Quando se fala verdade, morre-se de fome e gela-se sem asilo. Tem razão, concordo; mas... que hei-de fazer?
- Que há-de fazer?... Pergunta-me o que há-de fazer? - exclamou Skvortsov, aproximando-se do maltrapilho. - Trabalhar, eis o que deve fazer. É preciso trabalhar.
- Trabalhar... Também penso da mesma maneira, mas onde encontrar trabalho?
- Desculpas. Você é novo, saudável, robusto; arranjará trabalho sempre que quiser. Mas é preguiçoso, vicioso, bêbado. Bebe vodka como quem bebe água. Mente como
uma mulher, está corrompido até à medula dos ossos; não presta senão para mendigar e mentir. Para que você, algum dia, se resolvesse a trabalhar, seria necessário
oferecer-lhe um belo escritório, um bom coro russo, um lugar de

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corretor na Bolsa, onde não haja nada que fazer senão receber dinheiro. Seria capaz de transigir em fazer um trabalho de mão-de-obra? Sem dúvida, não deseja ser
porteiro, ou operário numa fábrica. É que tem grandes pretensões!
- Que opinião a sua, meu Deus respondeu o mendigo, com um sorriso amargo. - Onde posso arranjar trabalho? Sou demasiado velho para empregado de escritório; porque
no comércio é preciso primeiro ser aprendiz; não me empregam como guarda-pátios porque, na minha qualidade de intelectual, não me podem empurrar... e numa fábrica
também não me querem: é preciso ter uma profissão e eu não tenho.
- Desculpas. Encontra sempre um pretexto... Quer partir lenha?
- Não me recuso, mas hoje em dia nem os próprios lenhadores de profissão conseguem ganhar a sua vida.
- Todos os preguiçosos pensam como você. Recusam aquilo que lhes propõem. Quer partir lenha em minha casa?
- Às suas ordens, partirei lenha...
- Bom, veremos... Óptimo... Veremos.
Skvortsov levantou-se rapidamente e, esfregando as mãos, com uma certa satisfação mesquinha, chamou a cozinheira.
-Ouve, Olga - disse-lhe -.conduz este senhor à serraria para partir lenha.
O pedinte encolheu os ombros com ar perplexo, e seguiu, indeciso, a cozinheira. Notava-se pela sua atitude que aceitara partir lenha, não porque tivesse fome e quisesse
trabalhar, mas unicamente por amor-próprio e vergonha, come apanhado de surpresa. Era visível que se encontrava muito enfraquecido pela bebida, que estava doente,
e não sentia nenhuma propensão para o trabalho.
Skvortsov apressou-se a ir para a casa de jantar. Das janelas que davam para o pátio podia observar a serraria e tudo quanto lá se passava. O advogado viu a cozinheira
e o maltrapilho saírem pela porta de serviço e, atravessando a neve suja, encaminharem-se para a serraria. Olga, zangada, fitava o seu companheiro com rancor e,
com um gesto de impaciência, abriu a serraria, fazendo bater a porta com violência.
"Provavelmente, impedimos a boa mulher de tomar o seu café - pensou Skvortsov. - Que horrível criatura."
Skvortsov viu o pseudoprofessor e pseudo-estudante sentar-se em cima de um cepo, apoiar a face vermelha nas mãos e reflectir. A

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cozinheira lançou o machado aos seus pés, cuspiu com desdém, e, a avaliar pelo movimento dos beiços, começou a resmungar.
O maltrapilho agarrou irresolutamente uma acha, colocou-a entre as pernas e desferiu um golpe, molemente. A acha rebolou e caiu. O indigente agarrou-a de novo, soprou
nas mãos entorpecidas e recomeçou a bater na acha, mas com tanta cautela que parecia temer atingir um pé ou cortar os dedos. A acha rebolou outra vez.
A irritação de Skvortsov já tinha passado. Sentia um certo mal-estar e estava envergonhado por ter constrangido um homem desabituado de trabalhar, alcoolizado e
talvez doente, a fazer, ao frio, um trabalho de servente.
"Não faz mal - pensou Skvortsov, regressando ao seu escritório - que trabalhe. Faço isto para o seu bem."
Olga voltou, uma hora depois, para anunciar que a lenha estava partida.
- Dá-lhe cinquenta kopeks ~ disse Skvortsov.- Se ele quiser que volte para partir lenha no dia um de cada mês... Haverá sempre trabalho para ele.
No primeiro dia do mês seguinte, o maltrapilho voltou e ganhou mais cinquenta kopeks, ainda que mal se sustentasse em pé. Em seguida tornou a aparecer várias vezes
no pátio e de todas as vezes lhe arranjavam trabalho; umas vezes juntava a neve em monte, outras arrumava a serraria, outras ainda batia os tapetes e os colchões.
Recebia pelo seu trabalho vinte a quarenta kopeks e uma vez chegaram mesmo a dar-lhe um par de calças velhas. Como Skvortsov decidisse mudar de casa, contratou-o
para ajudar a mudança. Desta vez o mendigo não estava alcoolizado, mas sóbrio e silencioso. Mal tocava nos móveis, caminhava diante dos carros, cabeça baixa, não
procurando sequer parecer atarefado. Encolhia-se com frio, embaraçado, quando os homens dos transportes troçavam da sua inacção, da sua fraqueza e do seu sobretudo
coçado de burguês. Depois da mudança Skvortsov mandou-o chamar.
- Vejo que as minhas palavras surtiram efeito - disse, dando-lhe um rublo -, aqui tem pelo seu trabalho. Verifico que não bebeu e que deseja trabalhar. Como se chama?
- Luchkov.
- Posso agora, Luchkov, arranjar-lhe um trabalho melhor. É capaz de fazer escrita?
- Sou.

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- Dirija-se amanhã de manhã com esta carta ao escritório de um colega meu, que lhe dará cópias... Trabalhe, não beba; não esqueça o que lhe disse. Adeus.
Skvortsov, contente por ter ajudado um homem a encontrar o seu caminho, bateu amigavelmente no ombro de Luchkov e estendeu-lhe mesmo a mão quando se despediu. Luchkov
pegou na carta, partiu e nunca mais voltou a trabalhar no pátio.
Passaram dois anos. Um dia, quando Skvortsov comprava um lugar na bilheteira de um teatro, viu junto de si um homem pequeno, com uma gola de astracã no seu sobretudo
e um gorro de lontra usado. O homem pediu um bilhete para as galerias e pagou em moedas de cobre.
- É você, Luchkov? - perguntou Skvortsov reconhecendo o seu antigo rachador de lenha. - Então? Que é feito de si? Corre tudo bem?
- Menos mal. Trabalho agora no escritório de um notário; ganho trinta e cinco rublos, senhor.
- Deus seja louvado, ainda bem. Alegro-me por si. Estou muito, muito contente, Luchkov. Você é para mim como um afilhado. Fui eu que o empurrei para o bom caminho.
Lembra-se como o repreendi, hem? Você quase se meteu pelo chão abaixo! Bom, meu caro, obrigado por não ter esquecido as minhas palavras.
- Obrigado igualmente a si - disse Luchkov. - Se não tivesse ido a sua casa, ainda agora me intitularia professor ou estudante... Sim, foi em sua casa que me salvei,
que fui tirado para fora do precipício...
Estou muito, muito contente.
- Obrigado pelas suas boas palavras e pelas suas decisões. Deu-me muito bons conselhos. Estou-lhe muito reconhecido, assim como à sua cozinheira. Que Deus proteja
essa boa e nobre mulher. O senhor disse-me, na altura, exactamente o que era preciso. Ficar-lhe-ei decerto reconhecido até ao fim dos meus dias; mas para dizer a
verdade foi a sua cozinheira quem me salvou.
- Como assim?
- Eis o que se passou. Quando vinha a sua casa partir lenha, Olga começava: "Ah!, maldito borracho, a morte não quer nada contigo." E sentava-se diante de mim, entristecia-se,
olhava-me e compadecia-se: "Desgraçado de ti. Não conheces a felicidade neste mundo nem no outro, pobre bêbedo, serás pasto das chamas do

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Inferno. Infeliz de ti", e assim por diante. Quanto se preocupou comigo, quantas lágrimas chorou por minha causa, não lhe saberei dizer. Mas o principal é que partia
a lenha em meu lugar. Não parti uma única acha em sua casa; era Olga quem o fazia. Por que razão me salvou, por que motivo me modifiquei, enquanto a contemplava,
e deixei de beber? Não sei explicar-lhe... Sei apenas que, graças às suas palavras e aos seus nobres actos se operou no meu íntimo uma transformação. Corrigiu-me
e nunca o esquecerei. Mas é altura de entrarmos, oiço a campainha
Luchkov cumprimentou e dirigiu-se para as galerias.

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SEM TÍTULO

No século V, como ainda hoje, o Sol nascia todas as manhãs e punha-se todas as noites. De madrugada, quando os primeiros raios de sol trocavam beijos com a aurora,
a terra despertava, o ar enchia-se de sons de alegria, de êxtase e de esperança; e quando caía a noite a terra sossegava e mergulhava no melancólico crepúsculo.
Todos os dias e todas as noites se assemelhavam.
De vez em quando aparecia uma nuvem e ouvia-se soar o trovão, ou uma estrela distraída caía do céu. Ou então aparecia um frade pálido, a segredar aos outros irmãos
que acabara de ver um tigre perto do convento. E era tudo. Depois, os dias e as noites voltavam a ser iguais.
Os monges trabalhavam e rezavam. O superior tocava órgão, compunha música e escrevia versos em latim. Esse admirável velho possuía um dom extraordinário: tocava
órgão com tamanha arte que mesmo os velhos frades, cujo ouvido com o decorrer da vida se tornara mais apurado, não podiam conter as lágrimas, quando lhe chegavam
os sons do instrumento, vindos da sua cela.
Fosse qual fosse o assunto de que falasse, mesmo coisas muito banais - as árvores, os animais, o mar -, não era possível ouvi-lo sem sorrir ou chorar, e mais parecia
que na sua alma vibravam cordas semelhantes às do órgão.
Quando se zangava, ou se se entregava a uma grande alegria, ou falava de qualquer coisa terrível e grandiosa, era dominado por um sentimento de paixão. Lágrimas
brotavam-lhe dos olhos brilhantes. Corava. A sua voz ecoava; e ao ouvi-lo os monges sentiam a inspiração invadir as suas almas. Em momentos tão belos e maravilhosos,
o seu poder não tinha limites. Se desse ordem aos seus

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frades para se lançarem ao mar, todos, até ao último, se teriam precipitado com prazer a fim de executarem a sua vontade.
A sua música, as entoações, os versos de louvor a Deus, ao Céu e à Terra, eram para os seus irmãos em Cristo uma fonte incessante de júbilo. Acontecia que em razão
da uniformidade das suas vidas, as árvores, as flores, o Verão, o Outono, os exasperavam. O barulho do mar fatigava-lhes os ouvidos, o canto dos pássaros tornava-se-lhes
desagradável; mas os talentos do seu superior eram para eles tão indispensáveis como o pão de cada dia.
Decorreram dezenas de anos. Os dias e as noites eram semelhantes. À excepção dos pássaros e dos animais selvagens, nenhum ser vivo se aproximava do convento. A casa
mais próxima ficava longe e, para a alcançar, era necessário transpor a pé, em pleno deserto, uma centena de verstas. Apenas se decidiam a transpor esse espaço as
pessoas que tinham desprezo pela vida, fugiam dela, e se acolhiam ao convento como num túmulo.
Foi imenso o espanto dos monges quando, uma noite, lhes bateu à porta um habitante da cidade, simples pecador que amava a vida.
Esse homem, antes de pedir a bênção do superior e rezar, ordenou que lhe servissem vinho e comida. Quando lhe perguntaram como viera da cidade até ao deserto, narrou
uma longa história de caça. Partira para a caça, depois de ter estado a beber, perdendo-se pelo caminho. Quando lhe propuseram que entrasse para o convento a fim
de salvar a sua alma, respondeu sorrindo:
- Não sou o vosso homem.
Depois de ter comido e bebido, olhou atentamente os monges que o serviam, abanou a cabeça com ar reprovador, e disse:
- Vocês levam uma vida ociosa, monges. Não sabem senão comer e beber. É assim que se trabalha para a salvação? Pensem que enquanto estão aqui a repousar, comendo,
bebendo e sonhando com a beatificação, o vosso semelhante perde-se e vai para o Inferno. Vejam o que se passa na cidade! Enquanto uns morrem de fome, outros não
sabem que fazer ao seu ouro, e afundam-se na libertinagem como moscas no mel. Não existe entre os homens nem fé nem verdade. A quem pertence a obrigação de os salvar
e lhes pregar? É a mim, que bebo de manhã à noite? Vós recebestes uma alma dócil, um coração cheio de amor e a fé, para ficarem entre' quatro paredes sem fazerem
nada?...

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Apesar de insolentes e inconvenientes, as palavras do cidadão bêbado agiram de estranha maneira no superior do convento. O ancião olhando os seus monges empalideceu
e disse:
- Irmãos, mas ele tem razão. Os pobres mortais perdem-se, efectivamente, no vício e impiedade, no disparate e na1 fraqueza, enquanto nós continuamos impassíveis
como se isso não nos dissesse respeito. Porque não hei-de ir eu à cidade para lhes fazer lembrar o Cristo que eles esqueceram?
As palavras do homem da cidade haviam seduzido o velho monge. Logo no dia seguinte agarrou no seu bastão e partiu para a cidade. Os frades ficaram privados de música,
de sermões e de poesia.
Um mês, dois meses, pareceu-lhes longo o tempo, sem que o ancião voltasse. Finalmente, no princípio do terceiro mês, ouviu-se o ruído familiar da sua bengala. Os
monges correram ao seu encontro e sufocavam-no com perguntas. Mas, ao vê-los, em vez de se regozijar, o abade principiou a chorar amargamente, sem dizer uma palavra.
Os monges notaram que ele emagrecera e envelhecera muito. O seu rosto cansado exprimia profunda aflição e, quando principiou a chorar, tinha o ar de um homem que
fora insultado.
Os frades começaram também a chorar e trataram-no com solicitude. Porque chorava e tinha uma cara tão lúgubre?
Mas, sem responder, o superior fechou-se na sua cela. Ali ficou sete dias sem beber nem comer; nem tocar órgão; apenas chorava. Quando lhe batiam à porta e os frades
lhe pediam que saísse e lhes contasse o seu desgosto, guardava profundo silêncio.
Por fim, saiu. Agrupando todos os seus frades à sua volta, a face vermelha de chorar, com uma expressão de dor e desalento, principiou a contar o que lhe sucedera
durante esses três meses.
A sua voz estava calma e o olhar sorridente, quando descreveu a viagem do convento à cidade. Pelo caminho, os pássaros ofereciam-lhe os seus cânticos, os ribeiros
corriam, e doces e jovens esperanças enchiam a sua alma. Caminhava, sentindo-se um soldado que vai para o combate, já seguro da vitória. Caminhava sonhando e compondo
versos e hinos, sem se aperceber de como tinha chegado. Mas quando principiou a falar da cidade e dos seus habitantes, a voz tremeu-lhe, os olhos brilharam, e a
cólera apoderou-se dele.
Nunca vira, nem ousara imaginar, o que encontrou quando chegou à cidade. Foi só no declínio da vida que descobriu e compreendeu quanto é poderoso o demónio, quanto
é belo o mal, e

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quão fracos, pusilânimes e nulos são os homens. A primeira casa em que entrou foi, por azar, uma casa de deboche. Uma meia centena de pessoas, com muito dinheiro,
comiam e bebiam sem medida. Bêbedos, cantavam e proferiam provocantemente palavras horríveis, repugnantes, que não ousaria pronunciar um homem temente a Deus. Profundamente
independentes, fortes e felizes, não temiam Deus, nem o Diabo, nem a morte. Diziam e faziam tudo o que lhes apetecia. Iam até onde a luxúria os levava. O vinho que
bebiam, transparente como o âmbar, semeado de centelhas de ouro, era sem dúvida extremamente doce e perfumado, porque ao bebê-lo todos sorriam de beatitude, querendo
beber mais. Ao sorriso do homem, o vinho respondia com um sorriso, e quando o bebiam cintilava com alegria como se soubesse o encanto diabólico que emanava da sua
doçura.
O ancião, cada vez mais excitado e chorando de cólera, continuava a descrever o que vira. Em cima da mesa, entre os convivas, estava uma pecadora seminua. É difícil
imaginar e encontrar na natureza nada mais belo e cativante. Essa jovem devassa, de cabelos compridos, morena, olhos negros, lábios carnudos, impudente, cínica,
mostrava os dentes, brancos como a neve, e sorria parecendo dizer: "Vejam como sou descarada e bela." A seda e o brocado caíam em sedosas pregas dos seus ombros,
mas a sua beleza não desejava esconder-se sob as vestes; como a erva nova brotando do solo primaveril, essa beleza emergia avidamente através dos refegos. A impudente
mulher bebia vinho, cantava e oferecia-se a quem a desejava.
Em seguida, o velho monge, agitando colericamente os braços, descreveu corridas de circo, combates de touros, teatros, ateliers de artistas onde se pintam ou modelam
em gesso mulheres nuas. Falava com eloquência, descrevendo ao vivo, como se tocasse música em cordas invisíveis; e os frades petrificados escutavam-no avidamente,
sufocados de êxtase. Depois de ter descrito todos os atractivos do diabo, a beleza do mal e a graça compassiva do corpo feminino, o ancião amaldiçoou o demónio,
e partiu desaparecendo atrás da porta...
No dia seguinte, quando saiu da sua cela, não havia um único monge no convento. Tinham fugido todos para a cidade.

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O ADULADOR

Com o seu capote novo e um embrulho na mão, Ochumelov, o inspector da Polícia, atravessa a praça do mercado. Atrás dele, caminha um guarda ruivo, com uma peneira
cheia de groselhas apreendidas. Em redor, reina o silêncio... Na praça não há nem uma alma... As portas abertas das lojas e tabernas olham o mundo, melancolicamente,
como fauces famintas; nas imediações nem sequer há mendigos.
A quem estás tu a morder, maldito? - ouve, de repente, Ochumelov. - Não o deixem sair, rapazes! É proibido morder! Agarra-o! Ah!... Ah!
Ouve-se ganir um cão. Ochumelov olha em volta e vê que do armazém de lenha de Pichugin, saltando sobre três patas e olhando para um lado e para outro, sai, correndo,
um cachorro. Em sua perseguição vem um homem com camisa de percal engomada e colete desapertado. Corre atrás do cão com o corpo inclinado para a frente, cai e agarra
o animal pelas patas traseiras. Ouve-se outro ganido e um novo grito: "Não o deixes fugir!" Caras sonolentas apareceram às portas das lojas e, de repente, nas imediações
do armazém de lenha, como se tivesse brotado do solo, junta-se gente. Houve uma desordem, senhor!... - diz o guarda.
Ochumelov dá meia volta à esquerda e dirige-se para o grupo. Mesmo à porta do armazém vê o homem que atrás descrevemos, com o colete desapertado, o qual, de pé,
levanta a mão direita e mostra um dedo ensanguentado. Na sua expressão de alcoólico parece ler-se: "Vou tirar-te a pele, malandro!"; ergue o dedo como uma bandeira
vitoriosa. Ochumelov reconhece o ourives Kriukin. No centro do grupo, com as patas dianteiras estendidas e tremendo, sentado no

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solo, está o culpado do escândalo, um galgo branco, ainda cachorro, de focinho afilado e uma mancha amarela no lombo. Os olhos lacrimosos têm uma expressão de angústia
e pavor.
- Que aconteceu? - pergunta Ochumelov, abrindo caminho entre a gente. - Que é isto? Que fazes aí com esse dedo?... Quem gritou?
- Eu não me meti com ninguém, meu senhor... - começa Kriukin, e pigarreia tapando a boca com a mão. - Vinha falar com Mitri Mitrich e este maldito cão, sem mais
nem menos, mordeu-me o dedo... Perdoe-me, sou um homem que ganha a vida com o seu trabalho... É um labor muito delicado. Alguém tem que me pagar, porque posso estar
uma semana sem poder mexer o dedo... Não há nenhuma lei que nos obrigue, meu senhor, a sofrer por culpa dos animais... Se todos começam a morder será melhor morrermos...
-Hum!... Está bem... - diz Ochumelov, pigarreando e arqueando o sobrolho. - Está bem... De quem é o cão? Isto não fica assim. Vou ensiná-los a deixar os cães à solta!
Já é tempo de tratar com esses senhores que não desejam cumprir o que está estabelecido. Quando fizerem pagar uma multa a esse miserável, ficará a saber quanto custa
deixar andar pela rua cães e outros animais. Vai-se lembrar de mim!... Eldirin - prossegue o inspector, voltando-se para o guarda -, informa-te de quem é o cão e
levanta o respectivo auto. E o cão tem que ser morto. Sem perder um instante! Decerto está com raiva... Quem é o dono?
- Creio que é o general Zhigalov - alvitrou alguém.
- O general Zhigalov? Hum!... Eldirin, ajuda-me a tirar o capote... Está um calor terrível! Com certeza anuncia chuva... Mas há uma coisa que não compreendo: como
pôde o cão morder-te? - continua Ochumelov, dirigindo-se a Kriukin. - Não podia chegar-te ao dedo. É um cão pequeno e tu, tão grande! Com certeza espetaste aí um
prego e depois ocorreu-te a ideia de dizer esta mentira. Porque tu... já nos conhecemos! Conheço-os a todos, que diabo!
- O que ele fez, meu senhor, foi chegar-lhe o cigarro ao focinho, de brincadeira, e o cão, que não é parvo, deu-lhe uma dentada... Está sempre a fazer destas, meu
senhor.
- Mentes, malandro! Para que mentes, se não viste nada? Sua senhoria é um homem inteligente e percebe quem mente e quem diz a verdade... E se estou a mentir, o juiz
de paz o dirá. É ele quem dita

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a lei... Aqui somos todos iguais... Um irmão meu é polícia... se queres saber.
Basta de comentários!
Não, não pertence ao general... - observa pensativo o guarda. - O general não tem cães como este. Os dele são cães de exposição...
Tens a certeza?
Sim, meu senhor...
Também me parece. Os cães do general são caros, de raça, enquanto este, sabe-se lá o que é! Não tem pêlo nem categoria... é um nojo. Para que teria o general um
cão destes? Aonde tens a cabeça? Se este cão aparecesse em Petersburgo ou em Moscovo, sabem o que acontecia? Não estavam com meias medidas e no mesmo instante, zás!
Tu, Kriukin, foste prejudicado; não descures o assunto... Já é tempo de lhes dares uma lição!
- Em todo o caso podia ser do general... - pensa o guarda em voz alta. - Não traz nada escrito ao pescoço... No outro dia vi lá no pátio um cão como este.
É do general, com certeza! - disse uma voz.
- Hum!... Ajuda-me a pôr o capote, Eldirin... Parece que refrescou... Sinto arrepios... Leva-o ao general e pergunta. Diz que o encontrei e que lho mando... E recomenda
que não o deixem sair para a rua... Pode ser um cão de valor e um burro qualquer chega-lhe o cigarro ao nariz e não tardarão a dar cabo dele. O cão é um animal delicado...
E tu, imbecil, põe a mão para baixo. Já basta de mostrar o teu estúpido dedo! Tu é que tens a culpa!...
- Aí vem o cozinheiro do general; vamos perguntar-lhe... Eh, Prokor! Aproxima-te, amigo! Olha para este cão... É vosso?
- Que ideia! Nunca houve cães como este na nossa casa!
- Basta de perguntas! - disse Ochumelov. - É um cão vagabundo. Não há razão para perder tempo em conversas... Se eu disse que era um cão vagabundo é um cão vagabundo...
Temos que o matar e acabou-se.
- Não é nosso - continua Prokor. - É do irmão do general, que chegou há dias. O meu amo não gosta de galgos:Seu irmão...
- Chegou o irmão? Vladimir Ivanich? - pergunta Ochumelov, e todo o rosto se ilumina com um sorriso de ternura. - Valha-me Deus! Não sabia. Veio de visita?
-Sim...

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- Ora... Tinha saudades do irmão... e eu não sabia nada. Então o cão é dele? Folgo muito... Leva-o... É um bom cão... Muito vivo... mordeu o dedo a este! Bem, bem,
bem,... É, lá, porque tremes? Rrr... Rrr... Amuou, o velhaco. Ora o cãozito...
Prokor chama o animal e afasta-se do armazém de lenha... O povo ri-se de Kriukin.
- Voltaremos a ver-nos! - ameaçou-o Ochumelov e, envolvendo-se no capote, segue o seu caminho pela praça principal do mercado.

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A BOTICÁRIA

A pequena cidade de B., composta de duas ou três ruas tortuosas, dorme, de um sono profundo. Na atmosfera estática, reina o silêncio. Apenas se ouve ao longe, já
nos arredores, o débil e rouco ladrar de um cão. Em breve amanhecerá.
Há muito que tudo está mergulhado no sono. A única que não dorme é a jovem esposa de Chernomordik, o boticário. Deitou-se por três vezes, mas, sem saber porquê,
não consegue dormir. Está sentada diante de uma janela aberta, em camisa de noite e olha a rua. Sente calor e tédio, domina-a uma irritação tal que está prestes
a romper em soluços, sem saber dizer porquê. Sente um nó no peito que lhe sobe até à garganta... Atrás, a alguns passos da boticária, de cara virada para a parede,
Chernomordik ressona calmamente. Uma pulga, ávida de sangue, picou-o no sobrolho, mas ele não sente e, inclusivamente, sorri, visto estar a sonhar que na cidade
toda a gente tosse e se precipita para comprar gotas do rei-da-dinamarca. Neste momento não o despertariam nem alfinetadas, nem tiros de canhão, nem caricias.
A farmácia está situada quase nos subúrbios da cidade, assim, a boticária tem diante de si o campo... Pouco a pouco, para leste, vê clarear a linha do horizonte,
tornar-se lentamente vermelha, tal como se houvesse um grande incêndio. Inesperadamente, por detrás de uns arbustos longínquos, aparece uma Lua grande, muito redonda.
Está vermelha (em geral, quando a Lua sai detrás de uns matagais, não sabemos porquê, parece terrivelmente perturbada).
De repente, no silêncio da noite, ressoa um ruído de passos e de esporas. Ouvem-se vozes.
"São oficiais que estavam em casa do comissário da Polícia e voltam para o acampamento", pensa a boticária.

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Pouco depois aparecem duas silhuetas de dólmanes brancos: uma é alta e gorda, a outra um pouco mais baixa e delgada... Caminham vagarosamente ao longo da vedação,
e conversam em voz alta. Ao chegarem junto da farmácia abrandam ainda mais o passo e olham para as janelas.
- Cheira a farmácia... - diz o magro. - Efectivamente, é isso! Agora me lembro... A semana passada estive aqui a comprar óleo de rícino. O boticário é um homem bilioso
e com mandíbula de asno. Que queixada, meu amigo! Igual à que Sansão usou contra os Filisteus.
- Sim... - continua o gordo em voz de baixo profundo. - Dorme a farmacopeia! Também dorme a boticária. É muito bonita, sabe, Obtesov?
- Vi-a nessa altura. Agradou-me muito... Diga-me, doutor: será ela capaz de amar esse homem com queixada de burro?
- Não creio - suspira o doutor, como se tivesse pena do boticário. - Ela deve estar a dormir. Pode imaginá-la, Obtesov? Extenuada pelo calor... com a boquita entreaberta...
e uma perna fora da roupa. O estúpido do boticário, com certeza não sabe o que tem em casa. Para ele, esta mulher é igual a uma botija de ácido fénico.
- Sabe, doutor? Entremos para comprar qualquer coisa.
- Que ideia! Em plena noite!
- Que tem de extraordinário? São obrigados a atender a qualquer hora. Vamos, meu caro.
- Se tem tanto empenho...
A boticária, oculta pelas cortinas, escuta a campainhada afónica. Olha para o marido, que continua a ressonar com a mesma placidez e sorri. Veste uma bata, enfia
umas sapatilhas e sai para a farmácia.
Através do vidro da porta, distinguem-se duas sombras... A boticária sobe a mecha do candeeiro de petróleo para aumentar a luz e acerca-se para abrir. Já não sente
tédio nem irritação; não tem vontade de chorar, embora, isso sim, o coração lhe bata aceleradamente. Entram o gordo doutor e o esguio Obtesov. Agora é possível observá-los.
O doutor, ventre proeminente, moreno, usa barba, e os seus movimentos são lentos. Parece a cada momento que o dólman vai rebentar e o seu rosto brilha de suor. O
outro é rosado, imberbe, de feições femininas e flexível como uma chibata inglesa.

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- Que desejam? - pergunta a boticária, com a mão no peito para segurar a bata.
- Dê-me... quinze kopeks de pastilhas de mentol.
Sem pressa, a boticária tira da prateleira um boião e dispõe-se a pesar. Os militares, sem pestanejar, olham as suas costas. O doutor franze as pálpebras, como um
gato com a barriga cheia, e o tenente está muito sério.
- É a primeira vez que vejo uma senhora a aviar numa farmácia - observa o doutor.
- Não tem nada de especial... - replica a boticária, olhando com o rabinho do olho o rosto rosado de Obtesov. - O meu marido não tem empregado e eu ajudo-o.
- Claro... É muito agradável a sua farmácia! Quantos boiões e frascos! E não tem medo de andar entre venenos! Brr!
A boticária faz um embrulhinho e entrega-o ao doutor. Obtesov dá-lhe quinze kopeks. Decorrem uns instantes de silêncio... Os homens olham-se, dão um passo para a
porta, voltam a olhar-se.
Dê-me dez kopeks de bicarbonato - diz o doutor. Com preguiça e lentidão, como antes, a boticária vira-se para as estantes.
Tem alguma coisa... - balbucia Obtesov, movendo os dedos -, qualquer coisa de alegórico, um líquido tonificante, água de Seltz? Tem água de Seltz?
- Tenho.
- Bravo! A senhora não é uma mulher, mas uma fada! Dé-nos três garrafas.
A boticária embrulha rapidamente o bicarbonato e desaparece na penumbra do armazém.
- É um encanto! - diz o doutor, piscando o olho. - Uma fruta tão apetitosa, Obtesov, você não encontraria nem na ilha da Madeira. Não lhe parece? Mas, ouve esses
roncos? O senhor boticário descansa.
Ao cabo de um minuto a boticária volta e coloca sobre o balcão cinco garrafas. Esteve na cave e por isso vem um pouco afogueada.
- Chiu... não faça barulho - diz Obtesov quando ela, depois de abrir as garrafas, deixa cair o saca-rolhas. - Vai acordar o seu marido.
- E que importa?
Tem um sono tão doce... Está a sonhar consigo... à sua saúde!

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- E depois - acrescenta o doutor, arrotando com a água de Seltz -, os maridos são uma coisa tão aborrecida que deviam dormir a todas as horas. Se pudesse dar-nos
um pouco de vinho tinto...
- Que coisas diz! - ri-se a boticária.
- Seria magnífico! Pena que nas farmácias não vendam bebidas alcoólicas. Aliás,... os senhores devem vender vinho como remédio. Tem vinum gallicum rubrum ?
- Sim.
- Perfeito. Venha! Traga-o, que diabo!
- Quanto quer?
- Quantum satis!... Primeiro dé-nos uma onça, em água, a cada um de nós; depois veremos... Não lhe parece, Obtesov? Primeiro com água e depois per se...
O doutor e Obtesov instalam-se junto ao balcão, tiram os gorros e tomam uns goles de vinho.
- Temos que reconhecer que é detestável. Vinum plochissimum 1. Embora na sua presença... pareça néctar. A senhora é encantadora. Mentalmente, beijo-lhe a mão.
- Pois eu daria muito mentalmente - acrescentou Obtesov. vida!
- Deixemos isso... - diz ruborizando-se e pondo-se séria.
- É tão coquete! - ri o doutor suavemente, olhando-a de soslaio com uma expressão brejeira. - Os seus olhos disparam como uma espingarda. Pif, paf! Felicito-a: venceu!
Fomos derrotados!
A boticária olha os seus rostos corados, escuta a sua conversa e não tarda a animar-se. É tão divertido! Intervém na conversa, ri-se e, depois de muito instada,
bebe um par de onças de vinho.
- Os senhores oficiais deviam frequentar mais a cidade - declarou -, porque morremos de aborrecimento. Eu, morro.
- Com certeza que sim! - horroriza-se o doutor. - Uma mulher que é um portento num lugar tão perdido... Mas devemos retirar-nos. Folgo muito tê-la conhecido. Quanto
lhe devemos?
A boticária fixa os olhos no tecto e durante um bocado move os beiços.
para Palavra
o de
fazer não honra. Daria a
a senhora de Chernomordik,

' Forma latinizada do vocábulo russo ploko, mau (N. do T.).

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- Doze rublos e quarenta kopeks - diz.
Obtesov tira da algibeira uma grande carteira, e paga. - Seu marido dorme tranquilamente... tem sonhos agradáveis... - balbucia apertando a mão da boticária.
- Não me agrada ouvir patetices...
- Terei, por acaso, dito uma patetice? Pelo contrário... Até Shakespeare disse: "Bem-aventurado o que foi jovem na sua juventude."
- Largue-me a mão!
Finalmente, os militares, depois de longa despedida, beijam a mão da boticária e, indecisos, como reflectindo se haveriam esquecido alguma coisa, saem da farmácia.
Ela corre para o quarto de dormir e senta-se junto da janela onde estivera antes. Observa o doutor e o tenente, que, ao saírem da farmácia, se afastam vagarosamente
uns vinte passos, se detém e começam a falar em voz baixa. De quê? O coração da boticária bate com violência; também sente que lhe latejam as fontes, embora não
soubesse dizer a causa... O coração bate como se aqueles homens que pararam a sussurrar fossem decidir a sua sorte.
Passados cinco minutos o doutor afasta-se definitivamente e Obtesov volta. Passa junto da farmácia uma vez, outra... Detém-se ao pé da porta, caminha novamente...
Por fim, toca suavemente a campainha.
- Que se passa? Quem é? - a boticária ouve a voz do marido. - Estão a bater e não ouves nada! - acrescenta enfadado o boticário. - É um escândalo!
Levanta-se, veste o roupão e cambaleando, meio adormecido, arrastando os chinelos, vai à farmácia. Que deseja? - pergunta a Obtesov.
- Dê-me... dé-me quinze kopeks de pastilhas de mentol.
Ofegante, bocejando, tropeçando a cada passo, batendo com os
joelhos contra o balcão, o boticário procura o boião...
Dois minutos depois a boticária observa Obtesov, que, uns passos adiante da farmácia, atira as pastilhas de mentol para o pó do caminho. Da esquina, sai o doutor
e vai ao seu encontro... Juntam-se e, gesticulando muito, desaparecem na neblina da manhã.
- Que infeliz eu sou! - diz a boticária, olhando enraivecida o marido, que despe rapidamente o roupão para voltar para a

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cama. - Que desgraçada! - repete e, de repente, desata num pranto amargo. - E ninguém, ninguém sabe...
- Esqueci-me dos quinze kopeks no balcão - grunhe o boticário, tapando-se com o lençol. - Faz o favor de mós guardar na caixa.
E adormece no mesmo instante.

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UMA CURISTA

Certa ocasião, quando era mais jovem e formosa e tinha melhor voz, encontrava-se no rés-do-chão da sua casa de campo com Nikolai Petrovich Kolpakov, seu amante.
Fazia um calor insuportável, não se podia respirar. Kolpakov acabara de comer, tinha bebido uma garrafa de mau vinho do Reno e sentia-se de péssimo humor e desorientado.
Estavam aborrecidos e esperavam que o calor abrandasse para saírem a dar um passeio.
De súbito, inesperadamente, bateram à porta. Kolpakov, que estava sem casaco e de chinelos, pôs-se de pé e olhou interrogativamente para Pasha.
- Talvez seja o carteiro, ou uma amiga - disse a cantora.
A Kolpakov não lhe importava nada ser visto pelo carteiro ou pelas amigas de Pasha, mas, na dúvida, apanhou a roupa e retirou-se para o quarto ao lado. Pasha foi
abrir. Com grande assombro seu, não era o carteiro nem uma amiga, mas uma mulher desconhecida, jovem, formosa, bem vestida e que, a julgar pelas aparências, pertencia
à classe das mulheres decentes.
- Que deseja? - perguntou Pasha.
A senhora não respondeu. Deu um passo em frente, olhou em volta e sentou-se como se se sentisse cansada ou indisposta. Depois, durante um longo momento, moveu os
beiços descorados, procurando murmurar qualquer coisa.
- Está aqui meu marido? - perguntou por fim, levantando para Pasha os seus grandes olhos, de pálpebras avermelhadas pelo choro.
- Que marido? - murmurou Pasha, sentindo que lhe arrefeciam pés e mãos, com o susto. - Que marido? - repetiu, começando a tremer.

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- Meu marido... Nikolai Petrovich Kolpakov.
- Não... não, senhora... Eu... não sei de quem está a falar. Houve uns instantes de silêncio. A desconhecida passou várias
vezes o lenço pelos beiços pálidos e, para vencer o medo interior, conteve a respiração. Pasha, diante dela, imóvel, como que petrificada, olhava-a assustada e perplexa.
- Diz que não está aqui? perguntou a senhora, já com voz firme e um sorriso estranho.
- Eu... não sei por quem pergunta.
- Você é miserável, é infame... - balbuciou a desconhecida, olhando Pasha com ódio e repugnância. - Sim, sim... miserável. Estou feliz, felicíssima por, finalmente,
poder dizer-lho.
Pasha compreendeu que produzia uma péssima impressão naquela senhora vestida de negro, olhos coléricos e dedos brancos e esguios, e teve vergonha das suas faces
redondas e coradas, do seu nariz picado das bexigas e da franja sempre despenteada. Afigurou-se-lhe que se fosse magra, sem pintura e sem franja poderia ocultar
que não era uma mulher decente; assim não lhe teria feito tanto medo e vergonha encontrar-se diante daquela senhora desconhecida e misteriosa.
- Onde está o meu marido? - continuou a senhora. - Embora seja indiferente que ele esteja aqui ou não. Para mais devo dizer-lhe que se descobriu um desfalque e procuram
Nikolai Petrovich... Querem prendê-lo. É para que veja o que fez!
A senhora, presa de grande agitação, deu uns passos. Pasha olhava-a perplexa: o medo não a deixava compreender.
- Hoje mesmo o hão-de encontrar e levá-lo-ão para a cadeia - continuou a senhora, que deixou escapar um soluço em que se misturavam a afeição traída e o despeito.
- Sei quem o arrastou para esta espantosa situação. Miserável, infame: você é uma criatura repugnante que se vende ao primeiro que aparece! - os beiços da senhora
contraíram-se num trejeito de desprezo e enrugou o nariz com asco. - Vejo-me impotente... sabia-o miserável... Vejo-me impotente; você é mais forte do que eu, mas
Deus, que tudo vê, tomará a minha defesa e a de meus filhos. Deus é justo! Pedir-lhe-á contas de cada uma das minhas lágrimas, de todas as minhas noites em claro.
Então lembrar-se-á de mim!
Novamente se fez silêncio. A senhora andava pelo quarto, de um lado para outro, torcendo as mãos. Pasha seguia-a com o olhar,

158

perplexa, sem compreender e na expectativa de que ela fizesse qualquer coisa extraordinária.
- Eu, senhora, não sei nada - articulou e, de repente, começou a chorar.
-- Mente! - gritou a senhora, olhando-a encolerizada. - Sei tudo. Há muito que a conheço. Sei que este último mês o meu marido veio vê-la todos os dias.
- Sim. E depois? Que tem isso? Vêm muitos, mas eu não forço ninguém. Cada um é livre de fazer o que lhe apetece.
- E eu digo-lhe que se descobriu um desfalque! Ele levou dinheiro do escritório. Cometeu um delito por causa de uma mulher como você. Ouça-me - acrescentou a senhora
em tom enérgico, detendo-se junto de Pasha. - Você não tem princípios a guiá-la. Vive para fazer o mal, esse é o seu único objectivo, mas não posso pensar que tenha
caído tão baixo que não conserve vestígios de sentimentos humanos. Ele tem mulher e filhos... Se o condenam e é desterrado, os meus filhos e eu morreremos de fome...
Compreenda. Há, no entanto, um modo de nos salvarmos, nós e ele, da miséria e da vergonha. Se hoje entregar os novecentos rublos deixá-lo-ão tranquilo. São somente
novecentos rublos!
- A que novecentos rublos se refere? - perguntou Pasha em voz baixa. - Eu... eu não sei nada... Nem sequer os vi...
- Não estou a pedir-lhe os novecentos rublos... Você não tem dinheiro e eu não quero nada seu. Peço outra coisa... Os homens costumam presentear com jóias as mulheres
como você. Devolva-me as que lhe foram dadas por meu marido!
Senhora, ele nunca me deu nada. - Pasha, que começava a compreender, elevou a voz.
- Onde está então o dinheiro? Gastou o dele, o meu e o alheio. Onde meteu tudo isso? Ouça-me, suplico-lhe. Há pouco estava irritada e disse-lhe muitas inconveniências,
mas peço-lhe que me perdoe. Deve odiar-me, bem sei, mas, se é capaz de sentir alguma compaixão, ponha-se na minha situação. Suplico-lhe que me devolva as jóias.
- Hum... - começou Pasha encolhendo os ombros -, dava, com muito gosto, mas, Deus me castigue se minto, o seu marido nunca me deu nenhum presente, pode crer. Embora
tenha razão - disse a cantora, perturbando-se -: em certa altura trouxe-me duas coisas. Se quiser, dou-lhas...

159

Pasha abriu uma gaveta do toucador e tirou uma pulseira oca, de oiro,e um anel de pouco valor, com um rubi.
- Aqui tem - disse, entregando-os à senhora. Esta fez-se corada e estremeceu; sentia-se ofendida.
- Que é isso que me dá? - perguntou. - Não lhe estou a pedir esmola, mas o que me pertence... aquilo que você, valendo-se da sua situação, tirou a meu marido...
a esse desgraçado sem força de vontade... Na quinta-feira, quando a vi na doca, com ele, você ostentava uns broches e pulseiras de grande valor. Portanto não finja;
não é um cordeirinho inocente. É a última vez que lhe peço: dá-me as jóias ou não?
- A senhora é muito esquisita... - disse Pasha, que começava a aborrecer-se. - Asseguro-lhe que o seu Nikolai Petrovich não me deu senão esta pulseira e este anel.
A única coisa que me trazia eram pastéis.
- Pastéis... - sorriu ironicamente a desconhecida, - Em casa os filhos não tinham de comer e, para aqui, trazia pastéis. Decididamente, nega-se a devolver-me as
jóias?
Não recebendo resposta, a senhora sentou-se pensativa, com o olhar perdido no espaço.
"Que posso fazer? - pensou. - Se não consigo os novecentos rublos, é um homem perdido e os meus filhos e eu ficaremos na miséria. Que fazer? Matar esta miserável
ou cair de joelhos a seus pés? "
A senhora levou o lenço ao rosto e enxugou as lágrimas.
- Rogo-lhe - dizia, através dos soluços -, você arruinou e perdeu meu marido, salve-o... Não se compadece dele, mas os filhos... os filhos... Que culpa têm eles?
Pasha começou a imaginar uns meninos pequenos, pelas ruas, chorando de fome. Ela própria rompeu a chorar.
- Que posso fazer, senhora? - disse. ~ Diz que sou uma miserável e que arruinei Nikolai Petrovich. Perante Deus lhe asseguro que não recebi nada dele... No nosso
coro, Motia é a única que tem um amante rico; as restantes vivem como podem. Nikolai Petrovich é um homem culto e delicado e eu recebia-o. Nós não podemos fazer
outra coisa.
- Eu o que lhe peço são as jóias! Dê-me as jóias! humilho-me... Se quiser ponho-me de joelhos!

160

Pasha, assustada, deu um grito e abanou as mãos. Compreendeu que aquela senhora pálida e formosa, que se exprimia em frases tão nobres, como no teatro, era efectivamente
capaz de pôr-se de joelhos a seus pés: e isso por orgulho, movida pelos seus nobres sentimentos, para se elevar a si própria e humilhar a corista.
- Está bem, dar-lhe-ei as jóias - disse Pasha, limpando os olhos. - Como queira. Mas pense bem que não são de Nikolai Petrovich... foram-me dadas por outros senhores,
mas se as deseja...
Abriu a gaveta de cima da cómoda; tirou de lá um broche de diamantes, uma gargantilha de corais, vários anéis e uma pulseira, que entregou à senhora.
- Tome, se quer, mas do seu marido não recebi nada. Tome, que lhe façam bom proveito! - continuou Pasha, ofendida pela ameaça de que a senhora se ia pôr de joelhos
-, e, se a senhora é uma pessoa nobre... sua esposa legítima, faria melhor tendo-o mais preso, era isso o que devia fazer. Eu não o chamei, ele veio porque quis...
A senhora, por entre as lágrimas, olhou para as jóias que lhe entregavam e disse:
- Isto não é tudo... Isto não vale novecentos rublos.
Pasha, impulsivamente, tirou da cómoda um relógio de oiro, uma cigarreira e uns botões de punho e disse, abrindo os braços:
- É tudo o que tenho... Verifique se quiser.
A senhora suspirou, embrulhou com mãos trémulas as jóias num lenço e, sem dizer uma só palavra, sem sequer inclinar a cabeça, saiu.
Abriu-se a porta do quarto ao lado e entrou Kolpakov. Estava pálido e sacudia nervosamente a cabeça, como se acabasse de engolir algo muito azedo. Nos seus olhos,
brilhavam lágrimas.
- Que jóias me deu você? - invectivou-o Pasha. - Quando, diga-me?
-Jóias... Que importância têm as jóias - replicou Kolpakov. abanando a cabeça. - Meu Deus! Chorou diante de ti, humilhou-se...
- Pergunto-lhe quando foi que me deu jóias! - gritou Pasha.
- Meu Deus, ela, tão honesta, tão orgulhosa, tão pura... Até queria ajoelhar-se diante desta... mulherzinha. E fui eu que a levei a este extremo! E consenti!
Levou as mãos à cabeça e gemeu:
- Não, nunca perdoarei a mim próprio. Nunca! Afasta-te de mim... canalha! -gritou com asco, dando um passo atrás e

161

afastando de si Pasha, com mãos trémulas. - Queria pôr-se de joelhos... Diante de quem? Diante de ti? Oh, meu Deus!
Vestiu-se rapidamente e, com um gesto de repugnância, procurando manter-se afastado de Pasha, dirigiu-se para a porta, por onde desapareceu.
Pasha atirou-se para a cama e começou a soluçar alto. Estava já arrependida de se ter desfeito das suas jóias, que entregara impulsivamente, e sentia-se ofendida.
Recordou que, três anos antes, um comerciante lhe batera sem razão nenhuma, e o seu choro tornou-se ainda mais desesperado.

162

ÍNDICE

A enfermaria nº 6............... 7
Vizinhos................... 71
Dô-doce................... 91
Um assassinato................. 105
O Mendigo.................. 137
Sem título.................. 143
O adulador.................. 147
A boticária.................. 151
Uma corista.................. 157

LIVROS RTP
BIBLIOTECA BÁSICA VERBO

1. MARIA MOISÉS - Camilo Castelo Branco
2. CEM OBRAS-PRIMAS DA PINTURA EUROPEIA
3. O JOGADOR - - F. Dostoievski
4. ANTÍGONA - ÁJAX - REI ÉDIPO - Sófocles
5. O MÉDICO EM CASA - Ramiro da Fonseca
6. O VESTIDO COR DE FOGO - José Régio
7. MEMORIAL DE AIRES - Machado de Assis
8. WERTHER - J. W. Goethe
9. SEGREDOS DA VIDA MENTAL - José Luis Pinillos
10. QUATRO PRISÕES DEBAIXO DE ARMAS - Vitorino Nemésio
11. A TIA TULA - Miguel de Unamuno
12. CARTA DE GUIA DE CASADOS - D. Francisco Manuel de Melo
13. NÓS, AS CRIANÇAS - Gérard Mahec
14. O ESPÓLIO DO SENHOR CIPRIANO - Júlio Dinis
15. HISTÓRIAS DE MISTÉRIO E IMAGINAÇÃO - Edgar Allan Poe
16. O CASAMENTO ARDILOSO E OUTRAS NOVELAS EXEMPLARES - Miguel de Cervantes
17. GUIA DE ALIMENTAÇÃO RACIONAL - G. Pimentel
18. A NOITE E A MADRUGADA - Fernando Namora
19. A MORTE DE IVAN ILICH - Tolstoi
20. O ADVOGADO EM CASA - Flamirio Martins
21. IMITAÇÃO DE CRISTO
22. O ARCO DE SANTANA - Almeida Garrett
23. EUGENIA GRANDET - Balzac
24. ANTOLOGIA DA POESIA BRASILEIRA - José Valle de Figueiredo
25. O MUNDO EM NÚMEROS - Artur Parreira
26. RIO TURVO - Branquinho da Fonseca
27. O PASSADO REMOTO - Giovanni Papini
28. O AVARENTO - Molière
29. VAMOS FALAR DE TELEVISÃO - Lopes da Silva e Vasco Hogan Tevês
30. A BRUSCA - Agustina Bessa Luís
31. O RETRATO DE DORIAN GRAY - Oscar Wilde
32. POESIA LÍRICA - Luís de Camões
33. PROBLEMAS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA - Claude Kohler e Paule Aimard
34. APARIÇÃO - Vergílio Ferreira
35. CLARISSA - Erico Veríssimo
36. PENSAMENTOS - Marco Aurélio
37. A HUMANIDADE PRÉ-HISTÓRICA - Pericot Garcia e Maluquer de Motes
38. AS MULHERES E AS CIDADES - Augusto de Castro
39. A QUEDA - Albert Camus
40. TEXTOS ESCOLHIDOS - Fernão Lopes
41. VAMOS FALAR DE CINEMA - Garcia Escudero
42. O BISPO NEGRO - Alexandre Herculano
43. A INOCÊNCIA E O PECADO - - Graham Greene
44. LAZARILHO DE TORMES
45. O LIVRO DO AUTOMÓVEL - Filipe Nogueira
46. VENÂNCIO E OUTRAS HISTÓRIAS - Joaquim Paço d'Arcos
47. MENINO DE ENGENHO - José Lins do Rego
48. TEXTOS ESCOLHIDOS - P'e António Vieira
49. PASSAPORTE PARA O FUTURO - Luís Miravitlles
50. HISTÓRIAS CASTELHANAS - Domingos Monteiro
51. ARMANCE - Stendhal
52. NOVELAS DO DECAMERON - Boccaccio
53. QUE É A MÚSICA? - Manuel ValJs Gorina
54. FARPAS ESCOLHIDAS - Ramalho Ortigão
55. O MISTÉRIO DOS FRONTENAC - François Mauriac
56. A VIDA É SONHO - Calderón de La Barca
57. AS FRONTEIRAS DO POSSÍVEL - Jacques Bergier
58. CONTOS BÁRBAROS - João de Araújo Correia
59. CÂNTICO DE NATAL - Charles Dickens
60. TRÊS AUTOS E UMA FARSA - Gil Vicente
61. A CONQUISTA DA TERRA
62. NOME DE GUERRA - J. de Almada Negreiros
63. CONTOS ESCOLHIDOS - Luigi Pirandello
64. ÊUTIFRON - APOLOGIA DE SÓCRATES - CRÍTON - Platão
65. HISTÓRIA DA ARTE EM PORTUGAL - Flórido de Vasconcelos
66. PÁGINAS ESCOLHIDAS - Oliveira Martins
67. A ENFERMARIA Nº 6 E OUTROS CONTOS - Anton TchekhovANTON TCHEKHOV
UM DRAMA NA CAÇA
Tradução de
J. FERREIRA MEZES
EDITORA LIVROS DO BRASIL
Título da edição original francesa: UN DRAME À LA CHASSE
Autor: ANTON TCHEKHOV
Tradução: J. FERREIRA MEZES
Revisão: DÁLIA MONIZ
Capa e composição: ROGÉRIO SILVA
Copyright (c) Livros do Brasil, 2004
Reservados todos os direitos pela legislação em vigor
1.a Edição - Lisboa - Novembro de 2004
ISBN 972-38-2720-4
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NA REPÚBLICA FEDERATIVA
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ANTON TCHEKHOV
ROMANCISTA POLICIAL
É desnecessário apresentar seja a quem for, em
qualquer parte do mundo, o grande contista, novelista e
dramaturgo russo que foi Anton Pavlovitch Tchekhov
(1860-1904).
Descendente de servos libertados, filho de um
merceeiro - que, na sua loja, também vendia bebidas a
copo e medicamentos -, Anton, nascido em Taganrog,
na costa do Mar de Azov, licenciou-se em Medicina aos
24 anos e, logo após, dedicou-se a escrever pequenos
contos. O seu enorme talento não tardou a ser
reconhecido e, admitido como colaborador de um dos
mais prestigiosos jornais literários da Rússia (o Novie
Vremia), a fama de Tchekhov não parou de crescer. Entre
as suas obras mais divulgadas contam-se "a Estepe"
(1888) e as peças "A Gaivota" (1896), "O Tio Vânia" (1897)
e " O Jardim das Cerejeiras" (1903).
"Um Drama na Caça" - tido por alguns como o único
romance escrito por Tchekhov - é uma das suas
primeiras produções publicadas. Foi servido aos leitores
do Nôvosti Dnia, em folhetins, no ano de 1884 e 1885 e,
para assinar a obra, o autor serviu-se de dois pseudónimos:
"Ante" e, depois, "Antone Tchekonnte".
O romance ficou esquecido durante vários anos,
tendo sido omitido pelo próprio Tchekhov quando, em
1899, cedeu ao (bem nomeado) editor Marx os escritos
das suas "Obras Completas", em dez volumes. A reedição,
dita "da Niva", de 1903, embora agregasse novos textos
e compreendesse 16 tomos, também não acolheu "Um
Drama na Caça". Em 1930, o Governo da URSS descobriu
a narrativa e, finalmente, incluiu-a em novas "Obras",
desta vez verdadeiramente "completas", se bem que
comprimidas em 13 volumes.
Ao Ocidente, o romance só chegou em 1936, quando
a "Librairie Plou" editou Un Drame à la Chasse (Histoire
vraie), como apêndice, hors série, nos vinte volumes das
"Oeuvres Completes d'Anton Tchékov" e, como aqueles,
traduzido por Denis Roche.
Se bem que o romance exiba já as características
que iam tornar ímpar a obra de Tchekhov, é manifesta a
influência exercida sobre o autor pela produção de outro
folhetinista, então muito em voga: Émile Gaboriau, "pai"
do roman policiair. Logo numa das páginas iniciais, é
nomeado o agente Lecoq que, como se sabe, protagonizou
várias obras de Gaboriau e é considerado, ainda hoje,
como principal candidato à sucessão, em termos
cronológicos, do chevalier Dupin, de Edgar Poe.
Com a publicação desta obra - que por si só enobrece
a Ficção Policial -, a colecção Vampiro homenageia
Tchekhov no centenário da sua morte.
Deixemos o leitor deliciar-se com a narrativa deste
grande nome da Literatura Universal. Depois de dobrada
a última folha - mas, adverte-se, só depois - quem
quiser saber mais sobre "Um Drama na Caça" poderá
consultar o posfácio dedicado ao seu pioneirismo.
Joel Lima
6
PRÓLOGO
- Qual é o assunto da sua obra? - perguntei, com
displicência, ao cavalheiro elegante, extremamente ágil
e desembaraçado, chamado Ivan Kamichov que, com
dificuldades financeiras e embora se confessasse um
principiante, viera propor-me a publicação de um
volumoso manuscrito.
- Que posso dizer-lhe?... O tema não é novo... Amor...
assassínio... Leia-o e o senhor mesmo verá... São
memórias de um juiz de instrução criminal...
Devo ter franzido as sobrancelhas porque Kamichov
pestanejou, teve um sobressalto e acrescentou, de pronto:
- A minha história está escrita em velho estilo
policial, mas relata um facto real... verdadeiro. Tudo o
que evoco passou-se perante os meus olhos, desde o
princípio até ao fim. Fui testemunha do sucedido e
cheguei mesmo a tomar parte no caso...
- O importante não é a verdade e tão-pouco é
indispensável ter visto um acontecimento para o descrever
de forma adequada. O nosso público está farto dos
romances de Gaboriau e de Chkliarevski. Farto de
assassínios misteriosos, de detectives perspicazes e de
sagazes juízes de instrução. E claro que há leitores e
leitores falo dos que lêem o nosso jornal e os seus
folhetins. Qual é o título da sua história?
- "Um Drama na Caça".
- Ora, meu caro senhor, isso não é um título que se
veja!... E, na verdade, tenho já tantos originais para
publicar que me é praticamente impossível aceitar outros,
por melhores que sejam.
- Apesar de tudo, senhor, fique com o meu
manuscrito... Disse não ser coisa que se veja, mas pode
qualificá-lo dessa forma, antes de o ter lido?... E por que
razão não quer admitir que até os juízes de instrução
saibam escrever a sério?
Kamichov gaguejava, fazia girar um lápis entre os
dedos e tinha o olhar fixo nas biqueiras dos sapatos.
Acabei por sentir pena dele.
- Muito bem... Deixe-me, então, o seu manuscrito,
mas não posso prometer-lhe lê-lo imediatamente. Vai ter
de esperar...
- Por muito tempo?
- Não sei ao certo... Volte dentro de dois ou três
meses...
- Oh, tanto tempo! Bom, não me atrevo a insistir...
Esperarei.
Levantou-se e pegou no seu gorro, um gorro de
funcionário público.
- Agradeço-lhe por me ter recebido - acrescentou.
- Tenho de alimentar esperanças... esperanças durante
três meses... Não quero, contudo, roubar-lhe mais tempo...
Queira aceitar os meus cumprimentos.
- Um momento! - exclamei, depois de ter folheado
o grosso maço de folhas manuscritas com letra miúda.
- A sua narrativa está escrita na primeira pessoa.
O juiz de instrução é o senhor mesmo?
- Sou, sim, mas sob nome suposto. O meu papel,
neste caso, foi um tanto confuso... Teria sido desagradável
figurar nele com o meu nome verdadeiro... Daqui
a três meses, não foi o que disse?
- Sim, pelo menos.
- Despeço-me, desejando-lhe as maiores felicidades.
7
O ex-juiz de instrução saudou-me com um cortês
aceno de cabeça, fez girar delicadamente o fecho da porta
e desapareceu, deixando o seu manuscrito em cima da
minha secretária. Guardei-o numa gaveta e ali permaneceu
durante dois meses.
Por ocasião de uma viagem que tive de fazer, lembrei-me
dele e levei-o comigo. No comboio, comecei a leitura
a meio e o que li despertou a minha atenção. Nessa mesma
tarde, se bem que me escasseasse o tempo, li toda a
narrativa desde as primeiras linhas até à palavra "Fim",
escrita em letra gorda e com notória energia. A noite,
voltei a ler a história e a madrugada surpreendeu-me a
passear pela varanda, esfregando as frontes como que
para afastar do espírito um pensamento inesperado e
aflitivo... Era, com efeito, uma idéia dolorosa, quase
insuportável... Embora não seja juiz de instrução nem
doutorado em Psicologia julgava haver descoberto um
segredo atroz, um segredo em relação ao qual não sabia
o que fazer. Perturbado, passeei pela varanda, de um
lado para o outro, procurando persuadir-me de que não
devia atribuir exagerada importância ao que, segundo
pensava, havia deduzido.
A história acabou por ser publicada no jornal que
dirijo pelos motivos que, mais adiante, revelarei aos
leitores. Por agora proponho apenas que leiam a obra de
Kamichov.
Não é, decerto, nada de extraordinário e nem sequer
está isenta de redundâncias e de imperfeições... O autor
preocupa-se, por vezes, com frases de impacto... Vê-se que
escreve pela primeira vez e que não é particular mente
destro no uso da pena, mas o seu relato é de fácil leitura.
Há um tema, uma idéia mestra e, o que é original, trata-se
de uma narrativa "sui generis"... Em resumo, vale a
pena lê-la. Aqui fica.

6
(EXTRACTOS DAS MEMÓRIAS
DE UM JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL)
1
- O marido matou a mulher! Ah, que estúpidos são
vocês!... Passem-me o açucareiro!
Aquelas exclamações acordaram-me. Espreguicei-me
e senti um certo mal-estar e os membros tolhidos... Pode
sentir-se um braço dormente, ou uma perna, mas,
daquela vez, parecia-me que todo o meu corpo estava
tolhido, da cabeça aos calcanhares. Uma sesta num
ambiente sufocante, de estufa, no meio dos zumbidos
das moscas e mosquitos acaba por nos enfraquecer, em
vez de nos recompor.
Alquebrado, banhado em suor, levantei-me e dirigi-me
para a janela. O Sol, ainda alto, queimava com o
mesmo ardor de três horas antes. Faltava bastante tempo
para que se ocultasse por detrás do horizonte, dando
lugar à frescura da noite...
- O marido matou a mulher! - gritei, dando um
ligeiro piparote no bico do papagaio. - Pára de mentir!...
Os maridos, meu caro, só matam nas novelas ou nos
trópicos, onde fervem paixões africanas! Quanto a nós,
bastam-nos os horrores dos roubos por arrombamento
ou das falsificações de identidade!
- Roubos por arrombamento! - repetiu Ivan
Demianitch com o seu bico adunco. -Ah, que estúpidos
são vocês!
11
- Que queres, meu amigo? Que culpa temos se o
nosso cérebro é tão limitado? Não é nenhum crime, Ivan
Demianitch, ser estúpido com um calor tão sufocante.
Tu és muito esperto, meu caro, mas o teu cérebro também
se derreteu. O calor pôs-te idiota.
Toda a gente trata o meu papagaio por Ivan
Demianitch. Adquiriu esse nome por casualidade no dia
em que o meu criado Policarpe, ao limpar a gaiola, fez
uma descoberta sem a qual o meu nobre pássaro
continuaria a chamar-se simplesmente "o papagaio"...
Policarpe apercebeu-se, de súbito, que o bico da ave era
assombrosamente parecido com o nariz de Ivan
Demianitch, o merceeiro da terra.
E, a partir desse dia, o nome e o apelido do comerciante
de nariz grande ficaram para sempre ligados ao
papagaio. A descoberta de Policarpe incorporou o animal
no género humano e, ao mesmo tempo, o merceeiro,
perdendo o nome, passou a ser, na boca da gente da
aldeia, o "papagaio do senhor juiz de instrução".
Comprei Ivan Demianitch à mãe do meu antecessor,
o juiz de instrução Pospielov, juntamente com a velha
mobília de carvalho, a bateria de cozinha e todos os
artefactos de Pospielov, falecido pouco tempo antes da
minha nomeação. Ainda agora as paredes da minha casa
estão ornadas com fotografias dos seus parentes e, por
cima da cama, encontra-se pendurado o retrato do
anterior proprietário. Não cessa de me fitar, quando
estou deitado... Em resumo: não tirei nenhuma fotografia
das paredes e o apartamento encontra-se tal como no
dia em que o tomei de arrendamento. Sou demasiado
preguiçoso para me preocupar com o conforto e não estou
minimamente interessado em negar, seja aos mortos seja
aos vivos - se for essa a sua vontade -, o privilégio de
continuarem pendurados nas paredes da minha casa.
O papagaio achava-se tão incomodado com o calor
como eu. Espanejava a plumagem, abria as asas e repetia
12
as frases que lhe haviam sido ensinadas pelo meu
antecessor e por Policarpe.
Para me entreter pus-me a observar os movimentos
do pássaro, procurando, como podia, evitar o tormento
do calor e dos insectos que se haviam introduzido nas
suas penas. Parecia muito infeliz.
Da antecâmara chegou-me aos ouvidos uma voz
grave.
- A que horas acorda?
- Depende - respondeu Policarpe. - Por vezes, às
cinco, mas em outras ocasiões, fica a dormir até de
manhã... É natural. Não tem nada que fazer...
- O senhor trabalha para ele?
- Sou o seu criado. Mas basta de conversas... Estás
a incomodar-me. Não vês que estou a ler?
Dirigi-me à antecâmara. Sobre a grande arca
encarnada, Policarpe, como de costume, lia um livro.
Com os olhos semicerrados, muito próximo das páginas
impressas, movia os lábios e franzia as sobrancelhas.
A presença de um estranho, um mujique barbudo, de
alta estatura, que procurava em vão prolongar a
conversa, enfastiava-o visivelmente. Ao ver-me, o
campónio afastou-se da arca, e assumiu uma atitude
] reverente. Sem tirar os olhos do livro, Policarpe, com ar
aborrecido, soergueu-se.
- Que queres? - perguntei ao mujique.
- Venho da parte do senhor conde, Excelência. O
senhor conde dignou-se enviar os seus cumprimentos a
Vossa Excelência, informando-o de que deve apresentar-se
imediatamente em sua casa.
- O conde já regressou? - perguntei, surpreendido.
- Exactamente, Excelência... Regressou ontem à
noite. Aqui tem uma carta dele.
- Foi o Diabo que o trouxe de volta! - grunhiu
Policarpe. - Enquanto esteve longe passámos dois
Verões tranquilos. Agora que regressou, vai reabrir a
13
sua pocilga. Que pouca vergonha!
- Cala-te! Ninguém pediu a tua opinião.
- Mesmo assim, digo o que tenho a dizer! Vão voltar
as bebedeiras! Vão voltar os banhos no lago, com a roupa
vestida!... E depois: "Policarpe, limpa!" É trabalho para
três dias, pelo menos...
- Que faz hoje o senhor conde? - perguntei ao
campónio.
- Encontrava-se à mesa, quando me ordenou que
viesse até aqui. E, antes de ir comer, esteve a pescar à
linha, no pavilhão dos banhos... Que resposta deseja que
lhe transmita? : :
Abri a carta e li: : . )
Meu caro Lecoq: (1) - '
, Se ainda estás vivo e de saúde, e se não te
esqueceste do teu sedento amigo, sai do claustro em
que vives e corre para minha casa. Regressei esta
noite e já morro de tédio. A impaciência com que te
aguardo é infinita. Gostaria de ir, eu próprio, buscar-
-te e trazer-te até ao meu covil, mas este calor deixa-
-me sem forças. Sofro e fico a abanar-me com o leque.
Como está o teu engenhoso Ivan Demianitch? E tu?
: Continuas em guerra perpétua com o irascível
Policarpe? Vem, tão depressa quanto possível, para
me dares as respostas.
Teu A. K.
(1) O agente Lecoq, um dos mais notáveis detectives dos
primórdios da Ficção Policial, divide, com o Père Tabaret e o chefe
Gevrol a investigação de L'Affaire Lerouge (1863). Em seguida,
assumiu-se como principal personagem dos restantes romans
policiers de Émile Gaboriau, desde Le Dossier 113 (1867) a La
Corde au Cou (1873). (N. do T.)
14
Não era necessário decifrar a assinatura para que
eu reconhecesse a caligrafia grande e fria traçada pela
mão insegura do alcoólico inveterado Alexei Karnieiev.
A brevidade da carta e a sua aparente jovialidade
levaram-me a pensar que o meu pouco inteligente amigo
havia rasgado muitas folhas de papel, antes de conseguir
escrever aquele texto. Com astúcia, havia evitado as
formas gramaticais e as palavras não conseguidas à
primeira vez.
- Que resposta deseja que eu transmita ao senhor
conde? - insistiu o mujique.
Pensei durante uns momentos qualquer homem
honesto, no meu lugar, teria também hesitado.
O conde gostava de mim e buscava sinceramente a
minha amizade comigo passava-se o contrário. Por
conseguinte, teria sido mais honesto romper, de uma vez
por todas, tal relação de amizade, não levando por diante
aquele jogo hipócrita. Ir visitá-lo equivaleria, decerto, a
mergulhar de novo naquela maneira de vida que
Policarpe equiparara a uma pocilga e que, antes da ida
do conde para São Petersburgo, havia minado a minha
saúde, em regra perfeita, e debilitado o meu cérebro.
Essa vida desregrada e insólita, embora não me
tivesse arruinado definitivamente o organismo,
granjeara-me, contudo, uma nefasta celebridade na
religião. A consciência não me iludia e, ao recordar o
passado, corei de vergonha. Apesar disso, a minha
hesitação não durou muito.
- Cumprimenta o senhor conde e agradece-lhe da
minha parte o facto de se ter lembrado de mim - respondi.
- Diz-lhe que estou muito ocupado e que... Diz-lhe
que...
No momento em que os meus lábios iam proferir um
"não" fui assaltado por uma lembrança penosa: a da
angústia e solidão de um homem jovem e cheio de vida
que as circunstâncias haviam obrigado a enterrar-se
15
numa zona rústica e sem atractivos.
Recordei-me dos jardins do conde com os seus
sumptuosos jardins de Inverno e os seus carreiros
estreitos e poéticos. Conhecia bem esses carreiros
protegidos do sol por uma abóbada de velhas tílias cuja
folhagem se entrelaçava. Conhecia também algumas
mulheres que haviam procurado dar-me o seu amor
naquela penumbra...
Recordei-me igualmente do salão luxuoso e do
delicioso conforto dos seus sofás de veludo, dos pesados
reposteiros e das alcatifas fofas recordei-me de tudo isto
com a languidez de um animal jovem e saudável. E, por
fim, recordei-me da ousadia que me dava a embriaguez,
acompanhada por uma satânica soberba e por um
profundo desprezo pela vida.
E todo o meu corpo, fatigado de tanto dormir, aspirou
de novo à agitação de outrora...
- Diz-lhe que irei visitá-lo.
O mujique inclinou-se e saiu.
- Se tivesse sabido ao que vinha :- resmungou
Policarpe, folheando precipitadamente o seu livro - não
teria deixado entrar esse diabo!
- Põe o livro de lado e vai preparar a Zorka -
ordenei, em tom severo. - E depressa!
- Depressa? Não querem lá ver? Julga que vou a
correr? Ainda se fosse para alguma coisa de útil... mas
não, é para levar uma alma de volta ao Inferno...
A última frase foi dita entre dentes, mas com a
nitidez suficiente para que eu a ouvisse. Depois de
articular aquela insolência, o meu criado levantou-se com
um sorriso, como se esperasse desdenhosamente um
comentário enérgico da minha parte.
Eu, porém, fiz de conta que não ouvira as suas
palavras. Nas minhas escaramuças com Policarpe, o
silêncio é a minha melhor arma e a mais contundente,
porque o atinge com maior eficácia do que uma pancada
16
na nuca ou um chorrilho de palavras insultuosas.
Enquanto Policarpe saía para pôr a sela e os arreios
na minha égua Zorka, deitei uma olhadela ao livro que
a minha ordem o impedira de continuar a ler. Era O Conde
de Monte Cristo, esse terrível romance de Dumas...
Aquele idiota civilizado lia tudo desde os anúncios
dos jornais até August Comte, cujas obras guardo no meu
baú entre outros livros que nunca li e que renunciei a
ler.
Dessa babilónia escrita e impressa, a Policarpe
apenas interessavam as novelas de acção vigorosa e
terrífica, com "cavalheiros" distintos, com venenos, com
subterrâneos... Tudo o mais só lhe inspirava desprezo.
Mas agora era necessário partir...
Um quarto de hora mais tarde, as patas de Zorka
levantavam a poeira do caminho que leva da minha casa
até à casa do conde. O Sol estava prestes a esconder-se
mas o calor pesado ainda se fazia sentir. A atmosfera,
em ignição, estava seca, embora o carreiro corresse ao
lado de um grande lago. À direita, havia a água, à
esquerda, um bosque de carvalhos e, apesar disso, o meu
rosto parecia atravessar o deserto do Sara.
"Vem aí uma trovoada", disse para mim próprio,
antevendo, com delícia, uma boa chuvada.
O lago dormia, tranquilo. Nenhum ruído respondia
ao barulho que faziam os cascos de Zorka. Só de vez em
quando o grito agudo de uma galinhola quebrava o
fúnebre silêncio do gigante imóvel.
Em certos pontos Zorka levava-me a atravessar
espessas nuvens de mosquitos e, ao longe, apenas via
moverem-se os três barquitos do velho Michei,
concessionário da pesca no lago.
Tive de contornar a curva da margem do lago só de
barco é possível seguir em linha recta. Quem vai por
terra é obrigado a fazer um enorme desvio que alonga o
percurso em cerca de oito quilómetros. Sem perder de
2 - Vampiro 684
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vista o lago, divisava todo o caminho: a argila branca da
margem oposta, as cerejeiras em flor e, mais ao longe, o
pombal do conde, repleto de pombos de várias cores
podia lobrigar também a mancha branca do pequeno
campanário da igreja.
Durante o trajecto pensei no estranho relacionamento
que tivera com o conde. Teria gostado de analisá-lo
melhor, pondo em ordem as minhas idéias, mas,
infelizmente era questão que ultrapassava as minhas
capacidades de momento.
Aqueles que nos conheciam explicavam de diferentes
maneiras o meu relacionamento com Alexei Karnieiev.
Os espíritos mais mesquinhos afirmavam que o ilustre
conde via na pessoa de um pobre juiz de instrução
criminal, de origem humilde, um mero companheiro de
bebedeiras. Segundo eles, eu aproximava-me a rastejar
da mesa do meu anfitrião, à espera de algumas migalhas
e de ossos para roer. Julgavam que o fidalgo rico, terror
e inveja do distrito, era muito engenhoso e liberal. Nunca
poderiam entender, de outro modo, a sua graciosa
condescendência para com o juiz pobre e a sua magnanimidade,
aceitando que eu o tratasse por tu.
As pessoas mais sensatas, contudo, viam na nossa
amizade uma comunhão de "interesses intelectuais".
Tenho a mesma idade e estudámos na mesma
Universidade. Ambos seguimos o curso de Direito,
domínio em que os nossos conhecimentos são bastante
escassos. Os meus são medíocres e o conde já se esqueceu
de tudo ou afogou em álcool quanto aprendeu. Somos
ambos orgulhosos e, por razões que só nós sabemos,
evitamos a convivência social, como dois selvagens. Não
nos importamos com o que os outros pensam, isto é, com
o que possam pensar os habitantes do distrito de S.
Somos imorais, um e outro, e havemos de acabar mal.
: Aí têm os "interesses intelectuais" que nos unem.
Quem nos conhece não consegue adiantar outras
18
, explicações. Teriam dito algo mais se soubessem como é
! suave, débil e submissa a natureza do conde e como a
minha é forte e obstinada. E teriam acrescentado ainda
mais se estivessem ao corrente de quanto aquele homem
fraco me estimava e quão escassa era a minha simpatia
por ele. O conde propôs-me a sua amizade e eu fui o
primeiro a tratá-lo por tu ele veio a fazer o mesmo, mas
que diferença de tom! Ele, numa efusão de bons
sentimentos, abraçou-me e pediu-me timidamente que
fosse seu amigo eu, um dia, cheio de nojo e de desprezo,
disse-lhe:
- Deixa-te de parvoíces!
Acolheu aquela forma de tratamento como expressão
da minha amizade e aproveitou o ensejo para me pagar
com um honesto e fraterno "tu".
Sim, teria sido mais correcto puxar as rédeas e
regressar para junto de Policarpe e do meu papagaio.
Teria sido, na verdade, muito melhor.
Mais tarde, pensei nisso inúmeras vezes. De quantas
desgraças me teria livrado e que bem teria feito ao meu
amigo se, naquela tarde, eu houvesse tido a coragem de
voltar para trás ou se a minha Zorka, tomando o freio
: nos dentes, me conduzisse para longe do terrível lago!
Quantas recordações dolorosas deixariam de assaltar-me,
agora, obrigando-me, em todos os momentos, a
deixar cair a pena para levar as mãos à cabeça!
No entanto, não quero antecipar-me até porque, mais
por diante, terei ocasião de evocar lembranças dolorosas
e amargas do passado. Por agora, falemos só de coisas
alegres.
19
2
Zorka levou-me até à porta-cocheira da casa do
conde. Ao chegar, tropeçou e eu perdi o estribo e estive
em risco de cair.
- Mau sinal, cavalheiro! - gritou-me um campónio
que se encontrava perto da estrebaria.
Acredito que um homem, ao cair dum cavalo possa
partir a cabeça, mas não acredito em superstições.
Entreguei as rédeas ao mujique, sacudi com a chibata o
pó das botas e dirigi-me apressadamente para a
residência.
Ninguém veio ao meu encontro. As janelas e as portas
achavam-se abertas de par em par e, apesar disso,
flutuava no ar um odor estranho e pesado. Era o cheiro
a bafio de velhos aposentos abandonados misturado com
o agradável - mas forte e narcotizante - aroma de
plantas de estufa colhidas recentemente.
No salão nobre, sobre um dos divãs cobertos de seda
de cor celeste, havia dois almofadões amarrotados e,
sobre uma mesa redonda, um copo em que restavam
algumas gotas de um líqüido com forte odor a licor de
Riga.
Tudo isto revelava que a casa estava habitada, mas,
apesar disso, percorri as onze divisões e não encontrei
vivalma. A casa achava-se tão deserta como as margens
do lago.
A grande porta envidraçada do salão - o "salão dos
20
azulejos" - dava para o jardim. Abri-a com força e desci
para o terraço de mármore. Havia dado alguns passos
no carreiro do jardim quando se me deparou a velha
Nastasia, a ama do conde. Olhando para aquela velhinha
cheia de rugas, esquecida pela Morte, calva e de olhos
penetrantes, recordei-me involuntariamente da alcunha
que lhe havia a demais criadagem: Sitchikka (a coruja).
Ao ver-me, a Coruja estremeceu e por pouco não
derramou o conteúdo de um copo que segurava com as
duas mãos.
- Bom dia, Sitchikka - disse-lhe.
A velhota olhou-me de través e, sem pronunciar uma
palavra, seguiu o seu caminho. Agarrei-a pelo ombro e
acrescentei:
- Não tenhas medo, tonta. Onde está o conde?
Apontou para os ouvidos e fez um gesto para mostrar
que não havia compreendido o que eu lhe dissera.
- Estás surda? Desde quando?
Apesar da sua idade, a velha vê e ouve perfeitamente,
mas quando lhe convém não hesita em caluniar
os seus cinco sentidos.
Ameacei com o dedo indicador e deixei-a partir.
Avancei mais alguns passos e ouvi vozes masculinas.
No sítio em que o carreiro se alargava, formando um
terreiro rodeado de bancos de ferro, à sombra de grandes
acácias, fora colocada uma mesa sobre a qual refulgia
um samovar. A volta da mesa, três homens conversavam.
Aproximei-me sorrateiramente e, oculto por um maciço
de lilases, procurei o conde com os olhos.
O conde Karnieiev tomava o chá, sentado sobre
almofadões. Vestia um roupão colorido - que eu já
conhecia - e na cabeça colocara um chapéu de palha de
Itália. O seu rosto contraído demonstrava inquietação,
de tal forma que quem não conhecesse Karnieiev poderia
supor que uma idéia fixa ou qualquer preocupação o
atormentava.
21
Desde a sua partida, o conde não havia mudado em
nada.
O mesmo corpo franzino, magro e esguio. Os mesmos
ombros estreitos, de tísico, e a mesma cabeça pequena e
ruiva. Tal como antes, o nariz vermelho e as faces flácidas
que mais pareciam trapos... Nada, na sua aparência, de
ousado, de forte, de varonil... Tudo débil, apático,
murcho. Quando muito podia considerar-se ligeiramente
sugestivo o seu grande bigode, de pontas pendentes.
Alguém havia dito que lhe ficava bem e o conde deixara
crescê-lo havia acreditado e, todas as manhãs, o media
para verificar quanto crescera a vegetação que
sombreava os seus lábios pálidos. Parecia um gato jovem
e de grandes bigodes, se bem que demasiado débil e
enfermiço.
Perto do conde estava sentado um indivíduo obeso,
que eu não conhecia, de grande cabeça rapada e com
sobrancelhas negras. O rosto gordo reluzia como um
melão maduro. Tinha um bigode maior do que o do conde,
testa estreita e lábios delgados. Olhava indolentemente
para o céu e a sua fisionomia, se bem que jovem, era
vincada e rude, tão áspera como a pele ressequida. Não
parecia ser russo. Sem casaco nem colete, o obeso
indivíduo estava em mangas de camisa e transpirava
abundantemente. Em vez de chá bebia água de Seltz.
A distância respeitosa, mantinha-se uma terceira
personagem: um homem encurvado, rechonchudo, com
orelhas separadas do crânio e nuca avermelhada. Era
Orbenine, o administrador das propriedades do conde.
Em honra da chegada de Sua Excelência vestira um
casaco novo, de cor preta, que agora o atormentava.
O suor escorria-lhe pelo rosto curtido. A seu lado encontrava-se
o mujique que me transmitira a mensagem do
conde. Só então me apercebi de que era vesgo. Direito
como um poste, hirto como uma estátua, esperava que o
interrogassem.
22
- Kuzma! - dizia o administrador com voz enérgica
e persuasiva. - Merecias que te açoitasse com o teu
próprio chicote! É assim que cumpres as ordens do
patrão? Devias ter-lhe pedido que viesse imediatamente
ou, pelo menos, averiguar quando podia vir.
- Sim, sim... - confirmou o conde, com nervosismo.
- Devias ter procurado saber tudo. Ele disse-te que
viria, mas isso não basta. Preciso dele já! Pediste-lhe
que o fizesse, mas ele não compreendeu. Preciso dele
imediatamente, sem tardança!
- Que necessidade tão urgente é essa? - perguntou
o homem gordo.
- Preciso de vê-lo.
- Só isso? Quanto a mim, era melhor, Alexis, que
esse tal juiz, permanecesse na sua casa. Não me interessa
ter visitas.
Fiquei atónito. Que significava aquele "não me
interessa ter visitas" tão autoritário e paternal?
- Mas não se trata de uma visita! - exclamou o
meu amigo com voz suplicante. - Não vai impedir que
repouses da tua viagem. Também não precisas de fazer
cerimónia com ele. Já vais ver que género de homem é...
Estou certo de que vão ficar amigos.
Saí detrás dos lilases e aproximei-me da mesa. O
conde viu-me, reconheceu-me, e o seu rosto abriu-se num
sorriso.
- Aqui está ele! - gritou, corando de satisfação e
levantando-se - Foste muito amável em vir tão
depressa.
Corri para ele, aos saltos, e o seu grande bigode
arranhou-me as faces. Aos abraços seguiram-se
prolongados apertos de mão e olhares fraternos.
- Sergei! Não estás nada mudado! Sempre o mesmo
belo rapaz! Agradeço-te por teres vindo...
Logo que me libertei das suas efusões cumprimentei
o administrador, que já conhecia, e sentei-me.
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- Ah, meu caro - prosseguiu o conde, emocionado
e contente -, se soubesses como me sinto feliz por voltar
a ver o teu rosto sisudo. Mas... não conheces este
cavalheiro? Apresento-te o meu amigo Gaetan Casimirovitch
Pschekhotski. E este - continuou, apresentando-me
ao sujeito gordo -, é Sergei Petrovitch Zinoviev,
juiz de instrução do distrito.
O obeso indivíduo de sobrancelhas espessas
estendeu-me a sua mão enorme e suada.
- Encantado - resmungou, examinando-me de
cima a baixo. - Tenho muito gosto em conhecê-lo.
Terminados os cumprimentos, o conde serviu-me
uma chávena de chá frio, avermelhado, e colocou à minha
frente uma lata de biscoitos.
- Prova... Comprei-os em Einem, quando fui a
Moscovo. Estou zangado contigo, Serioja 1, tanto que nem
pretendia voltar a ver-te. Durante estes dois anos não
só não me escreveste uma linha sequer como ainda
deixaste sempre sem resposta todas as cartas que te
enviei.
- Não sei escrever cartas - repliquei - e, aliás,
escrever-te para quê?
- Para quê?
- Sim. Só admito três espécies de cartas: as de amor,
as de felicitações e as de negócios. Não podia escrever-te
as primeiras porque não sou mulher e não estou
apaixonado por ti. Das segundas, não precisas, e as
terceiras têm de ser postas de parte porque não temos
negócios em comum.
- No fundo, tens razão - admitiu o conde que
1 - Nesta obra abundam as abreviaturas e tratamentos
familiares e afectuosos, compostos a partir dos nomes das
personagens: "Serioja" por Sergei "Olenka" ou "Olia" por Olga
"Nadenka" ou "Nadajda" por Nadia, etc. (N. do T.).
24
compartilhava sempre a opinião dos demais. -Apesar
disso, porém, podias ter-me escrito duas ou três palavras.
Acresce que, segundo me disse Piotre Iegoritch, nunca
passaste por cá, como se vivesses a mil quilómetros de
distância ou sentisses nojo pela minha propriedade.
Podias ter vindo até cá para caçar... Quantas coisas
podiam ter acontecido aqui, durante a minha ausência!...
O conde discorreu longamente. Uma vez lançado
sobre qualquer tema, era tão infatigável a emitir sons
como o meu papagaio Ivan Demianitch. Suportei com
alguma impaciência a exibição dos seus dotes oratórios.
O que o fez parar desta vez foi o aparecimento da
Ilia, o mordomo, com a sua libré velha e suja, que, numa
salva de prata, trouxe um cálice de vodca e um copo de
água. O conde bebeu a vodca de um trago, fez o mesmo
com a água e, depois, esboçou uma careta e meneou a
cabeça, como se sentisse a garganta em fogo.
- Ao que vejo ainda não perdeste o hábito de te
enfrascares em álcool - observei.
- Ainda não, Serioja.
- Pelo menos, evita esses ademanes de bêbedo
quando bebes um copo. É absurdo!
- Vou deixar tudo isso, meu velho. Os médicos
proibiram-me o álcool. Se ainda bebo é porque faz mal
parar de repente... Deve proceder-se de forma progressiva.
Examinei o rosto fatigado e enfermiço do conde, o
copo vazio, o criado com os seus sapatos amarelos, o
polaco de sobrancelhas negras - que, à primeira vista e
sem saber a razão, me deu a impressão de ser um
vigarista - e, por fim, o mujique estrábico, hirto e silencioso
e tudo aquilo provocou em mim um sentimento de
profunda angústia. Assaltou-me, de imediato, o desejo
de afastar-me daquele ambiente crapuloso, manifestando
ao conde a minha imensa aversão. Estive quase a
levantar-me e a ir-me embora...
25
Não o fiz, contudo, talvez por simples preguiça física
e agora envergonho-me desta confissão.
- Traz-me também um copo de vodca - disse ao
criado.
Sobre as áleas e o terreiro começavam a estender-se
as sombras. O grasnar das rãs, o crocitar dos corvos e os
silvos dos verdilhões anunciavam o pôr-do-sol. Era um
entardecer de Primavera...
- Diz a Orbenine que se sente - segredei ao conde.
- Está ali, especado como uma estátua.
- Ah, não me havia apercebido disso. Piotre
Iegoritch, senta-te, se quiseres. Já estás aí de pé há muito
tempo.
Orbenine sentou-se, lançando-me um olhar de
gratidão. Em regra saudável e bem disposto, naquele
dia parecia adoentado e aborrecido. Tinha o rosto como
que crispado e os olhos, dormentes, pareciam revelar
preguiça.
- Que novidades há por cá? - quis saber Karnieiev.
- Nada de especial?
- Nada de especial, Excelência.
- Hum! Nenhuma rapariga nova?
O administrador, envergonhado, corou.
- Não sei, Excelência... Não é coisa que me diga
respeito.
- Há, sim, Excelência - disse o mujique vesgo, com
a sua voz grossa, falando pela primeira vez. - E até
algumas bem interessantes.
- Bonitas?
- De todo o género, Excelência, e para todos os
gostos. Morenas, loiras...
- Espera, recordo-me de ti... Leporelo, secretário
para certos assuntos... Chamas-te Kuzma, segundo creio.
- Sim, Excelência.
- Ora aí está! Lembro-me agora... E quem tens em
mira? Camponesas, não é assim?
26
- Sobretudo camponesas, mas também há coisa
melhor.
- Ah, sim? Onde descobriste tu isso? - perguntou
Ilia, fitando Kuzma.
- Pela Páscoa chegou Nastasia Ivana, cunhada do
guarda-florestal... Uma rapariga de belas formas... Teria
gostado de experimentá-la, mas, para isso, era preciso
ter dinheiro... O seu rosto corado e o resto... Mas há ainda
coisa melhor e pode dizer-se que está à sua espera,
Excelência... Muito nova, aveludada, vivaça... Nem em
Petersburgo podia encontrar outra mais perfeita.
- Quem é ela?
- Olenka, a filha do guarda-florestal Skvortsov.
A cadeira de Orbenine emitiu um estalido. Com as
mãos apoiadas sobre a mesa e o rosto congestionado, o
administrador ergueu-se devagar e fitou o vesgo. A sua
cólera aumentava a cada momento.
- Cala-te, miserável! - vociferou. - Fala do que
quiseres mas não te metas com gente honrada!
- Não estou a falar de si, Piotre Iegoritch - replicou
Kuzma, impassível.
- Não se trata de mim, imbecil! - berrou Orbenine
que logo acrescentou: - Suplico a Vossa Excelência que
proíba o seu Leporelo, como apropriadamente lhe chama,
de exercer a sua actividade em relação a pessoas dignas
de toda a consideração!
- Não percebo porque repreendê-lo - murmurou
ingenuamente o conde. - Kuzma não disse nada de
ofensivo.
Exaltado, Orbenine afastou-se da mesa. Com os
braços cruzados e a piscar os olhos, foi esconder o rosto
congestionado atrás de uns ramos.
Teria ele o pressentimento de que, num futuro
próximo, o sentido da moralidade iria sofrer ofensas
muito mais contundentes?
- Não compreendo porque ficou ofendido -
27
segredou-me o conde. - Que homem estranho! Não foi
dito nada que pudesse magoá-lo.
Depois de dois anos de vida sóbria, o copo de vodca
entonteceu-me levemente. Uma sensação de bem-estar
e de prazer insinuou-se no meu cérebro e no meu corpo.
Ao mesmo tempo apercebi-me da brisa fresca que, pouco
a pouco, substituía o calor do dia. Propus um passeio.
Trouxeram da casa o casaco do conde e o do seu novo
amigo polaco, e partimos. Orbenine veio atrás de nós.
O jardim é tão belo que merece descrição particular.
De todos os pontos de vista é o mais rico e grandioso de
quantos tenho visto. Há grutas quase destruídas e
cobertas de musgo, fontes, pequenos lagos cheios de
peixes, montanhas russas, bosques em miniatura,
estufas... Concebida pelos avós e pelos pais do conde,
aquela rara profusão de enormes roseirais, de grutas
poéticas e de intermináveis carreiros foi progressivamente
abandonada, ficando à mercê das ervas daninhas,
dos machados dos ladrões e dos corvos que fazem ninho
nas árvores exóticas.
O legítimo proprietário do jardim caminhava a meu
lado, sem que nenhum músculo da sua cara, deformada
pelo álcool, se contraísse perante tão lamentável
displicência.
Só por uma vez, para dizer alguma coisa, fez notar a
Orbenine que seria bom pôr areia nos carreiros. Notava
a falta de areia, mas não reparava nas árvores secas,
mortas durante o Inverno nem nas vacas que pastavam
no jardim. Em resposta à observação feita pelo conde,
Orbenine respondeu que para tratar convenientemente
do jardim era necessária uma dezena de homens e que,
como sua Excelência não residia ali, essa despesa
constituiria um luxo desnecessário. Como era de esperar,
o conde concordou de imediato.
- Aliás - acrescentou Orbenine, com ademanes de
superioridade. -, não tenho tempo para tal coisa. No
28
Verão, os campos, no Inverno, a cidade, para vender o
trigo. Não fico com tempo para mais nada.
A principal álea do jardim, ladeada por altas e velhas
tílias e maciços de magnólias, terminava ao longe numa
mancha amarelada. Era um pavilhão de pedra, onde,
em tempos, houvera um bufete e um bilhar, um
chinquilho e um jogo chinês.
Sem propósito determinado, dirigimo-nos para o
pavilhão. A entrada fomos recebidos por algo que fez
estremecer os meus não muito corajosos companheiros.
- Uma víbora! - gritou o conde, agarrando-me o
braço. - Olha!
O polaco deu um passo atrás e ficou parado a agitar
os braços como para afugentar um fantasma. Sobre um
dos degraus de pedra semidestruídos vi uma pequena
cobra vulgar. Ao ver-nos, ergueu a cabeça e fez um
movimento. O conde soltou outro grito e escondeu-se
atrás de mim.
- Não tenha medo, Excelência - disse Orbenine,
sem se alterar e pondo o pé no primeiro degrau do
pavilhão.
- E se nos morde?
- Não nos morderá. Aliás, tem-se exagerado o perigo
das mordeduras de cobras. Certo dia fui mordido por
uma velha serpente e, como podem ver, não morri. As
picadas dos homens são mais perigosas do que as das
cobras - moralizou Orbenine.
Com efeito, logo que o administrador pôs o pé no
segundo ou terceiro degrau, a cobra esticou-se e desapareceu,
como um raio, por entre as pedras. No entanto,
ao entrar no pavilhão, deparou-se-nos outro ser vivo.
Sobre um velho bilhar, de pano rasgado e puído,
achava-se um velhote de camisa azul, calças listadas e
boné de jóquei. Dormia suave e sossegadamente. As
moscas voavam por cima da sua boca sem dentes, que
lembrava um buraco de árvore, e sobre o seu nariz
29
afilado. De magreza esquelética e com a boca aberta dava
a impressão de ser um cadáver pronto para a autópsia.
Orbenine tocou-lhe no cotovelo e chamou:
- Frantz!Frantz!
Ao quinto ou sexto toque Frantz fechou a boca,
ergueu o tronco, olhou para nós e, em segundos, voltou
a deitar-se. Um minuto depois a sua boca tornou a abrir-se
e as moscas que voavam à volta do nariz foram, de
novo, espantadas pela trepidação do ressonar.
- Como dorme, este porco depravado! - exclamou
Orbenine.
- É Trischer, o jardineiro, não é assim? - perguntou
o conde.
- Ele próprio... Faz sempre o mesmo. Dorme
durante o dia inteiro e, à noite, joga às cartas, Na noite
passada deve ter jogado até de manhã...
- A que joga ele?
- A dinheiro. Em regra, ao stoss. 1
- Quer dizer que esta gente trabalha pouco ou
mesmo nada mas recebe pontualmente o salário.
- Não o digo para me queixar, Excelência - afirmou
Orbenine em tom vivo. - Limito-me a comprovar um
facto. É com pena que vejo este homem escravizado por
tão grande paixão. Apesar disso, ele trabalha não rouba
o que ganha...
Olhámos novamente para o jogador e saímos.
Do pavilhão dirigimo-nos para o portão do jardim que
dá para os campos circundantes.
Quase não há novela em que o portão do jardim não
desempenhe um papel importante. Se ainda não o
notaram, perguntem a Policarpe que, durante a vida,
tem devorado tantas novelas, terríficas ou não. Ele pode
confirmar certamente este facto assaz característico.
1 - Jogo de azar russo semelhante ao "monte". (N. do T.)
30
A minha novela tão-pouco prescindirá do portão do
jardim, mas diferenciar-se-á das outras pela circunstância
de a minha pena, ao contrário do que sucede às
dos demais autores, ser forçada a fazer passar por ele
muitas desgraças e poucas venturas. E o pior é que não
vou descrever esses acontecimentos como novelista mas
sim como juiz de instrução. Por esse portão passarão
mais criminosos do que namorados.
31
3
Apoiados às nossas bengalas chegámos, um quarto
de hora mais tarde, a uma colina conhecida como o
"Túmulo de Pedra".
Este montículo, solitário no meio dos campos, parece
um boné invertido. Do cimo podíamos ver o lago com
toda a sua maravilhosa serenidade e a sua indescritível
beleza. O Sol já se pusera, mas deixara atrás de si uma
púrpura que tingia o céu e a água com uma agradável
cor alaranjada.
Só eu e o conde trepámos ao cume da colina.
Orbenine e o polaco, mais pesados, preferiram ficar à
nossa espera no caminho.
- Quem é aquele emplastro? - perguntei ao conde,
apontando para o polaco. - Onde foste buscá-lo?
- Meu velho Sergei - respondeu, com certo alarme.
- Trata-se de um homem muito amável. Tu e ele ficarão
amigos dentro em pouco.
- Duvido. Porque fala tão pouco?
- É calado por natureza. Mais tarde ficarás a saber
tudo, meu velho Sergei, mas por agora não me perguntes
mais nada. Vamos descer?
Descemos e encaminhámo-nos para o bosque. A tarde
atingia o seu termo. Do bosque vinham o grito do cuco e
o canto trémulo de um rouxinol jovem e extenuado.
Ao chegar à orla do bosque ouvimos a voz aguda de
uma criança que gritava:
32
- Hei! Hei! Não consegues apanhar-me!
Uma menina de cerca de cinco anos, de cabelo cor de linho
e com um vestido azul-claro, saiu do bosque. Ao
ver-nos, correu para Orbenine e agarrou-se aos seus
joelhos, soltando grandes gargalhadas. Orbenine tomou-a
nos braços e beijou-a na face.
- É a minha pequena Sacha - disse, apresentando-nos
a criança.
Um estudante dos seus onze anos, filho do administrador,
perseguia a irmã. Quando nos viu, hesitou, tirou
o boné e, depois, voltou a pô-lo na cabeça para, logo de
seguida, o tirar de novo. Atrás do estudante, caminhando
lentamente, surgiu uma figura vermelha que logo atraiu
a nossa atenção.
O conde pegou-me no braço.
- Que magnífica aparição! Olha! - exclamou. -
Que maravilha! Quem é esta rapariga? Não sabia que
no bosque havia náiades assim!
Voltei-me para Orbenine a fim de lhe perguntar
quem era a rapariga e só então me apercebi de que estava
completamente embriagado.
- Sergei Petrovitch, suplico-lhe - sussurrou-me ao
ouvido, exalando vapores de álcool -, impeça que o seu
amigo faça outros comentários acerca daquela rapariga.
É uma pessoa digna de toda a consideração. Como de
costume, o conde é capaz de dizer alguma inconveniência
e eu não quero que ela as escute.
A pessoa digna de toda a consideração devia rondar
os dezoito anos e tinha uma deliciosa cabeça com
bondosos olhos azuis e cabelo loiro, comprido e ondulado.
Entre menina e adolescente, trazia um vestido escarlate.
Os pés, finos como agulhas, estavam calçados com meias
vermelhas e sapatos quase infantis. Vi que os seus
ombros estremeceram quando neles fixei os olhos, como
se a rapariga, coquete, tivesse sentido um calafrio ou o
meu olhar lhe tivesse mordido a pele.
3 - Vampiro 684
33
- Que contraste! - extasiou-se o conde. - Um rosto
tão jovem e formas tão perfeitas...
Desde muito novo havia perdido a faculdade de olhar
para as mulheres de outra maneira que não fosse a de
um bicho sensual.
Pelo contrário, lembro-me de que aquela visão
despertou em mim um sentimento de ternura que me
aqueceu a alma. Continuava a ser um poeta e, no meio
do bosque, num crepúsculo de Maio, sob o tímido cintilar
das estrelas, não podia contemplar uma mulher senão
como um poeta. Fitei a rapariga com o mesmo enlevo
com que costumava observar os bosques, as montanhas,
o azul do céu... Ainda restavam, dentro do meu ser,
vestígios do sentimentalismo que herdara da minha mãe,
alemã.
- Quem é? - quis saber o conde.
- Excelência - disse Orbenine -, é a filha do
guarda-florestal Skvortsov.
- É a tal Olenka de que falou o zarolho?
- É, sim - respondeu o administrador, lançando-me
um olhar suplicante.
A rapariga de vermelho deixou-nos passar junto dela
sem nos conceder a menor atenção. Os seus olhos
estavam voltados para outro lado, mas eu, que conheço
as mulheres, apercebi-me de que nos observava furtivamente.
Ouvi-a perguntar, enquanto nos afastávamos:
- Qual deles é o conde?
- O do bigode comprido - respondeu o estudante.
Escutei o seu sorriso sonoro, um riso de decepção.
Por certo, a rapariga havia julgado que o conde,
proprietário daqueles imensos bosques e do grande lago,
era eu e não o pigmeu com rosto de alcoólico e bigodes
caídos.
Do peito de Orbenine saiu um profundo suspiro. O
homem quase não era capaz de andar.
34
- Manda embora o administrador - segredei ao
conde. - Está doente e embriagado.
- Estás doente, Piotre Iegoritch? - perguntou. -
Já não preciso de ti. Podes retirar-te.
- Não se preocupe, Excelência. Agradeço o cuidado
mas não estou doente.
Olhei para trás. A figura escarlate, imóvel, seguia-nos
com o olhar.
Pobre cabecita loura! Como poderia eu adivinhar,
naquele entardecer suave e tranquilo de Maio, que ela
ia ser a protagonista de minha atormentada narrativa.
Escrevo estas linhas enquanto a chuva bate nos
vidros e o vento ulula. Olho para a janela negra e, sobre
aquele fundo de trevas, esforço-me por evocar a imagem
da minha gentil heroína... Vejo o seu rosto infantil,
ingénuo, e os seus olhos cheios de ternura. Assaltam-me
desejos de pôr a pena de lado e de queimar quanto
escrevi. De que serve recordar aquela criatura jovem e
inocente?
Junto do tinteiro, à minha frente, está a fotografia
de Olenka. Vejo-lhe o rosto formoso em toda a frívola
grandeza da mulher que se aviltou. Os olhos, lânguidos
mas orgulhosos da sua perversidade, estão imóveis. É a
serpente cuja peçonha Orbenine desprezara. Provocante,
tentou a tempestade e o furacão destroçou a flor.
Recebeu muito, mas pagou bem caro. Que o leitor possa
perdoar-lhe...
35
4
Caminhávamos através da silenciosa monotonia do
pinhal.
- E se regressássemos? - propôs o conde.
Ninguém lhe respondeu. Ao polaco era indiferente
estar ali ou em outro local, Orbenine sabia que a sua
voz não contava e, quanto a mim, a frescura do bosque e
o aroma a resina cativavam-me demasiado para querer
voltar para trás. De qualquer maneira, havia que matar
o tempo até a noite cair.
A perspectiva de uma selvagem noitada de copos
excitava-me deliciosamente. Envergonho-me de
confessá-lo: gozava o prazer antecipadamente. O conde,
impaciente, olhava amiúde para o relógio, sinal de que
o consumia idêntico desejo. Creio que naquele momento
nos compreendíamos íntima e mutuamente.
Perto da casa do guarda-florestal, erigida numa
clareira quadrada rodeada de pinheiros, fomos recebidos
pelos latidos agudos de dois cães de pêlo amarelo e raça
que eu desconhecia. Eram ágeis e reluzentes como
enguias. Compreendi que Orbenine visitava aquela casa
com frequência porque os cães saltaram à sua volta,
ladrando alegremente. Ali perto encontrava-se um
rapazote descalço, com cara apalermada e cheia de
sardas. Olhou-nos por momentos, em silêncio e, em
seguida, certamente por reconhecer o conde, soltou uma
exclamação e pôs-se a correr em direcção à casa.
36
- Sei porque vai a correr - declarou o conde,
sorrindo. - Lembro-me dele é Mitka.
Não se enganou. Não havia decorrido um minuto
quando o rapaz reapareceu trazendo consigo uma
bandeja com um copo de água e outro de vodca.
- A sua saúde, Excelência - disse ele, abrindo a
cara aparvalhada num largo sorriso.
O conde engoliu a vodca e lavou a boca com a água
e, desta vez, reprimiu a habitual careta.
A cerca de cem passos da casa havia um banco de
ferro tão velho como os pinheiros. Sentámo-nos e ficámos
a contemplar a beleza tranquila daquele entardecer de
Maio. Mesmo em tais circunstâncias, nas quais a voz
humana é a coisa mais desagradável que existe, o conde
não conseguiu ficar calado.
- Não sei se vais gostar da ceia - adiantou. -
Mandei preparar sopa de percas e uma lebre... Depois,
para acompanhar a vodca, esturjão frio e leitão com
rabanetes.
Os pinheiros agitaram-se, como que ofendidos por
aquele discurso, e um murmúrio surdo correu por todo o
pinhal. Levantou-se uma brisa fresca que fez voar as
folhas caídas no solo e balouçar os ramos das árvores.
- Basta! Basta! -gritou Orbenine, dirigindo-se aos
cães que, com as suas festas, o impediam de acender um
cigarro. - Parece-me que vai chover. Durante o dia faz
um calor tão sufocante que não é preciso ser um grande
sábio para profetizar chuva. Vai ser bom para o trigo.
"Que importa o trigo", pensei eu, "se o conde gasta
todo o seu rendimento em bebida? A chuva perde o seu
tempo".
O bosque foi atravessado por um vento mais fresco.
Os pinheiros e os arbustos aumentaram os seus
murmúrios.
- Vamos para casa.
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Levantámo-nos e iniciámos, indolentemente, o
caminho de regresso.
- Vale mais ser a loura Olenka - disse eu a
Orbenine - e viver aqui, entre os animais, do que ser
juiz de instrução e viver entre os homens. É bem mais
repousante. Não concorda, Piotre legoritch?
- Tudo está bem quando se tem a consciência
tranquila, Sergei Petrovitch.
-A consciência da formosa Olenka estará tranquila?
- Só Deus vê os corações humanos, mas, segundo
me parece, ela não tem qualquer razão para se inquietar.
Poucos desgostos, não mais pecados do que uma criança.
E boa rapariga... Aí vem a chuva.
Ouviu-se um ruído como o do rodado de um carro ou
de um jogo de chinquilho. O trovão surgiu por cima das
copas. Mitka, que não nos perdia de vista, estremeceu e
benzeu-se.
- A trovoada! - exclamou o conde. -A chuva vai
apanhar-nos no caminho! E é quase noite. Bem te disse
que devíamos regressar, mas tu teimaste em vir até aqui.
- Vamos acolher-nos na casa do guarda-florestal, à
espera de que passe a chuva - propus eu.
- Para quê? - comentou Orbenine, piscando os
olhos de forma estranha. - Vai chover toda a noite e
não poderão dormir aqui. Mas não se preocupem.
Continuem o vosso passeio. Mitka irá a casa, e pedirá
que mandem um carro para os levar de volta.
- Não é preciso - contrapus. - Não vai chover
torrencialmente durante toda a noite. Em regra, as
nuvens da trovoada passam depressa... E, a propósito,
não conheço ainda o novo guarda-florestal e também
gostaria de conversar com Olenka para ficar a saber qual
o seu temperamento...
- Acho bem - concordou o conde.
- O quê? Vamos ficar aqui? - balbuciou Orbenine,
muito inquieto. - Para quê permanecer num ambiente
38
sufocante, Excelência, se, em sua casa, pode estar muito
melhor? Não compreendo que vantagem há nisso...
Acresce que não me parece correcto ir visitar o guarda-florestal
precisamente quando se encontra adoentado...
Era manifesto que Orbenine não desejava de modo
algum que entrássemos naquela casa. Chegou ao ponto
de estender os braços como se pretendesse impedir a
nossa passagem. Compreendi que devia ter razões para
querer afastar-nos. Respeito as razões e os segredos
alheios, mas sentia-me espicaçado por uma forte
curiosidade. Acabámos por entrar na casa do guarda-florestal.
- Façam o favor de ir para a sala - gaguejou o
rapazote descalço, doido de alegria.
Imaginem a mais pequena "sala" possível, com os
seus tabiques de madeira sem pintura como decoração,
fotografias em molduras com cascas de caracóis e
conchas, atestados e gravuras recortadas da revista
Niva. Um dos atestados manifestava a gratidão de certo
barão por não sei que serviço os outros referiam-se a
cavalos. Aqui e além, a hera trepava pelos tabiques. Uma
pequena chama ardia suavemente em frente de um ícone,
a um canto, e reflectia-se levemente numa moldura
prateada. Encostadas às paredes havia cadeiras, em
quantidade excessiva para o tamanho da saleta embora
as mais velhas já fossem bastantes, tinham comprado
outras havia pouco tempo, sem razão aparente.
Apertados uns contra os outros viam-se ainda uns
cadeirões e um canapé com cobertas brancas adornadas
com folhos e rendas. Havia também uma mesa redonda,
bem envernizada... Sobre o canapé dormia uma lebre
domesticada... A divisão era confortável, agradável. Em
tudo aquilo era notória a presença de uma mulher. Até
a pequena estante, cheia de livros, dava a impressão de
algo inocente e feminino, como se contivesse apenas
novelas ingénuas e poesias pouco transcendentes. Não
39
é na Primavera que pode aperceber-se todo o encanto de
uma saleta como aquela é no Outono, quando procuramos
abrigo contra a humidade e o frio...
Mitka, a fungar, riscou um fósforo energicamente e
acendeu duas velas que, com grande cuidado, colocou à
nossa frente, sobre a mesa.
Sentámo-nos nas poltronas e, ao olhar uns para os
outros, não pudemos conter o riso.
- Nicolas Efimitch está de cama, doente, e a filha
decerto foi passear com as crianças - adiantou Orbenine
como que para explicar o que se passava naquela casa.
Do quarto vizinho chegou uma voz débil:
- Mitka, fechaste as portas?
- Fechei, sim, Nicolas Efimitch - respondeu Mitka
com voz rouca, correndo para o aposento contíguo.
- Está bem - disse a mesma voz. - Certifica-te de
que estão bem fechadas à chave. Se os ladrões quiserem
entrar, diz-me... Vamos recebê-los a tiro... Malvados...
- Claro que sim, Nicolas Efimitch.
Rimo-nos e olhámos interrogativamente para
Orbenine. Que queria aquilo dizer? Sorriu-se e, para
disfarçar o seu embaraço, aproximou-se da janela e
começou a mexer numa cortina. Que significava tal
atitude? Olhámos de novo uns para os outros, mas a
nossa perplexidade cedo se desvaneceu. Do exterior
chegou o ruído de passos ágeis e apressados e a porta e o
guarda-vento bateram. A rapariga de vermelho irrompeu
bruscamente na sala.
Vinha a cantar com voz de soprano mas, ao ver-nos,
calou-se de súbito e, depois, esboçou um sorriso.
Perturbada, tímida como uma gazela, esgueirou-se para
o quarto de onde viera a voz do pai.
- Ficou surpreendida! - disse Orbenine, sorrindo.
Algum tempo depois, a rapariga reapareceu foi
sentar-se, em silêncio, na cadeira mais próxima da porta
e começou a observar-nos. Olhou-nos com insistente
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atrevimento, como se não fôssemos pessoas estranhas
mas, sim, exemplares num jardim zoológico. Por
momentos, também a olhámos.
Estava tão formosa naquele fim de tarde que eu seria
capaz de ficar a olhá-la um ano inteiro. A sua pele tinha
a frescura da água ou da brisa, o peito erguia-se-lhe
suavemente quando respirava e os cabelos, ondulados
sobre a testa e caídos sobre os ombros, cobriam-lhe as
mãos com que comprimia a gola do vestido. Os seus olhos,
muito grandes, brilhavam. E tudo isto num corpo airoso
e miúdo que eu apreciava com um só olhar. Naquele
pequeno espaço era possível ver mais coisas, numa só
vez, do que a contemplação durante séculos de um
horizonte sem fim... A rapariga examinou-me de alto a
baixo com ar sério e curioso, mas, quando desviou a vista
para o conde e para o polaco, não pôde conter um sorriso.
Fui o primeiro a falar.
- Apresento-me - disse, aproximando-me. - O
meu nome é Zinoviev e apresento-lhe, também, o conde
Karnieiev. Pedimos desculpa por termos entrado na sua
bonita casa sem sermos convidados. Não o teríamos feito
se a trovoada não nos houvesse forçado...
- A nossa casa não vai desabar só por isso - replicou
ela, estendendo a mão.
Sorriu, pondo a descoberto os seus dentes admiráveis.
Sentei-me junto dela. Princípio de todos os
princípios, o tempo foi o primeiro tema. Enquanto
conversávamos Mitka serviu vodca, de novo, e o meu
amigo, aproveitando o facto de eu não estar a olhar para
ela, depois de cada gole fazia a sua careta preferida e
meneava a cabeça.
- Quer tomar alguma coisa? - perguntou-me
Odenka.
E, sem esperar a minha resposta, saiu da sala.
As primeiras gotas de chuva bateram contra a
vidraça. Aproximei-me da janela e só consegui vislum-
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brar a água que escorria pelo vidro e o reflexo do meu
nariz. Brilhou um relâmpago, iluminando os pinheiros
mais próximos.
- As portas estão todas fechadas? - voltou a
perguntar a voz do enfermo. - Mitka, maldito rapaz,
vai fechar as portas! Oh, Senhor, que tormento!
Uma camponesa, de grande barriga e rosto inquieto
e aparvalhado, entrou na sala. Cumprimentou o conde
timidamente e estendeu uma toalha branca sobre a
mesa. Por detrás dela, Mitka, com muita cautela, trazia
diversos pratos. Em pouco tempo, havia na mesa vodca,
rum, queijo e não sei que ave assada.
O conde bebeu outro copo de vodca, sem ligar à
comida. O polaco, pelo contrário, começou a trinchar a
peça de caça, depois de a haver cheirado.
- Já está a chover - disse eu a Olenka, quando
esta regressou. - Veja.
Aproximámo-nos da janela e, nesse mesmo instante,
fomos iluminados por um grande clarão azul. Estalou
um trovão, dando a impressão de que algo, enorme e
pesado, se havia desprendido do céu e rolava sobre a
Terra. A vidraça e os copos tremeram com um ruído
cristalino. O estampido fora tremendo.
- Tem medo das trovoadas? - perguntei a Olenka.
Inclinou um pouco a cabeça sobre o ombro e fitou-me
com expressão infantil e confiante.
- Sim, tenho medo - murmurou, passados uns
momentos. - A minha mãe foi fulminada por um raio.
Foi até noticiado nos jornais... Ia a atravessar um
descampado, a chorar... Teve uma vida muito infeliz...
Deus teve pena dela e matou-a com a electricidade do
céu...
- Como sabe que há electricidade no céu?
- Estou certa disso... Não sabe? Os que morrem
fulminados por um raio, os homens que morrem na
guerra e as mulheres que morrem ao dar à luz vão para
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o Paraíso... Não vem nas Escrituras, mas é verdade...
A minha mãe, agora, está no Paraíso... Pressinto que
também eu vou morrer fulminada por um raio e que irei
igualmente para o Paraíso... O senhor tem lido muitos
livros?
- Muitos.
- Então, não se ria de mim... Sabe como eu gostaria
de morrer? Vestida com as roupas mais belas e mais
caras, segundo a última moda, como as da senhora
Scheffer, a milionária... Traria os braços cheios de lindas
pulseiras, subiria ao cume do "Túmulo de Pedra" e
pronto! Vinha um raio e fulminava-me de maneira a que
todos vissem... Um tremendo trovão e tudo ficaria
consumado...
- Que fantasia macabra! - comentei, sorrindo e
fitando os olhos da rapariga de vermelho, onde se
reflectia o sagrado terror provocado por aquela imagem
de um fim atroz mas espectacular. - Não deseja, então,
morrer com um vestido trivial.
- Não - garantiu Olenka, com tom obstinado. -
Gostava que todos vissem.
- O vestido que hoje traz é mais belo do que
qualquer outro, por mais caro e mais na moda que seja...
Fica-lhe maravilhosamente bem... Parece uma flor
silvestre, vermelha e bela!
- Não, não é verdade! - suspirou Olenka, ingenuamente.
- Um vestido barato nunca pode ficar-me bem...
Com manifesto desejo de falar com Olenka, o conde
aproximou-se. Se bem que domine três idiomas, nunca
sabe como falar com as mulheres. Postado, sem qualquer
graça, junto de nós, esboçava um sorriso aparvalhado e
só conseguiu grunhir "Olá", voltando, de seguida, à sua
garrafa de vodca.
- Quando entrou em casa vinha a cantar "Gosto
das Tempestades de Verão". Há alguma cantiga com
essas palavras? - perguntei a Olenka.
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- Não - respondeu ela. - Sou eu que ponho em
música, à minha maneira, todos os versos que sei.
Distraidamente, virei a cabeça e vi que Orbenine
nos observava fixamente. Li-lhe nos olhos um ressentimento
e um ódio que não condiziam com o seu rosto
plácido. "Deve estar com ciúmes", pensei.
Ao ver-se surpreendido, levantou-se e, muito agitado,
encaminhou-se para o vestíbulo. Os trovões eram cada
vez mais frequentes e ruidosos. Os relâmpagos
iluminavam o céu, os pinheiros e a terra molhada. Ia
chover durante muito tempo. Acerquei-me da estante e
passei em revista a biblioteca de Olenka."Diz-me o que
lês..." No entanto, do que vi, não pude extrair conclusões
sobre o nível mental da rapariga.
No momento em que começava a folhear um dos
livros, abriu-se a porta do quarto vizinho e surgiu uma
singular criatura que logo despertou a nossa atenção.
Era um homem alto e magro, com um roupão de algodão
adornado com desenhos indianos nos pés trazia pantufas
esgaçadas. O bigode e as suíças, de talhe militar, davam-lhe
o aspecto de um pássaro. A cabeça pequena baloiçava
sobre o pescoço alto e a maçã de Adão agitava-se como
um ninho de estorninhos sacudido pelo vento. A estranha
personagem fitou-nos com os seus olhos verdes que, de
seguida, se fixaram no conde.
- Fecharam as portas? - perguntou com voz
suplicante.
O conde olhou para mim, surpreendido.
- Não se inquiete, pai - disse Olenka. - Está tudo
bem fechado. Volte para o seu quarto.
- E fecharam também o... barracão?
- Às vezes, fica um tanto perturbado - murmurou
Orbenine, regressando do vestíbulo. - Tem muito medo
dos ladrões e só pensa nas portas. Nicolas Efimitch -
continuou, voltando-se para o dono da casa -, volta para
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o teu quarto e deita-te. Nada receies. Está tudo bem
fechado.
- E as janelas também?
O homem dirigiu-se às janelas e verificou os fechos
de todas elas. Depois, sem nos prestar atenção,
desapareceu no interior do quarto.
- Que tristeza - comentou Orbenine. - É bom
homem mas, quase todos os anos, quando se aproxima o
Verão, a sua mente fica transtornada...
Olenka, embaraçada, procurou esconder o rosto e
começou a pôr no lugar os livros que eu desarrumara.
Era patente que se envergonhava da loucura do pai.
- Excelência - disse, então, Orbenine. - Chegou
a carruagem. Já pode partir.
- Quem mandou vir a carruagem? - perguntei.
- Fui eu quem a mandou buscar...
Minutos mais tarde, sentado na carruagem ao lado
do meu amigo, resmunguei, enquanto ouvia bramir o
temporal:
- Foi Piotre Iegoritch quem nos pôs fora daquela
casa! Que o Diabo o carregue! Nem sequer nos deu tempo
para examinar Olenka! Estúpido! Não íamos comê-la!
Rebentava de ciúmes! Creio que está apaixonado por ela.
- Está, claro que está, já me apercebi disso. Por
ciúmes não queria que entrássemos, e por ciúmes fez-nos
sair dela... Ah, Ah!
- De barba já grisalha e ainda com o Diabo no corpo!
É certo que não é difícil a qualquer homem enamorar-se
daquela rapariga, se a vir todos os dias tal como a vimos
hoje. É extremamente formosa. Mas não é para os dentes
do asqueroso Orbenine. Ele devia dar-se conta disso e
não ser tão egoísta. Que a adore à distância, vá que não
vá, mas que não impeça os outros de a admirar. Além do
mais, devia saber que não é mulher para ele... Velho
imbecil!
- Lembras-te - fez notar o conde, com uma risada
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de troça - de como ficou enfurecido quando, ao chá,
Kuzma se referiu a ela? Parecia que queria bater em
todos nós... Não se assume daquela forma a defesa de
uma mulher que nos é indiferente...
- Sim, pode-se fazê-lo, mas isso não importa... Se
hoje nos gritou daquela maneira, imagina o que fará com
os pobres tipos sob as suas ordens. O amor e o ciúme
tornam-nos injustos e misantropos. Ia jurar que, por
causa de Olenka, já converteu num inferno a vida de
grande número de servidores. Creio que deves tomar
isso em consideração quando ele fizer queixa de algum
criado. Modera os seus poderes, nem que seja por uns
tempos. O entusiasmo vai passar-lhe e as coisas
melhorarão... Apesar de tudo é um bom homem.
- E o papá da rapariga? Que tal o achaste?
- É um louco que devia estar no manicómio e não
na casa do guarda-florestal. À tua porta devias mandar
pôr o letreiro "Hospício". Não falta nada: o guarda, a
Coruja, o jogador Franz, um velho apaixonado, uma moça
exaltada e, para terminar, tu, perdido pelo álcool. Que
mais é preciso?
- Mas o guarda ganha um salário. Para que pode
servir-me se está doido?
- Orbenine conserva-o certamente por causa da
filha. Alega que o velho só tem estas crises no Verão... É
pouco provável, Estou convencido de que o guarda está
doente durante o ano inteiro. Felizmente, o teu Piotre
Iegoritch só mente de vez em quando, porque, quando o
faz, logo o demonstra.
O carro entrou no pátio e parou junto da porta
principal. Descemos. A chuva cessara. Iluminadas por
relâmpagos, as nuvens da tempestade afastavam-se
agora para Nordeste, deixando a descoberto uma porção
cada vez maior de céu estrelado. Entrámos na casa, onde
nos aguardava um género bem diferente de "poesia".
46
5
- Ainda bem que não comeste em casa do guarda-florestal.
Terias perdido o apetite - disse-me o conde,
quando entrámos. - Hoje, vamos saborear uma ceia
magnífica, como nos bons velhos tempos... Podes servi-la
- rematou, voltando-se para Ilia, que o ajudara a
tirar o casaco e a vestir o roupão.
Dirigimo-nos à sala de jantar.
Sobre a mesa, alinhadas como no bufete de um
teatro, garrafas de todas as cores e tamanhos reflectiam
a luz dos candeeiros. Aperitivos salgados, de escabeche
e de muitas outras espécies esperavam numa segunda
mesa, junto de uma garrafa de vodka e outra de
aguardente inglesa. Perto das garrafas, havia dois pratos
com leitão e esturjão frios.
- A vossa saúde, meus senhores! - exclamou o
conde, enquanto, com mãos trementes, enchia três
cálices. -Aqui tens o teu, Gaetan Casimirovitch.
Eu bebi, mas o polaco abanou a cabeça. Aproximou o
nariz do esturjão, aspirou o seu cheiro e começou a comer.
Peço desculpa ao leitor por descrever coisas tão pouco
românticas.
- Vamos! - convidou o conde. - Sigamos o que diz
o poema: E beberam o segundo...
Quando me encheu o copo, pela segunda vez,
acrescentou:
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- Toma, Lecoq.
Peguei no copo, examinei-o e voltei a colocá-lo sobre
a mesa.
- Diabos me levem - disse. - Há muito que não
bebo. Façamos como nos velhos tempos.
E, sem hesitar, enchi mais quatro cálices e bebi os
cinco, uns atrás dos outros. Não sabia beber de outra
maneira. Os estudantes aprendem com os mais velhos a
fumar os primeiros cigarros. O conde, como um caloiro,
seguiu o meu exemplo encheu também cinco cálices e,
curvado em arco, de sobrancelhas franzidas e a sacudir
a cabeça, emborcou-os de rajada. Os meus cinco cálices
pareceram-lhe um desafio, mas sem razão. Eu não bebera
daquele modo por bravata de bebedor mas, sim, para
me embriagar, para apanhar uma valente bebedeira,
como não acontecia havia muito, perdido como estava
na pasmaceira daquela vilória.
Depois de beber, sentei-me à mesa e comecei a comer
leitão.
O álcool não tardou a produzir os seus efeitos. Pouco
depois, senti uma ligeira vertigem. No meu peito
espalhou-se uma agradável frescura, prelúdio de um
estado expansivo e feliz. Sem transição, fiquei, de
repente, extremamente eufórico, Uma sensação de
enorme alegria tomou o lugar do vazio e do tédio que
experimentara até então. Sorri e, num instante, tive
vontade de conversar, de rir, de ver gente. A comer e a
beber, senti a plenitude da vida, quase a alegria de viver,
quase a felicidade completa.
- Porque não bebe? - perguntei ao polaco.
- Nunca bebe - declarou o conde. - Não insistas.
- Beba um copo, ao menos!
,:! O polaco, a mastigar uma grande posta de esturjão,
abanou a cabeça.
O seu silêncio irritou-me.
- Ouça lá, Gaetan... Desculpe, mas não me lembro
48
do seu apelido... Porque fica sempre calado? Até agora,
ainda não tive o prazer de lhe ouvir a voz...
As sobrancelhas ergueram-se, como andorinhas que
levantam voo, e o homem fitou-me.
- O senhor quer que eu fale? - perguntou, com
forte sotaque polaco.
- Claro.
- Porquê?
- Porque é mais natural. Nos barcos e nos hotéis,
os estranhos que se sentam à mesma mesa metem
conversa uns com os outros. Nós, que nos conhecemos
há já várias horas, olhamo-nos mutuamente sem trocar
palavra. Que significa isso?
O polaco manteve-se calado.
- Porque não responde? - perguntei, passados
instantes. - Diga alguma coisa!
- Não quero responder-lhe. Vejo que quer troçar de
mim e não gosto disso.
- Não está a troçar de ti, Gaetan! - interveio o
conde, assustado, - Onde foste buscar tal idéia? Está a
falar amistosamente contigo.
- Nem condes nem príncipes me falaram jamais
em semelhante tom. - replicou Gaetan, franzindo as
sobrancelhas. - E é um tom que não me agrada.
- Quer dizer que me nega o prazer de conversar
comigo - continuei eu, espicaçando-o ainda mais.
- Sabes porque regressei? - atalhou o conde,
tentando mudar o rumo da conversa. - Fui consultar o
meu médico em São Petersburgo e ele, depois de me
auscultar, perguntou-me: "O senhor é cobarde?" Embora
não seja, empalideci e respondi: "Não, não sou".
- Deixa-te de rodeios, meu velho, porque começas
a maçar-me...
- Afirmou que eu não duraria muito, se não saísse
rapidamente da cidade... Tenho o fígado desfeito... Sabes?
Por causa da bebida... Era uma estupidez continuar em
4 - Vampiro 684
49
São Petersburgo... Disponho desta propriedade que é
magnífica... E o clima, aqui, é excelente! Além disso,
sempre posso entreter-me a fazer qualquer coisa. O
trabalho é o melhor remédio, não te parece, Gaetan? Vou
tratar das minhas terras e deixarei de beber... O médico
proibiu-me de tomar nem que seja um copo de vinho...
- Bom, então não bebas!
- E vou mesmo deixar de beber! Hoje é a última
vez e só o faço por teres vindo visitar-me... - afirmou o
conde, enquanto se arrastava até mim e me beijava na
face. - Por teres vindo visitar-me, tu, meu querido e
bom amigo. Mas, a partir de amanhã, nem uma só gota!
Dou férias a Baco até à eternidade. Vamos despedir-nos
dele com conhaque, Serioja...
Bebemos conhaque.
- Vou curar-me, Serioja, e tratar das minhas terras.
Cultura racional! Orbenine é bom, afável, sabe de tudo,
mas não passa de um pateta. É rotineiro. Vou assinar
revistas agrícolas, olhar por tudo, tomar parte em
exposições rurais... Ele não serve para isso... Mas há
Olenka... É possível que esteja apaixonado por ela... Ah!
Ah! Serei eu a tratar de tudo... Participarei nas eleições,
darei festas. Creio que aqui poderei ser feliz... Não achas?
Ah, lá estás tu a rir... Estás sempre a rir... Na verdade,
não se pode falar contigo de coisas sérias!...
Sentia-me alegre e de bom humor. Tudo me fazia
rir: o conde, as luzes, as garrafas, as lebres e os patos
esculpidos que ornavam as paredes da sala de jantar.
A única coisa que me entristecia era a cara sisuda de
Gaetan Casimirovitch. A presença daquele homem tinha
o condão de me irritar.
- Não podes mandar para o diabo este fidalgote
polaco? - sussurrei ao conde.
- Que se passa contigo? Pelo amor de Deus, deixa-o
em paz! - murmurou, agarrando-me o braço, como
se eu tivesse intenção de agredir o polaco.
50
- Não posso com ele. Ouça! - exclamei, dirigindo-me
a Pchekotski. - O senhor recusa-se a falar comigo
mas ainda não perdi a esperança de travar mais amplo
conhecimento com as suas faculdades oratórias.
- Deixa-o - suplicou de novo o conde, puxando-me
o braço.
- Vou colar-me a si - continuei -, até que me
responda. Porque franze as sobrancelhas? Terá a
coragem de afirmar, outra vez, que quero troçar de si?
- Se tivesse bebido tanto como o senhor, poderíamos
falar - resmungou o polaco -, mas assim não estamos
em igualdade de condições.
-Aí tem! Aí tem o que eu queria demonstrar... Um ganso
não pode ser boa companhia para um porco, um bêbado
não pode andar de braço dado com um homem sóbrio...
O bêbado incomoda o sóbrio e o sóbrio incomoda o bêbado.
Veja! No salão há uns magníficos sofás, muito macios,
onde uma pessoa pode estender-se depois de ter enchido
a barriga com esturjão e rabanetes. Lá não se ouve a
minha voz. Não quer ir para lá?
O conde, estupefacto, ergueu os braços, pestanejou
e pôs-se a andar de um lado para o outro. Cobarde como
era, temia as discussões acaloradas... Eu, pelo contrário,
quando bebo, adoro as altercações e as controvérsias.
- Não te percebo - gemeu, não sabendo o que dizer
ou fazer. - Não te percebo.
Sabia que era difícil acalmar-me.
- Ainda não o conheço bem - prossegui. - Pode
acontecer até que seja um excelente homem. Por isso
mesmo não queria discutir consigo, neste momento.
E não o farei. Limito-me a fazer-lhe ver que, entre
bêbados, as pessoas sóbrias estão a mais. Um homem
sóbrio irrita o organismo de um bêbado. Meta isso na
cabeça.
- Diga o que quiser, jovem - suspirou Pchekotski.
- Nada me fará perder a calma.
51
- Tem a certeza disso? Nada? E se eu lhe chamar
"porco teimoso", não se sente ofendido?
O polaco corou e nada mais. O conde, muito pálido,
aproximou-se de mim em atitude suplicante e abriu os
braços.
- Por favor! Modera a tua linguagem!
Bem compenetrado do meu papel de bêbado, teria
continuado os meus ataques ao polaco, mas, por sorte
para ele e para o conde, ouviram-se uns passos e
Orbenine entrou no salão.
- Bom proveito! - saudou. - Vossa Excelência tem
alguma ordem a dar-me?
- Por enquanto, não, mas alegro-me por ter vindo,
Piotre Iegoritch. Sente-se. Vai cear connosco e falaremos
das culturas.
O administrador sentou-se. Enquanto comia e bebia
conhaque, o seu patrão expôs-lhe os seus planos de
cultura racional. Falou de maneira cansativa, repetindo-se
e saltando de uma idéia para outra. Orbenine
escutava-o com atenção indolente, tal como os adultos
escutam a fala incoerente de uma criança. Tomava a sopa
e ficava a olhar para o prato com tristeza.
- Trouxe comigo uns projectos magníficos -
declarou o conde. - Quer vê-los?
Karnieiev levantou-se e correu para ir buscar os tais
projectos. Orbenine aproveitou a sua ausência para
servir-se de vodca, que despejou numa chávena e bebeu
de um só trago.
- Que asquerosa bebida! - disse, olhando horrorizado
para o garrafão.
- Porque não bebe na presença do conde? -
perguntei-lhe. - Tem medo dele?
- É melhor, Sergei Petrovitch, passar por hipócrita
e beber às escondidas do que beber diante dele. Como
sabe, o conde tem um temperamento esquisito. Se eu
lhe roubasse descaradamente vinte mil rublos, ele, por
52
preguiça, não diria nada, mas se me esquecesse de lhe
prestar contas de uma despesa de dez copeques, ou se
bebesse à sua frente, era capaz de chamar-me as piores
coisas.
Orbenine serviu-se outra vez de vodca e engoliu-o
de seguida.
- Creio que antigamente não bebia, Orbenine.
- É exacto. E, actualmente, bebo em excesso.
O conde nunca bebeu tanto como eu bebo agora. Sempre
tive grande consideração por si, Sergei Petrovitch, e vou
ser franco para consigo: gostava de ter coragem para me
enforcar.
- Que idéia! Porquê?
- Por causa das minhas parvoíces. Não só as
crianças são patetas. Há imbecis de cinquenta anos que...
Por favor, não pergunte mais nada!
O regresso do conde pôs um ponto final nas efusões
de Orbenine.
- Um excelente licor - proclamou, colocando sobre
a mesa, em lugar dos "magníficos"projectos, uma garrafa
bojuda com o lacre da Bénédictine. - Comprei-o na loja
Desprès, em Moscovo. Queres prová-lo, Serioja?
- Não tinhas ido buscar uns projectos? - perguntei.
- Eu? Que projectos?... Ah, sim... Não os encontrei.
Nem o Diabo era capaz de se entender com as minhas
malas. Procurei por toda a parte e acabei por desistir...
É óptimo, este licor. Não queres prová-lo?
Orbenine pediu licença para retirar-se e saiu.
Bebemos mais vinho tinto - e esse vinho acabou comigo.
Vi acercar-se a bebedeira por que tanto ansiava desde
que me decidira a visitar o conde. Sentia-me cada vez
mais alegre e atrevido. Desejava fazer algo de extraordinário,
de grotesco, de assombroso... Em momentos
como aquele, julgo-me capaz de atravessar o lago a nado,
de resolver os casos mais complicados, de subjugar
qualquer mulher... Tinha vontade de me pegar com outra
53
pessoa, de cobri-la de insultos, de irritar, com palavras
acerbas, o polaco e o próprio conde. Queria reduzi-los a
pó.
- Porque estão calados? - comecei. - Falem! Todo
eu sou ouvidos. Ah, ah! Adoro ouvir aqueles que dizem
os maiores disparates com cara muito séria. É uma
ironia, uma terrível brincadeira da natureza humana.
Rostos que não correspondem aos cérebros! Para não
enganar os outros, vocês dois deviam ter caras de idiotas
e não de filósofos gregos...
Tomara o freio nos dentes. Não acabei. Viera-me à
cabeça a idéia de que não mereciam sequer que lhes
dirigisse a palavra. Do que eu precisava, naquela altura,
era de uma sala cheia de belas mulheres inteligentes e
carregadas de jóias.
Levantei-me, peguei num copo e pus-me a passear
pela casa. Quando organizávamos uma festa não nos
confinávamos a uma sala só invadíamos toda a casa e,
às vezes, até toda a propriedade.
No salão dos azulejos escolhi o sofá turco para nele
me entregar ao império da fantasia. O meu cérebro foi
tomado por mirabolantes divagações alcoólicas. Dei
comigo num mundo novo, cheio de exaltações, encanto e
de cores indescritíveis. Só me faltava fazer versos e ter
alucinações.
54
6
O conde veio sentar-se no sofá, a meu lado. Queria
dizer-me alguma coisa. Adivinhava-lhe nos olhos o desejo
de me fazer uma confidência muito especial, logo após
haver emborcado os seus cálices de que já falei. E eu
sabia do que se tratava.
- Quanto bebi! - confessou. - Isto, para mim, é
pior do que um veneno, mas será a última vez. Palavra,
vai ser a última vez. Estou decidido e a minha vontade é
muito forte...
- Basta! Já sei tudo isso.
- A última vez, Serioja. E a propósito, não seria
melhor telegrafarmos para a cidade?
- Se quiseres telegrafa.
- Vamos fazer uma pândega pela derradeira vez.
Levanta-te e redige o telegrama.
O conde não sabe escrever telegramas. Ficam
prolixos mas incompletos. Levantei-me e escrevi:
Para o chefe do coro Karpov, Restaurante Londres.
Deixe tudo e venha imediatamente no comboio das duas.
Conde Karnieiev
- São duas menos um quarto - disse o conde. -
Em três quartos de hora, no máximo uma hora, o
mensageiro estará na estação. Karpov terá tempo de
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apanhar o comboio... Se o perder, poderá vir no de
mercadorias, não achas?
Kuzma, o vesgo, levou o telegrama e foi ordenado a
Ilia que mandasse o carro à estação, daí a uma hora.
Para passar o tempo pus-me a acender lentamente todos
os candeeiros da casa. Abri o piano e experimentei o
teclado.
Em seguida, deitei-me no sofá, sem pensar fosse o
que fosse, procurando evitar o conde que me incomodava
com as suas histórias. Entrei num estado de sonolência,
numa disposição de espírito feliz e tranquila, não vendo
mais nada do que a luz das velas... Passou-me em frente
dos olhos a imagem da rapariga de vermelho, com a sua
cabeça inclinada sobre o ombro, o seu olhar cheio de
terror perante a idéia de uma morte sensacional e o gesto
de leve ameaça que me fizera com o dedo. Também me
fixei noutra imagem: a de uma rapariga altiva e pálida,
vestida de preto, que me fitava com ar de súplica e, ao
mesmo tempo de desprezo.
Nesse momento ouvi um barulho de vozes e
correrias... Dois olhos negros velaram. Apercebi-me de
que alguém se ria junto de mim e de uns lábios frescos
que se abriam alegremente. Era Tina, a minha cigana
favorita.
- Estás a dormir? - perguntou - Levanta-te,
querido... Há quanto tempo não te via!
- Apertei-lhe a mão, em silêncio, e puxei-a para mim.
- Vem ter connosco - pediu. - Já chegaram todos.
- Fica comigo, Tina. Sinto-me bem aqui.
- Mas... há luz a mais. Pode aparecer alguém...
- - Se aparecer alguém, torço-lhe o pescoço. Sinto-me
bem aqui, Tina. Dois anos sem te ver...
Na sala, o piano começou a tocar e um coro de vozes
entoou Ah, Moscovo! Moscovo das pedras brancas.
- Vês? Já estão a cantar. Não virá ninguém
incomodar-nos.
56
- Sim... sim...
A chegada de Tina tirou-me do meu torpor. Dez
minutos mais tarde, levou-me para a sala, onde um coro
de ciganas estava instalado em semicírculo. Escarranchado
numa cadeira, o conde fazia de maestro e o polaco,
de pé, olhava tudo aquilo com olhos esgazeados. Tirei a
balalaica das mãos de Karpov e, com um trejeito, comecei
a cantar: Navegando sobre o rio, que é como a nossa mãe,
o Volga...
- Vo-o-olga! - acompanhou o coro.
- Ah! Arde...fala...fala...
Fiz novo trejeito e, com a velocidade de um raio,
passou-se para outra cantiga: Oh! Que noites de loucura,
noites de prazer...
Nada me excitava tanto os nervos como aquelas
mudanças bruscas de ritmo e de melodia. Estremeci, em
êxtase, e, agarrando Tina pela cintura com uma das mãos
e brandindo a balalaica na outra, acabei de cantar As
noites de loucura. A balalaica escapou-se-me das mãos,
caindo no chão e, com fragor, quebrou-se em mil pedaços.
- Vinho!
Daí em diante, as minhas recordações penetram num
caos. Tudo se mistura e confunde... Lembro-me do céu
cinzento da madrugada. Encontramo-nos num pequeno
barco. O lago está levemente agitado, como que
indignado com os nossos excessos. De pé, no meio do
barco, faço-o baloiçar. Tina grita, dizendo que vou cair à
água e pedindo que me sente. Em alta voz, lastimando
que o lago não tenha ondas tão altas como o "Túmulo de
Pedra", a minha gritaria assusta as gaivotas que aparecem
e desaparecem, em manchas brancas sobre o azul
das águas.
Vem depois um dia longo e quente, com as suas
intermináveis refeições, os seus licores, conhaques e
ponches. Recordo-me apenas de alguns momentos.
Vejo-me com Tina, no jardim, sobre uma prancha de
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baloiço. Estou sentado numa das extremidades e Tina
na outra. Subo e desço, com vigorosos impulsos, e não
sei o que quero: que Tina caia e morra ou que suba até
às nuvens. A cigana está muito pálida, mas, por amor
próprio, aperta os lábios para não dar mostras do medo
que sente. Subimos cada vez mais alto, mais alto... e
não me recordo como acabou aquela brincadeira.
Vem em seguida um passeio com Tina ao longo de
um caminho arborizado. As copas verdes das árvores
unem-se ao alto, ocultando o sol. Uma penumbra poética,
as negras tranças de Tina, os seus lábios húmidos, um
murmúrio... depois, caminha a meu lado uma rapariga
loura, de nariz arrebitado, olhos de criança e cintura
fina - é contralto no coro. Passeio na sua companhia
até ao momento em que Tina, que nos seguiu, faz uma
cena de ciúmes. Está pálida, furiosa chama-me "maldito"
e quer voltar para a cidade. O conde, também pálido e
com as mãos trémulas, corre para nós e, como de
costume, não encontra palavras para acalmar Tina. A
cigana, no auge da sua excitação, esbofeteia-me. Eu, que
me enfureço perante a primeira palavra menos própria
de qualquer homem, fico de todo indiferente às agressões
de uma mulher.
Ao cair da tarde, eu e Tina reconciliamo-nos. E chega
a noite, tão agitada como a anterior, com música, cantigas
endiabradas... e nem um segundo de sono reparador.
- É um suicídio - murmurou Orbenine, que
entrara, durante uns instantes, para ouvir os ciganos
Obviamente, tem razão... Recordo-me de certa
altura, no jardim, em que eu discutia com o conde.
O polaco de sobrancelhas negras rondava por perto. Em
momento algum tomou parte nas nossas efusões, embora
nos seguisse por toda a parte, como uma sombra, sem
fechar os olhos por um momento.
O céu começou a aclarar-se e as copas das árvores
voltaram a dourar-se com os primeiros raios de sol. Ao
58
redor iniciou-se o alvoroço dos pardais e o canto dos
estorninhos - ruídos sedosos, golpes de asas entorpecidas
pela noite. Ouviu-se o mugir dos rebanhos acompanhado
pelos gritos dos pastores. Perto de nós, sobre
um alto castiçal de mármore, ardia uma vela Chandor
com a sua chama pálida. O solo está coberto de pontas
de cigarros, invólucros de bombons, copos partidos,
cascas de laranjas...
- Toma lá! - disse ao conde, entregando-lhe um
maço de notas. - Tens de aceitar!
- Fui eu quem os convidei e não tu - contrapôs o
conde com energia, agarrando-me pelo casaco. - Sou
eu o anfitrião. Mandei-te buscar. Por que razão hás-de
ser tu a pagar? Não vês que me ofendes?
- Eu também os convidei - retorqui. - Quero pagar
a minha parte. Não queres aceitar o meu dinheiro? Pois
eu não aceito os teus favores! Julgas que por seres rico
podes impor-me a tua vontade? Diabos me levem. Fui
eu quem convidou Karpov e serei eu a pagar-lhe. Eu é
que redigi o telegrama.
- Num restaurante, Serioja, podes pagar o que
quiseres, mas a minha casa não é um restaurante. E
não compreendo porque te exaltas assim. Tens pouco
dinheiro enquanto eu tenho-o de sobra. Amais elementar
equidade obriga-me a pagar toda a despesa.
- Então não queres o meu dinheiro? Não o queres,
pois não?
Aproximei as notas da chama da vela, peguei-lhes
fogo e atirei-as ao chão. Gaetan soltou um gemido. Abriu
os olhos, empalideceu e lançou-se por terra, procurando
apagar as chamas com as mãos. Os seus esforços foram
coroados de êxito.
- Queimar dinheiro! - exclamou, enfiando no bolso
as notas chamuscadas. - Não posso compreender tal
coisa! Como se fosse o trigo do ano passado ou cartas de
amor. É melhor dá-lo aos pobres.
59
Encaminhei-me para casa. Em todas as divisões,
sobre os sofás e os tapetes, dormiam os cantores,
esgotados. Tina dormia no sofá do salão dos azulejos.
Respirava com dificuldade, de dentes cerrados e rosto
pálido. Provavelmente via, em sonhos, o baloiço...
A Coruja percorria os quartos espreitando, com os seus
olhos penetrantes, as pessoas que tinham perturbado o
silêncio sepulcral daquela casa desabitada. Não era sem
uma razão válida que assim deambulava e cansava as
pernas.
Eis o que me ficou na memória daquelas duas noites
de tremenda orgia - mas creio que é suficiente. Tudo o
mais esvaiu-se do meu cérebro perturbado pelo álcool
ou não é próprio para ser contado. E, por agora, basta!
', ':" - ')• ' ti"
60
7
Zorka nunca me transportou para casa com tanta
energia como naquela manhã, depois do episódio das
notas... Parecia que também a égua tinha urgência em
regressar.
As ondas espumantes do lago reflectiam o nascer do
Sol. É difícil descrever o que ia dentro de mim naquele
momento. Direi somente, sem insistir, que me sentia
inegavelmente feliz e, ao mesmo tempo, corava de
vergonha ao ver, na margem do lago, o velho Michei,
esgotado pelo trabalho honesto e pelas maleitas. A sua
aparência fazia lembrar a dos pescadores da Bíblia.
Fiz estacar Zorka e estendi a mão ao velhote, como
para me purificar, tocando na sua mão calejada. Michei
ergueu para mim os seus olhos espertos e sorriu.
- Bom dia, meu senhor - disse, acanhado e
estendendo-me a mão. - Vem a cavalo. Quer dizer que
o vadio já regressou. Leio-o na sua cara. Eu observo
sempre o que se passa à minha volta. O mundo será
sempre o mundo. Vaidade das vaidades. Olhe, o alemão
está quase a morrer, mas agora preocupa-se com
futilidades. Veja-o.
O velhote, com o seu cajado, apontou para o pavilhão
de banhos do conde, de onde saiu, num bote, um homem
com boné de jóquei e casaco azul: o jardineiro Frantz.
- Todas as manhãs vai à ilha para lá esconder
61
dinheiro. O imbecil não compreende que, para ele, o
dinheiro e a areia têm o mesmo valor. Não o levará
consigo, quando morrer. Dê-me um cigarro, senhor.
Estendi-lhe a cigarreira e ele tirou três cigarros que
guardou no bolso da camisa.
- São para o meu sobrinho... Ele gosta de fumar...
Impaciente, Zorka retomou a marcha. Despedi-me
do velho, agradecido por me ter dado a oportunidade de
repousar os olhos no seu rosto. Michei ficou a observar-me
até eu desaparecer da sua vista.
Em casa, Policarpe estava à minha espera. Mediu-me
de alto a baixo, com um olhar de desdém, como se
quisesse certificar-se de que, também daquela vez,
tomara banho vestido.
- Felicito-o - grunhiu. - Divertiu-se muito?
- Cala-te, idiota!
O seu ar estúpido irritou-me. Despi-me rapidamente,
enterrei a cabeça na almofada e fechei os olhos.
A cabeça andou-me à roda. Como que trazidas por
uma bruma vaga, chegaram ao meu espírito imagens
familiares e recentes. Ouvi o grito "O marido matou a
mulher... Ah, que estúpidos são vocês!" A rapariga do
vestido vermelho ameaçou-me com o dedo. Tina veio
ensombrar o quarto com os seus olhos negros e eu
adormeci.
- Que sono delicioso e inocente! Dir-se-ia que nesta
almofada repousa a consciência mais sossegada deste
mundo, que o conde não regressou ainda, que não houve
nenhuma orgia nem ciganos, que à beira do lago não se
produziu qualquer escândalo... Levante-se homem
maligno! Não merece as delícias de um sono tranquilo.
Levante-se!
Entreabri os olhos e espreguicei-me com delícia. Da
janela chegava um raio de sol em que flutuava o pó
branco do quarto. Esse raio tão depressa desaparecia
dos meus olhos como voltava a incidir neles, consoante
62
se interpunha ou não, diante de mim, o Dr. Pavel
Ivanovitch Voznessenskí, meu simpático vizinho.
O seu largo jaquetão desabotoado flutuava-lhe sobre
o corpo como se este fosse um cabide. Com as mãos
enfiadas nos bolsos das calças, exageradamente largas,
ia de uma mesa para a outra ou de um retrato para o
seguinte, observando, com olhos de míope, tudo o que
encontrava no caminho.
Cedendo ao seu hábito de meter o nariz em quanto
podia, inclinou-se para a frente para examinar o
lavatório, as pregas dos cortinados, as fendas das portas
e o candeeiro, como se quisesse assegurar-se de que tudo
estava em ordem.
Examinando atentamente, através dos óculos
colocados na ponta do nariz comprido, a menor racha, a
mais pequena mancha no papel de parede, assumia ar
preocupado, resfolgava ruidosamente e alisava as
imperfeições que descobria com a ponta da unha e com o
maior cuidado. Fazia tudo aquilo maquinalmente,
passando, com presteza, de um objecto para outro, como
um perito que procede a uma análise minuciosa.
- Já lhe disse que se levantasse! - repetiu com a
sua suave voz cantante, enquanto inspeccionava a
saboneteira e extraía, com a unha, um cabelo colado ao
sabão.
- Ah, bom dia, Sr. "Olhos piscos"! - disse eu,
bocejando. - Quantos Outonos e quantas Primaveras
sem nos vermos!
Tal como eu, toda a gente do distrito conhece o
médico pela alcunha de "Olhos piscos" porque, na
verdade, os seus olhos piscam constantemente. Ao ver-me
acordado, Voznessenski aproximou-se da cama,
sentou-se nela e, de imediato, dirigiu a vista para uma
caixa de fósforos.
- Só os preguiçosos e as pessoas de consciência
tranquila dormem assim e, como você não é uma coisa
63
nem outra, convém que se levante quanto antes. ,
- Que horas são?
- Passa das onze.
- Vá para o diabo! Ninguém lhe pediu que me
acordasse tão cedo! Sabe que não consegui dormir até
às seis? Se não fosse você poderia ter dormido até ao fim
da tarde.
- Pois claro! - protestou Policarpe do quarto
vizinho. -Ainda não dormiu o suficiente. Há dois dias
que está a dormir e ainda não chega? Sabe que dia é
hoje? - perguntou em seguida, entrando no meu quarto
e olhando para mim como os sãos de espírito olham para
os loucos.
- Quarta-feira - respondi.
- Pois claro! - repetiu. - Esta semana teve duas
quartas-feiras.
- Hoje é quinta-feira - declarou o médico. - Com
que então deu-se ao luxo de dormir durante todo o dia
de ontem. Muito bonito! Que diabo bebeu você?
- Passei duas noites sem dormir, mas não me
recordo do que bebi.
Mandei embora Policarpe e comecei a vestir-me,
enquanto relatava ao médico as "noites loucas" que
acabara de viver, tão aliciantes nas novelas e tão
desagradáveis na vida real. Procurei adoptar um tom
ligeiro, limitando-me a narrar os acontecimentos, sem
extrair a moral da história, embora a natureza humana
seja dada a tirar conclusões de tudo quanto acontece.
Parecia que estava a contar ninharias a que era de todo
alheio e, conhecendo a sua aversão por Karnieiev, omiti
inúmeros pormenores, mas, apesar do meu tom contido,
não logrei que Pavel Ivanovitch deixasse de me fitar com
ar muito sério, abanando a cabeça e demonstrando
a sua impaciência. Era evidente que o meu "tom
ligeiro" não o convencia.
- Porque não se ri, meu caro "Olhos piscos"? -
64
perguntei, quando dei por findo o relato.
- Se não fosse você a contar-me isso e também se
eu não soubesse de outro episódio confirmativo, não
acreditaria no que ouvi. É por demais escandaloso, meu
amigo.
- A que episódio se refere?
- Ontem de tarde, um mujique chamado Ivan
Ossipov veio ver-me... Lembra-se? Você agrediu-o de
forma muito pouco delicada.
- Ivan Ossipov? - exclamei, levantando-me, - É
a primeira vez que ouço esse nome.
- Um homem alto, arruivado, sardento... Veja se
consegue recordar-se... Você deu-lhe com um remo na
cabeça!
- Não me lembro. Não conheço nenhum Ivan
Ossipov e não dei com um remo na cabeça de ninguém.
Deve ser confusão sua...
- Quem me dera que assim fosse... Ossipov trazia
um mandado administrativo para que eu elaborasse um
atestado médico. O mandado dizia que foi você quem o
agrediu. Ainda não se lembra? Ferida contusa na parte
superior da testa, junto do couro cabeludo... Golpeou-o
até ao osso, meu caro.
- Não me lembro - murmurei. - Quem é ele?
O que faz?
- É um trabalhador ao serviço do conde. Andava a
remar no lago, enquanto os senhores se divertiam.
- Hum, pode ser, mas não me recordo! Muito
provavelmente estava embriagado e fiz inadvertidamente
algo que o feriu...
- Não houve nada de involuntário nem de acidental
neste caso. O homem garante que você se irritou com
ele, que o injuriou grosseiramente e, por fim, enfurecido,
se atirou a ele, na presença de testemunhas, e o golpeou,
enquanto gritava: "Vou matar-te, canalha!"
Corei e pus-me a caminhar de um lado para o outro.
5 - Vampiro 684
65
- Que me enforquem se consigo recordar-me! -
exclamei, fazendo um esforço sobre-humano para me
recordar do episódio. - Não me lembro! "Enfurecido",
não foi o que disse? Na verdade, quando me embriago,
torno-me bastante odioso!
- Como pensa resolver este assunto?
- É manifesto que o homem quer armar escândalo,
mas isso é o menos... O pior é o ferimento... Como foi
possível ter-lhe batido dessa maneira? Porque iria eu
agredir esse pobre mujique?
- Aí é que reside o problema, meu amigo. Não pude
recusar-lhe o atestado, mas não deixei de o aconselhar a
vir falar consigo... Veja se chega a acordo com ele, seja
de que maneira for... Aferida é pequena, mas, aqui entre
nós que ninguém nos ouve, um golpe na cabeça que chega
até ao osso é coisa muito séria. Não é raro que uma ferida
dessas, que parece benigna, evolua para uma necrose
dos ossos cranianos com a fatal viagem ad patres no fim...
Entusiasmado, "Olhos piscos" levantou-se, dirigiu-se
até à parede, a agitar os braços, e começou a debitar
os seus conhecimentos de patologia cirúrgica.
- Por favor, não me entonteça! - disse eu,
interrompendo-o. - Não vê que tudo isto é muito desagradável
para mim?
- Não vai dar em nada, acredite... Siga o meu
conselho, peça-lhe desculpas e chegue a acordo com ele...
E da próxima vez seja mais circunspecto e não cometa
disparates como este. Se não chegar a acordo com esse
tinhoso Ossipov, pode vir a perder o seu cargo. Um
sacerdote de Temis acusado de ofensas corporais
voluntárias! Que belo escândalo!
Pavel Ivanovitch é o único homem de quem aceito
uma advertência sem franzir o sobrolho, a única pessoa
que, se quiser, pode fitar-me com ar interrogatório ou
levar as suas investigações até às profundezas da minha
66
alma. Somos amigos, no melhor sentido da palavra,
nutrindo profunda estima mútua, embora subsista por
saldar entre nós uma conta antiga de natureza delicada
e desagradável.
Entre ele e eu, como agente de discórdia, passou certa
vez uma mulher. Este eterno casus belli criou embaraços,
mas não nos levou a cortar relações. Pavel Ivanovitch é
um excelente homem. Gosto da sua cara simples, que
nada deve à beleza gosto do seu enorme nariz, dos seus
olhos piscos, da sua barbicha ruiva, do seu escasso cabelo.
Usa calças mal talhadas, muito largas e enrugadas nos
joelhos. A gravata branca nunca está bem posta.
A sua negligência, contudo, é compreensível. Não tem
tempo para ocupar-se de si próprio nem sabe fazê-lo.
Não fuma, não bebe e não gasta com mulheres os dois
mil rublos que ganha por mês. No entanto, há duas
paixões que o arruínam: a mania de emprestar dinheiro
sem garantias e sem reclamar o reembolso e a de comprar
tudo quanto vem anunciado nos jornais: livros, binóculos
de teatro, revistas humorísticas, serviços de mesa
"composto por cem peças", cronómetros, etc. Por essa
razão, não admira que os seus pacientes confundam a
casa do médico com um arsenal ou com um museu. Em
conclusão: é um bom rapaz e iremos encontrá-lo, amiúdo,
nas páginas desta novela.
- Oh! Já perdi demasiado tempo consigo! -
exclamou, olhando para o seu relógio barato, de tampo
duplo, garantido por cinco anos e já com dois consertos
no activo. - Tenho de ir-me embora, meu amigo! Adeus
e cuide de si. Esses excessos em casa do conde vão acabar
mal... Ah, a propósito, amanhã vai a Tenieievo?
- Amanhã? Porquê?
- É a festa da paróquia! Toda a gente estará
presente e você também deve fazer o mesmo. Não se
esqueça de ir! Disse que você não faltaria e dei a minha
palavra. Não me deixe ficar mal!
67
Não carecia de perguntar a quem dera ele a sua
palavra. Ambos o sabíamos. Despediu-se, envergou o
sobretudo já muito usado e saiu.
68

8Fiquei só. Para afugentar os pensamentos desagradáveis
que começavam a inquietar-me, dediquei-me a
examinar as cartas que se amontoavam na minha
secretária. O primeiro sobrescrito que abri continha o
seguinte texto:
Querido Serioja,
Perdoa-me por te incomodar mas estou tão
surpreendido que não sei a quem devo dirigir-me.
Nunca me aconteceu uma coisa semelhante. Embora
creia que não há nada a fazer, e não me queixo disso,
gostava que julgasses por ti próprio. Quando
despertei no sofá, depois de teres partido, notei a
ausência de vários objectos. Roubaram-me uma
pulseira, um botão de punho de ouro, dez pérolas de
um colar e cem rublos que tinha na mala de mão.
Tentei queixar-me ao conde mas ainda estava a
dormir. Como tivemos de sair às pressas não pude
falar contigo. Que te parece? Não está certo na casa
do conde rouba-se como num cabaré. Peço-te que
digas isto ao conde.
Beijos e abraços da Tina, que te adora.
Não era novidade para mim que a casa do conde mais
parecia um covil de gatunos. Juntei a carta a muitos
69
outros documentos anteriores que diziam respeito ao
mesmo assunto. Mais cedo ou mais tarde teria de tratar
do caso. E eu sabia quem era o ladrão...
Acarta de Tina, a recordação dos seus grandes olhos
negros, a sua letra grossa e sensual transportaram-me
de volta ao salão de azulejos e levaram-me a desejar um
gole de alguma bebida forte para me revigorar. Contive-me,
contudo, porque era preciso trabalhar. De início, foi
para mim uma indescritível maçada ter de decifrar a
caligrafia grosseira dos meus subordinados, mas pouco
a pouco fui conseguindo um caso de roubo e arrombamento
acabou por despertar a minha atenção e cumpri,
com prazer, as obrigações do meu cargo.
Trabalhei toda a tarde. Policarpe, admirado, passava,
a todo o momento, em frente da minha secretária,
como se desconfiasse daquele meu súbito empenhamento.
Não acreditava no bom-senso que eu revelava e
estava à espera de que, inopinadamente, me levantasse
e lhe mandasse aparelhar Zorka. No entanto, ao
entardecer, a minha perseverança acabou por convencê-lo,
levando-o a substituir o seu ar melancólico por outro
mais prazenteiro. Pôs-se a caminhar nas pontas dos pés
e a falar baixo. Como, nessa altura, passaram na rua
uns rapazes a tocar acordeão, saiu e gritou-lhes:
- Que querem daqui? Vão para outro lado. O senhor
juiz está a trabalhar.
Em seguida, colocou o samovar na sala, abriu a porta
com toda a cerimónia e disse, com um suspiro respeitoso:
- Venha tomar chá.
Enquanto tomava chá, manteve-se a meu lado, e, a
certa altura, aproximou-se de mim sorrateiramente e,
em sinal de respeito, beijou-me no ombro.
- Assim é que é, Sergei Petrovitch! - murmurou.
- Mande passear aquele demónio louro! Que seja
tragado pelas profundezas! Com a sua inteligência, com
a sua instrução, como é possível que caia em tais
70
fraquezas? O seu cargo é dos mais prestigiosos. É preciso
que toda a gente o respeite e tenha por si um temor
reverencial. Se o senhor começar a partir a cabeça do
seu próximo ou a tomar banho no lago, vestido, todos
irão dizer: "Não é um homem ponderado, não presta para
nada..." Conseguirá uma linda reputação, não haja
dúvida!
- Bom, já chega...
- Afaste-se do conde, Sergei Petrovitch! Se precisa
de um amigo, não encontra outro melhor do que o Dr.
Pavel Ivanovitch. Talvez seja andrajoso, mas que grande
espírito tem!
A sinceridade de Policarpe enterneceu-me. Quis
dizer-lhe algo de afectuoso.
- Que romance andas a ler?
- O Conde de Monte Cristo. Esse sim, é um conde a
sério! Não se parece em nada com o seu asqueroso amigo!
Depois do chá, voltei para a minha secretária e
continuei a trabalhar até sentir que os meus olhos,
fatigados, começavam a fechar-se. Antes de ir deitar-me,
dei ordem a Policarpe para que me acordasse às
cinco horas.
71

9No dia seguinte, pelas seis horas da manhã, dirigi-me
a Tenieievo, a assobiar alegremente e a quebrar os
talos das flores com a bengala.
A manhã estava magnífica. Parecia que a felicidade,
suspensa sobre a Terra, se reflectia nas gotas de orvalho,
cativando a alma dos caminhantes. Inundado pela luz
nova e fresca, o bosque parecia escutar os meus passos e
a gritaria dos pássaros, assustados pela minha presença.
O odor da vegetação primaveril enchia o ar, que eu
aspirava com delícia. Os meus olhos extasiados
abarcavam toda a paisagem e sentia, com todo o meu
ser, a Primavera e a Natureza recém-nascida. Deu-me a
impressão de que os vidoeiros mais novos, a erva do chão
e os besouros que zumbiam à minha volta compartilhavam
a mesma sensação.
"Porque será", "pensei, "que o homem se confina nas
cidades, com as suas idéias mesquinhas, se aqui há tanto
espaço para a vida e para o pensamento? Porque não
vem ele para cá?"
E, inundada de poesia, a minha imaginação negava-se
a pensar nessas duas tristezas - o Inverno e o pão -
que obrigam os poetas a viver na prosaica e suja São
Petersburgo ou na imunda Moscovo.
A meu lado passavam carroças de camponeses e
coches de lavradores abastados que se dirigiam à missa
72
e à feira. A cada momento era obrigado a tirar o chapéu
para retribuir as afáveis saudações dos mujiques e dos
proprietários que me conheciam. Todos eles me
convidavam a subir para os seus carros, mas preferi
continuar a pé.
Entre outros, numa pequena caleche, passou o
jardineiro Frantz, com o seu boné de jóquei e o seu casaco
azul. Indolente, fitou-me com olhos sonolentos e astutos
e, sem pressas, levou a mão ao boné. Atrás dele, achava-se,
bem amarrado, um pequeno barril com aros de ferro
que na viagem de regresso certamente viria cheio de
vodca. A sua cara odiosa e o barril, por instantes,
afugentaram a minha disposição poética. Depois, um
outro ruído fez-me voltar a cabeça e divisei outro carro,
um char-à-bancs, puxado por uma parelha de cavalos
baios. Nele, instalada num banco de couro, vinha a
rapariga de vermelho. Ao ver-me, o seu rosto acabado
de lavar e ainda estremunhado resplandeceu e
ruborizou-se ligeiramente. Fez um aceno com a cabeça,
jovialmente, e sorriu-me como a um velho amigo.
- Bom dia! - gritei-lhe.
Disse-me adeus com a mão e desapareceu sem me
dar tempo para lhe contemplar o rosto. Desta vez não
estava de vermelho envergava um vestido verde escuro,
com grandes botões, e na cabeça trazia um chapéu de
palha com abas largas. Gostei tanto do seu aspecto como
do que exibira da primeira vez em que me encontrara
com ela. Teria ficado muito contente se tivesse descido
do carro e fizesse o resto do percurso a meu lado queria
voltar a ouvir a sua voz e a observar de mais perto os
seus olhos profundos. Mas era preciso respeitar as
conveniências... Creio que não teria recusado o meu
convite. Voltou-se, por duas vezes, e fitou-me, até o carro
desaparecer por detrás de uns álamos. Sim, teria
aceitado com prazer caminhar a meu lado...
Da minha casa até Tenieievo são seis quilómetros,
73
distância quase insignificante para um homem jovem,
numa bela manhã. Cerca das sete horas, aproximei-me
da igreja, passando entre as tendas da feira e os veículos
estacionados. Não obstante a hora matinal e o facto de a
missa ainda não ter terminado, os ruídos da feira
enchiam o espaço. O ranger dos rodados, os relinchos e
mugidos e o estrépito das cornetas das crianças
misturavam-se com os gritos dos vendedores ciganos e
as cantigas avinhadas dos mujiques impacientes, que
haviam começado a beber logo ao raiar da manhã.
Quantos rostos! Quantos tipos diferentes! Que jubiloso
encantamento naquela mistura variegada de trajes
coloridos iluminados pelo sol matinal! Milhares de seres
humanos agitavam-se e discutiam, desejosos de fechar
negócio em poucas horas e poder partir, ao princípio da
tarde, deixando atrás de si, como recordação, palhas de
feno e de aveia, cascas de nozes e outros restos...
O povo, em levas sucessivas, entrava na igreja e saía
dela. A cruz do templo emitia centelhas douradas, tão
brilhantes como o próprio Sol, como se estivesse a arder
com um fogo dourado. Nesse mesmo fogo ardia o
campanário, enquanto, mais abaixo, reluzia a cúpula,
recentemente pintada de verde. Por detrás da cruz
cintilante estendia-se o azul do céu, transparente e
escuro.
Atravessei o adro cheio de gente e entrei na igreja.
A missa, naquele momento, ia nos Actos dos Apóstolos.
Não se ouvia outro ruído além dos próprios do ofício e
nada se movia a não ser o sacerdote que espalhava
incenso à sua volta. A assistência, imóvel perante o
iconostase 1, com emoção, as palavras rituais. A religiosidade
dos aldeões reprovava acerbamento qualquer
1 - Espécie de grande biombo em forma de tríptico, coberto
de ícones, atrás do qual fazem a consagração os sacerdotes da
Igreja Ortodoxa. (N. do T.)
74
tentativa de perturbar o silêncio reverencial que fazia
aumentar a minha turbação, sempre que me via obrigado
a sorrir ou a conversar, durante o ofício. Era frequente,
contudo, encontrar algum conhecido que, logo que me
via, se aproximava de mim e, depois de um longo
preâmbulo, começava a expor-me os seus problemas
mesquinhos. Eu retorquia apenas com um "sim" ou um
"não", mas não tinha coragem de recusar resposta ao
meu interlocutor.
Foi o que aconteceu daquela vez. Logo à entrada
encontrava-se Olenka, a minha heroína. Ruborizada pelo
calor e arrastada pela multidão, procurava com o olhar
alguém que a salvasse. Não podia avançar nem recuar e
parecia um pássaro apertado na mão de um garoto.
Ao ver-me, teve um sorriso amargo e fez-me um sinal
com o seu belo queixo.
- Ajude-me a sair daqui, por favor - disse,
agarrando-me o braço. - Estou tão apertada que mal
consigo respirar.
- Mas olhe que lá à frente não estará melhor -
observei.
- Pois não, mas lá à frente encontram-se pessoas
da sociedade... Aqui, só há gente do povo... Lá, há os
lugares reservados... O senhor também lá devia estar...
Portanto, aquele rostozinho não estava afogueado
pelo calor o seu afrontamento e o seu mal-estar
provinham da espécie de gente que a rodeava. Fiz-lhe a
vontade e, apartando, aos poucos, as pessoas que se
encontravam à nossa frente, abri caminho até às filas
da frente, onde se encontrava a aristocracia do distrito.
Chegado ao local por que aspiravam as ambições sociais
de Olenka, coloquei-me atrás dela e olhei em redor.
Como de costume, os homens e as mulheres da
sociedade cochichavam e riam. O juiz Kalinine, com
grandes gestos e movimentos da cabeça, contava as suas
enfermidades ao proprietário Deriaiev. Quando
75
avistaram Olenka, as damas intensificaram os seus
cochichos.
Só uma jovem parecia rezar. Ajoelhada, a olhar em
frente, movia os lábios sem reparar que uma madeixa
encaracolada se escapava do seu chapéu e lhe caía, em
desordem, sobre a testa. Nem sequer se apercebeu de
que eu me encontrava junto dela, logo atrás de Olenka.
Era Nadejda Nicolaevna, filha de Kalinine. Quando
atrás escrevi que, em tempos, uma mulher se interpusera
entre mim e o médico, era a ela que queria referir-me...
O doutor amava-a, como só podem amar almas nobres
como a sua. De pé, ao lado dela, direito como um pau, de
vez em quando ele dirigia o olhar inquisidor e apaixonado
para o rosto absorto da rapariga. Dir-se-ia que vigiava
as suas orações e, no brilho dos olhos, revelava o desejo
secreto de ser ele o objecto dessas preces. Por desgraça,
contudo, sabia bem por quem Nadejda rezava - e não
era por ele.
Quando se voltou na minha direcção fiz-lhe um sinal
e saímos juntos.
- Quer dar uma volta pela feira? - sugeri.
Acendemos os nossos cigarros e começámos a ver as
tendas.
- Como está Nadejda Nicolaevna? - perguntei,
parando sob o toldo de uma barraca de bugigangas.
- Não está mal, segundo julgo - respondeu,
pestanejando perante um soldadinho de rosto lilás e
uniforme escarlate. - Falou-me de si.
- Que disse ela?
- Nada de especial. Está triste porque há já muito
tempo que você não vai visitá-la. Quer saber as causas
da sua súbita frieza. Anteriormente, você ia quase todos
os dias a casa dela, visitá-la, e, agora, nem sequer saúda
os seus familiares.
- É mentira, "Olhos piscos"! É certo que deixei de
ir a casa dos Kalinine, mas por falta de tempo. Mantenho
76
excelentes relações com a família e nunca deixo de
cumprimentar os seus membros, sempre que me
encontro com eles.
- No entanto, na quinta-feira encontrou o pai dela
e não respondeu à sua saudação.
- Não gosto desse mamarracho e não posso fitar
com indiferença aquela carranca. Apesar disso, esforço-me
por o saudar e aperto-lhe a mão, quando ele ma
estende. Na quinta-feira, provavelmente não o vi ou não
o reconheci. Hoje, você, Pavel Ivanovitch, está de mau
humor e quer implicar comigo.
- Sabe bem a estima que tenho por si - suspirou o
meu amigo - mas não posso acreditar no que disse...
"Não o vi ou não o reconheci". Não precisa de me dar
qualquer justificação. Para quê, uma vez que não é
verdadeira? Você é uma excelente pessoa, mas, algures
no seu cérebro doente, existe uma protuberância, perdoe-me
que lhe diga, capaz de toda a casta de ignomínias.
- Muito obrigado!
- Não se zangue... Creio que está a ficar um tanto
neurótico. Apesar da sua boa saúde, às vezes cede a
impulsos e desejos que deixam estupefactos todos os que
o consideram um homem normal... Que animal é este -
perguntou, de repente, mudando de tom e aproximando
os olhos de uma estatueta de madeira com nariz humano,
crina de cavalo e riscas cinzentas no corpo.
- É um leão - respondeu o vendedor com um bocejo
-, ou outro bicho qualquer. Sabe-se lá!
Das tendas de brinquedos passámos para as de
tecidos.
- Estes brinquedos apenas servem para enganar
as crianças - comentou ainda o médico -, inculcando
nelas idéias absolutamente falsas sobre a fauna e a
flora... Não viu aquele outro leão, listado de vermelho e
que piava? Conhece algum leão capaz de piar?
- Ouça - atalhei -, é óbvio que tem algo para
77
dizer-me, mas não se decide a fazê-lo. Fale! Escuto-o
sempre com prazer, mesmo quando diz coisas desagradáveis.
- Desagradável ou não, aí vai o que quero dizer-lhe...
Aliás, há várias coisas que gostaria de dizer-lhe...
- Continue! Sou todo ouvidos.
- Há pouco, avancei a hipótese de você ser um
neurótico. Quer uma prova? Talvez tenha de ser rude,
mas não se ofenda. Conhece bem os meus sentimentos a
seu respeito. Não falo para o censurar nem para o ferir.
Sejamos objectivos, um e outro. Examinemos a sua alma
com olhos imparciais, como se fosse um fígado ou um
estômago.
- Muito bem, sejamos objectivos.
- Excelente. Para começar, tomemos, por exemplo,
as suas relações com os Kalinine. Deve lembrar-se de
que começou a frequentar a casa deles logo que veio para
o nosso distrito. Não foram eles que o procuraram.
O seu feitio orgulhoso, as suas palavras trocistas e a
sua amizade com aquele conde libertino não agradaram
ao juiz, que nunca o teria recebido em sua casa se você
lá não se tivesse apresentado sem receber convite prévio.
Lembra-se? Depois, travou relações com Nadejda
Nicolaevna e ia visitá-la quase todos os dias e a qualquer
hora. O acolhimento que lhe dispensaram foi dos mais
cordiais. Todos foram simpáticos para consigo: o pai, a
mãe, as irmãs mais novas... Acarinharam-no como se
pertencesse à família. Colocaram-no num pedestal
extasiavam-se e riam-se das suas graçolas. Para eles,
você era o supra-sumo do engenho, da nobreza, do
cavalheirismo. Você parecia compreender isto e
correspondia à amizade com amizade. Ia visitar os
Kalinine em todas as vésperas de dias festivos. A desgraçada
paixão que inspirou a Nadejda não era nem é
um segredo para si. Sabendo que ela o amava com
loucura, não deixou de ir vê-la. De súbito, há um ano,
78
sem qualquer razão, você interrompeu as visitas.
Esperaram por si durante uma semana, um mês... Ainda
agora estão à sua espera. E você não aparece, nunca
mais apareceu. Escreveram-lhe e você não respondeu.
Por fim, nem sequer saúda Kalinine! Você, que liga tanto
às boas maneiras, não se apercebe de que a sua atitude
é o cúmulo da má criação? Por que se afastou dos
Kalinine de modo tão abrupto? Ofenderam-no? Enfadou-se?
Fosse como fosse, devia afastar-se aos poucos e não
de forma tão brusca, ofensiva e injustificada.
- Porque deixei de visitar os amigos - retorqui,
sorrindo -, sou considerado um neurótico. Que ingenuidade
a sua Pavel Ivanovitch! Tanto faz cortar de
súbito como a pouco e pouco. De um só golpe talvez seja,
até, mais honesto, menos hipócrita... Que enfadonho é
tudo isto!
- Admitamos que assim seja ou que você tenha sido
levado a romper com eles por razões secretas. Mas como
explica a sua conduta anterior?
- Que conduta?
- Por exemplo: certo dia você foi ao Conselho
Territorial e o presidente perguntou-lhe porque não
voltara a vê-lo em casa de Kalinine. Você respondeu-lhe,
lembra-se?: "Estou convencido que querem levar-me
a casar." Foi esta a frase que escapou da sua boca.
E disse-a em plena sessão e em voz alta, de maneira que
pudesse ser ouvida pelas pessoas presentes. Bonito, não
acha? As suas palavras desencadearam uma onda de
gargalhadas e de anedotas equívocas acerca da caça aos
noivos. Para cúmulo, um cobarde qualquer contou o
sucedido a Nadenka, no jantar desse dia. Como explica
semelhante ofensa, Sergei Petrovitch?
O médico postou-se à minha frente, barrando-me o
caminho, e continuou a fitar-me com ar suplicante e
quase a chorar.
- Como explica semelhante ofensa? Por aquela boa
79
rapariga estar apaixonada por si? Admitamos que o pai,
como qualquer pai, tenha pensado em si para genro.
Como pai, deve ter pensado em todos nós: em si, em mim,
em Markuzine... Todos os pais são assim... Ninguém
duvida de que a filha, loucamente apaixonada por si,
ansiava por ser sua esposa. E só por isso você disse o
que disse e fez o que fez? Não contribuiu grandemente
para que isso acontecesse? As visitas normais não são
tão assíduas. De tarde iam pescar no lago, à noite
passeavam no jardim, procurando os recantos mais
escondidos. Sabendo que ela o amava, você não modificou
em nada o seu comportamento. Sendo assim, quem
poderia duvidar das suas intenções? Eu próprio fiquei
convencido de que você ia casar com ela. E, em vez disso,
que aconteceu? Você lamentou-se em público e ridicularizou
os que tanto o estimavam... Porquê? Que lhe fez
Nadenka?
- Não se irrite, meu caro "Olhos piscos"! - disse
eu, afastando-me uns passos. - As pessoas já estão a
olhar para nós. Vou responder-lhe em poucas palavras.
Eu ia visitar os Kalinine porque não tinha outra
distracção e morria de tédio. Interessei-me por Nadenka
porque, na verdade, é uma rapariga muito interessante.
Talvez me tivesse casado com ela mas vim a saber que
você a tinha pretendido, antes de mim, e que ela não lhe
era indiferente... Por isso resolvi afastar-me... Teria sido
cruel da minha parte fazer sofrer um homem tão bom e
tão meu amigo...
- Agradeço a gentileza, mas não lhe pedi essa
esmola e, a julgar pela sua expressão, o que está a dizer
não é a verdade. Fala ao acaso, sem reflectir. Além disso,
o facto de eu ser quem sou não o impediu de, numa das
suas últimas visitas, haver feito uma proposta a Nadenka
que por certo não teria sido do agrado de quem, mais
tarde, viesse a casar-se com ela.
- Ah! Ah! Como sabe semelhante coisa, Pavel
80
Ivanovitch? O seu caso amoroso não vai assim tão mal,
se ela lhe confia semelhantes segredos! Aliás, vejo que
está pálido de cólera e com vontade de me bater! Que
esquisito, meu caro "Olhos piscos"! Ora vamos!
Ponhamos de parte toda essa embrulhada... Venha
comigo até ao correio...
Chegámos à estação do correio, que dispunha de três
janelas viradas para o largo da feira. O jardim colorido
do chefe da estação, Maxim Fiodorovitch, que nas
redondezas gozava da fama de ser uma autoridade em
matéria de maciços, platibandas e relvados, entrevia-se
através do gradeamento acinzentado.
Fomos encontrar Fiodorovitch ocupado numa
agradável tarefa. A sorrir, rubro de prazer, folheava,
sobre a sua mesa verde, um maço de notas de cem rublos,
como se fosse um livro precioso. Parecia que até o
dinheiro alheio exercia uma acção benéfica sobre a sua
disposição.
- Bom dia, Maxim Fiodorovitch - saudei-o. -
Donde vem tão grande quantidade de dinheiro?
- É uma remessa para São Petersburgo -
respondeu, encantado, indicando com o queixo um
recanto da sala, onde se encontrava, sentada na sombra,
uma figura humana.
Ao ver-me, a figura levantou-se e acercou-se de mim.
Reconheci o meu mais recente inimigo, a quem tanto
havia insultado na casa do conde, quando me embebedara.
- Os meus respeitos - disse ele.
- Bom dia, Gaetan Casimirovitch - retorqui,
ignorando a mão que me estendera. - Como vai o conde?
- Vai bem, graças a Deus!... Anda um tanto
enfastiado... Espera, a cada instante, que o senhor lhe
faça uma visita...
1 - Forma familiar de Fiodorovitch. (N. do T.)
6 - Vampiro 684
81
Li no rosto do polaco o seu desejo de falar comigo.
De onde viria semelhante propósito, depois da maneira
como eu o tratara? Qual a razão daquela mudança de
atitude?
- Quanto dinheiro tem o senhor! - admirei-me,
olhando para os maços de notas.
De repente, o meu cérebro iluminou-se numa súbita
revelação. Vi os bordos chamuscados das notas e o canto
completamente queimado de uma delas. Eram as notas
que eu havia querido queimar na chama da vela, quando
o conde recusara aceitar o meu dinheiro e que tinham
sido recolhidas por Pchekostski. "Mais vale dá-las a um
pobre", dissera. A que pobre estaria, agora, a mandar as
notas?
- Sete mil e quinhentos rublos! - acabou de contar
Fiodorovitch. - Confere?
É desagradável imiscuir-se uma pessoa nos segredos
de outra, mas eu desejava averiguar que dinheiro era
aquele e a quem o mandava o malfadado polaco. "Roubou
o conde", pensei. "Se uma Coruja, surda e estúpida,
consegue roubá-lo que dificuldade encontraria este
brutamontes para lhe meter as mãos nos bolsos?"
- Ah, a propósito! Também eu queria enviar
dinheiro - exclamou o médico. - É quase incrível, meus
senhores. Por quinze rublos, cinco objectos sem custos
de porte: uns binóculos, um cronómetro, um calendário
e duas coisas mais... Maxim Fiodorovitch, dê-me, por
favor, uma folha de papel e um sobrescrito.
Pavel Ivanovitch remeteu os seus cinco rublos, eu
recolhi a minha correspondência e saímos da estação do
correio. Regressámos ao adro da igreja. "Olhos piscos"
caminhava a meu lado, pálido e triste como um dia de
Outono. Paradoxalmente, a conversa em que tanto
procurara mostrar-se objectivo acabara por emocioná-lo
profundamente.
Os sinos repicavam. Uma multidão compacta saía
82
lentamente do pórtico do templo. Pendões já muito velhos
e uma cruz negra abriam a procissão e moviam-se por
cima de um mar de cabeças. O Sol brincava alegremente
com os hábitos sacerdotais e com a imagem da Mão de
Deus, que irradiava reflexos ofuscantes.
- Estão ali os nossos - disse o médico, apontando
para um grupo que se mantinha apartado da multidão.
- Os seus, não os meus - corrigi-o.
- Pouco importa. Vamos ter com eles.
Aproximei-me do grupo e cumprimentei os seus
membros. A frente, Kalinine, alto, de ombros largos,
barba cinzenta e olhos salientes como os de um
caranguejo, cochichava qualquer coisa ao ouvido da filha.
Fingindo que não me via, não respondeu ao gesto com
que saudei todo o grupo.
- Adeus, meu anjo - disse à filha, em tom
lastimoso, enquanto a beijava na fronte. - Volta para
casa. Eu só irei mais tarde... As minhas visitas não me
ocuparão muito tempo.
Voltando a beijar a filha, sorriu com afabilidade, para
o resto do grupo e franziu as sobrancelhas, quando se
virou para o camponês, com a placa de trintanário, que
se encontrava a seu lado.
- Por que esperas para me trazer o carro? -
exclamou com voz rouca.
O homem estremeceu e agitou as mãos.
- Cuidado!
As pessoas que seguiam na procissão afastaram-se
e, no meio de um grande barulho de guizos, os cavalos
do juiz aproximaram-se a trote de Kalinine, subiu para o
trem, saudou, majestoso, lançando um novo grito de "Cuidado!",
e desapareceu sem se dignar olhar para mim
uma vez que fosse.
- Que suíno! - murmurei ao ouvido do médico. -
Vamos embora.
- Não quer falar com Nadejda Nicolaevna? -
83
perguntou-me Voznessenski.
- Não há tempo para isso. Tenho de regressar.
Pavel Ivanovitch fitou-me, furioso, e, soltando um
suspiro, retirou-se. Fiz uma saudação geral e regressei
à tenda. Ao atravessar a multidão voltei o rosto e observei
a rapariga. Seguia-me com os olhos, como para verificar
se eu reagia ao seu olhar puro e penetrante, cheio de
uma amarga expressão de ressentimento e censura. Os
seus olhos pareciam perguntar: "Por que fazes isto?"
Senti algo a bulir no meu peito e envergonhei-me da
minha conduta. Pensei em voltar para trás e, com toda
a minha onde havia ainda uma réstia de ternura,
mostrar-me amável para com aquela rapariga que tanto
me queria e dizer-lhe que a culpa não era minha mas
sim do meu maldito orgulho que não me deixava respirar,
nem mover, nem viver - o orgulho idiota de um homem
presunçoso! Mas como podia eu, superficial e frívolo como
sou, estender-lhe a mão e reconciliar-me com ela,
sabendo que os olhos de todas as bisbilhoteiras do distrito
- todas as "sinistras velhas", como lhes chamou
Griboiedov em Inconveniência de Ver Claro - espiavam
cada um dos nossos gestos? Era preferível deixar que
lançassem a Nadejda Nicolaevna os seus olhares
trocistas do que sujeitar-me a vê-las pôr em dúvida a
"inflexibilidade do meu carácter e da minha altivez", tão
do agrado das mulheres estúpidas.
Quando eu referira ao médico os motivos que me
haviam levado a suspender tão bruscamente as visitas
a casa dos Kalinine, não fora nem sincero nem preciso.
Escondera-lhe a verdadeira causa porque me envergonhava
da sua insignificância, da sua inconsistência.
Na verdade, quando visitara os Kalinine pela derradeira
vez, ao descer da égua, junto da porta, ouvira estas
palavras: "Nadenka, onde estás? Chegou o teu pretendente."
Fora o seu pai, o juiz, que lhe falara, sem se aperceber
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de que eu conseguia ouvi-lo. Mas ouvira, e o meu amor-próprio
revoltou-se de imediato.
"Pretendente, eu?", disse para comigo. "Quem o
autorizou a chamar-me tal coisa? Com que fundamento?"
Foi como se algo se me rompesse dentro do peito.
O meu orgulho revoltou-se e olvidei todas as razões que
me levavam a casa dos Kalinine. Esqueci-me de que fazia
a corte à rapariga e de que me deixara seduzir por ela a
ponto de não conseguir passar uma única tarde sem a
ver esqueci-me dos seus bonitos olhos, que dia e noite
não me saíam do pensamento esqueci-me até da sua
voz harmoniosa e da sua silhueta esbelta. Esqueci-me,
por fim, das suaves noites de Verão que jamais se
repetiriam nem para mim nem para ela. Tudo desabou
sob o peso do meu diabólico orgulho, despertado por uma
frase estúpida de um pai idiota.
Encolerizado, voltei a montar e obriguei Zorka a
fazer o percurso de regresso a casa, enquanto jurava
pregar uma partida àquele imbecil cavalheiro que, sem
o meu consentimento, ousara colocar-me entre os
pretendentes à mão da filha.
"Calha bem que Pavel Ivanovitch esteja apaixonado
por ela! Que lhe faça bom proveito!... Começou antes de
mim a cirandar à volta dela e já se achava no rol dos
pretendentes, antes que eu a conhecesse. Não quero pôr
em causa a sua primazia!", ia dizendo pelo caminho.
Desde aquela altura não voltei a aparecer, nem uma
só vez, em casa dos Kalinine, embora tivesse sofrido
momentos de angústia e a minha alma destroçada
quisesse muitas vezes retomar o passado. No entanto,
todo o distrito conhecia o meu propósito de "fugir do
casamento". Como podia o meu orgulho ceder a tais
circunstâncias?
Se o juiz - quem sabe? - não tivesse pronunciado
aquela frase infeliz, e se, por temperamento, eu não fosse
tão estupidamente susceptível, talvez não tivesse sentido
85
a necessidade de voltar-me para vê-la, nem ela de olhar
para mim de modo tão pesaroso. Contudo, mais valia
esse olhar e esse sentimento de ofensa e de censura do
que vim a ler-lhe nos olhos alguns meses depois do nosso
encontro na igreja de Tenieievo. O infortúnio que então
descobri no fundo dos seus olhos negros foi o prólogo de
um atroz desastre que, com a rapidez de um expresso,
levou aquela rapariga da superfície da Terra...

10
Saí de Tenieievo pela estrada por onde viera. Era
meio-dia e o Sol estava a pino. Tal como de manhã, as
carruagens e carroças alegravam os meus ouvidos com
o ruído seco das suas rodas e o tinir metálico dos guizos.
Frantz passou por mim com o seu barril de vodca,
certamente já cheio. Fitou-me de novo com os seus olhos
pequenos e perversos, e levou a mão à pala do boné. A
sua atitude inóspita molestou-me, mas desta vez a
impressão desagradável que a sua figura me causava
desvaneceu-se, como por encanto, logo que atrás dele
surgiu o pesado char-à-bancs em que seguia a filha do
guarda-florestal.
- Deixe-me subir! - gritei-lhe.
Com um sorriso, a rapariga acenou afirmativamente
e fez parar o carro. Subi para junto dela e o veículo, com
estrépito, prosseguiu a sua marcha ao longo da estrada
que, em cerca de uma légua, atravessa a floresta de
Tenieievo.
"Como é bonita", pensei, enquanto observava o seu
pescoço fino e o queixo voluntarioso. "Entre ela e
Nadenka, era ela que eu escolhia. É mais natural, mais
fresca. Tem um temperamento mais atrevido, mais
"generoso"... Confiada a boas mãos, podia fazer-se
qualquer coisa dela. A outra é melancólica e caprichosa...
Esta tem espírito..." ,
87
Aos pés de Olenka havia duas peças de tecido e vários
embrulhos. !
- Vejo que fez muitas compras - comentei. - Para
que precisa de tanto tecido?
- E ainda preciso de muito mais - respondeu. -
Comprei estas peças, de passagem, em saldo... Nem
imagina tudo o que tenho para fazer! Esta manhã
percorri a feira durante uma hora, e amanhã irei à cidade
fazer outras compras. Depois, tenho de cortar e coser
tudo isto. Diga-me, por favor: entre as mulheres que
conhece não há alguma costureira que trabalhe a dias?
- Creio que não... mas porque precisa de comprar
tantas coisas e de costurar dessa maneira? A sua família
não é numerosa. Duas pessoas, só.
- Que estranhos são os homens! Não percebeu nada
de nada. Se o senhor casasse, gostaria de ver a sua
mulher vestida com andrajos? Sei bem que a Piotre
Iegoritch não lhe falta nada, mas convém que eu mostre
ser boa dona de casa desde o primeiro dia...
- Que tem Piotre Iegoritch a ver com tudo isto? -
perguntei.
- Hum... está a brincar comigo, fingindo que não
sabe de nada... - replicou Olenka, corando levemente.
- Por favor, Olenka, não fale por enigmas.
- Mas, então, ainda não sabe? Vou casar-me com
Piotre Iegoritch.
- Vai casar-se? - exclamei, abrindo os olhos de
espanto. - E quem é esse Piotre Iegoritch?
- Oh, meu Deus! É Orbenine, claro!
- Vai casar-se... com Orbenine? Não me faça rir!
- Não é coisa para rir... E, sinceramente, não
percebo onde esteja a graça...
- Vai casar-se com Orbenine? - repeti, empalidecendo
sem saber porquê. - Se não é uma brincadeira,
que é então?
- Não é nenhuma brincadeira!... Não vejo o que haja
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nesse facto de tão espantoso... - afirmou Olenka com
um trejeito amuado.
Seguiu-se um minuto de silêncio Olhei para a
rapariga, para o seu rosto jovem, quase de criança, e
admirei-me de que pudesse brincar comigo de tão
estranha forma. De repente, imaginei a seu lado
Orbenine, gordo, de cara avermelhada, com as suas
orelhas de abano e as suas mãos rudes, que só poderiam
molestar aquele doce e jovem corpo de mulher que
começava a desabrochar. Seria possível que semelhante
imagem não aterrorizasse aquela formosa fada dos
bosques que se deleitava a contemplar poeticamente um
céu sulcado por relâmpagos, enquanto a tempestade
rugia, furiosa? Sentia-me perfeitamente siderado.
- Eu sei que já não é novo - suspirou Olenka -,
mas gosta de mim... Tenho a certeza de que me ama.
- Não se trata do amor que ele nutre por si, mas da
sua felicidade.
- Vou ser feliz a seu lado. Graças a Deus, tem uma
boa situação económica. Não é inválido nem mendigo.
Além do mais, é nobre. É certo que não estou apaixonada
por ele, mas os que casam por amor acaso são felizes só
por isso? Conheço bem os casamentos desse género...
- Pobre criança! - retorqui, fitando aterrorizado
os seus olhos claros. -Ainda não teve tempo para encher
a cabeça com a infame experiência da vida! Julgo que
quer divertir-se à minha custa, mas como aprendeu a
zombar dos outros de maneira tão adulta e brutal? Onde
e quando?
Olenka olhou-me, atónita, e encolheu os ombros.
- Não compreendo o que está a dizer-me - repetiu.
- É tão desagradável para si saber que uma rapariga
vai casar-se com um velho? É isso?
De repente, corou de novo, o queixo tremeu-lhe e,
sem aguardar a minha resposta, prosseguiu, muito
nervosa:
89
- Não acha bem? Então vá até ao nosso bosque, até
àquele horrível tédio, onde só há monotonia, brutamontes
e um pai louco. Espere ali pela chegada de um
noivo jovem! Quando foi a nossa casa, gostou do que viu
mas vá vê-la no Inverno, quando ficamos desesperados,
à espera de que aconteça alguma coisa ou apareça
alguém, nem que seja a própria Morte...
- Ora, tudo isso é absurdo, Olenka. Não está a
raciocinar como deve ser. Se não é uma brincadeira,
então não sei o que dizer. É melhor calar-se do que
proferir palavras capazes de envenenar o ar que respira.
No seu lugar preferia enforcar-me numa faia do que ir
comprar tecido para tal fim... Ah, vejo que sorri...
- Ao menos, com o dinheiro dele posso tratar do
meu pai.
- De quanto precisa para tratar do seu pai? -
exclamei, - Eu empresto-lhe esse dinheiro. Quanto
quer? Cem rublos? Duzentos? Mil?... Olenka, creio que
está a mentir-me. Não é a saúde do seu pai que está em
causa...
As notícias que Olenka me transmitira haviam-me
perturbado de tal maneira que nem sequer me apercebi
de que o carro, depois de atravessar a aldeia, entrara no
portão da casa do conde e parara em frente da porta de
Orbenine. Ao ver as crianças que acorriam e o rosto
sorridente de Piotre Iegoritch, que se precipitava para
ajudar a rapariga a descarregar os embrulhos, saltei para
o chão e, sem proferir mais palavras, corri para casa do
conde. Aí, esperava-me outra surpresa.
- Chegas no momento exacto! - disse Karnieiev,
arranhando-me a pele do rosto com o seu bigode hirsuto.
- Não podias escolher melhor hora. íamos começar a
almoçar. Já conheces estes cavalheiros, não é assim?
Devem ter discutido juntos questões judiciais. Ah! Ah!
E o conde indicou-me dois homens, sentados em
cadeirões, que comiam carnes frias. Tive o desprazer de
90
reconhecer um deles, o juiz Kalinine o outro, um velhote
de cabelo grisalho, quase calvo, era o meu bom amigo
Babaiev, dono de várias propriedades.
Depois das saudações usuais fitei, Kalinine com
surpresa. Sabia quanto ele detestava Karnieiev e o mal
que dizia daquele em cuja casa estava a almoçar e a
saborear um licor de dez anos. Como podia um homem
de princípios explicar semelhante visita? O juiz
apercebeu-se do meu olhar e, segundo parece, compreendeu
o que eu pensava da sua presença.
- Consagrei o dia de hoje a fazer visitas - explicou.
- Iniciei uma ronda pelo distrito e, como vê, passei por
casa de Sua Excelência...
O criado serviu o quarto prato. Sentei-me, bebi um
cálice de vodca e comecei a comer.
- É uma pena, Excelência - disse Kalinine,
retomando a conversa interrompida pela minha chegada.
- Para nós, gente humilde, não tem importância, mas
para si, pessoa abastada e instruída...
- Com efeito - concordou Babaiev.
- De que estão a falar? - perguntei.
- Nicolai Ignatich deu-me uma boa idéia - disse o
conde, apontando para o juiz. - Estava a queixar-me
de que me aborrecia...
- Queixa-se de se aborrecer... - interrompeu-o
Kalinine. - Tristeza, tédio, desencanto!... Uma espécie
de Oneguine 1. E o senhor, Excelência, é o único culpado
de tudo isso, como acabei de dizer-lhe. Para se distrair,
procure ocupar-se de algo. Por exemplo, da agricultura,
já que possui uma propriedade excelente e maravilhosa...
Respondeu que tinha essa intenção mas que, mesmo
assim, se aborrece. Se assim posso exprimir-me, falta-lhe
um elemento excitante, uma diversão, talvez, até,
uma emoção... , . . •,
1 - Herói de um poema de Pushkine.
91
- E que sugestão foi a sua?
- Não se tratou literalmente de uma sugestão.
Limitei-me a fazer um ligeiro reparo a Sua Excelência.
Como é possível, disse-lhe, que um homem tão jovem,
tão instruído, tão brilhante possa viver em tão grande
solidão? É quase um pecado! Nunca sai, não recebe
visitas e ninguém o vê, como se fosse um velho ou um
ermitão. Que mal havia em organizar reuniões ou
franquear a sua casa aos visitantes, em dias prefixados?
- E que faria ele nesses "dias prefixados"?
- Que faria?... Antes do mais, prepararia os
convívios. Sua Excelência travaria conhecimento com a
sociedade e, por assim dizer, estudá-la-ia. Em segundo
lugar, a sociedade teria a honra de conhecer de perto
um dos mais abastados proprietários do distrito...
Haveria um intercâmbio de idéias, de conversações, de
alegria... Pensando bem... quantas meninas cultas,
quantos cavalheiros distintos há nas redondezas! Que
belos serões musicais poderiam ser promovidos! Que
magníficos bailes, que divertidos piqueniques! A mansão
de Sua Excelência dispõe de vastos salões, de um jardim,
de bosques... Seria possível organizar espectáculos e
concertos com que este distrito jamais sonhou. E tudo
isto se perde inutilmente, tudo isto jaz sepultado... Se
eu tivesse a fortuna de Sua Excelência, mostraria a toda
a gente o que é viver de facto... E ainda pretende que
leva uma vida de tédio... Francamente, é caso para sentir
vergonha...
Kalinine piscou os olhos como, se na verdade, se
sentisse envergonhado.
- Tem razão - admitiu o conde, levantando-se. -
Posso organizar belos serões, concertos, espectáculos...
Será uma delícia! E esses serões podem até ter uma
influência educativa, não é verdade?
- Claro que sim - aprovei, - Bastará que as
meninas vejam o teu bigode para que a civilização lhes
92
entre logo pelo espírito adentro...
- Sempre trocista, Serioja! - comentou o conde,
ofendido. - Nunca és capaz de dar conselhos aos teus
amigos! Para ti, tudo é motivo de mofa! Já vai sendo
tempo de perderes esses hábitos de estudante boémio.
O conde pôs-se a caminhar de um lado para o outro
e, com longos e enfadonhos argumentos, tentou
demonstrar-me a utilidade que tais reuniões podiam ter.
A caça, por exemplo, serviria para congregar as melhores
forças vivas do distrito.
- Voltaremos a falar sobre o assunto - prometeu
Karnieiev a Kalinine quando este se foi embora, depois
de terminar o almoço.
- Quer dizer, Excelência, que poderemos contar
com...
- Com certeza, com certeza!... Vou estudar o caso e,
naturalmente, farei uma experiência. Fiquei muito
satisfeito com a sua idéia. Por favor, divulgue-a...
Era coisa digna de ver-se a beatitude estampada no
rosto do juiz, quando subiu para a sua carruagem e
gritou:"Vamos!". Estava tão feliz que, esquecido da nossa
querela, me chamou "querido amigo" e me apertou a mão
calorosamente.
Depois de os convidados terem partido, eu e o conde
voltámos à mesa e continuámos a comer. Às sete, os
criados retiraram os pratos do almoço e, de imediato,
começaram a servir o jantar. Os jovens bêbedos sabem
como encurtar os intervalos. Não havíamos parado de
beber e de petiscar para manter o apetite, que se teria
desvanecido se tivéssemos deixado de comer.
- Hoje, enviaste dinheiro a alguém? - perguntei
ao conde.
- Não, a ninguém.
- Então, diz-me uma coisa. Esse teu novo amigo...
Como se chama ele?... Casimir Gaetanich é homem rico?
- Não, Serioja... É pobre... Mas, em contrapartida,
93
que grande alma, que grande coração... Fazes mal em
falar dele com desprezo... em atacá-lo. Tens de aprender
a conhecer as pessoas... Queres tomar outro?
Pchekotski apareceu para o jantar. Ao ver-me,
franziu as sobrancelhas e, depois de dar uma volta à
sala, preferiu subir para o seu quarto. Pretextando uma
enxaqueca, recusou-se a comer, mas não protestou
quando o conde alvitrou que jantasse na cama.
íamos no segundo prato quando Orbenine chegou.
Quase não o reconheci. O seu rosto largo brilhava de
prazer. O sorriso de satisfação que ia de orelha a orelha
parecia espraiar-se até aos dedos grossos, com os quais,
a cada instante, ajustava a gravata nova dernier cri.
Disse ao conde que uma das vacas estava doente.
- Mandei chamar o veterinário, mas não o encontraram
em casa. Não seria melhor, Excelência, mandar
chamar outro, da cidade? Se for eu a fazê-lo, não se dará
ao incómodo de vir até cá, mas se Vossa Excelência lhe
enviar um recado escrito será diferente... Não sei de que
sofre a vaca. Pode não ser nada... como pode ter alguma
doença grave.
- Está bem, vou escrever-lhe - resmungou o conde,
contrariado.
- Deixe-me felicitá-lo, Piotre Iegoritch - disse eu,
estendendo-lhe a mão.
- Porquê, senhor?
- Então não vai casar-se?
- Vai, sim. Imagina! - atalhou o conde, piscando o
olho e fitando Orbenine, que ficou muito corado. - Vai
casar-se! Que dizes a isto? Ah, ah! E sabes com quem?
Quase o adivinhaste, no outro dia... Então, percebemos
que algo de anormal se passava no seu coração brejeiro,
Piotre Iegoritch, e, quando vos contemplou juntos,
Serioja disse: "Este homem está apaixonado!". Ah, ah!
Vá, jante connosco, Piotre Iegoritch.
Orbenine, respeitoso, sentou-se e fez sinal a Ilia para
94
que ele lhe servisse a sopa. Pelo meu lado, enchi-lhe o
copo com vodca.
- Não bebo, senhor - protestou ele.
- Ora, não diga tal coisa. Bebe mais do que nós! -
Bebia, mas agora deixei de beber - declarou, com
um sorriso. - Não devo beber vodca nunca mais, seja
por que razão for! Graças a Deus, tudo correu bem, da
maneira por que o meu coração ansiava e, se possível,
ainda melhor!
- Então - retorqui eu, servindo-lhe um cálice de
Xerez -, beba ao menos isto, para festejar essa ventura.
- Isto, sim, bebo com prazer. Na verdade, bebia em
excesso, devo confessar. Às vezes, bebia de manhã até à
noite. Mal me levantava da cama, corria ao armário e
pegava na garrafa... Mas, agora, Deus seja louvado, já
não tenho tristezas para afogar em álcool...
Orbenine bebeu o seu Xerez. Servi-lhe outro cálice e
esvaziou-o também. Aos poucos, ficou embriagado.
- Custa a acreditar - exclamou, desatando a rir
de modo quase infantil. - Olho para esta aliança e
recordo-me das palavras que ela proferiu quando aceitou
o meu pedido de casamento. Na verdade, custa a
acreditar! Chega a ser ridículo! Com a minha idade, com
o meu físico, como poderia esperar que aquela rapariga
se convertesse na minha... na mãe dos meus órfãos?
É muito formosa, como os senhores se dignaram admitir.
Um autêntico anjo encarnado! Há em tudo isto algo de
milagroso. Encheu-me outra vez o cálice? Bom, será o
último. Anteriormente, bebia porque andava aborrecido.
Agora, bebo porque me sinto feliz. Quanto sofri, meus
senhores! Que infelicidade tive de suportar! Conheci-a
há cerca de um ano, e, acreditem, desde então, não
consegui dormir tranquilo uma noite sequer! Não se
passou um só dia em que não tivesse de afogar em
aguardente a minha estúpida fraqueza. Olhava-a pela
janela, admirava-a e arrancava os cabelos! Tive vontade
95
de me enforcar. No entanto, arrisquei-me a fazer-lhe o
convite e foi como se me batessem com um maço na
cabeça! Ah, ah! Não queria acreditar quando a ouvi dizer
"Aceito". E eu que esperava ouvi-la dizer: "Vá para o
Inferno, velho carunchoso!". Só me convenci, quando ela
me beijou.
Ao recordar o primeiro beijo de Olenka, o quinquagenário
Orbenine fechou os olhos e sorriu como uma
criança. Era repugnante!
- Meus senhores - declarou, com um olhar terno e
embaraçado -, porque não se casam, também? Para quê
gastar a vida em vão, atirando-a pela janela? Para quê
afastar de nós o que constitui o maior bem deste mundo?
Os prazeres da depravação não nos dão nem a centésima
parte do que pode dar-nos a pacífica vida de família...
Acredite, Excelência, e o senhor também, Sergei
Petrovitch... Deus é testemunha de quanto os estimo, a
ambos. Perdoem-me estes estúpidos conselhos, mas o
que desejo é a vossa felicidade. Porque não se casam?
A vida de família é o maior de todos os bens... E é dever
de todos nós gozar essa felicidade...
Tornou-se-me odiosa a imagem daquele velho
satisfeito e enternecido, que ia casar-se com uma jovem
formosa e nos aconselhava a mudar de vida. Era de dar
vómitos!
- Concordo consigo - repliquei. -A vida de família
é um dever. E o senhor vai cumprir esse dever pela segunda
vez.
- Sim, pela segunda vez. Aliás, gosto da vida
familiar. Ficar solteiro ou viúvo, é como viver só metade
da vida. Digam o que disserem, o matrimónio é uma
grande coisa, meus senhores!
- Com certeza... Mesmo quando o marido tem três
vezes a idade da mulher!
Orbenine corou. A sua mão, que levava a colher à
boca, tremeu e a sopa caiu no prato. .,: , , ,,,
96
- Compreendo o que quer dizer, Sergei Petrovitch
- murmurou. - Agradeço a sua franqueza. Por vezes,
pergunto a mim próprio se não será uma tolice minha
deixar-me arrastar por esta paixão... Mas como é possível
pensar nessas questões, quando estamos tão felizes que
nos esquecemos da própria idade e não curamos de saber
se somos feios ou bonitos? Homo sum, Sergei Petrovitch!
E, quando penso nos anos que nos separam, tranquilizo-me
como posso. Julgo que poderei fazer Olga feliz.
É um pai que lhe dou e ela vai ser uma mãe para os
meus filhos. De resto, tudo isto se me afigura como um
romance e a minha cabeça anda à roda. O senhor fez
mal em dar-me Xerez a beber.
O administrador levantou-se, limpou a boca com o
guardanapo e voltou a sentar-se. Bebeu de um trago o
conteúdo do copo e fitou-me insistentemente, como se
implorasse o meu perdão. Depois, começou a tremer e
pôs-se a chorar como uma criança.
- Não é nada - murmurou, entre dois soluços. -
Não façam caso. Ao ouvi-lo, passou-me um pressentimento
pela cabeça. Não, não é nada.
O pressentimento de Orbenine iria concretizar-se.
E tão depressa que nem me dá tempo para mudar de
aparo para iniciar uma nova página. A partir do próximo
capítulo, a minha musa mudará a sua expressão, até
agora tranquila, por outra de cólera e tristeza. Terminou
o prólogo vai começar o drama.
A vontade criminosa do homem reclama os seus
direitos.
7 - Vampiro 684
97

11
Recordo-me daquele esplendoroso domingo. O sol da
manhã entra pelas janelas da capela do conde e um débil
raio de luz, onde flutuam minúsculas nuvens de incenso,
cruza o templo. O chilrear das andorinhas e dos estorninhos
entra pelas janelas e pelas portas abertas. Um
pardal mais atrevido penetra pela porta e, depois de
esvoaçar sobre as nossas cabeças, a piar, atravessa o raio
luminoso e sai por uma janela.
No interior do templo há também cânticos. São os
coros entoados com o entusiasmo e a harmonia de que
se mostram capazes os pequenos cantores quando se
sentem os heróis do momento e sabem que toda a gente
os admira. Os temas são geralmente alegres como os
raios de sol que caem sobre as paredes e sobre as roupas
da assistência. No meio da marcha nupcial os meus
ouvidos apercebem, na voz do tenor - pouco cultivada,
mas doce e fresca -, uma ligeira nota de tristeza, como
se lhe desse pena ver o pesadão Orbenine, qual urso já
muito vivido, ao lado da poética e formosa Olenka.
O tenor não é, contudo, o único a quem incomoda a
imagem de semelhante casal. Mesmo nos rostos que
parecem mais indiferentes ou jubilosos, até um imbecil
vislumbraria idêntica pena.
Envergando um fraque novo, encontro-me de pé,
atrás da noiva, e seguro, sobre os seus cabelos, a coroa
98
nupcial. Estou pálido e sinto-me indisposto. Parece que
a minha cabeça vai rebentar, por causa de uma paródia
na véspera e de um passeio pelo lago. A cada instante,
verifico se não tremo a mão com que seguro a coroa.
Pouco à vontade, experimento um vago terror, como se
me encontrasse em plena floresta, numa noite chuvosa
de Outono... Sinto repugnância, tristeza e angústia.
Tenho o coração apertado por estranhos remorsos. Algo
me sussurra, no fundo da consciência, que, se o
casamento de Olenka é um pecado, a culpa é toda minha.
Donde pode provir semelhante idéia? Como poderia
eu ter salvado aquela tontinha de um risco que ela
própria não entende?
"Como?", diz-me a voz da consciência, "sabes bem
como. Melhor do que ninguém!"
É verdade. Na minha vida assisti a muitos casamentos
como este li muitas novelas com o mesmo tema
conheço a fisiologia que condena tais matrimónios -
mas nunca experimentei aquela repugnância, aquela
angústia que me atormenta enquanto permaneço atrás
de Olenka. Se é só piedade que me perturba, porque não
experimentei a mesma sensação nos outros casos?
"Não é só piedade!", continua a voz. "É ciúme..."
Ninguém tem ciúmes de quem não ama. Será que
eu amo a rapariga de vermelho? Se fôssemos amar todas
as raparigas com quem tropeçamos neste mundo, o nosso
coração rebentaria em pouco tempo. E seria demasiado
belo!
O conde Karnieiev encontra-se à porta, junto do
armário do vendedor de círios, um sujeito de cabelo
empastado em brilhantina, que exala um cheiro
penetrante. Dir-se-ia um autêntico querubim, o que me
leva a dizer-lhe:
- Hoje, Alexis, tens todo o ar de um director de
quadrilhas.
Com um gesto gracioso, saúda quantos entram na
99
igreja ou dela saem. Escuto os enfatuados cumprimentos
que dirige a todas as senhoras que compram as suas
velas. Aquele menino mimado, que nunca teve nas mãos
moedas de cobre, não sabe como pegar-lhes e, a cada
momento, deixa cair as moedas de três e cinco copeques
que recebe. Perto dele, encostado ao armário, encontra-se
o majestoso Kalinine, exibindo a sua Ordem de São
Estanislau. Resplandece e mostra-se satisfeito, já que a
sua idéia dos "dias prefixados" não havia caído em saco
roto. Embora este casamento seja perfeitamente absurdo
serve os seus desígnios, porque dá origem à primeira
das reuniões que planeara.
Olenka, vaidosa como é, deve sentir-se contente.
Do facistol 1 à porta sagrada do iconostase há duas filas
compostas pela gente mais ilustre do distrito. Alguns
ataviaram-se como se fosse o próprio conde que se
casasse é impossível imaginar trajes mais elegantes.
A aristocracia está em maioria. Nem sequer uma só
mulher de comerciante nem de qualquer membro do clero
ortodoxo. Há senhoras a quem Olenka, até então, nem
sequer se atreveria a cumprimentar. O seu noivo é um
administrador, um servidor privilegiado, mas a sua
vaidade não sofre com isso porque ele é de família nobre
e possui uma propriedade hipotecada no distrito vizinho.
O pai pertenceu à nobreza rural e ele próprio é, há nove
anos, juiz de paz na terra natal. Que mais poderia
ambicionar até a filha de um fidalgo? Conhecido em toda
a região como Don Juan famoso e elegante, dado ao
prazer, o seu padrinho contribuiu também para lhe
empolar a vaidade. É ele o alvo dos olhares de toda a
assistência. Produz melhor efeito do que quarenta mil
padrinhos plebeus e, o que é ainda mais importante, não
1- Grande estante em que são colocados os livros no coro da
igreja. (N. do T.)
100
se negou a apadrinhá-la, sabendo que é pobre, embora
tenha recusado já essa honra a muitos aristocratas.
No entanto, a vaidosa Olenka nem por isso mostra o
seu regozijo. Está pálida e a mão com que segura o círio
treme ligeiramente. Também o queixo lhe estremece de
vez em quando. Os seus olhos estão fixos no vácuo como
se, de súbito, algo a tivesse perturbado profundamente.
Não há nem sombra da alegria que irradiara na véspera,
quando correra pelo jardim, dizendo, entusiasmada, que
espécie de papel escolheria para a sala e quais os dias
em que receberia visitas. Está séria, muito mais séria
do que impõe a cerimónia em que participa.
Orbenine, com o seu fato novo, está vestido a rigor,
mas penteou-se como um ortodoxo de 1812. Como de
costume, está vermelho e compenetrado do seu papel.
Vê-se nos olhos que reza e o sinal da cruz que faz, sempre
que ouve a frase "Senhor, tende piedade de nós!", nada
tem de maquinal.
Atrás de mim, encontram-se os filhos do primeiro
casamento de Orbenine: Gricha e a loura Sacha. Olham
interrogativamente para a nuca vermelha e para as
orelhas de abano do pai. Não compreendem porque
precisa ele da "tia Olia" nem qual o motivo por que quer
levá-la para casa. Sacha está atónita, enquanto Gricha,
que já tem catorze anos, se mostra triste e de olhos fixos
no chão. Se o pai lhe tivesse pedido consentimento para
casar, ele tê-lo-ia recusado.
O casamento foi celebrado com extraordinária
magnificência. Três padres e dois diáconos oficiaram.
A cerimónia foi tão prolongada que a minha mão se
cansou de segurar a coroa, e as damas se cansaram,
também, de examinar os noivos. O padre decano disse
as palavras rituais com todas as modulações e
alongamentos possíveis e sem falhar qualquer um. Com
os olhos postados nas pautas de música, os chantres
entoaram os cânticos. O diácono aproveitou a ocasião
101
para exibir a sua voz grave, recitando com mortal
lentidão os Actos dos Apóstolos.
Por fim, o decano tirou-me a coroa das mãos, os
noivos beijaram-se, a assistência agitou-se e as fileiras
desfizeram-se. Houve trocas de felicitações, de beijos,
de exclamações. Orbenine, sorridente, ofereceu o braço
a Olenka e saímos da igreja. ,,
102
12
Se algum dos presentes na cerimónia achar esta
descrição incompleta ou inexacta deve atribuir as
omissões e os erros à minha dor de cabeça e ao estado de
espírito em que me encontrava. Na altura, se tivesse
sabido que viria a escrever a presente novela, teria
procurado dominar a enxaqueca e observar com maior
atenção os pormenores do casamento.
O distrito, por vezes, compraz-se a pregar-nos
amargas partidas. O cortejo, resplandecendo ao sol,
preparava-se para se encaminhar para casa do conde
quando, de súbito, Olenka deu um passo atrás e puxou
com tanta força o braço do marido que este quase caiu
por terra.
- Deixaram-no sair! - exclamou, fitando-me
horrorizada.
Que triste cena!... Pelo carreiro do jardim, a
gesticular e de olhos muito arregalados, corria para nós
o pai da rapariga. Com o seu roupão de algodão e
arrastando os chinelos, pouco condizentes com a
elegância nupcial da filha, o demente oferecia um
espectáculo lamentável. Os cabelos desgrenhados
flutuavam ao vento e trazia a camisa de dormir quase
toda desabotoada.
- Olenka! - gritou, quando chegou junto de nós.
- Porque fugiste?
103
A rapariga corou e olhou de soslaio para as damas,
que sorriam à socapa. A vergonha apossou-se dela.
- Mitka não fechou as portas! - gritou o louco. -
Os ladrões vão entrar na nossa casa! Da outra vez,
levaram o samovar. Que queres tu que nos roubem,
agora?
- Não sei quem o deixou sair - sussurrou Orbenine.
- Dei ordens para que o fechassem em casa. Sergei
Petrovitch, faça-me o grande favor de nos tirar desta
situação!
- Eu sei quem roubou o seu samovar, Skvortsov -
disse eu ao guarda-florestal. -Vou mostrar-lhe o ladrão.
Venha comigo.
Peguei no braço do demente e arrastei-o até à igreja.
Conversei com ele no adro e, quando calculei que o cortejo
já devia ter chegado a casa do conde, deixei-o ali
plantado, sem lhe dizer quem roubara o samovar.
O encontro com o louco foi rapidamente esquecido,
já que o destino reservava aos recém-casados uma nova
surpresa, ainda mais assombrosa.
Decorrida uma hora estávamos a comer à volta de
grandes mesas. Para quem se achava habituado às teias
de aranha, à sujidade da mansão e aos gritos dos ciganos,
aquela multidão, que rompia com as suas conversas
fúteis o silêncio das divisões solitárias, era motivo de
espanto. Aquela turba ruidosa fazia pensar num bando
de estorninhos, que tivesse pousado num cemitério
abandonado, ou num grupo de cegonhas - que estas
nobres aves me perdoem a comparação - lançando-se,
ao crepúsculo de mais um dia de migração, sobre as
ruínas de um velho castelo.
Eu detestava aquela multidão que, com frívola
curiosidade, observava os traços de declínio da
minguante fortuna dos condes Karnieiev. As paredes
revestidas de azulejos, os tectos esculpidos, os tapetes
persas e o mobiliário Luís XV suscitavam entusiasmo e
104
espanto. A monstruosa cara do conde reluzia de
satisfação. Julgava que as lisonjas frenéticas que os
visitantes entoavam lhe eram devidas, como homenagem
aos seus méritos, muito embora nada tivesse feito para
merecer as propriedades que herdara nem para impedir
a sua degradação. Pelo contrário, ficaria muito
surpreendido se algum dos convivas lhe houvesse
lançado à cara a sua bárbara indiferença em relação a
bens que os seus antepassados haviam acumulado,
década após década. Em cada laje de mármore pálido,
em cada quadro, em cada canteiro do jardim, só um cego
ou um pobre de espírito deixava de ver o suor e as
lágrimas dos trabalhadores cujos filhos viviam agora nos
humildes casebres da aldeia. E, embora na assistência
houvesse pessoas ricas e independentes que podiam
permitir-se dizer as verdades mais duras, o certo é que
ninguém se atreveu a declarar ao conde que a sua atitude
convencida era estúpida e totalmente despropositada.
Todos acharam ser sua obrigação queimar um incenso
medíocre e sorrir, com falso aplauso.
Orbenine sorria também, mas por motivo diferente.
O seu sorriso era cortês, num misto de respeito e
felicidade quase infantil. Tal como Risleralné no
romance de Alphonse Daudet 1, esfregava as mãos de
contentamento, olhava para a mulher e, entusiasmado
pelas sensações que o assaltavam, formulava para si
próprio a mesma pergunta:"Quem poderia supor que
uma rapariga tão nova e tão bonita gostasse de um velho
como eu? Como é incompreensível o coração feminino!..."
Chegou ao ponto de ousar dirigir-se a mim, com
modos arrogantes:
- Em que século vivemos! Ah! Ah! Conseguir um
velho arrebatar aos jovens, nas suas próprias barbas,
1 Fromont Jeune et Risler ainé. (N. do T.)
105
semelhante fada! Onde tinham vocês os olhos? Ah! Ah!
Não há dúvida a juventude já não é o que era!
Sem saber como demonstrar toda a gratidão que
sentia, levantava-se a cada instante, muito nervoso,
brindava ao conde e exclamava, com voz trémula:
- Vossa Excelência conhece bem os meus sentimentos.
Fez tanto por mim que a amizade que sinto por
si não é nada ao lado de tudo isto. Como consegui merecer
tantas atenções de Vossa Excelência? Pode acreditar que
não me esquecerei nunca do que fez por mim como jamais
vou esquecer este dia, o mais feliz da minha vida!
Et cetera...
Era notório que aquela eloquente demonstração de
respeito por parte do marido não agradava a Olenka.
Sentia o exagero de tal oratória, que despertava o riso
dos circunstantes. Apesar do champanhe que havia
bebido, não parecia alegre exibia a mesma palidez que
revelara na igreja, o mesmo terror nos olhos. Calava-se
amiúde, respondia com dificuldade, sorria contrafeita
às graçolas do conde e mal tocava nos delicados manjares
que lhe serviam. Quanto mais feliz se proclamava
Orbenine, mais triste parecia ficar o belo rosto da esposa.
Sentia dó por ela e procurei manter os olhos fixos no
meu prato.
Como explicar tamanha tristeza? O arrependimento
começava a atormentar a rapariga? Ou a sua vaidade
esperava uma boda ainda mais pomposa?
Quando terminou a refeição, lancei-lhe um olhar e
senti-me perturbado até ao fundo do coração. Olenka
fazia esforços desesperados para responder a uma
pergunta do conde, mas os soluços embargavam-lhe a
voz e não retirava o guardanapo da boca. Olhava para
nós, temerosa como um pequeno animal assustado. Pois
não percebiam todos que tinha vontade de chorar?
- Porque tem essa cara tão triste? - perguntou o
conde. - Piotre Iegoritch, a culpa é sua! Vamos, alegre
106
a sua mulher! Meus senhores, exijo um beijo. Ah! Ah!
Não um beijo para mim, é claro! Que o casal se beije!
Amargo! 1
- Amargo! - repetiu Kalinine.
Orbenine levantou-se, com um grande sorriso.
Olenka, obrigada pelos gritos dos convivas, soergueu-se
e apresentou ao marido os lábios inertes. Orbenine
beijou-a. Olenka fechou os lábios em seguida, como se
temesse ser beijada de novo, e fitou-me... O olhar que
lhe lancei deve ter sido desabrido porque a rapariga corou
e levou o lenço ao rosto por várias vezes, para dissimular
o seu embaraço. Tive a sensação de que, na minha
presença, ela se envergonhava do casamento e daquele
beijo.
"Que haverá de comum entre nós?", perguntei a mim
próprio. Continuei a observá-la, procurando adivinhar
a razão do seu embaraço.
A rapariga não suportou o meu olhar. O rubor
desapareceu-lhe da face, mas os seus olhos marejaram-se
de lágrimas, lágrimas sinceras, como eu jamais vira.
Com o lenço a tapar a cara, levantou-se e saiu da
sala de jantar.
- Olga Nicolaevna tem dor de cabeça - apressei-me
a explicar. - Já de manhã se queixou.
- Vai contar isso a outro! - troçou o conde. -A dor
de cabeça nada tem a ver com isto. A causa foi o beijo.
Ficou envergonhada. Meus senhores, dirijo ao noivo uma
séria reprimenda por não ter habituado a noiva a beijá-lo!
Ah! Ah!
Os convivas, entusiasmados por aquele rasgo de
humor do conde, desataram às gargalhadas. Não havia,
porém, razão para risos.
Passaram cinco, dez minutos, sem que a recém-
1 - Expressão utilizada nas bodas para significar que os
recém-casados devem beijar-se.
107
casada regressasse. Produziu-se um silêncio. O próprio
conde deixou de gracejar.
A ausência de Olenka tornou-se ainda mais
inexplicável pelo facto de haver saído da sala sem proferir
palavra. Havia partido como que aborrecida por ter sido
forçada a beijar o marido. Não podia acreditar-se que o
tivesse feito por vergonha. A vergonha dura um minuto
ou dois e não uma eternidade - e os primeiros dez
minutos de ausência pareceram, a todos nós, uma
eternidade.
Quantos maus pensamentos passaram pela mente
dos atónitos cavalheiros e quantas bisbilhotices forjaram
as encantadoras damas! A recém-casada levanta-se da
mesa da boda e desaparece. Que magnífica cena para
uma novela da "alta roda" do nosso distrito!
Orbenine olhava à sua volta, inquieto.
- São os nervos... - resmungou. - Ou, talvez, algo
de errado com o seu vestido. Quem pode gabar-se de
conhecer as mulheres? Vai regressar em breve. Em breve!
Passaram-se mais dez minutos e Olenka não
apareceu. Orbenine fitou-me com olhos tão suplicantes
que fiquei com pena dele.
"Não pode o senhor ir buscá-la?", pedia com o olhar.
"Não pode ajudar-me a sair desta horrível situação? O
senhor é o homem mais inteligente, mais ousado, o que
dispõe de mais jeito para lidar com este género de coisas.
Ajude-me!"
Correspondi à súplica dos seus olhos tristes e decidi-me
a auxiliá-lo.
O leitor vai ver de que maneira...
108
13
Direi apenas que o serviçal urso da fábula de Kirilov,
que obsequiou o eremita, perde, aos meus olhos, toda a
sua majestade animal e fica reduzido a um inocente
protozoário, quando o comparo comigo, no papel de tonto
benfeitor que me propus representar. A semelhança entre
mim e o urso consiste tão-somente em que ambos
quisemos fazer um favor a alguém, mas a diferença é
enorme. A pedra que lancei a Orbenine é incomparavelmente
maior e mais pesada...
- Onde está Olga Nicolaevna? - perguntei ao
criado que me servia.
- Foi para o jardim - respondeu ele.
- Minhas senhoras - comentei em tom jocoso,
dirigindo-me às damas presentes -, este caso é único.
A recém-casada desapareceu. É preciso encontrá-la e
trazê-la de volta, nem que esteja com dor de dentes...
Um padrinho tem as suas responsabilidades. Vou buscá-la!
Enquanto o conde me aplaudia ruidosamente,
levantei-me e saí para o jardim. A minha cabeça,
congestionada pelo álcool, sofreu o impacto dos raios
verticais e ardentes do sol do meio-dia. Senti um calor
sufocante. Caminhei ao acaso por um dos carreiros
laterais, a assobiar e dando rédea solta às minhas
faculdades de juiz de instrução convertido em detective.
109
Examinei todos os maciços de arbustos, os pequenos
bosques e as grutas e já me arrependia de não ter
começado por outro lado quando, de súbito, ouvi um ruído
estranho. Numa das grutas que não visitara ainda,
alguém estava a rir ou a chorar. Entrei na gruta e, no
meio de uma atmosfera impregnada de cheiro a mofo, a
cogumelos e a couves, vislumbrei a rapariga.
Apoiada a uma coluna de madeira coberta de musgo
negro, Olenka levantou os olhos na minha direcção,
cheios de medo e desespero. As lágrimas caíam-lhe do
rosto como de uma esponja empapada.
- Que fui fazer, meu Deus! - suspirava. - Que fui
eu fazer!
- Sim, Olia - disse-lhe eu, postando-me à sua
frente e cruzando os braços. - Que fez?
- Porque me casei? Onde tinha eu a cabeça?
- Sim, Olia, é difícil explicar a decisão que tomou.
- Oh, porque não me apercebi disso, ontem? Agora,
tudo está perdido... E poderia ter-me casado com o
homem de quem gosto e que gosta de mim!
- Com quem, Olia? - perguntei.
- Consigo! - exclamou, olhando de frente para
mim, com uma expressão sincera. - Mas precipitei-me,
fui estúpida!... O senhor é rico e parecia-me inatingível...
- Basta, Olia! - disse eu, pegando-lhe na mão. -
Seque essas lágrimas e regresse comigo. Na sala de
jantar, toda a gente a espera... Basta, não chore mais...
Beijei-lhe a mão e acrescentei, com carinho:
- Então, rapariga! Fizeste um disparate e tens de
suportar as consequências. A culpa é toda tua... Acalma-te,
vá!
- Então, tu... tu gostas de mim? - exclamou. -
Tu, tão belo, tão forte... Tu gostas de mim? Queres-me?
- Temos de regressar, minha querida - disse eu,
só então dando conta de que a havia abraçado pela
cintura, que a beijava, que sentia o seu hálito ardente a
110
queimar-me e que ela própria me havia colocado os
braços à volta do pescoço.
- Basta! - murmurei ainda. - Temos de regressar.
Daí a cinco minutos tomei-a nos braços e, com a
cabeça repleta de novas sensações, depu-la no solo, à
entrada da gruta. Foi então que vi Pchekotski... Olhava-me
com malícia e esboçou o gesto de bater palmas. Medi-o
de alto a baixo e, pegando no braço de Olga, encaminhei-me
para a mansão.
- Hoje ainda - afirmei, voltando-me para o polaco
- há-de sair desta casa. A sua espionagem não o levará
a parte alguma.
Os meus beijos decerto haviam sido ardentes porque
Olga tinha a cara em fogo. Já não mostrava sinais das
lágrimas que por ela haviam rolado, momentos antes.
-Agora posso enfrentar seja o que for - murmurou,
apertando-me nervosamente o braço. - Esta manhã não
sabia como esconder o meu pavor... mas, agora... agora,
meu querido, não sei como esconder a alegria que sinto
e me faz feliz... Não importa que o meu marido esteja à
espera... Ah, que importa! Nem que fosse um animal
selvagem, isso não teria importância... Amo-te e não
quero saber de tudo o mais...
Fitei o seu rosto, a irradiar felicidade, e os seus olhos,
cheios de amor satisfeito, e senti o coração apertar-se-me,
ao pensar no futuro daquela formosa criatura. O
seu amor por mim era mais um empurrão para o abismo.
Como iria acabar aquela rapariga loucamente apaixonada
que não pensava no dia de amanhã? Naquele instante,
o meu coração oprimiu-se de novo, inundado por um
sentimento indefinido, que não era piedade nem
compaixão por ser mais intenso do que esses dois juntos.
Detive-me e segurei Olenka pelos ombros. Nunca me
encontrara em situação tão difícil. Não tinha tempo para
pensar, para reflectir. Empolgado pela paixão, exclamei:
- Foge comigo, Olga! Agora mesmo!
111
- Como? Que dizes? - replicou, sem se aperceber
do meu tom empolgado.
- Fujamos para minha casa! Já!
Ela sorriu e apontou para a mansão do conde, mas
eu insisti:
- Vamos! Ficares comigo hoje ou amanhã, que
diferença faz? Quanto mais cedo, melhor. Anda!
- Mas... não é possível. Seria muito estranho...
- Tens medo do escândalo, criança? Sim, será
realmente um escândalo tremendo, extraordinário, mas
vale mais enfrentar mil escândalos do que deixar as
coisas no pé em que estão. Não vou deixar-te. Não posso!
Compreendes, Olga? Esquece os teus receios, a tua lógica
feminina e escuta-me! Escuta-me, se não queres perder-te!
Olga escutava-me, mas não entendia as minhas
palavras. O tempo passava e era impossível continuar
no jardim enquanto todos os convivas esperavam por
nós. Urgia tomar uma decisão... Apertei contra mim a
"rapariga de vermelho" que, agora, era de facto a minha
mulher, e, naquele momento, pensei sinceramente que
sentia por ela um amor genuíno, que a amava como um
marido, que ela era minha e só minha e que o seu destino
dependia do que me ditasse a consciência... Apercebi-me
de que estaria ligado a ela para todo o sempre, sem
hipóteses de voltar atrás...
-Ouve, minha querida - disse-lhe -, o que vamos
fazer é uma temeridade, sem dúvida. Vai atrair sobre
nós a reprovação dos nossos amigos mais íntimos, vai
dar origem a mil injúrias, a lamentações, a lágrimas...
Por certo, arruinará a minha carreira e criará muitos
obstáculos intransponíveis... Mas, querida, estou
decidido a enfrentar tudo isso! Tu vais ser a minha
mulher! Não quero outra. Que Deus proteja as demais.
Far-te-ei feliz e cuidarei de ti como às meninas dos meus
olhos. Hei-de instruir-te e fazer de ti uma mulher
112
notável. Juro-te e, como prova, aqui tens a minha mão...
Eu falava com entusiasmo sincero, como um actor
jovem que recitasse a tirada mais emocionante do seu
papel. Olia pegou na mão que lhe estendi e, com ternura,
cobriu-a de beijos. Não era, contudo, um sinal de concordância.
No seu rosto de mulher ainda inexperiente e
que não sabe dar o devido valor ao que lhe dizem, só
havia perplexidade. Continuava sem compreender o que
eu lhe propusera.
- Dizes-me para fugir contigo... - murmurou, com
ar pensativo. - Não percebo bem. Não pensas no que
ele irá dizer?
- Que te importa o que ele diga?
- O quê? Que me importa? Não digas isso, Serioja...
Deixemos isso... Tu gostas de mim e só isso é que conta...
Sabendo que me amas, sou capaz de viver até no
Inferno...
- Que queres dizer, minha tonta?
- Deixemos as coisas como estão. Tu virás aqui todos
os dias e eu correrei para os teus braços...
- Como? Não posso sequer imaginar o que seria a
tua vida, dessa forma... De noite, ele e de dia, eu... Não,
não é possível... Ouve, Olia, amo-te tanto que neste
momento sinto-me... que sei eu?... terrivelmente ciumento.
Nunca poderia imaginar que alguma vez experimentasse
semelhante sentimento...
A qualquer momento podia passar alguém que nos
surpreendesse, mas havíamos esquecido toda a prudência.
Eu abraçava-a pela cintura e ela acariciava ternamente
as minhas mãos.
- Vamos! - insisti. - Já!
- Não podemos ser tão precipitados - murmurou
Olenka. - Não temos de apagar nenhum incêndio...
Pensa bem nas consequências... Fugir a um casamento
desta forma!... Que vão dizer de nós?...
Encolheu os ombros. No seu rosto havia tamanha
8 - Vampiro 684
113
hesitação, tão grande pasmo, que, com um gesto de
renúncia, propus que adiássemos para mais tarde a
resolução do nosso caso... Além disso, não havia já tempo
para continuar aquela conversa. Subimos os degraus do
terraço e vieram até nós as vozes dos convivas. Ao chegar
à porta da sala de jantar, Olenka compôs o cabelo e o
vestido antes de entrar. Não havia no seu rosto uma
réstia de inquietação ou de embaraço. Contra o que eu
podia esperar, foi com a maior à-vontade que entrou na
sala.
- Meus senhores, aqui tendes a fugitiva - disse
eu, dirigindo-me à minha cadeira. - Não me foi fácil
descobri-la. Dei com ela a passear no jardim. Perguntei-lhe
"Que faz aqui?" e ela respondeu-me: "Sentia-me
abafar, lá dentro".
Olia olhou para mim, para os convidados, para o
marido e desatou a rir. Para ela, tudo se tornou, de súbito,
despreocupado e alegre. Li-lhe no rosto o desejo de
partilhar a sua repentina felicidade com todos os
presentes.
- Sou uma tonta - exclamou. - Rio-me e não sei
porquê... Ria-se, senhor conde!
- Amargo! - gritou Kalinine.
Orbenine tossiu e olhou para Olia, interrogativamente.
- Que se passa? - perguntou ela, franzindo as
sobrancelhas.
- Estão a gritar "amargo" - explicou Orbenine, com
um grande sorriso.
Levantou-se e limpou os lábios com o guardanapo.
Olga levantou-se, igualmente, e consentiu que ele lhe
beijasse os lábios imóveis. Aquele beijo gélido atiçou
ainda mais o fogo que ardia dentro do meu peito
arquejante. Virei a cabeça e de boca cerrada esperei pelo
fim da boda. Por felicidade, a refeição acabou logo em
seguida.
114
- Chega aqui! - disse ao conde, com rudeza.
Karnieiev olhou para mim, surpreso, e deixou-se
arrastar até a um quarto contíguo.
- Que se passa, Serioja? - perguntou, desapertando
o colete e dando uma volta sobre si.
- Tens de escolher! - exclamei, mal me sustendo
em pé, tamanha era a minha cólera. - Ou eu ou
Pchekotski. Se não me prometeres que esse patifório vai
sair da tua propriedade na próxima hora, nunca mais
voltarei a pôr os pés nesta casa. Dou-te meio minuto
para decidires.
O conde deixou cair o charuto e abriu os braços,
estupefacto.
- Mas que tens tu, Serioja? - quis saber, atónito.
- Pareces transtornado!
- Por favor, nada de palavras inúteis! Não suporto
espiões nem canalhas como o teu amigo Pchekotski. Em
nome da nossa amizade, exijo que o mandes embora
imediatamente.
- Pchekotski. Mas que te fez ele? - perguntou o
conde, cada vez mais inquieto. - Porque o atacas dessa
maneira?
- Já disse: ou ele ou eu!
- Mas, meu caro amigo, colocas-me numa posição
delicada... Espera... Tens um fio no casaco... Ouve, estás
a pedir-me algo de impossível!
- Sendo assim, adeus! - gritei. - Nunca mais
voltarás a ver-me!
Precipitei-me para o vestíbulo, peguei no meu sobretudo
e encaminhei-me rapidamente para a cozinha, a
fim de ordenar a um criado que aparelhasse um cavalo.
Foi então que se produziu um encontro que me obrigou
a parar.
Nadia Kalinine veio na minha direcção, trazendo na
mão uma chávena de café.
Era uma das convidadas, mas uma sensação, talvez
115
de medo, tinha-me impedido de falar com ela durante
toda a boda.
- Sergei Petrovitch - disse-me ela com voz
estranhamente grave, quando passei por ela e a saudei,
levando a mão à aba do chapéu. - Espere um momento.
- Que ordem tem para me dar? - perguntei,
aproximando-me dela.
- Não tenho nenhuma ordem a dar-lhe - disse,
olhando-me fixamente e empalidecendo. - Se não está
com demasiada pressa, posso falar consigo durante um
minuto?
- Claro que sim... Nem precisava de mo pedir...
- Nesse caso, sentemo-nos. - E continuou, depois
de nos sentarmos: - O senhor, Sergei Petrovitch, faz de
conta que não me vê. Durante todo o dia evitou-me, como
se tivesse medo de encontrar-se comigo. Por isso mesmo,
decidi-me a vir ter consigo... Tenho o meu orgulho e
bastante amor-próprio... Não quero impor a minha
presença, mas, por uma vez na vida, vou sacrificar esse
meu orgulho.
- Por que me diz isso?
- Decidi colocar-lhe, hoje, uma questão humilhante,
que me oprime... Responda-me, por favor, sem olhar para
mim... Será possível, Sergei Petrovitch, que não sinta
por mim qualquer espécie de piedade?...
Fitou-me e abanou levemente a cabeça. A sua palidez
aumentou e o lábio inferior pôs-se a tremer.
- Julgo, Sergei Petrovitch, que foi um equívoco ou
um capricho que o levou a afastar-se de mim. Estou
convencida de que tudo poderá ser como dantes, se
tivermos uma conversa franca... Se não acreditasse nisso,
não teria a coragem de lhe fazer a pergunta que vai
ouvir... Sinto-me muito infeliz, Sergei Petrovitch, e o
senhor sabe-o bem... É como se tivesse deixado de viver...
E o pior é esta dúvida: não saber se posso ainda ter
esperança... A sua conduta para comigo é tão incompre-
116
ensível que não posso extrair dela conclusão alguma.
Diga-me o que quer que eu faça... Poderei, assim,
orientar a minha vida num sentido ou noutro... Estou
disposta a tudo...
- Quer fazer-me uma pergunta, Nadia Nicolaevna?
- atalhei, enquanto preparava mentalmente a resposta
ao que já pressentia.
- Sim, uma pergunta humilhante... Se alguém me
ouvisse pensaria que quero lançar-me nos braços de um
homem, como a Tatiana, de Pushkine 1... E, no entanto,
é uma pergunta que não consigo conter por mais tempo...
A pergunta era, de facto, inevitável. Quando Nadia
baixou os olhos para a formular, torceu nervosamente
as mãos e foi com notória angústia que se decidiu a
exprimi-la
- Posso ainda acalentar esperança? - balbuciou,
por fim. - Não receie falar francamente. Prefiro uma
resposta, seja ela qual for, a esta indecisão que me
mortifica... Então... Posso acalentar esperança?...
O meu estado de angústia impedia-me de lhe dar
uma resposta sensata. Atordoado pelo episódio da gruta,
enfurecido pela espionagem de Pchekotski e pela
conversa estúpida com o conde, mal conseguia ouvir o
que Nadia me dizia.
- Posso acalentar esperança? - repetiu ela. -
Responda-me...
- Ah, não estou em condições de responder-lhe,
Nadejda Nicolaevna! - repliquei, com um gesto de
desânimo, enquanto me levantava. - Sinto-me incapaz
de lhe dar uma resposta, seja ela qual for. Perdoe-me
mas não a escutei nem compreendi o que me perguntou...
Sou um estúpido e estou fora de mim... É em vão,
realmente em vão que se atormenta...
Com o mesmo gesto de desânimo, afastei-me de
1 - No romance Evgnenij Onegin.
117
Nadia. Só mais tarde, quando voltei a mim, compreendi
quão cruel e idiota fora não respondendo à sua singela e
inocente pergunta. O que me terá levado a proceder de
tal forma?...
118
14
Andei às voltas, como um lobo enjaulado, durante
três dias, dentro de casa, obrigando-me com toda a minha
força de vontade a não sair dela. Não toquei sequer na
papelada que aguardava o meu despacho não recebi
ninguém discuti com Policarpe e irritei-me com quanto
acontecia. Não quis ir visitar o conde e essa obstinação
custou-me caro. Cem vezes peguei no chapéu e cem vezes
o larguei, de cada vez que me passava pela cabeça deixar
de lado tudo o resto e ir encontrar-me com Olga.
Que pusilânime fui! Um homem vulgar ter-se-ia rido
das minhas hesitações e deixaria que a vida seguisse o
seu curso regular. Só que eu sou extremamente
desconfiado. Sentia grande piedade por Olga e, ao mesmo
tempo, aterrorizava-me a idéia de que acabasse por
aceitar a proposta que lhe fizera, num momento de
exaltação, e viesse viver comigo para sempre, como eu
lhe prometera.
Que teria sucedido se ela me tivesse dado ouvidos?...
Quanto tempo teria durado aquele para sempre? Não,
não podia ir buscá-la nem devia encontrar-me com ela...
Apesar disso, toda a minha alma voava para Olga, a
cada momento e com ímpeto. Desejava ardentemente
um novo encontro e a imagem provocante da rapariga
não me saía da cabeça sabia que me esperava e que
morria de angústia por não me ver.
119
O conde remetia-me cartas e mais cartas, cada vez
mais implorantes. Suplicava-me que esquecesse tudo e
voltasse a visitá-lo. Pedia-me desculpas em nome de
Pchekotski e solicitava que eu perdoasse a esse homem
"bom e simples, embora um pouco tonto". Numa das
últimas, prometia vir buscar-me e, se eu quisesse, trazer
consigo o polaco para que este apresentasse pessoalmente o
seu pedido de desculpas, "embora não se sentisse em
falta para comigo". Lia as cartas e, como única resposta,
dizia ao emissário que me deixasse em paz.
No momento mais intenso do meu enervamento,
quando me havia decidido já a partir para qualquer sítio,
excepto para casa do conde, a porta abriu-se lentamente
e ouvi o som de passos leves. Logo a seguir, duas mãos
macias abraçaram o meu pescoço.
- És tu, Olga? - disse eu, virando a cabeça.
Havia reconhecido o seu perfume e a sua respiração
ardente. Com o rosto colado ao meu, parecia extremamente
feliz. Não consegui proferir palavra e apertei-a
de encontro ao meu rosto. Todas as angústias que me
atormentavam, havia três dias, se desvaneceram como
por encanto. Desatei a rir como se fosse um garoto da
escola.
Olga trazia um vestido de seda claro que fazia realçar
o seu tom de pele e os seus belos cabelos da cor do linho.
Era um vestido que devia ter custado, pelo menos, um
quarto do ordenado de Orbenine.
- Que linda estás hoje! - acrescentei, pegando-lhe
ao colo e beijando-a no pescoço. - Mas, que aconteceu?
Como tens passado?
- Oh, que feia é esta casa! - exclamou, abarcando
com o olhar todo o apartamento. - És rico, ganhas bem e
vives tão modestamente!...
- Minha querida, nem todos podem oferecer-se o
luxo do conde, mas ponhamos de parte a minha riqueza...
Que boa inspiração te trouxe ao meu tugúrio?...
120
- Põe-me no chão, Serioja. Estás a amarrotar o meu
vestido... Só posso ficar durante um minuto. Pretextei
que ia visitar a engomadeira do conde, que vive aqui
perto. Deixa-me, querido... Estava inquieta. Porque não
foste visitar-me?
Eu estava a contemplar a sua beleza. Durante alguns
instantes ficámos em silêncio, a olhar um para o outro.
- Que formosa és, Olga!. Fico triste por te ver tão
bela...
- E por quê?
- Porque é triste que tenhas caído em sorte àquele
demónio...
- Sou tua! Que mais queres? Ouve, Serioja, por favor
te peço que me digas a verdade...
- De que falas?
- Terias casado comigo?
Estive para dizer "Provavelmente, não..." mas para
quê alargar a chaga que torturava o coração de Olga?
- Claro que sim - respondi no tom mais sincero
possível.
Ela suspirou e baixou os olhos.
- Como me enganei! E agora já não tem remédio...
Não posso separar-me dele...
- Não, não podes.
- Porque me precipitei de tal forma? Não consigo
entender... Estava aturdida... Não passo de uma rapariga
estúpida e estouvada... Merecia que me castigassem por
isso... Mas pensar no passado não serve de nada!... Chorei
durante toda a noite, Serioja! Pensei até em fugir para
casa do meu pai. É melhor viver com um louco do que
com aquele... Como devo chamar-lhe?
- Sim, pensar no passado não serve de nada. Devias
ter reflectido quando regressaste comigo de Tenieievo e
te mostraste tão contente por ires casar com um homem
rico... Agora é tarde para recorrer à eloquência...
- Então, que assim seja! - exclamou Olga, com um
121
gesto decidido. - Se a situação não se agravar poderemos
continuar a viver desta forma... Adeus. Tenho de ir-me
embora...
- Não, ainda não...
Puxei-a para mim e cobri-a de beijos como para
recuperar aqueles três dias perdidos. Ela apertou-se
contra mim, como um cordeiro temeroso. Fez-se silêncio.
"O marido matou a mulher!", gritou o meu papagaio.
Olga estremeceu, afastou-se de mim e fitou-me
assustada.
- É o papagaio, querida - sosseguei-a. - Não te
assustes...
"O marido matou a mulher!", repetiu Ivan Demianitch.
Olga levantou-se, em silêncio, colocou o chapéu na
cabeça e estendeu-me a mão... No seu rosto havia uma
expressão de terror.
- Se Orbenine vier a saber, mata-me! - disse,
erguendo para mim os seus grandes olhos.
- Ora! - respondi-lhe com um sorriso. - Estou
aqui para impedir que ele faça tal coisa!... Além disso,
não acredito que seja capaz de praticar um acto tão
anormal como é um assassínio... Vais-te embora? Então,
adeus, minha querida, mas não te esqueças de que fico
à tua espera... Amanhã estarei no parque, junto da
casinha. Poderemos encontrar-nos ali.
Quando regressei ao meu gabinete, depois de
acompanhar Olga até à porta da entrada, deparou-se-me
Policarpe. Fitou-me com ar severo, meneando a
cabeça, com desprezo.
- Que isto não volte a acontecer, Sergei Petrovitch!
-- exclamou, como se fosse um pai austero. - Não me
agrada!
- O quê?
- Isto. Julga que não vi nada? Vi tudo. Que ela não
se atreva a voltar a esta casa! Não é local apropriado
122
para encontros furtivos. Bem bastam os mexericos que
já correm por aí...
Eu estava de excelente humor e, por isso, a
indignação e os modos autoritários de Policarpe não me
incomodaram. Com um sorriso mandei-o de volta para a
cozinha.
Ainda não tivera tempo para me recompor da recente
visita de Olga quando surgiu outro visitante. Ouvi o
ruído de uma carruagem e Policarpe, a cuspir com
desprezo e a resmungar toda a casta de blasfémias, veio
comunicar-me a chegada do "outro", aquele que ele tanto
detestava. Ao entrar, o conde fitou-me com ar lacrimoso
e meneou a cabeça.
- Vais virar-me as costas? Não queres falar comigo?
- Não te viro as costas.
- Tenho tão grande amizade por ti, Serioja, e, por
uma ninharia... Por que queres magoar-me?
O conde sentou-se e, com um suspiro, voltou a
menear a cabeça.
- Não te faças de parvo! - repliquei. - Basta!
A influência que eu exercia sobre aquele homem fraco
era igual ao desprezo que lhe votava. O meu tom
agressivo não o ofendeu. Quando disse "Basta!" pulou
de alegria e correu a abraçar-me.
- Veio comigo - explicou. - Ficou no carro. Queres
que ele venha pedir-te desculpas?
- Sabes o que ele fez?
- Não...
- Antes assim... Ele que se considere desculpado,
mas previne-o de que tomarei as minhas medidas, sem
mais considerações, se repetir a graça!
- Bom, estão feitas as pazes, não é assim, Serioja?
Ainda bem! É disso que precisamos e não de levar a vida
em quezílias, como duas crianças da escola... Ah, meu
caro, não tens, por acaso, um pouco de vodca? Sinto a
garganta seca...
123
Veio vodca. O conde bebeu dois cálices, acomodou-se
no sofá e começou a discursar.
-Acabo de encontrar-me com Olga - disse. - É
uma mulher magnífica. Aviso-te de que começo a detestar
Orbenine... Ou melhor, começo a gostar muito de Olga...
Na verdade, é uma rica mulher! Estou decidido a cortejá-la...
- Não devemos cortejar a mulher do próximo -
sentenciei.
- Ora! A mulher de um velho!... Cortejar a mulher
de Piotre Iegoritch não é nenhum pecado... Não é homem
para ela... Faz-me pensar num cão que não come nem
deixa os outros comer... Hoje mesmo vou partir ao ataque
e levá-lo-ei até ao fim. Que rapariga tão atraente! Hum...
e elegante, meu velho! Sinto crescer a água na boca...
Emborcou um terceiro cálice de vodca e prosseguiu:
- Sabes que outra moça me enche as medidas?
Nadenka, a filha daquele idiota do Kalinine... Uma
morena esplêndida, de pele leitosa e com uns olhos!...
Tenho também de lançar a rede para esse lado... No
Pentecostes vou organizar um serão músico-vocal-literário...
Já percebi que é a melhor maneira de nos
divertirmos, eu e tu, irmão... Aparece muita gente e todas
as mulheres bonitas das redondezas... Diz-me uma coisa:
permites que tire uma soneca, aqui, em tua casa?...
- Claro que sim, mas que pensas fazer do teu amigo
Pchekotski que está à espera no carro?
- Pois que espere! Diabos o carreguem! Eu também
não gosto dele, meu irmão!
Apoiou-se no cotovelo e articulou, com ar misterioso:
- Tenho-o comigo por necessidade, mas que vá para
o Inferno!...
Resvalou-lhe o cotovelo e deixou cair a cabeça sobre
a almofada. Um minuto mais tarde, já ressonava.
Ao anoitecer, depois de o conde ter partido, recebi
uma terceira visita: a do dr. Pavel Ivanovitch. Veio
124
informar-me que Nadejda Nicolaevna estava doente e,
também, que recusara, em definitivo, o seu pedido de
casamento. O pobre médico estava triste e mostrava-se
inconsolável.
125
15
Chegou ao fim o poético mês de Maio.
Os lilases e as túlipas perderam as flores e, com elas,
foram-se também os amores, com os seus transportes,
os seus tormentos e os doces momentos que nos
proporcionam e pelos quais daríamos meses e até anos
de vida.
Em certa tarde de Junho, depois de um pôr-do-sol,
cuja faixa de ouro e púrpura anunciava o dia seguinte,
límpido e temperado, montei Zorka e dirigi-me ao
pavilhão em que habitava Orbenine.
Naquela noite teria lugar, em casa do conde, um
serão musical. Os convidados já haviam começado a
afluir, mas o conde não regressara ainda do seu passeio
vespertino.
Volvidos alguns minutos, enquanto segurava as
rédeas de Zorka, encetei conversa, junto à porta, com
Sacha, a filha de Orbenine. Este último, sentado nos
degraus da escadaria, com a cabeça entre as mãos, olhava
para o horizonte, através do portão. Encontrava-se mal-humorado
e quase não respondeu às minhas perguntas.
Por isso, preferi deixá-lo em paz e interroguei Sacha.
- Onde está a tua nova mamã?
- Foi passear com o senhor conde. Vai todos os dias
passear com ele.
- Todos os dias! - resmungou Orbenine, com um
suspiro.
126
Aquele suspiro e o que ele dava a entender veio
confirmar tudo quanto me inquietava o espírito e que
em vão tentava explicar a mim próprio através das mais
diversas conjecturas.
Todos os dias Olenka saía a cavalo com o conde. Este
facto pouco significado tinha. Olga não podia amar o
conde e, por conseguinte, os ciúmes de Orbenine
careciam de qualquer razão de ser. Nem ele nem eu
podíamos ter ciúmes do conde, mas, sim, de qualquer
outra coisa que não conseguia detectar. Era como se entre
mim e Olga existisse um muro opaco. Ela continuava a
gostar de mim, mas desde a visita que me fez e que referi
no anterior capítulo, fora a minha casa apenas mais duas
vezes. Quando a encontrava, em outro lugar, sorria de
modo estranho e esquivava-se sempre ao que lhe
perguntava. Às minhas manifestações de afecto
correspondia com ardor, mas as suas respostas eram
sistematicamente tão lacónicas e tímidas que dos nossos
curtos encontros só me restava na memória uma dolorosa
perplexidade. Era manifesto que não tinha a consciência
tranquila, sem que fosse capaz de compreender por quê.
No seu rosto contraído não era possível decifrar aquele
mistério.
- Espero que a tua nova mamã esteja bem - disse
eu a Sacha.
- Sim, mas na noite passada teve dor de dentes.
Esteve a chorar.
- Esteve a chorar? - perguntou Orbenine, fitando
a filha. - Onde foste buscar semelhante coisa? Deves
ter sonhado, com certeza, minha filha.
Olga não sofria dos dentes. Se tinha chorado, fora
por outro motivo. Procurei continuar a falar com a
menina, mas nesse instante ouviu-se o galopar de cavalos
e, logo a seguir, apareceu um cavaleiro, que saltou da
sela, sem elegância, para ajudar a desmontar a graciosa
amazona que vinha a seu lado.
127
Para esconder de Olga a alegria que eu sentia por
voltar a vê-la, ergui Sacha nos meus braços e beijei-lhe
os cabelos louros.
- Que bela estás, Sacha! Que lindos caracóis!
Olga lançou-me um olhar fugidio, respondeu
silenciosamente à minha saudação e, apoiada no braço
do conde, entrou no pavilhão. Orbenine levantou-se e
: seguiu atrás dela.
Cinco minutos depois o conde voltou a sair, alegre
como nunca. Até o rosto parecia ter rejuvenescido.
- Felicita-me! - exclamou, pegando no meu braço
e rindo como um tonto.
- Porquê?
- Por uma vitória... Outro passeio como o de hoje e
juro-te, pelas cinzas dos meus antepassados, que
arrancarei as pétalas daquela flor...
- Não o conseguiste ainda?
- Pouco faltou... Durante alguns minutos -
cantarolou - "tive as suas mãos nas minhas", sem que
ela as retirasse... Já a beijei muitas vezes! Espero que
amanhã... Mas apressemo-nos. Estou atrasado. Ah!, a
propósito... tenho de falar-te de uma coisa, meu velho.
Conta-me a verdade. Corre por aí que tinhas más
intenções em relação a Nadenka Kalinine...
- Porquê?
- Se for verdade, não sou eu quem vai interferir.
Não está nos meus princípios pregar sermões de moral...
Se não for, então...
- Não é verdade.
- Obrigado, meu caro.
O conde julgava ser capaz de matar dois coelhos de
uma só cajadada. Nessa mesma noite pude aperceber-me
dessa caçada, tão ridícula que mais parecia uma
caricatura. Quando soube dos pormenores do seu plano,
fiquei sem saber se devia desatar a rir às gargalhadas
ou revoltar-me perante a vulgaridade do conde. Quem
128
poderia prever que aquela caçada pueril iria terminar
em horror e crime, provocando o desabar moral de uns e
a perda de outros?
O conde fez algo mais do que matar dois coelhos
matou-os, é certo, mas não conseguiu ficar-lhes nem com
a carne nem com as peles.
Vi-o, às escondidas, a apertar a mão de Olga, que
acolheu aquele gesto com um sorriso, sem contudo evitar
um trejeito de desprezo. Em certa ocasião, para mostrar
que entre mim e ele não havia segredos, chegou mesmo
a beijar-lhe a mão, à minha frente.
- Que grosseria! - disse-me Olenka ao ouvido,
enquanto limpava a mão.
- Ouve, Olga - confidenciei-lhe logo que o conde
se afastou -, parece-me que queres dizer-me qualquer
coisa, não é assim?
Perscrutei-lhe o rosto. Corou e pestanejou timidamente,
como uma gatinha surpreendida a roubar algo.
- Olga! - exclamei, em tom severo. - Exijo uma
explicação.
- É verdade - balbuciou ela, pegando na minha
mão. - Tenho uma coisa a dizer-te. Amo-te e não posso
viver sem ti, mas... não voltes a procurar-me, querido.
Esquece o teu amor por mim e não me trates por tu. Não
posso continuar assim. É impossível! Nem sequer me
dês mostras do teu afecto...
- Mas... porquê?
- Faz o que te digo. Não precisas de conhecer o
motivo. Não to direi. Vem aí gente... Afasta-te!
Não obedeci e foi ela quem teve de se afastar. Dando
o braço ao marido, que se aproximava, esboçou um gesto
com a cabeça, lançou-me um sorriso hipócrita e foi-se
embora.
O segundo coelho do conde, Nadenka Kalinine, foi
alvo das atenções do dono da casa durante todo o serão.
Rondou sempre à sua volta, contou-lhe muitas anedotas,
9 - Vampiro 684
129
procurou agradar-lhe e demonstrar os seus dotes de
espírito. Ela, plácida e fatigada, torcia a boca em sorrisos
forçados.
O juiz observava-os, sem cessar, cofiando a barba e
tossindo de modo significativo. Agradava-lhe ver a corte
que o conde fazia à filha. Tê-lo por genro! Que idéia tão
jubilosa para o maior bon vivant do distrito. Desde que
haviam começado os galanteios do conde, Karnieiev tinha
subido na consideração do pai de Nadenka. Com que
olhar altivo me mirava da cabeça aos pés! Tossia
maliciosamente, parecendo dizer-me: "Fizeste-te difícil
e partiste, mas ainda bem porque assim podemos caçar
um conde!"
No dia seguinte voltei a casa de Karnieiev. Dessa
vez não falei com Sacha mas, sim, com o seu irmão. O
rapaz levou-me ao jardim e, aí, confiou-me as suas
queixas. As queixas tinham a ver com a sua "nova
mamã".
- O senhor é amigo dela - disse, enquanto
desabotoava nervosamente o uniforme de estudante -,
vai certamente contar-lhe tudo o que eu disser, mas não
me importo. Conte-lhe o que quiser! É uma mulher má e
ordinária.
Confidenciou que Olga lhe usurpara o quarto,
despedira a velha criada e que armava escarcéu e gritava
a cada momento.
- Ontem, o senhor elogiou os caracóis da Sacha...
Eram muito bonitos, não eram? Pois bem, hoje ela cortou-lhos...
"Por ciúmes", pensei eu.
- Como se tivesse inveja do que o senhor disse à
minha irmã - continuou o rapaz. - Também leva a
vida a atormentar o meu pai. O papá gasta muito
dinheiro com ela e já perdeu o gosto pelo trabalho...
E agora voltou a beber... imagine! Ela é muito estranha...
Chora todo o dia e queixa-se de ser obrigada a viver
130
modestamente e numa casa tão pequena... Como se o
papá tivesse culpa de ser pobre!
O adolescente relatou-me muitos episódios confrangedores.
Vira o que o pai, cego pelo amor, não soubera
ou não quisera ver. O pai, a irmã e a velha criada haviam
sido ofendidos, e ele próprio ficara sem o recanto em
que, com tanta devoção, guardava os seus livros e os
pintassilgos que apanhava no campo. E tudo fora
perpetrado por aquela mandona estúpida. O pobre
pequeno, contudo, não podia imaginar sequer a tremenda
ofensa que a madrasta ia fazer-lhe, a ele e à sua família,
naquela mesma noite, ofensa essa de que fui testemunha.
Em comparação com ela, o corte dos caracóis de Sacha
não passava de uma bagatela.
131
16
A noite ia avançada e eu estava ainda em casa do
conde. Como de costume, bebia-se. Ele estava já
completamente embriagado e eu um pouco tonto.
- Hoje, consentiu que a abraçasse pela cintura -
adiantou o conde. -Amanhã espero ir mais longe...
- E quanto a Nadia, em que ponto vais?
- Nada mal. Estamos ainda no princípio, no período
dos olhares cúmplices. Gosto de ler nos seus olhos negros
e tristes. O que neles leio não pode ser expresso por
palavras só a alma pode entendê-lo. Então, não bebes?
- E ela aprecia essa tua incómoda leitura? Deves
agradar-lhe, se tem a paciência de te aturar horas a fio.
E, ao pai dela, também agradas?
- O pai? Não me fales desse idiota! Ah, ah! Julga
que as minhas intenções são honestas!
O conde tossiu e bebeu mais um gole.
- Ele acredita que vou casar-me com a filha! Em
primeiro lugar não posso casar-me e, depois, é mais
honesto da minha parte seduzir a rapariga do que casar-me
com ela... Já imaginaste o que seria ter de passar o
resto da vida ligada a um homem envelhecido, ébrio e
sempre a tossir?... Qual! Fugiria de casa no segundo dia
depois da boda... Mas que barulho é este?
Levantámo-nos ao ouvir o estrépito de portas que se
abriam e fechavam com violência. Olga entrou precipi-
132
tadamente na sala em que nos encontrávamos. Vinha
muito branca e tremia como um vime. Tinha os cabelos
em desalinho e os olhos esgazeados. Com respiração
ofegante, segurava sobre o peito as pregas do roupão.
- Que tens Olga? - perguntei, pegando-lhe na mão.
Empalideceu. O facto de a tratar por tu podia ter
surpreendido o conde se este se houvesse apercebido do
que eu dissera. Karnieiev, de boca aberta e com os olhos
escancarados, fitava Olga como se esta fosse um
fantasma.
- Que aconteceu? - insisti.
- Bateu-me! - exclamou, a soluçar e deixando-se
cair numa poltrona. - Bateu-me!
- Mas quem?
- O meu marido! Não consigo viver mais com ele!
- Isso é inadmissível! - berrou o conde, batendo
com o punho na mesa. - Com que direito fez ele uma
coisa dessas? É uma autêntica tirania! É... é... nem sei o
que dizer! Bater numa mulher! E porquê?
- Sem qualquer razão - afirmou Olga, a enxugar
as lágrimas. - Quando tirei o lenço, a carta que ontem
me escreveu caiu no chão... Ele apanhou-a, leu-a e
começou a espancar-me... Agarrou-me o braço e apertou-o.
Veja, ainda tenho as marcas. Depois, sacudiu-me e
exigiu explicações. Em vez de lhas dar, fugi para aqui...
Por favor, defenda-me! Ele não tem o direito de tratar
assim a mulher! Não sou criada dele! Sou de boa família...
O conde começou a andar de um lado para o outro
balbuciando, em voz pastosa, não sei que absurdos, os
quais, traduzidos em linguagem normal, decerto se
referiam à situação das mulheres na Rússia actual.
- É uma barbaridade! Não estamos na Nova
Zelândia... Mas esse mujique pensa que, quando morrer,
a sua mulher será enforcada, como acontece por lá? Só
os selvagens acreditam que, ao morrerem, as mulheres
devem ir com eles!
133
Eu estava estupefacto. Que significava aquela
intempestiva visita de Olga, em roupão? Que pensar
daquilo? E que decisão devia tomar?
Se lhe haviam batido porque não procurara refúgio
na esquadra, na casa do pai ou na minha? Mas seria
verdade que a haviam espancado? O coração dizia-me
que Orbenine, o ingénuo Orbenine, estava inocente.
Pressentindo a verdade, fui assaltado pela angústia que
devia ter sentido o marido de Olga. Sem lhe perguntar
fosse o que fosse, procurei acalmá-la servindo-lhe um
copo de vinho.
- Como me enganei! - suspirava ela, levando o
copo aos lábios. - Como parecia bondoso quando me
cortejava! Dir-se-ia um anjo...
- E essa carta que deixou cair? Queria que ele
ficasse muito contente ao lê-la?
- Não falemos disso! - interrompeu o conde. - De
qualquer maneira, o seu procedimento é infame. Não se
trata assim uma mulher! Vou desafiá-lo para um duelo!
Olga Nicolaevna, posso garantir-lhe que isto não vai ficar
assim!
Como um peru ainda jovem, o conde ergueu-se nos
calcanhares, embora soubesse muito bem que nada lhe
dava o direito de se intrometer nas questões entre marido
e mulher. Não o contradisse por saber que a sua
intervenção se limitaria àquelas bazófias, proferidas
entre as quatro paredes da sala, e que, no dia seguinte,
já não pensaria sequer em duelos. Mas por que razão
permanecia Olga em silêncio? Não podia acreditar que
aquela gatinha bonita, mas astuciosa, tivesse tão pouca
dignidade que aceitasse a arbitragem do conde nos seus
litígios conjugais.
- Vou exigir explicações a esse cavalheiro de fresca
data! - vociferou o conde. - Hei-de esbofeteá-lo!
Amanhã vai ver quem sou!
E Olga persistia em não calar aquele miserável que
134
ultrajava um homem cuja única culpa era a de se ter
enganado e de ser enganado. Pelo simples facto de
Orbenine lhe ter apertado o braço, havia armado aquele
escarcéu e, agora, sem pestanejar, consentia que um
imbecil bêbado, à sua frente, insultasse um homem
honesto e atirasse lama sobre alguém que, naquele
momento, se consumia, certamente triste, por se ver
enganado.
Enquanto o conde debitava os seus disparates e Olga
enxugava as lágrimas, um criado veio servir perdizes
assadas. O conde colocou meia perdiz no prato de Olga e
esta, depois de baixar a cabeça, pegou maquinalmente
no garfo e na faca e começou a comer. À perdiz seguiu-se
um copo de Bordéus e, num ápice, foram-se os últimos
vestígios de lágrimas apenas restaram duas pequenas
rosáceas perto dos olhos e um ou outro suspiro mais
profundo.
Pouco depois desatou a rir. Ria-se como uma criança
a quem acabam de consolar, e o conde, depois de a fitar,
riu-se também.
- Sabe o que acaba de me vir à cabeça? - perguntou,
sentando-se junto dela. - Vou organizar uma récita.
Encenaremos uma peça com protagonistas femininos.
Que lhe parece?
Começaram a falar do projecto e, em breve, Olga
esqueceu-se por completo de que minutos antes havia
entrado naquela sala, pálida, desgrenhada e lavada em
lágrimas! Como tinham sido superficiais o seu choro e o
seu alarme!
O tempo foi passando e o relógio assinalou a meia-noite,
hora a que qualquer mulher séria já deve estar
deitada. No entanto, ela continuava ainda ali sentada,
a conversar com o conde.
- Chegou a altura de ir dormir - disse eu, olhando
para o relógio. - Permite-me que a acompanhe, Olga
Nicolaevna?
135
Fitou-me durante um instante e, depois, virou a cara
na direcção do conde.
- Para onde hei-de ir? - murmurou. - Não posso
voltar para casa dele.
- Claro que não - apressou-se a dizer o conde. -
Quem nos garante que ele não volta a bater-lhe?
Fez-se silêncio. Eu ia e vinha na sala, enquanto o
meu amigo e a minha amante me observavam. Por fim,
julguei compreender a impaciência que havia nos seus
olhares e sentei-me no sofá.
- Valha-me Deus! - murmurou o conde. Esfregava
nervosamente as mãos. - Que grande complicação.
O relógio assinalou a uma e meia. O conde olhou
para os ponteiros, ergueu as sobrancelhas e, tal como eu
fizera antes, começou a passear de um lado para o outro.
Era visível que queria dizer-me algo de desagradável
mas que para ele era de suma importância.
- Ouve, Serioja - acabou por adiantar, sentando-se
a meu lado e baixando a voz. - Não fiques aborrecido,
meu caro... Estou certo de que compreenderás a minha
situação e o pedido que vou fazer-te. Decerto não será
nem ofensivo nem inesperado para ti...
- Fala. Que queres dizer-me? Não é altura para
gaguejares...
- O certo é que... Compreendes... Faz-me o favor de
partir... A tua presença incomoda-me. Ela vai ficar aqui
comigo. Desculpa por te mandar embora, mas deves
perceber a minha impaciência...
- Muito bem.
O conde estava repugnante. Se não me sentisse tão
enojado talvez o tivesse esmagado como quem esmaga
um insecto repelente, quando ele, muito trémulo, me
suplicava que o deixasse a sós com a esposa de Orbenine.
Aquele animal doente, fraco e enfrascado em álcool,
queria que o deixassem livre para fazer o que lhe
apetecesse com aquela que fora a poética "rapariga de
136
vermelho", criada na floresta, junto do lago, e que
sonhava com uma morte romântica.
Aproximei-me dela.
:, - Vou-me embora - anunciei-lhe.
Ela assentiu com a cabeça.
- Devo ir? - perguntei-lhe, procurando ler-lhe os
sentimentos no rosto belo e corado.
Com um ligeiro movimento das grandes pestanas
escuras voltou a responder pela afirmativa.
- Reflectiste bem?
Voltou a cabeça, como faria se o vento a importunasse.
Não disse palavra. E, em verdade, para quê? Era-lhe
difícil responder e nem a hora nem o local se
prestavam a grandes discursos.
Peguei no chapéu e saí da sala, sem me despedir.
Mais tarde, Olga contou-me que mal me afastei, logo
que o ruído dos meus passos se confundiu com o do vento,
o conde, perdido de bêbado, a apertou nos braços. E ela,
fechando os olhos e crispando a boca e as narinas, teve
dificuldade em manter-se de pé, tamanha era a sua
repugnância. Em dado momento conseguiu soltar-se dos
seus abraços e correr em direcção ao lago. Arrependeu-se,
arrepelou os cabelos e chorou. Vender-se, por vezes,
é penoso.
I
137
. 17
A caminho da cocheira detive-me em frente da casa
de Orbenine. Olhei pela janela. Junto da mesa, sobre a
qual havia um candeeiro mal regulado, que dava luz
fraca e expelia fumo, achava-se Piotre Iegoritch sentado
com a cabeça entre as mãos. O seu vulto, desajeitado e
corpulento, transmitia uma tal tristeza e um tão
profundo desalento que não era preciso ver-lhe o rosto
para compreender o seu estado de espírito. A sua frente
viam-se duas garrafas de vodca, uma vazia e a outra já
encetada. O desventurado procurava encontrar no álcool
a paz que não existia na sua mente.
Cinco minutos depois, montado em Zorka, encaminhei-me
para casa. A escuridão era absoluta e o lago
ondulava furiosamente. Parecia que um monstro
invisível se agitava sob as águas, envolto nas trevas.
Fiz parar Zorka, fechei os olhos e tentei raciocinar.
E se voltasse para trás e desse cabo daqueles dois? Uma
cólera terrível apossou-se da minha alma. Os últimos
vestígios de bondade e de decência que ainda me
restavam, no meio da depravação em que vivera, tudo
quanto ainda prezava e de que me orgulhava, tudo isso
fora pisado e enterrado na lama.
Havia conhecido e comprado muitas mulheres, mas
nenhuma delas tinha o rubor da inocência nem os olhos
azuis sinceros que vira naquela manhã de Maio, quando
atravessava o bosque a caminho da feira de Tanieievo...
138
Sendo, eu próprio, um depravado, não sentia qualquer
dificuldade em perdoar todos os vícios ou em aceitar
todas as fraquezas. Sabia bem que não podia pedir ao
lodo que não fosse lodo, nem era lícito culpar uma moeda
de ouro por cair dentro dele. O que ignorava era que o
ouro pudesse dissolver-se no lodo, mesclando-se com ele.
Uma rajada de vento mais forte arrancou-me o
chapéu e fê-lo desaparecer nas trevas. O chapéu, ao voar,
bateu na cabeça de Zorka e a égua empinou-se e, em
seguida, pôs-se a galopar pelo caminho que lhe era
familiar.
Quando cheguei a casa corri para o meu quarto. Sem
razão alguma, insultei Policarpe, que se oferecera para
me ajudar a despir. E, sem esperar que ele saísse, atirei-me
sobre a cama, a chorar como uma criança. Os meus
nervos exaltados não aguentavam mais. A cólera
impotente, o ressentimento por ter sido ultrajado, os
ciúmes, tudo isso encontrou escape nos meus amargos
soluços.
O papagaio eriçou as penas e gritou:
- O marido matou a mulher!
Aquele grito levou-me a pensar que Orbenine era
capaz de matar a esposa. Depois de adormecer tive um
pesadelo sufocante. Sonhei que as minhas mãos
tacteavam um corpo frio e que Orbenine se achava à
cabeceira da cama, fitando-me com olhos suplicantes.
Ao amanhecer recuperei a calma. Decidi permanecer
em casa e, daí em diante, só saí quando a isso me
obrigavam as minhas funções de juiz. Tinha muitos
processos a examinar e por isso não cheguei a aborrecer-me.
Passei os dias no meu gabinete a interrogar quantos
haviam caído sob a alçada da Justiça.
Não experimentei o mínimo desejo de visitar o conde.
Quanto a Olga, considerava-a irremediavelmente
perdida para mim. Tudo aquilo que cai de um carro, já
não se aproveita. Era pelo menos o que então pensava.
139
m
Por isso, esforcei-me por esquecê-la.
No entanto, de tempos a tempos, vinha-me à
memória um ou outro episódio da nossa breve relação.
Lembrava-me da casita do bosque onde vivera a rapariga
de vermelho, bem como do nosso encontro na gruta, e o
meu coração começava a bater com mais força. Porém
tudo isso pouco durava as boas recordações cedo se
apagavam sob o peso das reminiscências desagradáveis.
O conde tornara-se, a meus olhos e definitivamente,
um ser odioso e resolvi cortar relações com ele, sem que
tal atitude me afligisse minimamente. Fechado em casa,
começava a aborrecer-me. Escrevi ao médico por duas
vezes, convidando-o a vir visitar-me, mas não obtive
qualquer resposta da sua parte. Era manifesto que
estava zangado comigo.
Na terceira semana da minha obstinada clausura, o
conde veio a minha casa. Depois de me censurar, por
não ter respondido às suas cartas, estendeu-se no sofá
e, antes de começar a ressonar, abordou o seu tema
favorito: mulheres.
- Compreendo o que sentes - declarou em voz
lânguida, colocando as mãos sob o queixo. - És delicado
e escrupuloso e não vais a minha casa para não
interromper o nosso duo... Uma visita inoportuna é pior
do que uma invasão de tártaros e, durante uma lua-de-mel,
qualquer intruso é pior do que o próprio Lúcifer...
É verdade! Mas esqueces-te de que és amigo de ambos e
que nós dois te queremos muito. A tua presença tornaria
mais perfeita a nossa harmonia... Ah! Que harmonia,
meu querido amigo!... Perfeitamente indescritível!...
O conde agitou uma das mãos e continuou:
- Não consigo saber se me dou bem ou mal com
ela... Nem o próprio Diabo seria capaz de o fazer... Houve
momentos em que daria a metade da minha vida para
estar junto dela e outros em que gostaria que Olga
estivesse a quilómetros de distância.
140
- Porquê?
- Esta Olga, meu fraterno amigo, é totalmente
incompreensível. Não é uma mulher, é um torvelinho,
todo cheio de contrastes... Às vezes, está alegre, outras
sente-se tão triste que se põe a chorar ou começa a rezar...
Umas vezes gosta de mim e outras não... Tem momentos
em que se mostra carinhosa e me trata como nenhuma
outra mulher jamais o fez e outros em que, quando a
olho, vejo a meu lado um rosto selvagem, medonho,
congestionado pela cólera e pela repulsa... Quando está
assim, todo o seu encanto desaparece... E isso acontece
com muita frequência...
- Com repulsa?
- Sim, e não consigo compreender porquê... Disse-me
que fora viver comigo por amor e, apesar disso, não
se passa uma noite em que demonstre essa repulsa...
Como explicar tal coisa? Sou levado a acreditar, sem o
querer, que não consegue suportar-me e que se entregou
a mim só em troca dos trapos que lhe ofereço... Por
trapos! É capaz de ficar diante do espelho de manhã à
noite, a mirar-se com um vestido novo! É de uma vaidade
incrível! O que mais lhe agrada em mim é o meu título
de nobreza... Se não tivesse esse título não me quereria.
Não há almoço nem jantar em que não me deite à cara,
banhada em lágrimas, o facto de não ter a casa cheia de
gente da aristocracia... Anseia por brilhar na sociedade...
É muito, muito estranha...
O conde ergueu os olhos perturbados para o tecto e
calou-se, pensativo. Com grande assombro verifiquei que,
ao contrário do que era habitual, não estava embriagado.
Tal surpresa chocou-me e chegou mesmo a comover-me.
- Hoje não pediste vodca. Que quer isso dizer?
- Nada... Não tenho tempo nem para beber... Estava
a pensar... Devo dizer-te, Serioja, que estou bastante
entusiasmado com Olga. Gosto muito dela. E compreende-se!
É uma mulher rara, surpreendente, mesmo sem
141
falar do seu físico e da sua beleza... Não é muito culta
nem inteligente, mas que emoção!... Que elegância!...
Que frescura!... Não se compara às Amélias, Angélicas e
Gruchas que conheci ao longo da vida... Pertence a um
mundo, que até agora, eu ignorava...
- Continua - pedi-lhe, rindo-me. - Filosofa mais
um pouco...
- Estava convencido de que a amava de verdade,
mas agora tenho a impressão de que tentei elevar um
zero ao quadrado. Fui iludido pelas aparências. O rubor
da sua inocência não passava de carmim e os seus beijos
de amor não foram mais do que um expediente para me
pedir outro vestido... Recebi-a em casa como se fosse
minha mulher, mas o certo é que se comporta como uma
amante venal e interesseira. Acabei por me fartar dela...
Desvanecida a primeira surpresa, começo a entendê-la,
a vê-la tal como verdadeiramente é... Basta!...
- E o marido? Que faz ele?
- Hum... que queres tu que ele faça?
- É difícil imaginar um marido mais desventurado.
- Ah!, acreditas nisso? Estás muito enganado!...
É um bandido por quem não sinto a mínima compaixão.
E um bandido nunca é desventurado arranja sempre
maneira de sair a ganhar...
- Porque dizes isso?
- Porque não passa de um gatuno! Sabes quanto o
estimava e confiava nele, considerando-o meu amigo...
Eu, tu e toda a gente tínhamo-lo na conta de um homem
honesto, um homem de princípios, incapaz de praticar
aldrabices... Mas a verdade é que me rouba! Aproveitando-se
da situação, dispõe a seu bel-prazer daquilo que
me pertence. Só não se apropria dos bens imóveis porque
não pode levá-los consigo...
Como conhecia a honestidade de Orbenine, ao
escutar estas palavras, levantei-me e aproximei-me do
conde.
142
- Apanhaste-o em flagrante? - perguntei.
- Não, mas conheço, de fonte segura, o procedimento
daquele patife.
- De que fonte? Posso saber?
- Fica sossegado. Não acusaria levianamente fosse
quem fosse. Olga contou-me tudo. Mesmo antes de se
casar com ele viu-o, com os seus próprios olhos, encher o
carro com galinhas e patos para os vender na cidade. As
galinhas e os patos eram vendidos por um correspondente.
Também o via vender farinha, milho e banha...
Talvez sejam bagatelas, mas eram coisas que me
pertenciam e de que ele se aproveitou. Não é pelo valor,
mas sim pelo princípio. Além disso, Olga viu num
armário, em casa do marido, vários maços de notas.
Quando lhe perguntou de onde viera aquele dinheiro,
ele pediu-lhe que não relatasse a ninguém o que havia
visto. Sabes bem que ele é pobre e que o ordenado que
lhe pago mal deve chegar para se sustentar... Sendo
assim, explica-me, se puderes fazê-lo, onde foi ele buscar
aquele dinheiro.
- És um cretino! - exclamei, exaltado. - Como é
possível que dês crédito ao que te conta aquela víbora?
Não lhe basta ter fugido do marido, tê-lo atraiçoado e
desonrado aos olhos de todos. Quer ainda dar-lhe cabo
da reputação! É inacreditável como dentro daquela
cabeça pode haver tanta maldade, tanta perfídia.
Galinhas e patos, milho e farinha... E dizes tu que és
um proprietário!... A tua ignorância de economia política,
a tua estupidez em matéria de agricultura ficam
sobressaltadas por ter oferecido, ou até vendido, animais
já mortos que, de outro modo, seriam devorados pelas
raposas e pelos lobos. Alguma vez contabilizaste os
milhares, as dezenas de milhares de rublos que ele te
entrega? Claro que não! Mas de que me serve falar-te
destas coisas? Não passas de um imbecil! Agradava-te
mandar prender o marido da tua amante, mas não sabes
143
como fazê-lo!...
- A minha relação com Olga nada tem a ver com
este caso. Seja ou não seu marido, uma vez que me
roubou tenho todo o direito de lhe chamar "ladrão"! Mas
deixemos isso. Diz-me: achas decente que receba o
ordenado e passe os dias deitado, completamente bêbado?
Embriaga-se todos os dias. Não se passa nenhum que
não o veja a cambalear, mal se tendo nas pernas. É
ignóbil! As pessoas decentes não procedem desse modo.
- Pois é mesmo por ele ser decente que se embriaga.
- Tens a mania de assumir a defesa de gente reles!
Tomei a decisão de não estar mais com meias medidas.
Hoje fiz-lhe as contas e mandei entregar-lhe o que lhe
era devido, informando-o de que estava despedido.
A paciência tem limites e a minha chegou ao fim.
Era inútil procurar fazer ver ao conde a estupidez
que cometera. A defesa de Orbenine tinha de ser
apresentada perante outras entidades.
Cinco dias depois ouvi dizer que Orbenine e os filhos
tinham ido viver para a cidade. Contaram-me que o
administrador, à partida, se encontrava completamente
embriagado, meio morto, e que por duas vezes caiu do
carro. Sacha e o irmão choraram durante todo o trajecto.
Passados outros cinco dias após a partida de
Orbenine, embora contrariado, vi-me compelido a ir a
casa do conde. Por meio de arrombamento, os ladrões
haviam entrado numa das suas cocheiras e roubado
alguns arreios de elevado valor. Fui avisado, como juiz
e, volens nolens, tive de ir examinar o local do crime.
Encontrei o conde bêbado e preocupado. Percorria as
salas, procurando fugir aos aborrecimentos que o
consumiam.
- Não tenho descanso com esta Olga! - disse-me,
com um gesto de desânimo. - Hoje, discutiu comigo,
enfureceu-se e ameaçou atirar-se ao lago. Saiu de casa e
ainda não voltou. Sei bem que não é capaz de se matar
144
mas é sempre desagradável. Ontem esteve de mau
humor durante todo o dia e fartou-se de partir louça.
Anteontem empanturrou-se com chocolates. Que raio de
feitio!
Consolei o conde como pude e jantei com ele.
- Não! Já não aguento mais! - protestava,
enquanto comia. - É tempo de acabar com estas
criancices. Devo confessar que estes seus bruscos saltos
de humor começam a enfastiar-me. Preciso de uma
mulher mais doce, mais constante, mais modesta... Tal
como Nadenka Kalinine, admirável rapariga!
Depois do jantar, quando passeava pelo jardim, dei
de caras com a "suicida". Ao ver-me ficou muito corada e
- estranha criatura - desatou a rir. A vergonha e a
alegria misturavam-se no seu rosto. Depois de me olhar
de soslaio, correu para mim e pôs os braços à volta do
meu pescoço.
- Amo-te! - balbuciou, apertando-se contra mim.
- Tive tantas saudades tuas que, se não tivesses vindo,
ter-me-ia matado!
Beijei-a e, sem proferir palavra, conduzi-a até um
bosque próximo. Quando a deixei, dez minutos depois,
tirei da carteira uma nota de vinte e cinco rublos e
entreguei-lha.
- Para que é isto? - perguntou, abrindo muito os
olhos.
- Para te pagar.
Não percebeu e continuou a olhar para mim, atónita.
- Há mulheres que fornecem amor em troca de
dinheiro - comentei. - São mulheres que se vendem.
Há que pagar-lhes pelo que fazem. Toma! Se cobras
dinheiro aos outros porque não hás-de fazer o mesmo
comigo? Não quero ficar a dever-te nada.
O meu cinismo foi inútil porque Olga não compreendeu
o significado do meu gesto. Não conhecia ainda a
vida e ignorava o nome dado às mulheres que se vendem.
10 - Vampiro 684
145
18
Era um deslumbrante dia de Agosto. O sol queimava,
como em pleno Verão e o céu, de um azul suave, atraía a
vista apesar disso, contudo, já havia no ar um prenúncio
de Outono. Algumas folhas mortas douravam a folhagem
verde dos bosques e os campos, enegrecidos, pareciam
sedentos de chuva. Também dentro de cada um de nós
se instalara o pressentimento do pesado e inevitável
Outono. Estava iminente uma descarga, uma tormenta,
necessária para refrescar a atmosfera sufocante.
Num carro descoberto, sentada a meu lado, seguia
Nadenka, a filha do juiz. Pálida, os lábios e os queixos
tremiam-lhe como se estivesse prestes a chorar. A tristeza
ensombrava-lhe os olhos profundos, embora não parasse
de rir e aparentar alegria.
Veículos de todas as espécies, épocas e tamanhos
circulavam à nossa volta, de mistura com cavaleiros e
amazonas. Com um fato de caça, verde, mais próprio de
um actor do que de um caçador, o conde Karnieiev,
inclinado sobre a garupa, saltava implacavelmente a
cada passo do seu cavalo baio. A julgar pelo corpo
retorcido e pela expressão de dor que a cada instante o
seu rosto reflectia, dir-se-ia que montava pela primeira
vez. A tiracolo trazia uma espingarda de dois canos, e à
cintura uma sacola em que agonizava uma galinhola
ferida.
146
A figura mais em destaque daquela cavalgada era
Olenka Orbenine, num cavalo preto que o conde lhe
oferecera vestida de amazona e com uma pluma branca
no chapéu, já não fazia lembrar, em nada, a rapariga de
vermelho que eu encontrara meses antes no bosque. Nos
seus gestos, no mais leve sorriso, notava-se algo de
provocante, de incendiário. Erguia a cabeça com elegante
fatuidade e, de cima do seu cavalo, distribuía olhares
desdenhosos, como para demonstrar o seu desprezo pelos
comentários e censuras que, a seu respeito, teciam em
voz alta as damas virtuosas da nossa sociedade.
Desafiava-as aproveitando-se, com insolência, do seu
relacionamento com o conde, como se ignorasse que
Karnieiev já estava farto dela e ansiava por desembaraçar-se
da amante.
- O conde quer acabar com a nossa relação - disse-me
ela, com um riso sonoro, quando a cavalgada se pôs
em marcha.
Por consequência, conhecia a situação. Sendo assim,
como explicar aquele riso despropositado? Ficara a olhar
para ela, perguntando a mim próprio onde ia buscar
tanta audácia aquela burguesa rural. Como aprendera
ela a sentar-se na sela com tamanha graciosidade, a olhar
todos com tão patente altivez, a fazer gestos tão elegantes
e tão imperiosos?
- A mulher perversa parece-se com o porco -
dissera-me o dr. Voznessenski. - Se lhe damos um pouco
de confiança, põe-nos logo em cima o focinho e as patas.
Essa explicação, contudo, era demasiado simplista.
Não obstante o meu afecto por Olga, ninguém melhor
do que eu para lhe atirar a primeira pedra. No entanto,
a voz confusa da verdade segredava-me que aquilo que
eu via com os meus olhos não era nem a altivez nem o
orgulho de uma mulher satisfeita e triunfante era, isso
sim, o pressentimento desesperado de um desenlace
inevitável e próximo.
147
19
A caçada, iniciada de manhã, fracassou e regressámos
a casa. Não vimos qualquer peça de caça. Junto
ao lago, que julgámos ser o melhor lugar, encontrámos
outro grupo de caçadores. Informaram-nos de que a caça
se havia espantado. Apenas conseguimos abater três
galinholas e um pato ainda novo - e éramos dez
caçadores. Por fim, uma das amazonas foi acometida por
dor de dentes e decidimos voltar para trás. Galopávamos
através dos campos por um bonito caminho na orla do
bosque, junto do qual amareleciam medas de centeio
recém-ceifado... No horizonte alvejavam a capela e a casa
do conde. À direita estendia-se a superfície espelhada
do lago, e à esquerda ficava a mancha escura do "Túmulo
de pedra".
- Que horrível mulher! - murmurava Nadenka de
cada vez que Olga passava pelo nosso carro - É horrível
pensar que possa ser tão bonita como má. Há quanto
tempo foi padrinho dela? Ainda não teve tempo de gastar
a sola dos sapatos e já se enfeita com sedas e diamantes
que não lhe pertencem... É incrível como sofreu tão
brusca metamorfose! Ao menos podia ter deixado
decorrer um ano ou dois antes de exibir os seus
instintos...
- É a sua ânsia de viver! - suspirei. - Não pode
esperar...
- E o marido? Que é feito dele?
148
- Disseram-me que leva a vida a beber.
- Parece que sim... Anteontem, o meu pai viu-o na
cidade. Passou por ele num carro, de cabeça pendente e
com a cara suja de lama... É um homem perdido, numa
miséria extrema, sem dinheiro para comer ou para pagar
a renda... A pobre Sacha passa dias inteiros sem ter nada
que levar à boca. O papá contou tudo isso ao conde, mas
já sabe como ele é... Embora seja bondoso e honesto não
gosta que o incomodem com os problemas alheios.
Respondeu que ia mandar-lhe cem rublos... Com efeito,
já lhos mandou... Creio que nada podia humilhar mais o
infeliz Orbenine do que essa esmola. Sentiu-se ultrajado
e passou a beber ainda mais...
- O conde é um imbecil - comentei. - Podia ter-lhe
mandado esse dinheiro em meu nome, como se fosse
uma oferta da minha parte.
- Não tinha o direito de mandar-lhe dinheiro, fosse
de que maneira fosse. Quem estrangula e odeia outra
pessoa não tem o direito de enviar dinheiro à sua vítima...
- Tem razão.
Calámo-nos. Pensar no que estava a acontecer a
Orbenine era penoso para mim. Naquele instante,
enquanto via cavalgar, ali tão perto, a mulher que o havia
arruinado, o meu espírito foi assaltado por pensamentos
tristes. Que iria ser dele e dos filhos? E a mulher, que
fim seria o seu? Em que estado de descalabro moral iria
acabar aquele conde fraco e desprezível?
A meu lado estava sentada uma criatura particularmente
boa e digna de estima... No meu distrito só conheci
duas pessoas merecedoras da minha amizade e a quem
reconhecia o direito de me virarem as costas, porque
qualquer delas era melhor do que eu... Uma era Nadejda
Kalinine e a outra era o dr. Pavel Ivanovitch. Que destino
lhes estaria reservado?
- Nadejda Nicolaevna - disse à minha acompanhante.
Sem o querer, fiz-lhe muito mal e não tenho
149
qualquer direito de lhe pedir que seja franca comigo. No
entanto, juro-lhe que ninguém a conhece melhor do que
eu. O seu sofrimento é o meu, a sua desgraça, a minha...
Vou fazer-lhe uma pergunta e acredito que a faço por
mera curiosidade. Diga-me, minha querida amiga:
porque aceita que o conde, esse pigmeu, se aproxime de
si? Que a impede de correr com ele, de ignorar as suas
ignóbeis amabilidades? Deixar-se cortejar por um homem
assim não é motivo de orgulho para nenhuma mulher
honrada. Então, porque dá azo aos mexericos que
associam o seu nome ao dele?
Nadenka fitou-me com os seus olhos límpidos.
Apercebeu-se da sinceridade com que eu falara e sorriu,
satisfeita.
- Que dizem de mim? - perguntou.
- Diz-se por aí que a Nadenka e o seu pai andam
atrás do conde, mas que, a final de contas, é ele que se
aproveita de vós.
- Quem conheça bem o conde não pode afirmar tal
coisa - replicou Nadenka, corando. - Essas abomináveis
alcoviteiras estão habituadas a ver o Mal onde
quer que seja... O Bem não está ao seu alcance!...
- Conseguiu encontrar nele algo digno de apreço?
- Sim, encontrei! E o senhor devia ser o primeiro a
saber que não o toleraria se não estivesse convencida
das suas boas intenções.
- Quer dizer que já vai nas "boas intenções"?
- Quer sabê-lo? - E ao dizer isto, os olhos de
Nadenka brilharam intensamente. -As alcoviteiras não
mentiram. Quero, na verdade, casar-me com o conde.
Não faça essa cara nem se ponha a rir! Pode dizer que
um casamento sem amor é algo de desonesto. Já muita
gente o afirmou mil vezes antes de si. Mas que fazer?...
É muito penoso, neste mundo, alguém sentir-se atirado
para um canto! Nada é mais angustiante do que não ter
um objectivo na vida! Quando esse homem, que o senhor
150
tanto detesta, for meu marido, passarei a ter uma razão
para viver. Hei-de conseguir regenerá-lo, afastá-lo da
bebida. Ensinar-lhe-ei a trabalhar... Olhe para o conde.
Agora, não tem aspecto humano, mas estou decidida a
fazer dele um Homem!
- Ora, ora! - retorqui. - Talvez consiga salvar-lhe
a enorme fortuna e, por certo, servir-se dela para
causas nobres... Todo o distrito a abençoará e verá em si
um anjo enviado por Deus, para consolo dos desgraçados...
Será mãe e saberá educar os seus filhos... Sim,
será essa a sua bela missão nesta terra!... É uma rapariga
inteligente... E, no entanto, raciocina como uma criança
da escola...
- Mesmo que os meus planos sejam ridículos,
estúpidos ou ingénuos, que importa isso se, desse modo,
ganhar coragem para continuar viva?... O dinheiro dar-me-á
essa coragem e, com ela, devolver-me-á a saúde e
a alegria de viver... Não me desiluda. Pode ser que eu
própria venha a sentir-me desiludida, mas por enquanto
não... Talvez mais tarde, num futuro longínquo... Mas,
basta! Mudemos de assunto!...
- Permita-me só mais uma pergunta indiscreta.
Está à espera de que ele peça a sua mão?
- Estou, sim, depois de haver recebido a carta que
ele me endereçou esta manhã. O meu destino vai ficar
decidido durante o dia de hoje, esta noite mesmo. Disse-me
na carta que tem uma coisa muito importante a
tratar comigo. Segundo afirma, a sua felicidade depende
da resposta que eu lhe der...
- Agradeço a sua franqueza - declarei.
Para mim era manifesto o verdadeiro significado do
recado que o conde enviara a Nadenka. O que estava à
espera desta era uma proposta ignóbil, sem dúvida.
Decidi ficar alerta e evitar o pior.
- Já chegámos ao bosque - disse o conde,
aproximando-se do nosso carro. - Não quer descansar
151
um pouco neste sítio, Nadejda Nicolaevna?
E, sem esperar, bateu as mãos e com a sua voz aguda
e avinhada ordenou:
-Alto!
Instalámo-nos na orla do bosque. O Sol, por detrás
dos álamos, pintava de púrpura dourada os ramos das
árvores e, ao longe, a cúpula da igreja. Sobre as nossas
cabeças voavam assustados verdilhões e milhafres. Um
mujique disparou a espingarda, provocando ainda maior
pânico entre os pássaros. Ouviu-se um enorme concerto
de gritos emitidos pelas aves aterrorizadas. Na
Primavera e no Verão, esse ruído tem algum encanto,
mas ao chegar o Outono contende com os nervos.
Da espessura da floresta chegava o fresco do
entardecer. Os narizes das damas ficaram arroxeados e
o conde, muito sensível ao frio, começou a esfregar as
mãos.
Foi com prazer que sentimos o calor do samovar e o
tinido do serviço de chá. Kuzma, o vesgo, a resfolegar e
a tropeçar nas ervas altas, apareceu com uma caixa de
garrafas de conhaque. Preparámo-nos para aquecer o
estômago.
Um longo passeio ao ar livre abre o apetite lombos
de esturjão, caviar, perdizes assadas e outras iguarias
são nesse caso tão agradáveis à vista como uma roseira
em flor numa manhã de Primavera.
- Hoje estás muito pensativo - comentei para o
conde enquanto pegava num lombo de esturjão. - Mais
angustioso do que nunca! É difícil superar-te...
- Eu e o conde é que organizámos tudo isto -
avançou Kalinine, com um riso idiota, apontando para
os serviçais que retiravam dos carros cestos com hors-doeuvre,
vinho e louça. - Vai ser um esplêndido
piquenique... E a finalizar haverá champanhe.
O rosto do juiz brilhava de alegria. Ignorava, por
certo, a espécie de proposta que o conde ia fazer à filha,
152
naquela noite... Iludido como ela, fora por isso mesmo
que lembrara o champanhe: para ser bebido à saúde dos
noivos. Fitei-o com insistência, mas, como era habitual,
só vi, na sua cara, satisfação despreocupada e impaciência
alarve.
Lançamo-nos alegremente sobre os hors-doeuvre. Só
duas pessoas permaneceram indiferentes àqueles
requintes da culinária espalhados sobre a toalha: Olga
e Nadenka. A primeira, afastada, com as costas apoiadas
nas almofadas do carro descoberto, observava para a
sacola do conde, caída por terra, onde se encontrava a
galinhola ferida. Nadia, sentada a meu lado, olhava com
indiferença as bocas que mastigavam. "Quando irá isto
acabar?", pareciam inquirir os seus olhos fatigados.
Ofereci-lhe uma fatia de pão com caviar. Agradeceu-me
e colocou-a sobre a toalha. Era visível que não lhe
apetecia comer.
- Olga Nicolaevna, porque não se senta? - gritou
o conde à amante.
Olga não respondeu e, sempre imóvel, continuou a
observar a ave moribunda.
- Há que ter piedade! - disse-lhe eu, aproximando-me.
- Sendo mulher, como pode deleitar-se a ver o
sofrimento deste animal? Por que não pede que o matem?
- Se os seres humanos também sofrem, porque não
há-de esta ave sofrer? - replicou, franzindo as sobrancelhas,
sem olhar para mim.
- Mas quem sofre? - perguntei.
- Deixa-me em paz! - murmurou ela. - Hoje não
me sinto disposta a aturar-te, a ti, nem a aturar o idiota
do conde. Vai-te embora.
Ergueu na minha direcção os olhos cheios de cólera
e de lágrimas. Estava pálida e os lábios tremiam-lhe.
- Que mudança de tom! - comentei, levantando a
sacola e pondo termo à agonia da ave. - Estou assombrado!
153
- Deixa-me em paz! Não tenho disposição para
brincadeiras!
- Mas que tens, minha linda?
Olga fitou-me, altaneira, e depois virou a cara.
- É nesse tom que falas às mulheres perversas e
venais?... Consideras-me uma delas, não é assim? Pois
bem, nesse caso, vai encontrar-te com as santinhas que
conheces... Eu sou a pior e a mais ignóbil de todas as
mulheres! Há pouco, quando rastejavas atrás da tua
virtuosa Nadenka, nem sequer ousavas olhar para mim!
Anda, vai ter com ela! Que fazes aqui, especado?
- Tens razão! -repliquei, sentindo a cólera apossar-se
de mim, gradualmente. - Tu és a pior e a mais ignóbil
de todas! Sim, és de facto perversa e venal!
- Não esqueço que me deste aquele maldito
dinheiro... Na altura não compreendi, mas agora
compreendo.
A cólera invadia-me tão violenta como o amor que,
outrora, despertara em mim a rapariga de vermelho...
Contudo, nem uma pedra teria ficado indiferente! Tinha
à minha frente uma mulher formosa atirada à lama por
um destino implacável, indiferente à sua juventude, à
sua beleza, à sua graça. E, naquele momento em que me
parecia mais bela do que nunca, apercebi-me claramente
da sua perdição. Revoltei-me contra a natureza que a
desgraçara e senti um lancinante furor contra o mundo.
Quando me enfureço não consigo dominar-me. Não
sei o que teria dito se Olga não se tivesse afastado,
virando-me as costas. Caminhou lentamente para o
arvoredo e depois desapareceu da minha vista... Fiquei
com a impressão de que ia a chorar.
Ouvi, então, a voz de Kalinine, que declamava:
- Minhas senhoras e meus senhores! Neste dia em
que nos reunimos para... para... Estamos todos... Não
falta ninguém. E reina a alegria. Graças a esta união,
há tanto tempo desejada... Devemo-la única e exclusiva-
154
mente ao nosso farol... ao nosso astro... Conde, não fique
corado! As damas aqui presentes sabem bem o que quero
dizer! Ah! Ah! Vou prosseguir... Como estava a dizer,
devemos tudo isto ao nosso esclarecido e jovem... jovem...
conde Karnieiev... Proponho que brindemos à saúde de...
Mas, vem aí alguém... Quem será?
Uma caleche aproximava-se da clareira em que nos
encontrávamos.
- Quem poderá ser? - exclamou o conde, atónito,
apontando os binóculos na direcção da caleche. - Hum,
é estranho! Será alguém de passagem?... Não, parece
que não... Vejo o rosto de Gaetan Casimirovitch... Quem
vem com ele?
De súbito, como se tivesse sido picado por uma vespa,
o conde deu um salto. Empalideceu e deixou cair os
binóculos. Os seus olhos moviam-se de um lado para o
outro, como os de um rato, e fixaram-se, suplicantes,
ora em mim ora em Nadia... Quase ninguém reparou na
sua perturbação, já que a atenção de todos convergia
para o carro que se aproximava.
- Serioja, espera um minuto! - disse-me Karnieiev,
agarrando-me convulsivamente o braço e levando-me
para longe dos outros. - Suplico-te, como meu
verdadeiro amigo, como o mais bondoso dos homens: não
me faças perguntas, não me lances olhares interrogadores,
não mostres qualquer surpresa! Mais tarde
prometo-te contar tudo! Nada deixarei em segredo!...
Aconteceu-me uma grande desgraça! Uma desgraça tão
grande que nem sei como poderei explicá-la! Saberás
tudo, tudo, mas agora não me perguntes nada! Ajuda-me
por favor!...
Entretanto, a caleche chegara à clareira. Parou e o
estúpido segredo do conde passou a ser conhecido por
todo o distrito. Do carro saiu Pchekotski, de fato novo, a
resfolegar e a sorrir. Atrás dele desceu com ligeireza uma
mulher de uns vinte e três anos, alta, loura, elegante,
155
com um belo corpo, feições regulares mas nada
simpáticas, e olhos azuis. Recordo-me sobretudo dos seus
olhos inexpressivos, do nariz coberto de pó-de-arroz, do
vestido luxuoso e elegante e das numerosas pulseiras
maciças que trazia nos braços. O perfume que exalava
misturou-se ao odor da comida e do conhaque.
- Tanta gente! - disse a desconhecida, num russo
estropiado. - Que bela festa! Boa tarde, Alexis!
Aproximou-se do conde e estendeu-lhe a face. O
conde beijou-a apressadamente e, depois, fitou os
convidados com um olhar suplicante.
- Apresento-vos... - balbuciou - ...a minha
mulher... Zossia. Estes são os meus amigos... Hum,
maldita tosse!...
-Acabo de chegar- declarou a condessa. - Gaetan
aconselhou-me a descansar um pouco, mas não senti
necessidade disso, já que dormi toda a noite. "Prefiro ir
à caçada", disse-lhe eu... Vesti-me e aqui estou... Gaetan,
os meus cigarros!
Pchekotski correu para ela e estendeu-lhe uma
cigarreira dourada.
- É o meu cunhado... - voltou a balbuciar o conde,
apontando para o polaco. -Ajuda-me! - segredou-me,
enquanto me tocava com o cotovelo. - Salva-me, suplico-te!
Vim a saber, mais tarde, que Kalinine quase
desmaiou e que Nadia não conseguiu acorrer em seu
auxílio porque o espanto a impediu de erguer-se.
Também vim a saber que quase todos os convidados se
apressaram a partir. Não dei por nada. Recordo-me
apenas de que me dirigi para o bosque e que, sem rumo
certo, enfiei por um carreiro e me encaminhei para onde
os meus pés me levaram...
(Aqui há catorze linhas riscadas, no manuscrito de
Kamichov. A. T.)
156
O meu trajecto bordejava o lago. O enorme monstro
de água começava a emitir o seu rugido vespertino.
A superfície agitava-se em altas ondas, cobertas de
espuma, O vento frio e húmido penetrava-me até aos
ossos. À esquerda, o lago revolto à direita, o monótono
murmúrio do bosque soturno. Sentia-me a sós com a
natureza, como se me confrontasse com ela. Era como
se toda a cólera do lago fosse dirigida contra mim. Em
outras circunstâncias, experimentaria medo, mas
naquele momento mal me apercebi das grandiosas forças
que me rodeavam. Que era a fúria da Natureza
comparada com a tempestade que ia dentro de mim?
(Aqui também há linhas riscadas. A. T.)
Quando cheguei a casa atirei-me, vestido, sobre a
cama.
- Lá tomou banho outra vez sem despir a roupa -
resmungou Policarpe, enquanto me tirava o fato
encharcado e cheio de lama. - Mais trabalho para mim.
Um cavalheiro instruído mais sujo do que um limpa-chaminés...
Não sei o que lhe ensinaram na Universidade!
Naquele momento não podia suportar a voz ou o
olhar fosse de quem fosse. Quis berrar a Policarpe que
me deixasse em paz, mas as palavras ficaram-me retidas
na garganta. Sentia a língua tão cansada como o resto
do corpo. Assim, por muito que isso me custasse, tive de
deixar que Policarpe me despisse.
- Se ao menos me ajudasse... - protestou ele,
virando-me de um lado e doutro como se fosse um novelo.
- Amanhã fazemos contas e vou-me embora! Não ficarei
mais aqui, por preço algum! Basta de ser burro! Diabos
me levem, se continuo nesta casa!
157
A roupa limpa e seca não me aqueceu nem acalmou.
Tremia tanto de cólera e de horror que os meus dentes
batiam como castanholas. Não compreendia aquele meu
pânico. O futuro não se me apresentava claro, mas podia
afirmar, em qualquer caso, e segundo todas as probabilidades,
que nenhum perigo me ameaçava e que nuvem
alguma ensombrava o meu horizonte. Não me achava
em risco de vida, não tinha medo de qualquer doença e
não dava importância às minhas agruras pessoais... Que
receava então? E porque tremia tanto?
Tão-pouco entendia a minha cólera... O "segredo" do
conde não me abalara. Não me importava o conde nem o
casamento que me ocultara. Acabei por atribuir o meu
estado de espírito a um desequilíbrio nervoso ou à fadiga.
Não consegui encontrar outra explicação.
Quando Policarpe saiu do quarto, tapei-me com o
cobertor e tentei adormecer. Tudo à minha volta estava
escuro e tranquilo. O papagaio movia-se na gaiola e eu
ouvia o ruído cadenciado do relógio no quarto de
Policarpe. Tudo o resto estava em paz e silêncio. Vencido
pelo cansaço, senti que adormecia. A pouco e pouco fui
ficando de certo modo aliviado e as imagens odiosas
fundiram-se numa vaga neblina.
Recordo-me até de que comecei a sonhar. Passeava
pela Perspectiva Nevski, em São Petersburgo, numa
clara manhã, e examinava as montras das lojas. A minha
alma estava feliz e despreocupada... A certeza de me
achar longe do caminho e da propriedade do conde ainda
mais me alegrava... Parei em frente de uma montra
garrida e pus-me a ver os chapéus de senhora. Todos os
manequins eram-me familiares. Num reconheci Olga,
noutro Nadia e num terceiro a loura recém-chegada
Zossia... Os seus rostos sorriam-me por baixo dos
chapéus. Quando quis falar com elas, as três fundiram-se
numa só imagem, enorme, vestida de vermelho, que,
de súbito, mexeu os olhos e deitou a língua de fora... Por
158
detrás de mim alguém me apertou o pescoço e um braço.
"O marido matou a mulher!", gritou a imagem vestida
de vermelho.
Estremeci, dei um grito e saltei precipitadamente
da cama. O meu coração batia com violência e senti
escorrer-me da testa um suor frio.
- O marido matou a mulher! - repetiu o papagaio.
- Dá-me açúcar! Que estúpidos são vocês!
"É o papagaio", disse para comigo, a fim de me
tranquilizar, enquanto voltava para a cama. "Deus seja
louvado!"
Ribombou um estrondo surdo e um ruído monótono
chegou do telhado. Havia começado a chover. As nuvens
que vira a Oeste, quando ladeara o lago, cobriam agora
o céu todo. Um relâmpago brilhou, iluminando o retrato
do falecido Pospielov... Depois, estalou outro trovão.
"É a última tempestade de Verão", pensei.
Lembrei-me, então, de uma das primeiras. O mesmo
trovão ribombara um dia em que, pela primeira vez,
havia visitado a casa do guarda-florestal. Sentados junto
da janela, havíamos contemplado, tal como a rapariga
de vermelho, as coisas que o relâmpago iluminara.
A mãe fora fulminada por um raio e ela desejava uma
morte igualmente espectacular. Queria vestir-se como
as pessoas mais ricas do distrito. Sabia que o luxo e os
adornos condiriam com a sua beleza. E, consciente e
orgulhosa do seu efémero encanto, queria subir ao cume
do "Túmulo de Pedra" para aí morrer.
O sonho estava... mas não no "Túmulo"...
(Aqui, infelizmente, há mais palavras riscadas por
Kamichov, não no momento em que as escrevera, mas
sim mais tarde. No final desta narrativa voltarei a este
assunto. A. T.)
159
Perdida toda e qualquer esperança de voltar a
adormecer, levantei-me e sentei-me no rebordo da cama.
O murmúrio suave da chuva transformou-se gradualmente
no furioso estrondo que tanto apreciara outrora,
quando a minha alma ignorava ainda o medo e o ódio.
Naquele momento, porém, pareceu-me lúgubre.
- O marido matou a mulher! - voltou a gritar o
papagaio.
Foram as suas últimas palavras. De olhos fechados,
cheio de um terror indescritível, avancei no escuro e, ao
encontrar a gaiola, lancei-a ao chão.
- Diabos te levem! - gritei, ao ouvir o ruído da
gaiola a partir-se e o grito lancinante do pássaro.
Pobre papagaio! A queda custou-lhe a vida. Pobre
animal! Por que o matei se a sua frase me lem...
(Aqui está riscada quase toda uma página, de forma
desordenada. Restam algumas palavras que não servem
para reconstituir o que foi riscado. A. T.)
A mãe do meu antecessor, ao ceder-me a casa, fez-me
pagar todos os móveis e até os retratos de pessoas
desconhecidas, mas não aceitara nem sequer um copeque
pelo papagaio. Na véspera da sua partida passou toda a
noite a despedir-se do nobre animal. Recordo-me das
suas lágrimas quando me pediu que cuidasse bem dele
até ao seu regresso. Dei-lhe a minha palavra de que o
papagaio não poderia nunca queixar-se de mim. Não
cumpri a promessa. Matei o pássaro. Nem quero pensar
no que dirá a velha quando souber da morte do
linguareiro.
160
20
Alguém bateu na janela, ao de leve. A minha casa
ficava no fim da rua e não era raro que me batessem à
janela, sobretudo quando a chuva obrigava os transeuntes
a procurar abrigo. Desta vez, porém, não se tratava
de gente que por ali passasse casualmente.
Aproximei-me e, à luz de um relâmpago, vi a silhueta
sombria de um homem bastante alto. Estava postado
em frente da janela e parecia transido de frio. Abri e
perguntei:
- Quem está aí? Que quer?
- Sergei Petrovitch - disse a voz trémula de um
homem assustado e tiritante. - Sou eu! Venho buscá-lo,
meu caro...
Com grande surpresa reconheci a voz e a figura
franzina do dr. Voznessenski. Fiquei admirado por
aquela sua visita tardia, dado conhecer a regularidade
dos seus hábitos. Que poderia levá-lo a vir a minha casa
às duas da madrugada, com semelhante mau tempo?
- Que deseja? - perguntei-lhe, enquanto, do fundo
da alma, o mandava para o diabo.
- Perdoe-me. Toquei à porta, mas a esta hora
Policarpe dorme como um bem-aventurado. Foi por isso
que decidi bater-lhe à janela.
Pavel Ivanovitch aproximou-se e murmurou umas
palavras incompreensíveis. Tremia e parecia embriagado.
11 - Vampiro 684
161
- Não ouço! - gritei-lhe, impaciente.
- Vejo que a minha visita o incomoda... No entanto,
se soubesse o que aconteceu, decerto me perdoaria por
ter vindo acordá-lo. Ao fim de trinta anos de vida, só
hoje me senti desgraçado... verdadeiramente desgraçado,
Sergei Petrovitch!
- Que se passa? Que tenho a ver com o que haja
acontecido? Não vê que mal consigo manter-me de pé?...
- Sergei Petrovitch! - balbuciou "Olhos piscos",
estendendo para o meu rosto a mão encharcada pela
chuva. - Sei que é um homem honesto, um amigo!
Percebi então que o médico chorava.
- Pavel Ivanovitch! - retorqui -, volte para sua
casa! Neste momento não posso conversar consigo. Receio
que o estado em que se encontra não seja compatível
com o meu mau humor. Não me faça perder a paciência!
- Meu querido amigo - continuou ele, com voz
suplicante -, case com ela!
- Está doido! - vociferei, fechando a janela.
Tal como antes acontecera com o papagaio, o médico
foi vítima da minha má disposição. Não o convidei a
entrar e bati-lhe com a janela na cara: duas grosserias
imperdoáveis, que se fosse eu o ofendido me teriam
levado a estilhaçar todas as janelas deste mundo e a
desafiar em duelo até mesmo uma mulher.
Pavel Ivanovitch, pacífico e bondoso, não sabia nada
de duelos e não era capaz de se zangar fosse com quem
fosse. À luz de um relâmpago vi-o cabisbaixo e encurvado,
junto à janela. A sua expressão era a de um mendigo à
espera de uma esmola. Parecia aguardar que eu me
acalmasse e o deixasse falar.
Felizmente, senti um rebate de consciência. Tive
pena dele e deplorei que a Natureza me houvesse dotado
de tamanha crueldade e de tal cobardia. O meu coração
mantinha-se são, mas a minha alma ficara empedernida
e odiosa.
162
(Segue-se uma pretensiosa explicação acerca da
resistência psíquica do autor. Segundo parece, não se
impressionava com a visão do sofrimento humano nem
do sangue, nem das autópsias judiciais, etc. Toda esta
parte do manuscrito revela dissimulação e uma ingénua
petulância. Choca pela sua grosseria e, por isso, decidi
suprimi-la. Não me parece necessária para a compreensão
do carácter de Kamichov. A. T.)
Aproximei-me da janela e voltei a abri-la.
- Entre! - disse-lhe.
- Não posso perder tempo! Cada minuto é precioso!
A pobre Nadia envenenou-se e carece que eu fique a seu
lado para a tratar!... Foi tão difícil salvar-lhe a vida...
Que grande desgraça! E você tem a coragem de se recusar
a ouvir-me e de me bater com a janela na cara!...
- Mas conseguiram salvá-la, não é verdade?
- Das pessoas desgraçadas não se fala nesse tom,
meu caro amigo! Quem poderia imaginar que uma
criatura tão inteligente e honesta como ela fosse atentar
contra a própria vida por causa de um indivíduo como o
conde? Ah, meu caro amigo! Para mal de todos nós, as
mulheres não são perfeitas! Por mais inteligente e
equilibrada que seja uma mulher, tem sempre um
pequeno defeito que a impede de viver tranquilamente
e que a faz sofrer, a ela e aos outros... Nadia é um bom
exemplo... Porque fez ela semelhante coisa?... Por amor-próprio,
só por isso! Um amor-próprio doentio! Para o
aborrecer a si, meu amigo, veio-lhe à cabeça casar com o
conde... Não tinha interesse no título nem na fortuna
dele... Só queria satisfazer o seu monstruoso amor-próprio...
De repente, a catástrofe, o descalabro... Sabe
que a mulher do conde apareceu na caçada, não é assim?
163
O conde casado!... E ainda há quem diga que as mulheres
têm maior resistência do que os homens! Como pode
afirmar-se tal coisa se, por motivo fútil, pegam em
fósforos, deitam as cabeças num copo e se envenenam?
Não se trata de ter ou não resistência, mas, isso sim, de
um puro e simples acto de demência...
- Vai ficar enregelado, se continuar aí fora.
- Quero lá saber!... Se visse os olhos dela, a sua
palidez... Ao seu amor infeliz, à sua tentativa de lhe
despertar ciúmes, vem juntar-se, agora, este suicídio
frustrado... É difícil conceber maior desgraça. Meu
querido amigo, se ainda há em si uns restos de piedade...
Ah, se a tivesse visto!... E porque não há-de vê-la! Venha
comigo! Você gostou dela, amou-a... Mesmo que já não a
queira, por que não sacrificar por ela um pouco da sua
liberdade? Uma vida humana é um bem precioso que
merece todos os sacrifícios... Salve aquela vida!
Bateram à minha porta com tal violência que quase
cambaleei. Senti apertar-se-me o coração. Não acredito
em pressentimentos, mas, daquela vez, o meu alarme
era justificado. Voltaram a bater.
- Quem é? - gritei da janela.
- Trago uma carta para o senhor.
- Da parte de quem?
- Da parte do senhor conde, Excelência. Mataram
alguém.
Um vulto negro, envergando uma samarra de pele
de ovelha, aproximou-se da janela e, amaldiçoando a
chuva e o vento, entregou-me uma carta. Acendi uma
lâmpada e li o seguinte:
Pelo amor de Deus, deixa tudo e vem ver-me
imediatamente. Olga foi assassinada. Estou de cabeça
perdida e à beira de enlouquecer.
Teu A. K.
164
Olga assassinada! Ao ler estas lacónicas palavras
senti a cabeça à roda e toldou-se-me a vista. Sentei-me
na cama e, sem forças para coordenar idéias, deixei cair
os braços.
- O senhor é Pavel Ivanovitch? - ecoou da rua a
voz do mensageiro. - Também ia a sua casa. Trago outra
carta, para si.
Cinco minutos depois, eu e "Olhos piscos", numa
carruagem fechada, seguíamos em direcção à casa do
conde. A chuva batia no tejadilho e, à nossa frente, a
noite era cortada amiúde por faíscas que nos deixavam
cegos. Ouvia-se rugir o lago... :.,. . : . ..*
165
21
Ia começar o último acto do drama e dois dos seus
intérpretes encaminhavam-se para uma cena final
dilacerante.
- Que vai acontecer agora? - perguntei ao médico.
- Não faço idéia...
- Nem eu.
- Hamlet lamentou o dia em que o Senhor do Céu e
da Terra proibiu o pecado do suicídio. Hoje, lamento que
o Destino me tenha feito médico. Lamento-o profundamente!...
- Também eu lamento ser juiz de instrução -
afirmei. - Se o conde não confundiu um suicídio com
um homicídio e se Olga foi realmente assassinada, já
pensou no que os meus pobres nervos vão ter de
suportar?
- Você pode pedir escusa.
Olhei para o médico com curiosidade, mas, como era
de esperar, a escuridão não me permitiu estudar-lhe o
semblante. Onde teria ido buscar aquela idéia de que eu
podia pedir escusa? É certo que fora amante de Olga,
mas quem, além dela própria, e talvez de Pchekotski,
podia saber disso?
- Por que julga que posso pedir escusa? - perguntei-lhe.
- Por nada... Mas o senhor pode dizer que está
doente ou, até, renunciar ao seu cargo... Não seria
166
desonesto nem irremediável, dado haver sempre quem
possa substitui-lo. Um médico, porém, acha-se numa
outra situação...
"Só por isso?", disse para comigo.
Depois de um execrável trajecto sobre o solo argiloso,
o carro deteve-se em frente da casa do conde. As duas
janelas por cima da porta achavam-se iluminadas. Da
que correspondia ao quarto de Olga, à direita, filtrava-se
uma fraca claridade. Nas restantes janelas não se
via qualquer luz. Ao subir a escada cruzámo-nos com a
"Coruja". Fitou-me com os seus olhos penetrantes e o
rosto enrugou-se-lhe ainda mais quando esboçou um
sorriso malévolo e sardónico.
"Vais ter uma grande surpresa!", diziam aqueles
olhos.
Possivelmente julgava que vínhamos para alguma
festa e não estávamos ao corrente do que se passava.
- Chamo a sua atenção para esta mulher! -
exclamou Pavel Ivanovitch, enquanto tirava o gorro da
velha, pondo a descoberto o seu crânio calvo. - Esta
bruxa, meu caro amigo, tem noventa anos. Se alguma
vez tivermos de lhe fazer a autópsia, as nossas opiniões
decerto seriam divergentes. Você veria, provavelmente,
um cérebro atrofiado pela idade, mas eu saberia que em
vida pertencera à mais astuciosa e perversa criatura do
distrito, um autêntico diabo de saias!
Ao entrar no salão fiquei estupefacto já que o quadro
que se me deparou era dos mais inesperados. Todas as
cadeiras e sofás estavam ocupados e, nos cantos e junto
das janelas, havia pessoas em pé. De onde viera tamanha
multidão? Se me tivessem dito que iria encontrar tanta
gente, ali e àquela hora, teria desatado a rir. E como era
incrível e despropositada a sua presença, quando, num
quarto próximo, Olga jazia agonizante ou mesmo morta!
Toda aquela gente fazia parte do coro de ciganos do
restaurante "Londres", o mesmo coro que os leitores já
167
encontraram num dos primeiros capítulos desta
narrativa.
Quando entrei a minha velha amiga Tina deixou os
demais e, soltando um grito de alegria, avançou para
mim. O seu rosto moreno abriu-se num sorriso e, quando
lhe estendi a mão, as lágrimas embargaram-lhe a voz.
Tive de me dirigir aos outros ciganos para saber os
motivos da sua presença naquela casa.
Nessa mesma manhã, o conde mandara chamá-los,
exigindo que todo o coro se apresentasse em sua casa,
às nove da noite. Os ciganos obedeceram à ordem e
tinham chegado à estação por volta das oito horas.
- Esperávamos divertir Sua Excelência e os seus
convidados... Trazíamos novas canções, mas de repente...
"De repente aparecera um camponês a cavalo com a
notícia de que ocorrera um assassínio, durante a caçada,
um assassínio brutal. Olga Nicolaevna tinha de ser
transportada para o seu leito. Ninguém acreditara no
que dissera o camponês porque estava a cair de bêbado,
mas, quando já no salão, viram passar um corpo coberto
com um pano preto, as dúvidas esfumaram-se."
- E agora - concluiu um dos ciganos -, não
sabemos o que fazer... Não podemos ficar aqui por mais
tempo. Onde é preciso um padre não há lugar para
foliões. Alem disso, as mulheres estão inquietas e não
param de chorar... Queremos partir, mas não nos cedem
cavalos que nos levem até à estação... O sr. Conde está
doente, no seu quarto, e não quer ser incomodado. Os
criados, quando lhes falamos em cavalos respondem-nos
com graçolas... Este mau tempo e a noite escura
impedem-nos de ir a pé... Aliás, todos os criados são
grosseiros. Pedimos-lhes que acendessem um samovar
para as mulheres, mas eles mandaram-nos para o diabo...
Todas estas queixas terminaram num lamuriento
apelo à minha generosidade. Não poderia eu interceder
para que lhes arranjassem carros e, assim, pudessem
168
abandonar aquela "casa maldita"?
- Se os cavalos não estiverem estropiados, e houver
cocheiras disponíveis, tratarei de tudo para que possam
partir - garanti-lhes. - Vou dar ordens nesse sentido.
Aqueles pobres indivíduos, vestidos como os palhaços
e acostumados a fazer graças e trejeitos cómicos, não
quadravam as caras de enterro e os choros. A minha
promessa reanimou-os. Os murmúrios dos homens
transformaram-se em conversas e as mulheres enxugaram
as lágrimas.
Depois de atravessar várias divisões às escuras
cheguei aos aposentos do conde, onde deparei com um
quadro comovedor.
Perto de um samovar estavam sentados Zossia e o
seu irmão, a trocar impressões em voz baixa. Zossia,
vestida com uma blusa ligeira e ostentando as mesmas
pulseiras, aspirava sais e bebia chá, com ar lânguido e
acabrunhado. Aquele incidente da caçada havia-lhe
destrambelhado os nervos, pondo termo à sua boa
disposição. Pchekotski, impassível como sempre, sorvia
o chá pelo pires e conversava com a irmã. A avaliar pela
sua expressão, tentara tranquilizá-la e persuadi-la a não
chorar.
Como era de esperar, fui encontrar o conde completamente
transtornado. Aquele homem, débil e doente,
havia emagrecido ainda mais. Muito pálido, os lábios
tremiam-lhe como se ardesse em febre. A volta da cabeça
colocara um pano branco que exalava um forte cheiro a
vinagre. Quando me viu saltou do sofá em que estava
deitado e, aconchegando o roupão ao corpo, correu ao
meu encontro.
- Ai, ai! - foi quanto conseguiu articular.
Emitindo outros sons imprecisos levou-me até ao sofá
e, quando me sentei, encostou-se a mim como um cão
assustado e começou a contar-me a sua desdita:
- Quem podia prever uma coisa tão horrível?...
169
Espera, meu amigo, que me cubra com a manta... Estou
com febre... Mataram-na, pobre coitada! E de que
maneira bárbara!... Ainda respira, mas o médico da
zemstvo 1 disse que pode morrer a qualquer momento,
antes que amanheça... Que malfadado dia! Para cúmulo,
apareceu essa... Diabos a levem!... Aparecer a minha
mulher, sem prevenir e sem razão aparente... Foi o pior
disparate que fiz na minha vida, Serioja! Casaram-me
em São Petersburgo, quando estava perdido de bêbado!
Não to contei, por vergonha. E agora, aí a tens!... Olha
para ela! Olha para ela e ralha comigo!... Maldita
fraqueza! Sob a influência do álcool sou capaz de fazer
as maiores asneiras... A chegada da minha mulher foi a
primeira catástrofe e este escândalo com Olga, a
segunda... Fico à espera da terceira... Sei que não
tardará, estou convencido disso. E sinto que vou
enlouquecer...
Depois de haver soluçado como uma criança, de ter
emborcado três cálices de vodca e de chamar a si próprio
"asno", "parvo" e "bêbado", o conde, com voz trémula,
contou-me o drama ocorrido durante a caçada. O que
narrou foi, mais ou menos, o seguinte:
Cerca de vinte ou trinta minutos depois de eu ter
partido, enquanto ele se recompunha da surpresa
causada pela chegada de Zossia, e esta começava já a
assumir-se como dona da casa, fez-se ouvir, de súbito,
um grito lancinante e perturbador.
Esse grito vinha do bosque e o eco repetiu-o por três
ou quatro vezes. Era um grito tão insólito e aflitivo que
as pessoas que o ouviram se levantaram de um salto, os
cães ladraram e os cavalos arrebitaram as orelhas. Não
era um grito natural, embora o conde tenha julgado
aperceber-se de que provinha de uma garganta de
1 -Assembleia distrital. (N. do T.)
170
mulher. Era um grito de desespero e de horror, como
aquele que devem soltar as mulheres quando vêem um
fantasma ou presenciam a morte de uma criança. O
conde e os convidados, inquietos, olharam uns para os
outros. Durante perto de três minutos reinou um silêncio
pesado e absoluto.
Enquanto os amos se entreolharam, mudos, os
cocheiros e os criados correram para o lugar de onde
viera o grito. O primeiro a regressar foi Ilia, o velho
criado de quarto. Apareceu muito pálido, com as pupilas
dilatadas. Quis falar, mas a emoção impediu-o de fazê-lo
durante algum tempo. Por fim, conseguiu dominar-se
e, fazendo o sinal da cruz, balbuciou:
- Mataram a senhora!
- Que senhora? Quem a matou?
Ilia não respondeu.
O segundo a surgir foi um homem por quem ninguém
estava à espera a sua súbita aparição e o seu aspecto
foi uma terrível surpresa para toda aquela gente. Quando
o conde o viu e se lembrou de que Olga se embrenhara
no bosque, sentiu o peito oprimido e as pernas tremeram-se-lhe.
Um pavoroso pressentimento assaltou-lhe o
espírito.
Era Piotre Iegoritch Orbenine, ex-administrador de
Karnieiev e marido de Olga. Primeiro, ouviram-se uns
passos arrastados e o ruído de ramos quebrados, como
se algum urso fosse sair do bosque. Em seguida surgiu o
corpo maciço do infeliz Piotre Iegoritch. Quando entrou
na clareira, ao ver tanta gente, deu um passo atrás e
estacou, como que pregado ao solo. Permaneceu assim,
silencioso e imóvel, durante uns minutos, dando tempo
a que todos os presentes pudessem examiná-lo da cabeça
aos pés. Trazia o habitual casaco cinzento e umas calças
usadas. Sem chapéu, os seus cabelos encharcados em
suor colavam-se-lhe à testa e às fontes. O rosto, em regra
corado e até violáceo, estava muito pálido os olhos
171
esbugalhados fitavam, sem ver, algo longínquo os lábios
e os braços tremiam-lhe.
No entanto, o que maior espanto causou foram as
suas mãos ensanguentadas. Trazia as mãos e os próprios
pulsos vermelhos e viscosos, como se os houvesse
mergulhado numa tina de sangue.
Depois de uns minutos de prostração, Orbenine,
como se tivesse despertado, deixou-se cair na erva e,
sentado com as pernas cruzadas, começou a gemer. Os
cães farejaram algo de anormal e rodearam-no, a ladrar.
Orbenine olhou para todos os circunstantes e, depois
cobriu o rosto com as mãos e caiu em nova prostração.
- Olga! Olga! - gemeu. - Que fizeste?
Soluços profundos convulsionaram-lhe o peito e os
ombros do homenzarrão não paravam de tremer. Quando
baixou as mãos tinha o rosto coberto de sangue.
Ao chegar a este ponto, o conde teve um gesto de
desânimo, bebeu nervosamente e prosseguiu assim o seu
relato:
- Daí em diante, as minhas recordações estão todas
baralhadas. O sucedido deixou-me aterrado a ponto de
haver perdido a faculdade de pensar. Não me lembro do
que se passou a seguir... Apenas sei que os criados
trouxeram do bosque um corpo coberto com um vestido
roto e ensanguentado. Não tive coragem de ir vê-lo...
Puseram-no dentro de um carro e trouxeram-no para
aqui. Disseram-me que tinha espetado nas costelas o
pequeno punhal que ela trazia sempre consigo. Lembras-te?
Aquele que eu lhe dei... Um punhal já embotado, que
corta menos do que o rebordo deste cálice. Que força
teve de empregar quem lho cravou no corpo! Sabes bem
como eu gostava das armas do Cáucaso, mas agora, meu
amigo, que vão para o diabo... Amanhã vou deitar fora
todas as que possuo...
O conde bebeu novo cálice de vodca e continuou:
- E, além disso, que vergonha! Que calamidade!
172
Trouxemo-la para aqui, todos nós desesperados e
acabrunhados... E, mal entrámos, os ciganos começaram
a cantar... Diabos os carreguem!... A casa estava cheia
deles e o coro fez um barulho ensurdecedor... Bando de
imbecis! Queriam dar-nos as boas-vindas à sua maneira
e ocorreu-lhes aquele despropósito... Pareciam o idiota
da aldeia a gritar num enterro: "Vá, dêem-lhe um
empurrão!" É verdade, meu caro: quis preparar uma
surpresa para os meus convidados, depois da caçada, e
mandei chamar os ciganos. O que aconteceu foi que caí
no ridículo! Naquele momento não era de cantores que
eu precisava mas, sim, de um médico, de um padre...
E, agora, que devo fazer? Quem devo chamar? A polícia,
o promotor de justiça?... Não percebo nada de procedimentos
legais... Ainda bem que o padre Ieremiia, logo
que soube do sucedido, veio ministrar o Santíssimo
Sacramento. Eu nem sequer tinha pensado nisso...
Suplico-te que te encarregues de todas essas formalidades...
Deus sabe como estou de cabeça perdida! Avinda
de minha mulher, este assassínio... E de mais!... por falar
nisso: onde estará a minha mulher? Viste-a, por acaso?
- Vi-a, sim. Está a tomar chá com o irmão.
- Pchekotski é um pulha! No momento em que me
preparava para fugir de São Petersburgo, às escondidas,
esse patife apercebeu-se disso e agarrou-se a mim como
a lapa a uma rocha... Desde então, quanto dinheiro já
me sacou! Nem podes imaginar.
Não queria perder mais tempo com o conde e, por
isso, levantei-me e dirigi-me para a porta.
- Ouve - disse o conde, de súbito -, achas que
Orbenine agora vai tentar atacar-me?
- Foi ele quem atacou Olga?
- Com certeza! Só não compreendo de onde surgiu.
Que o terá levado a embrenhar-se no bosque? E logo
naquele local... Admitamos que se tenha escondido. Mas,
então, como sabia ele que iríamos instalar-nos ali e não
173
em outro sítio qualquer?
- Não és capaz de entender seja o que for -
retorqui. - A propósito, e não volto a repeti-lo: se vou
encarregar-me deste caso, poupa-me os teus comentários.
Limita-te a responder ao que eu te perguntar e nada
mais.
Deixei o conde e encaminhei-me para o quarto em
que jazia Olga...
(Aqui há mais linhas riscadas. A. T.)
174
22
No quarto de Olga, um candeeiro azul iluminava
debilmente os rostos, mas não permitia sequer ler ou
escrever. Olga estava estendida na cama, com a cara
envolta em ligaduras. Só ficavam à vista o nariz fino,
branco como a cera, e as pálpebras fechadas. Quando
entrei tinha o peito a descoberto, porque estavam a
colocar sobre ele um saco de gelo 1.
Olga ainda respirava. Dois médicos cuidavam dela.
Pavel Ivanovitch não parava de piscar os olhos e de
resfolegar, enquanto lhe auscultava o coração.
O médico da zemstvo, muito fatigado e de aspecto
enfermiço, encontrava-se sentado numa poltrona, junto
da cama e, com ar pensativo, tomava o pulso da
moribunda. O padre Iermiia havia acabado o seu ofício
e, envolvendo a cruz na estola, preparava-se para partir.
- Piotre Iegoritch - disse ele, suspirando -,
acalme-se. Nada podemos contra a vontade de Deus Todo-Poderoso!
Devemos confiar nos Seus desígnios. , ,
1 - Chamo a atenção do leitor para um pormenor: Kamichov
que, em todas as situações (até mesmo nas suas discussões com
Policarpe) é pródigo em comentar o seu estado de espírito, nada
refere acerca da impressão que lhe causou a visão de Olga
agonizante. Creio que esta omissão não é acidental. A. T.
175
Orbenine achava-se sentado num recanto, tão
mudado que quase não o reconheci. A inacção e a
intemperança dos últimos tempos eram bem patentes
nas roupas, já muito usadas, e no rosto encovado. Imóvel
e com a cabeça entre as mãos, não afastava os olhos da
cama. Havia sangue no seu rosto, tal como nos punhos e
nos dedos. Esquecera-se de se lavar.
Ah, a profecia da minha alma e do meu infeliz
pássaro! Sempre que o papagaio, que matei com as
minhas próprias mãos, recitava aquela frase acerca do
marido que matara a mulher, a imagem de Orbenine
acudia-me à mente. Por que razão?
Eu sabia que os maridos ciumentos, por vezes,
matam as mulheres que os enganam. Sabia, igualmente,
que as pessoas como Orbenine não são capazes de matar
ninguém. Por isso, parecia-me absurdo acreditar que
Orbenine tivesse assassinado Olga.
"Foi ele?", perguntei a mim mesmo, enquanto
observava a sua expressão acabrunhada. Para falar com
franqueza, apesar do relato feito pelo conde e do sangue
que via na cara e nas mãos do ex-administrador, não
pude concluir pela afirmativa.
"Se fosse ele o culpado", continuei a dizer para
comigo, "já há muito teria lavado o rosto e as mãos."
Veio-me à memória a afirmação de um juiz de instrução
meu amigo: "Os assassinos não conseguem suportar o
sangue das suas vítimas".
Se rebuscasse na memória, por certo encontraria
muitos adágios do mesmo teor, mas não me pareceu
conveniente encher o cérebro com juízos preconcebidos.
- Queira aceitar os meus cumprimentos - disse o
médico da zemstvo. - Ainda bem que veio... Diga-me,
por favor, quem é o dono desta casa?
- Ninguém - respondi-lhe. - Nesta casa reina o
caos.
- Bela frase, sim senhor - disse o médico, tossindo,
176
enervado -, mas que, na circunstância, nada adianta.
Há três horas que pedi uma garrafa de Porto ou de
champanhe e ninguém prestou atenção. Parecem mais
surdos do que galinholas! Só agora me trouxeram o gelo
que pedi há várias horas... É incrível! Há uma pessoa às
portas da morte e todos parecem muito divertidos! O
conde fechou-se nos seus aposentos, a enfrascar-se com
licores e, aqui, não consigo obter o mais pequeno copo
de um qualquer cordial. Quero mandar alguém à
farmácia mais próxima e respondem-me que os cavalos
estão todos cansados e os cocheiros embriagados. Quero
mandar alguém ao meu hospital para buscar medicamentos
e ligaduras e trazem-me um bebedolas, que mal
consegue ter-se de pé. Há já duas horas que falei com
ele e soube que só agora é que partiu... É um autêntico
escândalo! Só encontro aqui gente embriagada e
grosseira... Que idiotas! Por Deus, posso garantir-lhe que
nunca vi pessoas tão desapiedadas...
O médico não exagerava pelo contrário, uma noite
não bastaria para descarregar a bílis provocada pela
desordem e pelas coisas reprováveis que abundavam na
casa do conde. Desmoralizados pela ociosidade e pela
ausência prolongada do patrão, os criados haviam ficado
execráveis. Não havia nenhum que não fosse o protótipo
da perversidade e do vício.
Deprimido, apeteceu-me beber vinho. Distribuí dois
ou três bofetões e lá consegui obter champanhe e, até,
umas gotas de valeriana - o que muito regozijou os
médicos. Ao cabo de uma hora, chegou um enfermeiro
do hospital com tudo o mais que era necessário 1.
1 -Devo chamar a atenção do leitor para outra circunstância
importante. Durante duas ou três horas, Kamichov anda de um
lado para o outro, indigna-se com a atitude dos criados, conversa
com os médicos, distribui bofetadas, etc. Que juiz de instrução é
este? É manifesto que não tem pressa e, de uma maneira ou de
12 - Vampiro 684
177
Pavel Ivanovitch introduziu na boca de Olga uma
colher com champanhe. A rapariga fez um pequeno
movimento com a faringe e exalou um gemido. Em
seguida, deram-lhe uma injecção de algo parecido com
as gotas de Hoffmann.
- Olga Nicolaevna! - gritou-lhe, ao ouvido, o
médico da zemstov. - Olga Nicolaevna!
- Não é de esperar que recobre os sentidos -
suspirou Pavel Ivanovitch. - Perdeu muito sangue e o
golpe que lhe deram na cabeça com um instrumento
contundente, deve ter-lhe causado, decerto, uma comoção
cerebral.
Não me cabia saber se houvera ou não comoção
cerebral, mas o certo é que Olga abriu os olhos e pediu
água. Os estimulantes tinham produzido efeito.
- Aproveite para lhe perguntar o que quiser -
disse-me Pavel Ivanovitch, tocando-me com o cotovelo.
- Vá, interrogue-a...
Aproximei-me da cama... Olga fixou os olhos no meu
rosto.
- Onde estou? - murmurou.
- Olga Nicolaevna - comecei. - Reconhece-me?
Olhou para mim, durante alguns segundos, e voltou
a fechar os olhos.
- Sim - disse, com um gemido. - Sim.
- Sou Zinoviev, o juiz de instrução. Tive a honra de
a conhecer. Lembra-se? Fui o seu padrinho de casamento.
- És tu? - sussurrou, estendendo o braço esquerdo.
- Senta-te.
- Está a delirar - comentou Pavel Ivanovitch.
- Sou Zinoviev, o juiz de instrução - repeti. -
**
outra, tenta ganhar tempo. Parece saber já quem é o assassino.
Além disso, a inútil busca que fez ao quarto da "Coruja", como
adiante se verá, e o interrogatório dos ciganos, que é pouco mais
do que gratuito, não passam de meras dilações. A. T
178
Estive na caçada, não se recorda? Como se sente?
- Interrogue-a a fundo! - disse o médico da zemstov.
- A qualquer momento, pode perder os sentidos.
- Não me dê lições, por favor! - repliquei ofendido.
- Sei o que devo fazer. Olga Nicolaevna, procure
lembrar-se dos acontecimentos do dia de ontem. Vou
ajudá-la. A uma hora, montou a cavalo e partiu para a
caçada. A caçada durou quatro horas. Em seguida,
reuniram-se na orla do bosque. Recorda-se?
- E tu...tu mataste...
- A galinhola. Depois de matar a galinhola, a
senhora fez um gesto e afastou-se. Entrou no bosque.
Agora, procure lembrar-se. A senhora foi atacada no
bosque, durante o seu passeio, por alguém que não
sabemos quem é. Na minha qualidade de juiz de
instrução, pergunto-lhe quem foi.
Olga abriu os olhos e fitou-me, por instantes.
- Diga o nome do assaltante...Além de mim, estão,
aqui, mais três pessoas...
Olga abanou levemente a cabeça.
- Deve dizer quem foi - insisti. - Essa pessoa
será punida. A Lei há-de fazê-la pagar caro esse acto de
selvajaria. Será condenado a trabalhos forçados. Vá,
fale!...1
Olga sorriu e abanou a cabeça, de novo. O resto do
interrogatório não esclareceu fosse o que fosse. Não pude
conseguir que pronunciasse outra palavra ou fizesse
qualquer gesto.
Às cinco menos um quarto, Olga expirou.
Pelas sete da manhã, chegaram as pessoas que eu
havia convocado: o regedor e as testemunhas. Foi
1 - Tudo isto só é sincero na aparência. É evidente que
Kamichov procurou fazer ver a Olga as consequências das declarações
que fizesse. Se o assassino fosse alguém de quem gostasse
muito, deveria calar-se. A. T.
179
impossível visitar o local do crime, porque a chuva, que
começara a cair durante a noite, era, então, torrencial.
Os charcos haviam-se convertido em lagos e o céu,
cinzento-escuro, não prometia melhoria para breve.
As árvores, a cada rabanada de vento, deixavam cair as
folhas e os ramos. Era impossível partir para o bosque
além disso, não faria sentido tal diligência, uma vez que
a chuva já havia certamente apagado todas as pistas do
crime.
A Lei exigia, contudo, que o local fosse inspeccionado.
Adiei a diligência até ao momento em que chegasse a
polícia e, entretanto, redigi o auto de notícia e comecei
os interrogatórios.
Os primeiros a serem inquiridos foram os ciganos.
Os infelizes cantores tinham esperado em vão, durante
toda a noite, que aparecessem os cavalos de que
necessitavam para ir até à estação. Os criados atiravam
as culpas para o conde, uma vez que Sua Excelência
proibira que o incomodassem.
Os pobres diabos, convencidos de que eu suspeitava
deles, esforçaram-se por me convencer, de lágrimas nos
olhos, não só de que estavam inocentes como ainda de
que nada sabiam acerca do que acontecera. Tina, vendo-me
revestido da autoridade inerente ao meu cargo
oficial, esqueceu-se inteiramente das nossas intimidades
passadas e, quando falou comigo, tremia como uma
criança assustada. Quando referi que não havia motivo
para receios porque os interrogava apenas como
testemunhas, declararam em uníssono que nada haviam
visto, que não sabiam fosse o que fosse e que o seu maior
desejo era o de a Providência Divina os manter afastados
da polícia e dos tribunais.
Perguntei-lhes que caminho haviam seguido desde
a estação até àquela casa e se algum deles se tinha
afastado dos demais, atravessado o bosque onde fora
cometido o crime e, porventura, ouvido o grito estridente
180
de Olga 1. Este interrogatório não deu qualquer resultado.
Aterrorizados, os ciganos forçaram dois de entre eles a
irem à aldeia alugar carros. Queriam partir dali o mais
depressa possível. Os enviados conseguiram alugar cinco
carroças pelo triplo do preço do habitual e, ao fim da
tarde, o desditoso coro pôde finalmente partir e respirar
de alívio.
Vieram a ser reembolsados das despesas, mas
ninguém podia indemnizá-los pelos tormentos morais a
que tinham sido submetidos na casa do conde.
Em seguida, passei busca ao quarto da "Coruja" 2.
No seu baú fui encontrar muita roupa velha, mas por
mais que remexesse nas meias remendadas e nas toucas
rotas, nem rasto do dinheiro e dos objectos de valor que
a velha roubava ao conde e aos convidados. Nem sequer
descobri o que havia roubado a Tina. Era manifesto que
a patifória dispunha de outro esconderijo, que só ela
conhecia.
Não vou reproduzir aqui todo o processo nem tão pouco
os pormenores da inspecção ao local do crime. Seria
longo, fastidioso e, em grande parte, já o esqueci. Limitar-me-ei,
portanto, a referir as linhas gerais mais
importantes.
Nos autos descrevi, primeiro, o estado em que fora
encontrar a vítima e relatei pormenorizadamente o
interrogatório de Olga. As suas respostas mostravam que
ela se achava plenamente consciente e que fora
deliberado o seu propósito de ocultar o nome do
assassino.
1 - Se estas informações eram consideradas úteis por
Kamichov, não teria sido mais fácil interrogar os cocheiros
destacados para ir buscar os ciganos à estação? A. T.
2 - Para quê? Mesmo que o tivesse feito em consequência do
álcool que havia bebido para quê descrever a busca? Não teria
sido melhor ocultar ao leitor esta diligência sem sentido? A. T.
181

O exame do seu vestido, a que procedi conjuntamente
com o comissário da polícia local, entretanto chegado,
forneceu alguns indícios. O casaco de veludo, forrado de
seda, ainda estava húmido. O lado direito, perfurado pelo
punhal, achava-se empapado em sangue em alguns
pontos havia ainda restos de sangue coagulado.
A hemorragia fora considerável e parecia incrível que
Olga não tivesse morrido de imediato. O lado esquerdo
também se achava ensanguentado e a manga, rasgada
desde o ombro até ao punho. Os dois primeiros botões,
na parte de cima do casaco, tinham sido arrancados, e
não os conseguimos encontrar. A saia de amazona, de
casimira escura, apresentava-se muito amarrotada
devido à forma como o corpo havia sido transportado, do
bosque até ao carro e deste até ao quarto, e estava
rasgada na cintura. Este rasgão, com cerca de seis
centímetros, devia ter resultado do transporte ou da
forma como lhe haviam despido a saia talvez, até, já
existisse quando Olga a vestira. Era pouco cuidadosa e,
possivelmente ao notar o rasgão, em vez de o coser ela
própria ou de pedir que alguém o remendasse, decidira
dissimulá-lo, cobrindo-o com o casaco. Na verdade, creio
que o furor selvagem do criminoso, em que tanto insistiu
o substituto do promotor de justiça, nada teve a ver com
aquele rasgão.
O lado direito do cinto e o bolso esquerdo achavam-se
encharcados de sangue. O lenço e as luvas que Olga
guardara nesse bolso não eram mais do que bolas
ensopadas e vermelhas. Em toda a saia, desde a cintura
até à bainha inferior, viam-se manchas sangrentas de
várias formas e tamanhos na sua maioria eram marcas
de mãos e dedos, deixadas, segundo consta do processo,
pelos criados e cocheiros que transportaram Olga.
A blusa estava igualmente cheia de sangue, sobretudo
no lado direito, onde se podia observar o buraco causado
pela arma do crime. Havia rasgões no ombro esquerdo,
182
no punho e na parte da frente. O punho apresentava-se
até rasgado.
O relógio de ouro de Olga e a sua comprida cadeia,
também de ouro, estavam junto das peças de roupa, tal
como um alfinete de diamantes, os brincos, os anéis e o
porta-moedas com dinheiro. Era evidente que o móbil
do crime não fora o roubo.
A autópsia foi efectuada na minha presença, no dia
seguinte ao da morte, por Pavel Ivanovitch e pelo médico
da zemstuo do seu extenso relatório só transcreverei as
passagens mais importantes.
No exame externo, os médicos encontraram as
seguintes lesões: na cabeça, sobre a têmpora esquerda,
uma ferida com cerca de dois centímetros, que penetrava
até ao osso e apresentava bordos irregulares fora
produzida por um objecto contundente e muito
provavelmente, segundo veio a concluir-se mais tarde,
pelo cabo de um punhal. Na parte posterior do pescoço,
ao nível das vértebras cervicais, notava-se um vergão
vermelho, semi-circular a toda a sua largura foram
detectadas lesões epidérmicas e equimoses pouco
importantes. Alguns centímetros acima do pulso
esquerdo apareciam quatro manchas azuis: uma na parte
anterior do braço e as outras na posterior. Pareciam
resultar da pressão de dedos, o que era confirmado por
um arranhão sobre uma delas, certamente devido ao
cravar de uma unha.
A manga esquerda do casaco estava rasgada na parte
correspondente a essas manchas, o mesmo sucedendo
com a manga esquerda da blusa. Entre a quarta e a
quinta costelas, a partir do ombro, havia uma grande
ferida exposta, com três centímetros de largura.
Os bordos dessa ferida eram lisos e estavam cheios de
sangue líqüido e coagulado. Conforme resultava das
informações obtidas anteriormente, o ferimento fora
produzido por um punhal cuja lâmina correspondia às
183
dimensões da ferida.
O exame interno revelou lesões no pulmão e na
pleura, com entrada de sangue nesta última.
Se bem me lembro, as conclusões dos médicos foram
as seguintes:
a) A morte resultou de anemia em consequência da
forte hemorragia proveniente do ferimento aberto no lado
direito do peito
b) A ferida da cabeça era grave, e a do peito mortal
c) A ferida da cabeça fora causada por arma contundente
e a do peito, por arma afiada, muito provavelmente
de dois gumes
d) Nenhuma das lesões podia ter sido feita pela mão
da vítima
e) Não havia indícios de violação ou, sequer, de
tentativa de violação.
Para não me alongar, e para evitar de o fazer mais à
frente, vou relatar, desde já, a reconstituição do crime,
tal como pude esboçá-la a partir dos exames médicos,
dos dois ou três interrogatórios iniciais e do relatório da
autópsia.
Olga afastou-se dos demais participantes da caçada
e foi passear no bosque. Pensativa ou assaltada por
pensamentos tristes - o leitor recorda-se, por certo, da
sua melancolia naquela tarde -, embrenhou-se no
matagal. Foi aí que se produziu o seu encontro com o
assassino. Quando se achava debaixo de uma árvore,
aquele aproximou-se e falou-lhe.
Era alguém que não lhe despertou suspeitas, pois,
caso contrário, teria gritado. Depois de ter falado com
ela, o assassino pegou-lhe no braço com tal força que lhe
rasgou as mangas do casaco e da blusa, deixando no braço
quatro ou cinco nódoas negras. Provavelmente, foi nesta
altura que ela soltou o grito ouvido na clareira, quando
viu na cara do agressor quais eram as suas intenções.
Ao tentar impedi-la de gritar novamente, o atacante,
184
num acesso de fúria, agarrou-a pelo peito, perto do
pescoço - o que explica a perda dos dois botões da blusa
e o vergão no pescoço. Com esse gesto, o homicida deve
ter puxado o cordão de ouro com energia, e o atrito deste
na pele provocou a referida equimose. De seguida, bateu-lhe
na cabeça com um objecto contundente: uma bengala
ou o cabo do punhal da rapariga. Enfurecido, ou
apercebendo-se de que o golpe não era suficiente para
conseguir o seu objectivo, o agressor, então, tirou o
punhal da bainha e cravou-o, com grande violência, no
flanco direito da vítima - e digo "com grande violência"
porque o punhal não estava afiado.
Foi este o lúgubre cenário que reconstituí, baseando-me
nos dados mencionados atrás.
Não se afigurava difícil descobrir quem fora o
culpado por assim dizer, a questão resolvia-se por si.
Antes do mais, o móbil não fora o roubo. Não era possível,
portanto, suspeitar de qualquer vagabundo transviado
ou de um dos pescadores do lago. O grito da vítima não
teria impedido o assaltante de lhe arrancar o relógio e o
alfinete do peito. Em segundo lugar, Olga não quis
revelar deliberadamente a identidade do assassino. Se
tivesse sido assaltada por um ladrão vulgar, não deixaria
de referir esse facto, mesmo que não soubesse o nome do
criminoso. O assassino era certamente alguém a quem
muito estimava, a ponto de não querer que, por sua
denúncia, fosse condenado a pesada pena. Alguém que
poderia ser: o pai, louco o marido, que não amava mas
em relação ao qual talvez sentisse um peso na
consciência ou o conde, por quem podia nutrir um
sentimento de gratidão...
No dia do crime, o pai de Olga - como veio a provar-se
- permaneceu em sua casa, a redigir uma carta ao
comissário, solicitando protecção contra os ladrões
imaginários que, na sua fantasia, rondavam por perto,
de dia e de noite.
185
O conde não se afastara dos seus convidados, antes
do crime, e estava entre eles quando ocorreu a agressão.
Restava, como suspeito, o desventurado Orbenine.
A sua súbita aparição e o seu aspecto eram indícios mais
do que convincentes.
Por último, a vida de Olga, na fase mais recente,
não fora mais do que uma novela, uma novela das que
em regra acabam com um crime. Um marido velho e
apaixonado, enganado e ciumento, que bate na mulher
infiel a fuga desta para casa do amante, dois meses
depois de se ter casado. Se uma heroína de novela deste
género aparece assassinada não há que procurar o
criminoso entre os ladrões ou bandidos vulgares, mas,
isso sim, entre personagens da novela. E a personagem
mais adequada era, sem dúvida, Orbenine...
Iniciei a instrução do processo no salão de azulejos,
em cujos sofás fofos tantas vezes me afundara, rodeado
de belas ciganas. Comecei por ouvir Orbenine. Foram
buscá-lo ao quarto de Olga, onde continuava sentado no
mesmo local, sem tirar os olhos do leito vazio. Durante
uns instantes ficou em silêncio, à minha frente, a olhar-me,
sem qualquer emoção. Por fim, adivinhando que
eu ia interrogá-lo, disse-me com a voz de um homem
exausto e abatido pela desgraça e pela tristeza:
- Interrogue primeiro as outras testemunhas,
Sergei Petrovitch... Deixe-me para depois... Não aguento
mais...
Orbenine qualificava-se de testemunha, convencido
de que ia ser ouvido como tal.
- Não - retorqui. - É precisamente agora que vou
interrogá-lo. Sente-se.
Orbenine, cabisbaixo, sentou-se à minha frente.
Cansado e doente, foi contra-vontade que respondeu às
minhas perguntas tive grande dificuldade em conseguir
o seu depoimento Declarou o nome, a idade, a profissão
e a religião que professava. Era dono de uma propriedade
186
no distrito vizinho de K..., onde fora educado e onde
exercera o cargo de juiz de paz, para o qual fora eleito
por duas vezes. Arruinado, vira-se forçado a hipotecar a
propriedade e a procurar emprego. Durante seis anos
trabalhara como administrador do conde. Como gostava
da agricultura não se sentia diminuído por estar ao
serviço de um particular em seu entender, só os
estúpidos se envergonham de trabalhar. Recebera
sempre pontualmente o seu ordenado e, quanto a isso,
não podia queixar-se. Do seu primeiro casamento tinha
um filho e uma filha. etc., etc.
Casara-se com Olga por amor. Lutara longa e
penosamente contra esse sentimento, mas nem a lógica
nem o bom-senso, nem sequer a sua experiência da vida,
haviam conseguido dissuadi-lo. Acabara por ceder a essa
paixão, mas, julgando-a uma pessoa de elevada moral,
decidira contentar-se com a sua fidelidade e com a
amizade, que dela esperava obter.
Chegado à altura em que haviam começado as suas
decepções e ao ultraje que acabara por sofrer, Orbenine
solicitou que não se falasse desse assunto - "Que Deus
perdoe a Olga!" - ou, pelo menos, fosse relegado para
mais tarde.
- Não consigo... É muito penoso para mim...
O senhor sabe-o bem... Viu com os seus próprios olhos...
- Bem, deixemos isso, por agora... Diga-me somente
mais uma coisa: é verdade que bateu na sua mulher?
Consta que, certo dia, interceptou uma carta do conde,
e que lhe bateu...
- É falso!... Agarrei-a pelo braço, mas ela começou
logo a chorar... Nessa mesma noite fugiu de casa...
- Tinha conhecimento da relação que ela mantinha
com o conde?
- Já pedi que deixássemos esse assunto para mais
tarde... Aliás, para que serve abordá-lo?
- Responda apenas a esta pergunta, que é de
187
importância vital: tinha conhecimento da relação que a
sua mulher mantinha com o conde?
- Claro que sim.
- Tomo nota. No que respeita à infidelidade da sua
mulher, isso fica para depois. Agora, passemos a outro
ponto. Explique porque se encontrava no bosque, na
tarde em que Olga Nicolaevna foi assassinada. Segundo
disse, estava a viver na cidade... Sendo assim, como
apareceu no bosque?
- Sim, estou a viver na cidade, em casa de uma
prima minha, desde que fui despedido pelo conde... Tenho
andado a procurar emprego e bebo em demasia para
afogar as mágoas... Principalmente, no último mês... Por
exemplo, não consigo lembrar-me de nada do que eu fiz
na semana passada... Anteontem também me embriaguei...
Sim, sou um homem perdido... irremediavelmente
perdido...
- Quer explicar por que razão foi ao bosque?
- Sim, senhor. Acordei muito cedo, aí pelas quatro
da madrugada... Doía-me a cabeça por causa da
bebedeira da véspera e sentia o corpo todo dorido, como
se estivesse com febre... Da cama vi, pela janela, o nascer
do Sol e, então, recordei-me de muitas coisas... O coração
apertou-se-me e, de repente, tive o desejo de voltar a vê-la,
nem que fosse pela última vez... A cólera e a angústia
tomaram conta de mim. Tirei do bolso cem rublos que o
conde mandara entregar-me, olhei-os com raiva e
calquei-os com os pés... Depois de os pisar vezes sem
conta, decidi ir atirar-lhe à cara aquela esmola... Por
mais pobre que esteja, por mais andrajoso que ande, não
vendo a minha honra e considero injuriosas todas as
tentativas de a comprar... Aí tem: quis ver Olga e atirar
o dinheiro à cara do seu amante. Este desejo foi tão forte
que quase enlouqueci! Para vir até cá, não tinha dinheiro.
Não podia tocar nos cem rublos dele. Por isso, decidi vir
a pé. Felizmente encontrei um conhecido que, por dez
188
copeques, me transportou ao longo de vinte quilómetros.
De outra forma teria feito todo o caminho a pé. O meu
conhecido deixou-me em Tenieicvo, donde caminhei até
aqui. Cheguei cerca das quatro horas...
- Alguém o viu chegar?
- Sim, senhor. O guarda Nikolai, que se achava
sentado junto do portão. Disse-me que os amos haviam
partido para uma caçada. Estava a cair de cansaço, mas
o desejo de voltar a ver a minha mulher deu-me forças.
Não segui pela estrada. Atravessei o bosque novo, onde
conheço todas as árvores e é mais difícil perder-me do
que na minha própria casa.
- Mas, atravessando o bosque arriscava-se a não
encontrar os caçadores...
- Não, senhor. Segui sempre perto da estrada e pude
ouvir os tiros e, até, algumas conversas.
- Não esperava, então, encontrar a sua mulher no
bosque?
Orbenine fitou-me, surpreendido e, depois de
reflectir, comentou:
- Perdoe-me, mas acho essa pergunta muito
estranha. Supor que vai encontrar-se um lobo já é difícil,
mas adivinhar desgraças como esta é ainda mais difícil.
As desgraças são enviadas por Deus imprevisivelmente...
como esta horrível ocorrência, por exemplo. Ia a
caminhar pelo bosque de Olkovo, sem esperar qualquer
infortúnio... Já me bastavam os que me tinham caído
em cima!... De repente, ouvi um grito terrível. Foi tão
estridente que quase me rebentou os tímpanos... Corri
na direcção de onde viera o som...
(A boca de Orbenine contorceu-se, o queixo tremeu-lhe,
as pálpebras bateram e o homem começou a soluçar.)
. Corri na direcção de onde viera o grito e deparou-se-me
Olga, estendida por terra... Tinha o cabelo e a
fronte cobertos de sangue... Uma visão medonha!...
Comecei a gritar, a chamar por ela... Não fez qualquer
189
movimento... Então, beijei-a, levantei o seu corpo e...
Orbenine engasgou-se e limpou o rosto com a manga
do casaco. Passados alguns instantes, continuou:
- Não vi o assassino, mas quando corri para Olga
lembro-me de ter ouvido passos precipitados... Era ele,
a fugir...
- Tudo isso está muito bem engendrado, Piotre
Iegoritch - adiantei -, mas, que quer?, um juiz de
instrução tem dificuldade em aceitar semelhante
coincidência: o assassínio, a sua passeata e coisas assim...
Não está mal pensado, mas não explica seja o que for.
- O quê? Não está mal pensado? - exclamou
Orbenine, com os olhos a saírem-lhe das órbitas. - Não
estou a inventar nada, senhor!
Ficou muito corado e pôs-se de pé.
- Parece que suspeita de mim - balbuciou. -
Naturalmente tem o direito de suspeitar de quem quer
que seja, mas, Sergei Petrovitch, o senhor conhece-me
há muito tempo. É monstruoso que possa suspeitar de
mim. Francamente, o senhor conhece-me bem!
- Conheço-o, sim, mas as minhas opiniões pessoais
não importam. A Lei atribui aos jurados a liberdade de
decidir, e ao juiz de instrução apenas cabe recolher
indícios e formular a acusação. Ora, neste caso, os
indícios são numerosos, Piotre Iegoritch.
- Por muito numerosos e graves que sejam, há que
ponderá-los. Pense bem! É lá possível! Eu, matar
alguém? Podia matar uma codorniz, uma galinhola...
mas um ser humano? O ser humano a quem eu mais
queria na vida? Uma criatura que, só de me lembrar
dela, era o sol da minha desgraça?... E o senhor suspeita
de mim!?...
Orbenine teve um gesto de desespero e voltou a
sentar-se.
- Eu só peço a Deus que me leve e o senhor insulta-me
dessa maneira!... Se a injúria viesse de um
190
desconhecido talvez pudesse tolerá-la, mas de si, Sergei
Petrovitch!... Permita-me que me retire...
- Pode retirar-se... Voltarei a interrogá-lo amanhã,
mas, até lá, Piotre Iegoritch, sou obrigado a mantê-lo
sob prisão. Espero que, tendo em vista o interrogatório
de amanhã, reflicta sobre a gravidade dos indícios
acusatórios que pesam sobre si. Não procure manobras
dilatórias. É melhor confessar a verdade quanto antes.
Estou convencido de que matou Olga Nicolaevna. É tudo,
por agora. Pode retirar-se.
Debrucei-me sobre os papéis que estavam sobre a
mesa. Orbenine olhou-me, atónito, levantou-se e ergueu
os braços.
- Está a brincar ou a falar a sério? - perguntou.
- Acha que o momento é para brincadeiras? -
retorqui. - Pode retirar-se.
Orbenine, contudo, permaneceu de pé. Olhei-o de
soslaio. Estava pálido e desconcertado, a observar os
meus papéis.
- Porque tem as mãos sujas de sangue, Piotre
Iegoritch? - perguntei-lhe.
Examinou as mãos, ainda cheias de sangue, e abriu
os dedos.
- Porque tenho sangue nas mãos?... Hum, se esse é
o seu indício, não vale muito... Quando levantei o corpo
de Olga, tive forçosamente de sujar os dedos com
sangue... Não tinha luvas...
- Disse-me há momentos que, ao ver a sua mulher,
gritou a pedir socorro. Como explica que ninguém tenha
ouvido os seus gritos?
- Não sei. Ao avistar Olga, fiquei tão emocionado
que não devo ter soltado um grito muito forte... Aliás,
não sei nada... Não tenho de justificar-me, não está nos
meus princípios...
- É duvidoso que tenha gritado. Depois de a matar,
fugiu e ficou atónito quando se deparou com toda aquela
191
gente reunida na orla do bosque.
- Nem sequer reparei que havia gente. Naquele
momento, não via nada à minha frente.
Terminou aqui o interrogatório a Orbenine. O ex-administrador
foi preso e encerrado numa das dependências
da casa do conde.
No segundo ou terceiro dia do inquérito, chegou da
cidade o substituto do promotor de justiça. Chamava-se
Polugradov e era um sujeito de quem não posso lembrar-me
sem ficar mal-humorado. Imaginem os leitores um
homem alto, magro, de uns trinta anos, bem barbeado,
de cabelo frisado e vestido com elegância. Tinha traços
finos, mas o rosto era tão seco e desdenhoso que era fácil
perceber a vaidade e a arrogância da personagem. Falava
com uma vozinha neutra, melíflua e insípida e procurava
mostrar-se tão distinto que chegava a causar nojo.
Apareceu de manhã, muito cedo, num carro de
aluguer, e trouxe consigo duas malas. Com ar preocupado
e queixando-se da fadiga, perguntou se havia alojamento
para ele na casa do conde. Ordenei que pusessem à sua
disposição um quarto confortável, equipado com tudo
aquilo de que pudesse precisar, desde um lavatório de
mármore até uma caixa de fósforos.
- Traga-me água quente - disse ao criado, depois
de inspirar o ar do quarto com um trejeito de asco. -
Estou a falar consigo, jovem! Traga-me água quente!
Antes de começar a trabalhar, levou imenso tempo
a lavar-se, a pentear-se e a mudar de roupa. Lavou os
dentes com um pó vermelho e, durante três minutos,
limou as unhas pontiagudas e rosadas.
- Ora, muito bem! - disse-me, quando finalmente
terminou os preparativos e folheou o meu relatório. -
De que se trata?
Expus-lhe o caso pormenorizadamente.
- Já foi ao local do crime?
:. -Não, ainda não.
192
O substituto franziu o sobrolho, passou a mão
delicada pela testa e começou a andar de um lado para o
outro.
- Não percebo porque não o fez - comentou. - Na
minha opinião, era a primeira diligência a efectuar.
Esqueceu-se ou julgou que isso seria desnecessário?
- Nem uma coisa nem outra. Durante o dia de ontem
fiquei à espera que chegasse a polícia. Pensava ir lá,
hoje.
- Agora parece-me inútil. Já nada deve estar na
mesma. Choveu muito e o criminoso teve tempo de sobra
para apagar todos os vestígios. Ao menos, colocou lá um
guarda? Não? Francamente, não percebo!
O substituto encolheu os ombros, não escondendo o
seu desagrado nem o seu autoritarismo.
- Beba o chá - disse-lhe, sem me impressionar. -
Vai arrefecer.
- Gosto dele frio.
O homem inclinou-se sobre as folhas escritas e
começou a lê-las em voz alta, fazendo pausas, de tempos
a tempos, para introduzir alterações ou produzir
comentários. Por duas ou três vezes, franziu os lábios
num sorriso de troça. Não sei porquê, não gostava nem
do meu relatório nem do parecer dos médicos 1. Era o
protótipo do funcionário público, asseado, elegante,
picuinhas, presunçoso e muito convencido da sua
importância.
Ao meio-dia fomos ao local do crime. Como é
evidente, não descobrimos qualquer pista a chuva tinha
lavado tudo. Mesmo assim, consegui encontrar, nem sei
1 - Afiguram-se insubsistentes as censuras que Kamichov
dirige ao substituto. O único pormenor indiscutível é que não lhe
agradava a cara dele. Seria mais honesto da parte do narrador
confessar a sua inexperiência profissional ou os seus erros
deliberados. A. T.
13 - Vampiro 684
193
como, um dos botões que faltavam no casaco de Olga.
O substituto, por seu lado, recolheu do chão um objecto
vermelho, identificado mais tarde como uma tabaqueira.
A princípio, demos atenção a um arbusto que apresentava
dois ramos partidos. O substituto ficou muito
satisfeito quando detectou esse pormenor. Os ramos
podiam ter sido quebrados pela passagem do assassino,
indicando assim o caminho por onde fugira, depois do
crime. A sua alegria foi, porém, de curta duração. Logo
a seguir, encontrámos muitos outros arbustos com ramos
partidos ou sem folhas. É que por aquele local passavam
com frequência os rebanhos.
Depois de ter desenhado a planta da zona e de
interrogar os cocheiros, que nos haviam conduzido até
ali, acerca da posição em que tinham encontrado o corpo
de Olga, regressámos a casa com um sentimento de
frustração. Enquanto durara a inspecção, um observador
imparcial decerto teria notado uma certa preguiça e até
desencanto da nossa actuação. Isso resultava, sem
dúvida, do facto de já termos o culpado nas nossas mãos
e, portanto, não ser necessário proceder a buscas como
as que celebrizaram o agente Lecoq.
Mal regressou a casa, Polugradov mudou novamente
de roupa, voltou a pedir água quente e lavou-se durante
largo tempo. Quando acabou as suas abluções, manifestou
o desejo de interrogar Orbenine. Nesta nova
inquirição, o pobre Piotre Iegoritch pouco mais adiantou.
Voltou a negar a autoria do crime e não atribuiu qualquer
importância aos indícios que o culpabilizavam.
- Fico espantado por suspeitarem de mim -
comentou, com um encolher de ombros. - É estranho!
- Não se faça de ingénuo - ripostou Polugradov.
- Ninguém suspeita sem motivo e quando se suspeita
de alguém, alguma razão há para o fazer.
- Sejam quais forem as razões e essas suspeitas, é
necessário raciocinar humanamente. Eu não sou capaz
194
de matar... Compreendem? Não sou capaz! Contra isto
que podem as suas acusações?...
- Ah - disse o substituto, com um gesto de enfado
- estes criminosos das classes instruídas!... Podemos
inculpar um rústico qualquer, mas estes... Não sou capaz!
É necessário raciocinar humanamente!... Daqui a pouco
entramos numa dissertação de Psicologia...
Orbenine sentiu-se ofendido.
- Não sou um criminoso! Peço-lhe que modere as
suas palavras.
- Cale-se! Não estamos aqui para lhe pedir
desculpas nem para escutar as suas queixas! Se não quer
confessar, não confesse, mas não pode impedir-me de
lhe chamar mentiroso...
- Como quiser - murmurou Orbenine. - Façam
de mim o que lhes aprouver... Estou à vossa mercê...
Fez um gesto de desânimo e prosseguiu, olhando pela
janela:
- De qualquer forma, pouco me importo. A minha
vida está destroçada...
- Ouça, Piotre Iegoritch - intervim eu -, ontem e
anteontem, mostrou-se tão abatido que mal se conseguia
ter de pé contudo, hoje está com bom aspecto, aparenta
melhor disposição e não nos poupa a raciocínios e
alegações. Aqueles que sofreram uma desgraça não são
muito faladores, mas o senhor, pelo contrário, não só
expõe as suas razões como até se permite exprimir o seu
descontentamento. Como explica essa mudança tão
repentina?
- Como a explica o senhor? - replicou, piscando os
olhos, com ar zombeteiro.
- Explico-a pelo facto de que se esqueceu já do papel
que estava a representar. É difícil representar o mesmo
papel durante muito tempo. Acabamos por esquecê-lo
ou ficar farto dele.
- É bem o raciocínio de um juiz de instrução -
195
comentou Orbenine, com um sorriso - e honra a sua
capacidade imaginativa. Sim, tem razão. Operou-se em
mim uma grande mudança...
- Pode explicar porquê?
- Posso. Não creio que seja necessário ocultar a
razão dessa transformação. Ontem, estava tão abatido,
tão esmagado pela dor, que só pensava em suicidar-me,
se, antes disso, não enlouquecesse. Durante a noite,
porém, reflecti... Ocorreu-me, então, que a morte
libertara Olga de uma vida de libertinagem, arrancando-a
das mãos imundas do seu vicioso amante. Não tenho
ciúmes da morte. É melhor que Olga esteja nas suas
mãos do que nas do conde... Esta idéia alegrou-me e
confortou-me. Agora, o peso que me esmaga a alma é
mais suportável...
- Bem visto! - murmurou Polugradov, entre
dentes. -Argumentos não lhe faltam...
- Estou a falar com toda a sinceridade e estranho
que pessoas cultas não saibam distinguir o que é sincero
do que é falso. As idéias preconcebidas são sempre
perigosas quem se deixe levar por elas acaba por se
enganar. Por isso, compreendo a vossa atitude e já posso
imaginar qual será o resultado, quando for julgado com
base nos indícios que invocam contra mim... O júri vai
levar em conta o meu aspecto selvagem, o meu vício da
bebida, Não sou um monstro, mas todos esses
preconceitos vão produzir o seu efeito.
- Bom - disse Polugradov, debruçando-se sobre os
seus papéis -, já basta! Retire-se.
196
23
Depois de Orbenine sair, iniciámos o interrogatório
do conde. Sua Excelência apareceu em robe de chambre
com um lenço na testa empapado em vinagre. Cumpri-
mentou o substituto, estirou-se numa poltrona e
declarou:
- Vou contar tudo desde o princípio... Como está o
presidente Lionski? Ainda não se separou da mulher?
Conheci-o por acaso, em São Petersburgo... Porque não
pedem uma bebida? Sempre é mais agradável conversar
enquanto se saboreia um cálice de conhaque... Não tenho
qualquer dúvida de que Orbenine foi o autor do crime...
E Karnieiev contou-nos tudo aquilo que o leitor já
conhece. A pedido do substituto, relatou com todos os
pormenores as delícias da sua relação com Olga.
Entusiasmou-se de tal forma que, por várias vezes, deu
estalidos com a língua e piscou os olhos. Graças ao seu
depoimento, fiquei a conhecer um facto relevante, até
agora ignorado também pelos leitores. Da cidade,
Orbenine escreveu inúmeras cartas ao antigo patrão,
umas vezes para o insultar e outras para lhe suplicar
que lhe devolvesse a mulher, prometendo esquecer as
ofensas, a desonra e tudo o mais que sofrera. O pobre
homem agarrava-se a essas cartas como a uma tábua de
salvação.
197
Depois de haver interrogado dois ou três cocheiros,
o substituto jantou lentamente, entregou-me um plano
das diligências a efectuar e partiu. Antes de deixar a
casa do conde, passou pela dependência onde fora
trancado Orbenine e informou-o de que a nossa suspeita
acerca da sua culpabilidade se convertera em certeza.
Orbenine, com um gesto de indiferença, pediu
permissão para assistir ao enterro da mulher - o que
lhe foi concedido.
Polugradov não lhe mentiu: a nossa suspeita
convertera-se em certeza. Estávamos certos de ter nas
nossas mãos o verdadeiro criminoso. Essa certeza,
porém, não durou muito.
198
24
Certa manhã, quando eu colocava numa pasta os
documentos do processo para os enviar, juntamente com
o detido, para a cidade, ouvi grande alvoroço.
Acerquei-me da janela e vi meia dúzia de rapazes
robustos que, para fora da cozinha, arrastavam Kuzma,
o vesgo.
Pálido e cansado, dobrado sobre si próprio, Kuzma,
não podendo defender-se com as mãos, batia com a cabeça
nos que o seguravam.
- Venha, Excelência! - gritou Ilia, muito excitado.
- Ele não quer andar.
- Quem?
- O assassino!
- Que assassino?
- Kuzma... É ele o criminoso, Excelência. Piotre
Iegoritch está inocente! Palavra, senhor!
Desci ao pátio e dirigi-me à cozinha da criadagem,
onde Kuzma, que se libertara dos braços que o
manietavam distribuía murros à esquerda e à direita.
- Que se passa? - perguntei, aproximando-me do
grupo.
E ouvi esta afirmação inesperada:
- Excelência, Kuzma é o assassino!
- Mentira! - gritou o vesgo. - Que Deus me
castigue se não estão a mentir.
199
- Então, patife, porque lavavas o sangue se tinhas
a consciência tranquila? Espera até Sua Excelência ficar
a saber o que fizeste.
Aconteceu que o guarda-florestal Trifone, ao passar,
a cavalo, perto do ribeiro, tinha visto Kuzma a lavar
algo com todo o cuidado. Primeiro, julgava que se tratava
de roupa interior, mas, depois, deu-se conta de que era
um cafetã e um colete. Aquilo pareceu-lhe muito
estranho.
- Que estás a fazer aí? - gritou-lhe.
Kuzma mostrou-se perturbado. Trifone olhou melhor
e pôde ver que o cafetã exibia manchas escuras.
- Apercebi-me logo de que eram de sangue... Fui à
cozinha e contei a todos o que tinha presenciado.
Postámo-nos à espreita e vimo-lo ir pôr a roupa a secar
no jardim, pela calada da noite. Naturalmente, ficámos
perplexos. Por que o fazia às escondidas, se não tinha
algum peso na consciência? Quem se esconde é porque
não tem a alma tranquila... Depois de matutar no caso,
aqui lho trazemos, meu senhor... Ele não queria. Resistiu
e insultou-nos Por que resiste, se não tem culpas no
cartório?
Pelo interrogatório a que procedi seguidamente,
apurou-se que, enquanto o conde e os convidados
tomavam chá, Kuzma dirigira-se para o bosque. Depois
do crime, não ajudou a transportar o corpo de Olga e,
por conseguinte, não foi nesse trabalho que as suas
roupas ficaram sujas de sangue.
Quando o trouxeram para o meu gabinete, o vesgo
estava tão emocionado que, durante certo tempo, não
conseguiu articular palavra. Entortando ainda mais os
olhos, benzia-se em silêncio.
-Acalma-te! - aconselhei-o. - Se me contares tudo
poderás ir embora.
Kuzma deixou-se cair a meus pés e, gaguejando,
renovou as suas juras:
200
- Que Deus me mate se fui eu!... Juro pela alma do
meu pai e pela da minha mãe!... Que Deus destrua a
minha vida!...
- Foste ao bosque?
- Fui, sim, Excelência. Servi conhaque aos senhores
e, Deus me perdoe, também bebi um pouco. O álcool
subiu-me à cabeça e apeteceu-me dormir a sesta.
Estendi-me no chão e adormeci. Por isso não vi nada!
Não sei quem matou nem como matou!... Estou a dizer a
verdade, acredite!
- Então, por que foste lavar essas manchas de
sangue?
- Tinha medo de que pensassem mal de mim... Que
me chamassem como testemunha...
- Mas como é que o teu cafetã ficou sujo de sangue?
- Não sei, Excelência.
- O quê? Não sabes? O cafetã não é teu?
- É, sim, mas não sei como ficou sujo de sangue. Só
vi o sangue quando acordei.
- Então foi a sonhar que o manchaste de sangue?
- Parece que sim...
- Bom, vai-te embora e procura coordenar idéias.
Estás a dizer disparates. Pensa bem no caso e, amanhã,
vem falar comigo. Agora, retira-te.
Na manhã seguinte, ao acordar, vieram dizer-me que
Kuzma queria falar comigo. Ordenei que o trouxessem
à minha presença.
- Já pensaste melhor? - perguntei-lhe.
- Sim, senhor.
- Então, donde veio o sangue da tua roupa?
- Excelência, recordo-me vagamente de uma coisa...
É como se a tivesse visto em sonhos ou no nevoeiro...
Não posso dizer se é ou não verdade...
- E de que se trata?
Kuzma ergueu os olhos para mim, hesitou uns
segundos e depois disse:
201
- É uma coisa estranha... Como se acontecesse num
sonho ou a tivesse visto num nevoeiro... Estava estendido
no chão, meio bêbado, quase a dormir ou já mesmo
adormecido... De repente, ouvi alguém que passava
perto de mim... Caminhava com passos decididos e a
pisar com força... Abri os olhos, como se estivesse
desmaiado ou a sonhar, vi um cavalheiro aproximar-se
de mim... agachou-se e limpou as mãos à minha roupa.
Limpou-as ao cafetã e depois esfregou-as no meu colete.
Assim...
- E quem era esse homem?
- Não consigo lembrar-me. Só me recordo de que
não era um camponês mas sim um cavalheiro... Estava
vestido como um senhor... Não sei quem era nem me
lembro como era a sua cara...
- De que cor era o seu fato?
- Não sei. Tanto podia ser branco como preto. Só
me recordo de um cavalheiro e nada mais. Ah, sim!
Também me lembro de que, quando se baixou para
limpar as mãos , me disse: "Cambada de bêbados!"
- Sonhaste tudo isso!
- Não sei... pode ser. Mas então de onde veio aquele
sangue?
- Esse tal cavalheiro que viste, parecia-se com
Piotre Iegorich?
- Creio que não... Embora pudesse ser ele. Mas, se
fosse ele, não teria dito certamente "cambada de
bêbados!"...
- Procura recordar-te melhor... Pode ser que te
lembres de qualquer outro pormenor. Agora, vai-te
embora, mas vem falar comigo se te recordares de mais
alguma coisa.
Esta brusca intervenção de Kuzma, o vesgo, numa
novela prestes a chegar ao fim, provocou uma indescritível
confusão. Fiquei perplexo, sem entender a história
202
de Kuzma. Negava categoricamente ser o criminoso, o
que aliás, coincidia com as conclusões do processo
instaurado a Orbenine. Olga não fora assassinada por
motivos crapulosos. Segundo o relatório médico, não
tinha sido cometido qualquer "atentado contra a sua
honra". Seria possível admitir que Kuzma, se a tivesse
matado, houvesse esquecido o móbil do crime, por se
encontrar embriagado e incapaz de coordenar idéias?
Esta hipótese não correspondia ao quadro geral do crime
estabelecido no processo. Mas, se Kuzma era inocente,
por que não explicava o aparecimento do sangue que
havia na sua roupa, preferindo inventar sonhos e
alucinações? Por que implicava no caso um cavalheiro,
que afirmava ter visto e ouvido, mas de quem tão mal se
lembrava que nem sequer era capaz de dizer a cor do
fato que trazia vestido?
Polugradov regressou.
- Ora aí tem! - comentou. - Se tivesse inspeccionado
logo o local do crime tudo agora estaria esclarecido.
Se houvesse interrogado de imediato os criados,
saberíamos quem levantou Olga e transportou o seu
corpo. Assim, nem sequer podemos saber, ao certo, a que
distância do local do crime estaria esse bêbado a dormir...
Interrogou Kuzma durante duas horas, mas não
obteve dele nada de novo. O vesgo só repetia que, meio
adormecido, vira um cavalheiro, que este limpara as
mãos nas suas roupas e que dissera: "Cambada de
bêbados!"... Quem era esse homem, que aspecto tinha,
como estava vestido... de nada disso se recordava.
- Quanto conhaque bebeste tu?
- Meia garrafa.
- Se calhar, nem era conhaque...
- Era, sim. Verdadeira fine champagne.
- Ah! - comentou o substituto, rindo. - Até
Conheces os nomes das bebidas!
203
- E como não havia de conhecê-los? Graças a Deus,
estou ao serviço há já trinta anos. Tive mais do que tempo
para aprender...
Não sei porquê, o substituto achou por bem acarear
Kuzma e Orbenine. Kuzma olhou demoradamente para
o outro, baixou a cabeça e disse:
- Não, não me recordo... Talvez fosse Piotre
Iegoritch... ou talvez não.
Polugradov desistiu de prosseguir e, com um gesto
de desânimo, deu por finda a diligência. Em seguida,
partiu novamente, deixando-me o encargo de escolher,
entre os dois suspeitos, qual deles era o verdadeiro
assassino.
204
25
O processo arrastou-se. Orbenine e Kuzma foram
encerrados na prisão da aldeia em que eu residia.
O pobre Piotre Iegoritch, descorçoado e enfraquecido,
com mais cabelos brancos em cada dia que passava,
enveredou pela via mística, aferrando-se à religião. Por
duas vezes, porém, pediu-me que lhe emprestasse o
Código Penal era evidente que queria inteirar-se da pena
em que podia incorrer.
- Que será dos meus filhos? - perguntou-me, certo
dia, durante um interrogatório. - Se estivesse sozinho
no mundo, não me importaria ser vítima de um erro
judiciário, mas assim preciso de viver... de viver para os
meus filhos... Sem mim, irão perder-se... E não tenho
coragem de me separar deles! Que me vão fazer?
Quando os guardas começaram a tratá-lo por tu foi
obrigado a ir à cidade, por duas vezes, escoltado pelos
seus novos amigos e à vista de quantos o conheciam.
Por essa altura, o seu desespero exacerbou-se e ficou
mais nervoso e irritadiço.
- Isto não é fazer justiça! - berrava na prisão. -
É uma brincadeira cruel, inventada por crianças
maldosas que não respeitam ninguém e se riem da
verdade... Sei muito bem por que me têm aqui fechado...
Querem inculpar-me para proteger o verdadeiro
culpado... O criminoso é o conde... Se não foi ele quem a
205
matou, foi alguém a seu mando...
Ao saber que Kuzma também fora preso, Orbenine
começou por alegrar-se.
- Até que enfim, encontraram o criminoso! - disse-me,
exultante. - Já não era sem tempo!...
No entanto, quando verificou que nem assim era
libertado e teve conhecimento do depoimento de Kuzma,
voltou a ficar melancólico.
- Agora - afirmou -, estou perdido, definitivamente
perdido. Para que o ponham em liberdade, o vesgo,
mais cedo ou mais tarde, vai acabar por dizer que fui
quem limpou as mãos na sua roupa... embora todos
saibam que nunca limpei as mãos...
Com efeito, era preciso pôr termo ao dilema.
Nos finais de Novembro, quando pela janela se viam
cair flocos de neve e o lago parecia um deserto de
brancura infinita, Kuzma pediu que eu o recebesse.
Mandou o guarda dizer-me que "havia pensado melhor".
Ordenei que o trouxessem à minha presença.
- Fico satisfeito por saber que pensaste melhor -
disse-lhe, - Já vai sendo tempo de acabares com
simulações e de gozares à nossa custa, como se fôssemos
imbecis. Então, a que conclusão chegaste?
Kuzma não respondeu. De pé, no meio do gabinete,
olhava-me fixamente, sem dizer palavra. Podia ler-se o
terror nos seus olhos tortos. Estava pálido, tremia e
grandes gotas de suor escorriam-lhe pelo rosto.
- Então - repeti -, a que conclusão chegaste?
- É uma coisa tão estranha que não me parece
possível imaginar nada pior... Ontem, lembrei-me da
gravata que aquele cavalheiro trazia e, durante a noite,
tive um sonho e acabei por recordar-me do rosto dele...
- Quem era?
- É horrível, Excelência! Não posso dizer quem era.
É tão pasmoso, tão incrível, que tenho a impressão de
haver sonhado, de novo...
206
- E que sonhaste?
- Não, não me obrigue a dizê-lo... Se o disser, o
senhor vai castigar-me... Permita que eu pense mais um
dia e que lho diga só amanhã!... Tenho medo, muito medo.
- Ora! - exclamei, irritado. - Para que insististe
em incomodar-me se não queres falar? Para que vieste
ter comigo?
- Sentia-me disposto a dizê-lo, mas agora tenho
medo, Excelência... Por favor, deixe-me partir... Fica para
amanhã... Se lho dissesse, ia zangar-se tanto que pode
acontecer-me coisa pior do que ir para a Sibéria... Muito
pior...
Exaltei-me e ordenei que o levassem para a sua cela 1.
Nessa mesma tarde, a fim de não perder tempo e
pôr termo àquele massacrante processo, passei pela
cadeia e, embora soubesse que mentia, contei a Orbenine
que Kuzma o acusara de ser ele o assassino.
-Já contava com isso! - replicou Orbenine,
deixando cair os braços. - Mas tanto me faz...
1 - Que incrível juiz de instrução! Em vez de prosseguir o
interrogatório até obter uma declaração útil, enfurece-se, coisa
inadmissível num magistrado. Aliás, não dou grande crédito a
tudo isto. Mesmo que Kamichov descurasse as obrigações do seu
cargo, seria natural que, por simples curiosidade, tivesse continuado
a interrogar Kuzma. A. T.
207
26
A detenção operou uma enorme mudança na saúde
do administrador a pele ficou amarelada e ele perdeu
quase metade do peso. Prometi-lhe dar ordens aos
guardas no sentido de lhe ser permitido passear pelos
corredores, tanto de dia como de noite.
- Não creio que tente evadir-se - disse-lhe.
Orbenine agradeceu-me e desde esse momento a
porta da sua cela ficou sempre aberta.
Quando o deixei bati à porta da outra cela, onde se
achava Kuzma.
- Então? - perguntei. - Já queres falar?
Ouvi uma voz débil.
- Não, senhor... Se cá vier o senhor promotor, digo-lhe.
A si, não...
- Como queiras.
Na manhã seguinte, tudo ficou resolvido.
O guarda Igor correu a anunciar-me que Kuzma fora
encontrado morto na sua enxerga. Fui à cadeia e
verifiquei que era verdade. Aquele homem robusto que
ainda na véspera respirava saúde e inventava fantasias
para que o pusessem em liberdade, jazia inerte e frio
como uma pedra.
Não sei como descrever o meu espanto e o dos
guardas. O leitor, por certo, compreenderá. Kuzma era
precioso para mim, como acusado ou como testemunha,
208
mas para os guardas era um preso cuja morte ou cuja
fuga lhes podia custar muito caro. O nosso assombro foi
ainda maior quando a autópsia revelou que a morte fora
violenta. Ao saber disso pus-me em campo, à procura do
culpado. Não tive de ir longe. Entrei na cela de Orbenine
e, sem conseguir conter-me, tratei-o de miserável e de
assassino, no tom mais rude e cruel.
- Não lhe bastou a morte da sua mulher, cobarde?
Agora matou o homem que o acusava?... Depois de tudo
isto, ainda é capaz de continuar com a sua comédia?...
Orbenine, muito pálido, cambaleou.
- Mente! - gritou, batendo no peito com o punho.
- Não, não minto. Derramava lágrimas de crocodilo
à nossa frente, e troçava das provas que o incriminavam!
Em algumas ocasiões senti-me tentado a acreditar em
si! Ah, que belo comediante me saiu!... Mas, agora, nem
que chorasse sangue, não acreditarei em nada do que
disser. Confesse! O senhor assassinou Kuzma!
- A paciência e a humildade têm limites, Sergei
Petrovitch! O senhor ou está bêbado ou quer zombar de
mim! Não admitirei tal coisa!
E Orbenine, com os olhos a faiscar, deu um murro
sobre a mesa.
- Ontem, cometi a imprudência de lhe conceder
certa liberdade de movimentos - prossegui - Autorizei-o
a fazer o que é proibido aos outros presos: passear pelo
corredor. E, como agradecimento, durante a noite foi à
cela de Kuzma e estrangulou-o enquanto dormia. Pois
fique a saber que não só o matou como também deu cabo
da carreira dos guardas.
- Meu Deus! Que fiz eu para merecer tamanho
castigo? Porque se encarniçam contra mim? - exclamou
Orbenine, apertando a cabeça com as mãos.
- Quer provas? Aí vão. Como ordenei, a sua porta
ficou aberta... E os guardas, estupidamente, deixaram a
chave no cadeado aberto. Todas as celas se abrem com
14 - Vampiro 684
209
essa chave. Pegou nela e foi abrir a cela vizinha. Depois
de estrangular Kuzma, voltou a fechar a porta da cela
dele e colocou de novo a chave no cadeado da sua.
- Mas que motivo tinha eu para matá-lo?
- Porque ele o acusou. Se ontem não lhe tivesse
contado isso, Kuzma ainda estaria vivo.
- Sergei Petrovitch - disse-me o presumido
assassino com voz melíflua e pegando-me na mão. -
O senhor é um homem honesto, um homem de bem. Não
se deixe perder, não manche a sua honra com suspeitas
injustas e absurdas. Nem sabe como me ofende com essa
nova acusação. Sou um mártir, Sergei Petrovitch! Não
receia ultrajar um mártir? Um dia terá de pedir-me
perdão e esse dia não vem longe... Mas não pode acusar-me
dessa maneira!... Pedir desculpa é capaz de não lhe
bastar... Em vez de se encarniçar tanto contra mim e de
me ofender de forma tão horrível podia ter-me
interrogado com humanidade. Já não digo como amigo,
uma vez que há muito pôs termo ao bom relacionamento
de outrora... Eu teria sido mais útil à Justiça como
testemunha, como auxiliar do que como arguido. Quanto
a esta sua nova acusação, por exemplo, podia contar-lhe
muitas coisas... Esta noite não consegui dormir e ouvi
tudo.
- Que ouviu?
- Perto das duas da madrugada, ouvi alguém a
caminhar no escuro. Esse alguém tacteou na minha porta
e abriu-a...
- Mas quem?
- Não sei. Estava escuro e não vi quem era.
O homem ficou aqui dentro, durante um minuto, e depois
saiu... E, exactamente como o senhor disse, tirou a chave
desta porta e com ela foi abrir a da cela vizinha. Passados
uns dois minutos, ouvi o ruído de alguém que se debatia
e um estertor... Pensei que era um guarda à procura de
qualquer coisa, e tomei o estertor pelo ressonar de
210

Kuzma. De outra forma, teria gritado...
- Tretas! - repliquei. - Aqui, a não ser o senhor,
não havia ninguém capaz de matar Kuzma. Os guardas
de serviço estavam a dormir. A mulher de um deles teve
insónia e declara que os três guardas dormiram toda a
noite, e não se levantaram uma vez sequer. Os pobres
não podiam saber que nesta cadeia havia uma verdadeira
fera. Há vinte anos que trabalham aqui e nunca houve
uma única evasão e, muito menos, atrocidades como a
que ocorreu esta noite. Por sua exclusiva culpa, a vida
desses infelizes ficou estragada. Eu também vou ter de
pagar caro a permissão que lhe concedi, de passear pelos
corredores... Todos nós lhe ficamos gratos, na verdade...
Foi a minha última conversa com Orbenine. Não
mais tive outra ocasião de lhe falar, com excepção das
duas ou três perguntas que me dirigiu do banco dos réus,
quando eu depus no seu julgamento. . . .
i
l, .
211
27
Qualifiquei esta narrativa de "novela judicial" e,
agora, que o "caso do assassínio de Olga Orbenine" se
complica com novo homicídio, obscuro, e em muitos
aspectos, enigmático, o leitor tem o direito de esperar
que o meu livro entre na fase decisiva e mais apaixonante.
A descoberta do criminoso e do móbil do crime
oferecem um vasto campo para exercitar o engenho.
A astúcia e a inteligência travam entre si uma guerra
digna de ser seguida em todas as suas fases. Essa guerra
fui eu quem a provocou, e é justo que o leitor espere, da
minha parte, a descrição dos meios de que me servi para
alcançar a vitória, a exibição das argúcias que tão
brilhantemente exibem os "detectives" nos romances
deste género. Estou pronto a satisfazer essa legítima
curiosidade.
Uma das personagens principais, contudo, deixa o
campo de batalha antes do fim da peleja. Não fica
associada ao triunfo. Tudo o que fez foi em pura perda e,
por isso, passa a ser um mero espectador.
Essa personagem sou eu.
No dia seguinte ao da conversa com Orbenine recebi
o convite - ou mais exactamente, a intimação - de
212
renunciar ao meu cargo. Os mexericos das "comadres"
das redondezas produziram o seu efeito. A minha
demissão foi determinada pelo assassínio na cadeia e
pelas declarações de alguns criados do conde, declarações
essas que o substituto havia recolhido sem que eu
soubesse. Não deve esquecer-se, tão-pouco, a pancada
que apliquei, como o leitor recordará, na cabeça de um
mujique, durante uma das nossas orgias nocturnas.
O ofendido insistiu na queixa, o processo foi reaberto e
provocou grande alarido. Em menos de dois dias tive de
abrir mão do processo de Olga Orbenine, que ficou a
cargo de um juiz especializado em causas criminais.
As notícias dos jornais e os boatos mobilizaram todo
o Ministério Público. O promotor passou a vir dia sim,
dia não, a casa do conde para proceder pessoalmente
aos interrogatórios. Os relatórios das autópsias foram
enviados ao Conselho Médico e até a instâncias
superiores. Falou-se na exumação dos cadáveres, a fim
de os submeter a novas autópsias - que, aliás, foram
feitas, mas não conduziram a resultados diferentes.
Orbenine foi levado por duas vezes à sede da comarca
para exame às suas faculdades mentais e, de ambas, foi
declarado normal e imputável. Quanto a mim, passei a
ser mera testemunha do processo 1.
Os novos juízes empregaram tal empenho no seu
trabalho que até Policarpe foi chamado a depor.
Um ano depois da minha demissão, quando já residia
em Moscovo, fui notificado para comparecer no
julgamento de Orbenine. Tinha vontade de rever aquele
local que me era familiar, e parti. O conde, que voltara
para São Petersburgo, não quis aparecer e enviou um
atestado médico comprovativo de se achar doente.
1 - Este papel convinha mais a Kamichov do que o do juiz de
instrução. No processo Orbenine não devia ter intervido como
instrutor. A. T.
213
O julgamento, a cargo de um tribunal delegado, teve
lugar na capital do distrito. Polugradov, o substituto que
lavava os dentes, quatro vezes por dia, com um pó
vermelho, foi incumbido da acusação. O defensor foi um
tal Smirniaev, de ar sentimental, magro, alto, louro e de
cabelos caídos. O júri era composto, na sua maioria, por
artesãos campónios só quatro jurados sabiam ler. Quem
assumiu a presidência do júri foi Ivan Demianitch, o
comerciante que dera o nome ao meu papagaio.
Ao entrar na sala quase não reconheci Orbenine.
Tinha o cabelo todo branco e envelhecera vinte anos.
Esperava ir encontrá-lo apático e indiferente, mas
enganei-me Orbenine defendeu-se com energia, recusou
três jurados, prestou longas explicações e fez perguntas
às testemunhas. Negou categoricamente a autoria dos
crimes de que era acusado e interrogou pormenorizadamente
quantos depuseram contra ele.
A testemunha Pchekotski declarou que eu tivera
relações com Olga.
- É mentira! - vociferou Orbenine. - É mentira!
A minha mulher enganou-me, mas não com ele!
Quando chegou a minha vez de depor, o advogado
perguntou-me que relações tivera eu com Olga. Leu-me
o depoimento de Pchekotski, em que este afirmava que
me havia surpreendido no bosque, abraçado a Olga. Dizer
a verdade teria favorecido o réu quanto mais depravada
for a mulher, mais indulgentes são os jurados para com
o marido traído. Eu sabia disso, mas, por outro lado, a
verdade iria causar maior sofrimento a Orbenine.
Ao sabê-lo, ele sentiria, de certo, um novo e tremendo
desgosto... Preferi mentir, e neguei.
O substituto, nas suas alegações descreveu o crime
com cores negras, chamando particularmente a atenção
para a ferocidade do assassínio, para a fúria de que dera
mostra.
- Um velho sensual e vicioso encontra uma jovem
214
muito bela. Conhecendo a vida horrível que ela levava
em casa do pai demente, atrai-a com a promessa de uma
vida melhor, de uma casa própria, de vestidos, de jóias.
Ela cede, mas é ainda muito nova. A mocidade, senhores
jurados, tem direitos inalienáveis. Uma rapariga do
campo, alimentada de romances cor-de-rosa, mais tarde
ou mais cedo acabaria por viver uma história de amor...
E assim por diante... Todo o discurso foi neste tom.
O defensor não negou a culpa de Orbenine. Limitou-se
a pedir que os jurados tivessem em conta que o réu
havia agido num impulso, sem premeditação. Merecia,
portanto, a indulgência do júri. Referindo como o crime
pode ser obsessivo, invocou o exemplo do Otelo, de
Shakespeare. Examinou, nas múltiplas facetas, aquele
"protótipo universal", citando vários críticos, e perdeu-se
num tal labirinto de considerações e comentários que
o juiz presidente teve de interrompê-lo, fazendo-lhe notar
que os jurados não eram obrigados a conhecer literaturas
estrangeiras.
Ao ser-lhe perguntado se tinha mais alguma coisa a
dizer em sua defesa, Orbenine invocou Deus por
testemunha e jurou que não era culpado daquele crime
nem por obras nem por pensamentos.
- A mim é-me indiferente o lugar para onde me
mandem. Tanto me dá partir para trabalhos forçados ou
ficar aqui, onde tudo me recorda a minha imerecida
humilhação. A única coisa que me atormenta é o destino
dos meus filhos.
Voltou-se para a assistência e, a chorar, pediu que
alguém acolhesse os seus filhos.
- Tomem conta deles! O conde, decerto, não vai
perder este ensejo para exibir a sua generosidade, mas
os meus filhos estão já prevenidos e não aceitarão das
suas mãos nem uma côdea de pão.
Ao ver-me, fitou-me com ar suplicante e pediu-me:
- Não permita que o conde se ocupe deles!
215
Esquecia-se da condenação iminente para só pensar
no futuro dos filhos.
O júri não levou muito tempo a deliberar. Orbenine
foi considerado culpado, sem circunstâncias atenuantes.
O antigo administrador foi condenado à perda de todos
os direitos civis e a quinze anos de trabalhos forçados.
Foi esse o preço que teve de pagar pelo seu encontro,
numa manhã de Maio, com uma formosa "rapariga de
vermelho"...
Passaram-se oito anos e muitas coisas mudaram.
O conde Karnieiev, que nunca deixou de demonstrar a
sincera amizade que tinha por mim, entregou-se
irremediavelmente à bebida. As suas propriedades
passaram para as mãos da mulher e do cunhado. Hoje,
arruinado, o conde vive à minha custa. Por vezes,
estendido no sofá do meu quarto de hotel, evoca o
passado.
- Como seria bom voltar a ouvir os ciganos! -
murmura. - Serioja, manda trazer conhaque!...
Eu também mudei. As forças, pouco a pouco,
começam a faltar-me. Sinto que a juventude se me escapa
e que o meu corpo já não tem a agilidade de que tanto
me orgulhava antigamente, quando passava noites
inteiras a beber grandes quantidades de álcool. O meu
rosto envelhece. As rugas são cada vez mais, e o cabelo
cada vez menos. A minha voz está fraca e rouca... A vida
passou já lá vai.
Recordo-me do meu passado como se fosse ontem.
Vejo, como que envoltos em neblina, os lugares e as
pessoas. Já não tenho coragem para tratar com
imparcialidade o meu semelhante. Todos os dias, cheio
de rancor e indignação, aperto a cabeça entre as mãos.
O conde parece-me, de novo, tão repugnante como
antigamente. Considero Olga ignóbil e Kalinine ridículo,
216
com a sua estúpida presunção.
No entanto, há ocasiões em que, olhando para o
retrato que tenho sobre a mesa, sinto um indefinível
desejo de voltar a passear no bosque com a "rapariga de
vermelho", apertando-a com força contra o meu peito.
Nesses momentos perdoo-lhe a sua ambição, as suas
traições, a sua queda num abismo de lodo. Perdoar-lhe-ia
tudo por um só minuto de regresso ao terno passado...
Cansado e farto da vida aborrecida da cidade,
gostaria de voltar a ouvir novamente o bramido do lago
e de galopar, outra vez, nas suas margens. Perdoaria
tudo, esqueceria fosse o que fosse para poder viajar, uma
só vez, pela estrada de Tenieievo e encontrar o jardineiro
Frantz com o seu barril de vodca e o seu boné de jóquei...
Há momentos, até, em que me sinto disposto a apertar a
mão ensanguentada do bondoso Piotre Iegoritch e voltar
a discutir com ele acerca da religião, da agricultura ou
da instrução do povo. Gostaria, também, de tornar a ver
"Olhos piscos" e a sua Nadenka...
Vida frenética, destrambelhada, inquieta como as
águas do lago numa noite de Agosto! Quantas vidas
desapareceram nas tuas ondas sombrias! Lá, no fundo,
jaz um sedimento pesado... Por que razão, em certos
momentos, volto a desejar essa vida? Porque perdoaria
tudo para me precipitar nela, mais uma vez, com toda a
minha alma, como um pássaro fugido da gaiola?
A vida, que vejo agora através da janela do meu
quarto de hotel, dá-me a impressão de um círculo
cinzento, totalmente cinzento, sem a mais ténue
claridade... No entanto, se fechar os olhos e me recordar
do passado, vejo um arco-íris com todas as cores do
espectro solar...
Sim, é certo, no passado havia tempestades... mas
também muito mais luz...
217
Na parte inferior da última página estava escrito o
seguinte:
Senhor Director,
Solicito que publique esta novela, tanto quanto
possível sem cortes nem alterações. Como é evidente,
podem ser introduzidas modificações por acordo com
o autor. No caso de a obra lhe não interessar, peço
que o manuscrito me seja devolvido. De momento,
estou a viver em Moscovo, no Hotel Anglia.
Ivan Petrovitch Kamichov
P. S.: Deixo ao seu critério a fixação da quantia
a pagar pelos direitos de publicação.
(data e assinatura)
FIM
218
Agora que o leitor já conhece a novela de Kamichov,
retomo as conversas que mantive com ele.
Antes do mais cumpre-me referir que não pude
cumprir a promessa feita na introdução a novela de
Kamichov acabou por não ser divulgada integralmente,
já que sofreu alguns cortes importantes.
Por outro lado, Um Drama na Caça não pôde ser
inserido no jornal que eu dirigia, quando o autor me
entregou o manuscrito esse jornal deixou de publicar-se
quando a novela foi confiada à secção de composição.
A direcção do novo jornal que substituiu o primeiro
aceitou a novela, mas não considerou possível publicá-la
sem cortes. Foram-me confiadas as provas de diversas
personagens com a nota "Pede-se o favor de modificar o
texto". Não me pareceu correcto proceder dessa maneira
e preferi suprimir alguns trechos que me pareceram
supérfluos. A direcção concordou que convinha suprimir
algumas passagens que desconcertavam pelo seu cinismo.
Estes cortes exigiram concentração e tempo por esse
motivo alguns dos capítulos apareceram com atraso.
Entre outras, foram suprimidas duas descrições de orgias
nocturnas, uma em casa do conde e a outra, no lago.
Também foi retirada uma extensa referência à biblioteca
de Policarpe e à sua original maneira de ler. Defendi -
sem êxito, porque me obrigaram a cortá-los - os relatos
de várias partidas de stoss entre os criados do conde,
designadamente entre Frantz e a "Coruja" Um dia,
219
durante o inquérito, Kamichov surpreendeu uma partida
jogada por Frantz e Pchekotski. As apostas subiram até
trinta rublos e Kamichov, que interveio no jogo, "depenou
os outros dois como se fossem perdizes". Frantz, que havia
perdido tudo quanto trazia consigo, quis desforrar-se e
foi buscar mais dinheiro ao esconderijo que tinha junto
do lago. Kamichov seguiu-o sub-repticiamente e, depois,
roubou o resto que ficara, sem lhe deixar um só copeque.
Logo após, deu esse dinheiro ao pescador Michei. Esta
estranha forma de beneficência é bem característica
daquele mirabolante juiz de instrução, mas as palavras
grosseiras que utilizou na narração eram tão chocantes
que a direcção do jornal não aceitou publicar o episódio,
nem mesmo corrigido.
Também foram suprimidos alguns encontros entre
Olga e Kamichov e uma explicação prestada a Nadenka
por este último.
Apesar de tudo, creio que quanto foi publicado é
suficiente para caracterizar o protagonista.
Decorridos exactamente três meses, o contínuo veio
anunciar-me a visita de Kamichov.
- Que entre - disse-lhe.
Apareceu tão reluzente, saudável e bem posto como
três meses antes. Andava com desenvoltura e colocou o
chapéu com todo o cuidado no rebordo da janela, como
se fosse um objecto altamente precioso. Como da primeira
vez, algo de infantil, de bom rapaz, luzia-lhe nos olhos
azuis.
- Venho incomodá-lo novamente - começou,
sentando-se com ar tímido. -A respeito da minha obra,
qual é o veredicto?
- Culpado - respondi -, mas com circunstâncias
atenuantes.
Kamichov abriu um largo sorriso e assoou-se a um
lenço perfumado.
- Quer dizer, portanto, que o manuscrito está
220
condenado ao fogo da lareira?
- Não. Porquê uma pena tão severa? Não merece a
pena capital mas, isso sim, outra mais ligeira.
- Então, será preciso proceder a correcções?
- Sim, em certos passos e de comum acordo... No
aspecto geral está bem.
Ficámos em silêncio durante breves instantes. O meu
coração pulava-me no peito e sentia latejar as fontes. No
entanto, não fazia parte dos meus planos demonstrar
qualquer emoção.
- Quando me trouxe o manuscrito disse-me que
tinha por tema um caso verídico.
- Disse, sim, e repito-o - declarou o juiz de
instrução. - Como também referi, eu sou Zinoviev...
- Foi então o padrinho de casamento de Olga
Nicolaevna?
- E amigo da família. Não é verdade que representei
um papel simpático nesta história? - gracejou
Kamichov. - Um belo patife, não acha? Merecia que me
espancassem, mas não apareceu ninguém que se atrevesse
a fazê-lo.
- Com efeito... A verdade é que gostei da sua
narrativa, mas carece de correcções de tomo.
- Pode dizer-me o que há a corrigir?
- O sentido, a fisionomia geral da novela... Contém
todos os ingredientes de uma história policial: um crime,
os indícios, o julgamento e, como bónus, quinze anos de
trabalhos forçados infligidos a uma das personagens.
Apesar disso, contudo, falta-lhe o principal...
- O quê?
- Não chega a descobrir-se o verdadeiro culpado...
Kamichov abriu os olhos de espanto e levantou-se.
- Francamente, não percebo - disse, após um curto
silêncio. - Se o senhor não considera culpado um homem
que matou atrozmente a mulher, não sei de que precisa
para ter um verdadeiro culpado...Claro que o criminoso
221
é produto da sociedade e é esta que tem de ser culpabilizada.
Contudo, se entrarmos nessas especulações, não
devemos escrever novelas mas tratados de Sociologia ou
de Filosofia!
- Não é preciso entrar em grandes especulações.
O que se passa é que Orbenine não matou ninguém.
- Como? Não matou ninguém?
- Não, não foi Orbenine quem matou.
- É possível... Errare humanum est e os juízes de
instrução são humanos. Erros judiciais há-os com
frequência. Considera, portanto, que nos enganámos?
- O senhor não se enganou. Agiu intencionalmente.
- Desculpe, mas volto a não perceber - replicou
Kamichov, com um sorriso. - Se o senhor julga que a
instrução conduziu a um erro judicial, ainda mais
premeditado, gostaria de conhecer o seu juízo. Quem foi,
em seu entender, o assassino?
- O senhor!
Kamichov fitou-me com espanto, quase com terror.
Empalideceu e deu um passo atrás. Depois virou-se para
a janela e soltou uma gargalhada.
- Essa é muito boa! - murmurou, lançando o seu
bafo sobre o vidro para o embaciar e desenhar nele as
suas iniciais.
Olhei para a mão que escrevia no vidro, a mão
possante que, com um só apertão, havia estrangulado o
adormecido Kuzma e que também tinha golpeado o corpo
frágil de Olga.
A idéia de ter o assassino à minha frente causou-me
uma estranha sensação de assombro e de medo - não
por mim, mas por aquele homem elegante e ainda jovem,
bem como pela Humanidade em geral.
- Foi o senhor que cometeu os dois crimes.
- Se não é uma brincadeira de mau gosto -
retorquiu Kamichov sem se voltar -, felicito-o pela
descoberta. A julgar, porém, pelo tom da sua voz, não
222
me parece que esteja a brincar. Está muito nervoso.
Virou para mim o rosto pálido e, tentando não perder
o sorriso, prosseguiu:
- Gostava de saber onde foi buscar tal idéia. Escrevi
isso na minha novela? É curioso, palavra de honra!
Conte-me as suas deduções. Peço-lhe. Uma vez na vida,
vale a pena ser visto como assassino...
- O senhor foi o assassino e já nem sequer consegue
negá-lo. Disse mais do que devia, no seu relato e agora
está a representar muito bem o seu papel.
- Ouvi-lo é deveras interessante e muito curioso,
acredite.
- Se acha curioso, então oiça o que lhe vou dizer.
Ergui-me e, um tanto perturbado, comecei a andar
de um lado para o outro. Kamichov, depois de olhar para
a porta apressou-se a ir fechá-la. Esta precaução
atraiçoou-o.
- Que receia? -perguntei-lhe.
Tossiu, pouco à vontade, e fez um gesto vago.
- Não receio nada... Limitei-me a fechar a porta e a
olhar para o corredor... É melhor, até para si... Bom,
agora fale.
- Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Quantas queira.
- Advirto-o de que não sou juiz de instrução nem
advogado e pouco ou nada sei de interrogatórios formais.
Não espere, portanto, uma ordem sistemática em quanto
tenho para lhe dizer. E não tente confundir-me nem
embaraçar-me! Para começar, diga-me uma coisa: para
onde se dirigiu quando os caçadores merendavam na
clareira, junto ao bosque?
- Na novela digo-o fui para casa.
- A referência ao caminho por onde seguiu está
cuidadosamente riscada no seu manuscrito. Atravessou
o bosque?
- Sim, atravessei.
223
- Por conseguinte, podia ter-se encontrado com Olga.
- Sim, podia - retorquiu Kamichov, com um
sorriso.
- E, na verdade, encontrou-a no seu caminho.
- Não, não a encontrei.
- Durante a investigação a que procedeu, o senhor
esqueceu-se de interrogar uma testemunha muito
importante: o senhor mesmo... Ouviu o grito da vítima?
- Não... Mas onde quer chegar, meu caro senhor?
Na verdade não domina a arte do interrogatório...
Aquele "meu caro senhor" incomodou-me. Não estava
em sintonia com as desculpas e a humildade que ele
revelara no início do nosso diálogo. Pude notar que
Kamichov me observava com certa condescendência,
parecendo deleitar-se com a minha falta de jeito para
disparar as muitas perguntas que me enchiam a mente.
- Admitamos que não tenha encontrado Olga no
bosque, embora fosse muito mais fácil para si encontrá-la
do que para Orbenine, já que este não sabia onde ela
estava, enquanto o senhor a viu entrar na mata. Ele não
ia à procura de Olga, e o senhor, embriagado e enfurecido,
tinha forçosamente de se sentir compelido a ir falar com
ela. Se assim não fosse, porque decidiu atravessar o
bosque para se dirigir a sua casa, em vez de, como seria
mais lógico, seguir pela estrada? Mas, repito, admitamos
que não a haja visto. Como explica então o seu mau
humor, a sua irascibilidade na noite daquele trágico dia?
O que o levou a matar o papagaio que repetia "O marido
matou a mulher"? Julgo que foi por essa frase lhe
recordar o crime que cometera... Durante a noite é
chamado a casa do conde e, em vez de começar desde
logo as investigações, deixa passar um dia sem tomar
qualquer iniciativa digna desse nome. Só um juiz de
instrução que já conhece quem é o culpado actua dessa
forma. Prossigamos: Olga não diz o nome do assassino
porque era alguém que ela amava. Se fosse o marido,
224
decerto tê-lo-ia identificado. Se fora capaz de o denunciar
ao conde como burlão, não teria pejo de o acusar como
seu agressor. Não gostava dele, não o amava... Mas a si,
pelo contrário, amava-o e, por isso, foi o senhor quem ela
quis encobrir. Quando Olga recobrou os sentidos porque
não lhe fez uma pergunta directa? Porque começou a falar
de coisas que não tinham a ver com o crime? Sou levado
a concluir que procedeu desse modo para ganhar tempo,
para não lhe dar ocasião de pronunciar o seu nome. Olga
acabou por morrer e o senhor não escreveu uma só
palavra acerca da impressão que a sua morte lhe pudesse
ter causado. Só posso entender esse facto como uma
precaução. No seu relato não se esquece sequer de quantos
cálices de vodca bebeu, mas, em contrapartida, um facto
tão grave como a morte da "rapariga de vermelho"passa
quase despercebido... Porquê?
- Continue... continue...
- O senhor conduziu as investigações de uma
maneira lastimável, se não mesmo escandalosa. Não
pode admitir-se que um homem tão inteligente e astuto
haja procedido assim, de ânimo leve. Todo o inquérito
faz pensar numa carta anónima, cheia de propositados
erros de ortografia. A sua triste actuação denuncia-o.
Por que não foi de imediato inspeccionar o local do crime ?
Não foi por se haver esquecido ou por o considerar inútil
foi porque esperava que a chuva apagasse todos os
vestígios. Por outro lado, quase não fala do interrogatório
aos criados. Na verdade, só interroga Kuzma depois de
os outros o terem visto a lavar a roupa. Não tinha
qualquer interesse em o envolver no caso... E porque não
ouviu os convidados da caçada? Tinham escutado o grito
de Olga e viram Orbenine coberto de sangue. Era
indispensável interrogá-los. Não o fez porque algum deles
poderia recordar-se de que, antes do crime, o senhor
entrara no bosque e desaparecera. É possível que, mais
tarde, essas pessoas tivessem sido inquiridas, mas o
15 - Vampiro 684
225
tempo faz esquecer pormenores...
- Muito subtil! - comentou Kamichov, esfregando
as mãos. - Continue.
- Não lhe basta? Quer que lhe recorde ter sido
amante de Olga e que ela o preteriu por um homem que
o senhor desprezava? Um marido pode matar por ciúmes
mas um amante também... Passemos agora a Kuzma.
No último interrogatório a que o submeteu, na véspera
da sua morte, ele esteve prestes a identificá-lo, a si, como
sendo o homem que limpara as mãos na sua roupa. Se
esse homem não era o senhor, porque suspendeu a
inquirição no momento mais importante? Porque não
insistiu com ele para conhecer a cor da gravata do
assassino, quando Kuzma lhe contou que se recordava
dela? Porque mandou abrir a porta da cela de Orbenine
e lhe concedeu liberdade de movimentos na prisão,
precisamente no dia em que Kuzma se lembrou de quem
era o assassino? Porque o senhor precisava urgentemente
de um bode expiatório, de alguém que pudesse andar
pelos corredores e a quem pudesse acusar da morte de
outro detido. Nessa mesma noite assassinou Kuzma,
antes que ele o denunciasse ao substituto.
- Basta! - interrompeu Kamichov, rindo. - Basta.
A sua sanha perturba-o de tal forma que empalideceu e
parece que vai desmaiar. O senhor tem razão: fui eu quem
os matou.
Fez-se silêncio.
Pus-me a andar de um lado para o outro e Kamichov
imitou-me.
- Matei-os - continuou. - O senhor é um homem
de sorte, por ter descoberto o meu segredo. Poucas pessoas
poderiam gabar-se de tal proeza. A maioria dos leitores
vai odiar o velho Orbenine e elogiar o faro do juiz de
instrução.
Nesse instante um dos redactores entrou no meu
gabinete e interrompeu a conversa. Vendo que estava
226
ocupado e em silêncio, fitou Kamichov com curiosidade
e voltou a sair. Kamichov aproximou-se da janela e de
novo bafejou contra a vidraça.
- Passaram oito anos - disse, depois de uma curta
pausa. - Oito anos, durante os quais guardei esse
segredo dentro de mim. No entanto, um segredo não se
dá bem com o sangue ardente de quem o conserva. Não é
possível guardar impunemente um segredo que o resto
da Humanidade ignora. Esses oito anos foram de
suplício. Não que a consciência me pesasse, nada disso!
A consciência não passa de uma abstracção e nunca lhe
liguei grande importância. É fácil silenciá-la através da
razão, e se a razão não bastar, afogá-la com vinho ou
adormecê-la numa alcova. Diga-se, de passagem, que
continuo a ter o mesmo êxito com as mulheres. O que me
atormentava era outra coisa: que olhassem para mim
como se eu fosse um homem vulgar. Ninguém, durante
estes oito anos, me mirou com curiosidade ou suspeita.
Achava estranho não ter de me esconder. Trazia dentro
de mim um terrível segredo e, apesar disso, andava pelas
ruas, participava em festas e banquetes e cortejava
mulheres. Para um criminoso tal situação é atroz,
ofensiva não me sentia à vontade. Se precisasse de fugir,
de esconder-me, não me sentiria tão atormentado...
É um caso de psicose, caro senhor! De súbito senti a
imperiosa necessidade de desabafar, fosse como fosse,
de zombar dos demais, de lhes revelar o meu segredo, à
queima-roupa, de fazer qualquer coisa de original...
Qualquer coisa de excepcional, de extravagante... Foi por
isso que escrevi este livro. Só um espírito obtuso não vê
nele que sou um homem misterioso, um homem que oculta
um segredo... Cada página contribui para formar a chave
do enigma, não acha? O senhor apercebeu-se logo de que
eu não escrevia para o leitor comum...
Fomos novamente interrompidos. O contínuo entrou
com duas chávenas de chá numa bandeja. Apressei-me
227
a mandá-lo sair e Kamichov prosseguiu:
- Agora, sinto-me aliviado. O senhor olha para mim
como para um ente extraordinário, alguém que traz um
segredo dentro de si, Eu, pelo contrário, sinto-me, enfim,
tranquilo... Mas já são três horas e lá fora tenho um carro
à espera...
- Espere mais um pouco - intervim, vendo que
pegava no chapéu. - Contou-me por que razão escreveu
a história, mas ainda não me disse como matou.
- Quer sabê-lo, para completar o que leu? Pois seja...
Matei por arrebatamento, num impulso... O senhor, por
exemplo, na sua excitação, pegou na minha chávena de
chá em vez de pegar na sua e está a fumar cigarros atrás
de cigarros. Quando avancei para o bosque estava longe
de pensar em cometer um crime. Encaminhei-me para
lá com o fito de encontrar-me com Olga e de a insultar.
Quando bebo sinto sempre o desejo de implicar com
alguém... Descobri-a a cerca de duzentos passos da orla
do bosque. Encontrava-se sob uma árvore, a olhar para
o céu... Chamei-a e ao ver-me sorriu e estendeu-me os
braços.
"- Não me ralhes - pediu-me. - Sinto-me muito
infeliz...
"Estava mais bela do que nunca e eu transtornado
pelo álcool. Esqueci tudo e apertei-a contra mim. Jurou-me
que eu era o único homem a quem amava... E era
verdade: amava-me! Contudo, no momento mais doce
daquele juramento, uma força maligna impeliu-a a dizer
uma frase ignóbil:
"- Que desgraçada sou! Se não tivesse casado com
Orbenine, podia agora ser a mulher do conde...
"Aquela frase produziu em mim o efeito de um banho
frio. Tudo o que fervia dentro do meu peito explodiu...
Apoderou-se de mim um sentimento de repugnância e de
nojo... Agarrei aquela mulher infame pelos ombros e
arremessei-a ao chão, como se fosse uma bola... A minha
228
fúria atingiu o paroxismo e... dei cabo dela!... O caso de
Kuzma, esse não carece de explicações...
Olhei para Kamichov. Não lhe vi no rosto sombra de
arrependimento nem de pena. "Dei cabo dela" foi
proferido com a mesma desenvoltura como teria dito de
um cigarro: "Acendi-o e fumei-o". Virei-lhe as costas.
- E Orbenine? - perguntei, pausadamente. -
Ainda cumpre a pena?
- Creio que sim... Houve quem dissesse que havia
morrido na viagem, mas parece que tal não aconteceu.
Porquê ?, porque pergunta?
- Porquê?... Um inocente foi condenado em seu lugar
e ainda pergunta porquê?
- Que quer que eu faça? Que confesse?
- Claro que sim!
- Ah, quer isso!... Vejamos... Não me recuso a
substituir Orbenine, mas não vou render-me sem luta.
Prendam-me, se quiserem... Por mim, não vou entregar-me...
Porque não me detiveram quando me tiveram nas
mãos? No enterro de Olga chorei amargamente... Tive
uma tal crise de nervos e de choro que só um cego não
teria descoberto a verdade... Não tenho culpa de que os
outros sejam idiotas!
- Acho que o senhor é odioso! - exclamei.
- Não admira, porque também eu próprio me sinto
odioso...
Fez-se um novo silêncio. Maquinalmente abri um
livro de contabilidade e comecei a folheá-lo. Kamichov
pegou no chapéu.
- Vejo que a minha companhia lhe desagrada -
comentou. -A propósito, não quer ver o conde Karnieiev?
Está lá em baixo, no carro...
Acerquei-me da janela e espreitei. Num fiacre, de
costas viradas, lobriguei uma criatura encurvada, de
aspecto lastimoso o chapéu era já velho e o colarinho
esfiambrado. Foi-me difícil reconhecer naquele ente
229
enfezado uma das principais personagens do drama.
- Soube - adiantou Kamichov - que o filho de
Orbenine está em Moscovo, hospedado no Hotel Andreiev.
Vou pedir-lhe que se ocupe do conde... Ao menos, que só
eu seja castigado... E, com isto, despeço-me...
Kamichov inclinou a cabeça e saiu apressadamente.
Sentado à secretária, deixei-me invadir por amargas
reflexões...
Sufocava.
1884-1885
.!.,! V ., " , - i. St"
230

POSFÁCIO
Modo de usar, efeitos secundários
e contra-indicações:
1 - Este posfácio NÃO deve ser abordado por
quem não haja atingido o fim do texto de
Tchekhov. A sua leitura, antes de concluída a de
"Um Drama na Caça"pode provocar desencanto,
frustração e desinteresse pelo enredo.
2 - Para evitar idênticos efeitos secundários
em relação às obras cujos títulos vão indicados
em maiúsculas no texto (e que, para mais eficaz
prevenção, a seguir se arrolam), recomenda-se a
suspensão da leitura deste posfácio a quem não
conheça ainda essas narrativas ou o seu desfecho:
Assassinato de Roger Ackroyd, O
Cai o Pano
Convite para a Morte : : ,
Fim de um Juiz, O
Prisão de Arsène Lupin, A
Último caso de Drury Lane, O.
231

I
Quando, em 1884, Anton Tchekhov concebeu Um
Drama na Caça a Literatura Policial estava ainda numa
fase incipiente. É certo que o genial Edgar Poe, ao
inaugurar o género, se afoitara já a propor alguns temas
de maior impacto e que, pela dificuldade de abordagem
e pela perícia exigida ao escritor, iriam, de futuro,
celebrizar muitas das obras que se atreveram a glosá-los:
o crime em quarto fechado o esconderijo inacessível
porque óbvio a investigação a partir de notícias
divulgadas pela imprensa e que o detective alinha e
interpreta, sem se levantar da sua cadeira de braços.
Esse atrevimento, contudo, não foi seguido por quantos,
no rasto do grande poeta americano, enveredaram pela
via por ele traçada. O exemplo mais significativo é o de
Émile Gaboriau que com os seus romans policiers se
quedou pelo relato da rotineira investigação criminal -
embora, aqui e ali, condimentada com exercícios
dedutivos - não muito diversa da que, a diário,
utilizavam os membros das corporações policiais do
mundo civilizado.
À Ficção Detectivesca faltava, então, o ingrediente
que ia autonomizá-la e dar-lhe popularidade: o jogo de
gato e rato entre o autor e o leitor. Os raciocínios de
Sherlock Holmes, dentro em pouco, iriam conferir-lhe
um predicado que, depois de Poe, não voltara a ser
233
aflorado. A Arte da Dedução, cultivada magistralmente
pelo Grande Detective, chegava e sobrava para deslumbrar
o ingénuo leitor dos finais do século XIX, desabituado
do confronto com mentes poderosas que sabiam
interpretar pegadas e manchas de sangue, reconheciam
os diversos tipos de cinzas de cigarros e podiam descobrir
a profissão de qualquer um pela calosidade das mãos ou
pela maneira como andava ou gesticulava.
A momentosa fama alcançada por Holmes gerou,
como seria de prever, um grande séquito de imitadores.
A narrativa policial invadiu os escaparates e passou a
ser entretém muito procurado. Verificou-se, então, o
fenómeno que só a divulgação do género era susceptível
de provocar: o leitor, empanturrado, tornou-se cada vez
mais astuto. Os enigmas habituais, corriqueiros, já não
eram, para ele, um desafio aliciante muitas vezes, a
meio do relato, previa o que o detective iria opinar no
último capítulo. Ao topar, na página 30, com certo
pormenor, vinha-lhe à memória o relevo que lhe fora
dado em leituras anteriores e podia, assim, decifrar, ele
próprio, a nova charada. A Literatura Policial - em que
o elemento "surpresa" passara a ser preponderante -
arriscava-se a perder interesse, porque o leitor, pela
experiência entretanto adquirida, se tornara tão
engenhoso como o investigador de serviço, seu natural
antagonista. O rato passara a ser tão astuto como o gato.
Para sobreviverem, os autores do género tiveram de
espremer as meninges, concebendo artimanhas e
compondo enredos que fugissem do padrão comum e, pela
sua novidade, continuassem a surpreender os leitores
mais calejados e exigentes.
É neste último aspecto que Um Drama na Caça -
para além da qualidade literária que revela e que seria
imagem de marca do seu prestigioso autor - se assume
como notabilíssimo precursor, justificando que a
"Colecção Vampiro" se associe às homenagens prestadas
234
a Tchekhov no centenário da sua morte, incluindo o seu
nome na galeria de Grandes Mestres da Literatura
Policial que inaugurou há 57 anos.
II
Em 1926, o mundo da Ficção Policial foi abalado por
um livro em que o narrador da história (o Watson de
serviço) era o criminoso. Chamou-se O ASSASSINATO
DE ROGER ACKROYD (The Murder of Roger Ackroyd)
e a sua autora, que até aí alcançara apenas celebridade
mediática na Grã-Bretanha natal, de um dia para o outro
foi projectada para o estrelato e viu-se alcandorada a
Grande Dama do Mistério, a nível planetário, com obras
traduzidas em todas as línguas e editadas nos quatro
cantos do Mundo.
Não é crível que Agatha Christie tenha lido Um
Drama na Caça - em que o criminoso é, também, quem
relata o evento -, já que, como dissemos, a obra escrita
por um Tchekhov ainda muito jovem, ficou esquecida
até ao quarto decénio do século XX. O que, como é óbvio,
não afecta o pioneirismo do grande escritor russo, que,
mais de quarenta anos antes, teve artes de antecipar
aquela "novidade".
Justifica-se abrir, aqui, um parêntesis. A acreditar
no que refere Janet Morgan, biógrafa de Agatha Christie,
esta foi assídua leitora de inúmeras obras policiais de
autores franceses. Ora, o n.º 6 do Je Sais Tout, publicado
em 15 de Julho de 1905 pelo editor Pierre Lafitte, inclui
um conto assinado por Maurice Leblanc e que tinha por
título A PRISÃO DE ARSÈNE LUPIN (L'Arrestation
d'Arsène Lupin). Relatado na primeira pessoa, o texto
235
de sete páginas concluía com a revelação de que o
narrador era, afinal, o famoso gatuno, procurado pela
polícia francesa, que embarcara no transatlântico
Provence em demanda de refúgio nos Estados Unidos.
Esta primeira aventura do célebre ladrão de casaca não
se destinava, decerto, a ter continuação. Só que Leblanc
põe e o público dispõe. O leitor francês engraçou com a
personagem e o seu criador teve de prolongar, com outros
contos, a "Vida Extraordinária de Arsène Lupin". Nunca
mais, porém, voltou a narração a ser feita na primeira
pessoa. Quando Lafitte publicou, em volume, os dez
episódios de Arsène Lupin, Gentleman Cambrioleur, o
autor, para corrigir a incongruência, teve de pospor meia
dúzia de parágrafos à "Prisão", explicando que fora
assim, "numa noite de Inverno", que Lupin lhe narrara
a aventura primogénita e o arvorara em seu confidente
e biógrafo.
E ficam as perguntas: Terá Agatha Christie lido o
conto de Maurice Leblanc? Foi Lupin o inspirador do
Dr. James Sheppard?
III
Outra das antecipações de Um Drama na Caça
reside no facto de o criminoso ser um juiz e, o que é
mais, um juiz de instrução, cujo cargo lhe cometera a
obrigação de investigar a malfeitoria por ele próprio
cometida.
Tchekhov, também aqui, foi precursor - e em ambas
as vertentes.
Agatha Christie - de novo, ela -, numa outra das
suas obras mais famosas CONVITE PARA A MORTE
236
(Ten Little Niggers, 1926) arvorou um juiz em assassino
e, em CAI O PANO (Curtain, 1975), veio a fazer o mesmo
ao próprio Poirot. Ellery Queen, sob o pseudónimo de
Barnaby Ross, pôs termo, de forma idêntica, à curta
carreira do actor - detective Drury Lane em O ÚLTIMO
CASO DE DRURY LANE (Drury Lane's Last Case, 1933).
No entanto, só cerca de trinta anos depois de Um
Drama na Caça é que iria repetir-se a exploração, numa
só narrativa, do trinómio criminoso-juiz-investigador, se
bem que com os dois últimos termos não convergentes
na mesma personagem. Aconteceu no célebre conto
O FIM DE UM JUIZ (End of a Judge), de Milward
Kennedy, em que o crime, relatado ao autor por um
detective profissional, é por este atribuído ao magistrado
incumbido de decidir, entre dois irmãos, quem seria o
herdeiro de uma avultada fortuna. Em epílogo, Kennedy,
pondo em dúvida o raciocínio do detective-narrador,
conclui que fora este o verdadeiro assassino.
Tchekhov, porém, foi mais longe. No meio dos astros
- refulgentes, uns apagados, outros - que constituem
a vasta galáxia das histórias policiais, Um Drama na
Caça cintila com luz muito sua, por ser, de todos eles,
que se saiba, o único em que o detective é... o editor.
IV
O que atrás fica referido basta para desculpar o que,
aos olhos do leitor contemporâneo, pode parecer um
defeito desta obra de Tchekhov.
As anotações que o editor-autor apõe a alguns passos
da novela de Kamichov, dando conta das linhas riscadas
ou salientando as imperfeições do inquérito, não
237
ocorreriam, por certo, num romance policial moderno.
Em 1884, porém, os autores do género não se serviam
ainda dos ardis de que iriam fazer farto uso os seus
colegas vindouros. Não eram tão subtis, tão manhosos
preferiam ser honestos para com o leitor. E a honestidade,
ensina o catecismo, não é pecado é virtude.
JOEL LIMA
238
Of. Gráf. de Livros do Brasil, S. A. - Rua dos Caetanos, 22 - Lisboa

Contracapa:
A "Colecção Vampiro" assinala o centenário
da morte de Anton Tchekhov, dando a
conhecer o notável romance policial que, aos
24 anos, escreveu um dos maiores vultos da
Literatura russa.
Nessa pequena obra-prima, Tchekhov
revela já o seu enorme talento e tem artes de
produzir uma história policial que, ainda hoje,
não desmerece das que, por diante, iriam
celebrizar os grandes mestres do género. Além
disso - e acima de tudo -, o famoso escritor
demonstra prodigiosa clarividência e
assombroso engenho, antecipando muitas
"inovações" que deram brado, quando
irromperam no universo da Ficção
Detectivesca, muitas décadas mais tarde.
Editora livros do Brasil


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