GUY DE MAUPASSANT
COLECÇÃO NOVIS
BIBLIOTECA VISÃO - 26
Guy de Maupassant é considerado um dos mais influentes
contistas e romancistas franceses da segunda metade do século
XIX, apesar de uma actividade literária que durou apenas dez
anos, durante os quais escreveu cerca de trezentos contos e
seis romances. Entre estes últimos, salienta-se Bel-Ami, no
qual o autor oferece o retrato do seu tempo e da sua classe
social, narrando as peripécias de George Duroy, que deambula
pelas ruas de Paris em busca de dinheiro e êxito. Uma obra em
que se patenteiam os princípios literários de Guy de
Maupassant, nomeadamente o estilo objectivo, a linguagem
rigorosa e o realismo psicológico.
Título: Bel-Ami
Título original: Bel-Ami
Autor: Guy de Maupassant
Tradução: Jaime Brasil
Tradução cedida por Vega Editora
BIBLIOTEX, S. L.
para esta edição ABRIL/CONTROLJORNAL
Impressão AGosto de 2000
Primeira parte
I
Mal a empregada da caixa lhe deu a demasia da moeda de
cem soldos(1), Jorge Duroy saiu do restaurante. Era de boa
presença e, por hábito e atitude de antigo sargento,
empertigou-se, torceu o bigode, num gesto marcial, e lançou
aos comensais atrasados um rápido olhar envolvente, um destes
olhares de rapaz bonito que penetram como a unhada do gavião.
As mulheres ergueram a cabeça: três raparigas empregadas, uma
professora de música, de meia-idade, mal penteada, desleixada,
com um chapéu sempre poeirento e um vestido pontudo, e duas
mães de família com os maridos, frequentadoras daquele
restaurante de mesa redonda.
Ao chegar ao passeio, Jorge ficou um instante imóvel, como a
perguntar a si próprio que faria. Era o dia 28 de Julho e só
tinha no bolso três francos e quarenta para acabar o mês. Isso
representava dois jantares sem almoços, ou dois almoços sem
jantares, à escolha. Pensou que, como as refeições da manhã
eram a vinte e dois soldos, em vez dos trinta que custavam à
tarde, restar-lhe-ia, se preferisse os almoços, um franco e
vinte cêntimos de saldo, o que representava ainda dois
repastos de pão com salpicão e mais duas canecas de cerveja no
bulevar. Era esta a sua grande despesa e o seu maior prazer à
noite.
Começou a descer a Rua de Notre-Dame-de-Lorette. Andava como
no tempo em que usava o uniforme dos hussardos, com o peito
para fora, as pernas um tanto abertas como se acabasse de se
apear do cavalo. Caminhava arrogantemente pela rua apinhada de
pessoas, dando encontrões e empurrando toda a gente, para não
alterar a sua rota. Inclinara para a orelha o chapéu alto,
bastante usado, e batia com os tacões no pavimento. Tinha o ar
de estar sempre a desafiar alguém, os transeuntes,
*1. O soldo era uma moeda de cobre equivalente a cinco
cêntimos do franco. Designavam por cem soldos as moedas de
prata de cinco francos, que valiam, na época, cerca de mil
réis. (N. do T.)
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as casas, a cidade inteira, por atitude de belo militar
decaído na vida civil.
Embora vestisse um fato de sessenta francos, a sua elegância
era um bocado berrante, assaz vulgar, embora real. Alto, bem
feito, loiro, dum loiro acastanhado vagamente ruivo, com um
bigodinho que parecia espumar no lábio, de olhos azuis,
claros, furados por uma pupila pequeníssima, o cabelo
naturalmente ondulado, separado por uma risca ao meio, tinha o
tipo do sedutor dos romances populares.
Era uma dessas noites de Verão em que o ar falta em Paris. A
cidade, quente como uma estufa, parecia suar na noite
sufocante. As sarjetas exalavam, pelas bocas de granito, os
seus hálitos empestados, e as cozinhas subterrâneas lançavam
para a rua, pelos seus respiradouros, os miasmas repugnantes
das águas de lavar a louça e dos molhos requentados.
Os porteiros, em mangas de camisa, escarranchados em
cadeiras de palhinha, fumavam cachimbo, às portas, e os
passeantes caminhavam com passo fatigado, em cabelo, de chapéu
na mão.
Ao chegar ao bulevar, Jorge Duroy parou, outra vez indeciso
acerca do que faria. Deu-lhe vontade de ir até aos Campos
Elísios ou à Avenida do Bosque de Bolonha, para apanhar algum
fresco debaixo das árvores, mas outro desejo o minava também:
o dum encontro galante.
Como seria ela? Não sabia, mas esperava-a, havia três meses,
todos os dias, todas as noites. Algumas vezes, no entanto,
graças ao seu bom aspecto e feitio galanteador, roubava, aqui
e ali, uma noite bem passada, mas esperava sempre mais e
melhor.
Com o bolso vazio e o sangue a ferver, excitava-se em
presença das raparigas que murmuravam, à esquina das ruas:
"Vem comigo, simpático!", mas não ousava segui-las, não lhes
podia pagar, esperava, também, outra coisa, outros contactos
menos vulgares.
Jorge gostava, no entanto, dos locais onde se juntam as
raparigas da rua, dos seus bailes, dos seus cafés, das suas
ruas. Gostava de andar ao lado delas, de lhes falar, de as
tratar por tu, de aspirar os seus perfumes violentos, de estar
no meio delas. Sempre eram mulheres, embora mulheres fáceis.
Não as desprezava de maneira nenhuma, com o desprezo inato nos
filhos de boas famílias.
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Dirigiu-se para a Madalena(1) e seguiu a torrente da
multidão que caminhava vencida pelo calor. Os grandes cafés,
cheios de gente, transbordavam para os passeios, derramando o
seu público de bebedores sob a luz crua e cegante das suas
fachadas iluminadas. Diante deles, nas mesinhas quadradas ou
redondas, os copos com líquidos vermelhos, amarelos, verdes,
castanhos, de todos os tons, e no interior das garrafas de
água os grandes cilindros transparentes de gelo que
refrescavam o belo líquido claro.
Duroy afrouxara o passo e a sede secava-Lhe a garganta. Era
uma sede ardente, sede de noite de Verão, e pensava na
sensação deliciosa duma bebida fresca a correr-lhe na boca. Se
bebesse, porém, duas canecas de cerveja naquela noite, adeus à
magra refeição do dia seguinte. Conhecia demasiado essas horas
de fome do fim do mês.
Disse para si: "Se esperar até às dez horas, tomarei a minha
cerveja no Americano. Com os diabos! Que sede tenho, apesar de
tudo!" Olhava para todos aqueles homens sentados a beber,
todas aquelas pessoas que podiam matar a sede quando lhes
apetecia. Passava em frente dos cafés, com um ar provocador de
valentão, e queria ajuizar, num relance de olhos, pelo
aspecto, pelo vestuário, o dinheiro que cada consumidor tinha
consigo.
Invadia-o uma grande cólera contra aquela gente sentada e
tranquila. Se lhes vasculhassem as algibeiras, encontrariam
oiro, moedas brancas e soldos. Em média, cada um devia ter
pelo menos dois luíses(2) - estava bem uma centena de pessoas
no café, cem vezes dois luíses fazem quatro mil francos! Jorge
resmungava: "Grandes porcos!", enquanto flanava com ar
despreocupado. Se pudesse apanhar um deles ao canto de uma
rua, numa sombra bastante escura, torcer-Lhe-ia o pescoço,
palavra, sem escrúpulos, como fazia às galinhas dos camponeses
quando andava em manobras. Lembrava-se dos seus dois anos de
África, da maneira como explorava os árabes, nos pequenos
postos do Sul. Um sorriso cruel e alegre passou-lhe pelos
lábios, ao lembrar-se de uma surtida que custara a vida a três
homens da tribo dos Uled Alane,
*1. A Igreja da Madalena, no começo dos grandes bulevares de
Paris.
2. Moeda de oiro de vinte francos, também chamada napoleão,
equivalente, então, a 4000 rs. (N. do T)
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e que lhes valeu, a ele e aos seus camaradas, vinte galinhas,
dois carneiros e oiro, além de assunto para seis meses de
risota. Nunca foram descobertos os culpados, que, aliás,
ninguém tentou procurar, visto o árabe ser um tanto
considerado como presa natural do militar.
Em Paris, era outra coisa. Não era possível fazer
requisições galhardamente, de sabre à cinta e revólver em
punho, em plena liberdade, longe da justiça civil. Sentia, no
fundo, todos os instintos do tarimbeiro à solta em terreno
conquistado. Não havia dúvida de que tinha saudades daqueles
seus dois anos de deserto. Que pena não ter ficado lá! O diabo
fora ter esperado conseguir coisa melhor ao voltar. Agora!...
Ah! Sim, agora, torcia a orelha. Jorge dava voltas com a
língua na boca, aos estalidos, como para se certificar da
secura da sua garganta.
A multidão deslizava a seu lado, extenuada e lenta, e Jorge
continuava a pensar: "Cambada de brutos! Todos estes imbecis
estão cheios de dinheiro!" Dava encontrões e assobiava
modinhas alegres. Os cavalheiros empurrados voltavam-se a
resmungar, as mulheres proferiam: "Olhem que animal!"
Passou em frente do Vaudeville e parou diante do Café
Americano, a dizer a si próprio se não iria tomar a sua
cerveja, tanto se sentia torturado pela sede. Antes de se
decidir, olhou para os relógios luminosos no meio da rua. Eram
nove horas e um quarto. Conhecia-se bem: desde que tivesse a
caneca de cerveja na sua frente, emborcá-la-ia. Que faria
depois até às onze horas? Passou adiante: "Irei até à
Madalena", disse para si, "e voltarei devagarinho."
Ao chegar à esquina da Praça da Ópera cruzou-se com um rapaz
nutrido que lhe deu a vaga impressão de já ter visto aquela
cara algures. Pôs-se a segui-lo, enquanto revolvia as suas
recordações, repetindo a meia voz: "Onde diabo vi eu este
sujeito?"
Vasculhava a memória sem conseguir recordar-se; subitamente,
por um estranho fenómeno, viu a mesma pessoa mais magra, mais
nova e com o uniforme de hussardo. Exclamou, muito alto:
"Olha, o Forestier!", e, alargando o passo, foi bater no ombro
do passeante. O outro voltou-se, olhou para ele e disse:
- Que é que o senhor me quer?
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Duroy pôs-se a rir:
- Não me reconheces?
- Não.
- Jorge Duroy, do sexto de hussardos.
Forestier estendeu-lhe os braços:
- Ah! Meu velho! Como vais tu?
- Muito bem, e tu?
- Oh! Não vou lá muito bem, imagina que tenho agora o peito
arrombado, tusso seis meses em cada doze, em consequência de
uma bronquite que apanhei em Bougival, no ano do meu regresso
a Paris, já lá vão quatro anos.
- É boa! Tens, no entanto, um aspecto sólido.
Forestier meteu o braço no do seu antigo camarada, falou-lhe
da sua doença, contou-lhe as consultas, as opiniões e
conselhos dos médicos, a dificuldade de seguir os seus
pareceres na sua situação. Ordenavam-Lhe que fosse passar o
Inverno para o Sul, mas podia lá fazê-lo. Estava casado e era
jornalista com uma bela posição.
- Dirijo a secção política na Vie Française, faço o Senado
para o Salut, e, de tempos a tempos, crónicas literárias para
Planète. Aqui tens, faz-se pela vida.
Duroy, surpreendido, olhava para ele. Estava bastante
mudado, mais amadurecido. Tinha um aspecto, atitude e
vestuário, de homem bem instalado, senhor de si, e um ventre
de pessoa que janta bem. Antigamente, era magro, fino,
flexível, estroina, estoira-vergas, zaragateiro e sempre
bem-disposto. Em três anos, Paris fizera dele outro, mais
gordo e sério, com alguns cabelos brancos nas fontes, embora
não tivesse muito mais de vinte e sete anos.
Forestier perguntou:
- Para onde vais?
Duroy respondeu:
- Para parte nenhuma, dou uma volta antes de ir para casa.
- Olha lá: queres vir comigo à Vie Française, onde tenho
umas provas para corrigir, depois, iremos beber uma cerveja?
- Acompanho-te.
Puseram-se a caminho, de braço dado, com aquela
familiaridade fácil que se mantém entre companheiros de escola
ou camaradas de regimento.
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- Que fazes em Paris? - perguntou Forestier.
Duroy encolheu os ombros:
- Rebento de fome, muito simplesmente. Mal acabei o meu
tempo quis vir aqui para... fazer fortuna ou antes para viver
em Paris, ora, há seis meses que estou empregado nos
escritórios do Caminho-de-Ferro do Norte, com mil e quinhentos
francos por ano, nada mais.
Forestier murmurou:
- Apre! Não é nenhuma ucharia.
- Também me parece. Como queres que arranje coisa melhor?
Estou sozinho, não conheço ninguém. Não me falta boa vontade,
faltam-me os meios.
O seu camarada olhou-o de alto a baixo, como homem prático
que avalia um sujeito, e depois proferiu, com ar convicto:
- Vês, meu velho, tudo aqui depende da linha. Um homem, que
seja um bocado esperto, torna-se mais depressa ministro do que
chefe de repartição. É preciso uma pessoa impor-se e não
pedir. Como diabo não encontraste coisa melhor do que um lugar
de empregado do Caminho-de-Ferro do Norte?
Duroy replicou:
- Procurei por toda a parte, mas não encontrei nada. Tenho
uma coisa em vista, neste momento: prometeram-me um lugar de
picador na Escola de Equitação Pallerein. Lá, terei, pelo
menos, três mil francos.
Forestier cortou-lhe a palavra:
- Não faças isso, é estúpido, quando poderias ganhar dez mil
francos. Estás a estragar o teu futuro. Na tua repartição,
pelo menos, estás escondido, ninguém te conhece, podes sair de
lá, se tiveres sorte, e fazer carreira. Uma vez picador,
acabou-se. É como se fosses mordomo numa casa onde toda a
Paris vai jantar. Depois de teres dado lições de equitação às
pessoas da sociedade ou aos seus filhos, não poderão
acostumar-se a considerar-te seu igual.
Calou-se, reflectiu alguns segundos, e depois perguntou:
- Tens o curso do liceu?
- Não. Fiquei reprovado duas vezes.
- Isso não tem importância, desde o momento que frequentaste
as aulas até ao fim. Se te falarem de Cícero ou de Tibério,
sabes, pouco mais ou menos, de quem se trata?
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- Sim, pouco mais ou menos.
- Bem, ninguém sabe mais do que isso, com excepção de uma
vintena de imbecis que não têm jeito para mais nada. Não é
muito difícil passar por esperto, acredita, o principal é não
se deixar apanhar em flagrante delito de ignorância.
Manobramos, esquivamo-nos à dificuldade, contornamos o
obstáculo e batemos os outros por meio de um dicionário. Todos
os homens são estúpidos como galinhas e ignorantes como
carpas.
Forestier falava como um sujeito tranquilo, que conhece a
vida, e sorria enquanto a multidão desfilava. Subitamente,
pôs-se a tossir, e, passado o ataque de tosse, disse num tom
desanimado:
- Não é aborrecido uma pessoa não se poder ver livre desta
bronquite? E estamos em pleno Verão. Oh! Este Inverno, irei
tratar-me para Menton. Suceda o que suceder, a saúde acima de
tudo.
Chegaram ao Bulevar Poissonière, em frente de uma grande
porta envidraçada, detrás da qual um jornal aberto estava
colado dos dois lados. Três pessoas estavam paradas a lê-lo.
Por cima da porta estendia-se, como um apelo, em grandes
letras de fogo desenhadas pelas chamas do gás: La Vie
Française. Os transeuntes, ao entrarem bruscamente na
claridade que lançavam essas três palavras luminosas,
apareciam de súbito em plena luz, visíveis, claros e nítidos
como em pleno dia, e depois entravam imediatamente na sombra.
Forestier empurrou a porta.
- Entra! - disse.
Duroy entrou, subiu uma escadaria, luxuosa e suja, que se
via da rua, chegou a uma antecâmara, onde dois contínuos
cumprimentaram o seu camarada. Depois, parou numa espécie de
sala de espera, poeirenta e mal arrumada, atapetada com uma
espécie de veludo verde desbotado, crivado de nódoas e,
nalguns pontos, como se tivesse sido roído pelos ratos.
- Senta-te - disse-lhe Forestier. - Volto dentro de cinco
minutos.
Desapareceu por uma das três portas que davam para esse
gabinete. Um cheiro estranho, especial, inexprimível, o cheiro
das salas de redacção, flutuava no local.
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Duroy mantinha-se imóvel, um tanto intimidado, sobretudo
surpreendido. De tempos a tempos, passavam homens na sua
frente, a correr. Entravam por uma porta e saíam pela outra,
antes de ter tempo de olhar para eles.
Eram, ora rapazes, muito novos, com ar apressado, que
levavam na mão uma folha de papel que se agitava com o ar
deslocado pela corrida, ora tipógrafos, com a blusa manchada
de tinta, que deixava ver um colarinho muito branco e umas
calças de fazenda iguais às das pessoas da sociedade, e
levavam, com precaução, tiras de papel impresso, as provas
frescas, ainda húmidas.
Algumas vezes, entrava um homenzinho, vestido com elegância
demasiado aparente, a cintura apertada na sobrecasaca, a perna
muito cingida pela calça, o pé comprimido num sapato
pontiagudo, algum repórter mundano que levava os ecos de
qualquer recepção. Chegaram ainda outros, graves, importantes,
de chapéu alto de borda direita, como se essa forma os
distinguisse do resto dos homens.
Forestier voltou, trazendo pelo braço um homem alto, magro,
duns trinta a quarenta anos, de casaca e gravata branca, muito
moreno, o bigode frisado com as pontas muito finas e que tinha
um ar insolente e satisfeito de si próprio.
- Adeus.
- Até à vista, meu caro - replícou o outro, apertando-Lhe a
mão e descendo a escada a assobiar, com a bengala debaixo do
braço.
- Quem é? - perguntou Duroy.
- É Jaime Rival, sabes, o famoso cronista, o duelista. Veio
rever as suas provas. Garin, Montel e ele são os três
primeiros cronistas, com espírito e sentido de actualidade,
que temos em Paris. Ganha aqui trinta mil francos por ano para
escrever dois artigos por semana.
Ao saírem, encontraram um homenzinho de grande cabeleira, de
aspecto pouco limpo, que subia os degraus a resfolegar.
Forestier fez-lhe um grande cumprimento.
- É Norberto de Varenne - disse -, o poeta, autor de Soleils
morts, outro homem de grande cotação. Cada conto que nos dá
custa trezentos francos, e os maiores não têm mais de duzentas
linhas. Vamos ao Napolitano, pois estou a morrer de sede.
Quando se sentaram à mesa do café, Forestier gritou:
"Duas canecas!" Engoliu a sua de um trago, enquanto Duroy
bebia a cerveja a golos lentos, saboreando-a como uma coisa
preciosa e rara. O seu companheiro, calado, parecia reflectir.
Depois, disse subitamente:
- Por que não hás-de tentar o jornalismo?
O outro olhou para ele, surpreendido, a seguir replicou:
- Mas... é que... nunca escrevi nada.
- Ora! Tenta-se. Para começar, poderias treinar-te a ir
procurar-me informações, fazer diligências e visitas. Terias,
de começo, duzentos e cinquenta francos e as despesas de carro
pagas. Queres que fale ao director?
- Evidentemente que quero.
- Então, façamos uma coisa: vem jantar a minha casa amanhã.
Tenho somente cinco ou seis pessoas de fora: o patrão, o
senhor Walter, sua mulher, Jaime Rival e Norberto de Varenne,
que viste há pouco, e ainda uma amiga de minha mulher. Está
combinado.
Duroy hesitava, corando, perplexo. Murmurou, por fim:
- É que... não tenho fato conveniente.
Forestier ficou estupefacto:
- Não tens casaca? Apre! É, porém, uma coisa indispensável.
Num repente, Forestier meteu a mão no bolso do colete, tirou
de lá um punhado de moedas de ouro, pegou em dois luíses,
pô-los em frente do seu antigo camarada e disse-lhe num tom
cordial e familiar:
- Pagar-me-ás quando puderes. Aluga ou compra a prestações
mensais, dando alguma coisa por conta, a roupa de que
precisas: enfim, arranja-te como quiseres, mas vai jantar lá a
casa, amanhã, às sete e meia, é no dezassete da Rua Fontaine.
Duroy, perturbado, pegou no dinheiro, balbuciando:
- És muito amável, fico-te muito obrigado, tem a certeza de
que não esquecerei...
- Vamos, está bem! - interrompeu-o o outro. - Outra caneca,
não? - e gritou: - Rapaz, duas cervejas!
Após terem bebido, o jornalista perguntou:
- Queres deambular um bocado, durante uma hora?
- Com todo o gosto.
Puseram-se de novo a caminho da Madalena.
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- Que vamos fazer? - perguntou Forestier. - Pretendem que em
Paris um passeante tem sempre em que se ocupar: isso não é
verdade. Eu, quando quero passear à noite, nunca sei para onde
hei-de ir. Uma volta pelo Bosque só é interessante com uma
mulher, e nem sempre temos uma à mão, os cafés-concerto podem
distrair o meu farmacêutico e sua esposa, mas a mim não.
Então, que fazer? Nada. Devia haver aqui um jardim de Verão,
como o Parque Monceau, aberto à noite, onde ouviríamos boa
música, a beber coisas frescas debaixo das árvores. Não seria
um lugar de divertimento, mas um sítio para larear, e
pagar-se-ia cara a entrada, a fim de atrair as mulheres
bonitas. Podíamos andar pelas alamedas bem ensaibradas,
iluminadas a luz eléctrica, e sentarmo-nos quando quiséssemos
para ouvir a música de perto ou de longe. Tivemos isso, pouco
mais ou menos, outrora, no Musard, com ressaibos de hortas e
muita música de dança, mas numa pequena extensão, sem bastante
sombra, sem bastante penumbra. Era preciso um bonito jardim,
muito grande. Seria encantador. Para onde queres ir?
Duroy, perplexo, não sabia que havia de dizer, por fim
decidiu-se:
- Não conheço as Folies-Bergère. Daria de boa vontade uma
volta por lá.
O seu companheiro exclamou:
- As Folies-Bergère?! Apre! Assaríamos lá como num forno.
Enfim, seja, é sempre divertido.
Deram meia volta para se dirigirem à Rua
Faubourg-Montmartre.
A fachada iluminada do estabelecimento lançava um grande
clarão para as quatro ruas que se encontravam em frente dela.
Uma fila de fiacres(1) esperava à saída.
Forestier entrou, Duroy deteve-o:
- Esquecemos de passar pela bilheteira.
- Comigo não se paga - respondeu o outro num tom importante.
Quando se aproximou da recepção, os três empregados
cumprimentaram-no. O do meio estendeu-lhe a mão. O jornalista
perguntou:
*1. Fiacre era a vitória, ou o cupé, semelhante às antigas
tipóias, que se chamava assim por a sua principal cocheira ser
na Rua de Saint-Fiacre. (N. do T.)
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- Tem um bom camarote?
- Evidentemente, senhor Forestier.
Pegou no cartão que lhe deram, empurrou a porta estofada,
com os batentes revestidos de couro, e entraram na sala.
O fumo do tabaco velava um tanto, como um nevoeiro muito
fino, os pontos mais distantes, o palco e o outro lado do
teatro. A elevarem-se sem cessar, as finas espirais
esbranquiçadas de todos os charutos e de todos os cigarros que
fumava toda aquela gente formavam uma bruma leve que subia
sempre, acumulava-se no tecto, e, sob a vasta cúpula, em volta
do lustre, por baixo do primeiro balcão cheio de espectadores,
parecia um céu nublado de fumarada.
No vasto corredor de entrada que leva à geral circular, por
onde roda a tribo das raparigas garridas, misturada à multidão
sombria dos homens, um grupo de mulheres esperava os que
chegavam, em frente de um dos três balcões onde pontificavam,
muito pintadas mas já gastas, três vendedoras de bebidas e de
ilusões. Os grandes espelhos por detrás delas reflectiam-lhes
as costas e os rostos dos que passavam.
Forestier atravessava os grupos e caminhava depressa, como
homem que tinha direito à consideração. Aproximou-se duma
arrumadeira:
- O camarote dezassete?
- Por aqui, cavalheiro.
Meteram-nos numa caixinha de madeira, descoberta por cima,
forrada de vermelho, que continha quatro cadeiras da mesma
cor, tão juntas que mal se podia passar entre elas. Os dois
amigos sentaram-se, à direita como à esquerda, seguindo uma
longa linha arredondada que ia dar ao palco nas duas
extremidades, uma série de caixinhas semelhantes, cheias de
pessoas, igualmente sentadas, das quais só se viam a cabeça e
o peito.
No palco, três rapazes com os fatos de malha muito justos,
um mais alto, outro médio e um pequeno, faziam, cada um por
sua vez, exercícios num trapézio. O mais alto avançava
primeiro, a passos curtos e rápidos, a sorrir, e saudava com
um gesto da mão como para mandar um beijo.
Via-se, sob a malha, desenharem-se os músculos dos braços e
das pernas, enchia o peito para dissimular um estômago muito
saliente, o seu rosto parecia o dum barbeiro,
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pois uma risca muito direita dividia-lhe o cabelo em duas
partes iguais, justamente a meio do crânio. Atingia o trapézio
num salto gracioso, e, suspenso pelas mãos, dava voltas como
uma roda em movimento, ou então, de braços curvos, com o corpo
direito, mantinha-se imóvel, deitado horizontalmente no vácuo,
preso à barra fixa só pela força dos pulsos. Depois, saltava
para o chão, cumprimentava de novo, a sorrir, sob os aplausos
dos espectadores das cadeiras de orquestra, e ia colocar-se
junto do cenário, mostrando bem a cada passo a musculatura da
perna.
O segundo, mais baixo, mais encorpado, avançava por seu
turno e repetia o mesmo exercício, que o último recomeçava,
mais uma vez, no meio de acentuado apreço do público. Duroy,
porém, não se interessava nada pelo espectáculo. Com a cabeça
voltada, fitava sem cessar, para trás de si, a grande geral
cheia de homens e prostitutas.
- Repara nas cadeiras de orquestra - disse Forestier. - Só
burgueses com as mullieres e os filhos, boas cabeças estúpidas
de quem vem para ver. Nos camarotes, os elegantes do bulevar,
alguns artistas, algumas raparigas galantes, e, por trás de
nós, a mais estranha mistura que há em Paris. Quem são esses
homens? Observa-os. Há de tudo, de todas as profissões e de
todas as castas, mas a crápula domina. São funcionários:
empregados de bancos, de armazéns, de ministérios, repórteres,
chulos, oficiais à paisana, boémios de casaca, que vêm de
jantar num clube e saem da ópera antes de ir para os
Italianos, e ainda todo o mundo de criaturas suspeitas que
desafiam qualquer análise. Quanto às mulheres, há uma só
marca: a que ceia no Americano, a rapariga de um ou dois
luíses que espreita o estrangeiro de cinco luíses e previne os
seus clientes habituais quando está livre. Conhecem-se todas,
há mais de seis anos, vemo-las todas as noites, todo o ano,
nos mesmos locais, salvo quando fazem uma estação de cura em
Saint-Lazare ou em Lourcine.(1)
Duroy não o ouvia. Uma dessas mulheres debruçara-se no seu
camarote e fitava-o. Era uma morena gorda, de pele branqueada
pelo creme, de olhos negros, grandes, acentuados a lápis,
enquadrados por sobrancelhas enormes e fingidas.
*1. Antigas prisões de mulheres para onde a polícia mandava
as raparigas de vida fácil. (N. do T.)
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O seu peito, demasiado volumoso, esticava a seda escura do
vestido, e os lábios pintados, vermelhos como uma chaga,
davam-Lhe qualquer coisa de bestial, de ardente, de violento,
mas que, no entanto, despertava o desejo.
A mulher chamou com um sinal de cabeça uma das suas amigas
que passava, branca, de cabelo ruivo, também gorda, e
disse-lhe em voz bastante alta para ser ouvida:
- Olha, que bonito rapaz, se ele quiser ir comigo por dez
luíses não direi que não.
Forestier voltou-se e, a sorrir, bateu na perna de Duroy:
- Isso é contigo, estás com sorte, meu caro. Os meus
cumprimentos.
O antigo sargento tinha corado, tacteava, com um movimento
maquinal do dedo, as duas moedas de ouro no bolso do colete.
Desceu o pano e a orquestra tocou uma valsa. Duroy disse:
- Se déssemos uma volta pela geral?
- Como quiseres.
Saíram e foram imediatamente arrastados pela corrente do
público. Comprimidos, empurrados, apertados, atirados dum lado
para o outro, caminhavam vendo na sua frente ondas de chapéus.
As raparigas, duas a duas, passavam no meio dessa multidão de
homens, atravessavam-na com facilidade, deslizavam entre os
cotovelos, os peitos, as costas, como se estivessem em sua
casa, muito à vontade como peixes na água, no centro dessa
onda de machos.
Duroy, encantado, deixava-se ir, bebia com embriaguez o ar
viciado pelo tabaco, pelo cheiro dos corpos e os perfumes das
marotas. Forestier, porém, suava, resfolegava, tossia, e
disse:
- Vamos para o jardim.
Voltaram à esquerda e entraram numa espécie de estufa, que
duas grandes fontes de mau gosto refrescavam. Sob as ifes e as
tuias em caixotes, homens e mulheres bebiam em volta das mesas
cobertas de zinco.
- Vai outra cerveja? - perguntou Forestier.
- Sim, de boa vontade.
Sentaram-se a ver passar o público. De tempos a tempos, uma
rapariga parava e perguntava com um sorriso banal:
- Oferece-me qualquer coisa, cavalheiro?
20
Forestier respondia:
- Só se for água da fonte!
A rapariga afastava-se a murmurar:
- Que grande forreta!
A morena gorda, que se debruçara, pouco antes, por trás do
camarote dos dois camaradas, reapareceu, a andar
arrogantemente, de braço dado com a loira nutrida, o que dava
um belo par de mulheres bem combinado.
A rapariga sorriu ao dar com Duroy, como se os seus olhos
tivessem já comunicado qualquer coisa íntima e secreta. Tomou
uma cadeira e sentou-se, tranquilamente, em face dele,
mandando assentar a sua amiga. Depois, pediu ao criado em voz
clara:
- Rapaz, duas granadinas!
- Estás muito abonada! - proferiu Forestier, surpreendido.
- É o teu amigo - retorquiu a rapariga - que me faz perder a
cabeça. É na verdade um bonito rapaz. Creio que me obrigará a
fazer loucuras!
Duroy, intimidado, não sabia que havia de dizer. Torcia o
bigode frisado duma maneira idiota. O criado trouxe os
refrescos, que as mulheres beberam dum trago. A seguir,
levantaram-se, e a morena, com um cumprimento amistoso de
cabeça e uma pancadinha com o leque no braço, disse a Duroy:
- Obrigada, querido. Perdeste a fala?
Partiram ambas a dar às ancas. Forestier, então, pôs-se a
rir:
- Olha lá, meu velho, sabes que tens uma sorte danada com as
mulheres? É preciso cuidar disso, pois pode levar-te longe. -
Calou-se, durante um segundo, e continuou com o ar das pessoas
que pensam em voz alta: - É graças a elas que se triunfa mais
depressa.
Como Duroy sorria sempre, sem responder, perguntou-lhe:
- Ainda ficas? Eu vou para casa, estou farto disto.
O outro murmurou:
- Sim, fico ainda um bocado. Não é tarde.
Forestier levantou-se:
- Bem! Adeus, então. Até amanhã. Não te esqueças: dezassete,
Rua Fontaine, às sete e meia.
- Está combinado, até amanhã. Obrigado.
21
Apertaram as mãos e o jornalista afastou-se.
Logo que o amigo desapareceu, Duroy sentiu-se livre e de
novo apalpou, alegremente, as duas moedas de oiro na
algibeira. Levantou-se e pôs-se a percorrer com o olhar a
multidão.
Em breve descobriu as duas mulheres, a loira e a morena, que
caminhavam sempre com a sua atitude altiva de mendigas,
através da torrente dos homens. Dirigiu-se, a direito, para
elas, mas quando estava perto, não ousou mais nada. A morena
disse-lhe:
- Já recuperaste a fala?
- Ora! - balbuciou Duroy, sem conseguir pronunciar mais
nada.
Estavam de pé, os três parados, a interromper o movimento do
público da geral, que formava um redemoinho à sua volta.
Então, num repente, a rapariga perguntou:
- Queres vir comigo?
Jorge, fremente de desejo, respondeu com rudeza:
- Quero, sim, mas só tenho um luís na algibeira.
A rapariga sorriu com indiferença:
- Isso não tem importância.
Meteu o braço no dele em sinal de posse. Quando saíam, Duroy
pensou que com os outros vinte francos poderia facilmente
obter, de aluguer, um fato de cerimónia para o dia seguinte.
II
- O senhor Forestier, se faz favor?
- No terceiro andar, porta à esquerda.
O porteiro respondeu com uma voz amável, em que transparecia
a consideração pelo seu locatário.
Jorge Duroy subiu a escada. Sentia-se um tanto contrafeito,
intimidado, pouco à vontade. Vestia uma casaca, pela primeira
vez na sua vida, e o conjunto do seu vestuário preocupava-o.
Sentia-se mal arranjado por tudo: pelas botas que não eram de
verniz, embora fossem bastante finas, pois tinha o luxo do
calçado, pela camisa de quatro francos e cinquenta, comprada,
naquela manhã, no Louvre,(1) e cujo peitiLho muito fino já
estava a enrugar-se. As suas outras camisas, que usava todos
os dias, tinham avarias mais ou menos graves, e não pudera
utilizar sequer a menos usada.
A calça, um bocado larga, modelava mal a coxa e parecia
enrolar-se na barriga da perna, com a aparência amarrotada da
roupa em segunda mão. Somente a casaca não estava mal, pois
encontrara uma quase da sua medida.
Subiu, lentamente, os degraus, com o coração a bater, o
espírito ansioso, aflito, sobretudo, pelo medo de parecer
ridículo. De súbito, surgiu, na sua frente, um cavalheiro, em
trajo de cerimónia, que olhava para ele. Encontravam-se tão
perto um do outro que Duroy fez um movimento para trás: era
ele próprio reflectido por um espelho grande, que formava, no
patamar do primeiro andar, uma profunda perspectiva de
galeria. Um ímpeto de alegria fê-lo vibrar, pois reconheceu
que estava muito melhor do que supunha.
Como só tinha em casa um espelhinho para fazer a barba, não
pudera mirar-se dos pés à cabeça. Tomara-se por outra pessoa,
por um homem da sociedade, que achara estar bem vestido,
chique até, ao primeiro relancear de olhos.
*1. Os Grandes Armazéns do Louvre, assim chamados por
ficarem em face da ala do antigo palácio real e hoje museu que
dá para a Rua Rivoli. (N. do T.)
23
Então, ao observar-se com atenção, reconhecia que,
realmente, o conjunto era satisfatório.
Duroy examinou-se como fazem os actores, para aprenderem os
seus papéis. Sorriu, estendeu a mão, fez gestos a exprimir
sentimentos: a surpresa, o prazer, a aprovação. Procurou as
gradações do sorriso e as intenções do olhar, para se mostrar
galante junto das damas, fazer-lhes compreender que as
admirava e as desejava.
Abriu-se uma porta na escada. Teve medo de ser surpreendido
e pôs-se a subir depressa, receoso de ter sido visto, a fazer
ademanes, por algum convidado do seu amigo.
Ao chegar ao segundo andar, deu com outro espelho e atrasou
o passo para se ver à vontade. O seu aspecto pareceu-lhe na
verdade elegante. Pisava bem. Uma confiança enorme em si
encheu-Lhe a alma. Sem dúvida, triunfaria com aquela figura, o
seu desejo de vencer, a resolução que sabia ter e a sua
independência de espírito.
Duroy tinha vontade de correr, de saltar ao trepar ao último
andar. Parou em frente do terceiro espelho, torceu o bigode
com o gesto que lhe era familiar, tirou o chapéu para alisar o
cabelo e murmurou, a meia voz, como fazia tantas vezes: "Ora
foi uma boa ideia!" Depois, estendeu a mão para a campainha e
tocou.
A porta abriu-se quase imediatamente e Jorge encontrou-se em
presença dum criado de casaca, grave, bem barbeado, tão
bem-posto que se perturbou de novo, sem compreender donde lhe
vinha aquela onda de comoção. Talvez duma comparação
inconsciente entre o corte do vestuário de ambos. Aquele
lacaio, com sapatos de polimento, perguntou, ao pegar no
sobretudo, que Duroy levava no braço com medo de mostrar as
nódoas:
- Quem devo anunciar?
Lançou o nome através dum reposteiro entreaberto, para uma
sala onde era preciso entrar. Duroy, subitamente, perdendo
toda a linha, sentiu-se ansioso, paralisado pelo medo. Ia dar
o seu primeiro passo numa existência esperada, sonhada. Por
isso, lançou-se para a frente. Uma senhora nova, loira, de pé,
aguardava-o, sozinha, num grande compartimento bem iluminado e
cheio de arbustos como uma estufa.
Jorge deteve-se, completamente desorientado. Quem era aquela
senhora que lhe sorria?
24
Lembrou-se de que Forestier era casado. O pensamento de aquela
bonita loira elegante ser a mulher do seu amigo acabou por o
perturbar. Balbuciou:
- Minha senhora, sou...
A dama estendeu-Lhe a mão:
- Bem sei. Carlos contou-me o encontro de ontem à noite e
estou encantada por ele ter tido a inspiração de o convidar
para jantar connosco hoje.
Duroy corou até à raiz do cabelo, sem saber que havia de
dizer. Sentia que estava a ser examinado, inspeccionado da
cabeça aos pés, pesado, julgado. Tinha vontade de pedir
desculpa, de inventar uma razão para explicar as negligências
do seu vestuário. Não encontrou, porém, nada para dizer e não
ousou aludir a esse assunto delicado.
Sentou-se numa poltrona que a dona da casa Lhe designou e,
quando sentiu descer com o seu peso o veludo elástico do
assento, ao ter a sensação de se afundar, apoiado, sustido por
esse móvel acariciador, cujas costas e braços estofados o
amparavam delicadamente, pareceu-lhe que entrava numa vida
nova e encantadora, que tomava posse de qualquer coisa de
delicioso, que se tornava alguém, que estava salvo, e mirou a
senhora Forestier, cujos olhos não tinham deixado de o fitar.
Tinha um vestido de caxemira azul pálido, que desenhava bem a
sua linha flexuosa e o peito volumoso.
A carne dos braços e da garganta saía duma espuma de rendas
brancas de que estavam guarnecidos o corpete e as mangas
curtas. O cabelo, levantado até ao alto da cabeça, frisava um
tanto na nuca, a formar uma leve nuvem de penugem loira por
cima do pescoço.
Duroy reanimara-se sob o seu olhar, que Lhe lembrava o da
pequena encontrada na véspera nas Folies-Bergère. Tinha os
olhos dum cinzento-azulado, que Lhes tornava estranha a
expressão, o nariz fino, os lábios grossos, o queixo um tanto
carnudo, um rosto irregular e sedutor, cheio de gentileza e de
malícia. Era um destes rostos de mulher em que cada linha
revela uma graça especial, parece ter uma significação e cada
movimento dá impressão de dizer, ou ocultar, qualquer coisa.
Após um curto silêncio, ela perguntou:
- Está há muito tempo em Paris?
Jorge respondeu, recuperando, aos poucos, o domínio de si
próprio:
25
- Só há alguns meses, minha senhora. Estou empregado nos
Caminhos-de-Ferro, mas Forestier deu-me esperanças de que
poderia, graças a ele, entrar para o jornalismo.
Ela teve um sorriso mais visível, mais benevolente, e
murmurou, baixando a voz:
- Eu sei.
A campainha tocou de novo. O criado anunciou:
- A senhora de Marelle.
Era uma morena daquelas a quem chamam trigueirinhas. Entrou
com ar lépido. Parecia desenhada, modelada, dos pés à cabeça,
num vestido escuro muito simples. Só uma rosa vermelha,
colocada no seu cabelo negro, atraía violentamente a atenção,
parecia marcar a sua fisionomia, acentuar-Lhe o carácter
especial, dar-lhe a nota viva e picante de que precisava. Uma
pequenita de vestidos curtos acompanhava-a.
- Boa noite, Clotilde.
- Boa noite, Madalena.
Beijaram-se. Depois, a criança deu a testa com um à-vontade
de pessoa crescida, ao mesmo tempo que dizia:
- Boa noite, prima.
A dona da casa beijou-a e a seguir fez as apresentações:
- O senhor Jorge Duroy, um bom camarada de Carlos. A senhora
de Marelle, minha amiga e ainda minha parenta. - Acrescentou:
- Sabe, aqui somos sem-cerimónias, fica entendido, não é
verdade?
Duroy inclinou-se. A porta abriu-se de novo e um senhor
gordo, baixo e roliço, surgiu, dando o braço a uma mulher alta
e bonita, muito mais alta do que ele, muito mais nova, de
maneiras distintas e de aspecto grave. Era o senhor Walter,
deputado, financeiro, homem de dinheiro e de negócios, judeu e
meridional, director da Vie Française, e sua esposa, da
família Basile-Ravalau, filha do banqueiro do mesmo apelido.
Apareceram a seguir: Jaime Rival, muito elegante, e Norberto
de Varenne, com a gola da casaca lustrosa pelo roçar da longa
cabeleira que lhe descia até aos ombros e a salpicava de
algumas películas de caspa. Com o laço da gravata mal dado,
avançou com uma atitude de velho galanteador, pegou na mão da
senhora Forestier e depôs-lhe um beijo no pulso. No movimento
que fez ao baixar a cabeça, a comprida cabeleira espalhou-se
como água pelo braço nu da dama.
Forestier entrou, então, a desculpar-se de vir atrasado.
26
Estivera retido no jornal por causa do caso Morel. O senhor
Morel, deputado radical, interpelara o Ministério acerca dum
pedido de crédito para a colonização da Argélia.
O criado anunciou em voz alta:
- O jantar está na mesa!
Passaram para a sala de jantar. Duroy ficou entre a senhora
de Marelle e sua filha. Sentia-se de novo pouco à vontade, com
medo de cometer qualquer imprudência no manejo convencional do
garfo, da colher ou dos copos. Tinha quatro na sua frente, um
dos quais levemente azulado. Que poderia beber por ele?
Ninguém falou enquanto comiam a sopa. Depois, Norberto de
Varenne perguntou:
- Leu o processo Gauthier? Que coisa estranha!
Discutiram acerca desse caso de adultério, complicado com
chantagem. Não falavam disso como é costume falar, no seio das
famílias, dos casos referidos nos jornais, mas como os médicos
falam duma doença ou as vendedeiras dos seus legumes. Não se
indignavam, não se surpreendiam com os factos, procuravam-lhes
as causas profundas, secretas, com uma curiosidade
profissional e uma indiferença absoluta pelo crime em si.
Procuravam explicar, claramente, as origens das acções,
determinar todos os fenómenos cerebrais de que nascera o
drama, resultado científico dum estado de espírito especial.
As senhoras também mostravam interesse por esse trabalho de
investigação. Outros acontecimentos recentes foram examinados,
comentados, voltados de todos os lados, pesados no seu valor,
com os olhos práticos e a maneira de ver especial dos
vendedores de notícias, dos retalhistas da comédia humana à
linha, como se examina, pesa e volta, no comércio, a
mercadoria destinada ao público. Depois, falaram dum duelo, e
Jaime Rival tomou a palavra. Isso pertencia-lhe: ninguém mais
podia tratar desse caso.
Duroy não ousava arriscar uma palavra. Olhava por vezes para
a sua vizinha, cuja garganta roliça o atraía. Um brilhante
suspenso dum fio de ouro pendia-Lhe por baixo da orelha, como
uma gota de água que tivesse deslizado para a carne. De tempos
a tempos, a dama fazia uma observação que provocava sempre um
sorriso em todos os lábios. Tinha comentários engraçados,
gentis, inesperados, um espírito de garota experiente,
27
que vê as coisas com desprendimento e as julga com um
cepticismo leve e benévolo.
Jorge procurava, em vão, um cumprimento para lhe dirigir e,
como não encontrava nada, ocupava-se da filha, enchia-Lhe o
copo, segurava-Lhe o prato, servia-a. A criança, mais séria do
que a mãe, agradecia com voz grave, baixava levemente a
cabeça:
- O senhor é muito amável - e ouvia as pessoas crescidas com
um arzinho atento.
O jantar era muito bom e todos o elogiavam. O senhor Walter
comia como um bruto, quase não falava, e examinava, com um
olhar oblíquo, por baixo dos óculos, cada travessa que lhe
apresentavam. Norberto de Varenne imitava-o e deixava por
vezes cair gotas de molho no peitilho da camisa.
Forestier, sorridente e grave, estava vigilante, trocava
olhares com a mulher, como dois comparsas que realizam em
conjunto uma tarefa difícil e vêem as coisas caminhar como
desejam. Os rostos tornavam-se encarnados, as vozes subiam de
tom. De momento a momento, o criado murmurava ao ouvido dos
convivas:
- Corton? Château-Laroze?...
Duroy achara o Corton muito do seu gosto e deixava sempre
que lhe enchesse o copo. Uma alegria deliciosa penetrava-o.
Era uma alegria cálida, que lhe subia do ventre à cabeça, lhe
percorria os membros, Lhe invadia o corpo todo. Sentia-se
dominado por um complexo de bem-estar, um bem-estar de vida e
de pensamento, de corpo e alma.
Apossava-se dele uma vontade de falar, de se tornar notado,
de ser escutado, apreciado, como aqueles homens de quem
saboreavam as mínimas expressões. A conversa, porém, que
crescia constantemente, encandeando-se as ideias umas às
outras, saltando dum assunto para outro por uma palavra, um
nada, depois de ter dado a volta pelos acontecimentos do dia e
de ter aflorado, de passagem, mil assuntos, regressou à grande
interpelação do senhor Morel sobre a colonização da Argélia.
O senhor Walter, entre dois pratos, disse algumas graçolas,
pois tinha um espírito céptico e grosseiro. Forestier repetiu
o seu artigo do dia seguinte. Jaime Rival reclamou um governo
militar, que fizesse concessões de terras a todos os oficiais
após trinta anos de serviço colonial.
28
- Dessa maneira - dizia - criar-se-á uma sociedade enérgica,
que aprendeu a conhecer e a amar o território, sabe a língua
que nele se fala e está ao corrente de todas essas graves
questões locais, contra as quais esbarram infalivelmente os
recém-chegados.
Norberto de Varenne interrompeu-o:
- Sim... saberão tudo, excepto a agricultura. Falarão árabe,
mas ignorarão como se mondam as beterrabas ou se semeia o
trigo. Poderão ser muito fortes em esgrima, mas muito fracos
em questões de adubos. Pelo contrário, é preciso abrir esses
territórios novos a toda a gente. Os inteligentes farão neles
carreira, os outros sucumbirão. É a lei social.
Seguiu-se um certo silêncio. Sorriam. Jorge Duroy abriu a
boca e, surpreendido pelo som da sua voz, como se nunca a
tivesse ouvido, proferiu:
- O que mais falta é boa terra. Terrenos verdadeiramente
férteis custam tão caro lá como em França e são comprados,
para colocação de capitais de parisienses muito ricos. Os
verdadeiros colonos, os pobres, aqueles que se exilam em busca
de pão, são atirados para o deserto, onde não cresce nada por
falta de água.
Todos olharam para ele. Corou. O senhor Walter perguntou:
- O senhor conhece a Argélia?
- Sim, senhor - respondeu Duroy. - Estive lá vinte e oito
meses e vivi nas três províncias.
Bruscamente, esquecendo-se da questão Morel, Norberto de
Varenne interrogou-o sobre um pormenor que ouvira a um
oficial. Tratava-se do Mzab, essa estranha republicazinha
árabe, surgida no meio do Sara, na parte mais ressequida dessa
região ardente.
Duroy visitara duas vezes o Mzab e narrou os costumes desse
país singular, país onde as gotas de água valiam ouro, cada
habitante era obrigado a desempenhar, por turnos, todos os
serviços públicos e a probidade comercial fora levada mais
longe do que entre os povos civilizados.
Falava com certa facúndia, excitado pelo vinho e pelo desejo
de agradar. Contou anedotas da vida militar, aspectos dos
costumes árabes, aventuras de guerra. Encontrou até expressões
coloridas para descrever essas paragens amareladas e nuas,
infinitamente desoladas, sob a chama ardente do Sol.
29
Todas as mulheres tinham os olhos nele. A senhora Walter
proferiu, com a sua voz lenta:
- Faria, com as suas recordações, uma encantadora série de
artigos.
Então Walter observou o jovem por cima dos óculos, como
fazia para ver bem os rostos. Os pratos é que ele olhava por
baixo das lentes.
Forestier aproveitou o momento:
- Meu caro director, falei-Lhe, há pouco, do senhor Jorge
Duroy, ao pedir-lhe que o admitisse como meu adjunto, para o
serviço das informações políticas. Desde que Marambot nos
deixou, não tenho ninguém para ir buscar as informações
urgentes e confidenciais e o jornal sofre com isso.
O velho Walter ficou sério e levantou completamente os
óculos para ver Duroy bem de frente. Depois disse:
- Não há dúvida de que o senhor Duroy tem um espírito
original. Se quiser ver-me amanhã, às três horas, combinaremos
isso. - Depois, após um curto silêncio, completamente voltado
para o rapaz, acrescentou: - Faça, porém, já, uma série de
artigos, com as suas impressões da Argélia. Contará as suas
recordações e juntar-lhes-á as questões relativas à
colonização de que falou há pouco. É assunto de actualidade,
de completa actualidade. Tenho a certeza de que isso agradará
a muitos dos nossos leitores. Despache-se, porém. Preciso do
primeiro artigo para amanhã, ou depois de amanhã, enquanto se
discute o caso na Câmara, para atrair o público.
A senhora Walter acrescentou, com aquele ar de seriedade
gracioso que punha em tudo e que dava um ar de favores
especiais às suas palavras:
- Tem um título encantador: "Recordações dum Caçador de
África", não é verdade, senhor Norberto?
O velho poeta, que conquistara tarde a fama, detestava e
temia os recém-chegados, respondeu num tom seco:
- Sim, excelente, com a condição de o resto ser nesse tom,
porque é essa a grande dificuldade, a nota justa é aquilo que
na música se chama tom.
A senhora Forestier envolvia Duroy num olhar sorridente e
protector, que parecia dizer: "Tu hás-de vencer." A senhora de
Marelle voltara-se várias vezes para ele e o brilhante da sua
orelha tremia sem cessar como uma fina gota de água que ia
soltar-se e cair.
30
A pequenita mantinha-se, imóvel e grave, com a cabeça
inclinada para o prato. O criado dava volta à mesa e deitava,
nos cálices azuis, vinho de Johannisberg. Forestier fez uma
saúde, dirigindo-se ao senhor Walter:
- Pelas prosperidades da Vie Française!
Todos se inclinaram para o patrão, que sorria. Duroy,
embriagado pelo triunfo, bebeu o seu copo dum trago. Teria
bebido da mesma maneira uma pipa inteira, parecia ter comido
um boi ou estrangulado um leão. Sentia no corpo um vigor
sobre-humano e no espírito uma decisão invencível e uma
infinita esperança. Sentia-se já à vontade no meio daquela
gente. Acabava de ocupar posição, de conquistar o seu lugar.
Pousava o olhar naqueles rostos com uma segurança nova e
ousou, pela primeira vez, dirigir a palavra à sua vizinha:
- Minha senhora, tem os mais bonitos brincos que jamais vi.
Ela voltou-se para ele com um sorriso:
- Foi uma boa ideia minha usar os brilhantes assim,
simplesmente, suspensos dum fio. Dir-se-ia, na realidade, uma
gota de orvalho, não é?
Duroy murmurou, confuso com a sua audácia e receoso de dizer
uma tolice:
- É encantador... mas a orelha também valoriza-os.
Ela agradeceu-lhe com um olhar, um desses claros olhares de
mulher, que vão até ao coração.
Quando Jorge voltou a cabeça encontrou outra vez os olhos da
senhora Forestier, sempre benevolentes, mas nos quais julgou
ver uma alegria mais viva, maliciosa, encorajante.
Os homens falavam todos ao mesmo tempo, com gestos e vozes
estridentes. Discutia-se o grande projecto do Caminho-de-Ferro
Metropolitano. O assunto só ficou esgotado no final da
sobremesa, pois cada um tinha qualquer coisa a dizer sobre a
lentidão das comunicações em Paris, os inconvenientes dos
tranvias, os aborrecimentos dos cocheiros dos fiacres.
Deixaram depois a sala de jantar para ir tomar o café.
Duroy, por brincadeira, ofereceu o braço à pequenita, que lhe
agradeceu gravemente e se ergueu nas pontas dos pés para
conseguir pôr a mão no cotovelo do seu vizinho.
Ao entrar na sala teve de novo a sensação de penetrar numa
estufa.
31
Grandes palmeiras abriam as suas folhas elegantes nos quatro
cantos do aposento, subiam até ao tecto e depois abriam em
leque.
Dum lado e outro do fogão, as begónias lançavam, umas sobre
as outras, as suas folhas dum verde sombrio, e, em cima do
piano, dois arbustos desconhecidos, redondos e cobertos de
flores, umas róseas outras brancas, tinham o ar de plantas
fingidas, inacreditáveis, demasiado bonitas para serem
verdadeiras. O ar fresco estava impregnado dum perfume vago,
doce, que não se podia definir e do qual ninguém saberia dizer
o nome.
O rapaz, mais senhor de si, observava com atenção o
aposento. Não era grande, nada nele atraía os olhares a não
ser os arbustos, nenhuma cor viva chamava a atenção, mas
estava-se ali à vontade, tranquilamente, envolvia em doçura,
agradava, dava a sensação de acariciar.
As paredes estavam forradas com um tecido antigo, dum
violeta esmaecido, salpicado de florinhas amarelas,
acetinadas, do tamanho de moscas. Os reposteiros, dum
azul-acinzentado, da cor das fardas dos militares, em que
tinham sido bordados cravos a seda vermelha, ocultavam as
portas. Assentos de todas as formas e de todos os tamanhos,
espalhados ao acaso pelo aposento, sofás, poltronas, enormes
ou minúsculas, tamboretes e bancos estofados, eram revestidos
de seda Luís XVI ou dum belo veludo de Utreque, de fundo creme
com desenhos granada.
- Toma café, senhor Duroy?
A senhora Forestier oferecia-lhe uma xícara cheia, com o
sorriso amistoso que não lhe abandonava os lábios.
- Tomo sim, minha senhora, muito obrigado.
Recebeu a xícara e, quando se debruçava, contrafeito, para
apanhar com a pinça de prata o torrão de açúcar no açucareiro
que a pequenita levava, a dona da casa disse-lhe a meia voz:
- Faça a sua corte à senhora Walter.
Afastou-se, em seguida, sem que Jorge pudesse retorquir-lhe.
Duroy bebeu à pressa o seu café, com receio de o entornar no
tapete. Depois, com o espírito mais livre, procurou o meio de
se aproximar da esposa do seu novo director e de entabular uma
conversação. De súbito, descobriu que a senhora Walter tinha
na mão a xícara vazia.
32
Como se encontrava longe de qualquer mesa, não sabia onde a
havia de pôr. Jorge precipitou-se:
- Dá-me licença, minha senhora?
- Muito obrigada.
Depôs a xícara e voltou:
- Se soubesse, minha senhora, que bons momentos me fazia
passar a Vie Française, quando me encontrava no deserto... É
na verdade o único jornal que se pode ler fora da França,
porque é mais literário, mais espirituoso e menos monótono do
que qualquer dos outros. Nele encontramos tudo.
A senhora Walter sorriu, com amável indiferença, e respondeu
com ar superior:
- Meu marido conseguiu criar um tipo de jornal que
corresponde a uma necessidade nova.
Puseram-se a conversar. Duroy tinha a palavra fácil e banal,
calor na voz, muito de sedução no olhar e um encanto
irresistível no bigode, que se espalhava pelo lábio, crespo,
frisado, bonito, dum loiro arruivado, com um tom mais pálido
nos pêlos eriçados das pontas.
Falaram de Paris e dos seus arredores, das margens do Sena,
de estâncias termais, de veraneios, de todas essas coisas
correntes em que é possível discorrer uma infinidade de tempo
sem fatigar o espírito. Depois, como o senhor Norberto de
Varenne se aproximava, com um cálice de licor na mão, Duroy
afastou-se discretamente.
A senhora de Marelle, que estivera a conversar com a senhora
Forestier, chamou-o:
- Com que então, o senhor - disse-lhe de chofre - quer
experimentar o jornalismo?
Duroy falou dos seus projectos, em termos vagos, e continuou
com ela a conversa que começara com a senhora Walter. Como já
estava mais senhor do assunto, mostrou-se mais à vontade,
repetindo, como suas, coisas que pouco antes ouvira. Sem
cessar, fitava nos olhos a sua interlocutora, como para dar um
sentido profundo ao que dizia.
A senhora de Marelle contava, por seu turno, anedotas, com o
entusiasmo fácil duma mulher que sabe ser espirituosa e quer
agradar; tornava-se familiar, punha-lhe a mão no braço,
baixava a voz para dizer coisas insignificantes, mas que
tomavam assim um cunho de intimidade.
33
Jorge exultava, interiormente, por ver aquela mulher, nova e
elegante, prestar-Lhe atenção. Desejaria, imediatamente,
devotar-se-lhe, mostrar-Lhe o que valia e a demora que punha
em responder-lhe denunciava a preocupação do seu pensamento.
Subitamente, sem razão aparente, a senhora de Marelle chamou:
- Laurita!
A pequenita foi ter com a mãe, que lhe disse:
- Senta-te aí, minha filha; vais sentir frio junto da
janela.
Duroy sentiu-se preso dum desejo irreprimível de beijar a
criança, como se alguma coisa desse beijo devesse reverter
para a mãe. Perguntou num tom entre paternal e galante:
- Dá-me licença que a beije, minha menina?
A pequena ergueu os olhos para ele, com ar surpreso, e a
senhora de Marelle disse, a rir:
- Responde: "Dou licença, sim, por enquanto; mas não será
sempre assim..."
Duroy sentou-se, pegou na criança, que colocou nos joelhos,
e aflorou-lhe com os lábios o cabelo ondeado e sedoso.
- Vejam! - disse a mãe surpreendida. - Ela não fugiu! É
espantoso! Em regra, só se deixa beijar por mulheres. O senhor
é irresistível...
Duroy corou, sem responder, e com um movimento leve balançou
a pequenita nos joelhos.
A senhora Forestier aproximou-se e soltou uma exclamação de
surpresa:
- Ora, vejam! Eis a Laurita domesticada; que milagre!
Jaime Rival acercou-se com um charuto na boca. Duroy
levantou-se para partir. Tinha medo de estragar, com qualquer
palavra imprudente, a tarefa que empreendera, a sua obra de
conquista começada.
Cumprimentou, apertou docemente as mãos das senhoras e
sacudiu com força as dos homens. Reparou que a de Jaime Rival
era seca e quente e correspondia cordialmente à sua pressão. A
de Norberto de Varenne, húmida e fria, fugia-lhe, deslizando
por entre os dedos. A do velho Walter, fria e mole, era sem
energia, sem expressão. Era gorda e tímida a mão de Forestier,
o qual Lhe disse a meia voz:
- Amanhã, às três horas; não te esqueças.
- Oh! Não me esqueço. Fica tranquilo!
34
Quando se encontrou na escada, teve vontade de a descer a
correr, tanto a sua alegria era veemente. Desceu, galgando os
degraus dois a dois. De repente, deparou, no grande espelho do
segundo andar, com um cavalheiro apressado que Ia, a grandes
pernadas, ao seu encontro, e parou de súbito, envergonhado
como se tivesse sido apanhado em falta.
Depois, mirou-se com vagar, maravilhado por ser na verdade
um tão belo rapaz, e sorriu, complacente. Em seguida,
despediu-se da sua imagem com três cumprimentos rasgados,
cerimoniosos, como se cumprimentam as grandes personagens.
III
Quando Jorge Duroy se encontrou na rua, hesitou acerca do
que faria. Tinha vontade de correr, de sonhar, de andar ao
acaso a pensar no futuro e a respirar o ar doce da noite. O
pensamento, porém, da série de artigos pedida pelo velho
Walter perseguia-o. Decidiu ir para casa imediatamente para se
pôr ao trabalho.
Voltou para trás a grandes passadas, alcançou o bulevar
exterior e seguiu-o até à Rua Boursault, onde habitava. A sua
casa, de seis andares, estava ocupada por vinte casais
burgueses e operários. Sentiu, ao subir a escada, enquanto
iluminava com fósforos os degraus sujos por onde se viam
bocados de papel, pontas de cigarro, aparas de cozinha, uma
lamentável sensação de desgosto e uma pressa de sair dali, de
viver como os homens ricos, em casas limpas, com tapetes.
Um cheiro pesado de comida, de sentina e de humidade, um
cheiro estagnado de imundície e de paredes velhas, que nenhuma
corrente de ar poderia expulsar daquela habitação, enchia-a de
alto a baixo.
O quarto de Duroy, no quinto andar, dava, como para um
abismo profundo, para uma imensa trincheira do
Caminho-de-Ferro do Oeste, justamente por cima da saída do
túnel, junto da Estação de Batignolles. Jorge abriu a janela e
debruçou-se na varanda de ferro enferrujado.
Por baixo dele, no fundo do buraco sombrio, três luzes
vermelhas, imóveis, pareciam olhos dum animal; mais longe,
viam-se outras e ainda outras mais distantes. A todos os
momentos, toques de apitos, prolongados ou curtos, surgiam na
noite, uns próximos, outros apenas perceptíveis, vindos de
longe, do lado de Asnières. Tinham modulações, como apelos de
vozes. Um deles aproximava-se, soltando sempre o seu grito
lamentoso que crescia de segundo em segundo. Em breve, uma
grande luz amarela apareceu a correr com um grande ruído.
Duroy viu um longo rosário de vagões absorvido pelo túnel.
36
Depois, disse para si: "Vamos! Ao trabalho!" Colocou a luz
em cima da mesa. No momento em que se preparava para escrever,
lembrou-se de que só tinha em casa um caderno de papel de
cartas. Não importava; utilizá-lo-ia, abrindo uma folha a toda
a largura. Molhou a pena no tinteiro e escreveu ao alto com a
sua mais bonita letra: "Recordações dum Caçador de África." Em
seguida, procurou o começo da primeira frase. Ficou com a
cabeça apoiada na mão, com os olhos no quadrado branco,
desdobrado na sua frente.
Que ia dizer? Já não se lembrava nada do que contara pouco
antes, nem um facto, uma anedota, nada. De súbito, pensou: "É
preciso que comece pela minha partida." Escreveu então: "Era
em 1874, por volta de 15 de Maio, quando a França, esgotada,
descansava após as catástrofes do ano terrível..." Deteve-se,
sem saber como encadear o que se seguiria, o seu embarque, a
viagem, as primeiras comoções.
Após dez minutos de reflexão, decidiu deixar para o dia
seguinte a página do começo do artigo e fazer, imediatamente,
uma descrição de Argel. Traçou no papel: "Argel é uma cidade
muito branca...", sem conseguir dizer outra coisa. Revia, na
memória, a cidade clara a descer, como uma cascata de casas
atarracadas, desde o alto da colina até ao mar; mas não
encontrava uma palavra para exprimir o que tinha visto, o que
sentira. Depois dum grande esforço, acrescentou: "É habitada
em parte por árabes..." Atirou com a pena para cima da mesa e
levantou-se.
Num minúsculo leito de ferro, onde o seu corpo fizera uma
cova, viu o seu fato de todos os dias atirado para ali,
fatigado, flácido, vazio, triste, como farrapos do necrotério.
Em cima duma cadeira de palhinha, o seu chapéu alto, o seu
único chapéu, parecia voltado para receber esmola.
As paredes do quarto, forradas dum papel cinzento com
raminhos azuis, tinham tantas nódoas como flores, manchas
antigas, suspeitas, de que não saberia dizer-se se eram
animais esmagados, salpicos de azeite, dedadas gordurosas de
pomada ou respingos de espuma da bacia projectados durante as
lavagens. Tudo respirava a miséria envergonhada, a miséria dos
quartos alugados de Paris. Uma exasperação apoderou-se dele
contra a pobreza da sua vida. Reconheceu ser preciso deixar
aquilo imediatamente, era indispensável, a partir do dia
seguinte, acabar com aquela existência miserável.
37
Apoderou-se dele, subitamente, o ardor do trabalho, voltou a
sentar-se à mesa e recomeçou a procurar frases, para contar a
fisionomia estranha e encantadora de Argel, essa antecâmara da
África misteriosa e profunda, da África dos árabes nómadas e
dos negros desconhecidos, da África inexplorada e tentadora,
de que mostram por vezes, nos jardins públicos, animais
inverosímeis que parecem criados para contos de fadas: as
avestruzes, essas galinhas extravagantes, as gazelas, essas
cabras divinas, as girafas surpreendentes e grotescas, os
camelos graves, os hipopótamos monstruosos, os rinocerontes
doentes e os gorilas, esses irmãos terríveis do homem.
Sentia, vagamente, os pensamentos acudirem-Lhe. Talvez os
pudesse dizer, mas não podia formular com eles palavras
escritas. A sua impotência enervava-o e levantou-se de novo,
com as mãos húmidas de suor e o sangue a bater-lhe nas fontes.
Os seus olhos caíram em cima da nota da sua lavadeira,
levada naquela tarde pelo porteiro, e sentiu-se bruscamente
preso dum grande desespero. Toda a sua alegria desapareceu num
segundo, com a sua confiança em si e a sua fé no futuro.
Estava acabado; não faria nada; não seria nada; sentia-se
vazio, incapaz, inútil, condenado.
Voltou a debruçar-se à janela, justamente no momento em que
um comboio saía do túnel com um ruído súbito e violento. Ia
para longe, através dos montes e das planícies a caminho do
mar. A lembrança de seus pais entrou no coração de Duroy. Esse
comboio iria passar próximo deles, somente a algumas léguas da
sua casa. Reviu essa casinha, no alto da encosta, a dominar
Ruão e o imenso vale do Sena, à entrada da aldeia de Candeleu.
Seus pais tinham um botequinzinho, um retiro, onde os
burgueses dos arredores iam almoçar aos domingos: A la
Belle-Vue,. Quiseram fazer do filho alguém e tinham-no mandado
para o colégio. Terminados os estudos, sem ter feito o curso
secundário, fora para o serviço militar, com intenção de ser
oficial, coronel, general. Desgostoso da vida da tropa, muito
antes de completar os seus cinco anos de serviço, sonhara
fazer fortuna em Paris.
38
Mal terminara o seu tempo de serviço, fora para lá, a
despeito das súplicas do pai e da mãe que, desfeito o seu
sonho, queriam conservá-lo a seu lado. Por sua vez, Jorge
confiava no futuro. Entrevia o triunfo por meio de
acontecimentos, ainda confusos no seu espírito, que saberia
provocar e secundar.
Tivera, no regimento, os seus êxitos, conquistas fáceis e
também aventuras numa sociedade mais elevada, pois seduzira a
filha dum recebedor de impostos, que queria deixar a família
para o seguir, e a mulher dum procurador judicial, que tentara
afogar-se, por desespero, ao sentir-se posta de parte por ele.
Os seus camaradas diziam do sargento Duroy: "É um
espertalhão, um manhoso, um tipo que sabe tirar-se das
enrascadas." Prometera a si próprio ser espertalhão, manhoso e
desenrascado.
O seu carácter natural de normando, afinado pela prática
quotidiana da vida de guarnição, estimulado pelos exemplos das
razias em África, dos lucros ilícitos, dos negócios suspeitos,
e temperado, também, pelas ideias de honra que correm na
tropa, pelas bravatas militares, os sentimentos patrióticos,
as histórias magnânimas contadas entre sargentos e pela
gloríola da profissão, era uma espécie de caixa de três fundos
onde havia de tudo. O desejo de triunfar era o que
predominava.
Jorge pusera-se, sem dar por isso, a devanear, como fazia
todas as noites. Imaginava uma aventura de amor magnífica, que
o levaria, dum salto, à realização das suas esperanças: casava
com a filha dum banqueiro, ou dum grande senhor, encontrada na
rua e conquistada à primeira vista. Despertou-o do devaneio o
apito estridente duma locomotiva, que saía sozinha do túnel,
como um coelho da lura, e corria a todo o vapor pelos carris,
a caminho do depósito das máquinas para onde ia descansar.
Então, refeito pela esperança, confusa e alegre, que
dominava sempre o seu espírito, atirou ao acaso um beijo para
a noite, um beijo de amor à imagem da mulher que esperava, ou
de desejo à fortuna ambicionada.
Depois, fechou a janela e começou a despir-se, murmurando:
"Ora, estarei melhor disposto amanhã de manhã. Não tenho o
espírito livre esta noite. Talvez, também, tivesse bebido de
mais. Não se pode trabalhar bem nestas condições."
39
Meteu-se na cama, soprou a luz e adormeceu quase
imediatamente.
Acordou cedo, como acordamos nos dias de esperanças vivas ou
de preocupações, e, ao descer da cama, foi abrir a janela,
para absorver uma boa taça de ar fresco, como dizia. As casas
da Rua de Roma, em frente, do outro lado do largo fosso do
caminho-de-ferro, resplendentes na luz do sol matinal,
pareciam pintadas duma claridade branca. Ao longe, à direita,
descobriam-se as colinas de Argenteuil, as alturas de Sannois
e os moinhos de Orgemont, numa bruma azulada e leve,
semelhante a um veuzinho flutuante e transparente que tivesse
sido lançado sobre o horizonte.
Jorge ficou alguns momentos a contemplar os campos
longínquos e murmurou: "Deve estar lá um rico tempo, num dia
como este!" Depois, pensou que era preciso pôr-se ao trabalho
e imediatamente, e também mandar o filho da porteira, mediante
dez soldos, dizer no escritório que estava doente.
Sentou-se à mesa, molhou a pena no tinteiro, apoiou a cabeça
nas mãos e procurou reunir ideias. Foi em vão. Não lhe acudia
nada. No entanto, não desanimou, pensando: "Ora, não estou
habituado; é um ofício que se aprende como todos os ofícios. É
preciso que me ajudem ao princípio. Vou procurar Forestier,
que me delineará o meu artigo em dez minutos." Vestiu-se.
Quando se encontrou na rua, pensou que era ainda muito cedo
para se apresentar em casa do seu amigo que devia dormir até
tarde... Por isso, pôs-se a passear devagar, sob as árvores do
bulevar exterior. Ainda não eram nove horas e alcançou o
Parque Monceau, muito fresco da humidade das regas.
Sentou-se num banco e voltou de novo a sonhar. Na sua
frente, um rapaz muito elegante andava dum lado para o outro,
sem dúvida à espera duma mulher. Esta apareceu, de véu, de
andar rápido, e, dando-lhe o braço, depois dum breve aperto de
mão, afastaram-se. Um tumultuoso apetite de amor entrou no
coração de Duroy, mas de amores distintos, perfumados,
delicados. Levantou-se e pôs-se a caminho, a pensar em
Forestier. Esse tivera sorte!
Chegou em frente da sua porta no momento em que o amigo
saía:
40
- Tu aqui! A esta hora! Que me queres?
Duroy, contrariado por o encontrar quando o amigo ia a sair,
balbuciou:
- É que... é que... não consigo fazer o meu artigo, sabes,
aquele artigo que o senhor Walter me pediu sobre a Argélia.
Não é muito extraordinário, dado que nunca escrevi. É preciso
prática para isso, como para tudo. Habituar-me-ei depressa,
tenho a certeza; mas não sei por onde começar. Tenho muitas
ideias, tenho-as todas, mas não consigo exprimi-las.
Deteve-se hesitante. Forestier sorria com malícia:
- Sei o que isso é.
- Sim - continuou Duroy -, isto deve suceder a toda a gente,
no começo. Pois bem, vinha... vinha pedir-te que me desses uma
ajuda... Em dez minutos, pôr-me-ás ao corrente, mostrarás o
caminho que é preciso seguir. Dar-me-ás uma boa lição de
estilo, pois, sem ti, não conseguirei nada.
O outro sorria sempre com um ar alegre. Bateu no ombro do
seu antigo camarada e disse-Lhe:
- Vai procurar minha mulher, que te tratará do caso tão bem
como eu. Eduquei-a para essas tarefas. Não tenho tempo, esta
manhã, sem o que to faria de boa vontade.
Duroy, intimidado de súbito, hesitava, não ousava:
- Mas a esta hora, não posso apresentar-me lá em casa...
- Sim, podes. Já está levantada. Encontrá-la-ás no meu
escritório, ocupada a pôr em ordem umas notas para mim.
O outro recusava-se a subir:
- Não... isso não é possível...
Forestier agarrou-o, pelos ombros, fê-lo dar meia volta e
empurrou-o para a escada:
- Anda, meu grande palerma, pois se te digo que vás. Não me
quererás forçar a trepar os meus três andares, para te
apresentar e explicar o teu caso.
Duroy decidiu-se:
- Obrigado. Então, vou. Dir-lhe-ei que me obrigaste, que me
forçaste, absolutamente, a ir procurá-la.
- Sim. Fica tranquilo que ela não te come. Sobretudo, não
esqueças: logo às três horas.
- Oh! Fica descansado.
Forestier partiu com o seu ar apressado, enquanto Duroy se
pôs a subir devagar, degrau a degrau, à procura do que havia
de dizer e inquieto pelo acolhimento que teria.
41
O criado abriu-Lhe a porta. Tinha um avental azul e uma
vassoura na mão.
- O senhor saiu - disse, sem esperar qualquer pergunta.
- Pergunte - insistiu Duroy - à senhora se me pode receber.
Previna-a de que venho da parte de seu marido, a quem
encontrei na rua.
Depois, esperou. O homem voltou, abriu uma porta à direita e
anunciou:
- A senhora espera o senhor.
A esposa de Forestier encontrava-se numa poltrona de
escritório, num compartimentozinho cujas paredes estavam
ocultas por livros bem arrumados em prateleiras negras. As
encadernações de tons diferentes, vermelhas, amarelas, roxas e
azuis, davam cor e alegria a esse alinhamento monótono de
volumes.
A dona da casa voltou-se, sempre sorridente, envolta num
penteador branco guarnecido de rendas. Estendeu-lhe a mão,
mostrando o seu braço nu na manga muito larga.
- Já? - disse, e, depois, corrigiu: - Isto não é de modo
nenhum uma censura, mas uma simples pergunta.
- Oh! minha senhora - balbuciou Jorge. - Não queria subir,
mas seu marido, a quem encontrei à porta, forçou-me a isso.
Sinto-me de tal maneira envergonhado que não ouso dizer o que
me traz.
Ela indicou-lhe uma cadeira:
- Sente-se e fale.
Manejava entre dois dedos uma pena de ganso que fazia
voltear agilmente. Na sua frente, via-se uma grande folha de
papel escrita até meio, interrompida pela chegada do
visitante.
Tinha um ar muito à-vontade diante daquela mesa de trabalho,
tal como se mostrara na sua sala, ocupada nas suas tarefas
quotidianas. Evolava-se do seu penteador um perfume leve,
fresco, de quem acabara de tomar banho. Duroy procurava
adivinhar, julgava ver o corpo jovem e alvo, suave e cálido,
docemente envolvido no estofo macio.
A dona da casa prosseguiu, ao ver que Jorge não falava:
- Então? Diga o que há!
Duroy murmurou, hesitante:
- Pois é... mas, na verdade... não ouso... Trabalhei, ontem,
até tarde, e esta manhã... muito cedo... a ver se fazia o
artigo sobre a Argélia que o senhor Walter me pediu...
42
e não consigo escrever nada com jeito... rasguei todas as
tentativas que fiz... Não estou habituado a tal trabalho... e
vinha pedir a Forestier que me ajudasse... uma vez, sem
exemplo...
A senhora Forestier interrompeu-o, a rir de vontade, feliz,
alegre e lisonjeada:
- Meu marido mandou-o ter comigo? É muito gentil isso...
- Sim, minha senhora. Disse-me até que me tiraria da
dificuldade melhor do que ele. Por mim, não ousava, não
queria. Compreende...
A dona da casa levantou-se:
- Vai ser encantador colaborar assim. Estou maravilhada com
a sua ideia. Sente-se aqui no meu lugar, pois conhecem a minha
letra no jornal. Vamos fazer um artigo, mas um artigo que dará
que falar.
Jorge sentou-se, pegou na pena, pôs na sua frente uma folha
de papel e esperou. A senhora Forestier, de pé, via-o fazer os
seus preparativos. Depois, foi buscar um cigarro acima da
pedra do fogão e acendeu-o, dizendo:
- Não posso trabalhar sem fumar. Vejamos: que quer contar?
Jorge levantou a cabeça, surpreendido:
- Não sei; pois se vim procurá-la por isso...
- Sim - retorquiu a dona da casa. - Arranjar-lhe-ei o
artigo. Farei o molho, mas preciso do assunto.
Duroy continuava perplexo. Por fim, proferiu, hesitante:
- Desejaria contar a minha viagem desde o princípio...
Então, a senhora Forestier sentou-se em frente dele, do
outro lado da grande mesa, e disse, fitando-o nos olhos:
- Muito bem; então conte-a primeiro, para mim só, percebe?
Devagar, sem omitir nada, e escolherei o que se deve
aproveitar.
Jorge não sabia como começar e ela pôs-se a interrogá-lo
como o faria um padre no confessionário, formulando perguntas
precisas, que Lhe faziam lembrar pormenores esquecidos,
pessoas que encontrara ou figuras simplesmente entrevistas.
Depois de o ter obrigado a falar assim durante um breve
quarto de hora, interrompeu-o de súbito:
43
- Agora, podemos começar. Primeiramente, supomos que conta a
um amigo as suas impressões, o que Lhe permite dizer uma
porção de tolices, de fazer observações de toda a ordem, de
ser natural e engraçado, se pudermos. Comece: "Meu caro
Henrique, queres saber o que é a Argélia e vais sabê-lo. Como
não tenho nada que fazer na choça de lama seca que me serve de
habitação, vou enviar-te uma espécie de diário da minha vida,
dia por dia, hora por hora. Será um tanto atrevido, mas também
não tens necessidade de o mostrar às senhoras das tuas
relações..."
A senhora Forestier interrompeu-se, para reacender o cigarro
que se apagara. Imediatamente, o arranhar da pena de ganso no
papel deteve-se.
- Continuemos - disse ela.
"A Argélia é um grande território francês, na fronteira de
países desconhecidos a que chamam o deserto, o Sara, a África
Central, etc. Argel é a porta, a porta branca e encantadora,
desse estranho continente.
Em primeiro lugar, para lá chegar não é fácil para todos.
Sou, como sabes, um bom calção, pois domo os cavalos do
coronel, mas pode ser-se excelente cavaleiro e péssimo
marinheiro. É o meu caso.
Lembras-te do médico Simbrelas, a quem chamávamos o "doutor
Ipeca"? Quando nos apeteciam umas vinte e quatro horas de
enfermaria, para descansar, íamos a doentes. Sentado na sua
cadeira, com as grandes pernas abertas nas calças vermelhas,
as mãos nos joelhos, os braços a formar ponte, os cotovelos no
ar, o doutor rolava os olhos que pareciam marcas de loto, a
mordiscar o bigode branco. Recordas-te das suas receitas:
"Este soldado sofre dum desarranjo do estômago. Dêem-lhe o
vomitório nº 3, segundo a minha fórmula a seguir, doze horas
de descanso e ficará bom."
"Esse vomitório era soberano e irresistível. Engolíamo-lo,
pois tinha de ser. Depois de termos ingerido a fórmula do
doutor Ipeca, gozávamos de doze horas de descanso bem ganho.
"Pois bem, meu caro, para chegar à África é preciso sofrer
durante quarenta horas, outra espécie de vomitório
irresistível, segundo a fórmula da Companhia Transatlântica."
A senhora Forestier esfregou as mãos, satisfeita com a sua
ideia. Levantou-se e pôs-se a passear dum lado para o outro,
depois de ter acendido um cigarro, soprando baforadas de fumo,
44
que saíam, primeiramente, muito direitas pelo buraquinho
redondo a meio dos lábios apertados, e depois se alargavam e
se dispersavam, deixando no ar nuvens cinzentas, uma espécie
de bruma transparente, uma neblina semelhante a uma teia de
aranha. Por vezes, com um gesto da mão aberta, afastava as
nuvens leves mais persistentes; outras vezes, cortava-as, com
um movimento rápido do indicador, e olhava, em seguida, com
uma atenção grave, os dois pedaços do imperceptível vapor
desaparecerem lentamente.
Duroy, com os olhos erguidos, acompanhava todos os seus
gestos, todas as suas atitudes, todos os movimentos do seu
corpo e do seu rosto, ocupados com esse brinquedo vago que não
Lhe desviava o pensamento.
A senhora Forestier imaginou depois as peripécias da
travessia, fez o retrato dos companheiros de viagem inventados
por ela e esboçou uma aventura amorosa com a mulher dum
capitão de infantaria que ia juntar-se ao marido.
Depois, sentou-se e interrogou Duroy acerca da topografia da
Argélia, que desconhecia completamente. Em dez minutos, ficou
a saber tanto como ele e fez um resumo de geografia política e
colonial, para pôr o leitor ao corrente e prepará-lo bem para
compreender as questões sérias que seriam debatidas nos outros
artigos. A seguir, descreveu uma excursão pela província de
Orão, excursão fantasista, a falar, sobretudo, de mulheres:
mouriscas, judias, espanholas.
- É isto o que mais interessa - observou.
Concluiu com um estágio em Saída, no sopé dos planaltos, e
por um enredozinho sentimental entre o sargento Jorge Duroy e
uma operária espanhola, empregada numa fábrica de Am el
Hadjar. Referia os encontros à noite, na montanha pedregosa e
nua, enquanto os chacais, as hienas e os cães árabes ladravam,
gritavam, uivavam, no meio dos rochedos.
Por fim, proferiu, com voz alegre:
- Continua amanhã. - Depois, levantando-se: - É assim que se
escreve um artigo, meu caro senhor. Assine, se faz favor.
Duroy hesitava.
- Então? Assine!
Jorge pôs-se a rir e escreveu no final da página: "Jorge
Duroy."
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A dona da casa continuava a fumar, andando dum lado para o
outro. Jorge olhava para ela, sem saber que dizer para lhe
agradecer, contente por estar junto dela, cheio de
reconhecimento e duma alegria sensual por aquela intimidade
nascente. Parecia-lhe que tudo quanto o rodeava fazia parte
dela, tudo, até as paredes cobertas de livros. As cadeiras, os
móveis, o ar em que flutuava o cheiro do tabaco, tinham
qualquer coisa de especial, de agradável, de doce, de
encantador, que provinha dela.
Bruscamente, a senhora Forestier perguntou:
- Que pensa da minha amiga, da senhora Marelle?
- Mas - respondeu surpreendido - acho-a... acho-a
encantadora.
- Não é verdade?
- É sim, evidentemente. - Tinha vontade de acrescentar: "Não
tanto como tu" - mas não ousou.
- Se soubesse - continuou ela - como é engraçada, original,
inteligente! É uma boémia, acredite, uma verdadeira boémia. É
por isso que o marido não gosta dela. Só lhe vê os defeitos e
não Lhe aprecia as qualidades.
Duroy ficou surpreendido por saber que a senhora de Marelle
era casada. No entanto, isso era muito natural. Perguntou:
- Ah, sim... é casada? E que faz o marido?
A senhora Forestier ergueu docemente os ombros e as
sobrancelhas, num único movimento cheio de significações
incompreensíveis:
- Oh! É inspector nos Caminhos-de-Ferro do Norte. Passa oito
dias por mês em Paris. É o que a sua mulher chama o "serviço
obrigatório", ou ainda a "faxina da semana", ou ainda a
"semana santa". Quando a conhecer melhor, verá como é
espirituosa e gentil. Vá visitá-la um dia destes.
Duroy não pensava em ir-se embora. Parecia-lhe que ia ficar
ali sempre, que estava em sua casa.
A porta, porém, abriu-se sem ruído e entrou um senhor alto
que não fora anunciado. Deteve-se ao ver um homem. A senhora
Forestier pareceu contrariada durante um segundo; a seguir
disse com a sua voz natural, embora um tom róseo Lhe tivesse
subido ao rosto e aos ombros:
- Entre, meu caro. Apresento-lhe um bom camarada de Carlos:
o senhor Jorge Duroy, um futuro jornalista.
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Depois, com tom indiferente, continuou: - O melhor e o mais
íntimo dos nossos amigos, o conde de Vaudrec.
Os dois homens cumprimentaram-se, fitando-se, e Duroy,
imediatamente, dispôs-se a partir.
Nada fizeram para o reter. Balbuciou alguns agradecimentos,
apertou a mão estendida da dona da casa, cumprimentou mais uma
vez o recém-chegado, que conservava um rosto frio e sério de
homem de sociedade, e saiu completamente perturbado como se
tivesse acabado de cometer uma tolice.
Ao dar por si na rua, sentiu-se triste, pouco à vontade,
dominado pela obscura sensação dum violento desgosto.
Caminhava na sua frente e perguntava a si próprio por que o
assaltara aquela melancolia súbita. Não encontrava resposta;
mas o rosto severo do conde de Vaudrec, um tanto avelhentado,
de cabelo grisalho, o ar tranquilo e insolente dum sujeito
muito rico e senhor de si, aparecia-lhe sem cessar.
Percebeu ter a chegada daquele desconhecido quebrado o
encanto a que o seu coração já se acostumara, dando-Lhe uma
sensação de frio e desesperança, como uma palavra ouvida, uma
miséria entrevista, que qualquer pequena coisa, por vezes,
basta para nos dar. Também Lhe parecia ter aquele homem,
embora sem saber bem por quê, ficado descontente por o
encontrar lá.
Jorge não tinha que fazer até às três horas; ainda não era
meio-dia. Levava no bolso seis francos e cinquenta: iria
almoçar ao Duval. Depois deambulou pelo bulevar e, ao baterem
as três horas, subiu a escadaria-reclamo da Vie FranÇaise.
Os contínuos, sentados num banco, de braços cruzados,
esperavam, enquanto por trás duma mesa de professor o porteiro
classificava a correspondência acabada de receber. O cenário
era perfeito para impressionar os visitantes. Todos tinham
uniforme, linha, atitude, dignidade, elegância, como convinha
na antecâmara dum grande jornal.
- O senhor Walter, se faz favor? - perguntou Duroy.
- O senhor director está em conferência. Se o senhor quer
sentar-se um momento - respondeu o contínuo, ao mesmo tempo
que indicava a sala de espera já cheia de gente.
Encontravam-se lá cavalheiros graves, condecorados,
importantes, homens descuidados, de camisa invisível, cujos
fraques, fechados até ao pescoço, tinham no peito desenhos de
nódoas a lembrarem o traçado dos continentes e dos mares nos
mapas geográficos.
Três mulheres esperavam, também, misturadas com os homens.
Uma delas era bonita, sorridente, bem vestida, com o ar duma
cocotte. A sua vizinha, de máscara trágica, cheia de rugas,
vestida de maneira severa, tinha em si qualquer coisa de
amarrotado, de artificial, que geralmente têm as velhas
actrizes, uma espécie de falsa juventude a exibir-se como um
perfume de amor ressequido.
A terceira mulher estava de luto e conservava-se a um canto
com o ar duma viúva desolada. Duroy pensou que ela ia pedir
alguma esmola. No entanto, não mandavam entrar ninguém e já
tinham passado mais de vinte minutos. Então, Duroy teve uma
ideia. Foi, novamente, procurar o contínuo e disse-lhe:
- O senhor Walter marcou-me encontro às três horas. Em todo
o caso, veja se o meu amigo, o senhor Forestier, está.
Então, fizeram-no seguir por um comprido corredor que o
levou a uma grande sala, onde quatro senhores escreviam em
volta duma comprida mesa verde.
Forestier, de pé diante do fogão, fumava um cigarro e jogava
com um bilboqué. Era muito hábil nesse jogo e acertava sempre
na enorme bola de buxo amarelo e contava: Vinte e dois...
vinte e três... vinte e quatro... vinte e cinco...
Duroy proferiu: "Vinte e seis!" e o amigo levantou os olhos
sem cessar o movimento regular do braço:
- Estás aí? Ontem acertei cinquenta e sete vezes seguidas.
Só Saint-Potin é mais forte do que eu nisto. Viste o patrão?
Não há nada mais cómico do que ver esse velho pingente do
Norberto jogar ao bilboqué. Abre a boca como para engolir a
bola.
Um dos redactores voltou a cabeça para ele:
- Sabes, Forestier, sei de um que se vende, soberbo, de
madeira de jacarandá. Pertenceu à rainha de Espanha, segundo
dizem. Pedem por ele sessenta francos; não é caro.
- Onde se encontra isso? - perguntou Forestier.
Como falhara no seu trigésimo sétimo golpe, abriu um armário
onde Duroy viu uns vinte bilboqués, muito bem arrumados e
numerados como peças duma colecção. Depois de ter colocado o
que tinha na mão no lugar habitual, Forestier repetiu:
48
- Onde se encontra essa jóia?
- Em casa dum contratador de bilhetes do Vaudeville
respondeu o jornalista. - Trago-te a coisa amanhã, se
quiseres.
- Está bem; de acordo. Se é realmente bonito, fico com ele.
Nunca são de mais os bilboqués. - Depois, voltando-se para
Duroy: - Vem daí comigo, vou introduzir-te no gabinete do
patrão, sem o que ficas para aí a criar bolor até às sete
horas da tarde.
Atravessaram a sala de espera, onde as mesmas pessoas
continuavam nos mesmos lugares. Assim que Forestier apareceu,
a mulher nova e a velha actriz levantaram-se vivamente e
dirigiram-se a ele.
Levou-as, uma a seguir à outra, para o vão da janela e,
embora tivesse o cuidado de falar em voz baixa, Duroy notou
que tratava ambas por tu.
Depois de terem empurrado duas portas almofadadas, entraram
no gabinete do director.
A conferência, que durava há mais de uma hora, era uma
partida de écarté, com alguns daqueles cavalheiros de chapéus
de abas direitas que Duroy notara na véspera.
O senhor Walter, com as cartas na mão, jogava com uma
atenção concentrada e movimentos cautelosos, enquanto o seu
adversário abatia, tirava, manejava, os leves cartões
coloridos, com uma leveza, uma habilidade e uma elegância de
jogador experimentado. Norberto de Varenne escrevia um artigo,
sentado na poltrona directorial, e Jaime Rival, estendido ao
comprido num divã, fumava um charuto com os olhos fechados.
Sentia-se lá dentro o cheiro dos recintos fechados, do couro
dos móveis, de tabaco e de imprensa: o odor especial das salas
de redacção que conhecem todos os jornalistas.
Em cima da mesa de pau-preto, com incrustações de cobre,
jazia um incrível amontoado de papel, cartas, bilhetes,
jornais, revistas, notas de fornecedores, impressos de toda a
ordem.
Forestier apertou as mãos dos que estavam de pé atrás dos
jogadores e sem dizer uma palavra olhou para o jogo. Depois,
logo que o velho Walter ganhou, apresentou:
- O meu amigo Duroy.
O director observou, bruscamente, o rapaz, com um olhar por
cima dos vidros dos óculos, e depois perguntou:
49
- Traz o meu artigo? Calharia bem hoje, ao mesmo tempo que a
discussão do caso Morel.
Duroy tirou do bolso as folhas de papel dobradas em quatro:
- Aqui está.
O patrão pareceu encantado e disse, sorridente:
- Muito bem, muito bem. É homem de palavra. É preciso rever
isto, Forestier?
Forestier apressou-se a responder:
- Não vale a pena, senhor Walter. Fiz a crónica com ele,
para lhe ensinar o ofício. Está muito boa.
O director, que recebia as cartas, dadas por um senhor alto
e magro, um deputado do centro-esquerda, acrescentou com
indiferença:
- Então, está bem.
Forestier não o deixou começar a sua nova partida e,
baixando-se, disse-lhe ao ouvido:
- Lembra-se de que me prometeu admitir Duroy para substituir
Marambot? Autoriza que fique nas mesmas condições?
- Sim, perfeitamente.
O jornalista meteu o braço no do amigo e saiu com ele
enquanto Walter voltava a jogar.
Norberto de Varenne não levantara a cabeça; parecia não ter
visto ou reconhecido Duroy. Jaime Rival, pelo contrário,
apertara-lhe a mão com um vigor demonstrativo e acentuado de
bom camarada com quem se pode contar em caso de necessidade.
Atravessaram a sala de espera e, como toda a gente erguesse
os olhos, Forestier disse à mais nova das mulheres, bastante
alto para ser ouvido pelos outros pacientes:
- O director receberá daqui a pouco. Neste momento, está em
conferência com os membros da comissão do orçamento.
Passou vivamente, com ar importante e apressado, como se
fosse redigir com urgência uma nota da mais extrema gravidade.
Logo que voltaram à sala da redacção, Forestier foi
imediatamente buscar o seu bilboqué e voltou a jogar. Disse a
Duroy, interrompendo as frases para contar os pontos:
- Virás cá todos os dias às três horas e dir-te-ei as
diligências e visitas que terás de fazer, quer à tarde,
50
quer à noite ou de manhã. Um!... Vou dar-te uma carta de
apresentação para o chefe da primeira repartição da prefeitura
da polícia... Dois!... que te porá em contacto com um dos seus
subordinados. Arranjar-te-ás com ele para teres todas as
notícias importantes... Três!... do serviço da prefeitura, as
oficiais e as oficiosas, bem entendido. Para qualquer
pormenor, dirigir-te-ás a Saint-Potin, que está ao corrente de
tudo... Quatro!... Vê-lo-ás daqui a pouco ou amanhã. É preciso
adquirir o costume de tirar nabos da púcara" daqueles a quem
te disser para procurares... Cinco!... e de entrar em toda a
parte, embora as portas estejam fechadas... Seis!... Por isso,
receberás duzentos francos por mês, fixo, e mais dois soldos à
linha pelos ecos interessantes de qualquer proveniência...
Sete!... e mais dois soldos à linha igualmente pelos artigos
que te encomendarem sobre diversos assuntos... Oito!
Depois, Forestier só prestou atenção ao seu jogo e continuou
a contar lentamente: nove... dez... onze... doze... treze...
Falhou o décimo quarto e praguejou:
- Raios partam o treze! Dá-me sempre azar esse estupor.
Hei-de morrer num dia treze!
Um dos redactores, que terminara o seu trabalho, foi por seu
turno buscar um bilboqué ao armário. Era um homenzinho que
parecia uma criança, embora tivesse trinta e cinco anos.
Muitos outros jornalistas que tinham entrado foram, um após
outro, buscar o brinquedo que lhes pertencia. Em breve, eram
seis, lado a lado, encostados à parede, que lançavam para o
ar, com um movimento igual e regular, as bolas vermelhas,
amarelas ou pretas, segundo a qualidade da madeira.
Estabeleceu-se uma competição e dois redactores que ainda
trabalhavam levantaram-se para apreciar as jogadas.
Forestier ganhou onze pontos. Então o homenzinho de aspecto
infantil, que tinha perdido, chamou o contínuo e ordenou:
"Nove cervejas." Puseram-se de novo a jogar enquanto esperavam
as bebidas.
Duroy bebeu um copo de cerveja com os seus novos confrades
e, depois, perguntou ao amigo:
- Que é preciso fazer?
- Não tenho nada para ti, hoje. Podes ir para onde quiseres
- respondeu o outro.
- E o nosso... o nosso artigo? Sairá amanhã?...
51
- Sim; mas não te preocupes com isso. Emendarei as provas.
Faz o outro para amanhã e vem cá, às três horas, como hoje.
Duroy, depois de apertar todas as mãos, sem saber sequer os
nomes dos seus possuidores, desceu a bela escadaria, com o
coração alegre e o espírito cheio de projectos.
IV
Jorge Duroy dormiu mal, tão excitado estava com o desejo
de ver impresso o seu artigo. Mal rompeu o dia, levantou-se, e
estava na rua muito antes da hora em que os distribuidores dos
jornais vão, a correr, de quiosque em quiosque.
Alcançou, então, a Estação de Saint-Lazare, pois bem sabia
que a Vie Française estaria lá antes de chegar ao seu bairro.
Como era ainda muito cedo, vagueou ao acaso.
Viu chegar a mulher do quiosque, que abriu a sua barraca de
vidro, e depois chegou um homem que transportava à cabeça
maços de jornais dobrados. Precipitou-se para eles:
eram o Figaro, o Gil Blas, o Gaulois, o Evénement, e outras
duas ou três folhas da manhã; mas a Vie Française, não.
Apoderou-se dele o medo: Se tivessem adiado para o dia
seguinte as Memórias dum Caçador de África, ou se, por
desgraça, a coisa não agradara, no último momento, ao velho
Walter?
Ao dar a volta ao quiosque, descobriu que o jornal estava à
venda, embora não o tivesse visto chegar. Pegou nele,
desdobrou-o, depois de ter atirado com três soldos, e
percorreu os títulos da primeira página. - Nada. - O coração
começou a bater desordenadamente: abriu a folha e teve uma
forte comoção ao ler, em baixo duma coluna, em grandes
caracteres: Jorge Duroy. Sempre saíra! Que alegria!
Pôs-se a caminhar, sem pensar, com o jornal na mão, o chapéu
ao lado, com o desejo de deter os transeuntes para lhes dizer:
"Comprem isto! Comprem, que tem um artigo meu." Desejaria
poder gritar a plenos pulmões, como fazem os vendedores à
noite, nos bulevares: "Leiam a Vie Française. Leiam o artigo
de Jorge Duroy: "Memórias dum Caçador de África"!"
Subitamente, sentiu o desejo de ler ele próprio esse artigo,
de o ler num local público, num café, bem em evidência.
Procurou um desses estabelecimentos que já tivesse gente. Teve
de andar ainda muito.
53
Sentou-se, por fim, numa espécie de taberna, onde vários
clientes já estavam sentados, e pediu: Um rum, como poderia
pedir: Um absinto, sem pensar na hora que era.
Depois chamou:
- Rapaz, dê-me a Vie Française!
Apareceu um criado de avental branco:
- Não temos... só recebemos o Rappel, o Siècle, a Lanterne e
o Petit Parisien.
Duroy exclamou com um tom furioso e indignado:
- Olha que casa esta! Então, vá comprá-la!
O criado foi a correr e trouxe-a. Duroy pôs-se a ler o seu
artigo. Por várias vezes, disse alto: "Muito bem, muito bem!",
para chamar a atenção dos circunstantes e Lhes despertar o
desejo de saber o que havia naquela folha. Depois, deixou-a em
cima da mesa e foi-se embora. O patrão, ao notar isso,
chamou-o:
- Meu caro senhor, olhe que deixa o seu jornal!
- Deixo-lho - respondeu Duroy. - Já o li. Aliás, hoje traz
uma coisa muito interessante.
Não disse que coisa era; mas viu, ao afastar-se, que um dos
seus vizinhos ia buscar a Vie Française acima da mesa onde a
deixara.
Jorge pensou: "Que irei fazer, agora?" e decidiu ir ao
escritório para receber o ordenado e apresentar a sua
demissão. Teve um arrepio de prazer ao pensar na cara que
fariam o seu chefe e os colegas. A ideia do espanto do chefe,
sobretudo, encantava-o.
Caminhava lentamente, para não chegar antes das nove e meia,
pois a caixa só abria às dez horas.
O seu escritório era um grande compartimento escuro onde era
preciso ter o gás aceso durante o dia, no Inverno.
Dava para um pátio exíguo em frente doutros escritórios.
Estavam lá oito empregados e mais o subchefe, a um canto,
por trás dum biombo.
Duroy foi, primeiramente, buscar os seus cento e dezoito
francos e vinte e cinco cêntimos, metidos num sobrescrito
amarelo e guardados na gaveta do empregado encarregado dos
pagamentos. Depois, entrou com ar vitorioso na vasta sala de
trabalho onde tinha passado tantos dias. Logo que entrou o
subchefe, senhor Potel, chamou-o:
- Ah! É o senhor Duroy. O chefe já o chamou várias vezes.
54
Bem sabe que não admite parte de doente dois dias a seguir sem
atestado médico.
Duroy, que ficara de pé no meio do aposento, a preparar o
seu efeito, respondeu em voz alta:
- Pouco me importo com isso!
Houve entre os outros empregados um movimento de
estupefacção e a cara do senhor Potel apareceu espantada, por
cima do biombo que o envolvia como uma caixa. Barricava-se
assim com medo das correntes de ar, pois sofria do reumatismo.
Fizera, porém, dois buracos no papel do biombo, para vigiar o
pessoal.
Podia ouvir-se voar uma mosca. O subchefe, por fim,
perguntou, hesitante:
- Que disse?
- Disse que pouco me importava com isso. Venho para
apresentar a minha demissão. Entrei como redactor para a Vie
Française, com quinhentos francos por mês e mais a colaboração
à linha. Já me estreei lá esta manhã.
Prometera a si próprio que faria prolongar o prazer, mas não
pudera resistir ao desejo de dizer tudo duma vez. O efeito,
afinal, fora completo. Todos estavam passados.
- Vou prevenir o senhor Perthuis e virei depois apresentar
as minhas despedidas.
Saiu para ir ao gabinete do chefe que, ao dar com ele,
começou:
- Ah! É o senhor! Bem sabe que não quero...
O empregado interrompeu-o:
- Não vale a pena berrar assim...
O senhor Perthuis, um homem gordo, vermelho como uma crista
de galo, ficou sufocado de surpresa. Duroy continuou:
- Estou farto desta barraca. Estreei-me esta manhã no
jornalismo, no qual me deram uma boa situação. Passem por cá
muito bem.
Saiu. Sentia-se vingado. Foi, com efeito, apertar a mão aos
antigos colegas, que até tinham receio de lhe falar para não
se comprometerem, pois ouviram a sua conversa com o chefe,
através da porta entreaberta.
Jorge deu por si na rua, com o ordenado no bolso.
Ofereceu-se um almoço suculento num bom restaurante, de preços
módicos, que conhecia.
55
Depois de ter, mais uma vez, comprado a Vie Française, que
deixou em cima da mesa onde almoçou, Jorge entrou em vários
estabelecimentos para fazer pequenas compras, somente para as
mandar levar a casa e dar o seu nome: Jorge Duroy,
acrescentando:
- Sou redactor da Vie Française.
Depois, indicava a rua e o número e tinha o cuidado de
recomendar:
- Deixem isso no porteiro.
Como ainda tinha tempo, entrou num litógrafo, que fazia
bilhetes de visita, imediatamente, sob os olhos dos
transeuntes, e mandou executar um cento. Sob o seu nome ficou
impressa a sua nova categoria.
A seguir, dirigiu-se ao jornal. Forestier recebeu-o de alto,
como se recebe um inferior:
- Ah! És tu! Muito bem. Tenho, precisamente, várias coisas
para ti. Espera dez minutos; vou acabar a minha tarefa.
Continuou a escrever a carta que começara. Na outra
extremidade da mesa, um homenzinho muito pálido, bochechudo,
gordo, calvo, com um crânio muito branco e luzidio, escrevia
com o nariz em cima do papel, em consequência duma miopia
excessiva. Forestier perguntou-lhe:
- Diz lá, Saint-Potin, quando vais entrevistar a nossa
gente?
- Às quatro horas.
- Hás-de levar contigo o jovem Duroy, aqui presente, e
desvendar-lhe-ás os arcanos do ofício.
- De acordo.
Forestier voltou-se depois para o amigo e acrescentou:
- Trouxeste a continuação sobre a Argélia? O começo que
apareceu esta manhã teve muito êxito.
Duroy, comprometido, balbuciou:
- Não... julguei ter tempo de tarde... tive uma porção de
coisas a fazer... não pude...
O outro encolheu os ombros, com ar descontente:
- Se fores sempre assim tão cuidadoso, dás cabo do teu
futuro. O velho Walter estava a contar com o teu artigo. Vou
dizer-lhe que será para amanhã. Se julgas que te pagarão para
não fazer nada, estás enganado. - Após um silêncio,
acrescentou: - Devemos bater o ferro enquanto está quente, que
diabo!
56
Saint-Potin levantou-se, dizendo:
- Estou pronto.
Então Forestier recostou-se na cadeira e tomou uma atitude
quase solene para dar as suas instruções, voltado para Duroy:
- Vejamos: temos em Paris, há dois dias, o general chinês Li
Tengue Fao, que foi para o Continental, e o rajá Taposahib
Ramaderao Pali, que está no Hotel Bristol. Irão falar com
eles.
Não esqueças - disse, voltando-se para Saint-Potin - os
principais pontos que te indiquei. Perguntem ao general e ao
rajá a sua opinião acerca das manobras da Inglaterra no
Extremo Oriente, as suas ideias sobre o seu sistema de
colonização e de domínio, as suas esperanças relativamente à
intervenção da Europa, e da França em especial, nos seus
problemas.
Calou-se e depois acrescentou, falando para todos o ouvirem:
- Seria extremamente interessante para os nossos leitores
saber, ao mesmo tempo, o que pensam, na China e na Índia,
acerca desses assuntos que apaixonam neste momento a opinião.
Acrescentou, dirigindo-se a Duroy:
- Observa como Saint-Potin faz. É um excelente repórter e
trata de aprender os cordelinhos para fazer falar um homem em
cinco minutos.
Depois, começou a escrever com gravidade, na intenção
evidente de estabelecer as distâncias, de pôr no seu lugar o
seu antigo camarada e novo confrade.
Assim que saíram, Saint-Potin pôs-se a rir e disse a Duroy:
- Que pretensioso! Dá-se ares até connosco. Parece que nos
toma pelos seus leitores.
Caminharam em direcção ao bulevar e o repórter perguntou:
- Toma qualquer coisa?
- Sim, de boa vontade. Está tanto calor.
Entraram num café e mandaram vir bebidas frescas.
Saint-Potin pôs-se a falar. Referia-se a toda a gente e ao
jornal com uma surpreendente quantidade de pormenores.
- O patrão? Um verdadeiro judeu! Bem sabe, os judeus nunca
mudam. Que raça!
57
Citou traços surpreendentes de avareza, dessa avareza
especial dos filhos de Israel, economias de dez cêntimos,
regateios de cozinheira, descontos vergonhosos pedidos e
obtidos, todo um modo de proceder de usurário, de sujeito que
empresta a juros.
- Com tudo isso, no entanto - prosseguiu -, é um pobre
diabo, que não acredita em nada e engana toda a gente. O seu
jornal é oficioso, católico, liberal, republicano, orleanista,
cacharolete e balcão de negócios. Foi fundado somente para
defender as suas operações na Bolsa e as suas empresas de toda
a ordem. Para isso, é muito esperto e ganha milhões com
sociedades que não têm quatro soldos de capital.
Continuava a falar, tratando Duroy por "meu caro amigo":
- Tem ditos à Balzac, esse maroto. Imagine que, outro dia,
estava no seu gabinete com essa velha mula do Norberto e o D.
Quixote do Rival, quando Montelin, o administrador, chegou,
com a sua pasta de marroquim debaixo do braço, essa pasta que
toda a Paris conhece. Walter levantou o nariz e perguntou:
"Que há de novo?" Montelin respondeu ingenuamente: "Acabo de
pagar os dezasseis mil francos que devíamos ao fornecedor de
papel." O patrão deu um salto de surpresa:
"Você diz?"
"Acabo de pagar ao senhor Privas."
"Você está doido!"
"Por quê?"
"Por quê... Por quê... Por quê..."
Tirou os óculos e limpou-os. Depois, sorriu, com o estranho
sorriso que lhe enche as bochechas sempre que vai dizer
qualquer malandrice, e com um tom trocista e convencido
proferiu:
"Porquê? Porque poderíamos ter apanhado nisso uma redução de
quatro ou cinco mil francos."
Montelin, surpreendido, replicou:
"Mas, senhor director, todas as contas estavam em ordem,
foram verificadas por mim e aprovadas pelo senhor..."
Então, o patrão pôs-se sério e declarou:
"Não há ninguém tão ingénuo como você. Saiba, senhor
Montelin, que é preciso sempre acumular as nossas dívidas,
para obter reduções dos credores!"
58
Saint-Potin, com um abanar de cabeça de conhecedor,
concluiu:
- Não é um dito à Balzac?
Duroy não lera Balzac, mas respondeu, com convicção:
- Palavra de honra que é!
Depois, o repórter falou da senhora Walter, uma grande
perua; de Norberto de Varenne, um velho falhado; de Rival, um
imitador de Fervacques. Em seguida, foi Forestier:
- Quanto a esse, teve a sorte de ter casado com a que é sua
esposa, mais nada.
- Que é, no fundo - perguntou Duroy -, a mulher?
- Oh! - retorquiu Saint-Potin, a esfregar as mãos. É uma
velhaca, uma espertalhona. E amante dum velho rico, chamado
Vaudrec, o conde de Vaudrec, que a dotou e casou...
Duroy sentiu, bruscamente, uma sensação de frio, uma espécie
de crispação nervosa, uma necessidade de injuriar e esbofetear
aquele linguareiro. Interrompeu-o simplesmente, para
perguntar:
- O seu nome é realmente Saint-Potin?
- Não - respondeu o outro com naturalidade. - Chamo-me
Thomas. Foi no jornal que me deram o apelido de
Saint-Potin.(1)
Duroy pagou a despesa e disse:
- Parece-me que é tarde e temos dois nobres senhores a quem
visitar.
Saint-Potin pôs-se a rir:
- Você é ainda muito ingénuo! Então acredita que vou, assim,
perguntar a esse chinês e a esse indiano o que pensam da
Inglaterra? Como se não soubesse, melhor do que eles, o que
devem pensar para os leitores da Vie Française. Já entrevistei
quinhentos desses chineses, persas, hindus, chilenos,
japoneses e outros. Respondem, cá para mim, todos a mesma
coisa. Basta-me pegar na entrevista que fiz com o último e
copiá-la palavra por palavra. Só o que muda é a cara deles, os
seus nomes, títulos, idades, e o seu séquito. Oh! nisso é que
é preciso cuidado, pois seria batido pelo Figaro ou pelo
Gaulois. A esse respeito, porém, os porteiros do Hotel Bristol
e o do Continental dar-me-ão todas as informações, em menos de
cinco minutos.
*1. De potin, mexerico, dito de má-língua. (N. do T.)
59
Iremos a pé até lá a fumar um cigarro. Ao cabo: cem soldos de
carro a reclamar ao jornal. Aqui tem, meu caro, como é preciso
fazer, quando se é prático.
- Isso deve render bastante, ser repórter nessas condições?
- perguntou Duroy.
- Sim, mas nada rende tanto como os ecos, por causa dos
reclamos disfarçados - respondeu, com ar misterioso, o
repórter.
Tinham-se levantado e seguiam pelo bulevar, em direcção à
Madalena. Saint-Potin, subitamente, disse ao seu companheiro:
- Sabe: se tem qualquer coisa a fazer... por mim, não
preciso de si.
Duroy apertou-lhe a mão e foi-se embora. A ideia do artigo
que tinha de escrever preocupava-o e pôs-se a pensar nele.
Armazenava ideias, reflexões, juízos, anedotas, enquanto
caminhava. Subiu até ao fim a Avenida dos Campos Elísios, onde
só se viam raros passeantes. Paris estava vazia nos dias de
calor.
Jantou numa taberna perto do Arco de Triunfo da Étoile e foi
para casa, lentamente, a pé, pelos bulevares exteriores.
Mal se sentou à mesa para trabalhar e teve diante dos olhos
a grande folha de papel branco, tudo que tinha juntado como
materiais evolou-se do seu espírito, como se o próprio cérebro
se tivesse evaporado. Tentou reunir os farrapos de recordações
e fixá-los: escapavam à medida que apareciam ou então
precipitavam-se em tumulto e não sabia como apanhá-los, nem
por qual começar.
Após uma hora de esforços e cinco páginas rabiscadas com
frases que começava sem Lhes dar continuidade, pensou: "Não
estou ainda treinado no ofício. Preciso de ter uma nova
lição."
Imediatamente, a perspectiva doutra manhã a trabalhar com a
senhora Forestier, a esperança dessas horas, tão doces, de
intimidade, fizeram-no fremir de desejo. Foi logo deitar-se,
quase com medo de se pôr novamente a escrever e conseguir
redigir o artigo.
No dia seguinte, levantou-se um tanto tarde, demorando e
saboreando, antecipadamente, o gosto da visita que ia fazer.
Passava das dez horas quando bateu à porta do seu amigo. O
criado respondeu:
60
- O senhor Forestier está a trabalhar.
Duroy não pensara que o marido podia estar em casa. No
entanto insistiu:
- Diga-lhe que sou eu; é um caso de urgência.
Após cinco minutos de espera, o criado fê-lo entrar para o
gabinete onde passara uma tão boa manhã.
No lugar que então ocupara estava sentado Forestier a
escrever, de robe de chambre e pantufas, com um bonezinho
inglês na cabeça. Sua mulher, envolta no mesmo penteador
branco da véspera, encostada ao fogão, ditava, de cigarro na
boca.
Duroy deteve-se à entrada e murmurou:
- Peço desculpa; incomodo-os?
O amigo, voltando a cabeça, uma cabeça furiosa, increpou-o:
- Que queres? Despacha-te, que temos pressa.
O outro, vexado, balbuciou:
- Não; não é nada. Desculpa.
Forestier insistiu, zangado:
- Vamos, com todos os diabos! Não me faças perder tempo. Não
me obrigaste a receber-te pelo prazer de me dar os
bons-dias...
Então, Duroy, muito perturbado, decidiu-se:
- É que... sabes... não consegui ainda fazer o meu artigo...
Foste... foram... tão gentis da outra vez que... que
esperei... que me atrevi a vir...
Forestier interrompeu-o:
- Estás a abusar da gente, no fundo! Imaginas, então, que
vou fazer o teu trabalho e que só tens de passar pela caixa no
fim do mês? Essa é muito boa!
A mulher continuava a fumar, sem dizer nada, a sorrir com um
sorriso vago, que parecia uma máscara amável posta na ironia
do seu pensamento.
Duroy, muito vermelho, gaguejou:
- Desculpa-me... julguei... tinha pensado que... - Depois,
subitamente, com voz clara: - Peço-lhe mil perdões, minha
senhora, e apresento-lhe, também, os meus maiores
agradecimentos pela admirável crónica que me fez ontem.
Cumprimentou, e à saída disse a Carlos:
- Estarei às três horas no jornal.
61
Voltou para casa, com grandes passadas, a resmungar:
"Pois bem, farei esta sozinho e eles verão..."
Assim que entrou, excitado pela cólera, pôs-se a escrever.
Continuou a aventura começada pela senhora Forestier,
acumulando pormenores de folhetim, peripécias surpreendentes e
descrições empoladas, com um estilo de colegial e fórmulas de
sargento. Em uma hora terminou a sua crónica, que parecia um
caos de tolices, e levou-a, com ar importante, à Vie
Française.
A primeira pessoa a quem encontrou foi Saint-Potin, que lhe
apertou a mão com uma energia de cúmplice e perguntou:
- Viu a minha conversa com o chinês e com o indiano? É
engraçada, não? Divertiu toda a gente em Paris. Ora, nem lhes
vi a ponta do nariz.
Duroy, que não tinha lido nada, pegou no jornal e passou a
vista pelo longo artigo intitulado "Índia e China", enquanto o
repórter lhe indicava os trechos mais interessantes. Forestier
apareceu, a soprar, apressado, com ar de quem tinha muito que
fazer:
- Ah! Bom. Preciso de vocês ambos.
Indicou-lhes uma série de informações políticas que era
preciso obter para aquela noite.
Duroy deu-Lhe o seu artigo:
- Aqui está a continuação acerca da Argélia.
- Está bem; deixa ver. Vou entregá-lo ao patrão.
Mais nada.
Saint-Potin saiu com o seu novo colega e quando estavam no
corredor, disse-lhe:
- Já passou pela caixa?
- Não. Porquê?
- Porquê?! Para receber. Não sabe? É preciso ter sempre um
mês adiantado. Nunca se sabe o que pode acontecer...
- Por mim... acho isso excelente. - Vou apresentá-lo ao
tesoureiro. Não porá dificuldades.
Pagam bem aqui.
Duroy recebeu os seus duzentos francos, mais os vinte e oito
pelo artigo da véspera. Isso, junto ao que lhe restava do seu
ordenado do Caminho-de-Ferro, fazia que tivesse uns trezentos
e quarenta francos no bolso.
62 63
Nunca dispusera de tanto dinheiro e julgou-se rico por um
tempo indefinido.
Depois, Saint-Potin levou-o às redacções de quatro ou cinco
folhas rivais, na esperança de que, graças à sua astúcia e à
abundância de conversação, pudesse apanhar alguma coisa acerca
das informações que fora encarregado de obter e que já
poderiam ter sido apanhadas por outros.
Quando anoiteceu, Duroy, que não tinha nada a fazer, pensou
em voltar às Folies-Bergère, e, enchendo-se de coragem,
apresentou-se na bilheteira:
- Chamo-me Jorge Duroy, redactor da Vie Française. Vim cá
outro dia com o senhor Forestier, que prometeu pedir as minhas
entradas. Não sei se o fez...
Consultaram um registo. O seu nome não estava lá inscrito.
No entanto, o bilheteiro, homem muito afável, disse:
- Faça favor de entrar e apresente, pessoalmente, o seu
pedido ao senhor director, que com certeza o atenderá.
Entrou e, quase imediatamente, deparou com a mulher com quem
estivera na primeira noite, a qual se lhe dirigiu logo:
- Viva, meu menino; como estás?
- Muito bem, e tu?
- Menos mal. Sabes que sonhei contigo duas vezes, depois do
outro dia?
Duroy sorriu, lisonjeado:
- Ah! Sim? E que prova isso?
- Isso prova que me agradaste, meu grande malandro, e que
recomeçaremos quando quiseres.
- Hoje, se queres.
- De boa vontade.
- Bom, mas ouve... - hesitava, um tanto vexado com o que ia
fazer: - é que... desta vez... estou sem dinheiro; venho do
clube, onde perdi o que tinha.
A rapariga fitou-o nos olhos, suspeitando de uma mentira,
com o seu instinto e a sua prática de mulher habituada às
trapalhices e avareza dos homens, e disse:
- Mentiroso! Sabes que não é gentil usar dessas maneiras
comigo!
Duroy retorquiu, com um sorriso de comprometido:
- Se queres dez francos... é tudo quanto me resta.
A mulher respondeu com um desinteresse de cortesã que também
se quer dar ao luxo de ter caprichos:
- Será o que quiseres, meu caro; por mim só te quero a ti.
Ergueu os olhos seduzidos para o bigode do rapaz e deu-lhe o
braço, apoiando-se a ele ternamente.
- Vamos beber um refresco primeiro. Depois, daremos uma
volta juntos. Por mim, gostaria de ir à ópera, assim, contigo,
para te mostrar. Depois, iríamos para casa cedo, não queres?
Duroy dormiu até tarde com a rapariga. Já era dia claro
quando saiu e imediatamente lhe acudiu à ideia comprar a Vie
Française. Abriu o jornal com mão febril: a sua crónica não
vinha. Ficou parado no passeio, percorrendo ansiosamente com
os olhos as colunas impressas, na esperança de encontrar por
fim o que procurava.
Qualquer coisa pesada oprimiu-Lhe subitamente o coração,
porque, depois da fadiga duma noite como a que passara, a
contrariedade, ao cair-lhe sobre a lassidão, tinha o peso dum
desastre.
Foi para o seu quarto, atirou-se vestido para cima da cama e
adormeceu.
Ao voltar, horas mais tarde, ao jornal, dirigiu-se ao senhor
Walter:
- Fiquei muito surpreendido, esta manhã, por não ver o meu
segundo artigo acerca da Argélia.
O director levantou a cabeça e disse com voz seca:
- Dei-o ao seu amigo Forestier, para o ler. Não o achou em
condições; é preciso fazê-lo de novo.
Duroy, furioso, saiu sem dizer uma palavra. Entrou,
bruscamente, no gabinete do seu camarada:
- Por que não deixaste publicar esta manhã a minha crónica?
O jornalista fumava um cigarro, recostado na sua poltrona e
com os pés em cima da mesa, sujando com os tacões um artigo
começado. Articulou, tranquilamente, com um metal de voz
aborrecido e distante, como se partisse do fundo dum poço:
- O patrão achou-o mau e encarregou-me de to dar para o
fazeres de novo. Aqui o tens.
Indicou com a mão as folhas desdobradas sob um pisa-papéis.
64
Duroy, vexado, não disse nada. Quando metia as folhas no
bolso, Forestier continuou:
- Hoje, vais em primeiro lugar à prefeitura...
Indicou uma série de voltas a dar e de notícias a colher.
Duroy saiu, sem ter encontrado a palavra desagradável que
procurava.
Levou o seu artigo no dia seguinte. Foi-lhe novamente
devolvido. Depois de o ter feito uma terceira vez e de o ver
de novo recusado, compreendeu que ia por mau caminho e que só
a mão de Forestier o poderia guiar.
Não voltou a falar das Recordações dum Caçador de África,
prometendo a si próprio ser maleável e astuto, pois assim era
preciso. Enquanto esperava coisa melhor, fazia com zelo o seu
ofício de repórter.
Conheceu os bastidores dos teatros e os da política, os
corredores e os vestíbulos dos homens de Estado e da Câmara
dos Deputados, as figuras importantes dos chefes de gabinete e
as caras franzidas dos contínuos ensonados.
Tinha contactos constantes com ministros, porteiros,
generais, agentes de polícia, príncipes, chulos, cortesãs,
embaixadores, bispos, alcoviteiras, burlões, homens da
sociedade, levantinos, cocheiros de fiacre, criados de café e
outros ainda. Tornou-se o amigo, interessado e indiferente, de
toda essa gente, confundia-os na sua estima, desdenhava deles
na mesma medida, julgando-os pela mesma bitola, à força de os
ver todos os dias, a toda a hora, sem transição de espírito, e
de falar a todos dos mesmos assuntos concernentes ao seu
ofício. Comparava-se com um homem que provasse, umas atrás das
outras, amostras de todos os vinhos e já não distinguisse o
Château-Margaux do Argenteuil.
Tornou-se, em pouco tempo, um notável repórter, seguro nas
suas informações, astuto, rápido, subtil, um verdadeiro valor
para o jornal, como dizia o velho Walter, que era conhecedor
em matéria de redactores. No entanto, como só recebia dez
cêntimos por linha, mais os duzentos francos fixos, e como a
vida dos bulevares, dos cafés, dos restaurantes, custa caro,
nunca tinha um soldo e desesperava-se com a sua miséria.
"Tenho de descobrir como é...", pensava, ao ver alguns dos
seus confrades com os bolsos cheios de dinheiro, sem nunca
compreender que meios secretos podiam empregar para alcançar
essa abastança.
65
Suspeitava, com inveja, de processos desconhecidos e
inconfessáveis, dos serviços prestados, de todo um contrabando
aceite e consentido. Ora, precisava desvendar o mistério,
entrar nessa associação tácita, impor-se aos camaradas que
partilhavam entre si sem contar com ele. Meditava, por vezes,
à noite, ao ver da sua janela passar os comboios, nos
processos que poderia empregar.
V
Tinham passado dois meses; estava-se em fins de Setembro, e
a rápida fortuna que Duroy esperara parecia-lhe ainda muito
longe. Preocupava-o, sobretudo, a mediocridade moral da sua
situação e não via por que caminhos escalaria as alturas onde
se encontram a consideração e o dinheiro. Sentia-se
prisioneiro daquela profissão medíocre de repórter, murado
dentro dela sem poder sair. Apreciavam-no, mas davam-lhe a
consideração da sua categoria. O próprio Forestier, a quem
prestava mil serviços, não o convidava para jantar, tratava-o
em tudo como um inferior, embora o tratasse por tu como amigo.
De tempos a tempos, é certo, Duroy aproveitava uma ocasião e
publicava um bom artigo. Depois de ter adquirido, com os seus
ecos, uma ductilidade de pena e um tacto que lhe faltavam
quando escreveu a sua segunda crónica sobre a Argélia, não
corria já nenhum risco de ver recusados os seus artigos de
actualidade. Daí, porém, a escrever crónicas, consoante a sua
fantasia, ou a tratar, como crítico, as questões políticas,
havia tanta diferença como conduzir um carro, nas avenidas do
Bosque de Bolonha como cocheiro ou como proprietário.
O que o humilhava, sobretudo, era sentir fechadas as portas
da sociedade, não ter relações que o tratassem como igual, não
entrar na intimidade das mulheres, embora várias actrizes
conhecidas o tivessem, por vezes, acolhido com uma
familiaridade interesseira. Sabia, aliás, por experiência, que
todas sentiam por ele, fossem mundanas ou cabotinas, uma
singular atracção, uma simpatia instantânea, e sofria por não
conhecer aquelas de quem poderia depender o seu futuro, com
uma impaciência de cavalo peado.
Com frequência, pensava em ir visitar a senhora Forestier;
mas a ideia da sua última ida a sua casa detinha-o,
humilhava-o. Além disso, esperava ser convidado a isso pelo
marido. Então, lembrou-se de a senhora de Marelle lhe ter
dito que a fosse visitar, e apresentou-se em casa dela, numa
tarde em que não tinha nada para fazer. "Estou sempre em casa
até às três horas", dissera-lhe ela.
Bateu-lhe à porta às duas e meia. A senhora de Marelle
habitava na Rua de Verneuil, num quarto andar. Ao tocar a
campainha, uma criada abriu a porta, uma serviçal mal
penteada, que ajustava a touca ao responder:
- A senhora está, mas não sei se já se levantou.
A criada impeliu a porta da sala, que não estava fechada, e
Duroy entrou. A sala era bastante grande, mas tinha pouca
mobília e um ar desmazelado. As poltronas, velhas e
desbotadas, alinhavam-se em volta das paredes na ordem que
lhes dera a criada, pois não se sentia em nada os cuidados de
elegância duma mulher que gosta da sua casa. Quatro pobres
quadros, que representavam um barco num rio, um navio no mar,
um moinho numa planície e um lenhador num bosque, estavam
pendurados nas quatro paredes, pendentes de cordões desiguais
e todos tortos. Adivinhava-se que, havia bastante tempo,
estavam assim sob os olhos descuidados duma pessoa
indiferente.
Duroy sentou-se e esperou. Esperou muito tempo. Por fim,
abriu-se uma porta e a senhora de Marelle entrou a correr,
vestida com um penteador japonês de seda cor-de-rosa bordado
com paisagens doiradas, flores azuis e pássaros brancos, e
exclamou:
- Imagine que estava ainda deitada. É muito gentil em vir
visitar-me! Estava persuadida de que se tinha esquecido de
mim...
Estendeu-lhe as duas mãos num gesto afectuoso e Duroy, a
quem o aspecto medíocre da casa punha à vontade, pegou nelas e
beijou uma, como vira fazer a Norberto de Varenne. A dona da
casa disse-lhe que se sentasse, e, depois de o mirar dos pés à
cabeça:
- Como está mudado! Tem um outro ar; Paris fez-lhe bem.
Vamos, conte-me novidades.
Puseram-se, imediatamente, a conversar como se fossem velhos
conhecidos. Sentiam nascer entre si uma instantânea
familiaridade e uma destas correntes de confiança, de
intimidade, de afeição, que tornam amigos, em dois minutos, os
seres do mesmo carácter e da mesma raça. Ela deu conta disso e
interrompeu a conversa para dizer, surpreendida:
68
- É curioso como me sinto à vontade consigo! Parece-me que o
conheço há dez anos. Seremos, sem dúvida, bons camaradas.
Quer?
- Mas, certamente - respondeu Jorge, com um sorriso que
dizia muita coisa.
Achava-a tentadora, no seu vestuário gritante e macio, menos
fina do que a outra no seu penteador branco, menos amimada,
menos delicada, mas mais excitante, mais picante.
Quando estava ao pé da senhora Forestier, com o seu sorriso
imóvel e gracioso, que ao mesmo tempo atraía e detinha, e
parecia dizer: "Você agrada-me, mas, também, tenha cuidado",
do qual não poderia compreender o sentido verdadeiro, Jorge
sentia, sobretudo, o desejo de se deitar aos seus pés ou de
beijar a renda fina do seu corpete e de aspirar, lentamente, o
ar cálido e perfumado que emanava dela, deslizando-lhe por
entre os seios.
Junto da senhora de Marelle sentia crescer em si um desejo
mais brutal, mais preciso, um desejo que Lhe fazia fremir as
mãos ante os contornos arredondados pela seda leve.
Ouvia-a falar, dando a cada frase aquele espírito fácil de
que tinha o segredo, assim como um operário hábil sabe dar o
jeito que é preciso para fazer uma tarefa considerada difícil
e de que se admiram os outros. Ao ouvi-la, pensava: "Convém
não esquecer isto. Podem escrever-se crónicas parisienses
encantadoras só com fazê-la falar acerca dos casos do dia."
Bateram devagar, muito devagar, à porta por onde entrara a
senhora de Marelle, que disse alto:
- Podes entrar, querida!
A pequenita apareceu e dirigiu-se a Duroy, a quem estendeu a
mão.
A mãe, surpreendida, murmurou:
- Mas isto é uma conquista. Não a reconheço.
Jorge, depois de ter beijado a criança, fê-la sentar a seu
lado e formulou, com ar sério, algumas perguntas gentis acerca
do que ela tinha feito desde que se tinham visto. A pequenita
respondeu com a sua vozinha aflautada, com um ar grave de
pessoa crescida.
O relógio bateu três horas e o jornalista levantou-se.
- Venha mais vezes - pediu a senhora de Marelle.
Conversaremos como hoje. Dar-me-á muito prazer com isso. Por
que não tem aparecido em casa dos Forestiers?
69
- Oh! Por nada - respondeu Jorge. - Tenho tido muito que
fazer. Espero que voltaremos a ver-nos lá, um dia destes.
Duroy saiu com o coração cheio de esperança, sem saber por
quê.
Não falou a Forestier dessa visita; mas guardou dela, nos
dias seguintes, mais do que a recordação, uma espécie de
sensação da presença irreal e persistente daquela mulher.
Parecia-lhe ter ficado com alguma coisa dela, a imagem do seu
corpo fixa nos seus olhos e o sabor do ser moral arreigado no
seu coração. Estava sob a obsessão dessa imagem, como sucede,
às vezes, quando passamos horas de encantamento junto de
alguém. Dir-se-ia que ficamos sujeitos a uma estranha posse,
íntima, confusa, perturbante e grata por ser misteriosa.
Duroy fez-lhe uma segunda visita, passados alguns dias.
A criada fê-lo entrar na sala e a pequenita Laurinha
apareceu imediatamente. Já não lhe deu a mão, mas a fronte, e
disse:
- A mamã encarregou-me de lhe pedir que esperasse. Demora um
quarto de hora, porque não estava vestida. Far-lhe-ei
companhia.
Jorge, a quem divertiam as maneiras cerimoniosas da
pequenita, respondeu:
- Muito bem, minha menina. Terei muito gosto em passar um
quarto de hora consigo; mas previno-a de que não sou nada
sério, estou sempre a brincar e proponho-lhe irmos brincar ao
gato e ao rato.
A garota ficou perplexa e depois sorriu, como faria uma
mulher, daquela ideia que a surpreendia e, também, a chocava
um tanto, e murmurou:
- As salas não são feitas para brincar.
- Pouco importa - continuou Jorge. - Por mim, brinco em toda
a parte. Vamos, veja se me apanha!
Pôs-se a andar à volta da mesa, incitando-a a persegui-lo,
enquanto ela ia atrás dele, sorridente, sempre com uma espécie
de condescendência polida estendendo por vezes, a mão para Lhe
tocar, mas sem ir a ponto de correr.
Jorge parava, baixava-se, e quando ela se aproximava com o
seu passinho hesitante, saltava ao ar como os bonecos metidos
em caixas com mola e alcançava num pulo a extremidade da sala.
70
A criança achava isso engraçado e, animando-se, começou a
correr atrás dele, com gritinhos alegres e medrosos, quando
julgava ir apanhá-lo. Jorge deslocava as cadeiras, para criar
obstáculos, forçava-a a andar à roda duma delas, durante um
momento, e depois deixava essa, para lançar mão de outra.
Laurinha já corria descuidada, toda entregue ao prazer dessa
brincadeira, nova para ela. Corada, precipitava-se, com um
ímpeto de criança contente, ante cada uma das fugas, cada uma
das astúcias, cada uma das saídas do seu companheiro.
Bruscamente, quando julgava ir apanhá-lo, Jorge pegou-lhe,
ergueu-a até ao tecto, gritando:
- Apanhada!
A criança, encantada, agitava as pernas para lhe fugir e ria
de vontade. A senhora de Marelle, que entrava, ficou
estupefacta:
- Ah! Laurinha... Laurinha a brincar... O senhor é um
feiticeiro.
Jorge pôs a pequenita no chão, beijou a mão à mãe e
sentaram-se, com a criança entre eles. Queriam conversar; mas
Laurinha, entusiasmada, tão muda habitualmente, estava sempre
a falar e a mãe mandou-a para o seu quarto. A criança obedeceu
sem responder, mas com lágrimas nos olhos.
Logo que ficaram sós, a senhora de Marelle baixou a voz:
- Sabe, tenho um grande projecto e penso em si. É o
seguinte: como vou jantar todas as semanas a casa dos
Forestiers, costumo retribuir-lhes isso, de tempos a tempos,
no restaurante. Não gosto de receber em minha casa, não está
organizada para isso e, aliás, não percebo de coisas caseiras,
de cozinha, de nada. Gosto de viver à minha vontade. Por isso,
convido-os, de tempos a tempos, para o restaurante, mas isso
não é divertido quando estamos só os três, e as pessoas minhas
conhecidas não vão muito com eles. Digo-lhe isto para explicar
um convite pouco regular. Compreende, não é verdade, que Lhe
peço o favor de vir jantar connosco, no sábado, no Café Riche,
às sete e meia. Sabe onde é?
Duroy aceitou, encantado, e ela continuou:
- Seremos só os quatro, uma verdadeira reunião em família.
São muito divertidas estas festinhas, sobretudo para nós,
mulheres, que não estamos habituadas a elas.
71
A senhora de Marelle tinha um vestido castanho-escuro que
lhe modelava a cintura, os quadris, o peito, os braços, duma
forma provocante e sedutora. Duroy sentia surpresa e confusão,
quase um mal-estar de que não atingia bem a causa, em presença
do desacordo dessa elegância cuidada, requintada, e o
desmazelo visível da casa em que era recebido.
Tudo que envolvia o seu corpo, tudo que contactava, directa
e intimamente, a sua carne, era delicado e fino, mas não
sucedia o mesmo com aquilo que a rodeava.
Jorge deixou-a, mas levou consigo, como da outra vez, a
sensação da sua presença numa espécie de alucinação dos
sentidos. Aguardou o dia do jantar com impaciência crescente.
Alugou de novo uma casaca, porque os seus meios não lhe
permitiam ainda ter um trajo de soirée, e foi o primeiro a
chegar ao restaurante, alguns minutos antes da hora marcada.
Fizeram-no subir ao segundo andar e introduziram-no numa
salinha forrada de vermelho, cuja única janela dava para o
bulevar.
Uma mesa quadrada, posta para quatro pessoas, mostrava a sua
toalha branca, tão brilhante que parecia envernizada, os
copos, os talheres de prata, o aquecedor, que brilhavam também
alegremente, sob as chamas de doze velas colocadas em dois
altos candelabros.
Fora, via-se uma grande mancha dum verde-claro, feita pelas
folhas duma planta e iluminadas pela luz viva dos gabinetes
particulares.
Duroy sentou-se num divã baixo, vermelho como o forro das
paredes, e cujas molas fatigadas se afundaram, dando-lhe a
sensação de cair num buraco.
Ouvia, por todo o grande estabelecimento, um ruído confuso,
o murmúrio dos grandes restaurantes, feito do bater da louça,
do tilintar dos talheres, dos passos rápidos dos criados,
amortecidos pelas passadeiras dos corredores, das portas
abertas por um momento e que deixam escapar o som das vozes de
todas as salinhas onde se encontravam as pessoas que jantavam.
Forestier entrou e apertou-Lhe a mão com uma familiaridade
cordial, que não costumava mostrar quando se encontravam na
Vie Française.
- As duas senhoras vêm juntas - disse-lhe. - São muito
agradáveis estes jantares.
72
Depois, observou a mesa, apagou completamente um bico de gás
que ardia baixinho, fechou um batente da janela, por causa das
correntes de ar, e escolheu o seu lugar bem abrigado,
declarando:
- Preciso de prestar atenção, pois estive melhor, durante um
mês, e eis que estou, há alguns dias, de novo tomado. Devo ter
apanhado frio ao sair do teatro.
Abriram a porta e as duas mulheres apareceram, seguidas pelo
chefe dos criados. Vinham de véu, ocultas, discretas, com o ar
encantador de mistério que tomam as mulheres nos lugares onde
a vizinhança ou os encontros são suspeitos.
Quando Duroy cumprimentou a senhora Forestier, esta
ralhou-lhe por não ter voltado a visitá-la. Depois,
acrescentou com um sorriso, para a amiga:
- É isso, prefere a senhora de Marelle; para a visitar
encontra tempo.
Sentaram-se e quando o chefe dos criados apresentou a lista
dos vinhos a Forestier, a senhora de Marelle disse:
- Dê a esses senhores o que eles quiserem; quanto a nós,
champanhe fresco, do melhor, champanhe doce, por exemplo, nada
mais.
Quando o homem saiu, proferiu com um riso excitado:
- Quero embriagar-me esta noite; vamos fazer uma pândega,
uma verdadeira pândega.
Forestier, que parecia não a ter ouvido, perguntou:
- Não a incomoda que feche a janela? Tenho o peito um bocado
tomado há alguns dias...
- Não, não me incomoda nada.
Forestier foi fechar o batente que ficara entreaberto e
voltou a sentar-se com rosto sereno, tranquilizado.
Sua mulher não dizia nada. Parecia absorta. Com os olhos
postos na mesa, sorria para os copos com aquele seu sorriso
vago, que parecia prometer, mas nunca dava.
As ostras de Ostende foram servidas, pequeninas e redondas,
semelhantes a orelhinhas encerradas nas conchas e
derretendo-se entre o palato e a língua como se fossem bombons
salgados.
A seguir à sopa, serviram uma truta cor-de-rosa como a pele
duma rapariga, e os convivas começaram a conversar. Falaram,
de começo, dum escândalo que corria, a história duma senhora
da sociedade, surpreendida por um amigo do marido,
73
a cear com um príncipe estrangeiro, num gabinete particular.
Forestier ria muito dessa aventura. As duas mulheres
declararam que o mexeriqueiro fora um patife e um cobarde.
Duroy foi da mesma opinião e proclamou bem alto que um homem
tem o dever de guardar um silêncio de túmulo acerca desses
casos, quer seja actor, confidente ou simples testemunha.
Acrescentou:
- Como a vida seria encantadora se pudéssemos contar com a
discrição absoluta uns dos outros. O que retém quase sempre as
mulheres, muito frequentemente até, é o medo de serem
descobertas - acrescentou a sorrir. - Vejamos, não é assim?
Quantas há que se abandonariam a um rápido desejo, ao capricho
brusco e violento duma hora, a uma fantasia de amor, se não
receassem pagar, com um escândalo irremediável e lágrimas de
dor, um curto instante de felicidade!
Falava com uma convicção contagiosa, como se estivesse a
defender uma causa, a sua causa, como se dissesse: "Não é
comigo que terão a recear tais perigos. Experimentem para
ver." Ambas o observavam, aprovando-o com o olhar. Achavam que
falava bem e com justiça. Confirmavam, com o seu silêncio
amigo, que a sua moral inflexível de parisienses não se
manteria por muito tempo ante a certeza do segredo.
Forestier, quase deitado no divã, com uma perna debaixo de
si, o guardanapo metido no colete para não pingar a casaca,
declarou logo, com um riso convencido e céptico:
- Palavra que sim. Que não se faria, se houvesse a certeza
do silêncio. Com todos os diabos! Pobres maridos!
Puseram-se a falar do amor. Sem admitir que fosse eterno,
Duroy compreendia que fosse duradouro, criasse um laço, uma
amizade terna, uma confiança. A união dos sentidos devia ser
somente o selo da união dos corações. Indignava-se, contudo,
contra os ciúmes irritantes, os dramas, as cenas, o estendal
de misérias, que quase sempre acompanham as rupturas.
Quando se calou, a senhora de Marelle suspirou:
- Sim, é a única coisa boa da vida, e estragamo-la
frequentemente com exigências impossíveis.
A senhora Forestier, que brincava com a faca, acrescentou:
- Sim... sim... é bom ser amada...
74
Parecia levar mais longe o seu sonho, pensar em coisas que
não ousava dizer.
Como o prato da entrada não chegava, bebiam de tempos a
tempos um gole de champanhe, enquanto mordiam pedacinhos de
côdea tirados dos pãezinhos redondos.
O pensamento do amor, lento e invasor, entrara neles,
embriagava-lhes as almas como um vinho límpido caído gota a
gota na garganta, aquecendo-lhe o sangue e perturbando-lhe o
espírito.
Serviram-lhes costeletas de cordeiro, tenras, leves,
dispostas numa camada espessa de pontas de espargos.
- Apre! Que bela coisa! - exclamou Forestier.
Comeram com lentidão, saboreando a carne delicada e a
guarnição macia como um creme. Duroy prosseguiu:
- Por mim, quando gosto duma mulher, o mundo todo desaparece
à sua volta.
Dizia isso com convicção, exaltando-se com a ideia desse
gozo do amor, no bem-estar que o prazer da mesa lhe
proporcionava.
A senhora Forestier murmurou, com o seu ar de quem não
quebrava um prato:
- Não há felicidade comparável à primeira pressão das mãos,
quando uma pergunta: "Gosta de mim?", e a outra responde:
"Sim, gosto muito".
A senhora de Marelle acabara de esgotar, dum trago, um novo
copo de champanhe e disse alegremente, depondo o copo:
- Cá por mim, sou menos platónica!
Todos se puseram a rir, com os olhos brilhantes, aprovando
as suas palavras. Forestier estendeu-se no divã, abriu os
braços, apoiou-os nos almofadões e proferiu num tom sério:
- Essa franqueza honra-a e prova que é uma mulher prática.
Podemos, porém, perguntar qual é a opinião do senhor de
Marelle?
A interrogada encolheu os ombros, devagar, com um desdém
infinito, prolongado. Depois, declarou com voz clara:
- O senhor de Marelle não tem voto nesta matéria; só tem...
abstenções.
A conversa, ao descer das teorias elevadas acerca da
ternura, entrou no jardim florido das brejeirices ditas com
distinção. Foi o momento dos subentendidos hábeis,
75
dos véus soerguidos pelas palavras como quem levanta saias, o
momento das astúcias da linguagem, das audácias disfarçadas,
de todas as hipocrisias impudicas, das frases que mostram as
imagens despidas com expressões recatadas, que fazem passar,
ante os olhos e nos espíritos, a visão daquilo que não se pode
dizer e permite às pessoas da sociedade uma espécie de
contacto impuro em pensamento, pela evocação, simultânea,
perturbante e sensual como um amplexo, de todas as coisas
secretas, vergonhosas e desejadas, da intimidade.
Trouxeram o assado: perdizes ladeadas de codornizes, com
ervilhas tenras, e depois uma terrina de foie gras,
acompanhada duma salada de folhas frisadas que enchia, como
uma espuma verde, a grande saladeira. Comeram de tudo aquilo
sem saborearem, sem darem por isso, unicamente preocupados com
o que diziam, mergulhados num banho de amor.
As duas mulheres falavam de coisas picantes, a senhora de
Marelle com uma audácia natural que parecia uma provocação, a
senhora Forestier com uma reserva encantadora, um pudor no
tom, na voz, no sorriso, em toda a atitude, que acentuavam,
embora tivesse o ar de as atenuar, as coisas ousadas saídas da
sua boca.
Forestier, completamente espapaçado em cima dos almofadões,
ria, bebia, comia sem cessar e lançava por vezes uma palavra
de tal modo ousada ou crua, que as mulheres, um tanto chocadas
pela forma, e pró-forma, tomavam um arzinho ofendido, que
durava dois ou três segundos. Quando lançava algum dito mais
grosseiro, acrescentava:
- Muito bem, meus filhos. Se continuam assim, acabarão por
fazer tolices.
Veio a sobremesa e depois o café. Os licores lançaram nos
espíritos excitados uma perturbação mais pesada e mais quente.
Como dissera, ao sentar-se à mesa, a senhora de Marelle estava
embriagada. Reconhecia-o, com uma graça de mulher alegre e
faladora, acentuada, para divertir os seus convidados, por uma
ponta de embriaguez muito real.
A senhora Forestier calava-se então, talvez por prudência.
Duroy, que se sentia demasiado aquecido, para não se
comprometer, guardava uma reserva hábil.
Acenderam cigarros e Forestier, imediatamente, pôs-se a
tossir. Foi um acesso terrível, que parecia rasgar-lhe a
garganta. Com a face vermelha, a testa coberta de suor,
76
sufocava com a boca no guardanapo. Quando a crise se acalmou,
resmungou com um ar furioso:
- Não me convêm nada, estas saídas; que coisa estúpida!
Todo o seu bom humor desaparecera, ante o medo do mal que
preocupava o seu espírito.
- Vamos para casa! - disse.
A senhora de Marelle tocou para chamar o criado e pediu a
conta. Levaram-lha quase imediatamente. Tentou lê-la, mas os
números dançavam-lhe diante dos olhos e passou o papel a
Duroy:
- Pegue, pague por mim, não vejo nada, estou muito tonta.
Ao mesmo tempo, atirou-lhe para as mãos a sua bolsa. A soma
era cento e trinta francos. Duroy verificou e somou a conta,
deu duas notas e recebeu a demasia, perguntando a meia voz:
- Quanto devo dar ao criado?
- O que quiser, não sei.
Colocou cinco francos na bandeja e devolveu a bolsa à
senhora de Marelle, dizendo-lhe:
- Quer que a acompanhe a casa?
- Certamente. Sinto-me incapaz de dar com a porta.
Despediram-se dos Forestiers e Duroy encontrou-se só com a
senhora de Marelle dentro dum fiacre, que rodava lentamente.
Jorge sentia-a contra si muito junta, encerrada com ele
naquela caixa de madeira preta, que os bicos de gás dos
passeios iluminavam subitamente, durante um instante. Sentia,
através da manga, o calor do seu ombro, e não achava para Lhe
dizer absolutamente nada, com o espírito paralisado pelo
desejo imperioso de a apertar nos seus braços. "Se eu ousasse,
que faria ela?" A recordação de todos os ditos frescos
murmurados durante o jantar encorajava-o; mas ao mesmo tempo
retinha-o o medo do escândalo. A senhora de Marelle não dizia
nada também, imóvel, afundada a um canto. Pensaria que estava
a dormir se não lhe visse brilhar os olhos, de cada vez que um
raio de luz penetrava dentro do carro.
"Que pensará ela?" Jorge compreendia, perfeitamente, que era
preciso não falar, que uma palavra, uma única palavra,
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ao quebrar o silêncio, prejudicaria as suas probabilidades;
faltava-lhe audácia para uma acção brusca e brutal.
Subitamente, sentiu que ela mexia o pé, com um movimento
seco, nervoso, de impaciência ou de apelo talvez. Esse gesto
quase insensível fez correr em Jorge, da cabeça aos pés, um
grande arrepio ao longo da pele. Voltou-se, vivamente, e
atirou-se para cima dela, procurando-Lhe a boca com os lábios,
e a carne com as mãos. Ela soltou um grito, um gritinho, quis
erguer-se, debater-se, repeli-lo; depois cedeu, como se lhe
tivesse faltado a força para resistir mais tempo.
O carro, porém, parou em breve, diante da casa da senhora de
Marelle. Duroy, surpreendido, não teve de procurar palavras
apaixonadas para lhe agradecer, para a bendizer e exprimir o
seu amor reconhecido. No entanto, ela não se levantava, não se
mexia, atordoada com o que acabara de se passar. Então Jorge,
com receio de o cocheiro perceber alguma coisa, desceu à
frente e estendeu a mão à senhora de Marelle, que desceu do
fiacre, agitada e sem pronunciar uma palavra.
Jorge bateu à porta e, quando abriram, perguntou a tremer:
- Quando voltarei a vê-la?
A resposta foi dita tão baixinho que mal se ouvia:
- Venha almoçar comigo, amanhã.
A senhora de Marelle desapareceu na sombra do vestíbulo,
atirando com a pesada porta que bateu com um estampido de
canhão.
Jorge deu cem soldos ao cocheiro e pôs-se a caminhar, num
passo rápido e triunfante, com o coração a transbordar de
alegria. Apanhara uma, finalmente, e uma mulher casada! Uma
mulher da sociedade! Da alta sociedade parisiense! Como fora
fácil e imprevisto!
Supusera até então que, para cortejar e conquistar uma
dessas criaturas tão desejadas, eram precisos infinitos
cuidados, esperas intermináveis, um cerco hábil feito de
galantaria, de palavras de amor, de suspiros e de ofertas. Eis
que, subitamente, sem o mínimo esforço, a primeira que
encontrara se abandonava a ele, tão depressa que o deixava
estupefacto.
"Ela estava alegre", pensava Jorge. "Amanhã será outra
história; haverá lágrimas." Esta ideia inquietava-o, mas
acrescentou: "Tanto pior! Agora que a apanhei, saberei
guardá-la."
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Na miragem confusa em que se perdiam as suas esperanças de
grandeza, de êxito, de renome, de fortuna e de amor, entreviu,
igual às grinaldas de figurantes que se espalham no fundo das
apoteoses, um cortejo de mulheres chiques, ricas, poderosas,
que passavam a sorrir, para desaparecer, uma atrás da outra,
ao fundo da nuvem dourada dos seus sonhos. O seu sono foi
povoado de visões.
No dia seguinte, Jorge sentia-se um tanto perturbado ao
subir a escada da senhora de Marelle. Como o receberia ela? E
se não o quisesse receber? Se tivesse proibido que lhe
entrasse em casa? Se fosse contar?... Mas não, não podia dizer
nada, sem deixar adivinhar a verdade completa. Portanto, era
ele o senhor da situação.
A criadinha abriu-lhe a porta. Tinha o rosto habitual. Isso
tranquilizou-o, como se esperasse que a criada lhe mostrasse
cara de caso. Perguntou-lhe:
- A senhora está bem?
- Sim, meu senhor, como de costume - respondeu a criada,
fazendo-o entrar para a sala.
Jorge dirigiu-se ao espelho por cima do fogão, para
verificar o estado do cabelo e do trajo. Estava a apertar o nó
da gravata ao espelho quando viu nele a dona da casa, que o
observava do limiar da porta da sala. Fez de conta que não a
vira e os dois observaram-se, durante alguns segundos, através
do espelho, espiando-se antes de se encontrarem face a face.
Duroy voltou-se. Ela não se mexera e parecia esperar. Ele
correu para ela e balbuciou:
- Querida! Como gosto de si!
Ela abriu os braços e deixou-se cair contra o seu peito.
Depois, ergueu a cabeça para ele e beijaram-se demoradamente.
Jorge pensava: "É mais fácil do que supunha. Isto vai muito
bem." Quando os seus lábios se separaram, sorria sem dizer
nada, procurando dar ao olhar uma expressão de infinito amor.
Ela também sorria, com esse sorriso que as mulheres têm para
fazer a oferta do seu desejo, o dom do seu consentimento,
afirmar a sua vontade de se darem. Murmurou:
- Estamos sós. Mandei Laurinha almoçar a casa duma amiga.
Jorge beijou-lhe os pulsos e suspirou:
79
- Obrigado! Adoro-a!
Ela tomou-lhe então o braço, como se ele fosse seu marido,
para ir até ao sofá, onde se sentaram lado a lado.
Jorge queria começar a conversação com alguma coisa hábil e
sedutora; mas não descobriu nada a seu gosto e balbuciou:
- Então, está muito zangada comigo?
Ela pôs-lhe a mão na boca:
- Cala-te!...
Ficaram silenciosos, com os olhos fixos um no outro, as mãos
enlaçadas e ardentes:
- Como a desejo! - murmurou Jorge.
- Cala-te - repetiu ela.
Ouvia-se a criada mexer em pratos, na outra sala, por detrás
da parede. Jorge levantou-se:
- Não posso continuar junto de si. Perderia a cabeça.
A porta abriu-se e a criada disse:
- O almoço está na mesa.
Jorge deu o braço, gravemente, à senhora de Marelle.
Almoçaram os dois, face a face, a olhar e a sorrir um para o
outro sem cessar, ocupados, unicamente, com eles, envolvidos
pelo encanto tão doce duma ternura que começa. Comiam sem
saber o quê. Jorge sentiu um pé, um pezinho que corria por
baixo da mesa. Tomou-o entre os seus e guardou-o, apertando-o
com força.
A criada ia e vinha, trazia e levava os pratos, com ar
indiferente, sem parecer reparar em nada.
Quando acabaram de comer, voltaram para a sala e retomaram
os seus lugares no sofá, lado a lado.
Aos poucos, Jorge encostava-se mais a ela e procurava
abraçá-la. A dona da casa, porém, repelia-o, com calma:
- Atenção! Podem entrar.
Jorge murmurou:
- Quando a poderei ter a sós, para lhe dizer quanto gosto de
si?
Ela inclinou-se para ele e proferiu baixinho ao ouvido:
- Irei fazer-lhe uma visita um destes dias.
Jorge corou ao balbuciar:
- É que... em minha casa... é... muito modesto.
- Não faz mal - disse-Lhe ela, a sorrir. - É a si que irei
ver e não ao quarto.
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Então, Jorge instou para saber quando iria. Ela fixou-lhe um
dia do fim da semana seguinte. Ele suplicou-lhe que
antecipasse a data, com palavras ciciadas, olhos brilhantes,
apertando-lhe as mãos, com o rosto rubro, febril, devorado
pelo desejo, esse desejo impetuoso que se segue aos repastos a
dois.
Divertida por o ver a implorar com tanto ardor, ela
antecipava de um dia o encontro. Ele, contudo, insistia:
- Amanhã... Diga que é amanhã...
Por fim, ela consentiu:
- Sim, amanhã. Às cinco horas.
Jorge soltou um grande suspiro de satisfação. Depois,
puseram-se a conversar quase tranquilamente, com ares de
intimidade, como se fossem conhecidos há mais de vinte anos.
Um toque de campainha fê-los estremecer. Subitamente, num
movimento brusco, afastaram-se um do outro.
- Deve ser Laurinha - murmurou ela.
A criança apareceu, deteve-se, surpreendida, depois correu
para Duroy, a bater as mãos, arrebatada de prazer ao
descobri-lo, e disse:
- Ah! Bel-Ami!
A senhora de Marelle pôs-se a rir:
- Olha! Bel-Ami! Laurinha crismou-o! É um rico nome de
amizade para si, esse. Também o tratarei por Bel-Ami!
Jorge tinha nos seus joelhos a pequenita e teve de brincar
com ela, de repetir as brincadeiras que lhe ensinara.
Despediu-se às três menos vinte, para ir ao jornal. Já na
escada, pela porta entreaberta, murmurou ainda na ponta dos
lábios:
- Amanhã. Às cinco...
- Sim... - respondeu ela, com um sorriso, e desapareceu.
Logo que terminou a tarefa do dia, Jorge pensou na maneira
de arranjar o quarto para receber a sua amante e dissimular o
melhor possível a pobreza do local. Teve a ideia de pregar nas
paredes estampas japonesas e comprou, por cinco francos, uma
colecção de leques, ventarolas e biombozinhos, com os quais
ocultou as manchas mais visíveis do papel. Aplicou nos vidros
das janelas imagens transparentes, que representavam barcos em
rios, voos de aves através de céus vermelhos, damas
multicolores em varandas ou cortejos de figurinhas a preto em
planícies cobertas de neve.
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O quarto só tinha espaço para uma pessoa dormir e se sentar
e em breve adquiriu o ar do interior duma lanterna de papel
pintado. Jorge achou o efeito satisfatório e passou a tarde a
colar no tecto pássaros recortados das folhas coloridas que
lhe restavam. Depois, deitou-se, embalado pelos apitos dos
comboios.
Voltou cedo no dia seguinte, munido dum embrulho com bolos e
uma garrafa de vinho da Madeira, comprada no merceeiro. Teve
de voltar a sair para ir buscar dois pratos e dois cálices.
Depôs tudo em cima da mesa do lavatório, cujo tampo manchado
cobriu com um guardanapo, no lugar da bacia com o jarro, que
ocultou por baixo. Depois, esperou.
A senhora de Marelle chegou por volta das cinco e um quarto.
Encantada com os desenhos coloridos, exclamou:
- Olha, é engraçado o seu quarto! Há, porém, muita gente na
escada.
Jorge tomara-a nos braços e beijava-Lhe o cabelo,
arrebatadamente, entre a testa e o chapéu, através do véu.
Hora e meia depois, Duroy acompanhou-a à praça dos fiacres
da Rua de Roma. Quando ela já estava no carro, Jorge
murmurou-Lhe:
- Terça-feira, à mesma hora.
- À mesma hora, terça-feira - confirmou ela, ao mesmo tempo
que, visto já ter escurecido, lhe puxava a cabeça pela
portinhola e o beijava na boca.
O cocheiro chicoteou o animal e ela gritou: "Adeus,
Bel-Ami!" enquanto o velho cupé partia ao trote fatigado dum
cavalo branco.
Durante três semanas, Duroy recebeu assim a senhora de
Marelle, de dois em dois ou de três em três dias, ora de
manhã, ora de tarde.
Numa ocasião em que a esperava, um grande barulho na escada
levou-o a ir abrir a porta. Uma criança chorava em altos
gritos e a voz furiosa dum homem gritava:
- Que é que esse malandro tem para estar a berrar?
A voz exasperada e irritante duma mulher respondeu:
- Foi essa porca da gaja, que vai ao quarto do jornalista lá
de cima, que atirou Nicolau ao chão no patamar. Essas
sem-vergonha nem prestam atenção às crianças que estão nas
escadas!
82
Duroy, aborrecido, recuou, pois ouvira um rápido rugir de
saias e um passo precipitado que subia a escada no andar de
baixo.
Pouco depois, bateram à porta, que Jorge acabara de fechar.
Abriu-a e a senhora de Marelle, afogueada, aflita, entrou no
quarto, balbuciando:
- Ouviste?
Duroy deu a impressão de não saber de que se tratava:
- Não, que foi?
- Não ouviste como me insultaram?
- Quem foi?
- Esses miseráveis que moram por baixo.
- Não ouvi nada; diz-me o que houve!
Ela pôs-se a soluçar, sem poder proferir uma palavra. Estava
sufocada. Jorge teve de a desapertar, de lhe tirar o chapéu,
de a estender na cama, refrescando-lhe as fontes com um pano
molhado. Depois, quando a sua comoção se acalmou um tanto,
toda a sua cólera indignada explodiu. Queria que ele descesse
imediatamente, se batesse com eles e os matasse.
- São operários, sem educação - dizia Duroy. - Pensa que
poderia intervir a polícia e seres reconhecida, presa, ser
revelado o teu nome... Ninguém se mete com gente desta.
- Como faremos, então? Não quero voltar aqui!
- É muito simples: mudo-me - retorquiu Jorge.
- Sim - murmurou -, mas demora muito. - Depois, imaginou
outra combinação e, já serena, prosseguiu: - Não; ouve: achei.
Deixa-me proceder; não te preocupes com este caso.
Mandar-te-ei amanhã de manhã, um "azulinho".
Chamava "azulinhos" aos telegramas fechados que circulam em
Paris. Sorria, encantada com a sua descoberta, que não queria
revelar, e fez mil loucuras de amor.
Estava, contudo, bem medrosa ao descer a escada e apoiava-se
com força no braço do amante, por Lhe fraquejarem muito as
pernas. Não encontraram, porém, pessoa alguma.
Como Jorge se levantava tarde, estava ainda na cama, no dia
seguinte, por volta das onze horas, quando o boletineiro lhe
levou o "azulinho" prometido. Duroy abriu-o e leu: Encontro,
daqui a pouco, às cinco horas, na Rua de Constantinopla, 127.
Manda abrir o apartamento alugado pela senhora Duroy.
Beijo-te, Clo.
83
Às cinco horas em ponto, Jorge entrou na loja do porteiro
duma grande casa que alugava quartos mobilados e perguntou:
- Foi aqui que a senhora Duroy alugou um apartamento?
- Foi sim, senhor.
- Quer indicar-me onde é, se faz favor.
O homem, habituado, sem dúvida, às situações delicadas em
que a prudência é necessária, fitou-o nos olhos e depois de
procurar num grande molho de chaves, perguntou:
- O senhor é que é o senhor Duroy?
- Sou sim, evidentemente.
O porteiro abriu um aposento minúsculo, só com duas
divisões, situado no rés do-chão, em frente da sua loja.
A salinha forrada de papel de ramagens, bastante novo, tinha
um móvel de mogno coberto por um pano de repes verde com
desenhos amarelos e um fraco tapete de flores, tão fino que os
pés sentiam o soalho por baixo.
O quarto de dormir era tão pequeno que a cama ocupava bem
três quartas partes. Tinha ao fundo, dum extremo ao outro, um
grande leito, dos dos quartos mobilados, envolto num cortinado
azul, pesado, igualmente de repes, e coberto por um édredon de
seda vermelha maculado com manchas suspeitas.
Duroy, inquieto e descontente, pensava: "Isto vai custar-me
um dinheirão doido, um quarto destes. Tenho de voltar a pedir
dinheiro emprestado. É idiota o que ela fez!"
A porta abriu-se e Clotilde entrou como um pé-de-vento, com
um grande ruído do vestido e de braços abertos. Estava
encantada:
- É gentil isto, não é? Não há que subir. Dá para a rua; é
no rés-do-chão! Podemos entrar e sair pela janela, sem que o
porteiro nos veja. Como nos vamos amar bem, aqui dentro!
Jorge beijou-a friamente, sem ousar fazer a pergunta que lhe
acudia aos lábios.
Clotilde pusera um grande embrulho em cima da mesa, ao
centro do quarto. Abriu-o e tirou de dentro um sabonete, uma
garrafa de água de Lubin, uma esponja, uma caixa de ganchos do
cabelo, um abotoador e um ferro de frisar, para poder refazer
os caracóis da testa que ficavam desfeitos das outras vezes.
Brincava ao tratar da instalação, procurando o lugar para cada
coisa e divertindo-se enormemente com isso. Ao abrir as
gavetas, dizia:
84
- Preciso de trazer alguma roupa branca para mudar quando
for necessário. Será mais cómodo. Se apanhar uma carga de
água, ao dar as minhas voltas, virei mudar-me aqui. Cada um de
nós terá a sua chave, além daquela que terá o porteiro, como
recurso para quando nos esquecermos das nossas. Aluguei por
três meses, em teu nome, bem entendido, pois não podia dar o
meu.
- Dir-me-ás quanto é preciso pagar - proferiu Duroy.
- Mas está pago, querido! - respondeu simplesmente Clotilde.
- Então, é a ti que devo - insistiu Jorge.
- Mas não, meu tonto; isto não te diz respeito; fui eu que
quis fazer esta loucurazinha.
- Ah, isso não! Essa, agora! Não to consinto! - disse Duroy,
com ar de se zangar.
Clotilde dirigiu-se a ele, suplicante, e pôs-lhe as mãos nos
ombros:
- Peço-te, Jorge, dar-me-á tanto prazer que seja meu o nosso
ninho, nada mais do que meu! Não te podes ofender com isso.
Por quê? Quero contribuir com isto para o nosso amor. Diz que
concordas, meu Jorginho, diz que concordas...
Suplicava-Lho com o olhar, com os lábios, com todo o seu
ser. Jorge fez-se rogado, recusando com gestos irritados, mas
depois cedeu, por achar que, no fundo, era justo.
Quando Clotilde partiu, Jorge murmurou, a esfregar as mãos,
e sem procurar no recôndito do seu coração donde vinha este
parecer: "Ela é gentil, apesar de tudo."
Jorge recebeu, alguns dias mais tarde, outro "azulinho" a
dizer-lhe: "Meu marido chega esta noite, após seis semanas de
inspecção. Teremos interrupção por oito dias. Que maçada,
querido! Tua Clo."
Duroy ficou estupefacto, já nem pensava que a amante era
casada. Eis uma pessoa de quem desejaria ver a cara, o marido,
embora fosse só uma vez, só para o conhecer.
Esperou com paciência a partida do esposo, mas foi passar às
Folies-Bergère duas noites, que terminaram em casa de Raquel.
Depois, certa manhã, novo telegrama de quatro palavras:
"Logo, cinco horas - Clo."
Chegaram ambos antes da hora marcada.
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Clotilde lançou-se-Lhe nos braços num grande ímpeto de amor,
beijando-o apaixonadamente. Depois disse-lhe:
- Se queres, depois de nos termos amado muito, levar-me-ás a
jantar a qualquer lado. Arranjei as coisas para ficar livre.
Estava-se no princípio do mês. Embora o seu ordenado fosse
recebido adiantadamente e vivesse, dia-a-dia, de dinheiro
arranjado de todos os lados, Duroy, por acaso, tinha fundos e
sentiu prazer por estar em condições de fazer qualquer despesa
com ela. Respondeu-lhe:
- Claro que sim, querida, onde quiseres.
Saíram por volta das sete horas e dirigiram-se ao bulevar
exterior. Clotilde apoiava-se-lhe com força no braço e
dizia-lhe ao ouvido:
- Se soubesses como me sinto contente por sair pelo teu
braço, como gosto de te sentir contra mim!
- Queres ir ao Tio Lathuile? - perguntou Jorge.
- Oh! Não! - respondeu-lhe. - É muito chique. Desejaria
qualquer coisa engraçada, vulgar, um restaurante onde vão
empregados e operários. Adoro as idas aos retiros. Ah! Se
pudesse ir ao campo!
Como Jorge não conhecia nada desse género no bairro, andaram
ao longo do bulevar, até acabarem por entrar numa casa de
bebidas, que servia comida numa sala à parte. Clotilde vira
através dos vidros duas rapariguinhas em cabelo sentadas em
frente de dois militares.
Três cocheiros jantavam ao fundo do compartimento estreito e
comprido. Uma personagem, impossível de classificar em
qualquer profissão, fumava o seu cachimbo, de pernas
estendidas, as mãos no cinto das calças, estendido numa
cadeira, com a cabeça deitada para trás no espaldar. O casaco
parecia um museu de nódoas e das algibeiras, inchadas como
ventres, saíam o gargalo duma garrafa, um pedaço de pão, ; um
embrulho de papel de jornal, amarrado com um cordão pendurado.
Tinha o cabelo encarapinhado, despenteado, cinzento de
sujidade. O boné caíra-lhe no chão, debaixo da cadeira.
A entrada de Clotilde causou sensação pela elegância do seu
trajar. Os dois pares deixaram de bichanar, os três cocheiros
pararam com a discussão, e o sujeito que fumava, depois de
tirar o cachimbo da boca e de cuspir para a frente, olhou em
volta, torcendo um tanto a cabeça.
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- Isto é muito agradável! - murmurou a senhora de Marelle. -
Ficaremos aqui muito bem; para a outra vez, vestir-me-ei de
operária.
Sentou-se, muito à vontade, à mesa de pau, envernizada pela
gordura da comida, lavada pela bebida derramada, e limpa com
uma passagem de pano pelo criado.
Duroy, um tanto envergonhado e comprometido, procurava um
cabide para pendurar o chapéu alto. Como não encontrava
nenhum, pôs o chapéu em cima duma cadeira.
Comeram um guisado, uma fatia de perna de carneiro assada e
uma salada. Clotilde repetia:
- Eu cá adoro isto. Tenho gostos canalhas. Divirto-me mais
aqui do que no Café Anglais. - Após uma pausa, acrescentou: -
Se me quisesses dar um grande prazer levavas-me a um baile
popular. Conheço um muito divertido, perto daqui, a que chamam
a Reine Blanche...
- Quem te levou lá? - perguntou Duroy, surpreendido.
Fitou-a e viu-a corar, como se essa pergunta despertasse
nela uma recordação comprometedora. Depois duma dessas
hesitações femininas tão curtas que mal se adivinham,
respondeu:
- Foi um amigo... - após um silêncio, concluiu: - que morreu
- e baixou os olhos com uma tristeza muito natural.
Duroy, pela primeira vez, pensou em tudo aquilo que ignorava
do passado daquela mulher e ficou a meditar. Certamente, já
tivera amantes, mas de que espécie? De que roda? Um vago
ciúme, uma espécie de inimizade se levantou nele contra ela,
uma inimizade feita de tudo quanto ignorava, por tudo que não
lhe tinha pertencido naquele coração e naquela existência.
Fitava-a, irritado com o mistério encerrado naquela cabeça
bonita e muda e que, nesse momento, pensava talvez noutro,
noutros, com saudade. Como gostaria de penetrar nessas
recordações, devassá-las, saber tudo, conhecer tudo!
- Queres levar-me à Reine Blanche? - insistiu ela. - Seria
uma festa completa.
Jorge pensou: "Ora! Que me importa o passado? Sou muito
estúpido em preocupar-me com isso!", e, a sorrir, respondeu:
- Mas certamente, querida.
Quando chegaram à rua, Clotilde continuou baixinho, com o ar
misterioso de quem faz confidências:
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- Não ousava pedir-te isto, até agora; mas não imaginas como
gosto destas escapadas de rapaz a todos os lugares onde as
senhoras não vão. No Carnaval, visto-me de estudante. Não
sabes como fico engraçada, disfarçada de estudante.
Quando entraram na sala do baile, Clotilde encostou-se muito
a ele, medrosa e contente, contemplando, de olhos encantados,
as raparigas e os seus chulos. De tempos a tempos, como para
se garantir contra um perigo possível, dizia, ao descobrir um
polícia, grave e imóvel: "Este agente tem um ar sólido." Ao
fim dum quarto de hora, estava satisfeita e Jorge acompanhou-a
a casa.
Começou então uma série de excursões a todos os lugares
suspeitos onde se diverte o povo. Duroy descobriu na sua
amante uma verdadeira paixão por essa vagabundagem de
estudantes boémios.
Clotilde aparecia nos seus encontros com um vestido de chita
e na cabeça uma touca, como as criadinhas das comédias. Apesar
dessa simplicidade elegante e rebuscada do trajo, conservava
os seus anéis, as suas pulseiras e os brincos de brilhantes,
dando como desculpa, quando ele lhe pedia que os tirasse:
"Ora! Não acreditam que não sejam falsos!"
Julgava estar admiravelmente disfarçada e, embora estivesse,
na realidade, escondida à maneira das avestruzes, entrava nas
tabernas mais mal afamadas.
Queria que Duroy se vestisse de operário, mas ele resistia e
conservava o trajo correcto de um homem do bulevar, sem querer
trocar sequer o seu chapéu alto por um mole, de feltro.
Clotilde consolava-se dessa obstinação com a ideia: "Pensam
que sou uma criada que teve a sorte de apanhar um rapaz da
sociedade." Achava deliciosa essa comédia.
Entravam assim nos tascos populares e iam sentar-se ao fundo
das lojas cheias de fumo, em cadeiras coxas, em frente de
mesas de pinho. Uma nuvem de fumo acre, em que havia o cheiro
do peixe frito do jantar, enchia a casa. Homens de blusa
berravam enquanto bebiam copinhos. O criado, espantado,
encarava aquele par estranho, ao pôr na sua frente dois
cálices de ginjinha.
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Clotilde, a tremer, medrosa e encantada, punha-se a beber o
licor vermelho, aos golinhos, mirando à sua volta com olhos
inquietos e brilhantes. Cada cereja engolida dava-lhe a
sensação dum pecado cometido, cada gota de líquido ardente e
picante, ao descer-Lhe pela garganta, dava-lhe um prazer acre,
a alegria dum gozo baixo e proibido.
Depois, dizia a meia voz: "Vamo-nos!", e partiam. Saía
apressadamente, de cabeça baixa, com passo miúdo, um passo de
actriz que deixa a cena, por entre os fregueses encostados às
mesas, que a viam passar com ar desconfiado e pouco
satisfeito. Quando atravessava a porta, soltava um grande
suspiro como se tivesse escapado a um perigo terrível. Algumas
vezes, perguntava a Duroy, a tremer:
- Se me insultassem num destes lugares, que farias?
- Defender-te-ia, ora essa! - respondia-lhe, num tom de
valentão.
Clotilde apertava-lhe o braço com prazer e o vago desejo,
talvez, de ser insultada e defendida, de ver homens a
baterem-se por ela, até aqueles homens, com o seu bem-amado.
Essas excursões, que se repetiam duas ou três vezes por
semana, começavam a fatigar Duroy que, havia algum tempo,
tinha dificuldades em arranjar o meio luís necessário para
pagar o carro e as outras despesas.
Jorge vivia com grande aperto, mais ainda do que no tempo em
que era empregado dos Caminhos-de-Ferro do Norte, pois gastara
largamente durante os seus primeiros meses de jornalismo, na
esperança constante de ganhar importantes quantias no dia
seguinte, e esgotara todos os seus recursos e todos os meios
de procurar dinheiro.
Um processo muito simples era meter vales à caixa; mas
depressa se tornara impraticável, pois devia já ao jornal
quatro meses do seu ordenado e mais seiscentos francos por
conta da sua colaboração à linha. Devia, além disso, cem
francos a Forestier, trezentos a Jaime Rival, que tinha a
bolsa larga, e estava crivado de pequenas dívidas
inconfessáveis de vinte ou de cem soldos.
Saint-Potin, consultado sobre os métodos a empregar para
encontrar cem francos, não descobrira nenhum expediente,
embora fosse de espírito inventivo. Duroy exasperava-se com
essa miséria, mais sensível agora do que antes, pois tinha
mais necessidades. Uma cólera surda minava-o e mantinha uma
irritação incessante, que se manifestava a propósito de tudo,
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a todo o momento, pelos motivos mais fúteis.
Perguntava a si próprio que fizera para gastar uma média de
mil francos por mês, sem nenhum excesso nem nenhuma fantasia.
Verificava que se somasse um almoço a oito francos com um
jantar de doze, tomado em qualquer grande café do bulevar,
atingia, imediatamente, um luís, o que junto a uma dezena de
francos para as despesas miúdas, destas que se fazem sem saber
como, formava um total de trinta francos. Ora, trinta francos
por dia dão trezentos francos no fim do mês. Isto sem contar
com as despesas de vestuário, de calçado, de roupa branca, de
lavadeira, etc.
Portanto, no dia 14 de Dezembro, encontrava-se sem um soldo
na algibeira e sem uma ideia na mente quanto ao meio de obter
algum dinheiro. Fez como costumava fazer algumas vezes
outrora: não almoçou e passou a tarde no jornal a trabalhar,
preocupado e raivoso. Cerca das quatro horas, recebeu um
azulinho da sua amante a dizer-lhe: Queres que jantemos
juntos? Faremos depois uma escapada. Respondeu imediatamente:
Impossível jantar. Reflectiu, porém, que seria muito estúpido
se se privasse dos momentos agradáveis que ela poderia dar-Lhe
e acrescentou: Mas esperar-te-ei às nove horas, no nosso
ninho. Mandou um contínuo levar o bilhete, para economizar o
preço do telegrama e reflectiu acerca do que seria preciso
fazer para obter uma refeição.
Às sete horas, ainda não tinha descoberto nada. Uma fome
terrível roía-lhe o estômago. Então, recorreu a um estratagema
de desesperado. Deixou partir todos os seus colegas e quando
ficou sozinho tocou vivamente. O contínuo do patrão, que
ficava para tomar conta de tudo, apresentou-se.
Duroy, de pé, nervoso, procurava nos bolsos, e com voz
brusca proferiu:
- Olhe, Foucart, esqueci o dinheiro em casa e tenho de ir
jantar ao Luxemburgo. Pode emprestar-me cinquenta soldos para
pagar o carro?
O homem tirou três francos do bolso do colete e perguntou:
- O senhor Duroy não precisa mais?
- Não, não, isso basta. Muito obrigado.
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Duroy pegou nas moedas brancas, desceu a correr a escada e
foi comer a uma tasca a que recorria nos dias de miséria.
Às nove horas, esperava a amante sentado ao fogão da
salinha. Clotilde chegou, muito animada, muito alegre, corada
pelo ar frio da rua, e disse:
- Se quisesses, daríamos uma volta, primeiro, e
regressaríamos aqui às onze horas. Está uma noite tão bonita
para passear...
- Sair para quê? Está-se tão bem aqui - respondeu Jorge com
um tom aborrecido.
- Se soubesses... faz um luar maravilhoso. É um gosto
passear com uma noite destas - insistiu Clotilde, sem tirar o
chapéu.
- É possível, mas não tenho disposição nenhuma para passear.
Disse isso com um ar furioso. Ela percebeu, e, magoada,
perguntou:
- Que tens? Por que empregas esses modos? Apetece-me dar uma
volta e não percebo em que possa isso ser motivo para te
zangares.
Jorge levantou-se, exasperado:
- Isso não me faz zangar, mas é uma tolice. Aí está!
Clotilde era daquelas a quem a resistência contrariava e a
indelicadeza exasperava-a. Pronunciou com desdém e uma cólera
fria:
- Não estou habituada a que me falem assim. Irei, então,
sozinha. Adeus!
Jorge compreendeu que o caso era grave e correu vivamente
para ela, pegando-lhe nas mãos, beijou-lhas e balbuciou:
- Perdoa-me, minha querida, perdoa-me... Estou muito
nervoso, esta noite, muito irritável. Tenho tido
contrariedades, aborrecimentos, sabes, coisas do ofício.
Clotilde respondeu, mais branda, mas não calma:
- Isso não é nada comigo e não quero suportar as
consequências do teu mau humor.
Jorge abraçou-a e arrastou-a para o divã, dizendo:
- Escuta, queridinha, não queria de modo nenhum magoar-te;
não pensei no que dizia. - Forçou-a a sentar-se e, ajoelhando
diante dela: - Perdoas? Diz que me perdoas!
91
- Seja - murmurou Clotilde com voz fria - e não tornes a
fazer isso. - Levantou-se e acrescentou: - Agora, vamos dar
uma volta.
Jorge continuava de joelhos, envolvendo-lhe os quadris com
os braços, e balbuciou:
- Peço-te, fiquemos aqui. Suplico-te. Faz-me isto. Gostaria
tanto de te ter, só para mim, esta noite, ali junto do fogão.
Diz sim, suplico-te, diz sim.
- Não. Quero sair e não cederei aos teus caprichos -
replicou nítida, duramente, Clotilde.
- Suplico-te - insistiu Jorge. - Tenho uma razão muito
séria...
- Não - teimou ela de novo. - Se não queres sair comigo,
vou-me embora. Adeus!
Libertara-se com um repelão e alcançara a porta. Jorge
correu para ela e envolveu-a nos braços:
- Escuta, Clo, minha Clozinha, ouve; concede-me isto...
Ela fazia que não com a cabeça sem responder, evitando os
seus beijos e procurando libertar-se do seu braço, para se ir
embora, enquanto ele gaguejava:
- Clo... minha Clozinha... tenho... uma... razão.
Ela empertigou-se e, olhando-o de frente:
- Mentes... Que razão?
Jorge corou, sem saber que havia de dizer, e ela continuou,
indignada:
- Bem vês que estás a mentir... aldrabão!
Com um gesto raivoso e as lágrimas nos olhos, escapou-lhe.
Duroy segurou-a, mais uma vez, pelos ombros, e, desolado,
disposto a contar tudo, para evitar a ruptura, proferiu com um
tom desesperado:
- A razão é que não tenho um soldo... Aqui tens!
Clotilde deteve-se e, fitando-o no fundo dos olhos para
descobrir a verdade, perguntou:
- Que dizes?!
Jorge corara até à raiz dos cabelos e respondeu:
- Digo-te que não tenho um soldo. Compreendes? Não tenho
vinte, nem dez soldos, nada, nem sequer o preciso para pagar
um refresco num café onde entremos. Forças-me a confessar
estas vergonhas... Não me é, por isso, possível sair contigo
e, quando estivermos sentados a tomar qualquer coisa, dizer-te
tranquilamente que não tenho dinheiro para pagar...
92
Clotilde continuava a fitá-lo, bem de frente:
- Então... é verdade... isso?
Num segundo, Jorge voltou do avesso todas as algibeiras, as
das calças, do colete, do casaco, e murmurou:
- Vê!.. Estás contente... agora?
Bruscamente, abrindo os braços num impulso apaixonado, ela
saltou-lhe ao pescoço, dizendo com voz entrecortada:
- Oh! meu querido... se eu... soubesse!... Como... te
aconteceu isso?
Fê-lo sentar e sentou-se nos seus joelhos, envolvendo-lhe o
pescoço e, beijando-o por toda a parte, nos olhos, na boca, no
bigode, obrigou-o a contar a história da sua falta de
dinheiro.
Jorge inventou uma história enternecedora. Vira-se obrigado
a acudir a seu pai, que se encontrava em dificuldades. Não só
Lhe dera todas as economias como se endividara muito.
Concluiu:
- Tenho seis meses, pelo menos, de passar fome, pois esgotei
todos os meus recursos. Paciência! Há sempre momentos de crise
na vida. O dinheiro, apesar de tudo, não merece que nos
preocupemos com ele.
- Emprestar-to-ei, queres? - disse-Lhe Clotilde ao ouvido.
- És muito gentil, amiguinha - respondeu-lhe com dignidade
-, mas não falemos mais nisso, se me fazes o favor, pois
ofender-me-ias.
Clotilde não respondeu. Depois abraçou-o com força e
murmurou:
- Não podes calcular como gosto de ti.
Foi uma das suas melhores noites de amor.
Quando ia a sair, Clotilde disse a sorrir:
- Quando se está na tua situação, como deve ser divertido
encontrar dinheiro esquecido numa algibeira, uma moeda que
tivesse caído para o forro...
- Ah! Isso com certeza - respondeu Jorge com convicção.
Clotilde quis regressar a casa a pé, a pretexto de que o
luar era admirável e que se extasiava a contemplá-lo.
Era uma noite fria e serena do começo do Inverno. Os
transeuntes e os cavalos andavam depressa, estimulados pela
frescura do ar. Os saltos batiam com força nos passeios.
93
Ao deixá-lo, Clotilde perguntou:
- Queres que nos encontremos depois de amanhã?
- Claro que quero.
- À mesma hora?
- À mesma hora.
- Adeus, querido.
Abraçaram-se ternamente. Jorge regressou a casa, a passo
largo, pensando no que inventaria, no dia seguinte, para se
tirar de apertos. Ao abrir a porta do quarto, meteu a mão no
bolso do colete, para tirar fósforos, e ficou surpreendido por
encontrar uma moeda que rolava sob os seus dedos. Quando
acendeu a luz, examinou a moeda: era um luís de vinte francos!
Pensou que estava maluco. Mirou a moeda por todos os lados,
procurando adivinhar por que milagre aquele dinheiro se
encontrava ali. No entanto, não poderia ter caído do céu na
sua algibeira.
Subitamente, recordou-se, sentiu uma cólera indignada. A sua
amante falara, efectivamente, da moeda perdida num forro e que
se encontra nas horas de aperto. Fora ela quem lhe fizera essa
esmola. Que vergonha! Pensou exasperado: "Muito bem! Ela virá
depois de amanhã. Pois há-de passar um bonito quarto de hora!"
Meteu-se na cama, com o coração agitado de furor e
humilhação.
Acordou tarde. Sentiu fome. Procurou voltar a dormir, para
só se levantar às duas horas. Depois, pensou: "Isto não
adianta nada. Preciso acabar por descobrir dinheiro." Saiu, na
expectativa de que uma ideia lhe acudiria na rua.
Não lhe ocorreu nenhuma, mas, ao passar pelos restaurantes,
um desejo ardente de comer fazia-lhe crescer água na boca. Ao
meio-dia, como ainda não tinha descoberto nenhuma ideia
salvadora, decidiu, subitamente: "Ora, vou almoçar com o
dinheiro de Clotilde. Isso não me impedirá de lho devolver
amanhã."
Almoçou numa cervejaria por dois francos e cinquenta. Ao
entrar no jornal, entregou os três francos ao contínuo,
dizendo-Lhe:
- Aqui tem, Foucart, o que me emprestou ontem para o carro.
94 95
Trabalhou até às sete horas. Depois, foi jantar e gastou
mais três francos do dinheiro da amante. As duas canecas de
cerveja bebidas à noite elevaram a nove francos e trinta
cêntimos as suas despesas do dia.
Como não podia restabelecer o seu crédito nem criar novas
receitas em vinte e quatro horas, tirou ainda seis francos e
cinquenta no dia seguinte do pecúlio que devia devolver
naquela mesma tarde, de sorte que, ao chegar ao encontro
combinado, tinha apenas quatro francos e vinte no bolso.
Estava de muito mau humor e prometia a si próprio pôr a
claro a situação. Diria à sua amante: "Sabes, encontrei os
vinte francos que meteste no meu bolso no outro dia. Não tos
devolvo hoje porque a minha situação não se modificou e não
tive tempo de tratar de arranjar dinheiro; mas devolver-tos-ei
na primeira vez que nos encontrarmos."
Clotilde chegou, apressada, terna, cheia de receio. Como a
receberia ele? Beijou-o demoradamente, para evitar uma
explicação logo nos primeiros momentos. Por seu lado, Jorge
pensava: "Tenho tempo, daqui a pouco, de tratar da questão;
encontrarei motivo para isso."
Não encontrou motivo e não disse nada, intimidado com as
primeiras palavras a pronunciar acerca de assunto tão
delicado. Clotilde não falou em sair e foi encantadora sob
todos os aspectos. Separaram-se à meia-noite, depois de
marcarem outro encontro, só para quarta-feira da semana
seguinte, pois a senhora de Marelle tinha vários jantares
marcados nos outros dias.
No dia seguinte, ao ir pagar o seu almoço, quando procurava
as quatro moedas que Lhe restavam, encontrou cinco e uma delas
de ouro. No primeiro momento, pensou que lhe teriam dado, por
engano, vinte francos, de troco; depois, compreendeu o que se
passara e sentiu apertar-se-lhe o coração sob a humilhação
daquela esmola insistente. Como lamentava não ter dito nada!
Se tivesse falado com energia , aquilo não teria acontecido.
Durante quatro dias, fez diligências e esforços, tão
numerosos quanto inúteis, para arranjar cinco luíses, mas
comeu do segundo deixado por Clotilde.
A amante encontrou meio de lhe meter no bolso das calças
mais vinte francos quando de novo se encontraram, apesar de
Jorge lhe ter dito com ar furioso:
- Fazes o favor, não repitas a brincadeira das outras
noites, senão, zango-me!
Quando descobriu a moeda, praguejou: "Arre diabo!", mas
meteu-a no colete, para a ter à mão, pois encontrava-se sem um
cêntimo. Tranquilizava a sua consciência, pensando:
"Dar-lhe-ei tudo junto. Trata-se, em suma, de dinheiro
emprestado."
Finalmente, o caixa do jornal, em presença dos seus pedidos
desesperados, consentiu em adiantar-lhe cinco soldos por dia.
Dava à justa para comer, mas não para restituir os sessenta
francos a Clotilde.
Como a amante recaíra na sua mania das excursões nocturnas,
por todos os recantos suspeitos de Paris, Jorge acabou por não
se irritar demasiado quando encontrava, depois dos seus
passeios boémios, uma amarelinha numa das suas algibeiras e
até um dia dentro duma bota e outra vez na caixa do relógio.
Visto ela ter apetites que ele não podia satisfazer de
momento, não era natural que ela os pagasse do seu bolso, em
lugar de se privar deles? Tomava nota, aliás, de tudo quanto
recebia, para lho restituir um dia. Certa noite, Clotilde
disse:
- Acreditas que nunca fui às Folies-Bergère? Queres levar-me
lá?
Jorge hesitou com receio de ir encontrar Raquel; mas pensou:
"Ora, afinal não sou casado. Se a outra me vê, compreenderá a
situação e não me falará. Aliás, iremos para um camarote."
Outra razão também o decidiu. Agradava-lhe ter ocasião de
oferecer à senhora de Marelle um camarote no teatro, sem ter
nada a pagar. Era uma espécie de compensação.
Duroy deixou Clotilde no carro, para ir buscar o bilhete, a
fim de ela não ver que era de favor, e depois foi buscá-la e
entraram, cumprimentados pelos empregados.
Uma multidão enorme enchia o promenoir e tiveram uma grande
dificuldade para atravessar a massa compacta de homens e
raparigas galantes. Finalmente, atingiram o seu camarote e
ficaram encerrados entre a orquestra imóvel e o movimento da
galeria.
A senhora de Marelle nem olhava para o palco, unicamente
preocupada com as raparigas que circulavam por trás de si.
Voltava-se sem cessar para as ver, com um desejo de lhes
tocar, de lhes apalpar os corpetes, as faces, os cabelos, para
saber como eram feitos aqueles seres. Por fim disse:
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- Há uma morena gorda que está sempre a olhar para nós.
Julguei, há pouco, que nos ia falar. Já a viste?
- Não, deves estar enganada - retorquiu Jorge.
Havia, porém, muito tempo que Duroy a vira. Era Raquel, que
andava à volta deles, com cólera nos olhos e palavras
violentas nos lábios.
Duroy passara por ela pouco antes, ao atravessar a multidão;
e ela dissera-lhe baixinho: "Boa noite", com um piscar de
olhos que queria dizer "Compreendo". Jorge, porém, não
correspondera à gentileza com receio de ser visto pela amante
e passara friamente, de cabeça levantada, de boca desdenhosa.
A rapariga, que um ciúme inconsciente espicaçava, voltou a
passar por ele e pronunciou com voz mais forte: "Boa noite,
Jorge." Duroy voltou a não corresponder. Então a rapariga
teimara em ser reconhecida e cumprimentada e voltava sem
cessar a passar por trás do camarote, à espera do momento
favorável.
Logo que viu a senhora de Marelle a olhar para ela, Raquel
tocou com a ponta dum dedo o ombro de Duroy, dizendo:
- Boa noite. Estás bom?
Jorge não se voltou e ela continuou:
- Então? Ficaste surdo, desde quinta-feira?
Duroy não respondeu nada, afectando um ar de desprezo que o
impedia de se comprometer, com aquela atrevida, ainda que
fosse só com uma palavra. Raquel pôs-se a rir com um riso
raivoso e disse:
- Então, estás mudo? Talvez esta senhora te mordesse a
língua?
Jorge fez um gesto furioso e, com voz exasperada:
- Que está para aí a falar? Desapareça ou mando-a prender!
Então, com o olhar inflamado e o pescoço entumecido, a
rapariga clamou:
- Ah, ele é isso?! Grande indecente! Quando se dorme com uma
mulher, ao menos fala-se-lhe. Por estares com outra, não é
razão para não me reconheceres hoje. Se me tivesses, ao menos,
feito sinal quando passei por ti à bocado, deixava-te
sossegado; mas quiseste fazer de soberbo. Hás-de ganhar muito
com isso! Estás bem servido comigo! Ah! Não me dás, ao menos,
a boa noite quando te encontro...
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Raquel tinha corda para muito tempo, mas a senhora de
Marelle abrira a porta do camarote e partira através da
multidão, procurando desesperadamente a saída. Duroy lançou-se
atrás dela e esforçava-se por a alcançar. Então, Raquel, ao
vê-los fugir, rugiu triunfante:
- Prendam-na! Prendam-na! Roubou-me o meu amante.
Risos soaram no público. Dois sujeitos, por brincadeira,
agarraram pelos ombros a fugitiva e quiseram levá-la,
procurando beijá-la. Duroy, porém, que a conseguira alcançar,
libertara-a, violentamente, e levara-a para a rua.
Clotilde atirou-se para um fiacre vazio, parado em frente da
porta; Jorge saltou atrás dela. O cocheiro perguntou:
- Para onde, patrão?
- Para onde quiser! - respondeu Duroy.
O carro pôs-se em andamento com lentidão, aos solavancos na
calçada. Clotilde, numa espécie de crise nervosa, com as mãos
no rosto, parecia sufocada, sem fala. Duroy não sabia que
havia de dizer ou fazer. Por fim, como a visse a soluçar,
gaguejou:
- Escuta, Clo, minha Clozinha, deixa-me explicar-te... A
culpa não é minha... Conheci aquela mulher outrora... nos meus
primeiros tempos...
Clotilde descobriu, subitamente, o rosto, e, presa duma
raiva de mulher apaixonada e traída, uma raiva furiosa que lhe
devolvia a palavra, proferiu em frases rápidas, entrecortadas
de soluços:
- Ah!... miserável... miserável... que desgraçado és! É
possível?... Que vergonha!... Oh!... Meu Deus!... Que
vergonha!...
Depois, exaltando-se cada vez mais, à medida que as ideias
se esclareciam e os argumentos Lhe acudiam:
- Era com o meu dinheiro que Lhe pagavas, não é verdade?
Dava-te dinheiro... para essa tipa. Oh! Que miserável!
Pareceu procurar, durante alguns segundos, outra palavra
mais forte que não lhe ocorria, mas depois expectorou com o
movimento de quem escarra:
- Oh! Porco... porco... porco... Pagavas-Lhe com o meu
dinheiro... porco... porco!...
Não encontrava outra coisa para dizer e repetia:
- Porco... porco...
Subitamente, Clotilde debruçou-se para fora, e puxando pela
manga do cocheiro:
98
- Pare!
Depois, abriu a portinhola e saltou para a rua. Jorge quis
segui-la, mas ela gritou:
- Proíbo-te que desças! - com uma voz tão forte, que os
transeuntes a rodearam.
Duroy não se mexeu, com medo do escândalo. Então Clotilde
tirou a bolsa da algibeira e procurou o dinheiro à luz da
lanterna. Depois, pegou em dois francos e cinquenta e pô-los
na mão do cocheiro, dizendo em tom vibrante:
- Aqui tem... a sua corrida... Sou eu quem paga... Leve esse
safado à Rua Boursault, em Batignoles.
A troça apoderou-se do grupo que se formara. Um sujeito
disse:
- Bravo, pequena!
Um garoto, encostado às rodas do fiacre, meteu a cabeça pela
portinhola aberta e gritou com voz estridente:
- Boa noite, Bibi!
Depois, o carro pôs-se em andamento, perseguido por
gargalhadas.
VI
Jorge Duroy teve um despertar triste, no dia seguinte.
Vestiu-se lentamente, sentou-se à janela e pôs-se a reflectir.
Sentia todo o corpo moído, como se tivesse apanhado na
véspera uma grande sova.
Por fim, a necessidade de arranjar dinheiro espicaçou-o, e
dirigiu-se a casa de Forestier. O amigo recebeu-o no seu
gabinete, com os pés junto do fogão:
- Que te fez levantar tão cedo?
- Um caso muito grave. Tenho uma dívida de honra.
- De jogo?
Duroy hesitou e depois confessou:
- De jogo.
- Grande?
- Quinhentos francos!
Só devia duzentos e oitenta. Forestier, céptico, perguntou:
- A quem deves isso?
Jorge não pôde responder imediatamente e balbuciou:
... Mas a... a um sujeito de Carville.
- Ah! Onde mora ele?
- Rua... rua...
Forestier pôs-se a rir:
- Rua de procura o meio-dia às catorze horas, não é? Conheço
esse sujeito, meu caro. Se queres vinte francos, posso pô-los
à tua disposição; mas mais não.
Duroy aceitou a moeda de ouro. Depois, foi de porta em
porta, a casa de todos os seus conhecimentos e acabou por
reunir, à volta das cinco horas, oitenta francos. Como
precisava arranjar mais duzentos, tomou uma decisão heróica:
guardou tudo quanto tinha recolhido e murmurou: "Ora, não me
vou afligir por causa daquela tipa. Pagar-lhe-ei quando
puder."
Durante quinze dias viveu uma vida económica, regular e
casta, com o espírito cheio de resoluções enérgicas.
100 101
Depois, sentia-se dominado por um grande desejo de amor.
Parecia-lhe que se tinham passado muitos anos desde que
tivera uma mulher nos seus braços. Como o marujo que perde a
cabeça ao chegar a terra, todas as saias que encontrava o
perturbavam.
Então, voltou, uma noite, às Folies-Bergère, com a esperança
de lá encontrar Raquel. Viu-a mal entrou, pois a rapariga
nunca deixava o estabelecimento. Dirigiu-se-lhe, sorridente,
de mão estendida; mas ela mirou-o de alto a baixo:
- Que me quer?
Jorge tentou rir:
- Vamos, não te faças tola.
A rapariga voltou-lhe as costas, dizendo:
- Não dou confiança a garotos!
Procurara a mais grosseira injúria. Duroy sentiu o sangue
subir-lhe às faces, e voltou para casa sozinho.
Forestier, doente, fraco, sempre a tossir, fazia-lhe a vida
negra no jornal. Parecia rebuscar as tarefas mais aborrecidas
para lhas dar. Uma vez que Duroy não lhe levara uma informação
pedida, resmungou:
- Apre! Ainda és mais tapado do que eu supunha.
O outro teve vontade de o esbofetear, mas conteve-se e
foi-se embora a murmurar: "Hás-de pagar-me." Um pensamento
atravessou-Lhe o espírito e acrescentou: "Hei-de tos pregar,
meu velho!" Saiu a esfregar as mãos, satisfeito com esse
projecto.
Quis pôr em execução o seu plano no dia seguinte. Fez uma
visita de sondagem à senhora Forestier. Encontrou-a a ler um
livro, estendida ao comprido num canapé. Deu-Lhe a mão sem se
levantar, voltando apenas a cabeça para dizer:
- Viva, Bel-Ami.
- Por que me chama assim?
- Vi a senhora de Marelle a semana passada - respondeu ela a
sorrir -, e soube que era assim que lhe chamavam lá em casa.
Duroy ficou tranquilo ante aquele ar amável. Que podia,
aliás, recear?
- É tudo para ela! - continuou a senhora Forestier.
Quanto a mim, vem ver-me quando lhe parece, no dia trinta e
seis do mês ou qualquer coisa assim...
Jorge sentara-se junto dela e fitava-a com uma curiosidade
nova, uma curiosidade de amador, de coleccionador. Era uma
mulher encantadora, loira, dum loiro quente e doce, feito para
as carícias. Pensou: "É certamente melhor do que a outra." Não
duvidava nada de que lhe bastaria estender a mão para a
apanhar como quem colhe um fruto. Disse-lhe descaradamente:
- Não a vinha ver por ser melhor assim...
- Como? Melhor porquê? - perguntou sem compreender.
- Porquê? Não adivinha?
- Não, não sei.
- Porque estou enamorado de si... Oh! apenas um bocadinho...
Mas não o quero ficar perdidamente...
Não pareceu surpreendida, nem ofendida, nem lisonjeada.
Continuou a sorrir, com o mesmo sorriso indiferente, e
retorquiu com toda a tranquilidade:
- Oh! Pode vir, apesar de tudo. Ninguém se enamora de mim
por muito tempo.
Jorge ficou surpreendido, mais com o tom do que com as
palavras, e perguntou:
- Porquê?
- Porque é inútil e faço-o compreender imediatamente. Se me
tivesse contado o seu receio, tê-lo-ia tranquilizado e pedido
que, ao contrário, venha o mais possível.
- Acha então - exclamou Duroy, num tom patético - que
podemos dominar os nossos sentimentos?
- Meu caro amigo - disse, voltando-se para ele -, para mim,
um homem enamorado fica riscado do número dos vivos. Torna-se
idiota e não só idiota, mas perigoso. Com os que se enamoram
de mim, ou o pretendem, cesso todo o convívio íntimo,
primeiramente por me aborrecerem, depois por serem suspeitos
como um cão raivoso, que pode ter uma crise. Ponho-os,
portanto, de quarentena moral até lhes passar a doença. Não
esqueça isto. Sei muito bem que, para si, o amor é uma espécie
de apetite, enquanto para mim, ao contrário, é uma espécie
de... de... comunhão de almas, que não entra na religião dos
homens. Compreende-Lhe a letra e eu o espírito. Olhe bem para
mim.
Já não sorria. Tinha o rosto calmo e frio e disse,
acentuando bem cada palavra:
- Não serei nunca sua amante, ouça bem. É, portanto,
absolutamente inútil. Seria até mau, para si, persistir nesse
desejo... Agora que a operação está feita... quer que sejamos
amigos, bons amigos, mas então, verdadeiros amigos; sem ideias
preconcebidas?
102 103
Duroy compreendeu ser inútil qualquer tentativ a perante
aquela sentença sem apelo. Tomou logo uma resolução,
francamente encantado por poder contar com aquela aliada na
existência e estendeu-lhe as duas mãos:
- Disponha de mim, minha senhora, como lhe agradar.
Ela sentiu a sinceridade do pensamento no tom da voz e
deu-lhe as mãos. Jorge beijou uma a seguir à outra e disse ao
levantar a cabeça:
- Santo Deus! Se tivesse encontrado uma mulher assim com que
felicidade me casaria com ela!
Sensibilizada, por seu turno, acariciada por aquela frase
como o são as mulheres com os cumprimentos que lhes tocam o
coração, lançou-Lhe um destes olhares rápidos e reconhecidos
que fazem dos homens seus escravos. Depois, como Jorge não
sabia como continuar a conversa, ela proferiu, com voz doce,
tocando-Lhe no braço com um dedo:
- Vou começar imediatamente o meu papel de amiga. É pouco
hábil, meu caro... - hesitou e perguntou: - Posso falar
francamente?
- Sim.
- Completamente?
- Completamente.
- Pois bem, vá ver a senhora Walter, que o aprecia muito, e
procure agradar-lhe. Lá é que encontrará onde colocar os seus
cumprimentos, embora ela seja honesta, ouça-me bem:
perfeitamente honesta. Oh! Nada de esperanças de... aventuras,
também desse lado. Pode encontrar melhor do que isso, se
souber tornar-se bem-visto. Sei que tem ainda no jornal um
lugar inferior. Não receie, porém, nada; recebem todos os seus
redactores com a mesma benevolência. Vá lá, acredite em mim.
- Obrigado - respondeu Jorge, a sorrir. - É um anjo... um
anjo da guarda.
Depois, falaram doutras coisas. Jorge deixou-se estar muito
tempo, para provar que sentia prazer a seu lado. Ao deixá-la,
perguntou ainda:
- Está combinado; somos amigos?
- Está combinado.
Como sentira o efeito do seu cumprimento de pouco antes,
acrescentou, insistindo nele:
- Se ficar viúva, inscrevo-me.
Desapareceu a correr, para não lhe dar tempo de se zangar.
Uma visita à senhora Walter não agradava a Duroy, pois não
estava autorizado a apresentar-se em sua casa e não queria
cometer nenhum acto precipitado.
O patrão dava-Lhe provas de benevolência, apreciava os seus
serviços, incumbia-o, de preferência, das tarefas difíceis.
Por que não havia de se aproveitar desses favores para lhe
entrar em casa?
Um dia, portanto, levantou-se cedo e foi ao mercado, no
momento das vendas, e, por uns dez francos, comprou umas vinte
admiráveis pêras. Depois de as ter disposto num cestinho, para
fazer crer que vinham de longe, deixou-as no porteiro da
patroa, com o seu cartão, no qual escreveu: "JORGE DUROY Pede
respeitosamente à senhora Walter que aceite estes frutos que
recebeu hoje da Normandia."
No dia seguinte encontrou, no seu cacifo do correio, no
jornal, um bilhete da senhora Walter que agradecia muito
vivamente ao senhor Jorge Duroy e estava sempre em casa aos
sábados.
No sábado seguinte, foi lá.
Os Walters moravam, no Bulevar Malesherbes, numa casa dupla,
que Lhes pertencia, mas de que parte estava alugada, processo
económico de pessoas práticas. Um único porteiro, situado
entre os dois portões, abria a porta ao proprietário e ao
locatário, e dava a cada uma das entradas um grande ar de casa
rica e importante, com a sua bela farda, de calção e meias
brancas e a sua sobrecasaca solene de botões doirados e
liandas escarlates.
As salas de recepção eram no primeiro andar, precedidas duma
antecâmara toda atapetada e rodeada de reposteiros. Dois
criados dormitavam nas cadeiras. Um deles pegou no sobretudo
de Duroy e o outro na bengala, abriu a porta, passou à frente
do visitante uns passos e, depois, curvando-se, deixou-o
passar, gritando o seu nome para o aposento vazio.
104
Jorge, comprometido, olhava para todos os lados, quando
descobriu, num espelho, pessoas sentadas e que parecia estarem
muito afastadas. Enganou-se a princípio na direcção, por o
espelho Lhe ter desviado os olhos, depois atravessou ainda
duas salas vazias para chegar a uma espécie de gabinete,
forrado de seda azul com botões de ouro, onde quatro damas
conversavam a meia voz, em volta duma mesa redonda que tinha
algumas xícaras de chá.
A despeito do à-vontade que ganhara na sua existência
parisiense e sobretudo na sua profissão de repórter, que o
punha em constante contacto com personagens em evidência,
Duroy sentia-se um tanto intimidado pelo aparato da entrada e
a travessia das salas desertas.
- Minha senhora... permiti-me... - balbuciou ao procurar com
o olhar a dona da casa.
A senhora Walter estendeu-lhe a mão, que ele beijou,
inclinando-se, e disse:
- É muito amável em vir visitar-me.
Indicou-lhe uma poltrona e, quando ia sentar-se, Jorge quase
caiu por a julgar mais alta.
Tinham-se calado; mas uma das senhoras continuou a conversa.
Tratava-se do frio que se tornara tremendo, mas não era o
suficiente para deter a epidemia de febre tifóide, nem para
permitir a patinagem. Cada uma dava a sua opinião acerca da
entrada em cena do frio em Paris. Depois, exprimiram as suas
preferências pelas estações, com todos os argumentos banais
que formam camada nos espíritos como a poeira nos aposentos.
Um leve ruído da porta fez voltar a cabeça a Duroy, e
entreviu, pelo espelho, uma senhora gorda que entrava. Logo
que entrou no gabinete, uma das visitantes levantou-se,
apertou as mãos das outras senhoras e partiu. O rapaz
acompanhou com o olhar, através da sala, as costas do seu
vestido preto onde brilhavam contas de jade.
Quando a agitação dessa entrada e saída se acalmou, falaram,
espontaneamente e sem transição, da questão de Marrocos, da
guerra no Oriente e também das dificuldades da Inglaterra na
extremidade da África. As senhoras discutiam aquelas coisas de
cor, como se recitassem os papéis duma comédia mundana,
repetidos frequentemente.
Uma nova entrada se deu: era uma loirinha frisada, que
provocou a saída duma dama alta, seca, de meia-idade.
105
Falaram das probabilidades do senhor Linet em entrar para a
Academia. A recém-chegada afirmava, categoricamente, que seria
batido pelo senhor Cabanon-Lebas, o autor da bela adaptação
para o teatro do D. Quixote, em versos franceses.
- Sabem que será representado no Odéon, no próximo Inverno?
- Ah! Sim? Irei, com certeza, ver essa tentativa de tanto
interesse literário.
A senhora Walter falava, graciosamente, com calma e
indiferença, sem hesitar nunca acerca do que deveria dizer,
com opinião feita antecipadamente a respeito de tudo.
Reparou que começava a escurecer e tocou para trazerem luz,
sempre a ouvir a conversa, que corria como um regato de água
morna, sem deixar de pensar que se esquecera de passar pelo
gravador, por causa dos convites para o seu próximo jantar.
A senhora Walter, embora um tanto cheia, era ainda bonita e
encontrava-se na idade perigosa em que a derrocada está
próxima. Mantinha-se à custa de cuidados, de precauções, de
higiene e de cremes para a pele. Parecia prudente em tudo,
moderada, razoável, uma destas mulheres cujo espírito é bem
delineado como um jardim francês, onde circulamos sem
surpresas, mas onde se encontra sempre um certo encanto. Usava
da razão, uma razão fina, discreta e segura, que substituía
para ela a fantasia, a bondade, a afeição, e uma benevolência
tranquila, larga, para tudo e para todos.
Reparou que Duroy não dissera ainda nada; ninguém lhe
dirigira a palavra e parecia um tanto constrangido. Como as
suas visitas não tinham deixado de falar da Academia, pois o
tema retinha-as sempre por muito tempo, perguntou-lhe:
- O senhor Duroy deve estar melhor informado do que ninguém;
quais são as suas preferências?
- Nesse assunto, minha senhora - respondeu Jorge, sem
hesitar -, não me preocupo nunca com os méritos, sempre
contestáveis, dos candidatos, mas com a sua idade e a sua
saúde. Não quero saber dos seus títulos, mas da sua doença.
Não procurarei averiguar se fizeram uma tradução rimada de
Lope de Vega, mas terei o cuidado de me informar do estado do
seu fígado, do seu coração, dos seus rins e da sua medula
espinal. Para mim, uma boa hipertrofia, uma boa albuminúria,
106
e sobretudo um bom começo de ataxia locomotora, valem cem
vezes mais do que quarenta volumes de digressões sobre a ideia
da pátria na poesia oriental.
Um silêncio de surpresa seguiu-se a essa opinião. A senhora
Walter, sorridente, perguntou:
- E porquê?
- Porque - respondeu Jorge - só procuro o prazer que
qualquer coisa pode proporcionar às mulheres. Ora, a Academia,
minha senhora, só tem interesse para as senhoras quando um
académico morre. Quantos mais morrem, mais se sentem felizes.
Para morrerem depressa, porém, é preciso elegê-los velhos e
doentes.
Como ficassem um tanto surpreendidas, continuou:
- Sou, aliás, como as senhoras e gosto muito de ler, nos
ecos parisienses, a morte dum académico. Pergunto,
imediatamente: Quem o irá substituir? Faço então uma lista de
nomes. É um jogo, uma brincadeira agradável que se usa em
todas as salas parisienses, por cada falecimento dum imortal:
O jogo da morte e dos quarenta anciãos.
As senhoras, um tanto desorientadas ainda, começavam,
todavia, a sorrir, tão justa lhes parecia a observação. Jorge
concluiu, levantando-se:
- São as senhoras que os elegem e nomeiam-nos para os ver
morrer. Escolham-nos, portanto, velhos, muito velhos, o mais
velhos possível, e não se preocupem com o resto.
Depois, retirou-se com muita gentileza. Mal tinha saído, uma
das senhoras disse:
- É engraçado este rapaz. Quem é?
- Um dos nossos redactores - respondeu a senhora Walter -,
que por enquanto só faz coisas secundárias no jornal, mas não
duvido de que triunfará depressa.
Duroy desceu o Bulevar Malesherbes alegremente, a passos
largos, contente com o seu dito e murmurando: "Boa partida..."
Nessa noite, reconciliou-se com Raquel.
A semana seguinte deu-lhe dois acontecimentos: foi nomeado
chefe da secção dos ecos e convidado a jantar em casa dos
Walters. Viu imediatamente a ligação entre os dois casos.
A Vie Française era, antes de mais nada, um jornal
financeiro, cujo director, homem de dinheiro, se servia da
imprensa e do lugar de deputado, como de degraus.
107
Fizera da bonomia uma arma e manobrara sempre, sob uma máscara
sorridente de boa pessoa, mas só empregava nas suas tarefas,
fossem elas quais fossem, pessoas que tinha tacteado,
farejado, experimentado e que sabia serem astutas, audaciosas
e maleáveis. Duroy, nomeado chefe dos ecos, parecia-lhe um
rapaz precioso.
Essas funções tinham sido desempenhadas, até então, pelo
secretário da redacção, o senhor Boisrenard, um velho
jornalista correcto, pontual, meticuloso como um funcionário.
Havia trinta anos que era secretário da redacção em onze
jornais diferentes, sem modificar nunca a sua maneira de ver e
de proceder. Passava duma redacção para outra como se muda de
restaurante, mal notando que a cozinha não tinha o mesmo
gosto. As opiniões políticas e religiosas eram-lhe estranhas.
Era devotado ao jornal, fosse ele qual fosse, zeloso no
trabalho e precioso pela sua experiência. Trabalhava como um
cego que não vê nada, como um surdo que não ouve nada, como um
mudo que nunca fala de nada. Tinha, no entanto, uma grande
lealdade profissional e não se prestaria a uma coisa que não
julgasse honesta, leal e correcta no aspecto especial da sua
profissão.
O senhor Walter, que, no entanto, o apreciava, desejava ter
outro homem para lhe confiar os ecos, que são, segundo dizia,
a medula do jornal. Com eles se lançam as notícias, se fazem
correr os boatos, se influencia o público e a Bolsa. Entre
duas reuniões mundanas, é preciso saber fazer deslizar, como
quem não quer a coisa, a notícia importante, mais insinuada do
que afirmada. É preciso, com subentendidos, deixar adivinhar o
que se pretende, desmentir o que o boato diz, ou afirmar de
tal maneira que ninguém acredite no facto anunciado. É preciso
que, nesses ecos, cada um encontre, todos os dias, uma linha,
ao menos, capaz de Lhe interessar, para todos os lerem. É
preciso pensar em tudo e em todos para interessar a todas as
classes e a todas as profissões, a Paris e à província, à
Universidade, à Magistratura e às cortesãs.
O homem que os dirige e comanda o batalhão dos repórteres
deve estar sempre atento, sempre em guarda, desconfiado,
previdente, habilidoso, activo e maleável, armado de todas as
astúcias e dotado dum faro infalível para descobrir à primeira
vista a notícia falsa, para julgar o que convém dizer e o que
se deve calar, para adivinhar o que fará efeito no público.
108
Deve ainda saber apresentar tudo de tal maneira que o efeito
seja multiplicado.
Ao senhor Boisrenard, que tinha a seu favor uma longa
prática, faltava a elegância e o ar senhoril; faltava-Lhe
sobretudo a velhacaria nativa que era precisa para pressentir
todos os dias as ideias secretas do patrão.
Duroy devia desempenhar o lugar na perfeição e completava
admiravelmente a redacção daquela folha que navegava nos
fundos do Estado e entre os baixios da política, segundo a
expressão de Norberto de Varenne.
Os inspiradores e verdadeiros redactores da Vie Française
eram uma meia dúzia de deputados interessados em todas as
especulações que lançava ou defendia o director. Chamavam-lhes
na Câmara o bando de Walter e invejavam-nos porque deviam
ganhar dinheiro com ele e graças a ele.
Forestier, redactor político, era o testa-de-ferro desses
homens de negócios, o executor das intenções sugeridas por
eles. Sopravam-lhe ao ouvido os artigos de fundo que ia
escrever para casa, a fim de estar tranquilo, como dizia.
Para dar, contudo, ao jornal um ar literário e parisiense,
tinham-lhe introduzido dois escritores, célebres em géneros
diferentes: Jaime Rival, cronista da actualidade, e Norberto
de Varenne, poeta e cronista fantasista, ou antes contista,
que seguia a nova escola.
Depois, tinham procurado, por baixo preço, críticos de arte,
de pintura, de música, de teatro, um cronista dos tribunais e
outros de assuntos hípicos, no meio da grande tribo mercenária
de escritores para todo o serviço. Duas mulheres da sociedade,
Domino Rose e Patte Blanche, enviavam notícias mundanas,
tratavam dos assuntos de moda, da vida elegante, das boas
maneiras, da etiqueta, e praticavam indiscrições acerca das
grandes damas. A Vie Française navegava nos fundos e entre os
baixios,, manobrada por todas essas mãos diferentes.
Duroy estava a saborear a alegria da sua nomeação para as
funções de chefe dos ecos, quando recebeu um bilhete gravado
em que leu: O senhor e a senhora Walter pedem ao senhor Jorge
Duroy que lhes dê o prazer de jantar em sua casa na
quinta-feira, 20 de Janeiro.
Esse novo favor, acrescido ao outro, encheu-o duma tal
alegria que beijou o convite, como o teria feito a uma carta
de amor.
109
Depois, foi procurar o caixa, para tratar da importante
questão dos fundos - Um chefe dos ecos tem geralmente o seu
orçamento, para pagar aos seus repórteres e as notícias, boas
ou medíocres, levadas por uns e por outros, como os hortelãos
levam a sua fruta e legumes às vendedeiras de hortaliça. Mil e
duzentos francos por mês eram atribuídos ao chefe dos ecos,
soma de que Duroy se propunha guardar uma grande parte para
si.
O caixa, ante o seu pedido insistente, acabara por lhe dar
por conta quatrocentos francos. Jorge, no primeiro momento,
teve a intenção de mandar os duzentos e oitenta francos que
devia à senhora de Marelle, mas reflectiu logo que só ficaria
com cento e vinte francos, quantia insuficiente para
reorganizar, de forma razoável, o seu novo serviço. Adiou,
portanto, a restituição para época mais afastada.
Durante dois dias, ocupou-se da sua instalação, pois herdava
uma mesa privativa e um cacifo para cartas, na vasta sala de
redacção comum. Ocupava uma extremidade dessa sala, enquanto a
outra era ocupada por Boisrenard, cuja cabeça, dum negro de
ébano a despeito da sua idade, estava sempre inclinada para
uma folha de papel.
A comprida mesa do centro pertencia aos redactores volantes.
Geralmente, servia também de banco para se sentarem, quer com
as pernas pendentes das bordas quer, à turca, ao centro. Eram
por vezes cinco ou seis acocorados em cima da mesa, a jogar ao
bilboqué com perseverança, numa pose de bonecos chineses.
Duroy acabara por tomar gosto por esse divertimento e
começava a tornar-se forte nele, sob a direcção e graças aos
conselhos de Saint-Potin. Forestier, cada vez mais adoentado,
confiara-lhe o seu bonito bilboqué de madeira das ilhas, o
último adquirido e que achava um tanto pesado. Duroy manejava,
com braço vigoroso, a grande bola negra na extremidade da
corda, a contar baixinho: Um... dois... três.-. quatro...
cinco... seis...
Conseguiu ir até vinte pontos, justamente no dia em que
devia jantar em casa da senhora Walter. "Belo dia", pensou,
"estou com sorte!" Sem dúvida, a habilidade no bilboqué
outorgava uma certa categoria, na redacção da Vie FranÇaise.
Deixou o jornal cedo, para ter tempo de se vestir, e subia a
Rua de Londres quando viu a saltitar na sua frente alguém
110
que tinha o aspecto da senhora de Marelle. Sentiu um calor
subir-Lhe ao rosto e o coração pôs-se a bater
desordenadamente. Atravessou a rua, para a ver de perfil. A
mulher parou para atravessar também. Jorge enganara-se;
respirou fundo.
Frequentemente, perguntava a si próprio como procederia se a
encontrasse frente a frente: cumprimentá-la-ia ou faria que
não a via? "Faço que não a vejo", pensou.
Estava frio e as valetas geladas conservavam montes de neve.
Os passeios mostravam-se secos e cinzentos sob a claridade do
gás.
Quando Jorge entrou em casa, pensou: "É preciso que mude de
quarto. Isto já não me serve." Sentia-se nervoso e alegre,
capaz de andar por cima dos telhados, e repetia em voz alta,
indo da cama para a janela: "É a sorte que chega! É a fortuna!
É preciso escrever a meu pai."
De tempos a tempos, escrevia a seu pai e a carta levava
sempre uma viva alegria à venda normanda, à beira da estrada,
no cimo da encosta donde se vê Ruão e o largo vale do Sena.
De tempos a tempos, também, recebia um sobrescrito azul, com
o endereço traçado em grandes letras tremidas, e lia,
infalivelmente, as mesmas linhas no começo da carta paterna:
"Meu querido filho, lanço a mão à pena para te dizer que vamos
bem, tua mãe e eu. Não há grande coisa de novo cá na terra.
Sempre te direi..."
Jorge conservava, no fundo, certo interesse pelas coisas da
aldeia, pelas notícias dos vizinhos e pelo estado das terras e
das colheitas. Repetia, ao dar o nó da gravata diante do seu
espelhinho: "Tenho de escrever a meu pai, amanhã. Se me visse,
esta noite, na casa para onde vou, ficava espantado, o
velhote. Comerei daqui a pouco um jantar como ele nunca comeu
na sua vida."
Reviu, subitamente, a cozinha fumosa da casa dos pais,
detrás da sala da venda, com as caçarolas a lançar clarões
amarelos ao longo das paredes, o gato, na lareira, de nariz
nas cinzas, numa atitude de quimera acocorada, a mesa de pau
envernizada pelo tempo e pelos líquidos derramados e uma
sopeira a fumegar ao centro. Revia, também, o homem e a
mulher, o pai e a mãe, os dois camponeses de gestos lentos, a
comer a sopa às pequenas colheradas. Conhecia as mínimas rugas
dos seus velhos rostos, os menores movimentos dos seus braços
e cabeças.
111
Sabia até o que diziam, todas as noites, ao cearem em frente
um do outro. Pensou ainda: "É preciso que me resolva a ir
vê-los." Como acabara de se vestir, soprou a luz e saiu.
Ao longo do bulevar exterior, algumas raparigas
abordaram-no. Respondeu-lhes, sacudindo-as do braço: "Vá maçar
outro!" com um desdém violento, como se o tivessem insultado,
feito pouco dele... Por quem o tomavam? Aquelas cabras não
sabiam distinguir os homens? A sua casaca, vestida para ir
jantar a casa de gente muito rica, conhecida, importante,
dava-lhe a sensação de ter uma personalidade nova, a
consciência de se ter tornado um outro homem, um homem da
sociedade, da alta roda.
Duroy entrou com desenvoltura na antecâmara iluminada por
dois altos tocheiros de bronze e entregou, com um gesto
natural, a bengala e o sobretudo aos dois criados que se
aproximaram.
Todas as salas estavam iluminadas. A senhora Walter recebia
os convidados na segunda, a maior. Acolheu-o com um sorriso
encantador e Jorge apertou as mãos de dois homens que tinham
chegado pouco antes, os senhores Firmin e Laroche-Mathieu,
deputados e colaboradores anónimos da Vie Française.
Laroche-Mathieu tinha no jornal uma autoridade especial, que
provinha da sua grande influência na Câmara. Ninguém duvidava
de o ver, um dia, ministro.
Depois chegaram os Forestiers; a mulher, de vestido
cor-de-rosa, estava encantadora. Jorge ficou surpreendido por
a ver tão íntima dos dois representantes do país. Viu-a
conversar baixinho, durante mais de cinco minutos, ao canto do
fogão, com Laroche-Mathieu. Carlos parecia extenuado.
Emagrecera muito, havia um mês, e tossia constantemente,
repetindo: "Devo decidir-me a ir acabar o Inverno no Sul."
Norberto de Varenne e Jaime Rival apareceram juntos.
Abriu-se uma porta ao fundo do salão e o senhor Walter entrou,
ladeado por duas jovens, uma de dezasseis, outra de dezoito
anos, uma feia e outra bonita.
Duroy sabia que o patrão era pai de família, mas ficou
surpreendido. Nunca tinha pensado nas filhas do seu director,
a não ser como pensamos nos países longínquos que nunca
veremos. Além disso, imaginava-as pequeninas e via-as
mulheres.
112
Sentiu uma certa perturbação moral ante essa mudança de
cenário.
As jovens estenderam-lhe as mãos, uma após a outra, feitas
as apresentações, e foram sentar-se a uma mesinha que lhes
estava certamente reservada, onde se puseram a mexer num monte
de novelos de seda numa cestinha.
Esperava-se ainda alguém e estavam todos silenciosos nessa
espécie de constrangimento que precede os jantares de pessoas
que não se encontram na mesma atmosfera de espírito, após as
diferentes ocupações do seu dia. Duroy ergueu os olhos para as
paredes, por não ter mais que fazer. Walter disse-lhe de
longe, com o ar visível de chamar a atenção para eles:
- Está a ver os meus quadros? - o meus ressoou. - Vou
mostrar-lhos.
Pegou num candeeiro para poderem ser observados todos os
pormenores e disse:
- Aqui são as paisagens.
Ao centro da parede via-se uma grande tela de Guillemet, uma
paisagem da Normandia sob um céu de tempestade. Por baixo, era
um bosque de Harpignies, depois uma planície da Argélia, por
Guillaumet, com um camelo no honzonte, um grande camelo, com
umas pernas muito altas, semeLhante a um estranho monumento.
O senhor Walter passou para a parede próxima e anunciou, num
tom grave, como um mestre-de-cerimónias:
- A grande pintura.
Eram quatro telas: Visite d'hôpital, por Gervex;
Moisonneuse, por Bastien-Lepage; Veuve, por Bouguereau, e
Exécution, de Jean-Paul Laurens. Esta obra representava um
padre vendeano, fuzilado contra a parede da sua igreja por um
destacamento dos Azuis.
Um sorriso iluminou o rosto grave do patrão ao indicar a
parede seguinte:
- Aqui, os fantasistas.
Via-se, primeiramente, um quadrinho de Jean Béraud,
intitulado Le haut et le bas. Era uma bonita parisiense a
subir a escada para a imperial dum ónibus em andamento. A
cabeça aparecia ao nível da imperial, e os homens, sentados
nos bancos, descobriam, com uma satisfação ávida, o rosto
jovem que se aproximava deles, enquanto os que estavam de pé
na plataforma, em baixo, observavam as pernas da jovem,
113
com expressões diferentes de despeito e desejo.
O senhor Walter erguia o candeeiro bastante alto e repetia,
a rir, com um sorriso maroto:
- Hem? Não é engraçado? Não é engraçado?
Depois, iluminou Un sauvage, por Lambert. No meio duma mesa
posta, um gato pequeno, sentado, examinava, com surpresa e
perplexidade, uma mosca que se afogava num copo de água. Tinha
uma pata levantada, pronto para apanhar o insecto com uma
pancada rápida. Não estava, contudo, decidido. Hesitava. Que
faria?
A seguir o patrão mostrou um quadro de Detaille, La leçon,
que representava um soldado numa caserna, a ensinar um
cãozinho a tocar tambor, e comentou:
- Isto é que tem graça!
Duroy ria, com um riso aprovador, e extasiava-se:
- Como é encantador... como é encantador, encan...
Interrompeu-se ao ouvir detrás de si a voz da senhora de
Marelle, a qual acabava de entrar.
O patrão continuava a iluminar os quadros e a explicá-los.
Mostrou uma aguarela de Maurice Leloir, L'obstacle. Era uma
cadeirinha parada por a rua estar tomada pela briga de dois
homens do povo, dois valentões, que lutavam como Hércules.
Via-se sair pela portinhola da cadeirinha um gracioso rosto
feminino que olhava... olhava... sem impaciência, sem medo e
com uma certa admiração o combate dos dois brutos:
O senhor Walter dizia:
- Tenho outros nas salas seguintes, mas são de gente menos
conhecida, menos classificada. Aqui é a minha Sala
Quadrada.(1) Compro alguns novos, neste momento, dos muito
novos, e ponho-os de reserva nos aposentos interiores, à
espera da altura em que uns ou outros serão célebres, -
depois, baixou a voz para dizer: - É a ocasião de comprar
quadros. Os pintores rebentam de fome. Não têm um soldo, não
têm um soldo...
Duroy, no entanto, não via nada, ouvia sem compreender. A
senhora de Marelle estava ali, por trás dele. Que devia fazer?
*1. Alusão ao Salon Carré , do Louvre, onde foram feitas as
primeiras exposições e, mais tarde, se reuniram as
obras-primas.
114
Se a cumprimentava, não iria ela voltar-lhe as costas ou
dirigir-lhe qualquer insolência? Se não se aproximasse dela,
que pensariam? Disse para si: "Procurarei ganhar tempo."
Estava de tal modo ansioso que pensou, por um momento, em
simular uma indisposição súbita que lhe permitisse ir-se
embora.
A explicação dos quadros acabara. O patrão foi deixar o seu
candeeiro e cumprimentar a última pessoa chegada, enquanto
Duroy recomeçava, sozinho, o exame dos quadros como se não se
cansasse de os admirar. Sentia-se perturbado. Que devia fazer?
Ouvia vozes, percebia as conversas. A senhora Forestier
chamou-o:
- Ouça, senhor Duroy...
Correu para ela. Era para lhe recomendar uma amiga que dava
uma festa e gostaria duma citação nos Ecos da Vie Française.
Jorge balbuciou:
- Mas, certamente, minha senhora, certamente...
De súbito, julgou enlouquecer; ouvira dizer em voz alta:
- Viva! Bel-Ami! Então não me reconhece?
Jorge deu meia volta com rapidez. Clotilde estava na sua
frente a sorrir, com os olhos cheios de alegria e afecto e
estendia-lhe a mão. Pegou nela a tremer, receoso ainda de
qualquer astúcia ou duma perfídia. Clotilde acrescentou com
serenidade:
- Que é feito de si? Ninguém o vê.
Duroy gaguejou, sem conseguir recobrar o seu sangue-frio:
- Tenho tido muito que fazer, minha senhora, muito que
fazer. O senhor Walter confiou-me um novo serviço que me dá um
enorme trabalho.
Clotilde respondeu, olhando para ele sempre bem de frente,
sem que Jorge pudesse descobrir no seu olhar outra coisa a não
ser benevolência:
- Bem sei; mas não é razão para se esquecer dos seus amigos.
Foram separados por uma dama gorda que entrara, muito
decotada, de braços e faces coradas, vestida e penteada com
pretensão, a andar tão pesadamente que se sentia, ao vê-la
caminhar, o peso e a gordura das suas coxas. Como a tratavam
com as maiores atenções, Duroy perguntou à senhora Forestier:
115
- Quem é esta senhora?
- A viscondessa de Percemur, a que assina Patte Blanche.
Jorge ficou estupefacto e reprimiu uma grande vontade de
rir:
- Patte Blanche ! Patte Blanche! E eu que a supunha uma
jovem como a senhora! É isto a Patte Blanche? Essa é muito
boa! Muito boa!
Um criado apareceu à porta e anunciou:
- O jantar está na mesa.
O jantar foi banal e alegre, um destes jantares em que se
fala de tudo sem dizer nada. Duroy ficou entre a filha mais
velha do patrão, a feia Rosa, e a senhora de Marelle. Esta
última vizinhança inquietava-o um tanto, embora ela mostrasse
um ar muito à-vontade e conversasse com o seu espírito
habitual. Jorge sentiu-se perturbado a princípio,
constrangido, hesitante, como um músico que perdeu o tom. Aos
poucos, a confiança em si voltou e os seus olhos,
encontrando-se sem cessar, enlaçavam os seus olhares duma
maneira íntima, quase sensual, como outrora.
Subitamente, Jorge julgou sentir, por baixo da mesa,
qualquer coisa tocar-lhe no pé. Avançou devagarinho a perna e
encontrou a da sua vizinha, que não recuou. Não estavam a
falar um com o outro nesse momento, voltados ambos para os
seus outros vizinhos. Duroy, com o coração a bater com força,
empurrou um tanto mais o joelho. Uma leve pressão Lhe
correspondeu. Então, compreendeu que os seus amores
recomeçavam. Que disseram depois? Pouca coisa; mas os seus
lábios tremiam sempre que se fitavam.
O rapaz, no entanto, para ser amável com a filha do patrão,
dirigia-lhe uma frase de tempos a tempos. A jovem respondia,
como faria sua mãe, sem hesitar nunca no que devia dizer.
À direita do senhor Walter, a viscondessa de Percemur tomava
ares de princesa. Duroy, que se divertia a olhar para ela,
perguntou baixinho à senhora de Marelle:
- Conhece a outra, a que assina Domino Rose?
- Sim, perfeitamente: a baronesa de Livar!
- É da mesma marca?
- Não; mas é também cómica: alta, seca, sessenta anos,
caracóis postiços, dentes à inglesa, mentalidade do tempo da
Restauração e vestidos da mesma época.
116
- Onde foram desencantar estes fenómenos das letras?
- Os restos da nobreza são sempre recolhidos pelos burgueses
que triunfam.
- Não há outra razão?
- Nenhuma outra.
Começara uma discussão política entre o patrão, os dois
deputados, Norberto de Varenne e Jaime Rival, que durou até à
sobremesa.
Quando voltaram para a sala, Duroy aproximou-se de novo da
senhora de Marelle e, fitando-a nos olhos, perguntou:
- Quer que a acompanhe a casa esta noite?
- Não.
- Porquê?
- Porque o senhor Laroche-Mathieu, que é meu vizinho,
acompanha-me até à minha porta, sempre que janto aqui.
- Quando a voltarei a ver?
- Venha almoçar comigo amanhã.
Separaram-se sem dizer mais nada.
Duroy não se demorou muito mais, pois achava monótono o
serão. Quando descia a escada, alcançou Norberto de Varenne,
que acabava também de partir. O velho poeta meteu-lhe o braço.
Sem temer nenhuma rivalidade no jornal, por a colaboração de
ambos ser completamente diferente, testemunhava ao rapaz uma
benevolência de avô. Disse-lhe:
- Muito bem, vai fazer-me companhia num bocado de caminho.
- Com muito prazer, caro mestre - retorquiu Duroy.
Começaram a andar devagar, descendo o Bulevar Malesherbes.
Paris estava quase deserta naquela noite, uma noite fria, uma
dessas noites aparentemente maiores do que as outras, em que
as estrelas estão mais altas e o ar parece trazer nos seus
sopros gelados qualquer coisa vinda de mais longe do que dos
astros.
Os dois homens não disseram nada nos primeiros momentos. Por
fim, Duroy, para dizer qualquer coisa, proferiu:
- Aquele senhor Laroche-Mathieu parece ser muito inteligente
e muito instruído.
O velho poeta murmurou:
- Acha?
O rapaz, surpreendido, hesitou:
117
- Parece... Passa, aliás, por ser um dos homens mais
competentes da Câmara...
- É possível. No país dos cegos quem tem um olho é rei.
Todas essas pessoas, acredite, são uns medíocres, porque têm o
espírito entre dois antolhos: o dinheiro e a política. São uns
pedantes ordinários, meu caro, com quem é impossível falar de
nada, de nada daquilo de que gostamos. A sua inteligência é de
fundo de vasa, ou antes, de fundo de depósito de imundícies,
como o Sena em Asnières. Ah! É muito difícil encontrar um
homem que tenha espaço no pensamento, que nos dê a sensação
dessas grandes rajadas do largo que respiramos à beira-mar!
Conheci alguns, mas já morreram.
Norberto de Varenne falava com voz clara, mas contida, que
ressoaria no silêncio da noite se a deixasse escapar. Parecia
excitado e triste, duma dessas tristezas que caem às vezes nas
almas e as tornam vibrantes como a terra sob a geada.
- Que importa, aliás - continuou Norberto de Varenne -, um
tanto mais ou um tanto menos de génio, se tudo tem de acabar!
Calou-se. Duroy, que se sentia satisfeito nessa noite, disse
a sorrir:
- Vê tudo negro, hoje, caro mestre.
- Tenho visto sempre assim, meu filho - retorquiu o poeta -
e verá da mesma forma como vejo, dentro de alguns anos. A vida
é uma encosta... Enquanto subimos, olhamos para o cimo e
sentimo-nos felizes; mas quando chegamos lá acima, descobrimos
de repente a descida e o fim, que é a morte. A coisa vai
lentamente quando subimos, mas depressa quando descemos. Na
sua idade, somos alegres, esperamos tantas coisas, que, aliás,
não chegam nunca. Na minha idade, já não se espera nada a não
ser a morte.
- Apre! - proferiu Duroy a rir. - Causa calafrios!
- Não - continuou Norberto de Varenne -, não compreende
hoje, mas há-de lembrar-se, mais tarde, do que lhe digo neste
momento. Chega um dia, e às vezes chega cedo para muitos, em
que se deixa de rir, pois por trás de tudo é a morte que
vemos.
Oh! Não compreende sequer esta palavra: morte. Na sua idade,
não significa nada. Na minha, é terrível. Sim, compreendemo-lo
de repente, não sabemos porquê nem a propósito de quê.
118
Então, tudo muda de aspecto na vida. Por mim, há quinze anos,
sinto-a minar-me como se trouxesse cá dentro um animal a
roer-me. Dei por isso, aos poucos, mês a mês, hora a hora, a
abalar-me assim como uma casa que vai abater. Desfigurou-me
tão completamente que já não me reconheço. Já não tenho nada
de mim, do homem radiante, fresco e forte, que era aos trinta
anos. Vi tornar-se branco o meu cabelo preto, e com que
lentidão, sábia e perversa! Tirou-me a pele lisa, os músculos,
os dentes, todo o meu corpo de então, só me deixando uma alma
desesperada que em breve levará também.
Sim, ela vai realizando, a velhaca, docemente,
terrivelmente, a longa destruição do meu ser, segundo a
segundo. Agora, sinto-me morrer em tudo que faço. Cada passo
me aproxima dela, cada movimento, cada respiração apressa a
sua odiosa tarefa. Respirar, dormir, beber, trabalhar, sonhar,
tudo o que fazemos é morrer. Viver, em suma, é morrer. Ah!
Há-de vir a saber isto! Se reflectir somente um quarto de
hora, vê-la-á.
Que espera? Amor? Ainda mais alguns beijos e ficará
impotente. E que mais? Dinheiro? Para quê? Para pagar às
mulheres? Que bonita coisa! Para comer muito, ficar obeso e
gritar noites inteiras com as mordeduras da gota? Que mais? A
glória? De que serve, quando já não podemos colhê-la sob a
forma de amor? Que mais ainda? Sempre, no fim de tudo, a mone!
Por mim, agora, vejo-a de tão peno, que me dá às vezes
vontade de estender os braços para a repelir. Cobre a terra e
enche o espaço. Descubro-a por toda a parte. Os insectos
esmagados no caminho, as folhas que caem, o cabelo branco
descoberto na barba dum amigo, dilaceram-me o coração e
gritam-me: "Aí está ela!" Estraga-me tudo que faço, tudo que
vejo, o que como, o que bebo, tudo de que gosto, o luar, o
alvorecer, o mar largo, os belos rios e o ar da tarde, no
Verão, tão doce de respirar!
O poeta caminhava devagar, um tanto fatigado, a sonhar alto,
esquecido até de quem o escutava. Continuou:
- Ninguém volta mais. Nunca. Guardam as formas das estátuas,
os cunhos de que se fazem os objectos iguais; mas o meu corpo,
o meu rosto, os meus pensamentos, os meus desejos, não
voltarão mais. No entanto, nascerão milhões, biliões de seres,
119
que terão, no espaço de alguns centímetros quadrados, nariz,
olhos, testa, faces, boca como eu, e também uma alma como eu,
sem que jamais eu volte, sem que, jamais, qualquer coisa de
mim que seja reconhecível reapareça nessas criaturas
inumeráveis e diferentes, indefinidamente diferentes, embora
quase semelhantes.
A que nos agarrarmos? A quem dirigir gritos de socorro? Em
que podemos crer? Todas as religiões são estúpidas com a sua
moral pueril e as suas promessas egoístas, monstruosamente
tolas. Só a morte é certa.
O poeta parou, pegou na gola do sobretudo de Duroy e
proferiu, com voz lenta:
- Pense nisto, mancebo, pense nisto, durante dias, meses e
anos, e verá a existência doutra maneira. Tente libertar-se de
tudo que o prende, faça um esforço sobre-humano para sair vivo
do seu corpo, dos seus interesses, dos seus pensamentos e da
humanidade inteira, para ver outra coisa, e compreenderá que
pouca importância têm as lutas entre românticos e naturalistas
ou a discussão do orçamento.
Norberto de Varenne pôs-se a caminhar com passo rápido,
enquanto dizia:
- Sentirá, também, a terrível angústia dos desesperados.
Debater-se-á, perdido, afogado, nas incertezas. Gritará:
"Socorro!", para todos os lados e ninguém lhe responderá.
Estenderá os braços, chamará para ser socorrido, amado,
consolado, salvo, e ninguém virá! Por que sofremos assim? É
que nascemos, sem dúvida, mais para vivermos conforme a
matéria, e menos segundo o espírito, mas à força de pensar,
uma desproporção se criou entre o estado da nossa inteligência
aumentada e as condições imutáveis da nossa vida. Repare nas
pessoas medíocres: salvo quando os grandes desastres lhes caem
em cima, acham-se satisfeitas, sem sofrer com as desgraças
comuns. Os animais também não as sentem.
Parou mais uma vez, reflectiu durante alguns segundos, e
depois disse, com um ar de fadiga e resignação:
- Por mim, sou um ser perdido. Não tenho pai, nem mãe, nem
irmão, nem irmã, nem mulher, nem filhos, nem Deus.
Acrescentou, após um silêncio:
- Só tenho as rimas.
120
Depois, erguendo a cabeça para o firmamento, onde boiava a
face pálida da Lua, declamou:
"Et je cherche le mot de cet obscur problème Dans le ciel
noir et vide où flotte un astre blême."(1)
Chegaram à Ponte da Concorde, que atravessaram em silêncio,
e depois contornaram o Palácio Borbon. Norberto de Varenne
voltou a falar:
- Case-se, meu amigo. Não sabe o que é viver sozinho, na
minha idade. A solidão, hoje, enche-me duma angústia horrível;
a solidão em casa, junto do fogão, à noite. Parece-me, então,
que estou sozinho na terra, terrivelmente só, mas rodeado de
perigos desconhecidos, de coisas ameaçadoras e medonhas. O
tabique que me separa do meu vizinho, a quem nem conheço,
afasta-me dele tanto como das estrelas entrevistas da minha
janela. Uma espécie de febre invade-me, uma febre de dor e de
medo, e o silêncio das paredes esmaga-me. É tão profundo e tão
triste o silêncio dos quartos onde se vive só! Não é apenas um
silêncio à volta do corpo, mas um silêncio que envolve a alma,
e quando um móvel estala, treme-se até ao coração, pois nenhum
ruído é esperado nessa habitação vazia.
Calou-se, mais uma vez, e depois acrescentou:
- Quando somos velhos, é que damos o valor aos filhos!
Tinham chegado ao meio da Rua de Bourgogne. O poeta parou em
frente dum alto edifício, tocou, apertou a mão de Duroy e
disse-Lhe:
- Esqueça todas estas rabugices de velho, meu rapaz, e viva
consoante a sua idade. Adeus!
Desapareceu no corredor escuro. Duroy pôs-se a caminho com o
coração apertado. Parecia que lhe tinham acabado de mostrar um
buraco cheio de ossadas, um buraco inevitável onde teria de
cair um dia. Murmurou: "Apre! Não é nada divertido um camarada
destes! Não desejaria assistir outra vez ao desfilar das suas
ideias; com todos os diabos!"
Como parara para deixar passar uma mulher perfumada, que
descia dum carro e regressava a casa, Jorge aspirou, numa
inspiração ávida, o cheiro de lírios e violetas, disperso no
ar.
*1. Procuro a solução deste obscuro problema No céu negro e
vazio onde flutua um astro lívido.
121
Os seus pulmões e o seu coração palpitaram bruscamente de
esperança e alegria, e a lembrança da senhora de Marelle, a
quem veria no dia seguinte, invadiu-o dos pés à cabeça.
Tudo lhe sorria. A vida acolhia-o com ternura. Como era bom
a realização de todas as esperanças!
Jorge adormeceu nesse encantamento e levantou-se cedo para
ir dar uma volta, a pé, pela avenida do Bosque de Bolonha,
antes de ir à entrevista. O vento mudara, o tempo tornara-se
mais suave durante a noite e havia uma tepidez e um sol de
Abril. Todos os frequentadores do Bosque tinham saído nessa
manhã, em obediência ao apelo do céu claro e doce.
Duroy caminhava lentamente, bebendo o ar leve, saboroso como
uma gulodice da Primavera. Passou o Arco do Triunfo da Étoile
e entrou na grande avenida, do lado oposto ao dos cavaleiros.
Via-os trotar ou galopar, homens e mulheres, os ricos deste
mundo, e já não os invejava. Conhecia-os quase todos de nome,
sabia o montante das suas fortunas e a história secreta das
suas vidas, pois as funções que tinha no jornal faziam dele
uma espécie de reportório vivo das celebridades e dos
escândalos parisienses.
As amazonas passavam, delgadas e bem modeladas no tecido
escuro dos vestidos, com aquele ar altivo e inabordável que
têm muitas mulheres quando montam a cavalo.
Duroy divertia-se a recitar a meia voz, como se recitam as
ladainhas na igreja, os nomes, títulos e qualidades dos
amantes que elas tinham tido ou lhes atribuíam. Algumas vezes,
em lugar de dizer "barão de Taquelet; príncipe de la
Tour-Enguerrand", murmurava: do lado de Lesbos: Luísa Michot,
do Vaudeville; Rosa Marquetin, da ópera.
Essa brincadeira divertia-o muito, como se verificasse, sob
as severas aparências, a eterna e profunda infâmia do homem.
Isso alegrava-o, excitava-o, consolava-o. Em seguida,
pronunciou em voz alta: "Cambada de hipócritas!" e procurou
com os olhos os cavaleiros acerca de quem corriam as mais
escandalosas histórias.
Via muitos, suspeitos de trapacear ao jogo, para quem os
clubes, no entanto, eram o grande recurso, o único recurso,
embora recurso suspeito. Outros, muito célebres, viviam
unicamente dos rendimentos de suas mulheres, como era sabido;
outros, dos recursos das amantes, segundo se dizia.
122
Muitos tinham liquidado as suas dívidas (procedimento honesto)
sem que se tivesse jamais descoberto donde provinha o dinheiro
necessário (mistério bastante suspeito).
Via ainda homens da finança, cuja imensa fortuna tinha o
roubo por origem e que eram recebidos em toda a parte, até nas
casas mais nobres, e homens tão respeitados que os pequenos
burgueses se descobriam à sua passagem, mas cujos negócios
desaforados nos grandes empreendimentos nacionais não eram
mistério para nenhum daqueles que sabiam a crónica da
sociedade. Todos tinham um ar de soberba, a boca orgulhosa, o
olhar insolente, tanto os de suíças como os de bigode. Duroy,
sempre a rir, repetia: "Cambada de crápulas, bando de
tubarões!"
Passou uma carruagem descoberta, baixa e elegante, puxada, a
grande trote, por dois esguios cavalos brancos, cujas crinas e
cauda esvoaçavam, conduzida por uma rapariguinha loira, uma
cortesã conhecida, que levava dois trintanários sentados
atrás. Duroy parou com um desejo de cumprimentar e aplaudir
aquela nova-rica do amor, que exibia, com audácia, naquele
passeio e àquela hora dos hipócritas aristocratas, o luxo
provocador ganho na cama. Sentia, talvez vagamente, haver
qualquer coisa de comum neles ambos, um laço natural, por
serem da mesma raça, dos mesmos sentimentos e por os seus
êxitos dependerem de processos audaciosos da mesma ordem.
Voltou do passeio mais devagar, com o espírito repleto de
satisfação, e chegou um tanto antes da hora à porta da sua
antiga amante. Clotilde recebeu-o, dando-lhe os lábios, como
se não se tivesse dado nenhuma ruptura, e esqueceu até,
durante alguns instantes, a habitual prudência que opunha, em
sua casa, a quaisquer carícias. Depois disse-lhe, beijando-lhe
as pontas frisadas do bigode:
- Não calculas o aborrecimento que me aconteceu, querido:
esperava uma boa lua-de-mel, e eis que me aparece meu marido
por seis semanas. Entrou de licença. Não quero, porém, estar
seis semanas sem te ver, sobretudo depois da nossa zanguinha,
e vê como arranjei as coisas: virás jantar cá segunda-feira:
já Lhe falei de ti e apresentar-to-ei.
Duroy hesitava, um tanto perplexo, pois nunca se encontrara
em presença dum homem cuja mulher possuía. Receava que
qualquer coisa o traísse, um constrangimento, um olhar, fosse
o que fosse. Balbuciou:
123
- Não; prefiro não conhecer o teu marido.
Clotilde insistiu, muito surpreendida, de pé diante dele, a
abrir uns olhos ingénuos:
- Porquê? Que tolice! Isso acontece todos os dias! Não te
supunha tão pateta. Esta agora!
- Está bem, seja! - proferiu Jorge, contrariado. Virei
jantar segunda-feira.
- Para parecer muito natural - acrescentou Clotilde -,
convidarei os Forestiers, embora não me agrade nada receber
pessoas em casa.
Até à segunda-feira, Duroy não pensou mais naquela
entrevista. No momento, porém, de subir a escada da senhora de
Marelle, sentiu-se estranhamente perturbado, não por lhe
repugnar apertar a mão daquele marido, de beber o seu vinho e
comer o seu pão, mas tinha medo de qualquer coisa sem saber de
quê.
Entrou para a sala e esperou, como sempre. Depois, a porta
do aposento abriu-se e apareceu um homem alto, de barba
branca, condecorado, grave e correcto, que se dirigiu para ele
com uma delicadeza extrema:
- Minha mulher tem-me falado muito do senhor e estou
encantado por conhecê-lo pessoalmente.
Duroy adiantou-se, procurando dar à sua fisionomia um ar de
cordialidade expressiva, e apertou, com uma energia exagerada,
a mão que lhe estendia o dono da casa. Depois, sentou-se, sem
encontrar nada que dizer.
O senhor de Marelle pôs mais uma acha no fogão, e perguntou:
- Há muito tempo que trabalha no jornalismo?
- Há só alguns meses - respondeu Duroy.
- Ah! Fez carreira depressa.
- Sim, bastante rápida.
Jorge pôs-se a falar ao acaso, sem pensar muito no que
dizia, repetindo todas as banalidades em uso entre pessoas que
não se conhecem. Sentia-se mais confiante e começava a achar a
situação muito divertida. Observava a figura séria e
respeitável do senhor de Marelle com uma grande vontade de
rir, e pensava: "A ti, meu velho, prego-tos, prego-tos." Uma
satisfação íntima, viciosa, dominava-o, uma alegria de ladrão
que consegue não ser suspeito, uma alegria torpe, mas
deliciosa. Sentia, subitamente, vontade de ser amigo daquele
homem, de conquistar a sua confiança, de lhe ouvir contar
coisas secretas da sua vida.
124
A senhora de Marelle entrou de rompante, e, envolvendo-os
num olhar sorridente e impenetrável, dirigiu-se a Duroy, que
não ousou, diante do marido, beijar-Lhe a mão, como o fazia
sempre. Sentia-se tranquila e alegre como uma pessoa habituada
a tudo; achava aquele encontro natural e simples, na sua
sem-vergonha nativa e franca.
Laurinha apareceu e foi, mais correcta do que de costume,
dar a fronte a Jorge. A presença do pai intimidava-a. A mãe
disse-lhe:
- Então, não lhe chamas, hoje, Bel-Ami?
A criança corou, como se a mãe tivesse acabado de cometer
uma grande indiscrição, revelado uma coisa que não se devia
dizer e desvendado um segredo íntimo do seu coração.
Quando os Forestiers chegaram, todos ficaram aterrados com o
aspecto de Carlos. Tinha emagrecido e empalidecido,
terrivelmente, numa semana; estava sempre a tossir. Anunciou,
aliás, que partiriam para Cannes, na quinta-feira seguinte,
por ordem formal do médico.
Os Forestiers retiraram-se cedo e Duroy disse, abanando a
cabeça:
- Parece-me que está bastante mal. Não deve durar muito.
A senhora de Marelle afirmou com serenidade:
- Oh! Está perdido! Aí está um que teve sorte ao encontrar
uma mulher como a que tem.
- Ela ajuda-o muito? - perguntou Duroy.
- A bem dizer, é ela quem faz tudo. Está ao corrente de
tudo, conhece toda a gente, sem dar a impressão de ver as
pessoas. Obtém o que quer, como quer e quando quer. Oh! E
fina, hábil, diplomata como nenhuma outra, aquela menina.
Aquilo é um tesouro para um homem que queira triunfar na vida.
- Casar-se-á depressa, sem dúvida - continuou Jorge.
- Sim - retorquiu a senhora de Marelle. - Não me surpreende
nada até que já tenha alguém em vista... um deputado... a não
ser que ele não queira... porque... porque... talvez haja
grandes obstáculos... morais... Enfim: não sei.
O senhor de Marelle resmungou, com lenta impaciência:
- Deixas sempre supor uma porção de coisas de que não gosto.
Que nos interessa a vida dos outros?
125
A nossa consciência basta-nos para nos regermos. Isto deveria
ser uma regra para todos.
Duroy retirou-se, com o coração perturbado e o espírito
cheio de vagos planos.
Foi, no dia seguinte, visitar os Forestiers e encontrou-os a
acabar de fazer as bagagens. Carlos, estendido num divã,
exagerava a fadiga da sua respiração e repetia:
- Já há um mês que deveria ter partido...
Depois fez a Duroy uma série de recomendações para o jornal,
embora tudo estivesse regularizado e combinado com o senhor
Walter. Quando Jorge se despediu, apertou energicamente a mão
do seu camarada:
- Pois bem, meu velho, até breve!
Como a senhora Forestier o acompanhou até à porta,
disse-lhe, porém, vivamente:
- Não esqueceu o nosso pacto? Somos amigos e aliados, não é
verdade? Portanto, se tiver necessidade de mim, seja para o
que for, não hesite. Um telegrama ou uma carta, e
obedecer-Lhe-ei.
- Obrigada - murmurou a senhora Forestier -, não o
esquecerei.
O seu olhar também agradecia, duma forma mais profunda e
mais doce.
Quando Duroy descia a escada, encontrou o senhor de Vaudrec,
que já vira uma vez naquela casa, o qual subia a passos
lentos. O conde parecia triste, talvez com a partida. Para se
mostrar perfeito homem de sociedade, o jornalista
cumprimentou-o rasgadamente. O outro correspondeu-lhe com
cortesia, mas de forma um tanto altiva.
O casal Forestier partiu na quinta-feira à noite.
VII
O desaparecimento de Carlos deu a Duroy uma importância
cada vez maior na redacção da Vie Française. Assinava alguns
artigos de fundo, sem deixar de assinar os ecos, porque o
patrão queria que cada um assumisse a responsabilidade do que
escrevia. Teve algumas polémicas, das quais se safou com
graça. As suas relações constantes com os homens de Estado
preparavam-no aos poucos para vir a ser, por seu turno, um
redactor político hábil e perspicaz.
Só havia uma mancha no seu horizonte. Vinha dum jornalzinho
atrevido que o atacava constantemente, ou antes, que atacava o
chefe dos ecos da Vie Française, o chefe da caixa de surpresas
do senhor Walter, como dizia o anónimo redactor da folha
chamada La Plume. Eram, todos os dias, perfídias, ditos
mordazes, insinuações de toda a espécie. Jaime Rival disse um
dia a Duroy:
- Você é paciente.
- Que quer? - balbuciou o outro. - Não há ataque directo.
Ora, uma tarde, ao entrar na sala da redacção, Boisrenard
mostrou-lhe o número de La Plume:
- Aqui tem; há outra nota desagradável para si...
- Ah! A propósito de quê?
- A propósito de nada, da prisão duma certa Aubert por um
agente da polícia dos costumes.
Jorge pegou no jornal que o outro lhe mostrava e leu, sob o
título, Duroy diverte-se:
O ilustre repórter da Vie Française informa-nos hoje de que
a senhora Aubert, de quem noticiámos a prisão feita por um
agente da odiosa brigada dos costumes, só existe na nossa
imaginação. Ora, a pessoa em questão habita no 28 da Rua de
lÉcureuil, em Montmartre. Compreendemos muito bem, aliás, qual
o interesse, ou quais os interesses, que podem ter os agentes
do banco Walter para defender os do prefeito da Polícia que
tolera o seu comércio.
Quanto ao repórter de que se trata, seria melhor que nos
desse alguma daquelas boas notícias sensacionais de que tem o
segredo: notícias de mortos desmentidos no dia seguinte,
notícias de batalhas que nunca se travaram, anúncios de graves
palavras pronunciadas por soberanos que não disseram nada,
todas as informações, enfim, que constituem os benefícios
Walter, ou até alguma das indiscriçõezinhas de serões e damas
célebres ou acerca da excelência de certos produtos que são um
grande recurso para alguns dos nossos confrades.
Duroy ficou mais perplexo do que irritado. Compreendera,
somente, haver naquilo qualquer coisa de muito desagradável
para ele.
- Quem lhe deu aquele eco? - perguntou-Lhe Boisrenard.
Duroy procurou lembrar-se, mas não lhe ocorria quem fora.
Depois, de repente, acudiu-lhe à ideia:
- Ah! Sim, foi Saint-Potin.
Depois releu as últimas linhas de La Plume e corou
subitamente, revoltado com a acusação de venalidade. Exclamou:
- Como?! Pretendem que sou pago para...
- Claro que sim - interrompeu Boisrenard. - É aborrecido
para si. O patrão é muito exigente a esse respeito. Isso pode
acontecer tantas vezes nos ecos...
Saint-Potin entrava nesse momento. Duroy correu para ele:
- Leu a nota em La Plume?
- Sim e venho da casa da tal Aubert. Existe realmente, mas
não foi presa. O boato, portanto, não tinha nenhum fundamento.
Então Duroy correu para o gabinete do patrão, que encontrou
um tanto frio, com um olhar suspicaz. Depois de ter ouvido o
caso, o senhor Walter observou:
- Vá, pessoalmente, a casa dessa senhora e desminta de forma
que não escrevam mais coisas semelhantes a respeito de si.
Falo do que se segue. É muito aborrecido para o jornal, para
mim e para si. Assim como a mulher de César, um jornalista não
deve ser alvo de suspeitas.
Duroy meteu-se num fiacre, com Saint-Potin por guia, e
gritou para o cocheiro: "18, Rua de lÉcureuil, em Montmartre.
Era uma casa imensa, de que teve de subir os seis andares.
128
Uma senhora de idade, de casaco de lã felpuda, abriu a porta:
- Que me quer outra vez? - perguntou, ao ver Saint-Potin.
O repórter respondeu:
- Trago este senhor, que é inspector da polícia, e deseja
saber o que se passou.
Então a velhota mandou-os entrar, dizendo:
- Já vieram dois depois de si, para um jornal não sei
qual... - Voltou-se para Duroy: - O senhor que quer saber?
- Foi presa por um agente da polícia dos costumes?
- Nunca na minha vida, meu caro senhor! - exclamou, erguendo
os braços. - Nunca na vida! Veja como as coisas se passaram.
Gasto dum talho onde servem bem, mas pesam mal. Dei por isso
várias vezes, sem dizer nada; mas quando pedia ao carniceiro
um quilo de costeletas, pois a minha filha e o meu genro vêm
cá, descobri que estava a pesar ossos, ossos de costeletas,
mas ossos. Poderiam servir para guisar, é certo, mas quando
peço costeletas não é para me darem os ossos que os outros
rejeitam. Recusei-os, portanto, e então o tipo chamou-me velha
bruxa. Repliquei chamando-lhe velho intrujão, e, umas atrás
das outras, dissemo-nos as últimas. Havia mais de cem pessoas
diante do talho, e que riam, riam! Até que, enfim, apareceu um
polícia e convidou-nos a ir explicarmo-nos no comissariado.
Fomos e mandaram-nos embora. Eu, depois disso, sirvo-me doutro
talho e evito até passar à porta daquele, para evitar
escândalos.
A velhota calou-se e Duroy perguntou:
- Mais nada?
- Esta é que é a pura verdade, meu rico senhor.
Depois de lhe oferecer um cálice de licor, que ele não quis
aceitar, a mulherzinha insistiu para não se esquecer de falar
dos roubos no peso do carniceiro. No regresso ao jornal, Duroy
redigiu a sua resposta:
Um escriba anónimo de La Plume arrancou uma das penas para
se entreter comigo, a propósito duma mulher de idade que ele
pretende ter sido presa por um agente da polícia dos costumes,
o que nego. Falei, pessoalmente, com a senhora Aubert, que tem
sessenta anos, pelo menos, e contou-me por miúdo a sua questão
com um carniceiro, por causa do peso dumas costeletas,
129
o que deu lugar a uma explicação no comissariado da polícia.
Eis toda a verdade do caso. Quanto às outras insinuações do
redactor de La Plume, desprezo-as. Não se responde, aliás, a
semelhantes coisas quando escritas por quem usa máscara.
JORGE DUROY
O senhor Walter e Jaime Rival, que tinham acabado de chegar,
acharam essa resposta suficiente. Foi resolvido publicá-la,
naquele dia, a seguir aos ecos.
Duroy foi para casa cedo, um tanto agitado, um tanto
inquieto. Que responderia o outro? Quem era? Por que seria
aquele ataque directo? Com os costumes bruscos dos
jornalistas, tal tolice poderia ir longe, muito longe. Dormiu
mal.
Quando releu a sua nota no jornal, no dia seguinte, achou-a
mais agressiva impressa do que manuscrita. Poderia,
pareceu-lhe, ter atenuado certos termos.
Sentiu febre todo o dia e ainda passou mal a noite seguinte.
Levantou-se cedo para procurar o número de La Plume, que devia
replicar à sua resposta.
O tempo voltara a estar frio. Gelava-se. Nas valetas, a água
congelara e formava ao longo dos passeios largas fitas
brancas.
Os jornais ainda não tinham chegado aos quiosques e Duroy
lembrou-se do dia do seu primeiro artigo: "Recordações dum
Caçador de África". As mãos e os pés, entorpecidos, doíam-Lhe,
sobretudo nas pontas dos dedos. Pôs-se a andar à volta do
quiosque envidraçado, onde a vendedora, sentada junto do
aquecedor, só deixava ver o nariz e as faces vermelhas dentro
dum capuz de lã.
Por fim, o distribuidor de jornais passou o maço pela
janelinha do quiosque e a mulherzinha deu a Duroy La Plume
aberta. Procurou o seu nome com a vista, mas não viu nada de
entrada. Respirava já quando descobriu a coisa metida entre
dois filetes:
Um tal Duroy, da Vie Française, desmente-nos; e, ao
desmentir-nos, mente. Confirma, no entanto, que existe uma
mulher chamada Aubert e que um agente a conduziu à polícia. Só
falta acrescentar, portanto, duas palavras: dos costumes, a
seguir à palavra agente e está certo. A consciência, porém,
130 131
de certos jornalistas está ao nível do seu talento. E asSino:
LuíS LangREmONT.
O coração de Jorge pôs-se a bater violentamente. Voltou para
casa, para se vestir, sem saber bem o que fazia. Haviam-no
insultado e de tal forma que nenhuma hesitação era possível.
Por quê? Por nada. A propósito duma velhota que tinha
questionado com um carniceiro.
Vestiu-se, rapidamente, e dirigiu-se sem demora a casa do
senhor Walter, embora fossem só oito horas da manhã.
O senhor Walter, que já estava levantado, lia La Plume e, ao
ver Duroy, disse-Lhe com ar grave:
- Agora, não pode recuar!
O rapaz não replicou nada. O director continuou:
- Vá, imediatamente, procurar Rival, que se encarregará de
ser sua testemunha.
Duroy proferiu algumas palavras vagas e saiu para ir a casa
do cronista, que ainda estava a dormir. Rival saltou da cama
ao ouvir tocar a campainha, e depois de ler o eco:
- Apre! É preciso lá ir. Quem vê como outra testemunha?
- Não faço ideia nenhuma.
- Boisrenard? Que lhe parece?
- Sim; Boisrenard.
- Sabe jogar as armas?
- Absolutamente nada.
- Oh! Diabo! Atira à pistola?
- Atiro alguma coisa.
- Bem. Irá praticar, enquanto me ocupo de tudo. Espere-me um
minuto.
Rival reapareceu dali a pouco, lavado, barbeado, correcto, e
disse:
- Venha comigo.
Habitava no rés-do-chão duma moradia e fez descer Duroy para
a cave, uma cave enorme, convertida em sala de armas e de
tiro, com todas as aberturas para a rua tapadas. Depois, uma
linha de bicos de gás, que conduzia até ao fundo dum outro
subterrâneo onde se erguia um boneco de ferro, pintado de
vermelho e azul. Pôs em cima duma mesa dois pares de pistolas
dum sistema novo de carregar pela culatra e começou a dar
vozes de comando, rápidas, como se estivessem no terreno:
- Apontar!
- Fogo! Um, dois, três!
Duroy, aniquilado, obedecia, levantava o braço, apontava,
disparava e como atingia com frequência o manequim em pleno
ventre, pois servira-se muito na juventude duma velha pistola
de seu pai para atirar aos pássaros no quintal, Jaime Rival,
satisfeito, declarou:
- Bem; muito bem! Muito bem! Vai lá... Vai lá!
Depois, deixou Jorge, dizendo:
- Atire assim até ao meio-dia. Tem aí munições; não tenha
medo de as queimar. Virei buscá-lo para almoçar e dar-lhe
notícias.
Sozinho, Duroy disparou ainda alguns tiros e sentou-se a
reflectir. Como eram estúpidas todas aquelas histórias. Que
provava aquilo? Um patife era menos patife depois de se ter
batido? Que ganhava um homem de bem, quando era insultado, em
arriscar a sua vida contra um crápula?
O seu espírito vagabundeava sombrio e recordava-se de coisas
ditas por Norberto de Varenne sobre a pobreza de espírito dos
homens, a mediocridade das suas ideias e das suas
preocupações, a estupidez da sua moral! Proferiu em voz alta:
"Como ele tem razão!"
Depois, sentiu sede e, como ouvia um ruído de gotas de água
por trás de si, descobriu um aparelho de duchas e foi beber na
ponta da agulheta. A seguir, voltou a meditar. Era triste
aquela cave, triste como um túmulo. O rodar longínquo e surdo
dos carros parecia o barulho duma tempestade à distância. Que
horas seriam? O tempo passava, ali dentro, como deve passar no
fundo das prisões, sem nada o indicar e nada o marcar, salvo o
aparecimento do carcereiro a trazer a gamela do rancho.
Esperou muito tempo, muito tempo.
Subitamente, ouviu passos, vozes, e Jaime Rival apareceu
acompanhado de Boisrenard. Exclamou, ao avistar Duroy:
- Está tudo arranjado!
Jorge julgou que o caso fora arrumado com qualquer carta de
desculpas; o coração deu-lhe um salto e balbuciou:
- Ah!... Obrigado.
O cronista continuou:
- Esse Langremont é muito leal, aceitou todas as nossas
condições: vinte e cinco passos, uma bala à voz de comando
132
ao levantar a pistola. Tem-se o braço mais firme assim que ao
abaixá-la. Olhe, Boisrenard, veja o que lhe dizia.
Pegou nas armas e pôs-se a disparar, demonstrando como se
conservava melhor a linha de mira ao levantar o braço. Em
seguida propôs:
- Agora, vamos almoçar; já passa do meio-dia.
Dirigiram-se para um restaurante vizinho. Duroy não dizia
nada. Comeu, para não dar a impressão de estar com medo.
Acompanhou Boisrenard ao jornal e fez as suas tarefas do dia,
de maneira distraída e maquinal. Acharam-no decidido.
Jaime Rival foi apertar-lhe a mão a meio da tarde. Ficou
combinado que as testemunhas iriam buscá-lo a casa de carro,
no dia seguinte, às sete horas, para se dirigirem ao bosque do
Vésinet, onde se realizaria o encontro.
Tudo aquilo era decidido inopinadamente, sem ele tomar parte
em nada, sem dizer uma palavra, sem dar o seu parecer, sem
aceitar ou recusar, e tudo com tanta rapidez, que ficava
atordoado, perturbado, sem compreender bem o que se passava.
Encontrava-se em casa, cerca das nove horas da noite, depois
de ter jantado com Boisrenard, que não o deixara nunca durante
todo o dia, por dedicação.
Logo que ficou sozinho, andou dum lado para o outro no
quarto, a passos vivos. Estava muito preocupado para reflectir
em qualquer coisa. Uma única ideia lhe ocupava o espírito. Um
duelo amanhã., Essa ideia despertava nele uma comoção forte e
confusa. Fora militar, atirara aos árabes, sem grande perigo,
aliás, assim como quem atira ao javali numa caçada.
Em suma, fizera o que devia fazer; mostrara o que deveria
ser. Falariam disso, aprová-lo-iam, felicitá-lo-iam. Depois,
proferiu em voz alta, "como falamos nos grandes ímpetos do
pensamento: Que bruto é aquele homem!" Sentou-se e pôs-se a
reflectir. Lançara sobre a mesinha um bilhete de visita do seu
adversário, a fim de consultar o seu endereço. Releu-o como já
fizera vinte vezes naquele dia: Luís Langremont, 176, Rua
Montmartre. Nada mais. Examinava essas letras reunidas que lhe
pareciam misteriosas, cheias de intenções inquietantes. Luís
Langremont,, quem era aquele homem? Que idade tinha? Qual era
a sua estatura? Qual o seu rosto?
133
Não era revoltante que um estranho, um desconhecido, fosse
assim perturbar a sua vida, subitamente, sem razão, por
capricho, a propósito duma velha que tinha questionado com um
carniceiro? Repetiu ainda uma vez em voz alta: "Que bruto!"
Jorge manteve-se imóvel, a pensar, com o olhar sempre fixo no
bilhete de visita. Ergueu-se nele uma cólera contra aquele
bocado de papel, uma cólera odienta, a que se misturava um
estranho sentimento de náusea. Era estúpida aquela história!
Pegou numa tesoura de unhas que estava em cima da mesinha e
espetou-a a meio do nome impresso, como se apunhalasse alguém.
Ia, portanto, bater-se, e bater-se à pistola! Por que não
escolhera a espada? Desobrigar-se-ia com uma picadela no braço
ou na mão, enquanto à pistola nunca se sabiam as consequências
possíveis. Proferiu: "Vamos, é preciso coragem."
O som da sua voz fê-lo estremecer e olhou à sua volta.
Começava a sentir-se muito nervoso. Bebeu um copo de água e
deitou-se. Logo que se meteu na cama, soprou a vela e fechou
os olhos. Sentia muito calor debaixo dos lençóis, embora
estivesse frio no quarto. Não conseguia adormecer. Dava voltas
na cama. Estava cinco minutos de costas, depois virava-se para
o lado esquerdo e em seguida para o direito.
Ainda estava com sede. Levantou-se para ir beber água.
Depois foi preso duma inquietação: "Estarei com medo?" Porque
se punha o coração a bater desordenadamente a cada ruído
conhecido do seu quarto? Quando o relógio ia dar as horas, o
pequeno ranger da engrenagem fazia-o ter um sobressalto. Tinha
de abrir a boca, durante alguns segundos, para respirar, tanto
se sentia oprimido! Pôs-se a raciocinar filosoficamente sobre
a possibilidade disto: "Estarei com medo?"
Não, certamente não teria medo, pois estava resolvido a ir
até ao fim, tinha a vontade bem decidida de se bater, de não
tremer. Sentia-se, porém, tão profundamente perturbado que
perguntou a si próprio: "Podemos ter medo, mal-grado nosso?"
Essa dúvida invadiu-o, essa inquietação, esse pavor. Se uma
força mais poderosa do que a sua vontade, dominadora,
irresistível, o tomasse, que sucederia? Sim, que poderia
suceder?
Sem dúvida, iria para o campo, pois desejava ir; mas se
tremesse? Se perdesse os sentidos?
134
Pensava na sua situação, na sua reputação, no seu futuro? Uma
estranha necessidade o acometeu de súbito: levantar-se para se
ver ao espelho. Pareceu-lhe que nunca se vira assim. Os olhos
davam a impressão de ser enormes, e estava pálido, não havia
dúvida, estava pálido, muito pálido.
Imediatamente, este pensamento penetrou-o como se fosse uma
bala: "Amanhã, a estas horas, estarei talvez morto!" O coração
pôs-se a bater furiosamente.
Voltou para a cama e viu-se, distintamente, estendido de
costas naqueles mesmos lençóis que tinha acabado de deixar.
Apresentava o mesmo rosto chupado que têm os mortos e a mesma
brancura das mãos imobilizadas para sempre.
Então, teve medo daquele leito e, para não o ver mais, abriu
a janela e pôs-se a olhar para fora. Um frio glacial
mordeu-lhe a carne, da cabeça aos pés, e recuou a tremer.
Acudiu-lhe a ideia de acender o lume no fogão do quarto.
Atiçou-o, lentamente, sem se voltar. As suas mãos tremiam um
tanto, com um tremor nervoso quando tocava nos objectos. Tinha
a cabeça em água: os seus pensamentos andavam à roda,
tornavam-se fugidios, entrecortados, dolorosos. Uma embriaguez
invadia-lhe o espírito como se tivesse bebido.
Sem cessar perguntava a si próprio: "Que vou fazer? Que vai
ser de mim?" Pôs-se de novo a passear no quarto, repetindo de
modo contínuo, maquinal: "É preciso que seja enérgico, muito
enérgico." Depois pensou: "Vou escrever a meus pais, para o
caso dum acidente." Sentou-se, pegou num caderno de papel de
cartas e escreveu: "Meu caro papá, minha querida mamã..."
Achou esses termos demasiado familiares para uma circunstância
tão trágica. Rasgou a primeira folha e recomeçou: "Meu caro
pai, minha cara mãe; vou bater-me ao amanhecer e como pode
suceder que..."
Não ousou escrever o resto e levantou-se dum salto. Aquele
pensamento esmagava-o: Ia bater-se em duelo. Já não podia
evitar isso. Que se passava, no entanto, nele? Queria
bater-se; tinha essa intenção, essa resolução, firmemente
assentes; e parecia-lhe que, a despeito dos seus esforços, da
sua vontade, não podia ter sequer a força necessária para ir
até ao local do encontro.
De tempos a tempos, os dentes batiam-lhe uns contra os
outros, com um ruído seco. Perguntava:
135
"O meu adversário já se teria batido? Estará treinado no
tiro? É conhecido? É conceituado?" Nunca tinha ouvido
pronunciar o nome daquele homem. No entanto, se não fosse um
atirador à pistola notável não teria aceitado assim, sem
hesitação, sem discussão, aquela arma perigosa.
Então, Duroy visionava o seu encontro, a sua própria atitude
e a do seu adversário. Fatigava-se a pensar, a imaginar, os
mínimos pormenores do combate. Subitamente, via na sua frente
aquele buraquinho negro e profundo do cano donde ia sair uma
bala.
Sentou-se, bruscamente, preso duma crise de desespero
terrível. Todo o corpo lhe vibrava, agitado por arrepios
fortes. Apertava os dentes para não gritar. Sentia uma
necessidade louca de rolar no chão, de rasgar qualquer coisa,
de morder. Reparou num cálice em cima da pedra do fogão e
lembrou-se de que tinha no armário uma garrafa de aguardente
quase cheia, pois conservava o hábito militar de matar o bicho
todas as manhãs.
Pegou na garrafa e bebeu pelo gargalo grandes goladas, com
avidez. Só a depôs quando lhe faltou o fôlego. Esvaziara-a
mais de um terço. Um calor, como se fosse uma chama, em breve
lhe queimou o estômago e se espalhou pelos membros, dando-lhe
certa firmeza ao ânimo. Disse para si: "Cá está o meio." Como
sentia a pele a arder, voltou a abrir a janela.
Despontava o dia, calmo e glacial. No alto, as estrelas
pareciam morrer no firmamento que aclarava. Nas profundas
trincheiras do caminho-de-ferro empalideciam os sinais,
verdes, vermelhos, brancos. As primeiras locomotivas saíam do
depósito e iam, a apitar, buscar os primeiros comboios.
Outras, ao longe, lançavam apelos agudos e repetidos, os seus
gritos do amanhecer eram como os dos galos nos campos.
Duroy pensava: "Não verei talvez mais tudo isto." Como
sentia, porém, que ia de novo enternecer-se com o seu caso,
reagiu energicamente: "Vamos, é preciso não pensar em nada,
até ao momento do encontro; é o único meio de ter coragem."
Foi lavar-se. Teve ainda um minuto de desfalecimento, quando
fazia a barba ao pensar que era talvez a última ocasião em que
via o seu rosto. Bebeu uma nova golada de aguardente e acabou
de se vestir.
A hora seguinte foi difícil de passar. Andava dum lado para
o outro, esforçando-se por imobilizar o seu espírito.
136
Quando ouviu bater à porta, esteve quase a cair de costas,
tão violenta foi a comoção. Eram as suas testemunhas. Já!
Vinham envoltas em casacos com golas de peles. Rival disse
ao apertar-lhe a mão:
- Faz um frio siberiano! - perguntando a seguir: - Isso vai
bem?
- Sim, muito bem.
- Está calmo?
- Muito calmo.
- Vamos; tudo irá bem. Bebeu e comeu qualquer coisa?
- Sim; não tenho necessidade de nada.
Boisrenard pusera, para a circunstância, uma condecoração
estrangeira, verde e amarela, que Duroy nunca lhe vira.
Saíram. Um cavalheiro aguardava-os no landau. Rival
apresentou-o:
- O doutor Le Brumet.
- Muito obrigado - proferiu Duroy, apertando-Lhe a mão e, ao
sentar-se no assento da frente, encontrou qualquer coisa dura
que o fez levantar-se como impelido por uma mola.
Era a caixa das pistolas. Rival protestou:
- Não! Atrás o combatente e o médico, atrás!
Duroy acabou por compreender e deixou-se cair ao lado do
médico.
As duas testemunhas subiram por sua vez e o carro partiu. O
cocheiro já sabia para onde devia ir.
A caixa das pistolas incomodava todos, sobretudo Duroy, que
preferiria não a ver. Tentaram colocá-la atrás das costas; mas
incomodava os rins. Depois, puseram-na ao alto, entre Rival e
Boisrenard; mas estava sempre a cair. Acabaram por a pôr
debaixo dos pés.
A conversa arrastava-se, embora o médico contasse anedotas.
Só Rival lhe respondia. Duroy desejaria provar a sua presença
de espírito, mas tinha medo de perder o fio das ideias e de
mostrar a sua perturbação interior. Apavorava-o o receio
torturante de se pôr a tremer.
O carro atingiu em breve o campo. Eram cerca de nove horas.
Estava-se numa dessas manhãs de Inverno, em que toda a
natureza é luzidia, quebradiça e dura como o cristal. As
árvores, cobertas de neve, parecia terem suado gelo;
137
a terra ressoava debaixo dos pés; o ar seco transmitia ao
longe os mínimos ruídos, o céu azul parecia brilhar como os
espelhos e o Sol passava no espaço cintilante e frio - ele
também -, lançando sobre a criação gélida raios que não
aqueciam nada.
Rival informou Duroy:
- Trouxe as pistolas de Gastine-Renette. Foi ele próprio
quem as carregou. A caixa está selada. Serão tiradas à sorte,
aliás, com as do nosso adversário.
- Muito obrigado - respondeu Duroy, maquinalmente. Então,
Rival pôs-se a fazer recomendações minuciosas, pois fazia
questão de o seu cliente não cometer nenhuma falta. Insistia
em cada ponto várias vezes.
- Quando perguntarem: Estão prontos, meus senhores?,,
responderá com voz forte: "Sim!" Quando disserem "Fogo!",
levante rapidamente o braço e dispare antes de terem
pronunciado: "três".
Duroy repetia mentalmente: "Quando disserem fogo, levanto o
braço... quando disserem fogo, levanto o braço... quando
disserem fogo, levanto o braço..."
Aprendia isso, como as crianças aprendem as lições,
murmurando-as até à saciedade, para as fixarem bem na cabeça:
"Quando disserem fogo, levanto o braço..."
Quando o carro entrou no bosque deu a volta à direita, tomou
por uma alameda e depois ainda uma vez à direita. Rival,
bruscamente, abriu a portinhola, para gritar ao cocheiro:
- Por ali! Por aquele caminho de carro.
O landau meteu por um caminho com sulcos de rodas, entre
dois taludes, onde tremiam as folhas mortas, contornadas duma
orla de neve. Duroy continuava a murmurar: "Quando disserem
fogo, levanto o braço." Pensava que um acidente arranjaria
tudo. Oh! Se o carro se voltasse, que sorte! Se partisse uma
perna!...
Descobriu, no extremo duma clareira, outro carro parado e
quatro cavalheiros que batiam com os pés para se aquecerem.
Sentiu-se obrigado a abrir a boca tanto a respiração se Lhe
tornava penosa.
Os padrinhos desceram primeiro, depois o médico e o
combatente. Rival pegara na caixa das pistolas e foi, com
Boisrenard, ter com os dois outros padrinhos que se dirigiram
para eles.
138 139
Duroy viu-os cumprimentarem-se cerimoniosamente e depois
caminharem juntos na clareira a olharem ora para o chão ora
para as árvores, como se procurassem qualquer coisa que
tivesse podido cair ou voar. Depois, contaram os passos e
meteram, com dificuldade, duas bengalas no solo gelado.
Reuniram-se em seguida em grupo e fizeram os movimentos do
jogo de cara ou coroa, como os rapazes a brincar.
O doutor Le Brumet perguntou a Duroy:
- Sente-se bem? Não precisa de nada?
- Não preciso de nada, obrigado.
Parecia-lhe estar doido, que dormia ou sonhava, que qualquer
coisa sobrenatural acontecera e o envolvia. Tinha medo?
Talvez. Não o sabia, porém. Tudo estava mudado à sua volta.
Jaime Rival voltou e disse baixinho, com satisfação:
- Está tudo pronto. A sorte foi-nos favorável quanto às
pistolas.
Eis uma coisa que era indiferente a Duroy. Tiraram-lhe o
sobretudo. Deixou que o fizessem. Apalparam-lhe os bolsos da
sobrecasaca para verificar se não tinha papéis ou carteira que
o protegessem. Repetia, interiormente, como uma oração:
"Quando disserem fogo, levanto o braço."
Conduziram-no depois até uma das bengalas espetadas no chão
e entregaram-lhe uma pistola. Então, descobriu um homem de pé
na sua frente, muito próximo, um homenzinho barrigudo, calvo,
que usava óculos. Era o seu adversário.
Jorge viu-o muito bem, mas só pensava nisto: "Quando
disserem fogo, levanto o braço e disparo." Uma voz ressoou no
grande silêncio do espaço, uma voz que parecia vir de muito
longe e que perguntou:
- Estão prontos, meus senhores?
- Sim! - gritou Jorge.
Então, a mesma voz ordenou:
- Fogo!...
Duroy não ouviu mais nada, não percebeu nada, não deu por
nada. Sentiu apenas que levantava o braço e apertava com toda
a força o gatilho.
Não ouvira nada; mas viu imediatamente fumo no cano da sua
pistola. Como o homem na sua frente continuava de pé, na mesma
posição igualmente, descobriu outra nuvenzinha branca que se
erguia por cima da cabeça do seu adversário. Tinham disparado
ambos. Estava tudo acabado.
Os seus padrinhos e o médico tocaram-lhe, apalparam-no,
desabotoaram-lhe a roupa, perguntando com ansiedade:
- Não está ferido?
- Não, não creio - respondeu Duroy ao acaso.
Langremont, aliás, estava tão intacto como o seu inimigo e
Jaime Rival murmurou, com ar aborrecido:
- Com estas reles pistolas é sempre assim: ou falham ou
matam-se. Que porco instrumento!
Duroy não se mexia, paralisado de surpresa e de alegria.
Estava tudo acabado! Tiveram de Lhe tirar a arma, que
conservava apertada na mão. Parecia-lhe, então, que se teria
batido contra o universo inteiro. Estava tudo acabado. Que
sorte! Sentia-se subitamente valente, capaz de provocar fosse
quem fosse.
Os padrinhos todos conversaram durante alguns minutos a
marcar o encontro para redigir a acta. Depois, subiram para os
carros. O cocheiro, que ria na boleia, partiu fazendo estalar
o chicote.
Almoçaram os quatro no bulevar, falando do acontecimento.
Duroy contav a as suas impressões:
- Aquilo não me fez impressão nenhuma, absolutamente nada.
Aliás, deviam tê-lo visto.
- Sim, você portou-se bem - retorquiu Rival.
Quando a acta foi redigida deram-na a Duroy, que a devia
publicar nos ecos. Ficou surpreendido ao ver que tinha trocado
duas balas com o senhor Luís Langremont e, um tanto inquieto,
interrogou Rival:
- Mas só disparámos uma bala?!
- Sim, foi uma bala... - retorquiu o outro a sorrir. - Uma
bala cada um... faz duas balas.
Duroy achou a explicação satisfatória, não insistiu. O velho
Walter abraçou-o:
- Bravo, bravo, defendeu o pavilhão da Vie Française, bravo!
Jorge mostrou-se, à noite, nos principais jornais e nos
grandes cafés do bulevar. Encontrou duas vezes o seu
adversário, que se mostrava igualmente.
Não se cumprimentaram. Se um dos dois tivesse ficado ferido,
teriam apertado as mãos. Cada um deles jurava, aliás, ter
ouvido assobiar a bala do outro.
140
No dia seguinte, por volta das onze horas, Duroy recebeu um
bilhete: "Meu Deus, como tive medo! Vem logo à Rua de
Constantinopla para te beijar; meu amor. Como és valoroso!
Adoro-te, Clo."
Foi ao encontro marcado e ela atirou-se-lhe para os braços,
cobrindo-o de beijos:
- Oh! Querido, se soubesses a minha comoção quando li os
jornais desta manhã! Oh! Conta-me; diz-me tudo. Quero saber.
Jorge teve de lhe contar os pormenores, com minúcia.
Clotilde insistia:
- Como deves ter tido uma noite má antes do duelo!
- Mas não. Dormi muito bem.
- Eu não teria pregado olho; e, no terreno, diz-me como as
coisas se passaram.
Jorge fez um relato dramático:
- Quando ficámos em frente um do outro, a vinte passos, só
quatro vezes a largura deste quarto, Jaime, depois de ter
perguntado se estávamos prontos, deu a voz: "Fogo!" Levantei o
braço imediatamente, bem na pontaria, mastive a má ideia de
querer apontar à cabeça. A arma era bastante dura; ora, estou
acostumado a pistolas mais suaves, de modo que a resistência
do gatilho fez elevar o tiro. Não importa, não deve ter podido
passar-lhe longe. Ele também é bom atirador, o maroto. A sua
bala passou-me junto da fonte. Senti-lhe o sopro.
Clotilde estava sentada no colo dele e envolvia-o nos seus
braços como para o proteger contra um perigo, enquanto
balbuciava:
- Oh! meu pobre amiguinho, meu pobre amiguinho...
Quando ele acabou de contar, Clotilde disse-lhe:
- Sabes: não posso passar sem ti! É preciso que te veja e,
com meu marido em Paris, não é fácil. Às vezes, tenho uma hora
livre de manhã, antes de tu te levantares, e poderia ir
abraçar-te, mas não quero voltar àquela horrível casa. Como
havemos de fazer?
Jorge teve bruscamente uma inspiração e perguntou:
- Quanto pagas aqui?
- Cem francos por mês.
- Muito bem, fico com o aposento por minha conta e passo a
viver nele definitivamente. O meu já não está bem para a minha
nova posição.
141
Clotilde reflectiu uns instantes e depois disse:
- Não. Não quero.
Jorge estranhou:
- Por quê?
- Porque não...
- Isso não é um motivo. Esta habitação convém-me muito bem.
Já cá estou; fico. - Riu-se: - Aliás o quarto está no meu
nome.
Clotilde recusava sempre:
- Não, não, não quero...
- Mas por quê, finalmente?
Então Clotilde murmurou baixinho, ternamente:
- Porque trarias cá outras mulheres e eu não quero.
Jorge protestou:
- Isso nunca! Que ideia! Prometo-to!
- Não; hás-de trazê-las, apesar de tudo.
- Juro-te que não!
- Palavra?
- É verdade. Palavra de honra. É a nossa casa; só para nós.
Clotilde apertou-o num arrebatamento de amor:
- Então, sim, querido. Se me enganares, se me enganares uma
vez, só uma vez, fica tudo acabado entre nós, acabado para
sempre.
Jorge jurou, com muitos protestos, e ficou combinado que se
instalaria lá naquele dia, para ela poder ir vê-lo quando
passasse à porta.
- Em todo o caso - acrescentou Clotilde -, vem jantar amanhã
lá a casa. Meu marido acha-te encantador.
- Ah! Sim?!... -proferiu Jorge, lisonjeado.
- Sim. Conquistaste-o. Ouve lá: disseste-me que tinhas
passado a infância num solar da província, não é verdade?
- Sim, por quê?
- Então, deves saber alguma coisa de agricultura?
- Sei sim.
- Então, fala-lhe de sementeiras e colheitas; ele gosta
muito disso.
- Bem. Não me esquecerei.
Clotilde deixou-o, depois de o ter beijado muito, pois
aquele duelo exasperara a sua ternura.
Duroy pensava, ao dirigir-se para o jornal: "Que ser tão
engraçado! Que cabeça no ar! Sabe-se lá o que quer,
142
aquilo de que gosta?!... E que casal tão estranho! Que
fantasista teria podido preparar o acasalamento daquele velho
com esta maluca?! Que razões decidiram esse inspector a casar
com esta estudante? Mistério! Quem sabe? Talvez o amor!"
Depois concluiu: "Enfim, é uma amante deliciosa e seria muito
tolo se a deixasse."
VIII
O seu duelo fizera passar Duroy para a primeira fila dos
cronistas da Vie Française; mas como tinha muita dificuldade
em descobrir ideias, adoptou a especialidade das declamações
sobre a decadência dos costumes, o rebaixamento dos
caracteres, a quebra do patriotismo e a anemia da
personalidade francesa. (Descobrira o termo anemia, de que se
sentia orgulhoso.) Quando a senhora de Marelle, cheia daquele
espírito trocista, céptico, ligeiro, a que chamam o espírito
de Paris, se ria das suas tiradas e as crivava de epigramas,
Jorge respondia a sorrir:
- Ora! Isso dá-me uma boa reputação para mais tarde.
Mudara-se para a Rua de Constantinopla, para onde levara a
sua mala, a escova, a navalha de barba e o sabonete, que
constituíam a sua bagagem. Duas ou três vezes por semana,
Clotilde chegava antes de ele se levantar, despia-se num
minuto e metia-se na cama, toda a tremer do frio exterior.
Duroy, por seu lado, jantava todas as quintas-feiras em casa
dela e fazia a corte ao marido a falar-lhe de agricultura.
Como ele próprio gostava das coisas da terra, interessavam-se
ambos pela conversa a tal ponto que se esqueciam de Clotilde,
a dormitar num sofá.
Laurinha também adormecia, ora no colo do pai, ora no colo
do Bel-Ami.
Quando o jornalista se retirava, o senhor de Marelle não
deixava nunca de dizer, com aquele tom doutrinário com que
dizia até as mínimas coisas:
- Este rapaz é verdadeiramente muito agradável. Tem o
espírito muito cultivado.
Fevereiro estava a terminar. Começava a sentir-se o perfume
a violetas nas ruas, ao passar, de manhã, pelos carrinhos
arrastados pelas vendedeiras de flores.
Duroy vivia num céu sem nuvens. Ora, uma noite, quando
regressava a casa, encontrou uma carta por debaixo da porta.
144
Reparou no carimbo do correio e viu Cannes. Abriu e leu:
Cannes, Villa Jolie - Caro senhor e amigo: disse-me, não é
verdade, que podia contar consigo para tudo? Muito bem, vou
pedir-lhe um triste serviço: é vir assistir-me, não me deixar
sozinha nos últimos momentos de Carlos, que vai morrer. Não
passará talvez desta semana, embora ainda se levante, mas o
médico preveniu-me. Já não tenho forças, nem coragem, para ver
esta agonia, dia e noite, e penso, com terror, nos últimos
momentos qhe se aproximam. Só posso pedir uma coisa destas a
si porque meu marido já não tem família. O senhor foi seu
camarada; ele abriu-lhe as portas do jornal. Venha,
suplico-lhe. Não tenho ninguém para quem apelar. Creia-me sua
camarada muito devotada - Madalena Forestier.
Um estranho sentimento entrou como um sopro de ar no coração
de Jorge, um sentimento de libertação, de espaço que se abria
na sua frente, e murmurou: "Sem dúvida que irei. Pobre Carlos!
Quem diria, apesar de tudo!" O director do jornal, a quem
mostrou a carta da esposa de Forestier, deu, de mau modo, a
sua autorização, insistindo:
- Volte depressa; é-nos indispensável.
Jorge Duroy partiu para Cannes, no dia seguinte, no rápido
das sete horas, depois de ter prevenido o casal de Marelle com
um telegrama.
Chegou no dia seguinte, cerca das quatro horas da tarde. Um
carregador serviu-Lhe de guia até à Villa Jolie, edificada a
meia encosta, dentro do pinhal semeado de vivendas brancas,
que vai do Cannet ao golfo Juan.
A casa, pequena, baixa, no estilo italiano, ficava à beira
da estrada que sobe em ziguezague por entre as árvores,
desvendando, a cada volta, admiráveis panoramas.
O criado, que abriu a porta a Jorge exclamou:
- Oh! É o senhór. A senhora espera-o com muita impaciência.
- Como está o seu patrão? - inquiriu Jorge.
- Oh! Nada bem. Não pode durar muito.
A sala para onde Jorge entrou estava forrada de um papel de
tom entre verde e róseo, com desenhos azuis. A janela, alta e
larga, dava para a cidade e para o mar. Duroy murmurou:
145
"Apre! Isto aqui é muito chique como casa de campo! Onde diabo
vão eles buscar dinheiro para isto?"
Um rumor de vestido fê-lo voltar-se. A senhora Forestier
deu-lhe as duas mãos, dizendo:
- Como foi gentil! Como foi gentil por ter vindo!
Subitamente, abraçou-o. Depois, olharam um para o outro.
Madalena estava um tanto pálida, mais magra, mas sempre fresca
e talvez mais bonita ainda, com um ar mais delicado. Murmurou:
- Ele está terrível, imagine. Sabe que está perdido e
tiraniza-me atrozmente. Informei-o da sua chegada... Mas onde
está a sua mala?
- Deixei-a na estação - respondeu Jorge -, pois não sabia em
que hotel me aconselharia que ficasse para estar perto de si.
Madalena hesitou, e a seguir disse:
- Ficará aqui, na villa. O seu quarto, aliás, está
preparado. Ele pode morrer de um momento para o outro, e se
isso acontecesse de noite, estaria sozinha. Mandarei buscar a
sua bagagem.
Jorge aquiesceu:
- Como quiser.
- Agora, subamos - disse Madalena.
Jorge seguiu-a. Madalena abriu uma porta no primeiro andar e
Duroy viu, junto de uma janela, sentado numa poltrona e
enrolado em cobertores, lívido sob o clarão avermelhado do Sol
poente, uma espécie de cadáver que o fitava. Mal o reconheceu;
parecia ter apenas adivinhado que era o amigo.
Havia no quarto um cheiro a febre, a remédios, a alcatrão, a
éter, esse odor inqualificável e pesado dos aposentos onde
respira um doente do peito.
Forestier levantou a mão com um gesto penoso e lento,
dizendo:
- Vieste ver-me morrer. Obrigado.
Duroy simulou rir:
- Ver-te morrer? Não seria um espectáculo muito divertido e
não ia escolher essa ocasião para visitar Cannes. Venho
cumprimentar-te e descansar um bocado.
Carlos murmurou:
- Senta-te - baixando a cabeça como mergulhado numa
meditação desesperada.
146 147
Respirava apressadamente, resfolegando, e por vezes soltava
um gemido como se quisesse lembrar aos outros como estava
doente.
Ao ver que ele não dizia mais nada, a sua mulher foi
encostar-se à janela e disse, mostrando o horizonte com um
gesto da cabeça:
- Veja isto! Não é belo?
Na sua frente, a encosta, semeada de vivendas, descia até à
cidade, reclinada, ao longo da margem em semicírculo, com a
cabeça à direita ao lado do molhe que era dominado pela cidade
velha, onde se erguia a vetusta torre, e a seus pés, à
esquerda, a ponta da Croisette, com as ilhas Lerins em frente.
Estas davam a impressão de duas manchas verdes na água muito
azul. Dir-se-ia que flutuavam como duas folhas imensas, tanto
pareciam chatas vistas de cima.
Muito ao longe, a fechar o horizonte do outro lado do golfo,
por cima do molhe e da torre, uma cadeia de montanhas azuladas
desenhava, num céu esplendente, uma linha estranha e
encantadora de alturas, ora arredondadas, ora agudas,
terminadas por um grande monte em pirâmide que mergulhava o
seu sopé em pleno mar.
Madalena Forestier indicou-o:
- É o Esterel.
O espaço por trás dos cimos sombrios estava vermelho, de um
vermelho sangrento e doirado, que a vista não podia suportar.
Duroy, a despeito de tudo, sentia-se influenciado pela
majestade desse fim do dia. Murmurou, sem encontrar outro
termo assaz expressivo para exprimir a sua admiração:
- Ah! Sim. É estupendo isto!
Forestier levantou a cabeça para a mulher e pediu:
- Dá-me um pouco de ar...
- Toma cuidado! - retorquiu Madalena. - Já é tarde, o sol
está a pôr-se. Vais apanhar frio e bem sabes que isso não é
bom no teu estado de saúde.
Carlos fez com a mão direita um gesto febril e fruste que
quereria ser um murro e murmurou com uma careta de cólera, uma
careta de moribundo que mostrava a finura dos lábios, a
magreza das faces e todos os ossos espetados:
- Estou a dizer-te que sufoco. Que te importa que morra um
dia mais cedo ou um dia mais tarde, visto que estou perdido...
Madalena abriu a janela para trás. O sopro que entrou
surpreendeu os três como uma carícia. Era uma brisa mole,
tépida, calma, uma brisa de Primavera, alimentada já pelo
perfume dos arbustos e das flores capitosas que se dão na
Costa Azul. Distinguia-se um gosto forte de resina e o acre
sabor dos eucaliptos.
Forestier parecia bebê-la, em haustos curtos e febris.
Cravou as unhas das mãos no braço da poltrona e proferiu com
voz baixa, sibilante, raivosa:
- Fecha a janela. Isto faz-me mal. Preferia rebentar numa
cave.
A esposa fechou a janela, lentamente, e pôs-se a olhar para
longe, com a fronte contra o vidro.
Duroy, pouco à vontade, desejaria conversar com o doente,
tranquilizá-lo. Não encontrava, porém, nada adequado para o
reconfortar, e balbuciou:
- Então, não te sentes melhor desde que estás aqui?
O outro encolheu os ombros com impaciência desesperada:
- Bem vês - e baixou de novo a cabeça.
Duroy continuou:
- Apre! Faz um tempo esplêndido aqui, em comparação com
Paris. Lá, estávamos ainda em pleno Inverno. Neva, cai geada,
chove e está escuro, a ponto de ser preciso acender as luzes
às três horas da tarde.
- Não há nada de novo no jornal? - perguntou Forestier.
- Nada de novo. Admitiram, para te substituir, o Lacrin, que
saiu do Voltaire, mas está ainda muito verde. Já é tempo de
voltares.
- Eu?! - balbuciou o doente. - Irei fazer crónicas, agora, a
sete palmos debaixo da terra.
A sua ideia fixa voltava, como um badalar de sino, a
propósito de tudo, reaparecendo sem cessar, em cada
pensamento, em cada frase.
Houve um longo silêncio, um silêncio doloroso e profundo. O
ardor do poente acalmava-se aos poucos. As montanhas ficavam
negras sob o céu vermelho que também se tornava sombrio. Uma
sombra colorida, um começo de noite que conservava os clarões
do braseiro a extinguir-se, entrava no quarto e parecia tingir
os móveis, as paredes, as pinturas, os recantos, com tons
misturados de tinta e de púrpura. O espelho do fogão, que
reflectia o horizonte, tinha o aspecto de uma mancha de
sangue.
148 149
Madalena Forestier não se mexia, sempre de pé, de costas
para o aposento, com o rosto contra os vidros. O marido pôs-se
a falar com uma voz entrecortada, ofegante, que se ouvia a
custo:
- Quantas vezes mais verei o pôr do Sol?... Oito... dez...
quinze ou vinte... talvez trinta; mas mais não. Vocês têm
tempo para os ver... para mim, acabou-se... Isto continuará...
depois de mim, como se eu estivesse aqui... - Manteve-se
calado alguns instantes e depois continuou: - Tudo quanto vejo
me traz à ideia o que não verei mais dentro de alguns dias...
É horrível... Não verei mais nada... nada disto que existe...
os mais pequenos objectos que manejamos... os copos... os
pratos... os leitos onde a gente repousa... os carros. É tão
bom passear de carro, à noite... Como eu gostava de tudo isso.
Fazia com os dedos das mãos movimentos nervosos e leves como
se estivesse a tocar piano nos dois braços da poltrona. Cada
silêncio era ainda mais penoso do que as suas palavras, pois
sentia-se que estava a pensar em coisas terríveis.
Duroy lembrou-se subitamente do que lhe dissera Norberto de
Varenne algumas semanas antes: "Agora, vejo a morte de tão
perto que, às vezes, dá-me vontade de estender a mão para a
repelir... Descubro-a por toda a parte. Os insectos esmagados
nas estradas, as folhas que caem, os cabelos brancos
descobertos na barba do amigo cortam-me o coração e gritam-me:
Ela aí está!"
Não tinha compreendido bem naquele dia; mas compreendia
então, ao ver Forestier. Uma angústia desconhecida, atroz,
penetrava nele, como se tivesse sentido muito próximo, naquela
poltrona onde ofegava aquele homem, a horrível morte ao
alcance da mão. Tinha vontade de se levantar, de se ir embora,
de fugir, de regressar a Paris imediatamente. Ah! Se soubesse,
não teria ido.
A noite espalhara-se pelo quarto como se, apressadamente, um
véu de luto tivesse envolvido o moribundo. Apenas a janela era
ainda visível, desenhando na claridade da sua vidraça a
silhueta imóvel da mulher. Forestier perguntou, irritadamente:
- Então, não trazem hoje o candeeiro? Isto é que é ter
cuidados com um doente!
A sombra do corpo que se recortava nos vidros desapareceu e
ouviu-se o som duma campainha, na casa, sonora.
Um criado entrou, pouco depois, e colocou um candeeiro em
cima da pedra do fogão. A senhora Forestier disse ao marido:
- Queres deitar-te ou vais à mesa jantar?
- Irei à mesa - murmurou Carlos.
A espera da refeição fê-los manter-se ainda cerca de uma
hora imóveis, todos três, pronunciando, por vezes, uma palavra
qualquer, inútil, banal, como se houvesse perigo, um perigo
misterioso, em deixar durar por muito tempo aquele silêncio,
em deixar persistir o ar mudo daquele aposento onde rondava a
morte.
Enfim, foi o jantar, que pareceu a Duroy longo,
interminável. Não falavam, comiam sem ruído, e depois
desfaziam o miolo do pão com as pontas dos dedos. O criado
servia à mesa, andava, ia e vinha, sem se lhe ouvirem os pés,
pois o ruído das solas irritava Carlos, e o homem calçava
alpercatas. Só o tiquetaque duro dum relógio de parede
perturbava a calma daquela casa com o seu movimento mecânico e
regular.
Quando acabaram de comer, Duroy, a pretexto de fadiga,
retirou-se para o seu quarto e, encostado à janela,
contemplava a Lua cheia no meio do céu, como o globo dum
enorme candeeiro, a lançar nas paredes brancas das vivendas a
sua claridade seca e velada e a semear no mar uma espécie de
escamas de luz movediça e doce. Procurava um motivo para
partir o mais depressa possível inventando artimanhas,
telegramas que ia receber, uma chamada do senhor Walter.
As suas razões para fugir pareceram-lhe mais difíceis de
realizar quando despertou no dia seguinte. Madalena Forestier
não se deixaria convencer com essas habilidades e perderia com
a sua covardia todas as vantagens do seu devotamento. Disse
para si: "Ora, é aborrecido; mas, paciência, há momentos
desagradáveis na vida; e depois isto não deve durar muito."
Fazia um tempo magnífico, com um céu azul, destes céus do
Sul que nos enchem o coração de alegria. Duroy foi até ao mar,
pois teria sempre tempo de ver Forestier durante o dia.
Quando voltou para almoçar, o criado disse-lhe:
- O senhor já perguntou pelo senhor duas ou três vezes; se o
senhor quiser ir ver o senhor...
Jorge foi. Forestier parecia dormir na sua poltrona.
151
A sua mulher lia, estendida no divã. O doente levantou a
cabeça. Duroy perguntou-lhe:
- Então, como vai isso? Tens melhor aspecto esta manhã.
- Sim, isto vai melhor - murmurou o outro. - Recobrei
forças. Almoça depressa com Madalena, porque vamos dar uma
volta de carro.
A mulher, logo que se encontrou a sós com Duroy, disse:
- Aí tem! Hoje, julga-se salvo. Desde manhã que faz
projectos. Vamos daqui a pouco ao golfo Juan comprar faianças
para a nossa casa de Paris. Quer sair por força, mas tenho um
medo horrível dum acidente. Não poderá suportar os solavancos
da estrada.
Quando o carro chegou, Forestier desceu a escada passo a
passo, amparado pelo criado. Desde que viu o carro quis que
descessem a capota.
Sua mulher resistiu a isso:
- Vais apanhar frio. É uma loucura.
Carlos obstinava-se:
- Não. Estou muito melhor. Bem o sinto.
Passaram, primeiramente, por aqueles caminhos umbrosos, que
seguem sempre entre jardins e fazem de Cannes uma espécie de
parque inglês. Depois, tomaram a estrada de Antibes, à
beira-mar.
Forestier dava explicações. Indicara, primeiro, a villa do
conde de Paris, e depois outras. Estava alegre, duma alegria
desejada, fictícia e débil de condenado. Levantava o dedo, sem
forças para erguer o braço:
- Olha, aquela é a ilha Sainte-Marguerite e o castelo donde
se evadiu Bazaine(1). Deu-nos que fazer essa história!
A seguir recordou coisas do tempo da vida militar. Citou
oficiais que Lhe lembravam anedotas. Subitamente, numa volta
da estrada, descobriram o golfo Juan, inteiro, com a sua
aldeia branca ao fundo e a ponta de Antibes no outro extremo.
Forestier, subitamente preso duma alegria infantil, balbuciou:
*1. O marechal de França, incumbido da defesa de Metis, na
guerra de 1870-1871, que traiu o seu país, teve entendimentos
com o invasor e entregou a praça-forte que lhe cumpria
defender. Condenado à morte em 1873, a pena foi-Lhe comutada
em prisão perpétua na fortaleza da ilha, da qual se evadiu
para Espanha, onde morreu, em 1888.
150
- Ah! A esquadra! Vais ver a esquadra!
A meio da vasta baía via-se, com efeito, uma meia dúzia de
grandes navios, que pareciam rochedos cobertos de ramos. Eram
estranhos, disformes, enormes, com excrescências, torres,
esporões, que se metiam na água como para ir ganhar raízes no
mar.
Não se compreendia como aquilo podia descolar-se, mexer,
tanto pareciam pesados e presos ao fundo. Uma bataria
flutuante, redonda, alta, em forma de observatório, parecia-se
com esses faróis que são construídos em escolhos.
Um grande três-mastros passava junto deles, para ganhar o
largo, com todas as velas içadas, brancas e alegres. Era
gracioso e bonito junto desses monstros de guerra, monstros de
ferro, feios monstros acocorados na água.
Forestier esforçava-se por identificá-los. Nomeava-os:
- O Colbert... o Suffren... o Amiral-Duperré... o
Redoutable, o Dévastation... - mas emendava: - Não, estou
enganado, o Dévvastation é aquele.
Chegaram em frente dum grande pavilhão, onde se lia:
Faianças de arte do golfo Juan e o carro, depois de dar uma
volta a um relvado, parou.
Forestier queria comprar dois jarrões, para pôr na sua
biblioteca. Como não podia descer do carro, levaram-lhe os
modelos um após outro. Demorou muito tempo a escolher,
consultando a mulher e Duroy:
- Sabes, é para aquele móvel que fica ao fundo do meu
gabinete. Da minha poltrona, tenho isso sempre diante dos
olhos. Pretendo uma forma antiga, uma forma grega.
Examinava as amostras, fazia que lhe levassem outras,
voltava a pegar nas primeiras. Por fim, decidiu-se e, ao
pagar, exigiu que a expedição fosse feita imediatamente,
dizendo:
- Volto para Paris dentro de alguns dias.
Quando regressaram, ao longo do golfo, uma corrente de ar
frio deslizou da dobra dum vale e atingiu-os de súbito. O
doente começou a tossir. A princípio, não foi mais do que uma
pequena crise; depois cresceu, tornou-se um acesso
ininterrupto, e por fim uma espécie de soluço, de estertor.
Forestier sufocava e, sempre que queria respirar, a tosse
rasgava-lhe a garganta, saindo do fundo do peito. Nada o
acalmava, nada o consolava. Foi preciso levá-lo do carro em
braços para o quarto.
152
Duroy, que lhe segurava as pernas, sentia o estremecer dos
pés, a cada convulsão dos pulmões.
O calor da cama não acalmou o acesso, que durou até à
meia-noite. Por fim, os narcóticos atenuaram os espasmos
mortais da tosse. O doente ficou, até ser dia, sentado no
leito, com os olhos abertos.
As primeiras palavras que pronunciou foram para pedir o
barbeiro, pois teimava em ser barbeado todas as manhãs.
Levantou-se para essa operação; mas foi preciso deitá-lo
imediatamente e ficou a ofegar de maneira tão rápida, difícil
e penosa, que a senhora Forestier, alarmada, mandou acordar
Duroy para lhe pedir que fosse procurar um médico.
Jorge levou, quase imediatamente, o doutor Gavaut, que
prescreveu uma poção e deu alguns conselhos. Quando o
jornalista, ao acompanhá-lo à saída, lhe pediu a sua opinião,
o médico disse:
- É a agonia. Estará morto amanhã de manhã. Previna essa
pobre mulher e mande chamar um padre. Eu não tenho nada mais a
fazer. No entanto, estou inteiramente à sua disposição.
Duroy mandou chamar a senhora Forestier e informou-a:
- Ele vai morrer. O médico aconselha que mande chamar um
padre. Que pretende fazer?
Madalena hesitou muito tempo e, com voz lenta, depois de ter
calculado tudo, proferiu:
- Sim, é melhor... sob muitos aspectos... Vou prepará-lo...
dizer-Lhe que o pároco deseja vê-lo... não sei bem o quê,
enfim. Faça-me o favor de ir chamar um padre e de o escolher.
Traga um que não seja muito exigente, se satisfaça com a
confissão e não nos mace muito.
Jorge levou consigo um velho eclesiástico complacente, que
se prestou àquela situação. Logo que o padre entrou no quarto
do agonizante, a senhora Forestier saiu e sentou-se com Duroy
no compartimento vizinho.
- Isto perturbou-o - disse ela. - Quando lhe falei dum
padre, o seu rosto tomou uma expressão de pavor como... se
tivesse sentido... sentido... um sopro... sabe... Compreendeu
estar tudo acabado e que as suas horas estavam contadas.
Muito pálida, a mulher continuou:
- Não esquecerei nunca a expressão do seu rosto. Com
certeza, viu a morte nesse momento. Viu-a.
153
Estavam a ouvir o padre, que falava alto, por ser um bocado
surdo, e dizia:
- Não, não; não está tão em baixo como isso. Está doente,
mas não em perigo. A prova é que venho vê-lo como amigo, como
vizinho.
Não distinguiram o que dizia Forestier. O velho sacerdote
continuou:
- Não o farei comungar. Falaremos disso quando estiver
melhor. Se quiser aproveitar a minha visita para se confessar,
não lhe peço mais nada. Sou um pastor e aproveito todas as
ocasiões para trazer ao redil as minhas ovelhas.
Seguiu-se um longo silêncio. Forestier devia falar com a sua
voz ofegante e sem timbre. Depois, subitamente, o padre
pronunciou num tom diferente, num tom de oficiante no altar:
- A misericórdia de Deus é infinita. Reze o Confiteor, meu
filho. Talvez o tivesse esquecido, vou ajudá-lo. Repita
comigo: Confiteor Deo omnipotenti... Beatae Mariae semper
virgini...
O padre parava de tempos a tempos, para permitir ao
moribundo segui-lo. Depois disse-lhe:
- Agora, faça a sua confissão.
Madalena e Duroy não se mexiam, presos duma singular
perturbação, comovidos, numa expectativa ansiosa.
O doente deveria ter murmurado qualquer coisa e o padre
repetiu:
- Teve complacências culposas... de que natureza, meu filho?
A mulher levantou-se e disse simplesmente:
- Vamos um bocado para o jardim. Não precisamos de ouvir os
seus segredos.
Foram sentar-se num banco em frente da porta, por baixo duma
roseira florida e detrás dum canteiro de cravos que espalhavam
no espaço um perfume forte e doce. Duroy, depois de alguns
minutos de silêncio, perguntou:
- Demorará muito em regressar a Paris?
- Oh! Não! - respondeu. - Logo que tudo estiver acabado,
volto.
- Dentro duns dez dias?
- Sim, no máximo.
- Ele não tem nenhum parente? - insistiu Jorge.
154
- Nenhum, a não ser primos. Os seus pais faleceram quando
ainda era muito novo.
Olharam os dois para uma borboleta que andava a colher o seu
alimento nos cravos, indo dum para o outro com uma rápida
palpitação das asas, que continuava a bater lentamente quando
pousava na flor. Ficaram muito tempo silenciosos.
O criado foi preveni-los de que o senhor abade tinha acabado
e voltaram para casa juntos.
Forestier parecia ter emagrecido ainda mais desde a véspera.
O padre estendeu-lhe a mão:
- Até à vista, meu filho, voltarei amanhã de manhã.
Foi-se embora o sacerdote e, logo que ele partiu, o
moribundo, que arfava, tentou erguer as duas mãos para a
mulher e gaguejou:
- Salva-me... salva-me... minha querida... não quero
morrer... não quero morrer... Oh! Salvem-me... Digam o que é
preciso fazer... Vão chamar o médico... Tomarei tudo o que
quiserem... Não quero... não quero.
Chorava. Duas grandes lágrimas corriam dos seus olhos pelas
faces descamadas. Os cantos magros da sua boca franziam-se
como os das criancinhas que têm um desgosto. Então as suas
mãos, caídas no leito, começaram um movimento contínuo, lento
e regular, como para apanhar qualquer coisa de cima da roupa.
A mulher, que estava a chorar também, balbuciava:
- Não; não é nada. É uma crise; amanhã estarás melhor.
Fatigaste-te, ontem, naquele passeio.
Forestier repetia sempre:
- Não quero morrer!... Oh! Meu Deus... meu Deus... meu
Deus... que vai acontecer? Não verei mais nada... mais nada...
nunca... Oh! Meu Deus!
Fitava, na sua frente, qualquer coisa invisível para os
outros e que devia ser horrível, pois os seus olhos fixos
reflectiam o pavor. As duas mãos continuavam o gesto terrível
e fatigante. Subitamente, estremeceu, num arrepio brusco, que
percorreu o seu corpo duma extremidade à outra, e balbuciou:
- O cemitério... eu... meu Deus!...
Não falou mais. Ficou imóvel espantado e ofegante.
O tempo ia passando. Deu meio-dia na torre dum convento
vizinho. Duroy saiu do quarto para ir comer qualquer coisa.
155
Voltou uma hora mais tarde. Madalena não quis tomar nada. O
doente não se tinha mexido. Arrastava sempre os magros dedos
pela coberta, como a puxá-la para a face.
A mulher estava sentada numa poltrona aos pés da cama. Duroy
sentou-se noutra ao lado dela e esperaram em silêncio. Viera
uma enfermeira, enviada pelo médico, que dormitava junto da
janela. Duroy também começava a dormitar quando teve a
sensação de ir acontecer qualquer coisa.
Abriu os olhos justamente a tempo de ver Forestier fechar os
seus como duas luzes que se apagam. Um soluço agitou a
garganta do moribundo e dois fios de sangue apareceram-Lhe aos
cantos da boca, correndo depois para a camisa. As mãos
terminaram o seu horrível movimento. Acabara de expirar.
A mulher compreendeu e, soltando um grito, caiu-lhe para
cima dos joelhos a soluçar. Jorge, surpreendido e
desorientado, fez maquinalmente o sinal-da-cruz. A enfermeira
acordara e aproximara-se da cama, dizendo:
- Já está.
Duroy, que recobrara o seu sangue-frio, murmurou, com um
suspiro de alívio:
- Foi menos demorado do que eu supunha.
Dissipada a primeira surpresa e vertidas as primeiras
lágrimas, trataram de todos os cuidados e de todas as
diligências que reclama um morto. Duroy correu até à noite.
Estava com fome, ao regressar a casa. A senhora Forestier
comeu alguma coisa. Depois, instalaram-se na câmara fúnebre,
para velar o corpo.
Duas velas ardiam na mesa-de-cabeceira, ao lado dum prato
onde estava um ramo de mimosas numa pequena porção de
água-benta, pois não tinham podido obter o ramo de buxo
necessário.
Estavam sozinhos, o rapaz e a mulher, junto daquele que já
não existia. Mantinham-se calados, a pensar e a olhar.
Jorge, a quem a sombra inquietava junto daquele cadáver,
contemplava-o obstinadamente. Os seus olhos e o seu espírito,
atraídos, fascinados, por aquele rosto descamado que a luz
vacilante fazia parecer ainda mais cavado, mantinham-se fixos
nele. Era aquilo o seu amigo, Carlos Forestier, que Lhe falava
ainda na véspera! Que coisa estranha e pavorosa o fim completo
dum ser!
156
Ah! Acudiam-lhe à ideia as palavras de Norberto de Varenne,
possuído pelo medo da morte: "Jamais um ser volta." Nasceriam
milhões e biliões, a bem dizer iguais, com olhos, nariz, boca,
crânio e dentro um pensamento, sem que voltasse aquele que
estava ali deitado naquele leito.
Durante alguns anos tinha vivido, comido, rido, amado,
esperado, como toda a gente; e tudo estava acabado para ele,
acabado para sempre. Uma vida de alguns dias e... depois, mais
nada. Nasce-se, cresce-se, é-se feliz, espera-se, depois
morre-se. Adeus! Homem ou mulher, não voltarás mais à terra!
No entanto, cada um transporta em si o desejo febril
irrealizável da eternidade, cada um é uma espécie de universo
no universo, e cada um se desfaz em breve no estrume dos
germes novos. As plantas, os animais, os homens, os tecidos,
os mundos, tudo se anima e, depois, morre para se transformar;
e jamais um ser volta, insecto, homem ou planta!
Um terror confuso, imenso, esmagador, pesava na alma de
Duroy, o terror desse nada ilimitado, inevitável, que
destruía, indefinidamente, todas as existências tão rápidas e
tão miseráveis. Curvava a fronte sob essa ameaça. Pensava nas
moscas que vivem algumas horas, nos insectos que vivem alguns
dias, nos homens que vivem alguns anos, nos mundos que vivem
alguns séculos. Que diferença, no entanto, entre uns e outros?
Algumas auroras a mais, eis tudo.
Jorge voltou a cabeça para não ver o cadáver. A senhora
Forestier, de fronte abatida, parecia meditar também em coisas
dolorosas. O seu cabelo loiro era tão bonito, a emoldurar o
seu rosto triste, que uma sensação doce como o aflorar duma
esperança passou no coração do rapaz. Por que amargurar-se
quando tinha ainda tantos anos na sua frente?
Duroy pôs-se a contemplar Madalena, que não o via, absorvida
na sua meditação. Dizia para si: "Eis, no entanto, a única
coisa boa da vida: o amor! Ter nos seus braços a muLher amada!
É este o limite da felicidade humana."
Que sorte tivera aquele morto por encontrar uma companheira
inteligente, encantadora. Como se tinham conhecido? Como
consentira ela em casar com aquele rapaz medíocre e pobre?
Como acabara por fazer dele alguém?
Pensou então em todos os mistérios ocultos das existências.
Lembrou-se do que murmuravam do conde de Vaudrec que, segundo
diziam, a dotara e casara. Que faria ela agora?
157
Com quem casaria? Um deputado, como pensava a senhora de
Marelle, ou um audacioso de futuro, um Forestier superior?
Teria ela projectos, planos, ideias preestabelecidas? Como
desejaria saber isso! Por que era, porém, aquela sua
preocupação de saber o que ia ela fazer? Perguntou-o a si
próprio e verificou proceder a sua inquietação duma destas
ideias fixas, confusas, secretas, que ocultamos até de nós e
só descobrimos quando investigamos bem no fundo do nosso ser.
Sim, por que não tentaria fazer a sua conquista? Como seria,
com ela, forte e temido! Como poderia ir longe, depressa e com
segurança! Por que não o conseguiria? Bem percebia que Lhe
agradava, pois tinha por ele mais do que simpatia, uma dessas
afeições nascidas entre duas naturezas semelhantes e que têm
tanto duma sedução recíproca como duma espécie de cumplicidade
tácita. Ela sabia que ele era inteligente, decidido, tenaz;
podia ter confiança nele.
Não o chamara naquela circunstância tão grave? Por que o
mandara ir? Não devia ver nisso uma espécie de escolha, de
confissão, de eleição? Se pensara nele, justamente no momento
em que ia ficar viúva, é porque, talvez, pensasse naquele que
viria a ser, de novo, seu companheiro, seu aliado?
Apoderou-se dele um desejo impaciente de saber, de a
interrogar, de conhecer as suas intenções. Devia regressar a
Paris dali a dois dias, pois não podia permanecer sozinho com
ela naquela casa. Portanto, tinha de se apressar. Era preciso,
antes de voltar para Paris, descobrir com habilidade, com
delicadeza, os seus projectos, e não lhos deixar amadurecer,
evitar que cedesse, talvez, às solicitações doutro e se
comprometesse definitivamente.
O silêncio do quarto era profundo. Só se ouvia o relógio que
batia, em cima da pedra do fogão, com o seu tiquetaque
metálico e regular. Jorge murmurou:
- Deve estar muito fatigada?
- Sim - respondeu-lhe -, mas estou sobretudo acabrunhada.
O ruído das suas vozes surpreendeu-os, ao ressoar de modo
estranho, naquele aposento sinistro. Olharam, imediatamente,
para o rosto do morto, como se esperassem vê-lo mexer, ouvi-lo
falar-lhes, como fazia algumas horas antes.
158
- Oh! - continuou Duroy. - É um grande desgosto para si e
uma mudança tão completa na sua vida, uma verdadeira derrocada
do coração e da existência inteira.
Madalena suspirou profundamente, sem responder, e Jorge
continuou:
- É triste para uma mulher nova encontrar-se só, como vai
ficar.
Calou-se. Ela não disse nada e Jorge balbuciou:
- Em qualquer caso, sabe o pacto estabelecido entre nós.
Pode dispor de mim como entender. Pertenço-lhe.
Madalena estendeu-lhe a mão, lançando-lhe um desses olhares
melancólicos e doces que nos penetram até à medula.
- Obrigada; é um bom, um excelente amigo. Se ousasse e
pudesse qualquer coisa, dir-Lhe-ia também: pode contar comigo.
Jorge pegara na mão que ela lhe dera e conservava-a ,
apertando-a com um desejo ardente de a beijar. Decidiu-se,
finalmente, e aproximando-a com lentidão febril da boca,
reteve, por muito tempo, a pele fina, um tanto cálida, febril
e perfumada, contra os seus lábios.
Depois, quando sentiu que essa carícia de amigo se ia tornar
muito prolongada, soube deixar cair a mão, que voltou,
frouxamente, para o regaço da mulher, a qual proferiu com
gravidade:
- Sim, vou ficar muito só, mas esforçar-me-ei por ter
coragem.
Jorge não sabia como fazer-lhe compreender que se sentiria
feliz, muito feliz, se a pudesse ter por sua mulher.
Evidentemente, não Lho podia dizer naquele momento, naquele
lugar, perante aquele corpo. No entanto, podia, supunha,
encontrar uma dessas frases ambíguas, cerimoniosas e
complicadas, que envolvem sentidos ocultos nas palavras e
exprimem quanto se quer com as suas reticências calculadas.
O cadáver, porém, incomodava-o, aquele cadáver, estendido na
sua frente e que sentia entre ambos. Havia já algum tempo,
aliás, que lhe parecia perceber, no ar confinado do aposento,
um cheiro suspeito, um hálito podre, saído daquele peito
decomposto, o primeiro relento de cadáver que os pobres mortos
deitados nos seus leitos lançam aos parentes que os velam,
fedor horrível de que enchem em breve o vazio que os envolve.
Duroy perguntou:
159
- Não se poderá abrir um bocado a janela? Parece que o ar
está viciado.
- Claro que sim - respondeu Madalena. - Também acabo de o
notar.
Jorge dirigiu-se para a janela e abriu-a. Toda a frescura
perfumada da noite entrou e agitou as chamas das duas velas
acesas junto do leito. A Lua espalhava, como na noite
anterior, uma claridade abundante e calma pelas paredes
brancas das vivendas e pela grande toalha luminosa do mar.
Duroy respirou a plenos pulmões e sentiu-se, subitamente,
assaltado por esperanças, como suspenso pelo frémito de uma
felicidade próxima. Voltou-se para dizer:
- Venha daí tomar um bocado de ar fresco; está um tempo
admirável.
Madalena levantou-se, calmamente, e foi debruçar-se a seu
lado. Então, Jorge murmurou em voz baixa:
- Ouça-me e compreenda bem o que quero dizer. Não se indigne
sobretudo de que lhe fale destas coisas, neste momento, mas
deixá-la-ei depois de amanhã, e, quando a encontrar em Paris,
talvez seja demasiado tarde. Eis o que quero dizer-lhe: sou
apenas um pobre diabo, sem fortuna e cuja posição está por
fazer, bem o sabe. Tenho, porém, vontade, alguma inteligência,
segundo creio, e estou no bom caminho. Com um homem que
triunfou, sabe-se o que nos espera; com um que começa não se
sabe até onde iremos. Será para bem ou para mal. Finalmente,
disse-lhe, um dia, em sua casa, que o meu sonho seria casar
com uma mulher tal como é. Repito-lhe, hoje, esse desejo. Não
me responda. Deixe-me continuar. Não é um pedido que lhe faço.
O local e o momento torná-lo-iam odioso. Pretendo,
simplesmente, não a deixar ignorar que me poderá fazer feliz
com uma palavra, que pode fazer de mim, quer um amigo
fraterno, quer um marido, à sua vontade, pois o meu coração e
a minha pessoa são seus. Não quero que me responda já; não
quero que falemos disso aqui. Quando nos reencontrarmos, em
Paris, far-me-á compreender aquilo que resolveu. Até lá, nem
mais uma palavra, não é verdade?
Tinha dito isto tudo sem olhar para ela, como se espalhasse
as palavras na noite na sua frente. Madalena parecia não o ter
ouvido, tanto se mantivera imóvel a olhar também na sua
frente, com o olhar fixo e vago, a grande paisagem iluminada
pela Lua.
160
Ficaram assim muito tempo, lado a lado, cotovelo contra
cotovelo, silenciosos e meditativos. Depois, Madalena
murmurou:
- Está muito frio.
Voltando-se, foi para junto do leito. Jorge seguiu-a.
Quando se aproximou, reconheceu que Forestier começava a
cheirar mal. Afastou a sua poltrona, pois não poderia suportar
por muito tempo esse odor de podridão, e disse:
- É preciso metê-lo no caixão, de manhã.
- Sim - retorquiu a viúva -, sim, está resolvido; o
carpinteiro virá por volta das oito horas.
Duroy suspirou.
- Pobre rapaz!
Madalena soltou, também, um profundo suspiro de resignação
desolada.
Olhavam para o cadáver com menos frequência, acostumados já
à ideia daquela morte. Começavam a consentir, mentalmente,
naquele desaparecimento que, ainda há pouco, os revoltava e
indignava, a eles que eram mortais também. Não falavam.
Continuavam a velar de uma maneira digna, sem dormir. Cerca da
meia-noite, Duroy cabeceou primeiro. Quando despertou, viu que
Madalena dormitava igualmente. Tomou uma postura mais cómoda,
fechou de novo os olhos a resmungar: "Apre! Está-se melhor na
cama, apesar de tudo."
Um ruído súbito fê-lo sobressaltar. Era a enfermeira que
entrava. Já era dia claro. A viúva, na poltrona em frente,
parecia tão surpreendida como ele. Estava um tanto pálida, mas
sempre bonita, fresca, gentil, a despeito da noite passada
naquele assento. Então, ao olhar para o cadáver, Duroy
estremeceu e exclamou:
- Oh! Que barba!
A barba tinha crescido, em algumas horas, naquele corpo em
decomposição como cresceria em alguns dias no corpo de um
vivo. Ficaram ambos espantados com aquela vida que continuava
naquele morto, como perante um prodígio terrível, uma ameaça
sobrenatural de ressurreição, uma dessas coisas anormais,
horríveis, que perturbam e confundem a inteligência.
Foram depois descansar até às onze horas. Após meterem
Carlos no caixão, sentiram-se imediatamente aliviados,
tranquilizados. Sentaram-se em face um do outro para almoçar,
161
com uma vontade desperta de falar de coisas agradáveis, mais
alegres, de regressar à vida, pois já tinham acabado com a
morte.
Pela janela, completamente aberta, entrava o doce calor da
Primavera, levando-Lhes o sopro perfumado do canteiro de
craveiros floridos diante da porta. Madalena propôs a Duroy
dar uma volta pelo jardim e puseram-se a caminhar, lentamente,
em volta do relvado, respirando com delícia o ar tépido cheio
do odor dos pinheiros e dos eucaliptos.
De súbito, Madalena começou a falar, sem voltar a cabeça
para ele, como Jorge fizera, à noite, na janela do quarto.
Pronunciava as palavras lentamente, com voz baixa e grave:
- Ouça, meu bom amigo, reflecti muito... já... no que me
propôs e não o quero deixar partir sem Lhe responder. Não Lhe
direi, aliás, sim ou não. Esperaremos, veremos,
conhecer-nos-emos melhor. Reflicta bem, pelo seu lado. Não
obedeça a um arrebatamento fácil. Se lhe falo disto, porém,
antes até desse pobre Carlos ter descido à sepultura, é porque
importa, depois do que me disse, que saiba bem quem sou, a fim
de não alimentar mais tempo o pensamento que exprimiu se não é
dum... dum... carácter capaz de me compreender e de me
suportar.
Compreenda-me bem. O casamento, para mim, não é uma cadeia,
mas uma associação. Quero ser livre, completamente livre, nos
meus actos, nos meus passos, nas minhas saídas, sempre. Não
tolerarei nem fiscalização, nem ciúmes, nem discussões acerca
da minha conduta. Empenho-me, bem entendido, a nunca
comprometer o nome do homem com quem casar, a nunca o tornar
odioso ou ridículo. É preciso, porém, que esse homem se
comprometa a ver em mim uma igual, uma aliada, e não um ser
inferior, nem uma esposa obediente e submissa. As minhas
ideias, bem sei, não são as de toda a gente, mas não as
trocarei por outras. Aqui tem. Acrescentarei ainda: não me
responda; seria inútil e inconveniente. Ver-nos-emos e
voltaremos, talvez, a falar de tudo isto, mais tarde. Agora,
vá dar uma volta. Por mim, torno para junto dele. Até logo.
Duroy beijou-lhe demoradamente a mão e partiu sem pronunciar
uma palavra.
162
À tarde, só se viram à hora do jantar. Depois, recolheram
aos seus quartos, ambos rendidos pela fadiga.
Carlos Forestier foi enterrado no dia seguinte, sem nenhuma
pompa, no cemitério de Cannes.
Jorge Duroy resolvera tomar o rápido para Paris, que passa à
uma e meia. Madalena acompanhou-o à estação. Passearam
tranquilamente, no cais, à espera da hora da partida, a falar
de coisas indiferentes.
Chegou o comboio, muito pequeno, um verdadeiro rápido, só
com cinco carruagens.
O jornalista marcou o seu lugar e depois desceu para falar
ainda alguns instantes com ela, preso subitamente de uma
tristeza, de um desgosto, de uma pena violenta de a deixar,
como se a fosse perder para sempre.
Um empregado gritava:
- Partida para Marselha, Lião, Paris!
Duroy subiu, a debruçar-se na portinhola, para lhe dizer
ainda algumas palavras. A locomotiva apitou e o comboio
lentamente pôs-se em andamento.
O rapaz, debruçado para fora da carruagem, fitava a mulher,
imóvel no cais, e cujo olhar o seguia. Subitamente, quando ia
perdê-la de vista, Jorge levou as mãos à boca e atirou-lhe um
beijo.
Madalena devolveu-lho, com um gesto mais discreto,
hesitante, apenas esboçado.
Segunda Parte
IX
Jorge Duroy retomara todos os seus hábitos antigos.
Instalado no minúsculo rés-do-chão da Rua de Constantinopla,
vivia, ajuizadamente, como um homem que prepara uma existência
nova. As suas relações com a senhora de Marelle tinham tomado
até um ar conjugal, como se estivesse a exercitar-se para o
próximo acontecimento. A sua amante, com frequência,
surpreendia-se ante a tranquilidade regrada da sua união e
repetia, a rir: "És ainda mais caseiro do que o meu marido";
assim não valia a pena mudar.
A senhora Forestier não voltara logo. Demorava-se em Cannes.
Jorge recebeu uma carta dela a anunciar o seu regresso somente
para meados de Abril, sem uma palavra de alusão à sua
despedida. Jorge esperou; estava disposto agora a empregar
todos os meios para casar com ela, se Madalena desse a
impressão de hesitar. Tinha, porém, confiança na sua boa
estrela, confiança na força de sedução que sentia em si
próprio, força vaga e irresistível a que todas as mulheres
eram sensíveis. Um breve bilhete preveniu-o de ir soar a hora
decisiva: "Estou em Paris. Venha ver-me. Madalena Forestier."
Nada mais. Recebera-o no correio das nove horas. Às três da
tarde do mesmo dia estava em casa de Madalena, que lhe
estendeu as mãos, a sorrir, com o seu lindo sorriso amável;
fitaram-se, durante alguns segundos, no fundo dos olhos.
Depois, ela murmurou:
- Como foi bom por ter ido lá, naquelas terríveis
circunstâncias.
- Faria tudo que me ordenasse - retorquiu Jorge.
Sentaram-se. Madalena pediu-lhe notícias dos Walters, de
todos os colegas do jornal. Pensava muito no jornal, e dizia:
- Isso faz-me muita falta; mesmo muita. Tornara-me
jornalista no fundo. Que quer? Gosto desse ofício.
Calou-se. Jorge julgou compreender, pareceu-Lhe encontrar no
seu sorriso, no tom da voz, nas próprias palavras,
166
uma espécie de convite. Embora tivesse prometido a si próprio
não apressar as coisas, balbuciou:
- Então!... Por que... por que não voltaria a exercer...
esse ofício... sob... sob... o nome de Duroy?
Madalena ficou subitamente séria, pôs-lhe a mão no braço e
murmurou:
- Não falemos ainda disso.
Jorge adivinhou, porém, que ela aceitava e caiu-lhe aos pés
a beijar-lhe, apaixonadamente, as mãos, e a gaguejar:
- Obrigado, obrigado! Como a amo!
Madalena levantou-se. Jorge imitou-a e percebeu que estava
muito pálida. Compreendeu, então, que lhe tinha agradado,
havia muito tempo talvez. Como se encontravam frente a frente,
abraçou-a e depois beijou-a na fronte com um longo beijo terno
e sério. Quando Madalena se separou dele, escorregando-lhe
pelo peito, prosseguiu num tom grave:
- Ouça, meu amigo: ainda não decidi nada. No entanto, pode
ser que seja sim; mas vai prometer-me segredo absoluto até o
libertar dele.
Jorge jurou e partiu com o coração inundado de alegria. Daí
por diante, usou de muita discrição nas visitas que lhe fazia.
Nunca solicitou um consentimento mais preciso, pois Madalena
tinha uma maneira de falar do futuro, de dizer mais tarde,, de
fazer projectos em que as suas existências se encontravam
envolvidas de modo a responder, sem cessar, melhor e mais
delicadamente, do que uma formal aceitação.
Duroy trabalhava a valer, gastava pouco, procurava
economizar algum dinheiro, para não estar sem um soldo na
altura do casamento. Tornara-se assim tão avaro como antes
fora pródigo. O Verão passou e depois o Outono, sem que
nenhuma suspeita ocorresse a ninguém, pois viam-se pouco e o
mais naturalmente do mundo. Uma noite, Madalena disse-lhe,
enquanto o fitava no fundo dos olhos:
- Não anunciou ainda o nosso projecto à senhora de Marelle?
- Não, minha amiga. Como me pediu segredo, não abri a boca a
esse respeito para ninguém.
- Muito bem; mas será tempo de a prevenir. Por meu lado,
encarrego-me dos Walters. Far-se-á isso esta semana , não
acha.
- Sim, amanhã - retorquiu, corando.
167
Madalena desviou docemente os olhos como para não reparar na
sua perturbação e replicou:
- Se quiser, podemos casar no começo de Maio. Será mais
conveniente.
- Obedeço-lhe em tudo, com júbilo.
- O dia dez de Maio, que é um sábado, agradar-me-ia muito,
por ser o dia em que nasci.
- .Será a dez de Maio.
- Os seus pais habitam perto de Ruão, não é verdade? Foi,
pelo menos, o que me disse.
- Sim, perto de Ruão, em Canteleu.
- Que fazem?
- Têm uns rendimentozinhos...
- Ah! Tenho um grande desejo de os conhecer.
Jorge hesitou muito comprometido:
- Mas... é que... eles são... - depois, decidido, como homem
verdadeiramente forte... prosseguiu: - Minha querida amiga,
são camponeses, têm uma venda e sangraram-se para me dar
estudos. Não me envergonho deles, mas a sua simplicidade... o
seu ar... rústico... poderão aborrecê-la.
Madalena sorria, deliciosamente, com o rosto iluminado por
uma doce bondade:
- Não. Gostarei muito deles. Iremos visitá-los. Desejo-o.
Voltaremos a falar disso. Também sou filha de gente humilde...
mas eu perdi os meus pais e já não tenho ninguém no mundo. -
Estendeu-lhe a mão e acrescentou -, a não ser a si.
Jorge sentiu-se enternecido, perturbado, conquistado, como
nunca o fora por nenhuma mulher.
- Pense numa coisa - continuou Madalena -, mas é bastante
difícil de explicar.
- Então que é? - inquiriu Jorge.
- Pois bem, aqui tem, meu caro: sou como todas as mulheres;
tenho as minhas... as minhas fraquezas, as minhas coisas
pequeninas, gosto do que brilha, do que ressoa. Adoraria usar
um nome nobre. Não poderá, por ocasião do nosso casamento...
nobilitar-se um bocadinho?
Corara, por seu turno, como se lhe tivesse proposto uma
coisa feia.
- Tenho pensado nisso várias vezes, mas não me parece fácil
- retorquiu Jorge, simplesmente.
- Por que então?
168
- Porque tenho medo de me tornar ridículo - retorquiu ele a
rir.
Madalena encolheu os ombros e disse:
- Mas de maneira nenhuma, de maneira nenhuma. Todos o fazem
e ninguém se ri disso. Separe o seu nome em dois: Du Roy;
assim fica muito bem.
Jorge respondeu imediatamente, como homem que conhece a
questão:
- Não; isso não. É um processo muito simples, muito comum,
demasiado conhecido. Pensei em adoptar o nome da minha terra,
primeiro como pseudónimo literário. Depois juntá-lo-ia aos
poucos ao meu, e por fim dividi-lo-ia em dois como me propõe.
Madalena perguntou:
- A sua terra é Canteleu?
- É sim.
Madalena hesitava:
- Não; não gosto da terminação. Vejamos: não poderíamos
modificar um bocadinho essa palavra... Canteleu?
Pegou numa caneta de cima da mesa e começou a rabiscar nomes
para Lhes ver a fisionomia. Subitamente, exclamou:
- Ei-lo! Aqui tem!
Deu-lhe um papel onde se lia: senhora Duroy de Cantei.
Jorge reflectiu durante alguns segundos, depois declarou com
gravidade:
- Sim, é muito bom.
Madalena, encantada, repetia:
- Duroy de Cantei, Duroy de Cantei... senhora Duroy de
Cantei. É excelente, excelente! - Acrescentou com ar convicto:
- Verá como é fácil de o fazer aceitar por toda a gente; mas é
preciso aproveitar a ocasião, porque, depois, será demasiado
tarde. A partir de amanhã, passará a assinar as suas crónicas
D. de Cantei e os seus ecos simplesmente Duroy. Isso faz-se
todos os dias na imprensa e ninguém se surpreenderá de o ver
adoptar um nome de guerra. Por ocasião do nosso casamento,
podemos ainda modificar um tanto e dizer aos nossos amigos que
renunciou ao du por modéstia, dada a sua posição, ou até não
dizer nada. Qual é o nome de baptismo de seu pai?
- Alexandre.
Madalena murmurou duas ou três vezes a seguir: Alexandre...
169
Alexandre, para apreciar a sonoridade das sílabas e depois
escreveu numa folha em branco: "O senhor e a senhora Alexandre
du Roy de Cantei têm a honra de participar o casamento de seu
filho, Jorge du Roy de Cantei com a senhora Madalena
Forestier." Viu a certa distância o que escrevera, encantada
com o efeito, e declarou:
- Com um bocadinho de método, conseguimos alcançar tudo o
que desejamos.
Quando Jorge se encontrou na rua, muito resolvido a
chamar-se doravante du Roy e até du Roy de Cantei, pareceu-lhe
ter acabado de adquirir uma nova importância. Andava mais
altivamente, de cabeça mais levantada, o bigode mais
petulante, como deve andar um gentil-homem. Sentia em si uma
espécie de alegre apetite de proclamar aos transeuntes:
"Chamo-me du Roy de Cantei."
Mal entrou em sua casa, a ideia de falar à senhora de
Marelle acudiu-Lhe e escreveu-lhe imediatamente, a fim de lhe
pedir um encontro para o dia seguinte. "Vai ser difícil",
pensava. "Vou apanhar uma borrasca de primeira ordem." Depois,
pensou noutra coisa, com a despreocupação natural que o levava
a não dar importância às coisas desagradáveis da vida. Pôs-se
a escrever um artigo fantasista acerca dos novos impostos a
decretar para restabelecer o equilíbrio orçamental. Dizia no
artigo que a partícula nobiliária deveria pagar cem francos
por ano, e os títulos, de barão a príncipe, de quinhentos a
mil francos. Assinou: D. de Cantei.
No dia seguinte, recebeu um bilhete da sua amante, a dizer
que iria à uma hora. Esperou-a um tanto febril, decidido a
resolver o assunto rapidamente, a dizer tudo logo de entrada
e, depois, passada a primeira comoção, a argumentar com
prudência, para lhe demonstrar que não poderia ficar solteiro
indefinidamente e que, visto o senhor de Marelle teimar em
viver, tivera de pensar noutra, sem ser ela, para sua
companheira legítima. Sentia-se, no entanto, comovido. Quando
ouviu tocar a campainha, o coração passou a bater
apressadamente.
A amante lançou-se-lhe nos braços:
- Bom dia, Bel-Ami!
Como achasse frio o seu abraço, fitou-o e perguntou:
- Que tens?
- Senta-te - respondeu-Lhe. - Precisamos de conversar a
sério.
170
A senhora de Marelle sentou-se, sem tirar o chapéu, levantou
somente o véu para a testa e esperou. Jorge baixara os olhos.
Preparava o que ia dizer e começou com voz lenta:
- Querida amiga, vês-me muito perturbado, muito triste e
muito desorientado pelo que tenho de te confessar. Gosto muito
de ti, amo-te verdadeiramente de todo o coração, e por isso o
receio de te causar um desgosto aflige-me mais ainda do que a
própria notícia que te vou dar.
Ela empalideceu, sentiu que ia tremer e balbuciou:
- Que há? Diz depressa!
Jorge pronunciou, com um tom triste, mas decidido, com o
fingido abatimento empregado para anunciar as desgraças
agradáveis:
- Há... que vou casar.
Clotilde soltou um suspiro de mulher que vai desmaiar,
suspiro doloroso, partido do fundo do peito, e ficou sufocada,
sem poder falar. Ao ver que ela não dizia nada, Jorge
continuou:
- Não calculas como sofri antes de chegar a esta resolução.
Não tenho, porém, nem situação, nem dinheiro. Estou sozinho,
perdido em Paris. Precisava ter junto de mim alguém que fosse
para mim uma conselheira, um apoio e uma consolação. Foi uma
associada, uma aliada, que procurei e encontrei!
Calou-se, à espera do que a amante responderia, preparado
para presenciar uma cólera furiosa, violências, injúrias.
Clotilde apoiara a mão no coração como para o conter e
continuava a respirar em haustos profundos que Lhe elevavam o
peito e lhe faziam agitar a cabeça. Jorge pegou na mão que
estava apoiada no braço da poltrona. Clotilde retirou-a,
bruscamente, e murmurou, como se tivesse ficado aparvalhada:
- Oh... Meu Deus...
Jorge ajoelhou-se-Lhe aos pés, sem, contudo, ousar
tocar-lhe, e balbuciou, mais comovido com o seu silêncio do
que o ficaria por quaisquer arrebatamentos:
- Clo, minha pequenina Clo, compreende bem a minha situação,
compreende bem aquilo que sou. Oh! Se pudesse casar contigo,
que felicidade! Tu és casada, porém. Que podia fazer?
Reflecte, vamos, reflecte! Preciso de me impor na sociedade e
não o poderei fazer enquanto não tiver casa para receber.
171
Se soubesses!... Há dias em que tenho vontade de matar o teu
marido...
Falava com a sua voz doce, velada, sedutora, uma voz que
penetrava no ouvido como uma música. Viu duas grandes lágrimas
crescer lentamente nos olhos fixos da sua amante e, depois,
correr-lhe pelas faces, enquanto duas outras se formavam no
rebordo das pálpebras. Murmurou:
- Oh! Não chores, Clo, não chores, suplico-te. Cortas-me o
coração.
Então, Clotilde fez um esforço, um grande esforço para se
mostrar digna e altiva, e perguntou nesse tom apagado das
mulheres que vão soluçar:
- Quem é?
Jorge hesitou um segundo e depois, compreendendo que era
preciso:
- Madalena Forestier.
A senhora de Marelle estremeceu da cabeça aos pés, depois
ficou muda, a meditar, com tal concentração que parecia ter
esquecido aquele que estava a seus pés. Duas gotas
transparentes formavam-se, constantemente, nos seus olhos,
caíam e voltavam a formar-se.
Levantou-se. Duroy adivinhou que ia partir sem lhe dizer uma
palavra, sem recriminações e sem perdão. Sentiu-se ferido com
isso, humilhado até ao fundo da alma. Quis retê-la.
Envolveu-lhe com os braços o vestido e sentiu através do
tecido as pernas roliças que se retesavam para resistir.
Pediu:
- Suplico-te, não partas assim.
Clotilde, então, mirou-o de alto a baixo, com aquele olhar
húmido, desesperado, tão encantador e tão triste, que mostra
toda a amargura dum coração de mulher, e balbuciou:
- Não tenho... não tenho nada a dizer... não tenho... nada a
fazer... Tu... tens razão... tens razão... tu... escolheste
bem... aquilo de que precisavas...
Depois de se libertar dos braços de Jorge, com um movimento
de recuo, Clotilde partiu, sem que ele tentasse retê-la por
mais tempo.
Ao ficar sozinho, Jorge levantou-se, atordoado como se
tivesse recebido uma pancada na cabeça. Depois, decidido,
murmurou: "Ora, tanto pior ou tanto melhor. Está feito... e
sem cenas. Gosto mais assim." Aliviado dum peso enorme,
172
sentia-se, subitamente, livre, liberto, à vontade para começar
vida nova. Pôs-se a lutar contra a parede, com grandes socos,
numa espécie de embriaguez de êxito e de força,. como se se
tivesse batido contra o destino.
Quando a senhora Forestier lhe perguntou:
- Já preveniu a senhora de Marelle?
Jorge respondeu, com tranquilidade:
- Claro que sim...
Madalena fixou nele os seus olhos claros:
- E isso não a impressionou?
- Mas não, absolutamente nada. Pelo contrário, achou que
estava muito bem...
Em breve a notícia foi conhecida. Uns surpreenderam-se;
outros pretenderam tê-lo previsto: e outros ainda sorriram
para dar a entender que isso não os espantava nada.
O rapaz que assinava, desde então, as suas crónicas com :
"D.
de Cantei", com Duroy, os ecos, e du Roy os artigos políticos
que passara a dar de tempos a tempos, estava a metade dos seus
dias em casa da noiva, que o tratava com uma familiaridade
fraternal, em que entrava, no entanto, uma verdadeira ternura,
mas oculta, uma espécie de desejo dissimulado como uma
fraqueza.
Decidira que o casamento se faria no maior segredo, só em
presença das testemunhas e que, nesse mesmo dia, partiriam
para Ruão. Iriam, no dia seguinte, visitar os velhos pais do
jornalista, junto dos quais ficariam alguns dias. Duroy
esforçara-se por fazê-la renunciar a esse projecto; mas não o
conseguiu e acabou por se submeter.
Quando chegou o dia 10 de Maio, os novos esposos, que tinham
considerado inúteis as cerimónias religiosas e não convidaram
ninguém, voltaram para casa a fim de fazer as malas, após a
breve ida à mairie, e tomaram na Estação de Saint-Lazare o
comboio das seis da tarde que os levou à Normandia.
O comboio atravessou docemente a comprida estação de
Batignolles e depois franqueou a planície leprosa que vai das
fortificações ao Sena. Duroy e sua mulher pronunciavam, de
tempos a tempos, algumas palavras inúteis e depois voltavam-se
de novo para a janela da carruagem.
Quando passaram na ponte de Asnières, uma alegria
apoderou-se deles, ao verem o rio coberto de barcos, de
pescadores e de tripulantes das canoas.
173
O Sol, um poderoso sol de Maio, espalhava a sua luz oblíqua
pelas embarcações e pelo rio que parecia imóvel, sem corrente
e sem redemoinhos, como petrificado sob o calor e a claridade
do dia que ia morrer.
Um barco à vela, no meio do rio, depois de abrir sobre as
duas amuradas os seus dois grandes triângulos de lona branca,
para captar o mínimo sopro de ar, parecia uma ave enorme
prestes a levantar voo. Duroy murmurou:
- Adoro os arredores de Paris. Tenho algumas recordações de
fritadas que são das melhores da minha existência.
Madalena retorquiu:
- E as canoas! Como é agradável deslizar pela água ao pôr do
Sol.
Calaram-se, como se não ousassem continuar com essas
recordações das suas vidas passadas, e ficaram, em silêncio, a
saborear talvez a poesia dessas lembranças.
Duroy, sentado em frente de sua mulher, pegou-lhe na mão,
beijou-lha lentamente e disse:
- Quando voltarmos, iremos algumas vezes jantar a Chatou.
- Teremos tantas coisas que fazer! - murmurou Madalena num
tom que parecia significar: "É preciso sacrificar ao útil o
agradável".
Jorge segurav a-lhe a mão e perguntava a si próprio,
inquieto, porque transição chegaria às carícias. Não se
sentiria assim perturbado ante a ignorância de uma jovem; mas
a inteligência viva e astuciosa que sentia em Madalena tornava
acanhadas as suas atitudes. Tinha medo de lhe parecer parvo,
demasiado tímido ou demasiado brutal, muito lento ou muito
apressado. Apertou-lhe a mão por pequenas pressões, sem ela
corresponder ao apelo, e disse:
- Parece-me engraçado que seja minha mulher.
Madalena deu a impressão de ficar surpreendida:
- Por quê?
- Não sei. Parece-me engraçado. Tenho vontade de a beijar e
surpreendo-me por ter o direito de o fazer.
A mulher deu-lhe tranquilamente a face, que Jorge beijou
como beijaria a de uma irmã. Prosseguiu:
- A primeira vez que a vi, (lembra-se, no jantar para que me
convidou Forestier?) pensei: "Apre, se pudesse descobrir uma
esposa como esta." Pois bem, é coisa feita! Tenho-a.
174
- É gentil isso - murmurou Madalena, fitando nele,
finalmente, os seus olhos sempre sorridentes.
Jorge pensava: "Sou muito frio. Sou estúpido. Deveria ir
mais depressa do que isto." Perguntou-Lhe:
- Como conheceu Forestier?
Madalena respondeu com provocante malícia:
- Vamos a Ruão para falar dele?
Duroy corou:
- Sou parvo! Intimida-me muito.
Madalena mostrou-se surpreendida:
- Eu! Não é possível! Donde vem isso?
Jorge sentou-se a seu lado, muito junto dela. Madalena
exclamou:
- Oh! Um veado!
O comboio atravessava a floresta de Saint-Germain e vira um
cabrito montês, aterrado, franquear de um salto uma alameda.
Duroy, que se inclinara, enquanto ela olhava pela
portinhola, depôs-lhe um beijo de amante no cabelo, junto da
nuca. Madalena ficou alguns momentos imóvel e, depois,
levantou a cabeça:
- Faz-me cócegas; acabe com isso.
Jorge não queria acabar e passeava, docemente, numa carícia
enervante e prolongada, o seu bigode frisado pela carne alva.
Madalena sacudiu-o:
- Então, acabe com isso!
O marido pegara-lhe na cabeça com a mão direita metida por
detrás dela e voltou-a para si. Depois, atirou-se-lhe à boca
como um gavião à presa. Madalena debatia-se, repelia-o,
procurava desenvencilhar-se. Conseguiu-o, por fim, e repetiu:
- Então, acabe com isso!
Duroy não a ouvia, estreitava-a contra si, beijava-a, com
lábios ávidos e frementes, tentava deitá-la na banqueta da
carruagem. A mulher libertou-se com um grande esforço e,
levantando-se, disse com vivacidade:
- Oh! Vamos, Jorge, acabe com isso. Já não somos crianças e
podemos muito bem esperar até Ruão.
O marido ficou sentado, muito corado, mas frio ante aquelas
palavras razoáveis. Depois, recobrou algum sangue-frio e disse
com graça:
175
- Seja, esperarei; mas não poderei pronunciar vinte palavras
daqui até à chegada; e lembre-se de que ainda estamos a
atravessar Poissy.
- Serei eu quem falará - retorquiu Madalena.
Voltou a sentar-se, docemente, junto dele, e falou, com
precisão daquilo que fariam no seu regresso. Deveriam
conservar a casa em que vivera com o primeiro marido. Duroy
herdava, também, as funções e o vencimento que Forestier tinha
na Vie Française.
Antes do casamento, aliás, Madalena regularizara, com uma
precisão de homem de negócios, todos os pormenores financeiros
do lar. Associavam-se no regime de separação de bens e estavam
previstos todos os casos que poderiam dar-se: morte, divórcio,
nascimento de um ou mais filhos. O marido levava quatro mil
francos, segundo dizia, mas para completar essa soma pedira
emprestados mil e quinhentos francos. O resto provinha de
economias feitas durante o ano, na previsão do acontecimento.
A mulher levava quarenta mil francos, que lhe deixara
Forestier, como dizia. Referiu-se a este para citar o seu
exemplo:
- Era um rapaz muito económico, muito arranjado e muito
trabalhador. Poderia fazer fortuna em pouco tempo.
Duroy não a ouvia, muito ocupado com outros pensamentos.
Madalena deteve-se, para seguir uma ideia íntima, e depois
prosseguiu:
- Daqui a três ou quatro anos pode muito bem ganhar de
trinta a quarenta mil francos por ano. É o que teria Carlos,
se tivesse vivido.
Jorge começava a achar longa a lição e retorquiu:
- Parece-me que não íamos a Ruão para falar dele.
Madalena deu-lhe uma pancadinha na face e replicou a rir:
- É verdade; fiz mal.
Jorge simulou pôr as mãos nos joelhos, como os meninos bem
educados, e ela disse-lhe:
- Assim, tem um ar parvinho.
- É o meu papel - replicou o marido. - Lembrou-mo, há pouco,
e não sairei mais dele.
- Porquê? - perguntou Madalena.
- Porque toma a direcção da casa e até da minha pessoa. Isso
diz-Lhe respeito, efectivamente, como viúva!
Madalena ficou surpreendida:
176
- Que quer dizer, afinal, com isso?
- Que tem uma experiêncía capaz de dissipar a minha
ignorância e uma prática do casamento que me esclarecerá a
minha inocência de celibatário, aqui tem!
- Isso é forte! - exclamou Madalena.
Jorge retorquiu:
- É assim mesmo. Não conheço as mulheres, não é? Conhece os
homens, pois é viúva, não é? Vai fazer a minha educação, esta
noite, não é? Pode começar até imediatamente, se quiser, não
é?
Madalena exclamou, muito divertida:
- Oh! Essa agora! Se conta comigo para isso!...
O marido pronunciou, com uma voz de colegial que gagueja a
sua lição:
- Mas sim... não é? Conto com isso... Conto até que me dará
uma instrução sólida... em vinte lições... Dez para os
elementos... a leitura e a gramática... dez para os
aperfeiçoamentos e... a retórica... Eu não sei nada, não é?...
Cada vez mais divertida, Madalena exclamou:
- És parvo!
- Visto - continuou Jorge - que começas a tratar-me por tu,
imitarei, imediatamente, o exemplo e dir-te-ei, meu amor, que
te adoro cada vez mais, de segundo em segundo, e que acho ser
Ruão muito longe.
Falava com intonações de actor e umas caras engraçadas que
divertiam a mulher, habituada às maneiras e graçolas da grande
boémia dos homens de letras.
Madalena olhava para ele de lado e achava-o,
verdadeiramente, encantador. Sentia o apetite que por vezes
temos de morder um fruto apanhado da árvore e a hesitação do
raciocínio que manda esperar pelo jantar para o comer na hora
própria. Disse, então, corando com os pensamentos que a
assaltavam:
- Meu caro discípulo, acredite na minha grande experiência.
Os beijos no comboio não valem nada. Dão volta ao estômago. -
Corou ainda mais ao murmurar: - Não devemos colher a fruta
ainda verde.
Jorge brincava, excitado com os subentendidos que sentia
aflorar naquela linda boca. Fez o sinal-da-cruz, com um
sussurro de lábios como se estivesse a rezar, e declarou:
- Acabo de invocar a protecção de Santo Antão, advogado
contra as tentações. Daqui por diante, serei como uma pedra.
177
A noite descia docemente, a envolver, numa sombra ténue,
como uma leve gaze, a grande campina que se estende à direita.
O comboio seguia ao longo do Sena e os dois puseram-se a olhar
para o rio, que parecia uma larga fita de metal polido ao lado
da via férrea, com reflexos avermelhados e manchas caídas do
céu que o Sol, ao partir, cobrira de púrpura e de fogo. Esses
clarões extinguiam-se aos poucos, tornavam-se mais escuros,
ensombravam-se tristemente. A campina afogava-se, na
escuridão, com um arrepio sinistro, esse arrepio de morte que
o crepúsculo provoca na terra.
Essa melancolia do fim da tarde, ao entrar pela janela
aberta, penetrava nas almas, tão alegres até então, e o casal
ficou silencioso. Tinham-se aproximado um do outro, para
contemplar essa agonia do belo dia claro de Maio. Em Mames,
foi acendido o candeeirinho de azeite que lançava a sua
claridade amarelada e trémula pelos estofos cor de cinza do
compartimento. Duroy envolveu sua mulher pela cintura e
puxou-a para si. O seu desejo agudo de pouco antes tornara-se
ternura, uma ternura dolente, um mole apetite de pequeninas
carícias consoladoras, dessas carícias que se fazem às
crianças. Murmurou, baixinho:
- Hei-de gostar muito de ti, minha pequenina Mada...
A doçura daquela voz abalou a mulher e fez-lhe passar pela
carne um frémito rápido. Deu-Lhe a sua boca, inclinando-se
para ele, pois o marido apoiara a face na tépida almofada dos
seus seios. Foi um beijo muito longo, mudo e profundo, e
depois um sobressalto, um brusco e louco abraço, uma breve
luta ofegante, uma posse violenta e contrafeita. Ficaram, por
fim, nos braços um do outro, um tanto desanimados ambos,
fatigados e ternos ainda, até o apito do comboio anunciar uma
estação próxima. Madalena confessou, enquanto, com as pontas
dos dedos, compunha o cabelo que se desmanchara nas fontes:
- Que tolice! Somos duas crianças.
Jorge beijava-lhe as mãos, ora uma, ora outra, com uma
rapidez febril, e retorquiu:
- Adoro-te, minha pequenina Mada!
Até Ruão mantiveram-se, a bem dizer, imóveis, face contra
face, e os olhos perdidos no escuro da janela por onde viam
passar, às vezes, as luzes das casas.
178
Devaneavam, alegres por se sentirem tão próximos e na
expectativa crescente de uma posse mais íntima e mais livre.
Hospedaram-se num hotel cujas janelas davam para o cais e
meteram-se na cama depois de terem comido alguma coisa, muito
pouco. A criada de quarto foi acordá-los, no dia seguinte,
logo que soaram as oito horas.
Depois de beberem a xícara de chá que fora colocada em cima
da mesa-de-cabeceira, Duroy olhou para sua mulher e depois,
bruscamente, num ímpeto alegre de homem feliz, de quem acaba
de descobrir um tesouro, tomou-a nos braços, a balbuciar:
- Minha pequenina Mada, sinto que gosto muito de ti...
muito... muito...
Madalena sorriu, com o seu sorriso confiante e satisfeito, e
murmurou, retribuindo-lhe os beijos:
- Eu também... talvez.
Jorge estava preocupado com aquela visita aos pais.
Frequentemente, prevenira antes a sua mulher, preparara-a,
catequizara-a; mas achou conveniente recomeçar:
- Bem sabes, são camponeses, camponeses do campo e não dos
das óperas cómicas.
- Bem sei - retorquiu ela a rir. - Já mo disseste muitas
vezes. Vamos, levanta-te e deixa-me também levantar.
Jorge saltou da cama e enquanto calçava as peúgas:
- Ficaremos muito mal instalados lá em casa. Só há uma velha
cama com um enxergão no meu quarto. Não conhecem ainda os
colchões em Canteleu.
- Tanto melhor! - exclamou Madalena, que parecia encantada.
- Será delicioso dormir mal... junto de... junto de ti... e
ser despertada pelo cantar dos galos.
Madalena vestira o seu penteador, um grande penteador de
flanela branca que Duroy imediatamente reconheceu. Vê-lo
foi-Lhe desagradável. Porquê? Sua mulher possuía, ele não o
ignorava, mais de uma dúzia de vestidos para de manhã. Não
poderia, portanto, destruir o seu enxoval para ir comprar um
novo. Não importa, Jorge desejaria que a sua roupa branca, o
seu bragal de noite, o seu vestuário para o amor, não fosse o
mesmo usado com o outro. Parecia-Lhe que o estofo macio e
tépido, devia conservar qualquer coisa do contacto de
Forestier.
179
Acendeu um cigarro e dirigiu-se para a janela. A vista do
porto, do grande rio cheio de navios de mastros esguios, de
vapores bojudos que os guindastes giratórios esvaziavam, com
grande barulho, para o cais, impressionou-o, embora conhecesse
aquilo desde há muito tempo. Exclamou:
- Apre, como isto é belo!
Madalena acorreu, pousou as duas mãos num ombro do marido e,
inclinada para ele, num gesto de abandono, ficou encantada,
comovida, e repetiu:
- Oh! Como é bonito! Que bonito! Não sabia que havia assim
tantos navios.
Partiram uma hora mais tarde, pois tinham de ir almoçar a
casa dos pais, prevenidos havia alguns dias. Um carro,
descapotado e ferrugento, conduziu-os com um ruído de caldeira
a chocalhar. Seguiram por uma comprida avenida bastante feia,
depois atravessaram os prados por onde deslizava um ribeiro, e
começaram a subir a encosta.
Madalena, fatigada, dormitava sob a carícia penetrante do
sol, que a aquecia deliciosamente, no fundo do velho veículo,
como se tivesse mergulhado num banho tépido de luz e de ar
campestre. O marido acordou-a:
- Olha!
Tinham parado a dois terços da subida, num lugar famoso
pelas suas vistas, onde levavam todos os viajantes. De lá
dominavam o imenso vale, comprido e largo, que o rio claro
percorria dum extremo ao outro, com grandes ondulações.
Viam-no vir de longe, mosqueado por numerosas ilhas, a
descrever uma curva antes de atravessar Ruão.
A cidade aparecia na margem direita, um tanto submersa na
bruma matinal, com cintilações de sol nos tectos, os seus mil
campanários leves, agudos ou bojudos, frágeis e rendilhados
como jóias gigantescas, as suas torres quadradas ou redondas,
decoradas de coroas heráldicas, os seus cruzeiros, as suas
sineiras, toda a decoração dos cimos das igrejas dominada pela
flecha aguda da catedral, surpreendente agulha de bronze,
feia, estranha e desmesurada, a mais alta que há no mundo.
Em frente, porém, na outra margem do rio, elevavam-se,
roliças e reforçadas nos cimos, as delgadas chaminés das
fábricas do vasto arrabalde de Saint-Sever. Mais numerosas de
que os campanários seus irmãos, erguiam, até ao extremo da
campina longínqua, as suas compridas colunas de tijolos,
180
e sopravam para o céu azul o seu bafo negro de carvão.
A mais elevada de todas, tão alta como a pirâmide de Quéope,
o segundo dos cimos criados pelo trabalho humano, quase igual
à sua orgulhosa comadre, a flecha da catedral , a grande bomba
de togo da Foudret, parecia a rainha do povo trabalhador e
fumegante das fábricas, como a sua vizinha era a rainha da
multidão pontiaguda dos monumentos religiosos.
Ao longe, por trás da cidade operária, estendia-se um
pinhal. O Sena, depois de passar entre as duas cidades,
continuava o seu caminho, ao longo de margens ondulantes,
arborizadas nos cimos e a deixar ver em certos pontos a sua
ossatura de pedra branca, e, depois, desaparecia no horizonte
, não sem ter descrito antes uma larga curva.
Viam-se os navios a subir e a descer o rio, arrastados pelos
rebocadores, que pareciam moscas e expeliam uma fumarada
espessa. As ilhas, dispersas na água, ora se alinhavam uma na
extremidade da outra, ora deixavam entre si grandes
intervalos, como as contas desiguais dum rosário verdejante.
O cocheiro do carro esperou que os viajantes acabassem de se
extasiar. Conhecia por experiência o prazo de admiração de
todas as raças de viajantes. Quando se pôs a caminho, Duroy
descobriu, subitamente, à distância de algumas dezenas de
metros, duas pessoas de idade que vinham na direcção oposta.
Saltou do carro e gritou:
- Ei-los! Reconheço-os.
Eram dois camponeses, homem e mulher, que caminhavam com
passo irregular, balanceando e tocando-se por vezes nos
ombros. O homem era baixo, entroncado, vermelhusco e um tanto
barrigudo, mas vigoroso, a despeito da sua idade; a mulher,
alta, magra, curvada, triste, era a verdadeira mulher de
trabalho dos campos, que labuta desde a infância e nunca ri,
enquanto o marido conversa e bebe com os companheiros.
Madalena também desceu do carro e viu aproximarem-se aqueles
dois pobres seres, com um aperto no coração, uma tristeza que
não previra de maneira nenhuma. Não reconheceriam jamais o seu
filho naquele bonito senhor, nem a sua nora naquela bonita
dama de vestido claro. Caminhavam, rapidamente, e sem trocar
palavra, à procura do filho que esperavam, sem reparar
naquelas pessoas da cidade que iam de carro.
181
Passaram e Jorge, a rir, gritou:
- Bô dí... ti Duroy. Ambos pararam de sopetão, a princípio
estupefactos, depois esmagados pela surpresa. A velha foi a
primeira a recobrar ânimo e balbuciou, sem dar um passo:
- És tu o nosso filho?
- Claro que sou eu, ti Duroy! - respondeu o rapaz ao
caminhar para a mãe, a quem beijou nas duas faces com um
grande beijo de filho. Depois, encostou a fronte contra a do
velho, que tirara o barrete, um barrete à moda de Ruão, de
seda preta, muito comprido, semelhante aos dos negociantes de
gado.
- Aqui está a minha mulher! - apresentou Jorge.
Os dois camponeses olharam para Madalena. Encararam-na como
quem contempla um fenómeno, com uma inquietação medrosa, junta
a uma espécie de aprovação, por parte do pai, e a uma
inimizade ciumenta, por parte da mãe. O homem, que era de
natureza alegre, impregnado duma boa disposição feita de cidra
doce e de álcool, animou-se e perguntou com a malícia ao canto
do olho:
- A gente pode beijá-la ou não?
- Ora essa! - retorquiu o filho.
Madalena, pouco à vontade, deu as duas faces às beijocas
sonoras do camponês, que limpou em seguida os lábios com as
costas das mãos.
A velha, por sua vez, beijou-a, com uma reserva hostil. Não,
aquela não era a nora dos seus sonhos, a gorda e rica
lavradeira, vermelha como uma maçã, roliça como uma égua de
criação. Aquela tinha o ar duma perdida, com os seus foLhos e
o seu almíscar, pois todos os perfumes para a velha eram
almíscar.
Retomaram o andamento atrás do carro que levava a mala do
novo casal. O velho meteu o braço no do filho e, deixando-se
ficar para trás, perguntou com interesse:
- E então, corre-te bem a vida?
- Claro que sim, muito bem.
- Vamos, isso basta, tanto melhor! Diz-me cá: a tua muLher
tem alguma coisa de seu?
- Quarenta mil francos - respondeu Jorge.
O velho soltou um breve assobio de admiração, impressionado
com a quantia, e murmurou:
182 183
- Apre! - acrescentando com convicção: - Com os diabos! É
uma bonita mulher!
Achava-a a seu gosto, e tinha fama de ser conhecedor, no seu
tempo.
Madalena e a mãe caminhavam lado a lado, sem trocar palavra.
Os dois homens foram juntar-se a elas.
Chegaram à aldeia, uma aldeiazinha à beira da estrada,
formada por seis casas de cada lado, umas de tijolos e outras
de terra batida, estas cobertas de colmo e as outras de
ardósia. A do tio Duroy, A Bela Vista, era uma casota composta
dum rés-do-chão e dum sótão. Ficava à entrada da terra, à
esquerda. Um ramo de pinheiro, por cima da porta, indicava, à
moda antiga, que as pessoas com sede podiam entrar.
A mesa estava posta na sala do estabelecimento, duas
mesinhas unidas cobertas com duas toalhas. Uma vizinha,
chamada para ajudar ao serviço, fizera uma grande reverência
ao ver aparecer uma senhora tão bonita. Depois, ao reconhecer
Jorge, exclamou:
- Jesus Nosso Senhor! És tu, pequeno?
- Sim, sou eu, ti Brulin! - respondeu Jorge alegremente, e
beijou-a como beijara o pai e a mãe.
- Vamos ao nosso quarto, para tirares o chapéu - disse,
voltando-se para Madalena.
Fê-la entrar, pela porta da direita, num compartimento frio,
ladrilhado, muito branco, com as paredes caiadas e a cama com
cortinados de cassa. Um crucifixo por cima duma piazinha de
água-benta, e duas estampas coloridas, que representavam Paulo
e Virgínia sob uma palmeira azul e Napoleão num cavalo
amarelo, eram os únicos ornatos do aposento, limpo mas
desolador.
Logo que ficaram sós, Jorge beijou Madalena:
- Querida Mada, estou contente por voltar a ver os velhos.
Quando estamos em Paris não pensamos nisto, mas quando nos
encontramos sempre dá uma certa alegria.
O pai, porém, gritava, batendo com o punho na porta:
- Vamos, vamos, a sopa está pronta!
Era preciso ir para a mesa. Foi um longo almoço de
camponeses, com uma série de pratos mal combinados: uma
morcela por cima do assado e uma omeleta por cima da morcela.
O tio Duroy, um bocadinho alegre, com a cidra e uns copinhos
de vinho, abrira a torneira das suas graçolas escolhidas, as
que reservava para os dias de festa, anedotas marotas e pouco
decentes, acontecidas, segundo pretendia, a amigos seus.
Jorge conhecia-as todas, mas apesar disso ria, embriagado
pelo ambiente natal, retomado pelo amor inato à terra, aos
locais familiares da infância, por todas as sensações, todas
as recordações reencontradas, todas as coisas de outrora,
revistas, pequenos nada; uma marca à navalha numa porta, uma
cadeira coxa que lembra qualquer coisa, o perfume do solo, o
grande sopro de resina e de amoras vindo da floresta vizinha,
os cheiros da casa, do regato, da estrumeira.
A tia Duroy não dizia nada, sempre triste e severa a espiar
de revés a nora, com um ódio aceso no coração, um ódio de
velha trabalhadora, de velha rústica de dedos nodosos e
membros deformados pelas tarefas pesadas, contra aquela mulher
da cidade, que lhe inspirava uma repulsa de maldita, de
perdida, de ser impuro feito para a mandriice e o pecado.
Estava sempre a levantar-se para ir buscar os pratos, para
deitar nos copos a bebida amarela e ácida do garrafão ou a
cidra ruiva e espumosa das garrafas cujas rolhas saltavam como
as da limonada gasosa.
Madalena não comia nada, não dizia coisa nenhuma;
mantinha-se triste, com um sorriso desenhado nos lábios, mas
um sorriso pálido, resignado. Estava desiludida e contrariada.
Porquê? Fora ela quem quisera ir. Não ignorava de maneira
nenhuma que ia para casa de camponeses e de pequenos
camponeses. Como os tinha, então, sonhado ela, que
habitualmente não sonhava? Porventura, sabia-o? Não é verdade
que as mulheres esperam sempre coisa diferente do que é? De
longe, vira os mais poéticos?
Não, mas talvez mais literários, mais nobres, mais
afectuosos, mais decorativos. Não os desejava, no entanto,
distintos como os dos romances. Como era então que a chocavam
por mil coisas pequeninas, invisíveis, por mil grosserias
difíceis de precisar, pela sua própria natureza de rústicos,
pelo que diziam; pelo seu gesto e a sua alegria, Madalena
recordava-se da sua própria mãe, de quem nunca falava a
ninguém, uma professora seduzida, educada em São Dinis, e
morta de miséria e de desgostos, quando a filha tinha doze
anos. Um desconhecido fizera educar a órfã. Talvez seu pai?
Quem era ele? Nunca soube ao certo, embora tivesse vagas
suspeitas.
184
O almoço parecia não acabar mais. Os fregueses entravam na
loja, apertavam a mão do tio Duroy e soltavam exclamações de
surpresa ao ver o filho. Ao olharem de lado para Madalena,
piscavam os olhos com malícia, o que significava: "Apre! Não é
peste nenhuma a mulher do Jorge Duroy!" Outros, menos íntimos,
sentavam-se às mesas de pau e pediam: "Um litro!,; Uma caneca;
Dois da rija,!; Um licor"; e punham-se a jogar ao dominó,
batendo com grande ruído as pedras na mesa. A tia Duroy ia e
vinha, a servir os fregueses, com o seu ar triste, recebendo o
dinheiro e limpando as mesas com a ponta do seu avental azul.
O fumo dos cachimbos e dos cigarros baratos enchia a casa.
Madalena pôs-se a tossir e pediu:
- Se saíssemos? Já não posso mais.
Ainda não tinham acabado e o velho Duroy não ficou contente.
Então Madalena levantou-se e foi sentar-se numa cadeira
defronte da porta, na entrada, à espera de que o sogro e o
marido acabassem de tomar o seu café e os seus copinhos. Em
breve, Jorge se lhe juntou, perguntando:
- Queres descer até ao Sena?
- Oh! Sim. Vamos - aceitou a esposa com alegria.
Desceram o monte, alugaram um barco, em Croisset, e passaram
o resto da tarde ao longo duma ilha, debaixo dos salgueiros,
ambos sonolentos, na doce tepidez da Primavera, embalados
pelas ondazinhas do rio. Recolheram a casa quando a noite
desceu.
A refeição da tarde, à luz duma vela, ainda foi mais penosa
para Madalena do que a da manhã. O tio Duroy, semiembriagado,
não falava; a velha conservava o rosto fechado.
A fraca luz lançava nas paredes cinzentas sombras de cabeças
com narizes enormes e gestos desmesurados. Via-se, por vezes,
certa mão gigantesca levantar um garfo, parecido com uma
forquilha, para uma boca que se abria como uma goela de
monstro. Quando alguém se voltava um tanto, o seu perfil era
desenhado pela luz amarelada e trémula.
Mal acabou o jantar, Madalena levou o marido para fora, a
fim de não permanecer naquela sala sombria onde flutuavam
sempre os odores acres das velhas pipas e das bebidas
derramadas. Quando saíram, Jorge disse-lhe:
- Já estás aborrecida?
185
Madalena procurou protestar; mas o marido deteve-a:
- Não. Bem o vi. Se o desejas, regressaremos amanhã.
- Sim. Desejo-o muito - murmurou a esposa.
Caminharam em frente, devagar. Estava uma noite tépida, cuja
sombra cariciosa e profunda parecia cheia de ruídos leves, de
sussurros, de sopros. Entraram numa alameda estreita, sob
árvores muito altas, entre duas alas de arbustos aparados, dum
negro impenetrável. Madalena perguntou:
- Onde estamos?
- Na floresta - respondeu o marido.
- É muito grande?
- Muito grande, uma das maiores da França.
Um cheiro a terra, a árvores, a musgo, esse perfume fresco e
velho dos bosques densos, feito da seiva dos pomos e da erva
morta e apodrecida nos valados, parecia pairar, dormente,
naquela alameda. Ao levantar a cabeça, Madalena entrevia as
estrelas entre as franças das árvores e, embora nenhuma brisa
agitasse os ramos, sentia à sua volta a vaga palpitação
daquele oceano de folhagem.
Um estranho arrepio Lhe saiu da alma e lhe percorreu a pele;
uma confusa angústia apertou-lhe o coração. Porquê? Não
compreendia; mas parecia-lhe estar perdida, afogada, envolta
em perigos, abandonada de todos, sozinha, só no mundo, sob
aquela abóbada viva, que fremia lá em cima. Murmurou então:
- Tenho um certo medo. Desejaria regressar.
- Pois bem, regressemos.
- Voltaremos para Paris amanhã?
- Sim, amanhã.
- Amanhã de manhã?
- Amanhã de manhã, se assim o queres.
Voltaram para casa. Os velhos já estavam deitados. Madalena
dormiu mal, acordada sem cessar pelos ruídos do campo, novos
para ela, os gritos das corujas, o grunhir do porco, metido no
chiqueiro junto do muro, e o cantar dum galo que começou a
partir da meia-noite.
Levantou-se e estava pronta para partir ao primeiro alvor da
aurora. Quando Jorge anunciou aos pais que se iam embora, os
velhos ficaram ambos estupefactos, mas depois compreenderam
donde partia essa vontade. O pai perguntou simplesmente:
186
- A gente ver-te-á em breve?
- Claro que sim. No decurso do Verão.
- Vamos, ainda bem.
- Desejo que não te arrependas do que fizeste - resmungou a
velha.
O filho deixou-lhes duzentos francos como lembrança, para
lhes acalmar o descontentamento. O carro, que um garoto fora
buscar apareceu por volta das dez horas; o casal, depois de
beijar os velhos camponeses, partiu. Quando desciam a colina,
Duroy pôs-se a rir, ao dizer:
- Aí tens; tinha-te prevenido. Não deveria ter-te dado a
conhecer o senhor e a senhora Du Roy de Cantei, pai e mãe.
Madalena pôs-se a rir também, e replicou:
- Agora, sinto-me encantada. São boa gente, de quem começo a
gostar muito. Enviar-lhes-ei lembranças de Paris.
Depois murmurou:
- Du Roy de Cantei...! Verás que ninguém se surpreenderá com
as nossas participações de casamento. Diremos que passámos
oito dias na propriedade dos teus pais.
Aproximou-se do marido e aflorou com um beijo a guia do seu
bigode:
- Bom dia, Geo!
- Bom dia, Mada! - correspondeu o marido, envolvendo-lhe a
cintura com o braço.
Entrevia-se ao longe, no fundo do vale, o grande rio que
parecia uma fita de prata sob o sol da manhã, as chaminés das
fábricas que sopravam para o céu as suas nuvens de carvão e
todas as agudas sineiras erectas por cima da velha cidade.
X
O casal Du Roy regressara a Paris, havia dois dias, e o
jornalista retomara a sua tarefa, à espera de deixar o serviço
dos Ecos,, para ocupar definitivamente as funções de Forestier
e consagrar-se completamente à política.
Voltava a casa, nessa tarde, à residência do seu antecessor,
bem-disposto para o jantar, com o vivo desejo de beijar,
dentro em pouco, sua mulher, de quem sentia o irresistível
encanto físico e o insensível domínio. Ao passar em frente
duma florista, ao fundo da Rua de Notre-Dame-de-Lorette, teve
a ideia de comprar flores para Madalena e pegou num grande
ramo de rosas, só entreabertas, um molho de botões perfumados.
Em cada patamar da sua nova escada, mirava-se,
complacentemente, naquele espelho cuja vista Lhe lembrava, sem
cessar, a primeira vez que entrara naquela casa.
Bateu à porta, pois esquecera-se da chave, e o mesmo criado,
que conservara ao seu serviço, a conselho da mulher, abriu-Lhe
a porta. Perguntou-lhe:
- A senhora já veio?
- Já sim, senhor.
Ao atravessar a sala de jantar, Jorge ficou muito
surpreendido por ver a mesa posta para três pessoas. Como o
reposteiro da sala estava afastado, viu Madalena a dispor numa
jarra, na pedra do fogão de sala, um molho de rosas
perfeitamente igual ao que Lhe levava. Ficou contrariado,
descontente, como se lhe tivessem roubado a sua ideia, a sua
atenção com a mulher e todo o prazer que esperava tirar disso.
Ao entrar, perguntou:
- Convidaste, então, alguém?
- Sim e não - respondeu a esposa sem se voltar e continuando
a dispor as flores na jarra. - É o meu velho amigo, o conde de
Vaudrec, que tem o hábito de jantar cá todas as
segundas-feiras e que veio como de costume.
- Ah! Muito bem - murmurou Jorge.
188
Ficou de pé, atrás dela, com o seu ramo na mão e uma grande
vontade de o esconder, de o atirar fora. No entanto, disse:
- Aqui tens, trouxe-te estas rosas!
Madalena voltou-se de súbito, toda sorridente, e exclamou:
- Ah! Como foste gentil por teres Essa ideia!
Estendeu-Lhe os braços e deu-lhe a boca, num impulso de
prazer tão espontâneo que Jorge sentiu-se consolado. Pegou nas
flores, aspirou-as e, com a vivacidade duma criança feliz,
colocou-as na jarra que estava vazia em face da outra.
Murmurou, depois, ao observar o efeito:
- Como estou contente! Eis o meu fogão agora completamente
enfeitado. - Acrescentou quase imediatamente, com ar
convencido: - Sabes? Vaudrec é encantador; vão ficar
imediatamente íntimos.
um toque de campainha anunciou a chegada do conde, que
entrou tranquilo, muito à vontade, como em sua casa. Depois de
ter beijado, com galantaria, os dedos de Madalena, voltou-se
para o marido, estendeu-Lhe a mão, cordialmente, e perguntou:
- Como tem passado, meu caro Du Roy?
Mantinha o seu ar rígido e afectado de outrora, mas uma
atitude afável, que revelava muito bem não ser já a mesma a
situação. O jornalista, surpreendido, procurou mostrar-se
gentil, para corresponder à sua amabilidade. Passados cinco
minutos, dir-se-ia que se conheciam e estimavam, havia mais de
dez anos. Então, Madalena, cujo rosto estava radiante,
disse-Lhes:
- Deixo-os juntos. Preciso dar uma vista de olhos à minha
cozinha - e saiu, seguida pelo olhar dos dois homens.
Quando voltou, encontrou-os a falar de teatro, a propósito
duma nova peça, tão completamente da mesma opinião que uma
amizade súbita se revelava nos seus olhos ante a descoberta
dessa inteira semelhança de ideias. O jantar foi encantador,
muito íntimo e cordial.:. (O conde ficou até tarde a passar o
serão, tanto se sentia bem naquele lar novo e bonito.
Mal o conde partiu, Madalena disse ao marido:
- Não é verdade que é uma pessoa estimável?Ganha em ser
conhecido. Eis um bom amigo, firme, devotado, fiel. Ah! Sem
ele...
189
Não concluiu o seu pensamento, e Jorge retorquiu:
- Sim, acho-o muito agradável e creio que nos entenderemos
muito bem.
Madalena, porém, atalhou:
- Sabes, temos de trabalhar esta noite, antes de nos
deitarmos. Não tive tempo de te dizer isso antes do jantar,
porque Vaudrec chegou. Trouxeram-me notícias graves de
Marrocos. Foi Laroche-Mathieu, o deputado, o futuro ministro,
que mas deu. É preciso fazermos um grande artigo, um artigo
sensacional. Possuo factos e números. Vamos meter ombros à
tarefa, imediatamente. Olha, pega no candeeiro.
O marido fez o que ela Lhe dizia e passaram para o gabinete
de trabalho. Alinhavam-se os mesmos livros na estante, que
tinha a mais, na cimalha, as três jarras compradas no golfo
Juan, por Forestier, na véspera do seu derradeiro dia. Debaixo
da mesa, o abafo dos pés do falecido aguardava os de Du Roy,
que, mal se sentou, lançou mão da caneta de marfim, um tanto
mordida na ponta pelos dentes do outro.
Madalena, encostada ao fogão, depois de acender um cigarro,
contou o qUe sabia, expôs em seguida as suas ideias e o plano
do artigo que imaginara.
O marido ouvia-a com atenção, ao mesmo tempo que rabiscava
notas. Quando ela terminou, Jorge levantou algumas objecções.
Retomou a questão sob diversos aspectos, aumentou-a e, por seu
tUrno, desenvolveu, não o plano dum artigo, mas o de toda uma
campanha contra o Ministério actual. Aquele ataque seria o
começo. Madalena deixara de fumar, tanto o seu interesse
despertara. Via mais largo e mais longe, sem deixar de seguir
o pensamento do marido. Murmurava de tempos a tempos:
- Sim... sim...-: está mUito bem... Isso é excelente... É
muito boa ideia.
Quando ele, por sUa vez, acabou de falar, a mulher proferiu:
- Agora, escrevamos.
Jorge contimuava, no entanto, a ter dificuldades em começar
e procurava as palavras com dificuldade. Então, a esposa vinha
inclinar-se, docemente, por cima do seU ombro e punha-se a
murmurar-lhe as frases, baixinho, no ouvido. De tempos a
tempos, hesitava e perguntava:
- É isto que queres dizer?
190
- Sim, perfeitamente - respondia o marido.
Madalena encontrava ditos acerados, frases venenosas de
mulher, para ferir o presidente do Conselho, e misturava a
troça às suas feições com a dirigida à sua política, duma
maneira que dava vontade de rir e impressionava, ao mesmo
tempo, pela justeza da observação.
Du Roy, por vezes, acrescentava algumas frases, que tornavam
mais profundo e vigoroso o alcance do ataque. Conhecia, além
disso, a arte dos subentendidos pérfidos, que aprendera ao
afiar os seus ecos, e quando um facto dado como certo por
Madalena lhe parecia duvidoso ou comprometedor, era hábil na
maneira de o dar a entender de modo a impô-lo no espírito do
leitor ainda com mais força do que se o tivesse afirmado.
Quando o artigo ficou pronto, Jorge leu-o em voz alta,
declamando-o. De comum acordo, acharam-no admirável e
sorriram um para o outro, encantados e surpreendidos, como
se tivessem feito uma grande descoberta. Fitaram-se nos
olhos, comovidos de admiração e enternecimento, e beijaram-se
com ímpeto, num ardor amoroso comunicado pelos seus espíritos
aos seus corpos. Du Roy pegou no candeeiro e profriu, com o
olhar brilhante:
- Agora, vamos fazer ó-ó...
- Vá à frente, meu senhor, para iluminar o caminho -
proferiu Madalena.
Jorge passou à frente e a esposa seguiu para o seu quarto,
fazendo-Lhe cócegas no pescoço com as pontas dos dedos, entre
o colarinho e o cabelo, para o fazer andar mais depressa, pois
ele temia essa carícia.
O artigo apareceu com a assinatura de Jorge du Roy de Cantei
e causou grande barulho. Impressionaram-se com ele na Câmara.
O velho Walter felicitou o autor por isso e encarregou-o das
notas políticas da Vie FranÇaise. Os ecos voltaram para
Boisrenard.
Começou, então, no jornal, uma campanha hábil e violenta
contra o Ministério que estava no poder. Os ataques eram
sempre vigorosos e recheados de factos, ora irónicos ora
sérios, por vezes engraçados, outras virulentos. Du Roy feria
com uma segurança e uma continuidade que surpreendiam toda a
gente. As outras gazetas citavam, sem cessar, a Vie Française
e transcreviam períodos inteiros.
191
Os homens que estavam no poder informaram-se se não podiam
amordaçar com uma prefeitura(1) aquele inimigo desconhecido e
encarniçado.
Du Roy tornou-se célebre nos agrupamentos políticos. Sentia
crescer a sua influência pelo vigor dos apertos de mão e pela
profundidade das chapeladas. Sua mulher aliás, enchia-o de
surpresa e de admiração pela engenhosidade do seu espírito, a
habilidade em obter as suas informações e o número dos seus
conhecimentos.
Jorge encontrava muitas vezes na sua sala, ao chegar a casa,
um senador, um deputado, um magistrado, um general, que
tratavam Madalena como a uma velha amiga, com uma
familiaridade séria. Onde tinha ela conhecido toda aquela
gente? Na sociedade, segundo dizia: mas como pudera captar a
sua confiança e a sua afeição? Jorge não compreendia. e
pensava: "Faria uma excelente diplomata."
Madalena chegava- frequentemente tarde a casa à hora das
refeições, ofegante, corada, fremente, e antes até de tirar o
véu dizia:
- Tenho um petisco. hoje. Imagina que o ministro da Justiça
acaba de nomear dois magistrados que fizeram parte das
comissões mistas. Vamos aplicar-lhe uma tunda de que há-de
lembrar-se por muito tempo.
Davam a tunda ao ministro e aplicavam-lhe outra no dia
seguinte e uma terceira depois. O deputado Laroche-Mathieu,
que jantava todas as terças-feiras, na Rua Fontaine, a seguir
ao conde de Vaudrec, que começava a semana, apertava
vigorosamente as mãos da mulher e do marido, com excessivas
demonstrações de alegria, e não cessava de repetir:
- Santo Deus! Que campanha. Se não conseguíssemos nada
depois disto?
Esperava obter, com efeito, a pasta dos Negócios
Estrangeiros, que almejava havia muito tempo. Era um destes
políticos de duas caras, sem convicções, sem capacidade, sem
audácia e sem relações sérias. Advogado da província, bonito
homem de capital de departamento, mantinha um equilíbrio de
espertalhão entre os partidos extremistas. Era uma espécie de
jesuíta republicano e de cogumelo liberal de natureza
duvidosa,
*1. Cargo de perfeito, correspondente ao de qualquer .n d
Governador civil. (N. do T.
192
como medram tantos sobre a estrumeira popular do sufrágio
universal.
O seu maquiavelismo de campanário fazia-o passar por uma
força entre os seus colegas, entre todos os desclassificados e
os abortos de que são feitos os deputados. Era bastante
bem-posto, assaz correcto e suficientemente amável para
triunfar. Tinha êxitos na sociedade, mas na sociedade
misturada, turva e pouco fina, dos altos funcionários da
situação. Por toda a parte, diziam dele: "Laroche será
ministro" e pensava, também, mais firmemente do que todos os
outros, que Laroche seria ministro.
Era um dos principais accionistas do jornal do velho Walter,
seu colega e associado em muitas questões financeiras. Du Roy
apoiava-o confiadamente e com umas esperanças confusas, para
mais tarde. Nada mais fazia, aliás, do que prosseguir na obra
começada por Forestier, a quem Laroche-Mathieu prometera a
cruz(1) quando chegasse o dia do triunfo. A condecoração iria,
simplesmente, para a lapela do novo marido de Madalena. Não
havia nada mudado, em suma.
Sentia-se de tal maneira nada haver mudado que os colegas de
Du Roy lhe faziam uma partida com a qual começava a
irritar-se. Mal chegava ao jornal, um deles gritava-lhe:
- Então, que há, Forestier?
Jorge fingia não ouvir e ia buscar a correspondência ao seu
cacifo. A voz repetia, com mais força:
- Então, Forestier?
Ouviam-se alguns risos abafados. Certa vez, quando Du Roy se
dirigia para o gabinete do director, o que o chamava deteve-o:
- Desculpa; estou a falar contigo. É uma estupidez; mas
confundo-te sempre com o pobre Carlos. Isso provém de os teus
artigos se parecerem tanto com os dele. Todos fazem a mesma
confusão.
Duroy não respondeu, mas enraivecia-se. Uma cólera surda
crescia nele contra o morto. O próprio Walter dissera, quando
alguém manifestou estranheza com as semelhanças flagrantes, na
maneira e na inspiração, das crónicas do novo redactor
político e nas do antigo:
*1. O grau de cavaleiro da Legião de Honra. (N. do T.)
193
- Sim, é o estilo de Forestier, mas dum Forestier mais
sólido, mais nervoso, mais viril.
Uma outra vez, Du Roy, ao abrir, por acaso, o armário onde
estavam os bilboqués, encontrara os do seu predecessor com um
crepe em volta do cabo. Aquele de que se servia, ao
exercitar-se sob a direcção de Saint-Potin, estava ornado com
um laço de fita cor-de-rosa. Tinham sido alinhados todos na
mesma prateleira, por tamanhos, e um dístico semeLhante ao dos
museus mostrava escrito o seguinte: "Antiga colecção Forestier
e Co., Forestier Du Roy, sucessor, diplomado pela S. G. D. G.
Artigos resistentes que podem servir em todas as
circunstâncias, até em viagem."
Jorge fechou o armário, calmamente, e proferiu bastante alto
para ser ouvido:
- Há imbecis e invejosos por toda a parte.
Ficara, porém, ferido no seu orgulho, ferido na sua vaidade,
essa vaidade e orgulho vingativos dos escritores, que produzem
uma susceptibilidade nervosa, sempre alerta, tanto no repórter
como no poeta genial. A palavra Forestier, feria-Lhe o ouvido.
Tinha medo de a ouvir e sentia-se corar quando a pronunciavam.
Esse nome era, para ele, uma troça mordaz, mais do que uma
troça: um insulto. Significava: "É tua mulher quem faz a
tarefa, como fazia a do outro. Não serias nada sem ela."
Admitia, perfeitamente, que Forestier não teria sido nada sem
Madalena; mas, quanto a ele, era outra coisa!
Depois, quando voltava para casa, a preocupação continuava.
Era, então, a casa inteira que lhe lembrava o morto, todo o
mobiliário, todas as bugigangas, tudo em que tocava. Não
pensara nada disso, nos primeiros tempos; mas a insistência
dos colegas causara-lhe no espírito uma espécie de ferida que
uma porção de insignificâncias, que passavam despercebidas até
então, envenenavam agora. Não podia, daí por diante, pegar num
objecto sem ver a mão de Carlos colocada nele. Não via nem
manejava coisas que não tivessem, outrora, sido adquiridas,
amadas e possuídas pelo outro.
Jorge começava a irritar-se só com o pensamento das relações
antigas entre o amigo e sua mulher. Surpreendia-se, por vezes,
com essa revolta do seu íntimo, que não compreendia de maneira
nenhuma, e perguntava a si próprio: "Como diabo pode ser isto?
194
Não tenho ciúmes dos amigos da Madalena. Nunca me inquieto com
o que ela faz. Ela entra e sai quando lhe apetece. Só a
recordação desse bruto do Carlos me enraivece!" Acrescentava
mentalmente: "No fundo, era um simples cretino; é sem dúvida
isso que me fere. Irrita-me que Madalena tivesse podido casar
com um parvo daqueles." Sem cessar repetia: "Como é possível
que uma mulher daquelas tenha suportado, um só instante,
semelhante animal?"
O seu rancor aumentava, todos os dias, com mil pormenores
insignificantes, que, como picadas de agulha, Lhe lembravam,
incessantemente, o outro. Bastava uma palavra de Madalena, do
criado ou da criada.
Uma noite, Du Roy, que gostava das coisas doces, perguntou:
- Por que não temos sobremesa? Não fazes servir nunca doce.
- É verdade, nunca penso nisso; é consequência de Carlos
detestar os doces... - retorquiu a mulher a rir.
Jorge interrompeu-a com um movimento de impaciência que não
pôde dominar:
- Ah! Fica a saber que Carlos começa a aborrecer-me. É
sempre: Carlos para aqui; Carlos para ali; Carlos gostava
disto; Carlos gostava daquilo. Visto Carlos já lá estar, é
melhor deixá-lo tranquilo.
Madalena olhou para o marido com surpresa, sem compreender
nada daquela cólera súbita. Depois, como era arguta, descobriu
o que se passaria nele: o trabalho lento do ciúme póstumo, a
aumentar a cada momento com tudo que recordava o outro.
Pareceu-lhe isso pueril, talvez, mas sentiu-se lisonjeada e
não retorquiu. O marido ficou contrariado com aquela irritação
que não pudera ocultar. Ora, naquela noite, depois do jantar,
tinham de fazer um artigo para o dia seguinte; Jorge tropeçou
no agasalho dos pés e, como não o pudesse voltar, atirou-o
para longe com um pontapé e perguntou a rir:
- Carlos estava sempre com frio nas patas?
- Oh! Vivia sempre com medo das constipações, não tinha o
peito sólido - respondeu Madalena a rir.
- Deu aliás provas disso - replicou Jorge, com ferocidade,
acrescentando com galantaria e beijando a mão da mulher: -
Felizmente para mim.
195
Ao deitar-se, porém, sempre preocupado com o mesmo
pensamento, Jorge perguntou ainda:
- Carlos usava também barrete de dormir, para evitar as
correntes de ar nas orelhas?
- Não; era um lenço amarrado na testa - respondeu Madalena,
que se prestou à brincadeira.
Jorge encolheu os ombros e proferiu, com um desprezo de
homem superior:
- Que idiota!
A partir de então, Carlos passou a ser, para Jorge, motivo
contínuo de debique. Falava dele a propósito de tudo, só o
tratando por "esse pobre Carlos", com um ar de infinita
comiseração. Quando voltava do jornal, onde o haviam chamado
duas ou três vezes pelo nome de Forestier, vingava-se a crivar
o morto de troças odiosas no fundo do seu túmulo. Lembrava os
seus defeitos, os seus ridículos, as suas mesquinhices,
enumerava-os complacentemente, desenvolvia-os e aumentava-os,
como se quisesse combater no coração de sua mulher a
influência dum rival detestado. Repetia:
- Diz lá, Mada, lembras-te do dia em que esse patarata de
Forestier nos pretendeu provar que os homens gordos eram mais
vigorosos do que os magros?
Depois, queria saber acerca do defunto uma quantidade de
pormenores, íntimos e secretos, que a mulher, pouco à vontade,
se recusava a dizer. O marido, porém, insistia, obstinava-se:
- Vamos, conta-me isso. Diz lá: ele devia ser muito bem
apanhado nesses momentos?
- Vejamos: deixa-me tranquila - murmurava Madalena entre
dentes.
- Não, diz lá! - continuava Jorge. - Não é verdade que ele
deveria ser um pateta na cama, esse animal! - terminando
sempre: - Que bruto que era!
Uma tarde, no fim de Junho, quando fumava um cigarro à
janela, o grande calor deu-Lhe vontade de ir dar um passeio, e
Jorge pediu:
- Minha Madazinha, queres vir dar uma volta ao Bosque?
- Sim, certamente.
1. Tomaram um fiacre aberto, foram pelos Campos Elísios,
depois pela Avenida do Bosque de Bolonha. Era uma noite
sem uma aragem, uma destas noites de estufa em que o ar
196
de Paris, sobreaquecido, entra no peito como um vapor de
fornalha. Um exército de fiacres levava para debaixo das
árvores uma multidão de enamorados. Os carros caminhavam uns
atrás dos outros, sem cessar.
Jorge e Madalena divertiam-se a contemplar todos aqueles
pares enlaçados que passavam nas carruagens: as mulheres de
vestidos claros e os homens de escuro. Era um imenso rio de
amantes que corria para o Bosque, sob o céu estrelado e
ardente. Não se ouvia outro ruído além do pesado barulho das
rodas no chão. Os carros passavam, passavam, com os dois seres
de cada fiacre estendidos nos coxins, calados, apertados um
contra o outro, perdidos na alucinação do desejo, frementes na
expectativa do amplexo próximo.
A sombra cálida parecia impregnada de beijos. Uma sensação
de voluptuosidade flutuante, de enlaces bestiais dispersos,
enchia o ar e tornava-o ainda mais sufocante. Toda aquela
gente acasalada, embriagada pelo mesmo pensamento, pelo mesmo
ardor, fazia correr um sopro de febre à sua volta. Todos
aqueles carros carregados de volúpia, por cima dos quais
parecia pairarem carícias, lançavam à sua passagem uma espécie
de bafo sensual, subtil e perturbante.
Jorge e Madalena sentiram-se também invadidos pelo contágio
da ternura. Deram-se, docemente, as mãos, sem dizer palavra,
um tanto opressos pela atmosfera pesada e pela comoção que os
invadia. Quando chegaram à volta, a seguir às fortificações,
beijaram-se, e ela balbuciou, um tanto confusa:
- Somos tão crianças como quando fomos a Ruão.
A grande torrente dos carros separara-se à entrada das
alamedas. No caminho dos Lagos, por onde seguia a gente nova,
os fiacres espaçavam-se um tanto, mas a escuridão espessa do
arvoredo, o ar vivificado pela folhagem e pela humidade dos
regatozinhos que se ouviam correr debaixo dos ramos, uma
espécie de frescura vinda do largo espaço nocturno todo
constelado de astros, davam aos beijos dos pares que rodavam
um encanto mais penetrante e uma sombra mais misteriosa. Jorge
murmurou, apertando-a contra si:
- Oh! Minha Madazinha!
- Lembras-te - disse-Lhe ela - da floresta da tua terra,
como era sinistra. Pareceu-me estar cheia de animais terríveis
e nunca mais acabar, enquanto aqui tudo é encantador.
197
Sentimos a carícia do vento e sei muito bem que Sèvres fica
do outro lado do bosque.
- Oh! - retorquiu Jorge. - Na floresta da minha terra, nada
mais havia do que veados, raposas, cabritos-monteses e javalis
e, de longe em longe, uma casa de guarda-florestal(1).
Com essa palavra, o nome do morto saiu-lhe da boca,
surpreendeu-o como se alguém o tivesse gritado do fundo duma
moita, e Jorge calou-se subitamente, retomado por essa doença
estranha e teimosa, por essa irritação ciumenta, mordente,
invencível, que lhe estragava a vida havia algum tempo.
Passado um minuto, perguntou:
- Vieste aqui algumas vezes à noite, assim, com o Carlos?
- Sim, frequentemente - respondeu Madalena.
De súbito, Jorge teve vontade de voltar para casa, uma
vontade nervosa que lhe apertava o coração. A imagem de
Forestier entrara-lhe, porém, no íntimo, possuía-o,
estrangulava-o. Só podia pensar nele, falar dele. Perguntou
com uma entoação malévola:
- Diz lá, Mada!
- Dizer o quê, meu amigo?
- Enganaste esse pobre Carlos?
Madalena murmurou, desdenhosa:
- Como te tornas aborrecido com essa seca.
O marido, porém, não abandonava a sua ideia:
- Vejamos, minha Madazinha, sê franca, confessa-o.
Enganaste-o, diz? Confessa que o enganaste?
A mulher calou-se, chocada, como todas, quando lhes falam
dessas coisas; mas Jorge insistiu, com obstinação:
- Apre! Se havia alguém com cara disso, era sem dúvida ele.
Ah! Sim, sem dúvida! Gostaria muito de saber se Forestier o
era. Hem? Que boa cachola tinha para isso!
Pareceu-Lhe que a mulher sorria, talvez a lembrar-se de
qualquer coisa, e insistiu:
- Vamos! Diz lá. Que tem isso? Seria até muito engraçado,
pelo contrário, contares-me, confessares que o tinhas
enganado, confessares-mo a mim.
Estava ansioso, com efeito, com a esperança e a vontade de
Carlos, o odioso Carlos, o morto detestado, o morto execrado,
ter sido alvo desse vergonhoso ridículo. No entanto...
*1. No original: Fôrestier.
198
no entanto, outra ansiedade, mais confusa, aguilhoava o seu
desejo de saber. Repetiu:
- Mada, minha Madazinha, peço-te que mo digas. Ele bem o
mereceu. Terias feito muito mal se não lhos tivesses posto.
Vamos, Mada, confessa!
Madalena achava, então, sem dúvida, engraçada aquela
insistência, pois ria, com uns risinhos secos, intermitentes.
Jorge colocara os lábios muito próximo do ouvido de sua
mulher e murmurava:
- Vamos... vamos... confessa-o.
Madalena afastou-se com um movimento brusco e declarou
secamente:
- Pareces estúpido. Alguém responde a perguntas dessas?
Dissera isso num tom tão estranho que um arrepio de frio
passou pelas veias do marido. Jorge ficou interdito,
desorientado, um tanto sufocado, como se tivesse recebido um
grande abalo moral.
O fiacre, nessa altura, dava a volta ao lago, onde o céu
parecia ter semeado as suas estrelas. Dois cisnes, vagos,
nadavam muito lentamente e eram apenas visíveis na sombra.
Jorge gritou ao cocheiro:
- Regressemos!
O carro deu a volta, cruzou-se com os outros que iam a passo
e cujas grandes lanternas brilhavam como olhos na noite do
bosque.
Como ela dissera aquilo de maneira tão estranha! Du Roy
perguntava a si próprio: "Seria uma confissão?" Aquela quase
certeza de que a mulher enganara o primeiro marido enchia-o de
cólera naquele momento. Tinha vontade de lhe bater, de a
estrangular, de lhe puxar pelo cabelo! Oh! Se ela tivesse
respondido: "Mas, querido, se tivesse de o enganar seria
contigo que o faria." Ah! Como a teria beijado, abraçado,
adorado!
Jorge mantinha-se imóvel, de braços cruzados, a olhar para o
céu, com o espírito demasiado agitado ainda para poder
reflectir. Sentia somente fermentar nele aquele rancor e
aumentar a cólera que chocam no coração todos os machos ante
os caprichos do desejo feminino. Sentia, pela primeira vez, a
angústia confusa do marido que suspeita. Estava, finalmente,
ciumento, ciumento pelo morto, ciumento por conta de
Forestier!
199
Ciumento duma estranha e pungente maneira em que entrava,
subitamente, o ódio contra Madalena. Desde que enganara o
outro, como poderia ele ter confiança nela?
Aos poucos, uma espécie de calma desceu no seu espírito.
Numa reacção contra o sofrimento, pensou: "Todas as mulheres
são pegas; o que é preciso é servirmo-nos delas e não Lhes dar
nada de nós próprios." A amargura do seu coração subia-Lhe aos
lábios em palavras de nojo e desprezo; mas não as deixava sair
e repetia para si: "O mundo é dos fortes. É preciso ser forte.
E preciso estar acima de tudo."
O carro rodava mais depressa e ultrapassou as fortificações.
Du Roy via, na sua frente, um clarão avermelhado no céu,
semelhante ao duma forja desmesurada. Ouvia um ruído confuso,
imenso, contínuo, feito de rumores inumeráveis e diferentes,
um barulho surdo, próximo e longínquo, uma vaga e enorme
palpitação de vida, o sopro de Paris a respirar, naquela noite
de Estio, como um colosso esgotado de fadiga. Jorge pensava:
"Seria muito estúpido se me inquietasse. Cada um por si. A
vitória é dos audaciosos. Tudo é simplesmente egoísmo e o
egoísmo pela ambição e a fortuna vale mais do que o egoísmo
pela mulher e pelo amor."
O Arco do Triunfo da Étoile surgia, erguido à entrada da
cidade, assente nas suas pernas monstruosas, espécie de
gigante informe que parecia prestes a pôr-se a caminho para
descer a larga avenida aberta na sua frente. Jorge e Madalena
encontravam-se ali, naquele desfile de carros que reconduziam
a casa, ao leito apetecido, o par eterno, silencioso e
enlaçado. Parecia-lhe que a humanidade deslizava ao lado
deles, embriagada de alegria, de prazer, de felicidade. A
mulher, que pressentia qualquer coisa do que se passava no
marido, perguntou com a sua voz doce:
- Em que pensas, meu amigo? Há meia hora que não pronuncias
uma palavra.
Jorge retorquiu, trocista:
- Penso em todos esses imbecis que se beijam e digo para mim
que, na verdade, há outras coisas a fazer na existência.
- Sim... mas é bom algumas vezes... - murmurou Madalena.
- É bom... é bom... quando não se tem mais nada que fazer!
O pensamento de Jorge continuava a despir a vida do seu
manto de fantasia com uma espécie de raiva:
200
"Serei muito parvo se estiver com cerimónias, se me privar
seja do que for, se me preocupar, se me amargurar e andar a
moer por dentro, como faço há algum tempo para cá." A imagem
de Forestier atravessou-lhe o espírito, sem lhe causar nenhuma
irritação. Parecia-lhe até que acabavam de se reconciliar, que
voltavam a ser amigos. Tinha até vontade de lhe gritar: "Boa
noite, meu velho!"
Madalena, a quem aquele silêncio incomodava, perguntou:
- Se fôssemos tomar um refresco ao Tortoni(1), antes de
voltar para casa?
Jorge olhou para ela de lado. O seu perfil de loira surgiu
sob a claridade viva da grinalda de bicos de gás que servia de
reclamo ao café-cantante. Pensou: "É bonita. Pois, tanto
melhor. Para bom rato, bom gato. Se me apanharem porém, a
atormentar-me por tua causa, será quando fizer calor no pólo
Norte." Depois, respondeu: - Claro que vamos, minha querida. -
Para ela nada adivinhar dos seus pensamentos, beijou-a.
Pareceu à mulher que os lábios do marido estavam gelados.
Jorge sorria, porém, com o seu sorriso habitual ao dar-Lhe a
mão para descer, à porta do café.
*1. Grande café do bulear, célebre na época. (N. do T.)
XI
Ao entrar no jornal, no dia seguinte, Du Roy foi ter com
Boisrenard e disse-lhe:
- Meu caro amigo, tenho um favor a pedir-te. Acham graça, há
uns tempos para cá, em chamar-me Forestier. Por mim, começo a
achar isso estúpido. Queres ter a bondade de prevenir,
calmamente, os camaradas, de que esbofetearei o primeiro que
se permitir de novo fazer essa gracinha. A eles cabe reflectir
se a brincadeira merece uma estocada. Dirijo-me a ti por seres
uma pessoa calma, que pode impedir chegar a extremidades
aborrecidas, e também porque serviste de testemunha no meu
caso.
Boisrenard aceitou a incumbência, e Du Roy saiu, para dar
umas voltas. Quando voltou, uma hora mais tarde, ninguém lhe
chamou Forestier.
Ao chegar a casa, ouviu vozes de mulher na sala. Perguntou
quem era e o criado respondeu:
- A senhora Walter e a senhora de Marelle.
Uma pancadinha agitou-lhe o coração e depois disse para si:
"Olá! Vejamos", e abriu a porta.
Clotilde estava sentada junto do fogão, sob um raio de
claridade vindo da janela. Pareceu a Jorge que ela
empalidecera um tanto ao vê-lo. Depois de ter, primeiramente,
cumprimentado a senhora Walter e suas duas filhas, sentadas
como duas sentinelas ao lado da mãe, voltou-se para a sua
antiga amante, que lhe estendeu a mão. Jorge apertou-lha com
intenção, como para dizer: "Gosto sempre de si." Clotilde
correspondeu a essa pressão. Jorge perguntou-lhe:
- Tem passado bem, desde há séculos que não nos vemos?
- Sim, e o Bel-Ami? - retorquiu, muito à vontade, Clotilde,
que se voltou para Madalena e acrescentou: - Permites que
continue a chamar-lhe Bel-Ami?
- Certamente, minha cara, permito tudo que quiseres -
respondeu Madalena, e um tom de ironia parecia oculto na sua
frase.
202
A senhora Walter falava de uma festa que Jaime Rival ia dar
nos seus aposentos de solteirão, um grande assalto de esgrima
a que assistiriam as senhoras da sociedade, e concluiu:
- Deve ser muito interessante; mas estou desolada, pois não
temos ninguém para nos acompanhar lá, visto meu marido estar
ausente nessa altura.
Du Roy ofereceu-se imediatamente e a senhora Walter aceitou:
- Ficar-lhe-emos muito gratas, as minhas filhas e eu.
Jorge olhou para a mais nova das meninas Walters e pensou:
"Não é nada má, esta Susaninha, mas mesmo nada." A jovem tinha
o ar de uma frágil boneca loira, pequenina, mas fina, com uma
cintura delicada, quadris e peito; uma figurinha de miniatura,
com olhos de esmalte, de um azul-cinzento, desenhados a
pincel, que pareciam sombreados por um pintor minucioso e
fantasista; uma pele muito branca, muito lisa, polida, toda
igual, sem pontos, sem colorido; cabelo solto, frisado, numa
desordem estudada, leve, uma nuvem encantadora, muito
parecida, com efeito, à cabeleira das bonitas bonecas de luxo
que vemos passar nos braços de garotas pouco maiores do que
elas.
A irmã mais velha, Rosa, era feia, deslavada,
insignificante, uma destas raparigas em quem não se repara, a
quem não se fala e das quais ninguém diz nada.
A mãe levantou-se e voltou-se para Jorge:
- Portanto, conto consigo, na próxima quinta-feira, às duas
horas.
- Conte comigo minha senhora - retorquiu Du Roy.
Logo que a senhora Walter partiu, Clotilde levantou-se por
seu turno e despediu-se:
- Até à vista, Bel-Ami.
Foi ela, por sua vez, quem lhe apertou a mão com força e
demoradamente. Jorge sentiu-se perturbado com essa confissão
silenciosa e novamente preso de um fraco por aquela
burguesinha boémia e boa rapariga que, talvez, gostasse dele a
valer. Pensou: "Irei vê-la, amanhã." Desde que o casal ficou
só, Madalena pôs-se a rir, mas a rir com um riso franco e
alegre, e disse-Lhe, fitando-o de frente:
- Sabes que inspiraste uma paixão à senhora Walter?
- Essa agora! - retorquiu Jorge, incrédulo.
- Mas sim, garanto-to. Falou de ti com um entusiasmo louco.
203
Isso é muito extraordinário da sua parte! Desejaria encontrar
dois maridos como tu para as filhas!... Felizmente que, com
ela, essas coisas são sem consequências...
Jorge não compreendeu o que a mulher queria dizer:
- Como sem consequências?
Madalena respondeu, com uma convicção de mulher que sabe o
que está a dizer:
- Oh! A senhora Walter é uma pessoa de quem ninguém jamais
teve nada a dizer, mas, fica sabendo: nada, nada. É inatacável
sob todos os aspectos. O marido conhece-lo tão bem como eu;
mas ela é outra coisa. Tem aliás sofrido bastante por ter
casado com um judeu, mas mantém-se-lhe fiel. É uma mulher
honesta.
- Julgava-a também judia - retorquiu Du Roy surpreendido.
- Ela? De maneira nenhuma. É benfeitora de todas as
instituições de caridade da Madalena(1). Até se casou
religiosamente. Não sei ao certo se houve um simulacro de
baptismo do teu patrão ou se a Igreja fechou os olhos.
- Ah!... então... ela... cobiça-me?... - murmurou Jorge.
- Positiva e completamente. Se não estivesses comprometido,
aconselhar-te-ia a pedir a mão de... Susana; não é verdade,
antes do que a de Rosa?
Jorge retorquiu, frisando o bigode:
- Ah! A mãe ainda não é peste nenhuma.
Madalena impacientou-se:
- Sabes, meu menino, quanto à mãe, oxalá; mas não tenho
receios. Não é na sua idade que se comete a primeira falta. É
preciso começar mais cedo.
Jorge pensava: "Se fosse verdade, no entanto, que pudesse
casar com Susana..." Depois, encolheu os ombros: "Ora! Que
disparate!... Porventura o pai aceitar-me-ia?" Prometeu,
contudo, a si próprio, observar com a maior atenção as
maneiras da senhora Walter a seu respeito, sem pensar, aliás,
se poderia jamais tirar qualquer vantagem disso.
Toda a noite esteve dominado pela lembrança dos seus amores
com Clotilde, recordações ao mesmo tempo ternas e sensuais.
Lembrava-se de brincadeiras dela, das suas gentilezas e
escapadas.
*1. A igreja paroquial da Madalena, em Paris.
204
Repetia a si próprio: "É, na verdade, muito gentil. Sim,
irei procurá-la amanhã."
Mal almoçou, no dia seguinte, dirigiu-se com efeito à Rua de
Verneuil. A mesma criada abriu-lhe a porta e, familiar, à
maneira dos serviçais da pequena burguesia, perguntou:
- O senhor tem passado bem?
- Tenho passado bem, sim, minha filha - respondeu Jorge.
Entrou para a sala onde umas mãos inexperientes faziam
escalas ao piano. Era a Laurinha. Pareceu-lhe que ela Lhe ia
saltar ao pescoço; mas a pequena levantou-se gravemente,
cumprimentou-o com cerimónia, como o faria uma pessoa
crescida, e retirou-se de uma maneira digna.
A jovem tinha uma tal atitude de mulher ultrajada que Jorge
ficou surpreendido. A mãe entrou e Jorge pegou-lhe nas mãos,
que beijou, dizendo-Lhe:
- Como tenho pensado em si!
- E eu? - retorquiu Clotilde.
Sentaram-se, sorriram um para o outro, com os olhos e um
grande desejo de se beijarem na boca.
- Minha querida Clo, gosto de si.
- E eu também.
- Então... então... não ficaste muito zangada comigo?
- Sim e não... Fez-me muita pena, mas depois compreendi a
razão e pensei: "Olá! Voltará para mim, um dia ou outro."
- Não ousava voltar. Perguntava a mim próprio como seria
recebido. Não ousava, mas tinha uma grande vontade de o fazer.
A propósito, diz-me cá: que tem a Laurinha? Mal me deu os
bons-dias, partiu, com ar furioso.
- Não sei; mas não se lhe pode falar em ti, desde o teu
casamento. Parece que tem, realmente, ciúmes.
- Essa agora!
- É o que te digo, meu caro. Nunca mais te tratou por
Bel-Ami, mas sim por senhor Forestier...
Du Roy corou; depois aproximou-se de Clotilde e pediu:
- Dá-me a tua boca.
Clotilde deu-lha; Jorge perguntou:
- Onde poderemos voltar a ver-nos?
- Mas... na Rua de Constantinopla.
- Ah!... O apartamento não está alugado?
- Não... Conservei-o!
- Conservaste-lo?
205
- Sim; pensei que voltarias lá.
Uma lufada de alegria orgulhosa encheu o peito de Jorge.
Clotilde gostava, portanto, dele, com um amor verdadeiro,
constante, profundo. Murmurou:
- Adoro-te! - Depois perguntou: - O teu marido passa bem?
- Sim, muito bem. Acaba de estar um mês cá; partiu antes de
ontem.
Du Roy não se pôde impedir de rir:
- Isso calha bem!
- Oh! sim, calha bem - retorquiu Clotilde com ingenuidade. -
Bem sabes, porém, que ele não incomoda nada quando cá está,
apesar de tudo. Não é?
- Isso é verdade. É, aliás, uma excelente pessoa.
- E tu, como encaras a tua nova vida?
- Nem bem, nem mal. Minha mulher é uma camarada, uma sócia.
- Nada mais?
- Nada mais... Quanto ao coração...
- Bem te compreendo. No entanto, ela é gentil.
- Sim, não me perturba.
Aproximou-se de Clotilde e murmurou:
- Quando nos encontraremos?
- Mas... amanhã... se queres...
- Sim; amanhã às duas horas?
- Às duas horas.
Jorge levantou-se para se despedir e proferiu, pouco à
vontade:
- Sabes, entendo que deve ficar só por minha conta o
apartamento da Rua de Constantinopla. Assim o quero. Não
faltava mais nada que fosses tu a pagá-lo.
Foi ela quem lhe beijou as mãos, num gesto de adoração,
murmurando:
- Farás como quiseres. Basta-me tê-lo conservado para nos
voltarmos a encontrar.
Du Roy partiu com a alma a transbordar de satisfação. Ao
passar em frente da vitrina de um fotógrafo viu o retrato de
uma mulher forte de grandes olhos, que Lhe lembrou a senhora
Walter. Pensou: "Ainda não é nada má. Como foi que não dei
nunca por isso? Estou inquieto por ver a cara que me mostrará
quinta-feira."
206
Enquanto caminhava esfregava as mãos com uma alegria íntima,
a alegria do triunfo sob todos os aspectos, a alegria egoísta
do homem hábil que vence, a alegria subtil, feita de vaidade
lisonjeada e de sensualidade contente, que dá a ternura das
mulheres.
Quando chegou a quinta-feira, Jorge perguntou a Madalena:
- Não vens a esse assalto em casa de Rival?
- Oh Não. Isso, a mim, não me diverte nada; irei à Câmara
dos Deputados.
Du Roy foi buscar a senhora Walter numa carruagem
descoberta, pois estava um tempo admirável. Teve uma surpresa
ao vê-la, tanto a achou jovem e bonita. Tinha um vestido
claro, cujo corpo, um tanto aberto, deixava adivinhar, sob uma
renda creme, o começo dos seios opulentos. Nunca a vira tão
fresca e pareceu-lhe verdadeiramente apetitosa.
A senhora Walter tinha o seu aspecto calmo de pessoa bem e
um certo ar de mãe de família que a fazia passar quase
despercebida aos olhos galanteadores dos homens. Só falava,
aliás, para dizer coisas sabidas, convenientes e moderadas, e
as suas ideias eram prudentes, metódicas, bem ordenadas, ao
abrigo de todos os excessos.
A sua filha Susana, toda vestida de cor-de-rosa, parecia um
Watteau envernizado de fresco; a irmã mais velha dir-se-ia ser
a professora encarregada de acompanhar aquela bonita jóia de
menina.
Em frente da porta de Rival estava alinhada uma fila de
carros. Du Roy deu o braço à senhora Walter e entraram.
O assalto era dado em benefício dos órfãos do sexto bairro
de Paris, sob o patrocínio de todas as esposas de senadores e
deputados que tinham relações com a Vie Française.
A senhora Walter prometera ir com suas filhas, mas recusara
fazer parte da comissão de honra, pois só dava o seu nome às
obras de caridade promovidas pelo clero, não por ser muito
devota mas por o seu casamento com um israelita a obrigar,
segundo supunha, a mostrar uma certa atitude de pessoa devota.
Ora, a festa organizada pelo jornalista tomava um aspecto de
manifestação republicana, que poderia parecer anticlerical.
Nos jornais, de todas as cores, podia ler-se havia três
semanas:
207
"O nosso eminente confrade Jaime Rival acaba de ter a ideia,
tão original como generosa, de organizar, a benefício dos
órfãos do sexto bairro de Paris, um grande assalto na sua bela
sala de esgrima, contígua aos seus aposentos de solteirão. Os
convites são feitos pelas senhoras Laloigne, Remontel,
Rissolin, esposas dos senadores dos mesmos apelidos, e
senhoras Laroche-Mathieu, Percerol, Firmin, esposas dos
conhecidos deputados. Um simples peditório será feito, durante
o intervalo do assalto, e a totalidade será imediatamente
entregue ao maire do sexto bairro ou ao seu representante."
Fora um reclamo monstro que o esperto jornalista imaginara a
seu favor. Jaime Rival recebia os convidados à entrada dos
seus aposentos, onde fora instalado um bufete, cujas despesas
deveriam ser descontadas nas receitas. Depois indicava, com um
gesto amável, a escadinha por onde se descia para a cave, na
qual instalara a sala de esgrima e de tiro, e dizia:
- Para baixo, minhas senhoras, para baixo. O assalto
realiza-se nos aposentos subterrâneos.
Precipitou-se para cumprimentar a esposa do seu director e,
depois, apertou a mão de Du Roy:
- Bom dia, Bel-Ami.
- Quem Lhe disse que?... - proferiu o outro, surpreendido.
- A senhora Walter, aqui presente, que acha esse apelido
muito feliz - atalhou Rival.
- Sim, confesso que se o conhecesse mais - disse a senhora
Walter, corando - faria como a pequenita Laurinha e
chamar-lhe-ia, também, Bel-Ami. O nome vai-lhe muito bem.
- Mas, minha senhora - proferiu Du Roy a rir -, faça-o,
peço-lhe.
- Não - disse a senhora Walter, que baixara os olhos. Não
somos bastante íntimos para isso.
- Permite-me - murmurou Jorge - esperar que venhamos a
sê-lo?
- Está bem; então veremos- respondeu-lhe.
Du Roy deu-lhe a passagem à entrada da escada estreita,
iluminada por um bico de gás. A brusca transição da luz do dia
para aquela claridade amarelenta tinha qualquer coisa de
lúgubre. Um cheiro de subterrâneo subia daquela escada de
caracol, um bafo de humidade aquecida, de paredes bolorentas
208
limpas para aquela circunstância, e também baforadas de
benjoim, que lembravam as cerimónias religiosas, e de
emanações femininas de Lubin, de lúcia-lima, de lírio e de
violeta.
Ouvia-se, por esse buraco, um grande barulho de vozes, um
frémito de multidão agitada. Toda a cave estava iluminada com
grinaldas de bicos de gás e balões venezianos, ocultos entre a
folhagem que revestia as paredes salitrosas. Só se viam ramos.
O tecto estava decorado com fetos e o solo coberto de folhas e
flores.
Achavam isso encantador e de uma deliciosa originalidade.
Num compartimento ao fundo via-se um estrado para os
esgrimistas, entre duas fiadas de cadeiras para o júri. Por
toda a cave havia bancadas, alinhadas por dez, tanto à direita
como à esquerda, que poderiam conter cerca de duzentas
pessoas. Tinham sido convidadas quatrocentas.
Diante do estrado, alguns rapazes com o fato de esgrima,
delgados, braços e pernas compridos, cintura fina, bigode
retorcido, exibiam-se já aos espectadores. Citavam-lhes os
nomes, apontavam quais eram os mestres e os amadores, todos
notabilidades da esgrima. À volta deles, conversavam
cavaLheiros de sobrecasaca, novos e velhos, em atitudes
familiares como os jogadores preparados para os assaltos.
Procuravam, também, ser vistos, reconhecidos e nomeados, pois
eram príncipes da espada, à paisana, e peritos em estocadas
com botão.
Quase todas as bancadas estavam repletas de senhoras, que
faziam um grande rumor de tecidos agitados e um murmúrio de
vozes. Abanavam-se como no teatro, pois fazia um calor de
estufa naquela gruta folhuda. Um trocista gritava, de tempos a
tempos: "Refrescos! Limonada! Cerveja!"
A senhora Walter e as filhas dirigiram-se para os seus
lugares reservados na primeira fila. Du Roy, assim que as viu
instaladas, dispôs-se a partir e murmurou:
- Sou obrigado a deixá-las, pois os homens não podem ocupar
lugares nas bancadas.
A senhora Walter retorquiu, porém, hesitante:
- Tenho uma grande vontade de o conservar junto de mim.
Dir-me-á os nomes dos assaltantes. Olhe, se ficar de pé na
extremidade deste banco, não incomodará ninguém. - Fitou-o com
os seus grandes olhos doces e insistiu: - Vamos, fique
connosco... senhor... senhor Bel-Ami. Precisamos de si.
209
- Obedecerei... com muito prazer, minha senhora - retorquiu
Jorge.
Repetiam de todos os lados: "É muito engraçada esta cave, é
muito simpática." Jorge conhecia-a bem, àquela quadra
abobadada! Lembrava-se da manhã que lá tinha passado, na
véspera do seu duelo, sozinho, em face de um cartãozinho
branco que o fitava do fundo do segundo compartimento com um
olho enorme e temível. A voz de Jaime Rival ressoou, vinda do
alto da escada:
- Vamos começar, minhas senhoras.
Seis cavalheiros, muito apertados nos seus fatos, a fim de
pôr bem em evidência o tórax, subiram para o estrado e
sentaram-se nas cadeiras destinadas ao júri. Os seus nomes
circularam: o general de Raynaldi, presidente, um homenzinho
de grandes bigodes; o pintor Roudet, um homem calvo, de grande
barba; Mateus de Ujar, Simão Ramoncel e Pedro de Carvin, três
jovens elegantes, e Gaspar Merleron, um mestre-de-armas.
Foram pendurados dois letreiros ao fundo. O da direita
tinha: O senhor Crèvecoeur; o da esquerda: O senhor Plumeau.,
Eram dois mestres-de-armas, dois bons mestres de segunda
ordem. Apareceram, ambos magros, com um aspecto militar e
gestos um tanto hirtos. Depois de fazerem a saudação com os
seus ferros, em movimentos de autómatos, começaram o assalto,
semelhantes, no seu fato de lona e anta branca, a dois
pierrots militares que estivessem a bater-se por brincadeira.
De tempos a tempos ouvia-se a palavra: "Tocado!" Os seis
cavalheiros do júri inclinavam a cabeça para a frente com um
ar de entendidos. O público só via dois fantoches vivos, que
se agitavam e estendiam os braços. Não compreendia nada, mas
estava contente. Aqueles dois sujeitos pareciam-Lhe, no
entanto, pouco graciosos e vagamente ridículos. Pensava nos
bonecos de pau de lutadores, que se vendem nos bulevares, pelo
Ano Novo.
Os dois primeiros assaltantes foram substituídos pelos
senhores Planton e Carapim, um mestre-de-armas civil e um
mestre militar. O senhor Planton era pequenino e o senhor
Carapin muito gordo. Dir-se-ia que o primeiro bote de florete
esvaziaria aquele balão como a um elefante de borracha. O
público ria. O senhor Planton saltava como um macaco;
210
o senhor Carapin só mexia o braço, pois o resto do corpo
encontrava-se imobilizado pela gordura. Caía a fundo cada
cinco minutos, com um tal peso e um tal esforço para a frente
que parecia tomar a mais enérgica resolução da sua vida. Tinha
depois muita dificuldade em retomar a posição anterior. Os
entendidos declararam que o seu jogo era muito firme e
apertado, e o público, confiante, apreciou-o.
Vieram a seguir os Srs. Porion e Lapalme, um mestre-de-armas
e um amador, que se entregaram a uma ginástica desenfreada, a
correr um contra o outro numa fúria, forçando o júri a fugir e
a afastar as cadeiras, atravessando e voltando a atravessar o
estrado de uma extremidade à outra, um a avançar e o outro a
recuar, com saltos vigorosos e cómicos. Davam uns saltinhos
para trás que faziam rir as senhoras e grandes caídas a fundo
que, no entanto, as impressionavam. Aquele assalto a passo
ginástico foi definido por um trocista desconhecido que
gritou: "Não se matem; é a fingir!" A assistência,
escandalizada por essa falta de gosto, fez "Chüüüu!" O juízo
dos peritos circulou: os assaltantes tinham demonstrado muito
vigor e perdido por vezes algumas oportunidades.
A primeira parte terminou por um muito bonito passe de armas
entre Jaime Rival e o famoso professor belga Lebêgue. Rival
foi muito apreciado pelas senhoras. Era, realmente, um
perfeito homem, bem constituído, flexível, ágil e mais
elegante do que quantos o tinham precedido. Dava à sua maneira
de se pôr em guarda ou de cair a fundo uma certa elegância
mundana que agradava e contrastava com a atitude enérgica, mas
vulgar, do seu adversário. Diziam: "Vê-se que é um homem
bem-educado." Obteve a vitória e aplaudiram-no.
Havia já alguns minutos que um ruído singular no andar de
cima inquietava os espectadores. Era um grande arrastar de pés
acompanhado de risos. Os duzentos convidados que não tinham
lugar na cave divertiam-se sem dúvida doutra maneira. Na
escadinha de caracol comprimia-se uma cinquentena de homens. O
calor tornava-se terrível em baixo. Gritavam: "Ar! Refrescos!"
O mesmo farsola soltava em tom agudo que dominava o murmúrio
das conversas: "Laranjada! Limonada! Cerveja!"
Rival apareceu, muito vermelho, ainda com o seu fato de
esgrima, e clamou:
211
- Vou mandar servir refrescos.
Correu para a escada, mas toda a comunicação estava
interrompida entre a cave e o rés-do-chão. Era tão difícil
furar o tecto como atravessar a muralha humana comprimida nos
degraus. Rival gritou:
- Mandem vir os gelados para as senhoras!
Cinquenta vozes repetiram: "Os gelados!", e, por fim,
apareceu uma bandeja; mas só trazia copos vazios, pois os
refrescos tinham ficado pelo caminho. Uma voz rugiu:
- Sufoca-se aqui dentro! Acabemos com isto e vamo-nos
embora!
Outra voz lançou:
- O peditório!
Todo o público, ofegante, mas apesar de tudo divertido,
repetiu: "O peditório... o peditório... o peditório..." Então,
seis senhoras começaram a circular entre as bancadas e
ouviu-se um ruidozinho do dinheiro a cair nas bolsas.
Du Roy indicava os nomes dos homens célebres à senhora
Walter. Eram figuras mundanas, jornalistas dos grandes
jornais, dos velhos jornais que olhavam para a Vie FranÇaise
com uma certa reserva, filha da sua experiência. Tinham visto
morrer tantas dessas folhas político-financeiras, filhas de
uma combinação suspeita e esmagadas pela queda de um
ministério. Também se viam, na assistência, pintores e
escultores, que são em geral desportivos, um académico poeta
que apontavam a dedo, dois músicos e muitos nobres
estrangeiros, cujos nomes Du Roy fazia seguir da sílaba Rast
(o que significa Rastaquouère), para imitar os Ingleses, que
põem Esq. nos seus bilhetes de visita(1). Alguém o
cumprimentou: "Viva, caro amigo!" Era o conde de Vaudrec. Du
Roy pediu desculpa às senhoras e foi apertar-lhe a mão. Ao
regressar, declarou:
*1. Rastaquouère é o termo depreciativo que os franceses
usam para designar o estrangeiro pretensioso que alardeia
nobreza ou riqueza. A palavra deriva da espanhola rastacuero
(arrasta coiro) e primitivamente aplicava-se aos mutilados dos
membros inferiores que se arrastam com o assento e o que lhes
resta de pernas revestido de sola. A abreviatura inglesa Esq.
é a do termo Esquire (cavaleiro), dada por cortesia aos que
não têm nenhum título nobiliárquico, tal como o Don em
Espanha, mas que pretendem distinguir-se dos plebeus.
212
- É encantador, Vaudrec. Como sentimos nele a raça.
A senhora Walter não disse nada. Estava um tanto fatigada e
o peito erguia-se-lhe com esforço a cada inspiração dos seus
pulmões, o que atraía a atenção de Du Roy De tempos a tempos,
encontrava o olhar da patroa, um olhar perturbado, hesitante,
que pousava nele e fugia imediatamente. Jorge dizia para si:
"Olha... olha... Também terei dado no goto a esta?"
As senhoras que faziam o peditório passaram. As suas bolsas
estavam cheias de moedas de prata e oiro. Um novo cartaz foi
afixado no estrado a anunciar: "Grande surpresa." Os membros
do júri voltaram para os seus lugares. Todos aguardavam.
Apareceram duas mulheres com o fato de sala de esgrima, com
uma saia muito curta, que lhes chegava a meio das coxas, e um
peitilho tão tufado que as obrigava a manter a cabeça
levantada. Eram jovens e bonitas. Sorriam ao saudar a
assistência. Foram aclamadas durante muito tempo. Colocaram-se
em guarda no meio dum rumor galante e de graçolas ditas a meia
voz.
Um sorriso amável fixara-se nos lábios dos juízes que
aprovavam os botes com um quase imperceptível "bravo!" O
público apreciava muito aquele assalto e testemunhava-o às
duas combatentes, que acendiam desejos nos homens e
despertavam, nas mulheres, o gosto natural pelas gentilezas um
tanto marotas, pelas elegâncias do género fresco, pelo falso
bonito e o falso gracioso, as cantoras de café-concerto e as
coplas de opereta.
Todas as vezes que uma das assaltantes caía a fundo, um
arrepio de alegria percorria o público. A que voltava as
costas à assistência, umas costas bem fornidas, fazia abrir as
bocas e arregalar os olhos - e não era no movimento do seu
punho aquilo em que mais reparavam. Aplaudiram-nas com
frenesim.
Seguiu-se um assalto de sabre, mas ninguém olhou para ele,
pois todas as atenções foram atraídas pelo que se passava lá
em cima. Havia alguns minutos que se ouvia um grande ruído de
móveis arrastados pelo chão como se estivessem a fazer a
mudança do apartamento. Depois, subitamente, o som dum piano
atravessou o soalho e ouviu-se, nitidamente, o barulho ritmado
de pés a arrastar com cadência.
213
As pessoas que estavam em cima tinham improvisado um baile
para se indemnizarem de não terem visto nada dos assaltos.
Grandes gargalhadas soaram a princípio no público da sala de
armas; mas o desejo de dançar despertou nas mulheres.
Desinteressaram-se do que se passava no estrado e puseram-se a
falar em voz alta. Achavam engraçada aquela ideia do baile
organizado pelos retardatários. Aqueles, ao menos,
divertiam-se; e de boa vontade estariam lá em cima.
Dois novos assaltantes, porém, saudaram-se e puseram-se em
guarda com tanta autoridade que todos os olhares seguiam os
seus movimentos. Caíam a fundo e recuavam com uma graça
elástica, um vigor pautado, uma tal confiança na sua força,
uma elegância de gestos, uma correcção de atitudes, uma
maestria no jogo que a multidão ignorante ficou surpreendida e
encantada.
A prontidão calma, a sapiente flexibilidade, os seus
movimentos rápidos tão bem calculados que pareciam lentos,
atraíam e captavam os olhos pela única força da perfeição. O
público sentia estar a ver uma coisa bela e rara e que dois
grandes artistas na sua profissão lhe mostravam o que era
possível ver de melhor: tudo quanto podiam dois
mestres-de-armas exibir em habilidade, astúcia, ciência
calculada e aptidão física.
Ninguém falara mais, tanto estavam todos absorvidos a olhar
para eles. Depois, quando se apertaram as mãos, após o último
bote, soaram gritos e vivas. Todos gritavam e aplaudiam. Toda
a gente sabia os seus nomes: eram Sergent e Ravignac.
Os espíritos exaltados discutiam. Os homens olhavam para os
seus vizinhos com vontade de se travarem de razões. Ter-se-iam
provocado por causa dum sorriso. Aqueles que nunca tinham
empunhado um florete esboçavam com as bengalas estocadas e
paradas.
Aos poucos, a multidão subiu a escadinha. Iam, finalmente,
beber alguma coisa. Foi uma indignação geral quando
verificaram que a gente do baile esvaziara o bufete e se fora
embora depois de declarar ser desonesto incomodar duzentas
pessoas para não lhes deixar ver nada. Não restava um bolo,
214
nem uma gota de champanhe, de xarope ou de cerveja, nem um
bombom, um fruto, nada, absolutamente nada. Tinham saqueado,
devorado, limpado tudo.
Pediram pormenores aos criados, que os davam com ar triste e
uma grande vontade de rir:
- As senhoras estavam ainda mais raivosas do que os homens e
tinham comido e bebido tanto a ponto de poderem ficar
doentes...
Dir-se-ia estar a ouvir o relato dos sobreviventes duma
pilhagem e do saque duma cidade durante uma invasão.
Tiveram de se ir embora. Os cavalheiros lamentavam os vinte
francos dados no peditório e indignavam-se contra os de cima,
que tinham comido e bebido sem pagar nada. As senhoras do
peditório tinham recolhido mais de três mil francos. Ficavam,
depois de pagas todas as despesas, duzentos e vinte francos
para os órfãos do sexto bairro.
Du Roy escoltava a família Walter, à espera da sua
carruagem. Ao acompanhar a casa a patroa, como estava sentado
em frente dela, encontrou, mais uma vez, o seu olhar
acariciante e fugidio, que parecia perturbado. Pensou: "Apre!
Creio que está pelo beicinho." Sorria ao reconhecer que tinha
realmente sorte com as mulheres, pois a senhora de Marelle,
depois de terem recomeçado a sua ligação, parecia gostar dele
a valer.
Jorge entrou em sua casa com um ar alegre. Madalena, que o
esperava na sala, disse-lhe:
- Tenho notícias frescas. O caso de Marrocos complica-se. É
possível que a França tenha de enviar para lá uma expedição
daqui a alguns meses. Em todo o caso, vamo-nos servir disso
para deitar abaixo o Ministério e Laroche aproveitará a
ocasião para apanhar os Negócios Estrangeiros.
Du Roy, para contrariar a mulher, fingiu não acreditar em
nada disso. Não seriam assaz loucos para recomeçarem a tolice
de Tunes. Madalena encolheu os ombros com impaciência:
- Digo-te que sim! É assim como digo! Não compreendes que se
trata duma importante questão de dinheiro para eles? Hoje, meu
caro, nas combinações políticas, não se deve dizer: "Procurem
a mulher, mas Procurem o negócio!"
- Ora... - murmurou o marido, com um ar de desprezo, para a
excitar.
215
- Olha: és tão parvo como Forestier! - exclamou Madalena,
irritada.
Quisera feri-lo e esperava a reacção da sua cólera; mas o
marido sorriu e retorquiu:
- Como esse coitadinho do Forestier.
- Oh! Jorge! - murmurou Madalena, estarrecida.
O marido, com um ar insolente e trocista, continuou:
- Então, que tem? Não me confessaste, outro dia, que
enganaras Forestier? - acrescentou, com um tom de profunda
comiseração: - Esse pobre diabo!
Madalena voltou-lhe as costas e não se dignou responder-lhe;
mas após um minuto de silêncio, continuou:
- Temos convidados terça-feira: a senhora Laroche-Mathieu
virá jantar com a viscondessa de Percemur. Queres convidar
Rival e Norberto de Varenne? Irei amanhã a casa das senhoras
Walter e de Marelle. Talvez tenhamos também a senhora
Rissolin.
Havia algum tempo que Madalena aumentava as suas relações,
empregando a influência política do marido, para atrair a sua
casa, com vontade ou sem ela, as mulheres dos senadores e
deputados que tinham necessidade do apoio da Vie Française.
- Muito bem. Encarrego-me de Rival e de Norberto - respondeu
Jorge.
Esfregava as mãos de contente. Encontrara uma boa maneira
para se impor à mulher e satisfazer o obscuro rancor, o
confuso e mordente ciúme, surgidos depois da sua ida ao
Bosque. Não voltaria a falar de Forestier sem o qualificar de
coitadinho. Compreendia bem que isso acabaria por enraivecer
Madalena. Dez vezes, durante o serão, encontrou maneira de
proferir, com irónica bonomia, o nome desse coitadinho de
Forestier. Já não odiava o morto - vingava-se desse modo. Sua
mulher fingia não o ouvir e mantinha-se perante ele,
sorridente e alheada.
No dia seguinte, Madalena devia ir fazer o convite à senhora
Walter; mas Jorge quis antecipar-se, para se encontrar a sós
com a patroa e ver se realmente ela estava embeiçada por ele.
Isso divertia-o e lisonjeava-o: E então... porque não?... Se
fosse possível...
Às duas horas apresentou-se no Bulevar Malesherbes.
Fizeram-no entrar para a sala e esperou. A senhora Walter
apareceu, pouco depois, com uma solicitude satisfeita:
216
- Que bom vento o traz?
- Simplesmente o desejo de a ver. Uma força impeliu-me para
aqui, não sei porquê, não tenho nada a dizer-lhe... Vim e eis
tudo! Perdoar-me-á esta visita matinal e a franqueza desta
explicação?
Du Roy dizia isso num tom galante e brincalhão, com um
sorriso nos lábios e um tom sério na voz. A senhora Walter
ficara surpreendida, um tanto corada, balbuciante:
- Mas... na verdade... não compreendo... surpreende-me...
- É uma declaração num ar alegre para não a aterrorizar -
acrescentou Jorge.
Sentaram-se ao lado um do outro e a dona da casa tomou a
coisa de brincadeira:
- Então, é uma declaração... séria?
- Claro que é. Há muito tempo que a desejava fazer, há já
muito tempo até. A verdade é que não me atrevia. Dizem que é
tão severa, tão rígida...
A senhora Walter voltara a ser senhora de si e perguntou:
- Por que escolheu o dia de hoje?
- Não sei. - Depois, baixou a voz: - Talvez porque desde
ontem só penso em si.
A senhora Walter, subitamente pálida, balbuciou:
- Vejamos, basta de criancices e falemos doutra coisa.
Jorge, porém, caíra a seus pés, tão bruscamente que ela teve
medo e quis levantar-se; mas ele manteve-a sentada à força dos
seus braços que lhe rodeavam a cintura, e repetia com voz
apaixonada:
- Sim, é verdade que a amo, loucamente, há muito tempo. Não
me responda. Que quer? Estou louco! Gosto de si... Oh! Se
soubesse como a amo!
A senhora Walter sufocava, ofegante, tentava falar e não
podia pronunciar uma palavra. Repelia-o com ambas as mãos e
agarrara-lhe o cabelo para impedir a aproximação daquela boca
que sentia procurar a sua. Abanava a cabeça da direita para a
esquerda e da esquerda para a direita, em movimentos rápidos,
com os olhos fechados para não o ver.
Du Roy tocava-lhe através do vestido, apertava-a,
apalpava-a. Ela sentia-se desfalecer sob aquela carícia brutal
e forte. Jorge levantou-se, subitamente, e quis abraçá-la;
mas, livre por um segundo, ela escapou-se-lhe, atirando-se
para trás, e fugiu, depois, de poltrona em poltrona.
217
Jorge achou ridícula aquela perseguição e deixou-se cair
numa cadeira, com o rosto nas mãos, a fingir soluços
convulsivos. Depois, ergueu-se e exclamou, ao partir:
- Adeus, adeus!
Foi buscar, tranquilamente, a sua bengala ao vestíbulo e
atingiu a rua, dizendo para si: "Com os diabos, parece-me que
já está!" Passou pelo telégrafo para mandar um "azulinho" a
Clotilde a marcar-lhe encontro para o dia seguinte.
Ao chegar a casa, à hora habitual, perguntou à mulher:
- Então, já tens todos os teus convidados para o jantar?
- Sim - respondeu Madalena. - Só há a senhora Walter que diz
não ter a certeza de estar livre. Mostrou-se hesitante;
falou-me de não sei quê, de compromissos, de consciência.
Enfim, tinha um ar muito estranho. Não importa, espero que
virá, apesar de tudo.
- Ora essa! Claro que vem! - proferiu Jorge com um encolher
de ombros.
Não tinha, no entanto, muita certeza disso e manteve-se
inquieto até ao dia do jantar. Na manhã desse dia, Madalena
recebeu um bilhete da patroa: "Consegui, com grande
dificuldade, ficar livre, e aceito o seu convite; mas meu
marido não me poderá acompanhar." Du Roy pensou: "Fiz muito
bem em não voltar lá. Ei-la tranquilizada. Cuidado." Esperou,
no entanto, a sua entrada com uma certa inquietação. Apareceu,
muito calma, um tanto fria, um tanto altiva. Jorge mostrou-se
muito humilde, muito discreto e submisso.
As senhoras Laroche-Mathieu e Rissolin eram acompanhadas por
seus maridos. A viscondessa de Percemur falava da alta
sociedade. A senhora de Marelle estava encantadora, num
vestido de fantasia, amarelo e negro, um trajo espanhol que
modelava bem o seu bonito busto e os seus braços bem feitos e
tornava enérgica a sua cabeça de passarinho.
Du Roy tinha à sua direita a senhora Walter e só lhe falou
durante o jantar de coisas sérias, com um respeito exagerado.
De tempos a tempos, olhava para Clotilde e pensava: "É, na
verdade, mais bonita e mais fresca." Depois, os seus olhos
dirigiam-se para sua mulher, a quem não achava nada mal,
embora conservasse contra ela uma cólera surda, tenaz e
malévola.
218
A patroa, porém, excitava-o pela dificuldade da conquista e
pela novidade, coisa sempre desejada pelos homens. Como a
senhora Walter manifestasse o desejo de regressar a casa cedo,
disse-lhe:
- Acompanhá-la-ei.
Ela recusou e Jorge insistiu:
- Por que não quer que vá? Magoa-me com isso. Não me diga
que não me perdoou. Veja como estou calmo.
- Não pode deixar assim os seus convidados - retorquiu a
senhora Walter.
- Ora! - sorriu Jorge. - Poderia estar vinte noites ausente,
ninguém daria por isso. Se recusa, magoa-me até ao fundo da
alma.
- Está bem, aceito - murmurou ela.
Logo que se sentaram no carro, Jorge pegou-lhe na mão e
beijou-lha apaixonadamente:
- Gosto de si, gosto de si. Deixe-me dizer-Lho. Não lhe
tocarei. Quero somente repetir-lhe que a amo.
- Oh!... Depois do que me prometeu... - balbuciou ela.Isso
fica mal; muito mal...
Du Roy deu a impressão de fazer um grande esforço e
continuou com voz reprimida:
- Aqui tem. Veja como me domino e, no entanto... Deixe-me,
porém, dizer-Lhe somente isto: gosto de si, e repeti-lo todos
os dias... Sim, deixe-me ir a sua casa, ajoelhar-me por cinco
minutos aos seus pés para proferir essas três palavras,
enquanto contemplo o seu rosto adorado.
A senhora Walter abandonara-Lhe a mão e respondeu, ofegante:
- Não, não posso, não quero. Pense no que diriam, nos meus
criados, nas minhas filhas. Não, não... é impossível...
- Não posso viver sem a ver - continuou Jorge. - Seja em sua
casa ou noutra parte, é preciso que a veja, embora não seja
mais do que um minuto todos os dias, que lhe pegue na mão, que
respire o ar agitado pelo seu vestido, que contemple a linha
do seu corpo e esses belos e grandes olhos que me enlouquecem.
A senhora Walter ouvia, fremente, aquela banal música de
amor e balbuciava:
- Não... não... É impossível. Cale-se!
Jorge falava-Lhe baixinho, ao ouvido. Compreendia ser
preciso convencê-la aos poucos, àquela mulher simples,
219
que tinha de se decidir a marcar-Lhe encontros, onde ela
quisesse a princípio, onde ele entendesse depois.
- Ouça... É preciso... que a veja... Esperá-la-ei diante da
sua porta... como um mendigo... Se não sair, irei a sua
casa... mas vê-la-ei... Vê-la-ei... amanhã.
- Não, não, não vá - repetia ela. - Não o receberei. Pense
nas minhas filhas.
- Então, diga-me onde a posso encontrar... na rua... ou seja
onde for... à hora que quiser... O importante é que a veja...
que a cumprimente... que Lhe diga: Amo-a, e ir-me-ei embora.
A senhora Walter, desorientada, hesitante, murmurou
apressadamente, na altura em que o carro chegava à porta da
sua residência:
- Pois bem: estarei na Igreja da Trindade, amanhã, às três e
meia.
Depois de ter descido, ordenou ao cocheiro:
- Vá levar o senhor Du Roy a casa.
Quando Jorge entrou, a esposa perguntou-lhe:
- Onde te meteste?
- Fui a correr ao telégrafo expedir um telegrama urgente -
respondeu o marido em voz baixa.
A senhora de Marelle aproximou-se e disse a Jorge:
- Vai acompanhar-me a casa, Bel-Ami; bem sabe que só venho
jantar tão longe com essa condição. - Depois, voltou-se para
Madalena: - Não és ciumenta?
- Não, não sou muito - respondeu a senhora Du Roy
lentamente.
Os convidados despediam-se. A senhora Laroche-Mathieu tinha
o ar duma criada de servir da província. Era fiLha de um
notário e casara com Laroche quando este era um advogado
medíocre. A senhora Rissolin, velha e pretensiosa, dava a
ideia de uma antiga porteira cuja instrução tivesse sido feita
através de livros dos gabinetes de leitura. A viscondessa de
Percemur olhava para elas de alto. O seu sangue azul só com
repugnância se aproximava das pessoas vulgares.
Clotilde, envolta em rendas, disse a Madalena, já à porta da
escada:
- Foi magnífico o teu jantar. Dentro em pouco terás os
primeiros políticos de Paris.
220
Logo que se viu só com Jorge, apertou-o nos braços:
- Oh! Meu querido Bel-Ami; cada dia gosto mais de ti.
O fiacre que os conduzia balouçava como um navio.
- Isto não se parece nada com o nosso quarto - murmurou
Clotilde.
- Lá isso não - retorquiu Jorge, mas pensava na senhora
Walter.
XII
A Praça da Trindade estava quase deserta sob o ardente
sol de Julho. Um calor pesado esmagava Paris, como se o ar lá
do alto, ardente e espesso, caísse em cima da cidade, um ar
sufocante e denso que fazia dores no peito.
A água dos repuxos em frente da igreja caía molemente.
Parecia fatigada de correr, pesada e mole, também. A do lago,
onde flutuavam folhas e pedaços de papel, tinha um tom
esverdeado, espesso e repugnante. Um cão, que saltara para o
rebordo de pedra, banhava-se nesse líquido duvidoso. Algumas
pessoas, sentadas nos bancos do jardinzinho circular que
rodeia o adro, olhavam para o animal com inveja. Du Roy puxou
pelo relógio: ainda não eram três horas. Viera meia hora mais
cedo.
Jorge ria ao pensar naquele encontro. Dizia para si: "As
igrejas servem-lhe para tudo. Consolam-na de ter casado com um
judeu, dão-lhe uma atitude de protesto no mundo político, um
ar de pessoa distinta na sociedade e um abrigo para os seus
encontros galantes. O que é o hábito de se utilizarem da
religião como duma coisa que serve para tudo! Se está bom
tempo, é uma bengala; se faz calor, é um guarda-sol; se chove,
é um guarda-chuva, e se a pessoa não sai, deixa-o à porta, no
bengaleiro. Há centenas delas assim que se importam tanto com
o bom Deus como com a primeira camisa que vestiram, mas que
não querem ouvir dizer mal dele, embora o tomem em certas
ocasiões como alcoviteiro. Se lhes propuserem ir a uma
hospedaria, consideram isso uma infâmia, mas parece-lhes muito
simples ter encontros amorosos ao pé dos altares."
Jorge passeava, lentamente, à borda do lago. Depois, olhou
de novo para o relógio da sineira, que estava adiantado dois
minutos e indicava três horas e cinco. Pareceu-lhe que estaria
melhor dentro da igreja e entrou. Uma frescura de subterrâneo
envolveu-o. Aspirou-a com satisfação e depois deu a volta à
nave para ficar a conhecer bem o local.
222
Outros passos, regulares, interrompiam-se algumas vezes e
depois recomeçavam. Correspondiam, no fundo do vasto
monumento, ao ruído dos seus passos, que ecoava sonoro na alta
abóbada. Teve curiosidade de saber quem era esse visitante.
Procurou-o. Era um senhor, calvo e gordo, que andava de nariz
no ar, com o chapéu atrás das costas.
Aqui e ali, havia uma velha ajoelhada a rezar com o rosto
apoiado nas mãos. Uma sensação de solidão, de deserto, de
repouso, apoderou-se do seu espírito. A luz, tamisada pelos
vitrais, era doce. Du Roy reconheceu que se estava bem a valer
ali dentro.
Voltou ao pórtico e olhou de novo para o relógio. Eram
somente três e um quarto. Sentou-se à entrada da nave central,
lamentando não poder fumar um cigarro. Continuava a ouvir-se,
na extremidade da igreja junto do coro, o caminhar lento do
senhor gordo.
Entrou alguém e Jorge voltou-se, subitamente. Era uma mulher
do povo, pobremente vestida, que caiu de joelhos, junto do
primeiro banco, e ficou imóvel de mãos postas e dedos
cruzados, a olhar para o céu, a alma absorvida na oração.
Du Roy olhava para ela com interesse e perguntava a si
próprio que desgosto, que dor, que desespero, podiam torturar
aquele coração. Rebentava de miséria - isso era visível - e
tinha talvez um marido que a moía com pancada ou um filho
doente. Murmurou: "Pobres criaturas. Há tantas que sofrem
assim!"
Apoderou-se dele uma cólera contra a natureza implacável.
Reflectiu depois que aqueles pobres diabos, pelo menos,
acreditavam haver quem se interessava por eles lá em cima e
que a sua identidade se encontrava inscrita nos registos do
céu com as colunas do Dever e do Haver: Lá em cima? Onde?
Como o silêncio da igreja o impelia para os vastos sonhos,
Jorge, num pensamento, julgou a obra da criação e pronunciou
entre dentes: "Como tudo isso é parvo!"
O ruído de um vestido fê-lo sobressaltar. Era ela.
Levantou-se e foi rapidamente ao seu encontro. A senhora
Walter não lhe estendeu a mão e murmurou:
- Só disponho de alguns instantes. Preciso de voltar para
casa. Ponha-se de joelhos a meu lado, para não repararem em
nós.
223
Dirigiu-se para a nave central, à procura de um lugar
conveniente e seguro, como mulher que conhecia bem os cantos
da casa. Tinha o rosto oculto por um véu espesso e caminhava
com passos abafados que mal se ouviam. Quando chegou junto do
coro, voltou-se e murmurou, nesse tom misterioso que é costume
usar nas igrejas:
- São preferíveis as naves laterais. Aqui estamos muito à
vista.
Curvou-se, ante o sacrário do altar-mor, com uma grande
inclinação de cabeça, reforçada por uma breve genuflexão,
voltou à direita e retrocedeu um tanto para a entrada e,
depois, tomou uma resolução: dirigiu-se para um genuflexório e
ajoelhou.
Jorge ocupou o genuflexório ao lado e quando ficaram
imóveis, na atitude de quem reza, disse:
- Obrigado, obrigado... Adoro-a. Queria dizer-lho todos os
dias. Contar-lhe como principiei a amá-la, como fiquei
seduzido a primeira vez que a vi... Permitir-me-á, um dia,
desabafar o meu coração e exprimir-lhe tudo isso?
Ela escutava-o, numa atitude de meditação profunda, como se
nada tivesse ouvido. Respondeu por entre os dedos:
- Sou louca por o deixar falar assim, louca por ter vindo,
louca por fazer o que faço e deixar-lhe supor que esta...
esta... esta aventura pode ter um seguimento. Esqueça isso,
assim é preciso, e não me fale jamais de tal.
Calou-se e esperou. Jorge procurava uma resposta, palavras
decisivas, apaixonadas, mas como não podia juntar os gestos às
palavras, a sua acção encontrava-se paralisada. Replicou:
- Não suponho nada... não espero nada. Gosto de si. Faça o
que fizer, repetir-lho-ei tantas vezes, com tanta força e
ardor, que finalmente acabará por me compreender. Quero fazer
penetrar em si a minha ternura, derramar-Lha na alma, palavra
por palavra, hora a hora, dia a dia, de modo que ela a
enterneça, a abrande e a force, mais tarde, a responder-me:
Também gosto de si.
Jorge sentiu-lhe os ombros estremecer, a garganta palpitar e
ouviu-a balbuciar:
- Também o amo.
Jorge teve um sobressalto, como se tivesse recebido uma
grande pancada na cabeça, e suspirou:
224
- Oh! Meu Deus!...
- Deveria dizer-lhe isto? - continuou ela com voz ofegante.
- Sinto-me culpada e desprezível... eu... que tenho duas
filhas... mas não posso... não posso. Nunca poderia supor...
Jamais pensaria... mas é mais forte, mais forte do que eu.
Escute... escute... nunca gostei de ninguém... a não ser... de
si... juro-Lho. Gosto de si há um ano, em segredo, no segredo
do meu coração. Oh! Como sofri e como lutei! Não posso mais,
gosto de si...
Chorava nas suas mãos cruzadas diante do rosto e todo o seu
corpo tremia, abalado pela veemência da sua comoção.
- Dê-me a sua mão - murmurou Jorge -, para lhe tocar e a
apertar...
Ela afastou lentamente a mão do rosto, mostrando a face toda
molhada e uma lágrima ainda prestes a desprender-se dos
cílios. Jorge pegou-lhe na mão, que apertou:
- Oh! Como desejaria beber essas lágrimas.
Com voz baixa e quebrada, que parecia um gemido, ela
disse-lhe:
- Não abuse de mim... estou perdida!
Jorge teve vontade de rir. Como poderia abusar dela naquele
local? Colocou sobre o coração a mão que tinha na sua e só
pôde perguntar:
- Sente-o bater? - pois tinha-se esgotado o seu reportório
de frases apaixonadas.
Havia já alguns instantes que se aproximavam os passos
cadenciados do outro visitante. Dera a volta aos altares e
voltava a descer, pela segunda vez pelo menos, a nave da
direita. Quando a senhora Walter o ouviu, perto do pilar que a
ocultava, arrancou a mão das de Jorge e de novo tapou o rosto.
Ficaram ambos imóveis, ajoelhados, como se estivessem a
dirigir ao céu súplicas ardentes. O senhor gordo passou junto
deles, lançou-lhes um olhar indiferente e afastou-se para a
entrada da igreja, sempre com o seu chapéu atrás das costas.
Du Roy, que, no entanto, esperava obter um encontro noutro
lugar que não na Igreja da Trindade, murmurou:
- Onde a poderei ver amanhã?
Ela não respondeu. Parecia inanimada, transformada na
estátua da oração, e ele insistiu:
- Amanhã, quer que nos encontremos no Parque Monceau?
225
Ela voltou para ele a sua face descoberta, uma face lívida,
crispada por terrível sofrimento, e disse em voz entrecortada:
- Deixe-me... deixe-me, agora... afaste-se... afaste-se...
somente cinco minutos... sofro muito... junto de si... quero
rezar... sozinha... cinco minutos... e não posso... deixe-me
implorar a Deus que me perdoe... que me salve... deixe-me...
cinco minutos...
O seu rosto estava de tal modo alterado, a expressão era tão
dolorosa, que Jorge se levantou sem dizer uma palavra. Após
uma hesitação, perguntou:
- Posso voltar daqui a pouco?
Ela fez um sinal com a cabeça que queria dizer: "Sim, daqui
a pouco", e ele dirigiu-se em direcção ao coro. A mulher,
então, tentou rezar. Fez um esforço sobre-humano de invocação
para chamar Deus em seu auxílio e, com o corpo a tremer, a
alma desolada, gritou para o céu:
- Misericórdia!
Fechara os olhos com raiva, para não ver aquele que se
afastava. Queria expulsá-lo do seu pensamento, lutava contra
ele; mas, em lugar da aparição celeste, esperada no desespero
do seu coração, via sempre o bigode frisado do rapaz.
Havia um ano que lutava, assim, todos os dias, todas as
noites, contra essa obsessão crescente, contra essa imagem que
povoava os seus sonhos, espicaçava a sua carne e perturbava as
suas noites. Sentia-se presa como um animal numa rede,
amarrada, atirada para os braços desse macho, que a tinha
vencido, conquistado, nada mais do que com o pêlo do seu lábio
e a cor dos seus olhos.
Ali, agora, naquela igreja, tão perto de Deus, sentia-se
mais fraca, mais abandonada, mais perdida ainda do que em sua
casa. Não podia já rezar, só podia pensar nele. Sofria já por
o ter afastado. Lutava, no entanto, como uma desesperada,
defendia-se, apelava para todas as forças da sua alma.
Desejaria antes morrer do que cair assim, ela que nunca tinha
fraquejado. Murmurava palavras desconexas de súplica; mas o
que ouvia eram os passos de Jorge perderem-se ao longe sob as
abóbadas.
Compreendeu que era o fim, que toda a luta seria inútil! No
entanto, não queria ceder. Sentiu-se presa de uma dessas
crises nervosas que atiram as mulheres ao chão, palpitantes,
226
a gritar e a contorcer-se. Todos os seus membros tremiam e
sentia perfeitamente que ia cair e rolar entre as cadeiras a
soltar gritos agudos.
Alguém se aproximou com andar rápido. Ela voltou a cabeça.
Era um padre. Levantou-se e correu para ele de mãos postas e
balbuciou:
- Oh! Salve-me! Salve-me!
O padre deteve-se, surpreendido:
- Que deseja a senhora?
- Quero que me salve. Tenha dó de mim. Se não vier em meu
auxílio, estou perdida!
O padre olhou para ela, duvidoso se não estaria em presença
de uma louca, e inquiriu:
- Que posso fazer por si?
Era um homem novo, alto, um tanto gordo, de faces cheias e
descaídas, escuras pela barba feita com cuidado, um belo
vigário da cidade, de bairro opulento, habituado às penitentes
ricas.
- Oiça-me de confissão - suplicou ela - e aconselhe-me,
sustenha-me, diga-me o que devo fazer!
- Confesso - replicou o padre - todos os sábados das três às
seis horas.
A senhora Walter pegara-lhe no braço e apertava-lho,
dizendo:
- Não! Não! Não! Imediatamente! Imediatamente. É preciso ser
já! Ele está aqui, nesta igreja, e espera-me!
- Quem é que a espera? - perguntou o padre.
- Um homem... que vai perder-me... que tomará conta de mim,
se o senhor padre não me salvar... Não lhe posso fugir... Sou
muito fraca... muito fraca... tão fraca... tão fraca... -
Caiu-lhe aos pés a soluçar. - Oh! Tenha comiseração de mim,
senhor padre! Salve-me, por amor de Deus, salve-me.
Segurava-o pela batina para não se lhe escapar. O padre,
inquieto, olhava para todos os lados, a ver se alguns olhos
malévolos ou devotos não descobriam aquela mulher caída a seus
pés. Compreendeu, por fim, que não poderia escapar-Lhe, e
disse:
- Levante-se. Tenho comigo a chave do confessionário.
Procurou na algibeira e tirou de lá uma argola guarnecida de
chaves, de que escolheu uma. Dirigiu-se, com passos rápidos,
227
para uma daquelas barraquinhas de madeira, espécie de caixotes
do lixo das almas, onde os crentes despejam os seus pecados.
Entrou pela porta do meio, que fechou atrás de si, e a
senhora Walter, que se atirara para o estreito compartimento
ao lado, balbuciou com fervor, num arrebatamento apaixonado de
esperança:
- Eu, pecadora, me confesso...
Du Roy, depois de ter dado a volta ao coro, desceu pela nave
da esquerda. Ia a chegar ao meio quando encontrou o senhor
gordo e calvo, que continuava sempre com o seu passo
tranquilo, e pensou: "Que andará este sujeito a fazer por
aqui?" O visitante atrasara o passo e olhava para Jorge com o
ar evidente de lhe querer falar. Quando chegou à sua altura,
cumprimentou-o delicadamente e perguntou:
- Peço desculpa de o incomodar, mas o senhor poderia
fazer-me o favor de dizer a época em que foi construído este
monumento?
- Na verdade - respondeu Du Roy -, não sei lá muito bem; mas
penso que há-de haver vinte ou vinte e cinco anos. É, aliás, a
primeira vez que cá venho.
- Eu também; nunca o tinha visto.
Então o jornalista, preso de curiosidade, continuou:
- Parece-me que o examina com muita atenção e estuda todos
os seus pormenores.
- Não examino nada - respondeu o outro, com resignação. -
Estou à espera da minha mulher. Disse-me que esperasse por ela
aqui, mas vem muito atrasada. - Calou-se e segundos depois
continuou: - Faz um calor terrível lá fora!
Du Roy observou-o melhor e achou-lhe uma boa cabeça. De
súbito, imaginou que se parecia com Forestier. Perguntou-Lhe:
- É da província?
- Sim. Sou de Rennes. E o senhor? Foi por curiosidade que
entrou nesta igreja?
- Não. Espero uma mulher.
Depois de lhe ter baixado a cabeça, o jornalista afastou-se
com um sorriso nos lábios. Ao aproximar-se da porta principal,
228 229
voltou a ver a pobre mulher, sempre de joelhos e a rezar.
Pensou: "Apre! Esta é teimosa!" Já não estava comovido e não a
lastimava.
Passou por ela e, lentamente, começou a subir a nave da
direita para ir ao encontro da senhora Walter. Espiava, de
longe, o lugar onde a deixara e surpreendeu-se por não a ver.
Julgou ter-se enganado no pilar, foi até ao último e voltou
para trás. Ter-se-ia ela ido embora? Ficou surpreendido e
furioso. Depois, pensou que ela o procurava e voltou a dar
volta à igreja. Como não a encontrou, tornou a ir para o
genuflexório que ocupara antes, à espera de que ela fosse lá
juntar-se-lhe.
Ficou à espera; mas, em breve, um murmúrio de vozes
despertou a sua atenção. Não vira antes ninguém naquele lado
da igreja. Donde vinha, então, aquele sussurro? Levantou-se
para ir ver e descobriu, na capela próxima, as portas dum
confessionário. A ponta dum vestido saía dum dos lados e
arrastava pelo chão. Aproximou-se para ver a mulher.
Reconheceu-a; estava a confessar-se!...
Sentiu uma vontade enorme de a agarrar pelos ombros e de a
arrancar para fora daquele caixote. Depois, pensou: "Ora! Hoje
é a vez do cura; amanhã será a minha!" Sentou-se
tranquilamente em frente dos postigos da penitência, à espera
da sua hora, a rir da aventura.
Esperou muito tempo. Por fim, a senhora Walter ergueu-se,
voltou-se, viu-o, dirigiu-se para ele, com aspecto frio e
severo, e disse-lhe:
- Peço-lhe, senhor, que não me acompanhe, não me siga e não
volte mais a minha casa só, pois não será recebido. Adeus!
Afastou-se com um andar cheio de dignidade. Jorge deixou-a
ir, pois tinha por princípio nunca forçar os acontecimentos.
Depois, como o padre, um tanto perturbado, saía do cubículo,
dirigiu-se a ele e, fitando-o a direito nos olhos, atirou-lhe
com isto:
- Se você não usasse saias, que par de bofetadas lhe
aplicaria nesse reles focinho!
Depois, deu meia volta e saiu da igreja a assobiar. No
pórtico, de chapéu na cabeça e as mãos atrás das costas, o
senhor gordo, cansado de esperar, percorria com o olhar a
vasta praça e todas as ruas que desembocavam nela. Quando Du
Roy passou junto dele, cumprimentaram-se.
Como se encontrava livre, o jornalista dirigiu-se para a
Vie Française. Logo à entrada, pela cara açodada do contínuo,
viu que se passava qualquer coisa anormal e entrou bruscamente
no gabinete do director.
O velho Walter, de pé, nervoso, ditava um artigo em frases
entrecortadas, dava instruções, entre dois parágrafos, aos
repórteres que o rodeavam, fazia algumas recomendações a
Boisrenard e abria cartas. Quando Du Roy entrou, o patrão
soltou um grito de alegria:
- Ah! Que sorte! Cá está Bel-Ami! - Deteve-se, um tanto
confuso, e desculpou-se: - Perdoe-me por tê-lo tratado assim;
mas estou perturbado pelas circunstâncias. Além disso, ouço
minha mulher e as minhas filhas chamar-lhe Bel-Ami, de manhã à
noite, que acabei por adquirir o mesmo hábito. Não fica
zangado com isso?
- De modo nenhum - riu Jorge. - Esse apelido não me
desagrada nada.
- Muito bem - continuou o velho Walter -, então passo a
tratá-lo por Bel-Ami, como toda a gente. Fique sabendo que
temos grandes acontecimentos. O Ministério caiu, numa votação
em que teve trezentos e dez votos contra e cento e dois a
favor. As férias ficaram adiadas, talvez para as calendas
gregas, e já estamos a 28 de Julho. A Espanha está irritada
por causa de Marrocos. Foi isso que deitou abaixo Durand de
LAine e os seus acólitos. Estamos metidos em trabalho até ao
pescoço. Marrot foi incumbido de formar novo gabinete. Leva o
general Boutin d'Acre para a Guerra e o nosso amigo
Laroche-Mathieu para os Negócios Estrangeiros. Guarda para si
a pasta do Interior e a presidência do Conselho. Passaremos a
ser o órgão oficioso. Faço o artigo de fundo, uma simples
declaração de princípios, a indicar o caminho ao Ministério. -
O velhote sorriu e continúou: - O caminho qe ele conta seguir,
bem entendido. Preciso, porém, de qualquer coisa interessante
acerca da questão de Marrocos, com actualidade, uma crónica de
efeito que cause sensação, não sei bem o quê! Veja se me
arranja isso.
- Tenho o que lhe convém - retorquiu Du Roy; depois de
reflectir um segundo. - Dou-lhe um estudo sobre a situação
política de toda a nossa colónia africana, com a Tunísia à
esquerda, a Argélia ao meio e Marrocos à direita; a história
das raças que povoam esse grande território e o relato duma
expedição na fronteira marroquina, até ao grande oásis de
Figuig, onde ainda nenhum europeu penetrou, e é a causa do
conflito actual. Isso convém-lhe?
230
- Admirável! - exclamou o velho Walter. - Qual é o título?
- De Tunes a Tânger!
- Soberbo!
Du Roy foi folhear a colecção da Vie Française, à procura do
seu primeiro artigo, Memórias dum Caçador de África,, que,
crismado, copiado, modificado, serviria admiravelmente, duma
ponta à outra, visto tratar de política colonial, da população
argelina e duma excursão na província de Orão.
Em três quartos de hora a coisa estava feita, retocada,
passada a limpo, com um sabor de actualidade e elogios ao novo
governo. O director, depois de ler o artigo, declarou:
- É perfeito... perfeito... perfeito. É um homem precioso.
Dou-lhe os meus parabéns.
Du Roy foi para casa jantar, satisfeito com o seu dia,
mal-grado o xeque sofrido na Trindade, pois bem sentia a
partida ganha. Sua mulher, febril, esperava-o e exclamou ao
vê-lo:
- Sabes que Laroche é ministro dos Negócios Estrangeiros?
- Sei sim, e acabo até de fazer um artigo acerca da Argélia
a esse respeito.
- Então, que dizes nele?
- Bem o sabes, é o primeiro que escrevemos juntos: Memórias
dum Caçador de África,, revisto e corrigido para as actuais
circunstâncias.
- Ah! Sim - sorriu Madalena -, mas está muito bem. - Após
ter meditado uns segundos: - Penso na continuação que devias
fazer então e que deixaste... para depois. Podemos fazê-la
agora. Dar-nos-á uma bonita série, de acordo com a situação.
- Perfeitamente - respondeu o marido, sentando-se em frente
do prato da sopa. - Nada se opõe a isso, desde o momento que o
coitadinho do Forestier já cá não está.
Madalena replicou, vivamente, num tom seco e magoado:
- Essa brincadeira não tem cabimento nenhum e peço-te o
favor de acabares com isso. Há já muito tempo que dura.
Jorge ia responder com ironia; mas levaram-lhe um telegrama
que continha só estas palavras, sem assinatura: "Tinha perdido
a cabeça. Perdoe-me. Vá amanhã às quatro horas ao Parque
Monceau."
231
Compreendeu, e já com o coração a transbordar de alegria,
disse à mulher, enquanto metia o telegrama no bolso:
- Não o farei mais, querida. É um disparate; reconheço-o.
Jorge começou a jantar e, enquanto comia, repetia aquelas
palavras: "Tinha perdido a cabeça. Perdoe-me. Vá amanhã às
quatro horas ao Parque Monceau." Portanto, ela cedia. Aquilo
queria dizer: "Rendo-me. Estou ao seu dispor onde quiser,
quando quiser." Pôs-se a rir e Madalena perguntou:
- De que ris?
- De nada de importância. Penso na cara dum padre que
encontrei e era bem apanhado.
Du Roy chegou, à hora marcada, ao encontro do dia seguinte.
Em todos os bancos do parque estavam sentados burgueses,
sufocados de calor, e as amas indiferentes que pareciam sonhar
enquanto as crianças se rebolavam no saibro das alamedas.
Encontrou a senhora Walter, na ruinazinha antiga onde corre
uma fonte. Dava a volta ao limitado círculo de colunas, com um
ar inquieto e triste. Mal Jorge a cumprimentou, disse-lhe:
- Há tanta gente neste jardim!
- Sim, é verdade - concordou ele, aproveitando a ocasião. -
Quer ir para outro sítio?
- Mas para onde?
- Seja para onde for. Até um carro, por exemplo. Baixa a
cortina do seu lado e ficará bem escondida.
- Sim; prefiro isso; aqui morro de medo.
- Então, espere-me, dentro de cinco minutos, à porta que dá
para o bulevar exterior. Vou buscar um fiacre.
Partiu a correr. Logo que voltou e depois de tapar bem o
vidro do seu lado, a senhora Walter perguntou:
- Aonde disse ao cocheiro que nos conduzisse?
- Não se preocupe com isso - respondeu Jorge. - Já está
informado.
Dera ao homem o endereço do seu apartamento da Rua de
Constantinopla. A senhora Walter prosseguiu:
- Não calcula como sofro por sua causa, como me sinto
atormentada, torturada. Ontem, fui dura consigo, na igreja,
mas queria fugir de si, custasse o que custasse. Tenho tanto
medo de nos encontrarmos a sós. Perdoou-me?
- Sim, sim! - fez Jorge, apertando-lhe as mãos. - Que não
lhe perdoaria, se a amo tanto?!
232
Com ar suplicante, a senhora Walter pediu:
- Ouça, é preciso que prometa que me respeitará... que
não... não... pois no caso contrário não poderei voltar a
vê-lo.
Jorge não respondeu imediatamente. Por baixo do bigode,
aflorava aquele sorriso fino que perturbava as mulheres e
acabou por murmurar:
- Sou seu escravo.
Então ela pôs-se a contar-lhe como descobrira que gostava
dele, ao saber que ia casar com Madalena Forestier. Dava
pormenores, insignificâncias de datas e coisas íntimas. De
súbito, calou-se. O carro acabava de parar. Du Roy abriu a
portinhola e ela perguntou:
- Onde estamos?
- Desça - respondeu-lhe - e entre nessa casa. Estaremos aí
mais tranquilos.
- Mas, onde estamos?
- Em minha casa. É o meu quarto de rapaz, que retomei... por
alguns dias... para ter um cantinho onde nos pudéssemos ver.
A senhora Walter agarrara-se ao coxim do carro, aflita, com
a ideia daquele encontro a sós, e balbuciava:
- Não, não; não quero! Não quero!
- Juro que a respeitarei - proferiu Jorge com voz enérgica.
- Venha! Bem vê que estão a olhar para nós e que se vão juntar
à nossa volta. Despache-se... despache-se... desça!Repetiu: -
Juro que a respeitarei.
Um carvoeiro, na soleira da porta, olhava para eles com ar
curioso. Presa de terror, a senhora Walter correu para a casa.
Ia subir a escada, mas Jorge reteve-a pelo braço:
- É aqui, no rés-do-chão.
Impeliu-a para os seus aposentos e, mal fechou a porta,
atirou-se à sua presa, que se debatia, lutava, gaguejava:
- Oh! Meu Deus!... Meu Deus!...
Du Roy beijava-lhe o pescoço, os olhos, os lábios, com
arrebatamento, sem que ela pudesse evitar essas carícias
furiosas; mas, embora as repelisse e lhe fugisse com a boca,
retribuía, apesar de tudo, os seus beijos.
De súbito, parou de se debater e, vencida, resignada,
deixou-se despir. Jorge tirava, uma a uma, rapidamente e com
destreza, as peças do seu vestuário, com mãos leves de dama de
companhia.
233
Ela tirara-lhe das mãos o corpete, para ocultar nele o
rosto, e ficara de pé, muito branca, no meio da roupa caída a
seus pés. Jorge deixou-lhe as botinas e levou-a nos braços
para o leito, enquanto ela murmurava ao seu ouvido, com voz
quebrada:
- Juro-lhe... juro-lhe... que nunca tive um amante.
Era como uma donzela que dissesse: "Juro-lhe que estou
virgem", e Jorge pensava: "Hei-de-me importar muito com isso.
É boa!"
XIII
O Outono chegara. Os Du Roy tinham passado todo o Verão
em Paris, por causa da campanha enérgica na Vie Française a
favor do novo gabinete, durante as curtas férias dos
deputados.
Embora estivessem ainda nos primeiros dias de Outubro, as
Câmaras iam continuar nas suas sessões por a questão de
Marrocos se tornar ameaçadora. Ninguém, no fundo, acreditava
numa expedição a Tânger, embora, no dia da suspensão das
sessões do Parlamento, um deputado da direita, o conde de
Lambert-Sarrasin, num discurso cheio de espírito, aplaudido
até pelo centro, tivesse oferecido apostar e dar como penhor o
seu bigode, como o fizera outrora um célebre vice-rei da
índia, contra as suíças do presidente do Conselho, como o novo
gabinete não poderia deixar de seguir o anterior e enviar um
exército para Tânger, a fim de ficar em equilíbrio com o de
Tunes, por amor da simetria, como quem põe duas jarras em cima
da pedra dum fogão. Acrescentou:
- A terra de África é efectivamente uma fornalha, para a
França, uma fornalha onde arde a nossa melhor lenha, uma
fornalha de grande tiragem, que se ateia com um sopro da
Banca. Tiveram a fantasia artística de ornamentar o canto
esquerdo do jarrão tunisino, que lhes custou muito caro; verão
que o senhor Marrot vai querer imitar o seu antecessor e
decorar o canto direito com uma peça marroquina.
Esse discurso, que ficou célebre, serviu de tema a Du Roy
para dez artigos. Continuou aquela série interrompida acerca
da colónia argelina desde a sua estreia no jornal, e defendeu,
energicamente, a ideia duma expedição militar, embora
estivesse convencido de ela não se realizar. Fez vibrar a
corda patriótica e bombardeou a Espanha com todo o arsenal de
argumentos depreciativos que se empregam contra os povos cujos
interesses são contrários aos nossos.
A Vie Française ganhara uma importância considerável graças
às suas conhecidas ligações com o Poder. Dava, antes dos
jornais mais sérios, as suas notícias políticas, indicava, por
meias-palavras, as intenções dos ministros seus amigos, e
todos os jornais de Paris e da província procuravam nela as
suas informações. Citavam-na, temiam-na e começavam a
respeitá-la. Já não era o órgão suspeito dum grupo de
aventureiros políticos, mas o porta-voz confessado do
gabinete. Laroche-Mathieu era a alma do jornal e Du Roy o seu
eco. O velho Walter, deputado mudo e director cauteloso, sabia
apagar-se e ocupava-se na sombra, segundo se dizia, dum
importante negócio de minas de cobre em Marrocos.
O salão de Madalena tornara-se um centro influente onde se
reuniam, todas as semanas, vários membros do gabinete. O
presidente do Conselho tinha até jantado duas vezes em sua
casa, e as esposas dos homens de Estado que hesitavam,
outrora, em franquear a sua porta, gabavam-se agora de ser
suas amigas e faziam-lhe mais visitas do que recebiam dela.
O ministro dos Negócios Estrangeiros reinava como senhor
naquela casa. Ia lá a toda a hora, levava telegramas,
esclarecimentos, informações que ditava, quer ao marido, quer
à mulher, como se fossem seus secretários.
Quando, depois da partida do ministro, Du Roy ficava só com
Madalena, indignava-se, com ameaças na voz e insinuações
pérfidas nas palavras, contra as atitudes daquele medíocre
aventureiro. A mulher, porém, encolhia os ombros com desprezo,
e repetia:
- Faz o mesmo que ele, tu: faz-te ministro, e, então,
poderás ter atitudes; até lá, cala-te.
- Ninguém sabe do que sou capaz - retorquiu Jorge, torcendo
o bigode - mas talvez um dia o venham a saber.
- Quem viver verá - replicou Madalena com filosofia.
Na manhã do dia da reabertura das Câmaras, a esposa, ainda
na cama, fazia mil recomendações ao marido, que se estava a
vestir para ir almoçar a casa de Laroche-Mathieu e receber as
suas instruções, antes da sessão, para o artigo político do
dia seguinte na Vie Française, pois esse artigo deveria ser
uma espécie de declaração oficiosa das reais intenções do
gabinete. Madalena insistiu:
236
- Sobretudo, não te esqueças de Lhe perguntar se o general
Belloncle é mandado a Orão, como se disse. Isso tem uma grande
importância.
- Sei muito bem o que devo fazer. Vai passear com as tuas
recomendações - retorquiu Jorge, enervado.
- Meu caro - objectou Madalena tranquilamente -, esqueces-te
sempre de metade das coisas de que te encarrego para o
ministro.
- Ao cabo, maças-me com o teu ministro. É um
idiota!resmungou o marido.
- É tanto o meu ministro como o teu - proferiu Madalena,
calmamente. - É-te mais útil do que a mim.
O marido voltou-se, trocista:
- Perdão, a mim não faz ele a corte.
Madalena declarou lentamente:
- A mim, também não, aliás; mas faz a nossa fortuna.
Jorge calou-se, mas após alguns instantes prosseguiu:
- Se tivesse de escolher entre os teus admiradores,
preferiria esse velho imbecil do Vaudrec. Que aconteceu a esse
tipo? Não o vejo há oito dias.
A mulher respondeu, sem mostrar nenhuma comoção:
- Está doente; escreveu-me até a dizer que guardava o leito
com um ataque de gota. Devias passar por sua casa, para saber
as suas notícias. Bem sabes que gosta muito de ti e isso
dar-lhe-ia prazer.
- Sim, certamente; irei daqui a bocado - acedeu Jorge.
Acabara de se vestir e, já de chapéu na cabeça, procurava se
não se teria esquecido de alguma coisa. Como não encontrou
nada, aproximou-se da cama e beijou a mulher na testa:
- Até logo, querida. Não estarei em casa antes das sete
horas - e saiu.
O senhor Laroche-Mathieu estava à sua espera, pois almoçava
às dez horas nesse dia, visto o Conselho de Ministros reunir
às doze, antes da reabertura do Parlamento.
Logo que se sentaram à mesa, só com o secretário do
ministro, pois a senhora Laroche-Mathieu não quisera alterar a
sua hora do almoço, Du Roy falou do seu artigo. Indicou-lhe os
tópicos, consultando as suas notas rabiscadas em bilhetes de
visita e ao terminar perguntou:
- Vê alguma coisa a modificar, meu caro ministro?
- Muito pouco, prezado amigo. É talvez um bocadinho
afirmativo de mais acerca da questão de Marrocos.
237
Fala da expedição como se estivesse já decidida, mas dando a
perceber que não se realizará e que não acredita nada nela.
Faça as coisas de maneira que o público perceba bem nas
entrelinhas que não nos iremos meter nessa aventura.
- Perfeitamente. Compreendi e far-me-ei compreender
claramente. Minha mulher encarregou-me de lhe perguntar se o
general Belloncle sempre será mandado a Orão; mas, depois do
que acaba de dizer, concluo que não.
- Não - respondeu o homem de Estado.
Conversaram depois da sessão que ia realizar-se.
Laroche-Mathieu pôs-se a perorar, preparando o efeito das
frases que proferiria ante os seus colegas, algumas horas mais
tarde. Agitava a mão direita e erguia, ora o garfo, ora a faca
e,. por vezes, um pedaço de pão. Sem olhar para ninguém,
dirigia-se à assembleia invisível e expectorava a sua
eloquência licorosa de perfeito homem bem penteado.
Um bigodinho encaracolado arrebitava-se nos lábios como dois
pontos semelhantes à cauda do escorpião. O seu cabelo lustroso
de brilhantina, com risca ao meio, arredondava-se, nas fontes,
em dois bandós de bonitão provinciano. Era um tanto gordo de
mais, um bocado obeso, embora ainda jovem, e o ventre
arredondava-se-lhe sob o colete.
O secretário particular comia e bebia tranquilamente,
acostumado, sem dúvida, àqueles banhos de facúndia; mas Du
Roy, a quem o ciúme do triunfo alcançado pelo outro remordia
no fundo, pensava: "Anda, imbecil! Que cretinos são estes
políticos!" Comparava o seu próprio valor com a importância
palavrosa do ministro, e dizia de si para si: "Com os diabos!
Se eu tivesse somente uns cem mil francos líquidos para me
apresentar às eleições na minha boa terra de Ruão e enrolar na
pasta da sua grande malícia os meus bravos normandos finórios
e desconfiados, que homem de Estado não faria, em comparação
com estes porcalhões imprevidentes!"
Até ao café, o senhor Laroche-Mathieu falou; depois, ao ver
que já era tarde, tocou para mandarem buscar o seu carro e
estendeu a mão ao jornalista:
- Está bem compreendido tudo, meu caro amigo?
- Perfeitamente, meu caro ministro, conte comigo.
Du Roy dirigiu-se devagar para o jornal a fim de começar a
escrever o seu artigo, pois não tinha nada para fazer até às
quatro horas.
238
A essa hora, deveria encontrar-se, na Rua de Constantinopla,
com a senhora de Marelle, a quem recebia, regularmente, duas
vezes por semana, à segunda e à sexta-feira.
Ao chegar, porém, à redacção, entregaram-Lhe uma carta
fechada. Era da senhora Walter, que lhe dizia: "Preciso,
absolutamente, de te falar hoje. É muito grave. Espera-me, na
Rua de Constantinopla, às duas horas. Posso prestar-te um
grande serviço. Tua amiga até à morte, Virgínia."
- Com os diabos! Que maçadora! - praguejou Jorge que, preso
dum excesso de mau humor, saiu imediatamente, demasiado
irritado para poder trabalhar.
Havia seis semanas que tentava romper com ela sem conseguir
moderar a sua encarniçada dedicação. Virgínia Walter tivera,
após a sua queda, um acesso de remorsos medonho e, em três
encontros sucessivos, crivara o seu amante de recriminações e
maldições. Aborrecido com tais cenas e já farto daquela mulher
madura e dramática, Jorge tinha-se simplesmente afastado, à
espera de a aventura terminar assim.
Foi então que ela se agarrou a ele perdidamente, lançando-se
naquele amor como quem se atira ao rio com uma pedra ao
pescoço. Jorge cedera por fraqueza, por complacência, por
atenção com a amante, a qual o aprisionara numa paixão
desenfreada e fatigante e o persuadia com a sua ternura.
Queria vê-lo todos os dias, chamava-o a toda a hora, por
telegramas a marcar encontros rápidos à esquina de ruas, num
estabelecimento ou jardim público.
Virgínia repetia-Lhe então, em algumas frases, sempre as
mesmas, que o adorava, o idolatrava, e depois deixava-o
dizendo sentir-se muito feliz por o ter visto. Mostrava-se
muito diferente daquilo que Jorge esperava, tentava seduzi-lo
com graças pueris, brincalhotices amorosas, ridículas na sua
idade.
Como se tivesse mantido, até então, estritamente honesta,
virgem de coração, fechada a qualquer sentimento, ignorante de
toda a sensualidade, de súbito, naquela mulher calma, cujos
quarenta anos tranquilos pareciam um pálido Outono depois dum
Verão frio, o que se dera fora uma espécie de Primavera
fanada, cheia de florezinhas mal abertas, de rebentos
abortados, um estranho explodir de paixão de garota, de amor
tardio, ardente e ingénuo, feito de impulsos imprevistos, de
gritinhos de menina de dezasseis anos, de carícias grotescas,
239
de graças já envelhecidas sem terem sido jovens.
A amante escrevia-lhe dez cartas por dia, cartas tolamente
apaixonadas, num estilo bizarro, poético e ridículo, empolado
como o dos Indianos, cheio de nomes de animais e de pássaros.
Quando se encontravam a sós, ela beijava-o com gentilezas
pesadas de rapariga gorda, ao fazer boquinhas um tanto
cómicas, saltinhos que agitavam o seu seio demasiado farto sob
o tecido do corpete.
Du Roy ficava sobretudo maldisposto ao ouvi-la dizer: "Meu
ratinho, Meu cãozinho, Meu gatinho, Minha jóia, Meu pássaro
azul, Meu tesouro." Sofria, também, quando ela se Lhe
entregava, sempre com uma comediazinha de pudor infantil, de
movimentozinhos de receio que julgava gentis, de gracinhas de
colegial depravada, a perguntar: "De quem é esta boquinha?" e
quando ele não respondia imediatamente, ela acudia: "É
minha!", insistindo até o fazer empalidecer de raiva.
Parecia a Jorge que a amante deveria compreender que no amor
é preciso um tacto, uma habilidade, uma prudência e uma
justeza extremas que, ao entregar-se-lhe, ela, uma muLher
madura, mãe de família, senhora da sociedade, deveria fazê-lo
gravemente, com uma espécie de arrebatamento refreado, severo,
com lágrimas talvez, mas com as lágrimas de Dido e não as de
Julieta.
Virgínia repetia-lhe, sem cessar: "Como gosto de ti, meu
menino; Gostas muito de mim, meu bebé?" Jorge não podia já
ouvir chamar-lhe meu menino e meu bebé, sem lhe dar vontade de
lhe chamar minha velha. Dizia-lhe, também, ela: "Que loucura
fiz em ceder; mas não me arrependo. É tão bom amar!"
Tudo isso parecia a Jorge irritante naquela boca, pois ela
murmurava: "É tão bom amar!", no mesmo tom em que o faria uma
ingénua de teatro. Além disso, exasperava-o o desajeitado das
suas carícias. Tornada subitamente sensual sob os beijos
daquele belo rapaz que tão fortemente lhe aquecera o sangue,
Virgínia empregava na sua posse um ardor inábil e uma
aplicação cuidadosa, que davam vontade de rir e faziam pensar
nos velhos que tentam aprender a ler.
Quando deveria apertá-lo nos seus braços e fitá-lo
ardentemente com aquele olhar profundo e terrível que têm
certas mulheres já maduras, soberbas no seu derradeiro amor,
240
quando deveria mordê-lo com a sua boca muda e fremente, ou
esmagá-lo sob a sua carne espessa e cálida, Virgínia
agitava-se como uma garota e ciciava para ser graciosa: "Gosto
tanto do meu menino... gosto tanto... faz uma festinha à tua
mulherzinha!" Jorge tinha, então, uma vontade doida de
praguejar, de pegar no chapéu e fugir, atirando com a porta.
Encontravam-se frequentemente, nos primeiros tempos, na Rua
de Constantinopla, mas Du Roy, que receava um encontro com a
senhora de Marelle, procurou, depois, mil pretextos para fugir
a esses encontros. Passou, então, a ir, quase todos os dias, a
sua casa, ora almoçar, ora jantar. Virgínia apertava-lhe as
mãos por baixo da mesa e dava-Lhe a boca por trás das portas.
Jorge divertia-se, sobretudo, a brincar com Susana, que
alegrava com as suas graças. No seu corpo de boneca agitava-se
um espírito ágil e malicioso, imprevisto e astuto, que tinha
ditos como os dum fantoche de feira. Troçava de tudo e de
todos, com um a-propósito mordaz. Jorge excitava os seus
gracejos, provocava-lhe a ironia, e entendiam-se
admiravelmente.
Susana estava sempre a chamar por ele: "Ouça, Bel-Ami, Venha
cá, Bel-Ami." Jorge deixava, então, a mãe, e corria para a
filha, que Lhe murmurava ao ouvido qualquer coisa maliciosa e
ambos riam de boa vontade.
Cada vez mais enfadado com as ternuras da mãe, Jorge sentia
uma invencível repugnância por ela. Já não a podia ver, nem
ouvir, nem pensar nela sem cólera. Deixou, portanto, de lhe
frequentar a casa, de responder às suas cartas e de atender
aos seus apelos.
A senhora Walter compreendeu, por fim, que o amante já não
gostava dela e sofreu com isso infernalmente. No entanto,
obstinava-se, espiava-o, seguia-o, esperava-o de carro com as
cortinas descidas, à porta do jornal, à saída de sua casa, nas
ruas onde previa que ele passasse.
Du Roy tinha vontade de a maltratar, de a injuriar, de lhe
bater e de lhe dizer claramente: "Basta! Estou farto de a
aturar!" Mantinha, porém, sempre uma atitude cortês, por causa
da Vie Française, e procurava, à força de frieza, de dureza
envolta em atenções e até de palavras ásperas em certos
momentos, fazer-lhe compreender que era preciso acabar com
aquilo.
241
Virgínia teimava sobretudo em descobrir artifícios para o
fazer atrair à Rua de Constantinopla e Jorge temia,
constantemente, que as duas mulheres se encontrassem um dia,
cara a cara, à porta do apartamento.
A sua afeição pela senhora de Marelle, pelo contrário,
crescera durante o Verão. Jorge chamava-lhe o seu garoto e,
decididamente, Clotilde agradava-lhe. As suas duas naturezas
tinham muitas coisas semelhantes. Um e outro pertenciam à raça
aventurosa dos vagabundos da vida, desses boémios mundanos,
que se parecem muito, sem dar por isso, com os nómadas dos
caminhos.
Tiveram um Verão de amores deliciosos, um Verão de
estudantes que fazem pândegas, que se escapam para ir almoçar
ou jantar, a Argenteuil, a Bougival, a Maisons, a Poissy, e
passar horas num barco, a apanhar flores ao longo das margens.
Clotilde gostava das frituras do Sena, dos fricassés e das
caldeiradas, das ramadas dos retiros e dos gritos dos
barqueiros. Jorge gostava de sair com ela, num dia bonito, na
plataforma dum comboio dos arredores, e atravessar, a dizer
coisas divertidas, os horríveis subúrbios de Paris, onde
crescem as detestáveis vivendas burguesas.
Quando era preciso regressar para ir jantar a casa da
senhora Walter, odiava essa velha amante carraça e lembrava-se
daquela a quem acabava de deixar, que adivinhava os seus
desejos e acalmava o seu ardor entre as ervas à beira da água.
Julgava-se, finalmente, quase liberto da patroa, a quem
exprimira duma maneira clara, quase brutal, a sua resolução de
acabar com tudo, quando recebeu, no jornal, a carta que lhe
marcava um encontro para as duas horas na Rua de
Constantinopla.
Releu-a pelo caminho: "Preciso absolutamente de te falar
hoje. É muito grave, muito grave. Espera-me, na Rua de
Constantinopla, às duas horas. Posso prestar-te um grande
serviço. Tua amiga até à morte, Virgínia."
Jorge pensava: "Que me quererá mais, essa velha coruja?
Aposto que não tem nada para me dizer e vai repetir que me
adora. No entanto, é preciso ver. Fala duma coisa muito grave
e dum grande serviço; talvez seja verdade. Clotilde vai lá às
quatro horas. Tenho de despachar a velha, o mais tardar às
três horas. Apre! Oxalá elas não se encontrem. Que maçadoras
são as mulheres!"
242
Pensava que, na verdade, a sua era a única que não o
atormentava. Vivia à parte e tinha o ar de gostar muito dele,
mas só nas horas destinadas ao amor, pois não admitia que se
alterasse a ordem imutável das ocupações ordinárias da vida.
Du Roy caminhava, a passos vagarosos, para o seu apartamento
dos encontros galantes, e excitava-se, em mente, contra a
patroa: "Ah! Vou recebê-la cá duma certa maneira, se não tem
nada para me dizer. O francês de Cambronne será académico em
comparação com o meu. A primeira coisa que lhe digo é que não
volto a pôr os pés em sua casa."
Entrou para esperar pela senhora Walter, a qual chegou quase
imediatamente e mal o viu exclamou:
- Ah! Recebeste a minha carta! Que sorte!
- Ora, encontrei-a no jornal, no momento em que partia para
a Câmara - retorquiu Jorge de rosto carrancudo. - Que me
queres mais?
Virgínia levantara o véu para o beijar e aproximava-se dele
com o ar medroso e submisso duma cadela batida pelo dono.
- Como és cruel para mim... Como me falas duramente... Que
te fiz eu? Não imaginas como sofro por ti!
- Não vais recomeçar? - resmungou Jorge.
A senhora Walter estava de pé, muito junta a ele, à espera
dum sorriso, dum gesto, para lhe cair nos braços, e murmurou:
- Não devias ter-me querido, para me tratares agora assim.
Deverias ter-me deixado calma e feliz como era. Lembras-te do
que me disseste na igreja e como me obrigaste a entrar, à
força, nesta casa? Vê como me falas agora! Como me recebes!
Meu Deus! Meu Deus! Como me fazes sofrer!
- Ah! Basta! - proferiu Jorge, violentamente e batendo o pé.
- Isto é de mais! Não posso ver-te, por um minuto que seja,
sem ouvir essa cantiga. Dir-se-ia que te seduzi aos doze anos
e que eras ignorante como um anjo. Não, minha cara,
restabeleçamos os factos: não houve nenhuma sedução de menor.
Entregaste-te a mim, em plena idade da razão. Agradeço-te e
estou absolutamente reconhecido por isso; mas não sou obrigado
a ficar agarrado às tuas saias até à morte. Tens um marido e
eu tenho uma mulher. Não somos livres, nem um, nem outro.
Tivemos um capricho, nada mais: acabou-se!
243
- Oh! Como és brutal! - proferiu Virgínia. - Como és
grosseiro! Como és infame! Não! Já não era uma donzela, mas
nunca tinha amado e jamais caíra...
- Já sei - atalhou Jorge -, já me disseste isso vinte vezes;
mas tinhas duas filhas... não fui, portanto, quem te
desflorou...
- Oh! Jorge! Isso é indigno... - proferiu a senhora Walter,
recuando.
Levou ambas as mãos ao peito, sufocada com os soluços que
lhe subiam à garganta. Quando a viu chorar, Jorge pegou no
chapéu que estava em cima da pedra do fogão:
- Ah! Vais chorar! Então, adeus. Foi para essa representação
que me fizeste cá vir?
Virgínia deu um passo a fim de lhe impedir o caminho e tirou
um lenço do bolso para enxugar os olhos, num gesto brusco. A
sua voz tornou-se mais firme pela força da vontade e
disse-lhe, interrompida por soluços de dor:
- Não... vim para... te dar uma notícia... uma notícia
política... Para te dar a possibilidade de ganhares cinquenta
mil francos... ou até mais... se quiseres.
- Como é isso? - perguntou Jorge, subitamente atento. - Que
queres dizer?
- Surpreendi, por acaso, ontem à noite, algumas palavras
entre meu marido e Laroche. Não se ocultam, aliás, muito
diante de mim. Walter recomendava ao ministro que não te
pusesse ao corrente do segredo, pois irias desvendar tudo.
Du Roy, que pusera o chapéu em cima duma cadeira, esperava,
muito atento, e inquiriu:
- Então, que há?
- Vão tomar Marrocos!
- Essa agora! Almocei, hoje, com Laroche, que quase me ditou
as intenções do gabinete.
- Não, querido, enganaram-te, pois têm medo que se saiba das
suas combinações.
- Senta-te - disse Jorge.
Ele próprio se sentou numa poltrona. Então, Virgínia atirou
ao chão um almofadão em que se deixou cair entre as pernas do
rapaz e disse com voz meiga:
- Como penso sempre em ti, presto atenção a tudo que
boquejam à minha volta.
244
Pôs-se então a explicar, mansamente, como descobrira, havia
algum tempo, que preparavam qualquer coisa a ocultas dele.
Embora utilizassem os seus serviços, temiam o seu concurso.
Explicou:
- Sabes, quem ama é desconfiado...
Finalmente, na véspera, compreendera. Tratava-se dum
negócio, dum negócio muito grande, preparado em segredo.
Virgínia sorria, satisfeita com a sua esperteza. Exaltava-se e
falava como a mulher dum financeiro, habituada a ver maquinar
os jogos da Bolsa, as evoluções dos valores, os acessos de
alta e de baixa que arruinam, em duas horas de especulação,
milhares de pequenos burgueses e modestas pessoas que vivem
dum rendimentozinho e colocaram as suas economias em papéis de
crédito garantidos por nomes de homens honrados, respeitados,
figuras da política ou da Banca. Repetia:
- Oh! É muito importante o que fizeram. Muito importante.
Foi Walter quem tramou tudo e é muito esperto nisso. Nessas
coisas, é verdadeiramente de primeira ordem.
Jorge impacientava-se com aquele preâmbulo:
- Vejamos, diz depressa.
- Pois bem! É isto: a expedição a Tânger foi decidida entre
eles, desde o dia em que Laroche foi para os Negócios
Estrangeiros. Aos poucos, compraram todos os títulos do
empréstimo de Marrocos, que tinham descido para sessenta e
quatro ou sessenta e cinco francos. Compraram-nos muito
habilmente, por meio de agentes suspeitos, pouco sérios, que
não despertavam, porém, nenhuma desconfiança. Enganaram até os
Rothschilds, admirados da saída que estavam a ter os títulos
marroquinos. Responderam-lhes indicando os nomes dos
compradores, tudo gente marcada sem cotação. Isso tranquilizou
o grande Banco. Agora faz-se a expedição e, depois de lá
estarmos, o Estado francês garantirá a dívida. Os nossos
amigos ganharão cinquenta a sessenta milhões. Compreendes o
negócio? Compreendes, também, como têm medo de toda a gente,
medo duma indiscrição?
Virgínia apoiava a cabeça contra o colete do rapaz, e, com
os braços em volta das suas pernas, apertava-o, colava-se a
ele, sentindo perfeitamente que conseguira interessá-lo,
prestes a fazer tudo, a praticar tudo, por uma carícia, por um
sorriso. Jorge perguntou:
- Tens a certeza?
245
- Claro que tenho! - respondeu-lhe com toda a confiança.
- É muito importante, com efeito - declarou Du Roy. - Quanto
a esse malandro do Laroche, hei-de ajustar contas com ele.
Grande bandalho! Que tenha cautela comigo!... Muita
cautela!... A sua carcaça de ministro ficar-me-á desfeita nas
mãos! - Pôs-se a reflectir e murmurou: - É preciso aproveitar
isso.
- Ainda podes comprar títulos desse empréstimo - observou
Virgínia. - Estão só a setenta e dois francos.
- Sim - replicou Jorge -, mas não tenho dinheiro disponível.
- Pensei nisso... meu gatinho - proferiu a senhora Walter,
erguendo para ele os olhos cheios de súplicas. - Se fores
gentil, muito gentil, e gostares de mim um bocadinho, posso
emprestar-to.
- Quanto a isso - retorquiu Jorge bruscamente, quase com
dureza - não! Era o que faltava.
- Ouve - murmurou ela com voz implorante -, há uma coisa que
podes fazer sem ter de pedir emprestado. Tinha intenção de
comprar dez mil francos desses títulos, para mim, a fim de
criar um mealheirozinho particular. Pois bem! Ficarei com
vinte mil! Entras na sociedade. Compreendes que não vou
liquidar já isso com Walter. Não há, portanto, nada a pagar
por agora. Se a coisa der resultado, ganhas setenta mil
francos; se não, ficas a dever-me dez mil, para pagares quando
puderes.
- Não - disse ainda Jorge. - Não gosto nada dessas
combinações.
Virgínia, então, argumentou para o decidir. Provou-lhe que,
na realidade, ele assumia o compromisso de dez mil francos sob
palavra e, por consequência, corria riscos. Por seu lado, ela
não lhe adiantava nada, pois os desembolsos eram feitos pelo
Banco Walter. Demonstrou-Lhe, além disso, ter sido ele quem
conduzira, na Vie Française, toda a campanha política que
tornara possível o negócio e seria muito ingénuo se não se
aproveitasse dela. Como Jorge ainda hesitava, a senhora Walter
acrescentou:
- Pensa, ao menos, que, na realidade, é Walter quem te
adianta esses dez mil francos e lhe prestaste serviços que
valem muito mais do que isso.
246
- Está bem! Seja! - concordou Jorge. - Entro a meias
contigo. Se perdermos, devolver-te-ei os dez mil francos.
Virgínia ficou tão contente que se levantou, agarrou-lhe com
as duas mãos a cabeça e pôs-se a beijá-lo avidamente. Jorge
deixou-a fazer a princípio, mas como ela se entusiasmava,
apertando-o e devorando-o com carícias, pensou que a outra
chegaria dali a pouco e não queria perder nos braços da velha
um ardor que achava melhor guardar para a nova. Repeliu-a,
então, suavemente, dizendo:
- Vejamos, tem juízo!
- Oh! Jorge, nem sequer te posso beijar! -proferiu Virgínia,
com um olhar desolado.
- Não - replicou ele. - Hoje, não. Tenho um bocado de
enxaqueca e isso far-me-ia mal.
Virgínia, dócil, voltou, então, a sentar-se entre as pernas
dele e perguntou:
- Queres ir jantar amanhã lá a casa? Que alegria me darias!
Jorge hesitou, mas, depois, não ousou recusar:
- Sim, certamente.
- Obrigada, querido!
Esfregava a face, lentamente, contra o peito dele, com um
movimento terno e regular, e um fio do seu comprido cabelo
negro prendeu-se-Lhe no colete. Ela deu por isso e uma ideia
louca lhe atravessou o espírito, uma destas ideias
supersticiosas que são, às vezes, toda a razão das mulheres.
Pôs-se a enrolar, lentamente, esse cabelo à volta de um botão.
Depois, prendeu outro ao botão seguinte e ainda outro ao de
baixo. A cada um prendeu um fio de cabelo.
Jorge arrancar-lhos-ia, dali a pouco, quando se levantasse.
Isso causar-lhe-ia uma dor, mas que felicidade! Ele
conservaria consigo uma minúscula mecha do seu cabelo, coisa
que nunca Lhe tinha pedido. Era um liame pelo qual ela o
prendia a si, um laço secreto, invisível, um talismã que Lhe
deixava. Sem querer, ele pensaria nela, sonharia com ela,
gostaria um bocadinho mais dela depois. Du Roy disse-Lhe,
subitamente:
- Tenho de te deixar, porque esperam por mim na Câmara para
o fim da sessão. Não posso faltar hoje.
- Oh! Já? - suspirou ela, e depois, resignada: - Vai,
querido; mas irás jantar lá a casa amanhã.
247
Bruscamente, afastou-se, e sentiu, na cabeça, uma dor,
rápida e viva, como se Lhe tivessem cravado agulhas na pele. O
coração batia-lhe apressadamente; estava contente por ter
sofrido um bocadinho por causa dele.
- Adeus! - disse-lhe.
Jorge abraçou-a com um sorriso compassivo e beijou-lhe os
olhos friamente. Ela, porém, desvairada com esse contacto,
murmurou mais uma vez:
- Já!...
O seu olhar suplicante indicava o quarto, cuja porta ficara
entreaberta. Jorge afastou-a de si, com ar apressado:
- Tenho de partir, pois já vou atrasado.
Então, Virgínia estendeu-lhe os lábios que ele mal aflorou e
depois de lhe dar a sombrinha de que ela se esquecia,
insistiu:
- Vamos, vamos! Despachemo-nos; são mais de três horas!
A senhora Walter saiu à sua frente e repetiu:
- Amanhã, às sete horas.
- Amanhã, às sete horas - assentiu Jorge.
Separaram-se: ela voltou à direita; ele para a esquerda. Du
Roy subiu até ao bulevar exterior. Depois, desceu pelo Bulevar
Malesherbes, que percorreu a passos lentos. Ao passar em
frente de uma pastelaria, viu bombons numa bandeja de cristal
e pensou: Vou comprar bombons para a Clotilde., Comprou um
saquinho de bombons dos que ela gostava mais. Às quatro horas,
já estava no seu apartamento, à espera da sua jovem amante.
Clotilde chegou um bocadinho atrasada, porque o marido fora
passar a casa oito dias. Perguntou-lhe:
- Queres ir jantar lá a casa amanhã? Ele ficaria encantado
por te ver.
- Não posso; janto em casa do patrão. Temos uma porção de
combinações políticas e financeiras a fazer.
Clotilde tirara o chapéu e estava a desapertar o colete que
a oprimia muito. Jorge mostrou-Lhe o saquinho em cima da pedra
do fogão:
- Trouxe-te bombons.
- Que sorte! - exclamou Clotilde a bater palmas. Como tu és
gentil!
Pegou no saco, tirou um bombom, saboreou-o e declarou:
248
- São deliciosos. Parece-me que não deixarei ficar nem um
só. - Acrescentou, olhando para Jorge, com uma alegria
sensual. - Queres alimentar todos os meus vícios?
Comia lentamente os bombons e lançava, incessantemente, um
volver de olhos para o fundo do saco, a ver se ainda restavam
alguns. Disse ao amante:
- Olha, senta-te na poltrona que vou encolher-me entre as
tuas pernas enquanto trinco os bombons. Estarei assim muito
bem.
Jorge sorriu; sentou-se e recebeu-a entre as coxas
entreabertas, como pouco antes estivera a senhora Walter.
Clotilde levantou a cabeça para Lhe falar e disse com a boca
cheia:
- Sabes, querido, que sonhei contigo. Sonhei que fazíamos
uma grande viagem, ambos, num camelo, bifurcados cada um em
cima de uma das bossas, e atravessávamos o deserto. Tínhamos
levado um embrulho com sanduíches e uma garrafa de vinho e
fazíamos um jantarzinho em cima das bossas. Isso aborrecia-me
porque não podíamos fazer mais nada. Estávamos longe um do
outro e eu queria descer.
- Eu também quero descer - comentou Jorge.
Ria, divertido com a história, obrigava-a a dizer tolices, a
palrar, a contar todas aquelas infantilidades que costumam
dizer os namorados. Essas parvoíces ternas, que achava tão
gentis na boca da senhora de Marelle, tê-lo-iam exasperado na
da senhora Walter.
Clotilde também lhe chamava "meu querido, meu menino, meu
gatinho", mas essas frases pareciam-Lhe doces e acariciadoras.
Ditas pela outra, pouco antes, irritavam-no, enojavam-no. Isto
por as palavras de amor, que são sempre as mesmas, tomarem o
gosto dos lábios donde saem. Jorge, no entanto, pensava,
embora satisfeito com todas aquelas loucuras, que ia ganhar
dinheiro e, bruscamente, deteve, com duas pancadinhas dadas
com o dedo na cabeça, o papaguear da sua amiga:
- Ouve, minha boneca: vou dar-te um recado para o teu
marido. Diz-lhe da minha parte que compre, amanhã, dez mil
francos de títulos do empréstimo de Marrocos, que está a
setenta e dois, e garanto-Lhe que ganhará com isso sessenta a
oitenta mil francos antes de três meses. Recomenda-lhe
absoluto segredo. Diz-lhe, da minha parte, que a expedição de
Tânger está resolvida e que o Estado francês vai garantir a
dívida pública marroquina.
249
Não te descaias a falar disso a mais ninguém. É um segredo de
Estado que te confio.
Clotilde ouvia-o, muito atenta, e murmurou:
- Obrigada. Prevenirei meu marido, esta noite. Podes confiar
nele: não dirá nada a ninguém. É pessoa muito séria. Com ele
não há perigo.
Já tinha comido todos os bombons, amarrotou o saco, atirou-o
para o fogão e disse:
- Vamo-nos deitar.
Sem se levantar, começou a desabotoar o colete de Jorge.
Subitamente, deteve-se e puxou-Lhe por um comprido cabelo que
estava preso a um botão, e pôs-se a rir:
- Olha! Trouxeste contigo um cabelo de Madalena. Assim é que
fazem os maridos fiéis!
Ficou séria e examinou, demoradamente, na mão, o
imperceptível fio que tinha encontrado e murmurou:
- Não é de Madalena; é preto.
- Provavelmente - disse Jorge a sorrir - é da criada de
quarto.
Clotilde inspeccionou o colete com uma atenção policial e
encontrou um segundo cabelo enrolado noutro botão e depois
ainda um terceiro. Empalideceu, e exclamou:
- Oh! Dormiste com uma mulher que te enrolou cabelos em
todos os botões!
- Não! Estás louca! - protestou Jorge, surpreendido.
Subitamente, lembrou-se, compreendeu, perturbou-se, a
princípio, e negou a rir, nada zangado no fundo por ela
suspeitar das suas conquistas. Clotilde continuou a procurar e
encontrou mais cabelos, que desenrolava com um movimento
rápido e atirava para o tapete. Adivinhara, com o seu instinto
astucioso de mulher, e balbuciava furiosa, enraivecida,
prestes a chorar:
- Esta gosta de ti... Quis que guardasses contigo alguma
coisa dela... Oh! Como és traiçoeiro...
Soltou um grito estridente, grito nervoso de alegria:
- Oh!... Oh!... É uma velha!... Aqui está um cabelo branco!
Ah! Tu, agora, conquistas velhas?... Elas pagam-te?... Diz
lá... elas pagam-te? Ah! Caíste em dar-te a velhas... Então,
não precisas de mim... Fica com a outra...
Levantou-se, correu para o seu colete que estava em cima de
uma cadeira e vestiu-o rapidamente.
250
Jorge queria retê-la, envergonhado e balbuciante:
- Mas não... Clo... que coisa idiota... não sei que é
isso... Ouve... fica... vejamos... fica...
- Vai para a tua velha! - repetiu Clotilde. - Fica com
ela... Manda fazer um anel com o seu cabelo... com os seus
cabelos brancos... Isso te basta...
Com gestos rápidos e precisos, Clotilde vestira-se,
penteara-se e pusera o chapéu e o véu. Como Jorge a queria
agarrar, ela atirou-lhe uma bofetada. Enquanto ele ficou um
momento aturdido, Clotilde abriu a porta e partiu.
Quando Jorge se encontrou sozinho, uma raiva furiosa se
apoderou dele, contra a velha bruxa da tia Walter. Ah! Essa
havia de pagar-lhas e duramente. Molhou com água a face
avermelhada. Saiu, por seu turno, a meditar na vingança. Desta
vez, não perdoaria. Ah! Isso não!
Desceu até ao bulevar, lentamente, e deteve-se diante da
loja de um joalheiro a olhar para o cronómetro que, havia
muito tempo, desejava possuir e custava mil e oitocentos
francos. Pensou, subitamente, com um abalo de alegria no
coração: "Se ganhar os meus setenta mil francos, poderei
comprá-lo", e pôs-se a sonhar com todas as coisas que faria
com esses setenta mil francos.
Em primeiro lugar, seria eleito deputado. Depois é que
compraria o seu cronómetro, depois jogaria na Bolsa, depois
ainda... depois... Não queria entrar no jornal e preferia
conversar com Madalena antes de voltar a ver Walter e de
escrever o seu artigo. Dirigiu-se, portanto, para sua casa.
Chegava à Rua Drouot quando parou de repente: esquecera-se
de ir saber da saúde do conde de Vaudrec, que morava na
Chaussée-d'Antin. Voltou para trás, sempre devagar, a pensar
em mil nadas, num devaneio satisfeito, a meditar em coisas
boas, agradáveis, na fortuna próxima, mas também no malandro
do Laroche e na velha bruxa da patroa. Não se afligia nada,
aliás, com a zanga de Clotilde, pois bem sabia que ela em
breve lhe perdoaria.
Perguntou ao porteiro da casa onde habitava o conde:
- Como tem passado o senhor de Vaudrec? Disseram-me que tem
estado doente...
- O senhor conde - respondeu o porteiro - está muito mal.
Julgam que não passará desta noite, pois a gota subiu-lhe ao
coração.
251
Du Roy ficou de tal modo aflito que não sabia que havia de
fazer. Vaudrec moribundo! Ideias confusas atravessavam-lhe o
cérebro, numerosas e perturbantes, que não ousava sequer
confessar a si próprio. Balbuciou:
- Obrigado... Volto depois... - sem saber o que dizia.
Em seguida, meteu-se num fiacre e mandou bater para sua
casa.
A mulher já tinha regressado. Jorge entrou no quarto,
ofegante, e disse-lhe, precipitadamente:
- Não sabes? Vaudrec está moribundo!
Madalena estava sentada na cama a ler uma carta. Levantou os
olhos e três vezes a seguir, perguntou:
- Que dizes? Que dizes?... Que dizes?!...
- Digo que Vaudrec está moribundo com um ataque de gota que
lhe subiu ao coração. - Acrescentou: - Que contas fazer?
A mulher ergueu-se, lívida, os maxilares agitados por um
tremor nervoso. Depois, começou a chorar convulsivamente, com
o rosto oculto nas mãos. Conservava-se de pé, abalada pelos
soluços, atormentada pelo desgosto. Subitamente, dominou a sua
dor e enxugou os olhos:
- Vou... Vou lá!... Não te preocupes comigo... Não sei a que
horas voltarei... Não esperes por mim...
- Muito bem. Vai - retorquiu Jorge.
Apertaram-se as mãos e Madalena partiu tão apressadamente
que até se esqueceu das luvas.
Depois de ter jantado sozinho, Jorge pôs-se a escrever o seu
artigo. Fê-lo, exactamente, segundo as indicações do ministro,
de modo a dar a entender aos leitores que a expedição a
Marrocos não se realizaria.
Saiu para o ir levar ao jornal, conversou uns momentos com o
patrão e regressou a casa, a fumar, com o coração leve sem
saber por quê. A mulher não tinha voltado. Deitou-se e
adormeceu.
Madalena regressou cerca da meia-noite. Jorge, acordado em
sobressalto, sentou-se na cama e perguntou:
- Então?
Nunca a tinha visto tão pálida e comovida como quando lhe
respondeu:
- Está morto.
- Ah! E... não te disse nada?
252 253
- Nada... Já tinha perdido o conhecimento quando cheguei.
Jorge meditava. Acudiam-lhe à ideia perguntas que não ousava
fazer. Disse-lhe:
- Deita-te.
Madalena despiu-se rapidamente e meteu-se na cama a seu
lado. O marido continuou:
- Estavam alguns parentes à sua cabeceira?
- Somente um sobrinho.
- Ah! Dava-se muito com esse sobrinho?
- Não. Havia dez anos que não se viam.
-Tinha outros parentes?
- Não... Não o creio.
- Vaudrec era rico?
- Sim, muito rico.
- Sabes quanto tinha, pouco mais ou menos?
- Exactamente, não; mas talvez um ou dois milhões.
Jorge não disse mais nada; Madalena apagou a vela. Ficaram
estendidos lado a lado na escuridão, silenciosos, despertos e
meditativos. O marido não tinha vontade de dormir. Estava a
achar pouco os setenta mil francos prometidos pela senhora
Walter. De súbito, pareceu-Lhe que Madalena chorava. Perguntou
para ter a prova:
- Estás a dormir?
- Não - respondeu-Lhe, com voz trémula e chorosa.
- Esqueci-me de te dizer - continuou Jorge - que o teu
ministro nos pregou uma partida.
- Que partida?
Contou-lhe, de ponta a ponta, com todos os pormenores, a
combinação maquinada por Laroche e Walter.
- Como soubeste isso? - perguntou Madalena quando o marido
terminou.
- Dás-me licença para não to dizer? - respondeu-lhe. -Tens
os teus meios de informação que não pretendo conhecer; tenho
os meus, que desejo guardar só para mim. Garanto-te, em todo o
caso, a exactidão das minhas informações.
- Sim, é possível... - murmurou Madalena. - Bem me queria
parecer que planeavam qualquer coisa contra nós.
Jorge que, pelos vistos, não podia dormir, aproximou-se da
mulher e, docemente, mordiscou-lhe a orelha. Madalena
repeliu-o com vivacidade:
- Fazes o favor, deixa-me sossegada, não? Não estou nada
disposta para brincadeiras.
O marido, resignado, voltou-se para a parede, fechou os
olhos e acabou por adormecer.
XIV
A igreja estava forrada de negro e, no pórtico, um grande
escudo com uma coroa sobreposta anunciava aos transeuntes que
ia a enterrar um titular. A cerimónia acabara e os assistentes
saíam, com lentidão. Desfilavam diante do catafalco e
apertavam a mão do sobrinho do conde de Vaudrec, que agradecia
os pêsames.
Quando Jorge du Roy e sua mulher saíram, puseram-se a
caminhar lado a lado, em direcção a casa. Iam calados,
preocupados. Por fim, Jorge proferiu, como se falasse para si
próprio:
- É, na verdade, muito extraordinário!
- Que é extraordinário, meu amigo? - perguntou Madalena.
- Que Vaudrec não nos tenha deixado nada.
Madalena corou subitamente, como se um véu róseo tivesse
sido estendido por cima da sua pele branca, desde a garganta à
fronte, e perguntou:
- Por que nos havia de deixar qualquer coisa? Não havia
nenhuma razão para isso! - Depois de alguns instantes de
silêncio, continuou: - Talvez haja um testamento num notário.
Não sabemos, por enquanto, nada a esse respeito.
- Sim, é provável - disse Jorge, depois de ter reflectido -,
porque afinal era um dos melhores amigos de nós ambos. Jantava
duas vezes por semana em nossa casa; ia lá continuamente e
estava à vontade connosco, como se estivesse em sua casa.
Gostava de ti como um pai, não tinha família, nem fiLhos, nem
irmãos, nem irmãs, ninguém, a não ser um sobrinho, e um
sobrinho afastado. Sim, deve haver um testamento. Não espero
grande coisa, mas uma lembrança, para provar que pensou em
nós, que gostava de nós, que reconhecia a afeição que lhe
votávamos. Devia ter para connosco essa atenção.
Madalena disse, com ar pensativo e tom indiferente:
- É possível, com efeito, que exista um testamento.
Ao chegarem a casa, o criado entregou uma carta a Madalena,
que a abriu e, depois, deu-a ao marido. Dizia:
Cartório do notário Lamaneur - 17, Rua dos Vosges. "Minha
senhora: tenho a honra de lhe pedir o favor de passar pelo meu
cartório, das duas às quatro horas, terça, quarta ou quinta
feira, para assunto que lhe diz respeito. Creia, etc."
Lamaneur.
- Deve ser isso - proferiu Jorge, que corara, por sua vez. -
É curioso que seja a ti que chamem e não a mim, que sou o
chefe da família.
Madalena não respondeu imediatamente, mas após curta
reflexão propôs:
- Queres que vamos lá já?
- Sim, por que não?
Puseram-se a caminho, mal acabaram de almoçar. Quando
chegaram ao escritório do notário, o ajudante levantou-se, com
sinais de grande respeito, e introduziu-os no gabinete do seu
patrão.
O notário era um homenzinho gorducho, redondo por todos os
lados. A sua cabeça parecia uma bola colocada em cima doutra
bola, suportada por duas pernas, tão curtas, tão roliças, que
pareciam também duas bolas. Cumprimentou-os, indicou-lhes que
se sentassem e disse, voltado para Madalena:
- Minha senhora, mandei-a chamar para lhe dar conhecimento
das últimas disposições do conde de Vaudrec, que lhe dizem
respeito.
Jorge não pôde impedir-se de murmurar:
- Bem me queria parecer.
- Vou ler-lhe - continuou o notário - esse documento, aliás
muito breve: Pegou num papel que tinha dentro da pasta na sua
frente e leu:
"Eu abaixo assinado, Paulo-Emílio-Cipriano Gontran, conde de
Vaudrec, são de corpo e de espírito, exprimo aqui as minhas
derradeiras vontades. A morte pode levar-nos a todo o momento
e, na previsão da sua chegada, quero tomar a precaução de
escrever o meu testamento que ficará depositado no cartório do
notário Lamaneur. Como não tenho herdeiros directos, deixo
toda a minha fortuna, composta de títulos da Bolsa,
256
no valor de seiscentos mil francos, e bens de raiz, no valor
de cerca de quinhentos mil francos, à senhora Clara-Madalena
Du Roy, sem nenhum encargo ou condição, e peça-lhe que aceite
este dom dum amigo, morto, como prova duma afeição devotada,
profunda e respeitosa."
- É tudo - acrescentou o notário. - Este documento é datado
do mês de Agosto último e substitui outro da mesma natureza,
feito, há dois anos, em nome da senhora Clara-Madalena
Forestier. Conservo esse primeiro testamento, que poderá
provar, em caso de contestação de parte da família, que a
vontade do conde de Vaudrec não se modificou.
Madalena, muito pálida, olhava para o chão; Jorge, nervoso,
torcia e destorcia as pontas do bigode. O notário continuou,
após um momento de silêncio:
- Bem entendido, meu caro senhor, a senhora não pode aceitar
o legado sem o seu consentimento.
Du Roy ergueu-se e disse num tom seco:
- Peço algum tempo para reflectir.
O notário sorriu, inclinou-se e proferiu com voz cordial:
- Compreendo os escrúpulos que fazem o senhor hesitar. Devo
declarar que o sobrinho do senhor conde de Vaudrec, que tomou
conhecimento, esta manhã, das últimas vontades de seu tio,
declara estar pronto a acatá-las, se lhe for dada a quantia de
cem mil francos. Em minha opinião, o testamento é inatacável;
mas um processo faz sempre barulho, que talvez lhes convenha
evitar. A sociedade formula, com frequência, juízos malévolos.
Em todo o caso, poderá dar-me a conhecer a sua resposta,
acerca de todos os pontos, até sábado?
- Sim, senhor - concordou Jorge.
Depois, cumprimentou cerimoniosamente, fez passar à frente
sua mulher, que continuava calada, e saiu com um ar de tal
maneira irritado que o notário já não tinha vontade de sorrir.
Logo que chegaram a casa, Du Roy fechou bruscamente a porta
e, atirando o chapéu para cima da cama, perguntou:
- Eras a amante de Vaudrec?
Madalena, que tirava o chapéu, voltou-se de repelão:
- Eu? Oh!
- Sim, eras. Ninguém deixa a sua fortuna a uma mulher, sem
que...
257
Madalena estava a tremer e não conseguia tirar os alfinetes
que prendiam o tecido transparente. Após um momento de
reflexão, balbuciou com voz alterada:
- Vejamos... vejamos... estás louco... louco!... Tu
próprio... ainda há bocado... não esperavas... que ele te
deixasse qualquer coisa?
Jorge estava de pé, junto dela, a observar todas as
manifestações da sua comoção, como um juiz que procura
surpreender o mínimo desfalecimento dum réu. Replicou,
insistindo em cada palavra:
- Sim... poderia deixar-me qualquer coisa; mas a mim... a
mim, teu marido... a mim, seu amigo... percebes... mas não a
ti... a ti, sua amiga... a ti, minha mulher. A distinção é
capital, essencial no respeitante às conveniências e... à
opinião pública.
Madalena, por seu turno, fitava-o fixamente, no fundo dos
olhos, de forma profunda e singular, como para ler lá qualquer
coisa, como se quisesse descobrir neles a incógnita do ser que
nunca se desvenda e só é possível entrever em rápidos
segundos, em momentos de abandono, de desatenção, quando as
pessoas não estão em guarda, e são como portas deixadas
entreabertas para o misterioso interior do espírito. Depois,
articulou:
- Parece-me, no entanto, que se... um legado dessa
importância fosse feito por ele... a ti... achá-lo-iam,
também, muito estranho.
- Estranho, porquê? - perguntou o marido, bruscamente.
- Porque... - Madalena hesitou e depois prosseguiu - porque
és meu marido... e só o conhecias, em suma, há muito pouco
tempo... porque era sua amiga... havia muito... porque o seu
primeiro testamento, feito ainda em vida de Forestier, era já
a meu favor.
Jorge pusera-se a passear dum lado para o outro em grandes
passadas, e declarou:
- Não podes aceitar isso.
- Perfeitamente - respondeu a mulher, com indiferença. -
Então, não vale a pena esperar por sábado. Podemos prevenir,
imediatamente, o notário Lamaneur.
Jorge parou em frente dela e ficaram ambos, alguns
instantes, de olhos nos olhos, esforçando-se por devassar o
segredo impenetráv el dos seus corações, de sondar o seu
pensamento a fundo. Procuravam ver a nu as suas consciências,
258
numa interrogação ardente e muda. Luta íntima de dois seres
que, embora vivessem lado a lado, sempre se ignoraram,
suspeitavam um do outro, se farejavam, se espreitavam, sem
nunca se conhecerem até ao fundo lodoso das almas.
Bruscamente, o marido murmurou-lhe, em voz baixa, junto do
rosto:
- Vamos, confessa que eras amante de Vaudrec.
- És estúpido - retorquiu Madalena, encolhendo os ombros. -
Vaudrec tinha muita afeição por mim, muita... mas nada mais...
nada.
- Mentes! - replicou Jórge, batendo o pé. - Isso não é
possível.
- No entanto, é assim mesmo - retorquiu a mulher
tranquilamente.
Jorge pôs-se a passear, novamente; a certa altura parou.
- Explica-me, então, por que te deixou, a ti, toda a sua
fortuna...
- É muito simples. Como dizias, há bocado, ele só nos tinha
a nós como amigos, ou melhor a mim, pois conhecia-me desde
criança. Minha mãe fora dama de companhia em casa duns
parentes dele. Vinha frequentemente ver-me e, como não tinha
herdeiros legítimos, pensou em mim. É possível que me tivesse
algum amor. Qual é, porém, a mulher que não foi amada assim?
Foi essa ternura, oculta, secreta, que o fez escrever o meu
nome quando pensou em redigir as suas últimas vontades? Por
que não? Trazia-me flores, todas as segundas-feiras. Não te
surpreendias nada por não tas trazer também para ti, não é
verdade? Agora, deixou-me a sua fortuna pela mesma razão e
porque não tinha ninguém a quem a oferecer. Seria, pelo
contrário, muito surpreendente que ta deixasse a ti. Por quê?
Que Lhe eras tu?
Falava num tom tão natural e tranquilo que Jorge parecia
hesitante, mas insistiu:
- Seja como for, não podemos aceitar a herança nessas
condições. Seria dum efeito deplorável. Toda a gente
acreditaria na coisa, todos murmurariam e se ririam de mim. Os
colegas já estão demasiado dispostos a invejar-me e a
dirigir-me chufas. Mais do que ninguém, devo ter a preocupação
da minha honorabilidade e da minha reputação.
259
É-me impossível admitir e autorizar que minha mulher aceite um
legado dessa natureza dum homem que a maledicência pública já
apontava como seu amante. Forestier talvez tivesse tolerado
isso; mas eu não.
- Muito bem, meu amigo - murmurou a mulher, com doçura -,
não o aceitemos; será um milhão a menos no nosso bolso, ora aí
está!
Jorge continuava a passear e pôs-se a pensar em voz alta,
falando para sua mulher, mas sem se dirigir a ela:
- Está bem! Sim... um milhão... tanto pior... Não
compreendeu, ao fazer o testamento, que falta de tacto, que
desprezo pelas conveniências, cometia... Não viu em que
posição falsa, ridícula, me ia colocar... Tudo é questão de
saber fazer as coisas... Se me tivesse deixado metade a mim...
tudo estava arranjado.
Du Roy sentou-se, cruzou as pernas e pôs-se a torcer as
guias do bigode, como costumava fazer nas horas de
aborrecimento, de inquietação ou de reflexão difícil. Madalena
pegou num bordado em que trabalhava de tempos a tempos e
disse, enquanto escolhia as cores:
- Por mim, não digo nada. Tu é que tens de decidir.
O marido esteve muito tempo sem falar e depois proferiu,
hesitante:
- A sociedade nunca compreenderá que Vaudrec tivesse feito
de ti a sua única herdeira e eu tivesse admitido isso. Receber
dessa maneira a fortuna seria confessar... confessar uma
ligação culposa, por teu lado, e, pelo meu, uma complacência
infame... Compreendes como interpretariam a nossa aceitação? É
preciso encontrar uma saída, um meio hábil de arranjar a
coisa. Seria preciso, por exemplo, dar a entender que ele
dividira entre nós a sua fortuna e dera metade ao marido e
metade à mulher.
- Não vejo - disse Madalena - como poderá ser feito isso,
visto que o testamento é formal.
- Oh! É muito simples - retorquiu o marido. - Podes ceder-me
metade da herança, por doação entre vivos. Como não temos
filhos, isso é, portanto, possível. Dessa forma, fecharemos a
boca às más-línguas.
- Não vejo - replicou a mulher, impaciente - como fecharemos
a boca às más-línguas, pois o documento lá está assinado por
Vaudrec.
260
- Temos necessidade - retorquiu o marido colérico - de o
mostrar e afixar pelas paredes? Afinal, pareces estúpida.
Diremos que o conde de Vaudrec nos deixou a sua fortuna a
meias... Ora aí está!... Como não podes aceitar esse legado
sem minha autorização, dou-ta mediante a única condição duma
partilha que me impedirá de ser troçado por toda a gente.
Madalena olhou para ele, mais uma vez, com olhar penetrante:
- Como quiseres. Por mim, estou pronta.
Então Jorge levantou-se e pôs-se a passear. Parecia de novo
hesitar e evitava o olhar penetrante de sua mulher. Dizia:
- Não... decididamente não... talvez seja preferível
renunciar a tudo completamente... É mais digno... mais
correcto... mais respeitável... Assim, dessa maneira, não
terão nada de que suspeitar, absolutamente nada. As pessoas
mais escrupulosas teriam de acatar isso.
Deteve-se diante de Madalena:
- Pois bem, se queres, minha querida, vou sozinho ao notário
Lamaneur para o consultar e lhe explicar a coisa. Dir-lhe-ei
os meus escrúpulos e acrescentarei que pensámos numa partilha
por conveniência, para que não murmurem. Desde o momento em
que aceito metade dessa herança, ninguém tem o direito de
troçar. É o mesmo que dizer em voz alta: Minha mulher aceita
porque eu aceito, eu, seu marido, que sou o único juiz do que
ela pode fazer sem se comprometer. Doutro modo, isso seria um
escândalo.
- Como quiseres - murmurou Madalena simplesmente.
Jorge voltou a falar com volubilidade:
- Sim, esse arranjo da partilha a meias é claro como água.
Herdámos dum amigo que não quis estabelecer diferença entre
nós, que não quis fazer nenhuma distinção nem ter o ar de
dizer: "Prefiro um ao outro, depois da minha morte, como
preferi em vida. Gostava mais da mulher", bem entendido, mas
ao deixar a sua fortuna tanto a mim como a ti quis exprimir de
modo bem claro ser a sua preferência simplesmente platónica.
Tem a certeza de que, se tivesse pensado bem, era isso que
faria. Não reflectiu, não previu as consequências. Como muito
bem dizias, há bocado, era a ti que oferecia flores todas as
semanas e foi a ti que quis deixar a sua última lembrança, sem
dar conta...
261
Madalena deteve-o com uma sombra de irritação:
- Está bem. Já compreendi. Não precisas de dar tantas
explicações. Vai imediatamente ao notário.
- Tens razão, vou já - balbuciou o marido, corando.
Pegou no chapéu e no momento de sair disse:
- Vou tratar de arranjar as coisas de maneira a dar ao
sobrinho só cinquenta mil francos, não achas?
Madalena respondeu-Lhe com sobranceria:
- Não. Dá-lhe os cem mil francos que pede. Podes tirá-los da
minha parte, se quiseres.
- Ah! Não - murmurou o marido, subitamente envergonhado. -
Partilharemos também isso. Se dermos cinquenta mil francos
cada um fica-nos ainda um milhão líquido.
Ao despedir-se:
- Até logo, minha Madazinha.
Foi explicar ao notário a combinação, que disse ser de
iniciativa da mulher.
No dia seguinte foi assinada a doação entre vivos de
quinhentos mil francos que Madalena du Roy fazia a seu marido.
Ao saírem do notário, como estava um dia bonito, Jorge
propôs irem a pé até aos bulevares. Mostrava-se amável, cheio
de atenções, de cuidados, de ternura. Ria, muito satisfeito
com tudo, enquanto ela se mantinha meditativa e um tanto
severa.
Era um dia de Outubro, bastante frio. A multidão parecia
apressada e caminhava a passos largos. Du Roy conduziu a
mulher até à vitrina da joalharia onde admirara tantas vezes o
desejado cronómetro e perguntou:
- Queres que te ofereça uma jóia?
- Como quiseres - murmurou Madalena, com indiferença.
Entraram e o marido perguntou-lhe:
- Que preferes? Um colar? Uma pulseira? Brincos?
A vista das jóias, do ouro e das pedras preciosas venceu a
frieza da mulher que percorreu com olhos cobiçosos as vitrinas
cheias de jóias. Subitamente, presa dum desejo, disse:
- Aqui está uma pulseira bem bonita.
Era uma cadeia duma forma estranha, cujos elos tinham uma
pedra diferente.
- Quanto custa esta pulseira? - perguntou Jorge.
262 263
- Três mil francos, meu caro senhor - respondeu o joalheiro.
- Se ma deixar por dois mil e quinhentos, é negócio
arrumado.
- Não, senhor. É impossível - retorquiu o joalheiro, após
uma hesitação.
- Veja lá - insistiu Du Roy. - Junte-lhe esse cronómetro por
mil e quinhentos francos. Tudo fará quatro mil, que pago de
contado. Concorda? Se não quer assim, irei a outro lado.
O joalheiro, perplexo, acabou por aceitar:
- Está bem, seja, meu caro senhor.
O jornalista, depois de ter dado o seu endereço,
acrescentou:
- Mande gravar no cronómetro as minhas iniciais G. R. C., em
letras entrelaçadas, sob uma coroa de barão.
Madalena, surpreendida, sorriu. Quando saíram, pegou-lhe no
braço com certa ternura. Achava-o, na verdade, muito esperto e
forte. Desde o momento em que tinha rendimentos, precisava dum
título - era justo.
- Pode ficar descansado, senhor barão - cumprimentou o
joalheiro à saída -, tudo estará pronto quinta-feira.
Passaram defronte do Vaudeville, onde representavam uma peça
nova.
- Se queres - disse Jorge - iremos esta noite ao teatro.
Vamos ver se conseguimos um camarote.
Encontraram e compraram o camarote e Jorge propôs:
- Se fôssemos jantar ao restaurante?
- Oh! Sim. Isso agrada-me.
Du Roy sentia-se feliz como um rei e procurava que mais
havia de fazer. Lembrou:
- Se fôssemos convidar a senhora de Marelle para passar a
noite connosco? Seu marido está cá, segundo me disseram, e
teria muito gosto em apertar-lhe a mão.
Foram lá. Como Jorge receava um tanto o primeiro encontro
com a amante, não lhe desagradava nada que a esposa estivesse
presente para evitar qualquer explicação.
Clotilde deu, porém, a impressão de não se lembrar de coisa
nenhuma e insistiu até com o marido para aceitar o convite.
O jantar foi alegre e a noite encantadora. Jorge e Madalena
entraram tarde em casa, já o gás estava apagado. Para subir os
degraus, o jornalista ia acendendo fósforos.
Quando chegaram ao patamar do primeiro andar, o clarão da
chama, após ter riscado o fósforo, fez surgir no espelho as
suas duas imagens, iluminadas, no meio da treva da escada.
Tinham o ar de aparições fantasmais, prestes a desvanecer-se
na sombra. Du Roy ergueu a mão para iluminar bem as suas
imagens e disse com um riso de triunfo:
- Eis os milionários que passam.
XV
Havia dois meses que a conquista de Marrocos estava
feita. A França, senhora de Tânger, possuía toda a costa
africana do Mediterrâneo até à regência de Trípolis e tomara a
responsabilidade da dívida do novo país anexado. Diziam que
dois ministros ganhavam com isso uns vinte milhões e citavam
até, em voz alta, o nome de Laroche-Mathieu.
Quanto a Walter, ninguém, em Paris, ignorava que comera a
dois carrilhos, pois ganhara de trinta a quarenta milhões com
os títulos do empréstimo e uns oito a dez milhões com as minas
de cobre e ferro, assim como pela compra de imensos terrenos,
adquiridos por quase nada antes da conquista e revendidos,
depois da ocupação francesa, a companhias colonizadoras.
Walter tornara-se, em poucos dias, um dos grandes do mundo,
um desses financeiros omnipotentes, mais fortes do que os
reis, que fazem curvar as cabeças, balbuciar as bocas e exibir
tudo quanto há de baixeza, de cobardia e de inveja no coração
humano.
Já não era o judeu Walter, dono de um banco de negócios
escuros, director de um jornal suspeito, deputado acusado de
tramóias. Era o senhor Walter, o opulento israelita.
Walter quis mostrar que o era. Ao saber das dificuldades do
príncipe de Carlsbourg, que possuía um dos mais belos
palacetes do Bairro de Saint-Honoré, com jardins que davam
para os Campos Elísios, propôs-Lhe comprar, em vinte e quatro
horas, o edifício com todo o seu mobiliário sem modificar
coisa nenhuma. Oferecia por tudo três milhões. O príncipe,
tentado pela soma, aceitou.
No dia seguinte, Walter instalou-se na sua nova residência.
Teve, então, outra ideia, uma verdadeira ideia de conquistador
que quer tomar Paris, uma ideia à Bonaparte.
Toda a cidade ia ver, nessa altura, um grande quadro do
pintor húngaro Marcowitch, exposto na casa do perito Jaime
Lenoble, e que representava Cristo a caminhar por cima das
ondas. Os críticos de arte, entusiasmados, declaravam ser essa
tela a mais magnífica das obras-primas do século.
Walter comprou-a por quinhentos mil francos e levou-a para
casa. Interrompeu, assim, de um dia para o outro, a corrente
de curiosidade pública e forçou Paris inteira a falar dele,
para o invejar, o censurar ou aprovar.
Depois, fez constar, pelos jornais, que convidaria todas as
pessoas conhecidas da sociedade parisiense a ir contemplar, em
sua casa, o quadro magistral do mestre estrangeiro, a fim de
não dizerem que tinha sequestrado uma obra de arte. Abriria as
portas do seu palacete. Iria lá quem quisesse. Bastaria
mostrar à porta o convite.
Esse convite fora assim redigido: "O senhor e a senhora
Walter solicitam a honra de ir ver a sua casa, em 30 de
Dezembro, das nove horas à meia-noite, o quadro de Karl
Marcowitch: "Jesus a caminhar por cima das ondas", iluminado a
"luz eléctrica"." Em post scriptum lia-se em tipo miúdo:
"Dançar-se-á depois da meia-noite"."
Portanto, ficariam aqueles que quisessem ficar e entre eles
Walter recrutaria as suas relações futuras. Os outros veriam o
quadro, o palacete e os seus proprietários, com curiosidade
mundana, insolente ou indiferente, e, depois, ir-se-iam como
tinham vindo. O velho Walter sabia que voltariam mais tarde,
como voltavam a casa dos seus irmãos israelitas enriquecidos
como ele.
Primeiramente, era preciso que entrassem em sua casa todos
os titulares pelintras que são citados nas gazetas. Iriam lá
para ver a cara do homem que ganhara cinquenta milhões em seis
semanas. Iriam, também, para ver e contar aqueles que estavam
lá. Iriam ainda porque tivera o bom-gosto de os convidar a
admirar um quadro cristão em sua casa, ele, um filho de
Israel.
Parecia dizer-lhes: "Vejam, paguei por quinhentos mil
francos a obra-prima religiosa de Marcowitch, "Jesus a
caminhar por cima das ondas". Essa obra-prima ficará em minha
casa, sempre sob os meus olhos, na casa do judeu Walter."
Na sociedade, sobretudo na das duquesas e do Jockey Club,
fora muito discutido aquele convite, que não obrigava, aliás,
a nada. Iriam lá como iam ver as aguarelas à Galeria Petit. Os
Walters possuíam uma obra-prima e abriam as suas portas,
266
uma noite, para todos a poderem admirar. Ainda bem.
A Vie Française fazia todas as manhãs, havia quinze dias, um
eco acerca desse serão de 30 de Dezembro e esforçava-se por
excitar a curiosidade pública.
Du Roy enraivecia-se com os triunfos do patrão. Julgara-se
rico com os quinhentos mil francos extorquidos a sua mulher,
mas passara a considerar-se pobre, terrivelmente pobre, ao
comparar a sua magra fortuna com a chuva de milhões que caíra
à sua volta sem poder apanhar nada.
A sua cólera invejosa aumentava todos os dias. Detestava
toda a gente: os Walters, a casa de quem não voltara a ir; a
sua mulher que, enganada por Laroche, lhe desaconselhara a
compra de títulos marroquinos; e, sobretudo, esse ministro que
se rira dele, que se servira dele e jantava à sua mesa duas
vezes por semana. Servia-lhe de secretário, de agente e até de
caneta e, quando escrevia sob o seu ditado, Jorge sentia uma
vontade louca de estrangular esse conquistador triunfante.
Como ministro, Laroche mostrava-se modesto na vitória e,
para conservar a sua pasta, não deixava perceber que estava
cheio de ouro. Du Roy, porém, sentia esse ouro nas palavras
mais altaneiras do advogado novo-rico, nos seus gestos mais
insolentes, nas suas afirmações mais ousadas, na sua completa
confiança em si próprio. Laroche reinava agora em casa de Du
Roy, pois tomara o lugar e os dias do conde de Vaudrec e
falava aos criados como se fosse o dono da casa.
Jorge tolerava-o, fremente como um cão que quer morder e não
se atreve. Era, porém, com frequência, áspero e brutal com
Madalena, que encolhia os ombros e o tratava como a uma
criança mal-educada. Surpreendia-se, aliás, com o constante
mau humor do marido, a quem dizia:
- Não te compreendo. Estás sempre a lamentar-te. A tua
posição é, no entanto, magnífica.
Jorge voltava-lhe as costas e não lhe respondia. Declarara
que não iria à recepção do patrão e não poria mais os pés em
casa desse porco judeu.
Havia dois meses que a senhora Walter lhe escrevia, todos os
dias, a suplicar que a fosse ver ou marcasse um encontro onde
quisesse, a fim de lhe entregar os setenta mil francos que
ganhara para ele.
Du Roy não lhe respondia e atirava ao lume essas cartas
desesperadas.
267
Não por ter renunciado a receber a sua parte nos lucros, mas
por a querer vexar, tratá-la com desprezo, calcá-la aos pés.
Virgínia era muito rica. Queria mostrar-se altivo.
No dia da exposição do quadro, Madalena fez-lhe ver que não
tinham nenhuma razão para não ir. O marido retorquiu:
- Deixa-me! Fico em casa!
Depois, a seguir ao jantar, declarou subitamente:
- Apesar de tudo, é preferível fazer esse frete. Arranja-te
depressa.
Madalena esperava por isso e disse:
- Dentro de um quarto de hora estou pronta.
Jorge vestiu-se de mau modo e até dentro do carro continuou
a expectorar a sua bílis.
O átrio de honra do palacete de Carlsbourg estava iluminado
com quatro globos eléctricos que pareciam quatro luazinhas
azuladas, dispostas aos quatro cantos. Um magnífico tapete
cobria os degraus desde o alto da escadaria e em cada degrau
havia um lacaio de libré, hirto como uma estátua.
Du Roy encolheu os ombros, com o coração apertado de inveja:
- Que presunção!
- Cala-te e faz o mesmo - disse-lhe sua mulher.
Entraram e entregaram os seus pesados abafos aos criados
solícitos. Encontraram lá muitas senhoras com os maridos, a
tirar os seus abafos de peles. Ouvia-se murmurar: É muito
bonito! Muito bonito!
O vestíbulo enorme estava revestido de tapeçarias que
representavam as aventuras de Marte e Vénus. À direita e à
esquerda partiam os dois lanços de uma escadaria monumental,
que ia dar ao primeiro andar. O corrimão era uma maravilha de
ferro forjado, cujas velhas douraduras faziam cintilar
reflexos discretos nos degraus de mármore vermelho.
À entrada das salas, duas pequenitas, uma vestida de
cor-de-rosa, outra de azul, ofereciam flores às senhoras.
Acharam isso encantador.
Havia já uma multidão lá dentro. A maior parte das senhoras
estava com vestidos de passeio, para mostrar, claramente, que
iam lá como iam a qualquer exposição. As que tencionavam ficar
para o baile estavam decotadas e de braços nus.
268
A senhora Walter, rodeada de amigas, encontrava-se na
segunda sala e correspondia aos cumprimentos dos visitantes.
Muitos não a conheciam e andavam por ali como num museu, sem
se preocupar com os donos da casa.
Quando descobriu Du Roy, ficou lívida e fez um movimento
para se dirigir a ele... Depois, ficou imóvel, à espera. Jorge
cumprimentou-a, cerimoniosamente, enquanto Madalena a cumulava
de gentilezas e felicitações. U marido deixou-a junto da
patroa e perdeu-se entre a multidão, para ouvir as coisas
malévolas que certamente diriam.
Seguiam-se cinco salas, forradas de tecidos preciosos, de
damascos italianos ou tapetes orientais de tons e estilos
diferentes. Nas paredes viam-se quadros de mestres antigos.
Detinham-se, sobretudo, para admirar um gabinetezinho Luís
XVI, uma espécie de alcova, toda estofada de seda, com
raminhos cor-de-rosa num fundo azul pálido. Os móveis baixos,
dourados, revestidos com o mesmo estofo das paredes, eram duma
admirável delicadeza.
Du Roy reconhecia pessoas célebres: a duquesa de Terracine,
o conde e a condessa de Ravenel, o general príncipe de
Andremont, a sempre bonita marquesa de Dunes e todos aqueles e
todas aquelas que se vêem nas primeiras representações.
Meteram-lhe o braço e uma voz jovem, uma voz feliz,
murmurou-lhe ao ouvido:
- Oh! Até que enfim aparece, mau Bel-Ami! Por que não o
vimos mais?
Era Susana Walter que o fitava com os seus olhos de fino
esmalte sob a nuvem encaracolada do seu cabelo loiro. Jorge
mostrou-se encantado por voltar a vê-la e apertou-lhe
cordialmente a mão. A seguir, desculpou-se:
- Não tenho podido. Tive tanta coisa a fazer que, há dois
meses, não vou a parte nenhuma.
- Faz mal - retorquiu Susana, com ar sério -, muito mal,
muito mal. Isso causa-nos muita pena porque o estimamos muito,
a mamã e eu. Por mim, não posso passar sem a sua companhia.
Quando não está presente, aborreço-me imenso. Vê que Lhe estou
a falar com toda a franqueza e por isso não tem o direito de
desaparecer assim. Dê-me o braço. Eu própria lhe irei mostrar
o quadro que está lá ao fundo, por trás da estufa. O papá
pô-lo lá para obrigar toda a gente a atravessar a casa toda. É
espantoso como o papá parece um pavão, com este palacete.
269
Caminhavam devagar através da multidão. As pessoas
voltavam-se para ver aquele belo rapaz e aquela encantadora
boneca. Um pintor conhecido proferiu:
- Vejam! Aí está um bonito par. É engraçado como tudo.
Jorge pensava: "Se fosse verdadeiramente esperto, era com
esta que deveria ter casado. Era possível, no entanto. Como é
que não pensei nisso? Como me deixei prender pela outra? Que
loucura! Procedemos sempre às pressas e nunca reflectimos
bastante." O despeito, um despeito amargo, caía-Lhe na alma,
gota a gota, como um fel que corrompia toda a alegria e
tornava odiosa a existência.
- Oh! Venha mais vezes, Bel-Ami - disse Susana. - Faremos
loucuras, agora que o papá é rico. Havemos de nos divertir
imenso!
- Ora! - retorquiu Jorge, sem abandonar a sua ideia. - Vai
certamente casar em breve. Desposará qualquer belo príncipe,
um tanto arruinado, e não voltaremos a ver-nos.
- Oh! Não! - exclamou a jovem com sinceridade. Quero alguém
que me agrade, que me agrade muito, que me agrade
completamente. Sou suficientemente rica para dois.
Du Roy sorria, com um sorriso irónico e desdenhoso, e pôs-se
a dizer os nomes de pessoas que passavam, nobres que tinham
vendido os seus títulos enferrujados a filhas de financeiros
como ela, e viviam agora, perto ou longe de suas esposas, mas
livres, impudentes, conhecidos e respeitados. Concluiu:
-Não lhe dou seis meses que não esteja apanhada por um
desses caçadores de dotes. Será a senhora marquesa, a senhora
duquesa ou a senhora princesa, e olhará para mim de alto,
minha menina.
Susana, indignada, batia-lhe no braço com o leque e jurava
que só casaria segundo a lei do seu coração.
- Veremos! - troçou Jorge. - Se não fosse tão rica...
- Também é rico - replicou Susana. - Teve uma herança.
- Oh! - fez Jorge com ar de comiseração. - Não vale a pena
falar disso. Apenas uns vinte mil francos de rendimento. Que é
isso nos tempos que correm?
- A sua mulher também herdou, igualmente.
- Sim: um milhão para nós ambos. Quarenta mil francos de
rendimento. Com isso nem sequer podemos ter um carro nosso.
270
Chegaram à última sala e na sua frente abria-se a estufa, um
grande jardim de Inverno, repleto de grandes plantas dos
países quentes que abrigavam maciços de flores raras. Ao
entrar, no meio dessa verdura sombria, na qual a luz escorria
em ondas prateadas, respirava-se uma frescura tépida de terra
húmida e um bafo pesado de perfumes...
Era uma estranha sensação, doce, malsã e agradável, duma
natureza artificial, enervante e amolecedora. Caminhavam sobre
alfombras semelhantes a musgo, entre dois espessos maciços de
arbustos. De súbito, Du Roy descobriu, à esquerda, sob uma
grande cúpula de palmeiras, uma vasta concha de mármore
branco, onde era possível tomar banho, e nos bordos da qual
grandes cisnes de faiança de Delft deixavam sair a água dos
seus bicos entreabertos.
O fundo da concha era polvilhado de um pó dourado e viam-se
lá dentro enormes peixes vermelhos, estranhos monstros
chineses de grandes olhos salientes, de escamas orladas de
azul, uma espécie de mandarins das ondas que, errantes e
suspensos por cima desse fundo dourado, lembravam os
deslumbrantes bordados orientais.
O jornalista parou, com o coração a bater com força.
Pensava: "Eis o que é o luxo! Eis as casas em que vale a pena
viver. Outros conseguiram-nas. Por que não as conseguirei eu?"
Meditava nos meios de o alcançar, não os encontrava à mão e
irritava-se com a sua impossibilidade.
A sua companheira estava calada, um tanto meditativa. Jorge
olhou para ela de lado e pensou mais uma vez: "Bastaria, no
entanto, casar com esta bonequinha de carne."
- Atenção! - proferiu Susana, subitamente, como para o
despertar.
Impeliu Jorge através de um grupo que lhes impedia o caminho
e fê-lo bruscamente voltar à direita. No meio de uma moita de
plantas estranhas, afastadas como por mãos de dedos finos,
via-se uma figura imóvel de pé sobre as águas. O efeito era
surpreendente. O quadro, cujos lados estavam ocultos por
verduras movediças, parecia uma abertura duma profundidade
fantástica e atraente.
Era preciso observar com atenção para compreender. O quadro
representava o meio do barco onde se encontravam os apóstolos
apenas iluminados pelos raios oblíquos de uma lanterna, de que
um deles, sentado na borda do barco, projectava toda a luz
para a figura de Jesus, que parecia caminhar.
271
Jesus estava de pé em cima de uma vaga que se via abrir-se,
submissa, lisa, cariciosa para o passo divino que a pisava.
Tudo estava sombrio em volta do Homem-Deus. Só as estrelas
brilhavam no céu. As figuras dos apóstolos, à claridade vaga
do fanal conduzido por aquele que indicava o Senhor, pareciam
convulsionadas pela surpresa.
Era, na verdade, a obra poderosa e inesperada de um mestre,
uma destas obras que perturbam o pensamento e deixam um
resíduo de sonho por muitos anos. As pessoas que olhavam para
ela ficavam a princípio silenciosas, depois meditativas e só
depois falavam do valor da pintura. Du Roy, após a ter
contemplado algum tempo, declarou:
- Vale a pena poder pagar jóias como esta!
Como empeçavam nele e o empurravam para ver melhor, foi-se
embora, conservando sempre sob o braço a mão fina de Susana,
que apertava um tanto. A jovem perguntou:
- Quer ir beber um copo de champanhe? Vamos ao bufete.
Encontraremos lá o papá.
Atravessaram, lentamente, todas as salas, onde a multidão
aumentava, ruidosa, como se estivesse em sua casa, uma
multidão elegante de festa pública. De súbito, Jorge julgou
ouvir uma voz:
- É Laroche e a senhora Du Roy...
Essas palavras afloraram-lhe o ouvido como os rumores
longínquos trazidos pelo vento. Donde vinham? Procurou por
todos os lados e descobriu, com efeito, sua mulher, que
passava pelo braço do ministro. Falavam ambos baixinho, de
maneira íntima, a sorrir e com os olhos nos olhos.
Jorge imaginou notar que murmuravam ao olhar para eles e
sentiu crescer em si uma vontade, brutal e estúpida, de correr
para aqueles dois seres e abatê-los à punhalada. A mulher
tornava-o ridículo. Pensou em Forestier. Diriam talvez: Esse
coitadinho de Du Roy.
Quem era aquela mulher? Uma aventureirazinha, bastante
esperta, mas, na verdade, sem grande valor. Iam a sua casa
porque o temiam, porque sabiam que ele era importante, mas
deviam falar com desdém daquele casalinho de jornalistas. Não
poderia ir longe com aquela mulher, que tornava a sua casa
muito suspeita, que estava sempre a comprometer-se,
272
cuja atitude denunciava a intriguista. Seria daí por diante
uma grilheta, para ele.
"Ah! Se tivesse adivinhado!", pensava. "Se soubesse. Como
teria jogado um jogo mais largo, mais forte! Que bela partida
poderia ganhar com a Susaninha como bolo! Como fora tão cego
para não compreender isso?" Chegaram à sala de jantar, uma
imensa quadra com colunas de mármore, com as paredes
revestidas de Gobelins. Walter, ao dar pelo seu cronista,
correu para ele de mão estendida. Estava louco de alegria e
perguntou:
- Viu tudo? Diz, Susana, mostraste-lhe tudo que há para ver?
Quanta gente, não é verdade, Bel-Ami? Viu o príncipe de
Guerche? Esteve aqui, há bocado, a beber um copo de ponche.
Depois, correu para o senador Rissolin, que arrastava a
mulher, atarantada e enfeitada como uma barraca de feira.
Um cavalheiro cumprimentou Susana. Era um rapaz magro, de
barba loira, um tanto calvo, com esse ar mundano que se
encontra por toda a parte. Jorge ouviu chamar-lhe marquês de
Cazolles. Sentiu, subitamente, ciúmes daquele homem. Desde
quando o conhecia Susana? Sem dúvida, desde que era rica.
Adivinhava nele um pretendente.
Alguém tomou-Lhe o braço. Era Norberto de Varenne. O velho
poeta exibia a sua cabeleira lustrosa e a sua velha casaca,
com um ar indiferente e fatigado. Disse a Jorge:
- Ora aí está aquilo a que chamam divertir-se. Daqui a
bocado vão dançar, depois deitar-se e as meninas ficarão
contentes. Beba o champanhe que é excelente.
Mandou encher um copo e, num brinde a Du Roy, que pegara
noutro:
- Bebo pela vitória do espírito sobre os milhões! -
Acrescentou, com voz suave: - Não que me incomodem os bens dos
outros ou Lhes queira mal por os terem. Protesto por uma
questão de princípios.
Jorge já não o ouvia. Procurava com os olhos Susana, que
desaparecera com o marquês de Cazolles. Deixou, bruscamente,
Norberto de Varenne e foi à procura da jovem.
Uma multidão espessa que pretendia beber deteve-o. Quando
conseguiu ver-se livre dela, deu de cara com o casal de
Marelle. A mulher via-a muitas vezes, mas não voltara a ver,
273
havia muito tempo, o marido, que lhe apertou as mãos:
- Como lhe estou agradecido, meu caro, pelo conselho que me
deu por intermédio de Clotilde. Ganhei cerca de cem mil
francos com o empréstimo marroquino. É a si que lhos devo.
Pode dizer-se que é um amigo que vale ouro.
Os homens voltavam-se para ver aquela moreninha elegante e
bonita. Du Roy retorquiu:
- Em troca desse serviço, meu caro, tomo conta da sua
mulher, ou melhor, ofereço-lhe o meu braço. É preciso sempre
separar os esposos.
O senhor de Marelle concordou:
- É justo. Se nos desencontrarmos, estaremos aqui dentro de
uma hora.
- Perfeitamente.
Os dois amantes mergulharam na multidão, seguidos de longe
pelo marido. Clotilde repetia:
- Que sorte têm estes Walters! O que é, apesar de tudo, ter
inteligência para os negócios!
- Ora! - retorquiu Jorge. - Os homens fortes triunfam
sempre, duma maneira ou doutra!
- Eis - prosseguiu Clotilde - duas raparigas que terão de
vinte a trinta milhões cada uma... sem contar que Susana é
bonita.
Jorge não disse nada; mas o seu próprio pensamento saído
doutra boca irritou-o. Clotilde não vira ainda o quadro Jesus
a caminhar por cima das ondas e ele propôs ir mostrar-Lho.
Divertia-se a dizer mal das pessoas, a troçar de figuras
desconhecidas.
Saint-Potin, que passou perto deles, exibia, na banda da
casaca, numerosas condecorações, o que os divertiu muito. Um
antigo embaixador, que ia atrás dele, mostrava menos. Du Roy
exclamou:
- Que bodega, a sociedade!
Boisrenard, que Lhe apertou a mão, tinha também a lapela
decorada com a fita verde e amarela do dia do duelo. A
viscondessa de Percemur, enorme e muito enfeitada, conversava
com um duque, na salinha Luís XVI. Jorge murmurou:
- Um colóquio galante.
Ao atravessar a estufa viu sua mulher sentada junto de
Laroche-Mathieu, quase ocultos ambos por um maciço de plantas.
274
Parecia dizerem: "Marcámos um encontro para aqui, um encontro
público, pois pouco nos importamos com a opinião."
A senhora de Marelle reconheceu que aquele Jesus de Karl
Marcowitch era surpreendente. Voltaram para trás. Tinham-se
perdido do marido. Jorge perguntou:
- A Laurinha ainda está zangada comigo?
- Sim; é a mesma coisa. Recusa-se ver-te e vai-se embora
quando falam de ti.
Não disse nada, mas a inimizade da pequenita desgostava-o,
pesava-lhe.
Susana deu com eles ao saírem duma sala e exclamou:
- Ah! Cá estão! Muito bem, Bel-Ami, vai ficar sozinho. Rapto
a bela Clotilde para lhe mostrar o meu quarto.
As duas mulheres foram-se, com passo rápido, deslizando
entre a assistência, com movimentos ondulosos, os movimentos
de cobra que sabem usar no meio das multidões.
Quase imediatamente, uma voz murmurou:
- Jorge! - Era a senhora Walter, que continuou, baixinho: -
Oh! Como é ferozmente cruel! Como me faz sofrer inutilmente!
Encarreguei Susana de levar aquela que o acompanhava a fim de
poder dar-lhe uma palavra. Ouça: é preciso... é preciso que
lhe fale esta noite... ou então... ou então... não sabe o que
farei. Vá à estufa. Encontrará uma porta à esquerda e sairá
por ela para o jardim. Siga a alameda que está em frente. Ao
fim, fica um caramanchão. Espere-me lá, dentro de dez minutos.
Se não quer, juro que faço um escândalo, aqui mesmo,
imediatamente!
- Seja. Estarei, dentro de dez minutos, no local que indica
- retorquiu Jorge com sobranceria.
Separaram-se; mas Jaime Rival esteve quase a fazê-lo faltar
ao encontro. Metera-lhe o braço e contava-lhe uma porção de
coisas com um ar exaltado. Vinha, sem dúvida, do bufete. Por
fim, Du Roy deixou-o entregue ao senhor de Marelle, encontrado
entre portas, e escapou-se. Foi-lhe preciso prestar atenção
para não ser visto por sua mulher e por Laroche. Conseguiu-o,
pois conversavam muito animados, e alcançou o jardim.
O ar frio causou-lhe um arrepio como um banho gelado.
Pensou: Apre! Vou apanhar uma constipação! Pôs o lenço à volta
do pescoço, para se agasalhar, e seguiu ao longo da alameda,
275
que via mal por sair das salas fortemente iluminadas.
Distinguia, à esquerda e à direita, arbustos sem folhas,
cujos ramos finos estremeciam. Clarões acinzentados surgiam
nesses ramos, vindos da janela do palacete. Descobriu qualquer
coisa branca, a meio do caminho, na sua frente. A senhora
Walter, com os braços nus e decotada, balbuciou com voz
fremente:
- Até que enfim! Queres matar-me?
Jorge respondeu calmamente:
- Peço-te um favor: nada de dramas! Senão, desapareço daqui
imediatamente.
Ela lançara-lhe os braços ao pescoço e com a boca muito
perto da dele dizia:
- Mas que te fiz eu? Procedes comigo como um miserável. Que
te fiz?
Du Roy tentou repeli-la e respondeu:
- Enrolaste cabelos teus em todos os botões do meu colete na
última vez que nos vimos. Isso esteve quase a determinar um
rompimento entre minha mulher e eu.
Virgínia ficou surpreendida e, depois, fazendo não com a
cabeça:
- Oh! A tua mulher pouco se importa. Foi alguma das tuas
amantes que te fez uma cena.
- Não tenho amantes.
- Cala-te! Então porque não vens ver-me? Porque recusas
jantar comigo, ao menos uma vez por semana? E atroz o que
sofro. Gosto de ti a ponto de não ter nenhum pensamento a não
ser para ti, de não poder olhar para nada sem te ter diante
dos olhos, de não ousar proferir uma palavra com medo de só
pronunciar o teu nome!
Tu não compreendes isto! Parece que estou presa com garras,
amarrada dentro dum saco, não sei. A tua recordação, sempre
presente, aperta-me a garganta, rasga-me qualquer coisa cá
dentro no peito, quebra-me as pernas e perco as forças para
andar. Fico como um animal, todo o dia, encolhida numa
cadeira, a pensar em ti.
Du Roy olhava para ela com surpresa. Já não era a garota
grande e brincalhona que conhecera, mas uma mulher, perdida,
desesperada, capaz de tudo. Um vago projecto surgiu, porém, no
seu espírito e retorquiu-lhe:
276
- Minha cara, o amor não é eterno. Pega-se e larga-se.
Quando isso, porém, dura, como entre nós, transforma-se numa
grilheta horrível. Não quero mais isso. Eis a verdade. No
entanto, se souberes tornar-te razoável receber-me e tratar-me
como a um amigo, voltarei a tua casa como antigamente.
Sentes-te capaz disso?
- Sou capaz de tudo para te ver.
- Então, fica combinado - disse ele. - Somos amigos e nada
mais.
- Está combinado - balbuciou ela e depois, estendendo a boca
para ele: - Ainda um beijo... o último.
- Não - recusou Jorge brandamente. - É preciso respeitar a
nossa combinação.
A senhora Walter recuou, enxugando duas lágrimas. Depois,
tirou do corpete um maço de papéis presos com uma fita
cor-de-rosa. Deu-o a Du Roy, dizendo:
- Toma. É a tua parte no lucro do negócio de Marrocos.
Estava tão contente por ter ganhado isso para ti. Toma,
pega-lhe...
- Não - disse Jorge, a querer recusar. - Não receberei nada
desse dinheiro!
Ela então indignou-se:
- Ah! Não! Não me farás isso, agora! O dinheiro é teu, só
teu. Se não lhe pegas, atiro-o para o esgoto. Não vais
fazer-me isso, Jorge?
Du Roy recebeu o maço de notas e meteu-o no bolso, ao mesmo
tempo que dizia:
- É preciso voltar para casa; vais apanhar uma constipação.
- Ainda bem - murmurou ela - se me desse uma que me levasse!
Pegou-lhe na mão, que beijou apaixonadamente, com raiva, com
desespero, e correu em direcção ao palacete.
Jorge regressou devagar, a reflectir. Depois, entrou na
estufa, de cabeça alta e sorriso nos lábios. Sua mulher e
Laroche já não estavam lá. A multidão diminuíra. Era evidente
que não ficavam para o baile. Jorge encontrou Susana pelo
braço da irmã. Dirigiram-se para ele a pedir-lhe que dançasse
a primeira quadrilha com o conde de Latour-Yvelin.
- Quem é ainda mais esse? - estranhou Jorge.
- É um novo amigo de minha irmã - respondeu Susana com
malícia.
277
- Não sejas má, Susi - murmurou Rosa, corando. - Esse senhor
é tão meu amigo como teu.
- Cá me entendo - disse a outra a sorrir.
Rosa, zangada, voltou-lhes as costas e afastou-se. Du Roy
pegou familiarmente no braço da que ficara junto dele e com a
sua voz cariciosa disse:
- Ouça, sua pequerrucha, acredita que sou seu amigo?
- Claro que sim, Bel-Ami!
-Tem confiança em mim?
- Evidentemente.
- Recorda-se do que lhe disse há pouco?
- A propósito de quê?
- A propósito do seu casamento, ou antes, do homem que
casará consigo.
- Recordo-me, sim.
- Muito bem! Quer prometer-me uma coisa?
- Sim; mas que é?
- É consultar-me sempre que alguém peça a sua mão e não
aceitar ninguém sem ter ouvido o meu conselho.
- Sim; claro que quero.
- Isto é um segredo entre nós ambos. Nem uma palavra a este
respeito, nem a seu pai nem a sua mãe.
- Nem uma palavra.
- Jura?
- Juro.
Rival apareceu muito açodado:
- Menina, o seu papá chama-a para o baile.
- Vamos, Bel-Ami - disse Susana.
Jorge, porém, recusou. Estava decidido a partir
imediatamente, pois queria estar só para pensar. Muitas coisas
novas acabavam de penetrar no seu espírito.
Pôs-se à procura de sua mulher. Ao fim de algum tempo, viu-a
a tomar um chocolate, no bufete, com dois cavalheiros
desconhecidos. Madalena apresentou-lhes o marido, mas sem
dizer os nomes deles. Após alguns instantes, Du Roy perguntou:
- Vamo-nos embora?
- Quando quiseres.
Madalena pegou-Lhe no braço e atravessaram as salas onde o
público se tornara raro. Perguntou ao marido:
- Onde está a patroa? Queria dizer-lhe adeus.
278
- É inútil; tentaria convencer-nos a ficar para o baile e
estou farto.
- É verdade; tens razão.
Foram todo o caminho silenciosos. Ao chegarem, porém, ao seu
quarto, Madalena, sorridente, disse, sem sequer tirar o véu:
- Ainda não sabes: tenho uma surpresa para ti.
- Que é, então? - resmungou o marido, de mau humor.
- Adivinha.
- Não me darei a esse trabalho.
- Pois bem: amanhã é o primeiro de Janeiro...
- É sim.
- É a altura das prendas.
- Pois é.
- Aqui tens a tua, que Laroche me entregou, há bocado.
Deu-lhe uma caixinha preta, que parecia o estojo duma jóia.
Jorge abriu-a, com indiferença, e viu a cruz da Legião de
Honra. Ficou um tanto pálido, depois sorriu e declarou:
- Teria preferido dez milhões. Isto não lhe custa nada.
Madalena esperava ver transportes de alegria e ficou
irritada com aquela frieza:
- És verdadeiramente incrível! Já nada te satisfaz.
- Esse homem nada mais faz do que pagar a sua dívida -
retorquiu Jorge, tranquilamente. - Ainda me deve muito mais.
Surpreendida com o tom das suas palavras, insistiu ainda:
- É, no entanto, bonito, na tua idade.
- Tudo é relativo - continuou o marido. - Poderia ter já
muito mais, hoje.
Pegou no estojo e pô-lo aberto em cima da pedra do fogão.
Observou, durante alguns momentos, a estrela brilhante que
estava no fundo. Depois, fechou-o e meteu-se na cama,
encolhendo os ombros.
O Officiel do 1º de Janeiro anunciava, com efeito, a
nomeação do senhor Próspero-Jorge Du Roy, publicista, para o
grau de cavaleiro da Legião de Honra, por serviços
excepcionais. O seu apelido estava escrito em duas palavras, o
que deu mais gosto a Jorge do que a própria condecoração.
Uma hora depois de ter lido essa notícia, tornada pública,
Du Roy recebeu um bilhete da patroa.
279
Suplicava-lhe que fosse jantar a casa dela, naquela noite, com
sua mulher, para festejarem a distinção que Lhe fora
concedida. Jorge hesitou uns minutos, mas depois, atirando ao
lume o bilhete escrito em termos ambíguos, disse à mulher:
- Jantaremos hoje em casa dos Walters.
- Essa agora! - observou Madalena. - Estava convencida de
que não querias voltar a pôr lá os pés.
- Mudei de opinião - murmurou simplesmente o marido.
Quando lá chegaram, a patroa estava sozinha no gabinete Luís
XVI, adaptado para as suas recepções íntimas. Vestida de
preto, empoara o cabelo, o que a tornava mais encantadora.
Parecia, à distância, uma senhora de idade, e de perto uma
jovem, e, quando a observavam bem, era ainda uma bonita
armadilha para os olhos.
- Está de luto? - perguntou Madalena.
- Sim e não - respondeu a senhora Walter tristemente. - Não
perdi nenhum dos meus, mas cheguei à idade em que tomamos luto
pela nossa vida. Uso-o, hoje, para o inaugurar. Daqui por
diante, usá-lo-ei no fundo do meu coração.
Du Roy pensou: "Manter-se-á essa resolução?"
O jantar foi um tanto monótono. Somente Susana tagarelava
sem cessar. Rosa parecia preocupada. Todos felicitaram o
jornalista.
Passaram o serão a conversar e a passear ao longo das salas
e da estufa. Como Du Roy ficara para trás, a patroa
aproximou-se dele e reteve-o pelo braço, dizendo-lhe em voz
baixa:
- Escute-me... Não Lhe falarei mais de nada, jamais... Mas
venha ver-me, Jorge. Como vê, já não o trato por tu. É-me,
porém, impossível viver sem a sua presença, impossível. É uma
tortura inimaginável. Sinto-o, conservo-o nos meus olhos, no
meu coração e na minha carne, sempre, de dia e de noite. É
como se me tivesse dado a beber um veneno que me corroesse as
entranhas. Não posso. Não; não posso. Não quero ser para si
mais do que uma velha. Pus o cabelo branco para o mostrar; mas
venha de tempos a tempos, como amigo.
Pegara-lhe na mão e apertava-a, cravando-lhe as unhas na
carne.
- Está combinado - respondeu Du Roy; com calma. - É inútil
tornar a falar nisso. Bem vê que vim hoje, imediatamente, logo
que recebi a sua carta.
280
Walter, que ia à frente, com as duas filhas e Madalena,
esperou por Du Roy junto de Jesus a caminhar por cima das
ondas e disse, a rir.
- Imagine que encontrei ontem, minha mulher de joelhos
diante deste quadro como num altar, a fazer as suas orações. O
que eu ri!
A senhora Walter replicou com voz firme, uma voz em que
vibrava uma exaltação secreta:
- É este Cristo que salvará a minha alma. Dá-me coragem e
força todas as vezes que olho para Ele.
Parou diante da figura de Jesus, de pé, e murmurou:
- Como é belo! Como os homens têm medo Dele e O amam!
Reparem na sua cabeça, nos seus olhos, como é simples e
sobrenatural ao mesmo tempo.
- Parece-se consigo, Bel-Ami! - exclamou Susana. - Tenho a
certeza de que se parece. Se tivesse barba, ou então se ele
estivesse barbeado, seriam ambos perfeitamente iguais. Oh!
Isso vê-se logo!
Quis que Jorge se pusesse de pé ao lado do quadro. Todos
reconheceram que, com efeito, os dois rostos se pareciam! Uns
ficaram surpreendidos. Walter achou a coisa muito
extraordinária. Madalena, a sorrir, achava que Jesus tinha um
ar mais viril.
A senhora Walter mantinha-se imóvel, com os olhos fixos, a
contemplar o rosto do seu amante ao lado do de Jesus e
tornara-se tão branca como o seu cabelo branco.
XVI
Durante o resto do Inverno, o casal Du Roy foi
frequentemente a casa dos Walters. Jorge até jantava lá só,
muitas vezes, pois Madalena dizia estar fatigada e preferir
ficar em casa. Jorge adoptara a sexta-feira como dia fixo e a
patroa não fazia outros convites para essa noite, que
pertencia a Bel-Ami e a mais ninguém. Depois do jantar,
jogavam as cartas ou davam de comer aos peixes chineses.
Viviam e divertiam-se em família.
Várias vezes, atrás duma porta, ou no meio dum maciço da
estufa, num recanto sombrio, a senhora Walter agarrava,
bruscamente, Jorge, apertava-o com toda a força contra si e
dizia-lhe ao ouvido: "Gosto de ti!... Gosto de ti... Gosto de
ti, loucamente!"
Sempre Du Roy a repelia com frieza, dizendo num tom seco:
"Se recomeça, não voltarei mais aqui."
Cerca do fim de Março falaram, de repente, do casamento das
duas irmãs. Rosa devia casar, diziam, com o conde de
Latour-Yvelin e Susana com o marquês de Cazolles. Os dois
tinham-se tornado familiares da casa, desses familiares a quem
são concedidos favores especiais, prerrogativas sensíveis.
Jorge e Susana viviam numa espécie de intimidade fraterna e
livre. Tagarelavam durante horas, troçavam de todos e parecia
darem-se muito bem um com o outro. Nunca mais tinham voltado a
falar do casamento possível da jovem nem de pretendentes que
se tivessem apresentado.
Um dia que o patrão levara Jorge a almoçar em sua casa e que
a senhora Walter, depois do almoço, fora atender um
fornecedor, Jorge disse a Susana:
- Vamos dar pão aos peixinhos vermelhos.
Cada um deles pegou num grande pedaço de miolo de pão, de
cima da mesa, e foram para a estufa.
Em volta da concha de mármore tinham sido postos almofadões
para se poderem ajoelhar à roda do tanque e ver mais de perto
os peixes a nadar.
282
Os dois jovens tomaram, cada um, o seu almofadão e,
ajoelhados lado a lado, começaram a atirar para a água
bolinhas de pão que amassavam com os dedos.
Os peixes, assim que os viram, dirigiram-se para eles a
agitar a cauda, a bater com as barbatanas, a mover os seus
olhos salientes, a dar voltas sobre si próprios, mergulhando
para apanhar a presa redonda que se afundava, e vindo à
superfície para pedir outra.
Tinham movimentos engraçados com a boca, corridas bruscas e
rápidas, uma atitude estranha de monstrozinhos. Na areia
doirada do fundo salientavam-se no seu vermelho-vivo,
atravessando como chamas a onda transparente, ou mostrando,
mal se detinham, a orla azul que bordava as suas escamas.
Jorge e Susana viam os seus próprios rostos invertidos na
água e sorriam às suas imagens. Subitamente, ele disse em voz
baixa:
- Não é bonito ter segredos para mim, Susana.
- Que segredos, Bel-Ami? - perguntou a jovem.
- Não se lembra daquilo que me prometeu, neste mesmo lugar,
no dia da festa?
- Que foi?
- Consultar-me sempre que pedissem a sua mão.
- E então?
- Então, já pediram.
- Quem foi?
- Bem o sabe.
- Não. Juro que não.
- Sim, bem o sabe! Foi esse grande idiota do marquês de
Cazolles.
- Em primeiro lugar, ele não é idiota.
- É possível; mas parece estúpido; está arruinado pelo jogo,
gasto pelas noitadas. É na verdade um partido muito bonito
para si tão simpática, tão fresca, tão inteligente...
- Que tem contra ele? - perguntou a jovem a sorrir.
- Eu? Nada!
- Tem sim. Ele não é isso tudo que disse.
- Ora, vamos! É um tolo e um intriguista.
Susana voltou-se e deixou de olhar para a água:
- Vejamos: que tem?
Jorge proferiu como se lhe arrancassem um segredo do fundo
da alma:
283
- Tenho... tenho... tenho ciúmes dele.
Susana, moderadamente surpreendida, fez:
- O Jorge?!
- Sim, eu!
- Ora essa! Por quê?
- Porque estou apaixonado por si e bem o sabe, sua má!
Susana disse então, num tom severo:
- Está louco, Bel-Ami!
- Bem sei que estou louco - continuou Jorge. - Deveria,
porventura, confessar-lhe isto, eu, um homem casado, a si, uma
menina solteira? Sou mais do que louco, sou culpado, quase
miserável. Não tenho esperança possível e perco a razão ao
pensar nisso. Quando ouço dizer que se vai casar, tenho
acessos de furor capazes de matar alguém. Perdoe-me isto,
Susana!
Calou-se. Todos os peixes, aos quais já não atiravam miolos
de pão, estavam imóveis, formados quase em linha, semelhantes
a soldados ingleses, e olhavam para os rostos inclinados
daquelas duas pessoas que já não se ocupavam deles.
A jovem murmurou, semitriste, semialegre:
- É pena que já esteja casado. Que quer? Não Lhe podemos dar
remédio. Acabou-se!
Jorge voltou-se, subitamente, para ela, e disse-lhe, muito
perto, rosto com rosto:
- Se eu fosse livre, casaria comigo?
Susana respondeu, com um tom sincero:
- Sim, Bel-Ami, casaria consigo, pois agrada-me muito mais
do que todos os outros.
Du Roy levantou-se e balbuciou:
- Obrigado!... Obrigado!... Suplico-Lhe: não dê o sim a
ninguém. Espere ainda algum tempo. Suplico-lho! Promete-mo?
A jovem murmurou, um tanto perturbada e sem compreender o
que ele queria:
- Prometo-lho.
Du Roy atirou para a água o grande pedaço de pão e fugiu,
como se tivesse perdido a cabeça, sem lhe dizer adeus.
Todos os peixes se atiraram avidamente para aquele monte de
miolo de pão, que flutuava por não ter sido amassado com os
dedos, e despedaçaram-no em dentadas vorazes.
284
Arrastaram-no para a outra extremidade do tanque,
agitando-se por baixo dele, formando um cacho movediço, uma
espécie de flor animada, uma flor viva caída à água com a
corola para baixo.
Susana, surpreendida e inquieta, ergueu-se e regressou ao
interior da casa, devagar. O jornalista já tinha partido.
Jorge entrou em sua casa muito calmo. Madalena estava a
escrever cartas e o marido perguntou:
- Queres ir jantar sexta-feira a casa dos Walters? Eu irei.
A mulher hesitou:
- Não; estou adoentada. Prefiro ficar em casa.
- Como quiseres - retorquiu ele. - Ninguém te obriga.
Pegou no chapéu e voltou imediatamente a sair.
Havia muito tempo que Du Roy espiava a mulher, a vigiava, a
seguia, procurando saber todos os seus passos. A hora que
esperava tinha, finalmente, chegado. Não se deixara iludir com
o tom em que ela dissera: "Prefiro ficar em casa." Foi amável
para ela, durante os dias que se seguiram. Parecia até alegre,
o que não lhe sucedia havia muito tempo. A mulher dizia-Lhe:
- Estás a tornar-te muito gentil.
Du Roy vestiu-se cedo, na sexta-feira, para dar umas voltas
antes de ir a casa do patrão, segundo disse. Partiu cerca das
seis horas, depois de ter beijado a mulher, e foi tomar um
fiacre à Praça de Notre-Dame-de-Lorette. Disse ao cocheiro:
- Pare em frente do número dezassete da Rua Fontaine e
ficamos lá até Lhe dar ordem para seguir. Conduzir-me-á,
então, ao restaurante do Coq-Faisan,, na Rua Lafayette.
O fiacre pôs-se a caminho ao trote lento do cavalo, e Jorge
baixou as cortinas. Logo que chegou em frente da sua porta não
despregou mais os olhos dela. Passados dez minutos de espera
viu sair Madalena, que se dirigiu para os bulevares
exteriores. Logo que a sua mulher se afastou, Jorge meteu a
cabeça pela portinhola e disse:
- Vamos!
O fiacre pôs-se em andamento e deixou-o em frente do
Coq-Faisan, restaurante burguês, conhecido no bairro. Du Roy
entrou na sala comum e comeu lentamente. De tempos a tempos
consultava as horas no seu relógio. Às sete e meia, depois de
ter bebido o seu café com dois cálices de aguardente e fumado,
285
com lentidão, um bom charuto, saiu, chamou outro carro que
passava vazio e mandou-o seguir para a Rua La Rochefoucauld.
Subiu, sem perguntar nada ao porteiro, até ao terceiro andar
da casa que indicara, e quando uma criada Lhe abriu a porta
perguntou:
- O senhor Gilberto de Lorme está em casa, não é verdade?
- Está, sim, senhor - respondeu a criada, que o fez entrar
para a sala, onde esperou alguns momentos.
Pouco depois, apareceu um homem alto, condecorado, de
aspecto militar e cabelo grisalho, embora fosse ainda novo. Du
Roy cumprimentou-o e disse:
- Como previa, senhor comissário, minha mulher janta com o
seu amante no apartamento que têm alugado na Rua des Martyrs.
- Estou à sua disposição, meu caro senhor - disse o
comissário de Polícia.
- Só pode proceder até às nove horas - prosseguiu Du Roy -,
não é verdade? Passada essa hora, não pode entrar num
domicílio para verificação de um adultério?
- O limite é às sete horas, no Inverno, e às nove, a partir
do fim do mês passado. Como estamos a cinco de Abril, podemos
proceder até às nove horas.
- Muito bem, senhor comissário. Tenho em baixo um carro e
podemos levar connosco os agentes que o acompanharão. Depois,
esperaremos um bocadinho em frente da porta. Quanto mais tarde
entrarmos mais probabilidades teremos de os surpreender em
flagrante delito.
- Como o senhor quiser.
O comissário saiu e voltou pouco depois, vestido com um
sobretudo que ocultava a faixa tricolor. Afastou-se para
deixar passar Du Roy; mas o jornalista, cujo espírito estava
preocupado, recusava-se a ser o primeiro a sair e repetia:
- Faça o favor... faça o favor...
- Queira ter a bondade, meu caro senhor... estou em minha
casa - proferiu o comissário.
O outro, imediatamente, atravessou a porta, com um
cumprimento.
Foram a seguir ao Comissariado de Polícia buscar três
agentes à paisana, que já estavam à espera, pois Jorge
prevenira que a surpresa se daria naquela noite. Um dos
agentes subiu para a boleia, ao lado do cocheiro.
286
Os outros dois entraram para o carro, que partiu para a Rua
des Martyrs. Du Roy informou:
- Tenho o plano do apartamento, que é no segundo andar.
Encontraremos, primeiro, um vestibulozinho e depois o quarto
de dormir. Os compartimentos são a seguir, e não há nenhuma
saída que possa facilitar a fuga. Há perto daqui um
serralheiro que está prevenido e virá se o senhor o
requisitar.
Quando chegaram em frente da casa indicada eram só oito
horas e um quarto e esperaram, calados, durante cerca de vinte
minutos. Quando viu que iam soar os três quartos para as nove,
Du Roy disse:
- Vamos lá!
Subiram as escadas, sem dizer nada ao porteiro, que aliás
não deu por eles. Um dos agentes ficou na rua para vigiar a
saída. Os quatro homens pararam no segundo andar e Jorge
aplicou o ouvido contra a porta e depois olhou pela fechadura.
Não viu nem ouviu nada, e tocou à campainha. O comissário
disse aos agentes:
- Fiquem aqui, prontos para entrar se os chamar.
Esperaram mais uns momentos e, ao cabo de dois ou três
minutos, Jorge voltou a tocar à campainha várias vezes
seguidas. Ouviram um ruído ao fundo do apartamento e depois
aproximaram-se com passos leves. Era alguém que vinha
espreitar. O jornalista bateu então com força na madeira da
porta, com os nós dos dedos. Uma voz de mulher, que procurava
disfarçar-se, perguntou:
- Quem é?
- Abra, em nome da lei! - retorquiu o comissário de Polícia.
- Quem é o senhor? - interrogou a voz.
- Sou o comissário de Polícia. Abra, ou mando arrombar a
porta.
- Que quer o senhor? - continuou a voz.
- Sou eu - disse Du Roy. - É inútil procurar escapar-nos.
O passo leve dos pés nus afastou-se e voltou ao cabo de
alguns segundos.
- Se não abrir, arrombamos a porta! - disse Jorge, que fazia
força na maçaneta de cobre da porta e com o ombro a empurrava
lentamente.
287
Como não obtivesse resposta, deu, de súbito, um empurrão tão
vigoroso que a velha fechadura daquela casa de quartos
mobilados cedeu. Os parafusos arrancados saíram da madeira e
Jorge esteve quase a cair para cima de Madalena, que estava de
pé na antecâmara, só com a camisa e uma saia branca, de pernas
nuas, cabelo despenteado e uma vela na mão.
- É ela! Estão apanhados! - exclamou Jorge, que se
precipitou para o interior do apartamento.
O comissário, que tirara o chapéu, seguiu-o. A mulher,
desorientada, foi atrás deles a iluminar-lhes o caminho.
Atravessaram a sala de jantar, de que ainda não tinha sido
levantada a mesa, vendo-se em cima dela os restos do repasto:
garrafas de champanhe vazias, uma terrina de foie gras aberta,
a carcaça de um frango e pedaços de pão mordidos. Duas
travessas em cima do aparador estavam cheias de cascas de
ostras.
O quarto de dormir parecia ter sido teatro de uma luta. Um
vestido estava estendido em cima de uma cadeira, uma ceroula
estava a cavalo no braço de uma poltrona. Quatro botinas, duas
grandes e duas pequenas, viam-se caídas de lado, junto do
leito.
Era um quarto de casa de hóspedes, de móveis vulgares, onde
flutuava esse cheiro odioso dos aposentos de hospedaria, odor
emanado das cortinas, dos colchões, das paredes, das cadeiras,
o fartum de todas as pessoas que tinham dormido ou vivido ali,
por um dia ou seis meses, naquela habitação pública, e onde
tinham deixado o seu cheiro a humanidade. Esse cheiro, junto
aos anteriores, formara, com o decorrer do tempo, um fedor
confuso, adocicado e intolerável, sempre o mesmo em tais
sítios.
Um prato com bolos, uma garrafa de licor e dois cálices
ainda semicheios ocupavam a pedra do fogão, onde o grande
relógio de bronze estava oculto por um chapéu de homem.
O comissário voltou-se, subitamente, e, fitando Madalena nos
olhos, perguntou:
- É a senhora Clara-Madalena Du Roy, esposa legítima do
senhor Próspero-Jorge Du Roy, aqui presente?
- Sou, sim, senhor - articulou ela com voz sufocada.
- Que faz aqui?
Madalena não respondeu e o comissário insistiu:
- Que faz aqui? Encontro-a fora de sua casa, quase despida,
numa casa de hóspedes. Que veio cá fazer?
288
O comissário esperou alguns momentos; mas como a mulher
continuasse calada, declarou:
- Visto que não o quer confessar, vejo-me forçado a fazer
uma verificação.
Via-se, no leito, a forma de um corpo, oculto sob o lençol.
O comissário aproximou-se:
- Quem é o senhor?
O homem, oculto com o lençol, não se mexeu. Parecia estar de
costas, com a cabeça metida na almofada. O comissário tocou no
que lhe parecia ser o ombro e insistiu:
- O senhor não me force, peço-lhe, a qualquer acto...
O corpo deitado continuava tão imobilizado como se estivesse
morto. Du Roy, que avançara vivamente, pegou na coberta, puxou
por ela e arrancou a almofada, descobrindo o rosto lívido de
Laroche-Mathieu. Inclinou-se para ele, fremente, com vontade
de lhe agarrar no pescoço e o estrangular, e disse-lhe de
dentes cerrados:
- Tenha ao menos a coragem da sua infâmia!
- Quem é o senhor? - voltou a perguntar o comissário e, como
não obtivesse resposta, acrescentou: - Sou comissário de
Polícia e intimo-o a dizer o seu nome!
Jorge, que tremia sob o domínio da cólera, gritou:
- Responde, cobarde, ou serei eu quem declinará o seu nome.
- Senhor comissário - balbuciou, então, o homem deitado -,
não deve consentir que este indivíduo me insulte. É consigo ou
com ele que tenho de me entender? É a si ou a ele que devo
responder?
Parecia ter a boca seca; o comissário respondeu:
- A mim, a mim só, senhor. Pergunto-lhe: quem é?
O outro calou-se. Tinha o lençol subido até ao queixo e
piscava os olhos assustados. O seu bigodinho retorcido parecia
muito negro naquele rosto pálido.
- Não quer responder? - insistiu o comissário. Então, sou
obrigado a detê-lo. Em todo o caso, levante-se.
Interrogá-lo-ei quando estiver vestido.
O corpo agitou-se no leito e a boca murmurou:
- Não posso... na sua presença.
- Por quê? - perguntou o comissário.
- É porque estou... estou... estou completamente nu -
balbuciou o outro.
289
Du Roy pôs-se a rir, apanhou uma camisa caída no chão,
atirou-a para cima da cama e exclamou:
- Ora, deixe-se disso! Levante-se!... Visto que se despiu
diante de minha mulher, pode muito bem vestir-se diante de
mim.
Jorge voltou-Lhe as costas e dirigiu-se para o fogão.
Madalena recobrara o seu sangue-frio e como via tudo perdido
estava disposta a todas as ousadias. Um desafio audacioso
punha-lhe um estranho brilho nos olhos. Enrolou um pedaço de
papel e acendeu, como para uma recepção, as dez velas dos
candelabros de mau gosto colocados nas extremidades da pedra
do fogão. Depois, encostou-se ao rebordo de mármore e estendeu
para o fogo amortecido um dos seus pés nus, que levantava a
saia branca, mal presa nos quadris. A seguir, tirou um cigarro
de um maço cor-de-rosa, acendeu-o e pôs-se a fumar.
O comissário voltara-se para Madalena, enquanto esperava que
o seu cúmplice se vestisse. A mulher perguntou-Lhe com
insolência:
- O senhor exerce com frequência esta missão?
- O menos possível, minha senhora - respondeu o comissário,
gravemente.
Madalena riu-lhe na cara ao dizer:
- Felicito-o, pois não é nada decente.
Madalena afectava não olhar, não ver sequer seu marido. O
outro, que se levantara da cama, vestia-se. Enfiara a calça,
calçara as botas e aproximava-se, a vestir o colete. O
comissário de Polícia voltou-se para ele:
- Agora, o senhor pode dizer-me quem é?
O outro não respondeu e o comissário proferiu:
- Vejo-me forçado a prendê-lo.
Então o homem exclamou bruscamente:
- Não me toque. Sou inviolável!
Du Roy dirigiu-se a ele, como para lhe bater, e rugiu-Lhe na
cara:
- Há flagrante delito... flagrante delito!... Posso mandá-lo
prender, se quiser... sim, posso-o! - depois, com tom
vibrante: - Este homem chama-se Laroche-Mathieu, ministro dos
Negócios Estrangeiros.
O comissário de Polícia recuou, estupefacto, e balbuciou:
- É verdade, senhor? Quer dizer-me, finalmente, quem é?
290
O homem decidiu-se e proferiu com veemência:
- Desta vez, esse miserável não mentiu. Chamo-me, com
efeito, Laroche-Mathieu, ministro - estendeu o braço para o
peito de Jorge, onde brilhava um pontinho vermelho, e
acrescentou: - O bandalho que aqui está usa na lapela a Cruz
de Honra que Lhe dei.
Du Roy tornara-se lívido. Com um gesto rápido, arrancou da
botoeira a tirinha de fita e atirou-a para o fogão, dizendo:
- Eis para que serve uma condecoração que vem de malandros
da sua espécie.
Estavam frente a frente, com os dentes quase a tocarem-se,
um magro, de bigode caído, o outro gordo, com o bigode
encaracolado. O comissário colocou-se rapidamente entre eles e
afastou-os com as mãos:
- Meus senhores, estão a esquecer quem são, a faltar à
dignidade!
Ambos se calaram e voltaram as costas um ao outro. Madalena,
imóvel, fumava, sempre a sorrir. O comissário de Polícia
continuou:
- Senhor ministro, surpreendi-o, sozinho, com a senhora Du
Roy, aqui presente, e que se encontrava quase nua. O senhor
estava deitado e o vestuário estava disperso ao acaso por todo
o apartamento. Isto constitui um flagrante delito de
adultério. Não pode negar a evidência. Que tem a responder a
isto?
- Não tenho nada a dizer - murmurou Laroche-Mathieu. -
Cumpra o seu dever.
O comissário dirigiu-se a Madalena:
- A senhora confessa que este senhor é seu amante?
- Não o nego - respondeu Madalena descaradamente.É meu
amante!
- Isso me basta.
Em seguida, o comissário tomou algumas notas acerca da
disposição e estado do aposento. Quando acabou de escrever, o
ministro, que esperava de sobretudo no braço e chapéu na mão,
perguntou:
- O senhor ainda tem necessidade de mim? Que devo fazer?
Posso retirar-me?
Du Roy voltou-se para ele, a sorrir com insolência:
- Por quê? Já acabámos. O senhor pode voltar a deitar-se;
291
vamos deixá-los sós - tocou no braço do comissário e disse:
- Retiremo-nos, senhor comissário, já nada temos a fazer aqui.
Um tanto surpreendido, o funcionário da Polícia seguiu-o,
mas no limiar da porta Jorge deteve-se para o deixar passar. O
outro recusou, por cerimónia, mas Du Roy insistiu:
- Passe, senhor comissário.
O comissário disse:
- Depois do senhor.
Então o jornalista, num cumprimento e com um tom de palidez
irónico:
- É a sua vez, senhor comissário; aqui estou quase em minha
casa...
Fechou depois a porta devagar, com um ar discreto.
Uma hora mais tarde, Jorge Du Roy entrou na sede da Vie
Française. O senhor Walter já lá estava, pois continuava a
dirigir e a vigiar com solicitude o jornal, cuja influência
crescera de modo extraordinário e favorecia muito as
crescentes operações do seu banco. O director levantou a
cabeça e exclamou:
- Ora essa! Está aqui! Parece um bocado esquisito! Por que
não foi jantar lá a casa? Donde saiu com essa cara?
O jornalista, seguro do efeito que ia produzir, declarou,
acentuando bem cada uma das suas palavras:
- Acabo de deitar abaixo o ministro dos Negócios
Estrangeiros.
O outro julgou que ele estava a brincar:
- De deitar abaixo... Como?
- Vou modificar o gabinete. Ora aí está! Já não é sem tempo,
pois era preciso escorraçar aquele patife.
O velho Walter, estupefacto, julgou que o seu cronista
político estava embriagado e murmurou:
- Vejamos, isso não é razoável.
- Isso é que é. Acabo de surpreender o senhor
Laroche-Mathieu em flagrante delito de adultério com minha
mulher. O comissário de Polícia foi quem verificou os factos.
O ministro está liquidado.
Walter, surpreendido, levantou completamente os óculos para
a testa e perguntou:
- Não está a brincar comigo?
- De modo nenhum. Vou até fazer um eco a esse respeito.
292
- Que quer, então?
- Deitar abaixo esse canalha, esse miserável, esse malfeitor
público! - pousou o chapéu em cima de uma poltrona e
acrescentou: - Acautelem-se os que se atravessarem no meu
caminho. Nunca perdoo.
O director hesitava ainda em compreender e murmurou:
- Mas... a sua mulher?
- Amanhã, apresentarei o meu pedido de divórcio. Devolvo-a
ao falecido Forestier.
- Quer divorciar-se?
- Evidentemente. Caíra no ridículo, mas era preciso fazer-me
parvo para os apanhar. Já o consegui; agora, sou senhor da
situação.
O senhor Walter não voltava a si da surpresa. Olhava para Du
Roy, com olhos espantados, e pensava: "Apre! Com este sujeito
é preciso ter cautela."
- Eis-me livre - prosseguiu Jorge. - Tenho uma certa
fortuna. Apresentarei a minha candidatura para as eleições
parciais de Outubro, na minha terra, onde sou bastante
conhecido. Não podia propor-me nem ser respeitado com aquela
mulher, de quem todos suspeitavam. Apanhara-me como um
patinho, engodou-me e aprisionou-me. Desde que descobri o seu
jogo, vigiava-a, à desavergonhada - pôs-se a rir e
acrescentou: - O pobre Forestier é que era coitadinho... sem o
saber, um coitadinho confiante e tranquilo. Eis-me liberto da
tinha que ele me pegara. Tenho as mãos livres. Agora, posso ir
longe. - Pusera-se a cavalo numa cadeira e repetiu, como se
isso o aliviasse: - Irei longe!
O velho Walter continuava a olhar para ele com olhos
mortiços, pois os óculos mantinham-se levantados para a testa,
e dizia para si: "Sim, este malandro irá longe."
- Vou redigir o eco - disse Jorge, pondo-se de pé. - É
preciso fazê-lo com discrição; mas, sabe, será terrível para o
ministro. É um homem ao mar. Não o poderão salvar. A Vie
Française não tem já nenhum interesse em poupá-lo.
O velho hesitou alguns instantes. Depois, tomou uma decisão:
- Faça-o; tanto pior para os que se metem nesses sarilhos.
XVII
Tinham-se passado três meses. A sentença do divórcio de
Du Roy acabava de transitar em julgado. Sua mulher retomara o
nome de Forestier. Como os Walters deviam partir, a 15 de
Julho, para Trouville, decidiram passar um dia no campo antes
de se separarem.
Escolheram uma quinta-feira e puseram-se a caminho logo às
nove horas da manhã, numa grande carruagem de seis lugares,
com quatro cavalos atrelados.
Iam almoçar a Saint-Germain, ao pavilhão Henrique IV. Bel-
Ami conseguira ser o único homem convidado, pois não podia
suportar a cara e a presença do marquês de Cazolles.
No último momento, porém, foi resolvido ir buscar o conde de
Latour-Yvelin, ao levantar da cama, e preveniram-no na
véspera.
A carruagem subiu, a trote largo, a Avenida dos Campos
Elísios e depois atravessou o Bosque de Bolonha. Fazia um
admirável tempo de Verão, não muito quente. As andorinhas
traçavam no azul do céu grandes linhas curvas que se diria
ainda visíveis depois de as aves terem passado.
As três senhoras sentaram-se no fundo da carruagem: a mãe
entre as duas filhas; os três homens ficaram na sua frente,
Walter entre os seus dois convidados.
Atravessaram o Sena, contornaram o Mont-Valérien, depois
alcançaram Bougival e seguiram ao longo do rio, até Pecq.
O conde de Latour-Yvelin era um homem um tanto maduro, com
suíças de que o mínimo sopro de ar agitava as pontas, o que
fazia Du Roy dizer: "Consegue bonitos efeitos de vento com a
sua barba." O conde contemplava Rosa ternamente. Estavam
noivos havia um mês.
Jorge, muito pálido, olhava com frequência para Susana, que
estava também muito pálida. Os seus olhos, quando se
encontravam, parecia compreenderem-se, porem-se de acordo,
permutar secretamente os seus pensamentos, e depois fugiam. A
senhora Walter estava tranquila, feliz.
294 295
O almoço foi demorado. Antes de regressarem a Paris, Jorge
propôs darem uma volta pelo terraço. Pararam no miradouro,
para admirar as vistas. Todos se puseram em linha ao longo do
muro e se extasiaram com a extensão do horizonte.
O Sena, no sopé de uma longa colina, corria para
Maisons-Lafitte como uma imensa serpente estendida na verdura.
À direita, no cume da colina, o aqueduto de Marly projectava
no céu o seu perfil enorme de lagarta de grandes patas. Marly
desaparecia por baixo, numa espessa moita de árvores.
Na planície imensa, que se estendia em frente, viam-se, de
longe em longe, as aldeias. Os lagos do Vésinet marcavam
manchas nítidas e límpidas na magra verdura da floresta. À
esquerda, muito ao longe, descobria-se no espaço o campanário
agudo de Sartrouville. Walter declarou:
- Não se encontra, em parte nenhuma do mundo, um panorama
semelhante. Não há nada parecido na Suíça.
Puseram-se depois a caminho, lentamente, para dar um passeio
e gozar um bocado daquela perspectiva. Jorge e Susana ficaram
para trás e logo que se viram longe do rancho alguns passos,
ele disse-lhe em voz baixa e comovida:
- Adoro-a, Susana. Gosto de si de forma a perder a cabeça.
- Eu também, Bel-Ami - murmurou a jovem.
- Se não a tiver como minha mulher - continuou Jorge -
deixarei Paris e até a França.
- Tente, portanto, pedir-me ao papá - retorquiu a jovem. -
Talvez ele concorde.
- Não - fez Jorge, com um gestozinho de impaciência. -
Repito-lhe, pela décima vez, que é inútil. Fechar-se-ão para
mim as portas da sua casa, expulsar-me-ão do jornal e não
poderemos sequer ver-nos mais. Eis o bonito resultado que
tenho a certeza de alcançar com um pedido em regra.
Prometeram-na ao marquês de Cazolles. Esperam que acabará por
dizer sim, e aguardam essa decisão.
- Então que é preciso fazer? - perguntou a jovem.
Jorge hesitou a olhar para ela de lado e perguntou:
- Gosta de mim bastante para praticar uma loucura?
- Sim - respondeu resolutamente a jovem.
- Uma grande loucura?
- Sim.
- A maior das loucuras?
- Sim.
- Terá, também, coragem para fazer frente a seu pai e sua
mãe?
- Sim.
- Com certeza?
- Sim.
- Pois bem! Só há um meio um único! É preciso que a ideia
parta de si e não de mim. É uma menina mimada e deixam-na
dizer tudo e não se surpreenderão com mais uma audácia da sua
parte. Ouça, portanto: esta tarde, ao regressar a casa,
procurará, em primeiro lugar, a sua mamã, mas a sua mamã só.
Confessar-lhe-á que quer casar comigo. Ela terá uma profunda
comoção e uma grande cólera...
- Oh! A mamã não se importa - interrompeu Susana.
- Não - continuou Jorge vivamente. - Não a conhece. Ficará
mais zangada e mais furiosa do que seu pai. Verá como vai
recusar; mas mantenha-se firme, não ceda em nada.
Repetir-lhe-á que quer casar comigo, comigo só e com mais
ninguém. Fará isto que lhe digo?
- Farei sim.
- Ao sair de junto de sua mãe dirá a mesma coisa a seu pai,
com um ar muito sério e muito decidido.
- Sim, sim; e depois?
- Depois é que o caso se torna grave. Se está decidida, bem
decidida, muito, muito decidida a ser minha mulher, minha
adorada Susaninha... raptá-la-ei!
Susana teve um grande sobressalto de alegria e esteve quase
a bater palmas:
- Oh! Que felicidade! Vai raptar-me? Quando me raptará?
Toda a velha poesia dos raptos nocturnos, as carruagens de
mala-posta, as pousadas, as encantadoras aventuras dos
romances, Lhe passaram, subitamente, pelo espírito, como um
sonho maravilhoso prestes a tornar-se realidade. A jovem
repetiu:
- Quando me raptará?
- Mas... - respondeu Jorge baixinho -, hoje mesmo... esta
noite.
- Para onde iremos? - perguntou a jovem, fremente.
296
- Isso é o meu segredo. Reflita no que faz. Pense que depois
dessa fuga só pode ser minha mulher! É esse o único meio, mas
é... é muito perigoso... para si.
- Estou decidida - declarou a jovem. - Onde me encontrarei
consigo?
- Pode sair do palacete sozinha?
- Sim. Sei abrir a portinha.
- Muito bem! Quando o porteiro estiver deitado, cerca da
meia-noite, vá ter comigo à Praça da Concórdia. Encontrar-me-á
num carro, parado em frente do Ministério da Marinha.
- Lá irei.
- Com certeza?
- Com certeza.
- Oh! - fez Jorge, que lhe pegou na mão e a apertou. - Como
gosto de si! Como é boa e corajosa. Então, não quer casar com
o senhor de Cazolles?
- Oh! Não!
- Seu pai ficou zangado quando lhe disse que não?
- Evidentemente. Queria meter-me num convento.
- Bem vê que é necessário ser enérgica.
- Sê-lo-ei!
Susana contemplava o vasto horizonte com a cabeça plena
daquela ideia do rapto. Iria para mais longe ainda... e com
ele!... Seria raptada!... Sentia-se orgulhosa! Não pensava
nada na sua reputação, no que isso poderia ter de infamante.
Sabê-lo-ia, ao menos? Suspeitava-o?
A senhora Walter voltou-se e chamou:
- Anda daí, pequena. Que estás a fazer com Bel-Ami?
Foram juntar-se ao grupo, que falava dos banhos de mar, para
onde iriam em breve. Regressaram por Chatou, de modo a não
voltar a fazer o mesmo caminho.
Jorge já não dizia nada; meditava. Se aquela pequena tivesse
um bocadinho de audácia, ele iria, finalmente, triunfar !
Havia três meses que a envolvia na irresistível rede da sua
ternura. Seduzia-a, cativava-a, conquistava-a. Fizera-se amar
por ela, como sabia tornar-se amado por todas. Enfeitiçara sem
dificuldade a sua alma frágil de boneca. Conseguira,
primeiramente, que a jovem recusasse o senhor de Cazolles.
Acabava de obter que ela fugisse com ele, pois não havia outro
meio.
297
A senhora Walter, bem o compreendia, nunca consentiria em
dar-lhe a filha. Amava-o ainda, amá-lo-ia sempre, com uma
violência desesperada. Ele continha-a com a sua frieza
calculada, mas sentia-a devorada por uma paixão impotente e
voraz. Jamais poderia conseguir que ela cedesse; jamais ela
admitiria que ele lhe levasse a filha. Uma vez, porém, que
tivesse a pequena em seu poder, trataria com o pai, de
potência a potência.
A pensar em tudo isso, Jorge respondia por frases soltas às
coisas que lhe diziam e a que não prestava atenção. Só pareceu
voltar a si quando entrou em Paris.
Susana também meditava. Os guizos dos quatro cavalos
ressoavam-lhe na cabeça e evocavam as grandes estradas
infinitas, sob luares de sonho, as sombrias florestas
atravessadas, as pousadas à beira do caminho e a pressa dos
homens da posta a mudar as parelhas, pois todos adivinhavam
que os passageiros eram fugitivos.
Quando a carruagem entrou no átrio do palacete quiseram que
Jorge ficasse para jantar, mas este recusou e foi para sua
casa.
Depois de comer qualquer coisa, pôs em ordem os seus papéis
como se fosse fazer uma grande viagem. Queimou cartas
comprometedoras, escondeu outras e escreveu a alguns amigos.
De tempos a tempos, olhava para o relógio e pensava: "As
coisas devem estar feias, lá em casa." Uma inquietação lhe
apertava a garganta. Se falhasse? Que podia, porém, recear?
Sempre havia de conseguir sair da dificuldade! No entanto, era
um jogo arriscado o que jogava naquela noite!
Saiu cerca das onze horas. Andou ao acaso durante algum
tempo, tomou um fiacre e mandou-o parar na Praça da Concórdia,
em frente das arcadas do Ministério da Marinha.
De tempos a tempos, acendia um fósforo para ver as horas no
seu relógio. Quando viu que a meia-noite se aproximava, a sua
impaciência tornou-se febril. De instante em instante, metia a
cabeça pela portinhola para observar.
Um relógio longínquo deu as doze badaladas, depois outro
mais perto, a seguir dois juntos e por fim um último, muito ao
longe. Quando esse terminava, Du Roy pensou: "Acabou-se.
Falhou. Ela não virá." Estava, no entanto, resolvido a esperar
até ao amanhecer.
Ouviu soar o quarto, depois a meia hora e a seguir os três
quartos.
298
Todos os relógios repetiram a uma hora, como antes a
meia-noite. Já não esperava nada, mas continuava ali, a
verrumar o seu pensamento para adivinhar o que poderia ter
acontecido. De repente, uma cabeça de mulher meteu-se pela
portinhola e perguntou:
- Está aí, Bel-Ami?
Jorge teve um sobressalto e uma sufocação:
- É Susana?
- Sim, sou eu.
Jorge não conseguia dar a volta à maçaneta da portinhola com
a rapidez desejada e repetia:
- Ah! Sempre veio... Sempre veio... Entre.
A jovem entrou e deixou-se cair contra ele. Jorge gritou
para o cocheiro:
- Vamos!
O carro pôs-se em movimento. A jovem arquejava sem poder
falar. Jorge perguntou:
- Então? Como se passou isso?
Susana, quase desfalecida, murmurou, por fim:
- Oh!... Foi terrível sobretudo com a mamã.
Jorge, inquieto e fremente, inquiriu:
- A sua mãe? Que lhe disse? Conte-me tudo.
- Ah! Foi horrível. Fui ter com ela e dei o meu recado, que
preparara antes. Ela empalideceu e depois gritou: Nunca!
Nunca!, Chorei, zanguei-me, jurei que só casaria consigo.
Julguei que ela me ia bater. Ficou como louca. Declarou que me
meteriam no convento, a partir do dia seguinte. Nunca a tinha
visto assim, nunca! Então o papá chegou, ao ouvir todas
aquelas tolices. Como ambos me tinham enfurecido, gritei ainda
mais do que eles. O papá disse-me que saísse, com um ar
dramático, que não me agradou nada. Foi isso que me decidiu a
fugir consigo. Cá estou; para onde vamos?
Jorge enlaçara-lhe a cintura, docemente. Ouvia-a, com a
maior atenção, com o coração a bater descompassado e sentindo
subir um rancor odiento contra toda aquela gente. Tinha-a,
porém, a ela, à sua filha, e agora é que iriam ver.
Respondeu-lhe:
- É muito tarde para tomarmos o comboio. Este carro vai,
portanto, conduzir-nos a Sèvres, onde passaremos a noite.
Amanhã, partiremos para Roche-Guyon. É uma bonita aldeia, na
margem do Sena, entre Mantes e Bonnières.
299
- É que eu - murmurou a jovem - não tenho roupa... não
trouxe nada.
- Ora! - fez Jorge com um sorriso de desenvoltura -,
arranjaremos isso lá.
O carro rodava ao longo das ruas. Jorge pegou na mão da
jovem e pôs-se a beijá-la, lentamente, com respeito. Não sabia
que Lhe havia de dizer, pois não estava acostumado às ternuras
platónicas. De súbito, julgou perceber que a jovem chorava e
perguntou, aterrorizado:
- Que tem, minha querida?
Susana respondeu com a voz embargada pelas lágrimas:
- É que a minha pobre mamã não deve dormir a estas horas, se
deu conta da minha fuga.
Efectivamente, sua mãe não dormia. Assim que Susana saiu do
seu quarto, a senhora Walter ficou face a face com o marido e
perguntou, angustiada, aterrada:
- Meu Deus! Que quer dizer isto?
- Isto quer dizer - respondeu Walter furioso - que esse
intrigante a enfeitiçou. Foi ele quem a fez recusar Cazolles.
Acha que o dote é bom, o patife!
Pôs-se a passear, enraivecido, ao longo do aposento, e
prosseguiu:
- Tu, também, estavas sempre a atraí-lo, a lisonjeá-lo, a
apaparicá-lo. Para ele nunca eram de mais as tuas
amabilidades. Era Bel-Ami para aqui, Bel-Ami para acolá, de
manhã à noite. Recebeste a paga.
- Eu?... - murmurou a mulher, lívida. - Atraía-o?!
- Sim, tu! - vociferou-lhe o marido, na cara. - Vocês todas
estão doidas por ele, a Marelle, Susana e as outras. Julgas
que não via não poderes estar dois dias sem o obrigar a vir
cá?
A mulher empertigou-se, com ar trágico, para dizer:
- Não lhe permito que me fale assim. Esquece-se de que não
fui educada como você, numa tenda.
Walter ficou a princípio imóvel e estupefacto, depois soltou
um "Arre, diabo!" furibundo e saiu atirando com a porta.
Logo que ficou só, Virgínia foi, por instinto, ver-se ao
espelho, como para verificar se alguma coisa nela mudara,
tanto aquilo que sucedera lhe parecia impossível, monstruoso.
Susana enamorada de Bel-Ami! Bel-Ami a casar com Susana! Não!
Estava iludida! Não era verdade.
300
A pequena tivera uma inclinação, muito natural, por aquele
belo rapaz e esperava que lho dariam por marido. Por isso
tivera aquele capricho; mas ele? Seria cúmplice no caso?
Virgínia reflectia, perturbada, como perante uma grande
catástrofe.
Não, Bel-Ami não devia saber nada das ideias de Susana.
Virgínia pensou, demoradamente, na perfídia e na inocência
possível daquele homem. Que miserável, se fora ele quem
preparara tudo! Que iria suceder? Que perigos e tormentos
seriam de prever?
Se Jorge não sabia nada, tudo se poderia arranjar. Fariam
uma viagem com Susana, durante seis meses, e tudo ficaria
terminado. Como poderia, porém, ela, Virgínia, voltar a vê-lo,
depois? Sim, porque continuava a amá-lo. Aquela paixão entrara
nela como as pontas de certas flechas que não é possível
depois arrancar. Viver sem ele, era-Lhe impossível; antes
morrer.
Os seus pensamentos perdiam-se nessas angústias e
incertezas. Uma dor de cabeça surgira-lhe. As suas ideias
estavam perturbadas e tornavam-se dolorosas. Enervava-se a
procurar e exasperava-se por não saber ao certo. Olhou para o
relógio e viu que passava da uma hora. Disse: "Não posso ficar
assim, senão enlouqueço. É preciso que saiba. Vou acordar
Susana e interrogá-la." Dirigiu-se, descalça, para não fazer
barulho, com a vela na mão, ao quarto da filha. Abriu a porta
devagarinho e olhou para a cama. Não estava aberta. A
princípio, não compreendeu bem e supôs que a pequena estava
ainda a discutir com o pai. Imediatamente, porém, uma suspeita
horrível a assaltou e correu para o quarto do marido. Chegou
lá de roldão, lívida e ofegante. Ele, já deitado, mas ainda a
ler, perguntou, surpreendido:
- Então? Que há? Que tens?
A mulher balbuciou:
- Viste a Susana?
- Eu? Não! Por quê?
- É que ela... ela... partiu. Não está no seu quarto.
Walter deu um salto para o tapete, calçou as pantufas e, de
camisa a abanar, precipitou-se para o quarto da sua filha. Mal
lá chegou, não teve nenhuma dúvida: a pequena fugira.
Deixou-se cair numa poltrona e pôs o candeeiro na sua frente,
no chão. Sua mulher, que se Lhe juntara, gaguejou:
301
- E... e... então?
O marido não tinha forças para responder; não sentia cólera;
gemeu:
- Pronto; ele apanhou-a. Estamos perdidos.
A mulher não compreendia:
- Perdidos, como?
- É claro! Agora, tem de casar com ela.
A mulher soltou um rugido de animal:
- Com ela! Nunca! Estás doido?
- Não serve de nada gritar - respondeu Walter tristemente. -
Ele raptou-a, desonrou-a. O melhor ainda é dar-lha. Se
procedermos com cautela, ninguém dará por esta aventura.
Virgínia repetiu, agitada por uma comoção terrível:
- Nunca! Nunca ele terá Susana! Nunca consentirei nisso!
- Já a tem - murmurou o marido, acabrunhado. - É coisa
feita. Vai guardá-la e escondê-la, enquanto não lha tivermos
cedido. Portanto, para evitar o escândalo, é preciso ceder
imediatamente.
A mulher, desesperada por uma dor inconfessável, repetia:
- Não! Não! Nunca consentirei!
- Não podemos, porém, discutir - disse Walter, já
impaciente. - Tem de ser. Ah! O patife, como ele nos
apanhou!... É um tipo de força, apesar de tudo. Podíamos
encontrar melhor como posição, mas não como inteligência e
como futuro. É um sujeito que há-de ir longe. Será deputado e
ministro.
A senhora Walter declarou com uma energia feroz:
- Jamais o deixarei casar com Susana. Ouves?... Jamais!
O marido acabou por se zangar e por tomar a defesa de
Bel-Ami, como homem prático que era:
- Cala-te lá!... Já te disse que tem de ser... que é
preciso, absolutamente, que seja assim... Quem sabe? Pode ser
que não tenhamos de nos lamentar depois. Com tipos daquela
força, nunca se sabe o que pode acontecer. Viste como deitou
abaixo, com três artigos, aquele idiota do Laroche-Mathieu, e
como o fez com dignidade, o que era extremamente difícil, na
sua situação de marido. Enfim, veremos. O caso é que fomos
apanhados. Não podemos já fazer nada.
A mulher tinha vontade de gritar, de rolar pelo chão, de
arrancar os cabelos. Proferiu ainda com voz exasperada:
- Não! Não a terá... não... quero... não quero!
302
Walter levantou-se, pegou no candeeiro e prosseguiu:
- Vê lá! És estúpida, como todas as mulheres. Vocês só
procedem por paixão. Não sabem sujeitar-se às
circunstâncias... são estúpidas! Eu, digo-te que ele casará
com ela... Tem de ser.
Saiu, a arrastar as pantufas. Atravessou, fantasma cómico de
camisa de noite, o largo corredor do vasto palacete
adormecido, e entrou sem ruído no seu quarto.
A senhora Walter ficou de pé, devastada por uma dor
intolerável. Não compreendera, aliás, ainda muito bem, o que
se passara. Somente, sofria. Depois, pareceu-lhe que não
poderia ficar ali, imóvel, até amanhecer. Sentia uma
necessidade violenta de fugir, de correr na sua frente, de
partir, de procurar auxílio, de ser socorrida.
Procurou quem poderia ir em seu socorro. Um homem! Não
encontrava, porém, nenhum. Um padre! Sim, um padre!
Lançar-se-ia a seus pés e confessar-Lhe-ia tudo. Confessaria a
sua falta e o seu desespero. Ele, sim, compreenderia que
aquele miserável não podia casar com Susana e trataria de o
impedir.
Precisava dum padre imediatamente. Onde porém, o
encontraria? Aonde ir? No entanto, não podia ficar assim.
Então, passou ante os seus olhos, como uma visão, a imagem
serena de Jesus a caminhar por cima das águas. Via-o como o
vira ao observar o quadro. Ele chamava-a e dizia-lhe: "Vem a
mim. Vem ajoelhar a meus pés. Consolar-te-ei e inspirar-te-ei
o que deves fazer."
Pegou na vela e saiu. Dirigiu-se para a estufa. Jesus estava
na extremidade, numa salinha fechada por uma porta
envidraçada, para a humidade da terra não deteriorar o quadro.
Isso formava uma espécie de capela, no meio dum bosque de
árvores estranhas.
Quando a senhora Walter entrou no jardim de Inverno, como
nunca o vira sem estar completamente iluminado, ficou
apavorada ante a sua profunda obscuridade. As pesadas plantas
dos países quentes tornavam a atmosfera espessa e dificultavam
a respiração, pois as portas não estavam abertas. O ar daquele
bosque estranho, metido numa redoma de vidro, entrava com
dificuldade no peito, sufocava, embriagava, causava dores e um
certo prazer, dava à carne uma sensação confusa de
voluptuosidade enervante e de morte.
303
A pobre mulher caminhava lentamente, impressionada pelas
trevas em que apareciam, à claridade errante da vela, as
plantas extravagantes com o aspecto de monstros e deformidades
medonhas. Subitamente, deu com o quadro. Abriu a porta que a
separava dele e caiu de joelhos diante de Jesus.
Rezou-lhe, a princípio, precipitadamente, a balbuciar
palavras de amor, invocações apaixonadas e desesperadas.
Depois, acalmado o ardor do seu apelo, levantou os olhos para
ele e ficou paralisada pela angústia. Parecia-se tanto com
Bel-Ami, à claridade trémula daquela única luz a iluminá-lo
apenas de baixo, que já não era Deus, mas o seu amante a quem
contemplava. Eram os seus olhos, a sua fronte, a expressão do
seu rosto, o seu ar frio e altivo.
Balbuciou, então: "Jesus!... Jesus!... Jesus!..." mas a
palavra Jorge acudia-lhe aos lábios. Subitamente, pensou que
naquele mesmo momento Jorge talvez estivesse a possuir a sua
filha. Estava só com ela, em qualquer parte, num quarto. Ele!
Ele, com Susana!
Repetia: "Jesus!... Jesus!...", mas pensava neles... na
filha e no seu amante! Estavam sozinhos num quarto... e era de
noite. Via-os. Via-os tão nitidamente a ponto de se erguerem
na sua frente em lugar do quadro. Sorriam um para o outro e
beijavam-se.
O quarto era sombrio e o leito estava entreaberto.
Levantou-se para se dirigir a eles, para agarrar na filha
pelos cabelos e a arrancar àquele amplexo. Ia deitar-lhe as
mãos à garganta para a estrangular, àquela filha a quem
odiava, à filha que se dava àquele homem. Pareceu-lhe que lhe
tocava... eram as suas mãos que se estendiam para o quadro e
tocavam nos pés de Jesus.
A senhora Walter soltou um grande grito e caiu de costas. A
vela, que caíra também, apagou-se. Que se passou em seguida?
Virgínia sonhou, muito tempo, com coisas estranhas, terríveis.
Sempre Jorge e Susana perpassavam ante os seus olhos,
abraçados, e Jesus Cristo abençoava o seu horrível amor.
Sentia vagamente que não estava no seu quarto. Queria
levantar-se, mas não podia. Invadira-a um torpor que lhe
paralisava os membros e só deixava desperto o seu pensamento,
mas perturbado, torturado por imagens medonhas, irreais,
304
fantásticas, perdido num pesadelo, o sonho estranho e por
vezes mortal que provocam nos cérebros humanos as plantas
entorpecedoras dos países quentes, de formas estranhas e
perfumes espessos.
Quando chegou o dia foram encontrar a senhora Walter
estendida, sem sentidos, quase asfixiada, diante do quadro
Jesus a caminhar por cima das ondas. Ficou tão doente que
recearam pela sua vida. Só no dia seguinte recuperou o uso
completo da razão. Então, pôs-se a chorar.
O desaparecimento de Susana foi explicado aos criados por um
brusco envio para o convento.
O senhor Walter respondeu a uma longa carta de Du Roy a
conceder-lhe a mão de sua filha. Bel-Ami Lançara essa epístola
no correio, no momento de deixar Paris, pois tinha-a
preparado, antecipadamente, na véspera da sua partida. Dizia
nela, em termos respeitosos, que gostava havia muito tempo da
jovem, mas que nunca houvera nenhum acordo entre ambos. Ao
vê-la, porém, dirigir-se a ele, por sua livre vontade, e
dizer-lhe: "Quero ser sua mulher", julgava-se autorizado a
guardá-la, a ocultá-la, até obter uma resposta dos pais, cuja
vontade legal tinha para ele um valor menor do que a vontade
da sua noiva. Pedia ao senhor Walter que lhe respondesse para
a posta-restante, à qual um amigo iria buscar a carta.
Logo que obteve o que desejava, Du Roy levou Susana para
Paris e conduziu-a a casa dos pais, onde se absteve, contudo,
de aparecer durante algum tempo.
Tinham passado seis dias em La Roche-Guyon, na margem do
Sena. Nunca a jovem se divertira tanto. Fazia de pastorinha.
Como Jorge a fizera passar por sua irmã, viviam numa
intimidade livre e casta, uma espécie de camaradagem amorosa.
Jorge julgou hábil respeitá-la.
Desde o dia seguinte à sua chegada, Susana comprou roupa
branca, trajes de camponesa, e pôs-se a pescar à linha, com a
cabeça coberta por um imenso chapéu de palha ornado com flores
campestres. Achava deliciosa aquela terra, com uma velha torre
e um vetusto solar onde se viam admiráveis tapeçarias.
Jorge, vestido com uma jaqueta comprada feita num
estabelecimento da terra, passeava Susana, ao longo das
margens, quer a pé, quer de barco. Beijavam-se a todo o
momento, frementes, ela com inocência e ele prestes a
sucumbir. Sabia, porém, ser forte, e quando lhe disse:
305
- Voltaremos para Paris amanhã, pois seu pai concorda que
nos casemos.
- Já? - perguntou Susana ingenuamente. - Divertia-me tanto
ser sua mulher!
XVIII
Estava escuro no apartamentozinho da Rua de
Constantinopla, pois Du Roy e Clotilde de Marelle, que se
encontraram à porta, tinham entrado rapidamente e ela
disse-lhe, de chofre, sem lhe dar tempo de abrir as persianas:
- Então, vais casar com Susana Walter?
Jorge fez um sinal afirmativo e acrescentou, com voz doce:
- Não sabias?
Clotilde, de pé na sua frente, continuou, indignada,
furiosa:
- Casas com Susana Walter! É forte! É muito forte! Há três
meses que me enches de mimos para ocultar isso. Todos o
sabiam, excepto eu. Foi meu marido quem mo disse!
Du Roy riu, trocista, mas um tanto vexado, apesar de tudo.
Depôs o chapéu em cima da pedra do fogão e sentou-se numa
poltrona. Clotilde olhava para ele de frente e proferiu com
voz baixa e irritada:
- Desde que deixaste a tua mulher preparavas isso, mas
tinhas-me, gentilmente, como amante, durante a interinidade?
Que sem-vergonha és!
- Sem-vergonha por quê? - perguntou Jorge. - Tinha uma
mulher que me enganava; surpreendi-a em flagrante; obtive o
divórcio e vou casar com outra. Que há nisso de estranho?
- Oh! - exclamou Clotilde fremente. - Como és velhaco e
perigoso!
- Ora! - fez Jorge, que voltou a sorrir. - Os imbecis, os
ingénuos, são sempre enganados!
- Como deveria ter adivinhado o que eras, desde o começo! -
prosseguiu Clotilde, que lá tinha a sua ideia. - Mas, não;
podia lá prever que fosses o crápula que és.
- Peço-te o favor - replicou Jorge com ar digno - de prestar
atenção às palavras que empregas.
- Como? - revoltou-se ela contra aquela indignação.Queres
que calce luvas para falar contigo agora? Tens-te portado
comigo como um bandalho desde que te conheço e pretendes que
não to diga? Enganas toda a gente, exploras todos, andas à
caça de prazer e de dinheiro por toda a parte e queres que te
tratem como um homem honesto?
Du Roy levantou-se, com os lábios a tremer:
- Cala-te ou ponho-te lá fora!
- Pões-me lá fora?... - balbuciou Clotilde. - Pões-me lá
fora!... Tu?... Tu!...
Quase não podia falar de tão sufocada que estava pela
cólera, mas bruscamente, como se a porta do seu furor tivesse
estilhaçado, explodiu:
- Pôr-me lá fora?! Esqueces, então, que fui eu quem pagou
este alojamento desde o primeiro dia! Ah! Sim, tiveste-o por
tua conta de tempos a tempos; mas quem o alugou?... Fui eu!...
Quem o conservou?... Fui eu!... E queres pôr-me fora daqui?
Cala-te, miserável! Julgas que não sei como roubaste a
Madalena metade da herança de Vaudrec? Julgas que não sei que
desonraste Susana para a forçar a casar contigo...
Jorge agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a com força:
- Não fales dela! Proíbo-te!
- Dormiste com ela, sim; sei-o! - gritou Clotilde.
Jorge estava disposto a ouvir tudo, mas aquela calúnia
exasperava-o. As verdades que a amante lhe tinha atirado à
cara, pouco antes, faziam-lhe ter contracções de raiva no
íntimo, mas aquela falsidade acerca da jovem que ia ser sua
mulher despertava-lhe nas mãos um apetite furioso de bater.
Repetiu:
- Cala-te!... Tem cuidado!... Cala-te...
Abanava-a como se abana um ramo para fazer cair os frutos. A
amante rugia, despenteada, com a boca muito aberta, os olhos
desvairados:
- Dormiste com ela!
Jorge deixou-a e atirou-lhe à cara uma tal bofetada que
Clotilde foi cair contra a parede. Voltou-se, porém, para ele
e, de punhos cerrados, vociferou ainda uma vez:
- Dormiste com ela!
Jorge atirou-se a ela e, com ela por baixo de si, bateu-Lhe
como se malhasse num homem. Clotilde calou-se de súbito e
pôs-se a gemer sob a violência das pancadas.
308
Já não se mexia e, com a cara oculta no ângulo do sobrado com
a parede, soltava gritos lamentosos.
Jorge deixou de lhe bater e ergueu-se. Deu alguns passos
pelo quarto para recobrar o seu sangue-frio. Acudiu-Lhe uma
ideia: passou ao aposento contíguo, encheu uma bacia de água
fresca e mergulhou nela a cabeça. Em seguida, lavou as mãos e
voltou para ver o que fazia a amante, enquanto enxugava as
mãos cuidadosamente.
Clotilde não se mexera. Continuava estendida por terra, a
chorar baixinho. Jorge perguntou:
- Quando acabas de lacrimejar?
Clotilde não respondeu. Jorge ficou de pé no meio do
aposento, um tanto contrariado e um tanto envergonhado, ante
aquele corpo estendido na sua frente. Depois, de súbito, tomou
uma decisão, pegou no chapéu que estava em cima da pedra do
fogão e saiu, dizendo:
- Boa tarde! Dá a chave à porteira quando estiveres pronta.
Não estou para ficar à espera de que respondas.
Saiu, fechou a porta, entrou na loja do porteiro e disse:
- A senhora ficou; sairá daqui a bocado. Diga ao senhorio
que me despeço e saio no primeiro de Outubro. Estamos a
dezasseis de Agosto, estou, portanto, dentro do limite do
prazo.
Partiu, a passo largo, pois tinha voltas urgentes a dar,
para fazer as últimas compras para o seu enxoval.
O casamento estava marcado para 20 de Outubro, em seguida à
reabertura das Câmaras. Realizar-se-ia na Igreja da Madalena.
Tinham falado muito do caso, sem saberem ao certo a verdade.
Circulavam diferentes versões. Murmuravam que tinha havido
rapto, mas ninguém tinha a certeza de nada.
Segundo diziam os criados, a senhora Walter, que não voltara
a falar com o futuro genro, envenenara-se de cólera, na noite
em que o casamento fora decidido, depois de ter mandado a
filha para um convento, à meia-noite.
Tinham-na encontrado quase morta e certamente não se
restabeleceria mais. Parecia uma velha, com o cabelo
completamente grisalho. Dera-lhe para a devoção e comungava
todos os domingos.
Nos primeiros dias de Setembro, a Vie Française anunciou que
o barão Du Roy de Cantei passava a ser seu redactor principal,
309
conservando o senhor Walter o seu cargo de director.
Foi então recrutado um batalhão de cronistas conhecidos e
especialistas de ecos, redactores políticos, críticos de arte
e de teatro, arrancados, à força de dinheiro, aos grandes
jornais poderosos e ponderados. Os velhos jornalistas, os
jornalistas graves e respeitáveis, já não encolhiam os ombros
ao falar da Vie Française. O triunfo rápido e completo dessa
folha apagara o desdém que os escritores sérios tinham por
ela, nos seus começos.
O casamento do seu redactor principal foi o que se chama úm
acontecimento parisiense. Jorge du Roy e os Walters tinham
despertado bastante a curiosidade nos últimos tempos. Todas as
pessoas cujos nomes vêm citados nos ecos tinham resolvido
assistir à cerimónia.
O acontecimento realizou-se num dia claro de Outubro. Desde
as oito horas da manhã, todo o pessoal da Igreja da Madalena,
ao estender, nos degraus do alto adro do templo que domina a
Rua Royale, um largo tapete vermelho, obrigava a deter todos
os transeuntes, pois isso anunciava ao povo de Paris que se ia
realizar ali uma grande cerimónia.
Os empregados que iam para os seus escritórios, as
operariazinhas, os moços de armazém, paravam e pensavam,
vagamente, na gente rica que despendia tanto dinheiro para se
casar.
Por volta das dez horas, os curiosos começaram a juntar-se.
Ficavam alguns minutos, à espera de aquilo começar, talvez,
imediatamente, e depois iam-se embora. Às onze horas os
primeiros destacamentos de agentes da Polícia chegaram e,
imediatamente, puseram-se a fazer circular a multidão, visto
estarem a formar-se grupos a todos os instantes.
Os primeiros convidados apareceram dentro em breve. Eram
aqueles que desejavam ficar nos bons lugares, para ver tudo
bem. Tomaram os bancos da frente, ao longo da nave central.
Aos poucos, vieram outros e as senhoras faziam, com os seus
vestidos, um ruído de sedas. Os homens, severos, quase todos
calvos, andavam com uma correcção mundana, mais grave ainda em
tal lugar.
A igreja enchia-se lentamente. O sol entrava pelo imenso
pórtico e ia iluminar as primeiras filas dos convidados.
310
Na capela-mor, que parecia um tanto sombria, o altar, coberto
de círios, lançava uma claridade amarelada, humilde e pálida,
em face do foco de luz do pórtico.
As pessoas conhecidas chamavam-se por sinais e reuniam-se em
grupos, os homens de letras, menos respeitosos do que os
mundanos, conversavam a meia voz e observavam as mulheres.
Norberto de Varenne, que procurava um amigo, descobriu Jaime
Rival, no meio das linhas de bancos, e foi ter com ele.
Disse-lhe:
- Muito bem! O futuro pertence aos espertalhões!
O outro, que não era invejoso, retorquiu:
- Ainda bem. Fica com a sua vida arrumada.
Puseram-se a nomear aqueles que iam descobrindo, e Rival
perguntou:
- Sabe que é feito da mulher dele?
- Sim e não - respondeu o poeta, com um sorriso. - Vive
muito retirada, segundo me disseram, no Bairro de Montmartre;
mas... há sempre um mas... há tempos para cá leio na Plume
artigos políticos que se parecem extraordinariamente com os de
Forestier e Du Roy. São assinados por um tal João le Dol, um
rapaz, bonito moço, esperto, da mesma raça do nosso amigo
Jorge, e que é das relações da sua ex-esposa. Daí concluo que
ela gostava dos estreantes e gostará deles sempre. Aliás, é
rica. Para alguma coisa Vaudrec e Laroche-Mathieu foram
frequentadores assíduos de sua casa...
- Não é nada mal, essa Madalenazinha - declarou Rival. - É
muito fina e muito esperta! Deve ser ainda um bom bocado.
Diga-me cá, porém, como pode ser casar-se Jorge pela igreja
depois de se ter divorciado?
- Casa-se na igreja - respondeu Norberto de Varenne -
porque, para a Igreja, não era considerado casado da primeira
vez.
- Como pode ser isso?
- O nosso Bel-Ami, por indiferença ou por economia, julgou
que o registo civil bastava, ao casar com Madalena Forestier.
Dispensara, portanto, a bênção eclesiástica. Isso significava,
para a nossa Santa Madre Igreja, que vivia em simples estado
de concubinagem. Por consequência, apresenta-se hoje, perante
ela, como solteiro, e ela concede-lhe todas as suas pompas que
devem custar caro ao velho Walter.
311
O murmúrio da multidão que aumentava crescia também na vasta
nave. Ouviam-se vozes que quase falavam alto. Apontavam a dedo
as pessoas célebres, que tomavam atitudes, contentes por serem
vistas, e conservavam a sua pose adoptada para o público,
habituadas como estavam a mostrar-se assim em todas as festas
de que eram, segundo julgavam, um ornamento indispensável,
como objectos de arte.
- Diga-me, meu caro - continuou Rival -, como frequenta a
casa do patrão, é verdade que a senhora Walter e Du Roy não se
falam?
- É verdade. A mãe não lhe queria dar a pequena; mas Du Roy
tinha o pai nas mãos por causa dos cadáveres descobertos,
segundo parece, e que foram enterrados em Marrocos. Ameaçou,
portanto, o velho, com revelações tremendas. Walter lembrou-se
do exemplo de Laroche-Mathieu e cedeu imediatamente. A mãe,
contudo, teimosa como todas as mulheres, jurou que nunca mais
dirigiria a palavra ao futuro genro. São muito bem apanhados
quando estão em presença um do outro. Ela tem o ar de uma
estátua da Vingança e ele fica muito comprometido, embora
procure disfarçar, pois é dos que se sabem governar, esse
menino!
Apareciam confrades a apertar-lhes as mãos. Ouviam-se
fragmentos de conversas políticas. Vago como o murmúrio
longínquo do mar, o marulhar do povo comprimido diante da
igreja entrava pelo pórtico com o sol e subia até à cúpula
dominando a agitação, mais discreta, do público de escol que
enchia o templo.
Subitamente, o bedel bateu três vezes no pavimento com a sua
alabarda. Toda a assistência se voltou com um longo roçagar de
sedas e um arrastar de cadeiras. A noiva apareceu, então, pelo
braço de seu pai, aureolada pela luz viva do pórtico. Tinha o
ar de um encantador brinquedo, toda de branco e coroada por
flores de laranjeira.
Parou alguns momentos no limiar e, quando deu o primeiro
passo na nave, os órgãos soltaram um grito álacre com as suas
vibrantes vozes metálicas a anunciar a entrada da noiva.
A jovem caminhava, de cabeça baixa, mas nada tímida,
vagamente comovida, gentil, encantadora, uma miniatura de
noiva. As senhoras sorriam e ciciavam ao vê-la passar;
312
os homens murmuravam: "Encantadora! Adorável!" O senhor Walter
caminhava com um exagerado ar de dignidade, um tanto pálido e
com os óculos encavalitados no nariz.
Atrás deles, quatro damas de honor, todas vestidas de
cor-de-rosa, e muito bonitas as quatro, formavam uma espécie
de corte àquela rainha de um dia. Quatro pajens, bem
escolhidos, conformes com o modelo estabelecido, andavam com
passo mesurado que parecia regido por um mestre-de-dança.
Seguia-os a senhora Walter, que dava o braço ao pai do outro
genro, o marquês de Latour-Yvelin, que tinha setenta e dois
anos. Na verdade, não caminhava, arrastava-se, prestes a
desmaiar a cada movimento que fazia. Sentia que os seus pés se
colavam às lajes, que as pernas se recusavam a ir para a
frente, e o seu coração batia-lhe no peito como um animal
ansioso por se evadir.
Virgínia Walter emagrecera. O seu cabelo branco tornava
ainda mais pálido e mais cavado o seu rosto. Olhava a direito
na sua frente, para não ver ninguém, para só pensar, talvez,
naquilo que a torturava.
Depois, apareceu Jorge du Roy, acompanhado por uma senhora
de idade, desconhecida. De cabeça erguida, sem mover os seus
olhos fixos, duros, sob as sobrancelhas um tanto franzidas. O
bigode parecia irritado por cima do lábio. Achavam-no um
bonito rapaz. Tinha uma atitude altiva, a cintura fina, a
perna esguia. Na botoeira da casaca sobressaía, como uma gota
de sangue, a fitinha vermelha da Legião de Honra.
A seguir, vinham os outros parentes. Rosa dava o braço ao
senador Rissolin. Estava casada havia seis semanas e seu
marido dava o braço à viscondessa de Percemur.
Finalmente, era a procissão variegada dos amigos ou aliados
de Du Roy, por ele apresentados à sua nova família, pessoas
conhecidas do mundanismo parisiense, que se tornam
imediatamente íntimas e, quando é preciso, primos afastados da
gente rica acabada de fazer fortuna, fidalgos decadentes,
arruinados, tarados e, por vezes, casados, o que ainda é pior.
Eram o senhor de Belvigne, o marquês de Banjolin, o conde e
a condessa de Renevel, o duque de Ramorano, o príncipe de
Kravalow, o cavaleiro de Valréali.
313
Depois, eram os convidados de Walter, o príncipe de Guerche, o
duque e a duquesa de Ferracine, a bela marquesa de Dunes, etc.
Alguns parentes da senhora Walter tinham um ar de gente
importante da província no meio daquele desfile.
Os órgãos continuavam a soar e espalhavam pelo enorme
monumento os acentos, sonoros e rítmicos, das suas gargantas
brilhantes, que gritavam ao céu a alegria e a dor dos homens.
Fecharam os grandes batentes do pórtico e, subitamente, reinou
a sombra como se o sol tivesse sido posto na rua.
Jorge ajoelhara-se ao lado de sua mulher, na capela-mor, em
face do altar iluminado. O novo bispo de Tânger, de mitra e
báculo, saiu da sacristia para os unir em nome do Eterno. Fez
as perguntas do estilo, trocou as alianças, proferiu as
palavras que ligam como cadeias e dirigiu aos nubentes uma
alocução cristã. Falou, longamente, da fidelidade matrimonial
em termos pomposos. Era um homem gordo, de alta estatura, um
destes bons prelados para os quais o ventre é um sinal de
majestade.
Um ruído de soluços fez voltar algumas cabeças. Era a
senhora Walter que chorava com o rosto oculto nas mãos. Tivera
de ceder. Que poderia fazer? Desde o dia em que expulsara do
seu quarto a filha a quem se recusara a beijar quando
regressou, desde que tinha dito, em voz baixa, a Du Roy, que a
cumprimentara cerimoniosamente: "É o ser mais vil que conheço;
não me fale jamais, pois não Lhe responderei!", sofria de uma
intolerável e inextinguível tortura.
Odiava a filha com um ódio implacável, feito de paixão
exasperada e de ciúme dilacerante, estranho ciúme de mãe e de
amante, inconfessável, feroz, ardente como uma chaga viva.
Via, naquele momento, um bispo a casar a sua filha com o seu
amante, numa igreja, perante duas mil pessoas e diante dela!
Não podia dizer nada? Não podia impedir aquilo? Não podia
gritar: "Mas esse homem é meu, é o meu amante. Essa união que
abençoam é infame!" Muitas senhoras, enternecidas, murmuravam:
- "Como a pobre mãe está comovida!"
O bispo declamava:
- Encontram-se entre os felizes da terra, no meio dos mais
ricos e mais respeitáveis. O senhor, a quem o talento eleva
acima dos outros, que escreve, que ensina, que aconselha,
314
que dirige o povo, tem uma bela missão a desempenhar, um belo
exemplo a dar...
Du Roy ouvia-o, impante de orgulho. Um prelado da Igreja
romana falava-lhe assim, a ele! Sentia, atrás de si uma
multidão ilustre, vinda ali por sua causa. Parecia-lhe que uma
força o impelia, o elevava. Tornava-se um dos senhores da
terra, ele, filho de dois pobres camponeses de Canteleu!
Viu-os, subitamente, na sua humilde venda no alto da colina,
por cima do grande vale de Ruão, seu pai e sua mãe a darem de
beber aos labregos da aldeia. Enviara-lhes cinco mil francos
quando herdara do conde de Vaudrec. Iria mandar-lhes agora
cinquenta mil, para comprarem uma terrinha e ficariam
contentes, felizes.
O bispo terminara a sua arenga. Um padre, com a estola
bordada a ouro, subira ao altar e os órgãos recomeçaram a
celebrar a glória dos novos esposos. Ora lançavam clamores
prolongados, enormes, inchados como vagas, tão sonoras e tão
potentes que parecia quererem erguer e fazer explodir a
abóbada, para se espalharem pelo céu azul.
O seu ruído vibrante enchia toda a igreja, fazia vibrar a
carne e as almas. Depois, subitamente, acalmavam-se e notas
finas, ligeiras, corriam pelo ar, afloravam os ouvidos como
sopros suaves. Eram cânticos graciosos, miudinhos,
saltitantes, que esvoaçavam como pássaros. De repente, essa
música graciosa avolumava de novo, tornava-se terrível de
força e amplitude, como se um grão de areia se transformasse
num mundo.
Em seguida, vozes humanas soaram e passaram por cima das
cabeças inclinadas. Eram Vari e Landeck, da ópera, que
cantavam. O incenso espalhava um odor fino de benjoim e no
altar consumava-se o sacrifício divino: o Homem-Deus, ao apelo
do levita, descia à terra para consagrar o triunfo do barão
Jorge du Roy.
Bel-Ami, de joelhos, ao lado de Susana, baixara a fronte.
Sentia-se naquele momento quase crente, quase religioso, cheio
de reconhecimento para a divindade que assim o favorecera
tanto, que o tratava com tantas atenções. Sem saber ao certo a
quem se dirigia, agradecia-Lhe todos os seus triunfos.
Quando a cerimónia terminou levantou-se e, dando o braço a
sua mulher, Jorge dirigiu-se para a sacristia.
315
Começou então o interminável desfile da assistência. Jorge,
delirante de alegria, julgava-se um rei a quem o seu povo ia
aclamar. Apertava as mãos, balbuciava palavras que não
significavam nada, respondia aos cumprimentos: "Muito
obrigado."
De súbito, descobriu a senhora de Marelle e a recordação de
todos os beijos que lhe dera e ela retribuíra, a lembrança de
todas as suas carícias, das suas gentilezas, o som da sua voz,
o gosto da sua boca, fizeram-Lhe passar pelo sangue o desejo
brusco de voltar a possuí-la. Estava muito bonita, elegante,
com o seu ar agarotado, os seus olhos vivos. Jorge pensava:
"Que excelente amante, apesar de tudo."
Clotilde aproximou-se, um tanto tímida, um tanto inquieta, e
estendeu-Lhe a mão, que Jorge recebeu na sua e reteve. Então,
sentiu o apelo discreto daqueles dedos de mulher, a doce
pressão que perdoa e recomeça. Ele próprio apertou essa mão
minúscula, como para lhe dizer: "Gosto de ti sempre; sou teu!"
Os olhos de ambos encontraram-se, sorridentes, brilhantes,
cheios de ternura. Clotilde murmurou com a sua voz deliciosa:
- Até breve, meu caro senhor.
- Até breve, minha senhora! - respondeu Jorge, alegremente.
Clotilde afastou-se porque outras pessoas empurravam. A
multidão fluía diante dele como um rio. Por fim, começou a
rarear. Os últimos assistentes partiram. Jorge voltou a dar o
braço a Susana para atravessarem a igreja. O templo estava
ainda cheio de gente, pois todos tinham ido reocupar os seus
lugares, para os verem passar juntos.
Du Roy caminhava lentamente, com passo calmo, os olhos fixos
na grande abertura luminosa da porta. Sentia percorrerem-lhe a
pele longos frémitos, os arrepios que dão as grandes alegrias.
Não via ninguém. Só pensava em si. Quando chegou ao limiar,
descobriu a multidão comprimida, uma multidão escura, ruidosa,
que fora ali para o ver, a ele, Jorge du Roy! O povo de Paris
contemplava-o e invejava-o.
Depois, ao erguer os olhos, descobriu ao fundo, para lá da
Praça da Concórdia, a Câmara dos Deputados. Parecia-lhe ir dar
um salto do pórtico da Madalena ao do Palácio Burbom.
316
Desceu com lentidão os degraus do alto adro, entre alas de
espectadores. Não os via, porém. O seu pensamento voltava ao
passado e, ante os seus olhos, deslumbrados pelo sol
chamejante, flutuava a imagem da senhora de Marelle, a
reajustar, em frente do espelho, os seus caracolinhos das
fontes, sempre desmanchados ao levantar-se da cama.
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
GUY DE MAUPASSANT nasceu no castelo de Miromesmil, perto
de Dieppe, em 1850. Cresceu na Normandia e na sua infância
conheceu Flaubert. Depois de terminar os estudos secundários,
partiu para Paris para cursar Direito, mas na capital foi
surpreendido pela eclosão da guerra franco-prussiana e foi
mobilizado. Maupassant trabalha durante mais de oito anos como
funcionário público primeiro no Ministério da Marinha e depois
no da Instrução Pública (1872-1880). Sob a direcção do
exigente Flaubert (em cuja casa conhece Edmont de Goncours e
Zola), aprende a observar e a escrever. Aos 30 anos, publica
Bola de Sebo, que integraria a colectânea Les Soirées de
Médarz. Este livro de grande sucesso constituiu uma espécie de
manifesto do naturalismo emergente. Maupassant deixa o
ministério e dedica-se exclusivamente à escrita,
principalmente aos contos, compilados em livro: O Bordel
(1881), Mademoiselle Fifi (1882), Les Contes de la Bécasse
(1883). Em 1883 publica o seu primeiro romance, Uma Vida.
Entretanto, inicia as suas viagens e visita a Córsega e a
Argélia (crónicas Au Soleil, 1884).
Apesar das doenças que começam a afectá-lo, em 1885 publica
o seu segundo grande romance, Bel-Ami.
Em 1891 sofre um esgotamento nervoso e faz uma tentativa de
suicídio, a que se seguiu uma demência progressiva. Internado
na famosa clínica do doutor Blanche, em Neully, viria a
falecer ali um mês antes de completar 43 anos, a 6 de Julho de
1893.
Outras obras importantes:
Contos e novelas:
A Casa Tellier (1881),
Les Soeurs Rondoli (1884),
Yvette (1885),
Contes de Jour et de la Nuit (1885),
O Senhor Parente (1886),
O Horla (1887).
Romances:
Miss Harriet (1884),
Mont Oriol (1887),
Pedro e João (1888),
Forte como a Morte (1890),
O Nosso Coração (1890).
Scannerização e Arranjo
Amadora, Setembro de 2000
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Edgar Madruga
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De: Poente lunar
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