MARINA COLASANTI
UM ESPINHO
DE MARFIM
E outras histórias
L & PM POCKET
1999
Apresentação
Os leitores acostumados, desde a infância, ao convívio com
lendas e histórias fantásticas, situadas em castelos e mundos
habitados por reis e princesas, leões e pombos, serpentes,
príncipes e unicórnios irão rever, nos textos de Marina
Colasanti, o mágico faz-de-conta dessas lembranças.
E como o gostar, quase sempre, deriva do conhecimento,
irão percorrer o velho e o novo guiados por um olhar que
incide, epifanicamente, no feminino. Princesa, rosa, sereia;
tecelã, rainha, prostituta; aldeã, esposa, mãe ou amante, a
mulher é o centro de uma cosmogonia. Os papéis que
desempenha e os espaços sociais que ocupa revelam uma
visão quase essencialista do gênero.
E preciso, porém, registrar que o feminino é, para a
escritora, mais do que tema ou assunto literário. Sensível às
diferenças femininas, sua voz adere à linguagem do texto, do
que resulta o caráter lírico de algumas narrativas.
Consciente de que ser mulher independe do espaço e
sobrepõe-se à lógica, Marina Colasanti recupera, a seu modo,
uma memória lúdica, que confunde o real e o imaginário,
épocas e culturas. Desse modo, as areias do deserto, com
suas dunas, e o parque de diversões do subúrbio, onde a
pequena, de dentes cariados, deseja ardentemente entrar na
bolha, são particularizações de um mesmo universo:
côncavo, feito para cercar e acolher, macio, feminino. E
solitário.
Retratando "cenas da vida privada", a autora trata de
questões substantivas, como o amor e a morte, o
preconceito, o desafio, a competência, a maternidade. Disso
resulta um ótimo nível de generalização que transforma cada
história individual na História Geral de todas as mulheres.
Léa Masina
Índice
Como uma rainha de Micenas
A moça tecelã
Para sentir seu leve peso
O passarinho
Menina de vermelho a caminho da Lua
No silêncio que o sol queima
Uma história de amor
No dorso da funda duna
Desertificação
O camelo
Um espinho de marfim
De água nem tão doce
Porém igualmente
Maria Maria
Anjo da guarda
A busca da razão
Entre a espada e a rosa
Canção para Hua Mu-Lan
Verdadeira história de um amor ardente
Nunca descuidando do dever
Na estréia
Amor e morte na página dezessete
O tigre
História mais longa para quebrar o ritmo
Onde os oceanos se encontram
A paixão da sua vida
Para que ninguém a quisesse
A raposa
Bela das brancas mãos
Porque era frio nas horas mais ardentes
Na lua cheia talvez
No aconchego da grande mãe
Não há nada no bosque
Uma vida ao lado
Um cantar de mar e vento
Meiose
Sem asas, porém
Por preço de ocasião
Bela como uma paisagem
Longe como o meu querer
Fundações
Entre leão e unicórnio
Semelhança
Além do muro, os coiotes
Hidra
Vídeo e áudio
Debaixo da pele, a lua
Os sentidos
Uma engrenagem
Luz de lanterna sopro de vento
Sem novidades do front
Tentando se segurar numa alça lilás
A mulher ramada
Uma vez por semana, no crepúsculo
Apoiando-se no espaço vazio
Terceiro diedro
Como um colar
Um tigre de papel
Como uma rainha de Micenas
Tendo falecido a esposa muito amada, desejou que partisse
para a última viagem com o fausto de uma rainha. Rodeou-
lhe o pescoço de gargantilhas e colares que desciam sobre o
peito ocultando as vestes. Encheu-lhe de anéis os dedos que
não mais dobrariam falanges. E brincos, pulseiras, enfeites
cobriram aquele corpo agora mais resplandecente do que em
vida. Depois, para que nada lhe faltasse na longa travessia,
depositou ao seu redor jarros, pratos, taças, talheres do mais
puro ouro, sem esquecer pentes e um espelho para a sua
vaidade.
A idéia de apartar-se da esposa para sempre era-lhe, porém,
insuportável. Querendo-a pelo menos ao alcance da sua
saudade, mandou construir no canto mais frondoso do
jardim uma capela, em cuja cripta de pórfiro abrigou o
esquife, separado dele apenas por um portãozinho de ferro
batido.
E, disposto a enfrentar o luto interminável, começou o
aprendizado de uma nova vida em que a voz amada não
ecoaria.
Talvez justamente devido a esse silêncio, cedo surpreendeu-
se com a rapidez com que aprendia.
A vida parecia-lhe de fato mais nova a cada dia. Nem bem
um ano tinha-se esgotado, quando lhe ocorreu que, como
ele tanto havia avançado, também a esposa teria a essa altura
cumprido parte de sua viagem. Pelo que já não lhe seriam
necessárias algumas das coisas que consigo levara para uso
simbólico. Em ranger de ferros, entrou na cripta e
selecionou uns poucos pratos, um frasco, sem dúvida
devidamente usados no além.
Desse modo, foi sucessivamente recolhendo os objetos de
ouro que, gastos pela defunta e já sem serventia para ela,
afiguravam-se como muito proveitosos para si. Um garfo
hoje, uma taça amanhã, um pente agora, um jarro depois,
acabou enfim chegando às jóias pessoais.
Na semi-escuridão da cripta, pulseiras e adereços brilhavam
frouxamente, folgados os anéis nos dedos descarnados,
pousada ainda a tiara sobre a fronte. Jóias demais, pensou ele
contrito. Sem dúvida, nada condizentes com uma mulher
que, onde quer que se encontrasse, estaria entrando na
velhice. Assim pensando, retirou as mais pesadas. Voltando
tempos depois para buscar as menos comprometedoras. E
por último as insignificantes. Até chegar ao despojamento
total.
No esquife, agora, restava apenas o espelho de ouro. Mas de
que serve um espelho para uma mulher simples e velha, já
despida de vaidades?, perguntou-se.
Tendo pronta a resposta, pegou o espelho pelo cabo, e saiu
sem fechar o portão atrás de si.
A moça tecelã
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando
atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz,
que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora
a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora,
em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a
moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do
algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas
nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos
rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha
cumprimentá-la à janela.
Mas, se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com
as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer
com seus belos fios dourados para que o sol voltasse a
acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo
os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça
passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com
cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa,
pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de
leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar
seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas, tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que
se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria
bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta
uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete
as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu
desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado,
corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente
acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos,
quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta,
tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.
Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou
nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua
felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha
pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o
poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas
todas que ele poderia lhe dar.
- Uma casa melhor é necessária - disse para a mulher. E
parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as
mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e
pressa para a casa acontecer.
Mas, pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
- Para que ter casa, se podemos ter palácio? - perguntou. Sem
querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra
com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos
e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá
fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite
chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e
entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes
acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E, entre tantos cômodos, o
marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da
mais alta torre.
- E para que ninguém saiba do tapete - disse. E, antes de
trancar a porta a chave, advertiu:
- Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido,
enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas
de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que
queria fazer.
E, tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza
lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros.
E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de
novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido
dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para
não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se
ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a
lançadeira ao contrário e, jogando-a veloz de um lado para o
outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos,
as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os
criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E
novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim
além da janela.
A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura,
acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se
levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele
viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o
nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o
emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu
uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios,
delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do
horizonte.
Para sentir seu leve peso
Guardava o rouxinol numa caixinha. Tudo o que queria era
andar com o rouxinol empoleirado no dedo. Mas, se abrisse
a caixinha, ah! certamente fugiria.
Então amorosamente cortou o dedo. E, através de uma
mínima fresta, o enfiou na caixinha.
O passarinho
Começou dizendo que tinha um passarinho na cabeça.
Queixava-se.
O passarinho batia asas, a cabeça doía. Ninguém lhe deu
atenção.
Parou até de se queixar. Gemia, conversava com o
passarinho que a habitava. Morreu sufocada, o nariz
entupido de alpiste.
Menina de vermelho a caminho da Lua
Esta é uma história que não quero contar, uma pequena
história sem fatos, espessa como um mênstruo, que não
pretendo assumir. Tentei livrar-me dela, afundá-la e ao fastio
que me causa. Não consegui. Desnecessária como é, ainda
assim insiste em existir. Foi por isso que botei um anúncio
no jornal. Dizia: "Procura-se narrador. Exigem-se modéstia e
prazer descritivo. Pagamento a combinar. Procurar...
endereço... etcétera".
Só um apresentou-se. Teria preferido, me caberia melhor,
fosse mulher. Mas não tive escolha, fiquei com ele. Homem
e um pouco inexperiente, me vi obrigada a insistir na minha
vontade, concisão de estilo e docilidade nos ramos. E a
vesti-lo com nova roupagem. É assim, pois, de saia rosa e
lenço nos cabelos, que o apresento: mãe de duas filhas
pequenas que pouco irão agir, levando-as para brincar num
parquinho de diversões, sábado à tarde, naquela exata tarde,
naquele exato momento em que a história quer acontecer, e
onde ele se torna, por contrato e escolha, seu responsável.
O parque, instruo meu sócio, é pequeno, nem se poderia a
rigor chamá-lo de diversões, porque lhe faltam cores e
aquela mínima alegria necessária ao divertir. Tem poucos
jogos. Um carrossel movido a hélice, espécie de ventilador
gigante instalado ao alto em armação precária. E a grande
bolha de plástico. Não quero que descreva como a
luminosidade batia, se de chapa ou de lado, e não precisa
perder-se em considerações românticas sobre a decadência
dos parques. Quero apenas que dê a entender, através da
hélice, talvez, a pobreza algo sórdida do lugar. E, por favor,
não comece com referências temporais.
"Pena ter vindo de sandálias de salto alto, pensei sentindo a
poeira infiltrar-se entre os dedos, viscosa pasta de suor sobre
a sola. E inutilmente sacudi o pé. As meninas corriam
adiante, indecisas entre os brinquedos, prontas para pedir
um e outro, excitadas com a possibilidade de ganhar mais do
que o previsto. Não havia muito na verdade. No espaço
espremido entre dois muros, terreno baldio que aos cantos
abrigava capim e cheiro de urina, girava um carrossel sem
cavalos, tocando a hélice assentos de caixote. Canoas,
pêndulo de correntes, cortavam o ar em foice. No stand de
tiro, os alvos picotados lembravam fome de ratos. E, ao
redor de um cercado, caniços com barbante esperavam pes-
cadores da sorte para fisgar chaveiros e canecas de plástico.
Ao fundo, porém, a grande bolha inflada era atração que
valia seus três reais."
Não valorize demais a bolha. Ela é velha e suja como tudo
mais ali, visivelmente comprada já gasta, de outro parque
maior. E cuidado com os lugares-comuns, "cortar o ar" não é
bom, você poderia ter usado uma forma mais nova. Nem
precisa de tanta delicadeza. E melhor dizer mijo do que
urina, sobretudo nesta história. Mas vamos em frente. Você,
a mãe, quer pagar para que as filhas possam entrar na bolha e
pular, é para isso que a bolha serve. Procura, não vê
bilheteria, chama, bate palmas. Vem um homem. Eu sei que
você gostaria de descrevê-lo, um velho, ou um homem
assim e assado, de olhar meio enviesado, e baixinho. Mas eu
não quero. Por enquanto permito apenas que diga que tinha
as calças amarradas de corda. E o quanto basta.
"Branca e amarela, com visores transparentes. Ou sujamente
branca, com remendos. Assim seria a superfície lunar,
imenso colchão inflado onde a perna afunda, debaixo da
redoma de uma bolha. Porque assim estava escrito: 'Pise na
Lua por R$ 3,00'. E eu, querendo pagar a viagem das minhas
duas astronautas, procurei a bilheteria, falso quiosque em
meio àquele nada, e não encontrando ninguém voltei
tentando atrair a atenção pela simples presença. Havia tão
pouca gente no parque. Pensei em chamar, bater palmas,
mas constrangida com a idéia do meu próprio alarido fiquei
ali parada junto às meninas, olhando em volta com ar que
pretendia autoritário, mas que sabia apenas desamparado.
Seria do parque o homem que vinha sem me olhar, mais
preocupado em segurar as calças?"
Não sei por que você omitiu o detalhe da corda. É forte,
marca bem a personagem. Esse seu "segurar as calças" diz
pouco, dilui. E não se alongue tanto. O leitor quer clima,
pressão. Esqueça as descrições. Vamos, agora ponha suas
filhas na bolha.
"Cabeça enviesada como um ovo no ninho dos ombros,
recebeu meu dinheiro sem sorrir. E empurrando um
plástico..." Pára, pára. Não quero ele sério. De jeito nenhum.
Troque isso. E fundamental. O homem sorri, ri
estranhamente o tempo todo, de uma forma adulcorada. E
diz coisas que você não entende. Tem um ar maligno,
matreiro, ou talvez servil, escolha você a palavra melhor,
mas sorri sempre, com falsa bonomia. "Cabeça enviesada
como um ovo no ninho dos ombros, estendeu a mão
sorrindo em busca do dinheiro. Levantou um plástico mais
solto, branca língua sobreposta, e forçando com os braços
abriu o talho da bolha."
"Bufido, siroco pesado de suor. Este era o hálito da Lua.
Escapava pelos lábios exangues da fenda, encobria em uivo
as palavras que o homem dizia gesticulando, expondo a
boca, nariz encrespado. Queria as horas? Apontei para o
relógio. E estava aos berros tentando responder naquele cor-
redor de vento, quando a mão, seca, agarrou de repente o
braço da minha menina." Muito bem, gostei dessa mão
introduzindo o desejo. Só não sei o que você vai fazer com
ela, o que ela pretende. Resolva, mas lembre-se de que suas
filhas não são personagens.
"Menina que já entrava. E puxando-a de volta deslizou para a
perna, fechou-se no joelho, a outra mão já pronta em garra
alcançando o tornozelo. "É para tirar os sapatos - ouvi enfim
enquanto ele desafivelava as sandálias, e empurrando a
pequena para dentro vedava talho e vento - só pode entrar
descalça, senão rasga o plástico."
Ótimo, as duas estão afinal brincando, isoladas na bolha,
seguras. Pode deixá-las lá, por enquanto. Não vamos precisar
delas. Mas, atenção, você não tinha reparado, a teu lado,
olhando pelo visor as tuas filhas que pulam, está uma
menina. De vermelho, um tom carmim, vestida com uma
malha, descalça. E dentes cariados. Tem 10 anos. Cuidado
com essa idade, porque o olhar dela tem mais. Pequenos
seios. Ela quer entrar na bolha. Quer muito. E não tem
dinheiro. Mas quer, e vai ter que pagar de outro jeito. Ela
sabe disso. Você, não.
"Rolam, afundam rindo as duas na pouca gravidade do
colchão ondeante, braços abertos, passos embriagados, gritos
presos em curva na redoma. Mas não sou só eu, mãos
espalmadas sobre o visor fosco, que acompanho a viagem
das meninas. A meu lado ela também olha gulosa."
"Já estava no parque quando cheguei, figurinha vermelha
brincando com outras crianças nas canoas volantes. Dez
anos talvez, de longe mais. O carmim do batom pesa nos
lábios, mas os seios ainda não são seios, e a cintura no alto
espera crescimentos. Por que tem uma máscara vermelha
levantada sobre a testa, se o carnaval já passou? A tela
encerada, recortada em folhas, esmaga mechas úmidas, e
como uma borboleta pousada ao acaso se contrapõe ao
rasgado dos olhos. Não parece sentir frio, exposta na malha
curta. Olha levantada sobre a ponta dos pés, o corpo todo
encostado à superfície curva, as coxas nuas coladas contra a
bolha, enquanto a boca se abre amolecida de vontade."
Está ali ao teu lado, e vocês duas não têm nada a ver uma
com a outra. Mas é uma criança. Não esqueça disso, ela vai
ser criança o tempo todo, apesar do que vier a acontecer. E
como criança se aproxima da mãe que você é, procura apoio,
ou quem sabe, uma possibilidade de conseguir dinheiro.
"Uma menina, como as minhas. Que me olha e sorri corada,
ou maquilada? dizendo pequenas coisas sem peso, coisas a
que respondo mais com a atenção do que com palavras,
porque não temos muito a nos dizer. Uma menina que não é
minha, e que logo abandono à carência de assunto, caladas
as duas, prolongando o sorriso e desviando aos poucos a
cabeça, fingindo que já não nos olhamos mais." Você não a
olha diretamente para não se envolver, para não ter que
incluí-la no teu sábado, elemento estranho, fora das
previsões. Mas também não a larga. Debruçada sobre a
esquina do teu próprio olho, sorrateira e voraz, você a
acompanha sorvendo aos poucos, em lento entendimento, a
metamorfose sem saltos em que um novo jogo se inicia.
Comece a movimentá-la. Afaste-a, traga-a de volta. Não a
deixe ficar parada. Menina, ela vai ao espaço do parque, ao
encontro dos brinquedos. Mulher, vem para junto do seu
desejo, forjando a chave que irá satisfazê-lo.
"Eu a vejo, porém, quando esquecida da bolha corre breve.
Vai ao carrossel, que gira sem crianças. E não podendo
entrar o acompanha por fora, mão encostada apenas no
rendado da cerca, rosto erguido em perfil. Os pés em trote,
volteia lentamente ao compasso gritante, cavalinho mais
gracioso do que aqueles enfeitados de espelhos, que o
carrossel já teve em dias melhores. Mas não demora muito.
Seu corpo tem urgências, tempos mais rápidos que o um-
dois-três da valsa. Corre, debanda, sacode a leve crina. E,
olhando a Lua de longe, se abaixa, cata uma tala de pau
esquecida e a atira com violência contra o muro." Isso, ela
está mordendo o freio. O corpo dela relincha, se empina, se
estica. Ela galopa ao redor, preparando-se. E logo, abaixada a
cabeça, manso o passo, vem buscar sua grama mais verde. "E
a pressinto de volta, trazida devagar pelo desejo, chegando-
se em rodeios, como se por acaso. Pôs o rosto mais manso, o
olhar lavado, fez infantil o queixo."
"Vem ao visor primeiro. Como antes, levanta o corpo sobre
a curva dos pés, e só agora percebo que não é necessário,
baixo o olho transparente que devassa o interior da bolha.
Mas encostada assim, tão debruçada, não se interessa pelo
jogo infantil das duas meninas. Olha através, de lado, para o
homem." É a hora da primeira tentativa. Ela não tem muita
esperança de conseguir, mas vai tentar. E a maneira de testar
o velho, de dizer eu quero. Invente um diálogo. Breve,
porque não é com palavras que eles se entendem. Mas o
quanto baste para marcar o primeiro toque. "E logo, lenta,
fingindo indiferença, enroscando nas pernas cada avanço, se
aproxima da entrada. A mão se esgueira por baixo da língua
de plástico." Se esgueira não, se enfia, se mete, se introduz.
"A mão se enfia por baixo da língua de plástico, a coxa
avança devagar trazendo os quadris, o corpo todo força
disfarçado as beiras do talho, tentativa de varar."
"- Não pode - diz o homem em voz baixa, sem sair do lugar.
E ela se sobressalta estendendo-lhe um riso."
"- Só no próximo giro - diz ele, e mostra dentes. - Depois
das outras duas que estão lá dentro."
Tudo é muito tênue ainda, muito impreciso. E difícil ver
aquilo que, por proibido, se esconde. Mas aos poucos,
seduzida, você vê. Na maneira que eles têm de quase não se
olharem, no jeito espiralado dela, você vê. Seja bem claro
agora. Não é hora de ficar rebordando estilo. A coisa é
simples: um homem e uma menina enovelando um desejo.
Empine os dois, dê linha a eles. Têm bem com que se enro-
lar. Mas trabalhe mais a menina. Quero que seja ela a
primeira, a mais forte, a doce aranha.
"Vem a menina em passos lentos, fiando ao redor do
homem a seda com que prenderá seu olhar. Pára, estica uma
perna, arqueia a linha descalça do pé, e com unhas de
esmalte traça espirais na poeira do chão. Fincada como um
compasso, a outra perna é eixo do corpo macio. Não o
encara. Ajeita a máscara com dedos em ponta, afofa cachos
inexistentes. Depois, num repente, baixa a viseira rubra
sobre o rosto, e entre frestas conduz o brilho verde dos
olhos até cravar o alvo, atenção do homem que a ela se ata.
É agora, bem segura a ponta da meada, que ela desce o
queixo no peito marcando de leve um sorriso, e lentamente
começa a girar." Não, não era você que eu queria para contar
esta história. Quisesse assim tão delicada, eu mesma escrevia.
Procurei, porque precisava de alguém que quisesse
fermentar esterco, adubar um fato vil. E vem você aí com
essa tapeçaria medieval, se esgueirando entre palavras,
mascarando com imagens. E vergonha? E incompetência? O
que é isso que você tem? Um narrador profissional com
medo de uma menina. Mas a menina está seduzindo um
velho porque quer pisar na Lua. Vê se põe isso na tua
cabeça. E se passa isso para o texto. "Firme, desenhando seu
próprio movimento em vinco fundo no chão, roda sobre si
mesma e fecha o círculo. Até dar-lhe as costas."
"E de costas, empinados quadris, que espera a gula dele
depositar-se em visgo sobre as pernas. Não tem pressa.
Chupa o dedo, finge roer as unhas, quati de dentinhos
cariados. Deixa que ele lhe estude bem a pele, que afunde o
olhar na concha rosa, reverso do joelho, que suba denso,
palmilhando as coxas, que se embrenhe um instante. Só
então, súbita e recatada, puxa para baixo o cós vermelho da
malha, em defesa de pudores. E levantando a cabeça me
sorri, rostinho aberto."
Pronto, agora você pode ficar com vergonha. A mãe está
vendo, e não faz nada. Poderia chamar a menina, conversar,
pagar a entrada dela. Mas isso seria reconhecer que sabe o
que está se passando, que o tempo todo, enquanto ela se
jogava no perigo, você desenhava atenta aos detalhes, afiava
a ponta do seu lápis na linha dos olhos, na pose do pé, mais
interessada em roubar o fato do que em evitá-lo. Agora ela
sorri para você, bem criança. Não quer te agradar. Quer teu
álibi. Sorrindo de volta você está assinando seu atestado de
inocência, afirmando que sim, ela é uma criança igual às
outras, uma boa menina que merece teu carinho. E nada do
que você viu aconteceu. E você, sem forças, sorri. "Uma
menina como as minhas, brincando sábado à tarde no
parque de diversões. Uma menina de coxas gordas que pede
o meu sorriso. É isso que estou vendo, só isso. Não há por
que esta secura na boca, este anotar." Ela não está com se-
cura. Está úmida, seivando secreta ao sol do parque, presa
com o homem na teia viscosa. Sua nas axilas. Ponha isso,
esta palavra axilas, não, melhor, sovacos, que você odeia
ainda mais, que acha tão óbvia. Eu sei que você não quer
escrever como eu mando, que já se acha dono da história.
Mas o fato, quem tem o fato sou eu. E sem mim você não
tem nada para contar, sem mim, você não existe. "Este
anotar desenhado de máscaras e pés. Nada, não há nada
sobre o que fantasiar. Nenhum gesto concreto. Só uma
malha vermelha esticada de leve sobre seios, e duas flores de
pano amarradas ao pulso com uma fita. Pulso que o homem
agora segura, sem forçar, firme apenas, debruçando-se sobre
o ouvido encoberto pelas mechas. E que ela lhe entrega,
dócil por momentos, logo puxando o braço e o corpo em
riso de recusa, sacudindo do ouvido as suas palavras, mas
trazendo no gesto a mão escura que, rápida, se encaixa na
curva da cintura."
Leve ela embora, não a deixe ficar muito tempo junto dele.
E por etapas que se insinua, avançando um pouco mais a
cada vez, quase não concedendo, mas deixando crer. Ele
não. Fica parado. E o centro, o poder. Não se move, não se
apressa. Sabe que ela vai voltar até conseguir o que quer. E
tem seu preço.
"Um momento, e ela já se afasta dançante, coçando na nuca
o cabelo louro, vincado pela auréola do elástico. No stand de
tiro, o único cliente encostou a carabina, e concentra sua
atenção no alvo moreno da moça do parque, encarregada
das armas. É para lá que ela vai. Eu a olho quando se
aproxima, e agatanhada se dirige ao rapaz. Não sei o que se
dizem. Vejo que o rapaz a segura debaixo dos braços,
levantando-a devagar por trás. Até que ela, espremida entre
o corpo dele e o balcão, alcance a carabina, e encostando-a
no ombro possa dar seu tiro."
"Percebe o homem? Não parece. Sem virar a cabeça, sem
procurá-la no olhar, move seus passos achatados recebendo
dinheiro dos pais que aos poucos chegam, desafivela
sandálias sorrindo, bondoso porteiro daquela Lua que ela
quer acima de todos os brinquedos do parque, e que, ele
sabe, a trará de volta."
"De volta vem ela, cortando em diagonal a distância. Traz na
corrida outra menina, que a segue, que a segura um instante
e logo foge, perseguida também. Não vão longe. No espaço
junto à bolha, que agora com pais e crianças ficou
subitamente apertado, se procuram em voltas, se oferecem
torcendo o corpo para escapar à mão que avança, se tocam
entre gritos, tentando vencer na garantia do pique. E
esbarram, e tropeçam tumultuando a ordem da pequena fila
já formada, até que o homem abandona seu posto junto à
entrada, e exercendo publicamente seu papel de bom
guardião expulsa a brincadeira."
"Afasta-se a outra menina, enquanto ela, serena e quieta,
entra, como se de direito, entre as crianças descalças que,
bilhete na mão, esperam bem-comportadas a vez de
penetrar no cosmos. Não pede, não olha para ele. Balança de
leve a cabeça acompanhando a música do parque. Depois se
aquieta, a máscara vermelha já levantada em coroa. E
devagar, chamando por ele em silencioso silvo, o brilho da
língua descola os lábios, hesita no canto, e segue acariciante
lambendo restos de batom, passando, forçando, insistindo,
sugando em seu próprio sumo escamas de carmim."
"Esgotou-se o tempo lunar das minhas meninas, que paridas
entre ventos pelo talho vêm a mim afogueadas. Avança
ordenada a fila. Entre as outras crianças que, cabeça à frente,
mergulham no bafo quente, o homem deixará enfim que ela
entre. Mas será a última, retida até o fim, para que ele possa
meter o braço na fenda fingindo ajuda, e alcançá-la entre
plásticos. Depois deixará que pule seus vinte minutos no
macio da bolha, grito afogado, sem sequer olhar no visor."
Agora saia você do parque. Mãe de dever cumprido, a
caminho de casa, com as filhas pela mão. A menina vai
sozinha. Para ela também o sábado acabou. Voltará no
domingo, para colher mais onde plantou.
Acabou, se eu quiser. Agüentei até aqui calado, engolindo
teus desaforos. Mas o fim chegou, dono da história. E não é
mais uma história, é um conto. O que é que você tinha? Um
fato? Mas fato todo mundo tem, acontece a toda hora na
cara da gente. O que você não tem é voz para contar. E isso
quem tem sou eu. Está aí teu fato, como você viu ou
inventou. Mas agora é meu conto, história das minhas
palavras, que eu acabo como quiser.
"É tarde quando saio, levando minhas filhas pela mão. Ela
fica. Lá longe, na canoa que sobe esticando correntes, sua
figura vermelha sangra o ar."
No silêncio que o sol queima
No meio do trigal, pernas abertas, abrigava pássaros. Era
sempre assim. Com a chegada do verão sentia-se fértil,
ensolarada de desejo, mãe da terra.
E deitava-se entre as hastes rígidas, as espigas túrgidas, à
espera. Logo, pardais vinham aninhar-se entre suas coxas,
fazendo-a suspirar com a doce carícia das asas. Esmagava
entre os lábios pétalas de papoulas, e gemia. Fremir de
plumas, pequenos bicos, breves pios, delícias. E as línguas
do sol sobre seus seios.
Mas era só ao entardecer, quando o gavião em vôo
desenhava círculos de sombra sobre o ouro, lançando-se
como pedra entre suas carnes para colher o mais tonto dos
pardais, que as hastes estremeciam enfim, inclinando as
espigas ao supremo grito.
Uma história de amor
Ganhei a estola de peles viva. Como se traz para casa a
galinha cacarejante com as patas amarradas, assim meu
marido entrou com as duas martas. Em vão tentei enrodilhá-
las no pescoço para ver como ficariam depois. Eram ariscas.
Pude apenas constatar a boa qualidade do pêlo, lustroso,
farto, sem estragos. E trancá-las na gaiola.
Cevá-las, disse meu marido. Isso é preciso. Quero vê-las
bem gordas nos teus ombros fartos.
Pregou as patinhas no fundo de madeira cuidando de não
danificá-las. E começou a meter-lhes comida goela abaixo.
Comiam elas, comia eu. Quero te ver bem roliça, dizia, e me
enchia de bombons. Uma luz acesa impedia o sono das
martas. As noites de amor não me deixavam dormir.
Engordávamos. As grades da gaiola já vincavam os dorsos. A
cama fazia-se pequena. A primeira marta morreu. A outra
ocupou-lhe o espaço. Comida era tudo o que víamos. O
tempo servido em colheradas, arquejávamos. A segunda
marta morreu. Então meu marido aproximou-se luminoso de
paixão e, cuidando de não danificá-las, pregou minhas mãos
no fundo da cama.
No dorso da funda duna
O sol atravessava lentamente o céu. E abaixo dele, bem
abaixo, um emir com sua caravana atravessava o deserto. A
claridade era envolvente como um sono. Mas de repente,
pelas frestas dos olhos apertados, o emir viu a figura escura
de um homem recortar-se no dorso de uma duna. De um
homem e de uma cabra.
Que parasse a caravana, ordenou o emir. Um homem
sozinho no deserto é um homem morto.
- Mas não estou sozinho, nobre senhor - respondeu o
homem levado à presença do emir.
E este, tendo logo pensado que uma cabra não é companhia
suficiente em meio às areias, penitenciou-se no segredo da
sua mente. Certamente aquele era um homem santo que
vagava em penitência, e tinha a companhia da sua fé.
Assim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles. E,
diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns pães e
um odre de água. Em breve, a caravana partia.
O homem apertou as espirais do turbante, puxou uma ponta
do pano sobre a boca e, acompanhado pela cabra,
recomeçou a andar.
O sol tinha refeito seu percurso muitas vezes e estava do
outro lado da terra, quando um tropel de cavaleiros quase
pisoteou o homem que dormia com a cabeça encostada na
barriga da cabra. O primeiro cavaleiro puxou as rédeas,
saltou na areia. O homem acordou num susto. O tropel
parou.
- Um homem sozinho entre as dunas é um homem inútil -
disse o cavaleiro, que chefiava aqueles piratas do deserto. E o
convidou para que se juntasse ao bando.
Mas, quando o homem recusou a oferta, acrescentando que
certamente era um inútil embora não estivesse sozinho, o
chefe dos piratas achou que debochava dele, e mandou que
o surrassem. Sem demora e sem ruído, pois cascos não
ecoam na areia, o tropel partiu.
Os ferimentos da surra há muito haviam cicatrizado, no dia
em que uma caravana de peregrinos passou no seu caminho.
E, assim como ele a viu chegar com prazer, também os
peregrinos consideraram a presença daquele homem e
daquela cabra como um sinal propício, e decidiram acampar
ao seu lado no dorso da duna.
Armadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana
convidou o homem a comer. Os peregrinos sentaram-se ao
redor, a comida passou de mão em mão. Só quando ela
acabou, o velho perguntou ao homem o que estava fazendo
no deserto.
E o sol ainda não havia se posto, e a lua ainda não havia
surgido, quando o homem começou a contar.
Havia sido um homem próspero de uma próspera cidade,
uma cidade que com seus minaretes e muros surgia em meio
ao deserto. Marido de uma boa esposa, justo pai dos seus
filhos, tinha sempre grãos na despensa, e a figueira junto à
porta da sua casa a cada ano dava frutos. Um dia, chamado
pelos negócios, havia partido em longa viagem. E, ao
regressar, não mais havia encontrado sua cidade. Só depois
de muito indagar entendera que o deserto, soprado pelo
vento, havia passado por cima dos muros, engolindo os
minaretes, as casas e a figueira. Toda a sua vida estava
debaixo da areia. Mas onde, na areia? E havia começado a
procurar.
- É por isso que até hoje anda no deserto? - perguntou o
velho chefe da caravana.
Os dentes do homem brilharam à luz da lua que já se havia
levantado.
- Ando porque ainda sou morador da minha cidade -
respondeu. Inclinou-se, encostou o ouvido na areia,
quedou-se atento por alguns minutos. - Há muito os
encontrei - disse, erguendo-se.
Sorriu novamente. No ventre daquela duna, debaixo da
caravana acampada, estavam os minaretes, as casas, a
figueira. Estavam seus filhos e sua mulher. E ele podia ouvi-
los a distância. Através da areia que os separava, podia ouvir
os gritos dos pregões, as preces dos muezins, o riso da mu-
lher e das crianças que certamente agora haviam crescido.
- Caminho para isso. Para estar sempre acima deles. Para
escutar sua vida. - As dunas - acrescentou - vagueiam pelo
deserto. E eu vou, acompanhando a minha.
Pouco faltava para a manhã. Ao alvorecer, os peregrinos
partiram. Mas o vento tinha ouvido o relato do homem. E a
próxima caravana que por ali passou já não o encontrou. A
duna soprada grão a grão havia eriçado sua crista, cobrindo o
homem e sua cabra como antes cobrira muros e minaretes.
E abrindo caminho para eles, lentamente, até seu ventre.
Desertificação
O deserto começou a infiltrar-se na casa por baixo da porta,
areia tangida por invisível sopro. Abriram, espiaram o
elevador, examinaram as escadas. Nada. Nem areia nem
vento. Em casa, porta fechada, halitava o siroco.
Abrasiva debaixo dos pés, suave concha nos cantos, a areia
acumulava-se. Desapareceram as flores do tapete, secaram as
folhagens do sofá. Quando o deserto sufocou os pássaros da
tapeçaria, nenhum verde restava na sala. Sem chuva, breve
morreria também o oásis do quarto.
Formada a primeira duna, o pai trouxe a cabra e o cabritinho
amarrados de corda. Garantiriam o leite. A mãe, arrancando
cortinas, providenciou panos, folgadas roupas, turbantes que
protegiam a cabeça e a boca. Os olhos, na claridade,
trabalhavam para descobrir entre frestas algum alimento para
as cabras. E à noite acendiam em fogueiras o que restava dos
móveis.
Mas logo a duna começou a mover-se. Desfaziam-se as
ondas do cimo para ondularem mais adiante. Era hora de
partir. Desmontaram a tenda, amarraram as cabras, ergueram
nos ombros os odres de leite. E em fila pelo corredor
seguiram a maré da duna. Acampariam onde ela parasse.
Tornariam a partir com ela, viajantes no ritmo de luas e sóis.
Assim para sempre, acompanhados pelo balido das cabras e
pela urgência do vento, vida nômade que apenas começava.
O camelo
Não esperava encontrar o camelo. Embora meu closet não
tenha portas, eu não o tinha visto entrar. Pastava os suéteres.
Compreendi a necessidade de lã. Mas o diálogo era difícil
com ele assim metido no espaço estreito, voltando-me o
posterior. Subi num banco, galguei-lhe as costas. E
escorregando pela suave geografia encontrei-me no
aconchego das corcovas. O camelo pastava na escuridão
felpuda, o dorso ruminava entre minhas pernas. Eu toda
envolta por peles e pêlos, gordura macia, resvalei em tal
beatitude que, abocanhando um chumaço de pêlos do
camelo, pus-me a ruminar docemente.
Um espinho de marfim
Amanhecia o sol e lá estava o unicórnio pastando no jardim
da Princesa. Por entre flores olhava a janela do quarto onde
ela vinha cumprimentar o dia. Depois esperava vê-la no
balcão, e, quando o pezinho pequeno pisava no primeiro
degrau da escadaria descendo ao jardim, fugia o unicórnio
para o escuro da floresta.
Um dia, indo o Rei de manhã cedo visitar a filha em seus
aposentos, viu o unicórnio na moita de lírios.
Quero esse animal para mim. E imediatamente ordenou a
caçada.
Durante dias o Rei e seus cavaleiros caçaram o unicórnio nas
florestas e nas campinas. Galopavam os cavalos, corriam os
cães e, quando todos estavam certos de tê-lo encurralado,
perdiam sua pista, confundiam-se no rastro.
Durante noites o rei e seus cavaleiros acamparam ao redor
das fogueiras ouvindo no escuro o relincho cristalino do
unicórnio.
Um dia, mais nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal da sua
presença. E silêncio nas noites.
Desapontado, o rei ordenou a volta ao castelo.
E logo ao chegar foi ao quarto da filha contar o acontecido.
A princesa, penalizada com a derrota do pai, prometeu que
dentro de três luas lhe daria o unicórnio de presente.
Durante três noites trançou com os fios de seus cabelos uma
rede de ouro. De manhã vigiava a moita de lírios do jardim.
E no nascer do quarto dia, quando o sol encheu com a
primeira luz os cálices brancos, ela lançou a rede
aprisionando o unicórnio.
Preso nas malhas de ouro, olhava o unicórnio aquela que
mais amava, agora sua dona, e que dele nada sabia.
A princesa aproximou-se. Que animal era aquele de olhos
tão mansos retido pela artimanha de suas tranças? Veludo do
pêlo, lacre dos cascos, e desabrochando no meio da testa,
espinho de marfim, o chifre único que apontava ao céu.
Doce língua de unicórnio lambeu a mão que o retinha. A
princesa estremeceu, afrouxou os laços da rede, o unicórnio
ergueu-se nas patas finas.
Quanto tempo demorou a princesa para conhecer o
unicórnio? Quantos dias foram precisos para amá-lo?
Na maré das horas banhavam-se de orvalho, corriam com as
borboletas, cavalgavam abraçados. Ou apenas conversavam
em silêncio de amor, ela na grama, ele deitado a seus pés,
esquecidos do prazo.
As três luas, porém já se esgotavam. Na noite antes da data
marcada o rei foi ao quarto da filha lembrar-lhe a promessa.
Desconfiado, olhou nos cantos, farejou o ar. Mas o
unicórnio que comia lírios tinha cheiro de flor, e escondido
entre os vestidos da princesa confundia-se com os veludos,
confundia-se com os perfumes.
Amanhã é o dia. Quero sua palavra cumprida, disse o rei -
virei buscar o unicórnio ao cair do sol.
Saído o rei, as lágrimas da princesa deslizaram no pêlo do
unicórnio. Era preciso obedecer ao pai, era preciso manter a
promessa. Salvar o amor era preciso.
Sem saber o que fazer, a princesa pegou o alaúde, e a noite
inteira cantou sua tristeza. A lua apagou-se. O sol mais uma
vez encheu de luz as corolas. E como no primeiro dia em
que se haviam encontrado a princesa aproximou-se do
unicórnio. E como no segundo dia olhou-o procurando o
fundo dos seus olhos. E como no terceiro dia segurou- lhe a
cabeça com as mãos. E nesse último dia aproximou a cabeça
do seu peito, com suave força, com força de amor
empurrando, cravando o espinho de marfim no coração,
enfim florido.
Quando o rei veio em cobrança de promessa, foi isso que o
sol morrente lhe entregou, a rosa de sangue e um feixe de
lírios.
De água nem tão doce
Criava uma sereia na banheira. Trabalho, não dava nenhum,
só a aquisição dos peixes com que se alimentava. Mansa
desde pequena, quando colhida em rede de camarão, já
estava treinada para o cotidiano da vida entre azulejos.
Cantava. Melopéias, a princípio. Que aos poucos, por
influência do rádio que ele ouvia na sala, foi trocando por
músicas de Roberto Carlos. Baixinho, porém, para não
incomodar os vizinhos.
Assim se ocupava. E com os cabelos, agora pálido ouro, que
trançava e destrançava sem fim. "Sempre achei que sereia
era loura", dissera ele um dia trazendo tinta e água
oxigenada. E ela, sem sequer despedir-se dos negros cachos
no reflexo da água da banheira, começara dócil a passar o
pincel.
Só uma vez, nos anos todos em que viveram juntos, ele a
levou até a praia. De carro, as escamas da cauda escondidas
debaixo de uma manta, no pescoço a coleira que havia
comprado para prevenir um recrudescer do instinto. Baixou
um pouco o vidro, que entrasse ar de maresia. Mas ela nem
tentou fugir. Ligou o rádio e ficou olhando as ondas,
enquanto flocos de espuma caíam dos seus olhos.
Porém igualmente
É uma santa. Diziam os vizinhos. E D. Eulália apanhando.
É um anjo. Diziam os parentes. E D. Eulália sangrando.
Porém igualmente se surpreenderam na noite em que, mais
bêbado que de costume, o marido, depois de surrá-la, jogou-
a pela janela, e D. Eulália rompeu em asas o vôo de sua
trajetória.
Maria, Maria
Manhã de março. E a campainha toca.
- Quem é? - pergunta Maria já ansiosa, na verdade inquirindo
ao mundo por que me chamam em casa, o que querem de
mim?
- A senhora foi escolhida - responde o rapaz, tão louro atrás
da corrente que retém porta e segurança.
Fui escolhida para quê?, pensa Maria, não ouço rádio, não
entro em concurso, fui escolhida não, mentira.
- Obrigada, não quero comprar nada - e Maria empurra a
porta. Que não se fecha, porque o rapaz botou o pé na fresta.
- Ouça, não é nada para vender.
- Não, obrigada.
- Não é para pagar.
- Nem assim.
Maria faz força. Olha ostensivamente o pé dele, sandália.
Depois o rosto, cabelos anelados ao redor.
- Com licença - diz Maria perguntando-se o que será que ele
quer, e reparando na beleza dos cachos, que cachos
harmoniosos, pensamento que corre sozinho como torneira
esquecida aberta, por trás de outros pensamentos mais
cortantes, de desconfiança, defesa.
- Quer fazer o favor de tirar o pé? - Maria usa sua voz mais
autoritária para sobrepô-la ao medo crescente.
- A senhora não está entendendo. Eu sou um anjo do
Senhor.
Um maluco. Era só o que me faltava. Logo hoje que estou
sozinha em casa. Essa cidade está virando um hospício.
Assim pensa Maria. Mas diz:
- Olha, meu amigo...
Ele repete - Eu sou um anjo do Senhor.
E então, lentamente, sorri.
Maria nem pensa que aquele sorriso é uma primavera.
Sente-se apenas trespassar de mansidão, ensolarada. Maria
sorri.
- Desculpe - diz. E, por dentro, como fui ser tão ridícula? -
Desculpe - repete. - O que é mesmo que você queria?
- Posso entrar? - a pergunta parece tão lógica, tão
absolutamente serena, que Maria se apressa a tirar a
corrente, abrir a porta.
E o rapaz entra na casa de Maria.
- Você quer um café? - pergunta Maria. - Uma água?
- Quero que você sente aqui ao meu lado, Maria, porque
tenho uma coisa importante para te dizer.
Maria nem se pergunta como ele sabe seu nome, esse
homem tão lindo. Maria não tem nenhuma interrogação
mais, só o desejo de sentar ali no sofá da sala, junto àquele
rapaz de camiseta e cachos, e respirar seu hálito.
- Maria - diz ele -, você não vai acreditar, mas eu te trouxe
um presente.
Não, Maria não acredita. Mas isso não faz diferença, porque
a mão do rapaz é quente na sua coxa e o hálito dele é
perfume e flor, e a boca dele, ah! a boca dele é um fruto do
Senhor.
Despejada! Logo agora! Logo agora que a barriga retesada e
plena como um ovo está prestes a culminar sua tarefa. Maria
quase não acredita, não quer acreditar, mas a carta está ali,
tinha acertado tudo com o senhorio, mas a carta está na mão
dela, é isso, não tem como voltar atrás, não dá mais para
ficar só esperando o nenén chegar, agora é preciso arrumar
outro apartamento. E depressa.
Maria lê os classificados, recorta anúncios possíveis. E sai.
Pega ônibus, pega metrô, anda, anda, sobe escadas, fala com
porteiros, entra em elevadores, abre portas. Abre portas
sobre apartamentos vazios, cheirando a já habitados, poeira
nas frinchas. E a cada um se pergunta, será nesse que quero
ficar? Não, lhe responde uma cor de parede. Não, a
estreiteza de uma sala. Não, um corredor escuro, uma
banheira rachada. Até que um dia, depois de tantas portas
inutilmente abertas, sim, lhe diz uma janela sem cortinas
aberta sobre árvores, sim, um piso claro, sim sim, o sol
derramado nas paredes. Sim, parece dizer-lhe do centro de
tudo o seu bebê. E assim Maria sabe que já encontrou uma
casa para recebê-lo.
Precisará ainda fazer a mudança, juntar suas coisas, depois
acompanhar o caminhão com seu próprio carro, pequena
procissão através do trânsito da cidade, durante a qual os
cristais mais delicados, que levou consigo num balaio,
tilintam como minúsculos sinos.
Está justamente tentando definir lugares para os objetos na
casa ainda caótica, quando o corpo moído exige que ela
ponha as mãos nos rins e, projetando a barriga para a frente
para aliviar o peso, Maria percebe que uma sombra se
avoluma por dentro do ventre. Uma sombra que ainda não é
dor, mas que cresce e, insistente, chama.
Deitada de lado como o médico mandou, Maria respira
pausadamente enquanto a dor maior lhe dá repouso. E uma
trégua apenas, ela sabe, logo a onda tentará submergi-la
outra vez, vinda do pé, da terra que ela sequer toca, mas que
está nela, passado de semeadura e colheita que habita toda
mulher. Agora é tempo de colher. Como o Anjo disse que
aconteceria, o filho está maduro para a luz.
O médico aproxima-se de Maria, fala com a enfermeira.
Maria não lhe presta atenção, como se não o ouvisse. Maria
está com a atenção voltada para dentro, ouvindo a conversa
sem som do bebê que nela, e com ela, luta para derrubar as
muralhas do corpo materno e libertar-se. Maria está ocupada
demais em abrir-lhe passagem, para poder conversar com o
médico, dizer-lhe como se sente. Pois Maria se sente como
o bebê, sem palavras.
Sabe, porém que chegou a hora. Na maca, rumo à sala de
parto, Maria pensa apenas no seu desejo de vê-lo, pegá-lo no
colo, ela que há tantos meses o traz no regaço.
Frio, luz intensa, o corpo tão doído que quase o desconhece.
Força, Maria, é preciso fazer força. Os músculos tensos, os
dentes cerrados, o pescoço quase estourando. E de repente
aquela sensação líquida, macia, de peixe esgueirando-se,
saltando, como se a dor e o sangue e as vísceras de Maria se
esvaíssem por entre suas pernas, deixando-a vazia e
apaziguada.
- É uma menina - ouve o médico dizer do fundo da luz.
Uma menina?! Então, pensa Maria quase com alívio antes de
resvalar para o torpor, então não era verdade, nada do que o
Anjo disse era verdade, eu não fui escolhida, sou apenas uma
mãe qualquer, mãe da minha filha amada, que bem-vinda
seja.
Lá vem Maria com sua filha no colo entrando no
apartamento novo. Olha em volta. Que desordem, não
repare, querida. E o teu bercinho que não chegou, a loja
acabou não entregando; também, com essa confusão toda de
Natal... não há de ser nada, mamãe vai dar um jeito.
Maria deita sobre o sofá a nenen enrolada na manta. Vê um
caixote vazio, ainda com palha da mudança, arrasta-o para o
meio da sala, afofa a palha, põe almofadas por cima e, com
gestos de quem quara roupa ao sol, abre sobre as almofadas o
lençolzinho branco, bordado, que estava guardado numa
gaveta com sachê cheiroso, para o primeiro dia.
- Pronto, querida, está feita a tua caminha, pode dormir
sossegada.
Maria tira a manta, deita a nenen no berço improvisado, sem
cobri-la sequer, que a tarde é quente.
Miau, faz o gato roçando nas pernas de Maria. E só então ela
se lembra que o pobrezinho deve estar morto de fome, ele e
o cachorro, sós no apartamento desde que ela foi para a
maternidade, aos cuidados apenas do porteiro.
- Desculpem, vou cuidar de vocês também, não precisam
ficar com ciúmes.
Na cozinha, Maria despeja a ração na tigela, abre uma lata de
sardinhas para o gato, bate de leve com o prato no chão.
Chama, psss, psss. Nem gato nem cachorro obedecem.
Chama de novo, faz barulho com o prato. Nada. Que será
que há com esse bichos, se pergunta Maria. Intrigada, vai até
a sala. Não chega a entrar, porém, retida por um instante na
porta, em devoção.
Lá está o caixote, onde ela o deixou. Mas o gato de um lado e
o cachorro do outro bafejam delicadamente sobre a menina.
E acima dela, pairando ofuscante na tarde que se vai, esparge
sua fúlgida luz uma estrela.
- Então era verdade! O Anjo não mentiu!
Ajoelha-se Maria perto da filha. Sim, o Anjo disse a verdade.
Sagrada é a menina que esperneia entre linhos. Como estava
prometido, Ela chegou. Louvor aos céus, pois a Messias está
entre nós.
Anjo da guarda
Do poleiro ele não fugiria. Garantiam sua permanência a
argola de ferro no pé e a ponta da asa cortada. Sem ele, que
solidão insuportável seria sua vida.
Sim, era outra mulher. Lavava, passava, cantava na cozinha e
crescia plantas.
Longe estavam os dias de choro e desespero. Distante aquela
tarde em que, o formicida pronto na cozinha, a campainha
tocara interrompendo o gesto. E da porta, louro e alado, o
adolescente lhe dissera:
- Não chore. Vim lhe ajudar. Sou seu Anjo da guarda.
A busca da razão
Sofreu muito com a adolescência.
Jovem, ainda se queixava.
Depois, todos os dias subia numa cadeira, agarrava uma
argola presa ao teto e, pendurado, deixava-se ficar.
Até a tarde em que se desprendeu esborrachando-se no
chão: estava maduro.
Entre a espada e a rosa
Qual é a hora de casar, senão aquela em que o coração diz
"quero"? A hora que o pai escolhe. Isso descobriu a Princesa
na tarde em que o Rei mandou chamá-la e, sem rodeios, lhe
disse que, tendo decidido fazer aliança com o povo das
fronteiras do Norte, prometera dá-la em casamento ao seu
chefe. Se era velho e feio, que importância tinha frente aos
soldados que traria para o reino, às ovelhas que poria nos
pastos e às moedas que despejaria nos cofres? Estivesse
pronta, pois breve o noivo viria buscá-la.
De volta ao quarto, a Princesa chorou mais lágrimas do que
acreditava ter para chorar. Embotada na cama, aos soluços,
implorou ao seu corpo, a sua mente, que lhe fizessem achar
uma solução para escapar da decisão do pai. Afinal, esgotada,
adormeceu.
E na noite sua mente ordenou, e no escuro seu corpo ficou.
E ao acordar de manhã, os olhos ainda ardendo de tanto
chorar, a Princesa percebeu que algo estranho se passava.
Com quanto medo correu ao espelho! Com quanto espanto
viu cachos ruivos rodeando-lhe o queixo! Não podia
acreditar, mas era verdade. Em seu rosto, uma barba havia
crescido.
Passou os dedos lentamente entre os fios sedosos. E já
estendia a mão procurando a tesoura, quando afinal
compreendeu. Aquela era a sua resposta. Podia vir o noivo
buscá-la. Podia vir com seus soldados, suas ovelhas e suas
moedas. Mas, quando a visse, não mais a quereria. Nem ele
nem qualquer outro escolhido pelo Rei.
Salva a filha, perdia-se, porém a aliança do pai. Que tomado
de horror e fúria diante da jovem barbada, e alegando a
vergonha que cairia sobre seu reino diante de tal estranheza,
ordenou-lhe abandonar o palácio imediatamente.
A Princesa fez uma trouxa pequena com suas jóias, escolheu
um vestido de veludo cor de sangue. E, sem despedidas,
atravessou a ponte levadiça, passando para o outro lado do
fosso. Atrás ficava tudo o que havia sido seu, adiante estava
aquilo que não conhecia.
Na primeira aldeia aonde chegou, depois de muito caminhar,
ofereceu-se de casa em casa para fazer serviços de mulher.
Porém ninguém quis aceitá-la porque, com aquela barba,
parecia-lhes evidente que fosse homem.
Na segunda aldeia, esperando ter mais sorte, ofereceu-se
para fazer serviços de homem. E novamente ninguém quis
aceitá-la porque, com aquele corpo, tinham certeza de que
era mulher.
Cansada mas ainda esperançosa, ao ver de longe as casas da
terceira aldeia, a Princesa pediu uma faca emprestada a um
pastor, e raspou a barba. Porém, antes mesmo de chegar, a
barba havia crescido outra vez, mais cacheada, brilhante e
rubra do que antes.
Então, sem mais nada pedir, a Princesa vendeu suas jóias
para um armeiro, em troca de uma couraça, uma espada e
um elmo. E, tirando do dedo o anel que havia sido de sua
mãe, vendeu-o para um mercador, em troca de um cavalo.
Agora, debaixo da couraça, ninguém veria seu corpo,
debaixo do elmo, ninguém veria sua barba. Montada a
cavalo, espada em punho, não seria mais homem, nem
mulher. Seria guerreiro.
E guerreiro valente tornou-se, à medida que servia aos
Senhores dos castelos e aprendia a manejar as armas. Em
breve, não havia quem a superasse nos torneios, nem a
vencesse nas batalhas. A fama da sua coragem espalhava-se
por toda parte e a precedia. Já ninguém recusava seus
serviços. A couraça falava mais que o nome.
Pouco se demorava em cada lugar. Lutava cumprindo seu
trato e seu dever, batia-se com lealdade pelo Senhor. Porém
suas vitórias atraíam os olhares da corte, e cedo os
murmúrios começavam a percorrer os corredores. Quem era
aquele cavaleiro, ousado e gentil, que nunca tirava os trajes
de batalha? Por que não participava das festas, nem cantava
para as damas? Quando as perguntas se faziam em voz alta,
ela sabia que era chegada a hora de partir. E ao amanhecer
montava seu cavalo, deixava o castelo, sem romper o
mistério com que havia chegado.
Somente sozinha, cavalgando no campo, ousava levantar a
viseira para que o vento lhe refrescasse o rosto acariciando
os cachos rubros. Mas tornava a baixá-la, tão logo via
tremular na distância as bandeiras de algum torreão.
Assim, de castelo em castelo, havia chegado àquele
governado por um jovem Rei. E fazia algum tempo que ali
estava.
Desde o dia em que a vira, parada diante do grande portão,
cabeça erguida, oferecendo sua espada, ele havia
demonstrado preferi-la aos outros guerreiros. Era a seu lado
que a queria nas batalhas, era ela que chamava para os
exercícios na sala de armas, era ela sua companhia preferida,
seu melhor conselheiro. Com o tempo, mais de uma vez,
um havia salvo a vida do outro. E parecia natural, como o
fluir dos dias, que suas vidas transcorressem juntas.
Companheiro nas lutas e nas caçadas, inquietava-se porém o
Rei vendo que seu amigo mais fiel jamais tirava o elmo. E
mais ainda inquietava-se, ao sentir crescer dentro de si um
sentimento novo, diferente de todos, devoção mais funda
por aquele amigo do que um homem sente por um homem.
Pois não podia saber que à noite, trancado o quarto, a
princesa encostava seu escudo na parede, vestia o vestido de
veludo vermelho, soltava os cabelos, e diante do seu reflexo
no metal polido, suspirava longamente pensando nele.
Muitos dias se passaram em que, tentando fugir do que
sentia, o Rei evitava vê-la. E outros tantos em que,
percebendo que isso não a afastava da sua lembrança,
mandava chamá-la, para arrepender-se em seguida e pedia-
lhe que se fosse.
Por fim, como nada disso acalmasse seu tormento, ordenou
que viesse ter com ele. E, em voz áspera, lhe disse que há
muito tempo tolerava ter a seu lado um cavaleiro de rosto
sempre encoberto. Mas que não podia mais confiar em
alguém que se escondia atrás do ferro. Tirasse o elmo,
mostrasse o rosto. Ou teria cinco dias para deixar o castelo.
Sem resposta, ou gesto, a Princesa deixou o salão,
refugiando-se no seu quarto. Nunca o Rei poderia amá-la,
com sua barba ruiva. Nem mais a quereria como guerreiro,
com seu corpo de mulher. Chorou todas as lágrimas que
ainda tinha para chorar. Dobrada sobre si mesma, aos
soluços, implorou ao seu corpo que a libertasse, suplicou a
sua mente que lhe desse uma solução. Afinal, esgotada,
adormeceu.
E na noite sua mente ordenou, e no escuro seu corpo
brotou. E ao acordar de manhã, com os olhos inchados de
tanto chorar, a Princesa percebeu que algo estranho se
passava. Não ousou levar as mãos ao rosto. Com medo,
quanto medo! aproximou-se do escudo polido, procurou seu
reflexo. E com espanto, quanto espanto! viu que, sim, a
barba havia desaparecido. Mas em seu lugar, rubras como os
cachos, rosas lhe rodeavam o queixo.
Naquele dia não ousou sair do quarto, para não ser
denunciada pelo perfume, tão intenso, que ela própria
sentia-se embriagar de primavera. E perguntava-se de que
adiantava ter trocado a barba por flores, quando, olhando no
escudo com atenção, pareceu-lhe que algumas rosas perdiam
o viço vermelho, fazendo-se mais escuras que o vinho. De
fato, ao amanhecer, havia pétalas no seu travesseiro.
Uma após a outra, as rosas murcharam, despetalando-se
lentamente. Sem que nenhum botão viesse substituir as
flores que se iam. Aos poucos, a rósea pele aparecia. Até que
não houve mais flor alguma. Só um delicado rosto de
mulher.
Era chegado o quinto dia. A Princesa soltou os cabelos,
trajou seu vestido cor de sangue. E, arrastando a cauda de
veludo, desceu as escadarias que a levariam até o Rei,
enquanto um perfume de rosas se espalhava no castelo.
Canção para Hua Mu-Lan
Donzela, quando soube que o inimigo ameaçava as
fronteiras do seu país, vestiu a couraça de couro de
rinoceronte, cingiu o elmo, e partiu para a guerra.
Durante anos seus negros cabelos esvoaçaram nas batalhas.
Os generais compuseram canções em seu louvor. E muitos
cavalos trocou, que tombavam sob as flechas. Nos exércitos,
ao pé das fogueiras, contavam-se os seus feitos.
Mas, rechaçado o inimigo, apagaram-se as fogueiras, e os
soldados voltaram para as suas casas. Pendurada num prego,
a couraça sem serventia se cobre de poeira. Muitos fios
brancos rajam os cabelos da donzela. Que não aprendeu a
fiar. Que não aprendeu a tecer. E que agora debaixo de um
salgueiro dorme e dorme, com sua espada expulsando
inimigos para além das fronteiras do sonho.
Verdadeira história de um amor ardente
Nunca tivera namorada, esposa, amante. Desde jovem vivia
só. Entretanto, passando os anos, sentia-se como se mais só
ficasse, adensando-se ao seu redor aquele mesmo silêncio
que antes lhe parecera apenas repousante. E, vindo por fim a
tristeza instalar-se no seu cotidiano, decidiu providenciar
uma companheira que, partilhando com ele o espaço,
expulsasse a intrusa lamentosa.
Em loja especializada adquiriu grande quantidade de cera,
corantes, e todo o material necessário. Em breves estudos
nos almanaques e tratados aprendeu a técnica. E logo,
trancado à noite em sua casa, começou a moldar aquela que
preencheria seus desejos.
Pronta, surpreendeu-se com a beleza que quase
inconscientemente lhe havia transmitido. A suavidade
opalinada, rósea palidez que aqui e ali parecia acentuar-se
num rubor, não tinha semelhança com a áspera pele das
mulheres que porventura conhecera. Nem a elegância altiva
desta podia comparar-se à rusticidade quase grosseira
daquelas. Era uma dama de nobre silêncio. E só tinha olhos
para ele.
Perdidamente a amou. O calor dos seus abraços tornando
aquele corpo ainda mais macio, conferia-lhe uma
maleabilidade em que todo toque se imprimia, formando e
deformando a amada no fluxo do seu prazer.
Já há algum tempo viviam juntos, quando uma noite a luz
faltou. Começava ele a cansar-se de tanta docilidade.
Começava ela a empoeirar-se, turvando em manchas
acinzentadas os tons antes translúcidos. Um certo tédio
havia-se infiltrado na vida do casal. Que ele tentava
justamente combater naquela noite empunhando um bom
livro, no momento em que a lâmpada apagou.
Sentado na poltrona, com o livro nas mãos prometendo
delícias, ainda hesitou. Depois levantou-se, e tateando, com
o mesmo isqueiro com que há pouco acendera o cigarro,
inflamou a trança da mulher, iluminando o aposento.
Arrastou-a então para mais perto de si, refestelou-se na
poltrona. E, sereno, começou a ler à luz do seu passado
amor, que queimava lentamente.
Nunca descuidando do dever
Jamais permitiria que seu marido fosse para o trabalho com a
roupa mal passada, não dissessem os colegas que era esposa
descuidada. Debruçada sobre a tábua com olho vigilante,
dava caça às dobras, desfazia pregas, aplainando punhos e
peitos, afiando o vinco das calças. E, a poder de ferro e
goma, envolta em vapores, alcançava o ponto máximo da
sua arte ao arrancar dos colarinhos liso brilho de celulóide.
Impecável, transitava o marido pelo tempo. Que, embora
respeitando ternos e camisas, começou sub-repticiamente a
marcar seu avanço na pele do rosto. Um dia notou a mulher
um leve afrouxar- se das pálpebras. Semanas depois
percebeu que, no sorriso, franziam-se fundos os cantos dos
olhos.
Mas foi só muitos meses mais tarde que a presença de duas
fortes pregas descendo dos lados do nariz até a boca tornou-
se inegável. Sem nada dizer, ela esperou a noite. Tendo
finalmente certeza de que o homem dormia o mais pesado
dos sonos, pegou um paninho úmido e, silenciosa, ligou o
ferro.
Na estréia
I
Na noite da estréia o leão tremia tanto de emoção que, num
bater de dentes, acabou decepando a cabeça do domador.
II
Na noite da estréia, ao serrar sua mulher em duas, o mágico
percebeu que só gostava da parte de cima.
III
Na noite da estréia, depois que todos se foram e as luzes se
apagaram, a bailarina deitou-se no fio e adormeceu.
Amor e morte na página dezessete
No dia em que Selena saiu no jornal, não ganhou foto na
primeira página. Quinze linhas somente, no canto esquerdo.
Mas foi lá dentro, na página dezessete, abaixo do título, que
o marido a viu com seu decote, o rosto meio escondido na
mão, chorando por outro homem.
A foto havia sido tirada ao lado do picadeiro. Viam-se atrás
da cabeça dela um pedaço da lona, o alto das grades.
Rodeada de gente, Selena não percebera que estava sendo
fotografada, havia tantas luzes ali. Nem pensara que sairia no
dia seguinte na página 17 e que o marido a veria. Ou pen-
sara, mas como um problema a resolver em outra hora,
envergonhada quase de que esse pensamento surgisse
quando só lhe cabia pensar no outro, no outro que ali estava,
à seus pés.
"Como conseguem chegar tão depressa?!", perguntara-se
admirado o dono do circo, ele que só conseguia deslocar
suas gentes lentamente. E correra para alcançar as
camionetes de TV, antes mesmo que acabassem de
estacionar entre os trailers e abrissem as portas. Apresentou-
se ao primeiro que saltou. Um erro. Nem esse nem o se-
gundo que saltou, a quem também se apresentou, tinham
qualquer importância, carregadores de equipamentos,
nenhum deles se lembraria dele no futuro, na hora de dar
uma notícia sobre o Gran Circus; o repórter, cadê o
repórter? A repórter já estava lá dentro empurrando o
microfone diante do rosto desfeito de Selena, tentando
arrancar-lhe qualquer coisa que durasse pelo menos dois
minutos, qualquer coisa mais que aquele olhar escondido
pelas pálpebras inchadas, que aquele balbuciar quase
incoerente.
Assim mesmo a matéria saiu no noticiário do dia seguinte,
na hora do almoço. Não deu para jogar no horário nobre, à
noite - tivesse acontecido na seção matinê teria caído como
uma luva, mas as coisas teimam em acontecer depois das
vinte horas e no dia seguinte já parecem frias.
Essa, porém, ainda estava quente quando foi servida com o
arroz e o feijão para todo o bairro de Selena.
Ela, Selena, não tinha voltado para casa, não tinha vindo
dormir. Tinha passado a noite entre pessoas que não
conhecia, rostos que se dirigiam a ela, que faziam perguntas
exigindo respostas quando ela nem bem ouvia, vozes e
presenças que a conduziam de uma sala a outra. Uma noite
sem feitio, sem nada que a ligasse a todas as noites anteriores
da sua vida, encharcada de café e copos d'água, sem que a
deixassem sozinha por um minuto, embora só disso ela
precisasse, ficar sozinha e tomar sua alma entre as mãos. Mas
não, a noite inteira sente-se, venha, beba isso que vai lhe
fazer bem, data de nascimento, carteira, assine, por favor,
outra vez, siga por aqui. E salas e salas e corredores e
lâmpadas no alto. Depois um último corredor e um carro, já
começava o dia, e ela tinha dito não, não, para a minha casa
não, e tinha pedido que a deixassem na casa de uma amiga,
porque não podia chegar no bairro àquela hora, com aquele
vestido.
"Esse vestido, Selena, só para sair comigo", havia dito o
marido no dia em que Selena saíra do quarto com o decote
emoldurado na estampa viva, os quadris moldados de
vermelho. "Mesmo assim...", e observara seu caminhar até o
sofá, à procura de uma restrição possível para opor ao seu
desejo. "Mesmo assim, está muito curto."
Selena displicente, afivelando as sandálias altas, "Não tem
bainha para descer". E, cruzando as pernas, "Gostou não?"
As pernas de Selena expostas, coxas esmagadas contra o
couro sintético do sofá. Estão colando, pensara o marido,
imaginando-as úmidas sobre o assento.
Era mentira que tivesse mandado a costureira fazer o vestido
com um pano de liquidação, como havia dito ao marido.
Mas não podia contar que havia sido dado pelo amante.
Como poderia?
Nem ia deixar de receber o presente, um agrado, como
dissera ele pagando na caixa a roupa que a havia mandado
escolher. Para sair comigo, acrescentara tocando-lhe a
cintura.
Pequenas mentiras. Às vezes não pequenas. Às vezes nem
mentiras. Palavras, nada mais do que isso, palavras que ela
organizava à seu modo. Não era grave. Grave teria sido
magoar qualquer dos dois. Pois se gostava de ambos. Grave
teria sido magoar a si mesma.
No princípio, talvez, um pouco de mágoa a habitava, uma
quase dor, por não poder dizer ao marido "tenho um amor",
e partilhar com ele sua emoção, por se sentir obrigada a
resistir, embora pouco, quando tudo o que queria era a
entrega. E o medo, medo de ser descoberta, medo ainda
maior de ser arrastada por seu desejo em alguma direção que
não pudesse controlar. Mas tão bom ter o amante todo
ardências, que logo qualquer outro sentimento desaparecera.
E agora, passados tantos anos, tão assentada ela no querer
dos dois, surpreendia-se quase de que não vivessem todos
juntos na mesma casa, partilhando a mesa além da cama.
Selena nem se lembrava como havia chegado até a arena, se
descendo ou rolando do alto da arquibancada, se passando
por cima das pessoas ou se levada por elas. De repente estava
ali, na beira do grupo compacto que se havia fechado de
imediato ao redor do fato como uma parede de bailarinas,
palhaços, espectadores. E logo estava no meio do círculo, ela
e o homem dos alamares no casaco, que a segurava pelo
braço, que vociferava, que talvez a sacudisse, ou era ela que
com seu tremor sacudia a mão dele. Os holofotes acesos.
Acesos nos seus olhos, e as lágrimas lascando em estrelas
toda aquela luz, todos aqueles rostos. Depois a TV, as rijas
serpentes dos cabos pelo chão, ao redor dos pés, a moça
insistindo. E a luz ainda mais forte.
Na delegacia, também, havia luz em seus olhos. O que
queriam, o que procuravam entre suas pálpebras? Sou uma
mulher casada, repetia. Tenho marido. Me deixem ir. Mas
não, isso ela dizia para si mesma, isso ela repetia calada pela
angústia, como uma ladainha, em busca do seu refúgio,
tenho marido, tenho. A eles, em resposta a tanto que que-
riam saber, só soube dar seu endereço, que nem era preciso
dar, estava na bolsa, e como é que a bolsa fora parar na
delegacia se ela não se lembrava de carregar bolsa alguma ao
atirar-se do alto da arquibancada? Tinha telefone também. E
eles ligaram.
O homem atendeu. Alô, disse, e era o mesmo homem de
sempre, aquele que os vizinhos conheciam, seu Jonas da
casa três, um pouco rude mas respeitador, marido da dona
Selena. Atendeu com a voz de dono com que um homem
atende ao telefone da própria casa. Alô. E era ainda ele,
Jonas, como sempre havia se conhecido. Bastou porém
ouvir a resposta do lado de lá, para que a ameaça o
alcançasse como um dardo. Delegacia? Não era um
presságio, era a realidade do medo que lhe tomava os
joelhos, o peito. E, à medida que o outro falava, conciso,
indo logo ao essencial, Jonas sentiu que deixava de ser o
Jonas que sempre havia acreditado ser, tornando-se alguém
que ainda não conhecia. Sem que o interlocutor pudesse
perceber, uma metamorfose se operava do lado de cá da
linha, e esse homem, Jonas, de fone na mão, via-se despido
da sua segurança como a serpente é despida da pele, e nu,
com sua branca carne viva, já não era o marido respeitado e
invejado pela vizinhança, mas alguém de quem se rir pelas
costas; não era o macho que sempre havia esgotado as
vontades da sua fêmea, mas apenas um homem que gozava.
Expulso da serenidade, Jonas encontrou-se ao desabrigo. Sei,
respondeu depois de um longo silêncio que o outro, de lá,
tentava quebrar para ter certeza de ter sido entendido. Sei,
repetiu. E, pela primeira vez, sabia.
O cara não vem, o policial disse para o outro desligando.
Tinha falado com Jonas na frente de Selena sem
constrangimento, como se ela não ouvisse ou como se o que
tinha a dizer ao marido não fosse constrangedor para ela.
Não era. Falassem alto à vontade. A relação dela com Jonas
não estava ali. Não estava do outro lado da linha. Seu
marido, o companheiro seu, a esperava adiante em algum
momento, árduo momento em que teriam que se encontrar.
Mas aquela mesma relação que ela projetava para o futuro
estava inteira ali, no seu mudo repetir tenho marido, na
vontade de que ele viesse, a levasse para casa, a tirasse
daquele lugar. Jonas! invocou de novo sufocada em choro,
me ajuda.
Seu marido, dona, disse o policial como se tivesse lido seu
pensamento, não vem.
Vinte e sete anos de casados, o peso dele afundando a cama
de um lado, o suor encardindo os colarinhos. Não é suor,
dizia ele, é poeira lá do serviço. Vinte e sete anos de sexo,
luz acesa, e carne assada aos domingos. Homem que sentava
à mesa para comer e deitava em cima dela para gozar. Tudo
com fartura. Um bom marido, Jonas, ciumento, meio bruto,
mas bom. E dela.
Jonas botou o fone no gancho e apagou a luz. O nome de
Selena subiu por dentro dele como um vômito, esbarrou nos
dentes trancados, na boca dura, fez-se insulto, cuspe, soluço.
Passou a noite assim, sentado no sofá, de cuecas, chorando
no escuro. E falando com Selena, brigando com Selena,
sacudindo-a pelos braços, rasgando-lhe a roupa, dando-lhe
tapas na cara, fodendo-a como se fode uma prostituta, e
implorando, perguntando por que, por que se ele não lhe
deixava faltar nada. Chegou a dar tiro, nela, nos dois, a
surpreendê-los na cama, a peitá-los na entrada do motel.
Passou a noite culpando-os, culpando-se, ferindo-se nas
palavras. Sentiu frio, enrolou-se numa toalha do banheiro, os
pés continuaram gelados, encolheu os pés sobre o sofá.
Aquecido no nicho morno e úmido da toalha abraçou seu
próprio corpo, teve pena de si. Por fim, adormeceu.
É bom que durma Jonas, porque sua provação não acabou.
Amanhã a foto de Selena sairá no jornal, na página dezessete
do jornal que alguém lerá no ônibus, alguém do bairro, e que
todos no bairro irão correndo comprar na banca, gulosos da
história de Selena, do seu retrato. E antes mesmo que
cheguem os repórteres o telefone chamará, tirando-o do
limbo quente do sono, e será um amigo, um parente
querendo confortá-lo, que ainda estará falando quando a
campainha da porta tocar, alertando Jonas para o duro dia
que se arma à sua frente. Dia em que, isso ele ainda não
sabe, Selena em prantos será atirada pelo noticiário das
12h30 na sua mesa que ninguém pensou em arrumar para o
almoço.
Só uma hora, havia dito a amiga, embora a manhã já
estivesse clara. Só para relaxar. E Selena, sozinha enfim,
esforçava-se para dormir, para livrar-se do peso que a
oprimia inteira, esquecer-se de si no corpo estendido. Mas a
cama era estreita, o travesseiro hostil, e a luz que entrava
pela janela sem cortinas vetava qualquer tentativa de fuga.
Continuou deitada, porém, olhos fechados. Pensassem na
sala que ela dormia, falassem em voz baixa. Ausente para os
outros, sentindo de leve as tábuas do estrado através do
colchonete, podia afinal regressar à sua vida, recuperar
Daniel, e refazer o percurso daquela noite tentando escapar
às suas próprias palavras, tentando impedir que Daniel as
ouvisse.
Juntos há vinte e cinco anos. Era isso que estavam
comemorando. Um vestido novo, um jantar, e o circo.
Assim era Daniel, sempre pronto a se divertir, a comemorar,
como um menino. Bodas de prata, a cada ano um presente,
uma tarde especial para selar a data do primeiro encontro,
para dizer-lhe, uma vez mais, que era dela o seu coração.
Sem nunca lhe exigir nada, sobretudo não o fim do seu
casamento, e não porque a quisesse casada com outro, ele
que solteiro podia acolher uma mulher. Mas porque sabia
amá-la como ela era, com Jonas e o seu jeito de querer
Jonas, com uma casa que não podiam partilhar, com seus
horários apertados, sua necessidade de escamotear os
presentes, de inventar histórias para justificar as ausências.
Encontravam-se duas vezes por semana. A princípio só no
motel, porque o desejo abrasava, e em qualquer outro lugar
temiam ser vistos. Depois, com o tempo, desgastaram-se os
temores, parecia tão natural que se amassem. E então um
barzinho, uma churrascaria longe do bairro. E um cinema,
dançar. Daniel, pensou Selena cobrindo os braços com a
colcha, era onde ela remoçava. E mais uma vez o definiu,
agora naquilo que seria sua memória, alegre, amoroso,
sempre inventando moda. E sentiu seu corpo nas mãos dele,
e sentiu os pés dele encostando nos seus debaixo da mesa,
das mesas tantas daqueles vinte e cinco anos. E teve vontade
de chorar, mas não chorou.
- Foi tudo muito rápido - repetiu o dono do circo ao repórter
do tablóide que pelo telefone lhe fazia as mesmas perguntas
já feitas anteriormente pelos outros todos. Sentado no trailer
da administração, sem casaco de alamares, sem botas, era
apenas mais um homem de jeans.
- Não houve tempo de tomar qualquer atitude. A segurança
estava atenta, mas não deu para salvar o homem. Ninguém
podia imaginar...
- Sim, é claro que estavam armados, num circo contamos
com muito imprevisto, nunca uma coisa assim, isso nunca
aconteceu em circo nenhum, e com toda aquela gente de
pé, aos gritos, os seguranças não podiam atirar, imagine
acertar alguém...
- Lá vem o senhor insistindo nisso. Não, eu já lhe disse antes
e repito. Não há perigo nenhum para os espectadores, nunca
houve.
- Como, nem ontem à noite? Ontem à noite, meu amigo,
não foi questão de perigo. Foi uma fatalidade, uma loucura,
uma coisa que ninguém podia evitar.
Eu podia ter evitado. Mas como é que eu ia imaginar uma
coisa dessas, me diz, como? Na sala da amiga, Selena,
sentada, embola o lenço nas mãos enquanto junta forças
para voltar para casa, para saltar de um táxi diante da porta e
tocar a campainha, para esperar que Jonas abra, que por
caridade abra. E isso que Selena quer fazer agora, ir para
casa, tomar um banho, trocar de roupa. Mudará de idéia
depois, mas por enquanto é o que ela quer. E porque ainda
não tem coragem, e porque sabe que depois, com Jonas, terá
que se controlar, falar de uma outra maneira sobre o que
aconteceu, vai repetindo para a amiga uma vez mais aquilo
tudo que lhe contou ao chegar, mais pausadamente agora.
Que ela estava tão feliz, Daniel mexendo com ela por causa
do decote - a mão de Selena sobe, pousa no colo descoberto
mexendo, que aquilo era um perigo, que não a queria na rua
sozinha bonitona daquele jeito, bonitona, tinha dito assim
mesmo, e ela, naquela idade, tinha se sentido como se fosse
verdade, bonitona, os outros homens todos do restaurante
reparando. Tinha sido sempre assim com ele, desde a
primeira vez, aquele jeito brincalhão de falar...
No início mesmo da frase, Selena percebe, com súbita culpa,
que se referiu a Daniel no passado, como se cedo o estivesse
abandonando. Hesita, entre trair-lhe a morte ou tentar
mantê-lo vivo falando dele no presente. Mas o passado já
venceu. Selena parou por instantes. Olha as mãos, as unhas
que tinha feito para a ocasião, agora tão sem sentido, unhas
vermelhas numa hora dessas. E revê a própria mão sobre a
mesa segurando a de Daniel. Tinham tomado cerveja, é
verdade, mais que de costume, mas restaurante é assim
mesmo, demora para chegar a comida, a pessoa fica
bebendo, Daniel nunca tinha sido de muita bebida. E o que
tinha demais beber um pouquinho além da conta, se era
uma noite de festa e depois ainda iam ao circo?
Falei aquilo com ele, não foi por mal, não foi. Selena abaixa a
cabeça, cobre os olhos com o lenço ainda meio embolado,
os olhos secos, como se o lenço pudesse atrair as lágrimas e
aliviá-la. Estava lindo o circo, aquela gente toda, a música, o
barulho, o cheiro quente das feras. Desde menina que ela
não ia, e sempre tinha gostado tanto, sempre tinha tido tanta
vontade. Mas Jonas não gosta dessas coisas, você sabe o jeito
do Jonas, foi por isso que Daniel quis me levar, pra me
agradar, ele sempre fez tudo pra me agradar. Agora, as
lágrimas vêm e Selena nem se lembra do lenço.
Sempre fez tudo. Tinha o mágico, circo sem mágico nem
parece circo, Daniel ficou imitando, fingindo que tirava os
papeizinhos do ingresso de dentro da manga, dizendo para
Selena que na bolsa dela tinha um pombo. Daniel ria tanto
dos palhaços. Teve cavalos, aquela coisa toda de trapézio. E
chegou a hora das feras. Demoraram para armar as grades
em volta do picadeiro, dois cachorros amestrados distraíam
o público, o bater dos ferros encobria a música. E então
estava pronto.
O domador entrou primeiro. Chegou esvoaçando uma capa
de cetim, parou no meio do picadeiro, um assistente veio
por trás, tirou a capa. No instante em que a capa se abriu, o
domador estalou o chicote no ar. Selena teve a impressão de
que ele estava nu, só o cinto largo rodeando-lhe os quadris e
a tira de couro atravessada no peito. A sunga era quase da
mesma cor da pele.
Os leões entraram um de cada vez pelo corredor gradeado.
De cabeça baixa, os flancos nervosos, as patas macias
avançando cautelosas sobre a serragem. Alguns rosnavam,
quase correndo, ávidos, debandando na saída ao estalar do
chicote. Eram cinco.
No silêncio da sala, que só sua voz interrompe, Selena ouve
outra vez os gritos do domador organizando as feras em seus
lugares, estalando o chicote quando elas erguem as garras
ameaçadoras. Lembra-se do seu olhar, dela, Selena,
acariciando as cicatrizes que marcam as coxas dele abaixo da
sunga. Mas isso não conta para a amiga. Para a amiga repete
o que Daniel disse para ela, que ia comprar pipocas, e ela
ainda falou que não, não fazia questão, logo agora, e ele já se
esgueirava entre as pessoas, com licença, e ela como podia
adivinhar?, ela voltou a olhar para o picadeiro.
Sim, ela tinha dito antes para ele, mas no mesmo jogo de
amor e ficção com que ele a tinha chamado de bonitona no
restaurante, ela tinha dito para ele, olhando o domador e
vendo como as feras lhe obedeciam a contragosto, ferozes,
ela tinha dito, em tom faceiro e desafiador tinha sim, tinha
perguntado se por amor a ela ele seria capaz de também
enfrentar feras.
Olhava para o domador quando ouviu o primeiro grito. As
pessoas na frente dela se levantaram de um salto, gritando,
tirando-lhe a visão, todos se levantavam, ela também, mais
para ver o que acontecia do que por espanto. E foi assim, por
entre ombros e cabeças, que ela viu Daniel já no fim do
corredor gradeado e inutilmente gritou gritou enquanto ele
avançava no picadeiro.
O tigre
Minha intimidade com o tigre era falsa. Embora fosse meu
por direito e papel passado. Não confiei. Temi pela
intocabilidade do rosto, importância das duas únicas mãos. E
mantive o afago leve de quem está pronto a retirá-lo.
No entanto ele nunca me traiu. Em nenhum momento
fingiu uma docilidade que não tinha. Nem quando se
aproximava em passos longos quase corridos e eu lhe temia
o peso. Nem quando erguia a pata retribuindo e afastando
minhas carícias. Nem mesmo quando, afirmando sua posse,
me transferiu de uma só bocada para o úmido calor de suas
entranhas.
História mais longa para quebrar o ritmo
Chove.
Os primeiros bichos chegam ao celeiro da montanha. E já a
água sobe nas planícies e os rios abandonam seus leitos. Mas
o celeiro é úmido e quente, madeira podre, cheiro de toca, e
os animais se sentem protegidos. Chegam, farejam na porta
escura, e logo entram misturando-se a seus pares.
Chove.
Poucos nos primeiros dias, se aquecem uns contra os outros,
pêlo, pena, couro, escama. Mas a chuva continua e mais
bichos chegam, enchendo o celeiro que estala debaixo da
tempestade e da pressão.
Ninguém ouve quando o gato come o rato. Na noite
seguinte, quando o gato é morto pelo cão, os outros animais,
entretidos com a luta do tigre e do elefante, nada percebem.
No alarido que acompanha a vitória do tigre, a jibóia fecha
suas espirais sobre o coelho, sem que o estalar dos ossos seja
notado pelos demais.
Chove.
A água sobe ao redor do celeiro, imenso lago. O ronco do
trovão abafa o rosnar da pantera que salta sobre a gazela.
Esquivo, o chacal bebe o sangue. Na escuridão do celeiro a
coruja abre os olhos fechando a garra sobre o dorso do
esquilo, o javali enterra as presas no flanco da raposa, o
morcego se espoja na jugular do boi.
Chove. Mas as nuvens se esgarçam no horizonte, e uma luz
distante ilumina as águas.
Lá fora o silêncio. Cá dentro balidos, gemidos, rosnados,
latidos. Ágil, o macaco escapa da onça. Rápido, o condor se
abate sobre ele. O veneno da tarântula mergulha a marmota
em sono definitivo, a picada da lacraia paralisa o cavalo, e o
escorpião ameaçado pelo tatu volta contra si o próprio
ferrão. O chifre do búfalo afunda na maciez do carneiro. A
girafa dobra-se ao peso do lince. A garça desfolha-se sob a
fúria do lobo. A hiena ri seu longo pranto.
Perdida a violência, a chuva se faz fina e lenta garoa.
E lentamente o urso aperta o tamanduá prenhe de formigas,
o rinoceronte esmaga o crocodilo farto de pássaros, a
lagartixa engole o grilo devorador de mosquitos. Na palha, o
quati não pressente o aproximar-se do falcão, nem vê a
cobra que lhe disputa a presa.
Fina e espaçada, a chuva pára. Aos poucos a água baixa, o
primeiro verde surge na lama. Então a pomba desabrocha
súbitas asas em farfalhar de vôo, para logo voltar com um
raminho no bico, à procura de um lugar entre as telhas, para
o ninho. Embaixo, no celeiro, o leão ferido de morte estra-
çalha as carnes do último adversário.
Onde os oceanos se encontram
Onde todos os oceanos se encontram, aflora uma ilha
pequena. Ali, desde sempre, viviam Lânia e Lisíope, ninfas
irmãs a serviço do mar. Que, no manso regaço da praia,
vinha depositar seus afogados.
Cabia a Lânia, a mais forte, tirá-los da arrebentação. Cabia a
Lisíope, a mais delicada, lavá-los com água doce de fonte,
envolvê-los nos lençóis de linho que ambas haviam tecido.
Cabia a ambas devolvê-los ao mar para sempre.
E, na tarefa que nunca se esgotava, passavam as irmãs seus
dias de poucas palavras.
Foi num desses dias que Lânia, vendo um corpo emborcado
aproximar-se flutuando, entrou nas ondas para buscá-lo, e
agarrando-o pelos cabelos o trouxe até a areia. Já estava
quase chamando Lisíope, quando, ao virá-lo de rosto para
cima, percebeu ser um homem jovem e lindo. Tão lindo
como nunca havia visto antes. Tão lindo, que preferiu ela
própria buscar água para lavar aquele sal, ela própria, com
seu pente de concha, desembaraçar aqueles cachos.
Porém, ao envolvê-lo no lençol ocultando- lhe corpo e
rosto, tão grande foi seu sofrimento que, num susto,
descobriu-se enamorada.
Não, ela não devolveria aquele moço, pensou com fúria de
decisão. E rápida, antes que Lisíope chegasse, correu para
uma língua de pedra que estreita e cortante avançava mar
adentro.
- Morte! - chamou em voz alta chegando na ponta. - Morte!
Venha me ajudar.
Não demorou muito, e sem ruído a Morte saiu de dentro
d'água.
- Morte - disse Lânia em ânsia -, desde sempre aceito tudo o
que você me traz, e trabalho sem nada pedir. Mas hoje, em
troca de tantos que lhe devolvi, peço que seja generosa, e
me dê o único que meu coração escolheu.
Tocada por tamanha paixão, concordou a Morte, instruindo
Lânia: na maré vazante deveria colocar o corpo do moço
sobre a areia, com a cabeça voltada para o mar. Quando a
maré subisse, tocando seus cabelos com a primeira espuma,
ele voltaria à vida.
Assim fez Lânia. E assim aconteceu que o moço abriu os
olhos e o sorriso.
Mas, em vez de sorrir só para ela que o amava tanto, desde
logo sorriu mais para Lisíope, e só para Lisíope parecia ter
olhos.
De nada adiantavam as insistências de Lânia, as desculpas
com que tentava afastá-lo da irmã. De nada adiantava
enfeitar-se, cantar mais alto que as ondas. Quanto mais
exigia, menos conseguia. Quanto mais o buscava para si,
mais à outra ele pertencia.
Então um dia, antes do amanhecer, ajoelhada sobre a ponta
da pedra, Lânia chamou novamente:
- Morte! Morte! Venha me atender.
E, quando a Silenciosa chegou, em pranto e raiva pediu-lhe
que atendesse só ao último de seus pedidos. Levasse a irmã.
E mais nada quereria.
Seduzida por tamanho ódio, concordou a Morte. E instruiu:
deveria deitar a irmã sobre a areia lisa da maré vazante, com
os pés voltados para o mar. Quando, subindo a água, o
primeiro beijo de sal a aflorasse, Ela a levaria.
E assim foi que Lânia esperou uma noite de luar, quente e
perfumada, e chegando perto de Lisíope lhe disse:
- Está tão linda a noite, minha irmã, que preparei tua cama
junto à brisa, lá onde a areia da praia é mais fina e mais lisa.
E, conduzindo-a até o lugar onde já havia posto seu
travesseiro, ajudou-a a deitar-se, cobriu-a com o linho do
lençol.
Em seguida, sorrateira, esgueirou-se até uma árvore que
crescia na beira da praia, e subiu até o primeiro galho,
escondendo-se entre as folhas. De olhos bem abertos,
esperaria para ver cumprir-se a promessa.
Mas a noite era longa, na brisa vinha cheiro de jasmim, o
mar apenas murmurava. E aos poucos, agarrada ao tronco,
Lânia adormeceu.
Dorme Lânia na árvore, dorme Lisíope perto d'água, quando
um raio de luar vem despertar o moço que dorme, quase a
chamá-lo lá fora com todo o seu encanto. E ele se levanta e
sai. E estonteado de perfumes caminha, vagueia lentamente
pela ilha, até chegar à praia, e parar junto a Lisíope. No sono,
o rosto dela parece fazer-se ainda mais doce, boca
entreaberta num sorriso.
Sem ousar despertá-la, o jovem se deita ao seu lado. Depois,
bem devagar, estende a mão, até tocar a mão delicada que
emerge do lençol.
Sobe o amor no seu peito. Na noite, a maré sobe.
Já era dia quando Lânia, empoleirada no galho, despertou.
Luz nos olhos, procurou na claridade. Viu o travesseiro
abandonado. Viu o lençol flutuando ao longe. Da irmã,
nenhum vestígio.
- A Morte fez o combinado - pensou, descendo para correr
ao encontro do moço.
Mas não correu muito. Diante de seus passos, estampada na
areia, deparou-se com a forma de dois corpos deitados lado a
lado. A maré já havia apagado os pés, breve chegaria à
cintura. Mas na areia molhada a marca das mãos se mantinha
unida, como se à espera das ondas que subiam.
A paixão da sua vida
Amava a morte. Mas não era correspondido.
Tomou veneno. Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre
ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço.
Quando finalmente desistiu da paixão entregando-se à vida,
a morte, enciumada, estourou-lhe o coração.
Para que ninguém a quisesse
Porque os homens olhavam demais para a sua mulher,
mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se
pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi
obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os
sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda,
das gavetas tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um
ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a
tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas
vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como
um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela,
permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos,
mimetizada com os móveis e as sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus
dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que
tivera por ela.
Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda.
À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o
que restava dos cabelos.
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem
pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido numa gaveta,
esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de
vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.
A raposa
Nunca aceitou o leite que eu teimava em lhe dar. Desde o
primeiro dia quis carne. Morta, mas às vezes pequenos
animais que obtenho com repugnância e jogo no quarto
procurando seus olhos que não me entregam a avidez.
Depois, eu sei, atrás da porta fechada ela caça.
Assim é a minha raposa, nunca minha. Pequena, arisca
mostrou-me logo os dentes num rosno assoprado, som de
desafio que mal passava pela garganta fechada. Gostei da
raiva, da selvageria que arqueava o dorso de magras costelas.
Pensei que seria bom domesticá-la, fazê-la servil, cão à meus
pés, amiga. E a trouxe no colo, feliz por vencer com a força
sua resistência.
O leite na tigela. Intato na manhã seguinte, véu sujo
salpicado de insetos mortos, cheirando a azedo. Vinco do
leite na tigela debaixo da torneira, limpeza, leite fresco,
minha insistência prolongando-se na chantagem da fome. E
novamente o leite intocado, a sua constância de carnívoro.
Até o dia da carne, que não comeu na minha frente, mas da
qual não deixou restos.
Fiz tudo para conquistá-la. Só eu lhe dou comida. Só eu
entro no quarto onde me recebe esquivando-se a um canto,
o dorso tenso, os dentes à mostra. Há anos mantenho a voz
igual em chamado monótono que se faça amigo. Há anos me
esforço para que me queira.
E um dia aconteceu o bicho vivo. Não sei como me ocorreu,
mas depois pareceu-me impossível não ter percebido antes
que a caça era a sua necessidade primeira. E resolvi satisfazer
o desejo nunca manifesto. Comprei o coelho na loja de
animais, escolhido ao acaso na gaiola entre outros que teriam
melhor sorte. A culpa pela decisão de um destino misturava-
se uma ansiedade nova pelo prazer que lhe daria, pela
cumplicidade no sangue do ser vivo, uma ansiedade
carnívora.
Fingiu não ver, toda ela presa ao ponto branco refugiado a
um canto. E, porque eu me interpunha entre ela e seu
momento de instinto, rosnou em ódio.
Fechada a porta atrás de mim, a violência da caçada que
intuía me impôs a obtenção de novos animais.
Sei que não dorme à noite. Anda. De uma parede a outra as
patas marcam seu tempo, brilham os olhos no escuro que
não ouso interromper. E quando pára é sempre debaixo da
janela.
Vidros abertos, venezianas fechadas, encontro às vezes o
vinco de suas unhas na madeira dura, o sinal dos dentes. É
por ali que conta fugir.
O quarto nunca varrido acumula seu cheiro. Os pêlos mortos
suavizam os cantos. Os panos que lhe dou e que estraçalha
nos dentes logo se confundem com a palha. Nas paredes, a
marca das patas denuncia o esforço de evasão.
À noite, no sono da casa, ela marcha seu cativeiro entre as
quatro muralhas. A intervalos ergue-se nas patas traseiras,
diante da janela, testa a resistência, fareja o ar que vem de
fora. O trinco é forte. Mas sua vontade é maior que a minha
e um dia a veneziana cederá sob seu peso ou eu mesma a
esquecerei aberta. Imóvel no jardim por um instante juntará
então suas lembranças à procura do rumo, sem saber que a
cidade cresceu ao redor e que ela nunca mais achará o
caminho da floresta.
Bela, das brancas mãos
Era bonita e jovem como um amanhecer. E os homens da
aldeia, todos, suspiravam por ela. Os solteiros a olhavam de
frente, tentando apoderar-se do seu olhar. Os casados a
olhavam de viés, escondendo o brilho dos olhos sob as
pálpebras abaixadas. Os velhos e os meninos a olhavam à
noite em seus sonhos.
Ela, porém, não olhava ninguém. Cuidava do seu fazer com
alegria, cantava, caminhava leve com pés descalços. Pouco
conversava com as outras mulheres da aldeia.
Essas também a olhavam. Mas com olhos escuros. Viam a
mocinha fazer-se mulher. Viam seus homens cada vez mais
atraídos. E viam-se mais feias, porque o espelho era ela.
Depois aconteceu que um moço largasse a junta de bois no
meio do campo para segui-la até o rio. Houve a noite em
que um marido não voltou para casa, suspirando a noite toda
debaixo da sua janela. Dois jovens brigaram a faca e se disse
que havia sido por ela. O louco da aldeia enforcou-se e todos
só pensaram em um motivo.
À noite, as mulheres reuniram-se enquanto ela dormia. E
decidiram seu destino. No escuro ainda, a arrancaram da
cama e a expulsaram da aldeia, que nunca mais voltasse. Aos
homens, no dia seguinte, disseram que havia partido com
um viajante.
E não houve mais bois abandonados no meio do campo, os
maridos todos regressaram para suas casas à noite, as brigas
passaram a ser por causa da terra. E um dia um homem
perdeu a razão e a aldeia voltou a ter o seu louco.
Tudo era tranqüilidade. Até o dia em que um dos homens
saiu para caçar e não voltou.
Procuraram por ele no bosque, procuraram por ele no rio. E
nada encontraram. Só sua arma, debaixo de um arbusto.
Passados muitos meses, quando já ninguém falava no
desaparecimento, outro foi cortar lenha. E não voltou.
Dessa vez só procuraram entre as árvores. Encontraram o
machado. Mas dele, nem sinal.
Durante muito tempo falou-se no homem que havia sumido.
Muitos evitaram ir ao bosque. Depois, aos poucos, o fato foi
se afastando na memória da aldeia, e as coisas voltaram a ser
como antes.
E como antes um homem foi ao bosque, e como antes
desapareceu, e como antes nada dele se encontrou.
Era o terceiro a desaparecer na aldeia. Haveria outro depois.
E mais um.
As mulheres choravam com seus negros olhos.
Ninguém mais queria ir ao bosque. Porém, estando por
acabar as provisões de suas casas, dois homens decidiram
que juntos o perigo seria menor. E saíram para caçar.
Muitas vezes haviam percorrido aquelas trilhas. Mas, por
mais que conhecessem todos os ninhos e tocas, naquele dia
nenhuma criatura de pêlo ou pena cruzou seu caminho. E,
procurando, embrenharam-se mais do que pretendiam.
Um deles ia na frente. O outro, o acompanhava. Sem que o
primeiro percebesse, o segundo foi ficando para trás e,
atraído por um ruído, meteu-se entre as folhagens.
Seu grito não demorou. Correu o primeiro para ajudá-lo.
Mas, chegando ao lugar de onde vinham os chamados, viu a
metade superior do amigo, que agitava os braços e gritava
por socorro, enquanto a outra metade desaparecia na boca
de uma enorme serpente.
Pensou em atirar, mas temeu atingir o companheiro ou
atiçar a fúria da serpente, que poderia cortá-lo ao meio.
Então agarrou-o pelas mãos e, cravando os pés no chão,
começou a puxar.
Puxou, puxou, puxou. E aos poucos viu a cintura do amigo
sair da verde moldura daquela boca, depois apareceram os
quadris, as coxas, as pernas.
Extenuado, deixou-se cair, enquanto o amigo acabava de se
libertar.
Mas, ao levantar a cabeça, viu que este, embora fora da
serpente, sacudia os pés e lutava tentando soltar-se de
alguma coisa mais.
Aproximou-se. Saindo da boca da cobra, duas mãos
prendiam-se aos tornozelos do amigo.
Agora eram dois a puxar. Puxava uma mão o primeiro,
puxava a outra mão o segundo. E palmo a palmo um terceiro
homem foi saindo como o outro havia saído. Era aquele que
por último desaparecera da aldeia.
Limpavam-se os dois de suor e poeira, quando viram que o
homem também sacudia os pés, presos os tornozelos por
duas mãos que despontavam da boca da serpente.
Agora que eram três a puxar, nem parecia necessário fazer
tanta força. Mas era. E afinal caíram os três exaustos, e o
homem que acabava de sair viu que seus tornozelos estavam
presos, e os quatro começaram a puxar.
Cinco homens vieram à luz dessa forma. Na mesma ordem
em que ao longo dos meses haviam desaparecido da aldeia.
E, quando o quinto saiu, viu que ao redor dos seus
tornozelos, como pulseiras de marfim, duas mãos delicadas e
brancas se apertavam.
Foram sete a puxar. E surpresos perceberam que, à medida
que os pálidos braços saíam da boca escura, encolhia-se,
tragada para dentro dela mesma, a cauda da serpente.
Os braços nem haviam surgido inteiros, e já despontava uma
cabeça de longa cabeleira, revelava-se um doce rosto de
mulher. Nova delicadeza movia os sete homens. Quando a
mulher enfim foi liberada, reconheceram a moça da aldeia,
que acreditavam ter partido com um viajante. E, estando ela
nua, procuraram no chão algo com que cobri-la. Mas no
chão não havia nada. Nem mesmo a longa pele da serpente.
Porque era frio nas horas mais ardentes
Foi na estação de águas, ao repousar contra um tronco, que
ela conheceu aquele boa constrictor. Era discreto,
persuasivo e muito sedutor. Logo tornaram-se amantes.
Todas as tardes, quando langor e achaques prendiam os
hóspedes em seus quartos, ela ia encontrá-lo no canto mais
sombrio do parque. E o mormaço, o beijo bífido, as espirais
amorosas que mal lhe permitiam respirar levavam-na a
delícias nunca pressentidas.
A hora da partida forçou a constatação: já não podia abrir
mão de prazer tão intenso. Enrolado o boa numa valise,
viajou com ele até sua casa, e o instalou no banheiro. Ali ele
poderia fugir para o terraço em caso de perigo, ou esquivar-
se atrás da banheira. Ali poderiam se amar livres de riscos,
sem observância de tempo, trancada a porta a toda
curiosidade.
Nunca antes tomara ela tanto banho. Queixava-se em voz
alta de calor, sujeira, cansaço. E, controlando o passo que
sentia urgente, entrava no banheiro. O rodar da chave e um
breve apelo bastavam para que o boa deslizasse em sua
direção. Lisa e fria carne a possuía então, coleando nas suas
curvas, escorrendo rija sobre a pele. Ardente, ela cravava as
unhas na felpa do tapete, enquanto a água do chuveiro
aberto encobria silvos e suspiros.
Uma tarde, porém, extemporâneo, entrou o marido no
banheiro. E ao som da chave, acreditando tratar-se da
amada, o boa sôfrego de amor saiu do esconderijo.
Depararam-se os dois num mesmo espanto. Rápido, o
homem correu ao quarto, apanhou o revólver. Dois
estampidos, um filete de sangue. Sobre o branco piso já não
farfalham escamas. A morte lentamente suga a força túrgida.
Como uma pincelada escura jaz, flácido, o corpo do boa.
Uma vítima, um troféu. Que o defensor do lar recolheu e
enviou a um especialista, a fim de que, tirado e curtido o
couro, dele se fizessem sapatinhos de salto alto e um belo
cinto para sua mulher.
Em ocasiões de gala pede-lhe, orgulhoso, que os use. Não
sabe que ao rodear a cintura com a pele escamada ela suspira
enamorada. E, apertando bem a fivela, está mais uma vez
presa no sufocante amplexo do seu amante.
Na lua cheia talvez
- Pena o senhor vir hoje, não tem quase nada mais. O
melhor já foi, levaram. Tivesse vindo antes...
Simples mas arrumada, o cabelo preso, bem preso, a roupa
bem limpa, as mãos bem seguras uma na outra, a mulher que
havia nos recebido à porta hesitava, marcando com as
palavras a inutilidade da nossa presença, enquanto o corpo
se esgueirava para o lado convidando-nos a entrar.
Por trás dela, bem junto, segurando-a pela cintura como se a
um anteparo, um homem jovem, cabeça encolhida entre os
ombros.
- Mentira - disse o homem jovem. Não era uma acusação.
Não havia raiva na voz. Pontuava a frase, apenas. A mulher
pareceu nem ouvir.
Tínhamos ido à casa dela por causa de uns móveis para
vender. Assim nos haviam aconselhado na praça. Que eram
móveis bons, antigos, que valia a pena. A mulher queria se
desfazer. E agora, já dentro de casa, avançando alguns
passos, ela nos dizia que não havia móvel nenhum, só uma
mesa. Que não era boa.
- Tinha a sala de jantar completa. Étagère, cristaleira. Coisa
fina, de família.
- Mentira.
O jovem escondeu-se ainda mais por trás da mulher.
A sala, penumbrosa. A porta aberta para um corredor. E o
desconforto da situação que - já sabíamos - não levaria a
nada, mas da qual ainda não conseguíamos nos extrair.
- Tinha muita coisa mesmo. Moldura dourada, poltronas
douradas, o espelho grande.
- Mentira.
Parecia difícil imaginar algo dourado naquela casa lavada por
tempo e descaso. Quem se olharia no espelho? Separando as
mãos em gestos breves que indicavam o caminho, a mulher
conduziu-nos pelo corredor até outra sala. O jovem veio
junto. Sobre o assoalho de tábuas uma talhada de luz. As
paredes nuas, sem marcas. Móvel algum.
- Sobrou a cama, o senhor quer ver?
Alheio por um instante, acompanhando com
o pé a mancha exata da luz, o jovem perdeu o refrão.
Já não queríamos ver cama nenhuma. Mas parecia rude
dizê-lo, agora que havíamos penetrado na casa, invadindo
com nossa ganância de turistas essa ausência de tudo.
A mulher foi na frente, abriu uma porta, a única fechada até
então. O quarto era pequeno e escuro. Sem janelas. Um
basculante, no alto, fosqueado de poeira. E um cheiro de
mato. Folhas e ervas amontoadas cobriam o chão, engoliam
a base das paredes. Mais que um quarto parecia um ninho
seco. No meio, com as pernas surgindo duras como as de
uma ave daquele entrelaçar, a cama. Nua, sem colchão.
Cama que também não íamos querer, que não era bem o que
procurávamos, dissemos tentando ser gentis.
- Melhor assim - respondeu a mulher, sem lástima. Parecia
quase aliviada que nada quiséssemos. — Fica para ela -
acrescentou.
Juntou as mãos novamente. Parada, olhava a sombra do
quarto, os cantos arredondados pelas folhas.
- Uma noite, ela vem. Gosta de mato. Eu sei. Serpenteia nas
folhas, se enovela, gosta do calor. Foi por isso que botei isso
aí, para ela querer ficar.
- Mentira - disse o rapaz por trás dela, e quase não se ouviu
porque tinha escondido o rosto entre a nuca e o ombro da
mulher. Ela deslizou para trás o braço esquerdo, protegendo-
o.
- Pena o senhor ter vindo hoje, quarto minguante, não vai
dar para ver, não aparece de jeito nenhum.
- Mentira.
Com a suavidade de um gesto consueto a mulher
desprendeu o rapaz. Saímos, ela fechou a porta. No alto o
basculante continuava aberto.
Passamos pela cozinha fria, sem cheiro de comida,
acreditando estar no caminho da saída. Ela parou, apontou
um ponto no quintal, para nós impreciso.
- Ali - disse como se houvesse algum marco. - É ali o lugar
dela.
Manteve a mão erguida por instantes, firme. Nada
diferenciava o ponto indicado. Nada se destacava em meio
àquele resto de horta. Girassóis pendiam quase secos entre
canteiros, mato e alguns magros tomateiros partilhavam o
espaço azulado pelas couves.
- Minha linda serpente. - Algo próximo de um sorriso
suavizou o rosto da mulher. - Vem por causa da flor, por
causa do perfume da flor quando está aberta. Eu já sei, fico
esperando por ela.
Voltou-se para nós.
- Tinha muito móvel aqui em casa, sofá de palhinha,
aparador. Tudo antigo. Tudo bom. Foi pena vocês terem
vindo hoje, que nem quarto crescente é. Tudo já se foi. O
senhor ia gostar do aparador - fez uma pausa, pareceu sorrir
de leve. - A semente da flor ganhei. Sei lá quem deu. Plantei
debaixo do cajueiro, esqueci dela, sementinha boba de nada.
- Mentira - veio a voz abafada entre o corpo dela e a porta.
- Plantei e esqueci, pra que ia lembrar? Aí deu lua cheia. Foi
a lua aparecer, e eu senti aquele cheiro, aquele perfume
todo. Entrava dentro de casa feito água, pelas janelas, pelas
frestas, o perfume, o perfume tão forte que tonteava. Saí
procurando, entrei pelo mato. E vi a flor. O luar clareando
tudo. A flor linda demais, clara que nem a lua. Quase pisei
na serpente.
- Mentira.
- Levei aquele susto. Mal deu para ver. Mas ela tinha pernas.
Fugiu.
- Mentira.
Esboçamos um movimento, virando corpo e cabeça,
entendesse que queríamos ir embora, sem obrigar-nos a
dizê-lo. Não havia saída pelo quintal. A mulher nos
conduziu de volta através da cozinha, através do corredor,
da sala, varando o longo vazio daquela casa.
- O senhor ia gostar dos espelhos. Na flor seguinte, da outra
lua, vi de novo. E depois, sempre. Toda lua, toda flor, ela
está lá. Sai de dentro dela. De dentro da flor, quero dizer. Só
pode ser. Ou então vem por causa do perfume, chega perto
que nem eu. Mas tem pernas, isso tem, que já vi. E brilho de
ouro.
- Mentira.
Paramos ainda por um instante na varanda bem varrida, as
tábuas de madeira suave veludo de tantas mínimas farpas.
- O senhor precisa voltar. Mas na lua cheia. Ficam todos aqui
em casa até de noite, para ver ela. E a mesa, tem certeza que
não vai levar?
- Hoje não, a senhora mesma disse, o dia não está bom. Na
lua cheia talvez...
- Mentira.
No aconchego da grande mãe
Durante quarenta anos gerou filhos que, ampla e generosa,
continuava a abrigar no ventre passado o tempo da gestação.
Por que atirá-los no mundo se, mãe, a todos podia conter e
alimentar?
Achando, porém necessário dar-lhes boa educação, fez
quatro vezes o serviço militar para atender às necessidades
cívicas dos seus filhos homens, e completou oito cursos de
corte e costura para garantir o futuro de suas filhas mulheres.
Já estava quase chegando à velhice, quando a doçura de
netos começou a lhe parecer mais desejável do que tudo.
Não resistindo, deitou-se enfim no centro da cama e, abertas
as poderosas coxas, começou o esforço. Em vão suou lençóis
e fronhas, em vão inchou as veias do pescoço. Passadas
horas, passados dias em que sem descanso lutava para
expelir, compreendeu: por amor e segurança seus filhos se
recusavam a deixá-la. Nunca seria avó.
Então a tristeza abateu-se sobre ela. Emagreceram as pernas,
emagreceram os braços. Só a barriga não emagreceu,
vagando imensa pela casa. Mas a pele se fez cada vez mais
fina, e em certas horas da manhã, quando a luz bate clara e
penetrante sobre o ventre de opalina, já se podem ver os
rapazes garbosos na ordem unida, e as moças que cosem
infindáveis camisolas.
Não há nada no bosque
Breve seria noite. Mas ainda era doce atardar-se do lado de
fora da casa, deixar-se ficar na última luz. O ar até então
morno desembainhou suas primeiras lâminas. O capim alto e
queimado pelo verão ondulou leve. A mulher cruzou os
braços sobre o peito. O homem, sentado no degrau da
entrada, recostou-se contra a porta. Não falavam. Foi então
que o cachorro latiu.
Voltou a cabeça para o pequeno bosque de abetos, orelhas
erguidas, e latiu.
Não há nada ali, seu bobo, venha cá!, ordenou o homem
desejando que o cão se calasse e fosse restabelecida a
quietude anterior. Inclinou-se para a frente, estalou os
dedos. O cão não se moveu.
Vai ver, tem alguma coisa no bosque, disse a mulher. E ele
sabia que havendo suspeita de alguma coisa no bosque
caberia a ele ir verificar.
Não tem nada, o que você quer que tenha?, respondeu
sabendo que se o cão latisse novamente não lhe restaria
alternativa senão levantar-se e caminhar até a mancha
azulada dos abetos. O cão latiu.
A mulher agora olhava firme em direção ao bosque.
O homem levantou-se, avançou até onde estava o cão,
chamou-o enquanto continuava andando. O cão não o
seguiu. Praga de cachorro!, murmurou o homem. E foi.
O bosque estava mais escuro do que tinha pensado. Ali a
noite havia-se antecipado, deslizando enevoada entre os
troncos. O homem esfregou os braços com as mãos para
combater o frio, aspirou fundo o perfume de resina. Andou
um pouco a esmo, à procura nem sabia de quê. Eu devia vir
mais aqui, pensou sentindo debaixo da sola o chão
escorregadio e liso, coberto de agulhas. Um galho estalou,
alguma coisa volteou no ar. O homem pensou vagamente
que seria bom deitar-se naquelas sombras, que faria isso
algum dia. E saiu do bosque. Estava a meio caminho quando
o cão latiu outra vez.
A partir daquela tarde foi como se um marco houvesse sido
plantado em algum lugar entre os troncos. Um marco de
perigo que mantinha alerta os sentidos do cão.
Latia. Trotava diante da casa, de um lado a outro, como se
defendendo a porta. Avançava súbito, saltava para trás,
depois deitava-se quase encoberto pelo capim, o focinho
entre as patas, os olhos atentos. E rosnava.
De nada adiantaram as admoestações, as ordens. O homem
quis prendê-lo na coleira. O cão debateu-se tentando soltar-
se com os dentes, puxando, até abrir chagas no pescoço,
obrigando o homem a libertá-lo. Parecia à mulher que o
melhor era mantê-lo dentro de casa, chamava, batia com o
prato de comida, seduzia-o. Mas por pouco tempo. O animal
raspava a porta com as patas, cainhava metendo o focinho
na fresta, e a mulher penalizada cedia.
O que tem esse bicho?, perguntavam-se impacientes. Várias
vezes o homem voltou ao pequeno bosque. A mulher
chegou a ir com ele. Vasculharam. Nada. Perigo nenhum
que se visse.
O cão, inquieto. Mal comia. O olhar sempre pronto a
abandonar o que quer que estivesse olhando, para voltar-se
naquela direção, na direção da mancha azulada, da suave
rigidez dos abetos.
Começou a latir também à noite, quando certamente não
podia ver. Mas os sentidos do cão, pensaram os donos. E o
sono tornou-se difícil. A inquietação do animal pesava sobre
a casa. A ameaça rondava, uma ameaça que eles não podiam
ver, mas que se corporificava no focinho tenso do cão, nas
orelhas erguidas capazes de captar mensagens que a eles, os
ameaçados, escapavam.
Talvez fosse melhor cortar as árvores, sugeriu um dia o
marido no café da manhã, com a cabeça baixa e a boca quase
metida na xícara. Havia pensado nisso durante a noite,
insone. Apesar do tom, era mais que uma sugestão.
As árvores!?, exclamou a mulher, defensiva, como se ele
tivesse lhe dito para cortar os cabelos. São tão bonitas nossas
árvores.
Pronto, já haviam virado nossas árvores. Agora seria mais
difícil convencê-la. Esforçou-se para ser paciente, que os
abetos estavam ficando velhos, alguns já se entortavam,
breve um ou outro desabaria, era um perigo, o pequeno
bosque não seria mais o mesmo ainda que o deixassem
como estava. E depois, a vista. Encobriam a vista. Seria bom
ter o horizonte livre. Sobretudo - e o homem sabia que esse
era o argumento definitivo -, é arriscado um bosque hoje
em dia. Pode abrigar qualquer coisa.
Vieram os homens. O ruído das serras mecânicas
sobrepujou qualquer outro durante dias. O ar encheu-se de
pó dourado, o cheiro de resina ardia nas narinas. Havia uma
quase alegria nesse ir e vir de operários e máquinas, apesar
da melancolia com que a mulher olhava às vezes, encostada
no umbral, enquanto o terreno era despido de seus cabelos
azuis. Depois, tudo voltou ao normal.
Começava o outono. Nos fundos da casa empilhava-se a
lenha com que alimentariam a lareira. Lentamente
atenuava-se o cheiro de resina. Agora, da janela - o frio não
permitia que se atardassem lá fora olhavam o entardecer,
viam o sol já mais pálido descendo por trás do horizonte
livre. Era um belo espetáculo, embora a sensação de
desamparo que os tomava por estarem assim no
descampado.
Uma tarde, a primeira em que acenderam a lareira
inaugurando as novas reservas, o cão deitado sobre o tapete
sobressaltou-se de repente. Ergueu a cabeça. Foi até a porta.
Farejou de um lado e outro. Quer sair, disse a mulher. O
homem levantou-se, abriu a porta. O cão saiu de um salto.
Cuidado com o frio, advertiu a mulher sentindo a lufada. O
homem ainda viu o cão, orelhas erguidas, olhando para a
campina que se inclinava ao vento, na exata direção onde
antes havia estado o bosque. Fechou a porta contendo-a
com a mão espalmada. E então ouviu o cachorro latir.
Uma vida ao lado
Fina, a parede. E, além dela, a vida do vizinho.
Irritante a princípio. Ruídos, pancadas, tosse, tudo
interferindo, infiltrando-se. Depois, aos poucos, familiar.
Sabia-lhe o banho, as refeições, as horas de repouso. A cada
gesto, um som. E no som, recriado, o via mover-se em
geometrias idênticas às suas. A sala, o quarto, o corredor.
Cada vez mais ligava-se ao vizinho, absorvendo seus
hábitos. Ouvia bater de louças e se apressava à cozinha,
vinham vozes moduladas e ligava a televisão. À noite só
conseguia dormir depois do baque dos sapatos do outro, o
ranger da cama assinalando que se metera entre lençóis.
Perdia-o, porém, quando saía porta afora. Passos, tinir de
chaves, lá se ia o vizinho. Sem ele, vazios a sala e o quarto, a
parede emudecia, separando silêncios.
Voltava ao fim do dia, pontual. Passos, tinir de chaves. Ele
então acendia a luz ao estalar do interruptor do outro, e
juntos punham a casa em andamento.
Tentava, às vezes, seguir-lhe as andanças. Espiava pelo olho
mágico estudando a paciência com que esperava o elevador,
postava-se à janela para ver que direção tomava, em que
ônibus subia.
E, justamente numa tarde em que espreitava, viu o outro
atravessar em má hora a rua movimentada, hesitar, correr e
ser atropelado por um furgão.
Percebeu que precisava trabalhar rápido. Sem hesitar,
arrancou as portas dos armários, as cortinas, pegou a caixa de
ferramentas, e começou a serrar, lixar, bater, colar.
Tudo estava pronto quando ouviu o caixão do outro chegar
para o velório. Sobre a mesa da sala, na exata posição em que
o do vizinho deveria estar, colocou seu próprio caixão.
Depois abriu a porta de par em par e, vestido no terno azul-
marinho, deitou-se cruzando as mãos sobre o peito.
Ainda teve tempo de pensar que tinha esquecido de
engraxar os sapatos. E já os primeiros visitantes começavam
a chegar, entrando com a mesma tristeza nos dois
apartamentos, para prantear defuntos tão iguais.
Um cantar de mar e vento
Desfraldava a vela com os mesmos gestos amplos com que
outras abrem a toalha sobre a mesa ou o lençol na cama.
Vela branca com uma branca lua bordada. E assim que
escurecia fazia- se ao largo.
Não levava redes, não levava anzol no barco pequeno.
Cestos somente, grandes. E em silêncio, escuro adentro,
navegava até chegar onde o mar é fundo como a noite.
Ali, recolhida a vela, ondulando suavemente à deriva,
punha-se a cantar.
Cantava baixinho, a moça pescadora, mas logo, trazidos
pelas malhas invisíveis da sua voz, os peixes começavam a
saltar fora d'água pulando para dentro do barco, luzidias
estrelas que iam se perder no colo da pescadora, escorrendo
entre as pregas da sua saia e iluminando por rápidos ins-
tantes o fundo úmido do barco.
Durante a noite toda a moça cantava. Seu primeiro silêncio
despertava o sol. Era hora de voltar, vela enfunada.
Sempre, ao chegar ao pequeno porto da aldeia, sua pescaria
revelava-se maior que a dos outros barcos. Desembarcava
cestos cheios, transbordantes, mesmo quando os demais não
precisavam sequer desembarcar seus cestos vazios. O mar
nunca era avaro para ela. Avaros faziam-se, porém, os
olhares dos outros pescadores.
Estando ao largo, numa noite como as outras em que, de tão
farto o barco, ela colhia um ou outro peixe do fundo e o
devolvia ao mar, um brilho diferente surpreendeu seu olhar.
Entre tanta prata de escama, um súbito cintilar de ouro.
Tateando entre os corpos luzidios buscou o peixe que aca-
bara de cair no seu regaço e, não sem espanto, viu que trazia
um anel na boca.
Um anel cinzelado em que ramos de flores retinham uma
pedra verde. Um precioso anel que a ninguém podia
devolver. E um pouco largo para a sua mão delicada, onde
só coube no dedo médio.
Aquela manhã, ao chegar no porto, a moça trazia mais do
que apenas cestos cheios. Em toda a aldeia, o único brilho
de ouro era seu. E um outro brilho, escuro, acendeu-se nos
olhos dos pescadores.
Mas, sem percebê-lo, ela continuou desfraldando sua vela ao
anoitecer e recolhendo-a de manhã, vivendo mais alegre no
mar do que na terra, tendo as estrelas como guia e sua voz
como companheira.
Até que, depois de algum tempo, em outra noite igual a
todas as que haviam passado, novamente um toque de ouro
coruscou colhendo sua atenção, e, quando ela pegou o peixe
que por último havia saltado no seu regaço, viu, menos
surpresa dessa vez, que trazia uma chave na boca.
Uma chave toda trabalhada. Uma rica chave de ouro sem
dono ou fechadura. Que a moça, desatando a fita que lhe
prendia o cabelo, pendurou no pescoço.
Mais ainda que o anel, a chave pendente como um colar
feriu o olhar dos outros pescadores. A inveja os unia.
Murmurantes e oblíquos, maldizendo o mar que só à moça
entregava seus tesouros, decidiram entregá-la ao mar, que a
guardasse sem nunca mais devolver. Serraram o mastro do
seu barco o quanto bastava para levá-la ao largo e partir-se
com os ventos do amanhecer. E pela primeira vez sorriram
vendo no escuro porto a vela branca que se abria.
Como se obedecesse ordens, o barco navegou até o largo e,
quando a pescadora içou a vela para colher os ventos da
manhã, partiu-se num estalo. Sem mastro, não havia meio
de voltar.
Ela poderia ter chorado, e não chorou. Sentou-se pensando
que a vela que sempre lhe havia garantido a vida agora lhe
serviria de mortalha. Mas de repente sentiu tantas leves,
levíssimas, batidas contra o casco, e percebeu atônita que
navegava em direção à terra. Olhando na água, debruçada
sobre a borda, compreendeu. Peixes pequenos e grandes,
muitos peixes, a empurravam.
Nenhuma alegria a recebeu na aldeia. O desapontamento
reforçou o desejo dos pescadores. E, antes mesmo que o
mastro tivesse sido trocado, aproveitaram-se de um
momento em que ninguém estava junto ao barco, furaram
seu casco em vários pontos, e cuidadosamente taparam os
furos com miolo de pão amassado com serragem. Dessa vez,
sequer sorriram quando a vela fez-se ao largo. E ao largo
ainda não havia chegado, quando o miolo de pão,
amolecido, desfez-se deixando entrar a água aos borbotões.
A moça bem poderia ter gritado, tamanho o susto. Não
gritou. Tentava em vão tapar um ou outro furo com a saia ou
o chalé, quando percebeu que a água já não entrava aos
borbotões, já não entrava de todo. Tateando, compreendeu.
Peixes haviam-se metido nos furos, tapando-os com o
próprio corpo.
Dessa vez, não havia ninguém no porto quando a moça
chegou, porque era noite. Mas, na manhã seguinte, mais
enraivecidos ainda ficaram os pescadores vendo que, contra
todos eles, o mar teimava em favorecê-la. Quando dias
depois, consertado o casco, ela se fez ao mar, o leme havia
sido trabalhado para desprender-se e afundar.
Percebeu-o a pescadora vendo-o desaparecer no azul,
quando estava em altíssimo mar e já não adiantava perceber.
Sem leme, seria levada pelas correntes, atirada contra os
arrecifes ou devorada pelo sol.
Vontade de chorar não lhe faltou. Mas, antes que tivesse
tido tempo de fazê-lo, um golfinho aflorou e mergulhou ao
lado do barco, depois à frente, do outro lado e novamente à
frente. Rápida, enquanto o golfinho continuava aflorando e
mergulhando ao seu redor, ela atou um cabo à proa, atirou-o
na água. E logo o golfinho colheu o cabo na boca e começou
a rebocar.
Navegaram a noite inteira, ela em silêncio para não
aumentar o peso do barco, o golfinho à frente cintilante
entre mar e luz de lua. A manhã ainda não havia chegado,
quando ela viu ao longe, escura sobre o escuro, recortar-se a
silhueta de uma ilha. Não era para o porto da aldeia que
avançavam.
Era para uma praia pequena. Em que o barco, enfim
abandonado pelo golfinho e seguindo seu impulso,
suavemente encalhou.
Areia lisa e clara, sem marcas. Uma escadaria de pedra que
se escondia ao alto entre flores. Jardins ao redor, floresta. E,
mais que o empalidecer do céu, o canto dos pássaros
anunciando o reinado do dia.
A moça prendeu na cintura a barra da saia, e saltou. Pés
n'água, empurrou o barco areia acima, atou o cabo
firmemente num rochedo. Só depois de garantir seu único
bem, caminhou até a escadaria, começou a subir.
Quantos degraus! Distraía-se olhando o jardim, parava para
debruçar-se sobre o perfume das flores. E ei-la chegar ao
alto, à beira de um gramado que se estendia até o pequeno
palácio - ou grande vila - diante de cuja porta fechada parou.
Chamou, primeiro baixinho. Depois mais alto. Alguns
pássaros esvoejaram. A voz dela perdeu-se entre as árvores.
Ninguém atendeu. Bateu com a pesada aldrava de bronze.
Ouviu as pancadas ecoando lá dentro. O eco abafado foi a
única resposta.
Já ia afastar-se, quando alguma coisa na grande fechadura
dourada chamou sua atenção. Olhou com cuidado, tentando
lembrar-se de onde havia visto desenho semelhante. E num
súbito lampejo reconheceu o mesmo delicado trabalho da
chave que trazia ao pescoço.
Solta a fita, a chave de ouro rodou suave na fechadura. Sem
um estalo sequer, a porta abriu-se. E, metendo antes a
cabeça para ver se algum perigo a espreitava lá dentro, a
pescadora descalça avançou lentamente sobre o mármore.
Enorme vestíbulo, colunas, arcos e, por trás de reposteiros
de veludo, as altas janelas por onde entrava a luz ainda verde
da manhã. Onde estariam as gentes dessa casa? Poeira fina
sobre os móveis e os pisos, sem pegadas, sem marcas de
mãos. Tudo arrumado, porém. E estanque no silêncio.
Atravessou o vestíbulo, entrou num salão, sobressaltou-se
com seu reflexo nos espelhos. As velas nos castiçais estavam
gastas e ninguém as havia substituído. Entrou em outra sala,
escura, com os reposteiros abaixados, quase tropeçou numa
cadeira, distinguiu um piano. Havia luz além da porta.
Caminhou cuidadosa até lá. E então, da soleira, antes mesmo
de olhar o resto da sala, ela o viu.
Era o retrato grande de um homem esbelto e jovem, um
homem moreno. Ali estava, de pé contra a parede, vívido
como se ela o visse chegar por algum corredor. E sua
presença pareceu-lhe subitamente ocupar não apenas aquela
sala, mas as outras salas por onde havia passado e todas as sa-
las e cômodos que intuía naquela casa, todo mínimo
recanto, expandindo-se nos jardins e descendo pela
escadaria. E aproximando-se percebeu aquilo que seu
coração estava de alguma forma tentando lhe dizer, que na
mão esquerda do homem brilhava entre ramos de ouro a
pedra verde de um anel, o mesmo anel que ela sentia,
pesado e um pouco largo, rodeando seu dedo médio.
Naquele dia, sequer pensou em partir. Deixou-se ficar
longamente na sala, diante do retrato. Depois vagueou pela
casa, atravessou a sombra da magnólia no pátio interno,
procurou seu próprio rosto na superfície escura do laguinho,
e subiu degraus, desceu degraus, foi às cozinhas, assombrou-
se com as enormes pias enxutas, as centenas de pratos
empilhados nos armários. Comida não havia, nem cheiro
dela. Há muito nenhuma lenha ardia naquele fogão. Mas a
figueira fora da porta estava carregada, os figos rachados
escorriam mel, e ela fartou-se, bebendo depois água nas
mãos em concha. Não ousou servir-se de uma das taças.
Estava cansada, afinal. O dia logo acabaria. E, tendo entrado
em um dos quartos, deitou-se na cama, e adormeceu.
Sonhou com o moço do quadro. Fora da moldura, sentado
diante dela, mas com aquela mesma camisa branca que
usava na tela, aquele mesmo olhar sedoso, e uma voz, uma
voz que era como um murmúrio de mar, e lhe dizia coisas
que ela não conseguia compreender, mas via desenhar-se
nos lábios rosados.
Acordou no dia seguinte. Não havia ninguém sentado diante
dela. Foi até a sala cheia de livros. O moço continuava de
pé, contido pela moldura dourada. Mas seu olhar pareceu-
lhe aceso como o havia visto em seu sonho, e olhando os
lábios lembrou-se de como se moviam e desejou, desejou
muito, saber o que haviam dito.
Novamente gastou quase todo o dia caminhando pela casa,
embora tendo se demorado tanto na sala do retrato. E
quando a hora da fome chegou, escolheu um prato de
porcelana, um delicado cálice de cristal, e sentada sozinha
na grande mesa de mármore negro comeu as uvas ainda
mornas de sol que havia colhido na parreira, bebeu a água
fresca que havia ido buscar na nascente.
À noite, deitada na cama, debaixo do dossel, sonhou que o
moço entrava no quarto com o mesmo passo anunciado no
retrato, e que sentado a seu lado lhe dizia coisas que ela
ainda não entendia, mas que acariciavam, com quanta
suavidade, seu coração.
Não havia ninguém ao seu lado quando acordou. Mas na
sala, olhando o jovem da tela, percebeu que agora sabia
como ele caminhava. E seu passo a acompanhou quando
passeou nos jardins, quando parou diante dos espelhos do
salão esperando vê-lo junto de si.
Naquele dia pensou que deveria consertar o barco e partir.
Mas pareceu-lhe que poderia ocupar-se disso no dia
seguinte, depois que tivesse sonhado mais uma noite com o
moço, depois que tivesse entendido o que ele tinha para lhe
dizer. E comeu romãs, coroando seu prato de rubis, e em
vez de água bebeu vinho da adega, tingindo sua taça de
sangue.
Assim, dia após dia, a pescadora adiava sua partida,
alimentando-se das frutas que encontrava no jardim, dos
ovos que colhia nos ninhos. E a cada dia mais intensamente
desejava a chegada da noite, quando então receberia em seu
sonho e seu quarto o jovem do quadro, e deixaria que as
palavras indecifradas penetrassem seu peito, incendiando-
lhe o coração.
O barco não havia sido consertado, e o verão chegava ao
fim. As frutas escasseavam.
Breve, não houve mais nenhuma no jardim que começava a
amarelar. Foi preciso recorrer aos cogumelos e procurar os
raros ovos nos penhascos junto ao mar. Do alto, ela olhava
para o barco ainda atado ao rochedo.
Agora, pelas janelas atrás dos reposteiros, o vento queixava-
se. A casa fazia-se fria. Mas à noite ela sonhava com o jovem
senhor daquelas salas envolto em um casaco de peles, que
lhe abria os braços e a acolhia. E ela se sentia aquecida como
nunca havia estado.
Sabia, ainda assim, que era preciso consertar o barco. No
feroz mar do inverno jamais conseguiria alcançar o porto da
sua aldeia. E, quando o dia chegou em que não houve nada
para colocar no prato de porcelana, nem razão nenhuma
para sentar-se à mesa de mármore, o barco na praia já tinha
um leme.
A moça pescadora percorreu as salas pela última vez. Todas,
menos a do retrato. Fechou a grande porta de entrada,
colocou a chave ao pescoço. E desceu a escadaria.
Sem se dar ao trabalho de recolher a barra da saia, empurrou
o barco para dentro da água, saltou a bordo. De pé, no casco
que ondeava nervoso sobre o mar encapelado, desfraldou a
vela branca com sua branca lua bordada. Lentamente
afastou- se da ilha.
E logo fez-se noite. Noite debaixo das nuvens negras, noite
sobre o negro mar. Raros relâmpagos. E a gelada alfange do
vento cortando o ar e a carne, ferindo o casco que o leme a
custo continha, borrifando de água, encharcando de sal. Tão
frio estava, que para aquecer-se a pescadora começou a
cantar. Fio de voz na tempestade, que a ninguém chegaria.
Mas, como se ouvisse o eco da sua própria voz, uma canção
pareceu chegar-lhe no vento. Olhou em volta, debruçou-se
sobre o mar. E na água escura como os seus sonhos o viu,
homem do quadro e da noite, que lhe abria os braços e o
casaco de espuma. Mergulhou a mão estendendo-a para ele.
Sentiu que o anel escorria do dedo para o fundo. Então ela
própria deixou-se deslizar para aqueles braços, enquanto o
vento encobria as palavras que ele lhe dizia, as palavras to-
das que pela primeira vez ela conseguia entender.
Meiose
Começou fingindo que não era tão só. Voltava do escritório,
preparava o jantar, botava a mesa com capricho, deixava
tudo pronto, e tornava a sair. Descia no elevador, às vezes ia
até a esquina comprar alguma coisa para acrescentar ao
jantar, subia, e com ligeiro sorriso punha a chave na porta,
certo de que alguém havia preparado tudo para ele.
Viver tornou-se mais leve.
Um dia botou velas na mesa. No dia seguinte, descendo até
a esquina, comprou flores.
Faltava, porém o segundo lugar à mesa.
Na segunda-feira, saindo do escritório, entrou numa butique
e comprou um vestido azul-claro, discreto. Foi com ele e
sandálias de salto baixo que preparou o jantar. Percebeu que
precisaria de um avental.
A presença feminina evidenciava-se na casa. Botando a
chave na porta vindo da esquina era recebido por bilhetes
carinhosos, meu bem o jantar está no forno é só esquentar,
ou delicadamente maternais, cuidado para não manchar a
toalha de vinho. E à noite despindo-se pendurava suas rou-
pas junto às dela.
Não se encontravam, porém.
E a necessidade da presença fazia-se insuportável.
Na segunda-feira saiu mais cedo do escritório. Comprou
longas luvas brancas, um vestido de cetim e brincos de pena
de pavão. Trabalhou a noite inteira, cortando, costurando.
Ao anoitecer tudo estava pronto. Saiu, comprou
champanha, uma orquídea. E voltou.
Na meia-luz encheu as taças. A mão enluvada esbarrou na
sua, retraiu-se, deixou-se prender. Baixou o som da vitrola.
A mão branca acariciou- lhe o rosto, desceu procurando a
nuca. A pena de pavão roçou-lhe a face, brindaram. O
perfume era fundo. Dançaram levemente, maneira delicada
de conduzi-la ao quarto. E o grande espelho do armário
refletiu o homem de smoking e a mulher de longo
abraçados com volúpia.
De manhã viu no chão o meio smoking costurado com a
metade do vestido de cetim. Recolheu a luva. E, apertando
na mão os dedos vazios, soube que a tinha para sempre.
Sem asas, porém
Dura aldeia era aquela em que às mulheres não era
permitido comer carne de aves - não fossem as asas subir-
lhes ao pensamento. Dura aldeia era aquela em que, apesar
da proibição, voltando da caça ao final da tarde e sem nada
mais ter conseguido abater, o marido entregou à mulher
uma ave, para que a depenasse e a cozesse e fosse alimento
de ambos.
E assim a mulher fez, metendo os dedos por entre as penas
ainda brilhantes, arrancando-as aos punhados, e entregando
à água e ao fogo aquele corpo agora morto, que a fogo e água
nunca havia pertencido, mas sim ao ar e à terra.
Tivesse olhado para o alto por um minuto, tivesse detido por
um instante sua tarefa e levantado o olhar, e teria visto pela
janela bandos daquelas mesmas aves migrando rumo ao
Leste. Mas a mulher só olhava para as coisas quando
precisava olhá-las. E não precisando olhar o céu não ergueu
a cabeça.
Cozida a carne da ave, regalou-se engolindo os bocados sem
quase mastigar, firmou os dentes nos ossos, sugou o tutano.
O marido não. Repugnou-lhe a carne tão escura. Limitou-se
a molhar o pão no caldo, maldizendo sua pouca sorte de
caçador.
Passados dias, a mulher nem mais se lembrava do seu raro
banquete. Outras carnes assavam e eram ensopadas na
cozinha daquela casa, na cozinha que era quase toda a casa.
Mas uma inquietação nova lhe despontava no coração.
Interrompia seus afazeres de repente, como nunca havia
feito. Paradas breves, quase nada. Um suspender do queixo,
um vibrar de pestanas. Um alerta. Resposta do corpo a
algum chamado que ela sequer ouvia. A agulha ficava parada
no ar, a colher suspensa sobre a panela, as mãos metidas na
tina. E a cabeça, cabeça que agora se movia com a
delicadeza que só um pescoço mais longo poderia lhe dar,
espetava o ar.
A mulher olhava então para aquilo de que não precisava. E
olhava como se precisasse.
Só por instantes, a princípio. Em seguida, um pouco mais.
Demorando-se, olhou primeiro adiante. Adiante de si. E
adiante daquilo que tinha diante de si. Por uns tempos
pousando o olhar nos móveis, nos poucos móveis daquela
casa e nos objetos que houvesse em cima deles. Depois
varando-os, varando as paredes, olhou para a distância em
linha reta. O que via não dizia. Olhava, sacudia num gesto
suave a cabeça. E tornava a abaixá-la. A agulha descia, a
colher mergulhava na panela, as mãos afundavam da tina.
Talvez levada por aquele breve sacudir de cabeça, começou
a olhar para os lados. Olhava para o lado esquerdo,
demorava-se, imóvel. E, súbita, voltava-se para o lado
direito.
Ninguém lhe perguntava o que estava olhando. O único
olhar que nela parecia importar para os outros ainda era o
antigo, de quando só olhava o que era necessário.
E assim um dia aquela mulher para a qual ninguém olhava
olhou o céu. Sem que tivesse chovido ou fosse chover. Sem
que houvesse relâmpagos. Sem que sequer houvesse nuvens
ou o tempo fosse mudar, ela olhou para o céu.
Delicado fazia-se seu pescoço agora que o movimentava
ligeiro conduzindo a cabeça nas suas perscrutações. Era um
pescoço pálido, protegido da luz por tantos anos de cabeça
baixa. E sobre esse pescoço a cabeça como que se estendia
olhando para cima, com a mesma reta intensidade com que
havia começado varando paredes.
Olhava, pois para o alto, quando um bando das aves passou
sobre a casa rumo ao Leste.
Há muito as folhas haviam-se banhado de cobre, o solo
começava a fazer-se duro no frio. E as aves de carne escura
seguiam no céu em direção ao sol.
De pé, a mulher olhava. E continuou olhando até que as
aves empalideceram na distância.
O vento batia os longos panos da sua saia, estalava as asas
franjadas do seu xale. Não, ela não voou. E como poderia?
Saiu andando, apenas. Escura como a tarde, acompanhando
seu próprio olhar, saiu andando para a frente, sempre para a
frente, rumo ao Leste.
Por preço de ocasião
Comprou a esposa numa liquidação, pendurada que estava,
junto com outras, no grande cabide circular. Suas posses não
lhe permitiam adquirir lançamentos novos, modelos
sofisticados. Contentou-se, pois com essa, fim de estoque,
mas preço de ocasião.
Em casa, porém, longe da agitação da loja - homem
escolhendo mulher, homem pagando mulher, homem
metendo mulher em saco pardo e levando às vezes mais de
uma para aproveitar o bom negócio - percebeu que o estado
da sua compra deixava a desejar.
"É claro", pensou reparando na sujeira dos punhos, no
amarrotado da pele, nos tufos de cabelos que mal escondiam
rasgões do couro cabeludo, "Eles não iam liquidar coisa
nova."
Conformado, deitou-a na cama pensando que ainda serviria
para algum uso. E, abrindo-lhe as pernas, despejou lá dentro,
uma por uma, brancas bolinhas de naftalina.
Bela como uma paisagem
Casou com ela porque pressentiu, debaixo da seda do
vestido, uma certa ânsia indócil das carnes, desejo de
expansão ainda não realizado. E, embora no princípio, ainda
magra, lhe parecesse agulha perdida no palheiro dos lençóis,
logo percebeu que não se enganara.
Fome e gula habitavam a esposa. Com que prazer os lábios
faziam-se em ponta sugando sopas, mamando o licor dos
bombons, chupando os ossos das aves enquanto a língua
procurava o secreto tutano. Com quanta volúpia aqueles
mesmos lábios se arreganhavam abrindo espaço para que os
pequenos dentes pontiagudos afundassem nas carnes,
arrancassem nacos do pão, dilacerassem as frutas, partindo,
mascando, moendo incessantes, sempre sob o comando de
um novo desejo.
E, como se tocados pelo próprio movimento dos maxilares,
estufavam-se os peitos, enchiam- se as coxas, o corpo todo
ampliava suas fronteiras. Curvas surgiam onde antes se
adivinhava o perfil dos ossos, volumes inchavam as antigas
planícies. Já não cabiam as roupas, faziam-se pequenos os
sapatos.
Seduzido, ele acompanhava o levedar. Não precisava mais
procurá-la entre os lençóis. Onde quer que se virasse, onde
quer que apoiasse a mão, lá estava ela macia, enorme,
acolhedora, cheia de saliências onde segurar, cheia de
consistências em que afundar os dedos.
Desdobrando-se o corpo da mulher, fez-se necessário cama
maior. E, quando mesmo essa não foi mais capaz de contê-
la, outra foi encomendada, perfazendo superfície de muitos
metros quadrados, e exigindo, por sua própria dimensão, ser
colocada na sala.
Agora, impossibilitada de levantar-se, já que as pernas não
lhe suportariam o peso, a mulher consumia em sua imensa
cama as bandejas de guloseimas que o marido, solícito e
constante, providenciava. Nem sobravam farelos, que ela
catava com a ponta dos dedos e, entrefechando os olhos,
depositava extática sobre a língua.
Mais e mais aumentava a mulher. Há muito havia estourado
a pulseirinha que ele lhe pusera no tornozelo. Há muito
desistira de vestidos ou camisolas. Nua, sua branca
imensidão jazia sobre os lençóis, perdido o sexo entre as
dobras da carne, invadido o espaço por ancas e nádegas.
Olhando o pálido ventre que em dunas se estendia como
um deserto, o homem pensava que em breve também
aquela cama não seria suficiente. Teria então que transportar
a mulher para o ar livre, onde nada tolhesse o seu crescer.
E haveria de chegar o dia da sua maior beatitude, quando,
deitado no cume do seio esquerdo, veria o sol se pôr atrás
do direito.
Longe como o meu querer
Regressava ao castelo com suas damas, quando do alto do
cavalo o viu, jovem de longos cabelos à beira de um campo.
E, embora os tantos jovens do castelo, a partir daquele
instante foi como se não houvesse mais nenhum. Nenhum
além daquele.
À noite, no banquete, não riu dos saltimbancos, não
aplaudiu os músicos, mal tocou na comida. As mãos pálidas
repousavam. O olhar vagava distante.
- Que tens, filha, que te vejo tão pensativa? - perguntou-lhe
o pai.
- Oh! pai, se soubesses! - exclamou ela, feliz de partilhar
aquilo que já não lhe cabia no peito. E contou do rapaz, do
seu lindo rosto, dos seus longos cabelos.
O que o pai pensou não disse. Mas no dia seguinte, senhor
que era daquele castelo e das gentes, ordenou que se
decapitasse o jovem e se atirasse seu corpo ao rio. A cabeça
entregou à filha em bandeja de prata, ele que sempre havia
satisfeito as suas vontades.
- Aqui tens o que tanto desejavas.
E sem esperar resposta, sem sequer procurá-la em seus
olhos, retirou-se.
Saído o pai, a castelã lavou aquele rosto, perfumou e
penteou os longos cabelos, acarinhou a cabeça no seu colo.
À noite pousou-a no travesseiro ao lado do seu, e deitou-se
para dormir.
Porém no escuro, fundos suspiros barraram a chegada do
seu sono.
- Por que suspiras, doce moço? - perguntou voltando-se para
o outro travesseiro.
- Porque deixei a terra arada no meu campo. E as sementes
preparadas no celeiro. Mas não tive tempo de semear. E no
meu campo nada crescerá.
- Não te entristeças - respondeu a castelã. - Amanhã
semearei teu campo.
No dia seguinte chamou sua dama mais fiel, pretextou um
passeio, e saíram ambas a cavalo.
Apearam no campo onde ela o havia visto a primeira vez. A
terra estava arada. No celeiro encontraram as sementes. A
castelã calçou tamancos sobre seus sapatinhos de cetim, não
fosse a lama denunciá-la ao pai. E durante todo o dia lançou
sementes nos sulcos.
À noite deitou-se exausta. E já ia adormecer quando fundos
suspiros a retiveram à beira do sono.
- Por que suspiras, doce moço, se já semeei teu campo?
- Porque deixei minhas ovelhas no monte, e sem ninguém
para trazê-las ao redil serão devoradas pelos lobos.
- Não te entristeças. Amanhã buscarei tuas ovelhas.
No dia seguinte chamou aquela dama que mais que todas lhe
era fiel, e pretextando um passeio saíram juntas além dos
muros do castelo.
Subiram a cavalo até o alto do monte. As ovelhas pastavam.
A castelã cobriu sua saia com o manto, não fossem folhas e
espinhos denunciá-la ao pai. Depois com a ajuda da sua
dama reuniu as ovelhas e, levando o cavalo pelas rédeas,
desceu com o rebanho até o redil. Que tão cansada estava à
noite, quando o suspiro fundo pareceu chamá-la!
- Por que suspiras, doce moço, se já semeei teu campo e
recolhi tuas ovelhas?
- Porque não tive tempo de guardar a última palha do verão,
e apodrecerá quando as chuvas chegarem.
- Não te entristeças. Amanhã guardarei a tua palha.
Quando no dia seguinte mandou chamar a mais fiel, não foi
preciso explicar-lhe aonde iriam. Pretextando desejo de ar
livre, afastaram-se ambas do castelo.
Os feixes de palha, amontoados, secavam ao sol. A castelã
calçou os tamancos, protegeu a saia, enrolou tiras de pano
nas mãos, não fossem feridas denunciá-la a seu pai. E
começou a carregar os feixes para o celeiro. Antes do
anoitecer tudo estava guardado, e as duas regressaram ao
castelo.
Nem assim manteve-se o silêncio no escuro quarto da
castelã.
- Por que suspiras, doce moço? - perguntou ela mais uma
vez. Por que suspiras se já semeei teu campo, recolhi tuas
ovelhas e guardei tua palha?
- Porque uma tarefa mais é necessária. E acima de todas me
entristece. Amanhã deverás entregar-me ao rio. Só ele sabe
onde meu corpo espera. Só ele pode nos juntar novamente
antes de entregar-nos ao mar.
- Mas o mar é tão longe! - exclamou a castelã num lamento.
E naquela noite foram dois a suspirar.
Ao amanhecer a castelã perfumou e penteou os longos
cabelos do moço, acarinhou a cabeça, depois a envolveu um
linhos brancos e chamou a dama.
Os cavalos esperavam no pátio, o oficial da guarda esperava
no portão. - Vamos entregar alguma comida para os pobres -
disseram-lhe. E saíram levando seu fardo.
Seguindo junto à margem, afastaram-se da cidade até
encontrarem um remanso. Ali apearam. Abertos os linhos,
entregaram ao rio seu conteúdo. Os longos cabelos ainda
flutuaram por um momento, agitando-se como medusas.
Depois desapareceram na água escura. De pé, a castelã
tomou as mãos da sua dama. Que lhe fosse fiel, pediu, e
talvez um dia voltassem a se ver. Agora cada uma tomaria
um rumo. Para a dama, o castelo. Para ela, o mar.
- Mas é tão longe o mar! - exclamou a dama.
Montaram as duas. A castelã olhou a grande planície, as
montanhas ao fundo. Em algum lugar além daquelas
montanhas estava o mar. E em alguma praia daquele mar o
moço esperava por ela.
- A distância até o mar - disse tão baixo que talvez a dama
nem ouvisse - se mede com meu querer.
E esporeou o cavalo.
Fundações
Nove andares exclusivos luxo.
Prontos.
Chegou o primeiro caminhão de mudança. Desceram os
móveis, desceram os tapetes, desceram os quadros,
desceram os espelhos, desceram os cristais, desceram os
baús. Desceu o cofre. E tudo subiu para o primeiro andar,
primeira laje.
Encostou o segundo caminhão de mudança, que na verdade
eram dois. Desceu a coleção de armas antigas, desceu a
coleção de santos barrocos, desceu a coleção de trajes
teatrais, desceu a coleção de plantas carnívoras. Desceu o
cofre. E tudo subiu para o segundo andar, segunda laje.
Freou a carreta da mudança em que vinha o puro-sangue da
dona da casa. Desceu o puro-sangue, desceram os arreios do
puro-sangue, desceram os prêmios do puro-sangue,
desceram os amplos pastos do puro-sangue, desceram a
fêmeas que o puro-sangue cobriria. Desceu o cofre. E tudo
subiu para o terceiro andar, terceira laje.
Apitou o trem da mudança que tinha vários vagões. Desceu
a lona, desceram os acrobatas, desceram os anões trazidos na
coleira pelas feras, desceram os coelhos com o mágico na
cartola, desceu a mulher do mágico carregando as duas
partes em que o mágico a serraria, desceu o palhaço
repetindo o segredo do cofre. E tudo subiu para o quarto
andar, quarta laje.
Atracou o navio da mudança, Desceram as capas de peles da
estrela, desceram suas roupas, seus sapatos, desceram as
unhas postiças, os cílios postiços, os seios postiços, os olhos
postiços, os dentes postiços, o brilho postiço. Desceu o
cofre verdadeiro. E tudo subiu para o quinto andar, quinta
laje.
Ajoelharam-se os camelos da mudança. Baixaram os odres,
as veladas do harém, baixou o minarete, o oásis, os eunucos
que guardariam o cofre. E tudo subiu para o sexto andar,
sexta laje.
Pararam os cães dos trenós da mudança. Desceram as focas,
os buracos no gelo pelos quais as focas respiravam, os arpões
pelos quais as focas morriam, os iglus onde se faziam os
arpões e os icebergs dos quais eram feitos os iglus e o navio
preso na banquisa no qual estava o cofre. Tudo subiu para o
sétimo andar, sétima laje.
Trouxeram o cofre da mudança. E nada do que continha foi
visto pelos que só isso queriam ver, porque vinha envolto
num plástico amarelo que o isolava dentro de uma caixa de
amianto que o protegia dentro de uma caixa blindada, que o
garantia dentro de um caixote de manzanas Rio
Negro que assegurava o disfarce de folhas de jornal. E tudo
subiu para o oitavo andar, oitava laje.
Pousou o helicóptero da mudança. E o próprio dono desceu
trazendo com cuidado o pequeno vaso de vidro soprado no
vale da Mesopotâmia. E com cuidado subiu levando-o até o
último andar.
Debaixo desse peso o primeiro andar afundou lentamente,
levando o segundo, trazendo o terceiro, laje a laje, aos
poucos cobertas por completo, formando sólido
embasamento para o novo prédio de nove andares que já
em planta, antes da planta, estava completamente vendido.
Entre o leão e o unicórnio
No meio da noite de núpcias, o rei acordou tocado pela
sede. Já ia se levantar quando, junto à cama, do lado da sua
recém-esposa, viu deitado um leão.
- Na certa - pensou o rei mais surpreso do que assustado -,
estou tendo um pesadelo.
E, mudando de posição para interromper o sonho mau,
deitou a real cabeça sobre o real travesseiro. Em seguida,
adormeceu.
De fato, na manhã seguinte, o leão havia desaparecido sem
deixar cheiro ou rastro. E o rei logo esqueceu tê-lo visto.
Esquecido ficaria se, dali a algum tempo, acordando à noite
entre um suspiro e um ronco, não deparasse com ele no
mesmo lugar, fulvo e vigilante. Dessa vez, custou mais a
adormecer.
Quando a rainha despertou, o rei contou-lhe do estranho
visitante noturno que já por duas vezes se apresentara em
seu quarto.
- Oh! Senhor meu marido - disse-lhe esta constrangida -, não
ousei revelar antes do casamento, mas desde sempre esse
leão me acompanha. Mora na porta do meu sono, e não
deixa ninguém entrar ou sair. Por isso não tenho sonhos, e
minhas noites são escuras e ocas como um poço.
Penalizado, o rei perguntou o que poderia fazer para livrá-la
de tão cruel carcereiro.
- Quando o leão aparecer - respondeu ela pegue a espada e
corte-lhe as patas.
Naquela mesma noite, antes de deitar, o rei botou ao lado da
cama sua espada mais afiada. E, assim que abriu os olhos na
semi-escuridão, zac! Decepou as patas da fera de um só
golpe. Depois, mais sossegado, retomou o sono.
Durante algum tempo dormiu todas as noites até de manhã,
sem sobressaltos. Mas numa madrugada quente em que os
edredons de pluma pareciam pesar sobre seu corpo,
acordando todo suado viu que o quarto real estava invadido
por dezenas de beija-flores e que um enxame de abelhas se
agrupava na cabeceira. Depressa cobriu a cabeça com o
lençol, e debaixo daquela espécie de mortalha atravessou as
horas que ainda o separavam do nascer do dia. Só ao
perceber o primeiro espreguiçar-se da rainha, emergiu de
dentro da cama, contando-lhe da bicharada.
- E que dormindo ao seu lado, meu caro esposo, cada vez
mais doces e mais floridos se fazem meus sonhos - explicou
ela, sorrindo com ternura.
E ele, desvanecido com tanto amor, pousou- lhe um beijo
na testa.
Muitos meses se foram, tranqüilos.
Porém uma noite, tendo jantado mais do que devia à mesa
do banquete, o rei acordou em meio ao silêncio. Levantou-
se disposto a tomar um pouco de ar no balcão, quando,
caracoleando sobre o mármore real do aposento, viu
aproximar-se um unicórnio azul.
Não ousou tocar animal tão inexistente. Não ousou voltar
para a cama. Perplexo, saiu para o terraço, fechou
rapidamente as portas envidraçadas, e encolhido num canto
esperou que a manhã lhe permitisse interpelar a rainha.
— É a montada da minha imaginação — escusou-se ela. -
Leva meus sonhos lá onde eu não tenho acesso. Galopa a
noite inteira sem que eu lhe tenha controle.
Tão bonito pareceu aquilo ao rei, que na noite seguinte,
quer por desejo, quer por acaso, no momento em que a
mulher adormeceu, ele acordou. Lá estava o unicórnio com
seu chifre de cristal, batendo de leve os cascos, pronto para
a partida. Dessa vez o rei não temeu. Levou-lhe a mão ao
pescoço, alisou o suave azul do pêlo, e de um salto montou.
Unicórnios de sonho não relincham. Aquele levantou a
cabeça, sacudiu a crina e, como se pisasse nos caminhos do
vento, partiu a galope.
Galoparam a noite toda. Mas antes que o sol nascesse,
quando a escuridão apenas começava a derreter-se no
horizonte, os cascos mais um vez pousaram no mármore. E
a real cabeça deitou-se no travesseiro.
- Sonhei que vossa majestade fugia com a montada da minha
imaginação - disse a rainha ao esposo, de manhã. - Mas
estou bem contente de vê-lo agora aqui ao meu lado -
acrescentou numa reverência.
O rei, porém, mal conseguia esperar pelo fim do dia. Tão
rica e vasta havia sido a viagem, que só desejava montar
novamente naquele dorso, e, azul no ar azul, descobrir
novos rumos. Pela primeira vez as tarefas da coroa lhe
pareceram pesadas, e tediosa a corte. Da rainha, só desejava
que, rápido, adormecesse.
Dessa forma, noite após noite, partiu o rei nas costas do
unicórnio, para só retornar ao amanhecer.
E, a cada noite, mais diferente ficou.
Já não queria guerrear, nem dançar nos salões. Já não se
interessava por caçadas ou tesouros. Trancado sozinho na
sala do trono durante horas, pensava e pensava, galopando
na lembrança, livre como o unicórnio.
Ressentia-se, porém a rainha com aquela ausência. Doente,
quase, de tanta desatenção, mandou por fim chamar a mais
fiel de suas damas de companhia. E em grande segredo deu-
lhe as ordens: deveria esconder-se debaixo da cama real,
cuidando para não ser vista. E ali esperar pelo sono da
rainha. Tão logo esta adormecesse, veria surgir um leão sem
patas. Que não temesse. Pegasse as patas que jaziam
decepadas à sua frente, e, com um fio de seda, as costurasse
no lugar.
Tendo obtido da moça a promessa de que tudo faria
conforme o explicado, deitou-se a rainha logo ao escurecer,
pretextando grande cansaço. No que foi imediatamente
acompanhada pelo rei.
Custava porém o sono a chegar. Virava-se e revirava-se o
casal real sobre o colchão, enquanto embaixo a dama de
companhia esperava. E, de tanto esperar, o sono acabou
chegando primeiro para ela, que, sem perceber, adormeceu.
Acordou noite alta; quando há muito o unicórnio tinha
vindo buscar o seu ginete. Assustada, não querendo faltar
com a promessa e ouvindo o ressonar da rainha, rastejou
para fora da cama. Lá estava o leão, deitado e imóvel. Lá
estavam as patas à sua frente. Rapidamente pegou a agulha
enfiada com o longo fio de seda, e em pontos bem firmes
costurou uma pata. Depois a outra.
Leões de sonho não rugem. Aquele levantou a cabeça,
sacudiu a juba e firme sobre as patas retomou a sua tarefa de
guardião. Nenhum sonho mais sairia das noites da rainha.
Nenhum entraria. Nem mesmo aquele em que um
unicórnio azul galopava e galopava, levando no dorso um rei
para sempre errante.
Semelhança
I
Vivia dizendo que eu parecia uma pantera. Que o andar, que
os olhos. Eu deitava a cabeça no ombro dele e miava
baixinho.
II
Vivia dizendo que eu parecia uma pantera. Que o andar, que
os olhos. E eu me apanterava toda para agradá-lo.
III
Vivia dizendo. Mas só acreditei no dia em que, saltando do
armário, cravei-lhe os dentes na carne e o devorei.
Além do muro, os coiotes
Não é uma janela estreita. É alta. Tão alta que parece fazer-se
mais fina em direção ao teto. Tem postigos de madeira
grossa abertos sempre, venezianas de madeira verde, sempre
encostadas. E é só uma, naquele quarto. Mas não é da janela
que devemos nos ocupar, e sim da luz que por ela entra. Ou
quase não entra. Pois é essa luz pouca que, ocupando com
seu volume aquático e denso todo o quarto, estabelece as
dimensões. E com tal inquebrável autonomia que, abrindo a
porta para entrar e percebendo que a escura transparência
não escoa nem se transfere ao outro cômodo, somos levados
a crer que não são as paredes que a contêm, embora
espessas, mas que, derrubadas estas, ela se manteria
igualmente sólida, de pé como uma caixa ou bloco.
E nessa caixa que ele vive. O homem jovem de cabeça
branca.
Talvez fosse mais justo colocar tudo no passado. Mas por
que, se a janela ainda está lá, com suas venezianas meio
encostadas, naquele segundo andar do prédio antigo, e se a
luz lá dentro é certamente a mesma, faltando apenas o
rodamoinho mais claro que se formava no centro do quarto,
leve brilho prateado que denunciava a cabeça contra o
espaldar da poltrona?
Ele não fechava a porta do quarto. Era um homem gentil.
Mantinha-a entreaberta, soubessem todos que cultivava ali
silêncio igual ao da sua ausência. Nem era recluso. Ia à rua,
comprava jornal, fazia suas refeições à mesa junto aos
outros. Sua vida mais intensa, porém, aquele eventual fremir
que altera o olhar ou faz vibrar a aba do nariz, mantinha-se
oculta. Não atrás dos óculos, porque raramente os usava.
Atrás do pálido azul dos olhos, então.
Só no quarto se exercia.
Agora todos se perguntam o que ele fazia ali. Parece difícil
acreditar que fizesse tão pouco. Que fizesse tão menos do
que o pouco que havia feito no passado. Que ficasse
sentado, como ficava, abanando-se lentamente com o leque
chinês de onde o desenho já desbotara.
Levantava-se da mesa levando sua xícara de chá, uma
revista, despedia-se dos demais com um sorriso educado que
não se endereçava a nenhuma das pessoas presentes, mas
somente à consuetude do próprio sorriso, e ia sentar-se no
aconchego uterino da poltrona.
Eu sempre soube que não lia a revista. Não ali. E como
poderia sem claridade e sem acender a luz? Segurava o leque
em uma mão, a revista na outra. E, embora até as movesse,
não era delas que se ocupava, nem elas invalidavam com
seus gestos a entrega muscular do corpo. Era seu olhar que
agia. Seu olhar, que dificilmente se reconheceria azul
naquele escuro, tinha então palpitações.
Na tarde em que, já de pé e sorridente, me convidou a
acompanhá-lo, atendi com prazer. Talvez tivesse
curiosidade de ver o que se escondia lá dentro ou talvez
quisesse apenas ser gentil como ele era comigo, sem
comprometimento, mas com suavidade. Já não lembro.
Lembro, isso sim, de ter entrado com um certo cuidado
físico, como quem penetra em recinto sagrado. Sinto ainda
meus passos lentos, a sensação do pescoço estendido para a
frente. Cheirava a madeira antiga o quarto, um cheiro de
guardado e essências como o de certas gavetas. Passados
anos, não sei ao certo se as paredes eram de fato pintadas de
verde escuro ou se assim me pareceram. Certo mesmo é que
havia muitos livros empilhados sobre os móveis, ocupando
uma cadeira, o tampo da escrivaninha. E algumas fotografias
em molduras de prata. Um quarto como tantos, afinal, com
drapear de panos meio esbatidos na sombra, cortina ou
colcha. Mas não era para olhar o quarto que ele havia me
chamado.
Queria me mostrar alguma coisa. Não chegou a dizê-lo, mas
estava implícito no tom com que me chamou para
acompanhá-lo, na leve ansiedade que, do olhar, lhe
contaminou o sorriso. Já algumas vezes eu havia percebido
aquele mesmo olhar, quando falava do seu passado, quando
me mostrava um objeto ou um papel que havia pertencido à
sua família, ou quando, não sem vaidade, exibia algum de
seus trabalhos, ele tão habilidoso, tão capaz com as mãos.
Dessa vez eu também levei minha xícara de chá para o
quarto. Não nos demoramos em conversas; qualquer
conversa - senti isso claramente - teria que vir depois. O que
ele queria que eu visse estava em cima de um banquinho,
coberto por uma capa de plástico. Que ele tirou, não sem
uma certa teatralidade.
Era uma casa. A maquete de uma casa. Não chegava a dois
palmos de altura. Graciosa, angulosa, cheia de telhados e
reentrâncias, com grandes vidraças e um muro ao redor.
Aquém do muro, o jardim. Menos que um jardim, algumas
árvores apenas, descarnadas, árvores de inverno que ele
havia feito com galhos secos.
É uma casa para as montanhas, me disse, parado por um
instante, deixando que eu a olhasse antes de começar a
explicá-la. E logo abriu o telhado com dedos delicados para
que eu visse lá dentro o quarto, o banheiro. E fez girar sobre
si uma parede externa mostrando onde seriam a biblioteca, o
jirau sobre a biblioteca, a lareira.
É a casa que eu faria se voltasse às Montanhas Rochosas,
disse também. E me fez reparar no pátio interno, e eu
pensei que era uma boa idéia o muro porque nas Rochosas
os coiotes, como se houvesse coiotes nas Rochosas, pensei
ainda, mas talvez haja.
É uma bela casa para se ter nas montanhas, Rochosas ou
não, eu disse a ele. E acrescentei, não sabia que você tinha
voltado a fazer maquetes. Não voltei não, respondeu, só
esta. E tomamos chá em pé olhando a casa como se
estivéssemos sentados diante da lareira debaixo do jirau.
Depois, descendo as escadas e chegando à rua, percebi,
como se alguém - e não eu mesmo - estivesse me chamando
a atenção para um fato que por desimportante eu ia
apagando antes de registar, que havia poeira sobre aquele
plástico. A casa, então, estava pronta há algum tempo. E só
agora, por alguma razão, ele havia sentido necessidade de
me mostrar.
Por que eu comentaria com alguém? Um pequeno gesto de
nostalgia, um rápido voltar à antiga habilidade. Não era mais
do que isso.
A xícara de chá na mão, o sorriso, os passos discretos, e o
leque. Imagino que tenha continuado assim. Não nos vimos
por algum tempo.
E um dia me disseram que ele havia desaparecido. Sem que
se soubesse como, sem que se soubesse exatamente quando.
Saiu de casa, não voltou. Além da sua ausência, não havia
qualquer evidência. Parecia estar há vários dias no quarto. A
porta continuava encostada e não havia por que estranhar, já
que ele saía cada vez menos. Entretanto, quando se
preocuparam e foram procurá-lo, nenhum reflexo prateado
brilhava contra o espaldar escuro da poltrona. A revista,
sobre a cama. O leque, no chão. O quarto, vazio. Ninguém
havia ouvido nada, o silêncio continuava a fluir igual a todos
os silêncios que haviam habitado aquele quarto. Ninguém o
havia visto sair - mas era tão comum que saísse com seus
passos leves, evitando até mesmo deixar estalar o trinco da
porta para não ser percebido.
Fui até lá confortar os familiares. E, em parte para escapar ao
peso da situação, em parte para concluir a relação que
repentinamente se havia tornado abstrata, pedi para
recolher no quarto um livro que lhe havia emprestado. O
mesmo cheiro antigo. As venezianas encostadas. Os vidros
abertos. Agua escura parecia estagnar entre as paredes. A
cama estava feita. Apanhei meu livro sobre a escrivaninha,
onde alguém havia pousado o leque. Olhei brevemente os
retratos emoldurados procurando o dele, que não achei.
Virei-me para sair.
E foi nesse gesto sem qualquer intenção, nesse gesto casual
em que minha cabeça girou lentamente e meu olhar
distraído cortou a penumbra em diagonal, como um
machado caindo sobre um tronco, que eu vi, num relance
vi, debaixo do plástico empoeirado, talvez além do muro,
acesa, uma luz.
Hidra
Sempre chegando em casa à noite, ela o desafiava com sua
força, centro de atenção e de todo o afeto, televisão-fulcro
da família adorante.
Ninguém o olhava, ninguém reverenciava sua chegada de
chefe, lutador do sustento. Mal viravam a cabeça na sua
direção, petrificados por prefixos e jingles. E não havia
alternativa que não se agregar ou ser desprezado.
Uma noite, cansado do repúdio, ergueu a espada e, entre
gritos e prantos, zapt, cortou a televisão ao meio.
Soluços cercaram as duas partes inertes no tapete, sem que
alma piedosa arrancasse a tomada inutilmente cravada na
parede. Foi dormir aliviado, dono do reconquistado silêncio.
Não haveria porém de receber em paz o novo dia. Antes do
amanhecer vozes o arrancaram do sono e do pijama. Correu
abotoando compostura. Na sala, loquazes e uníssonas,
desabrochavam duas televisões.
Que no gume e na ponta estilhaçou, respingado de súbitas
centelhas.
Um dia de paz. Não mais lhe concederam os destroços.
Nem mais necessitavam para em silêncio recriar suas forças
e múltiplas erguer novas cabeças.
Agora, quando chega perdedor, sete televisões falam e
cantam no centro da família. Ele se aproxima de cabeça
baixa, puxa a cadeira e senta- se de costas. O espelho da
parede lhe devolve a novela. Que ele acompanha sem
coragem de perder o capítulo, sem forças para olhá-la nos
olhos.
Vídeo e áudio
Na TV da sala a polícia localizava finalmente os bandidos
escondidos no apartamento. Na TV do quarto o detetive
aproximava-se da sala onde o maníaco mantinha presa a
refém. Na porta da sala o assaltante encostou a arma contra
o peito da empregada que atendeu à campainha.
O assaltante e a empregada entraram na sala. Na TV a polícia
começou a atirar contra a porta do apartamento. O assaltante
rendeu a família, encostou todos contra a parede de mãos
levatadas, menos a filha que estava no quarto, onde na TV o
detetive chegava-se por trás sem ser percebido.
O assaltante mandou a empregada buscar a filha no quarto.
O detetive prendeu o silenciador no cano da arma. O
assaltante rasgou a blusa da filha com um puxão. A porta
começou a ceder sob os tiros da polícia. O assaltante passou
um braço ao redor da cintura da filha, mantendo o revólver
encostado na sua têmpora e os olhos na porta. O detetive
encostou o silenciador na têmpora do maníaco. A porta veio
abaixo. A família, de cara para a parede, viu o reboco
rendilhar-se em balas e sangue, ouviu gritos e passos.
Mas o prefixo musical dos comerciais veio libertá-los da
posição incômoda. Foi o tempo de lavar rostos e mãos,
arrumar a desordem. O cadáver do assaltante esconderam
debaixo da cama. Tratariam dele depois da novela.
Debaixo da pele, a lua
Chegado o tempo, uma moça se fez mulher. Mulher não
como as outras, porém. Tão clara a sua pele! E por baixo
dessa pele, vinda da própria carne, uma luminosidade que
aflorava em certos dias, e nos seguintes se intensificava, dia
a dia, luz a luz, até alcançar o esplendor de tantas chamas
frias, de tantas imóveis estrelas. Então os cabelos da mulher
se faziam mais cheios, leite gotejava dos seus seios, e as
bacias e as tinas da sua casa transbordavam.
Aquela mulher tinha a lua debaixo da pele.
E, estando uma tarde à porta da sua casa, quando o sol já se
punha, foi vista pelo homem mais rico da região, que ia
passando a cavalo.
Nunca ele havia encontrado uma mulher como aquela, mais
semelhante às pérolas do que às outras mulheres.
Imediatamente, a quis em casamento.
Na escuridão do quarto nupcial, porém, surpreendeu-se o
homem percebendo que a pele da esposa não era tomada
pelas sombras mas, ao contrário, destacava-se ainda mais
pálida do que ele a havia visto àquela tarde. E com o passar
das noites sua surpresa tornou-se espanto, enquanto a
mulher se fazia mais e mais clara, iluminando a princípio as
superfícies próximas, e logo derramando sua luminosidade
de prata em todo o quarto.
"Essa mulher", pensou o homem cheio de desconfiança, "vai
acabar brilhando mais com sua luz do que eu com meu
dinheiro."
Sem demora, alegando que ela só luzia para impedi-lo de
dormir e que o levaria à morte, desfez o casamento.
De novo em casa, a mulher que tinha a lua debaixo da pele
iluminou sua solidão durante algum tempo. Mas não tardou
muito para que a luz percorresse em direção oposta os
mesmos caminhos que a haviam trazido, recolhendo-se à
escuridão do corpo, e deixando a mulher apagada e pronta
para longos sonos.
Cedo passou seu tempo de repouso. E uma noite,
prudentemente fechadas as janelas para que sua plena luz
não perturbasse as trevas alheias, foi vista por um ladrão que
passava rente ao muro.
Era uma fresta apenas, que deixava vazar a luz por entre os
postigos. Mas bastou a lâmina daquele raio para chamar a
atenção do ladrão. Aproximou-se sorrateiro, espiou para
dentro. E lá estava a mulher, luzindo.
"Que belo dinheiro posso tirar dela exibindo-a nas feiras!",
pensou faiscando seu olhar de gato.
Esperou até que se deitasse, que estivesse bem dormida.
Então forçou um trinco, abriu um batente, entrou com
passos leves e, atirando em cima dela uma capa preta,
carregou-a na escuridão.
Morava em uma cabana longe dali. Chegando, prendeu a
mulher ao pé da mesa com uma corrente, atirou-se na cama
e começou a roncar. Roncou o que restava da noite, roncou
todo o dia seguinte. Só acordou ao anoitecer, hora de ladrão
trabalhar. E saiu, não sem antes avisar à mulher que quando
tivesse roubado dinheiro suficiente para comprar um cavalo,
uma carroça e algumas roupas vistosas iria exibi-la nas feiras.
Voltou de manhã com os bolsos cheios e alguma comida.
Sem dizer palavra, pôs-se a roncar. E o mesmo aconteceu
nos dias seguintes. Desse modo, dormindo com o sol e
saindo ao escurecer, o ladrão não percebeu que a luz da
mulher perdia pouco a pouco a intensidade que haveria de
fazê-lo rico. E na noite em que, afinal, tendo juntado o
dinheiro necessário, resolveu ficar em casa, deparou-se com
uma mulher igual a qualquer outra, sem o mínimo brilho,
apenas mais pálida que as demais. Na feira, quem ia pagar
para ver uma mulher apenas pálida?
Furioso, soltou a corrente e empurrou sua prisioneira porta
afora.
De novo em casa, a mulher que tinha a lua debaixo da pele.
Apagada e sonolenta. Mas não por muito tempo.
Dessa vez, quando as tinas começaram a transbordar e a
cabeleira derramou-se cheia, ela nem esperou o pôr-do-sol.
Trancou bem a porta, fechou bem fechados os postigos das
janelas, vedou cada frincha. Que ninguém a visse!
Não sabia que no alto, entre as telhas, a luz escapava
denunciando-a.
Só havia sono ao redor, quando alguém bateu à porta.
Levantou-se a mulher, cautelosa. Abriu uma fresta.
À sua frente, um cavalo negro. E no alto da sela, envolta em
um manto tão escuro que mal se lhe distinguiam os
contornos, uma dama.
Antes mesmo que a mulher avançasse no umbral, sua pele
estremeceu por sobre a lua, sua luminosidade ondejou como
reflexo de lago. E ela soube quem tinha vindo buscá-la.
O cavalo sacudiu a crina, impaciente. A dama debruçou-se,
chamando-a. Sem voltar-se para olhar sua casa, a mulher
estendeu a mão, e montou no cavalo da Noite.
Os sentidos
Todos os sábados de manhã ia buscar o mar no fundo da
concha. Encostava a vulva nacarada ao ouvido, fechava os
olhos, e durante horas ficava ouvindo as ondas, perdido até
sentir gosto de sal.
Faltava, porém alguma coisa.
Procurou nos anúncios de jornal, nas revistas especializadas,
escreveu cartas. Por fim conseguiu o que queria.
Agora aos sábados de manhã veste o calção, senta no sofá e,
enquanto a mão direita segura a concha junto ao rosto, a
esquerda puxa a corrente presa ao pé da gaivota para que ela
grite estridula, canto de liberdade sobre espumas.
Uma engrenagem
Desmontou a cabeça, peça por peça. Azeitou, poliu, limpou
com flanelas. Depois começou a montar. Pronta, viu que
uma engrenagem tinha ficado na mesa. Pensou em
recomeçar. Tentou. Não conseguiu. Faltava, para saber
desmontar, aquela engrenagem principal
Luz de lanterna, sopro de vento
Tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da
sua ausência a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a
do lado de fora da casa. "Para trazê-lo de volta," murmurou.
E foi dormir.
Mas, ao abrir a porta na manhã seguinte, de- parou-se com a
lanterna apagada. "Foi o vento da madrugada," pensou
olhando para o alto como se pudesse vê-lo soprar.
À noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que,
a distância, haveria de indicar ao seu homem o caminho de
casa.
Ventou de madrugada. Mas era tão tarde e ela estava tão
cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das árvores, nem o
gemido das frestas, nem o ranger da argola da lanterna. E de
manhã surpreendeu-se ao encontrar a luz apagada.
Naquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se
estudando o céu límpido, as claras estrelas. "Na certa não
ventará," disse em voz alta, quase dando uma ordem. E
encostou a chama do fósforo no pavio.
Se ventou ou não, ela não saberia dizer. Mas antes que o dia
raiasse não havia mais nenhuma luz, a casa desaparecia nas
trevas.
Assim foi durante muitos e muitos dias, a mulher sem nunca
desistir acendendo a lanterna que o vento, com igual
constância, apagava.
Talvez meses tivessem passado quando num entardecer, ao
acender a lanterna, a mulher viu ao longe, recortada contra
a luz que lanhava em sangue o horizonte, a escura silhueta
de um homem a cavalo. Um homem a cavalo que galopava
na sua direção.
Aos poucos, apertando os olhos para ver melhor, distinguiu
a lança erguida ao lado da sela, os duros contornos da
couraça. Era um soldado que vinha. Seu coração hesitou
entre o medo e a esperança. O fôlego se reteve por instantes
entre os lábios abertos. E já podia ouvir os cascos batendo
sobre a terra, quando começou a sorrir. Era seu marido que
vinha.
Apeou o marido. Mas só com um braço rodeou-lhe os
ombros. A outra mão pousou na empunhadura da espada.
Nem fez menção de encaminhar-se para a casa.
Que não se iludisse. A guerra não havia acabado. Sequer
havia acabado a batalha que deixara pela manhã. Coberto de
poeira e sangue, ainda assim não havia vindo para ficar.
"Vim porque a luz que você acende à noite não me deixa
dormir," disse-lhe quase ríspido. "Brilha por trás das minhas
pálpebras fechadas, como se me chamasse. Só de
madrugada, depois que o vento sopra, posso adormecer."
A mulher nada disse. Nada pediu. Encostou a mão no peito
do marido, mas o coração dele parecia distante, protegido
pelo couro da couraça. "Deixe-me fazer o que tem que ser
feito, mulher," disse sem beijá-la. De um sopro apagou a
lanterna. Montou a cavalo, partiu. Adensavam-se as som-
bras, e ela não pôde sequer vê-lo afastar-se recortado contra
o céu.
A partir daquela noite, a mulher não acendeu mais
nenhuma luz. Nem mesmo a vela dentro de casa, não fosse
a chama acender-se por trás das pálpebras do marido.
No escuro, as noites se consumiam rápidas. E com elas
carregavam os dias, que a mulher nem contava. Sem saber
ao certo quanto tempo havia passado, ela sabia porém que
era tanto.
E, passado outro tanto, num final de tarde em que à soleira
da porta despedia-se da última luz no horizonte, viu
desenhar-se lá longe a silhueta de um homem. Um homem
a pé que caminhava na sua direção. Protegeu os olhos com a
mão para ver melhor e aos poucos, porque o homem
avançava devagar, começou a distinguir a cabeça baixa, o
contorno dos ombros cansados. Contorno doce, sem
couraça. Hesitou seu coração, retendo o sorriso nos lábios -
tantos homens haviam passado sem que nenhum fosse o
que ela esperava. Ainda não podia ver-lhe o rosto, oculto
entre barba e chapéu, quando deu o primeiro passo e correu
ao seu encontro, liberando o coração. Era seu marido que
voltava da guerra.
Não precisou perguntar-lhe se havia vindo para ficar.
Caminharam até a casa. Já iam entrar, quando ele se reteve.
Sem pressa voltou-se, e, embora a noite ainda não tivesse
chegado, acendeu a lanterna. Só então entrou com a
mulher. E fechou a porta.
Sem novidades no front front
Esperava que o marido voltasse da guerra. Durante os
primeiros anos, quando ele certamente não chegaria,
preparou compotas. Depois, a partir do momento em que o
regresso se tornava uma possibilidade iminente, assou pães,
e a cada semana uma torta de peras, enchendo a casa com o
perfume açucarado que, antes mesmo do seu sorriso, lhe
daria as boas-vindas.
Um dia chegou o vizinho da frente. No outro chegou o
vizinho do lado. E seu marido não chegou. Voltaram os
gêmeos morenos. Voltaram os três irmãos louros. E seu
marido não voltou. Aos poucos, todos os homens da
pequena cidade estavam de volta à suas casas. Menos um. O
seu.
Paciente, ainda assim ela espanava os vidros de compotas,
abria em cruz a massa levedada, e descascava pêras.
Há muito a guerra havia terminado quando a silhueta escura
parou hesitante frente ao seu portão. Antes que sequer
batesse palmas, foi ela recebê-lo, de avental limpo. E
puxando-o pela mão o trouxe para dentro, fez que lavasse o
rosto na pia mesmo da cozinha, sentasse à mesa, enfim um
homem no espaço que a ele sempre fora dedicado.
Encheu-lhe o copo de vinho, serviu-lhe a fatia de torta.
Profunda paz a invadia enquanto o olhava comer esfaimado.
E, esforçando-se para não perceber que aquele não era o seu
marido, começou a fazer-lhe perguntas sobre o front.
Tentando se segurar numa alça lilás
Entrou no elevador.
A um canto, outra mulher segurava firme debaixo do braço
uma enorme bolsa de couro lilás.
- Que ousadia, uma bolsa lilás - sorriu ela.
- Acabei de dizer a um homem que o amo - respondeu a
outra. - Então entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa
bolsa. Eu precisava sentir nas mãos a minha audácia.
Não sorriu. Agarrou-se náufraga na alça.
A mulher ramada
Verde claro, verde escuro, canteiro de flores, arbusto
entalhado, e de novo verde claro, verde escuro, imenso
lençol do gramado; lá longe o palácio. Assim o jardineiro via
o mundo, toda vez que levantava a cabeça do trabalho.
E via carruagens chegando, silhuetas de damas arrastando os
mantos nas aléias, cavaleiros partindo para a caça.
Mas a ele, no canto mais afastado do jardim, que a seus
cuidados cabia, ninguém via. Plantando, podando, cuidando
do chão, confundia-se quase com suas plantas, mimetizava-
se com as estações. E se às vezes, distraído, murmurava
sozinho alguma coisa, sua voz não se entrelaçava à música
distante que vinha dos salões, mas se deixava ficar por entre
as folhas, sem que ninguém a viesse colher.
Já se fazia grande e frondosa a primeira árvore que havia
plantado naquele jardim, quando uma dor de solidão
começou a enraizar-se no seu peito. E passados dias, e
passados meses, só não passando a dor, disse o jardineiro a si
mesmo que já era tempo de ter uma companheira.
No dia seguinte, trazidas num saco duas belas mudas, o
homem escolheu o lugar, ajoelhou- se, cavou cuidadoso a
primeira cova, mediu um palmo, cavou a segunda, e com
gestos sábios de amor enterrou as raízes. Ao redor afundou
um pouco a terra, para que a água de chuva e rega manti-
vesse sempre molhados os pés de rosa.
Foi preciso esperar. Mas ele, que há tanto esperava, não
tinha pressa. E quando os primeiros, tênues, galhos
despontaram, carinhosamente os podou, dispondo-se a
esperar novamente, até que outra brotação se fizesse mais
forte.
Durante meses trabalhou conduzindo os ramos de forma a
preencher o desenho que só ele sabia, podando os espigões
teimosos que escapavam à harmonia exigida. E aos poucos,
entre suas mãos, o arbusto foi tomando feitio, fazendo surgir
dos pés plantados no gramado duas lindas pernas, depois o
ventre, os seios, os gentis braços da mulher que seria sua.
Por último, cuidado maior, a cabeça, levemente inclinada
para o lado.
O jardineiro ainda deu os últimos retoques com a ponta da
tesoura. Ajeitou o cabelo, arredondou a curva de um joelho.
Depois, afastando-se para olhar, murmurou encantado:
- Bom-dia, Rosamulher.
Agora, levantando a cabeça do trabalho, não procurava mais
a distância. Voltava-se para ela, sorria, contava o longo
silêncio da sua vida. E quando o vento batia no jardim,
agitando os braços verdes, movendo a cintura, ele todo se
sentia vergar de amor, como se o vento o agitasse por
dentro.
Acabou o verão, fez-se inverno. A neve envolveu com seu
mármore a mulher ramada. Sem plantas para cuidar, agora
que todas descansavam, ainda assim o jardineiro ia todos os
dias visitá-la. Viu a neve fazer-se gelo. Viu o gelo desfazer-
se em gotas. E, um dia em que o sol parecia mais morno do
que de costume, viu de repente, na ponta dos dedos
engalhados, surgir a primeira brotação da primavera.
Em pouco, o jardim vestiu o cetim das folhas novas. Em
cada tronco, em cada haste, em cada pedúnculo, a seiva
empurrou para fora pétalas e pistilos. E mesmo no escuro da
terra os bulbos acordaram, espreguiçando-se em pequenas
pontas verdes.
Mas, enquanto todos os arbustos se enfeitavam de flores,
nem uma só gota de vermelho brilhava no corpo da roseira.
Nua, obedecia ao esforço do seu jardineiro que, temendo
viesse a floração romper tanta beleza, cortava rentes todos
os botões.
De tanto contrariar a primavera, adoeceu porém o
jardineiro. E, ardendo de amor e febre na cama, inutilmente
chamou por sua amada.
Muitos dias se passaram antes que pudesse voltar ao jardim.
Quando afinal conseguiu se levantar para procurá-la,
percebeu de longe a marca da sua ausência. Embaralhando-
se aos cabelos, desfazendo a curva da testa, uma rosa
embabadava suas pétalas entre os olhos da mulher. E já outra
no seio despontava.
Parado diante dela, ele olhava e olhava. Perdida estava a
perfeição do rosto, perdida a expressão do olhar. Mas do seu
amor nada se perdia. Florida, pareceu-lhe ainda mais linda.
Nunca Rosamulher fora tão rosa. E seu coração de jardineiro
soube que nunca mais teria coragem de podá-la. Nem
mesmo para mantê-la presa em seu desenho.
Então docemente a abraçou descansando a cabeça no seu
ombro. E esperou.
E sentindo sua espera a mulher-rosa começou a brotar,
lançando galhos, abrindo folhas, envolvendo-o em botões,
casulo de flores e perfumes.
Ao longe, raras damas surpreenderam-se com o súbito
esplendor da roseira. Um cavaleiro reteve seu cavalo. Por
um instante pararam, atraídos. Depois voltaram a cabeça e a
atenção, retomando seus caminhos. Sem perceber debaixo
das flores o estreito abraço dos amantes.
Uma vez por semana, no crepúsculo
Todas as terças-feiras, quando no princípio da tarde saía para
encontrar-se com o amante, colocava na bolsa o coração.
Assim era mais fácil de ofertar.
Chegava, trocava os primeiros abraços e, antes que os dedos
desfizessem botões, colhia o coração entre o lencinho
rendado e as chaves de casa, para colocá-lo, palpitante,
sobre a mesinha-de-cabeceira.
Ali ficava, lâmpada votiva assistindo ao rito dos amantes, até
que o esvair-se do dia submergisse o quarto no sangue
crepuscular, tornando impossível saber se dele, ou do sol
morrente, vinha a trêmula luz.
Fazia-se hora de partir. Recomposta a ordem das roupas, ela
suspirava ajeitando a voilette sobre os olhos e, antes de
calçar as luvas, recolhia o coração. O estalo do fecho
trancava na bolsa, até a próxima semana, o amor eterno.
Brilhava sobre o mármore da mesinha a mancha úmida.
Apoiando-se no espaço vazio
Durante mais de 20 anos partilhou a cama com sua esposa
chinesa. E, embora Ching-Ping-Mei não lhe tivesse dado
filhos, sabia o quanto ela os desejara. Várias vezes, ao longo
daquele tempo, dissera-lhe ter estado grávida, perdendo a
criança em lamentáveis acidentes. E ele piedosamente
fingira acreditar, para não ferir sua delicada sensibilidade
oriental.
Gentilmente, amavam-se. Recato, escuridão, jogos de
leques. Assim se procuravam desde sempre na pesada
penumbra do quarto. Corpos nunca revelados, névoa de
incenso, o amor envolto em véus e cortinados, conservando
o mistério dos primeiros dias.
Porém, adoecendo Ching-Ping-Mei, exigiu o médico que se
abrissem janelas e se fizesse luz, tornando possível o exame.
E, embora ele se mantivesse do lado de fora da porta, em
discreta espera, não lhe foi permitido escapar à revelação
trazida junto com o diagnóstico.
A paciente logo sararia, comunicou-lhe o médico, porém
ele considerava seu dever comunicar-lhe que, à luz da
medicina e não obstante a graça e a doçura inegáveis, sua
esposa Ching-Ping-Mei era, na verdade, um homem.
Atordoado, cambaleou sentindo esboroar-se o cerne do
amor, estendeu as mãos à frente. Mas em que apoiar-se, se
ele próprio, apesar da barba e dos bigodes, e sem que sua
amada jamais desconfiasse, era, e tinha sido ao longo
daqueles anos todos, mulher?
Terceiro diedro
Girou a chave, abriu a porta. E em vertigem procurou a
segurança da maçaneta. A sala estava de cabeça para baixo.
Entre estuques, o lustre florescia erguendo pingentes. As
cortinas subiam em direção ao tapete. Mesa cadeiras
poltrona penduravam-se, tombantes as franjas do sofá. E o
flamboyant do quadro lançava no verde céu sua copa de
raízes.
Temeu entrar. Mas, não tendo outra casa que fosse sua, deu
um passo e fechou a porta. Devagar, a descoberta em cada
pé, começou a subir pela parede.
Como um colar
É cega, diziam todos. Mas cega a Princesa não era. Desde o
dia do seu nascimento não havia aberto os olhos. Não
porque não pudesse. Apenas porque não sentia necessidade.
Pois já no primeiro momento vira tantas coisas bonitas por
trás das pálpebras fechadas, que nunca lhe ocorrera levantá-
las. Era como se a janela dos seus olhos fosse voltada para
dentro, e debruçada nessa janela ela passasse seus dias,
entretida. Mas isso os outros não sabiam.
E, não sabendo, lamentava-se em segredo o Rei seu pai,
chorava escondida a Rainha sua mãe. Sem jamais revelar seu
sofrimento diante da filha, para que não viesse mais essa dor
somar-se a sua suposta desgraça.
Ao longo dos primeiros anos, os melhores médicos do reino
foram chamados para examiná-la. Tentaram pomadas,
receitaram poções, recomendaram mudanças de ar,
prescreveram banhos frios, exigiram banhos quentes.
Porém, como nada conseguisse curar aquilo que não estava
doente, cansaram de lutar contra sua própria ignorância e,
declarando o caso único na ciência médica,
desinteressaram-se dele.
A partir de então, viveu serena a Princesa, mais e mais
descobrindo daquele mundo só seu, mais e mais querendo
descobrir.
E, enquanto acumulava por dentro seu tesouro, outro
tesouro, por fora, se fazia. Pois todos os anos, desde que
havia nascido, seu pai lhe dava o mesmo, precioso, presente
de aniversário. Era sempre igual a cerimônia. Os sinos do
reino repicavam festejando a data, o Rei e a Rainha,
acompanhados de cortesãos, entravam nos seus aposentos.
Ao lado do Rei, um pajem com uma almofada de veludo cor
de sangue. E, sobre a almofada, pequena lua translúcida e
luminescente, uma pérola. Que o Rei colhia entre dois
dedos e, para admiração da corte, depositava na palma da
mão da sua filha.
- Quando completares quinze anos - dizia cada vez,
abraçando-a -, mandarei fazer com elas o mais lindo colar de
que jamais se teve notícia.
Anuíam sorridentes a Rainha e os cortesãos, imaginando o
esplendor da jóia a ser feita com as raras pérolas do Oriente.
Finda a cerimônia, quando todos já se haviam retirado, a
Princesa guardava sua pérola junto com as outras, em uma
caixa de mogno forrada de cetim. Sem pensar mais nela até
o próximo aniversário.
Assim, mais de quatorze anos haviam passado.
E era uma manhã de inverno do décimo quinto ano, quando
a Princesa, que esquentava as mãos no braseiro, ouviu uma
leve batida na janela.
Silêncio. Outra batida seca, como se um galho tocado pelo
vento. Mas não havia árvores perto da janela, nem ventava.
E a batida insistia.
A Princesa foi até a janela, abriu-a. Antes que suas mãos
começassem a tatear, uma bicada gentil veio encontrá-las,
penas macias roçaram nelas. Uma ave que ela não saberia
nomear arrulhou, passou a cabecinha contra seus dedos, e
começou a bicar o mármore do peitoril coberto de neve.
- Pobrezinha! - pensou a Princesa. - Com fome nesse frio. E
sem ter nada para comer.
Afligia-se, sem saber o que lhe dar. Mas de repente, com um
sobressalto de alegria, lembrou-se das pérolas, aqueles grãos
todos que o pai havia-lhe dado.
Sem hesitar, foi até a caixa de mogno, tirou uma pérola e, na
palma da mão, assim como a recebia do pai, ofereceu-a ao
pombo.
Um toque do bico, e lá se foi, da palma, o leve peso. Logo, o
farfalhar das asas e um súbito vento no rosto disseram à
Princesa que seu visitante também tinha ido.
Sorrindo, fechou a janela.
Mas passados alguns dias, numa tarde em que o vento uivava
pelas frestas, novamente as pancadinhas na janela pareceram
chamá-la. E ela recebeu entre as mãos seu doce amigo, e lhe
deu uma pérola para comer, e entre rufiar de penas ele se
foi.
Nevou, ventou. Voltou o silêncio a deitar-se no jardim. E no
silêncio o biquinho bateu nos vidros, a Princesa sorriu feliz.
E a cena toda se repetiu mais uma vez.
Nem foi a última. Durante aquele mês, e ainda no outro, o
pombo veio visitar a Princesa. Cada vez levava uma pérola.
Cada vez demorava-se mais.
Dessa forma, a caixa de mogno já estava vazia na manhã em
que os sinos repicaram e a Princesa lembrou-se subitamente
que era o seu aniversário. Não demorou muito, o Rei e a
Rainha e os cortesãos entraram nos seus aposentos. Sobre a
almofada, uma pérola.
Mas, dessa vez, depois de colocá-la na mão da filha, o Rei,
em voz alta, pediu-lhe as outras quatorze, pois era chegada a
hora de mandar o ourives real fazer o colar.
Sobressaltou-se a Princesa. Como dizer ao pai, diante de
todos, que não as tinha mais?
Fechadas as pálpebras sobre o seu segredo, mentiu pela
primeira vez. Que o pai voltasse dali a três dias, pois não
lembrava onde tinha guardado a caixa de mogno, e
certamente demoraria para achá-la.
O pai, pensando nas limitações da filha para encontrar os
objetos, concordou penalizado, e saiu com toda a corte.
Assim que ficou sozinha, a Princesa abriu a janela. Mas de
nada adiantou chamar. De nada adiantou bater palmas.
Nenhum farfalhar de vôo amarfanhou o silêncio.
Então uma lágrima rolou lenta sob as pálpebras fechadas,
depois outra, e outra. Quentes ainda sobre os cílios, logo
esfriavam no vento frio do inverno, descendo geladas pelo
rosto, até congelarem antes mesmo de alcançarem o
peitoril.
Foram as lágrimas congeladas que ela encontrou,
percorrendo o mármore com os dedos. Mas sentiu-as tão
redondas e lisas, que as confundiu com as pérolas e exultou
de alegria, certa de que seu amigo tinha devolvido os
preciosos grãos.
Fechou depressa a janela, guardou seu achado na caixa de
mogno. Quando seu pai viesse, já tinha o que lhe dar.
Mas quando, dali a três dias, o Rei recebeu a caixa, nela não
encontrou nada além de uma pocinha d'água encharcando o
cetim.
Onde estavam as pérolas? A beira da fúria, o pai exigia
explicações. E a Princesa não teve outro recurso senão
contar-lhe como havia recebido a visita de uma ave, como
esta arrulhava no frio e como, para matar sua fome, lhe
havia dado, um por um, todos os grãos.
Então ela não sabia o valor daqueles grãos?!, vociferou o Rei,
sem mais conter a indignação. E, nem bem havia saído dos
seus aposentos, já aos brados chamava o Ministro, exigindo
que os arqueiros reais caçassem o pombo. Daria um prêmio
valioso a quem lhe trouxesse as quatorze pérolas.
Pombo, pensou a Princesa ouvindo as ordens do pai, era
esse o nome do seu amigo. Pombo, que os arqueiros
procuraram para matar.
Envolveu-se num xale branco de lã, abriu a porta
envidraçada que dava para o jardim. Pela primeira vez, era
preciso olhar. Lentamente, sem susto ou surpresa, abriu os
olhos. A sua frente, tudo era apenas uma longa ondulação de
neve. Que ofuscava, mas que em algum lugar guardava um
pombo.
Desceu os poucos degraus, começou a caminhar. Parava às
vezes, batia palmas. A neve alta abafava seus chamados.
Afundando, tropeçando, arrastando saias e xale, afastou-se
do palácio. Talvez agora já estivesse no campo. Passou por
uma sebe de espinheiros. Adiante, alguns arbustos. Chegou
a um pequeno bosque. As árvores negras agitavam no vento
os galhos descarnados. Novamente a Princesa bateu palmas.
Mas, dessa vez, um farfalhar seu conhecido fez-se ouvir. E
eis que, entre o negro e o branco, um belo pombo cinzento
veio volteando para pousar-se em sua mão estendida.
Ao longe, o arqueiro escondido atrás de um tronco viu a
mancha cinzenta movendo-se contra o fundo imaculado.
Não viu a silhueta da Princesa que, envolta no xale branco,
confundia-se com a neve.
Tirou a seta da aljava, retesou a corda. O pombo pousou suas
patinhas de lacre nos dedos que o esperavam, ainda bateu as
asas para equilibrar-se. Com silvo de serpente, a seta o
atingiu.
Um estremecimento, um voar de penas e sangue, um rasgar
de carnes. Varado o corpo cinzento, nem assim se aplacou a
fome da ponta de ferro. Que avançou ainda. Indo cravar-se
no coração da Princesa.
Batem no vento os negros galhos. Caída sobre a neve,
desfeito o casulo do xale, a Princesa fecha lentamente os
olhos que havia demorado tanto para abrir. Mas pela ferida
no peito do pombo rola uma pérola, depois outra, outra
mais. Quatorze pérolas escorrem como gotas sobre o alvo
colo da Princesa. E preciosas se aninham ao redor do pes-
coço. Como um colar.
Um tigre de papel
Sabendo que a ele caberia determinar seus movimentos e
controlar sua fome, o escritor começou lentamente a
materializar o tigre. Não se preocupou com descrições de
pêlo ou patas. Preferiu introduzir a fera pelo cheiro. E o
texto impregnou-se do bafo carnívoro, que parecia exalar
por entre as linhas. Depois, com cuidado, foi aumentando a
estranheza da presença do tigre na sala rococó em que havia
decidido localizá-lo. De uma palavra a outra, o felino movia-
se irresistível, farejando o dourado de uma poltrona,
roçando o dorso rajado contra a perna de uma papeleira.
Em vez de escrever um salto, o escritor transmitiu a
sensação de movimento com uma frase curta. Em vez de
imitar o terrível miado, fez tilintar os cristais acompanhando
suas passadas. Assim, escolhendo o outro as palavras com o
mesmo sedoso cuidado com que sua personagem pisava nos
tapetes persas, criava-se a realidade antes inexistente.
O quarto parágrafo pareceu ao escritor momento ideal para
ordenar ao tigre que subisse com as quatro patas sobre o
tamborete de petit point. E já a fera aparentemente
domesticada tensionava os músculos para obedecer, quando,
numa rápida torção do corpo, lançou-se em direção oposta.
Antes que chegasse a vírgula, havia estraçalhado o sofá,
derrubado a mesa com a estatueta de Sèvres, feito em tiras o
tapete. Rosnados escapavam por entre letras e volutas. O
tigre apossava-se da sua natureza. Já não havia controle
possível. O autor só podia acompanhar-lhe a fúria,
destruindo a golpes de palavras a bela decoração rococó que
havia tão prazerosamente construído, enquanto sua criatura
crescia, dominando o texto.
Impotente, via, aos poucos, espalharem-se no papel cacos
de móveis e porcelanas, estilhaçar-se o grande espelho, cair
por terra a moldura entalhada. Não havia mais ali um animal
exótico na sala de um palácio, mas um animal feroz em seu
campo de batalha.
O escritor esperava tenso que o cansaço dominasse a fera,
para que ele pudesse retomar o domínio da narrativa,
quando a viu virar-se na sua direção, baixar a cabeça em que
os olhos amarelos o encaravam, e lentamente avançar.
Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a enorme pata do
tigre abatendo-se sobre ele obrigou o texto ao ponto final.
Léa Masina é doutora em Letras, professora adjunta no Instituto de Letras da UFRGS, bacharel em
Direito e crítica literária.
Lançamento Arcanjo Micael Um Espinho de Marfim - Marina Colasanti links abaixo digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia agradecimentos pela doação do ebook para o Memorial do Conhecimento Sinopse: Os leitores acostumados, desde a infância, ao convívio com lendas e histórias fantásticas, situadas em castelos e mundos habitados por reis e princesas, leões e pombos, serpentes, príncipes e unicórnios irão rever, nos textos de Marina Colasanti, o mágico faz-de-conta dessas lembranças. E como gostar, quase sempre, deriva do conhecimento, irão percorrer o velho e o novo guiados por um olhar que incide, epifanicamente, no feminino. Princesa, rosa, sereia, tecelã, rainha, prostituta, aldeã, esposa, mãe ou amante, a mulher é o centro de uma cosmogonia. Os papéis que desempenha e os espaços sociais que ocupa, revelam uma visão quase essencialista do gênero. Retratando "cenas da vida privada", a autora trata de questões substantivas, como o amor e a morte, o preconceito, o desafio, a competência, a maternidade. Disso resulta um ótimo nível de generalização que transforma cada história individual na História Geral de todas as mulheres. PASTAS LANÇAMENTOS Arcanjo Micael: http://rapidshare.com/users/KPGYUD http://www.mediafire.com/?q6ebsi7j6b5cv Este e-book representa uma contribuição do grupo Arcanjo Micael para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos. É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente, benefícios financeiros. Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras | ||||||
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