Tracy Chevalier
O Azul da
Virgem
Tradução BEATRIZ HORTA
BERTRAND BRASIL
2007
Para Jonathan
Da mesma forma que o amarelo tem sempre luz, pode-se
dizer que o azul tem um toque de escuridão. Essa cor causa
um efeito peculiar e quase indescritível nos olhos. Como
cor, ela é poderosa, mas em seu lado negativo e em sua
pureza mais completa há, digamos, uma negação
estimulante. Sua aparência, então, é uma espécie de
contradição entre agitação e repouso.
Goethe, Teoria das cores
SUMÁRIO
1. A virgem
2. O sonho
3. A fuga
4. A procura
5. Os segredos
6. A Bíblia
7. O vestido
8. A fazenda
9. A chaminé
10. A volta
EPÍLOGO
NOTAS HISTÓRICAS
349
AGRADECIMENTOS
351
1
A VIRGEM
Ela se chamava Isabelle e, quando menina, seus — cabelos
mudaram de cor com a mesma rapidez que um pássaro troca
a plumagem para atrair a companheira.
Naquele verão, o Duque de l'Aigle trouxe de Paris uma
estátua da Virgem com Menino e um pote de tinta para pin-
tar o nicho em cima da porta da igreja. No dia em que a está-
tua foi instalada, houve festa na aldeia. Isabelle sentou-se no
alto de uma escada para ver Jean Tournier pintar o nicho de
azul intenso, a mesma cor do límpido céu vespertino. Quan-
do terminou, o sol surgiu por trás de uma parede de nuvens
e iluminou o azul com tal intensidade que Isabelle pôs as
mãos na nuca e apertou os braços contra o peito. Os raios
chegaram até ela e tocaram seus cabelos com uma aura de
cobre que permaneceu neles mesmo depois de o sol ter ido
embora. A partir desse dia, ela passou a ser chamada de La
Rousse (Ruiva), por causa da Virgem Maria.
O apelido perdeu seu tom afetuoso alguns anos depois,
quando Monsieur Marcel chegou à aldeia com as mãos man-
chadas de tanino do vinho e palavras emprestadas de
Calvino. No primeiro sermão que fez no bosque, fora das
vistas do capelão da aldeia, ele disse aos ouvintes que a
Virgem estava impedindo que chegassem à Verdade.
— La Rousse foi maculada por causa das estátuas, das velas,
dos enfeites. Ela está contaminada! Ela se põe entre vocês e
Deus! — exclamou ele.
Os aldeões viraram-se para olhar Isabelle, que apertou o
braço da mãe.
Como ele pode saber?, pensou ela. Só Maman sabe.
A mãe não iria dizer a Monsieur Marcel que Isabelle havia
menstruado pela primeira vez naquele dia e agora estava
com um pano áspero preso entre as pernas e uma dor na
barriga do tamanho de um travesseiro. A mãe chamava
aquilo de les fleurs, flores especiais enviadas por Deus, uma
dádiva que ela não podia comentar porque a discriminariam.
Olhou para a mãe, que franziu o cenho para Monsieur
Mareei e abriu a boca como se fosse falar. Isabelle apertou o
braço dela outra vez e mamãe tornou a fechar a boca,
comprimindo-a.
Depois, Isabelle voltou para casa entre a mãe e a irmã Marie;
os irmãos gêmeos vieram atrás, mais devagar. No começo, as
outras crianças da aldeia seguiram-nos, cochichando. Até
que, cheio de curiosidade, um menino correu e pegou uma
mecha de cabelos de Isabelle.
— Ouviu o que ele disse, La Rousse? Você está suja! —
gritou.
Isabelle soltou um grito. Petit Henri e Gérard pularam para
defendê-la, satisfeitos por serem úteis, enfim.
No dia seguinte, Isabelle passou a usar uma touca; cada
mecha castanho-avermelhada foi enrolada e escondida
muito antes de as meninas da idade dela usarem essa peça de
roupa.
Quando Isabelle estava com catorze anos, dois ciprestes
cresciam num ensolarado terreno perto da casa. Para plantar
um de cada, Petit Henri e Gérard tiveram de procurar mudas
em Barre-les-Cévennes, que ficava a dois dias de caminhada.
A primeira árvore foi plantada em intenção de Marie. Sua
barriga estava tão grande que todas as aldeãs diziam que
deviam ser gêmeos, mas Maman apalpou com a mão e
sentiu só uma cabeça, embora grande. Maman ficou
preocupada com o tamanho da cabeça.
— Se fossem gêmeos, seria mais fácil — murmurou para
Isabelle.
Quando chegou a hora, Maman mandou todos os homens
saírem: marido, pai, irmãos. Era uma noite muito fria, um
vento forte soprava flocos de neve na casa, nos muros de
pedra, nas moitas de centeio morto. Os homens foram
saindo devagar de perto da lareira até ouvirem os primeiros
gritos de Marie: eram homens fortes, acostumados com o
guincho dos porcos sendo sacrificados, mas o tom humano
fez com que andassem depressa.
Isabelle já havia ajudado a mãe a fazer partos, mas sempre
com outras mulheres de visita para cantar e contar histórias.
Naquela noite, o frio obrigou-as a ficar longe; Isabelle e
Maman estavam sós. Ela olhou para a irmã, imóvel sob uma
barriga enorme, tremendo de frio, suando e gritando. O
rosto da mãe estava tenso e ansioso, ela falava pouco.
Durante a noite, Isabelle segurou a mão de Marie, apertou-a
nas contrações e secou a testa dela com um pano úmido.
Rezou em sua intenção, em silêncio pediu à Virgem e à
Santa Margarida que protegessem a irmã, sempre se sentindo
culpada: Monsieur Marcel dissera a todos que a Virgem e os
santos não tinham poder e não deviam ser invocados.
Naquele momento, nenhuma palavra dele a confortava. Só
as velhas orações faziam sentido.
— A cabeça é grande demais, temos de dar um corte — disse
Maman, por fim.
— Non, Maman — Marie e Isabelle sussurraram em unís-
sono. Os olhos de Marie estavam perturbados e dilatados.
Desesperada, ela começou a fazer força outra vez, chorando,
ofegante. Isabelle ouviu a carne se abrindo; Marie se
encolheu antes de ficar fraca e cinzenta. A cabeça da criança
apareceu num rio de sangue, negra e malformada, e, quando
Maman puxou, o bebê já estava morto, com o cordão
umbilical enrolado no pescoço. Era uma menina.
Os homens voltaram para casa de manhã, quando viram
subir da lareira a fumaça de palha encharcada de sangue.
Enterraram mãe e filha num lugar ensolarado, onde Marie
gostava de sentar-se quando fazia calor. O cipreste foi
plantado em cima do coração dela.
O sangue deixou um traço leve no chão, que nem todas as
vassouras e escovas conseguiram tirar.
A segunda árvore foi plantada no verão seguinte.
Era o entardecer, a hora dos lobos, quando mulher alguma
podia andar sozinha. Maman e Isabelle foram fazer um parto
em Felgérolles. A mãe e o bebê sobreviveram, inter-
rompendo uma longa série de mortes que haviam começado
com Marie e a filha. Naquela tarde, elas demoraram mais
tempo, dando mais conforto à mãe e ao bebê, ouvindo as
outras mulheres cantarem e conversarem, de forma que o
sol já havia mergulhado atrás do monte Lozère, quando
Maman deixou de lado as recomendações para ficar, recusou
os convites para passar a noite na casa e as duas voltaram.
O lobo estava bem no caminho, como se à espera delas. As
duas pararam, puseram suas sacolas no chão, benzeram-se.
O lobo ficou imóvel. Elas o olharam por um instante,
Maman pegou a sacola e deu um passo à frente. O lobo não
se mexeu e, apesar do escuro, Isabelle viu que ele era magro,
de pêlo cinza e sarnento. Os olhos tinham um brilho
amarelo, como se houvesse uma vela dentro deles, e o
animal andava de um jeito desengonçado e manco. Só
quando chegou tão perto que Maman quase conseguia tocar
em seu pêlo cinza, Isabelle viu que a boca do lobo
espumava, e entendeu. Todo mundo já tinha visto um
animal contaminado com raiva, cães andando a esmo, a boca
tomada de espuma, o olhar diferente e vil, um latido
amortecido. Não bebem água, e a melhor proteção contra
eles, além de um machado, era um balde com muita água.
Maman e Isabelle só tinham ervas, um pano de linho e uma
faca.
Quando o lobo saltou, Maman levantou o braço por instinto,
o que lhe deu mais vinte dias de vida, mas depois a fez
desejar que ele tivesse rasgado seu pescoço logo, por
piedade. Quando ele recuou e o sangue escorreu pelo braço
dela, o lobo olhou de relance para Isabelle e sumiu no
escuro sem emitir um som sequer.
Maman contou ao marido e aos filhos sobre o lobo que tinha
velas nos olhos, enquanto Isabelle limpava a mordida com
água fervida com folhas de bolsa-de-pastor, estendia uma
teia de aranha por cima e amarrava o braço com uma tira de
lã macia. Maman não ficou quieta, insistiu em colher amei-
xas e trabalhar na horta, como se não tivesse visto a verdade
brilhando nos olhos do animal. No dia seguinte, o braço dela
inchou tanto, que ficou do mesmo tamanho do antebraço e
a pele escureceu em volta do machucado. Isabelle preparou
uma omelete, acrescentou alecrim e sálvia e rezou uma
prece em silêncio. Quando levou para a mãe, chorou.
Maman pegou o prato com a omelete e comeu tudo, calma,
de olhos na filha, sentindo o gosto da morte na sálvia.
Quinze dias depois, mamãe estava bebendo água quando sua
garganta começou a contrair em espasmos, espirrando água
na frente do vestido. Olhou a mancha negra se espalhar pelo
peito, depois se sentou no banco ao lado da porta, sob o sol
de fim de verão.
A febre veio em seguida, tão forte que Isabelle rezou para
que a morte também viesse depressa para aliviá-la. Mas
Maman lutou, suando e gritando em seu delírio durante qua-
tro dias. No último, quando o padre de Le Pont de Montvert
chegou para realizar os últimos rituais, Isabelle pôs uma vas-
soura atravessada na porta e cuspiu nela até ele ir embora. Só
quando Monsieur Mareei chegou, ela tirou a vassoura e deu
passagem para ele entrar.
Quatro dias depois, os gêmeos voltaram carregando o
segundo cipreste.
A multidão reunida na frente da igreja não estava
acostumada a vitórias, e nem com a forma de celebrá-las.
Finalmente, o padre tinha sumido há três dias. Agora não
havia mais dúvida de que ele tinha ido embora, pois o
lenhador Pierre La Forêt o vira a quilômetros de distância,
com toda a tralha que tinha conseguido carregar empilhada
às costas.
A neve do início de inverno cobriu as partes lisas do terreno
com uma gaze fina e, em alguns pontos, ficou manchada de
folhas e pedras esparsas. Ainda ia cair mais neve, pois o céu
ao norte estava cor-de-estanho, lá depois do cume do monte
Lozère. Via-se uma camada branca sobre as grossas telhas de
granito da igreja. O templo estava vazio. Nenhuma missa
havia sido rezada lá desde a colheita: a freqüência de fiéis
tinha caído depois que Monsieur Marcel e seus seguidores
tornaram-se mais confiantes.
Isabelle se encontrava no meio dos vizinhos, ouvindo
Monsieur Marcel, que andava de um lado para outro na
porta de entrada, severo em seus trajes negros e cabelos
grisalhos. Só as mãos manchadas de tanino maculavam sua
presença autoritária, lembrando à platéia que, afinal, ele não
passava de um simples sapateiro.
Quando ele começou a falar, olhou para um ponto acima da
multidão.
— Este local de culto tem sido cenário de perversão. Agora
está em mãos seguras. Está nas mãos de vocês. — Fez um
gesto como se semeasse. Um murmúrio subiu da multidão.
— Este lugar precisa ser limpo — continuou ele. — Limpo
do pecado, limpo desses ídolos. — Fez um sinal com a mão
para a igreja atrás dele. Isabelle olhou para a Virgem, o azul
ao fundo da imagem estava esmaecido, mas ainda conseguia
emocioná-la. Ela já havia tocado na própria testa e no peito,
até perceber o que estava fazendo e não completar o sinal-
da-cruz. Olhou em volta para conferir se alguém tinha visto.
Os vizinhos acompanhavam Monsieur Marcel com os olhos,
pronunciavam o nome dele à medida que passava e ia
subindo a colina na direção do conjunto de nuvens escuras,
com as mãos avermelhadas entrelaçadas às costas. Ele não
olhou para trás.
Quando foi embora, a multidão ficou mais barulhenta, mais
agitada. Alguém gritou: "A janela!" O grito recebeu apoio.
Sobre a porta da igreja, a pequena janela redonda era o único
vitral que eles já tinham visto. Três verões antes, o Duque
de PAigle o havia colocado atrás do nicho, pouco antes de
Calvino atraí-lo para a Verdade. Vista pelo lado de fora, a
janela era de um marrom grosseiro, mas por dentro era
verde, amarela e azul, com um pequeno ponto vermelho na
mão de Eva. O Pecado. Isabelle não entrava na igreja há
tempo, mas se lembrava bem da cena: o olhar de desejo de
Eva, o sorriso da serpente, a vergonha de Adão.
Se pudessem ter visto a janela mais uma vez, o sol ilumi-
nando as cores como um denso campo cheio de flores no
verão, ela teria sido salva pela sua beleza. Mas naquele dia
não havia sol nem jeito de entrar na igreja: o padre havia
colocado um cadeado grande no ferrolho da porta. Eles
também nunca tinham visto um cadeado — vários homens
examinaram e mexeram nele, sem saber como funcionava
aquilo. Um machado o teria arrancado com cuidado para
não estragá-lo.
Levaram um susto só de saber quanto valia aquela janela.
Pertencia ao duque, a quem os camponeses entregavam um
quarto de suas colheitas em troca de proteção, da garantia de
que alguém sopraria alguma coisa no ouvido do rei. O vitral
e a estátua da Virgem tinham sido doados pelo duque. Que
ainda devia gostar de ambos.
Ninguém soube direito quem jogou a pedra, embora depois
várias pessoas tenham se apresentado. A pedra bateu no
meio da janela e despedaçou-a na hora. Emitiu um som tão
estranho que a multidão se aquietou. Nunca tinham ouvido
o som de um vidro se quebrando.
Na calmaria, um menino correu, pegou um caco de vidro,
soltou um grito e jogou-o no chão.
— Aquilo me mordeu! — berrou o menino, mostrando o
dedo a sangrar.
A gritaria voltou. A mulher agarrou o filho e abraçou-o com
força.
— O demônio! Foi o demônio! — gritou.
Etienne Tournier, cujos cabelos pareciam feno queimado,
deu um passo adiante com um ancinho de cabo comprido.
Olhou para o irmão mais velho, Jacques, que estava atrás e
concordou com a cabeça. Etienne tornou a olhar a imagem
da Virgem e disse em voz alta: —La Rousse!
A multidão deu alguns passos para o lado, deixando Isabelle
isolada. Etienne virou-se com um sorriso malicioso, os olhos
azul-claros tocando nela como mãos que apertam.
Ele escorregou a mão pelo cabo do ancinho e levantou-o
fazendo com que os dentes de metal ficassem de frente para
ela. Os dois se olharam. A multidão havia se acalmado.
Finalmente, Isabelle segurou os dentes do ancinho e,
quando ela e Étienne se entreolharam, sentiu um fogo arder
abaixo do ventre.
Étienne sorriu e soltou o ancinho, que bateu com os dentes
no chão. Isabelle pegou-o pelo cabo e ao se aproximar de
Etienne, tinha os dentes do ancinho virados para o alto.
Quando ela olhou para a Virgem, Étienne deu um passo
atrás e sumiu. Isabelle sentia a pressão da multidão reunida
outra vez, inquieta, murmurando.
— Faça, La Rousse! Faça! — gritou alguém.
No meio da multidão, os irmãos de Isabelle olharam para o
chão. Não dava para ela ver o pai; porém, mesmo que ele
também estivesse lá, não poderia ajudá-la.
Respirou fundo e levantou o ancinho. Ouviu-se um grito em
uníssono, o que fez o braço dela tremer. Colocou os dentes
do ancinho à esquerda do nicho e olhou em volta a massa de
rostos corados, agora desconhecidos, duros e frios. Levantou
o ancinho, colocou-o na base da imagem e empurrou. A
estátua não se moveu.
A gritaria aumentou quando ela começou a empurrar com
mais força, as lágrimas alfinetando seus olhos. O Menino
olhava para o céu distante, mas Isabelle podia sentir o olhar
da Virgem voltado para ela.
— Perdoai-me — ela sussurrou. Depois, empurrou o ancinho
e balançou a estátua com toda a força. O metal bateu na
imagem com um som surdo e partiu o rosto da Virgem, que
caiu sobre Isabelle e fez a multidão rir alto. Desesperada, ela
balançou a estátua outra vez. O golpe fez a argamassa se
soltar e a imagem se mexer um pouco.
— Tente outra vez, La Rousse! — gritou uma mulher.
Não posso fazer de novo, pensou Isabelle, mas, ao ver os
rostos corados, ela bateu outra vez. A estátua começou a
balançar; a mulher sem rosto ninava a criança nos braços.
Em seguida ela se inclinou para a frente e caiu; a cabeça da
Virgem bateu primeiro no chão e se espatifou, o corpo veio
depois. Com o impacto, o Menino foi separado da mãe e
ficou no chão, olhando para cima. Isabelle largou o ancinho
e cobriu o rosto com as mãos. Ouviram-se gritos e assobios
animados, e a multidão se aproximou para rodear a estátua
partida.
Quando Isabelle tirou as mãos do rosto, Etienne estava na
sua frente. Sorriu vitorioso e apertou os seios dela. Depois,
entrou na multidão e jogou estrume no nicho azul.
Nunca mais verei aquela cor, pensou ela.
Petit Henri e Gérard não precisaram de muitos argumentos
para se convencerem. Isabelle pôs a culpa na capacidade de
persuasão de Monsieur Mareei, mas no fundo sabia que os
dois rapazes teriam ido de qualquer forma, mesmo sem as
melosas palavras de monsieur.
— Deus sorrirá para vocês — disse monsieur, solene. —
Escolheu-os para combaterem nesta guerra. Lutar por seu
Deus, por sua religião, sua liberdade. Vocês voltarão como
homens de coragem e força.
— Se voltarem — resmungou, zangado, Henri du Moulin, e
só Isabelle ouviu. Ele arrendava três campos de centeio e
dois de batata, assim como um lindo bosque de castanheiros.
Criava porcos e um bando de gansos. Precisava dos filhos,
não podia lavrar a terra só com a ajuda da filha.
— Vou cultivar menos terras — disse ele para Isabelle. — Só
um campo de centeio, e vou desistir de alguns gansos e
porcos. Assim, precisarei apenas de um campo de batatas
para alimentá-los. Posso conseguir mais animais quando os
gêmeos voltarem da guerra.
Não voltarão, pensou ela. Viu a luz nos olhos deles quando
saíram com outros rapazes do monte Lozère. Vão para
Toulouse e Paris, depois para Genebra ver Calvino. Vão à
Espanha, onde os homens têm pele escura, ou vão ao
oceano no fim do mundo. Mas para cá não voltam.
Uma tarde, ela juntou coragem para falar quando o pai
sentou-se e afiou a lâmina do arado ao lado do fogo.
— Papai, eu podia me casar, morar aqui com meu marido e
trabalharmos com você — arriscou dizer.
Com uma palavra, ele a fez parar.
— Morar com quem? — perguntou ele, com a pedra de
amolar sob a lâmina. A sala ficou silenciosa, sem o barulho
ritmado do metal raspando na pedra.
Ela virou o rosto.
— Você e eu, ma petite, estamos sozinhos. — O tom era
delicado. — Mas Deus é mais gentil do que você pensa.
Isabelle pôs as mãos no pescoço, nervosa, ainda sentindo o
gosto da hóstia na boca: sabor de pão duro e seco que ficava
no fundo da garganta muito depois de ser engolido. Étienne
colocou a mão na cabeça dela e puxou a touca. Encontrou a
fita, enrolou-a na mão e puxou forte. Ela começou a girar, a
touca desmanchando, os cabelos se soltando, vendo Étienne
de relance, com um sorriso irônico, depois os castanheiros
do pai, o fruto pequeno, verde e fora de alcance.
Quando ficou sem a touca, ela tropeçou, retomou o
equilíbrio, hesitou. Olhou para ele, mas recuou. Étienne
alcançou-a com dois passos largos, derrubou-a e caiu por
cima dela. Levantou com a mão seu vestido enquanto a
outra se enfiava pelos cabelos de Isabelle, os dedos abertos,
passando como um pente e enrolando o cabelo como havia
enrolado a fita um instante antes, até o punho chegar à nuca
da moça.
— La Rousse, há muito tempo você me evita. Está pronta?
— perguntou ele, em tom baixo.
Isabelle hesitou, depois concordou. Étienne puxou os
cabelos dela para trás e aguardou que ela levantasse o queixo
e lhe entregasse a boca.
Mas a hóstia da Missa de Pentecostes ainda está na minha
boca e isso é o Pecado, ela pensou.
Os Tournier eram a única família entre o monte Lozère e a
aldeia de Florac a ter uma Bíblia. Isabelle tinha visto o livro
em serviços religiosos, quando Jean Tournier carregava-a
embrulhada em linho e entregava-a, solene, a Monsieur
Marcel. Olhava a Bíblia, inquieto, durante todo o serviço.
Não gostava de entregá-la.
Monsieur Mareei juntou as mãos abertas e aninhou o livro
nos braços, apoiado na curva de sua pança. Enquanto lia,
balançava de um lado para outro como se estivesse bêbado,
embora Isabelle soubesse que não podia estar, já que ele
mesmo havia proibido o vinho. Os olhos dele se mexiam
para trás e para a frente, e as palavras saíam-lhe da boca, mas
não se sabia direito como haviam entrado lá.
Assim que a Verdade foi decretada na velha igreja, Monsieur
Mareei recebeu uma Bíblia trazida de Lyon e o pai de
Isabelle fez um atril de madeira onde ela foi colocada.
Depois, não se viu mais a Bíblia dos Tournier, embora
Étienne ainda se vangloriasse dela.
— De onde vêm as palavras? — Um dia, Isabelle perguntou a
ele após o serviço religioso, sem saber que Hannah, a mãe
de Étienne, os olhava. — Como Monsieur Marcel tira as
palavras da Bíblia?
Étienne passava um seixo de uma mão para outra. Jogou-o
longe, indo parar nas folhas.
— Elas voam — disse ele, seguro. — Monsieur Marcel abre a
boca e as letras negras da página voam para a sua boca tão
depressa que você não consegue ver. Depois, ele as cospe.
— Você sabe ler, Étienne?
— Não, mas sei escrever.
— O que escreve?
— Escrevo meu nome. E o seu — acrescentou, presunçoso.
— Mostre para mim, me ensine.
Étienne sorriu, mostrando os dentes. Pegou na saia dela e
puxou.
— Ensino, mas você tem de pagar — disse, em tom baixo, os
olhos tão apertados que o azul deles mal aparecia.
Era o Pecado outra vez: folhas de castanheiro farfalhando
nos ouvidos dela, medo e dor, mas também o nervosismo de
sentir o chão por baixo e o peso do corpo dele em cima.
— Sim, mas primeiro me mostra — disse ela, desviando o
olhar.
Ele teve de juntar o material às escondidas: a pena de um
pássaro com a ponta cortada e afiada; um pedaço de
pergaminho roubado de um canto de página da Bíblia; um
cogumelo seco misturado com água numa tigela de ardósia,
formando uma tinta escura. Depois, ele levou Isabelle
montanha acima, longe das fazendas onde moravam, numa
pedra de granito com a superfície lisa, da altura da cintura
dela. Lá, os dois se encostaram.
Como num milagre, ele fez seis traços para escrever as
iniciais E. T.
Isabelle ficou olhando.
— Quero escrever meu nome — disse ela. Etienne entregou-
lhe a pena e ficou por trás, apertando o corpo nas costas
dela. Isabelle sentiu algo duro crescer sob a barriga dele e
um palpitar de temível desejo. Étienne colocou a mão sobre
a dela e mergulhou a pena na tinta, depositando-a em
seguida sobre o pergaminho e empurrando-a para formar os
seis traços. E.T., ela escreveu. Comparou com as marcas que
ele havia feito.
— Mas os dois são iguais — concluiu ela, intrigada. — Como
pode o meu e o seu nome serem escritos da mesma forma?
— Você escreveu, portanto o nome é seu. Não sabia? O
nome é de quem escreve.
— Mas. — Ela parou, boquiaberta, esperando que os traços
voassem para a sua boca. E, quando falou, pronunciou o
nome dele, não o dela.
— Agora, você tem de me pagar — disse Étienne, sorrindo.
Empurrou-a sobre a pedra, ficou por trás e levantou a saia
dela enquanto abaixava a calça. Em seguida, com os joelhos
abriu as pernas de Isabelle e segurou-as com a mão para
penetrá-la com um golpe rápido. Isabelle agarrou-se à pedra
enquanto Etienne se aproximava. Depois, com um berro, ele
empurrou os ombros dela, inclinando-a para a frente, para
que o rosto e o peito ficassem pressionados na pedra.
Depois que se afastou, ela se levantou, tonta, com o
pergaminho pregado em seu rosto, até que voou para o
chão. Étienne olhou-a e riu, irônico.
— Você escreveu seu nome na cara — disse ele.
Ela nunca havia entrado na fazenda dos Tournier, embora
não ficasse longe da que morava com o pai, rio abaixo. Era a
maior da região, sem contar a do duque, que ficava mais
além do vale, a meio dia de caminhada na direção de Florac.
Dizia-se que a fazenda havia sido construída há um século,
com acréscimos sendo feitos durante esse período: um
chiqueiro, um piso de terra batida, telhas no lugar da
cobertura de colmo. Jean e sua prima Hannah se casaram
tarde, tiveram apenas três filhos, e eram pessoas sérias,
fortes e distantes. Raramente alguém ia visitá-los à tarde.
Apesar da influência dos Tournier, o pai de Isabelle nunca
disfarçou o desprezo que sentia por eles.
— Casam com os primos. Dão dinheiro para a igreja, mas são
incapazes de oferecer uma castanha mofada a um mendigo.
E beijam três vezes, como se duas não bastassem — zombou
Henri du Moulin.
A fazenda se espraiava por uma encosta em forma de L, e a
entrada ficava no ponto onde as duas linhas se encontravam,
de frente para o sul. Étienne fez Isabelle entrar. Os pais dele
e dois trabalhadores contratados estavam plantando no
campo; a irmã, Susanne, trabalhava no fundo da horta.
Dentro, a casa era silenciosa e calma. Isabelle só ouvia o
grunhido abafado dos porcos. Ela admirou o chiqueiro e o
celeiro, que era o dobro do que seu pai tinha. Ficou na sala,
tocando de leve a comprida mesa de madeira como se
quisesse firmar-se. A sala estava limpa, havia sido varrida há
pouco, e as paredes tinham caçarolas dependuradas em
ganchos, à mesma distância uma da outra. A lareira ocupava
uma parede inteira no fundo da sala, tão grande que a família
dela e os Tournier podiam caber dentro: toda a família dela,
mas antes de as pessoas terem começado a morrer. A irmã
estava morta. A mãe, também. Os irmãos, soldados na
guerra. Agora, só havia ela e o pai.
— La Rousse.
Ela virou-se, viu os olhos de Étienne, seu andar arrogante, e
recuou até as costas tocarem no granito. Ele a segurou pela
cintura.
— Aqui, não. Na casa de seus pais, não; na lareira deles, não.
Se a sua mãe... — ela disse.
Étienne tirou as mãos. Bastou falar na mãe para contê-lo.
— Você perguntou a eles?
Ele ficou calado. Mexeu os ombros largos e olhou para um
canto.
— Você não perguntou.
— Daqui a pouco faço 25 anos e posso decidir o que quiser.
Não preciso da autorização deles.
Claro que os pais não querem o nosso casamento, pensou
Isabelle. Minha família é pobre, não temos nada, e eles são
ricos, têm uma Bíblia, um cavalo, sabem escrever. Casam-se
com as primas, são amigos de Monsieur Marcel. Jean
Tournier é síndico do Duque de l'Aigle, recolhe nossos
impostos. Jamais aceitariam como filha uma moça a quem
chamam de La Rousse.
— Podíamos morar com meu pai — ela sugeriu. — Tem sido
difícil para ele trabalhar sem meus irmãos. Ele precisa...
— Nunca.
— Então teremos de morar aqui.
— É.
— Sem a autorização deles.
Etienne passou o peso do corpo para uma perna, debruçou-
se na beira da mesa e cruzou os braços. Olhou bem para ela.
— Se eles não gostam de você, a culpa é sua, Ruiva — disse,
baixo.
Ela retesou os braços, fechou as mãos.
— Não fiz nada de errado! Acredito na Verdade — gritou.
Ele sorriu.
— Mas gosta da Virgem, não é?
Ela abaixou a cabeça, as mãos ainda fechadas.
— E sua mãe era bruxa — ele acrescentou.
— O que você disse? — ela sussurrou.
— Aquele lobo que mordeu sua mãe foi enviado pelo
demônio para levá-la para ele. E todos aqueles bebês que
morreram.
Isabelle olhou bem para ele.
— Acha que minha mãe matou a própria filha? A própria
neta?
— Depois que você for minha esposa, não será parteira —
ele disse. Segurou-a pela mão e puxou-a para o celeiro, longe
da lareira dos pais.
— Por que me quer? — perguntou em voz tão baixa que ele
não ouviu. E ela mesma respondeu: — Porque sou aquela
que sua mãe mais detesta.
O pássaro voava bem em cima de sua cabeça, contra o
vento. Era cinza e macho. Isabelle apertou os olhos. Não.
Era marrom-avermelhado, da cor de seus cabelos; portanto,
um pássaro fêmeo.
Ela aprendeu sozinha a boiar de costas no rio, batendo os
braços, os seios achatados pela água, os cabelos flutuando
como folhas em volta do rosto. Olhou outra vez para cima.
O pássaro estava mergulhando à direita. O breve instante em
que bateu na água ficou escondido atrás de uma moita de
giesta. Quando ressurgiu, levava uma pequena criatura no
bico, um rato ou um pardal. Voou rápido e sumiu de vista.
Ela se sentou de repente, segurou na comprida e lisa pedra
do leito do rio, os seios retomando a redondeza. Os sons
saíram do nada, um tinido aqui, outro lá, e de repente todos
se juntaram num coro de centenas de sinos. Era o estiver,
quando os pastores levam o rebanho para as montanhas; o
pai dela havia previsto que chegariam dali a dois dias. Os
cães dos pastores deviam estar com boa disposição naquele
verão. Se não corresse, ela ficaria cercada de centenas de
ovelhas. Levantou-se depressa e foi para a margem do rio,
onde secou o rosto com as mãos e torceu os cabelos para
tirar a água. Aqueles cabelos lhe causavam vergonha.
Vestiu-se, amarrou o avental na cintura e escondeu os
cabelos num comprido pano de linho branco.
Estava amarrando as pontas do pano quando ficou gelada ao
pressentir que alguém a olhava. Sem mexer a cabeça,
procurou em volta alguma coisa se mexendo, mas nada viu.
Os sinos ainda estavam distantes. Com os dedos, pegou as
mechas soltas e enfiou-as sob o pano, depois segurou o
vestido, que ia até o chão, e levantou-o, correndo pela trilha
à margem do rio. Dali a pouco, estava longe e passou por um
campo de giestas e urzes raquíticas.
Chegou ao cume de uma colina e olhou para baixo. Lá, o
campo parecia ondular com as ovelhas que subiam a
montanha. Dois homens, um na frente do outro, com um
cachorro de cada lado, cuidavam do rebanho. De vez em
quando, uma ovelha escapulia, mas era logo arrebanhada.
Deviam estar andando há cinco dias desde Alès, mas
naquela subida final não davam sinais de cansaço. Teriam o
verão inteiro para se recuperar.
Acima do som dos sinos, ela ouvia os assobios e gritos dos
homens, e os latidos agudos dos cães. O homem que ia à
frente virou o rosto para cima, parecendo olhar direto para
ela, e deu um assobio fino. No mesmo instante, um rapaz
saiu à direita de Isabelle, de trás de uma rocha grande, à
distância de um lanço de pedra. Ela apertou o pescoço com
as mãos. O homem era pequeno e magro, suado e muito
queimado de sol. Usava uma bengala, e tinha um alforje de
couro de pastor e um capuz redondo apertado na cabeça
com cachos negros nas bordas. Quando Isabelle sentiu os
olhos escuros dele, sabia que havia sido ele que a espreitara
no rio. O homem sorriu deliberadamente amistoso para ela e
por um instante Isabelle sentiu o toque do rio no corpo.
Olhou para baixo, apertou os cotovelos no corpo, não
conseguiu retribuir o sorriso.
De um salto, ele foi descendo a colina. Isabelle ficou
olhando até ele chegar ao rebanho. Depois, correu.
— Tem uma criança aqui. — Isabelle pôs a mão na barriga e
olhou, desafiadora, para Étienne.
Num instante, os olhos claros dele escureceram como o
campo quando passa uma nuvem por cima. Encarou-a com
dureza, parecia fazer cálculos.
— Vou contar para meu pai, depois teremos de contar aos
seus pais. O que será que vão dizer? — ela perguntou, engo-
lindo em seco.
— Agora vão nos deixar casar. Seria pior se não deixassem, já
que existe uma criança.
— Vão achar que fiz de propósito.
— Fez? — Os olhos dele encontraram os dela. Estavam frios.
— Foi você quem quis o Pecado, Étienne.
— Ah, mas você também quis, La Rousse.
— Gostaria que minha mãe estivesse aqui. Gostaria que Marie
estivesse aqui — disse ela, baixo.
O pai de Isabelle fez como se não tivesse ouvido. Sentou-se
no banco ao lado da porta e raspou um galho com a faca;
estava moldando um cabo novo para a enxada que havia
quebrado naquela manhã. Isabelle ficou parada na frente
dele. Tinha falado tão baixo que achou que precisaria repetir.
Abriu a boca, mas ele disse:
— Todos os filhos me abandonaram.
— Desculpe, pai. Ele disse que não vai morar aqui.
— Não quero um Tournier na minha casa. Esta fazenda não
vai ficar para você depois que eu morrer. Você vai receber
seu dote, mas vou deixar a fazenda para os meus sobrinhos
de l'Hôpital. Minhas terras jamais ficarão com um Tournier.
— Os gêmeos vão voltar da guerra — ela lembrou, lutando
para não chorar.
— Não, eles vão morrer. Eles não são soldados, são
camponeses. Você sabe disso. Faz dois anos que se foram e
eu não recebi uma palavra deles. Muitas pessoas passaram
pelo norte e não trouxeram notícias deles.
Isabelle deixou o pai sentado no banco e seguiu pelo campo
à margem do rio até a fazenda dos Tournier. Era tarde,
estava escuro, sombras compridas se projetavam nas colinas
e nos campos aterraçados, cheios de centeio brotando. Um
bando de estorninhos cantava nas árvores. A estrada entre
as duas fazendas parecia comprida naquela hora. No final
dela estava a mãe de Etienne. Isabelle andou mais devagar.
Chegou à cleda vazia dos Tournier, as castanhas da estação
haviam secado fazia tempo, e nesse instante ela viu a sombra
cinza surgir, arredia, de entre as árvores e parar na estrada.
— Sainte Vierge, aide-moi (Virgem Santa, me ajude) —
pediu, automaticamente. O lobo mirou-a com olhos amare-
los e brilhantes, apesar do escuro. Quando foi se aproximan-
do, Isabelle ouviu uma voz em sua cabeça: "Não deixe acon-
tecer com você também."
Ela se abaixou e pegou um galho grande. O lobo parou. Ela
se levantou, balançou o galho e gritou. O lobo começou a
recuar e, quando ela ameaçou jogar o galho, o animal virou-
se e saiu de mansinho, desaparecendo entre as árvores.
Isabelle saiu correndo do bosque e atravessou o campo, o
centeio batendo em suas pernas. Chegou à pedra em forma
de cogumelo que marcava o fundo da horta dos Tournier e
parou para retomar fôlego. Tinha desaparecido o medo da
mãe de Etienne.
— Obrigada, Maman, não vou me esquecer disso — disse ela,
em tom de voz baixo.
Jean, Hannah e Etienne estavam sentados ao lado da lareira,
enquanto Susanne esquentava uma sopa de castanhas igual à
que Isabelle havia servido ao pai mais cedo, acompanhada
de um pão escuro, de cheiro bom. Os quatro gelaram
quando Isabelle entrou.
— O que foi, La Rousse? — perguntou Jean Tournier quando
ela ficou no meio da sala, com a mão mais uma vez sobre a
mesa, como se quisesse garantir um lugar entre eles.
Isabelle não respondeu, mas olhou firme para Etienne.
Finalmente, ele se levantou e ficou ao lado dela. Ela fez um
sinal com a cabeça e ele virou-se para os pais.
A sala estava silenciosa. O rosto de Hannah parecia de
granito.
— Isabelle vai ter um filho — disse Etienne, em voz baixa.
— Com a permissão de vocês, gostaríamos de nos casar.
Foi a primeira vez que usou o nome de Isabelle.
A voz de Hannah era penetrante.
— De quem é o filho, La Rousse? Não é de Etienne.
— É, sim.
— Não!
Jean Tournier apoiou as mãos na mesa e levantou-se. Seus
cabelos grisalhos estavam lisos como um gorro na cabeça, o
rosto magro. Não disse nada, mas a mulher parou de falar e
recostou-se na cadeira. O pai olhou para Etienne. Fez-se
uma longa pausa antes de Etienne falar.
— O filho é meu. Vamos casar de qualquer jeito, quando eu
fizer 25 anos. Daqui a pouco tempo.
Jean e Hannah se entreolharam.
— O que seu pai acha disso? — perguntou Jean a Isabelle.
— Ele concordou e vai dar o dote. — Não falou nada do ódio
dele.
— Espere ali fora, La Rousse. Fique com ela, Susanne —
disse Jean, calmo.
As duas sentaram juntas no banco da porta. Quase não se
viam, desde quando eram crianças. Há muitos anos, antes
mesmo de os cabelos de Isabelle ficarem ruivos, Susanne
havia brincado com Marie, ajudando com a forragem, as
cabras, brincando no rio.
Ficaram um tempo sentadas, olhando ovale.
— Vi um lobo sair da cleda — disse Isabelle, de repente.
Susanne arregalou os olhos castanhos. Tinha o rosto fino
e o queixo pontudo do pai.
— O que você fez?
— Afastei-o com um galho. — Ela sorriu, satisfeita consigo
mesma.
— Isabelle...
— O quê?
— Sei que Maman está irritada, mas estou contente por você
vir morar conosco. Jamais acreditei no que diziam de você,
dos seus cabelos e... — Ela parou. Isabelle não perguntou
nada.
— E aqui você vai ficar segura. Esta casa é segura, protegida
por...
Ela parou outra vez, olhou para a porta, abaixou a cabeça.
Isabelle olhou as curvas sombreadas das colinas ao longe.
Vai ser sempre assim, ela pensou. Silêncio na casa.
A porta se abriu, Jean e Etienne apareceram segurando uma
tocha acesa e um machado.
— Vamos levar você em casa, La Rousse. Preciso falar com
seu pai — disse Jean.
Em seguida ele deu um pedaço de pão para Etienne.
— Leve este pão e segure na mão dela.
Étienne dividiu o pão em dois e deu a parte menor para
Isabelle, que comeu e segurou-lhe a mão. Os dedos dele
estavam frios. O pão entalou no fundo da garganta dela
como um segredo.
Petit Jean nasceu em meio a sangue e era uma criança
destemida.
Jacob nasceu azul. Era uma criança calada e não chorou nem
quando Hannah bateu nas costas dele para que respirasse.
Muitos verões depois, Isabelle estava deitada no rio outra
vez. O corpo tinha marcas da gravidez dos dois meninos, e
outra criança fazia sua barriga boiar acima da água. O bebê
chutava. Ela pôs as mãos em concha sobre a barriga.
— Queira a Virgem que seja uma menina —- rezou. — E,
quando nascer, vou dar-lhe o nome da minha irmã. Marie.
Vou lutar contra todos para que seja esse o nome.
Desta vez, não houve avisos, nem sinos, nem sensação de
que estava sendo observada. Ele apenas estava lá, de cócoras
à margem do rio. Ela sentou-se e olhou para ele. Não cobriu
os seios. Ele parecia igual, um pouco mais velho, com uma
longa cicatriz no lado direito do rosto que fazia um risco da
mandíbula ao queixo, tocando no canto da boca. Dessa vez,
ela teria retribuído se ele tivesse sorrido. O pastor não
sorriu. Apenas acenou com a cabeça para ela, juntou as mãos
em concha, jogou água no rosto, virou-se e seguiu na
direção da nascente do rio.
Marie nasceu em meio a uma torrente de água clara, de
olhos abertos. Era uma criança auspiciosa.
2
O SONHO
Quando Rick e eu mudamos para a França, achei que minha
vida fosse ficar um pouco diferente. Só não sabia como.
Para começar, o país era um banquete do qual queríamos
provar todos os pratos. Na primeira semana lá, enquanto
Rick fazia a ponta dos lápis em seu novo escritório,
desenferrujei o francês que aprendi no secundário e fui
explorar o campo em volta de Toulouse em busca de um
lugar para morarmos. Queríamos viver numa cidade
pequena, num lugar interessante. Percorri apressada
ruazinhas ao volante de um novo Renault cinza, passando
rápido por longas fileiras de plátanos. De vez em quando, se
eu não estivesse prestando atenção, podia achar que estava
em Ohio ou Indiana, mas a paisagem voltava à sua origem
assim que aparecia uma casa de telhado vermelho, janelas
verdes e canteiros cheios de gerânios nas janelas. Por toda
parte, nos campos empoeirados do verde pálido de abril,
camponeses de calças de trabalho azuis olhavam meu carro
atravessar o horizonte deles. Eu sorria e acenava, às vezes
eles respondiam, indecisos. O que era aquilo, deviam estar
se perguntando.
Vi várias cidades e rejeitei todas, às vezes por motivos fúteis,
mas principalmente porque eu queria um lugar que
cantasse para mim, que dissesse que minha busca havia
terminado ali. Cheguei a Lisle-sur-Tarn atravessando uma
comprida e estreita ponte sobre o rio Tarn. No final dela,
havia uma igreja e um café marcando o início da cidade.
Estacionei ao lado do café e fui andando; ao chegar ao
Centro, sabia que ia morar lá. Era uma hastide, isto é, uma
cidade medieval fortificada, ainda preservada; na Idade
Média, quando era invadida por inimigos, os aldeões se
reuniam na praça do mercado e fechavam as quatro
entradas. Fiquei no meio da praça, perto de uma fonte
rodeada de moitas de lavanda, sentindo-me realizada e feliz.
Os quatro lados da praça tinham calçadas cobertas em arco,
com lojas no térreo e casas com janelas na parte de cima. Os
arcos eram de tijolos compridos e estreitos, os mesmos
usados nos dois andares das casas, postos na horizontal ou na
diagonal, formando desenhos decorativos entre as vigas de
madeira escura e unidos com argamassa rosa-escuro.
E do que preciso, pensei. Ver isso todos os dias vai me dei-
xar feliz.
Imediatamente, as dúvidas começaram. Parecia absurdo
escolher uma cidade por ter uma linda praça. Andei de
novo, procurando aquele fator decisivo, o sinal que me faria
parar ou seguir em frente.
Não demorou. Depois de percorrer as ruas em volta, entrei
numa boulangerie (confeitaria) na praça. A mulher atrás do
balcão era pequena e usava um paletó azul-marinho e
branco, que eu tinha visto à venda em todos os mercados.
Quando acabou de atender outra freguesa, virou-se para
mim, examinando-me com os olhos negros no rosto enruga-
do, os cabelos puxados para trás num coque solto.
— Bonjour, Madame (Bom-dia, senhora) — disse ela, no
tom cantado que as francesas usam nas lojas.
— Bonjour — respondi, olhando o pão nas prateleiras atrás
dela e pensando: esta vai ser a minha boulangerie. Mas,
quando olhei a mulher de novo, esperando calorosas boas-
vindas, minha segurança desmoronou. Ela ficou sólida atrás
do balcão, o rosto feito uma armadura.
Abri a boca: não saiu nada. Engoli em seco. Ela me olhou e
disse: — Oui, Madame? (Pois não, senhora?) — exatamente
no mesmo tom de antes, como se os últimos e estranhos
segundos não tivessem existido.
Fiquei sem saber o que fazer, mostrei uma baguette (bisna-
ga). — Un — consegui dizer, embora o som fosse mais pare-
cido com um grunhido. O rosto da mulher endureceu de
desaprovação. Ela pegou uma bisnaga sem olhar, os olhos
ainda fixos em mim.
— Quelque chose d'autre, Madame? (Mais alguma coisa,
senhora?)
Por um instante, saí de mim e me olhei como ela deve ter-
me visto: eu era uma estrangeira de passagem, com a língua
tropeçando em determinados sons, que dependia de um
mapa para se localizar num lugar estranho e de um livro de
frases e um dicionário para se comunicar. Ela fez com que
me sentisse perdida no mesmo instante em que pensei ter
encontrado um lar.
Olhei a vitrine, louca para mostrar que não era tão ridícula
quanto parecia. Mostrei umas tortas de cebola e consegui
dizer: — Et un quiche. (E uma torta.) — Imediatamente, vi
que tinha usado o artigo errado: quiche é feminino, portanto
devia ter dito une, e resmunguei por dentro.
Ela colocou a quiche numa pequena sacola e deixou no
balcão ao lado da baguette. — Quelque chose d'autre,
Madame? — repetiu.
— Non.
Ela registrou as compras. Muda, entreguei o dinheiro e vi
que ela pôs o troco numa pequena bandeja no balcão, onde
eu devia ter deixado as notas, e não entregue na mão dela.
Franzi a testa. Era algo que eu já devia saber.
— Merci, Madame (Obrigada, senhora) — entonou ela, com
a feição inexpressiva e os olhos distraídos.
— Merci — resmunguei.
—Au revoir, Madame. (Até logo, senhora.)
Virei-me para sair e parei, pensando que devia haver um
jeito de salvar aquela situação. Olhei para ela: havia cruzado
os braços sobre os vastos seios.
—Je... nous... nous habitons près d'ici, là-bas. (Eu, nós, nós
moramos aqui perto.) -— Menti, mostrando atrás de mim,
abrangendo um lugar em algum ponto da cidade dela.
Ela fez sinal com a cabeça. — Oui, Madame. Au revoir,
Madame.
— Au revoir, Madame — respondi, girando o corpo para a
porta.
Ah, Ella, pensei, enquanto me arrastava pela praça, o que
você está fazendo, mentindo para salvar a cara?
— Portanto, não minta. More aqui. Enfrente a Madame
todos os dias, por cima dos croissants — resmunguei em res-
posta. Eu estava ao lado da fonte da praça e, ao passar por
uma moita de lavanda, arranquei algumas folhas e amassei-as
nos dedos. O cheiro forte de mato me disse: Reste (Fique).
Quando conheceu Lisle-sur-Tarn, Rick adorou e fez com
que eu achasse minha escolha ainda melhor dando-me um
beijo e me rodando nos braços.
— Ah! — exclamou ele para as casas antigas.
— Pssiu, Rick. Ponha-me no chão — pedi, baixo. Era dia de
mercado na praça e vi que todos olhavam para nós.
Ele apenas sorriu e me apertou com mais força.
— E o tipo de cidade que gosto. Olha só o desenho daqueles
tijolos! — ele disse.
Andamos por toda parte, escolhendo nossas casas preferidas.
Mais tarde, paramos na boulangerie para comprar mais
quiches de cebola. Enrubesci na hora em que Madame me
olhou, mas ela quase só conversou com Rick, que a achou
muito engraçada e brincou com ela sem parecer incomodá-
la. Vi que o achara bonito: era uma novidade o rabo-de-
cavalo louro que ele usava naquela terra de cabelos curtos e
negros, e Rick ainda não havia perdido o bronzeado
californiano. Madame foi gentil comigo, mas senti uma
hostilidade latente que me deixou tensa.
— Pena que aquelas quiches sejam tão gostosas, senão eu não
entrava mais lá — observei para Rick.
— Ah, meu bem, lá vem você, levando as coisas muito a
sério. Não venha com paranóia da Costa Leste para cima de
mim.
— Ela me dá a sensação de que não sou bem-vinda.
— Mau relacionamento com clientes. Nada mais! Melhor
arrumar um consultor para resolver o problema dela.
Sorri amarelo para ele. — E, eu gostaria de ver a ficha
profissional dela.
— Deve estar cheia de reclamações. Ela está nas últimas,
claro. Tenha um pouco de pena da coitada.
Era uma tentação morar numa daquelas casas antigas da
praça ou perto dela, mas, quando soubemos que nenhuma
estava para alugar, no fundo fiquei um pouco aliviada: eram
casas sérias, para pessoas estabelecidas na cidade. E
encontramos uma casa a poucos minutos a pé do Centro,
também antiga, sem os tijolos decorados, mas de paredes
grossas, piso de madeira e um pequeno pátio nos fundos
com uma parreira subindo por uma treliça. Não havia jardim
na frente: a porta abria direto para a rua estreita. A casa era
escura por dentro, mas Rick lembrou que seria fresca no
verão. Todas as casas que vimos eram assim. Afastei a
escuridão abrindo as janelas e peguei os vizinhos olhando
para dentro da casa várias vezes, até perceberem que não
deviam.
Um dia, resolvi fazer uma surpresa para Rick: quando
chegou do trabalho à noite, viu que eu havia pintado as
venezianas de um alegre vermelho-escuro, antes um cinza
sem graça, e dependurado jardineiras com gerânios. Ele
ficou na frente da casa sorrindo enquanto me apoiei no
peitoril da janela, emoldurada em rosa, branco e botões
vermelhos.
— Seja bem-vindo à França, seja bem-vindo em casa — falei.
Quando meu pai soube que Rick e eu iríamos morar na
França, sugeriu que eu escrevesse para um primo que havia
se mudado várias vezes e estava agora em Moutier, pequena
cidade no noroeste da Suíça. Papai estivera lá uma vez, há
muito tempo. — Tenho certeza de que você vai adorar a
cidade — repetiu, quando ligou para dar o endereço de meu
primo.
— Papai, a França e a Suíça são países diferentes! Não devo
ficar numa cidade próxima da Suíça!
— Claro, querida, mas é sempre bom ter alguém da família
por perto.
— Perto? Moutier deve estar a uns 700 quilômetros de onde
vamos morar.
— Não disse? Um dia de carro, apenas. E bem mais perto do
que estarei de você.
— Papai...
— Pegue o endereço, Ella. Faça o que estou pedindo.
Como me negar? Anotei o endereço, ri e perguntei:
— Bobagem, papai, o que vou escrever para esse parente?
"Olá, sou uma prima distante de quem você nunca ouviu
falar e estou na Europa, vamos nos encontrar?"
— Por que não? Olha, como forma de aproximação, você
pode perguntar a história da família, de onde viemos, o que
faziam nossos antepassados. Aproveite um pouco do tempo
que terá disponível.
Papai seguia a ética de trabalho protestante e ficava nervoso
de pensar que eu não teria uma ocupação na França. Não
parava de sugerir atividades úteis que eu podia fazer. A
ansiedade dele alimentou a minha, pois não estava
acostumada a ter tempo de sobra, sempre havia estudado ou
trabalhado muitas horas por dia. Demorei para me
acostumar a ter tempo livre e passei por uma fase de dormir
tarde e me entediar pela casa até que inventei três projetos
para me ocupar.
Comecei praticando meu francês fora de uso, tendo aulas
duas vezes por semana em Toulouse com Madame Sentier,
uma senhora de olhos vivos e rosto fino como o de um
passarinho. Tinha um lindo sotaque e a primeira coisa que
fez foi melhorar o meu. Não admitia uma pronúncia
descuidada e gritava comigo quando comecei a dizer Oui
daquele jeito desleixado dos franceses, mal mexendo os
lábios, o som saindo como um grasnar de pato. Ela me
obrigou a pronunciar com precisão as três letras, soprando o
final entre dentes. Insistia que a forma de eu dizer algo era
mais importante do que o que eu dizia. Tentei argumentar,
mas não era páreo para ela.
— Se você não pronunciar direito, ninguém vai entender.
Além do mais, vão perceber que é estrangeira e não a
ouvirão. Os franceses são assim — avisou ela.
Contive-me para não dizer que ela também era francesa.
Mas gostava dela, de suas idéias e de sua firmeza, então fazia
os exercícios de fala, mexendo os lábios como se fossem fei-
tos de goma de mascar.
Ela me incentivou a falar bastante, onde quer que estivesse.
— Se pensar em alguma coisa, diga! Não importa o que for,
por menos importante que seja, diga. Converse com todo
mundo — mandou. As vezes, ela me obrigava a falar sem
parar durante um tempo determinado, começando por um
minuto e chegando a cinco minutos. Achei aquilo cansativo
e impossível.
— Você está pensando em inglês e traduzindo cada palavra
para o francês — disse ela. — A língua não é assim. É muito
diferente. Você tem de pensar em francês. Tirar o inglês da
cabeça. Pensar o máximo possível em francês. Se não
conseguir pensar em parágrafos, pense em frases ou pelo
menos em palavras. E forme grandes pensamentos! — Ela
gesticulava, incluindo a sala inteira e todo o intelecto
humano.
Adorou saber que eu tinha parentes na Suíça e me obrigou a
escrever para o primo. — Sabe, seus parentes podem ser de
origem francesa e seria ótimo para você descobrir
antepassados aqui. Vai se sentir mais ligada ao país e ao
povo. Então, não será tão difícil pensar em francês.
Por dentro, não liguei. Genealogia era uma daquelas coisas
medievais que eu punha no mesmo nível de ouvir conversa
de rádio, fazer tricô e ficar em casa no sábado à noite: sabia
que acabaria fazendo tudo aquilo, mas não tinha a menor
pressa de chegar lá. Meus antepassados não tinham nada a
ver com minha vida atual. Mas, para agradar Madame
Sentier, juntei algumas frases no dever de casa perguntando
ao primo o histórico da família. Depois que ela corrigiu a
gramática e a ortografia, mandei a carta para a Suíça.
As aulas de francês ajudaram meu segundo projeto.
— Que linda profissão para uma mulher! — exultou Madame
Sentier quando soube que eu estava estudando para ser
parteira na França. — Que ofício nobre! — Eu gostava
muito dela para me aborrecer com suas idéias românticas,
então não contei que médicos, hospitais, seguradoras e até
grávidas tratavam com desconfiança a mim e minhas colegas
parteiras. Também não comentei das noites insones, do san-
gue, do trauma quando alguma coisa dava errado. Porque era
mesmo um bom ofício e eu esperava praticá-lo na França,
depois de fazer as aulas e as provas exigidas.
O terceiro projeto não tinha data marcada, mas certamente
me ocuparia bastante, quando chegasse a hora. Ninguém iria
se surpreender: eu estava com 28 anos, casada há dois com
Rick, e a pressão de todo mundo, inclusive a nossa, já
começava a pesar.
Estávamos em Lisle-sur-Tarn há poucas semanas e certa
noite decidimos ir jantar no único restaurante bom da
cidade. Falamos de amenidades (o trabalho de Rick, o que eu
havia feito durante o dia etc.) enquanto degustávamos as
crudités (legumes e verduras crus), o patê, a truta do rio
Tarn e o filé mignon. "Quando o garçom trouxe o crème
brûlée de Rick e a minha tarte au citron (torta de limão),
resolvi que era hora de falar. Mordi a cobertura da torta e
minha boca se contraiu.
— Rick — comecei, descansando o garfo no prato.
— Delicioso esse brûlée, principalmente a parte brûlée.
Tome, prove um pouquinho — sugeriu.
— Não, obrigada. Olhe, andei pensando uma coisa.
— Ah, o assunto é sério?
Naquele instante, entrou um casal no restaurante e sentou-
se à mesa ao nosso lado. A barriga da mulher estava bem
saliente no elegante vestido preto. Cinco meses de gravidez,
pensei automaticamente, e está passando muito bem.
Falei mais baixo. — De vez em quando falamos em ter
filhos, não é?
— Você quer filhos já?
— Bom, estava pensando.
— Certo.
— Certo o quê?
— Certo, vamos ter.
— Só isso? "Vamos ter?"
— Por que não? Sabemos que queremos filhos. Por que nos
agonizarmos com isso?
Desanimei, embora conhecesse bem Rick para não me
surpreender com o jeito dele. Sempre decidia rápido, até as
coisas importantes, enquanto eu queria que as decisões
fossem mais complicadas.
— Acho... — e pensei em como explicar — parecido com
saltar de pára-quedas. Lembra quando saltamos, no ano
passado? A gente fica lá em cima naquele aviãozinho
pensando, "Daqui a dois minutos não posso mais desistir,
Daqui a um minuto não posso voltar", aí fica lá balançando
na porta do avião e pensando que ainda pode desistir. E salta
e não pode voltar, não importa como se sinta. É como estou
me sentindo agora. Estou na porta do avião.
— Só me lembro daquela sensação maravilhosa de cair no
vazio. E a linda paisagem flutuando lá embaixo. Era tão
calmo lá em cima.
Olhei com avidez para a torta e dei uma mordida nela.
— É uma grande decisão — falei, de boca cheia.
— Grande decisão tomada. — Rick debruçou-se sobre a mesa
e me deu um beijo. — Hum, delícia de limão.
Mais tarde, escapuli de casa e fui até a ponte. Podia ouvir o
rio correr embaixo, mas estava muito escuro para ver a água.
Olhei em volta; não havia ninguém. Então peguei a caixa de
pílulas anticoncepcionais e fui tirando uma a uma da
embalagem metálica. Elas sumiram na água, minúsculos
pontos brancos no escuro por um segundo. Depois, encostei
na amurada um bom tempo, querendo me sentir diferente.
Naquela noite, alguma coisa mudou. Foi a primeira vez que
tive o sonho. Começou com um bruxuleio, um movimento
entre o claro e o escuro. Não era negro nem era branco; era
azul. Eu estava sonhando azul.
A cor se mexia como se soprada pelo vento, ondulando na
minha direção e se afastando. Começou a me pressionar,
mais como se fosse água do que pedra. Uma voz entoava
uma canção. Eu também cantei, as palavras saíam da minha
boca. A outra voz começou a chorar; e eu solucei. Chorei
até não conseguir respirar. A pressão do azul foi se fechando
em torno de mim. Ouvi um estrondo como uma porta
pesada batendo, e o azul foi substituído por um negro
profundo, como se nunca tivesse visto a luz.
Alguns amigos me disseram que quando a gente quer
engravidar, ou faz muito mais sexo, ou faz muito menos.
Pode fazer sempre, como uma arma atirando projéteis em
todas as direções na esperança de acertar em algo. Ou pode
usar de estratégia, economizando munição para usar na hora
certa.
No começo, Rick e eu usamos a primeira técnica. Quando
ele chegava em casa do trabalho, fazíamos amor antes do
jantar. íamos dormir cedo, acordávamos cedo para transar e
repetíamos sempre que havia oportunidade.
Rick adorou essa fartura, mas comigo foi diferente.
Primeiro, eu nunca tinha feito sexo por obrigação, sempre
havia sido por estar com vontade. Mas, naquele momento,
havia uma missão tácita por detrás do ato que fazia com que
parecesse intencional e calculado. Eu também estava
bastante dividida por não usar mais anticoncepcional: toda a
energia gasta em anos de controle, todas as aulas e
precauções devendo ser desprezadas de um momento para
outro? Haviam-me dito que aquilo podia ser uma grande
mudança, mas tive medo na hora em que esperava sentir
uma enorme alegria.
Acima de tudo, eu estava exausta. Dormia mal, pois todas as
noites o sonho me arrastava para um quarto azul. Não contei
nada para Rick, nunca o acordei, nem explicava no dia
seguinte por que estava tão cansada. Costumava contar tudo
a ele, mas naquele momento minha garganta estava
entalada, e meus lábios, selados.
Uma noite, deitada na cama, eu olhava o azul que dançava
sobre mim, quando finalmente cheguei a uma conclusão:
nos últimos dez dias, as duas únicas noites em que não havia
sonhado tinham sido as que não havíamos transado.
Uma parte de mim ficou aliviada ao fazer aquela associação,
ao conseguir explicar: eu estava ansiosa para engravidar e
isso estava causando o pesadelo. Chegar a essa conclusão fez
com que o pesadelo ficasse um pouco menos assustador.
Mas eu precisava de sono, tive de convencer Rick a fazer
menos sexo sem explicar por quê. Não conseguia dizer que
tinha pesadelos depois que transávamos.
Quando a menstruação veio e ficou evidente que não
tínhamos conseguido nada, sugeri que tentássemos a
segunda estratégia; usei todos os argumentos que conhecia,
acrescentei alguns termos técnicos e tentei ser carinhosa.
Ele ficou desapontado, mas concordou.
— Você sabe mais a esse respeito do que eu — ele disse. Eu
sou apenas a arma. Você diz quando atirar.
Infelizmente, embora eu passasse a sonhar com menos
freqüência, o mal estava feito: era mais difícil conseguir um
sono profundo, e muitas vezes eu ficava acordada numa
ansiedade indefinida, esperando o azul, pensando que em
alguma noite o sonho voltaria, sem o sexo.
Uma noite (uma noite estratégica), Rick começou beijando
meu ombro, desceu pelo braço e parou. Ao dia sentir seus
lábios pairarem por cima da marca em meu braço. Esperei,
mas ele não continuou.
— Hum, Ella — disse, por fim. Abri os olhos. Ele estava
olhando para a marca; meus olhos acompanharam seu olhar
e então afastei meu braço.
— Ah — falei, apenas. E fiquei observando a pele vermelha e
escamosa.
— O que é isso?
— Psoríase. Já tive uma vez, aos 13 anos. Quando meus pais
se divorciaram.
Rick olhou, depois inclinou-se e beijou meus olhos
fechados.
Quando tornei a abri-los, percebi uma certa repugnância no
rosto dele, antes de se controlar e sorrir para mim.
Na semana seguinte, constatei, desanimada, que a marca
tinha aumentado, depois passara para o outro braço e os dois
cotovelos. Logo chegaria aos joelhos e pernas.
Por insistência de Rick, fui ao médico. Era jovem e ríspido,
sem o jeito que os médicos norte-americanos usam para
acalmar os pacientes. Tive de prestar muita atenção ao
francês rápido que ele falava.
— A senhora já teve isso antes? — perguntou, enquanto
examinava meu braço.
— Sim, quando menina.
— Depois, não?
— Não.
— Há quanto tempo está na França?
— Seis semanas.
— Vai ficar mais?
— Sim, alguns anos. Meu marido trabalha numa empresa de
arquitetura em Toulouse.
— Vocês têm filhos?
— Não, ainda não. — Enrubesci. Contenha-se, Ella, pensei.
Você tem 28 anos, não precisa mais ficar constrangida
quando fala em sexo.
— E a senhora trabalha?
— Não, quer dizer, trabalhei, nos Estados Unidos. Era
parteira.
Ele levantou as sobrancelhas. — Une sage-femme?
(Parteira?) Quer exercer a profissão aqui?
— Gostaria, mas ainda não consegui autorização. E o sistema
de saúde aqui é diferente, tenho de fazer uma prova antes.
Assim, estudo francês e no outono começo um curso de
parteiras em Toulouse a fim de me preparar para a prova.
—A senhora parece cansada. —Ele mudou de assunto de
repente, como se quisesse dizer que eu estava tomando o
tempo dele ao falar na minha profissão.
— Tenho tido pesadelos, mas... — parei. Não queria tocar no
assunto com ele.
— Está triste, Madame Turner? — perguntou, mais gentil.
— Não, não — respondi, sem saber direito o que dizer. As
vezes, é difícil falar quando estou muito cansada, pensei.
—Apsoríase pode aparecer quando não se dorme bastante.
Concordei com a cabeça. Tantas perguntas para uma análise
psicológica.
O médico mandou passar um creme de cortisona, aplicar
supositórios para impedir que a psoríase aumentasse e tomar
pílulas para dormir, caso a coceira me incomodasse. Mandou
voltar em um mês. Quando eu estava saindo, acrescentou:
— Venha me ver quando engravidar. Também sou
obstétricien (obstetra). Enrubesci outra vez.
Minha paixão por Lisle-sur-Tarn terminou logo depois que
não consegui mais dormir.
A cidade era linda e tranqüila, com um ritmo de vida que eu
sabia ser mais saudável do que aquele ao qual estava
acostumada nos Estados Unidos e com uma qualidade de
vida inegavelmente melhor. Os produtos no mercado da
praça aos sábados, a carne na boucherie, o pão na
boulangerie, tudo tinha um sabor delicioso para quem havia
sido criado com insossos produtos de supermercado. Em
Lisle, o almoço ainda era a maior refeição do dia, as crianças
corriam livres, sem medo de estranhos ou de automóveis, e
havia tempo para conversar. As pessoas nunca estavam
apressadas, podiam parar e bater papo.
Com todo mundo, menos comigo, é verdade. Pelo que eu
sabia, Rick e eu éramos os únicos estrangeiros da cidade. E
como estrangeiros éramos tratados. As conversas cessavam
quando eu entrava nas lojas, e se as pessoas voltavam a se
falar, eu tinha certeza de que o assunto havia mudado para
algo inócuo. Todos eram educados comigo, mas, depois de
algumas semanas lá, eu me ressentia por não ter conversado
com ninguém. Decidi cumprimentar as pessoas que
reconhecia e elas respondiam, mas ninguém me
cumprimentava primeiro nem parava para conversar
comigo. Tentei seguir o conselho de Madame Sentier e falar
o máximo possível, mas fui tão pouco incentivada que meus
pensamentos secaram. Só quando havia uma troca, quando
eu estava comprando alguma coisa ou perguntando onde
ficava algum lugar, as pessoas me concediam algumas
palavras.
Certa manhã, eu estava sentada no café da praça, tomando
café e lendo jornal. Várias pessoas se encontravam às mesas.
O dono do café passou, falando e brincando, distribuindo
balas para as crianças. Eu já tinha ido lá algumas vezes, nós já
nos cumprimentáramos, mas não tínhamos chegado ao
ponto de conversar. Serão necessários mais uns dez anos,
pensei, amarga.
A algumas mesas da minha, uma mulher mais jovem que eu
estava com um bebê de cinco meses sentado numa cadei-
rinha e batendo um chocalho. A mulher usava jeans justos e
tinha um riso irritante. Dali a pouco, levantou-se e entrou
no bar. O bebê não pareceu notar sua saída.
Eu me concentrei na leitura do Le Monde. Estava me
obrigando a ler toda a primeira página antes de pegar o
International Herald Tribune. Era como patinhar na lama,
não só por causa da língua, mas por todos os nomes
desconhecidos, a situação política da qual eu nada sabia.
Mesmo quando entendia do assunto tratado, ele não me
interessava.
Estava começando a ler sobre uma greve iminente nos
Correios (fato ao qual eu estava acostumada nos Estados
Unidos), quando ouvi um ruído estranho, ou melhor, um
silêncio. Tirei os olhos do jornal. O bebê havia parado de
bater o chocalho e deixara-o cair no colo. O rosto dele
começou a enrugar como um guardanapo sendo amassado
após o almoço. Já vai chorar, pensei. Olhei dentro do café: a
mãe estava encostada no bar, falando ao telefone e
brincando com um descanso de copo.
O bebê não chorou: o rosto dele foi ficando cada vez mais
vermelho, como se estivesse tentando chorar, mas não
conseguisse. Depois, ficou roxo e azul, em rápida sucessão.
Levantei, minha cadeira caiu no chão com um baque.
— Está asfixiando! — gritei.
Eu me encontrava a poucos passos de distância, mas, quando
cheguei perto dele, vários fregueses já estavam à sua volta.
Um homem se ajoelhou na frente do bebê e bateu em suas
bochechas azuladas. Tentei passar pelo dono do bar, que
estava na minha frente, mas ele continuou impedindo a
passagem.
— Cuidado, está asfixiando! — gritei. Havia um muro de
ombros pela frente. Corri para o outro lado da roda. —
Posso ajudar a criança!
As pessoas que eu empurrava olhavam para mim com a
expressão dura e fria.
— É preciso bater nas costas dele, está sem ar.
Parei. Eu estava falando inglês.
A mãe apareceu e passou pela barricada de pessoas. Co-
meçou a bater nas costas do bebê, mas achei que estava
usando muita força. Todos olhavam, num silêncio medroso.
Eu estava pensando como dizer "manobra de Heimlich" em
francês, quando o bebê de repente tossiu e cuspiu uma bala
vermelha. Respirou, chorou e o rosto voltou a ficar bem
vermelho.
Ouviu-se um suspiro coletivo e a roda se desfez. Vi o dono
do bar, que me olhou com frieza. Abri a boca para dizer
alguma coisa, mas ele se virou, pegou a bandeja e saiu
andando rápido. Juntei meus jornais e fui embora sem pagar.
Depois disso, eu me senti pouco à vontade na cidade.
Evitava ir ao café e encontrar a mulher com o bebê. Achava
difícil encarar as pessoas. Passei a falar francês com menos
segurança e meu sotaque piorou.
Madame Sentier percebeu logo. — Mas o que houve? Você
estava indo tão bem! — disse.
Lembrei-me de um círculo de ombros. Não falei nada.
Um dia, na boulangerie, ouvi a mulher na minha frente
dizer que ia à bibliothèque e fez um gesto como se tal lugar
fosse logo na esquina. Madame entregou a ela um livro de
capa plastificada, um romance barato. Comprei às pressas
minhas bisnagas e quiches, resumindo assim meu estranho
ritual de conversa com a Madame. Saí e segui a outra mulher
enquanto ela fazia as compras do dia na praça. Parou para
cumprimentar várias pessoas e conversar com todos os
vendedores, enquanto permaneci num banco da praça de
olho nela, por cima do jornal. Ela parou em três lados da
praça antes de entrar de repente na prefeitura, que ficava no
quarto lado. Dobrei o jornal e corri atrás dela, mas tive de
ficar no saguão examinando proclamas de casamento e
alvarás de construção enquanto ela subia uma escadaria. Subi
dois degraus de cada vez e entrei pela mesma porta que ela.
Ao fechá-la, vi pela primeira vez algo na cidade que me
pareceu familiar.
A biblioteca tinha a mesma mistura de fartura e quieta
tranqüilidade que me fazia adorar bibliotecas públicas nos
Estados Unidos. Era pequena (tinha só duas salas), mas de
pé-direito alto e várias janelas abertas que davam para um
ambiente arejado, pouco comum num prédio tão antigo.
Várias pessoas tiraram os olhos do que faziam para me
observar, mas a atenção foi misericordiosamente breve e
cada um voltou à sua leitura ou conversa em voz baixa.
Dei uma olhada e fui ao balcão principal pedir um cartão de
sócia. Uma simpática senhora de meia-idade, que usava um
bonito vestido verde-oliva, disse que eu precisava trazer
algum documento com meu endereço na França como
prova de residência. Discretamente, indicou onde estava um
dicionário Francês-Inglês em vários volumes e uma pequena
seção de livros em inglês.
Essa senhora não estava atrás do balcão na segunda vez em
que estive lá: no lugar dela, um homem conversava ao
telefone com os olhos castanhos atentos em alguma coisa na
praça e um sorriso sardónico no rosto anguloso. Mais ou
menos da minha altura, usava calças pretas e camisa branca
sem gravata, abotoada na gola e com as mangas arregaçadas
até os cotovelos. Um lobo solitário. Sorri para mim mesma:
aquele era um homem a se evitar.
Desviei o olhar e fui à seção de obras em inglês. Parecia que
alguns turistas haviam doado à biblioteca um saco de livros
para as férias: a seção estava cheia de policiais, romances
eróticos e guias de compras. Tinha também uma boa seleção
de Agatha Christie. Achei um policial que não tinha lido,
depois percorri a seção de ficção francesa. Madame Sentier
havia me recomendado Françoise Sagan como forma fácil de
me aproximar da literatura francesa, e escolhi Bom-dia,
tristeza. Fui ao balcão principal, olhei o lobo atrás dele,
depois olhei para os meus dois livros fúteis e parei. Voltei à
seção inglesa, procurei e acrescentei Retrato de uma dama à
minha pilha.
Fiquei por lá mais um pouco, dando uma olhada num
exemplar do Paris-Match. Finalmente, levei os livros ao
balcão. O homem me olhou sério, fez alguns cálculos
enquanto examinava os livros e, com um sorriso sem graça,
perguntou, em inglês: — Tem cartão de sócia?
Droga, pensei. Detestava aquela avaliação desdenhosa, a
conclusão de que eu não sabia francês, que parecia muito
norte-americana.
— Gostaria de solicitar um — respondi com cuidado em
francês, tentando pronunciar as palavras sem qualquer
sotaque inglês.
Ele me entregou um formulário.
— Pode preencher — pediu, novamente em inglês.
Fiquei tão aborrecida que escrevi meu sobrenome como
Tournier, em vez de Turner. Empurrei com arrogância a
folha para ele junto com minha carteira de motorista, cartão
de crédito e uma carta do banco com nosso endereço na
França. Ele olhou a identificação e franziu o cenho para a
folha.
— Que "Tournier" é esse? — perguntou, batendo o dedo no
meu nome. — É Turner, não? Como Tina Turner?
Continuei respondendo em francês: — Sim, mas meu nome
de família era originalmente Tournier. Meus antepassados
mudaram de nome quando imigraram para os Estados
Unidos, no século XIX. Tiraram o o e o i para ficar mais
norte-americano. — Era só o que eu sabia do folclore
familiar e me orgulhava dele, mas claro que o homem não se
impressionou. — Muitas famílias mudaram de nome ao
imigrar... — fui dizendo e desviei de seus olhos
zombeteiros.
— Seu nome é Turner, então tem de ser assim no cartão da
biblioteca, certo?
Escorreguei para o inglês. — Eu... como estou morando
aqui, achei que poderia usar Tournier.
— Mas a senhora não tem cartão nem carta com esse
sobrenome, tem?
Neguei com a cabeça e fiz cara feia para a pilha de livros,
com os cotovelos apertados no corpo. Para o meu
constrangimento, meus olhos se encheram de lágrimas. —
Não tem problema, não é nada — resmunguei. Com cuidado
para não olhar para ele, juntei os cartões e a carta, virei-me e
abri caminho entre as pessoas.
Naquela noite, abri a porta de nossa casa para afugentar dois
gatos que brigavam na rua e tropecei na pilha de livros no
primeiro degrau da escada. Em cima dela, o cartão da
biblioteca estava em nome de Ella Tournier.
Fiquei longe da biblioteca, não queria fazer uma visita
especial para agradecer ao bibliotecário. Ainda não sabia
como agradecer aos franceses. Quando comprava alguma
coisa, pareciam me agradecer várias vezes, mas eu sempre
duvidava de sua sinceridade. Era difícil analisar o tom das
palavras que usavam. Mas o sarcasmo do bibliotecário fora
inegável, não conseguia imaginá-lo aceitando um "obrigada"
sincero.
Poucos dias depois de o cartão chegar, eu estava andando à
margem do rio e vi o bibliotecário ao sol, no café ao lado da
ponte, onde eu havia passado a tomar café. Ele parecia
hipnotizado pela água lá embaixo e parei, tentando resolver
se dizia alguma coisa para ele, se conseguiria passar sem que
ele percebesse. Ao levantar os olhos, viu que eu o estava
observando. Não mudou de expressão, seus pensamentos
pareciam distantes.
— Bonjour — cumprimentei, achando-me boba.
— Bonjour. — Ele mexeu na cadeira e mostrou o lugar ao
lado: — Café? (Aceita um café?)
Fiquei sem saber. — Oui, s'il vous plaît (Sim, obrigada) —
falei, por fim. Sentei-me e ele fez sinal para o garçom. Por
um instante, eu me senti muito sem jeito e fiquei olhando o
Tarn para não ter de encará-lo. Era um rio comprido, com
uns 90 metros de largura, verde e plácido, que parecia
tranqüilo. Então percebi uma pequena ondulação na água,
fixei os olhos e vi alguns lampejos de uma substância escura,
vermelho- ferrugem, subindo à superfície e sumindo.
Fascinada, acompanhei as manchas vermelhas com os olhos.
O garçom apareceu com os cafés numa bandeja prateada,
impedindo a visão do rio. Virei-me para o bibliotecário. —
O que é aquele vermelho no Tarn? — perguntei, em
francês.
Ele respondeu em inglês. — Depósitos de argila das colinas.
Há pouco tempo houve um deslizamento de terra que
trouxe a argila do subsolo. Ela entra no rio.
Voltei a examinar a água. Ainda olhando a argila, mudei para
a língua inglesa: — Como você se chama?
—Jean-Paul.
— Obrigada pelo cartão da biblioteca, Jean-Paul. Foi muito
gentil.
Ele deu de ombros e preferi não me estender naquele
assunto.
Ficamos um bom tempo sem dizer nada, tomando nosso
café e olhando o rio. Fazia calor ao sol de fim de maio e eu
teria tirado a jaqueta, mas não queria que ele visse a psoríase
em meus braços.
— Por que não está na biblioteca? — perguntei, de repente.
Ele levantou os olhos.
— Hoje é quarta, a biblioteca não abre.
— Ah. Há quanto tempo trabalha lá?
— Três anos. Antes, fui da biblioteca de Nimes.
— É a sua profissão? Bibliotecário?
Ele me olhou de soslaio, enquanto acendia um cigarro.
— É. Por que pergunta?
— Porque... não parece bibliotecário.
— Pareço o quê?
Examinei-o. Estava de jeans pretos, uma camisa macia de
algodão cor-de-rosa e um blazer preto dependurado no
encosto da cadeira. Os braços dele eram bronzeados,
cobertos de pêlos negros.
— Gângster — respondi. — Só faltam os óculos.
Jean-Paul sorriu de leve e soprou a fumaça do cigarro,
formando uma cortina azul em volta do rosto. — Como é
que se diz nos Estados Unidos? "Não julgue o livro pela
capa."
Retribuí o sorriso: — Touché. (Acertou em cheio.)
— E por que está na França, Ella Tournier?
— Meu marido é arquiteto, trabalha em Toulouse.
— E por que está aqui?
— Queríamos viver numa cidade pequena, não em Toulouse.
Morávamos em San Francisco, eu nasci em Boston, então
achei que uma cidade pequena seria uma mudança
interessante.
— Perguntei por que você está aqui.
— Ah — exclamei e calei. — Porque meu marido está aqui.
Ele levantou as sobrancelhas e apagou o cigarro.
— Quer dizer, eu quis vir. Gostei da mudança.
— Gostou ou gosta?
Fiquei irritada. — Você fala inglês muito bem, aprendeu
onde?
— Morei dois anos em Nova York. Formei-me em
Biblioteconomia na Columbia University.
— Morou em Nova York e voltou para cá?
— Para Nimes, depois para cá, sim. — Ele deu um sorrisinho.
— Por que tanta surpresa, Ella Tournier? Esta é a minha
cidade.
Gostaria que ele parasse de dizer Tournier. Ele me olhava
com o riso sarcástico de quando o vi pela primeira vez na
biblioteca, impenetrável e condescendente. Queria ter visto
a cara dele quando fez meu cartão da biblioteca: teria sido
com um gesto superior também?
Levantei de repente e procurei algumas moedas na bolsa.
— A conversa está ótima, mas tenho de ir. — Deixei o
dinheiro na mesa. Jean-Paul viu e franziu o cenho,
balançando a cabeça de forma quase imperceptível.
Enrubesci, peguei as moedas e virei-me para ir embora.
— Au revoir, Ella Tournier (Até logo). Aproveite o Henry
James.
Girei nos calcanhares:
— Por que fica repetindo meu sobrenome?
Ele se recostou na cadeira, o sol batia em seus olhos e não
podia ver sua expressão. — Para você se acostumar com ele.
Até virar seu nome.
Devido à greve dos Correios, a resposta de meu primo só
chegou em primeiro de junho, um mês depois de eu ter
escrito para ele. Jacob Tournier mandou duas folhas de
garranchos grandes e quase indecifráveis. Peguei o
dicionário e comecei a traduzir a carta, mas a letra era tão
difícil de entender que, depois de procurar várias palavras e
não encontrar, resolvi usar o dicionário maior da biblioteca.
Quando entrei, Jean-Paul estava conversando com outro
homem no balcão. O jeito e a expressão dele não mudaram,
mas notei, com uma satisfação que me surpreendeu, que
ficou me olhando passar. Levei os dicionários para uma
mesa e sentei de costas, aborrecida comigo mesma por ficar
tão sem jeito na presença dele.
O dicionário da biblioteca foi mais útil, mas ainda havia
algumas palavras que não conseguia encontrar e outras que
simplesmente não conseguia entender. Depois de quinze
minutos num parágrafo, recostei-me na cadeira, cansada e
frustrada. Foi então que vi Jean-Paul encostado na parede à
minha esquerda, olhando-me com uma expressão divertida
que me deu vontade de estapeá-lo. Levantei-me e entreguei
a carta para ele, resmungando: — Pronto, faça isso!
Ele pegou as folhas, deu uma olhada por alto e aceitou. —
Deixe por minha conta, encontro você quarta-feira no café
— disse.
Na quarta de manhã, ele estava na mesma mesa e na mesma
cadeira, mas o dia havia amanhecido nublado e não se viam
depósitos de argila borbulhando no rio. Sentei de frente para
ele, e não na cadeira ao lado, ficando de costas para o rio,
assim éramos obrigados a nos encarar. Por trás dele, vi o
café vazio e, ao sentar, fiz sinal para o garçom, que largou o
jornal que lia.
Não dissemos nada enquanto esperávamos o café. Eu estava
cansada demais para ficar de conversa mole, era a época
estratégica do mês e havia acordado três noites consecutivas
com o pesadelo. Não conseguira voltar a dormir e ficara
horas ouvindo o ressonar tranqüilo de Rick. Com isso, passei
a tirar cochilos à tarde, mas sentia-me mal e desorientada.
Pela primeira vez, entendi a cara das mães de primeira
viagem com as quais trabalhei, com aquela expressão
cansada e perturbada de quem não pôde dormir.
Depois que o café chegou, Jean-Paul colocou a carta de
Jacob Tournier sobre a mesa. — Tem algumas expressões
suíças que você não deve ter entendido. E a letra é difícil,
embora eu já tenha visto piores — disse. E me entregou uma
página em ótima caligrafia com a tradução.
Minha cara prima,
Que prazer receber sua carta! Lembro-me bem de seu pai na
rápida visita que fez a Moutier há muito tempo e estou
satisfeito de conhecer a filha dele.
Lamento a demora em responder às suas perguntas, tive de
olhar as velhas anotações de meu avô sobre os
Tournier. Foi ele que se interessou muito pela família e fez
várias pesquisas. Na verdade, montou a árvore genealógica: é
difícil ler ou copiar aqui, então você terá de nos visitar para
vê-la.
Mesmo assim, posso lhe dar algumas informações. A
primeira menção a um Tournier em Moutier foi a Etienne
Tournier, num registro militar de 1576. Depois, um batizado
em 1590 de outro Etienne, filho de Jean Tournier e Marthe
Rougemont. Há poucos registros dessa época, mas depois os
Tournier são mencionados várias vezes: do século XVIII até
agora, a árvore é bem copada.
Os Tournier tiveram muitas profissões: alfaiate, dono de
estalagem, relojoeiro, professor. Um Jean Tournier chegou a
ser prefeito no início do século XIX
Você pergunta a respeito de suas origens francesas. Meu avô
costumava dizer que a família veio de Cévennes. Não sei de
onde ele tirou essa informação.
Gosto de saber que se interessa pela família e espero que
você e seu marido nos façam uma visita em breve. Um novo
membro da família Tournier é sempre bem-vindo a
Moutier.
Sinceramente etc., Jacob Tournier
Olhei para ele e perguntei: — Onde fica Cévennes?
Jean-Paul fez um gesto por cima do meu ombro. — A
nordeste daqui. É uma região de montanhas ao norte de
Montpellier, a oeste do Reno. Em volta do Tarn, na direção
sul.
Fixei-me na pouca geografia que sabia: — Este Tarn? —
Apontei com o queixo para o rio lá embaixo, esperando que
ele não tivesse notado que eu havia pensado que Cévennes
fosse uma cidade.
— Sim, é um rio bem diferente lá para o leste, mais próximo
da nascente. Bem menor e mais rápido.
— E onde fica o Reno?
Ele me olhou de soslaio, pegou uma caneta no bolso da
jaqueta e desenhou a França num guardanapo. A forma
lembrava a cabeça de uma vaca: o leste e o oeste eram as
orelhas; o alto mostrava o tufo de pêlos entre as orelhas; o
focinho quadrado era a fronteira com a Espanha. Ele marcou
onde ficava Paris, Toulouse, Lyon, Marselha, Montpellier, e
fez riscos verticais e horizontais para o Reno e o Tarn.
Lembrou-se de marcar um ponto ao lado do Tarn e à direita
de Toulouse para indicar Lisle-sur-Tarn. Depois, fez um
círculo no lado esquerdo da cara da vaca, pouco acima da
Riviera. —Aqui é a região de Cévennes.
— Quer dizer que eles eram de um lugar próximo?
Jean-Paul esticou os lábios. — Daqui até o Cévennes são
pelo menos 200 quilômetros. Você acha perto?
— Para um norte-americano, sim — respondi, ciente de que
pouco antes eu havia discutido com meu pai por dizer a
mesma coisa. — Alguns norte-americanos são capazes de
dirigir 300 quilômetros para ir a uma festa. Mas, olhe, é uma
incrível coincidência que no seu vasto país (mostrei a
cabeça da vaca) meus antepassados tenham vivido num
lugar tão próximo de onde estou morando.
— Incrível coincidência — repetiu Jean-Paul de um jeito
que fez eu me arrepender de usar esse adjetivo.
— Talvez não fosse difícil descobrir mais sobre eles, já que é
tão perto. — Lembrei-me de Madame Sentier dizendo que
conhecer meus antepassados franceses faria com que eu me
sentisse mais em casa na França. — Eu poderia ir lá e... —
Parei. O que faria lá exatamente?
— Sabe que seu primo contou que é uma lenda familiar dizer
que vieram daqui. Portanto, não se trata de uma informação
garantida. Nada de concreto. — Ele se recostou, tirou um
cigarro do maço sobre a mesa e acendeu-o num gesto
rápido. —Além disso, você já tem essa informação a respeito
de antepassados suíços, e existe uma árvore genealógica.
Refizeram os traços da família a partir de 1576, o que é mais
informação do que a maioria das pessoas tem acerca de suas
famílias. Já é o bastante, não?
— Mas seria interessante eu me aprofundar. Pesquisar. Eu
poderia procurar documentos ou alguma coisa assim.
Ele parecia achar graça. — Que tipo de documentos, Ella
Tournier?
— Bem, certidões de nascimento. De óbito. Casamentos.
Esse tipo de coisa.
— E onde vai encontrar isso?
Joguei as mãos para o alto. — Não sei. Esse é o seu trabalho.
Você é bibliotecário!
— Certo. — Falar na vocação dele pareceu acalmá-lo; ele se
ajeitou na cadeira. —Você pode começar pelos arquivos de
Mende, a capital de Lozère, um dos départements
(províncias) da região de Cévennes. Mas acho que você não
conhece a palavra "pesquisa", que usa com tanta facilidade.
Não há tantos registros do século XVI. Eles não guardavam
documentos, o governo só começou a fazer isso depois da
Revolução Francesa. Havia registros de igreja, sim, mas
muitos foram destruídos nas guerras religiosas. Os registros
huguenotes, sobretudo, não eram bem guardados. Assim, é
pouco provável que encontre algo sobre os Tournier, caso
vá a Mende.
— Espera aí. Como sabe que eles eram, ahn, huguenotes?
— A maioria dos franceses que foram para a Suíça na época
era huguenote à procura de um lugar seguro ou porque
queria ficar perto de Calvino, em Genebra. Há duas ondas
principais de migração, em 1572 e em 1685, a primeira
depois do Massacre de São Bartolomeu e a outra após a
revogação do Edito de Nantes. Você pode ler sobre elas na
biblioteca. Não vou fazer tudo para você — disse ele,
irônico.
Fiz de conta que não havia notado a zombaria. Estava
começando a gostar da idéia de explorar uma parte da França
onde podia ter antepassados. — Você acha que vale a pena
olhar os arquivos de Mende? — perguntei, otimista como
uma boba.
Ele soprou a fumaça do cigarro. — Não.
Meu desapontamento deve ter sido óbvio, pois Jean-Paul
bateu na mesa, impaciente, e disse: — Anime-se, Ella
Tournier. Não é tão fácil descobrir o passado. Vocês, norte-
americanos que vêm aqui em busca das suas raízes, pensam
que vão descobrir na hora, não é? Depois, vão ao lugar,
tiram uma foto e acham ótimo, sentem-se franceses por um
dia, não? No dia seguinte, vão procurar antepassados em
outros países. Assim, acham que o mundo inteiro lhes
pertence.
Peguei minha bolsa e levantei-me. — Você está se divertin-
do com essa história, não? — falei, ríspida. — Obrigada pelo
conselho. Aprendi bastante sobre o otimismo francês. —
Joguei de propósito uma moeda na mesa; ela rolou ao lado
do braço de Jean-Paul, caiu no chão e bateu no concreto
algumas vezes.
Dei um passo, ele me segurou pelo cotovelo. — Espera, Ella.
Não vá embora. Não sabia que estava irritando você. Tento
apenas ser realista.
Virei-me para ele. — Por que deveria ficar? Você é arro-
gante, pessimista e faz graça com tudo. Estou curiosa sobre
meus antepassados franceses e você parece achar que estou
tatuando a bandeira francesa em meu traseiro. Já é difícil
morar aqui sem você me fazer sentir ainda mais estrangeira.
— Virei-me outra vez para ir embora, mas, para minha
surpresa, senti que estava tremendo; fiquei tão atordoada
que tive de segurar na beira da mesa.
Jean-Paul levantou-se e puxou uma cadeira para mim. Sentei
enquanto ele chamava o garçom dentro do bar:
— Un verre d'eau, Dominique, vite, s'il vous plaît. (Traga um
copo d'água, Dominique, rápido, por favor.)
Melhorei bebendo a água e respirando fundo várias vezes.
Abanei o rosto com as mãos. Estava enrubescida e suando.
Jean-Paul sentou-se na minha frente e me olhou, atento.
— Talvez seja melhor tirar a jaqueta — sugeriu, calmo, pela
primeira vez com a voz gentil.
— Eu... — Mas não era hora para pudores e eu estava muito
cansada para discutir. A raiva que tive dele sumiu assim que
me sentei. Relutante, tirei a jaqueta. — Tenho psoríase —
avisei, baixo, tentando evitar qualquer estranheza sobre o
estado de meus braços. — O médico disse que é estresse e
falta de sono.
Jean-Paul olhou as marcas de pele escamosa como se fossem
um curioso quadro moderno.
— Você não dorme direito? — perguntou.
— Tenho pesadelos. Bom, sempre o mesmo pesadelo.
— Contou ao seu marido? Seus amigos?
— Não contei para ninguém.
— Por que não contou ao seu marido?
— Não quero que pense que estou infeliz aqui. — Não disse
que Rick podia se sentir ameaçado pela ligação do pesadelo
com sexo.
— Você está infeliz?
— Estou — respondi, olhando bem para ele. Foi um alívio
dizer isso.
Ele concordou com a cabeça. — E qual é o pesadelo? Conte.
Olhei para o rio. — Só me lembro de trechos. Não tem uma
história, tem uma voz: não, duas vozes, uma fala francês e a
outra chora, um choro histérico. Tudo em meio a uma
neblina, como se o dia estivesse pesado, como água. E tem
um estrondo ao fundo, como uma porta sendo fechada. E o
mais importante: é tudo azul. Tudo. Não sei o que me
assusta tanto, mas toda vez que sonho eu quero ir para casa.
O que me assusta é o clima, mais do que a situação. E o fato
de eu continuar tendo o pesadelo, que não pára, como se
fosse me acompanhar pelo resto da vida. Isso é o pior. —
Parei de falar. Não sabia o quanto queria contar aquilo para
alguém.
— Quer voltar para os Estados Unidos?
— Às vezes, mas depois fico furiosa por me assustar com um
pesadelo.
— O azul parece com o quê? Com aquilo? — ele apontou
para um anúncio de sorvete à venda no café. Balancei a
cabeça.
— Não, é muito claro. Quer dizer, o azul do sonho é claro.
Bem vívido. Mas é claro e escuro ao mesmo tempo. Não sei
as palavras técnicas para descrevê-lo. Reflete muita luz. É
lindo, mas no sonho me deixa triste. E animada. É como se a
cor tivesse dois lados. Engraçado porque me lembro da cor.
Sempre achei que sonhava em preto-e-branco.
— E as vozes? São de quem?
— Não sei. Às vezes, ouço a minha. Outras vezes, acordo
falando. Quase consigo ouvir as palavras como se o quarto
tivesse acabado de ficar silencioso.
— Quais são as palavras? O que você diz?
Pensei um instante e balancei a cabeça. — Não lembro.
Ele olhou bem para mim. — Tente. Feche os olhos.
Fiz o que ele disse, fiquei parada o máximo possível, com
Jean-Paul em silêncio ao meu lado. Quando ia desistir, um
trecho me veio à cabeça e falei, de repente: — Je suis un pot
cassé. (Sou um pote quebrado.)
Abri os olhos.
— Sou um pote quebrado? De onde tirei isso?
Jean-Paul parecia assustado.
— Consegue lembrar mais?
Fechei os olhos de novo. — Tu es ma tour et forteresse. (És
minha torre e minha fortaleza.) — murmurei, enfim.
Abri os olhos. O rosto de Jean-Paul estava concentrado e ele
parecia longe. Vi que pensava, percorrendo um vasto espaço
de memória, examinando e rejeitando até que alguma coisa
bateu e ele voltou para onde nos encontrávamos. Olhou
bem para o anúncio de sorvete e recitou:
Entre tous ceux-là qui me haient
Mes voisins j'aperçois
Avoir honte de moi:
Il semble que mes amis aient
Horreur de ma rencontre,
Quand dehors je me montre.
Je suis hors de leur souvenance,
Ainsi qu'un trespassé.
Je suis un pot cassé.
(Entre todos que me detestam/ Sinto que meus vizinhos/
Têm vergonha de mim:/ Parece que meus amigos têm
horror de me encontrar/ Quando, enfim, apareço/ não se
lembram de mim, é como se estivesse morta./ Sou um pote
quebrado.)
Enquanto ele falava, senti uma pressão na garganta e na
cabeça. Era tristeza.
Segurei firme nos braços da cadeira, empurrando o corpo no
encosto, como se quisesse me segurar. Quando ele parou,
engoli em seco para relaxar a garganta.
— Que texto é esse? — perguntei, calma.
— O Salmo 31.
Franzi o cenho. — Salmo? Da Bíblia?
— Sim.
— Mas como posso conhecer? Não sei salmos! Sei poucos em
inglês e, claro, nenhum em francês. Mas conheço bem essas
palavras. Devo tê-las ouvido em algum lugar. Como você
conhece?
— Da igreja. Quando eu era jovem, tínhamos de decorar
muitos salmos. Mas também os estudei.
— Estudou salmos para ser bibliotecário?
— Não, antes disso, quando fiz História. A história do
Languedoc. É isso o que realmente faço.
— O que é o Languedoc?
— Uma região em volta daqui. Vai de Toulouse e dos
Pireneus até o Reno. — Fez mais um círculo no mapa do
guardanapo, abrangendo o círculo menor da região de
Cévennes e grande parte do pescoço e do focinho da vaca.
— O nome vem da língua que falavam aqui. O na língua
deles era oui (sim). Langue d'oc: língua do oc.
— O que o salmo tinha a ver com Languedoc?
Ele ficou indeciso. — Bom, isso é curioso. Era um salmo que
os huguenotes costumavam recitar quando acontecia alguma
coisa ruim.
Naquela noite, após o jantar, finalmente contei a Rick o
sonho, descrevi o azul, as vozes, o clima, da melhor maneira
que pude. Omiti alguns detalhes: não contei que havia
tocado no assunto com Jean-Paul, que as palavras eram de
um Salmo e que eu só tinha o pesadelo depois de fazer sexo.
Como precisava escolher o que falar, o processo foi mais
consciente e não tão terapêutico como com Jean-Paul, que
ocorreu de forma involuntária e natural. No momento em
que contei por causa de Rick mais do que por minha causa,
vi que tinha de arrumar como se fosse uma história, e ela
começou a sair de mim e tomar forma ficcional.
Rick também viu a história assim. Talvez tenha sido pelo
jeito que contei, mas ele ouviu como se estivesse prestando
atenção em outra coisa ao mesmo tempo, como se fosse um
rádio ligado ao fundo ou uma conversa na rua. Não pergun-
tou nada, ao contrário de Jean-Paul.
— Rick, você está me ouvindo? — acabei perguntando,
puxando o rabo-de-cavalo dele.
— Claro que estou. Você tem tido pesadelos. Com a cor azul.
— Queria que você soubesse. Por isso tenho estado tão
cansada.
— Você devia me acordar quando tem pesadelo.
— Eu sei. — Mas sabia que não ia acordá-lo. Na Califórnia,
eu o acordaria assim que tivesse um pesadelo. Alguma coisa
havia mudado; como Rick parecia o mesmo, devia ser
comigo.
— Como vão as aulas?
Dei de ombros, irritada por ele mudar de assunto.
— Bem. Quer dizer, não, vão mal. Não, não sei. As vezes
fico pensando como vou fazer partos tendo de falar francês.
Não consegui dizer nada direito quando aquele bebê estava
se sufocando. Se não consigo nem isso, como posso ajudar
uma mulher em trabalho de parto?
— Mas nos Estados Unidos você conseguiu fazer o parto de
mulheres latinas.
— É diferente. Elas não falavam inglês, mas também não
esperavam que eu falasse espanhol. E aqui todo o
equipamento hospitalar, todos os remédios e as doses são em
francês.
Rick inclinou-se para a frente, cotovelos apoiados na mesa,
prato empurrado para o lado. — Escute, Ella, que fim levou
o seu otimismo? Você não vai ser atriz em francês, não?
Estou cansado de ver pessimismo no escritório.
Mesmo sabendo que eu havia criticado o pessimismo de
Jean-Paul, eu me vi repetindo o que ele havia dito: — Estou
só tentando ser realista.
— É, também já ouvi isso no escritório.
Abri a boca para uma resposta ríspida, mas me contive. Era
verdade que meu otimismo havia diminuído na França,
talvez estivesse assimilando o jeito cínico das pessoas em
volta. Rick dava um toque positivo em tudo; sua visão positi-
va é que lhe havia trazido o sucesso. Foi por isso que a
empresa francesa o chamou, era por isso que estávamos lá.
Fechei a boca e engoli minhas palavras pessimistas.
Naquela noite, fizemos amor, e Rick tomou cuidado para
não tocar na minha psoríase. Depois, fiquei esperando virem
o sono e o pesadelo. Quando vieram, o pesadelo foi menos
impressionante, porém, mais real do que nunca. O azul fica-
va em cima de mim como um lençol brilhante, aumentando
e diminuindo, com textura e forma. Acordei com lágrimas
escorrendo pelo rosto e ouvindo minha voz. Fiquei quieta.
— Um vestido, era um vestido — sussurrei.
De manhã, corri para a biblioteca. A funcionária estava no
balcão e tive de disfarçar meu desapontamento e irritação
por Jean-Paul não se encontrar lá. Fiquei andando sem rumo
pelas duas salas, seguida pelo o olhar da bibliotecária. Por
fim, perguntei se Jean-Paul viria naquele dia. —Ah, não. Foi
passar uns dias em Paris — respondeu a mulher com um
leve franzir de cenho.
— Paris? Por quê?
Ela estranhou o fato de eu perguntar.
— Bom, a irmã vai se casar. Volta na segunda-feira.
— Ah, merci — falei e fui embora. Esquisito imaginar que
ele tinha uma irmã, uma família. Droga, pensei, descendo as
escadas e chegando à praça. A Madame da boulangerie
estava ao lado da fonte conversando com a mulher que eu
havia seguido na primeira vez que fui à biblioteca. As duas
pararam de falar e olharam bem para mim antes de voltarem
à conversa. Droga, pensei. Nunca me senti tão isolada e
visível.
No domingo, fomos convidados para almoçar na casa de um
colega de Rick. Era nossa primeira reunião social desde que
havíamos mudado para a França, sem contar o drinque
rápido com pessoas que Rick tinha conhecido no trabalho.
Fiquei nervosa com o convite e centrei as preocupações no
que vestir. Não tinha idéia do que significava um almoço de
domingo em termos franceses, se era uma ocasião formal ou
simples.
— Será que ponho um vestido? — fiquei insistindo com
Rick.
— Ponha o que quiser — respondeu ele, prático. — Eles não
se preocupam com isso.
Mas eu me preocupo, pensei, se usar uma roupa errada.
Tinha o problema suplementar de meus braços: o dia estava
quente, mas eu não agüentava os olhares furtivos na minha
pele irritada. Finalmente, escolhi um vestido cinza sem
mangas, de comprimento três-quartos, e uma jaqueta de
linho branco. Pensei que fosse servir para quase todas as
ocasiões, mas, quando o casal abriu a porta da grande casa
nos arredores da cidade e vi os jeans e a camiseta branca de
Chantal, os shorts cáqui de Olivier, eu me senti ao mesmo
tempo exagerada e fora de moda. Eles deram um sorriso
educado e tornaram a sorrir para as flores e o vinho que
levamos, mas percebi que Chantal deixou as flores
embrulhadas numa mesa lateral na sala de jantar, e nossa
garrafa de vinho, escolhida com tanto cuidado, jamais
apareceu.
Eles tinham um casal de filhos, tão educados e silenciosos
que não consegui saber como se chamavam. No final do
almoço, os dois se levantaram e sumiram, como se
chamados por um sino que só as crianças pudessem ouvir.
Deviam estar vendo tevê e, no fundo, eu gostaria de estar
com eles: a conversa dos adultos era cansativa e às vezes
desanimadora. Rick e Olivier passaram quase todo o tempo
falando de trabalho, em inglês. Chantal e eu conversamos
meio esquisito, numa mistura de inglês e francês. Tentei só
falar francês, mas ela mudava de língua quando percebia que
eu não estava entendendo. Seria indelicado eu continuar em
francês, então passava para o inglês até fazer uma pausa,
depois mudava de assunto em francês. Parecia uma luta
educada e acho que ela teve muito prazer em mostrar como
seu inglês era bom, comparado com o meu francês. E
Chantal não era de conversar bobagem: em dez minutos,
falou principalmente de política internacional e parecia
zombar quando eu não tinha uma resposta pronta para cada
problema.
Olivier e Chantal prestavam atenção em tudo que Rick dizia,
embora eu me esforçasse mais do que ele para falar a língua
deles. Apesar da minha luta para me comunicar, eles mal me
ouviam. Eu detestava comparar o meu desempenho ao de
Rick: nunca agira assim nos Estados Unidos.
Saímos no final da tarde, com beijos educados e promessas
de vê-los em Lisle. Será bem divertido, pensei ao entrarmos
no carro. Quando ficamos fora de vista, tirei a jaqueta suada.
Se eu estivesse com amigos nos Estados Unidos, a aparência
dos meus braços não teria importância. Mas, se eu estivesse
nos Estados Unidos, não estaria com psoríase.
— Eles são ótimos, não? — Rick começou o nosso
comentário ritual.
— Nem tocaram nas flores e no vinho.
— É, mas com uma adega como a deles, claro! Ótimo lugar.
— Eu não estava pensando nas posses deles.
Rick me olhou de soslaio. — Você não parecia contente,
meu bem. Qual é o problema?
— Não sei, só sei que não consigo me integrar, é isso. Parece
que não converso com as pessoas aqui como nos Estados
Unidos. Até agora, a única pessoa com quem conversei,
além de Madame Sentier, foi Jean-Paul e, mesmo assim, não
foi uma conversa. Parecia mais uma batalha, uma...
— Quem é Jean-Paul?
Tentei ser casual. — Um bibliotecário de Lisle. Está me
ajudando a levantar a história da minha família. Está fora da
cidade agora — acrescentei, sem dar importância.
— E o que vocês descobriram?
— Pouca coisa. Um pouco foi enviado por meu primo da
Suíça. Sabe, eu achava que conhecer meu passado francês
me deixaria mais à vontade aqui, mas me enganei. As
pessoas continuam me vendo como uma norte-americana.
— Você é norte-americana, Ella.
— Eu sei. Mas tenho de mudar um pouco enquanto estiver
aqui.
— Por quê?
— Porque senão eu chamo muita atenção. As pessoas
querem que eu seja como elas esperam, que eu seja como
elas. E não posso deixar de ser influenciada pela paisagem,
pelas pessoas e pelo jeito de pensarem e falarem. Tudo isso
está me modificando pelo menos um pouco.
Rick parecia intrigado. — Mas você é você — disse ele,
mudando de faixa na estrada tão rápido que os motoristas
dos carros de trás buzinaram, indignados. — Não precisa se
modificar por causa dos outros.
— Não é isso. É mais uma questão de adaptação. É como... os
cafés aqui não servem café descafeinado, então estou me
acostumando a tomar menos café, ou nenhum.
— Peço para minha secretária fazer descafeinado no
escritório.
— Rick... — Parei e contei até dez. Ele parecia não entender
as minhas metáforas de propósito, dando aquele toque
positivo em tudo.
— Acho que você seria bem mais feliz se não se preocupasse
tanto em se adaptar. As pessoas vão gostar de você como é.
— Pode ser. — Olhei pela janela. Rick tinha a capacidade de
não tentar se adaptar e, mesmo assim, ser aceito. Era como o
rabo-de-cavalo dele: usava com tanta naturalidade que
ninguém olhava ou achava estranho. Mas eu, apesar das
tentativas de me adaptar, aparecia como um arranha-céu.
Rick tinha de parar no escritório durante uma hora e pensei
em me sentar lá e ler, ou jogar num dos computadores, mas
estava num tal mau humor que preferi caminhar. O
escritório dele ficava bem no centro de Toulouse, numa
região de ruas estreitas e lojas que àquela hora estavam
cheias de domingueiros vendo vitrines. Andei, olhando as
vitrines de roupas bonitas, jóias de ouro, lingerie fina.
Sempre estranhei o culto à lingerie francesa, até cidades
pequenas como Lisle-sur-Tarn tinham uma loja
especializada. Difícil imaginar alguém usando as coisas que
estavam expostas, com suas fitas, rendas e desenhos
intricados que mapeavam as zonas erógenas do corpo. Havia
alguma coisa não-norte-americana naquilo, naquele
sensualismo formalizado.
Na verdade, as francesas da cidade eram tão diferentes de
mim que eu costumava me sentir invisível, um fantasma
desgrenhado que ficava de lado para elas passarem. As
mulheres que andavam por Toulouse usavam blazers feitos
sob medida com jeans, muitos brincos e colares de ouro. Os
sapatos eram sempre de salto. Os penteados eram simples,
caros; as sobrancelhas, bem-feitas; a pele, clara. Era fácil
imaginá-las de sutiãs ou camisolas complicados, calcinhas de
seda que mostravam bem as coxas, meias, cintas. Elas
levavam a imagem a sério. Continuei andando e percebi os
olhares discretos examinando meus cabelos na altura dos
ombros que eu havia deixado um pouco longos demais, o
fato de eu não usar maquiagem, o vestido de linho sempre
amassado, as sandálias rasas batendo no chão, e que eu
achava tão elegantes em San Francisco. Tinha certeza de que
as francesas me olhavam com pena.
Será que sabem que sou norte-americana?, pensei. Será que
é tão óbvio assim?
Era. Eu mesma fui capaz de identificar o casal norte-
americano de meia-idade que estava na minha frente a uma
distância de uns cem metros só pela roupa e pelo jeito deles.
O casal olhava uma vitrine de chocolates e, quando passei
por eles, a mulher comentou se voltaria ou não no dia
seguinte para comprar um pouco para levar para casa.
— Será que o chocolate não derrete no avião? — ela
perguntou ao marido. Tinha coxas largas, cintura baixa e
usava uma blusa em tom pastel solta, calças compridas e
tênis.
— Querida, faz frio a dez mil metros de altura. O chocolate
não vai derreter, mas poderá amassar. Deve ter alguma outra
coisa nesta cidade que a gente possa levar. — Ele tinha um
barrigão que o cinto cortava ao meio, destacando-o e
apertando-o. Não estava de boné de beisebol, mas poderia
estar. Devia ter deixado no hotel.
Os dois olharam para cima e sorriram alegres, uma esperança
brilhou em seus rostos. A sinceridade deles me deu pena, e
dobrei logo numa rua lateral. Atrás, ouvi o homem dizer: —
Olha aqui, senhorita, s'il vous plaît. — Não me virei.
No final da rua, saí ao lado do Musée des Augustins, uma
construção antiga de tijolos que tinha um acervo de quadros
e esculturas. Olhei em volta: o casal não me seguiu. Olhei lá
dentro.
Paguei a entrada, empurrei a porta e entrei nos claustros, um
lugar ensolarado e calmo, as calçadas em volta da praça
repletas de esculturas e, no centro, um jardim bem cuidado
com flores, legumes e ervas. Uma das alamedas tinha uma
longa fileira de cachorros de pedra, focinhos para cima,
latindo, satisfeitos. Dei a volta na praça, depois passei pelo
jardim, admirando os morangos, as alfaces em filas simples,
as moitas de estragão e sálvia, os três tipos de hortelã, a
grande moita de alecrim. Sentei um pouco, tirei a jaqueta e
deixei a psoríase tomar bastante sol. Fechei os olhos, sem
pensar em nada.
Finalmente, levantei-me e fui olhar a igreja ao lado. Era
enorme, do tamanho de uma catedral, mas todas as cadeiras
e o altar tinham sido retirados e havia quadros pendurados
em todas as paredes. Nunca tinha visto uma igreja que
alguém ousasse transformar em galeria de arte. Fiquei na
entrada admirando o efeito de um grande espaço vazio sobre
os quadros, envolvendo-os e reduzindo-os.
Uma luz na minha visão periférica me fez olhar um quadro
na parede em frente. Uma nesga de luz batia nele e só vi
uma mancha azul. Fui naquela direção, piscando, o
estômago apertando.
Era um quadro de Cristo retirado da cruz, deitado num
lençol no chão, a cabeça no colo de um velho. Um homem
mais jovem, uma mulher também jovem vestindo uma túni-
ca amarela olhavam para ele e, no centro da cena, estava a
Virgem Maria com um manto do mesmo azul do meu
sonho, emoldurando um rosto lindo. O quadro era estático e
muito bem proporcionado, cada pessoa disposta com
cuidado, cada inclinação de cabeça e cada gesto de mão
calculado para surtir um efeito específico. Só o rosto da
Virgem, no centro do quadro, comovia e mudava: sua
expressão lutava entre a dor e uma estranha paz, enquanto
ela olhava o filho morto, envolta numa cor que refletia sua
agonia.
Fiquei em frente ao quadro e, sem querer, minha mão
direita fez o sinal-da-cruz. Nunca havia me benzido.
Olhei a placa ao lado do quadro e li o título e o nome do
pintor. Fiquei parada um bom tempo, o espaço da igreja
suspenso ao meu redor. Depois me benzi de novo e disse:
— Virgem Maria, me ajude. — E comecei a rir.
Eu jamais teria imaginado que havia um pintor em minha
família.
3
A FUGA
Isabelle sentou-se na cama e olhou para o leito das crianças.
Jacob já estava acordado, sentado de pernas dobradas e
queixo apoiado nos joelhos. De todos os filhos, era ele quem
tinha os ouvidos mais aguçados.
— Vem vindo um cavalo — disse, calmo.
Isabelle cutucou Étienne.
— Vem alguém à cavalo — cochichou.
O marido levantou-se, sonolento, os cabelos escuros de
suor. Vestiu os suspensórios e acordou Bertrand, sacudindo-
o. Os dois desceram as escadas enquanto alguém batia à
porta. Isabelle olhou pelo canto do sótão e viu homens com
machados e facões. Hannah veio do quarto dos fundos com
uma vela. Depois de conversar baixo com os homens pela
fenda da porta, Jean pôs o machado no chão e abriu o
ferrolho.
O mordomo do Duque de l'Aigle era conhecido deles.
Aparecia de tempos em tempos para trocar idéias com Jean
Tournier e usava a casa para guardar o dízimo das fazendas
próximas, anotando cuidadosamente as quantias num livro
de capa de couro de bezerro. Pequeno, gordo, totalmente
calvo, ele compensava a baixa estatura com uma voz
tonitroante, que Jean tentava em vão abafar. Com uma voz
assim, era impossível manter segredo de alguma coisa.
— O duque foi assassinado em Paris!
Hannah levou um susto e deixou cair a vela. Isabelle, sem
pensar, se benzeu, depois pôs as mãos no pescoço e olhou
em volta. As quatro crianças estavam sentadas em fila,
Susanne ao lado delas na ponta da cama, mal se equilibrava
com a enorme barriga esticada. Daqui a pouco chega a hora
dela, pensou Isabelle avaliando, automaticamente. Embora
nunca mais tivesse usado seus velhos conhecimentos, não
os havia perdido.
Petit Jean começou a afiar a faca que levava até para a cama.
Jacob estava quieto, seus grandes olhos castanhos eram
iguais aos da mãe. Marie e Deborah se encostavam uma na
outra; Deborah parecia sonolenta; Marie, de olhos atentos.
— Maman, o que é assassinado? — perguntou numa voz que
soava como um toque numa panela de cobre.
— Pssiu — sussurrou Isabelle. Foi até a beirada da cama para
ouvir o que o mordomo dizia. Susanne sentou-se ao lado e
as duas apoiaram os braços na balaustrada da escada.
— ... foi assassinado há dez dias, no casamento de Henrique
de Navarra. Os portões foram trancados e milhares de
seguidores da Verdade foram mortos. Mataram o nosso
duque, além de Coligny. E o tumulto está se alastrando pelo
campo. Estão matando gente honesta em toda parte.
— Mas estamos longe de Paris e todos aqui somos seguidores
da Verdade, estamos a salvo dos católicos — considerou
Jean.
— Dizem que vem vindo uma tropa de Mende — avisou o
mordomo com seu vozeirão. — Para tirar proveito da morte
do duque. Vem procurar você, que é síndico do duque. A
duquesa está fugindo para Alès e passará por aqui dentro de
algumas horas. Você devia vir conosco para salvar sua
família. Ela só se dispõe a levar os Tournier, mais ninguém.
— Não.
Foi Hannah quem respondeu. Havia acendido a vela outra
vez e estava rígida no meio da sala, encurvada, com uma
longa trança prateada caindo pelas costas.
— Não precisamos sair desta casa — continuou. — Aqui
estamos protegidos — disse ela.
— E temos de fazer a colheita — acrescentou Jean.
— Quem sabe você muda de idéia? A sua família, qualquer
pessoa que faça parte dela, será bem recebida pela duquesa.
Isabelle pensou ter visto o brilho dos olhos do mordomo na
direção de Bertrand. Susanne olhou o marido e mexeu-se,
desconfortável. Isabelle segurou a mão dela: estava fria
como a água do rio. Olhou para as crianças. As meninas, que
eram pequenas demais para entender, dormiram de novo;
Jacob estava na mesma posição, com o queixo apoiado nos
joelhos, e Petit Jean tinha se vestido e se encontrava
encostado na balaustrada, olhando os homens.
O mordomo foi avisar outras famílias. Jean trancou a porta e
colocou o machado do lado, enquanto Etienne e Bertrand
sumiam no celeiro para fechá-lo por dentro. Hannah
encaminhou-se para a lareira, colocou a vela na cornija e
ajoelhou-se ao lado do fogo, que estava abafado sob as cinzas
da noite. Isabelle pensou que ela fosse acender a lareira, mas
a velha não tocou no fogo.
Isabelle apertou a mão de Susanne e fez sinal em direção à
lareira.
— O que ela está fazendo?
Susanne olhou a mãe e limpou a lágrima que escorria no
rosto.
— A magia está na lareira — disse ela por fim, baixinho. — A
magia que protege esta casa. Maman está rezando para a
magia.
A magia. Anos a fio, ela fora mencionada superficialmente,
mas Etienne e Susanne jamais explicaram o que era a magia,
e Isabelle nunca ousara perguntar a Jean ou Hannah.
Tentou saber, mais uma vez.
— Mas o que é? O que tem lá?
Susanne balançou a cabeça.
— Não sei. Mas falar tira a força dela. Já falei demais.
— Por que ela está rezando? Monsieur Mareei diz que não há
magia em rezar.
— Isso é mais antigo do que rezar, mais antigo do que
Monsieur Mareei e os ensinamentos dele.
— Mas não é mais antigo do que Deus. — Nem do que... a
Virgem, pensou ela.
Susanne não discutiu, apenas disse:
— Se formos com a duquesa, perderemos a proteção — disse
ela.
— Estaremos protegidos pelos guardiães da duquesa e por
suas espadas — respondeu Isabelle.
— Você vai?
Isabelle não respondeu. O que seria preciso para obrigar
Etienne a ir? O mordomo não olhou para ele quando man-
dou que fossem embora. Sabia que Etienne não iria.
Étienne e Bertrand voltaram do celeiro e o primeiro ficou
com os pais à mesa. Jean olhou para Isabelle e Susanne.
— Vão dormir. Ficaremos de guarda — ele disse.
Mas seus olhos se fixaram em Bertrand, que estava de pé,
inseguro, no meio da sala. Olhou para Susanne como se
procurasse um sinal. Isabelle se inclinou sobre ela.
— Deus vai protegê-la. Deus e os guardiões da duquesa —
cochichou no ouvido de Susanne.
Ela se recostou e seus olhos encontraram os de Hannah.
Durante todos esses anos, você me insultou por causa dos
meus cabelos, pensou. Mas reza para a sua própria magia. As
duas se enfrentaram com o olhar e Hannah desviou
primeiro.
Isabelle não viu Susanne fazer sinal para o marido, mas
constatou o resultado dele. Bertrand virou-se, decidido, para
o sogro e avisou:
— Susanne, Deborah e eu vamos a Alès encontrar a Duquesa
de l'Aigle.
Jean olhou para Bertrand.
— Sabe que, se for, perderá tudo — disse ele, calmo.
— Perderemos tudo se ficarmos. Susanne está quase parindo,
não pode andar muito. Não pode correr. Quando os
católicos chegarem, ela não vai ter chance alguma.
— Você não acredita nesta casa? Onde nenhum bebê
morreu? Onde os Tournier moram há um século?
— Acredito na Verdade. É no que acredito — respondeu.
Com essas palavras, ele pareceu crescer, sua provocação
deu-lhe altura e corpo. Pela primeira vez, Isabelle viu que
Bertrand era mais alto do que o sogro.
— Quando me casei com sua filha, não houve dote porque
moramos aqui com você. Só o que peço agora é um cavalo.
Esse dote será suficiente.
Jean pareceu não acreditar no que ouvia.
— Quer que eu lhe dê um cavalo para você levar minha filha
e meus netos?
— Quero salvar a sua filha e seus netos.
— Sou o chefe desta família, não? — perguntou Jean.
— Meu chefe é Deus. Tenho de seguir a Verdade, não essa
magia em que você tanto acredita.
Isabelle jamais imaginou que Bertrand pudesse ser tão
rebelde. Depois que Jean e Hannah o escolheram para se
casar com Susanne, ele trabalhara duro e jamais enfrentara o
sogro. Trouxera tranqüilidade para a casa, fazia queda-de-
braço todos os dias com Étienne, ensinava Petit Jean a escul-
pir madeira com a faca e todos riam com ele à noite ao lado
do fogo, com suas histórias do lobo e da raposa. Tratava
Susanne com uma gentileza que Isabelle invejava. Uma ou
duas vezes vira-o engolir a irritação que parecia ter crescido
dentro dele, esperando por um momento como aquele.
Foi então que Jean surpreendeu a todos.
— Pode ir, mas leve o jumento, não o cavalo — disse,
áspero. Virou-se e foi até o celeiro, abriu a porta e sumiu lá
dentro.
Étienne levantou os olhos para Isabelle, antes de olhar as
mãos, e ela então teve certeza de que não iriam com
Bertrand. O único desafio que Étienne havia enfrentado na
vida fora o de se casar com ela. Não tinha vontade de
enfrentar outro.
Isabelle virou-se para a cunhada.
— Ao montar no jumento, fique de lado para apoiar o bebê
nas pernas. Assim, não nascerá antes da hora. Monte de lado
— ela repetiu, baixo, pois Susanne olhava para o nada, como
se estivesse em estado de choque. Virou-se para Isabelle:
— Você diz para montar como a Virgem fez na fuga para o
Egito?
— É, isso mesmo, como a Virgem.
Há muito tempo não pronunciavam o nome Dela.
Deborah e Marie dormiam com um lençol enrolado quando
Susanne e Isabelle foram acordar Deborah, pouco antes do
amanhecer. Tentaram não perturbar os outros, mas Marie
acordou e perguntou, alto: — Por que Deborah vai embora?
Por quê? — Jacob abriu os olhos, o rosto enrugado. E Petit
Jean, ainda vestido, sentou-se na cama.
— Maman, aonde eles vão? Vão ver soldados? Cavalos e
bandeiras? Vão ver o tio Jacques? — perguntou, com a voz
rouca.
— Tio Jacques não é soldado católico. Ele luta no exército de
Coligny, no norte.
— Mas o mordomo disse que Coligny foi assassinado.
— É.
— Então, pode ser que tio Jacques volte.
Isabelle não respondeu. Jacques Tournier havia se alistado
no exército há dez anos, na mesma época em que outros jo-
vens do monte Lozère o fizeram. Voltara uma vez,
assustado, irritado, cheio de histórias para contar, uma delas
sobre os irmãos de Isabelle, que haviam sido atingidos pela
mesma lança.
— Como deve ser com gêmeos — acrescentou Jacques,
rindo agressivamente quando Isabelle virou-se para sair da
sala. Petit Jean adorava Jacques. Isabelle não. Jacques a
seguia com os olhos por toda parte, jamais parando no rosto
dela. Ele incentivava Etienne a ser muito violento e ela não
gostava disso. Mas Jacques não ficou muito tempo em casa:
o apelo do sangue e da agitação era muito forte, mais forte
do que os apelos familiares.
As crianças desceram as escadas atrás das mulheres e saíram
no quintal, onde os homens haviam carregado o jumento
com alguns pertences e comida: queijo de cabra e grossas
fatias escuras de pão de castanha, que Isabelle assou
rapidamente, nas poucas horas antes do amanhecer.
— Vamos, Susanne — chamou Bertrand, com um gesto.
Susanne procurou a mãe, mas Hannah não saiu da casa.
Virou-se então para Isabelle, beijou-a três vezes e pôs os
braços em volta do pescoço dela.
— Monte de lado e, se começar a sentir dores, mande que
eles parem. Que a Virgem e Santa Margarida cuidem e
levem vocês em segurança para Alès — disse Isabelle no
ouvido dela.
Montaram Susanne de lado no jumento, no meio dos
pacotes.
— Adieu, Papa, petits (Adeus, papai e meninos) — disse ela,
acenando para Jean e as crianças. Deborah subiu atrás de
Bertrand. Ele mexeu a corda no cabresto do jumento,
estalou a língua, bateu com os calcanhares e o animal partiu
descendo a trilha da montanha num trote rápido. Étienne e
Petit Jean foram atrás para acompanhá-los até a estrada para
Alès, onde encontrariam a comitiva da duquesa. Susanne
olhou para trás, para Isabelle, o rosto pequeno e branco, até
sumir de vista.
— Grandpapa (Vovô), por que eles estão indo embora? Por
que Deborah está indo embora? — Marie perguntou. As
duas primas tinham a mesma idade, com apenas uma
semana de diferença, e nunca haviam se separado. Jean
virou-se. Marie entrou na casa atrás de Isabelle e ficou ao
lado de Hannah, ocupada com a lareira.
— Mémé, por que Deborah está indo embora? — repetiu
várias vezes, até Hannah dar-lhe um tapa.
Com ou sem soldados, a colheita estava à espera. Os homens
foram para o campo como sempre, mas Jean preferiu ceifar
um campo perto de casa e Isabelle não o acompanhou com
o ancinho, como costumava fazer: ela e Marie ficaram em
casa ajudando Hannah a fazer compotas. Petit Jean e Jacob
trabalhavam atrás do pai e do avô, juntando o trigo em
molhos com o ancinho; Jacob mal tinha tamanho para
segurar o ancinho.
Na casa, Isabelle e Hannah pouco falavam, suas bocas
ficaram fechadas pela ausência de Susanne. Por duas vezes,
Isabelle parou de mexer o caldeirão, olhou para o nada e
xingou quando espirrou calda de pêssego quente nos braços.
Até que Hannah a afastou do fogão.
— O mel é muito precioso para ser desperdiçado em mãos
inúteis — resmungou.
Isabelle foi ferver a louça, mas toda hora ia até a porta em
busca de uma brisa fresca e de escutar o silêncio do vale.
Uma vez, Marie ficou ao lado dela na porta, as mãos
pequenas e vermelhas por mexer nos pêssegos para separar
os verdes ou podres.
— Maman, por que eles foram embora? — perguntou,
sabendo agora que tinha de falar baixo.
— Porque estavam com medo — disse Isabelle um instante
depois, secando o suor da testa.
— Com medo de quê?
— De homens maus que querem machucá-los.
— Homens maus estão vindo para cá?
Isabelle enfiou as mãos sob o avental para Marie não ver que
tremiam.
— Não, chérie (querida), acho que não. Mas eles estavam
preocupados com Susanne e o bebê.
— Vou ver Deborah logo?
— Vai.
Marie tinha os olhos azul-claros do pai e, para tranqüilidade
de Isabelle, também os cabelos louros dele. Se fossem
ruivos, Isabelle os tingiria com suco de nozes pretas. Marie
virou-se para a mãe com seus olhos brilhantes, perturbados,
inseguros. Isabelle nunca conseguiu mentir para ela.
Pierre La Forêt esteve no campo ao meio-dia, exatamente na
hora em que Isabelle foi levar o jantar dos homens. Pierre
contou-lhes quem havia fugido: pouca gente, só quem tinha
bens que pudessem ser saqueados, filhas que pudessem ser
violentadas e ligações com o duque.
Deixou para o fim a notícia mais impressionante.
— Monsieur Mareei foi embora. Partiu para o norte, do outro
lado do monte Lozère — anunciou, com um riso mal
disfarçado.
Fez-se silêncio. Jean pegou sua foice.
— Vai voltar — disse apenas, retornando ao centeio. Pierre
La Forêt viu-o ceifar num movimento ritmado, depois olhou
em volta, temeroso, como se lembrasse que os soldados
poderiam chegar a qualquer momento. Foi logo embora,
chamando o cachorro com um assobio.
O trabalho no campo naquela manhã foi pouco produtivo.
Além da ausência de Bertrand e Susanne, os camponeses
que Jean havia contratado para a colheita não apareceram,
com medo da ligação da fazenda com o duque. Os meninos
não eram capazes de acompanhar o ritmo dos homens, por
isso, de vez em quando, Jean ou Etienne eram obrigados a
largar a foice e pegar no ancinho para ajudar.
— Deixe-me trabalhar com o ancinho — disse Isabelle,
ansiosa para escapar de Hannah e da casa sufocante. — Sua
mãe... Maman pode fazer as compotas sozinha. Jacob e
Marie ajudam. Por favor, deixa. — Raramente ela chamava
Hannah de Maman, só quando precisava agradar.
Para alívio dela, os homens aceitaram a oferta e mandaram
Jacob para casa. Ela e Petit Jean acompanharam o ritmo,
usando o ancinho o mais rápido possível e juntando o
centeio em molhos encostados uns nos outros de pé para
secar. Trabalhavam depressa, o suor umedecia suas roupas.
De vez em quando, Isabelle parava para olhar em volta e
escutar. O céu estava amarelo de neblina, vasto e vazio.
Parecia que o mundo havia parado e estava aguardando
junto com ela.
Foi Jacob quem os ouviu. No final da tarde, ele apareceu
correndo no começo do campo. Todos pararam para olhá-lo,
o coração de Isabelle disparou. Quando chegou aonde
estavam, ele se abaixou com as mãos na cintura, tentando
recuperar o fôlego.
— Écoute, Papa (Ouve, pai) — foi só o que conseguiu falar,
apontando na direção do vale. Eles ouviram. No começo,
Isabelle só ouviu passarinhos e a própria respiração. Depois,
um ruído surdo e prolongado veio do campo.
— Dez. São dez cavalos — anunciou Jacob. Isabelle largou
seu ancinho, segurou na mão de Jacob e todos correram.
Petit Jean foi quem correu mais depressa: tinha apenas nove
anos e, mesmo depois de ter trabalhado o dia inteiro, ainda
conseguiu ultrapassar o pai facilmente. Chegou ao celeiro e
correu para trancar os ferrolhos. Etienne e Jean trouxeram
água do riacho próximo, enquanto Isabelle e Jacob fecharam
as janelas.
Marie ficou no meio da sala, apertando no peito uma bra-
çada de lavanda. Hannah continuou a mexer na lareira,
como se estivesse indiferente ao que acontecia ao redor.
Quando todos ficaram em volta da mesa, a velha senhora
disse apenas:
— Estamos salvos.
Foram as últimas palavras que Isabelle ouviu dela.
Eles custaram a aparecer.
A família ficou sentada em silêncio ao redor da mesa, cada
um em seu lugar de sempre, mas sem comida na frente.
Dentro da casa estava tudo escuro: o fogo, baixo; as velas,
apagadas, a única luz vinha das frestas das janelas. Isabelle
estava empoleirada num banco, Marie bem perto, segurando
sua mão, ainda com a lavanda no colo. Jean empertigou-se à
cabeceira da mesa. Etienne olhava as próprias mãos
entrelaçadas. O rosto dele se contraiu; não fosse isso, estava
tão impassível quanto o pai. Hannah esfregou o rosto e
apertou o nariz com o polegar e o indicador, de olhos
fechados. Petit Jean havia pego a faca e colocado na sua
frente, sobre a mesa. Pegava-a, olhava-a brilhar, testava a
lâmina, deixava de novo na mesa. Jacob permanecia
afundado sozinho no longo banco onde Susanne, Bertrand e
Deborah costumavam sentar, segurando um seixo redondo.
Os outros seixos estavam no bolso. Ele sempre gostara das
pedras coloridas do Tarn, preferindo as bem vermelhas e
amarelas. Guardava-as mesmo depois que secavam e ficavam
em tons de cinza a marrom. Se queria ver as cores originais,
ele as lambia.
Isabelle achou que os vazios no banco estavam ocupados
pelos fantasmas da família dela: a mãe, a irmã, os irmãos.
Balançou a cabeça e fechou os olhos, tentando imaginar
onde estaria Susanne naquela hora, a salvo com a duquesa.
Não conseguiu; então pensou no azul da Virgem, cor que há
anos não via mas podia imaginar naquele instante, como se
as paredes de casa fossem pintadas de azul. Respirou fundo e
seu coração bateu mais devagar. Abriu os olhos. Os lugares
vazios na mesa brilhavam com uma luz azul.
Quando os cavalos chegaram, ouviram-se gritos e assobios,
depois um estrondo na porta que fez todos pularem de
susto.
— Vamos cantar — disse Jean com firmeza, e começou com
uma voz profunda e segura, de baixo: — J'ai mis en toi mon
espérance: Garde-moi donc, Seigneur, D'éternel
déshonneur: Octroye-moi ma délivrance, Par ta grande
bonté haute, Qui jamais ne fit faute. (Em ti está minha
esperança, protegei-me, portanto, Senhor, da desonra
eterna: concedei-me a liberdade por Tua grande bondade,
que jamais me faltou.) — Todos cantaram, exceto Hannah;
ela sempre disse que cantar era uma frivolidade, preferia
dizer as palavras em tom baixo. As crianças cantaram com
vozes esganiçadas; Marie estava soluçando de medo.
Terminaram o salmo ao som das janelas batendo e de um
toque ritmado na porta. Tinham começado a declamar outro
salmo quando a batida cessou. Um instante após, ouviram
um arranhão surdo na base da porta, depois um crepitar e
cheiro de fumaça. Etienne e Jean se levantaram e foram para
a porta. Etienne pegou um balde d'âgua e fez sinal com a
cabeça. Jean, em silêncio, abriu o ferrolho e escancarou a
porta com um estalido. Etienne jogou a água no momento
em que a porta foi aberta com um chute forte e entrou uma
língua de fogo. Duas mãos agarraram Jean pelo pescoço e
pela camisa, e puxaram-no para fora, batendo a porta.
Etienne correu aos tropeções para a porta, escancarou-a de
novo e foi engolido pela fumaça e pelo fogo.
— Papa! — ele gritou e sumiu no quintal.
Dentro da casa, o silêncio era gélido, estranho. Isabelle
então levantou-se calmamente, sentindo a luz azul envolvê-
la e protegê-la. Pegou Marie.
— Segure-se em mim — sussurrou, e Marie pôs os braços em
volta do pescoço da mãe e as pernas em torno da cintura
dela, ficando a lavanda apertada entre as duas. Isabelle
segurou na mão de Jacob e fez sinal para Petit Jean pegar na
outra mão dele. Como em sonho, ela passou com as crianças
pela sala, abriu o ferrolho e entrou no celeiro. Eles passaram
em volta do cavalo que estava de lado e que relinchou por
causa do cheiro de fumaça e por ouvir barulho de outros
animais no quintal. No fundo do celeiro, Isabelle abriu uma
portinhola que dava para a horta. Juntos, caminharam entre
repolhos, tomates, cenouras, cebolas e ervas. A saia de
Isabelle esbarrou na sálvia, que soltou seu cheiro familiar e
penetrante.
Chegaram à pedra do cogumelo, no fim da horta, e pararam.
Jacob tocou na pedra. Depois dela, havia um campo sem
cultivo cuja grama as cabras tinham comido até ficar bem
curta e agora estava seca e escura, após um verão de muito
sol. Os quatro correram, os meninos à frente, Isabelle atrás
com Marie ainda dependurada nela.
No meio do caminho, ela viu que Hannah não tinha ido
com eles. Xingou alto.
Chegaram em segurança até as castanheiras. Na cleda,
Isabelle pôs Marie no chão e falou com Petit Jean.
— Tenho de voltar para buscar Mémé. Vocês sabem se
esconder. Esperem aqui até eu chegar. Mas não se escondam
na cleda, eles podem atear fogo nela. E, se vierem e vocês
precisarem correr, vão para a casa de meu pai pelo campo,
não pela estrada. D'accord? (Entenderam?)
Petit Jean concordou com a cabeça e tirou a faca do bolso,
os olhos azuis brilhando.
Isabelle virou-se e olhou para trás. A fazenda estava em
chamas. Os porcos guinchavam, os cães latiam e outros
cachorros ecoavam os latidos por todo o vale. A aldeia sabe
o que está acontecendo, pensou ela. Será que eles virão
ajudar? Será que vão se esconder? Olhou para os filhos Marie
e Jacob parados, de olhos arregalados, Petit Jean observando
atento o bosque.
— Allez (Podem ir) — disse ela. Sem uma palavra, Petit Jean
levou os dois irmãos para a vegetação rasteira.
Isabelle saiu de entre as árvores e voltou margeando o
campo. De longe, podia ver o campo que eles haviam
cultivado naquele dia: os molhos de centeio que ela, Petit
Jean e Jacob tinham juntado estavam queimando. Ouviu
gritos distantes e uma risada, eriçando-lhe os pêlos de seus
braços. Ao se aproximar mais, sentiu cheiro de carne
queimando, um odor ao mesmo tempo conhecido e
estranho. São os porcos, pensou. Os porcos e... percebeu o
que os soldados tinham feito.
— Saint Vierge, aide-nous (Nossa Senhora, ajudai-nos) —
tomou fôlego e se benzeu.
O fundo da horta estava tão cheio de fumaça que parecia
que a noite havia chegado. Isabelle passou pelos canteiros de
legumes e no meio do caminho encontrou Hannah ajoelha-
da, apertando um repolho no peito, as lágrimas fazendo
ranhuras em seu rosto enegrecido pela fumaça.
— Viens, Mémé (Venha, Mémé) — disse Isabelle,
levantando-a do chão.
A velha senhora não emitia qualquer som ao chorar; deixou
Isabelle levá-la da horta para o campo. Atrás, elas ouviram
os soldados com seus cavalos a galope pela horta, mas a
cortina de fumaça escondia as duas. Ficaram no início do
campo, acompanhando o muro baixo de granito que Jean
havia construído anos antes. A toda hora, Hannah parava e
olhava para trás, e Isabelle mandava-a seguir, com o braço
em torno dela, puxando-a.
O soldado surgiu tão de repente que parecia que Deus o
fizera cair do céu. As duas mulheres esperavam que ele
viesse por trás, mas ele veio do mesmo bosque para onde
elas se dirigiam. Atravessou o campo a todo o galope,
empunhando a espada, e Isabelle viu quando estava mais
perto, com um sorriso no rosto. Ela soltou um gemido e
tropeçou para trás, puxando Hannah.
Quando o cavaleiro se aproximou tanto que ela conseguiu
sentir o cheiro de seu suor, uma massa cinza se levantou do
chão, balançando uma perna traseira. Imediatamente, o
cavalo empacou, relinchando. O soldado perdeu o equilíbrio
e caiu pesadamente no chão. O cavalo rodopiou e correu
desembestado pelo campo rumo ao bosque de castanheiras.
Hannah olhou do lobo para Isabelle e depois para o lobo. O
animal olhava calmo para elas, seuis olhos amarelos e aten-
tos. Sequer olhou o soldado, que ficou imóvel no chão.
— Merci — disse Isabelle, calma, indicando o lobo. —
Merci, Maman.
Hannah arregalou os olhos.
Esperaram até o lobo ir embora, saltar o muro baixo e sumir
no campo ao lado. Hannah então começou a andar. Isabelle
foi atrás, depois parou e olhou em volta — viu o soldado e
estremeceu. Finalmente, virou-se e resolveu se aproximar
dele, com cuidado. Mal o olhou, ele se ajoelhou ao lado da
espada e prestou bastante atenção nela. Hannah aguardava-a,
de braços cruzados, cabeça baixa.
Isabelle se levantou de repente.
— A espada está sem sangue — disse.
Quando as duas chegaram ao bosque, Isabelle chamou baixo
as crianças. Ao longe, ouvia o cavalo desmontado trotando
entre as árvores. Devia ter chegado ao fim da floresta, pois o
som das patas cessou.
As crianças não apareceram.
— Devem estar mais à frente — murmurou Isabelle. — Não
havia sangue na espada. Por favor, faça com que eles estejam
à frente. Eles devem estar à frente — repetiu mais alto para
tranqüilizar Hannah.
Quando não obteve resposta, ela perguntou: — Ó Mémé,
acha que eles estão à frente?
Hannah apenas deu de ombros.
Seguiram andando pelo campo na direção da fazenda do pai
de Isabelle, tentando ouvir algum barulho dos soldados, das
crianças, do cavalo, de qualquer coisa. Nada.
Anoitecia quando chegaram, cansadas, à fazenda. A casa
estava escura e toda fechada, mas, quando Isabelle bateu de
leve à porta e sussurrou, Papa, c'est moi ( Papai, sou eu), elas
entraram. As crianças estavam sentadas no escuro com o
avô. Marie levantou-se e correu para a mãe, encostando o
rosto no corpo dela.
Henri du Moulin cumprimentou Hannah com um gesto
rápido, mas ela desviou o olhar. Henri perguntou a Isabelle:
— Onde eles estão?
Isabelle balançou a cabeça.
— Não sei. Acho que... — Olhou para as crianças e parou.
— Vamos esperar — disse o pai, sério.
— Vamos.
Esperaram horas: as crianças foram adormecendo uma de
cada vez, os adultos ficaram sentados tensos em volta da
mesa, no escuro. Hannah fechou os olhos, mas continuou
ereta, as mãos entrelaçadas sobre a mesa. A cada ruído, ela
abria os olhos e virava a cabeça para a porta.
Isabelle e o pai mantinham-se calados. Ela olhou em volta,
triste. Até no escuro era evidente que a casa estava caindo
aos pedaços. Quando Henri du Moulin soube que os dois
filhos haviam morrido, deixou de cuidar da fazenda: os
campos ficaram largados, os telhados tinham goteiras, os
cabritos andavam soltos, os ratos faziam ninho no trigo. O
lado dentro ficava sujo e úmido até no calor e na secura da
estação da colheita.
Isabelle ouviu os ratos correndo no escuro.
— Você precisa de um gato — disse, baixinho.
— Eu tinha um, mas foi embora. Nada permanece aqui —
disse o pai.
Pouco antes do amanhecer, ouviram um movimento no
quintal, o som abafado de um cavalo. Jacob sentou-se,
rápido.
— É o nosso cavalo — disse.
A princípio, eles não reconheceram Etienne. O vulto em pé
na porta, meio se balançando, não tinha cabelos, exceto
alguns tufos pretos e chamuscados. As bonitas sobrancelhas
e pestanas haviam sumido, fazendo com que os olhos
parecessem flutuar sem rumo no rosto. As roupas tinham
sido queimadas e ele estava coberto de cinzas.
Todos gelaram, menos Petit Jean, que pegou na mão do
homem.
— Venha, Papa — ele disse, e levou Etienne para um banco
à mesa.
Etienne fez um gesto mostrando o lado de fora.
— O cavalo — sussurrou, enquanto sentava. O cavalo ficou
pacientemente no quintal, com os cascos enrolados em
pano para abafar o som. A crina e o rabo estavam
queimados, o resto parecia normal.
Alguns meses depois e a muitos quilômetros daquele lugar,
quando os cabelos de Étienne voltaram a crescer, estavam
grisalhos. As pestanas e sobrancelhas nunca mais voltaram
ao seu rosto.
Etienne e a mãe sentaram-se à mesa de Henri du Moulin
meio tontos, sem conseguir pensar ou fazer nada. Isabelle e
o pai passaram o dia tentando inutilmente falar com eles.
Hannah não dava uma palavra, e Etienne só dizia estar com
sede, ou cansado, e fechava os olhos.
Até que Isabelle os assustou gritando, desesperada:
— Temos de sair daqui logo. Os soldados devem continuar à
nossa procura, alguém acabará dizendo para virem aqui.
Ela conhecia os aldeões, eram gente leal. Mas, com uma boa
oferta ou uma boa ameaça, contavam um segredo até para
um católico.
— Para onde vamos? — perguntou Etienne.
— Vocês vão se esconder no bosque até poderem voltar com
segurança — sugeriu Henri du Moulin.
— Não podemos voltar para lá — disse Isabelle. — A
colheita está perdida, a casa acabou. Sem o duque, não
temos proteção contra os católicos. Vão continuar nos
procurando. E... sem a casa não há mais segurança —
hesitou antes de falar, cuidando para convencê-los com as
palavras deles mesmos.
E não quero voltar para aquele horror, acrescentou ela em
silêncio para si mesma.
Étienne e a mãe se entreolharam.
— Podíamos ir para Alès encontrar Susanne e Bertrand —
continuou Isabelle.
— Não — disse Étienne, firme. — Eles preferiram deixar a
família.
— Mas eles... — Isabelle parou, não queria perder a pouca
influência que tinha por causa de uma discussão. De
repente, teve uma visão de Susanne com a barriga cortada
pelo soldado no campo e concluiu que os fugitivos haviam
tomado a decisão certa.
— A estrada para Alès será perigosa — disse o pai dela. —
Poderá ocorrer lá o que houve aqui.
As crianças escutavam, em silêncio. Então, Marie per-
guntou:
— Maman, onde poderemos ficar seguros? Diga a Deus que
queremos ficar seguros.
Isabelle concordou com a cabeça.
— Poderíamos ir ao encontro de Calvino em Genebra. Lá é
seguro, a Verdade é livre.
Esperaram até a noite, quente e desassossegada. Isabelle
mandou as crianças limparem a casa enquanto ela fazia o
máximo possível de pães na bancada da chaminé. Ela, a irmã
e a mãe tinham usado aquela bancada todos os dias, mas
agora tinha precisado limpar os excrementos de ratos e as
teias de aranha. O forno parecia sem uso, e ela ficou
pensando o que seu pai comia.
Henri du Moulin se recusou a acompanhá-los, apesar de sua
ligação com os Tournier fazer dele um alvo.
— Esta é a minha fazenda, nenhum católico vai me tirar
daqui — disse, áspero.
Insistiu para levarem a carroça, o único bem de valor que
ainda possuía, além do arado. Limpou a carroça, consertou
uma das rodas, colocou uma tábua em cima da caixa para
servir de assento. Quando a noite chegou, puxou a carroça
para o quintal e carregou-a com um machado, três
cobertores e duas sacas de mantimento.
— As sacas têm castanhas e batatas — explicou a Isabelle.
— Batatas?
— Sim, para o cavalo e para vocês.
Hannah ouviu e não gostou. Petit Jean, que tirava o cavalo
do celeiro, riu.
— Gente não come batata, Grandpapa! Só os pobres que
pedem esmolas.
O pai de Isabelle fechou as mãos.
— Você vai ficar contente por ter batatas para comer, mon
petit. Todos os homens são pobres aos olhos de Deus.
Quando ficaram prontos, Isabelle observou bem o pai,
tentando guardar cada traço do rosto dele.
— Tome cuidado, Papa, os soldados podem aparecer — disse,
baixo.
— Lutarei pela Verdade. Não tenho medo. Courage
(Coragem), Isabelle — disse ele, levantando de leve o
queixo.
Ela esticou os cantos da boca num sorriso que segurou as
lágrimas, pôs as mãos nos ombros dele e, na ponta dos pés,
beijou-o três vezes.
— Argh, você beija como os Tournier — resmungou ele.
— Fala baixo, pai. Eu agora sou uma Tournier.
— Mas seu nome continua sendo du Moulin. Não se
esqueça.
— Não esqueço, mas você pode me lembrar — disse ela.
Marie, que jamais chorava, acabou chorando, depois que
deixaram o avô parado na estrada.
O cavalo não agüentava carregar todos. Por isso, Hannah e
Marie foram sentadas na carroça e os outros vieram andando
atrás, com Étienne e Petit Jean conduzindo o animal. Às
vezes, um deles descansava e o cavalo seguia mais devagar.
Tomaram a estrada depois do monte Lozère, com a lua
iluminando o caminho, fazendo com que ficassem visíveis.
Toda vez que ouviam algum ruído estranho, saíam da
estrada. Chegaram ao Col de Finiels pelo alto e esconderam
a carroça enquanto Étienne montou o cavalo e foi procurar
pastores de ovelhas. Eles deviam conhecer o caminho para
se chegar a Genebra.
Isabelle esperou ao lado da carroça enquanto todos dor-
miam. Prestava atenção a cada ruído. Sabia que ali perto
ficava a nascente do Tarn e o rio começava sua longa
descida montanha abaixo. Nunca mais veria o rio, nunca
mais tocaria em suas águas. Em silêncio, chorou pela
primeira vez desde que o mordomo do duque acordou-os
naquela noite.
Foi quando sentiu que alguém a olhava, mas não era o olhar
de um estranho. Era uma sensação conhecida, como da água
do rio escorrendo por sua pele. Olhou em volta e viu o
homem abaixado numa rocha a uma distância menor de
uma pedrada. Ele não se mexeu quando foi visto.
Isabelle enxugou o rosto molhado de lágrimas e caminhou
até o pastor. Continuaram se olhando. Isabelle tocou a cica-
triz no rosto dele.
— O que foi isso?
— Foi a vida.
— Como você se chama?
— Paul.
— Estamos indo embora. Para a Suíça.
Ele concordou com a cabeça, seus olhos negros a acal-
maram.
— Lembre-se de mim.
Ele concordou, de novo.
— Vamos, Isabelle. O que está fazendo aí? — perguntou
Etienne atrás dela.
— Isabelle — repetiu Paul, suavemente. Sorriu e seus dentes
brilharam à luz da lua. Depois, ele se afastou.
— A casa. O celeiro. Nossa cama. A leitoa e seus quatro
leitõezinhos. O balde no poço. O xale marrom de Mémé. A
boneca que Bertrand fez para mim. A Bíblia.
Marie estava lembrando alto tudo que haviam perdido. No
começo, Isabelle não conseguiu entender o que ela dizia,
por causa do barulho das rodas da carroça. Depois,
entendeu.
— Pára com isso! — gritou.
Marie parou. Ou, pelo menos, parou de lembrar alto, pois
Isabelle viu os lábios dela se mexendo.
Ela nunca falava em Jean, o avô.
Isabelle sentiu um aperto ao pensar na Bíblia.
— Será que ainda está lá? — perguntou a Etienne, baixo.
Haviam chegado ao rio Lot, no sopé do outro lado do monte
Lozère; e Isabelle ajudava Étienne a guiar o cavalo para
atravessar o rio.
— A Bíblia deve estar escondida naquele nicho na chaminé,
ficou protegida do incêndio. Eles jamais iriam encontrá-la -
disse ela.
Étienne olhou para ela, aborrecido.
— Não sobrou nada e Papa morreu. A Bíblia agora não
adianta de nada. Ela não tem mais serventia para nós —
disse ele.
Mas as palavras da Bíblia valem tudo, pensou ela. Não é por
isso que estamos indo embora, por causa dessas mesmas
palavras?
Às vezes, quando Isabelle descansava na carroça e observava
o caminho que tinham percorrido, achava que via o pai
vindo atrás deles na estrada. Apertava bem os olhos um
instante e, quando os abria, ele havia sumido. De vez em
quando, uma pessoa de verdade ficava no lugar dele: uma
mulher parada na beira da estrada, homens usando a foice
ou o ancinho ou cavando nos campos, um homem montado
num jumento. Ficavam parados, vendo-os passar na carroça.
Outras vezes, meninos da idade de Jacob atiravam pedra
neles e Etienne tinha de impedir que Petit Jean revidasse.
Marie ficava no fundo da carroça olhando aqueles meninos
estranhos. Nunca levou uma pedrada. Uma vez, Hannah foi
atingida: só quando Étienne se virou para falar com ela,
muito depois de os meninos terem sumido, é que ele viu o
sangue escorrendo da cabeça pelo rosto. Ela continuou a
olhar para a frente enquanto Isabelle se inclinou para
esfregar de leve o sangue com um pano úmido.
Marie começou a listar tudo que via na estrada.
— Um celeiro. Um corvo. Um arado. Um cachorro. Um
campanário de igreja. Um molho de feno queimando. Uma
cerca. Uma tora. Um machado. Uma árvore. Um homem na
árvore.
Isabelle olhou quando Marie parou de falar.
O homem estava enforcado no galho de uma pequena oli-
veira que mal agüentava o peso dele. Eles pararam a carroça
e olharam o corpo nu, com um chapéu preto caído sobre a
testa. O pênis dele estava duro como um galho. Isabelle
então viu as mãos vermelhas, olhou mais de perto e conteve
a respiração.
— É Monsieur Marcel! — gritou, antes de pensar em ficar
quieta.
Etienne estalou a língua para apressar o cavalo, correu ao
lado da carroça e dali a pouco haviam deixado a cena longe;
os meninos olharam para trás várias vezes até o corpo sumir
de vista.
Marie ficou calada por algumas horas. Quando voltou a
enumerar o que via, evitou falar qualquer coisa feita pelas
mãos do homem. Chegaram a uma aldeia e ela apenas repe-
tiu: — Um chão. Um chão — até terminarem de passar.
Quando pararam num riacho para o cavalo beber água,
apareceu um velho na outra margem.
— Não fiquem aqui — disse ele, de repente. — Não parem
até chegar a Viena. Aqui é muito ruim. E não cheguem
perto de Saint Étienne nem de Lyon. — O velho sumiu no
bosque.
Naquele noite, eles não pararam. O cavalo caminhava lenta
e penosamente, exausto, enquanto Hannah e as crianças
dormiam na carroça e Etienne e Isabelle conduziam o
animal, um de cada vez. De dia, eles se esconderam numa
floresta de pinheiros. Quando escureceu, Étienne puxou o
cavalo de volta para a estrada. Um instante após, alguns
homens apareceram, saídos do meio das árvores dos dois
lados da estrada e cercaram-nos.
Étienne parou o cavalo. Um dos homens acendeu uma
tocha, Isabelle então viu os machados e forcados que
tinham. Étienne entregou a corda do cavalo a Isabelle,
procurou na carroça e pegou o machado. Cravou o machado
no chão com cuidado e segurou no cabo.
Ficaram todos parados. Só os lábios de Hannah se moviam
numa prece silenciosa.
Os homens não sabiam por onde começar. Isabelle olhou
para o homem com a tocha e viu o pomo de adão dele subir
e descer. Depois, sentiu algo na orelha: Marie tinha passado
para o lado da carroça e estava segredando alguma coisa para
a mãe.
— O que foi? — murmurou Isabelle, sem parar de olhar para
o homem e tentando não mexer os lábios.
— Aquele homem eom a tocha. Fale com ele de Deus. Fale o
que Deus quer que ele faça.
— O que Deus quer que ele faça?
— Que ele seja bom e não peque — ela respondeu, firme. —
Diga também para ele que nós não vamos ficar aqui.
Isabelle umedeceu os lábios. Estava com a boca seca.
— Monsieur — disse ela para o homem da tocha. Etienne e
Hannah viraram a cabeça ao ouvir a voz de Isabelle.
— Monsieur, estamos indo para Genebra. Não vamos ficar
aqui. Por favor, deixem-nos passar.
Os homens bateram com os pés no chão. Alguns riram. O
homem da tocha parou, desconfiado:
— Por que vamos deixar que passem? — perguntou.
— Porque Deus não quer que pequem. Porque matar é
pecado.
Ela estava tremendo e não conseguiu dizer mais nada. O
homem da tocha deu um passo adiante, e Isabelle viu o
facão de caça no cinto dele.
A voz estridente de Marie então ecoou pelo bosque:
— Notre Père qui es aux deux, ton nom soit sanctifié. (Pai
nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome.)
Os homens pararam.
— Ton règne vienne, ta volonté soit faite sur la terre comme
au ciel. (Venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa
vontade assim na terra como no céu.)
Uma pausa e duas vozes continuaram:
— Donne-nous aujourd'hui notre pain quotidien. (Dai-nos
hoje o pão nosso de cada dia.) —A voz de Jacob parecia o
som de seixos sendo pisados. — Pardonne-nous nos péchés,
comme aussi nous pardonnons ceux qui nous ont offencés.
(Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a
quem nos tem ofendido.)
Isabelle respirou fundo e juntou sua voz à deles.
—Et ne nous induis point dans la tentation, mais délivre-
nous du malin; car à toi appartient le règne, la puissance, et
la gloire à jamais. Amen. (E não nos deixeis cair em
tentação, mas livrai-nos do mal, pois teu é o reino, o poder,
e a glória para sempre. Amém.)
O homem da tocha ficou entre eles e seu bando. Olhou bem
para Marie, e o silêncio tornou-se maior do que nunca.
— Se nos machucar, Deus vai machucá-lo. Vai machucá-lo
bastante — ela disse.
— E o que ele vai fazer conosco, ma petite (minha pequena)?
— o homem perguntou, divertido.
— Quieta, Marie — Isabelle cochichou.
— Vai jogar vocês no fogo! E vocês não vão morrer na hora.
Vão ficar lá e suas entranhas vão começar a purgar e a
ferver. Os olhos vão crescer, crescer até estourar! Explodir!
Aquilo não fora ensinado por Monsieur Marcel. Isabelle
sabia de onde vinham os detalhes: certa vez, Petit Jean
jogou um sapo na fogueira e as crianças ficaram em volta
assistindo à morte do bicho.
O homem fez algo que Isabelle jamais imaginou que faria
num lugar como aquele: riu.
— Você é muito corajosa, ma pauvre (menina), mas um
pouco ingênua. Gostaria que fosse minha filha — disse ele a
Marie.
Isabelle segurou a mão de Marie e o homem riu outra vez.
— Mas para que eu iria querer uma filha? Para que serve? —
Riu de novo.
Fez um gesto com a cabeça para os outros e apagou a tocha.
Sumiram no bosque.
Eles esperaram bastante tempo e ninguém voltou.
Finalmente, Etienne estalou a língua e o cavalou andou,
mais lento do que antes.
De manhã, Isabelle encontrou o primeiro fio de cabelo
ruivo na cabeça de Marie. Arrancou-o e queimou-o.
4
A PROCURA
Corri para o escritório de Rick com um cartão-postal do
quadro de Tournier. Rick estava na mesa de desenho,
sentado num banco alto, e a luz de uma luminária destacava
as maçãs de seu rosto e a linha reta de sua mandíbula.
Embora estivesse olhando o desenho em frente, era
evidente que sua cabeça estava longe do papel. Costumava
ficar horas vendo em detalhes o que havia acabado de dese-
nhar: partes de um prédio, sistema elétrico, sistema hidráuli-
co, janelas, ventilação. Ele imaginava o todo em sua cabeça e
andava no meio das coisas, sentava, sentia-se morando lá,
procurava falhas.
Eu o olhei, depois enfiei o cartão-postal na bolsa e sentei-
me; minha animação diminuiu. De repente, não queria
compartilhar minha descoberta com ele.
Mas tinha de contar a ele, disse a mim mesma. Vou contar a
ele.
Rick tirou os olhos da mesa e sorriu: — Olá — disse.
— Olá, tudo bem? Está fazendo um projeto de som?
— Sim. E tenho boas notícias — disse, mostrando um fax. —
Uma empresa alemã quer que eu a procure daqui a uma ou
duas semanas. Se der certo, teremos um contrato ótimo.
Este escritório vai ter trabalho para anos.
— É mesmo? Você é uma estrela! — Sorri e deixei-o falar
alguns minutos. Quando terminou, contei:
— Sabe, Rick, encontrei algo num museu aqui perto, olhe.
— Tirei o cartão e entreguei para ele. Olhou sob a luz.
— Foi esse o azul de que você me falou, não?
— Sim. — Fiquei por trás dele e abracei-o. Ele enrijeceu o
corpo um instante e olhei se alguma psoríase estava tocando
nele.
— Adivinha quem pintou o quadro? — Encostei o queixo no
ombro dele.
Ele quis olhar no verso do cartão, não deixei. —Adivinhe.
Rick riu. — Ora, meu bem, você sabe que não entendo nada
de pintura. Deve ter sido um daqueles pintores italianos da
Renascença — disse, prestando atenção no quadro.
— Não. É um pintor francês.
— Ah, então foi um dos seus antepassados.
— Rick! Você viu o nome! — Belisquei o braço dele.
— Não vi! Eu estava brincando. É mesmo um parente seu?
— perguntou, virando o cartão do outro lado.
— Sim. Algo me diz que é.
— Que ótimo!
— Ótimo mesmo, não? — Sorri para ele. Rick escorregou o
braço para a minha cintura e me beijou enquanto tentava
abrir o zíper do meu vestido. Abriu até a cintura, quando
percebi que estava decidido. — Espera um instante, espera
até chegarmos em casa!
Ele riu e pegou um grampeador na mesa de desenho.
— Não gosta do meu grampeador? E o que acha da minha
régua? — Virou a luz da luminária para o teto. — Essa luz de
clima não a inspira?
Dei um beijo nele e fechei o zíper do vestido. — Não é isso.
Acho que... talvez agora não seja hora de falar, mas não sei
se quero um filho. Talvez a gente devesse esperar mais um
pouco.
Ele pareceu surpreso. — Mas nós já resolvemos. — Rick
gostava de cumprir o que decidia.
— É, mas é mais traumático do que eu imaginava.
— Traumático?
— Talvez a palavra seja forte demais. — Espera aí, Ella,
pensei, tem sido traumático mesmo. Por que esconder isso
dele?
Rick esperava que eu falasse mais alguma coisa. Como não
falei, ele suspirou. — Está certo, Ella, se você pensa assim.
— Começou ajuntar as canetas de desenho. — Só quero que
você tenha um filho se estiver segura.
No carro, voltamos para casa alegres, os dois animados por
motivos diversos, os dois acalmados pela minha indecisão.
Assim que passamos na praça de Lisle, Rick parou o carro.
— Espera um instante — disse ele. Saltou e sumiu na
esquina. Voltou um minuto depois e jogou algo no meu
colo.
Eu ri. — Não me diga que você comprou — falei.
— Comprei. — Ele sorriu, malicioso. Nós sempre ríamos da
desolada máquina de vender camisinhas que ficava numa
das principais ruas da cidade e pensávamos que tipo de
emergência faria alguém usá-la.
Naquela noite, transamos e dormimos profundamente.
No dia em que Jean-Paul voltou de Paris, eu estava tão
distraída na aula de francês que Madame Sentier mexeu
comigo.
— Voas êtes dans la lune (Você está com a cabeça na lua) —
disse ela. E respondi:
— A luz está acesa, mas não tem ninguém em casa. — Foi
preciso explicar o que eu queria dizer, mas, quando ela
entendeu, riu e comentou o meu drôle (engraçado) humor
norte-americano.
— Nunca sei o que você vai dizer, mas pelo menos o seu
sotaque está melhorando.
Finalmente, ela deu a aula por terminada, depois de passar
mais dever de casa para compensar a lição perdida.
Corri para pegar o trem para Lisle. Quando cheguei à praça e
olhei para o hotel de ville (câmara municipal), fiquei de
repente sem saber se queria mesmo vê-lo. Era como quando
se vai dar uma festa e, uma hora antes de os convidados
chegarem, dá vontade de cair fora. Mas atravessei a praça,
entrei no prédio da biblioteca, subi as escadas e abri a porta.
Várias pessoas aguardavam para ser atendidas pelos dois
bibliotecários. Os dois levantaram os olhos e Jean-Paul me
cumprimentou, educado, com um movimento de cabeça.
Sentei-me a uma mesa, desconcertada. Não esperava ter de
falar com ele com tanta gente em volta. Comecei a fazer a
lição de Madame Sentier, desanimada.
Quinze minutos depois, a biblioteca esvaziou um pouco e
Jean-Paul apareceu.
— Posso ajudar, Madame? — perguntou, apoiando a mão na
mesa. Nunca estive tão próxima dele e, quando olhei, senti o
cheiro de sol em sua pele dele e vi o rosto que parecia
pontilhado de preto com aquela barba por fazer. Pensei, ah,
não. Não foi isso. Não foi para isso que vim aqui. Senti um
súbito pânico aumentar em mim.
Sacudi a cabeça e falei, baixo: — Olha, Jean-Paul, tenho... —
Ele fez um leve movimento de cabeça e me corrigi. — Sim,
Monsieur. Tenho uma coisa para lhe mostrar. — E entreguei
o cartão-postal. Ele olhou, virou e concordou. — Ah, o
Musée des Augustins. Viu a escultura romanesca, não é?
— Não, não, olhe o nome! O nome do pintor!
Ele leu, baixo: — Nicolas Tournier, 1590 a 1639. — Olhou
para mim e sorriu.
— Repare no azul — sussurrei, mostrando o cartão. — E
aquele azul. Sabe o sonho que falei? Mesmo antes de ver
esse cartão, sabia que estava sonhando com um vestido. Um
vestido azul. Esse azul.
— Ah, o azul da Renascença. Sabe, existe lápis-lazúli nesse
tom. Mas naquela época era tão caro que os pintores só
usavam em detalhes importantes, como o manto da Virgem.
Ele tinha sempre alguma coisa para ensinar.
— Não está percebendo? Esse pintor é meu antepassado!
Jean-Paul olhou em volta da sala, mudou de posição e
tornou a olhar o cartão.
— Por que você acha que é?
— Claro que por causa do nome e das datas, mas
principalmente por causa do azul. Combina exatamente com
o sonho. Não só a cor, mas o clima do quadro. O olhar dela.
— Você nunca tinha visto esse quadro antes de sonhar?
— Não.
— Mas nesse período sua família estava na Suíça. Esse
Tournier é francês, não?
— É, mas nasceu em Montbéliard. Conferi onde fica essa
cidade, e adivinha onde é? A 50 quilômetros de Moutier!
Perto da fronteira com a França. Os pais dele podiam muito
bem ter-se mudado de uma cidade para outra.
— O museu não tinha informação sobre a família dele?
— Não, senão que nasceu em Montbéliard em 1590, passou
algum tempo em Roma, depois foi para Toulouse e morreu
em 1639. É só o que sabem.
Jean-Paul bateu o cartão nas juntas dos dedos.
— Se sabem a data de nascimento, devem saber o nome dos
pais. Os registros de nascimento e batismo sempre têm o
nome dos pais.
Segurei-me na mesa. A reação de Rick fora tão diferente.
— Vou me informar para você. — Ele se endireitou e me
entregou o cartão.
— Não, não quero que faça isso — falei, alto. Várias pessoas
olharam e o outro bibliotecário franziu o cenho para nós.
Jean-Paul levantou as sobrancelhas.
— Monsieur, eu pesquiso, eu descubro.
— Certo. Muito bem, Madame. — Ele se inclinou de leve e
se foi, deixando-me confusa e murcha. — Dane-se ele —
resmunguei, olhando bem para a Virgem.
O ceticismo de Jean-Paul me influenciou mais do que
admiti. Quando descobri o nome do pintor, não pensei em
saber mais nada sobre ele. Sabia quem ele era, e minha
intuição constituía a prova de que eu precisava. Nomes,
datas e lugares não alteravam a minha certeza. Ou, pelo
menos, era o que eu pensava.
Bastou um comentário para suscitar a dúvida. Passei dois dias
tentando ignorar o que ele dissera, mas, quando fui a
Toulouse, levei o cartão e, após a aula de francês, fui à
biblioteca da universidade. Já tinha estado lá consultando
livros de Medicina, porém nunca estivera na seção de arte.
Havia muitos alunos estudando para as provas, escrevendo,
falando nas escadas, animados.
Descobrir alguma coisa sobre Nicolas Tournier foi mais
demorado do que eu esperava. Ele fez parte de um grupo de
pintores franceses chamados caravaggescos, que estudaram
em Roma no início do século XVII e copiaram o estilo de
Caravaggio, cujo trabalho tinha uma forte diferença entre
luz e sombra. Esses pintores não costumavam assinar seus
quadros e os estudiosos discutiam muito quem havia feito o
quê. Citavam Tournier de vez em quando, superficialmente.
Não era famoso, apesar de ter dois quadros no Louvre. A
pouca informação que consegui era diferente do que havia
lido no museu: a primeira dava-o como Robert Tournier,
nascido em Toulouse em 1604, morto por volta de 1670. Só
tive certeza de que se tratava do mesmo pintor porque
reconheci os quadros. Outras fontes davam datas diferentes
e corrigiam o nome para Nicolas.
Acabei escolhendo três livros que eram as fontes mais
atualizadas. Mas, quando fui procurá-los nas prateleiras, não
estavam lá. Falei com um estudante nervoso no balcão de
informações, devia estar com provas para estudar, mas ele
verificou no computador e confirmou que estavam
emprestados.
— A biblioteca está muito cheia agora, como a senhora pode
ver. Talvez alguém esteja usando numa pesquisa —
explicou.
— É possível dizer com quem estão?
Ele olhou na tela. — Foram pedidos por outra biblioteca.
— Em Lisle-sur-Tarn?
— Sim — confirmou ele, surpreso e mais surpreso ainda
quando resmunguei:
— Danado! Não estou me referindo a você — consertei,
acrescentando: — Muito obrigada pela informação.
Eu devia saber que Jean-Paul não iria ficar parado, esperando
que eu descobrisse. Ele era muito invasivo para ficar de fora,
muito decidido em comprovar as próprias teses. A questão
era se eu iria atrás dele descobrir mais.
Acabei não precisando decidir. Em Lisle, na rua da estação
ferroviária, encontrei Jean-Paul indo a pé do trabalho para
casa. Ele me cumprimentou com um — Bonsoir (Boa-noite)
— e, sem pensar, falei: —Você está com os livros que passei
a tarde inteira procurando. Por que fez isso? Pedi para não
procurar para mim e, mesmo assim, você o fez!
Ele parecia quase aborrecido. — Quem disse que estou
pesquisando para você, Ella Tournier? Fiquei curioso sobre o
pintor, então procurei. Se quer os livros, pode vê-los
amanhã na biblioteca.
Encostei num muro e cruzei os braços. — Está bem, está
bem. Você venceu. Conte o que descobriu, anda logo.
— Tem certeza de que não quer ver os livros?
— Basta você me contar.
Ele acendeu um cigarro, tragou e soprou a fumaça nos pés.
— Está certo. Talvez você descubra hoje que há um longo
período sem muita informação sobre Nicolas Tournier. Mas
em 1951 foi encontrada a certidão de batismo de julho de
1590 numa igreja protestante de Montbéliard. Ele era filho
de André Tournier, um pintor de Besançon, cidade não
muito longe de Montbéliard. O avô se chamava Claude
Tournier. O pai, André Tournier, foi para Montbéliard em
1572 devido a problemas religiosos, talvez por causa do
Massacre de São Bartolomeu. O seu pintor, Nicolas, era um
de seus filhos. Ele é mencionado em Roma entre 1619 e
1626. Depois, há menção dele em Carcassonne, em 1627, e
em Toulouse, em 1632.
Por muito tempo, pensou-se que ele havia morrido no final
do século XVII, depois do ano de 1657. Mas em 1974 seu
testamento foi descoberto, com data de 30 de dezembro de
1638. Deve ter morrido pouco tempo depois.
Fiquei olhando para o chão, calada por tanto tempo que
Jean-Paul se inquietou e jogou o cigarro na rua.
Finalmente, falei:
— Escuta, nessa época batizava-se a criança logo depois do
nascimento?
— Geralmente, sim. Mas nem sempre.
— Então, o batizado podia ser adiado por algum motivo, não?
A data do batismo não indica necessariamente a data do
nascimento. Nicolas Tournier podia estar com um mês, dois
ou até dez anos quando foi batizado, pelo que sabemos.
Podia ser até adulto!
— Pouco provável.
— E, mas é possível Estou dizendo que a informação não
garante nada. E o testamento tem a data que você disse, mas
não significa que sabemos quando ele morreu. Não sabemos,
não é? Talvez tenha morrido dez anos depois de fazer o
testamento.
— Ella, o pintor ficou doente, fez o testamento e morreu.
Costumava ser assim.
— Sim, mas não temos certeza. Não sabemos exatamente
quando nasceu ou morreu. Esses registros não provam nada.
Todos os detalhes fundamentais sobre ele continuam
questionáveis. — Parei para diminuir a histeria cada vez
maior da minha voz.
Ele também se encostou no muro e cruzou os braços.
— Você não quer ouvir que o pai desse pintor foi André
Tournier e não um de seus antepassados. Nenhum Etienne
ou Jean. Não era de Cévennes nem de Moutier. Não é seu
parente.
— Veja por outro ângulo — continuei, mais calma. — Até
pouco tempo atrás, na década de 1950, não sabiam nada
sobre ele. Todas as informações estavam erradas, menos o
sobrenome e a cidade onde morreu. O resto estava errado: o
nome dele, a data de nascimento e de morte, o local de
nascimento, a autoria de alguns quadros, que no fim eram de
outros pintores. E toda essa informação errada foi publicada,
eu vi na biblioteca. Se eu não descobrisse fontes mais
recentes, estaria com todas as informações erradas. Estaria
até chamando-o pelo nome errado! Ainda hoje, os
historiadores de Arte discutem quais são os quadros dele. Se
não conseguem saber esse dado tão importante, se tudo se
baseia em especulação, se data de batismo é a mesma de
nascimento e data de testamento é igual à de morte... bom,
são provas inconsistentes. Nada é concreto, então por que
vou acreditar nisso? O concreto para mim é que o
sobrenome dele é igual ao meu, que ele trabalhou a apenas
50 quilômetros de onde moro e que pintou o mesmo azul
que aparece sempre no meu sonho. Isso é concreto.
— Não, isso é coincidência. Você está sendo atraída pela
coincidência.
— E você, pela especulação.
— O fato de você morar perto de Toulouse e de ele ter
morado lá não significa que sejam parentes. E o sobrenome
Tournier é mais ou menos comum. Você sonhar com o azul
que ele pintou, bom, é um azul fácil de lembrar num sonho
porque é bem vívido. E mais difícil lembrar um azul-escuro,
não?
— Escuta, por que você quer tanto provar que ele não é meu
parente?
— Porque você está baseando tudo na coincidência e em sua
intuição, e não numa prova concreta. Está impressionada
com um quadro, com um determinado tom de azul; por isso
e porque o nome do pintor é igual ao seu, resolve que é seu
antepassado? Não. Eu não devia estar convencendo você de
que Nicolas Tournier não é seu parente, você é que devia
me convencer de que ele é.
Tenho de parar com isso, pensei. Daqui a pouco fico sem
esperança alguma.
Talvez meu rosto tenha refletido o que pensei, porque Jean-
Paul falou num tom mais gentil. —Acho que talvez esse
Nicolas Tournier não a ajude. Talvez ele seja uma pista falsa.
— Uma pista falsa? Talvez você tenha razão. — Fiz uma
pausa. — Mas ele invadiu a minha vida. Antes de Nicolas
aparecer, nem lembro o que eu iria fazer com essa história
de antepassados.
— Iria procurar parentes dos quais não tinha notícias há
muito tempo na região de Cévennes.
— Ainda posso fazer isso. — A expressão dele me fez rir. —
Sim, vou procurar. Sabe, toda a sua argumentação só me dá
vontade de provar que está errado. Quero encontrar prova...
sim, prova concreta com a qual até você vá concordar...
sobre os meus "parentes dos quais não tenho notícias". Só
para mostrar que a intuição nem sempre está errada.
Ficamos calados. Passei o peso do corpo de um pé para o
outro; Jean-Paul apertou os olhos sob o pôr-do-sol. Tomei
consciência de ele estar ali comigo naquela ruazinha da
França. Estamos separados por apenas cinco centímetros,
pensei, eu podia...
— E o sonho? Continua tendo? — ele perguntou.
— Ah, não. Acho que sumiu.
— Então, quer que eu ligue para o arquivo de Mende e avise
que você vai lá?
— Não! — Meu grito fez os pedestres virarem a cabeça para
mim. — E exatamente o que não quero que faça! — falei,
baixo. — Fique de fora, a menos que eu peça ajuda, certo?
Se
precisar, aviso.
Jean-Paul levantou as mãos como se houvesse uma arma
apontada para ele. — Ótimo, Ella Tournier. Traçamos uma
linha de separação e eu fico do meu lado, certo? — Ele deu
um passo atrás nessa linha imaginária e a distância entre nós
aumentou.
Na noite seguinte, quando estávamos jantando no pátio de
casa, contei para Rick que queria ir a Cévennes procurar
registros de família.
— Lembra que escrevi para Jacob Tournier, na Suíça? Ele
respondeu e disse que nossa família é originária da região de
Cévennes. Talvez. — Achei graça de mim mesma: estava
aprendendo a colocar cautela no que dizia. — Quero dar
uma olhada nos registros — acrescentei.
— Pensei que você já havia descoberto sobre a sua família,
com o pintor e tudo.
— Bom, isso não está confirmado. Ainda não — acrescentei
logo. — Talvez eu encontre alguma coisa lá que confirme
isso.
Para a minha surpresa, ele franziu o cenho. — Isso deve ser
alguma coisa que Jean-Pierre inventou.
—Jean-Paul. Não, não é. Pelo contrário. Ele acha que não
vou encontrar nada.
— Quer que eu vá junto?
— Preciso ir durante a semana, quando os arquivos estão
abertos.
— Eu podia tirar dois dias de folga e ir com você.
— Pensei em ir na próxima semana.
— Não posso. O escritório está uma loucura com o contrato
da empresa alemã. Talvez mais no meio do verão, quando
estiver mais calmo. Em agosto.
— Não posso esperar até agosto!
— Ella, por que tanto interesse nos seus antepassados? Nunca
se interessou por eles.
— Nunca morei na França antes.
— E, mas parece estar investindo um bocado no assunto. O
que espera encontrar?
Eu queria dizer alguma coisa sobre ser aceita pelos franceses,
sobre sentir que fazia parte do país. Em vez disso, falei:
— Quero acabar com o pesadelo azul.
— Acha que saber sobre a sua família vai livrar você de um
pesadelo?
— Acho. — Inclinei-me para trás e olhei os vinhedos.
Pequenos cachos de uvas estavam começando a aparecer.
Sabia que não fazia sentido, que não havia ligação alguma
entre o sonho e meus antepassados. Mas minha cabeça fez a
ligação e minha teimosia me fez continuar.
—Jean-Pierre vai com você?
— Não! Escuta, por que você está tão negativo? O assunto
não é com você. E algo que diz respeito a mim. E a primeira
coisa que realmente quis fazer desde que chegamos aqui. O
mínimo que você podia fazer seria me apoiar.
— Pensei que o que você realmente queria era ter um filho.
E apoiei a idéia.
— É, mas... — Não devia só dar apoio para uma idéia dessas,
pensei. Devia se interessar também.
Depois, pensei várias coisas que censurei.
Rick me olhou fixamente, cenho franzido, mas se esforçou
para relaxar. — Tem razão. Vá, meu bem. Se isso vai deixar
você feliz, é o que deve fazer.
— Ah, Rick, não... — Parei. Não tinha sentido criticá-lo. Ele
estava tentando me apoiar sem entender o motivo do meu
interesse. Pelo menos, estava tentando.
— Olha, fico lá uns dias e pronto. Se encontrar alguma coisa,
ótimo. Caso contrário, não tem importância. Certo?
— Ella, se não encontrar nada, vou levar você ao melhor
restaurante de Toulouse.
—Ah, obrigada. Isso faz com que eu me sinta bem melhor.
Ironia é a forma mais barata de humor, segundo a minha
mãe. Minha observação ficou ainda mais barata com o olhar
ofendido que ele fez.
Na manhã em que viajei, o dia estava claro e brilhante;
houve um temporal durante a noite, tirando a tensão no ar.
Dei um beijo de despedida em Rick quando ele desceu na
estação de trem, depois entrei no carro e dirigi na direção
contrária. Que alívio ir a Mende. Comemorei ouvindo som
bem alto, abrindo as janelas e o teto solar para deixar o
vento bater em mim.
A estrada seguia o rio Tarn até Albi, cidade com uma cate-
dral cheia de turistas de junho, depois seguia para o norte,
longe do rio. Eu encontraria o Tarn de novo em Cévennes,
subindo para a sua nascente. Depois de passar por Albi, a
paisagem começou a mudar, o horizonte se ampliou à
medida que subi e se estreitou à medida que as colinas me
rodearam e o céu passou de azul a cinza. Nas duas margens
da estrada, as papoulas e as rendas-da-rainha-Ana tinham a
companhia de outras flores, nabos selvagens cor-de-rosa,
margaridas e principalmente giestas, com seu cheiro forte e
envolvente. As folhas das árvores ficaram mais escuras. Os
campos não eram mais cultivados, mas transformados em
pasto, com o capim servindo de alimento para cabras e vacas
marrons. Os rios eram menores, mais rápidos e mais
barulhentos. De repente, as casas mudaram de estilo: de
calcário claro passaram a granito marrom-acinzentado com
telhados mais em ponta, e telhas de pedra lisa, em vez de
serem de barro curvo. Tudo ficou menor, mais escuro e
mais sério.
Fechei as janelas e o teto solar, desliguei o som. Meu ânimo
parecia estar conectado à paisagem. Não gostei de ver aquela
terra linda e triste. Lembrava o azul do sonho.
Mende coroou tanto a paisagem quanto o meu ânimo. Suas
ruas estreitas tinham em redor uma rua agitada que fazia a
cidade parecer emoldurada. No centro, espraiava-se uma
catedral, com duas espirais diferentes, o que dava uma forma
estranha, improvável. Dentro, a catedral era sombria e triste.
Saí de lá e fiquei na escada, olhando as construções de pedra
cinza em volta. Isso é Cévennes?, pensei. Depois, sorri para
mim mesma: claro que eu achava que a terra de origem dos
Tournier tinha de ser linda.
Eu havia percorrido uma boa distância de carro a partir de
Lisle; e até as estradas maiores tinham curvas e subidas,
exigindo mais atenção do que as vias expressas e retas dos
Estados Unidos. Estava cansada e meio desanimada. Entrar
num quarto apertado de hotel e jantar sozinha numa
pizzaria onde os outros fregueses eram casais ou homens
velhos só me fizeram piorar. Pensei em ligar para Rick, mas
sabia que, em vez de me animar, isso iria me fazer piorar
mais, lembrando-me do vazio que vinha aumentando entre
nós.
Os arquivos da região ficavam num prédio bem novo, de
pedra rosa e branca e metal pintado de azul, verde e
vermelho. A sala de pesquisa era grande e arejada, com
quase todas as mesas cheias de gente examinando
documentos. As pessoas pareciam saber exatamente o que
estavam fazendo. Tive a mesma sensação à qual estava
habituada em Lisle: como estrangeira que era, devia ficar na
ponta da mesa, de onde poderia olhar e admirar os nativos
do local, mas sem jamais me juntar a eles.
Uma mulher alta que estava no balcão principal me olhou e
sorriu. Devia ter a minha idade, de cabelos louros e curtos,
óculos amarelos. Pensei, ah, graças a Deus, não é outra
Madame. Fui até ela e coloquei minha bolsa no balcão.
— Não sei o que estou fazendo aqui, pode me ajudar, por
favor? — perguntei.
O riso dela era inesperadamente alto para um lugar tão
quieto.
— Alors (Bem), o que procura? — perguntou ela, ainda
rindo, os olhos azuis aumentados pelas lentes grossas dos
óculos. Nunca tinha visto alguém usar lentes grossas com
tanto estilo.
— Tenho um antepassado chamado Etienne Tournier que
deve ter morado em Cévennes no século XVI. Quero saber
mais sobre ele.
— Sabe quando ele nasceu ou morreu?
— Não. Sei que a família mudou para a Suíça, mas não sei
quando exatamente. Deve ter sido antes de 1576.
— Não tem as datas de nascimento ou morte? Filhos? Ou até
netos?
— Bom, ele teve um filho, Jean, que, por sua vez, teve um
filho em 1590.
Ela concordou com a cabeça. —Então o filho Jean nasceu
entre, digamos, 1550 e 1575, e o pai Etienne nasceu vinte
ou quarenta anos antes, digamos, a partir de 1510. Então,
você procura de 1510 a 1575, mais ou menos, não?
Ela falava francês tão rápido que não consegui responder
logo: estava perdida no meio das contas. — Acho que sim
— respondi, enfim, pensando se devia falar nos pintores
Tournier também, Nicolas, André e Claude.
Ela não me deu chance. — Você quer olhar certidões de
batismo, casamento e óbito — concluiu ela. — E talvez
compoix também, que são registros de impostos. De que
província eram eles?
— Não sei.
— Ah, isso é um problema. A região de Cévennes é grande,
sabe. Claro que não existem muitos registros dessa época.
Nesse tempo, os documentos eram guardados pela igreja,
porém muitos foram queimados em incêndios ou perdidos
durante guerras religiosas. Então, pode ser que você não
tenha muito o que olhar. Se soubesse o nome da província,
eu poderia dizer na hora o que temos, mas não se preocupe,
vamos ver o que podemos encontrar.
A bibliotecária percorreu uma lista de documentos de
Mende e de outros arquivos do département. Tinha razão:
toda a região dispunha só de alguns documentos do século
XVI. Sobraram poucos, talvez por acaso. Claro que a
possibilidade de um Tournier aparecer nos livros dependia
exclusivamente da sorte.
Pedi os registros importantes que estavam guardados ali e
que ficavam entre as datas citadas por ela. Eu não tinha
certeza do que iria encontrar: andei usando o termo
"registro" aleatoriamente, esperando que no século XVI
houvesse algo equivalente às minhas bem datilografadas
certidões de nascimento e casamento. Cinco minutos
depois, a bibliotecária trouxe algumas caixas de microfichas,
um livro encapado com papel pardo e outra enorme caixa.
Sorriu para me encorajar e foi embora. Olhei-a voltando
para a mesa e sorri dos sapatos plataforma e da saia de couro
curta que ela usava.
Comecei pelo livro. Era encadernado num couro de bezerro
branco seboso, com a capa ilustrada com notas musicais
antigas e um texto em latim. A primeira letra de cada linha
era maior que as outras e pintada de vermelho e azul. Abri a
primeira página e passei a mão: era emocionante tocar em
algo tão antigo. Estava tudo em tinta marrom e, embora a
letra fosse bem clara, o texto parecia ter sido escrito mais
para ser admirado do que lido: não consegui entender uma
palavra sequer. Várias letras eram idênticas e, quando
finalmente comecei a entender uma palavra aqui e outra ali,
percebi que não fazia diferença: era outra língua.
Então, comecei a espirrar.
A bibliotecária apareceu vinte minutos depois para ver
como ia a pesquisa. Eu havia percorrido dez páginas, encon-
trando datas e, aos poucos, vendo o que pareciam ser
nomes.
Olhei para ela. — Esse documento está em francês?
— Francês arcaico.
— Ah. — Não tinha imaginado.
Ela olhou a página e percorreu algumas linhas com a unha
pintada de rosa. — Uma grávida se afogou no rio Lot, em.
maio de 1574. Une inconnue la pauvre (Desconhecida, a
coitada) — murmurou ela em francês. — Essas mortes não
são muito úteis para você, não?
— Acho que não — falei, e espirrei no livro.
A mulher riu quando me desculpei. — Todo mundo espirra.
Olhe em volta, todos estão com lenços! — Ouvimos um
pequeno espirro de um senhor do outro lado da sala e rimos.
— Venha respirar um pouco fora da poeira. Vamos tomar
um café. Meu nome é Mathilde — ela disse. Estendeu a mão
e sorriu. — É assim que os norte-americanos fazem, não?
Apertam as mãos quando se conhecem?
Sentamos num café no canto da sala e dali a pouco estáva-
mos conversando como velhas amigas. Apesar do jeito de
falar rápido, era fácil conversar com Mathilde. Eu não havia
percebido como estava sentindo falta de uma companhia
feminina. Ela fez inúmeras perguntas sobre os Estados
Unidos, principalmente a Califórnia.
— O que faz aqui? Se pudesse, eu iria para a Califórnia já! —
disse ela, num suspiro.
Fiquei tensa, pensando numa resposta para mostrar que eu
não tinha apenas vindo atrás de Rick, como Jean-Paul dera a
entender. Mas Mathilde continuou falando antes de eu
responder e vi que não esperava que me explicasse.
Não se surpreendeu nem um pouco por eu estar interessada
em parentes distantes. — As pessoas estão sempre buscando
a história da família — disse.
—Acho meio bobo fazer isso, é pouco provável encontrar
alguma coisa — confessei.
— É verdade — admitiu ela. — Para ser sincera, a maioria
das pessoas não encontra nada, quando procuram algo tão
remoto. Mas não desanime. Os registros são interessantes,
não?
— São, mas levo muito tempo para entender o que dizem! Só
encontro mesmo datas e, às vezes, nomes.
Mathilde sorriu. — Se acha difícil ler esse livro, espere até
ver as microfichas! — Riu ao ver minha cara. — Hoje não
estou muito ocupada, continue lendo o livro que eu olho as
microfichas para você. Estou acostumada com aquela escrita
antiga!
Fiquei grata pelo oferecimento. Ela se encarregou da
máquina de microfilmagem enquanto eu peguei a caixa, que
Mathilde explicou ser um livro de compoix. Tudo na mesma
caligrafia quase indecifrável. Levei o resto do dia para olhar.
No final, estava exausta e Mathilde parecia desapontada por
não haver mais onde procurar.
— E só isso mesmo? — perguntou, olhando a lista de novo.
—Attends (Espera), tem um livro de compoix de 1570 na
mairie (administração municipal) de Le Pont de Montvert.
Claro, Monsieur Jourdain trabalha lá! Há um ano, ajudei-o a
fazer a lista desses registros.
— Quem é ele?
— Secretário da mairie.
— Você acha que vale o esforço?
— Bien sür (Claro). Mesmo que você não encontre nada, Le
Tant de Montreal é linda. É uma pequena província aos pés
do monte Lozère. — Olhou o relógio. —Mon Dieu (Meu
Deus), tenho de pegar Sylvie! — Agarrou a bolsa e me
empurrou, enquanto ria e trancava a porta da sala. —Você
vai se divertir com Monsieur Jourdain. Se ele não comer
você viva, claro!
Na manhã seguinte, saí cedo e peguei a pitoresca estrada
para Le Pont de Montvert. Quando a estrada começou a
subir o monte Lozère, a paisagem se abriu e clareou, ao
mesmo tempo em que ficava mais inóspita. Passei por
pequenas aldeias poeirentas onde as construções eram de
granito até nos telhados, sem um toque de tinta para
diferenciá-las da terra em volta. Muitas casas estavam
abandonadas, sem telhado, as chaminés caindo, as janelas
despencando. Vi poucas pessoas e, depois de certo ponto,
nenhum carro. Dali a pouco, havia apenas pedras
arredondadas de granito, giestas, urzes e alguns pinheiros.
Está mais parecido com o que eu esperava, pensei. Perto do
cume, parei num lugar chamado Col de Finiels e encostei no
capô do carro. Depois de desligado há alguns minutos, o
ventilador automático parou e tudo ficou divinamente
quieto; ouvi alguns pássaros e o ronco surdo do vento.
Conforme o meu mapa, a nascente do Tarn ficava para leste,
do outro lado da pequena floresta de pinheiros e depois de
uma pequena colina. Tive vontade de ir olhar.
Em vez disso, desci de carro pelo outro lado da montanha,
ziguezagueando para a frente e para trás até que a última
curva me fez entrar em Le Pont de Montvert e passar por
um hotel, uma escola, um restaurante, algumas lojas e bares
de um lado da estrada. Caminhos saíam da estrada principal,
entrando por entre as casas construídas na colina. Por cima
do telhado das casas, eu via o teto da igreja com um
campanário de pedra.
Vislumbrei um rio do outro lado da estrada. Era o Tarn,
escondido por um muro baixo de pedra. Estacionei perto de
uma velha ponte também de pedra e olhei o rio de cima
dela.
O Tarn havia mudado completamente. Não era mais largo e
lento, tinha no máximo 15 metros de largura e corria como
um riacho. Prestei atenção nos seixos bem vermelhos e
amarelos brilhando na água. Não conseguia tirar os olhos
deles.
Essa água vai correr até Lisle, pensei. Até onde estou. Eram
dez horas da manhã de quarta-feira, Jean-Paul podia estar
sentado no café, olhando o rio também.
Pare com isso, Ella, pensei, ríspida. Pense em Rick, ou não
pense em nada.
Do lado de fora, a mairie era bastante apresentável: um
prédio grande, de janelas marrons, com a bandeira francesa
tremulando numa delas. Mas, por dentro, parecia uma loja
de quinquilharias, o sol atravessava uma nuvem de poeira.
Monsieur Jourdain estava lendo jornal numa mesa no fundo
da sala. Era baixo e gordo, de olhos saltados, pele azeitonada
e uma daquelas barbas hirsutas que descem pelo pescoço e
escondem o contorno do rosto. Olhou desconfiado para
mim enquanto eu abria caminho entre móveis velhos e
gastos, e pilhas de papel.
— Bonjour, Monsieur Jourdain — cumprimentei, em fran-
cês, alegremente.
Ele rosnou alguma coisa e olhou o jornal.
— Eu me chamo Ella Turner —Tournier — continuei,
devagar, em francês. — Gostaria de ver alguns registros que
o senhor tem aqui na mairie. Há um compoix de 1570.
Posso vê-lo?
Ele deu uma olhada em mim e voltou a ler o jornal.
— Monsieur? É Monsieur Jourdain, não? Disseram em
Mende para procurar o senhor.
Monsieur Jourdain passou a língua nos dentes. Olhei para
baixo. Ele estava lendo um jornal de esportes, aberto na
seção de turfe.
Ele falou alguma coisa que não entendi. — Pardon? (Como
disse?) — perguntei. Ele repetiu de forma incompreensível e
fiquei em dúvida se estaria bêbado. Pedi que repetisse, ele
balançou as mãos e espirrou cuspe em mim, soltando uma
torrente de palavras. Dei um passo atrás.
— Nossa, que tipo! — resmunguei, em inglês
Ele apertou os olhos e rosnou, virei as costas e saí. Sentei-
me, furiosa, num café, descobri o telefone do arquivo de
Mende e liguei para Mathilde de um telefone público.
Ela soltou uma exclamação quando expliquei o ocorrido. —
Deixa comigo, volte lá daqui a meia hora — sugeriu.
Não sei o que ela disse ao telefone para Monsieur Jourdain,
mas funcionou, porque, apesar de me olhar fixamente, foi
comigo por um corredor até uma sala cheia, com uma mesa
abarrotada de papéis. —Attendez (Espera) — resmungou,
em francês, e saiu. Pensei que ali era uma sala de guardados
e dei uma olhada. Havia caixas de livros por toda parte,
alguns muito antigos. No chão, pilhas de documentos que
pareciam ser do governo, e sobre as mesas havia um monte
de envelopes fechados e espalhados, endereçados a
Abraham Jourdain.
Dez minutos depois, ele voltou com uma grande caixa e
esvaziou-a sobre a mesa. Depois, sem uma palavra nem um
olhar, saiu de novo.
A caixa tinha um livro parecido com o compoix de Mende,
porém maior ainda e em pior estado. A encadernação de
couro de bezerro estava tão gasta que não prendia mais as
páginas. Segurei o livro com o maior cuidado, mesmo assim
pedaços dos cantos se desmancharam e caíram. Escondi os
pedaços nos bolsos, com medo de Monsieur Jourdain
descobrir e gritar comigo.
Ao meio-dia, ele me pôs para fora. Eu estava trabalhando há
apenas uma hora quando ele apareceu na porta, olhou para
mim e resmungou alguma coisa. Só concluí o que era
porque ele bateu no relógio de pulso. Seguiu pelo corredor,
com passos pesados, para abrir a porta da frente e, depois
que saí, fechou-a com estrondo e trancou-a. Fiquei piscando
na luz do dia, ofuscada depois daquela sala escura e
poeirenta.
Fui cercada pelas crianças que saíam de um playground na
porta ao lado.
Respirei fundo. Graças a Deus, pensei.
Comprei o que comer nas lojas que estavam prestes a fechar
para o almoço: queijo, pêssegos e um pão escuro e vermelho
que o vendedor disse que era especialidade local, feito de
castanhas. Peguei um caminho que passava entre casas de
granito e ia até a igreja no alto da aldeia.
A igreja era uma construção simples de pedra, quase tão
grande quanto alta. A porta que eu achei ser a da frente
estava trancada, dei a volta e descobri uma entrada lateral
aberta, com a inscrição 1828, e entrei. Era cheia de bancos
de madeira vazios. As duas longas paredes laterais tinham
balcões. Havia um órgão de madeira, um púlpito e uma mesa
com uma grande Bíblia aberta. Era só. Nenhum enfeite,
nenhuma estátua ou cruz, nenhum vitral. Nunca vira uma
igreja tão despojada. Não tinha nem altar para distinguir o
lugar onde ficava o padre e nem o lugar para os fiéis.
Fui até a Bíblia, a única coisa lá com uma utilidade que ia
além do meramente prático. Parecia antiga, embora não
tanto quanto o compoix que eu estivera examinando. Virei
as páginas. Demorou um pouco (eu não sabia a ordem dos
Livros da Bíblia) para encontrar o que procurava. Comecei a
1er o Salmo 31: J'ai mis en toi mon espérance: Garde-moi,
donc, Seigneur. Depois, fui à primeira linha do terceiro
verso: Tu es ma tour et forteresse, e meus olhos se
encheram de lágrimas. Parei de repente e saí da igreja.
Garota boba, xinguei-me, quando sentei no muro em volta
da igreja e enxuguei os olhos. Comi meu lanche, piscando
sob o sol forte. O pão de castanha era doce e seco, e grudou
no fundo da minha garganta. E ficou lá pelo resto do dia.
Voltei ao arquivo, e Monsieur Jourdain estava sentado à
mesa, com as mãos entrelaçadas. Não lia o jornal; na
verdade, parecia estar à minha espera. Perguntei, com
cuidado:
— Bonjour, Monsieur. Pode me dar o compoix, por favor?
Ele abriu um arquivo ao lado da mesa, tirou a caixa e me
entregou. Depois, olhou bem para mim.
— Como se chama? — perguntou, com uma voz estranha.
— Tournier, Ella Tournier.
— Tournier — ele repetiu, ainda me olhando atento. Mexeu
a boca para o lado, mastigando a bochecha. Olhava os meus
cabelos. — La Rousse — murmurou.
— O quê? — perguntei, alto. Uma nuvem de poeira caiu em
cima de mim.
Monsieur Jourdain arregalou os olhos e pegou uma mecha
dos meus cabelos. — C'est rouge. Alors, la Rousse (São
ruivos, então, a Ruiva) — disse, em francês.
— Mas meus cabelos são castanhos, Monsieur.
— Rouge — repetiu, firme.
— Claro que não. São... — Puxei uma mecha na frente dos
olhos e prendi a respiração. Ele tinha razão: havia luzes
acobreadas. Mas, quando olhei no espelho naquela manhã,
eram castanhos. O sol já havia posto luzes no meu cabelo
antes, mas nunca com tanta rapidez e intensidade.
— O que é La Rousse? — perguntei, acusadora.
— É um apelido cevenol para uma moça de cabelos
vermelhos. Não é um insulto — acrescentou, rápido. — Eles
costumavam chamar a Virgem de La Rousse porque
achavam que tinha cabelos ruivos.
— Ah. — Senti tontura, enjôo e sede ao mesmo tempo.
— Olhe, Madame. — Ele enrolou a língua nos dentes. — Se
quiser, pode usar aquela mesa. — Mostrou uma mesa vazia
ao lado dele.
— Não, obrigada, a outra sala é ótima — falei, confusa.
Monsieur Jourdain concordou com a cabeça, parecendo
aliviado por não ter de dividir uma sala comigo.
Continuei de onde havia parado, mas toda hora interrompia
para examinar o meu cabelo. Até que sacudi a cabeça e
pensei: não há nada que possa fazer agora, Ella. Termina esse
trabalho.
Trabalhei rápido, já que não podia confiar na tolerância de
Monsieur Jourdain. Parei de tentar entender quais os
impostos que estavam sendo coletados e me concentrei em
nomes e datas. Quando cheguei ao final do livro, fui ficando
cada vez mais desesperada e fazendo pequenas apostas para
me incentivar: aposto que vai ter um Tournier nas próximas
vinte páginas, aposto que vou achar um Tournier nos
próximos cinco minutos.
Olhei a última página: era o registro de um Jean Marcel e
tinha apenas um verbete para châtaignes (castanhas), palavra
que vi muito nos compoix. A nova cor dos meus cabelos, a
cor das castanhas.
Guardei o livro na caixa e fui devagar pelo corredor até a sala
de Monsieur Jourdain. Ele continuava sentado à mesa,
datilografando rápido com dois dedos numa velha máquina
manual. Quando se inclinou para a frente, uma corrente de
prata balançou no decote em V da camisa e uma cruz bateu
nas chaves da mesa. Ele olhou para cima e me viu. Segurou a
cruz e esfregou-a com o dedo.
— Essa é a cruz dos huguenotes — ele disse. — Conhece?
Balancei a cabeça. Ele a segurou para eu ver. Era quadrada,
com uma pomba de asas abertas na ponta inferior.
Coloquei a caixa sobre a mesa vazia na frente dele.
— Voilà — eu disse. — Obrigada por me deixar olhar a caixa.
— Encontrou alguma coisa?
— Não. — Estendi a mão para ele e disse: — Merci beau-
coup, Monsieur.
Ele apertou minha mão, indeciso.
— Au revoir, La Rousse (Adeus, Ruiva) — disse, quando saí.
Era muito tarde para voltar a Lisle. Então passei a noite num
dos dois hotéis da província. Depois do jantar, liguei para
Rick, mas ninguém atendia. Depois liguei para Mathilde, que
me havia dado seu telefone e me fizera prometer informar
como tinham sido as coisas. Ficou desapontada por eu não
ter encontrado nada, embora soubesse que a chance era
mínima.
Perguntei como ela havia conseguido fazer com que
Monsieur Jourdain ficasse mais gentil comigo.
— Ah, foi só fazê-lo sentir-se culpado. Lembrei que você
estava procurando os huguenotes. A família dele é
huguenote, descendente de um dos líderes da rebelião dos
Camisards. Acho que se chamava René Laporte.
— Então, ele é um huguenote.
— É. O que você achava? Não deve ser muito dura com ele.
Passou por maus bocados nos últimos tempos. Há três anos,
a filha fugiu com um norte-americano. Turista e, além disso,
católico! Não sei o que o irritou mais: o fato de o rapaz ser
norte-americano ou ser católico. Dá para ver como isso o
abalou. Era um bom funcionário, inteligente, mas, no ano
passado, mandaram-me para lá a fim de ajudá-lo a arrumar as
coisas.
Pensei na sala onde trabalhei, cheia de livros e papéis, e ri.
— Por que está rindo?
— Você já foi lá na sala dos fundos?
— Não, ele disse que havia perdido a chave e, de todo jeito,
não havia nada lá.
Contei-lhe como era a sala.
— Merde, eu sabia que ele estava escondendo alguma coisa!
Devia ter insistido para entrar.
— De qualquer forma, agradeço a sua ajuda, Mathilde.
— Ah, não foi nada. — Ela fez uma pausa. — E quem é Jean-
Paul?
Enrubesci.
— Um bibliotecário de Lisle, onde moro. Como o conheceu?
— Ele me telefonou hoje à tarde.
— Telefonou para você?
— Sim, queria saber se você havia encontrado o que queria.
— É mesmo?
— Por que tanta surpresa?
— É, quer dizer, não. Não sei. O que você lhe disse? —
perguntei.
— Falei para ele perguntar a você. Que charme!
Fiquei pasma.
Na volta para Lisle, peguei a estrada panorâmica, seguindo o
rio Tarn por desfiladeiros de muito vento. O dia estava
nublado e eu não pensava na estrada. Estava ficando cansada
de dirigir por tantas curvas. Acabei me perguntando por que
havia me incomodado em fazer aquela viagem.
Rick não estava em casa quando cheguei e o telefone do
escritório não respondia. A casa parecia sem vida e fui de
um cômodo a outro, sem conseguir ler ou assistir à tevê.
Passei um bom tempo examinando meus cabelos no espelho
do banheiro. O cabeleireiro em San Francisco sempre
quisera me convencer a tingi-los de ruivo, achava que
combinava com meus olhos. Nunca aceitei, mas agora ele
tinha uma chance: meus cabelos estavam mesmo ficando
ruivos.
Quando deu meia-noite, fiquei preocupada: Rick havia
perdido o último trem de Toulouse. Eu não tinha o telefone
da casa de nenhum colega de trabalho, só podia imaginar
que estivesse com um deles. Não havia mais ninguém para
quem eu pudesse telefonar, nenhum amigo solidário para
me ouvir e me tranqüilizar. Pensei em ligar para Mathilde,
mas era tarde e não a conhecia direito para dar telefonemas
preocupados à meia-noite.
Liguei então para a minha mãe, em Boston. — Tem certeza
de que Rick não disse aonde ia? — ela repetiu. — Aonde
você foi de novo? Ella, você tem dado atenção a ele? —
Minha mãe não estava interessada em minha pesquisa sobre
a família Tournier. Não era mesmo a família dela; Cévennes
e os pintores franceses também não significavam nada para
ela.
Mudei de assunto. — Mamãe, meus cabelos ficaram ruivos
— contei.
— O quê? Passou henna? Ficou bom?
— Não passei nada... — Não podia dizer que os cabelos
simplesmente haviam mudado de cor, não fazia sentido. —
Estão bonitos, aliás, bem bonitos. Estão naturais — falei,
finalmente.
Fui para a cama, mas fiquei acordada horas, tentando ouvir a
chave de Rick na porta, pensando se devia ou não me
preocupar, lembrando a mim mesma que ele era adulto e, ao
mesmo tempo, lembrando que sempre me avisava aonde ia.
Acordei cedo e fiquei tomando café até as sete e meia,
quando uma recepcionista atendeu o telefone na empresa de
Rick. Não sabia onde ele estava, mas prometeu pedir à
secretária para avisar assim que ele chegasse. Quando ela
ligou, às oito e meia, eu estava elétrica de tanto café e meio
tonta.
— Bonjour, Madame Middleton (Bom-dia, Madame
Middleton), como vai? — cumprimentou ela, numa voz
sonora.
Desisti de explicar que eu não usava o sobrenome de Rick -
Sabe onde está Rick? — perguntei.
— Em Paris, a negócios. Teve de ir de repente, anteontem.
Volta hoje à noite, não avisou a senhora?
— Não, não avisou.
— Tenho o telefone do hotel, caso a senhora queira.
Quando liguei, Rick já havia fechado a conta e saído do
hotel. Não sei por quê, mas aquilo me deixou mais irritada
do que tudo.
Naquela noite, quando ele chegou em casa, mal consegui
olhá-lo. Pareceu surpreso de me encontrar, mas também
satisfeito.
Não falei nem oi. — Por que não disse aonde ia? —
perguntei.
— Porque não sabia onde você estava.
Franzi o cenho. — Você sabia que fui ao arquivo de Mende
procurar documentos. Podia ter-me procurado lá.
— Ella, para ser sincero, não sei o que você tem feito nos
últimos dias...
— O que quer dizer com isso?
— Não sei onde você esteve, aonde você ia. Você não me
telefonou nem uma vez sequer. Não disse direito aonde ia e
quanto tempo iria demorar. Eu não sabia que você voltaria
hoje. Imaginava que fosse levar algumas semanas.
— Ah, não exagere.
— Não estou exagerando. Dá um tempo, Ella. Não pode
esperar que eu diga onde estou se não sei onde você está.
Fiz uma careta para o chão. Rick era tão sensato e tinha
tanta razão que tive vontade de bater nele. Suspirei e disse:
— Está bem. Desculpe. E que não achei nada, aí voltei e
você não estava e, ah, tomei café demais. Fiquei enjoada.
Rick riu e me abraçou. — Conte o que você não achou.
Enfiei o rosto no ombro dele. — Não achei nada. Só
conheci uma mulher muito simpática e um velho
rabugento.
Senti Rick esfregar o rosto nos meus cabelos. Joguei a cabeça
para trás para ver o rosto dele. Estava com o cenho franzido.
— Você tingiu os cabelos?
No dia seguinte, Rick e eu andamos pelo mercado de
domingo, ele com o braço nos meus ombros. Eu estava mais
descansada do que nos últimos dois meses. Para comemorar
esse sentimento e o fato de a psoríase parecer diminuir, usei
meu vestido preferido, uma túnica sem mangas, amarelo-
claro.
À medida que o verão se aproximava, o mercado crescia a
cada fim de semana. Naquele domingo, estava com um
movimento que eu nunca tinha visto e que ocupava a praça
toda. Os agricultores haviam trazido caminhões carregados
de frutas e legumes, queijo, mel, toucinho, pão, patê, gali-
nhas, coelhos, cabritos. Eu podia comprar pilhas de doces,
um casaco igual ao de Madame e até um trator.
Estava todo mundo lá: nossos vizinhos, a mulher da
biblioteca, Madame num banco do outro lado da praça com
duas amigas, colegas minhas do curso de ioga que eu estava
fazendo, a mulher com o bebê do chocalho e todas as
pessoas de quem algum dia havia comprado algo.
Mesmo com tanta gente, eu o vi na hora. Parecia discutir
acaloradamente com um vendedor de tomates, depois riram
e deram tapinhas nas costas um do outro. Jean-Paul pegou
uma sacola de tomates, virou-se e quase veio correndo para
onde eu estava. Recuei para não ficar coberta de tomates e
tropecei. Rick e Jean-Paul seguraram cada cotovelo meu por
um instante até eu recuperar o equilíbrio. Jean-Paul tirou a
mão.
— Bom-dia, Ella Tournier — disse ele, cumprimentando-me
com a cabeça e levantando de leve as sobrancelhas. Estava
com uma camisa azul-claro e tive uma vontade súbita de
tocá-la.
— Olá, Jean-Paul — respondi, calma. Lembrei de ter lido em
algum lugar que a pessoa que você apresenta primeiro é a
mais importante das duas. De propósito, virei para Rick e
disse: — Rick, este é Jean-Paul. Jean-Paul, este é Rick, meu
marido.
Os dois se apertaram as mãos, Rick disse Bonjour e Jean-
Paul, alô. Tive vontade de rir, os dois eram tão diferentes:
Rick, alto, largo, bronzeado e falante; Jean-Paul, pequeno,
magro, moreno e pensativo. O leão e o lobo, pensei. E como
um desconfia do outro.
Fez-se um silêncio esquisito. Jean-Paul virou-se para mim e
perguntou: — Como foi a pesquisa em Mende?
Dei de ombros, indiferente. — Mais ou menos. Não
encontrei nada de útil. Aliás, não encontrei nada. — Mas
não estava indiferente: sentia-me culpada e satisfeita por
Jean-Paul ter ligado para Mathilde e eu não ter ligado de
volta para ele; estava pensando que o inglês esquisito de
Jean-Paul era o único sinal de que ele estava nervoso; que os
dois eram tão diferentes e que os dois estavam me
observando, atentos.
— Então você foi pesquisar em outras cidades?
Tentei não olhar para Rick. — Fui a Le Pont de Montvert
também, mas não havia nada. Não sobrou muita coisa
daquela época. Mas não é tão importante. Não tem
problema.
O sorriso sardónico de Jean-Paul dizia três coisas: você está
mentindo, achava que seria fácil a pesquisa e eu avisei.
Mas ele não falou nada disso, olhou bem em meus cabelos e
garantiu: — Seus cabelos estão ficando ruivos.
— Sim. — Sorri para ele. Ele havia colocado o fato do jeito
certo: não perguntou nada, não culpou nada. Por um
instante, Rick e o mercado sumiram.
Rick passou a mão pelas minhas costas e segurou meu
ombro. Ri, nervosa, e disse: — Bom, temos de ir. Prazer em
vê-lo.
—Au revoir, Ella Tournier — disse Jean-Paul.
Rick e eu ficamos calados por alguns minutos. Fiz de conta
que estava preocupada em comprar mel enquanto Rick
segurava umas berinjelas para avaliar quanto pesavam, até
que perguntou: — Quer dizer que é ele, hein?
Lancei-lhe um olhar feroz. — É o bibliotecário, Rick. Nada
mais.
— Tem certeza disso?
— Sim. — Há muito tempo eu não mentia para Rick.
Uma tarde, eu voltava da aula de ioga quando ouvi da rua o
telefone tocar em casa. Corri para atender e consegui dizer
um alô ofegante antes de uma voz aguda e animada falar tão
rápido que tive de sentar e esperar que ela parasse.
Finalmente perguntei em francês: — Quem fala?
— Sou eu, Mathilde. Escuta, é uma maravilha, você precisa
ver!
— Mathilde, calma! Não entendi o que disse. O que é uma
maravilha?
Ela respirou fundo. — Nós encontramos algo sobre a sua
família, os Tournier.
— Espera um instante, nós quem?
— Monsieur Jourdain e eu. Lembra que falei que trabalhei
com ele antes, em Le Pont de Montvert?
— Sim.
— Pois hoje eu não estava trabalhando no balcão principal,
então fui de carro visitá-lo, ver aquela sala de que você
falou. Que lixeira! Então, começamos a arrumar as coisas. E,
numa das caixas de livros, ele encontrou a sua família!
— Como assim? Um livro sobre a minha família?
— Não, não, escrito no livro. Numa Bíblia. A primeira página
era onde as famílias anotavam os nascimentos, mortes e
casamento, caso tivessem uma Bíblia.
— Mas o que essa Bíblia fazia lá?
— Boa pergunta. Monsieur Jourdain é terrível. Imagine,
deixar coisas antigas e valiosas por lá! Parece que alguém
entregou uma caixa de livros antigos. Tem todo tipo de
coisas: velhas certidões de igreja, documentos antigos, mas a
Bíblia é a mais valiosa. Bom, talvez não tão valiosa,
considerando o estado em que se encontra.
— Qual é o estado?
— Queimada. Quase todas as páginas estão enegrecidas. Mas
cita vários Tournier. São os seus, Monsieur Jourdain tem
certeza.
Fiquei calada, assimilando aquelas informações.
— Você pode vir ver?
— Claro, onde você está?
— Ainda em Le Pont de Montvert. Mas posso encontrar
você no meio do caminho, vamos nos ver em Rodez daqui
a, digamos, três horas. —Ela pensou um instante. — Já sei,
podemos nos encontrar no bar Crazy Joe. Fica bem na
esquina da catedral, no bairro antigo. É um bar norte-
americano, então você poderá tomar um martini! — Ela riu
alto e desligou.
Ao sair de carro de Lisle, passei pelo hotel de ville. Continue
em frente, Ella, pensei. Ele não tem nada a ver com isso.
Parei o carro, fui correndo para o prédio da biblioteca e subi
as escadas. Abri a porta e enfiei a cabeça. Jean-Paul estava
sozinho em sua mesa, lendo um livro. Olhou para mim, mas
não se mexeu.
Fiquei na porta. — Está ocupado? — perguntei.
Ele deu de ombros. Depois da cena do mercado, dias antes,
o comportamento distante não era de surpreender.
— Achei algo — disse, calmamente. — Ou, melhor dizendo,
alguém achou para mim. Uma prova concreta. Algo de que
você vai gostar.
— É sobre o seu pintor?
— Acho que não. Venha ver comigo.
— Onde?
— Eles acharam em Le Pont de Montvert, mas vou vê-los
em Rodez. — Olhei para o chão. — Quero que você venha
comigo.
Jean-Paul me olhou um instante, depois concordou com a
cabeça. — Está bem. Vou fechar cedo aqui. Pode me
encontrar no posto Fina, na estrada de Albi, daqui a 15
minutos?
— No posto de gasolina? Por quê? Como você irá até lá?
— Vou de carro. Encontro você lá e poderemos seguir no
mesmo carro.
— Por que não pode vir comigo agora? Esperarei lá fora.
Jean-Paul suspirou. — Escuta, Ella Tournier, antes de morar
em Lisle, você nunca morou numa cidade pequena?
— Não, mas...
— Eu explico no carro.
Jean-Paul apareceu no posto de gasolina num velho Citroen
Deux Chevaux branco, daqueles carros que parecem um
frágil fusca e têm um teto macio que pode ser enrolado
como tampa de lata de sardinha. O motor emitia um som
inconfundível, um ronronar gostoso que sempre me fazia
sorrir ao ouvir. Achei que Jean-Paul tivesse um carro
esporte, mas um Deux Chevaux fazia sentido.
Ele parecia tão furtivo ao sair do carro dele e entrar no meu
que achei graça. — Você pensa que as pessoas vão falar de
nós? — perguntei, ao entrar na estrada para Albi.
— A cidade é pequena. Muitas velhas lá não têm nada para
fazer a não ser ver e comentar o que viram.
— Claro que isso não tem nada demais.
— Ella, vou contar como é o dia dessas mulheres. Levantam
de manhã e tomam o café no terraço para ver todo mundo
que passa na rua. Depois, vão às compras, passando por
todas as lojas todos os dias, conversam com as outras e vêem
o que os outros fazem. Voltam e ficam na porta de casa,
conversam com as vizinhas e vêem tudo. À tarde, dormem
durante uma hora, pois sabem que todos estarão dormindo
também e elas não vão perder nada. Passam o resto da tarde
sentadas no terraço fingindo ler o jornal, mas, na verdade,
estão olhando todos que passam na rua. A noite, dão outra
caminhada e conversam com todas as amigas. O dia delas
tem muita conversa e muita coisa para ver. E o que fazem.
— Mas não fiz nada em público para elas comentarem.
— Elas pegam qualquer coisa e distorcem.
Fiz uma curva aberta. — Não fiz nada nesta cidade que
alguém possa achar interessante, escandaloso ou lá o que
você queira dar a entender.
Jean-Paul ficou calado um instante. Depois, perguntou:
— Está gostando das suas quiches de cebola?
Empertiguei-me um instante e ri. — Estou, são ótimas.
Aposto que as velhas fofoqueiras estão realmente pasmas.
— Acharam que você estava... — Ele parou. Olhei para ele,
que parecia constrangido. — Grávida — disse ele, final-
mente.
— O quê?
— Que você estava com desejo de grávida.
Comecei a rir. — Mas isso é ridículo! Por que foram achar
isso? E o que elas tinham a ver?
— Num lugar pequeno, todos sabem da vida de todos.
Acham que têm o direito de saber se você vai ter um filho.
De todo jeito, agora já sabem que não está grávida.
— Que bom — resmunguei. Depois, olhei para ele. — Como
sabem que não estou?
Para a minha surpresa, Jean-Paul pareceu mais constrangido
ainda. — Nada, nada, elas só... — Ele disfarçou e mexeu no
bolso da camisa.
— Elas só o quê? — Comecei a ficar com raiva do que elas
poderiam saber. Jean-Paul tirou um maço de cigarros do
bolso.
— Sabe a máquina que vende camisinhas na praça? —
perguntou, por fim.
— Ah. —Alguém deve ter visto Rick comprando camisinha
naquela noite. Nossa, pensei, onde elas não se metem? Será
que o médico irradia todas as consultas? Será que elas
mexem no nosso lixo?
— O que mais elas disseram?
— Você não precisa saber.
— O que mais disseram?
Jean-Paul olhou pela janela. —Elas sabem tudo que você
compra. O carteiro fala de todas as cartas que você recebe.
Elas sabem quando você sai de dia e quantas vezes sai com
seu marido. E, bom, se você não fecha as venezianas, elas
olham lá dentro. — Ele parecia condenar mais o fato de eu
não fechar as venezianas do que de elas olharem dentro da
minha casa.
Estremeci, pensando no bebê do chocalho, em todos
aqueles ombros virados para mim.
— Do que elas falaram, exatamente?
— Quer saber?
— Sim.
— Das quiches e do desejo. E acham que você é pretensiosa
porque comprou uma máquina de lavar.
— Mas por que pretensiosa?
— Porque devia lavar a roupa à mão, como elas. Acham que
só quem tem filhos deve ter máquina. E acham que a cor
que usou para pintar as janelas é vulgar e não serve para
Lisle. Que você não é fina. Que não devia usar vestido sem
mangas. Que é grosseira porque fala inglês com as pessoas.
Que mente, pois disse a Madame Rodin, na boulangerie, que
morava aqui, quando ainda não morava. E você arrancou um
ramo de lavanda na praça; ninguém faz isso. Na verdade, foi
a primeira impressão que tiveram de você. É difícil mudar.
Seguimos em silêncio pela estrada alguns minutos. Eu tinha
vontade de chorar e, ao mesmo tempo, de rir. Só havia
falado inglês em público uma vez, mas isso contava mais que
todas as vezes que falei francês. Jean-Paul acendeu um cigar-
ro e abriu a janela com um estalido.
— Acha que sou grosseira e sem educação?
— Não — ele respondeu, sorrindo. — E acho que devia usar
vestidos sem manga com mais freqüência.
Corei. — Disseram alguma coisa agradável a meu respeito?
Ele pensou um instante. — Acham seu marido muito
bonito, mesmo com o... — Ele fez um gesto atrás na cabeça.
— Rabo-de-cavalo.
— Isso. Mas não entendem por que ele pratica corrida e
acham os shorts dele são muito curtos.
Sorri para mim mesma. Correr devia parecer estranho numa
aldeia francesa, mas Rick não se perturbava com o olhar das
pessoas. Então, meu sorriso sumiu.
— Como você sabe de tudo isso? — perguntei. — De
quiches, gravidez, janelas e máquinas de lavar? Você dá a
impressão de estar acima de todos esses mexericos, mas
parece saber de tudo.
— Não sou mexeriqueiro — respondeu Jean-Paul, firme,
soprando fumaça para o alto da janela. —Alguém me
contou, como um aviso.
— Aviso de quê?
— Ella, é um acontecimento público toda vez que nos
encontramos. Não é direito você me encontrar. Soube que
fazem intrigas sobre nós. Eu devia ter tomado mais cuidado.
Para mim, não tem importância, mas você é mulher e é
sempre pior. Você agora vai dizer que isso é errado, mas,
certo ou errado, é verdade. Você é casada. E estrangeira.
Tudo isso piora a situação.
— Mas é uma ofensa você achar que o julgamento delas vale
mais do que o meu. Qual é o erro de encontrar você? Não
estou fazendo nada de errado, pelo amor de Deus. Sou
casada com Rick, mas isso não significa que não possa nem
falar com outro homem!
Jean-Paul não disse nada.
— Como você agüenta? Essa vida de mexerico de aldeia? Elas
sabem tudo sobre você? — perguntei, impaciente.
— Não. Claro que fiquei chocado com esse comportamento,
depois de morar em cidades grandes, mas aprendi a ser
discreto.
— E você chama isso de discrição, ficar se escondendo para
me encontrar? Agora, sim, nós parecemos culpados.
— Não é bem isso. Elas ficam mais ofendidas quando é na
frente, na narina delas.
— No nariz — corrigi, rindo, apesar de tudo.
— No nariz, embaixo do nariz delas. É uma psicologia
diferente. — Ele sorriu, amargo.
— De qualquer jeito, o aviso não funcionou. Cá estamos nós,
afinal.
Passamos o resto da viagem em silêncio.
A capa estava meio queimada, as páginas crestadas e
ilegíveis, exceto a primeira. Escrita com mão trêmula, numa
tinta marrom apagada, havia as seguintes informações:
Jean Tournier, nascido em 16 de agosto de 1507
Casado com Hannah Tournier em 18 de junho de 1535
Jacques, nascido em 28 de agosto de 1536
Etienne, nascido em 29 de maio de 1538
Casado com Isabelle du Moulin em 28 de maio de 1563
Jean, nascido em 1º de janeiro de 1564
Jacob, nascido em 2 de julho de 1565
Marie, nascida em 9 de outubro de 1567
Susanne, nascida em 12 de março de 1540
Casada com Bertrand Bouleaux em 29 de novembro de 1565
Deborah, nascida em 16 de outubro de 1567
Quatro pares de olhos me fitavam: os de Jean-Paul, de
Mathilde, de Monsieur Jourdain (quando chegamos, para a
minha surpresa, ele estava sentado ao lado de Mathilde,
tomando uísque com soda) e os de uma menina loura,
empoleirada num banquinho, tomando um refrigerante,
olhos arregalados de animação, apresentada como Sylvie,
filha de Mathilde.
Fiquei meio tonta, mas apertei a Bíblia contra o peito e sorri
para eles.
— Oui, oui — disse apenas.
5
OS SEGREDOS
As montanhas eram a diferença mais óbvia.
Isabelle olhou as encostas ao redor: a pedra lisa, perto do
cume, dava a impressão de que iria rolar a qualquer
momento. As árvores eram estranhas, agrupadas como limo,
mostrando aqui e ali o brilho rápido de um riacho.
As montanhas Cevenol são como barriga de mulher, ela
pensou. Essas montanhas do Jura são como os ombros da
mulher. Mais angulosas, mais definidas, menos receptivas.
Minha vida será outra em montanhas como essas. Ela
estremeceu.
Eles estavam à margem de um rio próximo de Moutier,
junto com um grupo que viera de Genebra em busca de um
lugar para se estabelecer. Isabelle queria pedir para eles não
pararem ali, para continuarem o caminho até encontrar um
lugar menos inquietante. Ninguém compartilhava dessa
inquietude dela. Etienne e mais dois homens deixaram o
grupo e seguiram para a aldeia à procura de trabalho.
O rio que passava pelo vale era pequeno, escuro e margeado
de bétulas prateadas. Exceto pelas árvores, o rio Birse não
era muito diferente do Tarn, mas parecia hostil. Embora
estivesse baixo, na primavera ele triplicava de tamanho.
Enquanto os adultos discutiam, as crianças correram para o
rio; Petit Jean
e Marie mergulharam as mãos na água enquanto Jacob se
abaixava na margem, olhando os seixos no fundo. Com
cuidado, enfiou a mão e pegou um seixo preto em forma de
coração assimétrico, segurando-o com o indicador e o
polegar para eles verem.
—Eh, bravo, monpetit! — gritou Gaspard, um homem ale-
gre, cego de um olho. Ele e a filha, Pascale, haviam tido uma
hospedaria em Lyon e depois tinham fugido levando uma
carroça de comida que dividiam com quem precisasse. Os
Tournier os encontraram na estrada que vinha de Genebra
quando as castanhas acabaram e as batatas só davam para
mais um dia. Gaspard e Pascale ofereceram comida para eles
e recusaram agradecimentos e ofertas de pagamento.
— Deus quer assim — disse Gaspard, e riu como se tivesse
acabado de contar uma piada. Pascale apenas sorria, e
Isabelle se lembrou de Susanne, com seu rosto calmo e jeito
suave.
Os homens voltaram da hospedaria: Etienne estava com a
expressão intrigada, olhos arregalados e surpresos, sem
pestanas ou sobrancelhas para protegê-los.
— Aqui não tem um Duque de PAigle — disse, balançando a
cabeça. — Não tem propriedade para arrendar terra, nem
trabalho para fazer.
— Eles fazem o quê? — perguntou Isabelle.
— Trabalham para si mesmos. — A resposta pareceu dúbia.
— Alguns fazendeiros precisam de ajuda na colheita do
cânhamo. Poderíamos ficar por um tempo.
— O que é cânhamo, papai? — perguntou Petit Jean.
Etienne deu de ombros.
Não quer mostrar que não sabe, pensou Isabelle.
Pararam em Moutier. Antes que a neve chegasse, os
Tournier foram contratados por um fazendeiro após outro.
No primeiro dia, foram levados para um campo de cânhamo
a fim de cortar a planta e colocá-la para secar. Ficaram
olhando as plantas fibrosas e duras, da altura de Etienne.
Até que Marie fez a pergunta que todos aguardavam.
— Maman, como se come essa planta?
O fazendeiro riu.
— Non, non, ma petite Jleur (Não, não, minha florzinha),
essa planta não é para comer. Nós tiramos a fibra para fazer
roupa e corda. Está vendo essa camisa? — perguntou, mos-
trando a camisa cinza que usava. —É feita de cânhamo.
Olhe, toque nela!
Isabelle e Marie seguraram no pano. Era grosso e áspero.
— Essa camisa vai durar até meu neto ter filhos!
Explicou que eles cortariam e secariam o cânhamo, depois
o mergulhariam numa tina de água para amaciá-lo e separar
a fibra da madeira, e o secariam de novo antes de bater as
plantas para separar bem a fibra. Só então a fibra seria
cardeada e fiada na roca.
— Vocês vão fazer isso o inverno todo — disse ele, olhando
para Isabelle e Hannah. — Suas mãos ficarão ásperas.
— Mas o que vocês comem? — insistiu Marie.
— Muita coisa! No mercado de Bienne, trocamos o cânhamo
por trigo, cabritos, porcos e outras coisas. Não tema,
fleurette (florzinha), você não vai ficar com fome.
Etienne e Isabelle ficaram em silêncio. Na região de
Cévennes, eles raramente faziam trocas no mercado, pois
vendiam a sobra da colheita para o Duque de l'Aigle. Isabelle
apertou o pescoço com as mãos. Não parecia direito plantar
coisas que não podiam ser comidas.
— Temos hortas — garantiu o fazendeiro. — E algumas
pessoas cultivam trigo de inverno. Não se preocupe, aqui
tem fartura. Olhe para essa aldeia... vê alguém com fome?
Tem gente pobre? Deus provê. Nós trabalhamos duro e Ele
provê.
Era verdade que Moutier era mais rica que a velha aldeia de
onde tinham vindo. Isabelle pegou uma foice e seguiu em
direção ao campo. Ela sentia como se deitasse num rio e
tivesse de acreditar que iria boiar.
A leste de Moutier, o rio Birse virava para o norte, passando
pela cadeia de montanhas e deixando para trás um enorme
desfiladeiro de pedra amarelo-acinzentado, às vezes dura,
com as encostas desmoronando. A primeira vez que Isabelle
viu o desfiladeiro teve vontade de se ajoelhar, pois parecia
uma igreja.
A fazenda para onde haviam se mudado não ficava à mar-
gem do Birse, mas de um riacho mais a leste. Sempre que
iam ou voltavam de Moutier, atravessavam o desfiladeiro.
Quando Isabelle passava sozinha, benzia-se.
A casa deles era de uma pedra que não conheciam, mais
leve e mais macia do que o granito do Cevenol. Havia bura-
cos onde o reboco tinha desmanchado, tornando a casa
úmida e permitindo a entrada do vento. A moldura da janela
e da porta era de madeira, assim como o teto baixo, e
Isabelle temia que a casa pegasse fogo. A fazenda dos
Tournier era toda de pedra.
O mais estranho era que a casa não tinha chaminé, como
todas as casas do vale. O teto baixo de madeira era falso e a
fumaça ficava presa entre esse teto e o telhado, dispersando-
se aos poucos pelos buracos sob os beirais. A carne era
dependurada nesse espaço para defumar; parecia ser essa a
única vantagem do teto falso. Tudo dentro da casa ficava
coberto por uma camada acinzentada e, quando as janelas
estavam fechadas, o ambiente ficava escuro e abafado.
Às vezes, durante o rápido inverno, quando Isabelle enro-
lava os cabelos num pano de linho cinza e áspero, ou fiava
sem parar, tentando fazer com que o sangue dos dedos não
manchasse a áspera fibra do cânhamo, ou quando sentava à
mesa em meio à fumaça fina, tossindo e pigarreando, sabia
que do lado de fora o céu estava baixo e pesado de neve e
que continuaria assim por meses. Nessas horas, ela achava
que ia enlouquecer. Sentia falta do sol nas rochas, das giestas
congeladas, dos dias claros e frios, da enorme lareira dos
Tournier, que espalhava calor e jogava fumaça para fora. Ela
não dizia nada. Já era uma sorte terem uma casa.
— Um dia, vou construir uma chaminé — anunciou Etienne
numa tarde escura de inverno, quando as crianças não
paravam de tossir. Olhou para Hannah, que concordou com
a cabeça.
— Toda casa precisa de uma chaminé e de uma boa lareira —
continuou ele. — Mas, primeiro, precisamos semear.
Quando puder, construo, e a casa vai ficar completa. E
segura — disse, olhando para o canto, sem encarar Isabelle.
Ela saiu da sala, entrou no devant-huis, uma área aberta
situada entre a casa, o celeiro e o estábulo, coberta pelo
mesmo telhado. Lá, ela podia ficar só e olhar para fora sem
ser açoitada pelo vento nem atingida pela neve. Respirou
fundo o ar fresco e suspirou. A porta abria para o sul, mas
não havia nenhum sol quente e brilhante. Olhou as colinas
brancas em frente e viu um vulto cinza agachado na neve.
Recuou para a parte mais escura do devant-huis e ficou
olhando o vulto entrar no bosque.
— Agora me sinto segura — disse, entre dentes, para Etienne
e Hannah. — E não tem nada a ver com a sua magia.
De vez em quando, Isabelle passava pela trilha gelada no
desfiladeiro amarelo para ir ao forno comunitário de
Moutier.
Em casa, ela sempre fizera pão na chaminé dos Tournier ou
na casa do pai, mas agora só podia assá-lo num lugar.
Esperava a porta do forno abrir e a onda de calor atingi-la, ao
enfiar os pães lá dentro. Em volta, as mulheres de touca de
lã conversavam calmamente. Uma delas sorriu.
— Como vão Petit Jean, Jacob e Marie? — perguntou.
Isabelle retribuiu o sorriso.
— Querem sair, não gostam de ficar tanto tempo dentro de
casa. Lá onde era nossa casa não fazia tanto frio. Agora, eles
brigam mais.
— Sua casa agora é aqui — corrigiu a mulher, gentil. — Deus
vai cuidar de vocês aqui. Deu-lhes um inverno suave este
ano.
— É verdade — concordou Isabelle.
— Deus os guarde, Madame — disse a mulher, indo embora
com pães enfiados embaixo do braço.
— A você também.
Aqui me chamam de Madame, pensou ela. Ninguém repara
no meu cabelo ruivo. Ninguém sabe. Aqui é uma aldeia de
trezentas pessoas que nunca me chamam de La Rousse. Que
não sabem nada sobre os Tournier, senão que somos
seguidores da Verdade. Quando saio, não falam de mim
pelas costas.
Ela se sentia grata por isso. Dessa forma, conseguia agüentar
as montanhas escarpadas e ásperas, as colheitas estranhas, os
invernos rigorosos. Talvez conseguisse até viver sem uma
chaminé.
Isabelle sempre encontrava Pascale no forno comunitário e
na igreja. No começo, Pascale falava bem pouco, mas,
gradativamente, ficou mais loquaz e acabou contando sua
vida toda para Isabelle.
— Em Lyon, eu trabalhava o máximo que podia na cozinha
— disse, num domingo, quando estava em meio às pessoas
do lado de fora da igreja. — Mas, quando Maman morreu de
praga, tive de começar a servir as mesas. Não gostava de
ficar no meio daqueles homens estranhos, que me tocavam
o corpo todo. — Ela estremeceu. — E de servir tanto vinho,
já que não podíamos bebê-lo; parecia errado. Preferia ficar
escondida. Quando dava. — Ficou quieta um instante.
— Mas Papa gosta muito de vinho — continuou ela. — Ele
espera tomar conta do Cheval-Blanc, se os donos forem
embora. Por via das dúvidas, dá-se muito bem com eles. Em
Lyon nossa hospedaria também se chamava Cheval-Blanc.
Ele acha que isso é um bom sinal.
— E você não sente falta da vida que tinha antes?
Pascale balançou a cabeça.
— Gosto daqui, sinto-me mais segura do que em Lyon. Lá
era tão apertado, tinha tanta gente que não dava para
confiar.
— Aqui é seguro, é verdade. Mas sinto falta do céu — disse
Isabelle. — O vasto céu onde se enxerga até o fim do
mundo. Aqui, as montanhas escondem o céu. Lá em casa,
elas o mostravam.
— Sinto falta das castanhas — avisou Marie, encostando-se
na mãe. Isabelle concordou com a cabeça.
— Quando a gente tinha castanhas sempre, eu não pensava
nelas. E como a água. Você só pensa nela quando está com
sede e não tem.
— Mas lá também era perigoso, não? — quis saber Pascale.
— Sim — ela respondeu, engolindo em seco, ao pensar no
cheiro de carne queimada. Não comentou essa lembrança.
Preferiu perguntar, apontando para as mulheres:
— Elas usam umas toucas engraçadas, não? Você se imagina
usando isso por cima do capuz?
As duas riram.
— Talvez um dia a gente use, e as recém-chegadas à cidade
rirão de nós — acrescentou Isabelle.
A voz de Gaspard surgiu no meio das pessoas: — Soldados!
Posso contar umas coisas sobre soldados católicos que vão
deixar você de cabelo em pé!
O sorriso de Pascale sumiu. Abaixou os olhos, o corpo ficou
rígido, as mãos juntas. Nunca falava na fuga, mas Isabelle já
tinha ouvido Gaspard contar várias vezes em detalhes, como
fazia naquele momento para um novo amigo.
— Quando os católicos souberam do massacre em Paris,
ficaram loucos e foram para a hospedaria dispostos a acabar
conosco — explicou Gaspard. — Os soldados entraram e
achei que a única forma de nos salvarmos seria perder o
vinho de nossa adega. Então, na mesma hora, ofereci vinho
de graça. Auxfrais de la maison! (Por conta da casa!), gritei.
Bom, isso fez com que eles se contivessem. Você sabe como
são os católicos, adoram um trago! Foi o que nos ajudou; dali
a pouco estavam tão bêbados que haviam esquecido por que
tinham ido até lá e, enquanto Pascale os distraía, juntei
todos os nossos pertences, bem embaixo do nariz deles!
De repente, Pascale deixou Isabelle e sumiu atrás da igreja.
Como Gaspard não notava que havia algo errado com a
filha?, pensou Isabelle, enquanto Gaspard continuava a falar
e rir.
Um instante depois, foi atrás dela. Pascale teve um enjôo e
estava encostada no muro, limpando a boca, trêmula.
Isabelle notou a palidez do rosto dela, o olhar aflito, e con-
cluiu logo. Está de três meses. E não tem marido.
— Isabelle, você foi parteira, não? — perguntou Pascale, por
fim.
Isabelle balançou a cabeça.
— Minha mãe me ensinou a profissão, mas, quando casamos,
Étienne, quer dizer, a família dele não me deixou continuar.
— Mas você sabe... sobre bebês e...
— Sei.
— E se... o bebê some, sabe isso também?
— Você quer dizer: se Deus quiser que o bebê suma?
— Eu... é, isso mesmo. Se Deus quiser.
— Sim, eu sei.
— Tem alguma coisa... alguma prece especial?
Isabelle pensou um instante.
— Vá me encontrar daqui a dois dias no desfiladeiro e
rezaremos juntas.
Pascale ficou indecisa até dizer, de repente:
— Foi em Lyon. Quando tentamos ir embora. Eles haviam
bebido tanto, Papa não sabe...
— Nem vai saber.
Isabelle foi até o fundo do bosque para conseguir o zimbro e
a arruda. Dois dias depois, quando Pascale a encontrou entre
as rochas no alto do desfiladeiro, Isabelle deu uma pasta para
ela comer, depois se ajoelharam no chão e rezaram para
Santa Margarida até o chão ficar vermelho de sangue.
Foi esse o primeiro segredo de sua nova vida.
No primeiro Natal que passaram em Moutier, Isabelle
descobriu que a Virgem estava à espera dela.
Havia duas igrejas. Os seguidores de Calvino tinham se
apossado da igreja católica de São Pedro, queimado as
estátuas dos santos e virado o altar de costas. Os padres
fugiram, fechando a igreja que existia ali há séculos e onde
haviam ocorrido muitos milagres. A capela ao lado, de
Chalières, era agora usada pelos fiéis da paróquia de
Perrefitte, uma pequena aldeia perto de Moutier. Quatro
vezes ao ano, nos dias de festa, os aldeões de Moutier
assistiam aos serviços matinais em São Pedro e aos serviços
vespertinos em Chalières.
Naquele primeiro Natal, usando roupas negras que Pascale e
Gaspard haviam emprestado a eles, os Tournier entraram na
pequena capela. Estava tão cheia que Isabelle ficou na ponta
dos pés para tentar ver o padre. Desistiu logo e olhou acima
dele os murais verdes, vermelhos, amarelos e marrons que
cobriam as paredes do coro e mostravam Cristo com o Livro
da Vida na abóbada e, embaixo, os 12 apóstolos em murais.
Ela nunca mais tinha visto uma igreja enfeitada, desde o
vitral até a estátua da Virgem com o Menino da sua infância.
Na ponta dos pés outra vez, Isabelle olhou as figuras pin-
tadas à altura dela e soltou uma exclamação. A direita do
padre havia uma imagem desbotada da Virgem olhando,
triste, para longe. Isabelle ficou com os olhos cheios de
lágrimas, mas manteve a mesma expressão indiferente.
Olhava o padre e, de vez em quando, o mural. A Virgem
olhava para ela e sorria, depois voltava a ficar com o rosto
triste. Só Isabelle via.
Esse foi o segundo segredo.
Depois disso, ela sempre ia a Chalières nos dias de festa para
ficar o mais perto possível da Virgem.
O sol da primavera trouxe o terceiro segredo. Da noite para
o dia, a neve derreteu, formando cascatas que despencaram
das montanhas em volta e encheram o rio. O sol voltou, o
céu ficou azul, a grama apareceu. Podiam deixar as janelas e
a porta abertas, as crianças e a fumaça fugiam para fora,
Etienne se espreguiçava ao sol como um gato e sorria de
leve para Isabelle. Os cabelos grisalhos faziam com que
parecesse velho.
Isabelle deu as boas-vindas ao sol, mas também ficou atenta.
Todo dia levava Marie ao bosque e examinava os cabelos
dela, arrancando todos os fios ruivos. Marie tinha paciência
e jamais gritou a cada alfinetada de dor. Pediu à mãe para
guardar os fios arrancados, que escondia no buraco de uma
árvore próxima, formando um novelo cada vez maior.
Um dia, Marie correu e enfiou a cabeça no colo da mãe.
— Meus cabelos sumiram — disse, entre lágrimas, já sabendo
então que não devia contar nada para os outros. Isabelle
olhou para Etienne, Hannah e os meninos. A não ser pela
expressão amarga de Hannah, a fisionomia dos outros não a
fez desconfiar de nada.
Isabelle foi ajudar Marie a procurar a árvore onde havia
guardado os cabelos, quando viu um ninho de passarinho
reluzindo ao sol.
— Lá! — mostrou. Marie achou graça e bateu palmas.
— Peguem! — gritou ela para os pássaros, segurando os
cabelos para cima e deixando-os cair numa lenta cascata. —
Peguem, é de vocês! Agora já sei onde meu cabelo está.
Ela ficou rodando de alegria e caiu no chão, rindo.
O assobio agudo aumentou e diminuiu até acabar numa
espécie de trinado de pássaro. Ecoou por todo o vale. Dali a
pouco, ouviram-se os chiados, tinidos e rangidos de uma
carroça, cujas rodas faziam saltar as pedras do chão para
alcançá-los no campo, onde estavam plantando linho.
Etienne mandou Jacob ver quem vinha vindo. Quando
Jacob voltou, pegou a mão de Isabelle e levou-a pela trilha,
com o resto da família atrás, até o começo da aldeia. Lá, a
carroça estava parada, cercada por muita gente.
O mascate era baixo e moreno, de barba, com um bigode
comprido que dava caprichosas voltas e um boné de listras
vermelhas e amarelas, como se fosse um balde de cabeça
para baixo sobre as orelhas. Ele se inclinava na carroça cheia
de mercadorias, bem acima do povo, balançando e subindo
pelos produtos com a firmeza de quem conhece todos os
apoios para os pés e as alças para segurar. Ao mesmo tempo,
falava sem parar com um estranho sotaque cantado que fez
Isabelle sorrir e Etienne prestar atenção.
— Laranjas, laranjas! Tenho para vocês laranjas, azeitonas,
limões de Sevilha! Eis aqui um lindo pote de cobre. E aqui
uma bolsa de couro para você. E umas fivelas, quer fivelas
para os seus sapatos, linda senhora? Sim, quer! Tenho botões
para combinar! E mais tecido, renda, sim, a melhor renda.
Venham, venham! Venham ver e pegar, não tenham medo.
Ah, Jacques La Barbe, bonjour encore! (Ah, estou vendo
Jacques La Barbe, bom-dia outra vez!) Seu irmão manda
dizer que vem logo de Genebra, mas que sua irmã vai ficar
perto de Lyon. Por que ela não vem ficar com você aqui
neste lindo lugar? Não tem importância. E você, Abraham
Rougemont, um cavalo está pronto para você em Viena. E
uma boa compra, vi o animal com os meus olhos. Dê à sua
linda filha uma volta pela aldeia. E Monsieur le régent,
encontrei seu filho...
Ele falava sem parar, passando recados enquanto vendia os
produtos. As pessoas riam e mexiam com ele, era conhecido
e bem-vindo a cada ano, chegava após os rigores do inverno
e, de novo, nas festas da colheita.
No meio da agitação, ele se inclinou na direção de Isabelle.
— Che bella, não a conhecia! — gritou. — Quer ver as coisas
que trago? — perguntou, batendo nas peças de tecido ao
lado dele. — Venha ver!
Isabelle sorriu, tímida, e abaixou a cabeça. Etienne franziu o
cenho. Eles não tinham nada com o que trocar, menos que
nada até, pois deviam favores a todos em Moutier. Ao
chegarem à aldeia, ganharam dois cabritos, um pequeno
saco de fibra de linho e sementes de cânhamo e linho,
lençóis e roupas. Não foi preciso pagar a ninguém, mas
esperava-se que tivessem a mesma generosidade com os
próximos refugiados que chegassem ali sem nada. Os dois
ficaram um bom tempo olhando as mercadorias, admirando
a renda, os novos arreios, as túnicas de linho branco.
Isabelle ouviu o mascate mencionar Alès.
— Pode ser que ele saiba — ela sussurrou para Etienne.
— Não pergunte — ordenou ele, entre dentes.
Ele não quer saber, pensou Isabelle. Mas eu quero.
Esperou Etienne e Hannah irem embora, e Petit Jean e
Marie se cansarem de correr em volta da carroça e irem para
o rio. Então, ela se aproximou do mascate.
— Por favor, Monsieur — chamou, baixo.
— Ah, Bella, você quer dar uma olhada! Venha, venha!
Ela balançou a cabeça.
— Não, quero perguntar uma coisa... o senhor esteve em
Alès?
— No Natal, sim, estive. Por quê? Tem algum recado para eu
dar?
— Minha cunhada e o marido estão lá... devem estar.
Chamam-se Susanne Tournier e Bertrand Bouleaux. Têm
uma filha, Deborah, e talvez um bebê, se Deus quiser.
Pela primeira vez, o mascate ficou calado, pensativo. Parecia
procurar entre todos os rostos e nomes que tinha visto e
ouvido em suas viagens e arquivado na memória.
— Não, não os vi. Mas procuro para você em Alès. Como é
seu nome?
— Isabelle du Moulin. E meu marido é Etienne Tournier.
— Isabella, che bella. Um nome perfeito, não vou esquecer!
— disse, sorrindo para ela. — E mostro para você uma coisa
ótima, especial — disse, baixando a voz. — Três cher (É
bem caro), não mostro para todo mundo.
Fez Isabelle ir para o outro lado da carroça e mexeu em
pilhas de pano até tirar uma peça de linho branco. Jacob
apareceu ao lado de Isabelle e o mascate fez sinal para ele.
— Venha, venha, você gosta de ver as coisas! Vejo que está
olhando. Veja isso, então.
O mascate ficou na frente dos dois e desenrolou a peça de
pano branco. De dentro dela, caiu o quarto segredo, um
pano na cor que Isabelle pensou que nunca mais fosse ver.
Ela soltou um grito e pegou no pano. Era uma lã macia, bem
tingida. Inclinou a cabeça e encostou o rosto no tecido.
O mascate concordou com a cabeça.
— Você conhece esse tom de azul — disse, satisfeito. —
Sabia que conhecia, é o azul da Virgem de São Zacarias.
— Onde fica isso? — perguntou Isabelle, alisando o pano.
— Ah, é uma linda igreja que fica em Veneza. Sabe, esse azul
tem história. O tecelão que o fez copiou a cor do manto da
Virgem que está num quadro da igreja. Foi para agradecer
um milagre dela.
— Que milagre? — perguntou Jacob, com os olhos castanhos
arregalados.
— O tecelão tinha uma filhinha que adorava e um dia ela
sumiu, como costuma acontecer com as crianças em
Veneza. Caem nos canais, sabe, e se afogam. — O mascate
se benzeu.
— Então, a filhinha não voltou para casa e o tecelão foi à
igreja de São Zacarias rezar pela alma dela. Rezou horas para
a Virgem. E, quando voltou para casa, a filha estava lá, viva!
Em agradecimento, ele teceu o pano e tingiu nesse azul
especial, está vendo, para a filha usar e ficar sempre
protegida pela Virgem. Outros tecelões tentaram copiar, mas
jamais conseguiram. Há um segredo no tingimento, sabe,
que só o filho dele conhece. É segredo de família.
Isabelle olhou surpresa para o pano, depois para o mascate,
com lágrimas nos olhos.
— Não tenho dinheiro — disse ela.
— Então tenho uma coisa para você, Bella, vou lhe dar uma
coisinha. Um presente azul.
Ele se inclinou sobre o pano e, de uma ponta desfiada, tirou
uma amostra do tamanho do dedo de Isabella. E, fazendo
uma grande reverência, entregou a ela.
Isabelle pensava sempre no pano azul. Não tinha como
comprá-lo e, mesmo se tivesse, Etienne e Hannah não
deixariam levá-lo para casa.
E um pano católico! resmungaria Hannah, se pudesse falar.
Isabelle escondeu a amostra na bainha do vestido e tirava só
quando estava sozinha ou com Jacob, que não sabia falar as
palavras direito e não diria nada sobre aquele pedaço de cor.
Então, uma das cabras pariu um filhote escondido, e Isabelle
passou a ter mais um segredo para guardar.
A cabra pariu dois filhotes, lambeu-os para limpá-los,
amamentou-os e adormeceu com eles encostados em seus
peitos fartos. Quando Isabelle saiu do campo para ver como
estava a cabra, percebeu a membrana vermelha de mais uma
cabeça saindo. Puxou o pequeno corpo, viu que o cabrito
estava vivo e colocou-o na frente da cabra para ser lambido.
O novo filhote começou a mamar, e Isabelle ficou olhando e
pensando. Os segredos a estavam deixando ousada.
Os bosques em volta de Moutier eram tão vastos que ela
conhecia lugares aonde ninguém ia. Levou o filhote para um
desses lugares, construiu um abrigo de galhos e forragem,
alimentou-o e cuidou dele durante todo o verão, sem que
ninguém soubesse.
Exceto uma pessoa. Um dia, ela estava dando de mamar ao
filhote num saco com leite da cabra, quando Jacob surgiu de
trás de uma faia. Agachado atrás dela, pôs a mão nas costas
do filhote.
— Papa quer saber onde você está — disse, enquanto passava
a mão no filhote.
— Desde quando você sabe que venho aqui?
Ele deu de ombros e brincou com o pêlo do filhote,
levantando-o e alisando-o, para um lado e para outro.
— Você me ajuda a cuidar dele?
Jacob olhou para ela.
— Claro, Maman.
Era tão raro ele sorrir que aquele sorriso foi como receber
uma dádiva.
Dessa vez, quando ouviu o assobio do mascate, estava
preparada. E, ao vê-la, o mascate abriu um largo sorriso. Ela
retribuiu. Enquanto ela e Hannah olhavam os panos de
linho, Jacob subiu na carroça e começou a mostrar os seixos
para o mascate, enquanto dava o recado da mãe em voz
baixa. O mascate concordava com a cabeça e admirava as
estranhas formas e cores das pedras.
— Você tem bons olhos, mio bambino. Suas pedras possuem
lindas cores, lindas formas. Você olha e não fala muito, ao
contrário de mim! Eu gosto de falar e você gosta de olhar,
não? Sim.
Quando o mascate começou a dar os recados que havia
trazido de longe, seus olhos fitaram Isabelle e se iluminaram.
Estalou os dedos e exclamou:
— Ah, lembrei agora! Sim, encontrei sua família em Alès!
Étienne e Hannah também tiveram de olhar para ele,
ansiosos. O mascate instigou a platéia:
— Sim, sim — disse, acenando de um jeito elaborado. — Eu
os vi no mercado de Alès, ah, uma bellafamiglial E falei em
você, ficaram felizes por você estar bem.
— Eles vão bem? Têm um bebê? — perguntou Isabelle.
— Sim, sim, um bebê. Bertrand, Deborah e Isabella, lembrei
agora os nomes.
— Não, Isabelle sou eu. Você quer dizer Susanne. — Isabelle
achou que o mascate havia se enganado.
— Não, não, é Bertrand e as duas filhas, Deborah e Isabella,
que é bebê.
— Mas, e Susanne, a mãe?
— Ah. — O mascate parou, olhou para eles e cofiou o
bigode, nervoso. —Ah, bem, ela morreu quando o bebê
nasceu. Quando Isabella nasceu.
Ele virou de costas, sem jeito por dar aquela má notícia, e
ocupou-se de pegar arreios de couro para um freguês.
Isabelle abaixou a cabeça, os olhos turvos de lágrimas.
Etienne e Hannah saíram do meio das pessoas e ficaram em
silêncio a distância, cabeças baixas.
Marie segurou a mão de Isabelle.
—Maman, um dia vou encontrar Deborah, não é? —
sussurrou.
O mascate encontrou Jacob mais tarde, na estrada. No
escuro, fizeram a troca: a cabra pelo pano azul. O menino
escondeu o pano no bosque. No dia seguinte, ele e Isabelle
pegaram o pano e ficaram olhando por um bom tempo
aquela cor que parecia ondular. Depois, enfiaram o pano
dentro de uma peça de linho e esconderam no colchão de
palha onde Jacob dormia com Marie e Petit Jean.
— Vamos fazer alguma coisa com esse pano, Deus tem de
nos dizer o quê — prometeu ela ao filho.
No outono, fizeram a colheita de um cânhamo que
pertencia a eles. Um dia, Etienne mandou Petit Jean ao
bosque cortar galhos grossos de carvalho para baterem o
cânhamo. Os outros armaram cavaletes e foram trazendo
braçadas de cânhamo do celeiro para estirar em cima.
Petit Jean voltou com cinco galhos no ombro e o ninho de
passarinho feito com fios de cabelo de Marie.
— Olha o que achei, Mémé — disse, girando o ninho para
Hannah, e a cor ruiva refulgiando ao receber a luz do sol.
— Oh! — exclamou Marie, sem se conter. Isabelle
estremeceu.
Etienne passou os olhos de Marie para Isabelle. Hannah
examinou o ninho, depois os cabelos de Marie. Olhou
espantada para Isabelle e entregou o ninho a Etienne.
— Vocês vão ficar lá na beira do rio um pouco — disse
Etienne aos filhos, enérgico.
Petit Jean colocou no chão os galhos e puxou com toda
força os cabelos de Marie. Ela chorou, Petit Jean riu de um
jeito que fez Isabelle se lembrar de quando conhecera
Etienne. O menino foi andando, segurou a faca pela ponta e
atirou-a longe. Ela grudou firme no tronco de uma árvore.
Ele tem dez anos, disse Isabelle a si mesma, mas já pensa e
age como um homem.
Jacob segurou na mão de Marie e saiu junto com ela, de
olhos arregalados para Isabelle.
Etienne não disse nada até as crianças estarem longe. Então,
mostrou o ninho.
— O que é isso?
Isabelle olhou o ninho, depois olhou para o chão. Não sabia
muito sobre guardar segredos a ponto de saber o que fazer
quando fossem descobertos.
Então, disse a verdade.
— São fios de cabelo de Marie — disse, baixo. — Foram
ficando ruivos e eu os tiro no bosque. Os pássaros pegaram
os fios para fazer um ninho. — Engoliu em seco. — Não
queria que zombassem dela, que ela fosse... julgada.
Isabelle percebeu o olhar que Etienne e Hannah trocaram, e
seu estômago ficou pesado, como se tivesse engolido pedras.
Preferia ter mentido para eles.
— Fiz isso para ajudar Marie! — gritou. — Para nos ajudar!
Não tive a intenção de prejudicar ninguém!
Etienne olhou no horizonte.
— Há boatos na aldeia, andei sabendo de algumas coisas —
disse ele, lentamente.
— Que coisas?
— O lenhador Jacques La Barbe disse que acha que você
estava com um filhote de cabra no bosque. Outro encontrou
uma mancha de sangue no chão. Estão falando de você, La
Rousse. É isso o que quer?
Estão falando de mim, pensou ela. Até aqui neste lugar.
Afinal, meus segredos não podem ser segredos. E levam a
outros segredos. Será que vão descobri-los também?
— Mais uma coisa: você esteve com um homem quando
saímos do monte Lozère. Um pastor de ovelhas.
— Quem disse? — Era um segredo que guardava até de si
mesma, não se permitindo pensar nele. O segredo secreto.
Olhou para Hannah e, de repente, soube. Ela pode falar,
concluiu Isabelle. Pode falar e está falando para Etienne. Ela
nos viu no monte Lozère. Ao pensar isso, Isabelle
estremeceu fortemente.
— O que tem a dizer, La Rousse?
Ficou quieta, sabendo que as palavras não podiam ajudá-la,
temendo que mais segredos saíssem, se abrisse a boca.
— O que está escondendo? O que fez com aquela cabra?
Matou-a? Fez um sacrifício para o demônio? Ou trocou-a
com aquele mascate católico que olhava para você daquele
jeito?
Ele pegou um dos galhos, segurou-a pelo pulso e puxou-a
para dentro de casa. Deixou-a num canto, enquanto
procurava alguma coisa em toda parte, jogando os potes no
chão, mexendo na lareira, rasgando o colchão de palha
deles, depois o de Hannah. Quando chegou ao colchão das
crianças, Isabelle prendeu a respiração.
Agora é o fim, pensou. Santa Mãe, me ajude.
Tirou toda a palha de dentro do colchão.
O pano não estava lá.
A surra foi uma surpresa, ele nunca havia batido nela. O
soco fez com que ela caísse no meio da sala.
— Você não vai nos arrastar para baixo por causa de sua
feitiçaria, La Rousse — disse ele, calmamente. Depois,
pegou o galho que Petit Jean havia cortado e bateu nela até a
sala ficar escura.
6
A BÍBLIA
Não sei se acordei por causa da fumaça, ou do frio que
entrava pela janela aberta. Abri os olhos e vi a ponta laranja
de um cigarro aceso, depois a mão que o segurava,
descansada no volante do carro. Sem mexer a cabeça, segui
o braço até os ombros e depois o rosto dele, de perfil. Ele
olhava para fora por cima do volante, como se ainda
estivesse dirigindo, mas o carro estava parado, o motor desli-
gado sem sequer sacudir como quando era desligado. Não
tinha idéia do tempo que estávamos sentados ali.
Eu estava enroscada de lado, no assento do carona, virada
para ele, com o rosto enfiado na trama áspera do descanso
de cabeça, meus cabelos haviam caído no rosto e grudado na
boca. Olhei pelo espaço entre os dois assentos: a Bíblia
estava no banco de trás, enrolada numa sacola plástica.
Embora eu não tivesse me mexido nem falado, Jean-Paul
virou a cabeça e olhou para mim. Ficamos um bom tempo
nos olhando sem dizer nada. O silêncio era agradável,
mesmo eu não sabendo o que ele estava pensando: seu rosto
tinha expressão, mas não dava qualquer pista.
Quanto tempo é preciso para superar dois anos de casa-
mento e mais dois de relacionamento? Nunca passei por
qualquer tentação no casamento, pois, quando encontrei
Rick, achei que minha busca havia terminado. Tinha ouvido
minhas amigas falarem da procura pelo homem certo, os
casos desastrosos, os corações partidos, e jamais me via no
lugar delas. Era como assistir na tevê a um programa de
viagem para um lugar aonde você sabe que jamais irá: a
Albânia, a Finlândia, o Panamá. Mas agora eu estava com a
impressão de que tinha em mãos uma passagem aérea para
Helsinque.
Estendi a mão e segurei no braço dele. Estava quente. Passei
a mão no cotovelo e na manga da camisa dobrada. Quando
estava no meio do braço, sem saber o que fazer a seguir, ele
cobriu minha mão com a dele, parando-a na curva do
bíceps.
Segurei firme o braço dele, sentei no banco e tirei os cabelos
do meu rosto. Minha boca tinha o gosto das azeitonas dos
martínis que Mathilde havia pedido para mim à tarde. Eu
estava com a jaqueta preta de Jean-Paul nos ombros, era
macia e com cheiro de cigarro, folhas e pele cálida. Nunca
havia usado as jaquetas de Rick, pois ele era muito mais forte
e mais alto do que eu, e elas me faziam parecer uma caixa,
com suas mangas deixando meus braços sem movimento.
Naquele momento, senti que estava usando uma roupa que
me pertencia há anos.
Mais cedo, quando estávamos com as outras pessoas no bar,
Jean-Paul e eu conversamos em francês a noite toda e
prometi continuar falando francês. Perguntei então: —Nous
sommes arrivés chez nous? (Chegamos à nossa casa?) — E
imediatamente me arrependi. A frase estava
gramaticalmente correta, mas o "nossa casa" dava a
impressão de que morávamos juntos. Como acontecia com
freqüência com o francês que eu falava, sabia o sentido das
palavras, mas não suas conotações.
Se Jean-Paul percebeu, não chegou a demonstrar. — Non, le
Fina (Não, estamos no posto de gasolina Fina) — respondeu.
— Obrigada por dirigir — continuei, em francês.
— Não há de quê. Você já pode dirigir?
— Posso. — De repente, eu me senti sóbria e prestei atenção
na mão dele sobre a minha. —Jean-Paul... — comecei,
querendo dizer alguma coisa, mas sem saber o quê.
Ele passou um instante calado até dizer: — Você nunca usa
cores vivas.
Pigarreei. — Acho que não. Desde adolescente.
— Ah. Goethe disse que só as crianças e as pessoas simples
gostam das cores vivas.
— Isso é um elogio? É que eu gosto de tecidos em cores
naturais, só isso. Algodão, lã e principalmente, como se diz
em francês? — Mostrei a manga do meu vestido e Jean Paul
tirou sua mão da minha para pegar na roupa com dois dedos
e com os outros esfregar minha pele.
— Le lin. E como se diz em inglês?
— Linen. Como eu dizia, sempre usei linho, principalmente
no verão. Fica melhor em cores naturais, branco, marrom
e... — desisti. O nome das cores estava muito longe do
francês que eu sabia: quais eram as palavras para areia, cara-
melo, ferrugem, bege cru, sépia, ocre?
Jean-Paul soltou a manga do vestido e segurou no volante.
Olhei minha mão no braço dele, após vencer tantas inibi-
ções para chegar lá, e achei que ia chorar. Relutante, enfiei a
mão embaixo do meu braço, apertando a jaqueta de Jean-
Paul nos ombros e olhando para a frente. Por que estávamos
ali filiando nas minhas roupas? Eu estava com frio, queria ir
para casa.
— Goethe — esnobei, enfiando os saltos no chão do carro e
empurrando as costas no assento, impaciente.
— O que tem Goethe?
Voltei a falar inglês. — Você tinha de falar em alguém como
Goethe exatamente agora.
Jean-Paul jogou pela janela o toco do cigarro e tornou a
fechar o vidro. Abriu a porta do carro, saiu e sacudiu as
pernas duras. Entreguei a jaqueta para ele e passei para o
lugar do motorista. Ele vestiu a jaqueta, inclinou-se sobre o
carro com uma das mãos no alto da porta e a outra no teto.
Olhou para mim, balançou a cabeça e suspirou, exasperado,
entre dentes.
— Não gosto de me meter com mulher casada — res-
mungou, em inglês. — Mesmo quando não consigo parar de
olhá-la e ela sempre discute comigo, me irrita e, ao mesmo
tempo, me atrai. — Ele se inclinou e, bruscamente, me deu
um beijo de cada lado do rosto. Ia se levantar quando minha
mão, minha ousada e traiçoeira mão, agarrou o pescoço dele
e puxou-o.
Fazia anos que eu só beijava Rick, mais ninguém. Havia
esquecido como cada pessoa podia ser diferente. Os lábios
de Jean-Paul eram macios mas firmes, davam só uma
amostra do que havia além. O cheiro dele era intoxicante;
parei o beijo e esfreguei o rosto na lixa do rosto dele, enfiei
o nariz em seu pescoço e respirei fundo. Ele se abaixou e
empurrou minha cabeça para trás, passando os dedos pelos
meus cabelos como se fossem um pente. Sorriu. — Você
parece mais francesa, com esses cabelos ruivos, Ella
Tournier.
— Não pintei, juro.
— Eu nunca disse que havia pintado.
— Foi Ri... — Nós dois nos endireitamos e Jean-Paul parou
de acariciá-los.
— Desculpe, eu não quis... — suspirei e abaixei a cabeça. —
Não pensei que estivesse infeliz com Rick, mas agora parece
que alguma coisa não... é como se fôssemos um quebra-
cabeça com todas as peças encaixadas, mas formando uma
imagem errada. — Minha garganta foi se apertando e parei
de falar.
Jean-Paul tirou a mão dos meus cabelos. — Ella, nós demos
um beijo, não quer dizer que o seu casamento tenha
acabado.
— É, mas... — Parei. Se eu tinha dúvidas sobre a minha
relação com Rick, devia comentá-las com ele.
— Quero continuar encontrando você, posso? — perguntei.
— Pode me encontrar na biblioteca. No posto Fina, não. —
Ele pegou minha mão e beijou a palma. —Au revoir, Ella
Tournier. Bonne nuit — disse ele.
— Bonne nuit — respondi.
Ele se levantou. Fechei a porta do carro e olhei-o entrar no
dele, que parecia de lata. Ligou o motor, deu uma buzinada
leve e partiu. Senti um alívio por ele não querer esperar que
eu fosse primeiro. Aguardei as lâmpadas traseiras do carro
piscarem no final da longa estrada margeada de árvores.
Então, soltei um longo suspiro, peguei a Bíblia dos Tournier
no banco traseiro, coloquei-a no colo e fiquei olhando a
estrada.
Fiquei pasma ao constatar como era fácil mentir para Rick.
Sempre achei que ele saberia na hora se eu o enganasse, que
eu jamais conseguiria esconder minha culpa, que ele me
conhecia muito bem. Mas as pessoas vêem o que querem, e
Rick esperava que eu fosse de um jeito e era assim que eu
era para ele. Quando entrei em casa com a Bíblia embaixo
do braço, depois de estar com Jean-Paul apenas meia hora
antes, Rick levantou os olhos do jornal e disse, animado: —
Olá, garota. — E foi como se nada tivesse acontecido. Foi o
que pareceu, eu estava em casa, com Rick muito tranqüilo
sob a lâmpada de leitura, longe do carro escuro, da fumaça
de cigarro, da jaqueta de Jean-Paul. O rosto de Rick era
sincero e ingênuo, não escondia nada de mim. Sim, eu quase
podia dizer que não havia acontecido nada. A vida podia ser
incrivelmente dividida em compartimentos.
Seria bem mais fácil se Rick fosse um bobo, pensei. Mas eu
jamais teria me casado com um bobo. Dei um beijo na testa
dele. — Tenho uma coisa para mostrar a você — anunciei.
Ele abaixou o jornal e empertigou-se. Ajoelhei a seu lado,
tirei a Bíblia da sacola e coloquei-a no colo dele.
— Olha aí que coisa importante. Onde arrumou? Ao tele-
fone, você não disse direito aonde estava indo — ele falou,
passando a mão na capa do livro.
— O senhor que me ajudou em Le Pont de Montvert,
Monsieur Jourdain, achou-a no arquivo. E me deu.
— É sua?
— É. Olhe a página de rosto. Viu? São meus antepassados.
Pronto.
Rick olhou a lista de nomes, concordou com a cabeça e
sorriu para mim.
— Você conseguiu, encontrou-os!
— É. Com muita ajuda e muita sorte. Mas achei. — Tive de
notar que ele não examinou a Bíblia com tanta atenção e
carinho quanto Jean-Paul. Pensar nisso fez meu estômago
dar um nó de culpa: aquelas comparações eram totalmente
injustas. Não vou mais fazer isso, pensei, séria. Não vou mais
fazer isso com Jean-Paul. Pronto.
— Sabe, essa Bíblia vale um bom dinheiro. Tem certeza de
que ele a deu para você? Pediu um recibo de doação? —
perguntou Rick.
Olhei-o, incrédula. — Não, não pedi! Você pede recibo toda
vez que lhe dou um presente?
— Ora, Ella, estou tentando ser útil. Não vai querer que ele
mude de idéia e peça a devolução. Se tiver a doação por
escrito, esse problema estará descartado. Devemos guardá-la
numa caixa de valores no banco. Talvez em Toulouse. Não
creio que o banco daqui tenha uma.
— Não vou colocá-la em caixa de valores! Vou guardá-la aqui
comigo! — Olhei bem para ele. Foi exatamente nesse ponto
que aconteceu: como aquelas criaturas unicelulares que de
repente se dividem em duas sob o microscópio, sem
qualquer motivo aparente, senti que estávamos nos separan-
do em seres distintos com perspectivas diversas. Foi
estranho, não havia percebido quão juntos havíamos estado
até nos separarmos.
Rick não pareceu notar a mudança. Eu o encarei até que
franziu o cenho: — O que houve? — perguntou.
— Eu... bom, garanto que não vou colocá-la numa caixa de
valores. É valiosa demais para isso. — Peguei a Bíblia e
apertei-a contra o peito.
Para alívio meu, Rick viajou para a Alemanha no dia
seguinte. Eu estava tão agitada com o novo espaço que havia
entre nós que precisava de um tempo sozinha. Ele me deu
um beijo de despedida, sem saber do meu tumulto interior,
e fiquei pensando se era tão cega para o que se passava
dentro dele quanto ele era em relação a mim.
Era uma quarta-feira e eu queria muito ir ao café à beira do
rio ver Jean-Paul. Mas a razão venceu o coração: sabia que
era melhor deixar as coisas estagnadas por algum tempo.
Antes de sair de casa para fazer minha ronda diária, esperei
ter certeza de que Jean-Paul estaria no café, enfiado no
jornal. Um encontro casual na rua, com tanta gente em
volta fascinada com cada gesto nosso, não seria nada
agradável. Eu não estava com a menor intenção de
apresentar essa cena para a cidade. À medida que me
aproximava da praça central, fui tomada pelas histórias que
Jean-Paul havia contado das moradoras, do que a cidade
pensava de mim, e quase voltei correndo para a privacidade
de minha casa, com vontade até de fechar as venezianas.
Fiz questão de seguir em frente. Comprei o Herald Tribune
e o Le Monde, a vendedora mostrou-se muito simpática,
não me lançou nenhum olhar esquisito, e até chegou a
comentar do tempo. Não parecia estar pensando na minha
máquina de lavar, nas janelas da minha casa ou nos meus
vestidos sem manga.
O verdadeiro teste foi com a Madame. Encaminhei-me
decidida para a boulangerie. — Bonjour, Madame! —
cumprimentei ao entrar. Ela estava conversando com
alguém e franziu o cenho de leve. Olhei as pessoas com
quem ela falava e dei de cara com Jean-Paul. Ele disfarçou a
surpresa, mas não o bastante para Madame não perceber:
olhou para nós com nojo e alegria triunfantes.
Ah, pelo amor de Deus, agora chega. —Bonjour, Monsieur
— disse eu, alto.
—Bonjour, Madame — respondeu ele. Embora o rosto não
se alterasse, a voz dava a impressão de que ele havia
levantado as sobrancelhas.
Virei-me para Madame. —Madame, gostaria de levar vinte
quiches, por favor. Adoro-as. Como quiches todos os dias
no café-da-manhã, almoço e jantar.
— Vinte quiches — repetiu ela, boquiaberta.
— Sim, por favor.
Madame fechou a boca e apertou tanto os lábios que eles
sumiram, e, de olho em mim, pegou um saco de papel. Ouvi
Jean-Paul pigarrear baixo. Madame se abaixou para colocar
as quiches no saco e aproveitei para olhá-lo. Jean-Paul estava
examinando uma vitrine de amêndoas açucaradas, no canto
da loja. Apertava a boca e esfregava o queixo com o
indicador e o polegar. Olhei para Madame e sorri. Ela se
empertigou por trás da vitrine e dobrou a beira do saco com
as quiches. — Só tem 15 — avisou, olhando para mim.
— Ah, que pena. Terei de ir à pâtisserie ver se tem mais. —
Desconfiei que Madame não gostava da pâtisserie, onde
vendiam produtos que, para ela, pareciam supérfluos demais,
enquanto ela era uma padeira séria. Eu estava certa: Madame
arregalou os olhos, tomou fôlego, balançou a cabeça e fez
um ruído grosseiro: — Eles não têm quiches! Sou a única
que as faz em Lisle-sur-Tarn!
— Bom, então pode ser que eu encontre no Intermarché —
disse eu.
Nesse ponto, Jean-Paul emitiu um som esquisito e Madame
quase deixou cair o saco de quiches. Eu havia cometido o
pecado de falar na arqui-rival e maior ameaça à loja dela: o
supermercado na saída da cidade, que não tinha história, não
tinha dignidade, nem sofisticação. Era meio como eu. Sorri.
— Quanto é? — perguntei.
Madame demorou um instante para responder; parecia
precisar se sentar. Jean-Paul aproveitou a oportunidade para
murmurar "Au revoir, Mes dames", e sumiu.
Assim que saiu, perdi a vontade de brigar com ela. Quando
respondeu o que me pareceu um alto preço, entreguei o
dinheiro, humilde. As quiches valiam.
Do lado de fora, Jean-Paul emparelhou o passo comigo.
— Você está muito agressiva, Ella Tournier — disse, baixo,
em francês.
— Quer algumas quiches? — ofereci. Rimos.
— Acho que não devemos nos ver em público. Este lugar
aqui é bem público. — Mostrei a praça com a mão.
— Ah, mas eu tenho um motivo profissional para falar com
você. Olhou bem a Bíblia?
— Ainda não. Escuta, você não pára de trabalhar? Não
dorme?
Ele sorriu. — Nunca precisei dormir muito. Leve a Bíblia à
biblioteca amanhã. Descobri umas coisas interessantes sobre
a sua família.
A Bíblia tinha um formato esquisito, era comprida e bem
estreita. Mas não era muito pesada e cabia bem no meu
braço. A capa era de um couro gasto e seco, muito raspado e
macio, manchado de castanho-escuro. O couro estava
partido e enrugado, com pequenos furos de inseto em várias
partes. A capa posterior estava enegrecida e meio queimada,
mas continuava intacto o desenho intricado de linhas, folhas
e pontos dourados. A lombada tinha flores douradas, e um
desenho diferente havia sido feito com martelo e alfinete,
na lateral das páginas.
Abri no começo do Gênesis: Diev crea au commencement
le ciel & la terre. (No começo, Deus criou o céu e a terra.) O
texto em francês era em duas colunas, com uma tipografia
clara e, embora a escrita fosse estranha, entendi o francês...
ou o que havia restado dele. O final do livro estava
queimado, e as páginas do meio tão chamuscadas que não
dava para ler.
No bar Crazyjoe, Mathilde e Monsieur Jourdain haviam tido
uma longa discussão sobre as origens daquela Bíblia, e Jean-
Paul dava um palpite de vez em quando. Eu entendia só um
pouco do que falavam porque o sotaque de Monsieur
Jourdain era bem difícil de decifrar e Mathilde falava muito
rápido. Era sempre mais complicado acompanhar uma con-
versa em francês quando as pessoas não estavam falando
diretamente comigo. Pelo que pude entender, eles
concordavam que o livro devia ter sido publicado em
Genebra e traduzido por alguém chamado Lefèvre d'Etaples.
Monsieur Jourdain insistiu naquele nome.
— Quem foi ele? — perguntei, insegura.
Monsieur Jourdain riu. —La Rousse quer saber quem foi
Lefèvre — ficou repetindo, balançando a cabeça. Àquela
altura, ele havia tomado três uísques com soda. Deixei,
paciente, que ele fizesse sua piadinha, os martínis tinham
me deixado mais tolerante em relação a rirem de mim.
Ele acabou explicando que Lefèvre d'Etaples tinha sido o
primeiro tradutor da Bíblia do latim para o francês
vernáculo, de forma que os fiéis pudessem lê-la, não só os
padres. — Foi o começo de tudo — declarou ele. — Dividiu
o mundo ao meio! — disse Monsieur Jourdain, após o que
despencou do banquinho e caiu sentado no meio do bar.
Tentei não rir, mas Mathilde cobriu a boca com a mão,
Sylvie achou muita graça e Jean-Paul sorriu enquanto virava
as páginas da Bíblia. Lembrei então que ele tinha olhado a
página sobre os Tournier durante um bom tempo e feito
anotações nas costas de um envelope. Eu estava muito tonta,
e não tive coragem de perguntar o que estava fazendo.
Para tristeza de Mathilde e desapontamento meu, Monsieur
Jourdain não lembrava quem havia entregue a Bíblia para
ele. — É por isso que você precisa registrar as coisas! —
zangou ela. — Para urna pessoa como Ella, detalhes são
importantes! —Monsieur ficou bem sem graça, copiou o
nome de todos os membros da família que estavam na Bíblia
e prometeu ver se achava alguma coisa sobre eles, inclusive
sobre os que tinham outros sobrenomes.
Eu estava chegando à conclusão de que a Bíblia viera de
alguém que morava em redor de Le Pont de Montvert, mas
sabia que podia ter sido trazida de qualquer lugar, com as
pessoas se mudando para a região e levando seus pertences.
Mas, quando sugeri isso, Mathilde e Monsieur balançaram a
cabeça.
— Pessoas de fora não trariam a Bíblia para cá — explicou
Mathilde. — Só uma família de Cevenol poderia tê-la
entregue a Monsieur Jourdain. Aqui, as pessoas têm uma
forte noção de História, e objetos de família como esse não
saem daqui.
— Mas as famílias saem. A minha saiu.
— Saiu por causa de religião — disse ela, fazendo um gesto
reticente com a mão. — Claro que eles foram embora a
partir de 1685; muitas famílias foram. É engraçado que a sua
família tenha ido na época em que foi. Um século depois, a
situação foi muito pior para os protestantes cevenóis. O
Massacre de São Bartolomeu foi uma... — Ela parou e deu de
ombros, depois fez um gesto para Jean-Paul: — Explique,
Jean-Paul. — Ela estava de blusa de ginástica rosa e minissaia
xadrez.
— Foi um evento burguês, de certa forma — continuou ele,
baixo, sorrindo para ela. — Acabou com a nobreza
protestante. Mas os huguenotes cevenóis eram camponeses
e a região de Cévennes era isolada demais para ser ameaçada.
Podia haver uma tensão com os poucos católicos locais,
suponho. A catedral em Mende, por exemplo, continuou
católica.
Eles podem ter resolvido ir assustar alguns huguenotes. O
que você acha, Mademoiselle? — perguntou Jean-Paul para
Sylvie. Ela olhou-o com franqueza, esticou as pernas, mexeu
os dedos dos pés e disse:
— Olhe, mamãe pintou minhas unhas de branco!
Então me voltei para a lista dos Tournier e examinei-a. Ali
estava a família que devia ter acabado em Moutier: Étienne
Tournier, Isabelle du Moulin e seus filhos, Jean, Jacob e
Marie. Segundo a carta de meu primo, Étienne constava de
um alistamento militar de 1576 e Jean se casara em 1590.
Conferi as datas, fazia sentido. E esse Jacob era mais um na
longa lista que terminava em meu primo. Achei que ele
devia ficar sabendo. Vou escrever para ele contando, pensei.
Descobri algo escrito na parte interna da capa que ninguém
tinha visto ainda. Estava sujo e apagado, mas consegui
entender Mas de la Baume du Monsieur. Seria, mais ou
menos traduzido, Fazenda do Bálsamo do Cavalheiro. Peguei
o mapa que havia comprado, com detalhes da área em torno
de Le Pont de Montvert, e fui olhando. Procurei em
círculos concêntricos a partir de aldeia com um nome
parecido. Em apenas cinco minutos, encontrei, a uns dois
quilômetros a noroeste de Le Pont de Montvert. Era uma
colina situada ao norte do rio Tarn, semi-coberta por uma
floresta. Concordei com a cabeça. Aquilo era tarefa para
Jean-Paul.
Mas ele não devia ter visto o nome da fazenda na noite
anterior, senão teria dito. O que ele queria dizer quando
comentou que sabia algo sobre a minha família? Olhei os
nomes e datas, mas só encontrei duas coisas estranhas na
lista: um Tournier que se casara com uma Tournier, um dos
Jean, que nascera no dia de Ano-Novo.
Na tarde seguinte, quando cheguei à biblioteca com a Bíblia
numa sacola, Jean-Paul me apresentou para a outra
bibliotecária. Quando ela bateu os olhos na Bíblia, deixou de
parecer desconfiada.
— O senhor Piquemal é especialista em livros e História
antigos — disse ela, numa voz sonora. — Isso é assunto para
ele. Eu trato mais de romances, narrativas históricas, coisas
assim. Livros mais populares.
Senti uma provocação em Jean-Paul, mas simplesmente
cumprimentei a mulher e sorri para ela. Jean-Paul esperou
que terminássemos de falar e me levou para uma mesa na
outra sala. Abri a Bíblia enquanto ele tirava o envelope no
qual havia feito anotações.
— Então, o que você descobriu? — perguntou, ansioso.
— Que o seu sobrenome é Piquemal.
— Edaí?
— Significa "má picada", perfeito. — Dei um sorriso irônico
e ele franziu o cenho.
— Pique também pode ser lança — ele resmungou.
— Melhor ainda!
— Então. O que encontrou em suas pesquisas? — repetiu ele.
Mostrei o nome da fazenda na parte interna da Bíblia, depois
abri meu mapa e mostrei o lugar. Jean-Paul concordou com
a cabeça e olhou o mapa: — Muito bem, hoje nessa área não
há qualquer construção, mas pelo menos temos certeza de
que a Bíblia vem daí. E o que mais?
— Dois Tournier se casaram.
— É, deviam ser primos. Na época, isso era mais ou menos
comum. O que mais?
— Hum, um deles nasceu no dia de Ano-Novo.
Ele levantou as sobrancelhas; eu esperava não ter dito nada
de errado. — Mais alguma coisa? — insistiu.
— Não. —Ele estava sendo irritante outra vez, mas achei
difícil sentar do seu lado e conversar como se nada tivesse
acontecido naquela noite. Estava com o braço tão próximo
do meu na mesa que eu podia facilmente tocá-lo. Isso é o
mais próximo que vamos chegar um do outro, pensei. Não
vai passar disso. Sentar ao lado dele parecia uma coisa triste,
inútil.
— Não achou mais nada de interessante? — perguntou Jean-
Paul, irritado. — Ah, a educação norte-americana. Você não
seria uma boa detetive, Ella Tournier. — Ao ver minha
expressão, ele parou e ficou sem jeito. — Desculpe. Você
não gosta do meu jeito de brincar — disse, passando a falar
inglês como se isso fosse me acalmar.
Balancei a cabeça e fiquei olhando a Bíblia. — Não é isso. Se
eu não aceitasse as suas brincadeiras, não poderia falar com
você. Não, é que... — balancei a mão como se quisesse
afastar o assunto — ...naquela noite. É difícil ficar aqui assim
— expliquei, baixo.
— Ah. — Sentamos lado a lado, olhando a lista da família,
bem cientes da presença um do outro.
— Engraçado — quebrei o silêncio —, acabo de notar que
Etienne e Isabelle se casaram um dia antes do aniversário
dele. Vinte e oito de maio, 29 de maio — disse eu.
— É. — Jean-Paul bateu um dedo de leve na minha mão. —
É. Foi a primeira coisa que notei. Estranho. E me perguntei:
será que foi coincidência? Depois, vi a idade dele. Faria 25
anos no dia seguinte ao casamento.
— Ele fez 25 anos.
— É. Na época, quando um huguenote fazia 25 anos, não
precisava mais da permissão dos pais para se casar.
— Mas ele tinha 24 quando se casou, portanto deve ter
precisado — considerei.
— É, mas parece estranho casar tão perto dos 25 anos. Pode
ter sido para o caso de alguém ficar na dúvida sobre o que os
pais achavam do casamento. Depois, pesquisei mais. Veja a
data de nascimento do primeiro filho deles — disse Jean-
Paul, mostrando a página.
— É, no dia do Ano-Novo, como eu disse. E daí?
Ele franziu o cenho para mim. — Olhe de novo, Ella
Tournier. Use a cabeça.
Olhei a página. Quando entendi o que quis dizer, não
acreditei que eu não tivesse percebido antes, logo eu.
Comecei a calcular rápido, contando nos dedos, de trás para
diante.
— Agora você entendeu.
Concordei, somando os dias, e anunciei: — Ela teria
engravidado mais ou menos em 10 de abril.
Jean-Paul parecia achar graça. — Dez de abril, é? Como
chegou a essa conclusão? — Ele simulou estar contando nos
dedos.
— Calcula-se que o nascimento ocorra mais ou menos 266
dias após a fecundação. Mais ou menos. A gestação varia de
uma mulher para outra, claro, e na época podia ser um
pouco diferente. Tinham uma alimentação diferente e, por-
tanto, um corpo diferente. Mas, de todo jeito, ela
engravidou em abril. Umas sete semanas antes de se
casarem.
— E de onde você tirou esses 266 dias, Ella Tournier? Nunca
teve filhos, não? Ou escondeu-os em algum lugar?
— Sou parteira.
Ele pareceu intrigado, então falei em francês: — Une sage-
femme. (Parteira.) Je suis une sage-femme.
— Toi? Une sage-femme?
— É. Você nunca perguntou o que eu fazia.
Ele parecia desanimado, o que não era comum, e me senti
vitoriosa; pela primeira vez, eu estava por cima.
— Você sempre me surpreende, Ella — disse, balançando a
cabeça e sorrindo.
— Anda, anda, não faça charme, senão sua colega vai contar
para a cidade inteira.
Por instinto, nós dois olhamos para a porta e nos
empertigamos. Eu me afastei dele.
— Quer dizer que foi um casamento sob a mira do revólver?
— falei, para voltarmos ao assunto.
— Sob a mira do revólver?
— Essa expressão norte-americana significa que o sogro
obrigou o noivo a casar quando soube que a noiva estava
grávida. Nos Estados Unidos existe esse estereótipo: o pai
apontando uma arma para o rapaz subir ao altar.
Jean-Paul pensou um instante. — Vai ver que foi isso. — Ele
não parecia convicto.
— Mas?
— Mas um casamento sob a mira do revólver, como você
diz, não explica por que se casaram tão perto do aniversário
dele.
— Bom, então foi coincidência. E daí?
— Você e as suas coincidências, Ella Tournier. Escolhe as
que são mais que coincidências. Portanto, essa aqui é uma
coincidência e Nicolas Tournier não é.
Fiquei tensa. Não discutíamos o pintor desde o dia em que
havíamos discordado tanto sobre ele.
— Eu podia dizer o mesmo de você! Escolhemos coinci-
dências diferentes para acreditar, nada mais — revidei.
— Eu estava interessado em Nicolas Tournier até descobrir
que não era seu parente. Dei uma oportunidade a ele. E dou
outra oportunidade para essa coincidência também.
— Está bem, então por que isso é mais do que uma coin-
cidência?
— Por causa do ano e do dia do casamento. Ambos são
nefastos.
— O que você quer dizer com nefasto?
— No Languedoc, acreditava-se que não se devia casar em
maio ou novembro.
— Por quê?
— Maio é mês de chuva e de lágrimas, e novembro é mês
dos mortos.
— Mas isso não passa de superstição. Pensei que os
huguenotes estivessem tentando não ser supersticiosos.
Supunha-se que esse era um vício dos católicos.
Isso fez com que ele parasse um pouco. Não era só ele que
havia lido livros.
— Mesmo assim, é verdade que havia menos casamentos
nesses meses, e 28 de maio de 1563 foi uma segunda-feira; a
maioria dos casamentos era na terça ou no sábado. Eram os
dias preferidos.
— Espera aí. Como você sabe que era uma segunda-feira?
— Achei um calendário na Internet.
Ele era o mais improvável bobo metido a intelectual.
Suspirei. — Então você, obviamente, tem uma teoria sobre
o que aconteceu. Não sei por que eu insisto em pensar que
tenho alguma opinião sobre isso tudo.
Ele me olhou. — Pardon. Tirei a sua pesquisa de você, não
é?
— Sim. Olhe, agradeço a ajuda, mas sinto que você está
agindo com a cabeça e não com o coração. Entende?
Ele apertou os lábios como se estivesse amuado e con-
cordou.
— Mesmo assim, gostaria de ouvir a sua teoria. Mas é apenas
uma teoria, não? Continuo acreditando que tenha sido um
casamento sob a mira do revólver.
— É. Portanto, pode ser que os pais dele fossem contra o
casamento até saberem da gravidez. Então, apressaram tudo
para os vizinhos acreditarem que eles sempre aprovaram.
— Mas será que as pessoas não desconfiaram por causa das
datas? Sou capaz de imaginar uma versão de Madame do
século XVI em ação.
— Talvez, mas ainda era melhor parecer que haviam
aprovado.
— Só por causa das aparências.
— Quer dizer que as coisas não mudaram muito em
quatrocentos anos.
— Você esperava que mudassem?
A bibliotecária apareceu na porta. Deve ter parecido que
estávamos imersos em consultas, pois ela apenas sorriu e
sumiu.
— Tem mais uma coisa. Uma coisinha. O nome Marie. E
estranho uma família de huguenotes dar esse nome a uma
criança — disse Jean-Paul.
— Por quê?
— Porque Calvino queria que as pessoas deixassem de adorar
a Virgem Maria. Acreditava num contato direto com Deus e
não através de uma figura como ela, que era considerada um
desvio de Deus. Além de fazer parte do catolicismo. É
estranho terem dado o mesmo nome da Virgem.
— Marie — repeti.
Jean-Paul fechou a Bíblia. Olhei-o tocar a capa e acompa-
nhar com o dedo o desenho da folha dourada.
—Jean-Paul.
Ele virou-se para mim, os olhos brilhando.
— Venha para casa comigo. — Eu não tinha percebido que ia
dizer isso.
O rosto dele não se alterou, mas a transformação entre nós
foi como o vento mudando de direção.
— Ella. Eu estou trabalhando.
— Depois do trabalho.
— E o seu marido?
— Está fora. — Estava começando a sentir-me humilhada. —
Esqueça. Esqueça até que perguntei. — Ia me levantar, mas
ele colocou a mão sobre a minha e não deixou que eu me
levantasse. Sentei de novo, ele olhou para a porta e tirou a
mão.
— Quer ir a algum lugar hoje à noite? — perguntou.
— Onde?
Jean-Paul escreveu alguma coisa num pedaço de papel. — A
melhor hora para chegar é lá pelas 11 da noite.
— Mas o que tem nesse lugar?
Ele balançou a cabeça. — Uma surpresa. Apenas vá e verá.
Tomei um banho e passei mais tempo me arrumando, como
não fazia há muito, embora não tivesse idéia do lugar aonde
ia: Jean-Paul apenas rabiscara um endereço em Lavaur,
cidade a uns 19 quilômetros. Podia ser um restaurante, a
casa de um amigo ou um boliche, eu não tinha a menor
idéia.
O comentário dele na noite anterior, sobre as minhas
roupas, ficou na minha cabeça. Apesar de não ter certeza se
havia sido uma critica, procurei no guarda-roupa alguma
coisa colorida. Acabei usando outra vez o vestido amarelo-
claro sem mangas, que era o máximo que eu conseguia che-
gar em matéria de cor. Pelo menos, eu me sentia bem nele
e, com sandálias marrons sem salto e um pouco de batom,
não fiquei muito ruim. Não podia começar a competir com
as francesas, que pareciam ter estilo usando apenas jeans e
camiseta, mas eu dispensava esse tipo de roupa.
Havia acabado de fechar a porta de casa, quando o telefone
tocou. Corri para atender antes da secretária eletrônica.
— Olá, Ella, tirei você da cama?
— Rick. Não, eu estava indo, hum, dar uma caminhada. Lá
na ponte.
— Uma caminhada às 11 da noite?
— É, está calor e eu estou entediada. Onde você está?
— No hotel.
Tentei lembrar: em Hamburgo ou em Frankfurt?
— A reunião foi boa?
— Ótima! — Ele contou como havia sido o dia, dando tempo
para eu me recompor. Quando perguntou o que eu andava
fazendo, não pensei em nada que ele gostaria de ouvir.
— Pouca coisa. E quando você volta? —- respondi, apres-
sada.
— No domingo. Tenho de parar em Paris na volta. Escuta,
meu bem, com que roupa você está? — Era uma velha
brincadeira que costumávamos fazer ao telefone: um dizia
como o outro estava e o outro começava a tirar a peça. Olhei
meu vestido e sapatos. Não podia dizer o que eu estava
usando, nem por que não queria fazer o jogo.
Por sorte, fui salva pelo próprio Rick, que disse: — Espera,
tem uma ligação para mim, é melhor eu atender.
— Claro. Vejo você daqui a uns dias.
— Te amo, Ella. — Desligou.
Esperei alguns minutos sentindo um enjôo, para ter certeza
de que ele não ia ligar de novo.
No carro, fiquei pensando: Você pode voltar, Ella. Não
precisa fazer isso. Pode dirigir até esse lugar, estacionar,
chegar à porta do que for e voltar. Pode até vê-lo, passar
algum tempo com ele, o que será perfeitamente inocente, e
depois voltar pura e sem se adulterar. Literalmente.
Lavaur era uma cidade com uma catedral umas três vezes
maior do que Lisle-sur-Tarn, com um bairro antigo e alguma
semelhança de uma vida noturna: um cinema, alguns
restaurantes, dois bares. Conferi no mapa, parei ao lado da
catedral, que era uma construção pesada, de tijolos, com
uma torre octogonal, e entrei na cidade antiga. Mesmo com
incríveis atividades noturnas, não havia ninguém nas ruas,
todas as janelas estavam fechadas, todas as luzes apagadas.
Foi fácil encontrar o endereço, que era impossível não
perceber, pois tinha uma incrível placa de néon indicando
uma taberna. A entrada era por uma alameda lateral, e as
janelas ao lado da porta tinham uma espécie de mural com
soldados sem rosto vigiando uma mulher de vestido longo.
Parei e olhei bem o mural. A cena me desanimou; entrei
logo.
O contraste entre interior e exterior não podia ser maior.
Era um pequeno bar pouco iluminado, barulhento, cheio e
enfumaçado. Os poucos bares aonde eu fora em cidades
pequenas da França costumavam ser feios, cheios de
homens e pouco simpáticos. Aquele era como uma fresta de
luz no meio da escuridão. Foi tão inesperado que fiquei na
porta olhando.
Bem na minha frente, havia uma mulher linda, de jeans e
blusa de seda marrom, cantando Every Time We Say
Goodbye com forte sotaque francês. E, embora ele estivesse
de costas para mim, vi imediatamente que Jean-Paul estava
ao piano, com sua macia camisa azul. Ele olhava para as
mãos e, às vezes, para a cantora com uma expressão
concentrada, mas também serena.
Chegaram algumas pessoas atrás de mim e fui obrigada a
entrar no meio da platéia. Não conseguia tirar os olhos de
Jean-Paul. Quando os dois terminaram a canção, houve gri-
tos de aprovação e prolongados aplausos. Jean-Paul olhou
em volta, me viu e sorriu. Um homem à direita bateu no
meu ombro: "Tome cuidado... aquele sujeito é um lobo!",
gritou, rindo e mostrando o piano. Enrubesci e fui andando.
Quando Jean-Paul e a mulher começaram outra canção, fui
me apertando até o bar e, por milagre, encontrei um
banquinho vago.
A pele azeitonada da cantora parecia iluminada por dentro,
suas sobrancelhas escuras eram perfeitamente delineadas. Os
longos cabelos castanhos eram ondulados e estavam soltos, e
ela chamava a atenção para a cabeleira enquanto cantava,
passando os dedos nela, jogando a cabeça para trás, tocando
na testa quando soltava uma nota aguda. Jean-Paul era
menos extravagante, sua presença calma equilibrava a
dramaticidade dela, seu piano destacava a voz cintilante. Os
dois estavam muito bem juntos: tranqüilos, seguros para
brincar um com o outro. Senti uma ponta de ciúme.
Duas canções depois, houve um intervalo e Jean-Paul veio
falar comigo, parando antes para cumprimentar quase todo
mundo. Puxei nervosa o vestido para baixo, esperando que
cobrisse meus joelhos.
Quando chegou do meu lado, ele disse: — Salut, Ella — e
deu dois beijos no rosto, como fizera com várias outras pes-
soas. Fiquei mais calma, aliviada, mas vagamente desconcer-
tada por não receber uma atenção especial. O que quer, Ella?
perguntei-me, furiosa. Jean-Paul deve ter percebido a
confusão no meu rosto. — Venha, vou lhe apresentar uns
amigos — disse ele, com naturalidade.
Saí do banquinho, peguei minha cerveja e esperei enquanto
ele recebia um uísque do barman. Jean-Paul mostrou uma
mesa do outro lado da sala e pôs uma das mãos nas minhas
costas para me guiar, mantendo-a enquanto passávamos
pelas mesas e cadeiras, e retirando-a quando chegamos à
mesa dos amigos dele.
Seis pessoas, inclusive a cantora, estavam sentadas em
bancos dos dois lados de uma mesa comprida. Eles se aperta-
ram para dar espaço para nós. Acabei ao lado da cantora,
com Jean-Paul sentado na minha frente, nossos joelhos se
tocando naquele espaço apertado. Olhei a mesa, cheia de
garrafas de cerveja e taças de vinho, e sorri para mim
mesma.
O grupo estava discutindo música, falando em cantores
franceses dos quais nunca tinha ouvido falar, rindo alto de
referências culturais que para mim não significavam nada.
Falavam tão alto e tão rápido que dali a pouco desisti de
prestar atenção. Jean-Paul acendeu um cigarro e riu das
piadas, mas, fora isso, ficou calado. De vez em quando,
sentia os olhos dele pousados em mim, e uma vez, quando
retribuí o olhar, ele perguntou: — Ça va?
Concordei. Janine, a cantora, virou-se para mim e per-
guntou: — Você prefere Ella Fitzgerald ou Billie Holiday?
— Ah, não ouço muito nenhuma das duas. — Isso pareceu
pouco polido, afinal ela estava me dando chance de entrar
na conversa. E eu queria me convencer de que não estava
com ciúme dela, de sua beleza, seu desembaraço, sua ligação
com Jean-Paul. — Gosto de Frank Sinatra — acrescentei
logo.
Um careca com cara de bebê, barba de dois dias, sentado ao
lado de Jean-Paul, não gostou da minha preferência:
— Sinatra é sentimental demais, show-biz demais. — Usou a
frase em inglês e mexeu as mãos ao lado das orelhas, dando
um sorriso amarelo. —Já Nat King Cole é outra coisa!
— É, mas... — comecei. Todos à mesa me olharam, espe-
rando o que eu ia dizer. Havia me lembrado de uma coisa
que meu pai dissera sobre a técnica de Sinatra e estava
tentando, desesperada, traduzir rápido. Exatamente o que
Madame Sentier tinha dito para não fazer.
— Frank Sinatra não respira quando canta — disse e parei.
Não era o que eu estava pensando: tentei dizer que ele
cantava tão suavemente que não se ouvia sua respiração,
mas meus conhecimentos do francês falharam. — Ele...
Mas o assunto havia acabado, não fui rápida o bastante.
Franzi o cenho e balancei de leve a cabeça, aborrecida
comigo mesma e constrangida, como quando você começa a
contar um caso e percebe que ninguém está ouvindo.
Jean-Paul tocou na minha mão e disse, em inglês:
— Você me faz lembrar uma vez que fui a Nova York Às
vezes, num bar, eu não conseguia ouvir nada, todo mundo
falava aos berros palavras que eu não conhecia.
— Ainda não consigo pensar rápido em francês. Coisas
complicadas, não dá.
— Vai conseguir, se ficar aqui o bastante.
O homem de cara de bebê ouviu-nos falar inglês e me olhou
de cima a baixo. — Tu es américaine? — perguntou.
— Oui.
Minha resposta surtiu um efeito estranho: foi como se uma
corrente elétrica passasse pela mesa. Todos se empertigaram
e olharam de mim para Jean-Paul. Olhei para ele também,
intrigada com a reação. Jean-Paul pegou seu copo de uísque
e esvaziou-o, num gesto cheio de desafio.
O homem sorriu, sarcástico.
— Ah, mas você não é gorda. Por que é diferente das outras
norte-americanas? — Ele inflou as bochechas e fez com as
mãos uma pança imaginária.
Descobri uma coisa a respeito do meu francês: quando eu
estava irritada, falava num jato.
— Há norte-americanas gordas, mas pelo menos não são
mexeriqueiras como as francesas!
Todos na mesa riram, até o homem. Na verdade, ele parecia
disposto a ouvir mais. Dane-se, pensei. Mordi a isca e agora
ele vai me alugar por horas.
Ele se inclinou para a frente.
Vamos, Ella, a melhor defesa é o ataque. Era a frase preferida
de Rick, eu quase o estava ouvindo dizer.
Interrompi-o antes que ele conseguisse dizer alguma coisa.
— Bom, quanto aos Estados Unidos, claro que você vai falar
em, espera, tenho que colocar pela ordem. No Vietnã. Não,
talvez em primeiro lugar, nos filmes e na tevê norte-
americana, Hollywood e o McDonald's na avenida Champs-
Elysées. — Estalei os dedos. — Depois, vem o Vietnã. A
violência e as armas. E a CIA, claro, você tem de falar nela
várias vezes. E talvez, se você for comunista, é comunista,
Monsieur?, talvez mencione Cuba. Finalmente, falará na
Segunda Guerra, que os norte-americanos chegaram tarde e
nunca tiveram seu país ocupado pelos alemães, como os
pobres franceses. Essa é a pièce de résistance, n'est-ce pas?
Cinco pessoas arreganharam os dentes para mim, enquanto
o homem ficava amuado e Jean-Paul levava o copo vazio à
boca para esconder o riso. Continuei:
— Como você é francês, talvez eu deva perguntar se, como
colonizadores, os franceses trataram melhor os vietnamitas.
E você se orgulha do que houve na Argélia? E do racismo
contra os africanos do Norte? E os testes nucleares no
Pacífico? Você é francês. Então claro que é um
representante do seu governo e concorda com tudo que ele
faz, não? Seu merdinha — acrescentei, baixo, em inglês. Só
Jean-Paul entendeu e me olhou surpreso. Sorri. Não era
adequado para uma dama.
O homem colocou os dedos no peito e tirou-os, num gesto
de derrota.
— Bom, estávamos falando em Frank Sinatra e Nat King
Cole. Desculpe o meu francês, às vezes levo algum tempo
para dizer o que quero. E quis dizer que não se consegue
ouvir a... como se diz? — Coloquei a mão no peito e
respirei.
— Respiration — sugeriu Janine.
— Isso. Não se ouve a respiração de Sinatra quando ele canta.
— Dizem que é uma técnica de respiração circular que ele
aprendeu com... — Um homem na outra ponta da mesa
estava se retirando, para alívio meu.
Jean-Paul se levantou. — Está na hora de eu tocar. Você vai
ficar? — perguntou, calmo, para mim.
— Vou.
— Que bom. Você consegue defender bem seu ponto de
vista, não?
— O quê?
— Você sabe, defender o seu... — Ele apontou para os
fundos da sala.
— Começar uma briga de bar?
— Não, não. — Ele mostrou com o dedo um canto da mesa.
— Ah, defender o meu lado. Sim, vou ficar legal. Vai ser
ótimo.
E foi ótimo. Ninguém mais falou em estereótipos norte-
americanos, consegui emitir um palpite de vez em quando
e, se não entendia o que eles falavam, ouvia a música.
Jean-Paul tocou um pouco de música de cabaré, depois
Janine foi acompanhá-lo. Apresentaram uma série de
canções de Gershwin, Cole Porter, músicas francesas. À
uma certa altura, eles trocaram idéias e, olhando para mim
rapidamente, Janine começou a cantar Let's Call The Whole
Thing Off, de Gershwin, enquanto Jean-Paul sorria para o
teclado.
Mais tarde, a casa esvaziou um pouco e Janine veio sentar na
minha frente. Na nossa mesa só ficaram três pessoas e
permanecemos naquele silêncio gostoso de fim de noite,
quando tudo já havia sido dito. Até o careca estava calado.
Jean-Paul continuou a tocar — música calma, contempla-
tiva, alguns acordes sublinhando linhas simples de melodia.
Passeava entre o clássico e o jazz, uma mistura de Erik Satie
com Keith Jarrett.
Inclinei-me para falar com Janine: — O que ele está
tocando?
Ela sorriu. — Música de autoria dele. Ele compõe.
— Linda.
— É. Só toca no fim da noite.
— Que horas são?
Ela olhou o relógio no pulso. Eram quase duas da manhã.
— Não sabia que era tão tarde!
— Não usa relógio?
Mostrei os braços: — Deixei em casa. — Nossos olhos viram
minha aliança ao mesmo tempo e, por instinto, escondi a
mão. A aliança fazia tanto parte de mim que me esquecera
dela. Se tivesse lembrado, provavelmente não a teria tirado;
teria sido um gesto muito calculado.
Quando nós duas nos olhamos, ruborizei, o que piorou as
coisas. Por um instante, pensei em ir ao banheiro tirar a
aliança, mas sabia que ela iria perceber. Então escondi a mão
no colo e mudei de assunto, perguntando de onde era a
blusa dela. Ela entendeu.
Minutos depois, o resto da mesa se levantou para ir embora.
Para a minha surpresa, Janine saiu com o careca. Os dois
acenaram para mim, efusivos. Janine jogou um beijo para
Jean-Paul e foi-se com os outros. Ficamos os dois com o
barman, que juntava os copos e passava pano nas mesas.
Jean-Paul terminou a música que estava tocando e fez
silêncio um instante. O barman assobiava qualquer coisa
enquanto empilhava as cadeiras nas mesas. — François,
traga dois uísques aqui, se não for difícil. — François sorriu
malicioso, foi atrás do balcão e serviu três copos. Colocou
um na minha frente, com uma pequena reverência, e outro
sobre o piano. Depois, tirou a gaveta da caixa registradora e,
com o copo na outra mão, sumiu numa sala escura.
Levantamos nossos copos e bebemos ao mesmo tempo.
— Tem uma luz linda na sua cabeça, Ella Tournier. — Olhei
para o spot amarelo suave que estava em cima de mim e
fazia meu cabelo ficar cobre e dourado. Olhei para ele, que
tocou um acorde suave e baixo.
— Você estudou piano clássico?
— Sim, quando jovem.
— Conhece alguma coisa de Erik Satie?
Ele descansou o copo e começou a tocar uma música que eu
conhecia, num compasso de quatro por cinco com uma
melodia uniforme, forte. Combinava perfeitamente com o
lugar, a luz, a hora. Enquanto tocava, descansei a mão no
colo e tirei a aliança, guardando-a no bolso do vestido.
Ao terminar, ele ficou com as mãos no teclado um instante,
depois pegou o copo e bebeu. — Temos de ir. François
precisa dormir — disse ele, levantando-se.
Sair foi como voltar ao mundo após ficar gripada uma
semana: o mundo parecia grande e estranho, e eu não tinha
certeza das minhas intenções. Estava mais frio e algumas
estrelas brilhavam no céu. Passamos pelas janelas com a
mulher e os soldados. — Quem foi ela? — perguntei.
— É a Dame du Plô. Foi uma mártir dos cátaros no século
XIII. Os soldados a violentaram, jogaram o corpo num poço
e encheram de pedras.
Estremeci e ele pôs o braço nos meus ombros. —Vamos,
senão vai me acusar de falar coisas erradas na hora errada.
Ri. — Como Goethe.
— É, como Goethe.
Antes daquela hora, pensei se chegaria um momento em
que teríamos de resolver, discutir ou analisar alguma coisa.
Aquele momento havia chegado e, claro, tínhamos estado a
noite toda negociando e já estava decidido. Foi um alívio
não dizer nada, apenas ir até o carro dele e entrar. Na
verdade, mal falamos no caminho de volta. Ao passarmos
pela catedral de Lavaur, ele notou meu carro parado sozinho
no estacionamento. — O seu carro — disse, como uma
constatação mais do que uma pergunta.
— Amanhã pego o trem para buscá-lo. — Era isso, sem
confusão.
Quando passamos pelo campo, pedi para abrir a capota do
Deux Chevaux. Ele abriu na hora. Encostei a cabeça no
ombro dele, ele pôs o braço nas minhas costas e ficou
passando a mão no meu braço enquanto eu me encostava no
banco e via os plátanos sobre a minha cabeça.
Assim que atravessamos a ponte do Tarn para entrar na
cidade, sentei-me direito no banco. Mesmo às três da manhã
era preciso ter algum decoro. O lugar onde Jean-Paul
morava ficava exatamente no lado contrário ao da minha
casa, perto do começo do campo. Mas eram apenas dez
minutos de caminhada, detalhe que eu tinha dificuldade de
tirar da cabeça.
Estacionamos, saímos do carro e colocamos a capota. As
casas em volta estavam com a luz apagada e as janelas fecha-
das. Eu o segui pela escada externa que levava ao apartamen-
to dele. Entrei enquanto ele acendia uma lâmpada,
iluminando uma sala simples cheia de livros.
Ele virou-se e estendeu a mão para mim. Engoli em seco,
minha garganta estava fechada. Quando chegou a hora da
decisão final, eu estava apavorada.
Finalmente, estendi a mão e puxei-o para mim, abracei-o e
apertei as costas dele, com o rosto tocando seu pescoço.
Então, o medo sumiu.
O quarto tinha poucos móveis, mas a maior cama que eu já
havia visto. Uma janela abria para o campo e não deixei que
fechasse as venezianas.
Foi como se fosse um longo movimento. Não houve ins-
tante em que eu pensasse: agora estou fazendo isso, agora
ele está fazendo aquilo. Não houve pensar, apenas dois
corpos se identificando, se unindo.
Só dormimos quando o sol apareceu.
Acordei com o sol forte e a cama vazia. Sentei e olhei em
volta. O quarto tinha duas mesas-de-cabeceira, uma delas
cheia de livros; sobre a cama, um cartaz preto e vermelho
emoldurado, de um concerto de jazz ao piano, e no chão,
um tapete áspero, cor-de-trigo. Lá fora, o campo em volta da
casa era verde-claro e se estendia até uma fila de plátanos e
uma estrada. Tudo tinha o mesmo tom de simplicidade das
roupas de Jean-Paul.
A porta se abriu e ele entrou, vestido de preto e branco,
com uma pequena xícara de café. Colocou-a sobre a mesa-
de- cabeceira e sentou-se na beira da cama ao meu lado.
— Obrigada pelo café.
Ele concordou com a cabeça. — Ella, tenho de ir trabalhar.
— Tem certeza?
Ele respondeu com um sorriso.
— Tenho a impressão de que não dormi — falei.
— Dormiu três horas. Pode dormir mais, se quiser.
— Seria estranho ficar nesta cama sem você.
Ele passou a mão pela minha perna. — Se quiser, pode
esperar até não ter muita gente na rua.
— Acho que vou fazer isso. — Pela primeira vez, ouvi a
gritaria das crianças passando na rua e foi como se caísse
uma barreira, a primeira intrusão do mundo exterior. Com
ela, veio o pouco bem-vindo disfarce, a necessidade de
tomar cuidado. Não tinha certeza se estava preparada para
enfrentar aquela situação ou vê-lo ser tão sensível àquilo
tudo.
Adivinhando meus pensamentos, ele me olhou e disse:
— É com você que me preocupo, não comigo. Para mim é
diferente. Aqui, é sempre diferente para o homem.
Aquela conversa séria era sensata. Obrigou-me a pensar.
— Esta cama... — Parei. Depois, completei a frase: — ...é
grande demais para uma pessoa só. E não teria duas mesas-
de-cabeceira e duas lâmpadas se só você dormisse aqui.
Jean-Paul examinou meu rosto. Deu de ombros e, com esse
gesto, nós realmente voltamos ao mundo.
— Morei algum tempo com uma mulher. Ela foi embora há
mais ou menos um ano e meio. A cama foi idéia dela.
— Eram casados?
— Não.
Coloquei a mão no joelho dele e apertei. — Desculpe —
falei, em francês. — Eu não devia ter comentado.
Ele deu de ombros outra vez, depois me olhou e sorriu.
— Sabe, Ella Tournier, depois de toda aquela conversa em
francês na noite passada, você ficou mais faladeira. Tenho
certeza!
Ele me deu um beijo e suas pestanas brilharam ao sol.
A porta da frente bateu e tudo pareceu mudar. Nunca havia
me senti tão estranha por estar na casa de alguém. Sentei-me
empertigada, tomei o café e deixei a xícara na mesinha. Ouvi
as crianças do lado de fora, os carros na rua, uma Vespa
passando de vez em quando. Senti muita falta dele e queria
sair o quanto antes, mas me senti numa armadilha com os
sons que vinham do exterior.
Finalmente, levantei e tomei um banho. Meu vestido
amarelo estava amassado, com cheiro de fumaça e suor.
Coloquei o vestido e me senti uma mendiga. Queria ir para
casa, mas me obriguei a ficar até as ruas estarem mais
calmas. Esperei olhando os livros dele na sala. Havia
bastante história da França, romances e alguns livros em
inglês: John Updike, Virginia Woolf, Edgar Allan Poe.
Estranha combinação. Fiquei surpresa porque os livros não
tinham qualquer ordem: ficção e não-ficção estavam
misturados, e nem sequer dispostos em ordem alfabética.
Pelo jeito, ele não trazia os conhecimentos do trabalho para
casa.
Quando tive certeza de que a rua estava vazia, não me deu
vontade de sair; sabia que depois não poderia voltar. Olhei
os cômodos mais uma vez. Fui ao closet do quarto e peguei a
camisa azul-clara que Jean-Paul tinha usado na noite
anterior, embolei-a e enfiei-a na minha bolsa.
Ao colocar o pé fora da casa, foi como se estivesse entrando
num grande palco, embora não visse nenhuma platéia. Desci
as escadas correndo e andei rápido para o Centro da cidade,
respirando um pouco mais calma quando cheguei à região
onde sempre andava de manhã, mas ainda me sentindo
exposta. Tinha certeza de que todos olhavam para mim, para
os amassados no meu vestido, as minhas olheiras. Vamos,
Ella, eles sempre olham para você. Tentei ficar mais segura.
É porque você ainda é uma estrangeira, não porque você
acaba de... Não consegui concluir a frase.
Só ao chegar à nossa rua me ocorreu que não queria ir para
casa: vi a nossa casa e senti uma onda de enjôo. Parei e
encostei na casa do vizinho. Quando eu entrar, pensei, terei
de enfrentar a minha culpa.
Fiquei lá um bom tempo. Depois, virei na direção contrária
e fui para a estação de trem. Pelo menos eu podia pegar o
carro antes de voltar para casa, era uma desculpa concreta
para deixar de lado o resto da minha vida.
Sentei no trem meio tonta, uma sensação acridoce; na
estação seguinte, quase esqueci de mudar para o trem de
Lavaur. À minha volta, homens de negócio, mulheres com
as compras, adolescentes namorando. Parecia muito
estranho uma coisa tão extraordinária ter acontecido comigo
e ninguém em volta saber. "Você sabe o que acabei de
fazer?", eu queria perguntar para a mulher séria, que
tricotava no banco na minha frente. "Você também teria
feito isso?"
Mas os acontecimentos na minha vida não faziam diferença
para as pessoas no trem, nem para o resto do mundo. O pão
continuava sendo assado, a gasolina tirada da bomba, as
quiches feitas e os trens circulando na hora certa. Até Jean-
Paul estava no trabalho, recomendando romances às velhas
senhoras. E Rick estava em suas reuniões com alemães, sem
saber nada do que havia acontecido. Respirei mais forte: só
eu estava fora de compasso, sem nada mais para fazer senão
pegar o carro e sentir culpa.
Em Lavaur, tomei um café expresso antes de pegar o carro.
Ao abrir a porta, ouvi alguém exclamar, à esquerda:
— Eh, l'américaine! — Virei e vi, vindo na minha direção, o
careca com quem havia discutido na noite anterior. Estava
com uma barba de três dias. Abri bem a porta e me encostei
nela, assim ficou um escudo entre mim e ele.
— Salut — cumprimentei.
— Salut, Madame. — Reparei que ele usou Madame.
—Je m'appelle Ella — falei, fria.
— Claude. — Ele estendeu a mão e nos cumprimentamos,
formais. Eu me senti um pouco ridícula. Todas as pistas do
que eu tinha acabado de fazer estavam expostas para ele
como numa vitrine: o carro, que ainda estava ali, o vestido
amassado que usara na noite anterior, o rosto cansado, tudo
levava a uma conclusão. A questão era se ele teria a
delicadeza de não comentar. Eu duvidava um pouco.
— Aceita um café?
— Não, obrigada, acabei de tomar um.
Ele sorriu. — Venha, tome um café comigo. — Fez um
gesto como se estivesse me cercando e foi andando. Não me
mexi. Ele olhou em volta, parou e riu. — Ah, você é difícil!
Como um gatinho com as patas assim... e o pêlo todo
eriçado. — Ele imitou as patas com os dedos duros,
dobrados. — Está bem, não quer café. Venha sentar comigo
no banco um instante. Tenho uma coisa a lhe dizer.
— O quê?
— Quero ajudá-la. Não, não é isso. Quero ajudar Jean-Paul.
Então, sente-se. Só um instante. — Ele sentou num banco
perto e me olhou ansioso. Finalmente, fechei a porta do
carro e fui sentar ao lado dele. Não olhei para ele, mas para o
jardim à nossa frente, onde harmoniosos arranjos de flores
estavam começando a florir.
— O que tem a dizer? — Tive certeza de usar um tom formal
para rebater o jeito íntimo dele. Não surtiu resultado.
— Sabe, Jean-Paul é muito amigo meu e de Janine. De todos
nós, da La Taverne. — Tirou um maço de cigarros e me
ofereceu. Balancei a cabeça, ele acendeu um cigarro e
cruzou as pernas.
— Sabe que ele morou com uma mulher durante um ano,
não? — continuou ele.
— Sei. E então?
— Ele falou a respeito dela?
— Não.
— Ela era norte-americana.
Olhei Claude para ver como esperava que eu reagisse, mas
ele estava acompanhando o trânsito com os olhos e não
demonstrou nada.
— Ela era gorda?
Claude morreu de rir. — Você... entendo por "que Jean-Paul
gosta de você. Você é um gatinho!
— Por que ela foi embora?
Ele deu de ombros e finalmente diminuiu a risada.
— Sentia falta dos Estados Unidos e achou que não ia se
adaptar aqui. Disse que as pessoas não eram simpáticas.
Estava isolada.
— Nossa — exclamei em inglês, sem conseguir me conter.
Claude se inclinou para a frente, afastou as pernas e apoiou
os cotovelos nos joelhos, deixando as mãos soltas. Olhei para
ele e perguntei: — Ele ainda gosta dela?
Deu de ombros: — Ela se casou.
Isso não era resposta ... veja eu aqui, por exemplo, pensei,
mas não disse.
— Sabe, nós protegemos um pouco Jean-Paul. Conhecemos
uma norte-americana bonita, com muito humor, que parece
um gatinho e fica de olho nele, mas é casada e pensamos:
talvez isso não seja muito bom para Jean-Paul, mas sabemos
que ele não vai perceber. Ou vai, mas ela é uma tentação
mesmo assim — disse, dando de ombros.
— Mas... — Eu não conseguia argumentar. Se dissesse que
nem toda norte-americana corre para casa de rabo entre as
pernas (não que não tivesse pensado nisso nos meus
momentos mais solitários), Claude iria enfatizar o fato de eu
ser casada. Não sabia dizer o que ele estava destacando mais,
vai ver que era parte da estratégia dele. Minha antipatia por
ele era muito grande para querer sondar.
O que ele estava dizendo, sem qualquer dúvida, era que eu
não servia para Jean-Paul.
Ao pensar nisso (junto com a falta de sono e o absurdo de
estar sentada naquele banco com um homem dizendo coisas
que eu já sabia), eu finalmente não agüentei. Apoiei os
cotovelos nos joelhos e pus as mãos nos olhos como se fosse
protegê-los da luz forte e chorei em silêncio.
Claude se aprumou. — Desculpe, Ella. Não falei isso para
você ficar infeliz.
— Como queria que eu reagisse? — respondi, ríspida. Ele fez
o mesmo gesto de derrota que havia feito na noite anterior.
Limpei as mãos úmidas no vestido e levantei-me.
— Tenho de ir — murmurei, tirando os cabelos do rosto.
Não consegui agradecer, nem me despedir.
Chorei até chegar em casa.
A Bíblia estava na minha escrivaninha como uma censura.
Eu não agüentava ficar num lugar sozinha, mas não tinha
muita escolha. Precisava falar com uma amiga, eram as
mulheres que eu costumava procurar nas horas de crise. Mas
àquela hora, nos Estados Unidos, era o meio da noite e, além
do mais, uma conversa nunca é igual pelo telefone. Ali onde
eu estava, não havia ninguém em quem confiasse. O mais
perto que conseguira chegar de uma pessoa delicada havia
sido Mathilde, mas ela tinha gostado tanto de flertar com
Jean- Paul que talvez não apreciasse saber o que havia
acontecido.
Mais tarde, lembrei que tinha aula de francês em Toulouse à
tarde. Liguei para Madame Sentier e cancelei, dizendo que
estava doente. Ela perguntou o que eu tinha, respondi que
era uma febre de verão.
— Ah, você precisa que alguém cuide de você! — excla-
mou. Isso me fez pensar no meu pai e na preocupação dele
em eu ficar solta na França, sem ajuda. "Se tiver algum pro-
blema, ligue para Jacob Tournier. Numa situação assim, é
bom ter a família por perto", ele havia dito.
Jean-Paul,
Vou encontrar minha família. Acho que é o melhor a fazer.
Se ficasse aqui, morreria de culpa.
Peguei a sua camisa azul.
Perdoe-me.
Ella
Não escrevi nenhum bilhete para Rick. Liguei para a
secretária dele e deixei o recado mais curto possível.
7
O VESTIDO
Ela nunca ficava sozinha, alguém sempre a acompanhava:
Étienne, Hannah ou Petit Jean. Em geral, era Hannah, e
Isabelle até preferia, pois a velha não podia ou não iria falar
com ela, além de ser idosa e pequena demais para machucá-
la. Agora os braços de Étienne estavam moles de ódio e
Isabelle não confiava mais em Petit Jean, com sua faca e seu
olhar sorridente.
Como isso foi acontecer, ela pensou, pondo as mãos na nuca
e apertando os braços contra o peito. Não posso confiar nem
mesmo no meu filhinho? Ela ficou no devant-huis olhando
os campos nevados e secos, as montanhas escuras, o céu
cinza.
Hannah apareceu na porta atrás dela. Étienne sempre sabia o
que Isabelle estava fazendo, mas ela não conseguia pegar
Hannah contando para ele.
— Mémé, fecha a porta! — pediu Petit Jean, do lado de
dentro.
Isabelle olhou, por cima do ombro, a escura sala fumacenta
e estremeceu. Eles haviam coberto as janelas e mantinham a
porta fechada, a fumaça então formava uma nuvem espessa
e sufocante. Seus olhos e garganta doíam e ela começou a
andar pela sala com cuidado, lentamente, como se estivesse
embaixo d'água. Só no devant-huis conseguia respirar
normalmente, apesar do frio.
Hannah tocou no braço de Isabelle, fez um gesto com a
cabeça indicando o fogão e ficou de lado na porta para que
ela entrasse logo em casa.
No inverno, fiavam o dia inteiro, imensas pilhas de
cânhamo aguardavam no celeiro. Enquanto trabalhava,
Isabelle pensava na maciez do tecido azul, fazia de conta
que estava segurando nele, e não na áspera fibra que feria
sua pele e deixava uma teia de pequenos cortes em seus
dedos. Não conseguia fiar o cânhamo numa trama tão fina
quanto a lã de Cévennes.
Sabia que Jacob devia ter escondido o pano em algum lugar,
no bosque ou no celeiro, mas nunca perguntou. Não tinha
chance de perguntar, e, mesmo que os dois ficassem a sós
por um instante, ela o deixaria guardar o segredo. Do con-
trário, Étienne poderia bater nela outra vez.
Isabelle tinha dificuldade de pensar envolta em fumaça, com
tanto cânhamo para fiar, com o escuro, com o silêncio
amortecido da sala. Étienne sempre olhava para ela e não
desviava o olhar quando ela o encarava. Os olhos dele
tinham ficado mais duros depois que perdera as
sobrancelhas e ela não conseguia vê-lo sem se sentir
ameaçada e culpada.
Então começou a falar menos, ficava em silêncio ao lado do
fogo à noite, não contava mais histórias para as crianças,
nem cantava ou ria. Sentia como se estivesse encolhendo e,
se permanecesse em silêncio, podia ficar menos visível e
conseguir escapar da desconfiança, que a prendia como uma
armadilha, da ameaça sem nome que pairava no ar.
Primeiro, ela sonhou com o pastor num campo de giestas.
Ele colhia as flores amarelas e apertava-as nos dedos. "Jogue-
as em água quente e beba", dizia ele no sonho. "Você vai
ficar boa." A cicatriz dele havia sumido e, quando ela
perguntou como tinha acontecido, o pastor disse que passara
para outra parte do corpo.
Depois, ela sonhou que o pai mexia nas ruínas de uma
chaminé aos pedaços, em volta dele estavam as cinzas de
uma casa incendiada. Ela chamou pelo pai, mas, distraído
com o que estava fazendo, ele não olhou.
Foi então que surgiu uma mulher. Isabelle nunca conseguia
olhar direto para ela. Ficou na porta, depois ao lado de
árvores e, uma vez, à margem de um rio que parecia o Tarn.
A presença dela era um consolo, embora a mulher nunca
dissesse nada, nem chegasse perto para Isabelle vê-la direito.
Depois do Natal, ela não sonhou mais.
Na manhã de Natal, a família vestiu os habituais trajes
negros, mas agora as roupas pertenciam a eles, não eram
mais emprestadas, haviam sido feitas com o cânhamo que
tinham colhido. O pano era duro e áspero, mas ia durar
muito. As crianças reclamaram que ele arranhava e coçava.
Isabelle concordou em silêncio, mas não disse nada.
Do lado de fora da igreja de São Pedro, viram Gaspard no
meio dos fiéis na frente da igreja e foram cumprimentá-lo.
— Écoute, Étienne — disse Gaspard —, encontrei um
homem na hospedaria que consegue granito para a sua
chaminé. Lá na França, à distância de um dia a cavalo, tem
uma mina de granito perto de Montbéliard. Na primavera,
ele pode trazer uma boa laje de pedra para a chaminé. Diga
as medidas e eu passo o recado para a próxima pessoa que
for naquela direção.
Etienne concordou.
— Você disse a ele que eu pago com peças de cânhamo?
— Bien sûr. (Claro.)
Etienne virou-se para as mulheres.
— Vamos fazer uma chaminé na primavera — disse, baixo,
para os vizinhos suíços não ouvirem e levarem a mal.
— Deus seja louvado — disse Isabelle, automaticamente.
Etienne olhou para ela, apertou os lábios e virou-se,
enquanto Pascale se aproximava. Cumprimentou Hannah
com um sinal de cabeça e sorriu insegura para Isabelle. Elas
se viram muitas vezes na igreja, mas nunca conseguiram se
falar.
O padre Abraham Rougemont se aproximou e cumpri-
mentou Hannah. Isabelle aproveitou para conversar baixo
com Pascale.
— Desculpe não ter ido ver você. Agora está... difícil.
— Eles sabem do... do...
— Não. Não se preocupe.
— Isabelle, tenho o...
Parou, confusa, pois de repente Hannah apareceu ao lado de
Isabelle, a boca fechada, os olhos fixos no rosto de Pascale.
Pascale lutou um instante, depois disse apenas: — Que Deus
guarde você nesse inverno.
Isabelle deu um sorriso cansado.
— Você também.
— Vai à nossa casa entre um serviço religioso e outro?
— Bien sûr.
— Que bom. Jacob, o que tem para mim dessa vez, chéri?
Ele tirou do bolso uma pedra verde em forma de pirâmide e
deu a ela.
Isabelle virou-se para entrar na igreja. Ao olhar para trás, viu
Jacob cochichando com Pascale.
Após o serviço matinal, Etienne virou-se para Isabelle.
— Você e Maman agora vão para casa — resmungou.
— Mas o serviço religioso em Chalières...
— Você não vai, La Rousse.
Isabelle abriu a boca, mas parou quando viu os ombros dele
e o olhar. Agora não vou poder encontrar Pascale, pensou.
Agora não vou ver a Virgem na capela. Fechou os olhos e
apertou a cabeça com os braços, como se esperasse uma
explosão.
Etienne segurou no cotovelo dela e tirou-a, grosseiro, do
meio das pessoas.
— Vá — mandou ele, empurrando-a na direção de casa.
Hannah ficou a seu lado.
Isabelle estendeu a mão dura.
— Marie — chamou. A filha pulou ao lado dela.
— Maman — disse, segurando a mão estendida.
— Não. Marie vai à igreja conosco. Venha cá, Marie.
Marie olhou para a mãe, depois para o pai. Soltou a mão
de Isabelle e ficou no meio deles.
— Aqui. — Etienne mostrou um lugar ao lado dele.
Marie pôs os arregalados olhos azuis nele.
— Papa, se você me bater como faz com Maman, eu vou
sangrar! — disse, alto.
A raiva que Etienne sentiu fez com que parecesse mais alto.
Deu um passo à frente, mas parou quando Hannah estendeu
a mão e balançou a cabeça. Olhou para as pessoas: elas
haviam se calado. Olhou para Marie, virou-se e seguiu na
direção da casa de Gaspard.
Hannah desceu o caminho que ia para a fazenda deles.
Isabelle não se mexeu.
— Marie, venha conosco — disse ela.
Marie ficou no mesmo lugar até Jacob pegar na mão dela.
—Vamos ao rio — disse ele. Marie deixou que ele a levasse.
Nenhum dos dois olhou para trás.
Jacob brincou com Marie quando o frio os obrigou a ficar
dentro de casa, e inventou novos jogos com seus seixos.
Ensinou-o a contá-lo e a catalogá-lo de várias maneiras: pela
cor, pelo tamanho, pelo lugar de onde tinham vindo.
Começaram, então, a demarcar objetos com seixos em volta
deles. Puseram uma foice no chão e cercaram-na de seixos,
depois pegaram o ancinho e o contornaram de pedras. O
mesmo fizeram com ancinhos, espadas, potes, o banco,
vestidos, calções, as próprias mãos.
Uma tarde, ele sugeriu: — Deixe-me colocar seixos em volta
de você.
Marie bateu palmas e riu. Deitou no chão e ele arrumou
com cuidado o vestido dela para os seixos marcarem bem a
forma. Escolheu as pedras também com cuidado: granito de
Cevenol em volta da cabeça e pescoço; branco em volta do
vestido; verde-escuro nas pernas, pés e mãos. Ele era
meticuloso, seguia o desenho do vestido, marcava até a
cintura, o arredondado das mangas. Quando terminou,
ajudou Marie a levantar-se sem tirar os seixos do lugar.
Todos admiraram o contorno da menina, braços e pernas no
chão duro. Isabelle olhou para cima e percebeu que Jacob e
Etienne olhavam atentamente os seixos. Os lábios de
Etienne se moviam de leve.
Ele está contando os seixos, pensou ela. Por quê? Uma onda
de medo a invadiu.
— Pare! — ela gritou, chutando as pedras.
Os meses escuros depois do Natal eram os mais difíceis.
Fazia tanto frio que eles só abriam a porta uma vez por dia,
para pegar lenha e cânhamo. O céu estava quase sempre
cinza, cheio de neve, e do lado de fora era quase tão escuro
quanto dentro. Isabelle olhava para fora, esperando escapar
por um instante, mas não encontrava sossego no céu
pesado, a superfície lisa da neve quebrada de vez em
quando, ao longe, pelos cumes negros dos pinheiros ou pela
cobertura dos rochedos. Quando o frio tocava na pele macia
dela, parecia uma placa de metal.
Ela começou também a sentir gosto de metal no duro pão de
centeio que Hannah assava uma vez por semana no forno
comunitário e mais gosto de metal ainda no grosso ensopado
de legumes que comiam todos os dias. Tinha de se obrigar a
comer, tentar não sentir o gosto de sangue, esconder o
enjôo. Muitas vezes, deixava que Marie terminasse o prato
dela.
Então, passou a ter coceiras nas dobras dos braços e pernas.
No início, ela se coçava por cima da roupa: estava frio
demais para tirar a roupa e pegar os piolhos. Mas, um dia,
viu que o sangue havia manchado a roupa, arregaçou as
mangas e olhou bem as feridas: a pele seca e prateada
escamava, formando placas vermelhas; não eram piolhos.
Escondeu as manchas ásperas, com medo de Etienne acusá-
la, se visse o sangue.
A noite, ficava na cama olhando para o escuro e se coçando,
tentando não se mexer para Etienne não notar. Escutava a
respiração sempre igual dele; com medo de que ele
despertasse, preferia ficar acordada para estar alerta, sem
saber para que, mas esperava no escuro por alguma coisa;
mal respirava.
Ela achou que estava tomando cuidado, mas uma noite ele
pegou na mão dela e descobriu o sangue. Bateu nela e depois
a possuiu violentamente pelas costas. Foi um alívio não ter
de olhar para a cara dele.
Uma noite, Gaspard foi se sentar ao lado da lareira.
— O granito está encomendado — disse para Etienne,
pegando o cachimbo no bolso e o socador de fumo. — O
preço foi acertado e ele está com as medidas que você me
deu. Vai trazer antes da Páscoa. Você quer mais granito?
Para a chaminé?
Etienne balançou a cabeça.
— Não posso pagar mais. De todo jeito, o calcário daqui
servirá muito bem para a chaminé. A lareira precisa de uma
pedra mais dura porque esquenta mais.
Gaspard riu.
— Lá na hospedaria, eles acham que você ficou louco. Por
que ele quer uma chaminé, perguntam. Mora numa casa
ótima!
Fez-se um silêncio e Isabelle sabia no que todos estavam
pensando: lembravam-se da chaminé dos Tournier.
Marie pegou no braço de Gaspard, esperando que fizesse
cócegas nela, mas mexeu em seu queixo e puxou-lhe as
orelhas.
— Ei, você quer uma chaminé, mon petit souris (meu
sorrisinho), quer? Não gosta dessa fumaça?
— Maman é quem mais detesta — respondeu Marie, rindo.
— Ah, Isabelle — disse Gaspard, virando-se para ela. —
Você não parece bem. Está se alimentando direito?
Hannah franziu o cenho e Etienne respondeu por ela.
— Tem muito o que comer nesta casa, para quem quer —
disse, agressivo.
— Bien sür. — Gaspard bateu as mãos como se estivesse
alisando um pano. — Tiveram uma boa colheita de
cânhamo, têm cabras, está tudo bem. Só precisam de uma
chaminé para a Madame. E Madame sempre consegue o que
quer — disse, mostrando Isabelle.
Isabelle pestanejou e olhou para ele em meio à fumaça. Fez-
se outro silêncio até Gaspard rir, inseguro.
— Estava brincando! Foi só uma brincadeira — disse, alto.
Depois que ele foi embora, Etienne ficou andando pela sala,
olhando de todos os ângulos para o fogo aceso.
— A lareira vai ficar aqui, nessa parede — explicou a Petit
Jean, batendo na parede mais distante da porta. — Podemos
abrir o teto nesse ponto. Está vendo? Faremos quatro
colunas aqui — ele apontou —, sustentando um telhado de
pedra com um buraco no alto que levará a fumaça.
— De que tamanho vai ser a lareira, Papa? Igual à da fazenda
antiga? — perguntou Petit Jean.
Etienne olhou em volta até seus olhos chegarem em Marie.
— Sim, vai ser uma lareira grande. O que acha, Marie?
Raramente pronunciava o nome dela. Isabelle sabia que
ele detestava o nome. Mas ela havia ameaçado rogar uma
praga nas colheitas, se ele não deixasse o bebê se chamar
Marie. Em todos os anos que viveu com os Tournier, foi a
única vez que teve a ousadia de usar o medo que tinham
dela. Agora, aquele medo tinha acabado e em seu lugar havia
ódio.
Marie franziu o cenho para Étienne. Quando ele continuou
a encará-la com seus olhos frios e grandes, ela chorou.
Isabelle abraçou a filha.
— Não foi nada, chérie, não chore, senão vai piorar. Não
chore — disse, baixo, passando a mão nos cabelos dela.
Por cima da cabeça da filha, ela viu Hannah inclinada no
canto mais distante da sala. Por um instante, achou que
havia algo errado com ela. O rosto estava diferente, a teia de
rugas mais acentuada. Depois percebeu que era porque a
velha estava sorrindo.
Isabelle passou a manter Marie perto, ensinando-a a fiar,
enrolar novelos, tricotar vestidinhos para a boneca. Ela
sempre a tocava, apertava seus braços, passava a mão em
seus cabelos, como se quisesse garantir para si mesma que a
filha ainda estava lá. Mantinha o rosto de Marie
constantemente limpo, passando um pano todos os dias para
que brilhasse em meio à escuridão da fumaça.
— Preciso ver você, ma petite (minha pequena) — explicava,
embora Marie nunca pedisse explicação.
Isabelle fazia Hannah ficar longe da menina o máximo que
podia, colocando-se entre ambas.
Nem sempre conseguia. Um dia, Marie apareceu com os
lábios brilhando e contou: — Mémé passou gordura de
porco no meu pão! — disse, alto.
Isabelle franziu o cenho.
— Com certeza vai dar um pouco amanhã para você
engordar, Maman. Está tão magra e tão cansada —
continuou a filha.
— Por que Mémé quer que você engorde?
— Vai ver que sou especial.
— Ninguém é especial aos olhos de Deus — disse Isabelle,
séria.
— Mas a gordura de porco estava boa, Maman. Tão boa que
eu quero mais.
Certa manhã, ela acordou com o som de água correndo e
soube que finalmente tinha acabado.
Etienne abriu a porta para deixar entrar o sol e um calor que
pareceu deixar o corpo de Isabelle mais leve. Toda a neve
estava derretendo e formando riachos que corriam para o
rio. As crianças saíram de casa como se tivessem estado
amarradas: correram e riram, e seus sapatos ficaram com
placas de lama.
Isabelle se ajoelhou na horta e deixou a lama encharcar seus
joelhos. Pela primeira vez em meses, ela estava sozinha, pois
todos se encontravam muito ocupados com a chegada da
primavera, deixando-a sem vigia. Abaixou a cabeça e rezou
alto.
— Santa Mãe, não posso passar mais um inverno aqui —
murmurou. — Só consigo agüentar um inverno desses. Por
favor, querida Virgem, não deixe isso acontecer outra vez.
— Apertou a barriga com as mãos. — Deixe que eu e esse
bebê fiquemos em segurança. Você é a única pessoa que
sabe.
Isabelle não ia a Moutier desde o Natal. Durante todo o
inverno, Hannah levara o pão para ser assado no forno
comunitário. Quando o tempo estava bom, Etienne levava
as crianças à igreja, mas Isabelle nunca era convidada e
ficava com Hannah. Quando escutaram o assobio do
mascate em sua visita da primavera, Isabelle esperava ouvir
que não poderia ir, e levaria uma surra só por perguntar.
Ficou na horta, plantando ervas.
Marie foi procurá-la.
— Maman, você não vai? — perguntou.
— Não, ma petite. Como você vê, estou ocupada.
— Mas Papa mandou buscar você, mandou dizer para você
ir.
— Seu pai quer que eu vá à cidade?
— Quer. — Marie baixou a voz: — Por favor, venha,
Maman. Não diga nada, só venha.
Isabelle olhou o rosto dela, os olhos azuis e os cabelos louro-
claros por cima e escuros por baixo, como um dia haviam
sido os do pai. Os fios ruivos tinham começado a aparecer
outra vez, um por dia, e agora a própria Hannah os
arrancava.
— Você é muito jovem para ser tão sensata.
Marie girou, tocou na moita nova de lavanda e correu,
rindo.
— Vamos todos à cidade! — exclamou.
Isabelle tentou sorrir quando chegaram ao ajuntamento em
volta da carroça do mascate. Sentiu as pessoas olhando para
ela. Não tinha idéia do que a cidade pensava a seu respeito,
se Etienne havia ou não incitado ou reprimido os boatos
sobre ela, ou se as pessoas sequer falavam nela.
Monsieur Rougemont se aproximou.
— É um prazer vê-la outra vez, Isabelle. Vamos encontrá-la
no domingo também, espero? — perguntou, sério,
cumprimentando-a.
— Sim — ela respondeu. Ele não iria tratar uma bruxa assim,
pensou ela, insegura.
Pascale apareceu, o rosto tenso de preocupação.
— Isabelle, você estava doente?
Isabelle olhou para Hannah ao lado, desconfortável.
— Sim. Fiquei doente o inverno todo. Mas acho que agora
melhorei.
— Bella! — Ouviu uma voz chamar atrás e virou-se para ver
o mascate inclinado na carroça. Pegou a mão dela e beijou-a.
— Ah, que alegria vê-la, Madame! Uma alegria. —
Continuou segurando a mão de Isabelle e, passando por
cima das coisas na carroça, deu a volta com ela, para longe
de Étienne, de Hannah e das crianças, que olhavam para
eles, mas não os seguiram. Era como se o mascate tivesse
feito uma magia que os tivesse deixado congelados.
Largou a mão dela, ficou de cócoras na beira da carroça e
olhou-a fixamente.
— Você está tão triste, Bella — disse, baixo. — O que houve?
Como pode ficar tão triste com um pano azul tão lindo para
olhar?
Isabelle balançou a cabeça, sem conseguir explicar. Fechou
os olhos para ocultar as lágrimas.
— Escuta, Bella, escuta. Tenho de perguntar uma coisa —
disse ele, sempre baixo.
Ela abriu os olhos.
— Confia em mim, não?
Ela olhou bem nos olhos negros dele.
— Sim, confio — disse, num cochicho.
— Preciso que me diga a cor do seu cabelo.
Isabelle pôs a mão, automaticamente, na touca da cabeça.
— Por quê?
— Tenho um recado que talvez seja para você, só posso
saber quando me disser a cor.
Isabelle balançou a cabeça devagar.
— A última notícia que você me deu foi que minha cunhada
havia morrido. Por que vou querer saber mais de você?
O mascate se inclinou mais perto.
— Porque você está triste e o recado pode deixá-la feliz,
esquecer a tristeza. Prometo, Bella. Não trago má notícia.
Além do mais, esse inverno foi ruim para você, não? Nunca
houve um pior — disse, olhando o rosto dela.
Isabelle olhou para a lama em volta dos sapatos dela.
Respirou fundo.
— Ruivo. Meu cabelo é ruivo.
Ele sorriu.
— Mas essa cor é linda, não? A mesma dos cabelos da
Virgem, louvada seja. Por que se envergonhar? Além de ser
a resposta que eu queria! Agora posso dar o recado. E de um
pastor de ovelhas que encontrei em Alès, no inverno. Ele a
descreveu e pediu para eu cuidar de você. Tem cabelos
negros e uma cicatriz no rosto. Sabe quem é?
Isabelle gelou. Em meio à fumaça, ao cansaço, ao medo que
embaralhava seus pensamentos, veio um brilho.
— E Paul — disse ela, baixo.
— Si, si, é esse o nome dele! Pediu para dizer — o mascate
fechou os olhos e pensou — que ainda espera você no
verão, perto da nascente do Tarn. Espera sempre por você.
Isabelle chorou. Por sorte, foi Marie, e não Etienne ou
Hannah, quem se aproximou e pegou a mão dela.
— O que houve, Maman? O que esse homem mau disse a
você? — perguntou, olhando zangada para o mascate.
— Ele não é um homem mau — disse Isabelle, em meio às
lágrimas.
O mascate riu e mexeu nos cabelos de Marie.
— Você, bambina, é como um barquinho, uma gôndola.
Balança para cima e para baixo, enfrenta a água e é corajosa,
mas muito pequena.
Continuou a passar os dedos pelos cabelos dela até encontrar
um fio ruivo que Hannah não tinha visto.
— Está vendo essa cor? Não é vergonha alguma. É linda -
disse para Isabelle.
— Diga-lhe que ele está sempre nos meus pensamentos -
pediu Isabelle.
Marie olhou para os dois.
— Dizer a quem?
— Não é nada, Marie. Estávamos conversando. Obrigada -
disse para o mascate.
— Seja feliz, Bella.
— Vou tentar.
Um dia antes da Sexta-Feira Santa, a lareira chegou.
Étienne e os meninos estavam arando a terra, Isabelle e
Hannah limpavam a casa, tirando a fumaça e a escuridão do
inverno. Escovavam o chão e as paredes, ferviam as panelas,
lavavam as roupas, trocavam a palha dos colchões, limpavam
o celeiro. Ainda não tinham caiado as paredes. Todas as
casas do vale eram caiadas por dentro uma vez ao ano, na
primavera, mas os Tournier esperavam a chaminé ser
construída.
Isabelle mexia uma tina cheia de roupas fumegantes, quando
viu a carroça se aproximar, o cavalo arfando com o peso da
carga.
— Marie, vá dizer a Papa que o granito chegou — disse ela.
Marie largou o galho com que mexia a roupa molhada e
correu para o campo.
Na hora em que Étienne e os meninos chegaram, o carro-
ceiro estava comendo uma tigela de assado, na mesa recém-
escovada. Comia depressa, com a boca perto da tigela. Ao
terminar, levantou a cabeça.
— Vamos precisar de mais dois homens para levantar a
pedra.
Étienne fez sinal com a cabeça para Petit Jean.
— Vá chamar Gaspard — mandou.
Enquanto esperavam, Étienne explicou como iria construir a
chaminé.
— Primeiro, vamos cavar para a pedra ficar no mesmo nível
do piso — disse.
Hannah, que estava atrás de Étienne, pegou a tigela do
carroceiro, encheu-a de novo e colocou-a na frente do
homem, com uma batida na mesa.
— Por que não cava agora? Assim podemos colocar a pedra
logo no lugar — disse o homem.
— Levaria muito tempo, pois o chão ainda está com gelo.
Não quero fazer você esperar — respondeu Étienne, sem
jeito.
O homem bateu o pé no chão.
— Acho que não tem gelo.
— Ainda está muito duro. Estou trabalhando no campo e não
tive tempo de cavar. Além disso, achava que você viria mais
tarde, depois da Páscoa.
Não é verdade, pensou Isabelle, olhando firme para Étienne,
que olhava onde o homem tinha feito um pequeno buraco
no chão com o salto do sapato. Gaspard tinha dito que
esperassem a pedra antes da Páscoa. Era raro Étienne mentir
tão descaradamente.
O homem do granito terminou a segunda tigela de comida.
— Suas mulheres não têm dificuldade de cozinhar no fogão
aqui. Por que mudar? — perguntou ele, mostrando com a
cabeça as chamas no canto da sala.
Étienne deu de ombros.
— Estamos acostumados com uma chaminé.
— Mas agora você está em outro lugar, com novos costumes.
Devia adotá-los.
— Certos costumes ficam com a gente para sempre, aonde
quer que vamos — disse Isabelle. — Fazem parte de nós e
nada consegue substituí-los completamente.
Todos olharam para ela e um olhar maldoso passou pelo
rosto de Étienne.
Por que falei?, pensou ela. Sei que calar é melhor. Por que
fui dizer uma coisa dessas? Agora ele vai me bater como fez
no inverno. E pode machucar o bebê. Pôs a mão na barriga.
Quando os homens chegaram, Étienne ficou muito ocupado
para se preocupar com sua raiva. Foram necessários quatro
homens fortes para levantar a pedra da carroça e carregá-la
com esforço, encostando-a na parede ao lado da porta. Jacob
acariciou-a. Marie se deitou nela como se fosse uma cama.
— É quente, Maman, como a lá de casa — disse.
A Páscoa era tempo de redenção, quando a dureza do
inverno era compensada. Isabelle tirou as roupas pretas que
usavam para assistir aos serviços religiosos e trocou-se com
uma facilidade que pensava ter perdido.
Isso se chama esperança, pensou. Era isso que eu havia
esquecido.
Achava que Etienne iria proibi-la de ir à igreja porque havia
falado aquilo para o homem do granito, mas ele não disse
nada. A ousadia dela foi compensada pela mentira dele.
Ajudou Marie a pôr o vestido. A filha estava agitada,
correndo pelo quarto, rindo. Na hora de ir, pegou a mão de
Isabelle e a de Jacob, e os três desceram o caminho estreito
lado a lado, atrás de Etienne e Hannah, e de Pétit Jean
correndo à frente.
Isabelle não ousava pensar na Virgem de Chalières. Já basta
eu ir ao primeiro serviço religioso, ver as outras pessoas,
andar ao sol, pensou. Não espero mais.
No fim do serviço matinal na igreja de São Pedro, Étienne
seguiu em direção à casa de Gaspard sem dizer nada a
Isabelle; o resto da família foi atrás. Pascale apareceu e
caminhou ao lado dela, sorridente.
— Estou contente por você ir ao outro serviço religioso, que
bom que está aqui hoje — disse, baixo.
Na casa de Gaspard, Isabelle sentou-se ao lado de Pascale
junto ao fogo e ouviu as novidades do inverno, que
ignorava.
— Claro que você sabia disso! — exclamava Gaspard, toda
vez que contava uma história nova. — Hannah deve ter
sabido quando veio assar pão, claro que ela contou para
você! Ah! — fez, colocando a mão na boca, tarde demais
para impedir que as palavras saíssem. Olhou para Hannah,
sentada de olhos fechados, ao lado de Etienne no outro
banco. Ela abriu os olhos para Gaspard, que riu, nervoso.
— Ei, Hannah, você sabe de todos os mexericos, n'est-ce
pas? Você ouve, embora não possa falar.
Hannah deu de ombros e fechou os olhos outra vez.
Ela está ficando velha, pensou Isabelle. Velha e cansada.
Mas ainda fala, tenho certeza.
Petit Jean sumiu logo com os filhos de um vizinho, mas
Jacob e Marie ficaram por ali, agitados, com olhos brilhantes
e ansiosos. Até que Pascale disse, animada:
— Venham, crianças, vou mostrar a vocês os novos filhotes.
Você não, Isabelle, só os dois. — E levou as crianças para o
celeiro.
Quando voltaram, riam, principalmente Marie. Ela andava
pela sala, com a cabeça empinada, como se usasse uma
coroa.
— Como são os filhotes? — perguntou Isabelle.
— Fofos — respondeu Jacob e riu junto com Marie.
— Venha cá, petit souris, senão jogo você no rio — ameaçou
Gaspard.
Marie soltou gritinhos, enquanto ele corria atrás dela pela
sala e, ao pegá-la, fez-lhe cócegas.
— Não faça isso, senão ela vai ficar agitada durante o serviço
religioso — disse Étienne, duro.
Gaspard largou Marie, de repente.
Pascale voltou a sentar-se ao lado de Isabelle. Tinha um
sorriso que Isabelle não entendia. Não perguntou. Aprendeu
a não perguntar.
— Quer dizer que logo vai ter uma chaminé — disse Pascale.
— É. Étienne vai instalá-la depois do plantio, com a ajuda de
Gaspard, claro. O granito é muito pesado. Depois, vai
construir a chaminé.
— Não vai mais ter fumaça. — Pascale parecia com inveja e
Isabelle sorriu.
— Não, não teremos mais fumaça.
Pascale baixou a voz.
— Você parece melhor do que na última vez.
Isabelle olhou em volta. Étienne e Gaspard estavam
entretidos em conversa; Hannah parecia dormir.
— É porque fiquei mais tempo fora de casa, tomei ar fresco
— disse ela, com cuidado.
— Não é só isso. Parece mais feliz. Como se alguém tivesse
lhe contado um segredo.
Isabelle pensou no pastor.
— Talvez sim.
Pascale arregalou os olhos e Isabelle riu.
— Não é nada. Só a primavera e a chaminé — disse ela.
— Então as crianças não contaram nada para você?
Isabelle se empertigou.
— Do quê?
— Nada. Vamos comer, daqui a pouco está na hora de ir a
Chalières. — Pascale se levantou antes que Isabelle pudesse
dizer alguma coisa.
Depois da refeição, foram andando numa procissão informal
até a igreja: Étienne e Gaspard à frente, Hannah ao lado de
Étienne, depois as outras duas mulheres, com Marie
segurando a mão da mãe, e Petit Jean e seus amigos num
bando animado, empurrando-se e falando alto. Atrás, Jacob
seguia sozinho, de mãos nos bolsos, sorrindo.
Chegaram cedo, a igreja só tinha a metade dos fiéis e
puderam ficar perto para ver o padre sem dificuldade.
Isabelle manteve os olhos baixos, mas de forma que pudesse
ver a Virgem, quando ousasse levantar os olhos. Marie ficou
ao lado dela, agitada e rindo.
— Maman, gosta do meu vestido? — perguntou, baixo.
Isabelle olhou para ela.
— Seu vestido é como deve ser, madame. Preto para os dias
santos.
Marie riu e mordeu o lábio quando Jacob franziu o cenho
para ela.
— Vocês estão escondendo alguma coisa de mim — con-
cluiu Isabelle.
— Estamos, Maman — concordou Jacob.
— Aqui não é lugar de brincadeira, é a casa de Deus.
Durante o serviço religioso, Isabelle pôde olhar várias vezes
para a Virgem. De vez em quando, sentia os olhos de
Étienne pousados nela, mas manteve o rosto sério, a alegria
escondida.
Monsieur Rougemont falou bastante sobre o sacrifício de
Cristo e a necessidade de levar uma vida pura.
— Deus já escolheu quais entre vocês seguirão o Filho Dele
ao céu — garantiu. — O comportamento de vocês aqui
mostra o que Ele decidiu. Se preferem pecar, manter velhos
hábitos depois de conhecer a Verdade, adorar falsos ídolos
— Isabelle baixou os olhos para o chão —, ter maus
pensamentos, não poderão receber o perdão de Deus. Mas,
se levarem uma vida pura, de trabalho duro e simples
devoção, ainda podem mostrar que são um dos escolhidos
de Deus e que merecem o sacrifício de Seu Filho. Rezemos,
irmãos.
O rosto de Isabelle queimava de rubor. Monsieur
Rougemont falou isso para mim, pensou. Sem mexer a cabe-
ça, olhou nervosa para Etienne e Hannah e, para a surpresa
dela, viu uma expressão de medo. Olhou para o outro lado e,
exceto pelo rosto sereno das crianças, viu a mesma
expressão em todos os rostos.
Talvez nenhum de nós tenha sido escolhido, pensou ela. E
sabemos disso.
Olhou para a Virgem.
— Ajude-me. Ajude-me a ser perdoada — rezou.
Monsieur Rougemont terminou a cerimônia com a taça de
vinho e finas hóstias para a Comunhão.
— Primeiro, comungam as crianças. Abençoados são os
inocentes — disse ele.
— Vai. — Isabelle deu um pequeno empurrão em Marie, que
se juntou com os dois irmãos às outras crianças ajoelhadas
na frente do padre.
Enquanto esperavam a Comunhão, Isabelle descansou os
olhos na Virgem outra vez. Olhe para mim, implorou em
silêncio. Mostre que meus pecados foram perdoados.
Os olhos da Virgem estavam baixos, fixos em alguma coisa.
Isabelle seguiu aquele olhar até chegar em Marie. A filha
estava de joelhos, paciente, esperando sua vez, o vestido
negro puxado em volta do corpo. Por baixo, entretanto, o
vestido não tinha um forro branco. Era azul. Marie estava
usando o pano azul.
Isabelle soltou uma exclamação e as pessoas próximas
viraram a cabeça para ela, junto com Etienne e Hannah.
Quis, mas não conseguiu tirar os olhos do azul.
Os outros também começaram a ver. Cutucões e murmúrios
se espalharam rapidamente pela igreja. Jacob, ajoelhado ao
lado de Marie, olhou para trás, depois olhou as pernas de
Marie. Fez como se fosse puxar o vestido preto da irmã para
baixo, depois se conteve.
Quando Etienne finalmente viu, ficou lívido e, depois,
rubro. Abriu caminho entre as pessoas até a frente da igreja
e colocou Marie de pé. Ela olhou para o pai e seu sorriso
desapareceu. Pareceu se encolher dentro de si mesma.
Etienne arrastou-a em meio aos fiéis até a porta, onde
sumiram.
Jacob se levantou e ficou paralisado na frente das crianças
ajoelhadas, olhos fixos na porta da igreja. Isabelle virou-se
para segui-los e viu que Pascale chorava.
Abriu caminho até a porta. Lá fora, Etienne havia levantado
o vestido preto de Marie para ver o forro azul.
— Quem deu isso para você? Quem vestiu você? — exigiu.
Marie não disse nada. Etienne fez com que ela se ajoelhasse.
— Quem deu isso para você? Quem?
Marie continuou sem responder e ele bateu com força na
cabeça dela. A menina caiu de rosto no chão.
— Fui eu — mentiu Isabelle.
Etienne virou-se.
— Eu devia ter adivinhado que você ia nos enganar, La
Rousse. Mas não vai mais. Não vai mais nos ofender.
Levante-se — mandou, dirigindo-se a Marie.
Ela se levantou devagar. O sangue tinha escorrido do nariz
para o queixo dela.
— Maman — murmurou.
Etienne ficou entre as duas.
— Não toque nela — sibilou para Isabelle. Puxou Marie e
olhou em volta. — Petit Jean, venha cá — mandou, quando
o filho apareceu na porta da igreja.
O menino se aproximou.
— Foi Pascale quem fez o vestido, Papa, foi ela — disse para
Etienne. Pegou o outro braço de Marie e os dois foram se
afastando. Marie virou a cabeça e olhou para Isabelle.
— Por favor, Maman. — Ela tropeçou; Etienne e Petit Jean
seguraram os braços dela com mais firmeza.
Hannah e Jacob apareceram na porta da igreja. Jacob foi
ficar ao lado de Isabelle.
— Os seixos no chão — disse ela, sem olhar para o filho. —
Eram para tirar as medidas do vestido.
— É. Para protegê-la, como disse o mascate. Não deixar que
se afogasse.
— Por que seu pai ficou contando os seixos? Por que queria
saber o tamanho de Marie?
Jacob virou-se para ela de olhos arregalados.
— Não sei.
8
A FAZENDA
Fui de Toulouse para Genebra de avião; depois, de trem para
Moutier. Tudo rápido e fácil: havia um vôo, havia um trem,
e Jacob pareceu mais satisfeito do que surpreso por eu
querer chegar tão rápido. Bem rápido: telefonei para ele ao
meio-dia; às seis da tarde, o trem me deixou em Moutier.
No trem que tomei em Genebra, minha cabeça começou a
funcionar outra vez. Cheguei de Toulouse meio tonta, mas o
ritmo do trem, mais natural que o de um avião, me fez
acordar. Comecei a olhar os passageiros em volta.
Na minha frente estava um casal de meia-idade: ele, de
blazer marrom e gravata listrada, lendo um jornal cuidadosa-
mente dobrado; ela, de vestido de lã cinza e jaqueta cinza
mais escuro, brincos de ouro, sapatos italianos. O cabelo
tinha acabado de ser penteado, eriçado e pintado de ruivo-
acastanhado, não muito diferente do meu, só que parecia
sintético. A senhora tinha no colo uma bolsa de couro
macio e escrevia na pequena agenda o que parecia ser uma
lista.
Já devia estar fazendo a lista de cartões de Natal que tinha de
mandar, pensei, segura no meu solto e amassado vestido de
linho.
O casal não trocou uma palavra durante a hora que fiquei
sentada na frente deles. Quando me levantei para tomar
outro trem em Neuchâtel, o homem olhou-me rapidamente
e me cumprimentou. "Bonne journée, Madame", disse ele,
numa polidez que só as pessoas de mais de cinqüenta anos
conseguem ter com graça. Sorri e cumprimentei os dois. Era
um tipo de lugar assim.
Os trens eram silenciosos, limpos e pontuais. Os passageiros
também eram silenciosos e limpos, de roupas discretas,
atentos às suas leituras, firmes nos gestos. Não havia
nenhum casal se agarrando aos beijos, nenhum homem me
encarando, nenhum vestido muito curto, peitos à mostra,
nem bêbados ocupando dois bancos (tudo isso era muito
comum no trem de Lisle a Toulouse). Não era um país
abusado: os suíços jamais ocupam dois bancos, se só
pagaram por um.
Talvez eu estivesse buscando essa ordem, depois do caos
que havia deixado. Era característica minha traçar a
personalidade do povo de um país depois de passar apenas
uma hora lá, ter uma opinião que eu poderia alterar para
adequar às pessoas que viesse a conhecer. Se eu quisesse,
poderia ter encontrado sordidez em algum lugar daqueles
trens, roupas amassadas e pessoas falando alto, pessoas lendo
romances românticas, alguém dando um tiro no banheiro,
um pouco de paixão, um pouco de medo. Mas olhei em
torno e me apeguei à normalidade.
A nova paisagem me fascinou: as sólidas montanhas do Jura
subindo, íngremes, a partir dos trilhos do trem, o rio
margeado de abetos verde-escuros, a forma comprida das
casas, a nítida ordem dos campos e fazendas. Estranhei que
fosse tão diferente da França, embora, pela lógica, não
devesse estranhar. Afinal, tratava-se de outro país, como eu
havia dito a meu pai. Mas a verdadeira surpresa foi perceber
que a paisagem francesa que deixara para trás (as colinas
suaves, os vinhedos verde-claros, a cor de ferrugem da terra,
a luz prateada) já não me era estranha.
Jacob disse ao telefone que me aguardava na estação. Eu não
sabia nada a respeito dele, sequer quantos anos tinha, mas
achava que devia ser mais da idade de meu pai do que da
minha. Quando desci na plataforma de Moutier, vi-o na
hora: lembrava meu pai, embora os cabelos fossem
castanhos e não grisalhos, mesma cor que o meu havia tido
um dia. Era bem alto e estava de suéter creme jogado de
qualquer jeito nos ombros e caindo nas costas num arco. Seu
rosto era comprido e fino, quase magro, queixo delicado e
olhos castanho-claros. Tinha o jeito ativo de um homem de
cinqüenta e tantos anos, ainda dedicado ao trabalho; não
fazia parte do grupo que descansava na aposentadoria, mas
sabia que logo se juntaria a eles e pensava como iria lidar
com tanta liberdade.
Ele veio na minha direção, pegou meu rosto nas mãos
grandes e me deu três beijos.
— Ella, você é bem parecida com seu pai — disse, num jeito
familiar, falando um francês claro.
Sorri para ele. — Ah, então devo ser parecida com você,
pois é parecido com meu pai!
Ele pegou minha bolsa de viagem, colocou o braço no meu
ombro, desceu comigo as escadas e saímos na rua. Fez um
gesto amplo com o braço, levando minha bolsa junto num
largo semicírculo, e exclamou: —Bienvenue à Moutier!
Dei um passo e ia dizendo "C'est três...", quando caí no
chão.
Acordei num quarto branco, pequeno e retangular,
despojado como uma cela de monge, com uma cama, mesa-
de-cabeceira, escrivaninha e cadeira. Atrás de mim, havia
uma janela e, quando olhei, vi de cabeça para baixo o
campanário branco de uma igreja, com seu relógio preto
parcialmente escondido por uma árvore.
Jacob estava sentado na cadeira ao lado da cama, e um
homem desconhecido, de rosto redondo, apareceu à porta.
Fiquei olhando para eles, sem conseguir falar. Jacob disse,
calmo: — Ella, tu t'es évanouiée. — Não conhecia aquela
palavra, mas entendi o que significava, eu tinha desmaiado.
Jacob fez um gesto indicando o homem na porta e disse: —
Lucien passava com seu caminhão e ajudou a trazer você
para cá. Ficamos preocupados porque você ficou
inconsciente bastante tempo.
—- Quanto tempo? — esforcei-me para me sentar e Jacob
segurou meus ombros para me ajudar.
— Dez minutos. No carro e depois em casa.
Balancei a cabeça devagar. — Não me lembro de nada.
Lucien entrou com um copo d'água e me deu.
—Merci — murmurei. Ele sorriu, mal mexendo os lábios.
Bebi, depois passei a mão no rosto; estava úmido e pegajoso.
— Por que meu rosto está úmido?
Jacob e Lucien se entreolharam: — Você chorou —
respondeu Jacob.
— Enquanto estava desmaiada?
Ele concordou com a cabeça e senti o nariz escorrendo e
dolorido, a garganta áspera, o cansaço.
— Falei alguma coisa?
—J'ai mis en toi mon espérance: Garde-moi, donc, Seigneur.
Foi isso? — perguntou Jacob a Lucien.
— Sim, foi isso... — respondeu Lucien.
— Você precisa dormir. Depois conversaremos —
interrompeu Jacob, estendendo um lençol fino por cima de
mim. Lucien levantou a mão e fez um aceno parado.
Concordei com a cabeça e ele sumiu.
Fechei os olhos e abri-os quando Jacob fechava a porta.
—Jacob, essa casa tem venezianas?
Ele parou e enfiou a cabeça no quarto. — Sim, mas nunca as
uso, não gosto delas. — Sorriu e fechou a porta.
Quando acordei, estava escuro, eu transpirava e me senti
perdida. Lá fora havia janelas abertas a toda volta, dava a
impressão de que ninguém usava as venezianas. O
campanário da igreja estava iluminado por holofotes.
Naquele momento, os sinos da torre começaram a tocar e
automaticamente acompanhei as badaladas, contando até
dez: dormi quatro horas. Pareceram dias.
Acendi a lâmpada da mesinha. A sombra do abajur era
amarela e espalhava uma suave luz dourada no quarto.
Nunca havia estado num quarto sem qualquer decoração,
mas aquele despojamento me era estranhamente
confortante. Fiquei deitada um pouco, observando como a
luz se espalhava, sem ter certeza se queria me levantar.
Acabei me levantando, saí do quarto e desci uma escada
escura. Dava numa saleta quadrada com três portas fechadas.
Escolhi uma com um fio de luz por baixo e dei numa
cozinha clara, pintada de amarelo, com um lustroso piso de
madeira e uma série de janelas numa das paredes. Jacob
estava numa mesa redonda de madeira lendo o jornal que
tinha apoiado numa tigela cheia de pêssegos. Uma jovem de
cabelos pretos e ondulados estava em frente à pia da
cozinha, esfregando uma panela. Quando entrei e ela virou-
se, sabia que era parente de Jacob: tinha o mesmo rosto
magro e queixo pontudo, suavizado por cachos na testa e
longas pestanas nos mesmos olhos castanhos dele. Era mais
alta do que eu e bem esguia, com mãos longas e finas, pulsos
finos.
— Ah, acordou, Ella. Essa é minha filha Susanne — disse
Jacob, enquanto a moça me dava três beijos no rosto.
Sorri para ela. — Desculpem, não vi que era tão tarde. Não
sei o que houve comigo — falei.
— Não tem problema. Você precisava dormir. Quer comer
alguma coisa? —Jacob puxou uma cadeira à mesa. Depois,
ele e Susanne serviram queijo e salame, pão, azeitonas e
salada. Era exatamente o que eu queria, algo simples. Não
queria que se preocupassem comigo.
Enquanto comemos, quase não falamos. Susanne perguntou
num francês tão claro quanto o do pai se eu queria vinho e
Jacob falou em queijo. No mais, ficamos calados.
Depois que pusemos os pratos de lado e Jacob me serviu
mais vinho, Susanne saiu da cozinha. — Está se sentindo
melhor? — perguntou ele.
— Estou.
De outro cômodo, veio uma música delicada, como se fosse
piano, porém mais aguda. Jacob ouviu um instante e
concluiu, encantado: — É uma peça de Scarlatti. Susanne
estuda espineta no Concertgebouw de Amsterdã.
— Você também é músico?
Ele concordou com a cabeça. — Dou aula na Escola de
Música daqui, que fica logo ali na colina — disse, fazendo
um gesto para trás.
— Toca o quê?
— Vários instrumentos, mas ensino principalmente piano e
flauta. Todos os meninos querem tocar violão; as meninas,
flauta, e meninos e meninas, violino ou flauta doce. Alguns,
piano.
— São bons alunos?
Ele deu de ombros. — A maioria estuda porque os pais
querem. Eles gostam de outras coisas também, como
equitação, futebol ou esqui. Todo inverno, quatro ou cinco
crianças quebram os braços esquiando e ficam impedidas de
tocar. Tem um menino pianista que toca Bach muito bem.
Talvez vá estudar em outro lugar.
— Susanne aprendeu com você?
Ele balançou a cabeça. — Com minha esposa.
Meu pai tinha dito que Jacob era viúvo, mas não consegui
lembrar há quanto tempo e em que circunstâncias.
— Ela morreu de câncer, há cinco anos — disse ele, como se
eu tivesse perguntado.
— Sinto muito. — Vendo que as palavras eram inadequadas,
acrescentei: —Você ainda sente falta dela, imagino.
Ele esboçou um sorriso triste. — Claro. Você é casada?
— Sou — respondi, sem jeito, e mudei de assunto. — Quer
ver a Bíblia agora?
— Vamos esperar de manhã, quando a luz é melhor. Você
parece ter melhorado, mas ainda está pálida. Está grávida?
Pisquei, surpresa por ele me perguntar de forma tão casual.
— Não, não. Não sei por que desmaiei, mas não foi por isso.
Tenho dormido mal há alguns meses. A não ser na noite
passada. — Parei, lembrando-me da cama de Jean-Paul, e
balancei a cabeça devagar. Era impossível contar minha
situação para ele.
Ficou evidente que tínhamos entrado numa área pantanosa
e Jacob nos salvou mudando de assunto.
— Você trabalha em quê?
— Sou, ou melhor, fui parteira nos Estados Unidos.
— E mesmo? Que coisa ótima! — O rosto dele se iluminou.
Olhei para a tigela cheia de pêssegos e sorri. A reação dele
foi parecida com a de Madame Sentier.
— É, era um bom trabalho — concordei.
— Então, claro que você saberia, se estivesse grávida.
Ri. — Acho que sim. — Eu costumava saber se uma mulher
estava grávida, mesmo no começo. Aparecia no jeito de elas
andarem, o corpo parecia carregar numa bolha alguma coisa
que elas nem sabiam o que era. Eu tinha percebido isso em
Susanne, por exemplo: um olhar meio distraído, como se ela
estivesse ouvindo uma conversa interior numa língua
estranha e não gostasse muito do que tinha ouvido, apesar
de não entender a língua.
Olhei o rosto franco de Jacob. Ele ainda não sabe, pensei.
Engraçado: eu era da família o bastante para ele me fazer
perguntas pessoais, mas não tão próxima para ele ter medo
de ouvir a resposta. Ele jamais perguntaria tão diretamente à
filha se ela estava grávida.
Dormi mal à noite, minha cabeça fervia pensando em Rick e
Jean-Paul, e com idéias duras sobre mim. Não levavam a
nada, só me deixavam nervosa. Consegui dormir finalmente,
mas acordei cedo.
Levei a Bíblia para baixo. Jacob e Susanne já estavam à mesa
lendo o jornal, junto com um homem pálido, de cabelos
cor-de-cenoura, e não castanhos como os meus. As
sobrancelhas e pestanas também eram vermelhas, dando ao
rosto um olhar vago e indefinido. Quando entrei na
cozinha, ele se levantou e estendeu a mão para mim.
— Ella, este é Jan, meu namorado — Susanne apresentou.
Parecia cansada: não havia tocado no café, cuja superfície
começava a formar uma espuma enrugada.
Ah, esse é o futuro pai, pensei. O cumprimento dele foi
indeciso. — Lastimo não estar aqui ontem para recebê-la.
Fui tocar num concerto em Lausanne e voltei muito tarde
— disse ele, em inglês perfeito.
— O que você toca?
— Flauta.
Sorri, em parte por causa do inglês formal dele e em parte
porque seu corpo era meio parecido com uma flauta: fino,
braços roliços, uma certa dureza nas pernas e no peito,
como o Homem de Lata do O mágico de Oz.
— Você não é suíço, é?
— Não, sou holandês.
— Ah. — Não consegui pensar em mais nada para dizer, a
formalidade dele me gelava. Jan continuou em pé. Virei-me,
sem jeito, para Jacob: — Vou colocar a Bíblia em outra sala
para você olhar depois do café, certo? — perguntei.
Jacob concordou com a cabeça. Voltei para a saleta e abri
outra porta. Entrei numa sala comprida e ensolarada, pintada
de creme, com arremates inacabados de madeira e lustrosos
ladrilhos pretos no chão. A mobília consistia apenas num
sofá e em duas poltronas gastas, e, como no quarto, não
havia nada nas paredes. No fundo da sala, vi um piano preto
de cauda, fechado, de frente para uma delicada espineta de
pau-rosa. Coloquei a Bíblia sobre o piano e fui até a janela
para dar minha primeira verdadeira olhada em Moutier.
As casas se espalhavam, desordenadas, em volta da casa e na
colina atrás dela. Eram cinza ou creme, com o teto de pedra
inclinado, terminando numa beirada que parecia uma saia
inflada. As casas eram mais altas e mais novas que as de
Lisle, com venezianas recém-pintadas de vermelho, verde e
marrom discreto, embora a casa bem na frente tivesse duas
de um incrível azul forte. Abri as venezianas de Jacob e
olhei-as: não eram pintadas, tinham a cor caramelo da
madeira natural.
Ouvi passos atrás de mim e voltei para dentro. Jacob estava
com uma xícara de café em cada mão e ria para mim.
— Ah, você já está espiando nossos vizinhos! — exclamou,
entregando-me uma xícara.
Ri. — Na verdade, estava olhando suas venezianas. Queria
ver de que cor pintou-as.
— Gostou?
Concordei com a cabeça.
— E onde está a Bíblia? Ah, ali. Puxa, agora você pode voltar
para a sua casa — brincou.
Sentei ao lado dele no sofá enquanto ele abria o livro na
primeira página. Olhou os nomes por um bom tempo, com
ar satisfeito. Depois, mexeu numa estante de livros às suas
contas e pegou alguns papéis amarrados com uma fita. Foi
abrindo e espalhando-os no chão. Os papéis estavam
amarelados, e a fita, seca.
— Esta árvore genealógica foi feita pelo meu avô — explicou.
A letra era clara e a árvore muito bem desenhada. Mesmo
assim, difícil de entender: havia traços tangentes, galhos
saindo, linhas que não tinham sido preenchidas. Quando
Jacob terminou de espalhar as folhas, elas não formaram um
retângulo ou uma pirâmide clara, mas uma colcha de
retalhos confusa, com folhas enfiadas aqui e ali.
Nós nos agachamos ao lado das folhas. Em toda parte, eu via
os nomes Susanne, Etienne, Hannah, Jacob, Jean. O alto da
árvore era mais simples, começava com Etienne e Jean
Tournier.
— Onde seu avô achou tudo isso?
— Em vários lugares. Alguns, na seção da burguesia do hotel
de ville daqui, que tem registros que remontam ao século
XVIII, acho. As informações anteriores a essa época, não sei
onde ele encontrou. Passou anos examinando documentos.
E agora você fez um acréscimo ao trabalho dele, deu o
grande salto da família para a França! Conte como achou
essa Bíblia dos Tournier.
Fiz uma versão resumida da minha pesquisa com Mathilde e
Monsieur Jourdain, deixando Jean-Paul de fora da história.
— Que coincidência! Teve sorte, Ella. E veio até aqui para
me mostrar isso. —Jacob passou a mão na capa de couro do
livro. Havia uma pergunta por trás do que ele dissera, que
ficou sem resposta. Deve ter achado um exagero o fato de eu
ir lá de repente só para mostrar a Bíblia, mas não confiei
nele, era muito parecido com meu pai. Não pensava em
contar para meus pais o que eu tinha acabado de fazer, a
cena que havia deixado para trás.
Mais tarde, Jacob e eu fomos dar uma volta a pé na cidade.
No Centro ficava o hotel de ville, que era um prédio astero,
de janelas cinza, e uma torre de relógio. As lojas se
apertavam em volta, formando o que era chamado de cidade
antiga, embora parecesse bem nova em comparação com
Lisle: muitos prédios eram modernos e tudo tinha sido
atualizado com gesso, tinta e telhas novas, quadradas. Havia
um prédio diferente, com cúpula em forma de cebola de um
lado e, sob ela, um nicho com a estátua de um monge de
pedra segurando uma lanterna na esquina da rua. Os outros
prédios eram iguais e sem enfeites.
No século passado, a cidade crescera para oito mil habitantes
e as casas se espalharam pelas colinas em volta da parte
antiga para acomodar os moradores. Percebia-se uma sensa-
ção de falta de planejamento esquisita depois de morar em
Lisle, com suas ruas paralelas que davam a impressão de um
todo orgânico. Com algumas exceções, os prédios eram mais
funcionais do que bonitos, construídos com um propósito,
sem tijolos decorativos, vigas aparentes ou telhados, como
eram em Lisle.
Um pouco fora do Centro, percorremos uma trilha perto do
rio Birse, que era pequeno, mais um riacho do que um rio, e
margeado de bétulas prateadas. Há algo animador no fato de
um rio passar por uma cidade, ligando-a ao resto do mundo,
lembrete de que o lugar não é tão estagnado ou isolado.
Em toda parte aonde íamos, Jacob me apresentava como
uma Tournier dos Estados Unidos. Eu era cumprimentada
com um olhar de reconhecimento e aceitação que não espe-
rava. Foi bem diferente da recepção que tive em Lisle. Co-
mentei isso com Jacob, que sorriu. — Talvez seja você que
está diferente — observou.
— Talvez. — Não acrescentei que, embora a atitude das
pessoas em relação a mim fosse gratificante, desconfiava um
pouco daquela aceitação absoluta por causa de um nome de
família. Se soubessem as coisas horríveis que eu havia feito,
não achariam os Tournier tão maravilhosos, pensei, amarga.
Jacob ia para as suas aulas. A caminho da escola,
acompanhou-me a uma capela no cemitério que ficava no
fim da cidade e me deixou olhar o interior dela. Disse que
Moutier tinha conventos do século XVII e que aquela capela
de Chalières pertencia ao século X: pequena e simples, tinha
as paredes do coro com afrescos de estilo bizantino e meio
apagados nas cores ferrugem e creme; as outras paredes
eram caiadas. Prestei bastante atenção nas figuras do afresco:
Cristo de pé com os braços abertos, os apóstolos enfileirados
abaixo, com pálidas auréolas sobre as cabeças; alguns rostos
estavam com a pintura apagada e haviam perdido a
expressão. Com exceção dos traços desbotados de uma
mulher triste que estava mais ao lado, os afrescos não me
comoveram.
Ao sair da capela, vi Jacob no meio da colina, na frente de
uma lápide, de cabeça baixa e olhos fechados. Olhei-o um
instante, envergonhada das minhas preocupações, quando
ali, sim, havia algo realmente dramático, um homem no
túmulo da esposa. Voltei à capela para não perturbar a
intimidade dele. Uma nuvem havia passado em frente ao sol
e do lado de dentro estava mais escuro; as figuras do afresco
ao meu lado pareciam suspensas como fantasmas. Fiquei na
frente das linhas apagadas da mulher e prestei mais atenção
nela. Havia sobrado pouco do desenho: olhos de pálpebras
pesadas, nariz grande, boca contrita, estava coberta com um
manto e tinha uma auréola sobre a cabeça. Mesmo assim,
aqueles poucos elementos captavam totalmente o desespero
dela.
— Claro, essa é a Virgem — falei, baixo.
Alguma coisa na expressão dela fazia-a diferente da Virgem
de Nicolas Tournier. Fechei os olhos e tentei lembrar: a dor,
a resignação, a estranha paz no rosto. Abri os olhos outra
vez para a figura à minha frente. Foi então que vi: a dife-
rença estava na boca com as pequenas dobras nos cantos.
Aquela Virgem estava zangada.
Ao sair da capela outra vez, o sol havia voltado e Jacob tinha
ido embora. Andei na direção da cidade, passando pelas
casas mais novas, que terminavam na igreja protestante, a
qual avistei na primeira vez que acordei na casa de Jacob.
Era uma construção grande, de calcário, rodeada de velhas
árvores. De certa forma, ela me lembrava a igreja de Le Pont
de Montvert: as duas ficavam no mesmo lugar em relação à
cidade; não no Centro, mas, mesmo assim, se destacavam a
meio caminho da subida norte de uma colina, com um
alpendre gramado e um muro onde se podia sentar e olhar a
cidade. Dei a volta na igreja e vi que a porta de entrada
estava aberta. Dentro, podia-se ver mais decoração do que
na igreja de Le Pont de Montvert — o piso era de mármore
e o coro tinha alguns vitrais. Mesmo assim, dava a impressão
de despojamento, austeridade e, depois de ver a capela de
Chalières, grandeza e impessoalidade. Saí logo.
Sentei no muro ao sol, como fiz em Le Pont de Montvert.
Estava calor e tirei a jaqueta. A psoríase tinha voltado aos
meus braços. "Droga", resmunguei. Cruzei os braços sobre o
peito, depois estiquei-os ao sol. O movimento fez sair
sangue de uma ferida no braço.
Nesse momento, um labrador negro se aproximou, saltou na
minha direção, tentou subir no muro e enfiou a cabeça do
meu lado. Ri e dei umas palmadinhas nele. — Chegou na
hora certa, cão, não me deixe triste — falei.
Lucien apareceu no gramado. À medida que ele se
aproximava, pude dar uma olhada melhor nele, em seu rosto
de bebê, cabelos pretos e encaracolados, olhos castanhos e
arregalados. Devia ter uns trinta anos, mas parecia jamais ter
tido uma preocupação ou passado por alguma tragédia. Um
inocente suíço. Olhei para baixo, mostrando minha psoríase
de propósito. Notei outra no cotovelo e xinguei-me por ter
me esquecido de levar meu creme de cortisona.
— Salut, Ella — disse ele, de pé, sem jeito, até que o convidei
para sentar-se. Estava de shorts velhos e camiseta, ambas
com pingos de tinta. O labrador olhou para nós, ofegante,
abanando o rabo; quando teve certeza de que não iríamos
sair dali, foi cheirar as árvores próximas.
— Você é pintor? — perguntei, para quebrar o silêncio,
imaginando se ele teria ouvido falar em Nicolas Tournier.
— Sou, estou trabalhando ali — respondeu, mostrando um
lugar atrás na colina. — Está vendo as escadas?
— Ah, sei. — Ele era pintor de paredes. Não deveria fazer
diferença, pensei. Mas minhas perguntas secaram, não sabia
o que dizer.
— Também construo casas e conserto coisas — Lucien
estava olhando para a cidade, mas vi que, disfarçadamente,
olhava também os meus braços.
— Onde mora? — perguntei.
Ele mostrou outra casa na colina e olhou meus braços outra
vez.
— E psoríase — falei, de repente.
Ele concordou com a cabeça, não era de falar muito. Reparei
que o cabelo dele tinha traços de tinta branca e os braços
também estavam salpicados de tinta, como quando se usa
rolo para pintar. Lembrei-me das mudanças de casa que
fizera com Rick: nossa primeira tarefa, quando mudávamos,
era pintar tudo de branco. Rick dizia que assim ele podia ver
melhor o tamanho dos cômodos; para mim, era como tirar
os fantasmas. Só depois que morávamos num lugar há algum
tempo, depois que aparecia a personalidade da casa e nos
sentíamos bem em morar nela, é que pintávamos os
cômodos de várias cores. Nossa casa em Lisle continuava
sendo branca.
O telefonema foi um dia depois. Não sei porquê, ele me
pegou desprevenida: sabia que minha outra vida acabaria se
intrometendo, mas não tinha como me preparar.
Estávamos comendo fondue. Susanne tinha gostado de saber
que, depois dos canivetes da Guarda Suíça, dos relógios e do
chocolate, fondue era a quarta coisa que os norte-ameri-
canos associavam à Suíça, e insistiu em fazer uma para mim.
— Essa é uma velha receita de família, bien sür — disse ela,
brincando.
Jacob e Susanne convidaram algumas pessoas para jantar:
Jan, claro, mais um casal teuto-suíço, que era nada mais que
os vizinhos das janelas azuis, e Lucien, que sentou ao meu
lado e de vez em quando me olhava de perfil enquanto
comíamos. Ainda bem que meus braços estavam cobertos,
senão ia olhar minha psoríase.
Eu só havia comido fondue uma vez, em pequena,
preparada pela minha avó. Não lembrava muito como era. A
de Susanne estava deliciosa e com bastante bebida alcoólica.
E nós ainda tomamos bastante vinho e passamos a falar mais
alto e a dizer mais bobagens. A uma certa altura, passei um
pedaço de pão no queijo fundido e o garfo saiu vazio. Todos
riram e bateram palmas.
— O que houve? — perguntei, e lembrei-me da tradição que
minha avó me havia ensinado: quem perde primeiro o pão
na fondue não vai se casar. Eu também ri. — Ora, não vou
me casar! Mas espera: eu sou casada!
Riram mais. — Não, não, Ella — exclamou Susanne. — Se
você é a primeira a perder o pão na panela, vai se casar logo!
— Na minha família dizem que não casa!
— Mas essa é a sua família e vale a tradição daqui: você vai
casar — disse Jacob.
— Então alguém entendeu errado. Tenho certeza de que
minha avó disse...
— Sim, você entendeu errado, da mesma forma que o nome
da família está errado — disse Jacob. — Tuuuurrr-nuu-urrr
— pronunciou devagar, escandindo cada sílaba. — Onde
estão as vogais para levantar e soar bonito, como em Tour-
ni-er? Mas não tem problema, ma cousine, você sabe como
é seu verdadeiro sobrenome. Sabiam que minha prima é
parteira? — perguntou aos vizinhos.
— Ah, uma boa profissão — respondeu o homem,
automaticamente. Senti que Susanne me olhava e, quando a
encarei, ela abaixou os olhos. A taça de vinho dela
continuava cheia e tinha comido pouco.
O telefone tocou, Jan levantou-se para atender, olhou em
volta da mesa e parou em mim. Segurou o fone e disse: — E
para você, Ella.
— Para mim? Mas... — Eu não tinha dado o telefone de lá
para ninguém. Levantei-me, com todos olhando para mim.
— Alô? — perguntei, insegura.
— Ella? Que diabo está fazendo aí?
— Rick? — Fiquei de costas para a mesa, tentando ter um
pouco de privacidade.
— Parece estranhar que eu esteja ligando. — Nunca o vira
tão amargo.
— Não, é que... não deixei o telefone daqui.
— Não deixou mesmo, mas foi fácil conseguir o telefone de
Jacob Tournier, em Moutier. Havia dois e, quando liguei
para o outro, ele disse que você estava nesse.
—- Sabia que eu estava aqui? Outro Jacob Tournier? —
repeti como boba, surpresa por Rick lembrar o nome do
meu primo.
— Sim.
— Bom, a cidade é pequena. — Olhei em volta. Todos
comiam, fazendo de conta que não ouviam a conversa, mas
ouviam do mesmo jeito, menos Susanne, que se levantou de
repente, foi até a pia e respirou fundo na janela ao lado, que
estava aberta.
Todos sabem o que estou fazendo, pensei. Até um Tournier
que mora do outro lado da cidade sabe.
— Ella, por que você foi embora? O que há?
— Rick, eu... podemos conversar em outra hora? Agora não
dá.
— Achei que deixou a aliança no chão do quarto como uma
espécie de declaração.
Abri a mão esquerda e olhei, pasma por não ter percebido
que estava sem aliança. Deve ter caído do bolso do vestido
amarelo, quando troquei de roupa.
— Está zangada comigo? Fiz alguma coisa?
— Não, você só... ah, Rick, eu... você não fez nada, eu só
queria conhecer minha família aqui, só isso.
— Então por que sair correndo assim? Não deixou nem um
bilhete. Você sempre deixa. Imagina como fiquei
preocupado? E como foi humilhante saber pela secretária!
Fiquei calada.
— Quem atendeu o telefone? — ele quis saber.
— O quê? Foi o namorado de minha prima. Ele é holandês
— acrescentei, prática.
— Aquele... cara está com você?
— Quem?
—Jean-Pierre.
— Não, ele não está aqui. Por que você pensou isso?
— Você dormiu com ele, não foi? Sei pela sua voz.
Essa eu não esperava dele. Respirei fundo.
— Olha, eu realmente não posso falar agora. Tem... pessoas
na sala. Desculpe, Rick, eu... não sei o que quero mais. Mas
não posso falar agora. Não mesmo.
— Ella... — Rick parecia meio sufocado.
— Me dê uns dias, sim? Eu volto e... nós conversaremos.
Certo? Desculpe. — Desliguei e olhei para eles. Lucien olha-
va para o prato, os vizinhos conversavam, decididos, com
Jan. Jacob e Susanne me olhavam firme com os olhos do
mesmo tom castanho que os meus.
— Bom, o que estávamos dizendo sobre eu me casar? —
perguntei, animada.
Levantei no meio da noite, desidratada por causa do vinho, a
fondue parecendo chumbo no meu estômago. Desci para
tomar água mineral na cozinha. Deixei as luzes desligadas e
sentei à mesa com o copo d'água, mas o lugar ainda estava
com cheiro de queijo e fui para a sala. Quando cheguei à
porta, ouvi o leve e agudo som da espineta. Abri a porta sem
fazer barulho e vi Susanne tateando no escuro, uma luz da
rua ao longe mostrava seu perfil. Ela tocou alguns compassos
e parou. Falei o nome dela e ela levantou os olhos, soltou os
ombros. Fui até onde estava e coloquei a mão no ombro
dela. Usava um macio quimono de seda escuro.
— Você devia estar dormindo, deve estar cansada. Precisa
dormir bastante — falei, suave.
Susanne apertou o rosto em mim e chorou. Fiquei parada e
passei a mão nos cabelos ondulados dela, depois me ajoelhei
ao seu lado.
—Jan já sabe?
— Não — respondeu ela, enxugando os olhos e o rosto.
— Ella, não estou preparada. Quero fazer outras coisas.
Trabalhei tanto e agora que comecei a ter mais convites para
fazer concertos... — Pôs a mão no teclado e tocou um
acorde.
— Um filho agora iria acabar com as minhas oportunidades.
— Quantos anos você tem?
— Vinte e dois.
— Quer filhos?
Ela deu de ombros. — Um dia, mas não já. Não agora.
-E Jan?
— Ah, ele adoraria. Mas, como você sabe, os homens não
pensam do mesmo jeito que nós. Não faria a menor diferen-
ça para a música, a carreira dele. Quando fala em ter filhos é
uma idéia tão abstrata, tenho certeza de que quem cuidaria
seria eu.
Era um estribilho conhecido.
— Mais alguém sabe da gravidez?
— Não.
Fiquei indecisa, não estava acostumada a falar com mulheres
sobre aborto como uma questão de escolha: na minha
profissão, quando as mulheres me procuravam, era porque
haviam resolvido ter o filho. Além do mais, nem sabia a
palavra em francês para "aborto" e "escolha".
— O que você poderia fazer? — perguntei, por fim, sem
jeito, tomando cuidado pelo menos com o tempo do verbo.
Ela olhou para o teclado. Depois, deu de ombros. — Un
avortement (Um aborto) — disse, com voz fraca.
— O que acha do... aborto? — Devia ter-me dado um chute
por fazer aquela pergunta boba. Susanne não pareceu notar.
— Eu preferia fazer, embora não goste da idéia. Não pratico
nenhuma religião, não seria tão grave. Mas Jan...
Esperei.
— Bom, ele é católico. Não freqüenta a igreja e se considera
liberal, mas... é diferente quando se trata de decidir mesmo.
Não sei o que vai pensar. Pode ficar muito preocupado.
— Você precisa contar, ele tem o direito de saber, mas não
precisa decidir com ele. A decisão é sua. Claro que seria
melhor os dois estarem de acordo, mas, se não for possível,
a decisão será sua porque você é que está grávida. — Tentei
ser o mais firme possível.
Susanne me olhou de lado. —Você alguma vez fez um...
— Não.
— Quer ter filhos?
— Quero, mas... — Não sabia o que explicar primeiro. Sem
querer, ri. Susanne me olhou, o branco dos olhos brilhando
com as luzes da rua. — Desculpe, preciso me sentar, depois
eu digo.
Sentei numa das poltronas, enquanto Susanne acendia uma
pequena lâmpada do piano. Enroscou-se num canto do sofá,
sentada sobre as pernas, o quimono de seda verde apertado
nos joelhos, e me olhou, ansiosa. Acho que ficou aliviada
porque a luz não estava mais sobre ela.
— Meu marido e eu falamos sobre filhos — comecei. —
Achamos que agora seria uma boa hora. Quer dizer, na
verdade, eu sugeri e Rick aceitou. Começamos a tentar, mas
fiquei... perturbada. Por um pesadelo. E agora, agora acho
que... estamos com problemas. Tem também... outra coisa.
Outra pessoa. — Fiquei constrangida de colocar a situação
daquele jeito, mas era também um alívio contar para
alguém.
— Quem é?
— Um bibliotecário da cidade onde moro. Estamos... nos
envolvendo há algum tempo. Depois nós... depois eu não
estava bem e tive de sair da cidade. Por isso, vim para cá. —
Mexi as mãos.
— Ele é bonito?
— Ele... ah, sim. Eu acho. Ele é meio... sério.
— E você gosta dele.
— Gosto. — Era estranho falar nele; na verdade, eu achava
difícil lembrar o rosto dele. De longe, naquela sala com
Susanne enroscada na minha frente, o que havia acontecido
com Jean-Paul parecia distante e não tão arrasador quanto
havia pensado. Era engraçado: quando a gente conta a vida
para os outros, torna-se mais ficção e menos realidade. Há
também um toque de representação que afasta mais do fato
real.
— Há quanto tempo você e Rick estão casados?
— Dois anos.
— E como se chama o homem?
—Jean-Paul. — O nome dele tinha algo tão definido que
pronunciá-lo me fez sorrir. — Ele me ajudou a pesquisar a
história da minha família. Discute muito comigo, mas é
porque se interessa por mim, pelo que faço... quer dizer,
pelo que sou. Ele me ouve. Ele me vê, não sou uma
abstração. Entende?
Susanne concordou com a cabeça.
— E consigo conversar com ele. Cheguei a falar sobre o
pesadelo e ele foi muito simpático, me fez descrevê-lo. Isso
ajudou.
— O pesadelo é sobre o quê?
— Ah, não sei. Não tem uma história. Só uma sensação
como... como se eu não respirasse. — Bati no peito. Pensei
em Frank Sinatra. Os velhos olhos azuis.
— E um azul, um certo tom de azul. Como nos quadros da
Renascença. A cor que eles usavam para fazer o manto da
Virgem. Tem um pintor... você já ouviu falar em Nicolas
Tournier?
Susanne aprumou-se e segurou no braço do sofá.
— Fale mais nesse azul.
Finalmente, uma ligação com o pintor. — O pesadelo tem
duas partes: um azul-claro, a camada de cima, cheia de luz
e...
— Fiquei buscando as palavras para usar. — A cor muda
conforme a luz. Mas tem um escuro por baixo da luz, bem
sombrio, as duas cores lutam entre si. Por isso a cor fica tão
viva e marcante. É uma linda cor, mas é triste também,
talvez seja para nos lembrar que a Virgem está sempre
lamentando a morte do filho, até quando ele nasceu. Como
se soubesse o que iria acontecer. Mas, quando ele morre, o
azul continua lindo, ainda esperançoso. Faz pensar que nada
é totalmente uma coisa nem totalmente outra, pode ser
brilhante e feliz, mas tem sempre aquele escuro por baixo.
Parei. Nós duas ficamos caladas.
Ela então disse: — Também tive esse pesadelo.
— Foi só uma vez, há umas seis semanas, quando estava em
Amsterdã. Acordei assustada, chorando. Pensei que estava
me sufocando no azul, esse azul que você fala. Foi estranho
porque me senti feliz e triste ao mesmo tempo. Jan disse que
eu falei alguma coisa, como se recitasse algo da Bíblia.
Depois, não consegui mais dormir. Tive de levantar e tocar a
espineta, como agora.
— Você tem uísque? — perguntei.
Ela foi até a estante de livros e abriu o armário embaixo,
pegou uma garrafa com bebida pela metade e dois pequenos
copos. Sentou-se no canto do sofá e serviu uma dose para
cada. Pensei em comentar sobre ela beber estando grávida,
mas não precisei: depois de me dar um copo, ela cheirou o
dela e fez uma careta; então abriu a garrafa e despejou o
uísque de volta.
Tomei o meu. O uísque cortou tudo: a fondue, o vinho, meu
desespero por causa de Rick e Jean-Paul. Era o que eu
precisava para fazer algumas perguntas estranhas.
— Há quanto tempo está grávida?
— Não sei direito. — Ela esfregou os braços por cima do
quimono.
— Há quanto tempo não fica... — Fiz um gesto para ela.
— Quatro semanas.
— Como engravidou? Não usava nenhum anticoncepcional?
Desculpe, mas isso é importante.
Ela olhou para baixo. — Esqueci de tomar a pílula um dia.
Costumo tomar antes de deitar, mas esqueci. Não achei que
tivesse importância.
Eu ia dizer alguma coisa, mas Susanne me interrompeu.
— Não sou boba, nem irresponsável. É que... —Ela apertou a
boca com a mão. — Às vezes é difícil achar que uma
pequena pílula tem ligação com engravidar. É como uma
mágica, duas coisas totalmente sem relação terem alguma
coisa a ver. É louco. Abstratamente eu entendo, mas não de
verdade.
Concordei com a cabeça. — As grávidas não costumam ligar
a idéia de filho à de sexo. Nem os homens. São coisas tão
diferentes. Isso funciona como mágica.
Ficamos caladas um instante.
— Quando se esqueceu de tomar a pílula? — perguntei.
— Não lembro.
Inclinei-me para a frente. — Tente. Foi na época do
pesadelo?
— Acho que não. Não, espera, lembrei agora. Jan estava num
concerto em Bruxelas na noite em que esqueci. Voltou no
dia seguinte e à noite tive o pesadelo. Foi isso.
— Você e Jan... tiveram relações naquela noite?
— Tivemos. — Ela parecia constrangida.
Pedi desculpas. — É porque eu só tinha o pesadelo quando
Rick e eu tínhamos relações sexuais — expliquei. — Como
você, mas o pesadelo parou quando comecei a tomar
anticoncepcional e com você parou quando engravidou.
Nós nos entreolhamos.
— Muito estranho — disse Susanne, calma.
— É, estranho.
Susanne passou a mão na barriga por cima do quimono e
suspirou.
— Você precisa contar para Jan. É a primeira coisa a fazer —
falei.
— É. E você precisa conversar com Rick.
— Tenho a impressão de que ele já sabe.
No dia seguinte, procurei registros na prefeitura. Apesar de
o avô de Jacob ter feito uma ampla pesquisa sobre a árvore
genealógica da família, eu precisava ver essa pesquisa. Tinha
tomado gosto pelo tema. Passei a tarde toda numa sala de
reunião, procurando com cuidado listas de nascimento,
óbito e casamento dos séculos XVIII e XIX. Não tinha
percebido como os Tournier haviam se estabelecido em
Moutier: havia centenas deles na cidade.
Aqueles poucos registros me informaram muita coisa: o
tamanho das famílias, a idade em que se casavam (em geral,
aos vinte e poucos anos), a profissão dos homens
(fazendeiro, professor, dono de estalagem, relojoeiro).
Muitos bebês morriam. Encontrei uma Susanne Tournier
que teve oito filhos entre 1751 e 1765, e cinco morreram
com um mês de idade. Ela morreu ao dar à luz o último.
Nunca fiz um parto em que o bebê ou a mãe morresse. Tive
sorte.
Os documentos revelam mais. Muitos filhos ilegítimos e
incestuosos eram registrados, sem qualquer reserva. Vá
alguém entender os rígidos princípios calvinistas, pensei,
mas atrás do meu cinismo fiquei chocada ao ler que, em
1796, uma mulher chamada Judith Tournier dera à luz um
filho gerado pelo pai dela, registrado legalmente. Outros
registros não especificavam se o filho era ilegítimo.
Era estranho ver os nomes em uso na época e saber que
continuavam em uso. Muitos, os huguenotes tiraram do
Antigo Testamento, como Daniel, Abraão e até um Noé, e
notei que havia muitas Hannahs e Susannes e mais tarde
Ruths, Annes e Judiths, mas nenhuma Isabelle nem Marie.
Pedi para ver registros anteriores a meados do século XVIII
e a funcionária disse que eu tinha de olhar os arquivos
paroquiais guardados em Berne e Porrentruy; recomendou
que eu telefonasse antes. Anotei os nomes e telefones,
agradeci e sorri para mim mesma: ela ficaria pasma com a
viagem que eu tinha feito a Cévennes e do meu inesperado
sucesso. Naquele país, a Suíça, a sorte não contava, os
resultados dependiam de trabalho consciente e
planejamento cuidadoso.
Fui a um bar próximo para pensar qual seria o passo
seguinte. O garçom trouxe meu café, que veio com um
pequeno guardanapo embaixo da xícara, a colher, cubos de
açúcar e um chocolate quadrado sobre o açucareiro. Olhei a
composição e me lembrei dos documentos que tinha
acabado de ver, fatos registrados com precisão e letra clara.
Embora fossem mais fáceis de entender, não tinham o
charme e a confusão dos registros franceses. Eram como os
próprios franceses: irritantes porque não se acostumavam
com os estrangeiros, mas, por isso mesmo, mais
interessantes. Era preciso se dedicar mais a eles para obter
mais.
Ao voltar para casa, encontrei Jacob ao piano, tocando uma
música lenta e triste. Estiquei-me no sofá e fechei os olhos.
A música tinha notas nítidas e uma melodia simples, como
se o som estivesse sendo escolhido à agulha. Lembrou-me
de Jean-Paul.
Quando ele acabou de tocar, eu estava cochilando. Abri os
olhos e vi que ele me olhava, ao piano.
— É de Schubert — disse ele.
— Linda.
— Encontrou o que queria?
— Nem tanto. Jacob, pode dar uns telefonemas para mim?
— Bien sür, ma cousine. Estive pensando no que você vai
querer ver. Coisas ligadas à família. Tem um lugar com um
moinho que pertenceu aos Tournier. Tem um restaurante,
hoje uma pizzaria de italianos, que era uma pousada de beira
de estrada no século XIX, também administrada por um
Tournier. E tem uma fazenda a um quilômetro de Moutier,
na direção de Grand Val. Não é certo ter sido dos Tournier,
mas a tradição familiar diz que sim. É um lugar interessante
porque tem uma velha chaminé. Parece que foi uma das
primeiras casas do vale a ter chaminé.
— Nem todas as casas têm?
— Hoje, sim, mas há muito tempo não era comum.
Nenhuma fazenda por aqui tinha chaminé.
— E como faziam com a fumaça?
— Havia um teto falso e a fumaça ficava entre ele e o
telhado. Os fazendeiros dependuravam as comidas lá para
defumar.
Parecia incrível.
— A casa não ficava cheia de fumaça e suja?
Jacob riu. — Decerto. Há uma fazenda no Grand Val que
não tem chaminé. Estive lá, e a lareira e o teto em cima dela
são totalmente escuros de fumaça. Mas a fazenda dos
Tournier, se for mesmo deles, não. Tem uma ótima
chaminé.
— Quando foi construída?
— Acho que no século XVII, talvez final do XVI. O resto da
casa foi reconstruído várias vezes, mas a chaminé ficou.
Aliás, a Sociedade Histórica local comprou a fazenda há
alguns anos.
— Quer dizer que ninguém mora lá? Podemos visitar?
— Claro. Vamos amanhã, se o dia estiver bonito. Só tenho
aulas no final da tarde. Onde estão os telefones para os quais
você quer ligar?
Expliquei a ele o que queria saber naqueles telefones e fui
andar. Não havia muito o que ver na cidade que Jacob já não
tivesse me mostrado, mas foi ótimo poder andar sem ser
olhada atentamente. Após três dias ali, as pessoas até me
cumprimentavam primeiro, coisa que ninguém fez mesmo
depois de três meses em Lisle-sur-Tarn. Pareciam mais
educados e menos desconfiados do que os franceses.
Achei uma coisa, enquanto ziguezagueava pelas ruas: uma
placa informando que, numa noite de outubro de 1779,
Goethe havia dormido na hospedaria Cheval-Blanc, que
ficava ali. Ele cita Moutier numa carta, descreve as
formações rochosas em volta, principalmente um grande
desfiladeiro a leste da cidade. Era um exagero colocar uma
placa para comemorar o fato de Goethe ter passado uma
noite lá, o que mostrava quão pouca coisa havia acontecido
em Moutier.
Quando me virei, vi Lucien vindo na minha direção com
duas latas de tinta. Tive a impressão de que ele estava me
olhando e só então pegou as latas e se mexeu.
— Bonjour — cumprimentei. Ele parou e colocou as latas no
chão.
— Bonjour.
— Ça va?
— Oui, ça va.
Ficamos parados, esquisitos. Tive dificuldade de olhar bem
para ele, pois me olhava tanto, como se quisesse me dizer
algo. A última coisa que eu precisava naquela hora era da
atenção dele. Devia ser por isso que ele sentia atração por
mim. Devia estar fascinado pela minha psoríase. Mesmo
naquele momento, ficou olhando para ela.
— Lucien, isso é psoríase — falei, ríspida, no fundo satisfeita
por conseguir constrangê-lo. — Eu disse a você, naquele
dia. Por que fica olhando?
— Desculpe, é que... às vezes eu tenho isso. No mesmo
lugar; achava que era alergia à tinta — disse ele, desviando
os olhos.
— Ah, desculpe. — Senti-me culpada, mas continuei irritada
com ele, o que me deixou mais culpada ainda. Um círculo
vicioso.
— Por que não foi ao médico? — perguntei, mais
delicadamente. — Ele diria o que é e receitaria um remédio.
Existe um creme... deixei em casa, senão estaria usando.
— Não gosto de médicos. Eles me fazem sentir... desajustado
—justificou.
Achei graça. — Sei como é. E aqui... quer dizer, na França,
eles receitam muitos remédios. Remédios demais.
— Por que você tem psoríase?
— Dizem os médicos que é estresse. Mas o creme é bom.
Você podia pedir ao médico para...
— Ella, aceita tomar um drinque comigo uma noite dessas?
Parei. Eu devia arrancar o mal pela raiz: não estava
interessada e nem convinha, principalmente naquele
momento. Mas não gostava de recusar um convite. Não
agüentaria a cara que ele faria.
— Ah, daqui a alguns dias, pode ser? Mas Lucien...
Ele ficou tão contente que não consegui continuar.
— Está certo. Uma noite nesta semana, então.
Quando voltei para casa, Jacob estava ao piano outra vez.
Parou de tocar e pegou um pedaço de papel: — As notícias
não são muito boas — avisou ele. — Os registros em Berne
vão só até 1750. Em Porrentruy o bibliotecário disse que os
registros paroquiais do século XVI e início do XVII foram
perdidos num incêndio. Mas há algumas listas de
alistamento militar que você poderia olhar. Acho que foi
nelas que meu avô se informou.
— Seu avô deve ter achado tudo que existe. Mas obrigada por
fazer as ligações para mim. —Alistamentos militares não
serviam... eu estava interessada nas mulheres. Mas não falei
isso para Jacob.
— Você ouviu falar num pintor chamado Nicolas Tournier?
— perguntei.
Ele balançou a cabeça. Fui ao meu quarto e peguei o postal
que trouxera.
— Veja, ele nasceu em Montbéliard — expliquei, entregando
o cartão. — Achei que ele podia ser um antepassado. Uma
parte da família que se mudou para Montbéliard, talvez.
Jacob olhou o quadro e balançou a cabeça. — Nunca soube
que a família tinha um pintor. Os Tournier costumavam ter
profissões práticas. Exceto eu! —Ele riu, depois ficou sério.
— Ah, Ella, Rick ligou.
— Ah.
Ele ficou constrangido. — Pediu para dizer que gosta muito
de você.
— Ah, obrigada. — Olhei para baixo.
— Você sabe que pode ficar conosco o quanto quiser. O
quanto precisar.
— Sim, obrigada. Rick e eu... estamos com alguns problemas.
Ele não disse nada, só olhou para mim e, por um instante,
lembrei-me do casal que estava no trem. Afinal, Jacob era
suíço.
— Tenho certeza de que logo estará tudo bem.
Ele concordou com a cabeça. — Enquanto isso, fique aqui
com a sua família.
— Sim.
Depois que contei a Jacob da situação entre mim e Rick,
achei que não tinha mais de explicar por que estava lá. No
dia seguinte, choveu, então adiamos a viagem à fazenda e
gostei de passar o dia todo lendo e ouvindo Susanne e Jacob
tocarem. À noite, jantamos numa pizzaria que um dia havia
sido uma hospedaria dos Tournier, mas agora era bem
italiana.
Na manhã seguinte, fomos todos à fazenda. Susanne não a
conhecia, embora tivesse morado em Moutier quase a vida
inteira. Seguimos por um caminho a leste da cidade, bem
marcado por uma placa amarela avisando que se tratava de
Pédestre tourisme (turismo a pé), e que o Grand Val ficava a
45 minutos de caminhada. Só na Suíça informam quanto
tempo se leva para chegar a pé a algum lugar, e não a
quantos quilômetros fica. À nossa esquerda, começava o
desfiladeiro de calcário citado por Goethe: uma
impressionante parede de rocha amarelo-acinzentado
formando montanhas dos dois lados e com um espaço no
meio para o rio Birse passar. Era emocionante, com o sol
batendo sobre o desfiladeiro; lembrou-me uma catedral.
O vale por onde passamos era mais suave, com um riacho
sem nome e uma estrada de ferro ao fundo, campos nas
encostas mais baixas, depois pinheiros e rochas que subiam
de repente bem acima de nós. Cavalos e vacas pastavam nos
campos, e as fazendas apareciam a intervalos regulares. Era
tudo limpo, definido e sob uma luz forte.
Os homens seguiam animados à frente, enquanto Susanne e
eu íamos atrás. Ela estava de túnica azul-esverdeado sem
mangas e calças brancas largas, ajustadas nas pernas esguias.
Parecia pálida e cansada; a disposição tinha sumido. Pela
distância que mantinha de Jan e pelo jeito culpado de me
olhar, eu sabia que ainda não havia contado para ele.
Fomos ficando para trás, como se tivéssemos algo pessoal
para dizer. Senti um calafrio e, embora o dia fosse quente e
ensolarado, me enrolei na camisa azul de Jean-Paul. Tinha
cheiro de cigarro e da pele dele.
Jacob e Jan pararam num ponto em que o caminho bifur-
cava e, quando nos aproximamos, Jacob mostrou uma casa
um pouco acima de nós, onde o campo terminava e as árvo-
res começavam a subir as montanhas.
— Essa é a fazenda — disse ele.
Não quero ir lá, pensei. Por que será? Olhei para Susanne.
Ela estava me olhando e eu sabia que pensava a mesma
coisa.
Os homens começaram a subir a colina, enquanto nós duas
olhávamos.
— Vamos. — Fiz um gesto para Susanne e virei-me para
segui-los. Ela veio devagar atrás de mim.
A fazenda era uma construção baixa e comprida, o lado
esquerdo era de pedra; o direito, um celeiro de madeira. As
duas partes eram unidas por um telhado comprido e baixo
com a mesma entrada ampla que dava numa espécie de
alpendre escuro, o qual Jacob disse chamar-se devant-huis.
Essa espécie de alpendre estava cheia de palha, pedaços de
madeira e velhos baldes. Achei que a Sociedade Histórica
devia fazer alguma coisa para preservar o lugar, que
lentamente estava caindo aos pedaços: as venezianas tinham
ficado tortas; as janelas, quebradas, e o telhado apresentava
limo.
Jacob e Jan ficaram admirando a fazenda enquanto Susanne
e eu olhávamos para baixo. — Está vendo a chaminé? —
perguntou Jacob, mostrando uma estranha forma
arredondada que saía do telhado, e não a linha reta de pedra
saindo de uma parede, como eu esperava. — E de calcário,
está vendo? — explicou Jacob. — Trata-se de uma pedra
macia, por isso eles usavam uma espécie de cimento para dar
forma e endurecê-la. A chaminé fica quase toda dentro da
casa, e não na parede de fora. Vamos lá para você ver o
resto.
— A casa está aberta? — perguntei, relutante, querendo que
tivesse uma tranca na porta e uma placa informando
Proprieté privée. (Propriedade particular.)
— Ah, sim, já entrei lá. Sei onde a chave fica escondida.
Droga, pensei. Eu não sabia explicar por que não queria
entrar na fazenda. Afinal, tínhamos ido lá por minha causa.
Eu sentia que Susanne me olhava sem jeito, como se só eu
pudesse impedir aquilo. Era como se estivéssemos sendo
puxadas para dentro por uma fria lógica masculina contra a
qual não podíamos lutar. Estendi a mão para ela.
— Venha — convidei. Ela estendeu a mão, que estava
gelada.
— Que mão fria — falei.
— A sua também. — Sorrimos, sem graça. Achei que
parecíamos duas meninas num conto de fadas, quando
entramos juntas na casa.
Dentro era escuro, só havia a luz que vinha da porta e de
duas janelas estreitas. Meus olhos se acostumaram com a
escuridão e vi mais madeira e algumas cadeiras quebradas no
chão de terra batida. Ao lado da porta, havia uma lareira
escura que invadia a sala, em vez de ficar na parede oposta à
entrada. Os quatro suportes da lareira se apoiavam em
colunas de pedra quadradas de uns dois metros de altura que
sustentavam arcos também de pedra. Dos arcos, saía a
mesma construção arredondada que havia do lado de fora da
casa, uma pirâmide feia, mas prática, que levava a fumaça
para fora.
Soltei a mão de Susanne e entrei na lareira para olhar a
chaminé. Vi que era escura, e até quando fiquei na ponta
dos pés, apoiando-me numa coluna e esticando o pescoço,
não consegui ver uma abertura no alto. — A saída da
chaminé deve ter se fechado — murmurei. De repente,
senti uma tontura, perdi o equilíbrio e caí no chão de terra
batida.
Jacob apareceu num segundo, estendeu a mão para me
levantar e bateu a poeira da minha roupa. — Você está bem?
— perguntou, preocupado.
— Estou, eu... acho que perdi o equilíbrio. Talvez a pedra
esteja desnivelada — falei, atordoada.
Olhei em volta procurando Susanne, que tinha sumido.
— Onde está... — comecei a dizer, quando senti uma dor
aguda na barriga que me fez passar por Jacob e sair da casa.
Susanne estava no quintal, com o corpo dobrado ao meio, as
mãos sobre a barriga. Jan estava ao seu lado, mudo, olhando.
Coloquei a mão no ombro dela, e Susanne soltou um gemido
ao aparecer uma mancha vermelha na parte interna da calça
e se espalhar rapidamente pela perna.
Por um segundo, fiquei apavorada. Pensei: Nossa Senhora, o
que faço? Depois, aconteceu algo que não acontecia há
meses: meu cérebro passou a funcionar no automático, siste-
ma em que eu sabia exatamente quem era e o que devia
fazer.
Coloquei os dois braços em volta dela e falei, baixo:
— Susanne, você precisa se deitar. — Ela concordou com a
cabeça, ajoelhou e se apoiou nos meus braços. Com cuidado,
deitei-a de lado e olhei para Jan, que continuava paralisado
no mesmo lugar. —Jan, me dê a sua jaqueta — pedi. Ele me
olhou até que repeti mais alto. Entregou a jaqueta de algodão
marrom, do tipo que eu associava com os velhos que
costumam ficar jogando discos de madeira no convés de
navios. Coloquei a jaqueta embaixo da cabeça de Susanne,
depois tirei da bolsa a camisa azul de Jean-Paul e cobri
Susanne com ela, como se fosse um lençol, inclusive sobre a
parte ensangüentada. Uma mancha vermelha começou a
aparecer nas costas da camisa. Por um instante, fiquei
hipnotizada pelas duas cores, azul e vermelho, mais bonitas
ainda pelo contraste.
Balancei a cabeça, apertei a mão de Susanne e me inclinei
sobre ela. — Não se preocupe, você está bem. Vai dar tudo
certo.
— Ella, o que está acontecendo? —Jacob olhava para nós
duas, seu rosto comprido estava crispado de preocupação.
Olhei para Jan, que continuava paralisado, e decidi dizer
logo: — Susanne teve um...
Que hora errada para o meu francês falhar; Madame Sentier
não havia me preparado para usar palavras como aborto.
— Susanne, diga para eles o que foi, não sei a palavra em
francês. Você pode falar?
Ela olhou para mim, os olhos cheios de lágrimas. —Você só
precisa dizer a palavra, eu falo o resto — insisti.
— Une fausse couche (um aborto) — ela murmurou. Os dois
homens olharam fixamente para ela, preocupados.
— Bom, Jan, está vendo aquela casa lá embaixo? — per-
guntei, apontando para a fazenda mais próxima, a uns 400
metros da colina. Jan só respondeu quando repeti o nome
dele, ríspida dessa vez. Ele então concordou com a cabeça.
— Bom, corra até lá e ligue para um hospital, certo?
Finalmente, ele entendeu. — Sim, Ella, vou lá correndo ligar
para o hospital.
— Bom. E pergunte às pessoas da fazenda se podem nos
arrumar um carro, caso a ambulância não possa vir. Corra!
— A última palavra foi como um chicote batendo. Jan se
abaixou, tocou o chão com a mão e saiu como se estivesse
participando de uma corrida olímpica. Fiz uma careta e
pensei: Susanne tem de se livrar desse cara.
Jacob estava ajoelhado ao lado da filha, com a mão na cabeça
dela. — Ela vai melhorar? — perguntou, tentando disfarçar
o desespero.
Respondi para Susanne: — Claro que você vai ficar boa.
Deve estar sentindo um pouco de dor, não?
Susanne concordou com a cabeça.
— Daqui a pouco passa. Jan foi chamar uma ambulância para
levar você.
— Ella, foi culpa minha — ela sussurrou.
— Não. Claro que não é culpa sua.
— Mas eu não queria, talvez se quisesse isso não teria
acontecido.
— Susanne, não é culpa sua. As mulheres têm abortos. Você
não fez nada errado. Não tinha controle sobre isso.
Ela não pareceu acreditar no que eu havia dito. Jacob ficou
olhando para nós duas como se estivéssemos falando suaíle.
— Garanto a você: não foi culpa sua. Pode acreditar no que
estou dizendo. Certo?
Finalmente, ela concordou com a cabeça.
— Preciso examinar você. Posso?
Susanne segurou minha mão com mais força e as lágrimas
escorreram pelo lado do rosto dela. — É, sei que está
doendo, você não quer, mas tenho de olhar para ter certeza
de que você está bem. Não vou machucá-la. Você sabe
disso.
Ela olhou rápido para Jacob e depois para mim de novo.
Entendi. — Jacob, segure a mão dela — mandei, passando a
delicada mão da filha para a dele. — Ajude-a a se esticar e
fique sentado ao lado. — Coloquei-o de frente para ela,
assim não podia ver o que eu ia fazer.
— Converse com ela. —Jacob me olhou, desamparado.
Pensei um instante. — Lembra que me contou que tem um
bom aluno de piano que toca Bach? O que ele vai tocar no
próximo concerto? E por quê? Conte para ela.
Por um segundo, Jacob pareceu perdido, depois o rosto dele
se descontraiu. Olhou para Susanne e falou. Dali a pouco, ela
também se descontraiu. Tentei mexer o menos possível no
corpo dela e consegui abaixar um pouco a calça e a calcinha
dela para olhar, removendo o sangue com a camisa de Jean-
Paul. Depois, levantei a roupa outra vez, sem fechar o zíper
da calça. Jacob parou de falar. Os dois olharam para mim.
—Você perdeu um pouco de sangue, mas a hemorragia já
estancou. Você vai melhorar.
— Estou com sede — disse Susanne, baixo.
— Vou buscar água. — Levantei-me, satisfeita porque os dois
estavam calmos. Dei a volta na casa da fazenda, procurando
uma torneira do lado de fora. Não havia, eu teria de entrar
na casa outra vez.
Entrei no devant-huis e fiquei na porta da casa. A luz do sol
caía num raio fino sobre a pedra da lareira. No feixe de luz,
vi a poeira espessa que nossa visita havia levantado. Procurei
um lugar onde tivesse água. Estava tudo muito quieto, eu
não ouvia nada, nenhum som reconfortante como a voz de
Jacob, o vento nos pinheiros, o sinete no pescoço de vacas
ou um trem passando ao longe. Só silêncio e a fímbria de luz
na pedra à minha frente. Era uma pedra enorme, devem ter
sido necessários vários homens para colocá-la. Olhei-a com
mais atenção. Apesar de descolorida pela fuligem, era
evidente que a pedra não era daquela região. Parecia de
outro lugar.
Num canto em frente à porta, havia uma velha pia com uma
torneira. Não acreditei que funcionasse, mas, por causa de
Susanne, eu tinha de experimentar. Dei a volta na lareira
com o coração aos pulos, as mãos frias e úmidas. Segurei na
torneira e fiquei um instante assim, até abri-la. Por Um
instante, nada aconteceu até a torneira gorgolejar e começar
a mexer com força. Dei um passo atrás. De repente, um
forte jato de água escura esguichou na pia e pulei, batendo
com a cabeça na beira de uma das colunas da chaminé.
Gritei e rodei, vendo estrelas. Caí de joelhos ao lado da
lareira e abaixei a cabeça. O lugar da batida estava úmido e
pegajoso. Respirei fundo várias vezes. Quando parei de ver
estrelas, levantei a cabeça e abaixei os braços. Gotas de
sangue saíam da psoríase nos meus cotovelos, escorriam
pelos braços e juntavam-se com o sangue nas minhas mãos.
Olhei bem os fios de sangue. — O lugar é esse, não? —
perguntei, alto. —Je suis arrivée chez moi, n'est-ce pas?
(Cheguei à minha casa, não?)
Atrás de mim, a água parou de sair da torneira.
9
A CHAMINÉ
Isabelle ficou em silêncio no devant-huis. Ouviu o cavalo se
mexer no celeiro e os homens cavarem dentro da casa.
— Marie? — chamou, num sussurro, sem saber se devia
pronunciar o nome dela alto; alguém poderia escutar. O
cavalo relinchou ao ouvir a voz dela e parou de se mexer. Os
homens continuaram cavando. Isabelle ficou sem saber o
que fazer, depois abriu a porta.
Etienne abria um grande buraco perto da placa de granito,
da pedra até a sala. Não cavava na parede mais distante, onde
tinha resolvido colocar a lareira antes, mas perto da porta. O
chão era duro e ele tinha de fazer muita força com a pá para
soltar a terra.
Quando a luz que vinha da porta bateu nele, Etienne olhou
e disse: — Será que ela... — E parou ao ver que era Isabelle.
Empertigou-se.
— O que faz aqui?
— Onde está Marie?
— Você devia ter vergonha, ha Rousse, devia estar ajoelhada
pedindo misericórdia a Deus.
— Por que você está cavando num dia santo?
Ele fez que não ouviu.
— Sua filha fugiu — disse ele, alto. — Petit Jean foi procurá-
la no bosque, achei que era ele chegando para dizer que ela
está salva. Não está preocupada com a sua filha desgraçada,
La Rousse? Devia ir procurá-la também.
— Marie é tudo o que me interessa. Aonde ela foi?
— Foi atrás da casa, no alto da montanha. — Etienne virou-
se para o buraco e voltou a cavar. Isabelle ficou olhando.
— Por que cava nesse lugar e não na parede mais longe,
onde disse que ficaria a lareira?
Ele se endireitou outra vez e levantou a pá acima da cabeça.
Isabelle deu um pulo para trás, Etienne riu.
— Não faça perguntas idiotas. Vá procurar sua filha.
Isabelle saiu da sala e fechou a porta. Ficou no devant-huis
um instante. Etienne tinha parado de cavar e tudo ficara
silencioso, um silêncio cheio de segredos.
Não estou sozinha com Étienne, ela pensou. Marie está aqui
perto, em algum lugar.
— Marie! — ela começou a chamar. — Marie, Marie! — Foi
para o quintal, ainda chamando. Marie não apareceu, só
Hannah, subindo a trilha com esforço. Isabelle não esperou
pela sogra do lado de fora da igreja de Chalières, deixou-a
com Jacob e correu para a fazenda até ter certeza de que ela
não a alcançaria. Ao ver Isabelle, a velha parou, ofegante,
apoiada na bengala. Depois, abaixou a cabeça e passou pela
nora a caminho da casa, entrou e bateu a porta.
Não foi fácil fazer Lucien ficar bêbado. Ele me olhava do
outro lado da mesa e tomava a cerveja tão devagar que tive
de deixar minha bebida escorrer de volta no copo para
esperar. Éramos os únicos fregueses num bar no Centro da
cidade.
Tocava uma música country norte-americana e a garçonete
lia um jornal atrás do balcão. Moutier numa chuvosa quinta-
feira de início de julho era morta como uma placa de Pare.
Eu tinha uma lanterna na bolsa, mas achava que Lucien
possuía ferramentas, caso precisássemos. Mas como ele
ainda não sabia o que eu planejava, ficou desenhando nas
marcas que o fundo molhado do copo deixara na mesa.
Parecia desajeitado. Eu tinha muito o que fazer até conseguir
o que queria. Precisei recorrer a medidas desesperadas.
Chamei a garçonete com o olhar. Ela veio, pedi dois uísques.
Lucien me olhou surpreso com seus grandes olhos cas-
tanhos. Dei de ombros. — Nos Estados Unidos, sempre
tomamos uísque com cerveja — menti, distraída. Ele
concordou com a cabeça e pensei em Jean-Paul, que jamais
me deixaria afirmar algo tão ridículo. Sentia falta do jeito
sarcástico e irritadiço dele, que era como uma faca cortando
a névoa da incerteza, dizendo o que deveria ser dito.
A garçonete trouxe duas doses, insisti para Lucien beber a
dele num gole, em vez de ficar bebericando delicadamente.
Ele bebeu, pedi mais duas doses. Ficou indeciso, mas, após a
segunda dose, relaxou a olhos vistos e começou a contar de
uma casa que havia construído fazia pouco tempo. Deixei-o
falar, embora usasse um bocado de palavras técnicas que eu
não entendia. — Fica no meio da subida da montanha,
numa encosta... onde é mais difícil construir — explicou. —
E houve problemas com o concreto para l'abri nucléaire.
Tivemos de misturá-lo duas vezes.
— L'abri nucléaire? — repeti, sem muita certeza.
— Oui. — Ele esperou que eu olhasse no dicionário da
minha bolsa.
— Um abrigo nuclear? Você construiu um abrigo nuclear
numa casa?
— Claro, é exigência da lei suíça. Toda casa nova tem um
abrigo.
Balancei a cabeça como se quisesse clarear as idéias. Lucien
não entendeu por que eu tinha feito aquilo.
— É verdade, toda casa nova tem um abrigo nuclear —
repetiu com mais ênfase. — E todo homem faz serviço
militar, sabia? Aos 18 anos, todo rapaz serve o Exército
durante 17 semanas. Depois, passa três semanas por ano na
reserva.
— Por que a Suíça é tão militarizada, se o país é neutro,
como foi durante a Segunda Guerra?
Ele sorriu, irônico. — Para podermos continuar neutros.
Um país só pode ser neutro se tiver um exército forte.
Eu vinha de um país com um enorme orçamento militar e
nenhuma idéia de neutralidade; achava que as duas coisas
não tinham nada a ver. Mas não estava lá para discutir políti-
ca, e estávamos nos distanciando cada vez mais do assunto
que me interessava. Precisava achar um jeito de entrar no
tema chaminés.
— Esse abrigo nuclear é feito com quê? — perguntei,
estranha.
— Concreto e madeira. As paredes têm um metro de
espessura.
— É mesmo?
Lucien explicou em detalhes como se construía um abrigo.
Fechei os olhos e pensei em como ele era um sujeito
aborrecido. Como vou conseguir que me ajude?
Não havia outra pessoa. Jacob estava muito abalado pelo
aborto espontâneo de Susanne no dia anterior para voltar à
fazenda e Jan não seria capaz de desobedecer a uma lei.
Outro certinho, pensei, aborrecida. O que há com esses
homens? Mais uma vez, tive vontade de que Jean-Paul
estivesse lá: discutiria comigo sobre a utilidade do que eu
queria fazer, duvidaria da minha sanidade mental, mas me
apoiaria, se visse que era importante para mim. Pensei como
ele estaria naquele momento. Aquela noite parecia tão
distante. Uma semana.
Jean-Paul não estava lá e eu tinha de confiar no homem que
havia por perto. Abri os olhos e interrompi o monólogo de
Lucien.
— Écoute, preciso da sua ajuda — falei, firme, passando de
propósito a tratá-lo usando uma forma mais coloquial em
francês. Até aquele momento, eu tinha feito questão de
manter um tratamento formal.
Lucien parou de falar, pareceu surpreso e desconfiado.
— Conhece a fazenda perto do Grand Val, com a velha
chaminé?
Ele concordou com a cabeça.
— Fomos lá ontem. Pertenceu aos meus antepassados.
— É mesmo?
— É. Preciso pegar uma coisa lá.
— O quê?
— Não sei direito, mas sei onde está — respondi.
— Como vai saber onde está, se não sabe o que é?
— Não sei.
Lucien parou, olhando o copo vazio. — O que quer que eu
faça? — perguntou logo após.
— Vá comigo dar uma olhada na fazenda. Tem ferramentas?
Ele concordou com a cabeça. — No caminhão.
— Ótimo. Talvez precisemos delas. —Ele pareceu assustado
e acrescentei: — Não se preocupe, não teremos de arrombar
nada; você tem uma chave que abre a porta. Quero só dar
uma olhada. Você me ajuda?
— Você quer ir agora? Já?
— É. Não quero que ninguém saiba que estou indo lá, então
tem de ser à noite.
— Por que não quer que ninguém saiba?
Dei de ombros. — Não quero que perguntem. Que
comentem.
Fez-se um longo silêncio. Recomendei para ele não contar a
ninguém.
— Está bem.
Sorri, e Lucien disse, inseguro: — Sabe, Ella, é a primeira
vez na noite que você sorri.
Estava começando a chover quando Isabelle entrou no
bosque. As primeiras gotas caíram nas folhas novas das faias,
balançando-as suavemente e enchendo o ar de um som
macio e farfalhante. Um cheiro almiscarado subiu da mistura
úmida de folhas mortas e agulhas de pinheiros.
Ela foi subindo a encosta atrás da casa, chamando por Marie
de vez em quando, mas parando e ouvindo os sons por trás
da chuva: vacas mugindo, o vento batendo nos pinheiros
mais acima na montanha, patas de cavalo no caminho para
Moutier. Não achava que Marie fosse longe, pois não
gostava de ficar sozinha ou longe de casa. Mas nunca alguém
a havia feito passar tanta vergonha na frente de muitas
pessoas.
É por causa dos seus cabelos novos e por ser minha filha,
pensou Isabelle, como se conversasse com ela. Até aqui
neste lugar. Mas não tenho nenhuma magia para proteger
você, nada para protegê-la do frio e do escuro.
Ela subiu mais, chegou ao cume de uma rocha a meio
caminho da montanha e virou para oeste. Sabia que estava
sendo levada para um determinado lugar. Entrou na
pequena clareira onde ela e Jacob haviam cuidado da cabra
durante todo o verão. Não voltara lá desde que Jacob havia
trocado a cabra pelo pano azul. Viam-se ainda sinais de que
um animal tinha vivido ali: restos de um abrigo feito com
galhos; um lugar onde palha e agulhas de pinheiro tinham
ficado amassadas pelo peso de alguma coisa; excrementos
secos e duros.
Pensei que eu fosse muito esperta com os meus segredos,
considerou Isabelle, sombria, olhando o lugar onde a cabra
costumava se deitar. Pensei que ninguém jamais saberia.
Para ela, um inverno de distância parecia um longo tempo.
Depois de visitar um lugar secreto, ela sabia que iria ao
outro. Não tentou conter o impulso, mesmo sabendo que
seria pouco provável Marie estar lá. Quando o cume come-
çou a descer para o desfiladeiro, ela abriu caminho entre as
pedras até o lugar onde Pascale havia ajoelhado e rezado.
Não havia sinal do segredo: o sangue tinha sido absorvido
pela terra fazia tempo.
— Onde você está, chérie? — perguntou, baixinho.
O lobo saiu de trás da pedra e Isabelle pulou, soltando um
grito, mas não correu. Os dois se olharam, as chamas nos
olhos do lobo eram alertas e penetrantes. Deu um passo na
direção de Isabelle e parou. Isabelle recuou. O lobo deu mais
outro passo e Isabelle foi andando de costas em meio às
pedras. Com medo de cair, virou-se, mas continuou olhando
por cima dos ombros para ter certeza de que ele não havia
se aproximado mais. Estava à mesma distância, indo mais
devagar ou parando quando ela parava, e apressando-se
quando ela se apressava.
Está me dirigindo como se eu fosse uma ovelha, pensou ela,
obrigando-me a ir para onde ele quer. Testou, indo para um
lado. O lobo pulou e ficou perto dela até ela andar outra vez.
Eles saíram das pedras para a trilha margeada de árvores que
ia de Moutier ao Grand Val, de volta para a fazenda. Na
frente dela, trotava o cavalo dos Tournier, vindo de Moutier,
levando Petit Jean e Gaspard. Era o cavalo que ela ouvira
mexer-se no celeiro, e entendeu então, ele estava galopando
pelo caminho.
Isabelle virou-se para olhar o lobo. Tinha ido embora.
Lucien tinha um velho caminhão Citroen cheio de
ferramentas, exatamente como eu esperava. O motor
espoucou e tossiu pela rua principal, fazendo tanto barulho
que tive certeza de que a cidade inteira tinha vindo às
janelas assistir à nossa partida. Bem discreta.
Começara uma névoa fina que fazia as ruas ficarem
escorregadias e precisei vestir a jaqueta. Lucien ligou
limpadores de pára-brisa que arranhavam o vidro, deixando
meus nervos à flor da pele. Dirigiu com cuidado pela cidade,
embora não fosse preciso: às nove e meia da noite, não
havia uma alma nas ruas. Na estação ferroviária, o único
lugar que mostrava sinais de vida, ele virou para a estrada
rumo ao Grand Val.
Não dissemos nada durante o trajeto. Fiquei contente por
ele não fazer uma série de perguntas que, fosse eu, teria
feito, pois não tinha respostas a dar.
Viramos numa estradinha que passava por baixo da estrada
de ferro e subimos uma colina. Num conjunto de casas,
Lucien virou numa estrada suja que reconheci ser a mesma
da nossa caminhada naquela manhã. Ele dirigiu uns 300
metros, parou e desligou o motor. Os limpadores de pára-
brisa, felizmente, desligaram também, o caminhão tossiu
várias vezes e, após um longo chiado, silenciou.
— O lugar é lá — disse Lucien, apontando para a nossa
esquerda. Logo consegui ver o perfil da fazenda a uns 50
metros. Estremeci: seria difícil sair do caminhão e andar até
lá.
— Ella, posso perguntar uma coisa?
— Sim — respondi, relutante. Não queria contar tudo para
ele, mas não podia esperar que fosse me ajudar às cegas.
Ele me surpreendeu: — Você é casada. — Era mais uma
afirmação do que uma pergunta, mas confirmei com a
cabeça.
— Foi seu marido que ligou outro dia, durante o jantar com
fondue.
— Sim.
— Eu também fui casado — disse ele.
— Vraiment? (É mesmo?) — Minha pergunta demonstrou
mais surpresa do que eu esperava. Foi como quando ele me
contou que tinha psoríase: senti-me culpada por concluir
que ele não teria o tipo de vida que eu tinha, de agitação e
romance.
— Tem filhos? — perguntei, tentando animá-lo.
— Uma filha que se chama Christine. Mora com a mãe em
Basle.
— Perto daqui.
— É. Vejo-a todo fim de semana. E você, tem filhos?
— Não. — Meus cotovelos e tornozelos coçaram, a psoríase
queria atenção.
— Ainda não.
— Não, ainda não.
— No dia em que soube que minha mulher estava grávida —
contou Lucien, devagar —, eu estava pensando em dizer a
ela que devíamos nos separar. Estávamos casados há dois
anos e eu sabia que as coisas não iam bem. Para mim, pelo
menos. Sentamos para contar nossas grandes novidades,
nossas idéias. Ela falou primeiro. Depois que contou da gra-
videz, eu não podia dizer o que vinha pensando.
— Então, ficaram juntos.
— Até Christine fazer um ano. Mas foi um inferno.
Não sabia há quanto tempo estava sentindo aquilo, mas de
repente percebi que estava com enjôo, meu estômago
parecia nadar em concreto. Engoli em seco e respirei fundo.
— Quando vi você falar ao telefone com seu marido, lembrei
as conversas ao telefone que costumava ter com minha
mulher.
— Mas quase não falei nada com ele!
— Era o tom da sua voz.
— Ah. — Olhei para o escuro, constrangida.
— Não sei se meu marido é o homem certo para alguém ter
filhos. Nunca soube — falei. Dizer alto, justo para Lucien,
foi como quebrar uma vidraça. O próprio som das palavras
me assustou.
— É melhor você saber disso agora para não trazer uma
criança sem amor para o mundo — disse Lucien.
Engoli em seco outra vez e concordei com a cabeça. Fica-
mos ouvindo a chuva cair e me concentrei em acalmar meu
estômago.
—Você quer roubar alguma coisa lá? — perguntou ele, de
repente, fazendo sinal para a fazenda.
Pensei. — Não, só quero achar uma coisa. Uma coisa que é
minha.
— O quê? Deixou alguma coisa lá ontem? É isso?
— É. A história da minha família. Você me ajuda a encon-
trar? — perguntei, de repente, aprumando-me no assento.
— Claro. Falei que ajudaria, então vou ajudar. — Lucien me
olhou firme.
Ele não é tão mau, pensei.
Parecia que Petit Jean não ia parar. Isabelle ficou no meio do
caminho forçando-o a deter o cavalo. Ela pegou as rédeas. O
cavalo apertou o focinho no ombro dela e relinchou.
Petit Jean e Gaspard não a encararam, embora Gaspard
tirasse o chapéu preto e a cumprimentasse com a cabeça.
Petit Jean estava tenso, os olhos fixos à frente, esperando
impaciente ser dispensado.
— Aonde vai? — ela perguntou.
— Voltar para a fazenda. — Petit Jean engoliu em seco.
— Por quê? Encontraram Marie? Ela está bem?
Ele não respondeu. Gaspard pigarreou e continuou olhando
para ela com o olho cego.
— Desculpe, Isabelle — ele resmungou. —Você sabe que só
estou nisso por causa de Pascale. Se ela não tivesse feito o
vestido, eu não me sentiria na obrigação de ajudar agora.
Mas... sinto muito. — Ele deu de ombros e pôs o chapéu na
cabeça outra vez.
Petit Jean deu um assobio entre dentes e puxou as rédeas de
um jeito irritado. Isabelle perdeu o controle das rédeas.
— Ajudar no quê? Ajudar no quê? — ela gritou, enquanto
Petit Jean mexia as pernas com força e o cavalo partia num
salto.
Ele e Gaspard seguiram a galope, o chapéu de Gaspard caiu e
rolou numa poça de lama. Isabelle viu-os sumir no caminho,
pegou o chapéu, bateu a lama e a água. Segurou-o na ponta
dos dedos enquanto seguia para casa.
Chovia mais forte. Entramos no devant-huis e minha
lanterna iluminou o cadeado na porta. Lucien deu um
pequeno safanão nele. — Instalaram isso para não deixar les
drogués entrarem — informou.
— Tem drogados em Moutier?
— Claro. Na Suíça inteira. Você não conhece bem o país,
não é?
— Com certeza — resmunguei, em inglês. — Nossa,
esforçam-se tanto para manter as aparências.
— Como vocês entraram na casa ontem?
—Jacob sabia onde a chave fica escondida. — Olhei em
volta. — Não reparei onde era. Não deve ser difícil
descobrir.
Usamos a lanterna para olhar em todos os lugares óbvios do
devant-huis.
— Vai ver que, sem querer, Jacob levou a chave — sugeri. —
Ontem, estávamos todos nervosos, não seria difícil isso
acontecer. — Mas me senti vagamente aliviada por não ter
de enfrentar a falta da chave.
Lucien olhou as pequenas janelas dos dois lados da porta.
Suas vidraças quebradas podiam ser facilmente derrubadas,
mas nenhum de nós conseguiria passar por aquelas
aberturas. As janelas da frente também eram estreitas e altas.
Ele pegou a lanterna da minha mão.
—Vou procurar uma janela maior nos fundos. Pode esperar
aqui sozinha? — perguntou ele.
Eu me obriguei a responder que sim. Ele saiu do devant-huis
e sumiu em volta da casa. Encostei no batente da porta,
coloquei os braços em torno de mim para não sentir
calafrios e escutei. Primeiro, só a chuva, mas depois outros
sons foram surgindo (o trânsito na grande estrada, que ficava
mais abaixo, o apito de um trem) e me senti um pouco
melhor porque o mundo normal estava bem perto.
Ouvi o que parecia um guincho dentro da casa e dei um
pulo. É só o Lucien, pensei, mas saí no quintal, mesmo com
chuva. Quando a luz da lanterna iluminou a janela ao lado da
porta e o rosto dele apareceu, soltei um grito.
Lucien fez sinal para eu me aproximar da janela e me
entregou a lanterna pela vidraça quebrada. — Encontro
você na janela dos fundos. — Sumiu antes que eu pudesse
perguntar se ele estava bem.
Rodeei a casa como ele havia feito pouco antes. Foi difícil
virar: o lado e os fundos da casa eram propriedade particular,
a parte que ficava escondida da visão do público. Ao dar a
volta na casa, entrei num mundo desconhecido.
Havia um lamaçal nos fundos, precisei desviar de poças para
pisar em um lugar mais seco e mais firme. Quando vi a
janela aberta e o perfil de Lucien do lado de dentro, andei
depressa demais, escorreguei e caí de joelhos.
Ele se debruçou na janela: — Você está bem? — perguntou.
Levantei-me e a luz da lanterna ficou balançando para todos
os lados. Minhas calças tinham duas rodas de lama nos
joelhos. — Estou — resmunguei, batendo nas pernas para
tirar a lama. Entreguei a lanterna para ele, que iluminou a
janela enquanto eu me levantava com dificuldade.
Lá dentro estava frio, parecia mais frio do que do lado de
fora. Tirei os cabelos molhados que caíram nos olhos e exa-
minei em volta. Estávamos numa sala pequena nos fundos
da casa, devia ser um quarto ou um cômodo de guardados
onde só havia uma pilha de madeira e duas cadeiras
quebradas. Tinha cheiro de mofo e umidade, e, quando
Lucien iluminou os cantos do teto, vimos pedaços de teias
de aranha flutuando ao vento que entrava pela janela aberta.
Ele fechou a janela e a moldura guinchou, o mesmo som
que tinha ouvido pouco antes. Quase pedi para ele abrir
outra vez e deixar uma saída livre, mas contive-me. Não há
do que fugir, considerei com firmeza, com o estômago aos
pulos.
Ele se dirigiu para a sala principal, parou ao lado da lareira e
iluminou a chaminé. Ficamos olhando para ela um bom
tempo, em silêncio.
— Incrível, não? — falei.
— É. Morei a vida toda em Moutier, sempre ouvi falar nessa
chaminé, mas nunca a tinha visto.
— Ontem, quando a vi, fiquei surpresa por ser tão feia.
— É. Como aquelas ruches da América do Sul que vi na
televisão.
— Ruches? O que é uma ruche?
— Colmeia, a casa onde as abelhas fazem o mel.
— Ah, sim. Já sei. Em algum lugar, provavelmente numa
revista National Geographic, eu tinha visto as altas e
arredondadas colméias a que ele estava se referindo, feitas
de um material cinza em forma de cone como um casulo
antes de abrir, sem graça, mas funcionais. Passou pela minha
cabeça a imagem de uma das fazendas arruinadas no
Cévennes: o granito muito bem encaixado, o traço elegante
da chaminé. Não, aquela chaminé ali não tinha nada a ver,
fora feita por pessoas desesperadas por uma chaminé, e
qualquer uma servia.
— É estranha a localização dela em relação à sala — disse ele,
olhando para a lareira e a chaminé. — Não está onde se
esperaria que uma lareira estivesse. Não serve à sala como
deveria. Faz ficar... esquisito. Desconfortável.
Ele tinha razão. — Fica muito perto da porta — observei.
— Perto demais. Você quase entra nela quando chega. Com
isso, ela não cumpre sua função, escapa muito calor toda vez
que se abre a porta. E o vento que entra pela porta faz o fogo
queimar rápido, ficando difícil controlá-lo. Até perigoso.
Essa chaminé devia estar na parede oposta à porta, lá
adiante. — Ele apontou. — É estranho que pessoas tenham
morado aqui todos esses séculos e agüentado isso.
Rick, pensei de repente. Rick seria capaz de explicar aquilo.
É o território dele, os espaços internos.
— O que quer fazer agora? — Lucien parecia impressionado.
O que na minha imaginação parecia simples era muito mais
absurdo na realidade, no escuro e na umidade.
Peguei a lanterna com ele e olhei a chaminé em detalhes, as
quatro colunas quadradas nos cantos da lareira, os quatro
arcos entre as colunas que sustentavam a chaminé.
Lucien tentou de novo: — O que você quer achar?
Dei de ombros. — Uma coisa... antiga — respondi, de
dentro da lareira, olhando para cima naquele túnel cônico.
Vi restos de ninhos de passarinhos na junção de duas pedras.
— Talvez alguma coisa... azul.
— Azul?
— Sim — respondi, saindo da lareira. — Lucien, você é
construtor de casas: se fosse esconder algo dentro de uma
chaminé, onde colocaria?
— Uma coisa azul?
Não respondi, apenas olhei para ele, que examinou a cha-
miné e, após um instante, disse: — Bom, quase toda
chaminé esquenta muito e queima qualquer coisa. Talvez eu
guardasse mais em cima, ou... —Ele se ajoelhou, passou a
mão na pedra e concordou com a cabeça: — Isto é granito.
Não sei onde arrumaram essa pedra, não é daqui.
— Granito, como na região de Cévennes.
— Onde?
— No sul da França. Mas por que granito?
— Bom, é mais dura do que calcário. Espalha o calor de
forma mais homogênea. Mas essa pedra é bem grossa, por-
tanto a parte inferior não esquentaria. Acho que seria
possível esconder alguma coisa embaixo.
— E — falei, passando a mão no calombo da minha testa. O
que ele disse fazia sentido. — Vamos levantar o granito.
— E muito pesado. Seriam necessários quatro homens para
levantá-lo!
— Quatro homens — repeti. Rick, Jean-Paul, Jacob e Lucien.
E uma mulher. Olhei em volta. — Você tem uma, uma... em
inglês se chama talha. —Ele pareceu não entender, então
peguei papel e caneta na bolsa e desenhei um aparelho de
roldana simples.
— Ah, un palan! — exclamou ele. — Tenho lá no caminhão.
Mesmo assim, precisaríamos de mais homens para puxar a
pedra.
Pensei um instante. — E o seu caminhão? — perguntei. —
Podemos colocar lepalan aqui, prender no caminhão e usar a
força dele para levantar a pedra.
Ele pareceu surpreso, como se nunca tivesse pensado no
caminhão para funções mais nobres do que transportar.
Ficou quieto por um bom tempo, olhando a localização de
cada coisa, medindo com os olhos. Ouvi a chuva caindo lá
fora.
— Sim, acho que podemos fazer isso — disse ele, finalmente.
— Nós vamos fazer.
Ao chegar à fazenda, Isabelle tentou abrir a porta da casa
sem fazer barulho. Estava trancada por dentro. Ouviu
Etienne e Gaspard resmungando e fazendo força, depois
parando e discutindo. Não os chamou. Foi até o celeiro,
onde Petit Jean estava escovando o cavalo. O menino mal
conseguia alcançar os quartos dianteiros do animal, mas agia
com segurança. Olhou para Isabelle e continuou esfregando.
Ela percebeu que o filho engolira em seco outra vez.
Como aquele homem na estrada, quando estávamos saindo
de Cévennes, pensou ela, lembrando o homem com o gran-
de pomo-de-adão, as tochas, as palavras corajosas de Marie.
— Papa mandou ficarmos aqui para não atrapalharmos —
informou Petit Jean.
— Nós quem? Marie está aqui?
O filho dela mostrou com a cabeça um monte de palha no
canto mais escuro do celeiro e Isabelle correu para lá.
— Marie — disse ela baixo, ajoelhando-se junto ao monte de
palha.
Era Jacob, enroscado como uma bola e enfiado no canto.
Estava de olhos arregalados, mas não parecia enxergá-la.
—Jacob! O que foi? Encontrou Marie?
Dobrado sobre os joelhos dele, estava o vestido preto que
Marie tinha usado mais cedo, por cima do azul. Isabelle se
abaixou e arrancou dele o vestido. Estava encharcado,
pesado de água.
— De onde veio isso? — perguntou, olhando o vestido.
Estava rasgado na gola. E os bolsos, repletos de seixos do
Birse.
— Onde você o encontrou?
Ele olhou devagar as pedras e não disse nada. Ela o agarrou
pelos ombros, sacudiu-o.
— Onde você o achou? Onde? — gritou.
— Ele encontrou aqui. — Ouviu alguém dizer atrás. Ela
olhou para Petit Jean.
— Aqui? — ela repetiu. — Onde?
Petit Jean fez um gesto para indicar um lugar à volta.
— No celeiro. Ela deve ter tirado o vestido antes de correr
para o bosque. Queria mostrar o vestido novo para o
demônio do bosque, não é, Jacob?
Jacob se esquivou das mãos de Isabelle.
Lucien deu marcha a ré no caminhão até chegar o mais
perto possível da casa. Prendeu a corda numa pequena alça
de ferro sob o pára-choque traseiro, passou-a pelo devant-
huis, pela pequena janela ao lado da porta (tirou todo o vidro
quebrado para que não cortasse a corda) e por dentro da
casa. Amarrou o bloco de pedra numa viga da sala e passou a
corda pela pequena janela, levantando-a até a polia do bloco
e por baixo até a lareira, amarrando a ponta num lado de um
triângulo de metal. Prendeu grampos nos outros dois lados.
Depois, cavamos a pedra até chegarmos à base dela. Levou
um bom tempo, pois o chão estava bem compacto. Cavei
com uma pá, parando de vez em quando para tirar o suor
em volta dos olhos.
Lucien colocou o triângulo de metal numa ponta da pedra e
prendeu os grampos, forçando a garra sob o granito. Por fim,
cavamos com a pá e um pé-de-cabra em volta da pedra toda,
tirando a terra.
Quando estava tudo pronto, combinamos quem ficaria
dentro da casa e colocaria o bloco de granito e o grampo no
lugar, e quem dirigiria o caminhão.
— Olha, isso não ficou direito — disse ele, olhando nervoso
para a corda. — O ângulo não está certo. A corda vai roçar
na janela e no arco da chaminé. — Iluminou com a lanterna
os dois pontos de atrito. —A corda pode se romper. E o
peso não está igual nos dois grampos porque não
dependuramos o bloco diretamente na pedra, mas do lado,
na viga. Tentei compensar, mas o peso de cada lado ainda
está desigual e os grampos podem se soltar facilmente. E a
viga pode não agüentar o peso da pedra. É melhor eu cuidar
disso.
— Não.
— Ella...
— Eu fico aqui. Cuido da corda, da madeira e do palan.
O tom da minha voz fez com que ele concordasse. Foi até a
janelinha e olhou para fora. — Certo — disse ele, baixo. —
Você fica aqui com a lanterna. Se a corda começar a
arrebentar, ou os grampos saírem do lugar, ou se houver
algum motivo para eu parar o caminhão, ponha a luz da
lanterna naquele espelho lá. — Ele focou no espelho lateral
esquerdo do caminhão. O facho de luz voltou para nós. —
Quando a pedra estiver bem levantada, ilumine o espelho e
eu frearei o caminhão — disse.
Concordei com a cabeça, peguei a lanterna com ele, ilu-
minei o caminho até a janela dos fundos e me abracei para
agüentar o rangido da janela quando Lucien forçou-a para
cima. Olhou para mim antes de sumir. Dei um sorriso fraco,
que ele não retribuiu. Parecia preocupado.
Tomei posição ao lado da janelinha, sentindo os nervos
tensos. Pelo menos, tanta atividade tinha feito o meu enjôo
sumir e, por mais absurda que fosse a situação, vi que me
encontrava no lugar certo. Estava contente de estar lá com
Lucien, não o conhecia bem para ter de explicar meus
motivos, como teria de fazer se estivesse com Rick ou Jean-
Paul. Além do mais, Lucien estava tão interessado na
logística da tarefa que não iria perguntar muito porque
estávamos fazendo aquilo.
A chuva tinha parado, embora ainda se ouvissem pingos em
toda parte. O caminhão espocou e ficou sacudindo enquanto
Lucien acendia os faróis e acelerava o motor. Enfiou a
cabeça pela janela e acenei para ele. Devagar, o caminhão
começou a andar. A corda mexeu, o cabo esticou e mexeu
também. A madeira dependurada na viga veio com força na
minha direção. Ouvi um estalido quando o caminhão deu
um puxão na madeira. Pulei para trás, com medo de que a
casa desmoronasse à minha volta.
A madeira agüentou o puxão. Percorri com a lanterna toda a
extensão da corda, para cima e para baixo, depois a pedra até
os ganchos, e então outra vez pela corda até a janela e o
caminhão do lado de fora. Havia muita coisa para eu prestar
atenção. Concentrei-me, com o corpo tenso como uma
mola.
Deixei o facho de luz parado vários segundos num grampo
quando ele começou a escorregar da pedra. Rápido, iluminei
o espelho do caminhão pela janela. Lucien freou o cami-
nhão exatamente quando o grampo se soltou da pedra e a
armação de metal foi jogada na direção do bloco de madeira,
bateu na chaminé e na viga com força. Gritei e encostei bem
na porta. A armação bateu no chão com estrépito. Esfreguei
o rosto com as mãos e Lucien enfiou a cabeça na janelinha.
— Você está bem? — perguntou.
— Estou. Foi um gancho que soltou da pedra. Vou colocar de
volta.
— Tem certeza de que foi isso?
— Claro — respondi. Respirei fundo e fui até a moldura.
— Deixe-me ver — disse Lucien. Mostrei para ele.
Felizmente, o metal não estragou. Ele olhou pela janela
enquanto eu colocava o metal em volta da pedra e apertava
os ganchos como o vira fazer antes. Terminei, iluminei com
a lanterna e Lucien aprovou.
— Ótimo. Olha, acho que podemos fazer. —Voltou para o
caminhão e eu para a janela, como estávamos antes.
Isabelle se abaixou sobre a palha e olhou para fora do
devant- huis. Chovia forte e o céu estava escuro. Dali a
pouco, anoiteceria. Observou os filhos. Petit Jean
continuava a escovar o cavalo, olhando em volta, nervoso.
Jacob prestava atenção nos seixos que estavam no vestido de
Marie. Lambeu-os e olhou para a mãe.
— Eles escolheram os seixos mais feios, os cinzentos, sem
cor. Por que fizeram isso? — perguntou, baixo.
— Fica quieto, Jacob! — recomendou Petit Jean, entre
dentes.
— O que vocês dois estão querendo dizer? O que estão
escondendo de mim? — gritou Isabelle.
— Nada, Maman — respondeu Petit Jean. — Marie fugiu,
sabe? Disse que iria voltar para encontrar o demônio no rio
Tarn.
— Não, não acredito no que você diz, não acredito. —
Isabelle levantou-se.
Os grampos escorregaram mais duas vezes, mas na terceira
continuaram segurando a pedra. Lucien dirigiu o caminhão
devagar e com segurança, fazendo um barulhão, mas
mantendo sempre a mesma velocidade. No momento em
que iluminei o bloco de pedra, ouvi um som de sucção
como um pé saindo da lama. Mexi a luz e vi a lareira se
separando, devagar, da terra, subindo um centímetro, dois
centímetros, três, firme. Olhei, gelada. A viga começou a
gemer. Saí da janela, me abaixei ao lado da pedra e iluminei
a abertura. Houve um estrondo terrível, a viga e o bloco de
madeira gemeram, o caminhão lá fora puxava com força e
meu coração batia pesado. Olhei o lugar escuro sob a lareira.
Eles ouviram o som da pedra caindo no chão e ficaram
gelados. Até o cavalo parou.
Isabelle e Petit Jean foram para a porta, Jacob se
desenroscou e seguiu atrás deles. Isabelle tentou abrir a
porta, mas, no mesmo instante, o ferrolho foi destrancado e
Étienne a abriu, com o rosto vermelho e suado. Sorriu para
ela.
— Entre, Isabelle.
Ela se assustou ao ouvir seu nome e entrou finalmente na
sala. Hannah estava ajoelhada ao lado da lareira recém-
instalada, de olhos fechados, com velas sobre a pedra.
Gaspard recuou, de cabeça baixa. Não olhou quando Isabelle
e os meninos entraram. Já vi Hannah fazendo isso antes,
pensou Isabelle. Rezando na lareira.
Vi alguma coisa azul, um pedacinho de azul naquele buraco
escuro. A pedra subiu dez centímetros e olhei bem sem
entender, depois a pedra levantou 15 centímetros, vi os
dentes no chão e entendi. Entendi e comecei a gritar e, ao
mesmo tempo, estendi a mão na sepultura e toquei num
pequeno osso. — O braço de uma criança! E... — gritei.
Enfiei mais a mão, peguei o tecido azul e tirei um longo fio
amarrado numa mecha de cabelo. Era o azul da Virgem, os
cabelos eram ruivos como os meus e comecei a chorar.
Ela olhou bem para a lareira, instalada num lugar tão
estranho na sala.
Ele não conseguiu esperar, pensou Isabelle. Não conseguiu
esperar os outros ajudarem e deixar a pedra ficar onde
deveria.
Era uma enorme pedra, que havia sido colocada perto
demais da entrada. Estavam todos (Isabelle, Etienne, Petit
Jean e Jacob) apertados entre a lareira e a porta de entrada.
Ela se afastou e ficou andando em volta da lareira.
Então, viu algo azul no chão. Caiu de joelhos, pegou. Era um
pedaço de tecido azul e saía de baixo da pedra. Puxou até
que rasgou. Segurou o tecido à luz da vela para que eles
vissem.
Ouvi a corda estalar e chiar. Depois, com um estrondo, a
pedra caiu de novo no lugar, os ganchos batendo na viga. Eu
sabia que já tinha ouvido aquele estrondo antes.
— Não! —gritou Isabelle e se jogou contra a lareira, soluçan-
do e batendo a cabeça na pedra. Apertou a testa no granito
frio. Encostou o pedaço de tecido no rosto e rezou: — J'ai
mis en toi mon espérance: Garde-moi donc, Seigneur,
D'éternel déshonneur: Octroye-moi ma délivrance, Par ta
grande bonté haute, Qui jamais ne fit faute.
Depois, não viu mais o azul; tudo ficou vermelho e negro.
— Não! — gritei e me joguei contra a lareira, soluçando e
batendo a cabeça na pedra. Apertei a testa no granito frio.
Encostei o pedaço de tecido no rosto e rezei: — J'ai mis en
toi mon espérance: Garde-moi, donc, Seigneur, D'éternel
déshonneur: Octroye-moi ma délivrance, Par ta grande
bonté haute, Qui jamais ne fit faute.
Depois, não vi mais o azul; tudo ficou vermelho e negro.
10
A VOLTA
Fiquei na entrada da casa um bom tempo até conseguir tocar
a campainha. Coloquei minha sacola de viagem no chão, ao
lado da sacola de ginástica, e olhei a porta. Era curiosa, de
compensado barato e com um olho mágico. Olhei em volta:
era um conjunto de casas pequenas e novas, com gramados,
mas sem árvores, exceto alguns evônimos querendo crescer.
Não era muito diferente dos novos subúrbios norte-
americanos.
Ensaiei outra vez o que iria dizer e toquei a campainha.
Esperei, com o estômago agitado e as mãos transpirando.
Engoli em seco e passei as mãos na calça. Ouvi passos dentro
da casa, a porta se abriu e apareceu uma menina lourinha.
Um gato preto e branco passou pelas pernas dela e dirigiu-se
para a escada, onde parou antes de fugir, colocando seu
focinho na sacola de ginástica. Cheirou bastante até eu o
afastar com a ponta do pé.
A menina estava de shorts amarelo-claros e camiseta com
pingos de suco. Ela se dependurou na maçaneta da porta,
balançou num pé só e ficou me olhando.
— Bonjour, Sylvie. Lembra-se de mim? — perguntei.
Ela continuou me olhando. — Por que sua cabeça está
vermelha?
Pus a mão na testa. — Por que dei uma batida na cabeça.
— Precisa fazer um curativo.
— Você faz para mim?
Ela concordou com a cabeça. Lá de dentro, alguém
perguntou:
— Sylvie, quem é?
— É a moça da Bíblia. Ela machucou a cabeça.
— Diga que não quero comprar Bíblia!
— Não, não, é a outra moça da Bíblia — ela corrigiu.
Ouvi um clique-clique-clique de passos no corredor e
Mathilde apareceu atrás de Sylvie, de shorts cor-de-rosa e
top branco de ginástica, segurando uma grapefruit
descascada pela metade.
— Mon Dieu! Ella, quelle surprise! (Meu Deus! Ella, que
surpresa!) — gritou. Entregou a grapefruit para Sylvie,
abraçou-me e deu dois beijos. — Devia ter avisado que
vinha! Entre, entre.
Não me mexi. Meus ombros tremiam, abaixei a cabeça e
chorei.
Sem uma palavra, Mathilde pôs o braço nos meus ombros e
pegou a sacola de viagem. Assim que a tirou de minhas mãos
eu quase gritei para que não a tocasse, mas deixei-a carregar,
além de segurar minha mão. As duas me levaram para
dentro da casa.
Eu não agüentava a idéia de entrar num avião. Não queria
ficar num lugar fechado e, mais que isso, não queria voltar
para casa logo. Precisava de mais tempo do que um avião me
daria para fazer a transição de um lugar para outro.
Jacob foi comigo de trem até Genebra, onde me deixou no
ônibus para o aeroporto, mas, depois de percorrer três
quarteirões, eu me levantei e avisei o motorista que ia saltar.
Fui a um bar e fiquei meia hora tomando café até ter certeza
de que Jacob já estaria num trem de volta para Moutier.
Então, retornei à estação ferroviária e comprei uma
passagem para Toulouse.
Foi difícil deixar Jacob: não que eu quisesse ficar mais tempo
na casa dele, mas porque ele notou que eu queria ir logo
embora.
— Desculpe, Ella, por sua visita a Moutier ter sido tão
traumática — disse ele, quando nos despedimos. — Era para
ajudar, mas, em vez disso, você se feriu — disse ele,
olhando minha testa machucada e a sacola de ginástica. Não
queria que eu levasse a sacola, mas insisti, embora tivesse
pensado vagamente em problemas no aeroporto com algum
cão farejador, o que foi um motivo a mais para eu resolver
viajar de trem.
Lucien tinha trazido a sacola na manhã anterior, quando
finalmente os remédios indicados pelo médico fizeram com
que eu acordasse. Lucien apareceu nos pés da minha cama,
com a barba por fazer, sujo e cansado, e colocou a sacola ao
lado da parede.
— Para você, Ella. Não olhe agora. Você sabe o que é.
Olhei desanimada a sacola. — Você não levantou a pedra
sozinho, não?
— Um amigo fez esse favor para mim. Não se preocupe, ele
não vai contar para ninguém. Sabe guardar segredo. —
Lucien fez uma pausa. — Usamos uma corda mais forte. Mas
a viga quase caiu. A casa toda quase caiu.
— Gostaria que tivesse caído.
Ele foi saindo do meu quarto e pigarreei. — Lucien, obri-
gada pela ajuda. Obrigada por tudo.
Ele concordou com a cabeça. — Seja feliz, Ella.
— Vou tentar.
Elas deixaram minhas sacolas no corredor e me levaram para
os fundos da casa, que tinha um gramado separado dos
vizinhos por cercas, com brinquedos espalhados e uma
piscina de plástico. Fizeram-me deitar numa espreguiçadeira
e, enquanto Mathilde foi buscar algo para eu beber, Sylvie
ficou ao meu lado, olhando-me firme. Pôs a mão de leve na
minha testa. Fechei os olhos. O toque de sua mão e o sol
batendo em meu rosto me fizeram bem.
— O que é isso? — perguntou Sylvie. Abri os olhos. Ela
mostrava a psoríase no meu braço, que estava vermelha e
inchada.
— Tenho um problema de pele que se chama psoríase.
— Ssso-rííí-ase — ela repetiu, fazendo com que parecesse o
nome de um dinossauro. — Precisa de um curativo aí
também, n'est-ce pas?
Sorri.
— Pois então... — começou Mathilde, ao me entregar um
copo de suco de laranja, sentar no gramado ao meu lado e
mandar Sylvie vestir uma roupa de banho. — Onde você
arrumou esses machucados na testa?
Soltei um suspiro. Era horrível pensar que teria de explicar
tudo. — Estive na Suíça, visitando parentes. Fui mostrar a
Bíblia para eles — comecei.
Mathilde franziu o rosto. — Argh, os suíços — disse.
— Eu estava procurando uma coisa e... — continuei.
Ouvimos um grito na casa. Mathilde levantou-se num salto.
— Ah, devem ser os ossos — falei.
O mais difícil foi deixar Susanne. Ela foi ao meu quarto
pouco depois de Lucien entregar a sacola de ginástica.
Sentou-se na beira da cama e fez sinal com a cabeça para a
sacola, sem olhar.
— Lucien contou e me mostrou — ela disse.
— Lucien é uma boa pessoa.
— É. Por que você acha que isso estava lá? — perguntou.
Balancei a cabeça. — Não sei. Talvez... — Parei; pensar
naquilo me fazia tremer e estava me esforçando para eles
acharem que eu me encontrava em condições de viajar no
dia seguinte.
Susanne colocou a mão no meu braço. — Eu não devia ter
falado nisso.
— Não tem problema. — Mudei de assunto: — Posso ser
franca com você? — Na fraqueza que eu estava, eu me
sentia sincera.
— Claro.
— Acho que você deve se livrar de Jan.
O rosto dela mostrou um grande susto, mais por concordar
comigo do que por se surpreender. Riu e também ri.
Mathilde voltou segurando a mão de Sylvie, que chorava
copiosamente.
— Peça desculpas por mexer nas coisas de Ella — mandou
Mathilde.
Sylvie me olhou desconfiada em meio às lágrimas.
— Desculpe. Mamãe, por favor, me deixa brincar na piscina
— resmungou.
— Está bem.
Sylvie correu para a piscina, como se estivesse louca para
ficar longe de mim.
— Desculpe por ela ter feito isso, é muito curiosinha — disse
Mathilde.
— Não tem problema, pena que ela se assustou.
— Quer dizer que... aqueles... foi o que você encontrou lá? O
que estava procurando?
— Acho que ela se chamava Marie Tournier.
— Mon Dieu. Ela era... da família?
— Era. — Comecei a explicar sobre a fazenda, a velha
chaminé, a lareira e os nomes Marie e Isabelle. Sobre a cor
azul, o pesadelo e o som da pedra caindo no lugar. E a cor
dos meus cabelos.
Mathilde ouviu sem interromper. Examinava as unhas
pintadas de rosa-claro, tirando as cutículas.
— Mas que história! Você devia escrever isso — disse ela,
quando terminei. Fez uma pausa, ia dizer mais alguma coisa
e parou.
— O que foi? — perguntei.
— Por que você veio para cá? Ecoute, gostei de você vir
aqui, mas por que não foi para a sua casa? Não gostaria de ir
para casa quando está nervosa, encontrar seu marido?
Suspirei. Tinha de contar tudo aquilo também, íamos levar
horas. A pergunta me fez lembrar de uma coisa. Olhei em
volta. —Você tem um... onde está o pai de Sylvie? —
perguntei, sem jeito.
Mathilde riu e fez um movimento vago com a mão.
— Quem vai saber? Não o vejo há dois anos. Ele nunca quis
ter filhos. Não queria que eu tivesse Sylvie, então... — Ela
deu de ombros. — Tant pis. (Pior para ele.) Mas você não
respondeu à minha pergunta.
Contei tudo para ela sobre Rick e Jean-Paul. Embora não
tivesse excluído nada, levou menos tempo do que eu
imaginava.
— Então Rick não sabe onde você está?
— Não. Meu primo queria avisar que eu estava voltando para
casa, mas não deixei. Falei que ligaria para Rick do aero-
porto. Acho que eu sabia que não ia voltar.
Na verdade, eu havia sentado no trem de Genebra num
estupor, sem pensar para onde estava indo. Tivera de trocar
de trem em Montpellier e, enquanto esperava, ouvira o alto-
falante anunciar a chegada de um trem que faria uma parada
em Mende. Esperei o trem chegar, os passageiros embarca-
rem e desembarcarem. E o trem ficou lá, e quanto mais
tempo ficava, mais assustada me deixava, até que peguei
minha bagagem e entrei nele.
— Ella, você precisa falar com Rick, n'est-ce pas? Sobre tudo
isso — disse Mathilde. Olhei para ela, eu estava observando
Sylvie brincar na piscina.
— Eu sei, mas não tenho coragem de telefonar para ele.
— Deixe comigo! — Ela se levantou e estalou os dedos.
— Me dê o número do telefone. — Dei, sem muita vontade.
— Muito bem. Agora, cuide de Sylvie. E não entre na casa!
Recostei-me na espreguiçadeira. Foi um alívio deixar tudo
por conta dela.
Por sorte, as crianças esquecem rápido. No final do dia,
Sylvie e eu estávamos brincando na piscina. Quando
entramos na casa, Mathilde havia escondido a sacola de
ginástica num armário. Sylvie não tocou mais no assunto,
mostrou-me todos os seus brinquedos e deixou que eu
fizesse tranças no cabelo dela.
Mathilde não comentou muito sobre o telefonema. —
Amanhã, às oito da noite — disse ela, enigmática,
entregando-me um endereço em Mende, do mesmo jeito
que Jean- Paul tinha feito sobre La Taverne.
Jantamos cedo por causa da hora de Sylvie dormir. Sorri
quando olhei meu prato: tinha tudo que eu costumava
comer quando jovem, alimentos naturais, sem serem da
moda. Não havia nenhuma massa com molhos, azeites ou
ervas especiais, nenhum pão especial, nenhuma mistura de
sabores e texturas. O prato tinha uma costeleta de porco,
vagens, creme de milho e uma fatia de pão; era
reconfortante.
Eu estava morrendo de fome, mas, quando dei uma mordida
na costeleta, quase cuspi: tinha gosto de metal. Tentei o
milho e a vagem, estavam com o mesmo gosto. Embora esti-
vesse com fome, quando punha a comida na boca, não
conseguia agüentar o sabor e a textura de nada.
Foi impossível esconder meu mal-estar, principalmente
quando Sylvie resolveu conectar os movimentos dela aos
meus. Toda vez que eu dava uma mordida na minha
costeleta, ela dava uma na dela. Quando eu bebia, ela bebia.
Mathilde comia com gosto sem perceber a nossa história,
depois se zangou com Sylvie por demorar a comer.
— Mas Ella está comendo bem devagar! — reclamou Sylvie.
Mathilde olhou o meu prato.
— Desculpe, estou meio esquisita. Estou achando tudo com
gosto de metal.
— Ah, eu tive isso quando estava grávida de Sylvie! Foi
horrível. Mas dura poucas semanas. Depois, você come de
tudo. — Ela parou: — Ah, mas você...
— Acho que foi o remédio que o médico mandou tomar —
interrompi. — Às vezes, ficam restos dele na corrente
sangüínea. Desculpe, não consigo comer.
Mathilde concordou com a cabeça. Depois, percebi que me
deu uma longa olhada avaliadora.
Eu me encaixei na vida delas com incrível facilidade. Falei
para Mathilde que ia embora no dia seguinte, embora não
soubesse para onde. Ela não aceitou. — Você fica conosco.
Gosto de você aqui. Costuma ser só Sylvie e eu, é bom ter
companhia. Desde que você não se incomode de dormir no
sofá!
Sylvie me fez ler um livro atrás do outro na hora de ela
dormir e, animada com a novidade da minha presença,
corrigia meu sotaque e explicava o sentido de algumas frases.
De manhã, pediu à mãe para não ir ao acampamento de
verão. — Quero brincar com Ella. Por favor, mamãe, por
favor! — gritou.
Mathilde olhou para mim e fez um gesto concordando.
— Tem de perguntar a Ella. Como sabe se ela quer brincar
com você o dia inteiro?
Assim que Mathilde saiu para o trabalho, berrando
recomendações por cima do ombro, a casa ficou
subitamente quieta. Olhei para Sylvie e ela para mim. Sabia
que estávamos pensando na sacola de ossos escondida na
casa.
— Vamos caminhar um pouco — sugeri, animada. — Tem
algum parque aqui perto?
— Tem — respondeu ela, e foi enfiar tudo que ia precisar
numa mochila em forma de urso.
A caminho do parque, passamos por várias lojas e, ao
passarmos por uma farmácia, parei. —Vamos entrar, Sylvie,
preciso comprar uma coisa. — Obediente, ela entrou
comigo. Deixei-a numa gôndola de sabonetes. — Escolha
um para eu dar de presente para você. — Ela se distraiu
abrindo as caixas e cheirando os sabonetes, e consegui falar
com o farmacêutico em voz baixa.
Sylvie escolheu um sabonete de lavanda e foi cheirando-o
pelo caminho até que a convenci de guardá-lo na mochila
de urso, pois era mais seguro. No parque, ela correu para os
amigos. Sentei no banco com as mães, que me olharam
desconfiadas. Não tentei conversar com elas: eu precisava
pensar.
À tarde, ficamos em casa. Enquanto Sylvie enchia sua pis-
cina, fui ao banheiro levando a minha compra. Quando
desci, ela pulou dentro d'água e chapinhou enquanto eu
deitava na grama e olhava para o céu.
Dali a pouco, ela veio se sentar ao meu lado. Brincava com
uma velha boneca Barbie cujos cabelos tinham sido
picotados, falava com a boneca e fazia-a dançar.
— Ella. — Ouvi meu nome e sabia qual seria a pergunta a
seguir. — Onde está aquela sacola de ossos?
— Não sei, sua mãe guardou.
— Então, continua na casa?
— Talvez.
— Em que outro lugar poderia estar?
— Talvez sua mãe tenha levado para o trabalho, ou entregue
para um vizinho.
Sylvie olhou em volta. — Nossos vizinhos? Por que eles
iriam querer?
Má idéia. Mudei de tática. — Por que você está pergun-
tando?
Sylvie olhou para a boneca, puxou os cabelos dela, deu de
ombros. — Não sei — resmungou.
Esperei um instante. —Você quer ver os ossos outra vez? —
perguntei.
— Quero.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Não vai gritar nem ficar nervosa?
— Não, se você ficar junto.
Peguei a sacola no armário e trouxe para o jardim. Sylvie me
esperava sentada com as pernas dobradas e o queixo apoiado
nos joelhos, ansiosa. Coloquei a sacola no chão.
—Você quer que eu... tire os ossos para você ver, enquanto
espera lá dentro e depois chame você quando estiver tudo
pronto?
Ela concordou com a cabeça e pulou.
— Quero um refrigerante. Posso tomar?
— Pode.
Correu para dentro de casa.
Respirei fundo e abri o zíper da sacola. Não tinha olhado
ainda.
Quando estava tudo pronto, fui chamar Sylvie, que se
encontrava na frente da tevê na sala.
—Venha — chamei, estendendo a mão para ela. Fomos as
duas para a porta dos fundos. De lá, ela viu algo na grama e
se encostou em mim.
— Você não precisa olhar. Mas o que está não vai fazer nada
a você. Não está vivo.
— O que é aquilo?
— Uma menina.
— Uma menina como eu?
— É. São os cabelos e os ossos dela. E um pedacinho do
vestido.
Fomos até lá. Para a minha surpresa, Sylvie largou minha
mão e se agachou ao lado dos ossos. Ficou olhando um bom
tempo.
— E um azul bonito. O que aconteceu com o resto do
vestido dela? — perguntou, por fim.
— Ele... — "desmanchou": era mais uma palavra que eu não
sabia falar em francês. — Ficou velho e se acabou —
expliquei, desajeitada.
— O cabelo dela é da mesma cor do seu.
— É.
— Ela é de onde?
— Da Suíça. Foi enterrada embaixo da chaminé de uma
lareira.
— Por quê?
— Por que ela morreu?
— Não, por que foi enterrada embaixo da lareira? Foi para
ficar aquecida?
— Talvez.
— Como ela se chamava?
— Marie.
— Devia ser enterrada de novo.
— Por quê? — Eu estava curiosa com o que ela diria.
— Porque precisa de uma casa. Não pode ficar aqui para
sempre.
— É verdade.
Sylvie sentou-se na grama, depois se esticou ao lado dos
ossos. — Vou dormir — avisou.
Pensei em impedi-la, dizendo que não convinha, que
poderia ter pesadelos, que Mathilde iria nos encontrar e
achar que eu seria uma mãe horrível por deixar a filha dela
dormir ao lado de um esqueleto. Mas não falei nada disso.
Deitei do outro lado dos ossos.
— Conte uma história — pediu Sylvie.
— Não sou muito boa em contar histórias.
Sylvie se apoiou nos cotovelos. — Toda gente grande sabe
contar! Conte uma.
— Está bem. Era uma vez uma menina de cabelos louros e
vestido azul.
— Como eu? Era parecida comigo?
— Era.
Sylvie deitou-se novamente com um sorriso satisfeito e
fechou os olhos.
— Era uma menina corajosa. Tinha dois irmãos mais velhos,
os pais e uma avó.
— Eles gostavam dela?
— Gostavam, só a avó é que não.
— Por quê?
— Não sei. — Parei. Sylvie abriu os olhos. — Era uma velha
feia. — Continuei, depressa. — A avó era pequena e só
andava de roupas pretas. E era muda.
— Como a menina sabia que a avó não gostava dela, se nunca
falou com ela?
— Ela... tinha olhos penetrantes e olhava a menina de um
jeito como não olhava para ninguém. Então, a menina sabia
que a avó não gostava dela. Principalmente quando ela usava
o vestido azul de que mais gostava.
— A avó queria o vestido para ela!
— Queria, pois o pano era muito bonito, mas só dava para
fazer um vestido de menina. Quando ela o vestia, parecia-se
com o céu.
— Era um vestido mágico?
— Claro. Protegia-a da avó e de outras coisas... de incêndio,
dos lobos, dos meninos maus. E de se afogar no rio. Um dia,
a menina estava brincando ao lado do rio e caiu nele. Foi até
o fundo, viu os peixes nadando e pensou que fosse se afogar.
Aí, o vestido se encheu de ar, ela flutuou até a tona e se
salvou. Então, sempre que usava o vestido, a mãe sabia que
ela estava protegida.
Olhei para Sylvie: estava dormindo. Meus olhos brilharam
nos fragmentos de azul que estavam entre nós duas.
— Com exceção de uma vez. E uma vez só basta —
acrescentei.
Sonhei que estava numa casa pegando fogo. Pedaços de
madeira caíam e cinzas crepitavam em todo canto. Então,
apareceu uma menina. Só conseguia vê-la de soslaio: se
olhasse de frente, ela sumia. Em volta dela, havia uma luz
azul.
— Lembre-se de mim — disse ela. Depois, ela se trans-
formou em Jean-Paul, que estava com uma barba de dias e
parecia rude, com os cabelos tão compridos que enrolavam
nas pontas; o rosto, os braços e a camisa cheios de fuligem.
Toquei no rosto dele e, quando tirei a mão, vi uma cicatriz
que ia do nariz ao queixo.
— Como foi isso? — perguntei.
— Foi a vida — ele respondeu.
Passou uma nuvem pelo meu rosto e acordei. Mathilde
estava ao meu lado, bloqueando a luz do sol vespertino.
Parecia que estava ali há algum tempo, de braços cruzados,
observando-nos. Sentei-me na grama e falei, piscando:
— Desculpe. Acho que nós duas devemos parecer estranhas.
Mathilde riu. — É, mas não me surpreendeu. Sabia que
Sylvie ia querer ver o esqueleto outra vez. Parece que não se
assusta mais com os ossos.
— Não, ela me surpreendeu, pois ficou tão calma.
Sylvie acordou com nossa conversa, rolou no chão e sentou-
se, o rosto corado. Olhou em volta e parou nos ossos no
chão.
— Mamãe, vamos enterrá-la.
— Onde? Aqui no jardim?
— Não, na casa dela.
Mathilde olhou para mim.
— Sei exatamente onde — falei.
Mathilde deixou que eu fosse a Mende no carro dela. Foi
estranho pensar que eu havia estado lá apenas três semanas
antes, pois muita coisa tinha acontecido desde então. Mas
tive a mesma sensação ao dar a volta na austera catedral e
andar pelas ruas estreitas e escuras da parte antiga da cidade.
Não era um lugar agradável. Fiquei contente por Mathilde
morar bem longe dali, mesmo que num subúrbio sem
árvores.
O endereço aonde eu tinha de ir acabou sendo a mesma
pizzaria onde havia estado antes. Estava quase tão vazia
quanto da outra vez. Senti-me calma ao entrar, mas, quando
vi Rick sentado sozinho com uma taça de vinho, olhando
sério o cardápio, meu estômago embrulhou. Fazia 13 dias
que não o via, longos 13 dias. Quando me viu, ele se
levantou e sorriu, nervoso. Estava de terno de trabalho,
camisa branca, blazer azul-marinho e mocassins. Parecia
alto, saudável e norte- americano naquele lugar cavernoso e
escuro, como um Cadillac entrando lentamente numa rua
estreita.
Nós nos beijamos, desajeitados.
— Nossa, Ella, o que houve no seu rosto?
Toquei o machucado na testa. — Caí, nada grave.
Sentamos. Rick serviu vinho para mim antes que eu pudesse
recusar. Educada, levei a taça aos lábios, sem beber. O
cheiro ácido e avinagrado quase me fez vomitar; coloquei
logo a taça na mesa.
Ficamos em silêncio. Percebi que eu teria de iniciar a
conversa.
— Quer dizer que Mathilde ligou para você — comecei, a
voz fraca.
— Ligou, puxa, como ela fala rápido. Não entendi por que
você não podia ligar.
Dei de ombros. Senti uma tensão se acumulando no meu
estômago.
— Escute, Ella, gostaria de falar umas coisas, certo?
Concordei com a cabeça.
— Sei que mudar para a França foi muito difícil para você.
Mais do que para mim, que só tive de trabalhar em outro
escritório. As pessoas são diferentes, mas o trabalho é
parecido. Mas você não tem trabalho nem amigos, deve se
sentir isolada e entediada. Entendo que esteja descontente.
Talvez eu não tenha dado muita atenção para você porque
estava ocupado demais no trabalho. Então você está
entediada e, bom, imagino que existam tentações, mesmo
numa cidadezinha simples como Lisle.
Ele olhou rápido a psoríase nos meus braços, que pareceu
atraí-lo por um instante.
— Então estive pensando que devíamos tentar começar de
novo — continuou ele, voltando ao assunto.
O garçom o interrompeu para anotar nosso pedido. Eu
estava tão nervosa que não conseguia pensar em comer
nada, mas, em nome das aparências, pedi a pizza mais
simples possível. O restaurante estava quente e cheio,
comecei a transpirar na testa e nas mãos. Bebi um grande
gole de água.
— Então, existe um bom jeito de começar de novo. Sabe que
estive em reuniões em Frankfurt para aquele projeto
imobiliário, não? — continuou Rick.
Concordei com a cabeça.
— Eles pediram para eu coordenar o projeto entre a nossa
empresa e a deles. — Rick parou e me olhou, ansioso.
— Ah, que ótimo, Rick. Que ótimo para você.
— Entendeu? Nós nos mudaríamos para a Alemanha; é essa a
nossa oportunidade de começar de novo.
— Sair da França?
Ele levou um susto com o tom da minha voz.
— Ella, desde que chegamos, você só reclamou deste país.
Que as pessoas são antipáticas, que não consegue fazer ami-
gos, que tratam você como estrangeira, que são formais
demais. Por que quer ficar?
— Porque nossa casa é aqui — falei, fraca.
— Olha, estou tentando ser sensato. E acho que estou me
saindo muito bem. Aceito esquecer e perdoar essa história
com... você sabe do que estou falando. Só peço que se afaste
dele. Será insensato pedir isso?
— Não, acho que não.
— Ótimo. Então, você admite que teve alguma coisa com
ele. — Ele olhou para mim e sua boa vontade pareceu sumir
por alguns instantes.
O nó no meu estômago apertou mais e gotas de suor sur-
giram em meu lábio superior. Levantei-me. — Preciso ir ao
banheiro. Volto já.
Consegui sair da mesa e andar com calma, mas, quando
fechei a porta do banheiro, vomitei em longos jatos
ofegantes que fizeram todo o meu corpo estremecer. Parecia
que eu estava querendo fazer aquilo há muito tempo, que
estava vomitando tudo que havia comido na França e na
Suíça.
Até que fiquei completamente vazia. Sentei de cócoras,
encostada na parede do toalete com a luz do teto me
iluminando como um farol. A tensão tinha sido jogada fora
e, embora estivesse exausta, consegui pensar direito pela
primeira vez em dias. Comecei a rir.
— Alemanha. Nossa! — resmunguei.
Quando voltei à mesa, nossas pizzas tinham chegado. Peguei
a minha, coloquei-a na mesa vazia ao lado da nossa e sentei-
me.
— Você está bem? — perguntou Rick, franzindo o cenho de
leve.
— Estou. Rick, tenho de falar uma coisa — pigarreei.
Ele me olhou com apreensão; não sabia o que eu poderia
dizer.
— Estou grávida.
Ele deu um pulo. O rosto ficou como uma tela de tevê com
os canais mudando sem parar, à medida que as idéias
passavam pela cabeça dele.
— Mas isso é maravilhoso, não? Era o que você queria, não?
Só que... — A dúvida no seu rosto era tão dolorosa que
quase peguei na mão dele. Achei que poderia mentir e resol-
veria tudo. Era a porta aberta que eu estava esperando. Mas
nunca soube mentir.
— O filho é seu — falei, por fim. — Devo ter engravidado
pouco antes de voltarmos a usar anticoncepcionais.
Rick levantou da cadeira e deu uma volta à mesa para me
abraçar. — Champanhe! Temos de pedir champanhe! —
disse, alto.
Olhou em volta, procurando o garçom.
— Não, não, por favor. Não estou me sentindo bem.
— Ah, certo. Então vamos para casa. Vamos agora. Está com
todas as suas coisas? — perguntou, olhando em volta.
— Não, Rick, sente-se. Por favor
Ele sentou-se e aquele olhar inseguro voltou. Respirei
fundo.
— Não vou voltar com você.
— Mas... não foi por isso que viemos para cá?
— Para onde?
—- Para esse jantar. Achei que você ia voltar comigo. Trou-
xe o carro e tudo.
— Foi isso que Mathilde disse para você?
— Não, mas eu achei...
— Bom, não devia.
— Mas você vai ter um bebê.
— Vamos deixar o bebê de lado, por enquanto.
— Não podemos. Ele existe, não?
Suspirei. — Acho que sim.
Rick tomou o resto do vinho e pôs a taça na mesa com um
barulho. — Olha, Ella, você precisa me explicar uma coisa.
Não disse por que foi à Suíça. Fiz alguma coisa errada? Por
que você está assim comigo? Parece dar a entender que tem
algo errado conosco. Isso para mim é novidade. Se existe
alguém que deve estar irritado, esse alguém sou eu. Você é
que está dando voltas.
Eu não sabia como explicar de uma forma simpática. Rick
parecia perceber. — Conte, seja honesta comigo — ele
disse.
— Foi quando mudamos para cá. Eu me senti diferente.
— Diferente como?
— É difícil explicar. — Pensei um instante. —- Você sabe
que a gente pode comprar um disco e ficar ouvindo as
músicas sem parar por um tempo, saber todas elas de cor. E
acha que conhece tão bem, que é especial para você. Como,
por exemplo, aquele primeiro disco que você comprou
quando era garoto.
— O disco Surf's Up, dos Beach Boys.
— Isso mesmo. Até que um dia, você pára de ouvir... sem
qualquer motivo, não é uma decisão consciente. De repente,
não precisa mais ouvir o disco. Não tem mais a mesma força.
Pode ouvir e saber que as músicas continuam sendo boas,
mas perderam a magia que exerciam sobre você. Só isso.
— Isso nunca ocorreu com os Beach Boys. Ainda sinto a
mesma coisa quando os ouço.
Pus a mão na mesa com força.
— Droga! Por que você faz isso?
As poucas pessoas que estavam no restaurante olharam para
nós.
— O quê? O que foi que eu fiz? — perguntou Rick, baixo.
— Você não está me ouvindo. Pega a metáfora e muda o
sentido dela. Não quer ouvir o que estou tentando dizer.
— O que está tentando dizer?
— Acho que não amo mais você. É isso que estou tentando
dizer, mas você não quer ouvir!
— Ah. — Ele se recostou na cadeira. — Por que não disse,
então? Por que precisou enfiar os Beach Boys no meio da
história?
— Estava tentando fazer uma metáfora para facilitar. Mas
você insiste em ver pelo seu ponto de vista.
— Como posso ver sem ser pelo meu ponto de vista?
— Pelo meu ponto de vista! O meu! — Bati no peito com o
nó dos dedos. — Você nunca pode ver as coisas pelo meu
ponto de vista? Você é tão simpático e fácil com todo
mundo, mas sempre consegue fazer com que as pessoas
vejam pelo seu ponto de vista.
— Ella, quer saber o que vejo do seu ponto de vista? Vejo
uma mulher perdida, sem rumo, que não sabe o que quer e
então se agarra à idéia de ter um filho para se ocupar. E,
como está cansada do marido, trepa com o primeiro que
aparece.
Ele parou e desviou o olhar, constrangido, percebendo que
tinha ido longe demais. Nunca o vira ser tão franco.
— Rick, esse não é o meu ponto de vista. E o seu — falei,
calma. E chorei, mais para me aliviar do que por qualquer
outra coisa.
O garçom apareceu e foi tirando em silêncio nossas pizzas
intocadas, depois colocou a conta sobre a mesa sem que
fosse pedida. Não olhamos para ela.
— Essa... mudança de sentimentos é temporária ou
permanente? — perguntou Rick, quando parei de chorar.
— Não sei.
Ele tentou outra vez. — Essa história do disco que você
falou. Isso pode mudar? Quer dizer... você pode se interessar
muito pelo disco outra vez?
Pensei. — Às vezes. — Mas nunca por muito tempo,
completei para mim mesma. O sentimento nunca volta de
verdade.
— Então, pode ser que a situação mude.
— Rick, só sei que agora não posso voltar para casa com
você. — Senti meus olhos se enchendo de lágrimas outra
vez.
— Nem contei o que aconteceu na Suíça — acrescentei. — E
na França. O que descobri sobre os Tournier. A história
toda. Eu podia contar uma história inteira... preenchendo
alguns vazios aqui e ali. E como se existisse outra vida
dentro de mim que você desconhece.
Rick apertou com os dedos o espaço entre os olhos. —
Escreva relatando — ele disse, e olhou de novo para a
minha psoríase. —Agora, tenho de sair deste restaurante.
Está quente demais aqui.
Quando voltei para a casa de Mathilde, ela ainda estava
acordada, lendo uma revista na sala, com as compridas
pernas apoiadas na mesa de centro. Olhou para mim,
inquisidora. Desmontei no sofá e fiquei olhando para o teto.
— Rick quer se mudar para a Alemanha — anunciei.
— Vraiment? (E mesmo?) Que decisão repentina.
— É. Mas não vou com ele.
— Para a Alemanha? Claro que não! — Ela fez uma careta.
Ri. — Escuta, você gosta de algum país que não seja a
França? — perguntei:
— Gosto dos Estados Unidos.
— Mas nunca foi lá!
— É, mas tenho certeza de que vou gostar.
— É difícil pensar em voltar. A Califórnia ia me parecer tão
diferente.
— Não vai voltar?
— Não sei. Mas não vou para a Alemanha.
— Contou para Rick que está grávida? Sentei-me.
— Como você sabe que estou?
— É óbvio! Está cansada, não gosta de comida, embora coma
muito quando quer. E quando não conversa parece estar
ouvindo alguma coisa dentro de você. Lembro-me bem de
quando engravidei de Sylvie. E quem é o pai?
— Rick.
— Tem certeza?
— Tenho. Passamos um tempo querendo ter filho, depois
paramos de querer, mas claro que isso foi depois que
engravidei. Agora percebo que estou com sintomas há
algumas semanas.
— E Jean-Paul?
Inclinei-me e apertei o rosto numa das almofadas do sofá.
— O que você quer saber?
— Vai encontrar com ele? Falar com ele?
— O que eu poderia dizer que ele gostaria de ouvir?
— Mas... claro que ele gostaria de saber, mesmo que sejam
más notícias. Você não foi muito gentil com ele.
— Ah, não sei. Pensei que gentil fosse não falar com ele.
Para alívio meu, Mathilde mudou de assunto. — Na quarta-
feira não vou trabalhar aqui para ir a Le Pont de Montvert,
como você sugeriu. Vamos levar Sylvie também. Ela adora
lá e você poderá ver Monsieur Jourdain outra vez.
— Ah, estou louca para ir. Ela riu e nós duas rimos.
Na quarta-feira de manhã, Sylvie insistiu em ajudar a me
arrumar. Entrou no banheiro, onde eu estava vestindo
shorts brancos e uma camisa cor-de-aveia, e inclinou-se na
pia, me olhando.
— Por que você usa sempre branco? — perguntou.
Ah, aí vamos nós outra vez, pensei. — Essa blusa não é
branca, é cor de cereal — garanti, sem saber como dizer
aveia em francês.
— Não é. Os meus flocos de cereais são laranja!
Eu tinha comido três tigelas de cereais no café-da-manhã e
continuava com fome.
—Alors, o que você quer que eu vista? Sylvie bateu palmas,
correu para a sala e foi olhar na minha sacola de roupas. —
Todas as suas roupas são brancas ou marrons! — gritou,
desapontada. Tirou a camisa azul de Jean-Paul. — Menos
essa. Use essa. Por que não usou antes? — perguntou.
Jacob tinha lavado a camisa para mim em Moutier. O sangue
havia saído quase todo, mas ficara um risco vermelho nas
costas. Pensei que só desse para ver se alguém prestasse
atenção, mas Mathilde viu assim que vesti. Levantou as
sobrancelhas e estiquei o pescoço para olhar nas costas.
— Você não vai querer saber — falei.
Ela riu. — Sua vida é cheia de drama, hein?
—Juro que não era assim!
Mathilde olhou o relógio de pulso. — Vamos, Monsieur
Jourdain vai nos esperar — disse ela. Abriu o armário do
corredor, pegou a sacola de ginástica e me entregou.
— Você ligou mesmo para ele?
— Escuta, Monsieur Jourdain é uma boa pessoa. E bem-
intencionado. Agora que sabe que sua família era mesmo da
região, vai tratá-la como uma prima perdida há tempos.
— Monsieur Jourdain foi aquele homem que me chamou de
Mademoiselle? O homem de cabelos pretos? — perguntou
Sylvie.
— Não, esse era Jean-Paul. Monsieur Jourdain é o senhor
que caiu do banquinho, lembra?
— Gostei de Jean-Paul. Vamos encontrar com ele?
Mathilde sorriu para mim. — Olha, essa camisa é dele —
eu disse, segurando numa ponta da camisa.
Sylvie olhou para mim. — Então por que você está usando?
— Enrubesci e Mathilde riu.
O dia estava lindo e quente em Mende, mas, quanto mais
subíamos as montanhas, ficava mais seco e frio. Cantamos
pela estrada afora e Sylvie me ensinou as músicas que
aprendera no acampamento. Era estranho cantar a caminho
de um enterro, mas não era inadequado. Estávamos levando
Marie para casa.
Quando chegamos na mairie de Le Pont de Montvert,
Monsieur Jourdain apareceu imediatamente à porta. Apertou
as mãos de cada uma de nós, até de Sylvie, e segurou minha
mão um instante. — Madame — disse, e sorriu. Ele ainda
me deixava nervosa, talvez soubesse disso, pois sorriu de um
jeito desesperado como uma criança que quer ser aceita
como adulta.
— Vamos tomar um café — convidou ele, apressado, e nos
levou para um bar. Pedimos cafés para nós e um suco para
Sylvie, que saiu da mesa assim que descobriu o gato do lugar.
Nós, adultos, ficamos um instante num silêncio estranho até
Mathilde bater na mesa e exclamar:
— O mapa! Vou pegá-lo no carro. Queremos mostrar a você
aonde vamos. — Ela se levantou e nos deixou a sós.
Monsieur Jourdain pigarreou e, por um instante, pensei que
fosse cuspir. — Escute, La Rousse — começou. — Lembra
que falei que ia tentar descobrir alguma coisa sobre as
pessoas citadas na sua Bíblia?
— Lembro.
—Alors, encontrei uma pessoa.
-— Um Tournier?
— Não. Ela se chama Elisabeth Moulinier. É neta de um
homem que morava em l'Hôpital, uma província perto
daqui. A Bíblia era dele e, quando morreu, a neta trouxe o
livro para cá.
— Você conheceu o avô dela?
Monsieur Jourdain apertou os lábios. — Não — respondeu,
rápido.
— Mas... pensei que você conhecesse todo mundo por aqui.
Mathilde me disse.
Ele franziu o cenho e resmungou: — Ele era católico.
— Ah, pelo amor de Deus! — reclamei.
Ele pareceu constrangido e, ao mesmo tempo, inflexível.
— Não tem importância — resmunguei, balançando a
cabeça.
— De todo jeito, falei para Elisabeth que você estaria hoje
aqui. Ela vem conhecer você.
— Ah, que... — Que o quê, pensei. Que ótimo? Você quer
ser ligada a essa família?
— Que simpático você ter combinado isso, agradeço — falei.
Mathilde voltou com o mapa, que abrimos sobre a mesa.
— La Baume du Monsieur é uma colina — explicou
Monsieur Jourdain. — Existem algumas ruínas de uma
fazenda aqui, está vendo? — perguntou, mostrando um pe-
queno sinal no mapa. —Vocês podem ir agora e levo
Madame Moulinier lá daqui a uma ou duas horas.
Quando vi o velho carro poeirento estacionado ao lado da
estrada, meu estômago revirou. Isso é coisa de Mathilde,
pensei. Ela adora dar telefonemas. Olhei para ela, que
apareceu atrás do carro, tentando parecer inocente, mas vi
seu sorriso satisfeito. Quando nossos olhos se encontraram,
ela deu de ombros.
— Por que não vai na nossa frente? Sylvie e eu vamos dar
uma olhada no rio, não é, filha? Encontramos você depois.
Pode ir.
Fiquei indecisa, depois peguei a sacola de ginástica, uma pá,
o mapa e segui pela trilha. Parei e olhei para trás:
— Obrigada — falei.
Mathilde sorriu e acenou:
— Vas-y, chérie. (Vá lá, querida.)
Ele estava sentado nas ruínas de uma chaminé, de costas
para mim, fumando um cigarro. Usava uma camisa salmão, o
sol brilhava em seus cabelos. Parecia tão real, tão à vontade
consigo mesmo e com tudo, que quase não consegui olhá-
lo, de tanto que me doía. Senti falta dele, tinha vontade de
cheirá-lo e tocar sua pele morna.
Ao me ver, jogou fora o cigarro, mas continuou sentado.
Coloquei no chão a sacola e a pá. Queria abraçá-lo, apertar o
rosto no pescoço dele e chorar, mas não consegui. Só
poderia fazer isso depois de contar. O esforço para não tocar
nele era quase insuportável e tão dispersivo que não ouvi o
que ele disse e tive de pedir que repetisse.
Ele não repetiu. Apenas me olhou por um bom tempo,
examinando meu rosto. Tentou se manter impassível, mas vi
que não estava conseguindo.
—Jean-Paul, sinto muito — murmurei em francês.
— Por quê? Por que sente muito?
— Ah — falei, colocando as mãos no pescoço dele. —
Tenho tanta coisa para dizer, não sei por onde começar. —
Meu queixo mexeu e apoiei os cotovelos no peito dele para
não tremer.
Ele tocou na minha testa machucada.
— Como foi isso?
Sorri sem graça. — Foi a vida.
— Então me conte como foi e por que está com isso — disse
ele, mostrando a sacola. — Conte em inglês quando precisar
e eu falarei francês quando precisar.
Nunca havia pensado em fazer assim. Ele tinha razão: seria
demais falar em francês o que eu tinha de falar.
— A sacola está cheia de ossos — expliquei, cruzando os
braços e colocando o peso do corpo de um lado. — Ossos de
uma menina, a julgar pelo tamanho e formato deles. Tem
também restos de um vestido e de cabelos. Encontrei tudo
sob a lareira de uma fazenda que dizem ter pertencido aos
Tournier durante muito tempo. Na Suíça. Acho que os ossos
são de Marie Tournier.
Parei minha vacilante explicação e esperei que ele me
provocasse. Como tal não ocorreu, fiquei tentando
responder às perguntas que ele não fez. — Na minha
família, os nomes foram sendo repetidos até hoje. Ainda há
Jacobs e Jeans, Hannahs e Susannes. É como uma
comemoração. Todos os nomes originais ainda sobrevivem,
menos Marie e Isabelle. Sei que você vai achar que estou
concluindo a partir do nada e sem provas, mas creio que isso
mostra que elas fizeram algo errado, morreram ou foram
expulsas, algo assim. E a família deixou de usar o nome
delas.
Jean-Paul acendeu um cigarro e deu uma longa tragada.
— Há outras coisas, do tipo de prova que você vai descon-
fiar. Como os cabelos dela que estão na sacola e são da
mesma cor dos meus. Da cor que os meus ficaram depois
que vim para cá. E quando levantamos a lareira e a pedra
caiu, fez o barulho que eu ouvia no pesadelo. Aquele grande
estrondo que parecia um grande gemido. Foi exatamente
igual. Mas o principal é o azul. Os pedaços do vestido são
exatamente do azul do meu sonho. O azul da Virgem.
— O azul dos Tournier — disse ele.
— Isso mesmo. Você vai dizer que tudo não passa de
coincidência. Sei o que acha das coincidências, mas são
muitas. Pára mim, são demais.
Jean-Paul levantou, sacudiu as pernas e ficou andando em
volta das ruínas. Deu a volta toda.
— Este lugar aqui é o Mas de la Baume du Monsieur, não? A
fazenda citada na Bíblia? — perguntou ele, quando voltou
para o meu lado.
Concordei com a cabeça. —Vamos enterrar os ossos aqui.
— Posso olhar? — perguntou ele, fazendo um gesto para a
sacola.
— Pode. — Ele tinha tido uma idéia: eu o conhecia bem para
saber os sinais. Foi estranhamente reconfortante. Meu
estômago, que estava agitado desde que vira o Deux
Chevaux, se acalmou e pediu comida. Sentei numa rocha e
observei-o. Ele se ajoelhou e abriu bem a sacola. Olhou
dentro um bom tempo, passou a mão nos cabelos da
menina, pegou o pano azul. Olhou para mim de cima a
baixo; lembrei que eu estava usando a camisa dele. A cor
azul e a vermelha.
— Não usei de propósito. Não sabia que você ia estar aqui.
Sylvie me obrigou, disse que não uso cores.
Ele sorriu.
— Ah, por falar nisso, Goethe passou uma noite em Moutier
— informei.
Jean-Paul riu, zombeteiro. — Não é grande coisa. Passou
uma noite em toda parte.
— Suponho que você tenha lido tudo de Goethe.
— O que você disse uma vez? Só você consegue falar em
Goethe atualmente.
Sorri. — Touché. (Você venceu.) Mas desculpe ter pego a
sua camisa. E ela ficou... tive uma espécie de acidente com
ela.
Ele olhou atento a camisa. — Ela parece perfeita.
—Você não viu as costas. Não vou mostrar, é outra história.
Jean-Paul fechou o zíper da sacola.
— Tenho uma idéia, mas acho que vai perturbar você —
disse ele.
— Nada pode me perturbar mais do que tudo que já
aconteceu.
— Quero cavar aqui do lado da chaminé.
— Por quê?
— E só uma tese. — Ele se abaixou ao lado das ruínas da
lareira. Não tinha sobrado muita coisa. Tinha sido uma
grande pedra de granito, como aquela de Moutier, mas havia
quebrado ao meio e estava se desmanchando.
— Não quero enterrá-la aí, se é isso que você está pensando.
E o último lugar onde quero colocá-la — avisei.
— Não, claro que não. Eu só quero procurar uma coisa.
Olhei-o levantar pedaços de pedra por um tempo, depois me
ajoelhei e ajudei-o, evitando pegar as pedras maiores, por
causa da minha barriga. A uma certa altura, ele olhou as
minhas costas e traçou com o dedo a linha de sangue na
camisa. Continuei abaixada, com os braços e as pernas
arrepiados. Jean-Paul passou a mão para a minha nuca e
cabeça, abriu os dedos nos meus cabelos como se fossem um
pente.
Parou. — Não quer que eu toque em você — disse, mais
como uma afirmação do que uma pergunta.
— Você não vai querer tocar em mim depois que souber.
Ainda não contei tudo.
Jean-Paul tirou a mão de mim e pegou a pá. — Conte depois
— disse, começando a cavar.
Não fiquei muito surpresa quando ele encontrou os dentes.
Mostrou-os para mim em silêncio. Segurei-os, abri a sacola
de ginástica e peguei os outros dentes. Eram do mesmo
tamanho: dentes de leite. Pareciam afiados na minha mão.
— Por quê? — perguntei.
— Algumas culturas têm o costume de enterrar coisas nos
alicerces das casas durante a construção. Às vezes, corpos de
animais, sapatos. Outras vezes, mais raras, corpos humanos.
A idéia é que a alma deles fique na casa e afaste os maus
espíritos.
Fez-se um longo silêncio.
— Você quer dizer que essas crianças foram sacrificadas.
— Talvez, pode ser. É muita coincidência encontrar ossos
embaixo da lareira das duas casas para ser um mero acaso.
— Mas... eles eram cristãos. Supõe-se que temessem a Deus e
não que fossem supersticiosos!
— A religião jamais conseguiu acabar completamente com a
superstição. O cristianismo foi como uma camada de verniz
sobre as velhas crenças... cobriu-as, mas não acabou com
elas.
Olhei as duas fileiras de dentes. — Meu Deus, que família. E
faço parte dela. Também sou Tournier. — Estremeci.
— Você está longe deles, Ella — disse Jean-Paul, gentil. —
Você é do século XX. Não é culpada pelo que eles fizeram. E
lembre que você é resultado tanto da família de sua mãe
quanto de seu pai.
— Mesmo assim, sou uma Tournier.
— Sim, mas não tem de pagar pelos pecados deles.
Olhei bem para ele. — Nunca ouvi você usar essa palavra.
Ele deu de ombros. — Fui criado no catolicismo, afinal.
Há coisas que não conseguimos deixar completamente.
Sylvie apareceu ao longe, correndo em ziguezague, distraída
com as flores ou os coelhos, parecendo uma borboleta
amarela esvoaçando aqui e ali. Quando nos viu, veio direto.
—Jean-Paul! — exclamou. Correu para o lado dele.
Ele se abaixou ao lado dela. — Bonjour, Mademoiselle —
disse. Sylvie riu e deu um tapinha no ombro dele.
— Já começaram a cavar? — Mathilde abriu caminho entre
os rochedos de sandálias rosa, balançando um cesto amarelo.
— Salut, Jean-Paul — saudou, sorrindo para ele. Ele
retribuiu. Achei que, se eu tivesse bom senso, me despediria
de todos e deixaria os dois, deixaria Mathilde se distrair um
pouco na vida e dar um pai para Sylvie. Seria o meu
sacrifício, uma expiação dos pecados da minha família.
Dei um passo atrás. —Vou procurar um local para enterrar
os ossos — avisei, estendendo a mão para Sylvie: — Quer
me acompanhar?
— Não, vou ficar aqui com Jean-Paul — respondeu ela.
— Mas... talvez sua mãe queira ficar sozinha com Jean- Paul.
Na hora, percebi que havia errado. Mathilde soltou sua
risada alta.
— Realmente, Ella, você às vezes é muito boba!
Jean-Paul não disse nada, tirou um cigarro do bolso da
camisa e acendeu-o com um sorriso malicioso.
— É, sou boba mesmo. Muito boba — resmunguei, em
inglês.
Todos nós concordamos sobre o lugar onde os ossos deve-
riam ser enterrados: num gramado ao lado de um rochedo
íngreme em forma de cogumelo, não muito longe das
ruínas. Seria sempre fácil de encontrar por causa da forma
do rochedo.
Jean-Paul começou a cavar enquanto sentamos por perto e
fizemos um lanche. Depois, cavei um pouco, Mathilde
também, até fazermos um buraco de meio metro, mais ou
menos. Coloquei os ossos dentro. Tínhamos cavado o bas-
tante para dois esqueletos e, embora Jean-Paul só tivesse
encontrado os dentes nas ruínas, coloquei-os junto, como se
todo o corpo estivesse lá. Os outros ficaram olhando e Sylvie
cochichou com a mãe. Quando terminei, tirei um fio dos
restos do vestido e guardei no bolso.
Levantei-me e Sylvie se aproximou:
— Mamãe disse para eu perguntar a você se posso enterrar
uma coisa com Marie.
— Que coisa?
Sylvie tirou o sabonete de lavanda do bolso.
— Pode. Antes, desembrulhe-o. Quer que eu ponha lá
dentro?
— Não, eu ponho. — Ela se abaixou ao lado da sepultura e
colocou o sabonete. Depois, levantou-se e bateu a terra da
roupa.
Eu não sabia o que fazer a seguir: achava que devia dizer
alguma coisa, mas não sabia o quê. Olhei para Jean-Paul e,
para a minha estranheza, ele estava de cabeça baixa, olhos
fechados, dizendo alguma coisa. Mathilde também e Sylvie
imitou os dois.
Olhei para o alto e vi um pássaro de asas bem abertas,
pairando.
Jean-Paul e Mathilde se benzeram e abriram os olhos ao
mesmo tempo.
— Olhem — falei e apontei para cima. O pássaro tinha
sumido.
— Eu vi. Não se preocupe, Ella, eu vi o passarinho vermelho
— garantiu Sylvie.
Depois de jogarmos terra na sepultura, colocamos pedrinhas
sobre ela para evitar que animais levassem os ossos, forma-
mos uma pirâmide simples, de meio metro de altura.
Tínhamos acabado, quando ouvimos um assobio e olhamos.
Monsieur Jourdain estava nas ruínas, ao lado de uma jovem.
Mesmo de longe, era evidente que ela estava grávida de oito
meses. Mathilde olhou para mim e sorrimos. Jean-Paul
notou nossa troca de olhares e ficou intrigado.
Ai, céus, ainda tenho de contar para ele. Meu estômago
apertou.
Quando os dois se aproximaram, a jovem tropeçou. Eu gelei.
— Mon Dieu! — Mathilde exclamou.
Sylvie bateu palmas. — Ella, você não contou que a sua irmã
vinha!
A jovem se aproximou de mim e parou. Ficamos nos
examinando: os cabelos, a forma do rosto, os cabelos
castanhos. Então, nos beijamos no rosto uma, duas, três
vezes.
Ela riu. — Vocês, Tournier, sempre beijam três vezes, como
se duas não bastassem.
Mais tarde, resolvemos descer da montanha. Tomaríamos
um drinque no bar, depois cada um faria seu caminho:
Mathilde e Sylvie iriam para Mende, Elisabeth para casa,
perto de Alès, Monsieur Jourdain para a casa dele na esquina
da prefeitura, e Jean-Paul, para Lisle-sur-Tarn. Só eu não
sabia para onde iria. Elisabeth e eu andamos juntas até os
carros.
— Você vem me visitar? Venha agora, se quiser — disse ela.
— Vou em breve. Tenho... algumas coisas para resolver. Mas
vou daqui a uns dias.
Quando chegamos aos carros, ela e Mathilde me olharam
ansiosas. Jean-Paul observava o horizonte.
— Hum, podem ir na frente. Vou pegar carona com Jean-
Paul. Encontramos vocês no bar — falei para elas.
— Ella, você vai para casa conosco, não é? — perguntou
Sylvie, ansiosa, dando tapinhas no meu braço.
— Não se preocupe comigo, chérie.
Os carros sumiram na estrada e Jean-Paul e eu ficamos um
de cada lado do carro dele. — Podemos abaixar a capota? —
perguntei.
— Bien sür.
Enrolamos a capota de cada lado e prendemos. Quando
terminamos, inclinei-me e descansei os braços na janela do
carro. Jean-Paul se inclinou do outro lado.
— Tenho uma coisa para contar — falei, engolindo o nó na
garganta.
— Fale em inglês, Ella.
— Está bem. Em inglês. — E parei de novo.
— Eu não sabia que podia sofrer tanto por causa de uma
mulher. Faz quase duas semanas que você foi embora.
Desde então, não consigo dormir, não consigo tocar piano,
não consigo trabalhar. As velhas zombam de mim na
biblioteca. Meus amigos acham que enlouqueci. Claude e eu
brigamos por bobagens.
—Jean-Paul, estou grávida — falei.
Ele me olhou com cara de interrogação.
— Mas nós... — Parou.
Pensei de novo em mentir, em como seria mais fácil mentir.
Sabia que ele ia descobrir.
— É de Rick, desculpe — falei, suave.
Jean-Paul respirou fundo e disse, em francês: — Não precisa
se desculpar. Você queria um filho, não é?
— Oui, mais...
— Então, não precisa se desculpar — repetiu, em inglês.
— Se é com a pessoa errada, há muito do que se lastimar.
— Rick sabe?
— Sabe, falei com ele na noite passada. Ele quer que mu-
demos para a Alemanha.
Jean-Paul levantou as sobrancelhas.
— O que você quer fazer?
— Não sei. Tenho de pensar no que é melhor para o bebê.
Jean-Paul se afastou do carro, foi até o outro lado da estrada
e ficou olhando os campos de giestas e granito. Pegou um
galho de giesta e esmigalhou nos dedos as ásperas flores
amarelas.
— Lastimo, é coisa demais, não é? — falei baixo para ele não
ouvir.
Ele voltou para o carro parecendo decidido, até estóico. É
assim que ele fica melhor, pensei. Sem querer, sorri.
Jean-Paul retribuiu o sorriso.
— O que é melhor para a mãe costuma ser melhor para o
bebê. Se você ficar infeliz, o bebê também vai ficar — disse
ele.
— Eu sei. Mas não sei mais o que é melhor para mim.
Gostaria de saber pelo menos onde é minha casa. Não é mais
na Califórnia. E acho... que não posso mais voltar para Lisle.
Pelo menos não agora. Ou para a Suíça. Nem para a Ale-
manha, com certeza.
— Onde você se sente melhor?
Olhei em volta.
— Aqui. Exatamente aqui.
Jean-Paul abriu os braços.
—Alors, tu es chez toi. Bienvenue. (Então, você está em
casa. Seja bem-vinda.)
EPÍLOGO
Olhei bem o céu, que estava um azul-claro, esmaecido pelo
sol de final de setembro. O rio Tarn continuava cálido e dei-
tei nele de braços abertos, os seios amassados pela água, os
cabelos flutuando no rio como folhas em volta do meu
rosto. Olhei para baixo: minha barriga estava começando a
aparecer por cima da água. Peguei-a com as mãos em
concha.
Ouvi um som de papel na margem.
— O que aconteceu com Isabelle?
— Não sei. AÀs vezes, penso que ela saiu de Moutier e vol-
tou para cá, para a região de Cévennes. Encontrou o pastor
de ovelhas, teve o filho e viveu feliz para sempre. E voltou a
ser católica para assim venerar a Virgem.
— Um final feliz.
— É. Mas não sei se foi isso mesmo o que aconteceu. Penso
muitas vezes que ela morreu de fome numa vala em algum
lugar, fugindo dos Tournier, com o filho morto no ventre,
esquecida, num túmulo sem nome.
Fez-se um silêncio.
— Mas sabe o que pode ter sido pior, pior ainda e, ao mesmo
tempo, o mais provável de ter acontecido?
— O que pode ser pior do que isso?
— Ela ter vivido. E ter ficado em Moutier e passado o resto
da vida com o corpo da filha embaixo da lareira.
Isabelle se ajoelhou na encruzilhada. Tinha três opções: ir
em frente, voltar ou ficar onde estava.
—Ajude-me, Santa Mãe, me ajude a escolher para onde ir —
ela reza.
Uma luz azul a envolve confortando-a por um breve
instante.
Eu me levantei de repente, segurei na rocha lisa da margem
do rio e meus seios retomaram a forma redonda. O bebê
tinha acordado e começou a chorar como um gatinho.
Elisabeth tirou-o do lençol onde estava deitado à margem do
rio e amamentou-o.
—Jean-Paul leu isso? — perguntou ela, batendo no
manuscrito ao lado.
— Ainda não. Vai ler neste fim de semana. A opinião dele é a
que mais espero.
— Por quê?
— Porque é a mais importante para mim. Ele tem idéias
concretas sobre História. Vai criticar bastante o enfoque que
escolhi.
Elisabeth deu de ombros.
— E daí? Afinal, a história é sua. Nossa.
— É.
— E o pintor que você me falou? Nicolas Tournier.
— A pista falsa, você quer dizer.
— O quê?
— Nada. Ele tem seu lugar na história, não importa o que
Jean-Paul ache.
Jacob chega à encruzilhada e encontra a mãe ajoelhada,
iluminada de azul. Ela não o vê, o menino observa-a um
instante e o azul se reflete nos olhos dele. Depois, ele olha
em volta e toma a estrada que vai para o oeste.
NOTAS HISTÓRICAS
A Reforma protestante do século XVI começou com
Martinho Lutero, na Alemanha. Um de seus companheiros,
João Calvino, mudou-se para Genebra, na Suíça, onde trei-
nou pregadores sobre a sua crença, com base numa vida pia
e disciplinada, e na adoração direta a Deus, sem que fossem
necessários padres como intermediários. Esses pregadores se
espalharam pela França, difundindo a Verdade, como eram
chamados os ensinamentos calvinistas. Eles logo
converteram os habitantes de muitas cidades e muitos
nobres franceses.
A Reforma levou mais tempo para chegar a regiões rurais
como Cévennes, uma área montanhosa no sul da França.
Mas, depois que os pregadores chegaram lá, muitos
camponeses se converteram à Verdade e começaram a
participar de cultos escondidos em celeiros e na floresta, até
conseguirem expulsar os padres e ocupar as igrejas católicas.
Em 1560 e 1561, várias igrejas foram tomadas em aldeias
cevenenses, e os huguenotes (como passaram a ser
conhecidos os protestantes franceses) dominaram a região.
Em 1572, centenas de huguenotes que estavam reunidos
para um casamento real foram massacrados no chamado
Massacre de São Bartolomeu, o qual provocou ondas de
perseguição que se espalharam por toda a França e
obrigaram muitos huguenotes a emigrar. O Edito de Nantes
restaurou um pouco de paz ao proteger os direitos dos
protestantes, mas os problemas voltaram quando Luís XIV
revogou o edito em 1685, dispersando os huguenotes por
toda a Europa. No início do século XVIII, grupos de
huguenotes de Cévennes se insurgiram outra vez contra o
governo francês no que ficou conhecido como rebelião dos
camisards, mas não conseguiram nada e tiveram de voltar a
fazer seus cultos escondidos.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a ajuda das seguintes pessoas (por
ordem alfabética, esse grande equalizador): Juliette
Dickstein; Jonathan Drori; Susan Elderkin; Jonny Geller;
James Greene; Kate Jones; meu primo Jean Kleiber, o
primeiro a me falar nas fazendas sem chaminés e em outras
coisas da Suíça; Lesley Levene; Madame Christine Martinez,
de Florac, que sem saber me deu um vasto curso sobre a
vida em aldeias francesas; e Vicky Singer.
Foram muito úteis os livros Montaillou e The Peasants of
Languedoc, de Emmanuel Le Roy Ladurie, The Return of
Martin Guerre e Society and Culture in Early Modem
France, de Natalie Zemon Davis, Protestants du Midi, 1559-
1598, de Janine Garrisson, e Moutier à travers les âges, de
Ph. Pierre-humbert.
A maioria dos lugares citados neste livro existe, mas
nenhuma das pessoas existiu.
| Lançamento Gênesis do Conhecimento O Azul da Virgem - Tracy Chevalier links ao final da mensagem digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia agradecimentos pela doação do ebook para o Memorial do Conhecimento Sinopse: Um livro emocionante que narra a história de duas mulheres que viveram a séculos de distância e a herança ancestral que as une. Ella Turner fará um esforço enorme para se adaptar à pequena comunidade da cidadezinha francesa para onde se mudou.Voltará a usar o sobrenome Tournier e terá aulas de francês para poder se comunicar melhor. Isolada e só, ela se dedicará a investigar seus antepassados e obterá resultados surpreendentes. Isabelle du Moulin, chamada de La Rousse devido à cor ruiva de seus cabelos, será perseguida como feiticeira por sua ligação com a Virgem Maria. Ao engravidar, não terá outra escolha senão casar-se e entrar para a arrogante família Tournier. Quase quinhentos anos depois, Ella Turner descobrirá a história desse passado e terá de dar destino ao que ficou por fazer. Links: Megaupload: http://www.megaupload.com/?d=50NE3ATQ Mediafire: http://www.mediafire.com/download.php?wa1sox3jf5vga24 PASTAS LANÇAMENTOS Genesis do Conhecimento: http://rapidshare.com/users/KPGYUD http://www.mediafire.com/?q6ebsi7j6b5cv Este e-book representa uma contribuição do grupo Genesis do Conhecimento para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos. É vedado o uso deste arquivo para auferirdireta ou indiretamentebenefícios financeiros. Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autoradquirindo suas obras INFORMAÇÃO: o Grupo Genesis do Conhecimento está de volta ao Google Groups * Página inicial do grupo: http://groups.google.com.br/group/genesis_do_conhecimento * Endereço de e-mail do grupo: genesis_do_conhecimento@googlegroups.com | ||
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