terça-feira, 9 de agosto de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> TEXT Edgar Morin - seguem dois livros em anexo

Do Autor:
Amor, Poes,a, Sabedoria
Ciência com Consciencla
Meus Demônios


EDGAR MORIN
2001-19972
I

Repensara reforma

Reformar o pensamento
Tradução
ELOA JACOBINA
44 EDIÇÃO
Copyright (c)1999, Editions du Seuil

Título original: La Tête Bien Faite - Repenser Ia reforme, reformer la pensée
Capa: Simone Villas Boas

Editoração: Art Line
2001
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Morin, Edgar, 1921
M8Sc A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o
pensamento / Edgar Morin; tradução Eloá Jacobina. - 4' ed. - Rio
de janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
128p.
Tradução de: La tête bien faite
Anexos
ISBN 85-286-0764-X
4' ed.
1. Educação - Ensaios. 2. Educação - Filosofia. 1. Título.
00-0511
CDD - 370.1
CDU - 37.01
Este livro é dirigido a todos,
mas poderia ajudar
particularmente professores e
alunos. Gostaria de que estes últimos,
se tiverem acesso a este livro, e
se 0 ensino os entedia, desanima,
deprime ou aborrece, pudessem utilizar
meus capítulos para assumir
sua própria educação.
Todos os direitos reservados pela:
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2. A CABEÇA BEM-FEITA 21
3. A CONDIÇÃO HUM.aNA 35
4. APRENDERA VIVER 47
5. ENFRENTARA INCERTEZA 55
6. A APRENDIZAGEM CIDADA 65
7. Os TREs GRAUs 75
9. PARA ALEM DAS CONTRADIçOES
ANEXOS
1. Inter poli-transdisciplinaridade 105
2. A noção de sujeito 117

PREFÁCIO
"Gostaria tanto de perseverar em minha educação puramente
humana, mas o saber não os torna melhores nem mais felizes.
Sim! Se fôssemos capazes e compreendera coerência de todas as
coisas! Mas o inicio e o. m de toda ciência não estão envol
tos em obscuridade? Ou devo empregar todas estas faculdades, estas
forças, esta vida inteira, para conhecer tal espécie de inseto, para
saber classificar uma determinada planta na série dós reinos?"
DKLosT, Lettre d une amie (Carta a uma amiga) URANTE OS ÚLTIMOS dez
anos, desenvolvi uma linha de idéias que me conduziria a este livro.
Cada vez mais conven
cido da necessidade de uma reforma do pensamento, portanto de
uma reforma do ensino, aproveitava diversas oportunidades para
refletir sobre o assunto. Por sugestão de Jack Lang, então ministro da
Educação na França, enunciei "algumas anotações para um Emílio*
contemporâneo". Imaginara um "manual para alunos, professores e
cidadãos", projeto que não abandonei. Depois, por ocasião de várias
palestras e vários honoris causa em faculdades estrangeiras, inseria em
meus discursos minhas idéias em formação.
Comecei a formular meu ponto de vista em meados 1997,
quando fui chamado por Le Monde de l'éducation para ser o "corres-
pondente-chefe convidado" do número sobre a Universidade. No
Referência a EmIlio. ou da educação, de Jean-Jacques Rousseau, Bertrand Brasil. (N. da
T.)
9

10
dezembro seguinte, o ministro Claude Allègre pediu-me para presidir um
"Conselho Cientifico' destinado a refletir sobre a reforma dos saberes
nos ginásios. Graças ao apoio de Didier Dacunha-Castelle, organizei
algumas jornadas temáticasl, que me permitiram demonstrar a
viabilidade de minhas idéias. Mas elas levantaram tan
tas resistências, que o relato referente a minhas proposições ficou
prejudicado de ponta a ponta.
Entretanto, meu pensamento entrara irrevogavelmente em ação, e
com ele prossegui neste trabalho, que é o seu resultado2.
Tencionei começar pelos problemas que acreditava serem, ao
mesmo tempo, os mais urgentes e os mais importantes, e indicar o
caminho para analisá-los.
Tencionei começar pelas finalidades e mostrar como o ensino -
primário, secundário, superior - podia servir a essas finalidades.
Tencionei demonstrar como a solução dos problemas e sua sub-
missão às finalidades deveriam levar, necessariamente, à reforma do
pensamento e das instituições.
Os que não me leram e julgam-me segundo o "disse-me-disse" do
microcosmo atribuem-me a idéia bizarra de uma poção mágica,
chamada complexidade, como remédio para todos os males do espírito. Ao
contrário, a complexidade, para mim, é um desafio que sempre me propus
a vencer.

Este livro é dedicado, de fato, à educação e ao ensino, a uni só tempo.
Esses dois termos, que se confundem, distanciam-se igualmente.
"Educação" é uma palavra forte: "Utilização de meios que permitem
assegurar a formação e o desenvolvimento de um ser humano; esses
próprios meios". (Robert) 0 termo "formação", com suas conotações de
moldagem e conformação, tem o defeito de ignorar
1 O relato dessas jornadas foi publicado sob o título Rder les connaissances; Seuil, 1999.
2 Agradeço a Jean-Louis Le Moigne e Christiane Peyron-Bonjan, que contribuí
que a missão do didatismo é encorajar o autodidatismo, despertando,
provocando, favorecendo a autonomia do espírito.
0 "ensino", arte ou ação de transmitir os conhecimentos a um
aluno, de modo que ele os compreenda e assimile, tem um sentido
mais restrito, porque apenas cognitivo.
A bem dizer, a palavra "ensino" não me basta, mas a palavra
"educação" comporta um excesso e uma carência. Neste livro, vou
deslizar entre os dois termos, tendo em mente um ensino educativo.
A missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma
cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e
que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre.
Kleist tem muita razão: "0 saber não nos torna melhores nem
mais felizes."
Mas a educação pode ajudar a nos tornarmos melhores, se não
mais felizes, e nos ensinar a assumir a parte prosaica e viver a parte
poética de nossas vidas.


CAPÍTULO I
OS DESAFIOS
"Nossa Universidade atual forma, pelo mundo afora, uma pro-
porção demasiado grande de especialistas em disciplinas prede-
terminadas, portanto artificialmente delimitadas, enquanto
uma grande parte das atividades sociais, como o próprio desen-
volvimento da ciência, exige homens capazes de um ângulo de
visão muito mais amplo e, ao mesmo tempo, de um enfoque dos
problemas em profundidade, além de novos progressos que
transgridam as fronteiras históricas das disciplinas."
LICHNEROWICZ
HÁ INADEQUAÇÃO cada vez mais ampla, profunda e grave
entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados
entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez
mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacio
nais, globais, planetários.
Em tal situação, tornam-se invisíveis: -
os conjuntos complexos;
- as interações e retroações entre partes e todo; - as
entidades multidimensionais; - os problemas
essenciais.

De fato, a hiperespecialização' impede de ver o global (que ela
fragmenta em parcelas), bem como o essencial (que ela dilui). Ora,
t ... ou seja, a especialização que se fecha em si mesma sem permitir sua integração em
uma problemática global ou em uma concepção de conjunto do objeto do -- qual ela
considera apenas um aspecto ou uma parte.
13




EDGAR MORIN
A CABEÇA BEM-FEITA
os problemas essenciais nunca são parceláveis, e os problemas globais são
cada vez mais essenciais. Além disso, todos os problemas particulares só
podem ser posicionados e pensados corretamente em seus contextos; e o
próprio contexto desses problemas deve ser posicionado, cada vez mais, no
contexto planetário.
Ao mesmo tempo, o retalhamento das disciplinas torna impossível
apreender "o que é tecido junto", isto é, o complexo, segundo o sentido
original do termo.
Portanto, o desafio da globalidade é também um desafio de
complexidade_ Existe complexidade, de fato, quando os componentes que
constituem uni todo (como o econômico, o político, o sociológico, o
psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido
interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o
todo e as partes. Ora, os desenvolvimentos próprios de nosso século e
de nossa era planetária nos confrontam, inevitavelmente e com mais e mais
freqüência, com os desafios da complexidade.
Como disseram Aurelio Peccei e Daisaku Ikeda: "0 approach
reducionista, que consiste em recorrer a uma série de fatores para regular
a totalidade dos problemas levantados pela crise multiforme, que
atravessamos atualmente, é menos uma solução que o próprio problema."2
Efetivamente, a inteligência que só sabe separar 1fragmenta
o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona c,'
problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as
possilidades de
compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um
julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiencia
para tratar nossos problemas mais graves constitui um dos mais graves
problemas que enfrentamos. De modo que, quanto mais os problemas se
tornam multidimensionais, maior a incapacidade de
2 Cri Xalarnx r le 21, siècle. Dialogue entre Daisaku Ikeda et Aurelio
Peccei,
pensar sua multidimensionalidade; quanto mais a crise
progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise
quanto mais planetários tornam-se os problemas, mais
impensáveis eles se tornam. Uma inteligência incapaz de
perceber o contexto e o complexo planetário fica cega,
inconsciente e irresponsável.
Assim, os desenvolvimentos disciplinares das ciências
não só trouxeram as vantagens da divisão do trabalho, mas
também os inconvenientes da superespecialização, do
confinarnento e do despedaçamento do saber. Não só
produziram o conhecimento e a elucidação, mas também a
ignorância e a cegueira
Em vez de corrigir esses desenvolvimentos, nosso sistema de
ensino obedece a eles. Na escola primária nos ensinam a isolar
os objetos (de seu meio ambiente), a separar as disciplinas (em
vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os problemas,
em vez de reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o
complexo ao simples, isto é, a separar o que está ligado; a
decompor, e não a recompor, e a eliminar tudo que causa
desordens ou contradições em nosso entendimento3. _
Em tais condições, as mentes jovens perdem suas aptidões
naturais para contextualizar os saberes e integrá-los em seus
conjuntos.
Ora, o conhecimento pertinente é o que é capaz de situar
qualquer informação em seu contexto e, se possível, no conjunto
em que está inscrita. Podemos dizer até que o conhecimento
progride não tanto por sofisticação, formalização e abstração,
mas, principalmente, pela capacidade de contextualizar e
englobar. Assim, a ciência econômica é a ciência humana mais
sofisticada e a mais formalizada. Contudo, os economistas são
incapazes de estar de acordo sobre suas predições , geralmente
errôneas.
3 0 pensamento que recorta, isola, permite que
especialistas e experts tenham ótimo desempenho eni seus
compartimentos, e cooperem eficazmente nos setores não
complexos de conhecimento, notadamente os que
concernem ao funcionamento das máquinas artificiais;
mas a lógica a que eles obedecem estende à sociedade e às
relações humanas os constrangimentos e os mecanismos
inumanos da máquina artificial e sua visão determinista,
mecanicista, quantitativa, formalista; e
o pensamento que recorta, isola, permite que especialistas e experts tenham ótimo desempenho
em seus compartimentos, e cooperem eficazmente nos
setores não complexos de conhecimento, notadamente os que concernem ao funcionamento
das máquinas artificiais; mas a lógica a que eles obedecem
estende à sociedade e às relações humanas os constrangimentos e os mecanismos inumanos
da máquina artificial e sua visão determinista, mecanicista,
quantitativa, formalista; e ignora, oculta ou dilui tudo que é subjetivo, afetivo,
livre, criador.


Porquê? Porque a ciência econômica está isolada das outras dimensões
humanas e sociais que lhe são inseparáveis. Como diz Jean-Paul Fitoussi, "muitos
desfuncionamentos procedem, hoje, de uma mesma fraqueza da política econômica:
a recusa a enfrentar a complexidade..."4 . A política econômica é a mais
incapaz de perceber o que não é quantificável, ou seja, as paixões e as necessidades humanas.
De modo que a economia é, ao mesmo tempo, a ciência mais
avançada matematicamente e a mais atrasada humanamente. Hayek dizia:
"Ninguém pode ser uma grande economista se for somente um economista."
Chegava até a acrescentar "um economista é tornar-se prejudicial e pode constituir
um verdadeiro perigo".
Devemos, pois, pensar o problema do ensino, considerado, por um lado , os efeitos cada
vez mais graves da compartimentação dos saberes e da
incapacidade de articula-los, uns aos outros; por outro lado, considerando que a aptidão
para constextualizar e integrar é uma qualidade fundamental da
mente humana, que precisa ser desenvolvida, e não atrofiada.

Por detrás do desafio do global e do complexo, esconde-se um outro desafio:
o da expansão descontrolada do saber. O crescimento ininterrupto dos
conhecimentos cosntrói uma gigantesca torre de Babel, que murmura linguagens discordantes.
A torre nos domina porque não podemos dominar nossos
conhecimentos. T. S. Eliot dizia: "Onde está o conhecimento que perdemos na informação?"
O conhecimento só é conhecimento enquanto organização,
relacinado com as informações e inserido no contexto destas. As informações constituem parcelas dispersas de saber. Em toda parte, nas ciênciascomo
nas mídias, estamos afogados em informações da disciplina mais restrita
não chega sequer a tomar conhecimento das informações concernentes a sua
área. Cada vez mais, a gigantesca proliferação de conhecimentos escapa ao controle humano.

Além disso, como já dissemos, os conhecimentos fragmentados só servem para usos técnicos.
Não conseguem conjugar-se para alimentar um pensamento
capaz de considerar a situação humana no âmago da vida, na terra, no mundo,
e de enfrentar os grandes desafios de nossa época. Não conseguimos
integrar nossos conhecimentos para a condução de nossas vidas.
Daí o sentido da segunda parte da frase de Eliot "Onde está a sabedoria que perdemos no
conhecimento?"

Os três desafios que acabamos de destacar levam-nos ao problema
essencial da organização do saber, de que trataremos no próximos capítulo.
Assinalemos, agora, os desafios encadeados que resultam desses três desafios.

O desafio Cultural

A cultura, daqui em diante, está não só recortada em peças destacadas, como também
partida em dois blocos. A grande separação entre a cultura das
humanidades e a cultura científica, iniciada no século passado e agravada
neste século XX, desencadeia sérias conseqüências para ambas. A cultura
humanística é uma cultura genérica, que, pela via da filosofia, do ensaio,
do romance, alimenta a inteligência geral, enfrenta as grandes interrogações
humanas, estimula a reflexão sobre o saber e favorece a integração pessoal dos conhecimentos.
A cultura científica, bem diferente por natureza, separa as
áreas do conhecimento; acarreta admiráveis descobertas, teorias geniais,
mas não uma reflexão sobre o destino humano e sobre o futuro da própria
ciência. A cultura das humanidades tende a se tornar um moinho despossuído do grão das
conquistas científicas sobre o mundo e sobre a vida, que deveria
alimentar suas grandes interroga-

18
ções; a segunda, privada da reflexão sobre os problemas gerais e globais,
torna-se incapaz de pensar sobre si mesma e de pensar os problemas
sociais e humanos que coloca.
0 mundo técnico e científico vê na cultura das humanidades
apenas uma espécie de ornamento ou luxo estético, ao passo que ela
favorece o que Simon chamava de general problem solving, isto é, a
inteligência geral que a mente humana aplica aos casos particulares. 0
mundo das humanidades vê na ciência apenas um amontoado de
saberes abstratos ou ameaçadores.


0 desafio sociológico

A área submetida aos três desafios estende-se incessantemente
com o crescimento das características cognitivas das atividades
econômicas, técnicas, sociais, políticas, sobretudo com os
desenvolvimentos generalizados e múltiplos do sistema neurocerebral
artificial, impropriamente denominado informática, posto em
simbiose com todas as nossas atividades. E assim cada vez mais:
-a informação é uma matéria-prima que o conhecimento deve
dominar e integrar;
- o conhecimento deve ser permanentemente revisitado e revisado
pelo pensamento;
- o pensamento é, mais do que nunca, o capital mais precioso para
o indivíduo e a sociedade.

0 desafio cívico

0 enfraquecimento de uma percepção global leva ao enfraque-
cimento do senso de responsabilidade - cada um tende a ser responsável
apenas por sua tarefa especializada -, bem como ao enfraquecimento da
solidariedade - ninguém mais preserva seu elo orgânico com a cidade e
seus concidadãos
Existe um déficit demográfico crescente, devido à apropriação de
um número crescente de problemas vitais pelos experts, especialistas e
técnicos.
0 saber tornou-se cada vez mais esotérico (acessível somente aos
especialistas) e anônimo (quantitativo e formalizado). 0 conheci-
mento técnico está igualmente reservado aos experts, cuja competência
em um campo restrito é acompanhada de incompetência quando este
campo é perturbado por influências externas ou modificado por um
novo acontecimento. Em tais condições, o cidadão perde o direito ao
conhecimento. Tem o direito de adquirir um saber especializado com
estudos ad hoc, mas é despojado, enquanto cidadão, de qualquer ponto
de vista globalizante ou pertinente. Se ainda é possível discutir num
bar a conduta da chefia do Estado, já não é possível compreender o
que deflagra o crash asiático, assim como o que impede esse crash de
provocar uma crise maior; de resto, os próprios experts estão
profundamente divididos sobre o diagnóstico e a política econômica a
seguir. Se era possível acompanhar a Segunda Guerra Mundial pelas
bandeirinhas fincadas no mapa, não é possível conceber os cálculos e as
simulações dos computadores que executam os planos da guerra
futura. A arma atômica deixou o cidadão inteiramente desprovido da
possibilidade de pensá-la e controlá-la. Sua uti
lização está entregue unicamente à decisão do chefe de Estado, sem
qualquer consulta a alguma instância democrática regulamentar.
Quanto mais técnica torna-se a política, mais regride a competência
democrática.
A continuação do processo técnico-científico atual - processo cego,
aliás, que escapa à consciência e à vontade dos próprios cientistas - leva a
uma grande regressão da democracia. Assim, enquanto o expert perde a
aptidão de conceber o global e o fundamental, o cidadão perde o
direito ao conhecimento. A partir daí, a perda do saber, muito mal
compensada pela vulgarização da mídia, levanta o problema histórico,
agora capital, da necessidade de uma democracia cognitiva.
19


Atualmente, é impossível democratizar um saber fechado e esotérico
por natureza. Mas, a partir daí, não seria possível conceber uma
reforma do pensamento que permita enfrentar o extraordinário desafio
que nos encerra na seguinte alternativa: ou sofrer o bombardeamento de
incontáveis informações que chovem sobre nós, quotidianamente, pelos
jornais, rádios, televisões; ou, então, entregarmonos a doutrinas que só
retêm das informações o que as confirma ou o que lhes é inteligível, e
refugam como erro ou ilusão tudo o que as desmente ou lhes é
incompreensível. É um problema que se coloca não somente ao
conhecimento do mundo no dia-a-dia, mas também ao conhecimento de
tudo o que é humano e ao próprio conhecimen
to científico.


0 desafio dos desafios

Um problema crucial de nossa época é o da necessidade de destacar
todos os desafios interdependentes que acabamos de levantar.
A reforma do pensamento é que permitiria o pleno emprego da inteligência
para respondera esses desafios e permitiria a ligação de duas culturas dissociad
s. Trata-se de uma reforma não programática, mas paradigmática,
concernente a nossa aptidão para organizar o conhecimento.
Todas as reformas concebidas até o presente giraram em torno
desse buraco negro em que se encontra a profunda carência de nossas
mentes, de nossa sociedade, de nosso tempo e, em decorrência, de
nosso ensino. Elas não perceberam a existência desse buraco negro, porque
provêm de um tipo de inteligência que precisa ser reformada.
A reforma do ensino deve levar à reforma do pensamento, e a
reforma do pensamento deve levar à reforma do ensino.
P
A RIMEIRA FINALIDADE do ensino foi formulada por Montaigne:
mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia. O significado de "uma
cabeça bem cheia" é óbvio: é uma cabeça onde o saber é acumulado,
empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que lhe
dê sentido. "Uma cabeça bem-feita' significa que, em vez de acumular o
saber, é mais importante dispor ao mesmo tempo de:
- uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas;
- princípios organizadores que permitam ligar os saberes e lhes dar
sentido.


A aptidão geral

Lembremos que o espirito humano, como dizia H. Simon, é um
GPS, general problems setting and solving.
Contrariamente à opinião hoje difundida, o desenvolvimento
CAPÍTULO 2
A CABEÇA BEM-FEITA
"Não se ensinam os homem a serem homens honestos, mas
ensina-se tudo o mais."
PASCA
L
"A finalidade de nossa escola é ensinar a repensar o pensamento, a
`des-saber' o sabido e a duvidar de sua própria dúvida; esta é a única
maneira de começara acreditar em alguma coisa."
JUAN DE MAIRENA
20
21

EDGAR MORIN
das aptidões gerais da mente permite o melhor desenvolvimento das
competências particulares ou especializadas. Quanto mais desenvolvida
é a inteligência geral, maior é sua capacidade de tratar problemas
especiais. A educação deve favorecer a aptidão natural da mente para
colocar e resolver os problemas e, correlativamente, estimular o pleno
emprego da inteligência geral.
Esse pleno emprego exige o livre exercício da faculdade mais
comum e mais ativa na infância e na adolescência, a curiosidade,
que, muito freqüentemente, é aniquilada pela instrução,, quando, ao
contrário, trata-se de estimulá-la ou desperta-la, se estiver ador-
mecida. Trata-se, desde cedo, de encorajar, de instigar a aptidão
interrogativa e orientá-la para os problemas fundamentais de nossa
própria condição e de nossa época.
É evidente que isso não pode ser inserido em um programa, só
pode ser impulsionado por um fervor educativo.


0 desenvolvimento da inteligência geral requer que seu exercício
seja ligado à dúvida2, fermento de toda atividade crítica, que, como
assinala Juan de Mairena, permite "repensar o pensamento", mas
comporta também "a dúvida de sua própria dúvida". Deve
recorrer à ars cogitandi, a qual inclui o bom uso da lógica, da dedução,
da indução - a arte da argumentação e da discussão. Comporta também
essa inteligência que os gregos chamavam de métis3, "conjunto de
atitudes mentais... que conjugam o `faro', a sagacidade, a previsão, a
leveza de espírito, a desenvoltura, a atenção constante, o
senso de oportunidade". Enfim, seria preciso partir de Voltaire e
1 Recordemos o caráter trágico da extinção progressiva da curiosidade durante os anos de
formação, ou sua limitação a um pequeno setor, que será o da especialização do adulto.
2 Montaigne, citando Dante: "Che non men que saper dubbiar m aggrada" (tanto quanto
o saber, agrada-me a dúvida).
3 M. Detienne e J.-P. Vernant, Ler Ruses de 1'intelligence. La métis des Grecs,
Flammarion, 1974, col. "Champs", 1986.
A CABEÇA BEM-FEITA
Conan Doyle, e, mais adiante, estudar a arte do paleontólogo ou do
arqueólogo, para se iniciar na serendipididade- arte de transformar
detalhes, aparentemente insignificantes, em indícios que permitam
reconstituir toda uma história.
Como o bom uso da inteligência geral é necessário em todos os
domínios da cultura das humanidades - também da cultura científica -
e, é claro, na vida, em todos esses domínios é que será preciso
valorizar o "pensar bem", que não leva absolutamente a formar um
bem-pensante.

0 ensino matemático, que compreende o cálculo, é claro, será
levado aquém e além do cálculo. Deverá revelar a natureza intrinse-
camente problemática das matemáticas. 0 cálculo é um instrumento
do raciocínio matemático, que é exercido sobre o problem settinge o
problem solving, em que se trata de exibir "a prudênciaconsumada e a
lógica implacável"4. No decorrer dos anos de aprenditG.ar;em, seria preciso
valorizar, progressivamente, o dialogo entre o llbt:nsamento matemático
e o desenvolvimento dos conhecimentos eciíen,íficos, e, finalmente, os
limites da formalização e da quantificação.
A filosofia deve contribuir eminentemente para o desenvolvi-
mento do espírito problematizador. A filosofia é, acima de tudo,
uma força de interrogação e de reflexão, dirigida para os grandes
problemas do conhecimento e da condição humana. A filosofia, hoje
retraída em uma disciplina quase fechada em si mesma, deve retomar
a missão que foi a sua - desde Aristóteles a Bergson e Husserl - sem,
contudo, abandonar as investigações que lhe são próprias. Também o
professor de filosofia, na condução de seu ensino, deveria estender
seu poder de reflexão aos conhecimentos científicos, bem como à
literatura e à poesia, alimentando-se ao mesmo tempo de ciência e de
literatura.
4 Lautréamont. Chants dr Maldoror. in Guvres compl?tes, Losfeld, 1971, p. 114.
23

24
A organização dos conhecimentos
Urna cabeça bem-feita é uma cabeça apta a organizar os conhe-
cimentos e, com isso, evitar sua acumulação estéril.
Todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e
uma reconstrução, a partir de sinais, signos, símbolos, sob a forma de
representações, idéias, teorias, discursos. A organização dos
conhecimentos é realizada em função de princípi s e regras que não
cabe analisar aqui5; comporta operações de li ~ição (conjunção,
inclusão, implicação) e de separação (diferenciaçbo, oposição, seleção,
exclusão). 0 processo é circular, passando da separação à ligação, da
ligação à separação, e, além disso, da análise à síntese, da síntese à análise.
Ou seja: o conhecimento comporta, ao mesmo tempo, separação e ligação,
análise e síntese.
Nossa civilização e, por conseguinte, nosso ensino privilegiaram a
separação em detrimento da ligação, e a análise em detrimento da síntese.
Ligação e síntese continuam subdesenvolvidas. E isso, porque a
separação e a acumulação sem ligar os conhecimentos são privilegiadas
em detrimento da organização que liga os conhecimentos.
Como nosso modo de conhecimento desune os objetos entre si,
precisamos conceber o que os une. Como ele isola os objetos de seu
contexto natural e do conjunto do qual fazem parte, é uma necessidade
cognitiva inserir um conhecimento particular em seu contexto e situá-
lo em seu conjunto. De fato, a psicologia cognitiva demonstra que o
conhecimento progride menos pela sofisticação, formalização e
abstração dos conhecimentos particulares do que, sobretudo, pela
aptidão a integrar esses conhecimentos em seu contexto global. A partir
daí, o desenvolvimento da aptidüo para contextualizar egloba
lizar os saberes torna-se um imperativo da educação.
0 desenvolvimento da aptidão para contextualizar tende a pro
duzir a emergência de um pensamento "ecologizante", no sentido em
5 Cf. E. Morin, La Méthode, t. 3: La Connaissance de la connaiuance e t. 4: Lis ldées, 9d-
.du Seuil. "Points Fscais" n° 236 e 303.
que situa todo acontecimento, informação ou conhecimento em
relação de inseparabilidade com seu meio ambiente - cultural,
social, econômico, político e, é claro, natural. Não só leva a situar um
acontecimento em seu contexto, mas também incita a perceber como
este o modifica ou explica de outra maneira. Um tal pensamento tor
na-se, inevitavelmente, um pensamento do complexo, pois não bas
ta inscrever todas as coisas ou acontecimentos em um "quadro" ou
uma "perspectiva'. Trara-se de procurar sempre as relações e inter
retro-ações entre cada fenômeno e seu contexto, as relações de reci
procidade todo/partes: como uma modificação local repercute sobre
o todo e como uma modificação do todo repercute sobre as partes.
Trata-se, ao mesmo tempo, de reconhecer a unidade dentro do diver
so, o diverso dentro da unidade; de reconhecer, por exemplo, a uni-
dade humana em meio,às diversidades individuais e culturais, as
diversidades individuais e culturais em meio à unidade humana.
Enfim, um pensamento unificador abre-se de si mesmo para o
contexto dos contextos: o contexto planetário.
Para seguir por esse caminho, o problema não é bem abrir as
fronteiras entre as disciplinas, mas transformar o que gera essas fron-
teiras: os princípios organizadores do conhecimento.
Pascal já formulara a necessidade de ligação, que hoje é o caso de
introduzir em nosso ensino, a começar pelo primário: "Sendo todas as
coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e
todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as mais
distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem
conhecer o todo, assira como conhecer o todo sem conhecer,
particularmente, as partes..." (Pensamentos, Ed. Brunschvicg, II, 72). Para
pensar localizadamente, é preciso pensar globalmente, como para pensar
globalmente é preciso pensar localizadamente.
0 problema chave permanece: quais são os princípios que pode
riam elucidar as relações de reciprocidade entre partes e todo, bem como
reconhecer o elo natural e insensível que liga as coisas mais dis- 25
tantes e as mais diferentes Quais são as maneiras de pensar que per-

26
EDGAR MORIN
mitiriam conceber que uma mesma coisa possa ser causada e causa-
dora, ajudada e ajudante, mediata e imediata? No capítulo 8, "A
reforma do pensamento", vamos indicá-las, sucintamente.
Um novo espirito científico
A segunda revolução científica do século XXI pode contribuir,
atualmente, para formar uma cabeça bem-feita. Essa revolução,
iniciada em várias frentes dos anos 60, gera grandes desdobramentos
que levam a ligar, contextualizar e globalizar os saberes até então
fragmentados e compartimentados, e que, daí em diante, permitem
articular as disciplinas, umas as outras, de modo mais fecundo.
0 desenvolvimento anterior das disciplinas científicas, tendo
fragmentado e compartimentado mais e mais o campo do saber,
demoliu as entidades naturais sobre as quais sempre incidiram as
grandes interrogações humanas: o cosmo, a natureza, a vida e, a
rigor, o ser humano. As novas ciências, Ecologia, ciências da Terra,
Cosmologia, são poli ou transdisciplinares: têm por objeto não um
setor ou uma parcela, mas um sistema7 complexo, que forma um
6 ... a primeira teria irrompido na microfisica, no início do século (cf. cap. 5, p. 56).
7 A idéia
sistêmica começou, na segunda rjtetade de nosso século, a minar progressivamente a validade
de um conhecimento reducionista. Formulada por Bertalanffy, ao longo dos anos 50, a teoria
geral dos si temas, que parte do fato de que a maior parte dos objetos da física, da
astronomia, a biologia, da sociologia, átomos, moléculas, células, organismos, sociedades,
astros, galáxias formam sistemas, ou seja, conjuntos de partes diversas que constituem
um todo organizado, retomou a idéia, freqüentemente formulada no passado, de que um
rodo é mais que o conjunto das panes que o compõem. Na mesma época, a cibernética
estabelecia os primeiros princípios concernentes à organização das máquinas que
dispunham de programas informatizados e de dispositivos reguladores, cujo conhecimento
não podia ser reduzido ao de suas partes constitutivas. Como destacamos (La Méthode, t.
1: La Nature de Ia nature, Éd. du Seuil, "Points Essais", n? 123, particularmente, pp.
101116), a organização em sistema produz qualidades ou propriedades desconhecidas das
partes concebidas isoladamente: as emergência£. Assim, as propriedades do ser vivo são
desconhecidas na medida de seus constituintes moleculares isolados; elas
A CABEÇA BEM-FEITA
todo organizador$. Realizam o restabelecimento dos conjuntos cons-
tituídos, a partir de interações, retroações, inter-retroações, e consti-
tuem complexos que se organizam por si próprios. Ao mesmo tempo,
ressuscitam entidades naturais: o Universo (Cosmologia), a Terra
(ciências da Terra), a natureza (Ecologia), a humanidade (pela visão em
perspectiva da nova Pré-história do processo multimilenar de
hominização).
Assim, todas essas ciências rompem o velho dogma reducionista de
explicação pelo elementar: elas tratam de sistemas complexos onde
as partes e o todo produzem e se organizam entre si e, no caso da
Cosmologia, uma complexidade que ultrapassa qualquer sistema.
Já existiam ciências multidimensionais, como a Geografia, que
vai da Geologia aos fenômenos econômicos e sociais. Existem ciências
que se tornaram poliscópicas, como a História, e ciências que já o eram,
como a ciência das civilizações (Islã, índia, China). Agora, surgiram
novas ciências "sistêmicas": Ecologia, ciências da Terra,
Cosmologia.
ECOLOGIA


A idéia de sistema foi introduzida e impôs-se, sob a forma de
ecossistema, em uma ciência que, fundada no final do século XIX,
conheceu um prodigioso desenvolvimento a partir do início dos
anos de 1960: a Ecologia. A noção de ecossistema significa que o
conjunto das interações entre populações vivas no seio de uma determinada
unidade geofísica constitui uma unidade complexa de caráter
organizador: um ecossistema. Como é sabido, a partir dos anos
emergem nesta e para esta organização. A rotina, fruto da ciência disciplinar, era tão forte,
que, por muito tempo, o pensamento sistêmico permaneceu afastado das ciências, tanto
naturais como humanas, e, ainda hoje, é marginalizado. 8 Como indicamos antes (La
Méthode t. 1, op. cit., pp. 94-106), as noções de sistema e de organização remetem uma
à outra.
27

28
EDGAR MORIN
70 a pesquisa ecológica estendeu-se à biosfera corno um todo, sendo esta
concebida como um megassistema auto-regulador que admite em seu
âmago os desenvolvimentos técnicos e econômicos propriamente
humanos que passam a perturbá-lo.
A Ecologia, que tem um ecossistema como objeto de estudo,
recorre a múltiplas disciplinas físicas para apreender o biotopo e às di
ciplinas biológicas (Zoologia, Botânica, Microbiologia) para estuda a
biocenose. Além disso, precisa recorrer às ciências a biosfera. pa :i
analisar as interações entre o mundo humano
Assim, disciplinas extremamente distintas são associadas e orquestra
das na ciência ecológica.
CIÊNCIAS DA TERRA
Nos anos 60, depois da descoberta da teoria tectônica das placas,
sdiências da Terra percebem nosso planeta como um sistema cor
exo que se autoproduz e se auto-organiza; articulam-se com disciilinas
outrora isoladas, como a Geologia, a Meteorologia, a
Vulcanología, a Sismologia. Sugerem que a diminuição de peso na
extremidade continental do sudeste asiático, sob o efeito da erosão
anual devida aos ciclones, pode provocar um contrbalanceamento no
oeste da Anatólia e um empuxo causador de tremores de terra ou
erupções vulcânicas na Grécia e na Itália.
Encaminhamo-nos, como propõe vivamente Westbroek9, para
uma concepção geobiofisica da Terra, em que os caracteres físicos de
origem biológica (o oxigênio do ar, o calcário etc.) estão integrados
como sistema e onde a vida não é apenas um produto, mas também
um agente da física terrestre.
0 desenvolvimento das ciências da Terra e da Ecologia revitalizam
a Geografia, ciência complexa por princípio, uma vez que
9 Peter Westbroek, Vive la Terre. Physiologic dune planète, Ed. du Seuil, 1998.
abrange a física terrestre, a biosfera e as im antaçoes humanas.
Marginalizada pelas disciplinas vitoriosas, privada do pensamento
organizador - que vai além do possibilismo de Vidal de La Blache, ou do
determinismo de Ratzell -, a Geografia, que, de resto, forneceu
profissionais à Ecologia, reencontra suas perspectivas multidi-
mensionais, complexas e globalizanteslo. Desenvolve seus pseudópodes
geopolíticos11 e reassume sua vocação originária: como diz JeanPierre
Allix, "somos necessariamente generalizadores"12. A Geografia amplia-se
em Ciência da Terra dos homens.


COSMOLOGIA

O cosmo fora liquidado no início do século XX pelo conceito
einsteiniano de espaço-tempo. Sua ressurreição tem início com a
descoberta de Hubble da dispersão das galáxias, a hipótese do átomo
primitivo de Lemaitre, e é concluída nos anos 60, notadamente
depois da descoberta da radiação isótropa que vem de todos os pontos do
Universo e pode ser interpretada como o resíduo fóssil de um
acontecimento térmico inicial. A partir daí, impõe-se o conceito de um
cosmo único, em evolução. Para conhecer esse cosmo e conceber,
sobretudo, a formação dos nódulos, dos átomos, e as inter-retroações
no interior dos astros, a observação astrofísica é associada aos
resultados das experiências microfisicas, isto é, a disciplina do in-
finitamente grande à disciplina do infinitamente pequeno; a exemplo
de Pascal, alguns cosmólogos, meditando sobre a situação humana entre
esses dois infinitos, tentam introduzir a possibilidade da vida e da
consciência em sua idéia de cosmo (princípio antrópico).
to Cf. Jacques Levy, Le Monde pour eh debate corn Aged Valladao, Hachette, 1996.
Michel Roux, Geographic et complarité, L'Harmartin, 1999. u Cf. Yves Lacoste,
Dictionnairedegeopditique, Elamimwon, 1995. 1Z L Espace humain, Une invitation a la
geigraphic Ed- du Seuil, 1996.
29




EDGAR MORIN
Assim, a partir daí, disciplinas distintas (astronomia de observação,
física, microffsica, matemática), além de uma reflexão quase filosófica,
são utilizadas de maneira reflexiva para permitir, tanto quanto possível,
uma inteligibilidade de nosso Universo.
Infelizmente, a revolução das recomposições multidisciplinares está
longe de ser generalizada e, em muitos setores, sequer teve início,
notadamente no que concerne ao ser humano, vítima da grande
disjunção natureza/cultura, animalidade/humanidade, sempre des-
membrado entre sua natureza de ser vivo, estudada pela biologia, e sua
natureza física e social, estudada pelas ciências humanas.
Contudo, a nova Pré-história, desde as descobertas feitas por
Louis e Mary Leakey na garganta do Olduvai, em 1959, permite
efetuar a primeira ligação, que forma um nó górdio entre o biológico
e o humano: como ciência polidisciplinar e poliscópica, ela procura
compreender a hominização, aventura de alguns milhões de anos,
que realiza a passagem do animal ao humano e a da natureza à cultura.
Precisa recorrer à Ecologia (mudanças climáticas que estimularam a
hominização), à Genética (mutações sucessivas do australopteco ao
Homo sapiens), à Anatomia (o elo entre a bipedização e a
manualização, a postura ereta do corpo, a modificação do crânio); às
ciências neurológicas (crescimento e reorganização do cérebro); à
Sociologia (transformação de uma sociedade de primatas em sociedade
humana), às teorias de Bolk (o adulto conserva os caracteres não
especializados do embrião e os caracteres fisiológicos da juventude)13.
Ata-se, então, o primeiro elo indissolúvel entre ciências da vida e
ciências humanas.
13 Cl.Ê as indicações in Le Paradigme perdu, "Points Essais", n° 109.
A CABEÇA BEM-FEITA
Nas ciências cognitivas, um outro elo é pesquisado entre o cérebro,
órgão biológico, a mente, entidade antropológica, e o computador,
inteligência artificial. Mas, até o presente, há mais justaposição que
ligação, e menos busca de uma linguagem comum que conflitos entre
disciplinas de pretensão hegemônica: ciências neurológicas, ciências
físicas, teorias oriundas da informação, cibernética, conceitos de auto-
organização a partir de redes de conexão etc. 0 mais grave é que as
ciências cognitivas, que aglutinam disciplinas "normais", próprias da
ciência clássica, ignoram seu problema crucial: o objeto de seu
conhecimento é da mesma natureza que seu instrumento de
conhecimento. De modo que as ciências cognitivas constituem uma
primeira etapa de agregação, à espera da grande virada.

No que diz respeito às ciências da vida e às ciências do homem, a
situação é bem diferente. Os prodigiosos progressos da Biologia
Molecular e da Genética permitem conceber o elo entre Física,
Química e Biologia, pois é pela organização, e não pela matéria, que a
vida se diferencia do mundo físico-químico. Mas essa organização é
concebida de maneira reducionista, quando simplificada em um
único movimento ADN - ARN - proteínas. De fato, existem hiatos,
até agora não preenchidos, entre Biologia Molecular, de um lado, e
Etologia ou Parasitologia, do outro. Enquanto a Biologia Molecular
esforça-se para reduzir todo comportamento vivo alTnovimentos
genético-químicos, em uma outra perspectiva das ci •ncias biológicas
desenvolveu-se uma visão etológica que põe a descoberto a
complexidade das estratégias, não apenas animais, mas também
vegetais, a inteligência e a complexidade das relações entre macacos
superiores, sobretudo os chimpanzés, a existência não de hordas,
mas de verdadeiras sociedades, entre mamíferos; quanto à Parasito-
logia, ela descobre estratagemas surpreendentes nos parasitas, que se
infiltram de uma espécie a outra, sem que esse comportamento tão
complicado possa ser reduzido a um acaso genético.
31



Assim, as ciências biológicas progridem em múltiplas frentes, mas
essas frentes não estão coordenadas umas às outras e levam a idéias
divergentes. A confederação biológica está longe de ser concretizada: falta-
lhe a ligação decisiva - a idéia de auto-organização.

Além disso, mesmo as ciencias especificamente humanas
são compartimentadas: História, Sociologia, Economia,
Psicologia, ciências do imaginário, mitos e crenças só se comunicam em
alguns pesquisadores marginais. Contudo, a História tende a tornar-se
uma ciência multidimensional, quando integra, em si mesma, a
dimensão econômica, a antropológica (o conjunto de mores, costumes,
ritos concernentes à vida e à morte), e reintegra o acontecimento,
depois de achar que devia aboli-lo como epifenômeno. A História,
como bem acusa André Burguicre14, tende a tornar-se ciência da
comple
xidade humana.
0 imperativo
Assim, as grandes recomposições sofrem enormes atrasos justamente
onde ainda reina a redução e a compartimentação. Mas a Cosmologia,
as ciências da Terra, a Ecologia, a Pré-hist6ria, a nova História
permitem articular, umas às outras, disciplinas até então isoladas.
Permitem responder, cada qual em sua área e a sua manei
ra, ao imperativo de Pascal.
Com esse novo espírito científico, pode-se pensar também que uma
verdadeira reforma do pensamento está a caminho, porém de modo
muito desigual...
Ê nessa mentalidade que se deve investir, no propósito de favorecer a
inteligência geral, a aptidão para problematizár, a realização
14 André Burgui'ere, "De l'histoire évolutionniste à l'histoire complex,", in Relier les
connaiuance, Éd. du Seuil, 1999. - -
A CABEÇA BEM-FEITA
da ligação dos conhecimentos. A esse novo espírito científico será
preciso acrescentar a renovação do espírito da cultura das humanidades.
Não esqueçamos que a cultura das humanidades favorece a apti
dão para a abertura a todos os grandes problemas, para meditar sobre o
saber e para integrá-lo à própria vida, de modo a melhor explicar,
correlativamente, a própria conduta e o conhecimento de si.
Assim, podemos imaginar os caminhos que permitiriam descobrir,
em nossas condições contemporâneas, a finalidade da cabeça bem-
feita. Tratar-se-ia de um processo contínuo ao longo dos diversos níveis
de ensino, em que a cultura científica e a cultura das humanidades
poderiam ser mobilizadas.
Uma educação para uma cabeça bem-feita, que acabe com a dis-
junção entre as duas culturas, daria capacidade para se responder aos
formidáveis desafios da globalidade e da complexidade na vida quo-
tidiana, social, política, nacional e mundial.
É imperiosamente necessário, portanto, restaurar a finalidade da
cabeça bem-feita, nas condições e com os imperativos próprios de
nossa época.
T
çsuro In:an-i,~ =~ Educac O. ÇiánG1a C ='cn.1Ioyia

BIBLIOTECA
33
I



A CONDIÇÃO HUMANA
"Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana." RoussEAu,
Emílio


A contribuição da cultura científica

O estudo da condição humana não depende apenas do ponto de
vista das ciências humanas. Não depende apenas da reflexão filosófica e
das descrições literárias. Depende também das ciências naturais
renovadas e reunidas, que são: a Cosmologia, as ciências da Terra e a
Ecologia.
O que essas ciências fazem é apresentar um tipo de conhecimento
que organiza um saber anteriormente disperso e compartimentado.
Ressuscitam o mundo, a Terra, a natureza - noções que nunca deixaram de
provocar o questionamento e a reflexão na história de nossa cultura - e, de
uma nova maneira, despertam questões fundamentais: o que é o mundo, o
que é nossa Terra, de onde viemos? Elas nos permitem ins rir e situar a
condição humana no cosmo, na Terra, na vida.
Estam s em um planeta minúsculo, satélite de um Sol de subúr
bio, astro pigmeu perdido entre milhares de estrelas da Via-láctea, ela
mesma galáxia periférica em um cosmo em expansão, privado de centro.
Somos filhos marginais do cosmo, formados de partículas, átomos,
moléculas do mundo físico. E estamos não apenas marginalizados, como
também perdidos no cosmo, quase estrangeiros, justa- 35 mente porque nosso
pensamento e nossa consuencia permitem que consideremos isto...





EDGAR MORIN
Assim como a vida terrestre é extremamente marginal no cosmo,
somos marginais na vida. 0 homem surgiu marginalmente no mundo
animal, e seu desenvolvimento marginalizou-o ainda mais. Somos
(aparentemente) os únicos seres vivos, na terra, que dispõem de um
aparelho neurocerebral hipercomplexo, e os únicos que dispõem de
uma linguagem de dupla articulação para comunicar-se, de indivíduo a
indivíduo. Os únicos que dispõem da c nsciência...
Abrir-se ao cosmo é entrar na aventura descon tida, onde talvez
sejamos, ao mesmo tempo, desbravadores e desviintes; abrir-se à physis é
ligar-se ao problema da organização das partículas, átomos, moléculas,
macromoléculas, que se encontram no interior das células de cada um de
nós; abrir-se para a vida é abrir-se também para as nossas vidas. As
ciências do homem retiraram toda significação biológica a estes
termos: ser jovem, velho, mulher, homem, nascer, existir, ter pai e mãe,
morrer - essas palavras remetem apenas a categorias socioculturais. Só
readquirem sentido vivo quando as conceituamos em nossa vida privada.
A Antropologia que exclui a vida de nossa vida privada é uma
Antropologia privada de vida.
A vida é um fungo que se formou nas águas e na superfície da
Terra. Nosso planeta gerou a vida que se desenvolveu de forma
líquida no mundo vegetal e animal; nós somos uma ramificação da
ramificação dessa evolução dos vertebrados, dos mamíferos, dos
primatas, portadores em nós das herdeiras, filhas, irmãs das pri
meiras células vivas. Pelo nascimento, participamos da aventura
biológica; pela morte, participamos da tragédia cósmica. 0 ser mais
corriqueiro, o destino mais banal participa dessa tragédia e dessa
aventura.
Michel Cassé, em um banquete no Castelo de Beychevelle,
quando um enólogo lhe perguntou o que um astrônomo via em seu
copo de vinho bordeaux, respondeu assim: "Vejo o nascimento do
Universo, pois vejo as partículas que se formaram nele nos primeiros
segundos. Vejo um Sol anterior ao nosso, pois nossos átomos de carbono
foram gerados no seio desse grande astro que explodiu. De
pois, esse carbono ligou-se a outros átomos nessa espécie de lixeira
cósmica em que os detritos, ao se agregarem, vão formar a Terra.
Vejo a composição das macromoléculas que se uniram para dar nas
cimento à vida. Vejo as primeiras células vivas, o desenvolvimento
do mundo vegetal, a domesticação da vinha nos países mediterrâ
neos. Vejo as bacanais e os festins. Vejo a seleção das castas, um cuidado
milenar em torno dos vinhedos. Vejo, enfim, o desenvolvimen
to da técnica moderna que hoje permite controlar eletronicamente a
temperatura de fermentação nas tinas. Vejo toda a história cósmica e
humana nesse copo de vinho, e também, é claro, toda a história
específica do bordelés."
Trazemos, dentro de nós, o mundo físico, o mundo químico, o mundo
vivo, e, ao mesmo tempo, deles estamos separados por nosso
pensamento, nossa consciência, nossa cultura. Assim, Cosmologia,
ciências da Terra, Biologia, Ecologia permitem situar a dupla
condição humana: natural e metanatural.
Conhecer o humano não é separá-lo do Universo, mas situá-lo
nele. Como vimos no capítulo anterior, todo conhecimento, para ser
pertinente, deve contextualizar seu objeto. "Quem somos nós?" é
inseparável de "Onde estamos, de onde viemos, para onde vamos?". Pascal
já nos havia situado, corretamente, entre dois infinitos, o que foi
amplamente confirmado no século XX pela dupla evolução da
Microfísica e da Astrofísica. Conhecemos hoje nosso duplo enraiza-
mento: no cosmo físico e na esfera viva.
Claro, novas descobertas ainda vão modificar nosso conhecimento,
mas, pela primeira vez na história, o ser humano pode reconhecer a
condição humana de seu enraizamento e de seu desenraizamento.
Em meio à aventura cósmica, no extremo do prodigioso desen-
volvimento de um ramo singular da auto-organização viva, prosseguimos, à
nossa maneira, na aventura da organização. Essa época cósmica da
organização, incessantemente sujeita às forças da desorganização e da
dispersão, é, também, a época da reunião, e só ela impediu que o cosmo
se dispersasse e desaparecesse, tão logo acabara de nas
37



EDGAR MORIN
cer. Nós, viventes, e, por conseguinte, humanos, filhos das águas, da
Terra e do Sol, somos um feto da diáspora cósmica,-algumas migalhas da
existência solar, uma ínfima brotação da existência terrestre.
Estamos, a um só tempo, dentro e fora da natureza. Somos seres,
simultaneamente, cósmicos, físicos, biológicos, culturais, cerebrais,
espirituais... Somos filhos do cosmo, mas, até em conseqüência de
nossa humanidade, nossa cultura, nosso espírito, nossa consciência,
tornamo-nos estranhos a esse cosmo do qual continuamos secreta-
mente íntimos. Nosso pensamento, nossa consciência, que nos fazem
conhecer o mundo físico, dele nos distanciam ainda mais.
À nossa ascendência cósmica, à nossa constituição física, temos de
acrescentar nossa implantação terrestre. A Terra foi produzida e
organizada na dependência do Sol, constituiu-se em complexo bio-
físico, a partir do momento em que sua biosfera se desenvolveu. Da
Terra nasceu, efetivamente, a vida e, na evolução multiforme da vida
multicelular, nasceu a animalidade; depois, o mais recente desenvol-
vimento de um ramo do mundo animal tornou-se humano. Nós
domamos a natureza vegetal e animal, pensamos ser senhores e
donos da Terra, os conquistadores, mesmo, do cosmo. Mas - como
começamos a tomar consciência - dependemos de modo vital da
biosfera terrestre e devemos reconhecer nossa muito física e muito
biológica identidade terrena.
De modo que podemos, ao mesmo tempo, integrar e distinguir o
destino humano dentro do Universo; e essa nova cultura científica
permite oferecer um novo e capital conhecimento à cultura geral,
humanística, histórica e filosófica, que, de Montaigne a Camus,
sempre levantou o problema da condição humana.

A Pré-história torna-se, mais e mais, ciência fundamental da
hominização. Esta traz em si o nó górdio animalidade/humanidade.
Efetivamente, o processo de hominização de 6 milhões de anos permite-
nos imaginar a emergência da humanidade a partir da animalidade. A
hominização é uma aventura ao mesmo tempo descontínua
A. CABEÇA BEM-FEITA
- aparecimento de novas espécies: habilis, erectus, neand.ertalensis,
sapiens, e desaparecimento das precedentes; surgimento da linguagem e
da cultura - e contínua, no sentido em que prossegue em um processo de
bipedização, de manualização, de empertigamento do corpo, de
cerebral ização 1, de juvenilizaçao (o adulto conserva os caracteres não
especializados do embrião2 e os caracteres fisiológicos
da juventude), de complexificação social, processo ao longo do qual
surge a linguagem propriamente humana, ao mesmo tempo em que se
constitui a cultura: patrimônio dos saberes, know-how, crenças, mitos
adquiridos e transmissíveis de geração a geração. Assim, podemos
introduzir em nossa reflexão o problema, em parte ainda enigmático,
da hominização, mas, ao menos, sabemos hoje que teve início há muitos
milhões de anos e adquiriu um caráter não apenas anatômico e genético,
mas também psicológico e sociológico, para tornar-se cultural, a partir
de um certo período. A hominização resulta em um novo ponto de
partida: o humano.
Tudo isso deve contribuir para a formação de uma consciência
humanística e ética de pertencer à espécie humana, que só pode ser
completa com a consciência do caráter matricial da Terra para a vida, e da
vida para a humanidade.
Tudo isso deve contribuir, igualmente, para o abandono do
sonho alucinado de conquista do Universo e dominação da natureza -
formulado por Bacon, Descartes, Buffon, Marx -, que incentivou a
aventura conquistadora da técnica ocidental.
Os novos conhecimentos, que nos levam a descobrir o lugar da
Terra no cosmo, a Terra-sistema, a Terra-Gaia ou biosfera, a Terra
1 Australopteco (crânio: 508 cm3), Homo habilis (680 cm3), Homo eraYUS (800 ema-
1.100 cm3), homem moderno (1.200 cm3-1.500 cm3). 2 C . as indicações em Le
Paradigme perdu (op. cit.) sobre os caracteres anatômicos e fisiológicos não
especializados do ser humano (pp. 92-100).
r
38
i
39

pátria dos humanos, não tem sentido algum enquanto isolados uns dos
outros. A Terra não é a soma de um planeta físico, de uma biosfera e da
humanidade. A Terra é a totalidade complexa físico-biológica-
antropológica, onde a vida é uma emergência da história da Terra, e
o homem, uma emergência da história da vida terrestre. A relação do
homem com a natureza não pode ser concebida de forma reducionista,
nem de forma disjuntiva. A humanidade é uma entidade planetária e
biosférica. 0 ser humano, ao mesmo tempo natural e supranatural, deve
ser pesquisado na natureza viva e física, mas emerge e distingue-se
dela pela cultura, pensamento e consciência. Tudo isso nos coloca
diante do caráter duplo e complexo do que é humano: a humanidade
não se reduz absolutamente d animalidade,
mas, sem animalidade, não há humanidad

Ao longo dessa aventura, a condição humana foi autoproduzida pelo
desenvolvimento do utensílio, pela domesticação do fogo, pela
emergência da linguagem de dupla articulação e, finalmente,
pelo surgimento do mito e do imaginário... Assim, a nova Pré-
história tornou-se a ciência que permite a ressurreição do humano que
fora eliminado pelas fragmentações disciplinares.

0 ser humano nos é revelado em sua complexidade: ser, ao mesmo
tempo, totalmente biológico e totalmente cultural. O cérebro, por
meio do qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual
escrevemos, são órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo
tempo, totalmente culturais. 0 que há de mais biológico - o sexo, o
nascimento, a morte - é, também, o que há de mais impregnado de
cultura. Nossas atividades biológicas mais elementares - comer, beber,
defecar - estão estreitamente ligadas a normas, proibições, valores,
símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural;
nossas atividades mais culturais - falar, cantar, dançar, amar, meditar -
põem em movimento nossos corpos, nossos órgãos; portanto, o
cérebro.
A partir daí, o conceito de homem tem dupla entrada: uma
entrada bioffsica, uma entrada psicossocioculrural; duas entradas
que remetem uma à outra.
A maneira de um ponto de holograma, trazemos, no âmago de
nossa singularidade, não apenas toda a humanidade, toda a vida,
mas também quase todo o cosmo, incluso seu mistério, que, sem
dúvida, 'az no fundo da natureza humana.
Eis, ~ois, o que uma nova cultura científica pode oferecer à cultura
hurr mística: a situação do ser humano no mundo, minúscula parte do
todo, mas que contém a presença do todo nessa minúscula parte. Ela o
revela, simultaneamente, em sua participação e em sua estranheza ao
mundo. Assim, a iniciação às novas ciências torna-se, ao mesmo tempo,
iniciação a nossa condição humana, por intermé
dio dessas ciências.
A contribuiçao das ciências humanas
Paradoxalmente, são as ciências humanas que, no momento
atual, oferecem a mais fraca contribuição ao estudo da condição
humana, precisamente porque estão desligadas, fragmentadas e
compartimentadas. Essa situação esconde inteiramente a relação
indivíduo/espécie/saciedade, e esconde o próprio ser humano. Tal
como a fragmentação das ciências biológicas anula a noção de vida,
a fragmentação das ciências humanas anula a noção de homem.
Assim, Lévi-Strauss acreditava que o fim das ciências humanas não é
revelar o homem, mas dissolve-lo em estruturas.
Seria preciso conceber uma ciência antropossocial religada, que
concebesse a humanidade em sua unidade antropológica e em suas
diversidades individuais e culturais.
A espera dessa religação - desejada pelas ciências, mas ainda
fora de 41
seu alcance -, seria importante o ensino de cada
que uma
delas fosse orientado para a condição humana. Assim, a Psicologia,


42
tendo como diretriz o destino individual e subjetivo do ser humano,
deveria mostrar que Home sapiens também é, indissoluvelmente, Homo
demens, que Home faber é, ao mesmo tempo, Homo ludens, que Homo
economicus é, ao mesmo tempo, Homo mythologicus, que Homo prosaicus
é, ao mesmo tempo, Home poeticus. A Sociologia seria orientada para
nosso destino social, a Economia para nosso destino econômico; um
ensino sobre os mitos e as religiões seria orientado para o destino
mítico-religioso do ser humano. De fato, as religiões, mitos, ideologias
devem ser considerados em seu poder e ascendência sobre as mentes
humanas, e não mais como "superestruturas".
Quanto à contribuição da História para o conhecimento da
condição humana, ela deve incluir o destino, a um só tempo, deter-
minado e aleatório da humanidade. Todas as conseqüências sairiam da
conscientização de que a História não obedece a processos deter-
ministas, não está sujeita a uma inevitável lógica técnico-econômica, ou
orientada para um progresso imprescindível. A História está sujeita
a acidentes, perturbações e, às vezes, terríveis destruições de populações
ou civilizações em massa. Não existem "leis" da História, mas um diálogo
caótico, aleatório e incerto, entre determinações e forças de desordem,
e um movimento, às vezes rotativo, entre o econômico, o sociológico, o
técnico, o mitológico, o imaginário. Não há mais progresso
prometido; em contrapartida, podem advir progressos, mas devem ser
incessantemente reconstruídos. Nenhum progresso é conquistado
para todo o sempre.
A História, ainda que esvaziada por algum tempo da noção de
acontecimento, de acaso e de "grandes homens", enriqueceu-se em
profundidade. Assim, a tendência ilustrada, cujo exemplo, na França,
eaÉcoledesAnnalei", teve a virtude não de se livrar do acontecimento e
do eventual, como pensava, mas de se tornar multidimensional, inte-
grando o substrato econômico e técnico, o, a vida quotidiana, as crenças e
ritos, os comportamentos diante da vida e da morte. Mal começa a
Fscola dos Anaís. (N. da T.)
reconhecer o acontecimento e o eventual, que foram reencontrados há
trinta anos, paradoxalmente, na Cosmologia, na Física e na Biologia.
Assim, todas as disciplinas, tanto das ciências naturais como das
ciências humanas, podem ser mobilizadas, hoje, de modo a convergir
para a condição humana.


A contribuição da cultura das humanidades

A contribuição da cultura das humanidades para o estudo da
condição humana continua sendo fundamental
Em primeiro lugar, o estudo da linguagem; sob a forma mais
consumada, que é a forma literária e poética, ele nos leva diretamente
ao caráter mais original da condição humana, pois, como disse Yves
Bonnefoy, "são as palavras, com seu poder de antecipação, que nos
distinguem da condição animal". E Bonnefoy enfatiza que a
importância da linguagem está em seus poderes, e não em suas leis
fundamentais3.
No que concerne à literatura propriamente dita, François Bon
constata4, com razão, "que fomos separados da literatura como auto-
reflexão do homem em sua universalidade, para colocá-la a serviço da
língua veicular... [onde] ela se torna submissa e secundária". É
preciso restituir-lhe sua virtude plena.
A longa tradição dos ensaios - própria de nossa cultura, desde
Erasmo, Maquiavel, Montaigne, La iruyère, La Rochefoucauld,
Diderot e até Camus e Bataille - con tituï uma farta contribuição
reflexiva sobre a condição humana. Mas também o romance e o cinema
oferecem-nos o que é invisível nas ciências humanas; estas ocultam
ou dissolvem os caracteres existenciais, subjetivos, afetivos do ser
3 "L'enseignement de la poésie", in Quels savoirs rnsrígner dans Its lychs, Ministério da
Educação Nacional, CNDP, 1998, pp. 63-67. 4 "Transmettre la littérature: obstacles",
in Relier ks connaissances, Ed. du Seuil, 1999.
43



EDGAR MORIN




A CABEÇA BEM-FEITA
humano, que vive suas paixões, seus amores, seus ódios, seus envolvi-
mentos, seus delírios, suas felicidades, suas infelicidades, com boa e má
sorte, enganos, traições, imprevistos, destino, fatalidade...
São o romance e o filme que põem à mostra as relações do ser
humano com o outro, com a sociedade, com o mundo. 0 romance do
século XIX e o cinema do século XX transportam-nos para dentro da
História e pelos continentes, para dentro das guerras e da paz. E o
milagre de um grande romance, como de um grande filme, é
revelar a universalidade da condição humana, ao mergulhar na sin-
gularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço.
Kundera diz isso muito bem, em LArt du roman (A Arte do
Romance)5. 0 romance é mais que um romance. Sabemos que o
romance, a partir do século XIX, tornou-se prenhe de toda a com-
plexidade da vida dos indivíduos, até da mais banal das vidas. Ele
demonstra que o ser mais insignificante tem várias vidas, desempenha
diversos papéis, vive uma existência em parte de fantasias, em parte de
ações. Dostoievski demonstrou vivamente a complexidade das relações
do sujeito com o outro, as instabilidades do "eu".
É a literatura que nos revela, como acusa o escritor Hadj Garm'
Oren, que "todo indivíduo, mesmo o mais restrito à mais banal das
vidas, constitui, em si mesmo, um cosmo. Traz em si suas multipli-
cidades internas, suas personalidades virtuais, uma infinidade de
personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, o
sono e a vigília, a obediência e a transgressão, o ostensivo e o secreto,
pululâncias larvares em suas cavernas e grutas insondáveis. Cada um
contém em si galáxias de sonhos e de fantasias, de ímpetos insatisfeitos de
desejos e de amores, abismos de infelicidade, vastidões de fria indiferença,
ardores de astro em chamas, ímpetos de ódio, débeis anomalias,
relâmpagos de lucidez, tempestades furiosas..."%.
A poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais
que a literatura, leva-nos à dimensão poética da existência humana.
Revela que habitamos a Terra, não só prosaicamente - sujeitos à
utilidade e à funcionalidade-, mas também poeticamente, destina
dos ao deslumbramento, ao amor, ao êxtase. Pelo poder da lingua
gem, a poesia nos põe em comunicação com o mistério, que está
além do dizível.
As artes levam-nos à dimensão estética da existência e - confor
me o adágio que diz que a natureza imita a obra de arte - elas nos
ensinam a ver o mundo esteticamente.
Trata-se, enfim, de demonstrar que, em toda grande obra, de
literatura, de cinema, de poesia, de música, de pintura, de escultura,
há um pensamento profundo sobre a condição humana.
Acrescentemos que todo ensino, particularmente de literatura,
poesia, música, deveria tomar consciência do fato de que, a partir do
século XIX, ocorre uma separação cultural na história européia.
Enquanto o mundo masculino adulto, das classes burguesas, é destinado
à eficiência, à dominação, à técnica, ao lucro, e o proletariado está
sujeito ao trabalho, uma parte do mundo adolescente e do mundo
feminino assume a sensibilidade, o amor, a tristeza; e vai expressar,
como em nenhuma outra civilização ou época da História, as aspirações e
os tormentos da alma humana: é justamente o que enunciam Shelley,
Keats, Novalis, Hõlderlin, Nerval, Rimbaud. Enquanto o poderio do
Ocidente europeu expande-se sobre o mundo cantando vitórias em
todas as batalhas, esses poetas cantam os sofrimentos dos humanos
submetidos à crueldade do mundo e da vida. Beethoven, em seu último
quatuor, une, indissoluvelmente, a revolta incoercível do muss es sein?à
resignação inelutável do es muss sein~ 0 quinteto de Schubert oferece
uma dor que, no entanto, sem deixar de ser dor, transfigura-se no
sublime7.
5 Gallimard, 1986, e col. "Folio", 1995.
G Manuscrito inédito.
7 Cf. a máxima beethoveniana durch leiden fraude (por meio do sofrimento, a alegria).
45

46
Enfim, a Filosofia, se retomar sua vocação reflexiva sobre todos os
aspectos do saber e dos conhecimentos, poderia, deveria fazer
convergir a pluralidade de seus pontos de vista sobre a condição
humana.
A despeito da ausência de uma ciência do homem que coordene e
ligue as ciências do homem (ou antes, a despeito da ignorância dos
trabalhos realizados neste sentidos), o ensino pode tentar, eficiente-
mente, promover a convergência das ciências naturais, das ciências
humanas, da cultura das humanidades e da Filosofia para a condição
humana.
Seria possível, daí em diante, chegar a uma tomada de consciência
da coletividade do destino próprio de nossa era planetária, onde todos
os humanos são confrontados com os mesmos problemas vitais e
mortais.
8... em meus livros L Homme et Ia mort (Éd. du Seuil, "Points Essais", n? 77) e Le
Paradigme perdu. La nature humaine (Éd. du Seuil,'Points Essais", n? 109), assim
como a obra coletiva, dirigida por E. Morin e M. Piattelli, L'Unité de 1 homme, 3 vol-
(Éd. du Seuil, "Points Essais", n°' 91, 92 e 93).
CAPITULO 4
APRENDER A VIVER
"Quero ensinar-lhe a viver."
RoussEAu, Emflio
"Queremos ser os poetas de nossa própria vida, e, primeiro, nas
menores coisas."
NIETZSCHE
c OMO DIZIA magnificamente Durkheim, o objetivo da educação
não é o de transmitir conhecimentos sempre mais numerosos ao
aluno, mas o "de criar nele um estado interior e profundo, uma espécie
de polaridade de espírito que o oriente em um sentido definido, não
apenas durante a infância, mas por toda a vida"I. É, justamente,
mostrar que ensinar a viver necessita não só dos conhecimentos,
mas também da transformação, em seu próprio ser mental, do
conhecimento adquirido em sapiência2, e da incorporação dessa
sapiência para toda a vida. Eliot dizia: "Qual o conhecimento que
perdemos na informação, qual a sapiência (wisdom) que perdemos
no conhecimento?" Na educação, trata e de transformar as
informações em conhecimento, de transformar o conhecimento em
sapiência, isso se orientando segundo as inalidades aqui definidas.
1 L Evolution pédagogique en France, PUF, 1890, p. 38. 2
Palavra antiga que engloba "sabedoria" e "ciência".
47

48
A escola de vida e a compreensão humana
Quando consideramos os termos "cultura das humanidades", é
preciso pensar a palavra "cultura", em seu sentido antropológico:
uma cultura fornece os conhecimentos, valores, símbolos que orientam e
guiam as vidas humanas. A cultura das humanidades foi, e ainda é, para
uma elite, mas de agora e diante deverá ser, para todos, uma preparação
para a vida.
Literatura, poesia e cinema deven)ser considerados não apenas, nem
principalmente, objetos de análises gramaticais, sintáticas ou
semiótiras, mas também escolas de vida, em seus múltiplos sentidor.
- Escolas da língua, que revela todas as suas qualidades e possi-
bilidades através das obras dos escritores e poetas, e permite que o
adolescente - que se apropria dessas riquezas - possa expressar-se
plenamente em suas relações com o outro.
- Escolas, como dissemos no capítulo precedente, da qualidade po4
ca da vida e, correlativamente, da emoção estética e do deslumb
aánento.
-- Escolas da descoberta de si, em que o adolescente pode reco-
nhecersua vida subjetiva na dos personagens de romances ou filmes.
Pode descobrir a manifestação de suas aspirações, seus problemas, suas
verdades, não só nos livros de idéias, mas também, e às vezes mais
profundamente, em um poema ou um romance. Livros constituem
"experiências de verdade", quando nos desvendam e configuram uma
verdade ignorada, escondida, profunda, informe, que trazemos em nós,
o que nos proporciona o duplo encantamento da descoberta de nossa
verdade na descoberta de uma verdade exterior a nós, que se acopla a
nossa verdade, incorpora-se a ela e torna-se a nossa verdade3. É o que
ocorre frequentemente com obras como
Uma temporada no inferno, que - conforme a extraordinária frase
3 Permitam-me esta confidência sobre a relação entre o livro e o viver: nunca deixei
de ser levado pelo viver, mas os livros foram onipresentes em meu viver e agiram
de Herádiro sobre o oráculo de Delfos - "não afirma, não esconde,
mas sugere". Que beleza favorecer tais descobertas!
- Escolas da complexidade humana. Aqui retomamos o que
indicamos no capítulo precedente, porque o conhecimento da com
plexidade humana faz parte do conhecimento da condição humana;
e esse conhecimento nos inicia a viver, ao mesmo tempo, com seres
e situações complexas.
Como é sabido desde Shakespeare, e como diz Geneviève
Mathis, "uma única obra literária encerra um infinito cultural que
engloba ciência, história, religião, ética..."4. É o romance que expande o
domínio do dizível à infinita complexidade de nossa vida subjetiva, que
utiliza a extrema precisão da palavra, a extrema sutileza da análise, para
traduzir a vida da alma e do sentimento. É no romance ou no filme que
reconhecemos os momentos de verdade do amor, o tormento das almas
dilaceradas, e descobrimos as profundas instabilidades da identidade,
como em Dostoievski; a multiplicidade interior de uma mesma pessoa,
em Proust; assim como, em Pai Goriote Guerra e paz; a transformação
dos seres, confrontados com o destino social ou histórico, levados pela
torrente de acontecimentos que podem nos tornar heróis, mártires,
covardes, carrascos. É no romance, no teatro, no filme, que percebemos
que Komo sapiens é, ao mesmo tempo, indissoluvelmente, Homo demens.
É no romance, no filme, no poema, que a existência revela sua miséria e
sua grandeza trágica, com o risco de fracasso, de erro, de loucura. É na
morte de nossos heróis que temos nossas primeiras experiências da morte.
É, pois, na literatura que o ensino sobre a condição humana pode
adquirir forma vívida e ativa, para esclarecer cada um sobre sua própria
vida. 0 adolescente não tem necessidade de literatura diluída, dita "para a
sobre ele. 0 livro sempre estimulou, elucidou, guiou meu viver, e, reciprocamente,
meu viver, para sempre interrogador, nunca deixou de recorrer ao livro. 4 "A
complexidade dentro do ensino das letras", comunicação no Congresso interlatino sobre o
pensamento complexo, Rio, setembro de 1998.
49


EDGAR MORIN
juventude"; como disse Yves Bonnefoy, "esses jovens seres esperam
que grandes sinais, carregados de mistério e gravidade, sejam erguidos
diante deles, pois bem sabem que, breve, terão de enfrentar o
mistério e a gravidade da vida"5.
Aqui, o filósofo e o psicólogo deveriam confirmar que todo indi-
víduo, mesmo o mais confinado na mais banal das vidas, constitui, em
si mesmo, um cosmo, como acusamos no capítulo 3, pp. 36-37.
- Escolas de compreensão humana. No âmago da leitura ou do
espetáculo cinematográfico, a magia do livro ou do filme faz-nos
compreender o que não compreendemos na vida comum. Nessa vida
comum, percebemos os outros apenas de forma exterior, ao passo que na
tela e nas páginas do livro eles nos surgem em todas as suas dimensões,
subjetivas e objetivas.
A literatura "é a única que sabe representar e elucidar as situa-
ções de incomunicabilidade, de fechamento em si, qüiproquós
cômicos ou trágicos. 0 leitor descobre também as causas dos mal-
entendidos e aprende a compreender os incompreendidos"
(Genevieve Mathis6).
Podemos compreender daí que não se deve reduzir um ser à
mínima parcela de si mesmo, nem à parcela ruim de seu passado.
Enquanto na vida comum apressamo-nos em qualificar de criminoso
aquele que cometeu um crime, reduzindo todos os outros aspectos de
sua vida e de sua pessoa a esse único traço, descobrimos, em seus
múltiplos aspectos, os reis gangstersde Shakespeare e os gangsters reis dos
films noirs. Podemos ver como um criminoso pode transformar-se,
redimir-se, como Jean Valgean e Raskolnikov. 0 que sente
repugnância pelo vagabundo que encontra na rua simpatiza de todo o
coração com o vagabundo Carlitos, no cinema. Enquanto, na vida
quotidiana, somos quase indiferentes às misérias físicas e morais,
5 "L'enseignement de la poésie", in Quels saroin aueigner dans Its lycées, ministère
de l'Éducation nationale, CNDP, Paris, 1998. 6 n
sentimos a comiseração, a piedade e a bondade, ao ler um romance
ou ver um filme.
Enfim, podemos aprender as maiores lições da vida: a compaixão
pelo sofrimento de todos os humilhados e a verdadeira com-
preensão.
Literatura, poesia, cinema, psicologia, filosofia deveriam con-
vergir para tornar-se escolas da compreensão. A ética da compreensão
humana constitui, sem dúvida, uma exigência chave de nossos tempos
de incompreensão generalizada: vivemos em um mundo de
incompreensão entre estranhos, mas também entre membros de
uma mesma sociedade, de uma mesma família, entre parceiros de um
casal, entre filhos e pais. É o caso de se perguntar se as chaves psi-
copsicanal íticas, difundidas de forma dogmática e redutionista em
nossa cultura (complexo de inferioridade, de Édipo, paranóia, esqui-
zofrenia, sadomasoquismo etc.), não agravam a incompreensão,
criando a ininteligibilidade reducionista.
Explicar não basta para compreender. Explicar é utilizar todos os
meios objetivos de conhecimento, que são, porém, insuficientes para
compreender o ser subjetivo.
A compreensão humana nos chega quando sentimos e concebe-
mos os humanos como sujeitos; ela nos torna abertos a seus sofri-
mentos e suas alegrias. Permite-nos reconhecer no outro os mecanis-
mos egocêntricos de autojustificação, que estão em nós, bem como as
retroações positivas (no sentido cibernético do termo) que fazem
degenerar em conflitos inexplicáveis as menores querelas. É a partir da
compreensão que se pode lutar contra o ódio e a exclusão.
Enfrentar a dificuldade da compreensão humana exigiria o
recurso não a ensinamentos separados, mas a uma pedagogia conjunta
que agrupasse filósofo, psicólogo, sociólogo, historiador, escritor, que
seria conjugada a uma iniciação à lucidez.
A CABEÇA BEM-FEITA
50




51



A iniciação à lucidez é inseparável, ela própria, de uma iniciação à
onipresença do problema do erro.
É necessário, e isso desde a escola primária, que toda percepção seja
uma tradução reconstrutora realizada pelo cérebro, a partir de terminais
sensoriais, e que nenhum conhecimento possa dispensar interpretação.
Assim, a partir de testemunhos contraditórios do mesmo acontecimento,
podemos mostrar que, à vista de um acidente de carro, por exemplo, pode
haver falsas percepções que comportam, em geral, racionalizações
alucinatórias. Podemos ilustrar casos de percepção imperfeita, por hábito
ou por atenção maldefinida, desatenção a um detalhe insignificante,
interpretação precipitada de elemento inusitado e, sobretudo, deficiência
de visão de conjunto, ou ausência de reflexão. É preciso ilustrar os casos de
memorização demasiado segura, que se autoconfirma na repetição de
uma lembrança deformada. Da mesma maneira, é preciso observar que
uma preocupação de inteligibilidade, demasiado fraca, leva a ignorar a
significação de um fato ou de um acontecimento, ao passo que uma
preocupação excessivamente forte de inteligibilidade leva a um erro
racionalizador que altera essa significação. Serão dados exemplos de
decisões desastrosas, tomadas não apenas por irreflexão, cinismo ou
irresponsabilidade, mas também por processos psíquicos de
racionalização absurda ou ocultação inconsciente, destinados a preservar a
nossa paz de espírito.
Progressivamente, é no ensino secundário que se dará destaque à
oposição entre a racionalização, sistema lógico de explicação, mas privado
de fundamento empírico, e a racionalidade, que procura unir a
coerência à experiência; e, no ensino superior, tratar-se-á dos limites da
lógica e das necessidades de uma racionalidade não somente crítica,
mas também autocrítica.
Assim, da psicologia do conhecimento e da permanente aplicação
dessa psicologia em si mesmo, passar-se-á à epistemologia e ao
conhecimento crítico do conhecimento, que recorrerá às ciências
cognitivas, ainda que tão mal interligadas.
O aprendizado da auto-observação faz pane do aprendizado da
lucidez. A aptidão reflexiva do espírito humano, que o torna capaz
de considerar-se a si mesmo, ao se desdobrar - aptidão que certos
autores como Montaigne ou Maine de Biran exerceram admiravel
mente -, deveria ser encorajada e estimulada em todos. Seria preciso
ensinar, de maneira contínua, como cada um produz a mentira para si
mesmo, ou self-deception. Trata-se de exemplificar constantemente como
o egocentrismo autojustificado4e a transformação do outro em bode
expiatório levam a essa ilusa ,j, e como concorrem para isso as seleções
da memória que eliminam o que nos incomoda e embelezam o que nos
favorece (seria o caso de estimular a escrita de um diário e a reflexão
sobre os acontecimentos vivenciados).
Finalmente, seria preciso demonstrar que a aprendizagem da
compreensão e da lucidez, além de nunca ser concluída, deve ser
continuamente recomeçada (regenerada).


A introdução à noosfera
Ainda não existe, infelizmente, uma noologia, destinada ao
âmbito do imaginário, dos mitos, dos deuses, das idéias', ou seja, a
noosfera.
Alimentamos com nossas crenças ou nossa fé os mitos ou idéias
oriundos de nossas mentes, e esses mitos ou idéias ganham consis-
tência e poder. Não somos apenas possuidores de idéias, mas somos
também possuídos por elas, capazes de morrer ou matar por uma
idéia.
Assim, seria preciso ajudar as mentes adolescentes a se movi-
mentar na noosfera (mundo vivo, virtual e imaterial, constituído de
informações, representações, conceitos, idéias, mitos que gozam de
uma relativa autonomia e, ao mesmo tempo, são dependentes de
7Cf. E. Morin, La Méthode, t. 4: Les Idées, td. du Seuil, "Points Essais", n' 303.
53

54
nossas mentes e de nossa cultura) e ajudá-las a instaurar o convívio
com suas idéias, nunca esquecendo que estas devem ser mantidas em seu
papel mediador, impedindo que sejam identificadas com o real. As
idéias não são apenas meios de comunicação com o real; elas
podem tomar-se meios de ocultação. 0 aluno precisa saber que os
homens não matam apenas à sombra de suas paixões, mas também à luz
de suas racionalizações.


A filosofia da vida

o aprendizado da vida deve dar consciência de que a "verdadeira
vida", para usar a expressão de Rimbaud, não está tanto nas necessidades
utilitárias - às quais ninguém consegue escapar-, mas na
plenitude de si e na qualidade poética da existência, porque viver exige,
de cada um, lucidez e compreensão ao mesmo tempo, e, mais
amplamente, a mobilização de todas as aptidões humanas.
É para o aprendizado da vida que o ensino da filosofia deve ser
revitalizado. Então, ele poderia fornecer o indispensável suporte dos dois
produtos mais preciosos da cultura européia: a racionalidade crítica e
a autocrítica, que permitem, justamente, a auto-observação e a lucidez; e,
por outro lado, a fé incerta, que será objeto do capitulo seguinte.
A filosofia, ao contribuir para a consciência da condição humana e o
aprendizado da vida, reencontraria, assim, sua grande e profunda
missão. Como já acusam as salas e os bares de filosofia, a filosofa
diz respeito à existência de cada um e à vida quotidiana. A filosofia
não é uma disciplina, mas uma força de interrogação e de reflexão
dirigida não apenas aos conhecimentos e à condição humana, mas
também aos grandes problemas da vida. Nesse sentido, o filósofo
deveria estimular, em tudo, a aptidão critica e autocrítica,
insubstituíveis fermentos da lucidez, e exortar à compreensão humana,
tarefa fundamental da cultura.
CAPITULO 5
ENFRENTAR A INCERTEZA
(Aprender a viver, continuação)
"Os deuses nos inventam muitas surpresas: o
esperado não acontece, e um deus abre
caminho ao inesperado."
EURJPIDES, final de Medéia

"0 corpo de ensino tem de chegar aos postos avançados do
mais extremo perigo, que é constituído pela permanente incerreza
do mundo."
MARTIN HEIDEGGER
"Se não esperas o inesperado, não o encontrarás."
HERACLITO
"A era que virá há de nos mostrar o caos por detrás da lei."
J. A. WHEELER
JOR CONTRIBUIÇÃO de conhecimento do século XX
foi o
conhecimento dos limites do conhecimento. A maior certeza que
nos foi dada é a da indestrutibilidade das incertezas, não somente na
ação, mas também no conhecimento. "Um único ponto quase
certo no naufrágio (das antigas certezas absolutas): ó ponto de inter-
rogação", diz o poeta Salah Stétié.
Uma das maiores conseqüências desses dois aparentes defeitos - de
fato, verdadeiras conouistas do espírito humano - é a de nos
55

EDGAR MORIN
pôr em condição de enfrentar as incertezas e, mais globalmente, o
destino incerto de cada indivíduo e de toda a humanidade.
Aqui, convém fazer a convergência de diversos ensinamentos,
mobilizar diversas ciências e disciplinas, para ensinar a enfrentar a
incerteza.
A incerteza física e biológica
A primeira revolução científica de nosso século, iniciada pela
termodinâmica de Boltzmann, deflagrada pela descoberta dos quanta,
seguida pela desintegração do Universo de Laplace, mudou pro-
fundamente nossa concepção do mundo. Minou a validade absoluta do
princípio determinista'. Subverteu a Ordem do mundo, grandioso
resquício da divina Perfeição, para substituí-Ia por uma relação de
diálogo (ao mesmo tempo complementar e antagônica) entre ordem
e desordem. Revelou os limites dos axiomas identificativos da lógica
clássica. Restringiu o calculável e o mensurável a uma dependência do
incalculável e do imensurável. Provocou um questiona
mento da racionalidade científica, exemplificada pelas obras de
Bachelard, Piaget, Popper, Lakatos, Kuhn, Holton, Feyerabend,
notadamente.
Aprendemos que tudo aquilo que é só pode ter nascido do caos e da
turbulência, e precisa resistir a enormes forças de destruição. 0 cosmo se
organizou ao se desintegrar. A história do Universo é uma gigantesca
aventura criativa e destrutiva, marcada, desde o início, pelo quase
aniquilamento da antimatéria pela matéria, acentuada pela queima
seguida da autodestruição de numerosos astros, da coli
1 No meio dos fenômenos deterministas, que obedecem a uma dinâmica não
linear, há de fato uma incerteza para predizer, devido à ausência de informação
completa sobre os estados iniciais ou sobre a emaranhada multiplicidade das finte
rações. É o caos determinista.
são de estrelas e galáxias; aventura em que uma das metamorfoses
marginais constituiu-se pelo surgimento da vida no terceiro planeta de
um pequeno sol de subúrbio.
A Biologia, por seu turno, desembocou na incerteza. Se o apa
recimento da vida corresponde à transformação de um turbilhão de
macromoléculas e a uma organização de novo tipo, capaz de se
auto-organizar, autoconsertar, auto-reproduzir, apta a retirar de seu
meio ambiente a organização, a energia e a informação, sua origem não
parece obedecer a nenhuma necessidade inevitável.
Continua sendo um mistério sobre o qual não deixam de ser
elaborados roteiros2. Seja como for, a vida só pode ter nascido de uma
mistura de acaso e de necessidade, cuja composição não sabemos dosara.
Ainda estamos profundamente inseguros quanto ao caráter inevitável
ou fortuito, necessário ou miraculoso, do aparecimento da vida; e essa
incerteza se reflete evidentemente no sentido de nossas vidas
humanas4.
2 Cf. M. Eigen, "Self-Organization of the Matter and the Evolution of Biological
Macromolecules", in Natunuissenschafr, vol. 58, n° 465, a que se deve acrescentar
o roteiro da origem extraterrestre da vida, proposto por Crick.
3 Para essas noções, c£ E Morin, La Mérhode, r. 2: La Vie de !a vie, Éd. du Seuil, "Points
Essais", n, 175, pp. 177-92.
4 0 aparecimento da vida será um acontecimento único, devido a um acúmulo de
acasos altamente improváveis, ou, pelo contrário, fruto de um processo evolutivo, se
não necessário, pelo menos provável?


56
No sentido da probabilidade:

- a formação espontânea de macromoléculas adequadas à vida em certas con
dições, que podem ser reproduzidas em laboratório;
- a descoberta de aminoácidos nos meteoros precursores dos da vida;
-a demonstração da termodinâmica prigoginiana de que, em condições de
instabilidade, há formação espontânea de organização, donde a probabilidade de
uniões organizadas cada vez mais complexas de macromoléculas, em condições ter
modinâmicas apropriadas (turbilhões);
-a possibilidade, em condições de encontro e durante um longo período, de
que seja realizado um processo seletivo a favor de uniões moleculares ARN/proteí-
57
nas, que se cornam aptas a se autocontestar e a metabolizar;
-a enorme probabilidade de que exista, em um Universo de milhares de mi-


I
58
que todos os sem vivos teriam um único ancestral, o que reforça a hipótese de que em sua
origem haveria um acaso extremamente improvável;
- não há nenhum sinal, nenhum vestígio de vida no Sistema Solar, nenhuma
mensagem que nos venha do cosmo;
-de mais a mais, o argumento de que teria havido planetas que teriam gozado de
condições análogas a nossa não conta mais, se a vida, nesta própria Terra, foi fruto de um
acaso inaudito.
Não podemos descartar a terceira hipótese. Talvez existam, no Universo, orga-
nizações muito complexas dotadas de propriedades de autonomia, de inteligência, até de
pensamento, mas que não estariam fundadas em uma organização núcleoprotéica e
seriam (atualmente? para sempre?) inacessíveis a nossa percepção e a nosso entendimento.
Se as criações de ramificações e de espécies correspondem a reor-
ganizações e mutações genéticas, elas possuem um componente alea-
tório. A aventura da vida é, em si mesma, uma história atropelada,
com catástrofes que provocam extinções em massa entre as espécies e o
surgimento de novas espécies. No meio dessa aventura, o ramo de
um ramo de um ramo de antropóides foi lançado, por sorte ou por
azar, na nova aventura da hominização...
0 Sol brilha a temperatura de sua explosão. A vida organiza-se à
temperatura de sua destruição. 0 homem talvez não se tivesse desen-
volvido se não lhe fosse preciso responder a tantos desafios mortais,
desde o avanço da savana sobre a floresta tropical até a glaciação das
regiões temperadas. A aventura da hominização deu-se em meio à
lhares de astros, milhões de planetas análogos à Terra; portanto, a probabilidade de
existência de seres vivos em outras regiões do cosmo.
Nosentidoda improbabilidade, há os seguintes argumentos:
- o salto qualitativo/quantitativo (a menor bactéria é um complexo de milhões
de moléculas) e a descontinuidade radical entre a mais complexa das organizações
macromoleculares e a auto-ecorreorganização viva tornam esta altamente improvável;
-a organização viva é, em si mesma, fisicamente improvável, tendo em vista que,
em conformidade com o segundo princípio da termodinâmica, é a dispersão dos
constituintes moleculares do ser vivo que obedece à probabilidade física, a qual se realiza,
efetivamente, na morte;
-muitos indícios sugerem que a vida teria nascido de uma só vez, quer dizer,
penúria e ao sofrimento. Homo é filho de Poros e Penia. Tudo o que
vive deve regenerar-se incessantemente: o Sol, o ser vivo, a biosfera, a
sociedade, a cultura, o amor. É nossa constante desgraça e também é nossa
graça e nosso privilégio: tudo que há de precioso na terra é frágil, raro
e destinado a futuro incerto. 0 mesmo acontece com a
nossa consciencla.
Assim, quando conservamos e descobrimos novos arquipélagos de
certezas, devemos saber que navegamos em um oceano de incertezas.
A incerteza humana

A condição humana está marcada por duas grandes incertezas: a
incerteza cognitiva e a incerteza histórica.

Há três princípios de incerteza no conhecimento:
- o primeiro é cerebral: o conhecimento nunca é um reflexo do
real, mas sempre tradução e construção, isto é, comporta risco de
erro;
- o segundo é físico: o conhecimento dos fatos é sempre tribu
tário da interpretação;
- o terceiro é epistemológico: decorre da crise dos fundamen
tos da certeza, em filosofia (a partir de Nietzsche), depois em ciência
(a partir de Bachelard e Popper).

Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente
certa, mas dialogar com a incerteza.

A incerteza histórica está ligada ao caráter intrinsecamente caótico
da história humana. A aventura histórica começou há mais de 1.000
anos. Foi marcada por criações fabulosas e destruições irremediáveis.
Nada resta dos impérios egípcio, assírio, babilônico, persa, nem do
Império Romano, que chegara a parecer eterno. Assus
5
S

tadoras regressões de civilizações e economias seguiram-se a progressões
temporárias. A História está sujeita aos acidentes, às perturbações
e, por vezes, às terríveis destruições maciças de populações e
civilizações5.
Sem dúvida, a história humana sofre determinações sociais e
econômicas muito fortes, mas pode ser desviada ou contornada
pelos acontecimentos ou acidentes. Não há leis da História. Pelo
contrário, há o fracasso de todos os esforços para cristalizar a história
humana, eliminar dela acontecimentos e acidentes, submetê-la ao
jugo de um determinismo econômico-social elou levá-la a obedecer
a um progresso telecomandado.

E chegamos à grande revelação do fim do século XX: nosso futuro não
é teleguiado pelo progresso histórico. Os erros da predição
futurológica, os inúmeros fracassos da predição econômica (apesar e por
causa de sua sofisticação matemática), a derrota do progresso
garantido, a crise do futuro, a crise do presente introduziram o vírus da
incerteza em toda parte.
Estamos destinados à incerteza do futuro que as religiões da salvação
- inclusive a salvação terrestre - acreditavam ter dominado: "Os
bolcheviques não queriam ou não podiam compreender que o homem
é um ser frágil e inseguro, que realiza uma obra insegura, em um mundo
inseguro" 6.
Já estávamos na aventura desconhecida, desde a aurora da
humanidade, desde a aurora dos tempos históricos; estamos mais
que nunca e devemos estar conscientes- 0 curso seguido pela história da
era planetária desgarrou-se da órbita do tempo reiterativo das
civilizações tradicionais, para entrar, não na via garantida do
Progresso, mas em uma incerteza insondável.
5 Cf. o belo texto de Gruzinski, " Événements dans fhistoire: accidents, catastrophes,
bifurcations", in Relier les connaissance , Ed. du Seuil, 1999. 6 D. Cosiè, Le Temps du
mat, Ed. L'Age d'Homme, 1990, t. 1, p. 186_
Todos os grandes acontecimentos do século - a deflagração da
Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética no império czarista, as
vitórias do comunismo e do nazismo, o golpe teatral do pacto
germânico-soviético, de 1939, a derrota da França, as resistências de
Moscou e Stalingrado - foram inesperados; até o inesperado de 1989:
a queda do muro de Berlim, o colapso do império soviético, a guerra da
Iugoslávia. Hoje estamos em Escuridão e bruma, e ninguém pode
predizer o amanhã.
De modo que a consciência da História deve servir não só para
reconhecermos os caracteres, ao mesmo tempo determinados e aleatórios
do destino humano, mas também para nos abrirmos à incerteza do
futuro.
É preciso, portanto, prepararmo-nos para o nosso mundo incerto e
aguardar o inesperado.


Os três viáticoc
Preparar-se para nosso mundo incerto é o contrário de se resignar a
um ceticismo generalizado.
É esforçar-se para pensar bem, é exercitar um pensamento aplicado
constantemente na luta contra falsear e mentir para si mesmo, o que
nos leva, uma vez mais, ao problema da "cabeça bem-feita".
É também estar consciente da ecologia da ação.
A ecologia da ação tem, como primeiro princípio, o fato de que
toda ação, uma vez iniciada, entra num jogo de interações e retroações
no meio em que é efetuada, que podem desviá-la de seus fins e até levar
a um resultado contrário ao esperado; assue, a reação aristocrática do
final do século XVIII, na França, desencadeou uma revolução
democrática; um movimento revolucionário na Espanha, em 1935-1936,
desencadeou um golpe reacionário
0 segundo princípio da ecologia da ação diz que as conseqüências
últimas da ação são imprevisíveis; de modo que, em 1789, ninguém
poderia predizer o Terror, o Termidor, o império, a Restau
61

ração. A Revolução Soviética do século XX foi uma consequencia
indireta da Revolução Francesa, que ainda não esgotou todas as suas
conseqüências...
O que nos leva ao segundo viático: a estratégia.
A estratégia opõe-se ao programa, ainda que possa comportar
elementos programados. 0 programa é a determinação a priori de
urna seqüência de ações tendo em vista um objetivo. 0 programa é
eficaz, em condições externas estáveis, que possam ser determinadas com
segurança. Mas as menores perturbações nessas condições desregulam a
execução do programa e o obrigam a parar. A estratégia, como o
programa, é estabelecida rendo em vista um objetivo; vai
determinaços desenvolvimentos da ação e escolher um deles em função
do que ela conhece sobre um ambiente incerto. A estratégia procura
incessantemente reunir as informações colhidas e os acasos
encontrados durante o percurso.
Todo o nosso ensino tende para o programa, ao passo que a vida exige
estratégia e, se possível, serendipididade e arte.
É justamente uma reversão de conceito que deveria ser efetuada a
fim de preparar para os tempos de incerteza.

O terceiro viático é o desafio.
Uma estratégia traz em si a consciência da incerteza que vai
enfrentar e, por isso i, Lesmo, encerra uma aposta. Deve estar plena-
mente consciente da a osta, de modo a não cair em uma falsa certeza.
Foi a falsa certeza ue sempre cegou os generais, os políticos, os
empresários, e os levou ao desastre.
A aposta é a integração da incerteza à fé ou à esperança. A aposta não
está limitada aos jogos de azar ou aos empreendimentos perigosos. Ela
diz respeito aos envolvimentos fundamentais de nossas vidas. Assim,
Pascal, consciente de ser impossível dar uma prova absolutamente
segura de seu Deus, reconheceu a inevitabilidade da aposta. É o que fez
o marxista Lucien Goldmann sobre o advento de
uma sociedade sem classes. A fé incerta, como em Pascal, Dostoievski,
Unamuno, Adorno, Goldmann, é um dos mais preciosos suportes
que a cultura européia produziu; o outro é a racionalidade auto
crítica, que constitui nossa melhor imunização contra o erro.
Cada um deve estar plenamente consciente de que sua própria
vida é uma aventura, mesmo quando se imagina encerrado em uma
segurança burocrática; todo destino humano implica uma incerteza
irredutível, até na absoluta certeza, que é a da morte, pois ignoramos a
data. Cada um deve estar plenamente consciente de participar da
aventura da humanidade, que se lançou no desconhecido em veloci
dade, de agora em diante, acelerada.


62
I
63


CAPITULO 6

A APRENDIZAGEM
CIDADÃ
A EDUCAÇÃO deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar
a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se
tornar cidadão. Um cidadão é definido, em uma
democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação a
sua pátria. 0 que supõe nele o enraizamento de sua identidade
nacional.
Mas o que é uma pátria? 0 que é uma nação? Essas questões
capitais não encontram resposta em nenhum programa ou manual. É
possível, claro, encontrar indicadores secundários no direito cons-
titucional e no direito internacional, mas não o essencial. Por isso é que
me permito abordar este problema para demonstrar que ele deveria
ser obrigatoriamente tratado.
0 Estado-Nação

A incrível realidade do Estado-Nação, que, há dois séculos, ainda
era minoritária, e desde então invadiu e dominou o planeta, continua
pouco compreendida e, menos ainda, pensada. Os historiadores
descrevem a formação e o desenvolvimento dos Estados-Nação, mas, à
exceção de Toynbee, não cogitam sobre sua natureza. A
Sociologia trata das categorias de sociedades (tradicional, industrial, pás-
industrial), mas ignora a natureza nacional dessas sociedades. 0
65

66
EDGAR MORIN
marxismo minimizou a realidade da nação, quando enfatizou o que a
divide (conflitos de classe), e não o que a unificar.
Uma das maiores dificuldades em pensar o Estado-Nação reside em
seu caráter complexo. De fato, o Estado-Nação completo é um ser ao
mesmo tempo territorial, político, cultural, histórico, místico, religioso.
0 Estado é um "aparelho" que dispõe de aparelhos adicionais
(forças armadas, polícia, justiça, eventualmente, a Igreja), o que exigiria
um esclarecimento de conceito de aparelho2.
COMUNIDADE/SOCIEDADE
0 Estado-Nação é uma sociedade territorialmente organizada. Este
tipo de sociedade é complexa em sua dupla natureza, em que é preciso
não só opor, mas também associar, fundamentalmente, a noção de
gemeineschaft ou "comunidade" e a noção de geselschaft ou "sociedade".
A nação é uma sociedade, em suas relações e interesses, competições,
rivalidades, ambições, conflitos sociais e políticos. Mas é, igualmente,
uma comunidadede identidade, uma comunidade de atitudes e uma
comunidade de reações ante o estrangeiro e, sobretudo, ante o inimigo.
A história do início do século XX revela o terrível conflito interno nas
grandes nações ocidentais, que chega, às vezes, a guerra civil, e, ao
mesmo tempo, sua extraordinária solidariedade, ante o inimigo Axterno.
Houve, entretanto, a tentativa de Oito Bauer de conceber o fenômeno nacional como
comunidade de destino, após o ensaio de Stalin, 0 marxismo e a questão' nacional.
2 Aqui, remeto à minha análise sobre a noção de aparelho (pp. 239-47) e Estado-
aparelho (pp. 239-49), em La Méthode, t. I: La Nature de Ia nature, Éd. du Seuil,
"Points Essais", n? 123.
A CABEÇA BEM-FEITA
COMUNIDADE DE DESTINO

A comunidade tem caráter cultural/histórico. É cultural por
seus valores, usos e costumes, normas e crenças comuns; é histórica
pelas transformações e provações sofridas ao longo do tempo.
Segundo a expressão de Otto Bauer, é uma comunidade de destino.
Esse destino comum, memorizado, transmitido, de geração a
geração, pela família, por cânticos, músicas, danças,-poesias e livros;
depois pela escola, que integra o passado nacional às mentes infantis,
onde são ressuscitados os sofrimentos, as mortes, as vitórias, as glórias
da história nacional, os martírios e proezas de seus heróis. Assim, a própria
identificação com o passado torna presente a comunidade de destino.


A ENTIDADE MITOLOGICA

A comunidade de destino é tanto mais profunda quando selada por
uma fraternidade mitológica. De fato, o Estado-Nação é uma pátria,
uma entidade consubstancialmente maternal/paternal, que contém,
em seu feminino, o masculino da paternidade. Transfere, para a ampla
escala de populações de milhões de indivíduos, muitas vezes oriundos de
etnias bem diversas, as calorosas virtudes das relações familiares entre
pessoas pertencentes a um mesmo lar. Assim, a Nação, de substância
feminina, comporta em si as qualidades da Terra-Mãe (Pátria-Mãe),
do Lar (foyer, home, Heimat), e ela desperta, nos momentos
comunitários, os sentimentos de amor que são, naturalmente,
despertados pela mãe. Já o Estado é de substância paternal. Dispõe
da autoridade absoluta e incondicional do paipatriarca, a quem se
deve obediência. A relação matripatriótica com o Estado-Nação
desperta o sentimento de fraternidade mística dos "filhos da
pátria", perante o inimigo.
67



O mito nacional é bipolarizado. No primeiro pólo, há o caráter
espiritual da fraternidade entre "filhos da pátria". No segundo pólo, a
fraternidade mitológica surge como uma fratemidade biológica, que
une, entre si, seres do mesmo sangue; o que tende a despertar o mito
secundário (e biologicamente equivocado) da "raça" comum. Assim, a
idéia de nação contém um racismo virtual, que se torna pre
sente quando o seg1
i . Indo pólo prepondera.
A mitologia matripatriótica suscita uma verdadeira religião do
Estado-Nação, que inclui cerimônias de exaltação, objetos sagrados
(bandeira, monumento aos mortos), o culto de adoração à Mãe-
Pátria, os cultos personalizados aos heróis e mártires. Como toda
religião, ela se alimenta do amor, que é capaz de inspirar fanatismo e
ódio.
0 Estado-Nação tem raízes na concreção material da terra, que
sustenta e constitui seu território e, ao mesmo tempo, encontra nele sua
concreção mitológica, a da Terra-Mãe, da Mãe-Pátria. Há como que
uma rotação ininterrupta do geofísico ao mitológico e, ao mesmo
tempo, do político ao cultural e religioso. 0 mito não é a supe-
restrutura da nação: é o que gera a solidariedade e a comunidade; é o
cimento necessário a toda sociedade e, numa sociedade complexa, é o
único antídoto contra a pulverização individual e a destruidora
deflagração de conflitos. E assim, em uma rotação autogeradora do
todo, por seus elementos constitutivos, e dos elementos constitutivos
pelo todo, o mito gera aquilo que o gera, isto é, o próprio
Estado-Nação.
RUMO A "ULTRAPASSAGEM"
Atualmente, tudo indica queopoderabsoluto do Estado-Nação
poderia e deveria ser ultrapassado. Primeiro, no próprio quadro
interno da nação, o Estado tende a se tomar demasiado abstrato e
homogeneizador, devido a seu próprio desenvolvimento técnico-
burocrático. Depois, mas principalmente, todos os grandes problemas
exigem soluções multinacionais, transnacionais, continentais, até
planetárias, e necessitam de sistemas associativos, confederativos ou
federativos, metanacionais.
Contudo, se é bem evidente que, em um certo número de países
europeus, o nacionalismo agressivo/defensivo foi consideravelmente
amenizado durante as intercomunicações que se seguiram à Segunda
Guerra Mundial, não é menos evidente que o Estado
Nação está longe de ter-se tornado um fóssil histórico. Antes de
tudo, não se pode esquecer, de modo algum, que a renovação das
exacerbações nacionalistas, a partir de 1989, pode efetuar uma
recontaminação de Leste para Oeste. Se, pelo contrário, sobrevier um
apaziguamento dos nacionalismos no Leste, ainda assim, a múltipla
resistência do Estado-Nação, tanto nas autonomias descentralizadas em
seu âmbito interno, quanto no surgimento de instituições
multinacionais, permanecerá forte o bastante para frear, ou melhor,
estancar os processos que tendem a criar um sistema confederativo
europeu e instâncias supranacionais de caráter planetário.
0 velho internacionalismo subestimara a terrível realidade mito-
lógico-religiosa do Estado-Nação. De agora em diante, trata-se não só
de reconhecê-la, mas também de não tentar aboli-la. Trata-se de
relativizá-la, como foi relativizada, mas não abolida, a realidade provincial,
a realidade nacional. Mas, para isso, seria preciso que os sentimentos de
solidariedade européia sejam ampliados e enraizados. Será preciso que
os fundamentos mitológicos/religiosos da nação, seu caráter
matripatriótico, sejam estendidos, não apenas ao âmbito de nosso
continente - já marcado pela civilização que criou e por uma


69


EDGAR MORIN
comunidade de destino cada vez mais evidente -, mas também ao
conjunto de um planeta reconhecido pela espécie humana, a partir de
agora, como único lar - foyer, home, Heimat. Tal como a comunidade
nacional, a comunidade planetária tem seu inimigo, mas a diferença
radical é que o inimigo está em nós mesmos e é difícil reconhecê-lo e
enfrentá-lo. 0 resultado disso é que estamos apenas engatinhando nessas
tomadas de consciência e novas solidariedades.


A identidade européia (experiência de identidade entre nações)

As histórias nacionais não podem ser compreendidas
isoladamente da história européia. Seria preciso assinalar que a
Europa moderna sai da crisálida medieval ao perder o mundo (queda
de
Bizâncio, 1453), ao descobrir o Novo Mundo (1492) e ao mudar o
mundo (Copérnico, 1473-1543). Desenvolve-se em um turbilhão
histórico onde desordens e antagonismos (lutas de Estados, lutas de
classes, lutas de religiões, lutas de idéias), em vez de contrariá-los,
favorecem os desenvolvimentos econômicos, políticos, sociais, cul-
turais, não sem algumas enormes destruições. Os Estados nacionais
tornam-se soberanos absolutos em relação a todas as instâncias que
eram consideradas superiores, e estão constantemente em guerra;
mas, até o final do século XIX, fazem e refazem coalizões para impedir a
hegemonia de um único Estado sobre a Europa. Seria preciso assinalar
que, em meio à Europa das guerras, desenvolve-se e propaga-se uma
cultura européia, fundada não sobre um modelo, mas sobre o
despertar da problematização; efetuada pela volta à fonte grega, que
permite o despertar da filosofa e o avanço da ciência: esta cultura está
fundada, ao mesmo tempo, sobre um diálogo (relação,
simultaneamente, antagônica e complementar) entre- religião e fé, de um
lado, e razão e dúvida, do outro. A partir daí, pode-se acompanhar o
desenvolvimento de uma cultura científica, técnica, ideológica, na qual
emergiu uma concepção humanistica e emancipadora do
A CABEÇA BEM-FEITA
ser humano, em contradição, aliás, com a terrível opressão dominadora
que a Europa impõe ao resto do mundo. Deverá ser apontado o
caráter transeuropeu das grandes correntes culturais modernas iniciadas
com o Renascimento, que parte da Toscana e atinge São Petersburgo,
do Iluminismo, que parte de Paris, do romantismo, que parte de leva,
em suma, com as grandes correntes literárias, artísticas, filosóficas que
atravessam a Europa até, e incluso, o surrealismo.
Os grandes temas europeus são propagados de Oeste a Leste: o
Estado nacional, a abolição da escravatura, o humanismo, a demo-
cracia, o desenvolvimento técnico-científico. 0 leste europeu, entre-
tanto, não foi apenas receptor mas, também, criador de civilização. No
século XIX, a grande Rússia faz nascer a mais rica cultura, tanto poética
e literária, como musical. 0 Império Otomano, que ameaçou Viena
em duas oportunidades - nos séculos XVI e XVII -, é, como todo
império, ao mesmo tempo opressor e civilizador. Permite a coexistência
de etnias e de religiões, o que nenhum império ou reino ocidental foi
capaz de tolerar. A Europa, em toda a sua riqueza, engloba,
necessariamente, o Leste, o Norte e o Sul mediterráneo.
Até meados do século XX, a Europa vivera inconscientemente
uma comunidade de destino, mesmo durante as guerras que opunham
e fortaleciam os Estados nacionais e que, por meio das reversões das
alianças, impediam a preponderância de um Estado sobre os outros.
Hoje, ela tenta reconstruir-se a partir de uma consciência e de
uma vo'aade de destino comum. De modo que a consciência de
pertencer à\identidade européia poderia favorecer o desenvolvimento de
uma didadania européia.


A identidade terrena
Enfim, precisamos conceber uma história geral da humanidade que
comece não em 1492, mas há muitos milhares e milhares de anos.
com a dispersão do Homo sapiens em todo o planeta, inclusive

70
71

72
nas ilhas do Pacífico. Após essa diáspora é que se operaram as grandes
disjunções entre fragmentos de humanidade. A Ásia e a Europa ficaram
praticamente isoladas uma da outra; o centro da África, a Oceania, as
Américas viviam de modo fechado. Mas, em toda parte, formaram-se
grandes civilizações. Uma nova história planetária tem início com
Cristóvão Colombo e Vasco da Gama. Seria preciso assinalar que, desde o
século XVI, duas globalizações, ao mesmo tempo interligadas e
antagônicas, estão em curso: a globalização de dominação, colonização e
exploração, e a das idéias humanistas, emancipadom internacionalistas,
portadoras de uma consciência de humanidade comum.
É na segunda metade do século XX, depois da Segunda Guerra
Mundial e da destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki, que surge uma
consciência de comunidade de destino. Como diz Mireille Delmas-
Marty: "Começamos a nos conceber como humanidade há cinqüenta
anos."
Hoje, podemos conceber, ao mesmo tempo:
1. Uma comunidade de destino, no sentido em que todos os
humanos estão sujeitos às mesmas ameaças mortais da arma
nuclear (que continua a ser disseminada) e ao mesmo perigo ecológico da
biosfera, que se agrava com o "efeito estufa' provocado pelo aumento
do CO2 na atmosfera, os desmatamentos em larga escala das grandes flo-
restas tropicais produtoras de nosso oxigênio comum, a esterilização dos
oceanos, mares e rios fornecedores de alimentos, as poluições sem conta, as
catástrofes sem limites. A tudo isso, acrescente-se ainda a explosão mundial
de novos vírus e antigos micróbios fortalecidos, a incontrolável
transformação da economia mundial; finalmente, e sobretudo, a ameaça
mundial polimorfa que retoma e produz a aliança entre duas barbáries: a
barbárie de destruição e morte, que vem do fundo das eras, e a barbárie
anônima e fria do mundo técnico-econômico.
2. Uma identidade humana comum: por mais diferentes que
sejam seus genes, solos, comunidades, ritos, mitos e idéias, o Homo
sapiens tem uma identidade comum a todos os seus representantes:
pertence a uma unidade genética de espécie, que torna possível a
interfecundação entre todos os homens e mulheres, não importando a
"raça"; essa unidade genética prolonga-se em unidade morfológica,
anatômica, psicológica; a unidade cerebral do Homo sapiensmanifesta-
se na organização singular de seu cérebro, em relação ao dos ou
tros primaras; enfim, existe uma unidade psicológica e afetiva: risos,
lágrima sorrisos são diversamente modulados, é claro, inibidos ou
desinibi os, segundo as culturas; mas, a despeito da extrema diversidade
dea :as culturas e dos modelos de personalidade que elas impõem,
risos, lágrimas, sorrisos são universais, e seu caráter inato manifesta-se nos
surdos-mudos-cegos de nascença, que sorriem, choram, riem sem que
tenham podido imitar quem quer que seja.
3. Uma comunidade de origem terrestre, a partir de nossa ascendência
e identidade antropóide, mamífera, vertebrada, que nos torna filhos da
vida e filhos da Terra.
A consciência e o sentimento de pertencermos à Terra e de nossa
identidade terrena são vitais atualmente. A progressão e o enraizamento
desta consciência de pertencer a nossa pátria terrena é que
permitirão o desenvolvimento, por múltiplos canais e em diversas
regiões do globo, de um sentimento de religação e intersolidaricdade,
imprescindível para civilizar as relações humanas (ONGs,
Sobrevivência Internacional, Anistia Internacional, Greenpeace etc. são
pioneiros da cidadania terrena). Serão a alma e o coração da
segunda globalização, produto antagônico da primeira, que permitirão
humanizar essa globalização.
Existe uma correlação entre o desenvolvimento de nossa cons-
ciência de humanidade e a consciência de nossa pátria terrena. A
pátria terrena comporta a salvaguarda das diversas pátrias, que
podem, muito bem, enraizar-se em uma concepção mais profunda e
mais vasta de "a pátria", desde que sejam abertas; ea condição necessária a
essa abertura é a consciência de pertencer â Terra-Pátria.
73

74
Assim, devemos contribuir para a autoformação do
cidadão e dar-lhe consciência do que significa uma nação. Mas
precisamos também estender a noção de cidadania a entidades que
ainda não dispõem de instituições prontas - como a Europa, para um
europeu -, ou não dispõem absolutamente de instituições políticas
comuns, como o planeta Terra. Uma tal formação deve permitir
enraizar, dentro de si, a identidade nacional, a identidade continental e
a identidade planetária.
Somos verdadeiramente cidadãos, dissemos, quando nos sentimos
solidários e responsáveis. Solidariedade e responsabilidade não podem
advir de exortações piegas nem de discursos cívicos, mas de um
profundo sentimento de filiação (afliare, de filius, filho), sentimento
matripatriótico que deveria ser cultivado de modo concêntrico sobre o
país, o continente, o planeta.
CAPÍTULO 7

OS TRES GRAUS
EXAMINEMOS aqui, muito sucintamente, como divisar as finalidades
enunciadas nos capítulos precedentes, para os três graus de ensino.


Primário

Em vez de destruir as curiosidades naturais a toda consciência que
desperta, seria necessário partir das interrogações primeiras: o que é o
ser humano? A vida? A sociedade? 0 mundo? A verdade?
A finalidade da "cabeça bem-feita" seria beneficiada por um pro-
grama interrogativo que partisse do ser humano.
É interrogando o ser humano que se descobriria sua dupla natureza:
biológica e cultural. Por um lado, seria dado início à Biologia; daí, uma
vez discernido o aspecto físico e químico da organização biológica,
seriam situados os domínios da Física e da Química; depois, as
ciências físicas conduziriam à inserção do ser humano no cosmo. Por
outro lado, seriam descobertas as dimensões psicológicas, sociais,
históricas da realidade humana. Assim, desde o princípio, ciências e
disciplinas estariam reunidas, ramificadas umas às outras, e o ensino
poderia ser o veículo entre os conhecimentos parciais e um
conhecimento do global. De tal sorte que a Física, a Química e a
Biologia possam ser diferenciadas, ser matérias distintas, mas não
isoladas, porquanto sempre inscritas em seu contexto.
75

76
Para compreender o que insere o homem no mundo físico e
vivo, e o que o diferencia dele, seria contada a aventura cósmica, tal
como podemos discerni-la atualmente (com indicações do que é
hipotético, do que é desconhecido, do que é misterioso): a formação das
partículas, a aglomeração da matéria em protogaláxias; depois, a
formação das galáxias e estrelas, a formação dos átomos de carbono
entre os céus anteriores ao noleo; depois, a constituição de macro-
moléculas na terra, provavelmeite com o concurso de materiais vindos
de meteoritos. 0 problema do nascimento da vida seria exposto (com
seus enigmas apontados no capítulo 5, p. 57), seguido das
ramificações de seus desenvolvimentos evolutivos.

A partir da aventura da hominização (com indicação de todos os
enigmas que ainda encerra), seria colocado o problema do surgimento do
Homo sapiens, da cultura, da linguagem, do pensamento, o que permitiria
introduzir a Psicologia e a Sociologia.
As aulas de conexão bioantropológicas deverão ser dadas com a
indicação de que o homem é, ao mesmo tempo, totalmente biológico e
totalmente cultural, e que o cérebro estudado em Biologia e a mente
estudada em Psicologia são duas faces de uma mesma realidade,
destacando-se o fato de que o surgimento da mente supõe a linguagem e
a cultura.
Assim, desde a escola primária, dar-se-ia inicio a um percurso que
ligaria a indagação sobre a condição humana à indagação sobre o
mundo.
À medida que as matérias são distinguidas e ganham autonomia, é
preciso aprender a conhecer, ou seja, a separar e unir, analisar e sintetizar,
ao mesmo tempo. Daí em diante, seria possível aprender a considerar
as coisas e as causas.
0 que é uma coisa? É preciso ensinar que as coisas não são ape
nas coisas', mas também sistemas que constituem uma unidade, a
qual engloba diferentes partes2. Não mais objetos fechados, mas
entidades inseparavelmente ligadas a seu meio ambiente, que só
podem ser realmente conhecidas quando inseridas em seu contexto. No
que diz respeito aos seres vivos, eles se comunicam, entre si e com o
meio ambiente-comunicações que fazem parte de sua organização e de
sua própria natureza.
0 que é uma causa? É preciso aprender a ultrapassar a causalidade
linear causa - efeito. Compreender a causalidade mútua inter-re-
lacionada, a causalidade circular (retroativa, recursiva), as incertezas da
causalidade (por que as mesmas causas não produzem sempre os
mesmos efeitos, quando os sistemas que elas afetam têm reações
diferentes, e por que causas diferentes podem provocar os mesmos
efeitos).
Assim, será formada uma consciência capaz de enfrentar com-
plexidades.
A aprendizagem da vida será realizada por duas vias, a interna e a
externa.
A via interna passa pelo exame de si, a auto-análise, a autocrítica. 0
auto-exame deve ser ensinado desde o primário e durante todo ele.
Seriam mostrados, particularmente, os erros ou deformações que ocorrem
nos testemunhos mais sinceros e convictos; seria estudada a maneira com
que a mente oculta os fatos que contrariam sua visão das coisas:
mostrar-se-ia como as coisas dependem menos de informações do que da
forma em que está estruturado o modo de pensar.
A via externa seria a introdução ao conhecimento das mídias.
Como as crianças são imersas, desde muito cedo, na cultura de
mídia, televisão, videogames, anúncios publicitários etc.; o papel do
1 As coisas não são coisas, dizia Robert Pages. 77
z ... e aprender o que nos ensina a noção de sistema (cf. Edgar Morin, La Mérhode, .
__-- LI. op. cit., pp. 94-151)_


EDGAR MORIN
professor, em vez de denunciar, é tornar conhecidos os modos de
produção dessa cultura. Seria preciso mostrar como o tratamento dado
às imagens filmadas ou televisionadas, notadamente pela montagem,
pode, arbitrariamente, dar a impressão de realidade (uma sucessão
de planos, por exemplo, em que vemos correr, separada-
mente, o predador e sua presa, dá a impressão de que vemos, simul-
taneamente, o percurso do perseguidor e do perseguido). 0
mestre poderia situar e comentar os programas assistidos e os
jogos praticados pelos alunos fora da classe.
Naturalmente, o ensino da língua, da ortografia, da História, do
cálculo seria integralmente mantido ao longo do primeiro grau.
Secundário
O ensino secundário seria o momento da aprendizagem do que
deve ser a verdadeira cultura - a que estabelece o diálogo entre cultura
das humanidades e cultura científica -, não apenas levando a uma
reflexão sobre as conquistas e o futuro das ciências, mas também
considerando a Literatura como escola e experiência de vida. A História
deveria desempenhar um papel chave na escola secundária, permitindo
ao aluno internalizar a história de sua nação, situar-se no futuro
histórico da Europa e, mais amplamente, da humanidade,
desenvolvendo, em si mesmo, um modo de conhecimento que
apreenda as características multidimensionais ou complexas das rea-
lidades humanas.
Os programas deveriam ser substituídos por guias de orientação que
permitissem aos professores situar as disciplinas em seus novos
contextos: o Universo, a Terra, a vida, o humano. As reciclagens que
permitissem essas integrações poderiam ser efetuadas no quadro dos
cursos de mestrado renovados, ou durante os períodos de formação em
uma escola superior ad hoc.
A CABEÇA BEM-FEITA
A partir daí, sob o estímulo de um professor de Filosofia ou de um
professor polivalente, os ensinamentos científicos poderiam convergir
para o reconhecimento da condição humana, no meio do mundo
físico e biológico.

Deveria ser instituído um ensino recomposto de ciências humanas,
centralizado no destino individual, no destino social, no destino
econômico, no destino histórico, no destino imaginário e mitológico
do ser humano, e orientado nesse sentido, conforme as disciplinas.
Como assinalamos, o ensino das humanidades não deve ser
sacrificado, mas otimizado. (Uma das principais missões do professor
secundário é salvaguardar a cultura das humanidades.) Os capítulos 3 e
4 demonstram como as humanidades introduzem, ao mesmo tempo, à
condição humana e ao aprender a viver.
A Filosofia deveria ter, como um de seus pontos capitais, a reflexão
sobre o conhecimento científico e não científico, e sobre o papel da
tecnociência, maximizado em nossas sociedades.
Durante todo o curso secundário, as matemáticas serão ensinadas
como forma de pensamento lógico que efetua operações calculáveis. Um
ensino filosófico na última série e para todas as opções introduzirá a
problemática da racionalidade e a oposição entre nacio
nalidade e racionalização.
Por exemplo, para os franceses o ensino da história nacional, con
cebida como uma história do afrancesamento, imersa na história da
Europa, que criou a história da era planetária e nela se acha integrada
desde então, será de extrema importância para a formação cidadã.
Além disso, os professores do secundário têm por dever educar
se sobre o mundo e a cultura dos adolescentes. Sempre houve, de
fato, sob a "colaboração de classe", uma "luta de classe" entre profes
snres_ oue dispõem do poder, e o grosso dos alunos, que criam seu
underground clandestino, realizando pequenas transgreções (copiar

78

79

80
colar etc.). Seria preciso compreender como a luta de classe se agravou nas
trágicas condições dos subúrbios.
Seria preciso instruir-se sobre a autonomia conquistada pelo
mundo adolescente em relação à cultura familiar e à cultura escolar, a
partir dos anos 1960-70, e sobre as formas comunitárias e as regras
específicas dos grupos adolescentes, que, onde há desintegração do
tecido social ou familiar (periferia), chegam ate a formação de clãs, que
constituem verdadeiras microssociedades, com seus territórios
sacramentados, suas leis de vingança, seus códigos de honra.
Trata-se, em suma, de promover o conhecimento e o reconhecimento
mútuos de dois universos, sobrepostos um ao outro, que, no entanto,
não se conhecem.
Enfim, o círculo da docência não deveria fechar-se, como uma
cidadela sitiada, sob o bombardeio da cultura de mídia, exterior à
escola, ignorada e desdenhada pelo mundo intelectual. 0 conheci-
mento dessa cultura é necessário não só para compreender os pro-
cessos multiformes de industrialização e supercomercialização cul-
turais, mas também o quanto das aspirações e obsessões próprias a
nosso "espírito da época" é traduzido e traído pela temática das
mídias3. A esse propósito, em vez de ignorar as séries de televisão -
enquanto os alunos se instruem por elas -, os professores mostrariam
que, por meio de convenções e visões estereotipadas, elas falam,
como a tragédia e o romance, das aspirações, temores e obsessões de
nossas vidas: amores, ódios, incompreensões, mal-entendidos, encontros,
separações, felicidade, infelicidade, doença, morte, esperança,
desespero, poder, traição, ambição, engodo, dinheiro, fugas, drogas.
3 V Esprit du amps título do livro que dediquei a essa cultura (Grasset. e Livre de
Poche, "Biblio Essais",.1983).- .
Universidade

A Universidade conserva, memoriza, integra, ritualiza uma
herança cultural de saberes, idéias, valores; regenera essa herança ao
reexaminá-la, atualizá-la, transmiti-la; gera saberes, idéias e valores
que passam, então, a fazer parte da herança. Assim, ela é conservado
ra, regeneradora, geradora.
A esse título, a Universidade tem uma missão e uma função
transeculares, que vão do passado ao futuro, passando pelo presente;
conservou uma missão transnacional, apesar da tendência ao fecha-
mento nacionalista das nações modernas. Dispõe de uma autonomia que
lhe permite executar essa missão.
Segundo os dois sentidos do termo "conservação", o caráter conservador
da Universidade pode ser vital ou estéril. A conservação é vital quando
significa salvaguarda e preservação, pois só se pode preparar um futuro
salvando um passado, e estamos em um século onde múltiplas e poderosas
forças de desintegração cultural estão em atividade. Mas a conservação é
estéril quando é dogmática, cristalizada, rígida. Assim, a Sorbonne do
século XVII condenou todos os avanços científicos de sua época, e, até o
século seguinte, grande parte da ciência moderna foi formada fora das
universidades.
No século XIX, a Universidade soube responder ao desafio do
desenvolvimento das ciências, ao realizar sua grande transformação, a
partir da reforma que Humboldt introduziu em Berlim, em 1809.
Tornou-se laica, quando instituiu sua liberdade interna frente -à religião
e ao poder; abriu-se à grande problematização, surgida com o
Renascimento, que interroga o mundo, a natureza, a vida, o homem,
Deus. A Universidade tornou-se, de fato, o espaço da problematização
característica da cultura européia moderna; está mais profundamente
inserida em sua missão transecular e transnacional, e aberta às culturas
extra-européias.
A reforma criou departamentos onde introduziu as ciências
modernas. A partir daí, a Universidade faz com que coexistam -
81

82
mas não com quese comuniquem - as duas culturas: a das huma-
nidades e a cultura científica.
Ao criar os departamentos, Humboldt percebera bem o caráter
transecular da integração das ciências na Universidade. Para ele, a
formação profissional (conveniente às escolas técnicas) não deveria ser
tomada como a vocação direta da Universidade, mas apenas como
vocação indireta, pela formação de uma postura de pesquisa. _ _
Daí a paradnsal dupla função da Universidade: adaptar-se à
modernidade científica e integrá-la; responder às necessidades fun-
damentais de formação, mas também, e sobretudo, fornecer um
ensino metaprofissional, metatécnico, isto é, uma cultura.
A Universidade deve adaptar-se à sociedade ou a sociedade é que deve
adaptar-se á Universidade? Há complementaridade e antagonismo
entre as duas missões: adaptar-se à sociedade e adaptar a sociedade à
Universidade; uma remete à outra em um círculo que deve ser produtivo.
Não se trata apenas de modernizar a cultura: trata-se também de
"culnrralizar" a modernidade.
Aqui, reencontramos a missão transecular, em que a Univer-
sidade convoca a sociedade a adotar sua mensagem e suas normas: ela
inocula na sociedade uma cultura que não foi feita para as formas
provisórias ou efêmeras do hic et nunc, mas para ajudar os cidadãos a
viverem seu destino hic et nuns, ela defende, ilustra e promove, no
mundo social e político, valores intrínsecos à cultura universitária - a
autonomia da consciência, a problematização (com a conseqüência de que a
pesquisa deve ser sempre aberta e plural), o primado da verdade sobre a
utilidade, a ética do conhecimento; donde essa vocação expressa pela
dedicatória no frontispício da Universidade de Heidelberg: "A mente
viva."
A Universidade deve, ao mesmo tempo, adaptar-se às necessidades
da sociedade contemporânea e realizar sua missão transecular de
conservação, transmissão e enriquecimento de um patrimônio cultural,
sem o que não passaríamos de máquinas de produção e consumo.
Ora, como apontamos no capítulo 1, o século XX lançou vários desafios a
essa dupla missão.
Antes de tudo, existe uma pressão superadaptativa, que leva a
adequar o ensino e a pesquisa às demandas econômicas, técnicas e
administrativas do momento; a conformar-se aos últimos métodos, às
últimas estimativas do mercado, a reduzir o ensino geral, a marginalizar a
cultura humanista. Ora, na vida como na história, a superadaptação a
condições dadas nunca foi um indicio de vitalidade, mas prenúncio de
senilidade e morte pela perda da substância inventiva e criadora.
Há, ao mesmo tempo, a disjunção radical dos saberes entre dis-
ciplinas e a enorme dificuldade em se estabelecer um ponto institu-
cional entre essas disciplinas (cff capítulo 1, pp. 14-16).
Há, da mesma maneira, a disjunção entre cultura humanista e
cultura científica, a qual comporta a compartimentação entre as ciências e as
disciplinas. A falta de comunicação entre as duas culturas provoca
graves conseqüências para uma e outra (eff capítulo 1, p. 17).
A reforma da Universidade não poderia contentar-se com uma
democratização do ensino universitário e com a generalização do status de
estudante. Falo de uma reforma que leve em conta nossa aptidão para
organizar o conhecimento - ou seja, pensar.

A reforma de pensamento exige a reforma da Universidade.
Essa reforma incluiria uma reorganização geral I ,tra a instauração
de faculdades, departamentos ou institutos destinados às ciências que
já realizaram uma união multidisciplinar em I torno de um núcleo
organizador sistêmico (Ecologia, ciências da Terra, Cosmologia). A
Ecologia científica, as ciências da Terra, a Cosmologia, insistimos,
são efetivamente ciências que têm por objeto não uma área ou um
setor, mas um sistema complexo: o ecossistema e, mais amplamente,
a biosfera, para a Ecologia; o sistema Terra, para as ciências da Terra;
e a estranha propensão do Universo a formar e destruir sistemas galáxicos e
solares, para a Cosmologia. Assim, seria
83

EDGAR MORIN
possível conceber uma Faculdade do Cosmo (que compreenda uma
seção filosófica) e uma Faculdade da Terra (ciências da Terra,
Ecologia, Geografias Física e Humana).
A reforma instituiria uma Faculdade do conhecimento e ciências
cognitivas, ainda que, nesse último domínio, a união ocorra mais
como superposição e polêmica do que como centralização no problema
reflexivo do conhecimento do conhecimento.
Embora as ciências biológicas estejam divididas entre uma uni-
ficação redutora na Biologia Molecular e uma compartimentação
sem unidade, seria preciso instituir uma Faculdade da vida.
Sem esperar pelas inevitáveis recomposições futuras, seria
importante criar uma Faculdade do humano (reagrupando a Pré-história,
a Antropologia Biológica, a Antropologia Cultural, as ciências humanas,
sociais e econômicas, e integrando a problemática indiví-
duo/espécie/sociedade).
A História deveria ter uma Faculdade plena e completa, onde
seria,-íuensinadas não só a história nacional e mundial, mas também
a da_ grandes civilizações da Ásia, África e das Américas.
?orlemos imaginar uma Faculdade dos problemas globalizados.
Enfim, a preservação dns Faculdades de Letras seria acompanhada
de uma revitalização de seu ensino, conforme sugerido anteriormente
(cap'tulos 3 e 4), e de uma abertura às artes, bem como ao cinema. Tais
disposições assegurariam por si sós a possibilidade de diplo
mas e teses multi ou transdisciplinares.

A fim de instaurar e ramificar um modo de pensar que permita a
reforma, seria o caso de se instituir, em todas as Universidades e
Faculdades, um dízimo epistemológico ou transdisciplinar4, que retiraria
10% da duração dos cursos para um ensino comum, orientado
4 Segundo uma sugestão do Congresso Internacional de Locarno, organizado pelo
CIRET e pela UNESCO (30 de abril-2 de maio de 1997): "Qual a universidade do
amanhã?"
para os pressupostos dos diferentes saberes e para as possibilidades de
torná-los comunicantes. Assim, o dizimo poderia ser destinado:
- ao conhecimento dos determinantes e pressupostos do
conhecimento;
- à racionalidade, à cientificidade, à objetividade; - à
interpretação;
- à argumentação;
- ao pensamento matemático;
- à relação entre o mundo humano, o mundo vivo, o mundo
físico-químico, o próprio cosmo;
- à interdependência e às comunicações entre as ciências (o cir
cuito das ciências, que, segundo Piaget, faz com que dependam
umas das outras);
- aos problemas da complexidade nos diferentes tipos de
conhecimento;
- à cultura das humanidades e à cultura científica; - à
literatura e às ciências humanas; - à ciência, à ética, à
política; - etc.
Ele elaboraria os dispositivos que iriam permitir as comunicações
entre as ciências antropossociais e as ciências da natureza.
Poderíamos também imaginar a instituição, em cada Universidade,
de um centro de pesquisas sobre os problemas de complexidade e de
transdisciplinaridade, bem como oficinas destinadas às problemáticas
complexas e transdisciplinares.

85


CAPÍTULO 8
A REFORMA DE
PENSAMENTO
"0 Iluminismo depende da educação, e a educação depende do
Iluminismo."
"Sei tudo, mas não compreendo nada."
KAN7
RENE DAUMAL
ECORDEMOS o segundo e o terceiro princípios do Discurso
sobre o Métodos:
- "Divisar cada uma das dificuldades, que examinarei em tantas
parcelas quanto seja possível e requerido para melhor resolve-las..."
- "Conduzir meus pensamentos por ordem, começando pelos
assuntos mais simples e mais fáceis de conhecer, para atingir, pouco a
pouco, como que degrau por degrau, o conhecimento dos assuntos
mais complexos..."
No segundo princípio encontra-se, potencialmente, o princípio de
separação, e no terceiro, o princípio de redução; esses princípios vão
reger a consciência científica.
O princípio de redução comporta duas ramificações. A primeira é
a da redução do conhecimento do todo ao conhecimento adicio
t "O primeiro é nunca aceitar coisa alguma como verdadeira, se não a souber
eomprovadamente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a pre-
venção... 0 último é fazer, em tudo, um levantamento tão completo e um exame
87

EDGAR MORIN
88
nal de seus elementos. Hoje em dia, admite-se cada vez mais
que, como indica a já citada frase de Pascal, o conhecimento das
partes depende do conhecimento do todo, como o conhecimento do
todo depende do conhecimento das partes. Por isso, em várias frentes do
conhecimento, nasce uma concepção sistêmica, onde o todo
não é redutível às partes.
A segunda ramificação do princípio de redução tende a limitar o
conhecimento ao que é mensurável, quantificável, formulável,
segundo o axioma de Galileu: os fenômenos só devem ser descritos com
a ajuda de quantidades mensuráveis. Desde então, a redução ao
quantificável condena todo conceito que não seja traduzido por uma
medida. Ora, nem o ser, nem a existência, nem o sujeito podem ser
expressos matematicamente ou por meio de fórmulas. 0 que
Heidegger chama de "a essência devoradora do cálculo" pulveriza os
seres, as qualidades e as complexidades, e, ao mesmo tempo, leva à
"quantofrenia" (Sorokin) e à "aritmomania"(Georgescu-Roegen).
Esse princípio ainda se impõe na tecnociência; mas torna-se questionado,
em profundidade, na medida em que a própria tecnociência é
questionada em profundidade.
Hoje, esses princípios revelaram suas limitações, e é preciso
recorrer ao princípio de Pascal, que citamos uma vez mais: "Como
todas as coisas são causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes,
mediatas e imediatas, e todas são sustentadas por um elo
natural e imperceptível, que liga as mais distantes e as mais diferentes,
considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tanto quan-
to conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes."
Há, efetivamente, necessidade de um pensamento:
- que compreenda que o conhecimento das partes depende do
conhecimento do todo e que o conhecimento do todo depende do
conhecimento das partes;
- que reconheça e examine os fenômenos multidimensionais,
em vez de isolar, de maneira mutiladora, cada uma de suas dimensões;
A CABEÇA BEM-FEITA
- que reconheça e trate as realidades, que são, concomitantemente
solidárias e conflituosas (como a própria democracia, sistema que se
alimenta de antagonismos e ao mesmo tempo os regula);
- que respeite a diferença, enquanto reconhece a unicidade.
É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um
pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento
disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido
originário do termo complexus o que é tecido junto.
De fato, a reforma do pensamento não partiria de zero. Tem
seus antecedentes na cultura das humanidades, na literatura e na
filosofia, e é preparada nas ciências.
Ciências

As duas revoluções científicas do século preparam a reformado
pensamento.
A primeira começou com a física quântica e, como já menciona
mos, desencadeia o colapso do Universo de Laplace; a queda do dog
ma determinista; o esboroamento de toda idéia de que haveria uma
unidade simples na base do universo; e a introdução da incerteza no
conhecimento científico. Suscitou, notadamente em Bachelard e
Popper, tomadas epistemológicas de consciência em relação aos pies
supostos do saber científico.
A segunda revolução, realizada com a constituição de grandes
ligações científicas, faz com que se levem em consideração os con
juntos organizados, ou sistemas, em detrimento do dogma reducio

nista que imperara durante o século XIX. Como vimos no capítulo
2, há uma ressurreição das entidades globais, como o cosmo, a
89
natureza, o homem, que foram picadas como salsichas, finalmente
desintegradas, supostamente porque provêm do senso primitivo pré

científico, na verdade porque contêm, no âmago, uma complexi-
dade insuportável para o pensamento disjuntivo/redutor.

Ainda que nem todas as conseqüências dessas duas revoluções
sejam aparentes e que a segunda continue incompleta em vários
domínios (ciências da vida, ciências humanas e sociais), a complexidade
invadiu o mundo pelas mesmas vias que a baniram dele. A maior
parte das ciências descobre diversos campos em que os enunciados
simples estão errados e "onde o preconceito a favor das leis torna-se
prejudicial"2. Além disso, já foram formados princípios de
inteligibilidade do complexo, e, a partir da cibernética, da teoria da
informação, foi elaborada uma concepção de auto-organização capaz de
conceber a autonomia, o que era impossível, segundo a ciência
clássica. A racionalidade e a cientificidade começaram a ser redefinidas e
complexifcadas a partir dos trabalhos de Bachelard, Popper,
Kuhn, Holton, Lakatos, Feyerabend. Também é de se esperar o
avanço pacifico de uma reforma de pensamento.

Alguns elos começaram a se formar entre as duas culturas. Al-
guns pensadores científicos ocuparam o lugar deixado vago por uma
filosofia enrodilhada sobre si mesma, que já não reflete sobre os co-
nhecimentos transmitidos pelas ciências. Esses pensadores forneceram
à cultura geral reflexões originadas de seus saberes. Assim,
Jacques Monod, François Jacob, Ilya Prigogine, Henri Atlan, Hubert
Reeves, Michel Cassé, Bernard d'Espagnat, Basarab Nicolescu, Jean-
Marc Lévy-Leblond e tantos outros restabeleceram as relações entre as
duas culturas desunidas, o que suscitará uma nova cultura geral, mais
rica que a antiga e capaz de analisar os problemas fundamentais da
humanidade contemporânea.
2 F. Hayek, "The Theory of Complex Phenomena", in Studies in Philosophy, Politics and
Economics, Routledge and Kegan, Londres, 1967.
Literatura e filosofia
No século XIX, enquanto o individual, o singular, o concreto e o
histórico eram ignorados pela ciência, a literatura e, particularmente, o
romance - de Balzac a Dostoievski e a Proust-restituíram e revelaram a
complexidade humana. As ciências realizavam o que acreditavam ser sua
missão: dissolver a complexidade das aparências para revelar a simplicidade
oculta da realidade; de fato, a literatura assumia por missão revelar a
complexidade humana que se esconde sob as aparências de simplicidade.
Revelava os indivíduos, sujeitos de desejos, paixões, sonhos, delírios;
envolvidos em relacionamentos de amor, de rivalidade, de ódio;
inseridos em seu meio social ou profissional; submetidos a acontecimentos
e acasos, vivendo seu destino incerto.
Todas as obras-primas da literatura foram obras-primas de com-
plexidade: a revelação da condição humana na singularidade do indi-
víduo (Montaigne), a contaminação do real pelo imaginário (o Dom
Quixote, de Cervantes), o jogo das paixões humanas (Shakespeare).
Melhor ainda: a literatura revela o valor cognitivo da metáfora,
que o espírito científico rejeita com desprezo. Como dizem Knyazeva
e Kurdymov: "A metáfora é um indicador e uma não-linearidade local no
texto ou no pensamento, é um indicador de abertura do texto ou do
pensamento a diversas interpíetações ou reinterpretações, para
encontrar ressonância com as id ias pessoais de um leitor


3 E. N. Knyazeva e S. P. Kurdymov, Synergetics at the Crossroads of the Eastern and the
Western Cultures (1994), Keldish Institute of Applied Mathematics, da Academia de
Cicncias da Russia.
ou de um interlocutor."3
Uma metáfora revela a visão ou a percepção que se tornaram cli-
chês. É nesse sentido que um poeta diz: "A realidade é um clichê do
qual escapamos pela metáfora." A metáfora literária estabelece uma
comunicação analógica entre realidades muito distantes e diferentes,
90
91

92
que permite dar intensidade afetiva à inteligibilidade que ela apre-
senta. Ao levantar ondas analógicas, a metáfora supera a desconti-
nuidade e o isolamento das coisas. Fornece, freqüentemente, precisões
que a língua puramente objetiva ou denotativa não pode fornecer.
Assim, quando falamos da roupa, do corpo, do buquê, da perna de um
vinho, compreendemos melhor sua qualidade do que por meio de
referências físico-químicas.
Acrescentemos que, mesmo nas ciências, há fecundos transportes de
noções de uma disciplina para outra (cf. anexo 1, p. 108). Antonio
Machado dizia: "Uma idéia não tem mais valor que uma metáfora; em
geral, tem menos." E Descartes, que não era essencialmente cartesiano,
observava: "Poderia surpreender que os pensamentos profundos sejam
encontrados nos escritos dos poetas, e não nos dos filósofos. 0 motivo é
que os poetas se servem do entusiasmo e exploram a força da imagem."
(Descartes, Cogitationes privatae)
Enfim, dizíamos que a complexidade não ê um problema novo. O
pensamento humano sempre enfrentou a complexidade e tentou, ou
bem reduzi-la, ou bem traduzi-la. Os grandes pensadores sempre fizeram
uma descoberta de complexidade. Até uma simples lei, como a da
gravidade, permite ligar, sem reduzi-los, fenômenos diversos como a
queda dos corpos, o fato de a Lua não cair na Terra, o movimento das
marés. Toda grande filosofia é uma descoberta de complexidade; depois,
ao formar um sistema em torno da complexidade que revelou, ela encerra
outras complexidades.


A reforma em todos os níveis

A exigida reforma do pensamento vai gerar um pensamento do
contexto e do complexo. Vai gerar um pensamento que liga e enfrenta a
incerteza.
0 pensamento que une substituirá a causalidade linear e unidi-
recional por uma causalidade em círculo e multirreferencial; corrigi
rá a rigidez da lógica clássica pelo diálogo capaz de conceber noções
ao mesmo tempo complementares e antagonistas, e completará o
conhecimento da integração das partes em um todo, pelo reconheci
mento da integração do todo no interior das partes.
Ligará a explicação à compreensão, em todos os fenômenos
humanos. Vamos repetir aqui a diferença entre explicação e com-
preensão. Explicar é considerar o objeto de conhecimento apenas
como um o jeto e aplicar-lhe todos os meios objetivos de elucidação.
De moco que há um conhecimento explicativo que é objetivo, isto é,
que considera os objetos dos quais é preciso determinar as formas, as
qualidades, as quantidades, e cujo comportamento conhecemos pela
causalidade mecânica e determinista. A explicação, claro, é necessária à
compreensão intelectual ou objetiva. Mas é insuficiente para a
compreensão humana.
Há um conhecimento que é compreensível e está fundado sobre a
comunicação e a empatia - simpatia, mesmo - intersubjetivas.
Assim, compreendo as lágrimas, o sorriso, o riso, o medo, a cólera, ao
ver o ego alter como alter ego, por minha capacidade de experimentar os
mesmos sentimentos que ele. A partir daí, compreender comporta um
processo de identificação e de projeção de sujeito a sujeito. Se vejo
uma criança em prantos, vou compreendê-la não pela medição do grau
de salinidade de suas lágrimas, mas por identificá-la comigo e
identificar-me com ela. A compreensão, sempre intersubjetiva,
necessita de abertura e generosidade.


Os sete princípios

Podemos adiantar sete diretivas para um pensamento que une; são
princípios complementares e interdependentes.

1. OPrincípio sistêmico ou organizacionaz que liga o conhecimento
das partes ao conhecimento do todo, segundo o elo indicado por
93

Pascal: "Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo,
tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes."
A idéia sistêmica, oposta à idéia reducionista, é que "o todo é mais do que a
soma das partes". Do átomo a estrela, da bactéria ao homem e à
sociedade, a organização de um todo produz qualidades ou pro-
priedades novas, em relação às partes consideradas isoladamente: as
emergências. Assim também, a organização do ser vivo produz qualidades
desconhecidas no que se refere a seus constituintes físico-químicos.
Acrescentemos que o todo é, igualmente, menos que a soma das partes,
cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto.

2. O princípio "holográrnico"4 põe em evidência este aparente
paradoxo das organizações complexas, em que não apenas a parte está no
todo, como o todo está inscrito na parte. Assim, cada célula é uma parte
de um todo- o organismo global -, mas também o todo está na parte.
a totalidade do patrimônio genético está presente em cada célula
individual; a sociedade está presente em cada indivíduo,
enquanto todo, através de sua linguagem, sua cultura, suas normas.

3. 0 principio do circuito retroativo, introduzido por Norbert
Wiener, permite o conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele
rompe com o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e o
efeito age sobre a causa, como no sistema de aquecimento, em que o
termo,$tato regula o andamento do aquecedor. Esse mecanismo de
regulação ermite, aqui, a autonomia térmica de um apartamento em
relação acfrio externo. De modo mais complexo, "a homoestasia" de um
organismo vivo é um conjunto de processos reguladores baseados em
múltiplas rerroações. Em sua forma negativa, o círculo de retroação
(ou feedback) permite reduzir o desvio e, assim, estabilizar um sistema.
Em sua forma positiva, o feedback é um, mecanismo amplificador; por
exemplo: a violência de um protagonista provoca
4 Inspirado no holograma, em que cada ponto contém a quase totalidade da infor
uma reação violenta, que, por sua vez, provoca uma reação mais vio-
lenta ainda. Inflacionárias ou estabilizadoras, são incontáveis as retroações
nos fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos.

4. O princípio do circuito recursivo ultrapassa a noção de regulação
com as de autoprodução e auto-organização. É um circuito gerador em
que os produtos e os efeitos sãc; eles mesmos, produtores e
causadores daquilo que os produz. Assim, nós, indivíduos, somos os
produtos de um sistema de reprodução que vem do início dos tempos,
mas esse sistema não pode se reproduzir se nós mesmos não nos
tornarmos produtores com o acasalamento. Os indivíduos humanos
produzem a sociedade nas interações e pelas interações, mas a socie-
dade, à medida que emerge, produz a humanidade desses indiví
duos, fornecendo-lhes a linguagem e a cultura.

5. Princípio da autonomia/dependência (auto-organização}. os
seres vivos são seres auto-organizadores, que não param de se auto-
produzir e, por isso mesmo, despendem energia para manter sua
autonomia. Como têm necessidade de retirar energia, informação e
organização de seu meio ambiente, sua autonomia é inseparável dessa
dependência; é por isso que precisam ser concebidos como seres auto-
ecoorganizadores. 0 princípio de auto-ecoorganização vale
especificamente, é óbvio, para os humanos - que desenvolvem sua
autonomia na dependência de sua cultura - e para as sociedades
que se desenvolvem na dependência de seu meio geológico.
Um aspecto chave da auto-ecoorganização viva é que ela se regenera
permanentemente a partir da morte de suas células, segundo a
fórmula de Heráclito, "viver de morte, morrer de vida"; e as idéias
antagônicas de morte e vida são, ao mesmo tempo, complementares e
antagônicas.
6. O princípio dialógi-o acaba justamente de ser ilustrado pela
formula de Heráclito. Ele une dois princípios ou noções que
deviam
f%rmi,~a .-1f. W-4-E.- ÇI .
i
V
94
95
W

96
excluir-se reciprocamente, mas são indissociáveis em uma mesma
realidade.
Deve-se conceber uma dialógica ordem/desordem/organização,
desde o nascimento do Universo: a partir de uma agitação calorífica
(desordem), onde, em certas condições (encontros aleatórios), princípios de
ordem vão permitir a constituição de núcleos, átomos, galáxias e estrelas.
Sob as mais diversas formas, a dialógica entre a ordem, a desordem e a
organização via inúmeras interretroações, está constantemente em ação
nos mundos físico, biológico e humano.
A dialógica permite assumir racionalmente a inseparabilidade de
noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo.
Niels Bohr, por exemplo, reconheceu a necessidade de conceber
partículas físicas como corpúsculos e como ondas, ao mesmo tempo. De
um certo ponto de vista, os indivíduos, na medida em que desaparecem,
são como corpúsculos autônomos; de um outro ponto de vista - dentro
das duas continuidades que são a espécie e a sociedade -, o indivíduo
desaparece quando se consideram a espécie e a sociedade; e a espécie e a
sociedade desaparecem quando se considera o indivíduo. 0 pensamento
deve assumir dialogicamente os dois termos, que tendem a se excluir
um ao outro.

7. 0 princípio da reintrodução do conhecimento em todo conheci-
mento. Esse princípio opera a restauração do sujeito e revela o pro-
blema cognitivo central: da percepção à teoria científica, todo
conhecimento é uma reconstrução/ tradução feita por uma men-
te/cérebro, em uma cultura e época determinadas.
Repetimos: a reforma do pensamento é de natureza não progra-
mática, mas paradigmática, porque concerne à nossa aptidão para
organizar o conhecimento. É ela que permitiria a adequação à finalidade
da cabeça bem-feita; isto é, permitiria o pleno uso da inteligência.
Precisamos compreender que nossa lucidez depende da complexidade
do modo de organização de nossas idéias.
A reforma do pensamento integraria, nas duas culturas, as idéias
capitais nascidas à margem de uma e de outra: no mundo dos mate
máticos-engenheiros-pensadores, a partir de Wiener, von Neumann,
von Foerster5. Desse modo, ela poria em comunicação essas duas
culturas que acabariam por constituir os dois pólos da cultura. Novas
humanidades emergiriam, assim, do intercâmbio entre dois pólos
culturais. Essas humanidades revitalizariam a problematização, o
que permitiria a plé a emergência dos problemas globais e funda
mentais. E, assim, ca4a futuro cidadão, para chegar à especialização,
terá de passar, então,',pela cultura.
0 humanismo seria regenerado. Lembremos que o humanismo
europeu atual não tem, como únicas fontes, a herança ateniense
(a soberania dos cidadãos sobre sua cidade) e a herança judaico-cristã (o
homem à imagem de Deus, Deus que adquire a carne e a forma
humanas). Recebeu a contribuição de quatro descobertas oriundas das
ciências, que situam o ser humano no mundo destruindo qualquer
antropocentrismo. É Copérnico quem retira do homem o privilégio de ser
o centro do Universo. É Darwin quem o torna descendente do
antropóide, e não criatura à imagem de seu Criador. É Freud quem
dessacraliza o espírito humano, e, finalmente, é Hubble quem nos exila
nas periferias mais afastadas do cosmo. 0 humanismo já não poderia ser
o portador da orgulhosa vontade de dominar o Universo. Torna-se,
essencialmente, o da solidariedade entre humanos, a qual envolve uma
relação umbilical com a natureza e o cosmo.
Isso indica que um modo de pensar, capaz de unir e solidarizar
conhecimentos separados, é capaz de se desdobrar em uma ética da
união e da solidariedade entre humanos. Um pensamento capaz de não
se fechar no local e no particular, mas de conceber os conjuntos, estaria
apto a favorecer o senso da responsabilidade e o da cidadania. A reforma
de pensamento teria, pois, conseqüências existenciais, éti
cas e cívicas.
s Cf. anexo l , pp. 111 c112.
97

PARA ALEM DAS
CONTRADIçOES
TUALMENTE, os problemas da educação tendem a ser reduzi
dos a termos quantitativos: "mais créditos", "mais ensinamentos ,
menos rigidez", menos matérias programadas", "menos carga horária".
Tudo isso, claro, é necessário. É preciso haver mais créditos, mais
ensinamentos. É preciso respeitar o optimum demográfico da classe
para que o professor possa conhecer cada aluno individualmente e
ajudá-lo em sua singularidade. É preciso haver reformas de
flexibilidade, de diminuição da carga horária, de organização, mas
essas modificações sozinhas não passam de reformazinhas que camuflam
ainda mais a necessidade da reforma de pensamento.
De fato, os atuais projetos de reforma giram em torno desse
buraco negro que lhes é invisível. Só seria visível se as mentes fossem
reformadas. E aqui chegamos a um impasse: não se pode reformar a
instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem reformar
as mentes sem uma prévia reforma das instituições. Essa é uma
impossibilidade lógica que produz um duplo bloqueio.
Há resistências inacreditáveis a essa reforma, a um tempo, una e
dupla. A imensa máquina da educação é rígida, inflexível, fechada,
burocratizada. Muitos professores estão instalados em seus hábitos e
autonomias disciplinares. Estes, como dizia Curien, são como os
lobos que urinam para marcar seu território e mordem os que nele
penetram. Há uma resistência obtusa, inclusive entre os espíritos
refinados. Para eles, o desafio é invisível.
99


EDGAR MORIN
A cada tentativa de reforma, mínima que seja, a resistência
aumenta. Como dizia Edgar Faure, depois de ter experimentado
uma de suas reformazinhas, ``o imobilismo se pôs em marcha, e não sei
como detê-lo". Quanto a mim, fui alvo dos sarcasmos dos
Diafoirus e Trissotin (cujo número cresceu consideravelmente desde
Molière), quando sugeri as "cinco finalidades".
Corno as mentes, em sua maioria, são formadas segundo o
modelo da especialização fechada, a possibilidade de um conhecimento
para além de uma especialização parece-lhes insensata. E, no entanto, o
mais limitado especialista tem idéias gerais, das quais não tem dúvidas,
sobre a vida, o mundo, Deus, a sociedade, os homens, as mulheres. E,
de fato, esses especialistas, experts, vivem de idéias gerais e globais,
mas arbitrárias, nunca criticadas, nunca refletidas. 0
reino dos especialistas é a reino da c mais ocas idéias gerais, sendo que a
mais oca de todas é a de que não há necessidade de idéia geral,

O bloqueio levantado pela necessidade de reformar as mentes
para reformar as instituições é acrescido de um bloqueio mais amplo, que
diz respeito à relação entre a sociedade e a escola. Uma relação que não
é tanto de reflexo, mas de holograma e de recorrência. Holograma:
assim como um ponto único de um holograma contém em si a
totalidade da figura representada, também a escola, em sua
singularidade, contém em si a presença da sociedade como um todo.
Recorrência: a sociedade produz a escola, que produz a sociedade.
Diante disso, como reformar a escola sem reformar a sociedade, mas
como reformar a sociedade sem reformar a escola?
Há a impossibilidade lógica de superar essas duas contradições que
acabamos de enunciar; mas este é o tipo de impossibilidade que a vida
sempre desdenhou.
Quanto à relação escola-sociedade, já nos referimos a ela no
capítulo 7. Como existe um circuito entre a escola e a sociedade -
A CABEÇA BEM-FEITA
uma produz a outra -, qualquer intervenção que modifique um de seus
termos tende a provocar uma modificação na outra.
É preciso saber começar, e o começo s6 pode ser desviante
e marginal. A Universidade moderna, que rompeu com a Univer-
sidade medieval, nasceu no inicio do século XIX, em Berlim, capital de
uma pequena nação periférica, a Prussia. Difundiu-se, depois, pela
Europa e pelo mundo. Agora, é ela que precisa ser reformada. E a
reforma também começará de maneira periférica e marginal.
Como sempre, a iniciativa só pode partir de uma minoria, a princípio
incompreendida, às vezes perseguida. Depois, a idéia é disseminada e,
quando se difunde, toma-se uma força atuante.
É nesse sentido que podemos responder à questão colocada por Karl
Marx, em uma de suas teses sobre Feuerbach: "Quem educará os
educadores?" Será uma minoria de educadores, animados pela fé na
necessidade de reformar o pensamento e de regenerar o ensino. São os
educadores que já têm, no íntimo, o sentido de sua missão.
Freud dizia que há três funções impossíveis por definição: educar,
governar, psicanalisar. É que são mais que funções ou profissões. O
caráter funcional do ensino leva a reduzir o professor ao funcionário. 0
caráter profissional do ensino leva a reduzir o professor ao
especialista. 0 ensino deve voltar a ser não apenas uma função, uma
especialização, um profissão, mas também uma tarefa de saúde
pública: uma missão.
Uma missão de transmissão.
A transmissão exige, evidentemente, competência, mas também
requer, além de uma técnica, uma arte.
Exige algo que não é mencionado em nenhum manual, mas que
Platão já havia acusado como condição indispensável a todo ensino: o
eros, que é, a um só tempo, desejo, prazer e amor, desejo e prazer
i
101

de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos alunos. 0 eros
permite dominar a fruição ligada ao poder, em benefício da fruição
ligada à doação. É isso que, antes de tudo mais, pode despertar o
desejo, o prazer e o amor no aluno e no estudante.
Onde não há amor, só há problemas de carreira e de dinheiro para
o professor; e de tédio, para os alunos.
A missão supõe, evidentemente, a fé: fé na cultura e fé nas pos-
sibilidades do espírito humano.
Portanto, é missão muito elevada e difícil, uma vez que supõe, ao
mesmo tempo, arte, fé e amor.
Eros -4 missao -4 fé
Recapitulemos os pontos essenciais da missão de ensinar:
- fornecer uma cultura que permita distinguir, contextualizar,
globalizar os problemas multidimensionais, globais e fundamentais, e
dedicar-se a eles;
- preparar as mentes para responder aos desafios que a
crescente complexidade dos problemas impõe ao conhecimento
humano;
- preparar as mentes para enfrentar as incertezas que não param
de aumentar, levando-as não somente a descobrirem a história incerta e
aleatória do Universo, da vida, da humanidade, mas também
promovendo nelas a inteligência estratégica e a aposta em um mundo
melhor.
- educar para a compreensão humana entre os próximos e os
distantes;
- no caso dos franceses, ensinar a filiação à França, à sua história,
à sua cultura, à cidadania republicana, e introduzir a filiação à Europa;
- ensinar a cidadania terrena, ensinando a humanidade em sua
unidade antropológica e suas diversidades individuais e
culturais,
bem como em sua comunidade de destino, própria à era planetária, em
que todos os animais enfrentam os mesmos problemas vitais e
mortais.
Reencontrar as missões
As cinco finalidades educativas estão ligadas entre si e devem ali-
mentar umas às outras (a cabeça bem-feita, que nos dá aptidão para
organizar o conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendi-
zagem do viver, a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã).
Devem despertar, igualmente, a ressurreição da cultura pela conexão entre
as duas culturas e, como veremos agora, contribuir para a regeneração da
laicidade e o nascimento de uma democracia cognitiva.
Na França, a reforma assim concebida, necessariamente inseparável
de uma regeneração cultural, seria, ela mesma, inseparável de uma
regeneração da laicidade francesa. Na origem da laicidade, fruto do
Renascimento, está a problematização que interroga o mundo, a natureza,
a vida, o homem, Deus; e que dá vida à cultura européia moderna. A
laicidade do início do século chegou a acreditar que a ciência, a
razão, o progresso trariam soluções' a todas essas questões. Hoje, já não
basta problematizar o homem, a natureza, o mundo, Deus; é preciso
problemati7ar o progresso, a ciência, a técnica, a razão. A nova laicidade
deve problematizar a ciência revelando suas profundas
ambivalências. Deve problematizar a razão, opondo a racionalidade
aberta à racionalização fechada; deve problematizar o progresso, que
depende não de uma necessidade histórica, mas de uma vontade
consciente dos humanos. A laicidade, assim regenerada, talvez criasse as
condições para um novo Renascimento
A reforma de pensamento é uma necessidade democrática fun-
damental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua
época é frear o enfraquecimento democrático que suscita, em todas
constitui o círculo recorrente
da trindade laica, onde cada um dos
termos alimenta o outro.
1
102


EDGAR MORIN
as áreas da política, a expansão da autoridade dos experta especialistas de
toda ordem, que restringe progressivamente a competência dos
cidadãos. Estes são condenados à- aceitação ignorante das decisões
daqueles que se presumem sabedores, mas cuja inteligência é míope,
porque fracionária e abstrata. 0 desenvolvimento de uma
democracia cognitiva só é possível com uma reorganização do saber,
eesta pede uma reforma do pensamento que permita não apenas isolar
para conhecer, mas também ligar o que está isolado, e nela renasceriam,
de uma nova maneira, as noções pulverizadas pelo esmagamento
disciplinar: o ser humano, a natureza, o cosmo, a realidade.
A reforma de pensamento é uma necessidade histórica funda-
mental. Hoje somos vítimas de dois tipos de pensamento fechado:
primeiro, o pensamento fracionário da tecnociência burocratizada, que
corta, como fatias de salame, o complexo tecido do real; segundo, o
pensamento cada vez mais fechado, voltado para a etnia ou a nação,
que recorta, como um puzzle, o tecido da Terra-Pátria. Precisamos,
pois, estar intelectualmente rearmados, começar a pensar a
complexidade, enfrentar os desafios da agonia/nascimento de nosso
entre-dois-milênios e tentar pensar os problemas da humanidade na era
planetária.
Essa é uma reforma vital para os cidadãos do novo milênio, que
permitiria o pleno uso de suas aptidões mentais e constituiria não,
certamente, a única condição, mas uma condição sine qua non para
sairmos de nossa barbárie.
ANEXO 1
Inter-poli-transdisciplinaridade1
A DISCIPLINA é uma categoria organizadora dentro do conhecimento
científico; ela institui a divisão e a especialização do trabalho e responde
à diversidade das áreas que as ciências abrangem. Embora inserida em
um conjunto mais amplo, uma disciplina tende naturalmente à
autonomia pela delimitação das fronteiras, da linguagem em que ela se
constitui, das técnicas que é levada a elaborar e a utilizar e,
eventualmente, pelas teorias que lhe são próprias. A organização
disciplinar foi instituída no século XIX, notadamente com a formação
das universidades modernas; desenvolveu-se depois, no século XX,
com o impulso dado à pesquisa científica; isto significa que as
disciplinas têm uma história: nascimento, institucionalização,
evolução, esgotamento etc.; essa história está inscrita na da Universidade,
que, por sua vez, está inscrita na história da sociedade; daí resulta que as
disciplinas nascem da sociologia das ciências e da sociologia do
conhecimento. Portanto, a disciplina nasce não apenas de um
conhecimento e de uma reflexão interna sobre si mesma, mas também
de um conhecimento externo. Não basta, pois, estar por dentro de uma
disciplina para conhecer todos os problemas aferentes a ela.


Virtude da especialização e risco de hiperespecializaçzo

A fecundidade da disciplina na história da ciência já foi demonstrada;
por um lado, ela realiza a circunscrição de uma área de com
1 Uma primeira versão deste texto foi publicada em Carrefour des teiences, Actes du
colloque du CNRS "Interdisciplinarité", CNRS, Paris, 1990.


105


EDGAR MORIN
de transmitir, amor pelo conhecimento e amor pelos alunos. 0 giros
permite dominar a fruição ligada ao poder, em benefício da fruição
ligada à doação. É isso que, antes de tudo mais, pode despertar o
desejo, o prazer e o amor no aluno e no estudante.
Onde não há amor, só há problemas de carreira e de dinheiro
para o professor; e de tédio, para os alunos.
A missão supõe, evidentemente, a fé: fé na cultura e fé nas pos-
sibilidades do espirito humano.
Portanto, é missão muito elevada e difícil, uma vez que supõe, ao
mesmo tempo, arte, fé e amor.

Recapitulemos os pontos essenciais da missão de ensinar:
- fornecer uma cultura que permita distinguir, contextualizar,
globalizar os problemas multidimensionais, globais e fundamentais, e
dedicar-se a eles;
- preparar as mentes para responder aos desafios que a
crescente complexidade dos problemas impõe ao conhecimento
humano;
- preparar as mentes para enfrentar as incertezas que não
param de aumentar, levando-as não somente a descobrirem a história
incerta e aleatória do Universo, da vida, da humanidade, mas também
promovendo nelas a inteligência estratégica e a aposta em um mundo
melhor.
- educar para a compreensão humana entre os próximos e os
distantes;
- no caso dos franceses, ensinar a filiação à França, à sua história,
à sua cultura, à cidadania republicana, e introduzir a filiação à Europa;
- ensinara cidadania terrena, ensinando a humanidade em sua
unidade antropológica e suas diversidades individuais e culturais,
A CABEÇA BEM-FEITA
bem como em sua comunidade de destino, própria à era planetária, em
que todos os animais enfrentam os mesmos problemas vitais e
mortais.


Reencontraras missões

As cinco finalidades educativas estão ligadas entre si e devem ali-
mentar umas às outras (a cabeça bem-feita, que nos dá aptidão para
organizar o conhecimento, o ensino da condição humana, a aprendi-
zagem do viver, a aprendizagem da incerteza, a educação cidadã).
Devem despertar, igualmente, a ressurreição da cultura pela conexão
entre as duas culturas e, como veremos agora, contribuir para a rege-
neração da laicidade e o nascimento de uma democracia cognitiva.

Na França, a reforma assim concebida, necessariamente inseparável de
uma regeneração cultural, seria, ela mesma, inseparável de uma
regeneração da laicidade francesa. Na origem da laicidade, fruto do
Renascimento, está a problematização que interroga o mundo, a natureza,
a vida, o homem, Deus; e que dá vida à cultura européia moderna. A
laicidade do inicio do século chegou a acreditar que a ciência, a razão,
o progresso trariam soluções a todas essas questões. Hoje, já não basta
problematizar o homem, a natureza, o mundo, Deus; é preciso
problematizar o progresso, a ciência, a técnica, a razão. A nova laicidade
deve problematizar a ciência revelando suas profundas
ambivalências. Deve problematizar a razão, opondo a I racionalidade
aberta à racionalização fechada; deve problematizar o progresso, que
depende não de uma necessidade histórica, mas de uma vontade
consciente dos humanos. A laicidade, assim regenerada, talvez criasse as
condições para um novo Renascimento.
A reforma de pensamento é uma necessidade democrática fun-
damental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua
época é frear o enfraquecimento democrático que suscita, em todas
Eros -f missão -r fé
constitui o círculo recorrente
da trindade laica, onde cada um dos
termos alimenta o outro.
i
103

106
petência, sem a qual o conhecimento tornar-se-ia intangível; por
outro, ela revela, destaca ou constrói um objeto não trivial para o
estudo científico: é nesse sentido que Marcelin Berthelot dizia que a
Química cria seu próprio objeto. Entretanto, a instituição disciplinar
acarreta, ao mesmo tempo, um perigo de hiperespecialização do
pesquisador e um risco de "coisificacao" do objeto estudado, do qual se corre
o risco de esquecer que é destacado ou construído. 0 objeto da disciplina
será percebido, então, como uma coisa auto-suficiente; as ligações e
solidariedades desse objeto com outros objetos estudados por outras
disciplinas serão negligenciadas, assim como as ligações e
solidariedades com o universo do qual ele faz parte. A fronteira
disciplinar, sua linguagem e seus conceitos próprios vão isolar a
disciplina em relação às outras e em relação aos problemas que se
sobrepõem às disciplinas. A mentalidade hiperdisciplinar vai tornarse
uma mentalidade de proprietário que proíbe qualquer incursão
estranha em sua parcela de saber. Sabemos que, originalmente, a
palavra "disciplina" designava um pequeno chicote utilizado no
autoflagelamento e permitia, portanto, a autocrítica; em seu sentido
degradado, a disciplina torna-se um meio de flagelar aquele que se
aventura no domínio das idéias que o especialista considera de sua
propriedade.


0 olhar extradisciplinar

A abertura, portanto, é nece Sária. Acontece que um olhar ingênuo
de amador, alheio à disciplina, mesmo a qualquer disciplina, resolva
um problema cuja solução era invisível dentro da disciplina. 0 olhar
ingênuo -- que não conhece, é óbvio, os obstáculos que a teoria
existente levanta contra a elaboração de uma nova visão - pode, em
geral erradamente, mas às vezes com acerto, permitir-se essa visão.
Assim, Darwin, por exemplo, era um amador esclarecido; Lewis
Mumford tirou partido de sua falta de formação universitária
especializada e até de sua falta de educação biológica, salvo por sua
paixão pelos animais e sua coleção de coleópteros. E Mumford con-
clui: "Devido a essa ausência de fixação e inibição escolares, nada
impedia o alerta de Darwin a cada manifestação do ambiente vivo."
Assim também, o meteorologista Wegener, ao olhar ingenuamente o mapa
do Atlântico Sul, observou que o Oeste da África e o Brasil
ajustavam-se um ao outro. Retirando similares de fauna e de flora,
fósseis e atuais, de ambos os lados do oceano, ele elaborou, -em 1912, a
teoria do desvio dos continentes: por muito tempo refutada pelos
especialistas, por ser "teoricamente impossível", undenkbar, foi
admitida cinqüenta anos depois, principalmente com a descoberta da
tectônica das placas. Marcel Proust dizia: "Uma verdadeira viagem de
descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo."
Jacques Labeyrie sugeriu o seguinte teorema, que sub
metemos à verificação: "Quando não se encontra solução em uma
disciplina, a solução vem de fora da disciplina."


Invasões e migrações interdisciplinares

Contudo, se o caso de Darwin e de Wegener são excepcionais,
pode-se dizer de pronto que a história das ciências não se restringe à da
constituição e proliferação das disciplinas, mas abrange, ao mesmo
tempo, a das rupturas entre as fronteiras disciplinares, da invasão
de um problema de uma disciplina por outra, de circulação de con-
ceitos, de formação de disciplinas híbridas que acabam tornando-se
autônomas; enfim, é também a história da formação de complexos,
onde diferentes disciplinas vão ser agregadas e aglutinadas. Ou seja, se a
história oficial da ciência é a da disciplinaridade, uma outra história,
ligada e inseparável, é a das inter-poli-transdisciplinaridades.
A "revolução biológica" dos anos 50 nasceu de invasões e contatos, de
transferências entre disciplinas à margem da Física, da Química e
da Biologia. Foram físicos como Schrõdinger que proje
10?

EDGAR MORIN
taram problemas da termodinâmica e da organização física, no organismo
biológico. Em seguida, pesquisadores marginais tentaram descobrir
a organização da herança genética a partir das propriedades químicas
do DNA. Pode-se dizer que a Biologia Molecular nasceu de
concubinagens "ilegítimas". Nos anos 50, ela não tinha nenhum
status disciplinar e só adquiriu algum, na França, depois que Monod,
Jacob e Lwoff receberam o Prêmio Nobel. Então, essa Biologia
Molecular tornou-se autônoma; e, por seu turno, depois mostrou
tendêr -ia a se fechar, a se tornar até imperialista; mas isso, como diria
Kipling, é uma outra história...
Certas,noções circulam e, com freqüência, atravessam clandesti-
namente as fronteiras, sem serem detectadas pelos "alfandegueiros". Ao
contcáFio da idéia muito difundida de que uma noção pertence apenas
ao campo disciplinar em que nasceu, algumas noções migradoras
fecundam um novo terreno, onde vão enraizar-se, ainda que à custa de
um contra-senso. B. Mandelbrot chega até a dizer que "uma das
ferramentas mais poderosas da ciência, a única universal, é o contra-
senso manejado por um pesquisador de talento". De fato, um erro em
relação a um sistema de referências pode tornar-se uma verdade em
relação a outro tipo de sistema. A noção de informação, originada da
prática social, adquiriu um sentido científico, preciso, novo, na teoria
de Shannon; depois, migrou para a Biologia para se inserir no gene,
onde foi associada à noção de código; este, originado da linguagem
jurídica, "biologizou-se" na noção de código genético. A Biologia
Molecular muitas vezes esquece que, sem essas noções de herança,
código, informação, mensagem, de origem antropossociomorfa, a
organização viva seria ininteligível.
Mais importantes são as transposições de esquemas cognitivos de
uma disciplina para outra: assim, Claude Lévi-Strauss não pode
A CABEÇA BEM-FEITA
ria ter elaborado sua antropologia estrutural sem os freqüentes
encontros que teve em Nova York - nos bares, parece - com R.
Jakobson, que já havia elaborado a lingüística estrutural; além disso,
Jakobson e Lévi-Strauss não se teriam conhecido se ambos não fossem
refugiados da Europa: um escapara da Revolução Russa, algumas
décadas antes; o outro deixara a França ocupada pelos nazistas. São
inúmeras as migrações de idéias e de conceitos, as simbioses e
transformações teóricas devidas às migrações de dentistas expulsos das
universidades nazistas ou stalinistas. É a própria comprovação de que um
poderoso antídoto contra o fechamento e o imobilismo das disciplinas
vem dos grandes abalos sísmicos da História (inclusive uma guerra
mundial), das convulsões e revoltas sociais, que, por acaso, provocam
encontros e trocas que permitem a unia disciplina disseminar uma
semente da qual nascerá uma nova disciplina.
Objetos e projetos inter poli-transdisciplinares
Certos conceitos científicos mantêm a vitalidade porque se recusam
ao fechamento disciplinar. Assim acontece com a história da École
desAnnales, que, depois de ter ocupado um espaço marginal na
Universidade, agora é extremamente valorizada. A história da
Annales foi constituída pela transdisciplinaridade e dentro dela: deu
_lugar a uma profunda penetração da perspectiva econômica e sociológica
na História; em seguida, uma segunda geração de historiadores
introduziu a perspectiva antropológica, em profundidade, como provam
os trabalhos de Duby e Le Goff sobre a Idade Média. A História,
assim fecundada, não pode mais ser considerada como uma
disciplina stricto senso: é uma ciência histórica multi focalizadora,
multidimensional, em que se acham presentes as dimensões de outras
ciências humanas, e onde a multiplicidade de perspectivas
particulares, longe de abolir, exigem a perspectiva global.
109

Certos processos de "complexificação" das áreas de pesquisa dis-
ciplinar recorrem a disciplinas muito diversas e, ao mesmo tempo, à
policompetência do pesquisador: um dos casos mais flagrantes é o da Pré-
história, cujo objeto, a partir das descobertas de Leakey, na África
Austral (1959), passou a ser a hominização, processo não somente
anatômico e técnico, mas também ecológico (a substituição da floresta
pela savana), genético, ecológico (referente ao comportamento),
psicológico, sociológico, mitológico (traços do que poderia constituir um
culto dos mortos e crenças em um além). Na linha dos trabalhos de
\X'ashburn e de De \Tore, a Pré-história de hoje (que se dedica à
hominização) refere-se, por um lado, à etologia dos primatas superiores
para tentar conceber como se teria dado a passagem de uma sociedade
primática avançada para as sociedades dos hominianos; e, por outro
lado, a etologia das sociedades arcaicas, ponto de chegada desse
processo. A Pré-história recorre cada vez mais a técnicas muito
diversas, notadamente para datar os esqueletos e os utensílios, analisar o
clima, a fauna, a flora etc. Associando essas diversas disciplinas em sua
pesquisa, o pré-historiador torna-se policompetente; e quando Coppens,
por exemplo, chega ao término de seu trabalho, a obra resulta na
análise das múltiplas dimensões da aventura humana. Atualmente, a
Pré-história é uma ciência policompetente e multidisciplinar. Esse
exemplo mostra que a constituição de um objeto e de um projeto, ao
mesmo tempo interdisciplinar e transdiseiplinar, é que permite criar o
intercâmbio, a cooperação, a policompetência.


Os esquemas cognitivos reorganizadores

Da mesma maneira, a ciência ecológica é constituída sobre um
objeto e um prójeto multi e interdisciplinar, a partir do momento da
criação (Tansley, 1935), não só do conceito de nicho ecológico,
como também do de ecossistema (união de um biotopo e uma bio-
cenose), isto é, a partir do momento em que um conceito organiza
dor de caráter sistêmico permitiu articular conhecimentos diversos
(geográficos, geológicos, bacteriológicos, zoológicos e botânicos). A
ciência ecológica pôde não somente utilizar os serviços de diferentes
disciplinas, mas também criar cientistas policompetentes, que possuem,
ademais, a competência dos problemas fundamentais desse tipo de
organização.
O exemplo da hominização e o do ecossistema demonstram
que, na história das ciências, há rupturas de fechamentos disciplinares,
de avanço ou de transformações de disciplinas pela constituição de um
novo esquema cognitivo - o que Hanson chamava de retrodução. 0
exemplo da biologia molecular demonstra que esses avanços e
transformações podem acontecer pela invenção de novas hipóteses
explicativas, o que Peirce chamava de abdução. A conjunção das novas
hipóteses e do novo esquema cognitivo permite articulações,
organizadoras ou estruturais, entre disciplinas isoladas e permite
conceber a unidade do que era desunido.
O mesmo acontece com o cosmo, que fora expulso das disciplinas
parcelárias e volta, triunfalmente, com o desenvolvimento da
astrofísica, depois das observações de Hubble sobre a dispersão das
galáxias, em 1930; da descoberta da irradiação isótropa em 1965; e da
integração de conhecimentos microfisicos de laboratório para
conceber a formação da matéria e a vida dos astros. Desde então, a
astrofísica já não é apenas uma ciência nascida da união, cada vez mais
sólida, entre física, microfisica e astronomia de observação é também
uma ciência que deu nascimento a um esquema cogniti vo
cosmológico: o que permite religar, uns aos outros, conheciment~s
disciplinares muito distintos, para considerar nosso Universo e sua
história e, ao mesmo tempo, introduzir na ciência (renovando o
interesse filosófico por este problema chave) o que, até então, parecia
partir unicamente da especulação filosófica.

Enfim, há casos extremamente fecundos de hibridação. Talvez um
dos momentos mais importantes da história científica tenha a ver
com os encontros ocorridos entre engenheiros e matemáticos,
t
110

111





primeiro, em plena guerra dos anos 40, e depois, nos anos 50; esses
encontros fizeram confluir trabalhos de matemática, inaugurados
por Church e Turing, e as pesquisas técnicas para criar máquinas
autogovernadas, que levaram à formação do que Wiener chamou de
cibernética, integrando a teoria da informação concebida por
Shannon e Weaver para a companhia de telefones Bell. Constituiuse,
então, um verdadeiro nó górdio de conhecimentos formais e de
conhecimentos práticos, às margens das ciências e no limite entre
ciência e engenharia. Esse corpo de idéias e de conhecimentos novos
desenvolveu-se para criar o novo reino da informática e da inteligência
artificial. Sua irradiação atingiu todas as ciências, naturais e
sociais. Von Neumann e Wiener são exemplos típicos da fecundidade
das mentes policompetentes, cujas aptidões podem ser aplicadas a
diferentes práticas e à teoria fundamental.


Para além das disciplinas

Esses poucos exemplos, apressados, fragmentados, pulverizados,
dispersos, têm o propósito de insistir na espantosa variedade de cir-
cunstâncias que fazem progredir as ciências, quando rompem o iso-
lamento entre as disciplinas: seja pela circulação de conceitos ou de
esquemas cognitivos; seja pelas invasões e interferências, seja pelas
complexificações de disciplinas em áreas policompetentes; seja
pela emergência de novos esquemas cognitivos e novas hipóteses
explicativas; e seja, enfim, pela constituição de concepções
organizadoras que permitam articular os domínios disciplinares em
um sistema teórico comum.

Hoje, é preciso tomar consciência desse aspecto, o menos elucidado
da história oficial das ciências, que é um pouco como a face obscura
da lua. Intelectualmente, as disciplinas são plenamente justificáveis,
desde que_ preservem um campo de-visão que reconheça e
A CABEÇA BEM-FEITA
conceba a existência das ligações e das solidariedades. E mais: só
serão plenamente justificáveis se não ocultarem realidades globais. Por
exemplo, a noção de homem está fragmentada entre diversas disciplinas
das ciências biológicas e entre todas as disciplinas das ciências
humanas: a física é estudada por um lado, o cérebro, por outro, e o
organismo, por um terceiro, os genes, a cultura etc. Esses múltiplos
aspectos de uma realidade humana complexa só podem adquirir
sentido se, em vez de ignorarem esta realidade, forem religados a ela.
Com certeza não é possível criar uma ciência do homem que anule
por si só a complexa multiplicidade do que é humano. 0
importante é não esquecer que o homem existe e não é uma "pura"
ilusão de humanistas pré-científicos. Só chegaríamos a um absurdo (de
fato, já chegamos a ele em alguns setores das ciências humanas, onde a
inexistência do homem foi decretada, dado que este bípede não entra
nas categorias disciplinares).

Uma outra consciência é igualmente necessária: a que Piaget
chamava de o círculo das ciências, que estabelece a interdependência de
farto das diversas ciências. As ciências humanas se ocupam do
homem; mas este é não apenas um ser físico e cultural, como também
um ser biológico, e as ciências humanas, de certa maneira, devem
ter raizes nas ciências biológicas, que devem ter raízes nas ciências
físicas- nenhuma dessas ciências, evidentemente, é redutível uma à
outra. Entretanto, as ciências físicas não constituem o último e principal
pilar sobre o qual são edificados todos os outros; essas ciências físicas, por
mais fundamentais que sejam, também são ciências humanas, no sentido
em que surgem em uma história humana e em uma sociedade humana.
A elaboração do conceito de energia é inseparável da "tecnização" e da
industrialização das sociedades ocidentais no século XIX. Portanto, em
um certo sentido, tudo é físico, mas, ao mesmo tempo, tudo é humano.
0 grande problema, pois, é encontrar a difícil via da interarticulação
entre as ciências, que têm, cada uma delas, não apenas sua linguagem
própria, mas também
EDGAR MORIN
113

114
conceitos fundamentais que não podem ser transferidos de uma lin-
guagem à outra.
O problema do paradigma

Finalmente, é preciso estar consciente do problema do paradigma.
Um paradigma impera sobre as mentes porque institui os conceitos
soberanos e sua relação lógica (disjunção, conjunção, implicação), que
governam, ocultamente, as concepções e as teorias científicas, realizadas
sob seu império. Ora, hoje em dia, emerge de maneira esparsa um
paradigma cognitivo, que começa a conseguir estabelecer pontos entre
ciências e disciplinas não comunicantes. De fato, o reino do
paradigma da ordem por exclusão da desordem (que exprimiria a
concepção determinista-mecanicista do Universo)
sofreu fissuras em inúmeros pontos. Em diferentes áreas, a noção de
ordem e a noção de desordem, a despeito das dificuldades lógicas
que isto acarreta, exigem, cada vez mais instantemente, serem conce-
bidas de modo complementar e não apenas antagônico: no plano
teórico, a ligação surgiu com von Neumann (teoria dos
autômatos auto-reprodutores) e von Foerster (order from noise); impôs-
se na termodinâmica de Prigogine, ao demonstrar que fenômenos de
organização aparecem em condições de turbulência; instala-se, sob o
nome de caos, na meteorologia, e a idéia de caos organizador tornou-se
fisicamente central a partir dos trabalhos e reflexões de David Ruelle.
Assim, a idéia de que ordem, desordem e organização devem ser pensadas
em conjunto surge de diferentes pontos de partida. A missão da ciência
não é mais afastar a desordem de suas teorias, mas estudáIa. Não é mais
abolir a idéia de organização, mas concebê-la e introduzi-la para
englobar disciplinas parciais. Eis por que um novo paradigma talvez
esteja nascendo...
0 ecodisciplinar e o meradisciplinar
Voltemos aos termos interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e
transdisciplinaridade, difíceis de definir, porque são polissêmicos e
imprecisos. Por exemplo: a interdisciplinaridade pode significar, pura e
simplesmente, que diferentes disciplinas são colocadas em volta de uma
mesma mesa, como diferentes nações se posicionam na ONU, sem
fazerem nada além de afirmar, cada qual, seus próprios direitos
nacionais e suas próprias soberanias em relação às invasões do vizinho.
Mas interdisciplinaridade pode significar também troca e cooperação, o
que faz com que a interdisciplinaridade possa vir a ser alguma coisa
orgânica. A multidisciplinaridade constitui uma associação de
disciplinas, por conta de um projeto ou de um objeto que lhes sejam
comuns; as disciplinas ora são convocadas como técnicos especializados
para resolver tal ou qual problema; ora, ao contrário, estão em completa
interação para conceber esse objeto e esse projeto, como no exemplo
da hominização. No que concerne à transdisciplinaridade, trata-se
freqüentemente de esquemas cognitivos que podem atravessar as
disciplinas, às vezes com tal virulência, que as deixam em transe. De
fato, são os complexos de inter-multitrans-disciplinaridade que
realizaram e desempenharam um fecundo papel na história das ciências;
é preciso conservar as noções chave que estão implicadas nisso, ou
seja, cooperação; melhor, objeto comum; e, melhorjainda, projeto
comum.
Enfim, o imp rtante não é apenas a idéia de inter- e de trans-
disciplinaridade. Levemos "ecologizar" as disciplinas, isto é, levar em
conta tudo que lhes é contextual, inclusive as condições culturais e
sociais, ou seja, ver em que meio elas nascem, levantam problemas, ficam
esclerosadas e transformam-se. É necessário também o "metadisciplinar";
o termo "meta" significando ultrapassar e conservar. Não se pode
demolir o que as disciplinas criaram; não se pode romper todo o
fechamento: há o problema da disciplina, o problema da ciência, bem
como o problema da vida; é preciso que uma disciplina seja, ao mesmo
tempo, aberta e fechada.
115

Afinal, de que serviriam todos os saberes parciais senão para formar
uma configuração que responda a nossas expectativas, nossos desejos,
nossas interrogações cognitivas? Deve-se pensar também que o que
está além da disciplina é necessário à disciplina para que não seja
automatizaria e esterilizada; o que nos remete a um imperativo
cognitivo, já formulado há três séculos por Blaise Pascal, que justifica as
disciplinas e conserva, ao mesmo tempo, um ponto de vista
metadisciplinar. "Uma vez que todas as coisas são causadas e
causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas estão
presas por um elo natural e imperceptível, que liga as mais distantes e as
mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem
conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, parti-
cularmente, as partes."
De alguma forma, ele convidava a um conhecimento em movi-
mento, a um conhecimento em vaivém, que progride indo das partes
ao todo e do todo às partes; o que é nossa ambição comum.
ANEXO 2
A noção de sujeito
"Agir, viver, conservar o ser, essas três palavras signif c, m a
mesma coisa."
"A substância viva é o ser que é sujeiro em verdade."
HEGEL
ESSA E UMA NOÇÃO ao mesmo tempo evidente e misteriosa. É uma
evidência perfeitamente banal, uma vez que qualquer um diz "Eu".
Quase todas as línguas têm essa primeira pessoa do singular; se não têm
o pronome, têm pelo menos o verbo na primeira pes
soa do singular, como em latim. E há uma segunda evidência reflexiva,
revelada por Descartes: Não posso duvidar que duvido; logo, eu penso. Se
penso, logo, eu sou, isto é, eu existo na primeira pessoa como sujeiro. Então
surge o mistério: o que é este "eu" e este "sou", que não é simplesmente "é"?
Será uma aparência secundária ou uma realidade fundamental? É
uma realidade fundamental para qualquer tradição filosófica. É o que
parece, também, quando Moisés pergunta ao Ser que lhe surge sob a
forma de uma sarça ardente: "Mas quem és tu?" A resposta -
pelo menos tal como é traduzida em francês* - é: "Eu sou aquele que
é." Significa que o Deus de Moisés é a subjetividade absoluta.
Mas, por outro lado, quando se procura considerar a sociedade e
o sujeito de forma determinista, então o sujeito desaparece.
I ESPINOSA
116
117

118
De fato, nossa mente está dividida em dois, conforme olhemos o
mundo de modo reflexivo ou compreensivo, ou de modo científico e
determinista. 0 sujeito aparece na reflexão sobre si mesmo e
conforme um modo de conhecimento intersubjetivo, de sujeito a
sujeito, que podemos chamar de compreensão. Contrariamente, ele
desaparece no conhecimento determinista, objetivista, reducionista
sobre o homem e a sociedade. De alguma forma, a ciência expulsou o
sujeito das ciências humanas, na medida em que propagou entre elas
o princípio determinista e redutor 0 sujeito foi expulso da
Psicologia, expulso da História, expulso da Sociologia; e, pode-se
dizer, o ponto comum às concepções de Althusser, Lacan, Lévi-
Strauss foi o desejo de liquidar o sujeito humano.
Entretanto, entre os pensadores do ser estruturalista, houve uma volta
tardia ao sujeito, como em Foucault, em Barthes; mas foi uma volta
existencial, que acompanhou a volta do ecos, a volta da literatura, e não
uma volta do sujeito ao âmago da teoria.
0 que eu gostaria de propor é uma definição do sujeito, partindo não da
afetividade, não do sentimento, mas de uma base bio-lógica.
Para esta definição, é preciso admitir um certo número de idéias que
hoje começam a ser introduzidas no campo científico. Primeiramente,
a idéia de autonomia inseparável da idéia de auto-organização.
A autonomia de que falo não é mais uma liberdade absoluta,
emancipada de qualquer dependência, mas uma autonomia que
depende de seu meio ambiente, seja ele biológico, cultural ou social. Assim,
um ser vivo, para salvaguardar sua autonomia, trabalha, despende
energia, e deve, obviamente, abastecer-se de energia em seu meio, do
qual depende. Quanto a nós, seres culturais e sociais, só podemos
ser autônomos a partir de uma dependência original em relação à
cultura, em relação a uma língua, em relação a um saber. A autonomia
não é possível em termos absolutos, mas em termos relacionais e
relativos.
Em segundo lugar, precisamos do conceito de indivíduo como
pré-requisito ao conceito de sujeito. Ora, a noção de indivíduo não é
absolutamente fixa e estável. Como sabem, houve duas tendências
contrárias na história do pensamento biológico: para uma delas a
única realidade é o indivíduo, porque, fisicamente, vemos apenas
indivíduos, nunca a espécie; para a outra, a única realidade é a espécie,
já que os indivíduos não passam de amostras efêmeras. Conforme
um certo olhar, o indivíduo desaparece; conforme um outro olhar, é a
espécie que desaparece. Essas duas visões negam-se reciprocamente. Mas
acredito que devemos tratar as duas da mesma maneira que Niels Bohr
tratava a onda e o corpúsculo: são duas noções aparentemente
antagônicas, que são, no entanto, complementares para dar conta de
uma mesma realidade.
Eis, portanto, uma perspectiva que nos leva a procurar um elo
complexo entre indivíduo e espécie; e podemos aplicar o mesmo
raciocínio à relação indivíduo/sociedade.
Do ponto de vista biológico, o indivíduo é o produto de um
ciclo de reprodução; mas este produto é, ele próprio, reprodutor em seu ciclo,
já que é o indivíduo que, ao se acasalar com indivíduo de outro sexo,
produz esse ciclo. Somos, portanto, produtos e produtores, ao mesmo
tempo. Assim também, quando se considera o fenômeno social, são
as interações entre indivíduos que produzem a sociedade; mas a
sociedade, com sua cultura, suas normas, retroage sobre os
indivíduos humanos e os produz enquanto indivíduos sociais
dotados d ~, uma cultura.
Assim, temos agora uma noção bastante complexa da autonomia
e do indivíduo; falta-nos a noção de sujeito. Para chegar à noção de
sujeito, é preciso pensar que toda organização biológica necessita de
uma dimensão cognitiva. Os genes constituem um patrimônio
hereditário de natureza cognitiva/informacional da célula. Da mesma
maneira, o ser vivo, seja ele dotado ou não de um sistemá neuro-
cerebral, retira informações de seu meio ambiente e exerce uma ati-
vidade cognitiva inseparável de sua prática de ser vivo. Ou seja, a
dimensão cognitiva é indispensável à vida.
119



Essa dimensão cognitiva pode ser chamada de computacional. A
computação é o tratamento de estímulos, de dados, de signos, de
símbolos, de mensagens, que nos permite agir dentro dó universo
exterior, assim como de nosso universo interior, e conhecê-los.
E isto é fundamental: a natureza da noção do sujeito tem a ver com a
natureza singular de sua computação, desconhecida por qualquer computador
artificial que possamos fabricar. Essa computação do ser individual é a
computação que cada um faz de si mesmo, por si mesmo e para si mesmo. É
um cômputo. 0 cômputo é o ato pelo qual o sujeito se constitui posicionando-
se no centro de seu mundo para lidar com ele, considerá-lo, realizar nele todos os
atos de preservação, proteção, defesa etc.
Eu diria, portanto, que a primeira definição do sujeito seria o
egocentrismo, no sentido literal do termo: posicionar-se no centro de seu
mundo. De resto, o "Eu", como já observamos várias vezes, é o pronori:.que
qualquer um pode dizer, mas ninguém pode dizê-lo em m u-llugar. 0
"Eu é o ato de ocupação de um espaço que se torna ce:,t do mundo. E,
quanto a isso, diria que há um princípio "logís : *tc,9" de identidade, que pode
ser resumido na fórmula: "Eu (je] sou eu [moi]"*. "Eu" (je] é o ato de
ocupação do espaço egocêntrico; "eu" [moi] é a objetivação do ser que ocupa
esse espaço. "Eu (je] sou eu [~1"é o princípio que permite estabelecer, a um só
tempo, a diferença,entre o "Eu" (subjetivo) e o "eu" (sujeito objetivado), e sua
indissolúvel identidade. Ou seja, a identidade do sujeito comporta um
princípio de distinção, de diferenciação e de reunificação. Esse princípio
bastante complexo é absolutamente indispensável, pois permite qualquer
tratamento objetivo de si mesmo. Quando uma bactéria trata de suas
moléculas, ela as trata como objetos, mas trata como objetos que lhe
pertencem. E trata de si mesma, para si mesma.
* No original, Je suis moi. A escola francesa de Psicanálise costuma utilizar hoje no sentido de
instância psicanalítica encarregada de funções; o moi refere-se precisamente a uma
representação da imagem que o sujeito tem de "si mesmo" (ou de seu sentimento de
identidade), o ego. Aqui utilizamos "Eu" e "eu" para traduzir, respectivamente, je e moi (N.
da T.)
A CABEÇA BEM-FEITA
o Eis, portanto, um princípio que, por esta separação/unificação do
"Eu" subjetivo e do "eu" objetivo, permite efetivamente todas as ope-
rações. Este princípio comporta a capacidade de se referir ao
mesmo tempo a "si" (auto-referência) e ao mundo exterior (exo-referência)
- de distinguir, portanto, o que é exterior a si. "Auto-exo-referência
quer dizer que eu posso distinguir entre o "eu" e o "não-eu", o "Eu" e não-Eu
, bem orno entre o eu e os outros eu , o "Eu "e os outros "Eu". Alias,
nós, umanos, temos dois níveis de subjetividade: temos nossa subjetividad1
cerebral, mental, da qual vou falar; e temos a subjetividade de nosso
organismo, protegida por nosso sistema imunológico. 0 sistema
imunológico opera a distinção entre o "si" e o "não-si"; quer dizer, entre as
entidades moleculares que não têm a carteira de identidade singular do
indivíduo e são rejeitadas, perseguidas, vencidas, enquanto as que
possuem a carteira de identidade são aceitas, reconhecidas e
protegidas. Portanto, a distinção radical imediata do "si", do "não-si", do
"eu" e dos "outros" distribui valores concomitantemente: tudo o que vem do
"eu", do "si", do "Eu" é valorizado e deve ser protegido, defendido; o resto
é indiferente ou combatido. Eis o primeiro princípio de identidade do
sujeito que permite a unidade subjetiva/objetiva do "Eu sou eu" e a
distinção entre o exterior e o interior.
Há um segundo princípio de identidade, inseparáve4 que é: "Eu"
continua o mesmo a despeito das modificações internas do "eu"
(mudança de caráter, de humor), do "si mesmo" (modificações físicas
devidas à idade). De fato, o indivíduo modifica-se somaticamente do
nascimento à morte. Todas as suas moléculas são substituídas inúmeras
vezes, assim como a maioria de suas células. Há modificações
extremas no interior do "eti', e chegarei a elas. A despeito disso tudo, o
sujeito continua o mesmo. Ele diz simplesmente: "Eu era criança", "Eu
estava irado", mas é sempre o mesmo "Eu", ao passo que os
caracteres exteriores ou físicos do indivíduo se modificam. Aí está o
segundo princípio de identidade, esta permanência da auto-referencia,
apesar das transformações e através das transformações.
A esse respeito, chegaremos a um terceiro e a um quarto princí
EDGAR MORIN
121

122
pios: um princípio de exclusão e um princípio de inclusão, que estão
ligados de forma inseparável. 0 princípio de exclusão pode ser assim
enunciado: se pouco importa quem possa dizer "Eu", ninguém pode dizê-
lo em meu lugar. Portanto o "Eu" é único para cada um. Vemos isso no
caso dos gêmeos homozigotos: não há qualquer singularidade somática
que os diferencie, são exatamente idênticos geneticamente, mas são
não só dois indivíduos, mas também dois sujeitos distintos. É
confortável ter uma cumplicidade, um código comum, intuições
recíprocas, mas nenhum dos gêmeos diz "Eu" no lugar do outro. Este é o
princípio de exclusão.
Já o princípio de inclusão é, ao mesmo tempo, complementar e
antagônico. Posso inscrever um "nós" em meu "Eu", como eu posso incluir
meu "Eu" em um "nós": assim, posso introduzir, em minha subjetividade
e minhas finalidades, os meus, meus parentes, meus filhos, minha
família, minha pátria. Posso incluir em minha subjetividade aquela
(aquele) que amo e dedicar meu "Eu" ao amor, seja à pessoa amada, seja à
pátria comum. Evidentemente, existe antagonismo entre inclusão e
exclusão. Como exemplo, temos as mães que se sacrificam por sua prole e
dão suas vidas para salvá-la e as mães que abandonam ou comem seus
filhos para salvar a si próprias. Temos o patriota que vai sacrificar-se por
sua pátria e temos o desertor que vai salvar sua própria pele. Ou seja,
temos todos, em nós, este duplo princípio que pode ser diferentemente
modulado, distribuído; ou seja, o sujeito oscila entre o egocentrismo absoluto e
a devoção absoluta.
0 princípio de inclusão é tão fundamental quanto os outros
princípios. Supõe, para os humanos, a possibilidade de comunicação entre
os sujeitos de uma mesma espécie, de uma mesma cultura, de uma mesma
sociedade.
Além disso, há a tomada de posse do sujeito por um "superego". Aqui,
uso como imagem esta tese de Julian Jaynes, em La Naissance de Ia
conscience dans 1'effondrement de l esprit bicaméral1 (0 nasci
1 Traduzido do inglês por G. Gaborá dc Montjou, PUF, 1994.
mento da consciência no desmoronamento da mente bicameral).
Segundo sua teoria, os indivíduos dos impérios da Antigüidade possuíam
duas câmaras em suas mentes. Uma câmara era a da subjetividade
pessoal, das ocupações, da família, dos filhos, de tudo o que lhes
concernia enquanto indivíduos privados. A outra câmara era ocupada
pelo poder teocrático-político, pelo rei, pelo império, e, quando o
poder falava, o indivíduo-sujeito era possuído e obedecia às injunções
desta segunda câmara. E, segundo Jaynes, a consciência nasce no
momento em que se abre uma brecha entre as duas câmaras, que,
assim, podem se comunicar. Então, o indivíduo sujeito pode dizer a si
mesmo: "Mas o que é a cidade, o que é a política.?" E, eventualmente,
tornar-se cidadão.
É preciso destacar, aqui, algo de muito importante: no "Eu sou eu"
já existe uma dualidade implícita - em seu ego, o sujeito é
potencialmente outro, sendo, ao mesmo tempo, ele mesmo. Épor-
que o sujeito traz em si mesmo a alteridade que ele pode comunicar-se com
outrem. É por ser o produto unitário de uma dualidade (reprodução por
cisão, nos unicelulares; por encontro de dois seres de sexos diferentes, na
maioria dos seres vivos) que ele traz em si a atração por um outro ego. A
compreensão permite considerar a outro não apenas como ego alter, um
outro indivíduo sujeito, mas também como alter ego, um outro eu
mesmo, com quem me comunico, simpatizo, comungo. 0 princípio
de comunicaC está, pois, incluído no princípio de identidade e
manifesta-se nc rincípio de inclusão.
Como conseqüência do princípi de exclusão, há sempre uma
incomunicabilidade do que existe de mais subjetivo em nós; mas,
graças à linguagem, podemos comunicar, pelo menos, nossa
incomunicabilidade.
Podemos, pois, enunciar que a qualidade própria a todo indivíduo
sujeito não poderia ser reduzida ao egoísmo; ao contrário, ela
permite a comunicação e o altruísmo.
Claro, o sujeito possui também um caráter existencial, porque é
inseparável do indivíduo, que vive de maneira incerta,
aleatória, e
123

acha-se, do nascimento à morte, em um meio ambiente incerto,
muitas vezes ameaçador e hostil.

Agora, posso me referir a esta idéia de MacLean sobre o cérebro do ser
humano. É um cérebro triúnico; tal como na Santíssima Trindade há
três seres que são distintos, sendo, simultaneamente, o mesmo; tal
como possuímos um céreo réptil ou paleocéfalo, que é a sede de
nossos impulsos mais elemeitares: a agressividade, o cio; possuímos um
cérebro mamífero, com ~ sistema límbico, que permite o
desenvolvimento da afetividade; enfim, temos o córtex e, sobretudo, o
neocórtex, que desenvolveu incrivelmente o cérebro do Homo
sapiens e é a sede das operações da racionalidade. Temos, portanto,
essas três instâncias. 0 interessante é que não há hierarquia estável
entre as três: não é a razão que comanda os sentimentos e controla os
impulsos. Podemos ter uma permuta de hierarquias e talvez nossa
agressividade utilize nossas capacidades racionais para atingir seus
fins. Há uma extraordinária instabilidade, uma hierarquia permutativa
entre as três instâncias, mas o notável é que o "Eu" ora é ocupado pelo
doutor Jekyll, ora por Mister Hyde. Nos casos de duplicação de
personalidade, temos duas pessoas inteiramente diferentes, que têm
escritas diferentes, caracteres diferentes, às vezes até doenças diferentes, e
a pessoa que domina é a que diz "Eu", isto é, a que ocupa o lugar do
sujeito. E digo mais: o que chamamos de nossas mudanças de
humor são modificações de personalidade. Não apenas desempenhamos
papéis diferentes, mas também somos tomados por personalidades
diferentes durante todo o percurso de nossa vida. Cada um de nós é uma
sociedade de várias personalidades. Mas há este "Eu" subjetivo, esta espécie
de ponto fixo, que é ocupado ora por uma, ora por outra.
Quando se observa a concepção clássica do "eu" [moi] (ego)
segundo Freud, esse "eu" nasceu da dialética entre o "isso" instintivo, que
vem das entranhas biológicas, e o "superego", que, para Freud, é a
autoridade paterna, mas que pode transformar-se em um "superego" mais
amplo, o da pátria, da sociedade. Esse "eu" está em incessante
dialética com o "isso" e o "superego". Aí também há um problema de
ocupação. Quando somos possuídos pelo "superego", continuamos a
dizer "Eu", da mesma maneira que dizemos "Eu" quando perseguimos
fins meramente egoístas. Vocês dizem "Eu" quando estão mergulhados nas
mais austeras operações intelectuais e dizem igualmente "Eu" quando se
entregam às mais desbragadas brincadeiras eróticas.
0 "Eu", enquanto "Eu", emerge tardiamente na experiência da
humanidade. Como sabem, as crianças falam primeiro na terceira
pessoa. Podemos dar um valor, pelo menos simbólico, ao que Lacan
chamara de o "estádio do espelho", momento muito importante para a
constituição da identidade do sujeito: ele objetiva um "eu" [mos] que
não é outro senão o "Eu" que olha, e, nesse estádio, opera-se a ligação
entre a imagem objetiva e o ser subjetivo. Em meu livro 0 homem ea
morte, insisti na forte presença do "duplo" na humanidade arcaica: o
duplo, espectro objetivo e imaterial de seu próprio ser, acompanha-o
incessantemente e é reconhecido na sombra, no reflexo. É o duplo que
perambula nos sonhos enquanto o corpo fica imóvel. Esse duplo é, pois,
uma experiência da vida quotidiana antes de ser o ghost (fantasma),
que vai se libertar com a morte, enquanto o corpo vai se decompor. 0
duplo é um modo cristalizado da experiência do "Eu sou eu", em que o
"eu" assume, a princípio, justamente a forma desse gêmeo real, mas
imaterial. Esse duplo vai interiorizar-se; nas sociedades históricas, dará
nascimento à alma, sendo a alma, aliás, muito freqüentemente relacionada
ao sopro, como entre os gregos e os hebreus. A "alma"-, o "espírito" são
maneiras de nomear, de repre
sentar a interioridade subjetiva em termos que designam uma realidade
objetiva específica. Podemos dizer de qualquer um: "Ele não tem alma",
e compreende-se o que isso quer dizer. Portanto, temos diferentes
modos de nomear essa realidade subjetiva, que, para nós, não está
estritamente limitada ao "Eu" e ao "eu", mas, justamente nesta dialética
entre o "Eu" e o "eu", assume a forma de alma e de espírito, e ressurge
com o que chamamos de a "consciência'.
E é aí que a definição de sujeito, que lhes proponho, é inteira

125

126
mente diversa da que define o sujeito pela consciência. A consciência,
em minha concepção, é a emergência última da qualidade do sujeito. É
uma emergência reflexiva, que permite o retorno da mente a si mesma,
em circuito. A consciência é a qualidade humana última e, sem dúvida,
a mais preciosa, pois o que é último é, ao mesmo tempo, o que há de
melhor e de mais frágil. E, de fato, a consciência é extremamente frágil
e, em sua fragilidade, pode enganar-se muitas vezes.
Claro, a afetividade para nós está estreitamente ligada à subjeti-
vidade. A afetividade se desenvolve nos mamíferos dos quais herdamos
a extrema instabilidade: os macacos, por exemplo, têm temperamentos
muito violentos, passam da cólera à mansidão etc. Somos herdeiros da
afetividade dos mamíferos e a desenvolvemos. A afetividade, portanto,
está humanamente ligada à idéia de sujeito, mas esta
não é a qualidade originária. Contudo, acredita-se - na falta de uma
teoria bio-lógica do sujeito-que a subjetividade seja um componente
afetivo que deva ser abolido para se chegar a um conhecimento correto.
Mas a subjetividade humana não é redutível à afetividade que ela
comporta, tanto quanto não é redutível à consciência.

Agora, é preciso examinar o elo entre a idéia de sujeito e a idéia de
liberdade. A liberdade supõe, ao mesmo tempo, a capacidade cerebral
ou intelectual de conceber e fazer escolhas, e a possibilidade de operar
essas escolhas dentro do meio exterior. Sem dúvida há casos em que se
pode perder toda a liberdade exterior, estar numa prisão, mas conservar
a liberdade intelectual.
0 sujeito pode, eventualmente, dispor de liberdade e exercer
liberdades. Mas existe toda uma parte do sujeito que não é apenas
dependente, mas submissa. E, de resto, não sabemos realmente quando
somos livres.
Então, há um primeiro princípio de incerteza, que seria o seguinte:
eu falo, mas, quando falo, quem fala? Sou "Eu" só quem fala? Será
que, por intermédio do meu "eu", é um "nós" que fala (a coletividade
calorosa, o grupo, a pátria, o partido a que pertenço)?
Será um "pronome indefinido" que fala (a coletividade fria, a orga-
nização social, a organização cultural que dita meu pensamento, sem
que eu saiba, por meio de seus paradigmas, seus princípios de controle
do discurso que aceito inconscientemente)? Ou é um "isso", uma
máquina anônima infrapessoal, que fala e me dá a ilusão de que fala
de mim mesmo? Nunca se sabe até que ponto "Eu" falo, ate que ponto
"Eu" faço_ um discurso pessoal e autônomo, ou até que ponto, sob a
aparência que acredito ser pessoal e autônoma, não faço mais que
repetir idéias impressas em mim.
Contrariamente aos dois dogmas em oposição - para um, o sujeito
é nada; para o outro, o sujeito é tudo -, o sujeito oscila entre o tudo e o
nada. Eu sou tudo para mim, não serei nada no Universo. O princípio
do egocentrismo é o princípio pelo qual eu sou tudo; mas ja que todo o
meu mundo se desintegrara com a minha morte, justamente por essa
mortalidade, eu sou nada. 0 "Eu" é um privilégio inaudito e, ao mesmo
tempo, a coisa mais banal, porquanto todo mundo pode dizer "Eu". Da
mesma forma, o sujeito oscila entre o egoísmo e o altruísmo. No
egoísmo, eu sou tudo, e os outros são nada; mas, no altruísmo, eu me
dou, me devoto, sou inteiramente
secundário para aqueles aos quais me dou. 0 indivíduo sujeito recusa a
morte que o devora; e, no entanto, é capaz de oferecer sua vida por
suas idéias, pela pátria ou pela humanidade. Aí está a complexidade
própria da noção de sujeito.

Uma grande pane, a parte mais importante, a mais rica, a mais
ardorosa da vida social, vem das relações intersubjetivas. Cabe até
dizer que o caráter intersubjetivo das interações no meio da sociedade,
o qual tece a própria vida dessa sociedade, é fundamental. Para
conhecer o que é humano, individual, interindividual e social, é pre-
ciso unir explicação e compreensão. 0 próprio sociólogo não é uma
mente apenas objetiva; ele faz parte do tecido intersubjetivo. Ao
mesmo tempo, é preciso reconhecer que, potencialmente, todo sujeito
é não apenas ator, mas autor, capaz de cognição/escolha/deci
127

são. A sociedade não está entregue somente, sequer principalmente, a
determinismos materiais; ela é um mecanismo de confronto/coo-
peração entre indivíduos sujeitos, entre os "nós" e os "Eu".
Para concluir, o sujeito não é uma essência, não é uma substância,
mas não é uma ilusão. Acredito que o reconhecimento do sujeito exige
uma reorganização conceptual que rompa com o princípio
determinista clássico, tal como ainda é utilizado nas ciências humanas,
notadamente, sociológicas. No quadro de uma psicologia behaviorista,
é impossível, claro, conceber um sujeito. Portanto, precisase de uma
reconstrução, precisa-se das noções de autonomia/dependência; da noção
de individualidade, da noção de autoprodução, da concepção de um elo
recorrente, onde estejam, ao mesmo tempo, o produto e o produtor. É
preciso também associar noções antagônicas, como o princípio de
inclusão e exclusão. É preciso conceber o sujeito como aquele que dá
unidade e invariância a uma pluralidade de personagens, de caracteres,
de potencialidades. Isso, porque, se estamos sob a dominação do
paradigma cognitivo, que prevalece no mundo científico, o sujeito é
invisível, e sua existência é negada. No mundo filosófico, ao
contrário, o sujeito torna-se transcendental, escapa à experiência,
vem do puro intelecto e não pode ser concebido em suas dependências,
em suas fraquezas, em suas incertezas. Em ambos os casos, suas
ambivalências, suas contradições não podem ser pensadas nem sua
centralidade e sua insuficiência, seu sentido e sua insignificância, seu
caráter de tudo e nada a um só tempo. Precisamos, portanto, de uma
concepção complexa do sujeito.
AMOR
POESIA
SABEDORIA

As Obras
Do autor:


Ciência com Consciência


Meus Demônios

Edgar Mòrin

AMOR

POESIA

SABEDORIA


TraduÇão
Edgard de Assis Carvalho

BERTRAND BRASIL

Copyright (c) Editions du Seuil,1997
Título original: Amour, poésie, sagesse
Capa: Rachel Braga
Editoração: Art Line


1998
Impresso no Brasil
Printed in Brazil


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE I;IVROS, RJ


M85a Morin, Edgar, 1921-
Amor, poesia, sabedoria / Edgar Morin; tradução Edgard
de Assis Carvalho. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998.

72p.

Tradução de: Amour, poesie, sagesse
Inclui bibliografia
ISBN 85-286-0654-6


98-0845

1. Amor. 2. Poesia. 3. Razão. I. Título.

CDD 194
CDU 1(44)


Todos os direitos reservados pela:
BCD UNIÃO DE EDITORAS S.A.
Av. Rio Branco, 99 - 20Q andar - Centro
20040-004 - Rio de Janeiro - RJ
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Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por
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Aterzdemos pelo Reembolso Postal.
#

SUMARIO

Prefácio 7

O complexo de amor 13

A fonte de poesia 33
Necessária e impossível sabedoria 45
Fontes 68
#

Prefácio

A idéia de se poder definir o gênero homo atribuindo-lhe a qualidade de
sapiens, ou seja, de um ser racional e sábio, é sem dúvi- ,
da uma idéia pouco racional e sábia. Ser Homo implica
ser igualmente demens: em manifestar uma afetividade
extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mu-
danças brutais de humor; em carregar consigo uma fon-
te permanente de delírio; em crer na virtude de sacrifi-
cios sanguinolentos, e dar corpo, existência e poder a
mitos e deuses de sua imaginação. Há no ser humano
um foco permanente de Ubris, a desmesura dos gregos.
A loucura humana é fonte de ódio, crueldade, bar-
bárie, cegueira. Mas sem as desordens da afetividade e
as irrupções do imaginário, e sem a loucura do impos-
sível, não haveria élan, criação, invenção, amor, poesia.
O ser humano é um animal insuficiente, não ape-
nas na razão, mas é também dotado de desrazão.


7
#

AMOR POESIA SABEDORIA


Temos, entretanto, necessidade de controlar o
homo demens para exercer um pensamento racional
argumentado, crítico, complexo. Temos necessidade de
inibir em nós o que o demens tem de homicida, malva-
do, imbecil. Temos necessidade de sabedoria, o que
nos requer prudência, temperança, comedimento, des-
prendimento.


Prudência, sim, mas isso não significa esterilizar
nossas vidas, evitar riscos a qualquer custo? Temperan-
ça, sim, mas será mesmo necessário evitar a experiên-
cia da "consumação" e do êxtase? Desprendimento
,
sim, mas será mesmo necessário renunciar aos laços de
amizade e amor?
O mundo em que vivemos talvez seja um mundo
de aparências, a espuma de uma realidade mais profun-
da que escapa ao tempo, ao espaço, a nossos sentidos e
a nosso entendimento. Mas nosso mundo da separação,
da dispersão, da finitude significa também o mundo da
atração, do reencontro, da exaltação. E estamos plena-
mente imersos neste mundo que é o de nossos sofrimen-
tos, felicidades e amores. Não experimentá-lo é evitar o
sofrimento, mas também não haverá o gozo. Quanto
mais estamos aptos à felicidade, mais nos aproximamos
da infelicidade. O Tao-te-chingl diz muito apropriada-


Tao-te-ching: livro do caminho, coleçào de 81 poemas escritos
por Lao
Tsé, que constituem os fundamentos do taoismo. (N. T.)

8
#

EDGAR MORIN


mente: "A infelicidade caminha lado a lado com a felici-
dade; a felicidade dorme ao pé da infelicidade."
Estamos condenados ao paradoxo de manter em
nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do .
mundo e da plenitude que nos propicia a vida quando
pode ou quando quer. Se a sabedoria nos incita ao de-
sapego do mundo da vida, será que ela está sendo ver-
dadeiramente sábia? Se aspiramos à plenitude do amor,
isso significa que somos verdadeiramente loucos?
Nos textos que se seguem, reconhecemos o amor
como o ápice mais perfeito da loucura e da sabedoria,
ou seja, que no amor, sabedoria e loucura não apenas
são inseparáveis, mas se interpenetram mutuamente.
Reconhecemos a poesia não apenas como um modo de
expressão literária, mas como um estado segundo do
ser que advém da participação, do fervor, da admira-
ção, da comunhão, da embriaguez, da exaltação e, ob-
viamente, do amor, que contém em si todas as expres-
sões desse estado segundo. A poesia é liberada do mito
e da razão, mas contém em si sua união. O estado poé-
tico nos transporta através da loucura e da sabedoria, e
para além delas.


O amor faz parte da poesia da vida. A poesia faz
parte do amor da vida. Amor e poesia engendram-se
mutuamente e podem identificar-se um com o outro.
Se o amor expressa o ápice supremo da sabedoria
e da loucura, é preciso assumir o amor.

9
#

AMOR POESIA SABEDORIA


Se a poesia transcende sabedoria e loucura, é ne-
cessário aspirarmos a viver o estado poético e assim
evitar que o estado prosaico engula nossas vidas, ne-
cessariamente tecidas de prosa e poesia.


A sabedoria pode problematizar o amor e a poe-
sia, mas o amor e a poesia podem reciprocamente pro-
blematizar a sabedoria. O itinerário aqui proposto que
conteria amor, poesia, sabedoria, comportaria, em si
mesmo, esta mútua problematização.
Devemos fazer tudo para desenvolver nossa racio-
nalidade, mas é em seu próprio desenvolvimento que a
racionalidade reconhece os limites da razão, e efetua o
diálogo com o irracionalizável.
O excesso de sabedoria pode transformar-se em
loucura, mas a sabedoria só a impede, misturando-se à
loucura da poesia e do amor.


Nosso cotidiano vive sempre em busca do sentido.
Mas o sentido não é originário, não provém da exterio-
ridade de nossos seres. Emerge da participação, da fra-
ternização, do amor. O sentido do amor e da poesia é
o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poe-
sia, quando concebidos como fins e meios do viver,
dão plenitude de sentido ao "viver por viver".
A partir daí, podemos assumir, mas com plena
consciência, o destino antropológico do homo sapiens-


10
#

EDGAR MORIN


demens, que implica nunca cessar de fazer dialogar em
nós mesmos sabedoria e loucura, ousadia e prudência,
economia e gasto, temperança e "consumação", des-
prendimento e apego.
Tudo isso implica endossar a tensão dialogal, que
mantém permanentemente a complementaridade e o
antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionali-
dade.


E. M.

11
#

o
COMPLEXO

DE
AMOR
#

Desejo expor esta dificul-

dade tão freqüente nas ciências humanas, em que se
fala de um objeto como se ele existisse fora de nós, os

sujeitos.
E isso é, evidentemente, flagrante para o amor,
uma vez que a maioria de nós sempre foi e será sujeito
do amor (a palavra sujeito oscila, aqui, entre dois senti-
dos que o polarizam: de um lado, o amor é algo que se
vive subjetivamente e, de outro, é algo a que se é sub-
misso). Daí decorre a diferença, e mesmo a oposição,
entre as palavras sobre o amor que se pretendem obje-
tivas, e as palavras do amor que são subjetivas.
Trata-se aqui de algo grotesco, uma vez que as
palavras sobre o amor são exatamente o inverso das
palavras do amor. Elas se constituem num discurso frio,
técnico, objetivo, que, em si mesmo, degrada e dissol-
ve seu objeto. Não estudarei o amor entre os quadros
superiores e os empregados da Sociedade Nacional de
Estradas de Ferro. Não farei comentários sobre a pes-
quisa de opinião "O amor e os franceses". Ao contrário
,

15
#

AMOR POESIA SABEDORIA


tentarei relevar essas coisas que têm algo de repugnan-
te, não em si mesmas, mas no que concerne ao nosso
objetivo.
Estamos, portanto, diante de um primeiro proble-
ma: que a tentativa de elucidação não seja traição, e
muito menos ocultação. De resto, a palavra elucidar
torna-se perigosa, se acreditarmos na possibilidade de
trazer à luz plenamente todas as coisas. Creio que a elu-
cidação esclarece, mas ao mesmo tempo revela: o que
resiste à luz, detecta também um fundo obscuro.


Esse texto intitula-se "O complexo de amor". A pa-
lavra complexo deve ser entendida em seu sentido lite-
ral: complexus, aquilo que se tece em conjunto. O amor
é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com fios
extremamente diversos, de origens diferentes. Por trás
de um único e evidente "eu te amo" há uma multiplici-
dade de componentes, e é justamente a associação des-
tes componentes inteiramente diversos que faz a coe-
rência do "eu te amo". Em uma extremidade há um
componente físico e, pela palavra físico, entende-se o
componente biológico, que não se reduz ao componen-
te sexual, mas inclui o engajamento do ser corporal.
No outro extremo, encontram-se os componentes
mitológico e imaginário; incluo-me entre aqueles para
quem o mito e o imaginário não representam uma sim-
ples superestrutura, e muito menos uma ilusão, mas,
sim, uma profunda realidade humana.


16
#

EDGAR MORIN


Esses dois componentes são modulados pelas cul-
turas e pelas sociedades, mas não é sobre modulação
cultural que irei discorrer: antes de mais nada, tentarei
indicá-los.


Deparamo-nos aqui com um novo paradoxo. O
amor enraíza-se em nossa corporeidade e, nesse senti-
do, pode-se dizer que o amor precede a palavra. Mas o
amor encontra-se, ao mesmo tempo, enraizado em nos-
so ser mental, em nosso mito, que, evidentemente,
pressupõe a linguagem e, nesse sentido, pode-se dizer
que o amor decorre da linguagem. O amor, simultanea-
mente, procede da palavra e precede a palavra. Trata-
se de um interessante problema, uma vez que há cultu-
ras em que não se fala de amor. Mas mesmo nestas cul-
turas, em que não se fala de amor e que o amor não
emergiu enquanto noção, será que, verdadeiramente,
não existe amor? Ou será que sua existência decorre do
não-dito?
La Rochefoucauld afirmava que, se não houvesse
romances de amor, este nunca seria conhecido. Seria a
literatura constitutiva do amor, ou ela simplesmente o
catalisa, tornando-o visível, sensível e ativo? De qual-
quer modo, é pela palavra que simultaneamente se
exprimem a verdade, a ilusão e a mentira que podem
circundar ou construir o amor.

17
#

AMOR POESIA SABEDORIA


Afirmar que o amor é um complexo requer um
olhar poliocular. Os constituintes do amor precedem
sua própria constituição. Neste sentido, pode-se consta-
tar a origem do amor na vida animal. Podemos, mesmo
que desconfiados, fazer projeções antropomorfas na
vida animal; podemos, ainda, desconfiar desta descon-
fiança. Diante da afeição de um cão, podemos dizer:
como ele é gentil e afetuoso. Essa projeção antropo-
morfa que se faz com o cãozinho é mais verdadeira do
que uma projeção mecânica, do tipo animal-máquina
de Descartes, que implicaria dizer: "Eis aqui uma má-
quina que reage a estímulos". E por que isso é justifica-
do? Porque nós mesmos somos mamíferos evoluídos e
sabemos que a afetividade desenvolveu-se entre os
mamíferos, incluído o cão.
Há, portanto, uma fonte animal incontestável no
amor. Pensemos nesses casais de pássaros que conside-
ramos "inseparáveis", que passam todo o tempo a se
beijocar, de um modo quase obsessivo. Como não ver
aí a expressão de uma das potencialidades de uma rela-
ção tão intensa e simbiótica entre dois seres de sexos
diferentes que, incessantemente, não se podem impedir
de se dar fascinantes beijinhos?
Mas, entre os mamíferos, há algo a acrescentar: o
calor. São os denominados animais "de sangue quente".
Há algo térmico em seus pêlos e sobretudo na relação
fundamental: a criança, o recém-nascido mamífero, sai
prematuramente para um mundo frio.


18
#

EDGAR MORIN


Ele nasce na separação, mas, em seus primeiros
tempos, vive numa união quente com a mãe. A união
na separação ou a separação na união é justamente o '
que vai caracterizar o amor, não mais entre mãe e pro-
genitura, mas entre homem e mulher. A relação afetiva, '
intensa, infantil com a mãe vai se metamorfosear, se
prolongar, se estender entre os primatas e os humanos.
A hominização conservou e desenvolveu no adul-
to humano a intensidade das afetividades infantil e ju-
venil. Os mamíferos podem exprimir esta afetividade
através do olhar, da boca, da língua, do som. Tudo
aquilo que vem da boca já se torna algo que fala do
amor, antes mesmo de qualquer linguagem: a mãe que
lambe o filho, o cão que lambe a mão; esses fatos já
exprimem o que vai aparecer e desenvolver-se no mun-
do humano: o beijo. Aqui reside o enraizamento animal
e mamífero do amor.


O que a hominização nos trouxe e o que caracte-
riza biologicamente o homo sapiens?
Inicialmente, a permanência da atração sexual
entre mulher e homem. Ainda que existam entre os pri-
matas períodos não-sexuados separados pelo período
do estro - o momento em que a fêmea torna-se
atraente - a humanidade vive na permanência da atra-
ção sexual. Além disso, a humanidade consumou o
face-a-face amoroso, enquanto que, entre os outros pri-


19
#

AMOR POESIA SABEDORIA


matas, a união sexual se realiza por trás. O filme A
guerra do fogo exprimiu, de modo apropriado, o apare-
cimento do amor face a face. A partir daí, o rosto vai
desempenhar um papel extraordinário.
O último elemento que a hominização trouxe foi a
intensidade do coito, não apenas no homem, mas tam-
bém na mulher.


Enfim, com o homo sapiens, desde as sociedades
arcaicas, irão ocorrer os últimos e decisivos ingredien-
tes necessários ao amor entre dois seres representados
pelos estados segundos de exaltação, fascinação, pos-
sessão, êxtase, que suscitam a absorção de drogas ou
bebidas fermentadas, a participação em festas, cerimô-
nias e ritos sagrados, assim como as venerações e ado-
rações de personagens mitológicos divinizados.
Assim, estamos diante dos ingredientes físicos,
biológicos, antropológico-mitológicos que irão reunir-
se e cristalizar-se no amor.

Mas quando? Uma hipótese sedutora pode ser fei-
ta com base na proposta de Jaynes, autor do livro A ori-
gem da consciência e a ruptura do espirito bicameral.2
Sua tese é a seguinte: nos impérios da Antigüidade, o
espírito humano é bicameral. Isso não quer dizer ape-
nas que há dois hemisférios no cérebro, mas que há

Iurian Jaynes. The orlgin of consctousness in the Breakdown
of the
Bicameral Mtnd. Londfes; Penguin Books, (1973) 1990. (N. T.)


20
#

EDGAR MORIN


duas câmaras. A primeira é ocupada pelos deuses, pelo
rei-deus, pelos padres, pelo império e pelas ordens que
vêm de cima. A pessoa obedece como um zumbi a tudo
o que é decretado, porque tudo que vem do alto da
sociedade é de natureza divina e sagrada. A segunda
câmara é ocupada pela vida privada; ocupamo-nos com
os negócios, ensaiamos sobreviver, temos relações afe-
tivas, sexuais, com a esposa. Mas as duas coisas são
separadas, e o sagrado e o religioso encontram-se con-
centrados numa única câmara.
A irrupção da consciência ocorreu na Atenas do
século V, onde a comunicação se abre entre as duas
câmaras: então cessa a hipersacralidade da primeira,
assim como a trivialidade da segunda. Em suma, a sa-
cralidade vai poder precipitar-se e fixar-se sobre um ser
individual: o ser amado.
O amor vai aparecer e ser tratado como tal numa
civilização em que o indivíduo se autonomiza e se
desenvolve. Tudo aquilo que advém do sagrado, do
culto, da adoração, pode, então, projetar-se sobre um
indivíduo de carne que constituirá o objeto da fixação
amorosa. O amor adquire expressão no reencontro do
sagrado e do profano, do mitológico e do sexual. Será
cada vez mais possível realizar experiência mística,
extática, a experiência do culto e do divino, através da
relação de amor com um outro indivíduo.

21
#

AMOR POESIA SABEDORIA


No momento em que aflora o desejo, os seres se-
xuados são submetidos a uma dupla possessão, que se
situa muito além deles e que os ultrapassa.
O ciclo de reprodução genética, que nos invade
pelo sexo, é algo que nos possui subitamente e que,
simultaneamente, possuímos: o desejo. Esta é a primei-
ra possessão.
A outra é a que nasce do sagrado, do divino, do re-
ligioso. A possessão física que decorre da vida sexual re-
encontra a possessão psíquica oriunda da vida mitológi-
ca. Aí reside o problema do amor: somos duplamente
possuídos e possuímos o que nos possui, consideran-
do-o, física e miticamente, como nosso próprio bem.


A questão da selvageria do desejo e da fascinação
do amor se relaciona à ordem social. As sociedades ani-
mais não possuem instituições, mas obedecem a regras.
Por exemplo: os machos dominantes se apoderam
da maioria das fêmeas e os outros machos são excluí-
dos da copulação. Tudo isso decorre de regras hierár-
quicas, mesmo na ausência da regra institucional. A
humanidade cria instituições, institui a exogamia, as
regras de parentesco, prescreve o casamento, proíbe o
adultério. Mas é extremamente notável que o desejo e
o amor ultrapassam, transgridem normas, regras e inter-
ditos: ou bem o amor é muito endógamo e torna-se
incestuoso, ou é muito exógamo e torna-se adúltero,
traidor do grupo, do clã, da pátria. A selvageria do amor
o conduz à clandestinidade e à transgressão.


22
#

EDGAR MORIN


O amor, mesmo que decorrente de um desenvol-
vimento cultural e social, não obedece à ordem social:
quando aparece, ignora barreiras, despedaça-se nelas
ou simplesmente as rompe. O amor é filho de ciganos,
é "enfant de bohème".3


Além disso, o mais interessante na civilização
ocidental é a separação que, por vezes, é uma ver-
dadeira disjunção entre o amor vivido como mito e co-
mo desejo.
É necessário que nos apercebamos dessa bipolari-
dade: de um lado, um ardente amor espiritual, que jus-
tamente tem medo de se degradar no contato carnal e,
de outro, uma "bestialidade", que poderá encontrar sua
própria sacralidade nesta parte maldita assumida pela
prostituta. Se a bipolaridade do amor pode aquartelar o
indivíduo entre o amor sublime e o desejo infame,
pode também efetivar-se em diálogo, em comunicação:
há momentos muito felizes, momentos em que a pleni-
tude do corpo e da alma se encontram.


O verdadeiro amor se reconhece naquilo que sobre-
vive ao coito, enquanto que o desejo sem amor se dissol-
ve na famosa tristeza pós-coital: "homo tristepost coitum".
Aquele que é sujeito do amor é `felixpost coitum".

3 Edgar Morin refere-se aqui a trecho da área Habanera, da
ópera Carmen,
de G. Bizet. (N. T.)


23
#

AMOR POESIA SABEDORIA


Assim como tudo o que é vivo e humano, o amor
encontra-se submetido ao segundo princípio da termo-
dinâmica, que se define como um princípio de degra-
dação e desintegração universais. Mas os seres vivos
vivem de sua própria desintegração, combatendo-a
pela regeneração.


O que significa viver?
Heráclito dizia: "Morrer de vida, viver de morte."
Nossas moléculas se degradam e morrem, sendo subs-
tituídas por outras. Vivemos utilizando o processo de
nossa decomposição para nos rejuvenescer, até o
momento em que isso não é mais possível. Acontece o
mesmo com o amor, que só vive renascendo incessan-
temente.


O sublime encontra-se sempre no estado nascente
do enamoramento. Francisco Alberoni explicou isso
muito bem em seu livro Enamoramento e amor,4 que
foi muito mal traduzido em francês, pelo título O cho-
que amoroso. O amor implica a regeneração permanen-
te do amor nascente. Tudo aquilo que se institui na
sociedade, e também tudo que se instala na vida come-
çam a ser afetados pelas forças de desintegração ou de
insipidez. O problema da ligação amorosa é que ela é,

Francisco Alberoni. Enamoramento e amor Rio de Janeiro: Ed.
Rocco,
1986. (N. T.)


24
#

EDGAR MORIN


freqüentemente, trágica, porque se consolida, também,
com freqüência, em detrimento do desejo.
Certos etólogos, após observarem que o filho
adulto de uma chimpanzé não copulava com sua mãe e
que não havia atração sexual em ambos, supuseram
que a pulsão genital era, sem dúvida, proveniente da
longa ligação mãe-filho.
Uma ligação longa e constante torna o laço mais
íntimo, mas tende a desintegrar a força do desejo que
seria mais exógama, voltada para o desconhecido e
para o novo.
Pode-se supor que a longa ligação que consolida
o casal, que o enraíza e cria uma afeição profunda, ten-
da a destruir exatamente aquilo que o amor continha
em seu estado nascente. Mas o amor é paradoxal como
a vida e, por isso, há amores que duram, do mesmo
modo que dura uma vida. Vive-se de morte, morre-se
de vida. O amor poderia, potencialmente, regenerar-se,
operar em si mesmo uma dialógica entre a prosa que se
espalha na vida cotidiana e a poesia que fornece a sei-
va a essa mesma vida.


O que é verdadeiramente notável é que a união do
mitológico e do físico realiza-se no rosto. Há algo no
olhar amoroso que, tendencialmente, poderia ser descri-
to em termos magnéticos ou elétricos, algo que se origi-
na na fascinação, que pode ser recíproca, mas também
aterrorizante, como o fascínio da jibóia pelo frango.


25
#

AMOR POESIA SABEDORIA


Nesses olhos que contêm uma espécie de poder
magnético que a tudo subjuga, a mitologia humana
identificou uma das localizações da alma.
O mesmo acontece com a boca! A boca não se
limita somente ao que come, absorve, dá (lamber, sali-
var). É também a via de passagem da respiração, que
corresponde a uma concepção antropológica da alma.
O beijo na boca, que o Ocidente popularizou e mun-
dializou, concentra e concretiza o singular encontro de
todos os poderes biológicos, eróticos e mitológicos da
boca. De um lado, ele é um analogon da união física e
,
de outro, representa a fusão de duas respirações, que é
também uma fusão de almas.
A boca é algo verdadeiramente extraordinário,
algo aberto para o mitológico e o fisiológico. Esquece-
mos que esta boca fala, e o que há de muito belo é que
as palavras de amor são seguidas de silêncios de amor.
Nosso rosto permite cristalizar, em si mesmo, todos
os componentes do amor. Com o aparecimento do cine-
ma, os grandes planos do rosto tornaram-se grandiosos
e isso porque nele se concentra a totalidade do amor.


Como considerar o complexo de amor? A catego-
ria do sagrado, do religioso, do mítico e do mistério
penetrou no amor individual e nele enraizou-se de
modo extremamente profundo. Há uma razão fria,
racionalista, crítica, nascida no século das Luzes, que

26
#

EDGAR MORIN


coloca o ceticismo diante de qualquer religião. De fato,
a razão fria tende não somente a dissolver o amor, mas
também a considerá-lo como ilusão e loucura. Em con-
trapartida, na concepção romântica o amor transfor-
mou-se na verdade do ser. Será que existe uma razão
amorosa, do mesmo modo que há uma razão dialética,
que ultrapassa os limites da razão congelada?


Sob o ângulo da razão fria, o mito foi sempre con-
siderado como um epifenômeno superficial e ilusório.
Para o século XVIII, a religião representava uma inven-
ção dos padres, uma fraude feita para iludir os povos.
Esse mesmo século não soube compreender as raízes
profundas da necessidade religiosa e, muito menos, da
necessidade de salvação.
Incluo-me entre aqueles que acreditam na profun-
didade antropossocial do mito, ou seja, em sua realida-
de. Acrescento a isso que, entre o homo sapiens e o
homo demens, ou entre a loucura e a sabedoria, não
existe fronteira nítida. Não se sabe quando se passa de
uma para outra, e isso porque sempre há reversibilida-
des; por exemplo, uma vida racional pode ser pura lou-
cura. Uma vida que se ocuparia unicamente em econo-
mizar seu tempo, a não sair quando faz mau tempo, a
querer viver o máximo possível e, portanto, não come-
ter excessos alimentares e amorosos. Levar a razão a
seus limites máximos conduz ao delírio.


27
#

AMOR POESIA SABEDORIA


Mas, então, o que é o amor? É o ápice da união
entre loucura e sabedoria. Como destrinchar esse fato?
Parece evidente que se trata de um problema com o
qual nos defrontamos em nossa vida, e que não há
nenhuma chave que permita encontrar uma solução
exterior ou superior. O amor contém justamente esta
contradição fundamental, esta co-presença da loucura e
da sabedoria.

Eu diria sobre o amor o que em geral digo sobre o
mito. Desde que um mito é reconhecido como tal, ele
deixa de sê-lo. Atingimos esse ponto da consciência em
que nos damos conta de que mitos são apenas mitos.
Mas percebemos também que não podemos passar sem
eles. Não se pode viver sem mitos, e eu incluiria, entre
os "mitos", a crença no amor, um dos mais nobres e
poderosos e, talvez, o único mito ao qual deveríamos
nos apegar. E não apenas o amor interindividual, mas o
amor, num sentido muito mais amplo, sem, evidente-
mente, macular o amor individual. Efetivamente, en-
frentamos um problema de convivialidade com nossos
mitos, e isso não implica uma relação de compromisso,
e sim uma relação complexa de diálogo, antagonismo e
aceitação.
A seu modo, o amor põe em questão o problema
do desafio de Pascal, que havia compreendido não
haver nenhum meio para provar logicamente a existên-
cia de Deus. Não se pode provar, empírica e logicamen-


28
#

EDGAR MORIN


te, a necessidade de amor. Pode-se apenas apostar nele
e sobre ele. Adotar para o nosso mito de amor uma ati-
tude de desafio implica sermos capazes de nos entregar
a ele, dialogando com ele de modo crítico.
O amor faz parte da poesia da vida. Devemos
viver esta poesia que não pode espalhar-se pela vida
como um todo, e isso porque, se tudo fosse poesia, não
haveria espaço para a prosa. Da mesma maneira que o
sofrimento deve existir para que se conheça a felicida-
de, deverá também haver prosa para que haja poesia.
Diante da idéia de desafio, é bom saber que há o
risco do erro ontológico, da ilusão, e que o absoluto é,
simultaneamente, o incerto. É preciso que tenhamos
claro que, em dado momento, engajamos a nossa e
outras vidas, na maioria das vezes, sem querê-lo ou
sabê-lo.
O amor contém um risco terrível porque não é
somente um que se engaja nele. Engaja-se a pessoa
amada, engajam-se também os que nos amam sem que
nós os amemos, ou os que amam a pessoa amada sem
que ela os ame.
Como dizia Platão acerca da imortalidade da alma,
trata-se de um belo risco que se deve correr. O amor é
um mito muito belo. Evidentemente, encontra-se con-
denado à errância e à incerteza. Estará se referindo a

mim, a ela, ou a todos nós?

Possuímos uma resposta absoluta para essa ques-


29
#

AMOR POESIA SABEDORIA


tão? O amor pode transitar da fulminação à deriva.
Contém em si um sentimento de verdade, que é tam-
bém fonte de nossos erros mais graves. Quantos infeli-
zes iludiram-se com a "mulher de sua vida" ou o "ho-
mem de sua vida"?


Nada é mais pobre do que uma verdade sem sen-
timento de verdade. Constatamos a verdade que dois e
dois são quatro, que essa mesa é uma mesa e não uma
cadeira, mas não temos o sentimento da verdade desta
proposição. Possuímos apenas a intelecção a respeito
delas. É certo que, sem sentimentos de verdade, não há
verdade vivida. Mas, justamente, o que é a fonte da
maior verdade pode, ao mesmo tempo, ser a fonte do
maior erro.

Por isso, o amor talvez represente nossa religião e
nossa doença mental mais verdadeira. Oscilamos entre
esses dois pólos, tanto um quanto o outro muito reais.
Mas o que é extraordinário nessa oscilação é a nossa
verdade pessoal revelada e percebida pelo outro. Em
resumo, o amor nos faz descobrir, igualmente, a verda-
de do outro.


A autenticidade do amor não consiste apenas em
projetar nossa verdade sobre o outro e, finalmente, ver
o outro exclusivamente segundo nossos olhos, mas sim
de nos deixar contaminar pela verdade do outro. Não é


30
#

EDGAR MORIN


necessário sermos como os crentes, que acreditam na-
quilo que procuram, porque projetaram a resposta que
esperavam. É aqui que consiste a tragédia. Carregamos
conosco uma necessidade tão grande de amor que, por
vezes, um encontro, num momento propício - ou mes-
mo num momento mau - deslancha o processo da ful-
minação e da fascinação.
Nesse momento, projetamos sobre o outro nossa
necessidade de amor, fixamo-lo e o endurecemos, igno-
ramos o outro, transformando-o em nossa imagem e
totem. Efetivamente, aqui reside uma das tragédias do
amor: a incompreensão de si e do outro. Mas a beleza
do amor, que reside na interpenetração da verdade do
outro em si, implica encontrar sua verdade através da
alteridade.


Concluo. A questão do amor resume-se a essa
possessão recíproca: possuir o que nos possui. Somos
indivíduos produzidos por processos que nos precede-
ram; somos possuídos por coisas que nos ultrapassam e
que irão além de nós, mas, de certo modo, somos capa-
zes de possuí-las.
Em qualquer lugar, a dupla possessão constitui
sempre a trama e a experiência de nossas próprias
vidas.
Terminarei fornecendo à pesquisa sobre o amor a
fórmula de Rimbaud, a da pesquisa de uma verdade que
se situe, simultaneamente, numa alma e num corpo.


31
#

A
FONTE

DE
POESIA
#

Ensaiarei sustentar a se-
guinte tese: o Euturo da poesia reside em sua própria
fonte. Mas que fonte é essa? É difícil perceber. Ela se
perde nas profundezas humanas tanto quanto nas pro-
fundezas da pré-história, onde surgiu a linguagem, nas
profundezas dessa embalagem estranha que é o cére-
bro e o espírito humano. Gostaria de adiantar algumas
idéias preliminares para falar de poesia.
Inicialmente, é preciso reconhecer que, qualquer
que seja a cultura, o ser humano produz duas lingua-
gens a partir de sua língua: uma, racional, empírica,
prática, técnica; outra, simbólica, mítica, mágica. A pri-
meira tende a precisar, denotar, definir, apóia-se sobre
a lógica e ensaia objetivar o que ela mesma expressa. A
segunda utiliza mais a conotação, a analogia, a metáfo-
ra, ou seja, esse halo de significações que circunda cada
palavra, cada enunciado e que ensaia traduzir a verda-
de da subjetividade. Essas duas linguagens podem ser
justapostas ou misturadas, podem ser separadas, opos-
tas, e a cada uma delas correspondem dois estados. O

35
#

AMOR POESIA SABEDORIA


primeiro, também chamado de prosaico, no qual nos
esforçamos por perceber, raciocinar, e que é o estado
que cobre uma grande parte de nossa vida cotidiana. O
segundo estado, que se pode justamente chamar de
"estado segundo", é o estado poético.
O estado poético pode ser produzido pela dança,
pelo canto, pelo culto, pelas cerimônias e, evidentemen-
te, pelo poema. Fernando Pessoa dizia que, em cada um
de nós, há dois seres. O primeiro, o verdadeiro, é o dos
nossos sonhos, que nasce na infância e que continua
pela vida toda. O segundo ser, o falso, é o das aparên-
cias, de nossos discursos, atos, gestos. Não diria que um
é verdadeiro e o outro, falso, mas, efetivamente, a cada
um desses dois estados correspondem dois seres em
nós. A esse estado segundo corresponde o que o ado-
lescente Rimbaud percebeu muito claramente, principal-
mente em sua famosa Carta do vidente esse estado não
é um estado de visão, mas um estado de vidência.


Poesia-prosa constituem, portanto, o tecido de
nossa vida. Hólderlin afirmava: "O homem habita a ter-
ra poeticamente." Acredito ser necessário dizer que o
homem a habita, simultaneamente, poética e prosaica-
mente. Se não houvesse prosa, não haveria poesia, do
mesmo modo que a poesia só poderia evidenciar-se em
relação ao prosaísmo. Em nossas vidas, convivemos
com essa dupla existência, essa dupla polaridade.

36
#

EDGAR MORIN


Nas sociedades arcaicas, injustamente chamadas
de primitivas, que povoaram a terra e formaram a hu-
manidade, e que estão sendo massacradas na Amazônia
e em outras regiões, havia uma relação estreita entre
esses dois estados, que se encontravam entrelaçados.
Na vida cotidiana, o trabalho era acompanhado por
cantos e ritmos, e enquanto preparava-se a farinha nos
pilões, cantava-se ou utilizava-se esses mesmos ritmos.
Tomemos como exemplo a preparação da caça,
testemunhada pelas pinturas pré-históricas, principal-
mente as da gruta de Lascaux, na França.
Essas pinturas indicam que os caçadores realiza-
vam ritos de encantamento sobre a caça, pintados
depois na rocha. Mas não se satisfaziam apenas com
eles: utilizavam flechas reais, estratégias empíricas, ou
misturando as duas. Em nossas sociedades contemporâ-
neas ocidentais operou-se uma disjunção entre os esta-
dos da prosa e da poesia.


Houve duas rupturas. A primeira ocorreu a partir
da Renascença, quando se desenvolveu uma poesia
cada vez mais profana. Ocorreu, igualmente, a partir do
século XVII, uma outra dissociação entre uma cultura
dita científica e técnica e uma cultura humanista, literá-
ria, incluindo a poesia. Foi a partir dessas duas dissocia-
ções que a poesia autonomizou-se e tornou-se estrita-
mente poesia. Separou-se da ciência, da técnica e, evi-
dentemente, separou-se da prosa.

37
#

AMOR POESIA SABEDORIA


Separou-se dos mitos e, com isso, quero dizer que
ela não é mais mito, embora sempre se nutra de sua
fonte, que é o pensamento simbólico, mitológico, mági-
co. Em nossa cultura ocidental, tanto a poesia quanto a
cultura humanista foram relegadas. Relegadas no lazer
e no divertimento, relegadas por adolescentes e por
mulheres, transformaram-se, de algum modo, num ele-
mento inferiorizado em relação à prosa da vida.


Houve duas revoltas históricas da poesia. A pri-
meira foi a do romantismo, principalmente o de origem
alemã. Representou a revolta contra a invasão da pro-
saidade,5 do mundo utilitário, do mundo burguês, que
se desenvolveu no início do século XIX.
A segunda revolta foi a do surrealismo, cuja ocor-
rência pode ser situada no início do século XX. O sur-
realismo representou a recusa da poesia em se deixar
reduzir ao poema, quer dizer, a uma pura e simples
expressão literária. Não se trata de uma negação ao
poema, porque Breton, seguido por Péret, Eluard e
outros, fizeram poemas admiráveis; mas a idéia surrea-
lista é a de que a poesia extrai sua fonte da vida, com
seus sonhos e acasos. Todos sabemos a importância
que os surrealistas atribuíam ao acaso. O que ocorreu,

5 Alguns neologismos criados pelo autor, como prosat'té,
desprosatzation,
entre outros, foram traduzidos de forma semelhante, para
permanecerem
mais fiéis às idéias do próprio autor. (N. T.)

38
#

EDGAR MORIN


então, foi uma desprosaização da vida cotidiana, que
começou com Arthur Rimbaud, quando este se maravi-
Ihou com as tendas militares estrangeiras e com o latim
das igrejas. Os surrealistas dignificaram o cinema e
foram os primeiros a admirar Charlie Chaplin. Em resu-
mo, a primeira mensagem surrealista foi desprosaizar a
vida cotidiana, reintroduzir a poesia na vida. Havia tam-
bém uma revolta com aspirações revolucionárias, não
apenas contra o mundo prosaizado, mas contra os hor-
rores produzidos pela Primeira Guerra Mundial. Breton
pretendeu associar a fórmula política revolucionária
"mudar o mundo" à fórmula poética surrealista "mudar
a vida". Mas essa aventura acarretou muitos equívocos
,
inclusive a autodestruição dos poetas, quando os mes-
mos pretenderam subordinar a poesia a um partido
político. E aqui se encontra um dos paradoxos da poe-
sia. O poeta não precisa se fechar no território restrito e
confinado dos jogos de palavras e símbolos. O poeta
possui uma competência total, multidimensional, que
concerne à humanidade e à política, mas não pode se
deixar submeter à organização política. Sua mensagem
política implica ultrapassar o político. Localizamos, por-
tanto, duas revoltas de poesia. E agora, qual é sua situa-
ção neste fim de século e de milênio?

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#

AMOR POESIA SABEDORIA


Inicialmente, podemos nos referir a uma grande
expansão da hiperprosa, que se articula à expansão de
um modo de vida monetarizado, cronometrado, parce-
larizado, compartimentado, atomizado e de um modo
de pensamento no qual os especialistas consideraram-
se competentes para todos os problemas, igualmente
ligados à expansão econômico-tecnoburocrática. Dian-
te dessas condições, penso que esta invasão da hiper-
prosa cria a necessidade de uma hiperpoesia.

Há outro fato que marca este final de século: a
destruição, ou melhor, a autodestruição da idéia de sal-
vação terrestre. Acreditou-se que o progresso estava
automaticamente garantido pela evolução histórica.
Acreditou-se que a ciência seria sempre progressiva,
que a indústria sempre traria benefícios, que a técnica
só traria melhorias. Acreditou-se que as leis históricas
garantiriam o desenvolvimento da humanidade e
,
tomando por base esse argumento, acreditou-se ser
possível atingir a salvação na terra, ou seja, o reino da
felicidade que as religiões prometiam no céu. O que se
constata hoje é o abandono da idéia de uma salvação
na terra, o que não significa ser necessário renunciar à
idéia de aperfeiçoar as relações humanas e civilizar a
humanidade. O abandono da idéia de salvação encon-
tra-se ligado à compreensão de que não existem leis
históricas, que o progresso não é automático e nem se
encontra garantido. O progresso deve não apenas ser

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EDGAR MORIN


conquistado, mas, uma vez conquistado, pode regredir,
tornando-se sempre necessário regenerá-lo.
Hoje, como afirma o filósofo tcheco Patocka, "o
futuro encontra-se problematizado e ficará assim para
sempre". Situamo-nos nesta aventura incerta e, a cada
dia, os acontecimentos que se produzem no mundo
indicam que nos encontramos na noite e na neblina. E
por que é assim? Porque ingressamos plenamente na era
planetária, uma era na qual ações múltiplas e
incessan-
tes encontram-se em todas as partes da Terra, e no
que
concerne aos poços de petróleo do Iraque e do Kuwait
diz respeito à humanidade como um todo. Ao mesmo
tempo, devemos compreender que nos encontramos
nesse pequeno planeta, nessa casa comum, perdidos no
cosmos, e que nossa missão deve ser efetivamente a de
civilizar as relações humanas sobre o nosso planeta.
As
religiões e política salvacionistas reiteram: sejamos
ir-
mãos, porque seremos salvos. Acredito que hoje seja
necessário dizer: sejamos irmãos porque estamos
perdi-
dos num planeta suburbano, de um sol suburbano, de
uma galáxia periférica, de um mundo desprovido de
centro. Mesmo assim, possuímos plantas, pássaros,
flo-
res, assim como a diversidade de vida, as
possibilidades
do espírito humano. Doravante, aqui residirão nosso
único fundamento e nosso único recurso possível.
A descoberta de nossa situação de perdição num
gigantesco cosmos adveio das descobertas da
astrofísi-


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#

AMOR POESIA SABEDORIA


ca. Isto significa que, atualmente, é possível um diálo-
go entre ciência e poesia, e isso porque a ciência nos
revela um universo fabulosamente poético ao redesco-
brir problemas filosóficos capitais: "O que é o homem?"
"Qual é o seu lugar?" "Qual é o seu destino?" "O que se
pode esperar dele?" Com efeito, o antigo universo de
ciência era uma máquina perfeita, inteiramente deter-
minista, animado por um movimento perpétuo, um
relógio permanente no qual nada ocorria, nada era cria-
do, nada se alterava. Esta máquina, lamentavelmente
pobre em sua perfeição, desintegrou-se. E o que vemos
agora? Sabemos que o universo nasceu, talvez, há 15
bilhões de anos, de uma fantástica explosão, de onde
bruscamente brotaram o tempo, a luz, a matéria, como
se esse início fosse uma espécie de explosão desorga-
nizadora a partir da qual o universo organizou-se.
Encontramo-nos numa incrível aventura. A vida nos
parecia banal, evidente, mas descobrimos que uma
bactéria, com seus milhões de moléculas, é mais com-
plexa do que todas as usinas do Ruhr reunidas. Demo-
nos conta de que o real, que parecia tão sólido e evi-
dente, dissipou-se sob o olhar da microfísica, e que, do
ponto de vista do cosmos, o tempo e o espaço, que
pareciam tão distintos, se misturaram. Muitos astrofísi-
cos pressentem que esse mundo de separação do espa-
ço e do tempo é como uma espuma constituída por
algo diferente em que as separações do espaço e do
tempo não existem mais.


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#

EDGAR MORIN


Onde se encontra a poesia hoje? Na poesia e em
outros domínios adquirimos a idéia de que não existe
vanguarda, no sentido de que a vanguarda traz algo
melhor do que aquilo que havia antes. Talvez a idéia
pós-moderna consista em afirmar que o novo não é
necessariamente o melhor. Fabricar o novo pelo novo é
estéril. O problema não reside na produção sistemática
e forçada do novo. A verdadeira novidade nasce sem-
pre de uma volta às origens. Por que Jean-Jacques
Rousseau é tão prodigiosamente novo? Porque preten-
deu debruçar-se sobre a fonte da humanidade, a ori-
gem da propriedade e da civilização e, no fundo, toda
novidade deve passar pelo recurso e pelo retorno ao
antigo. Pode ser que essa idéia seja pós-moderna, ou
mesmo pós-pós-moderna, mas tudo isso é secundário.
O objetivo que permanece fundamental na poesia é o
de nos colocar num estado segundo, ou, mais precisa-
mente, fazer com que esse estado segundo converta-se
num estado primeiro. O fim da poesia é o de nos colo-
car em estado poético.

43
#

.
NECESSARIA
.
E IMPOSSIVEL

SABEDORIA
#

A sabedoria grega é liga-
da à filosofia, porque a palavra filosofia quer dizer
"amigo da sabedoria". Quando se toma como funda-
mento o socratismo, o epicurismo, o estoicismo, o que
se constata é um conjunto de regras para uma vida que
se pode chamar sábia. A questão consiste em saber se,
por ser sábio, deve-se entender desligar-se dos prazeres
ou, ao contrário, saber usufruir deles. Em todos os
casos, mesmo se os modelos de sabedoria difiram, eles
inevitavelmente contêm uma regra de vida, uma vonta-
de de lucidez e incitação àquilo que se pensa ser o
bem. Na Idade Média, com o cristianismo, que subordi-
na a filosofia como algo ancilar, torna-se evidente que
a idéia antiga de sabedoria se rompe em detrimento da
piedade, da caridade e da santidade, que formam os
ideais e normas da vida cristã. A palavra sabedoria, tor-
nada teológica, foi atribuída à terceira pessoa da Trin-
dade, em seguida ao conhecimento sobrenatural ou das
coisas divinas. Depois esta palavra profanizou-se e foi
empregada, a partir do século XV, no sentido de pru-

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#

AMOR POESIA SABEDORIA


dência e moderação. Desde o renascimento da filosofia
efetuou-se uma ruptura, que foi acentuada por uma
verdadeira disjunção no mundo moderno entre filosofia
e sabedoria, com exceção de Spinoza. Já na época da
filosofia universitária, o julgamento de Hegel foi muito
explícito a esse respeito, pois quando se lhe pergunta-
va o que era a filosofia, rapidamente ele respondia: "A
filosofia é o ganha-pão dos professores de filosofia."
Atualmente, a palavra filosofia significa professor de
filosofia. Ainda que a preocupação ética também exista
na atividade filosófica, e Jankélévitch, autor de um
Tratado das virtudes,6 assim como Comte-Sponville,
sejam testemunhas disso, a palavra sabedoria desgas-
tou-se. De modo mais amplo, a hegemonia do ativismo
e da praxis no mundo contemporâneo eliminou qual-
quer idéia de sabedoria.


O mundo ocidental inventou um modelo prome-
teico de dominação, de conquista da natureza, que
afasta qualquer idéia de sabedoria. O problema da vida
e da morte foi ocultado por esta agitação em que fomos
envolvidos. Um grande sociólogo já falecido, Georges
Friedmann, após haver realizado vários estudos sobre o
trabalho nas sociedades modernas, escreveu um livro

6 Jankélévitch, Vladimir. Tratté des Vertus. Paris: Bordas,
1949. (N. T.)
Mdré Comte-Sponvilte. Pequeno tratado das grandes virtudes.
Traduçâo
de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (N. T.)

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EDGAR MORIN


intitulado O poder e a sabedoria, que não obteve ne-
nhum reconhecimento nem sucesso, mas, no qual,
debruçando-se sobre as sabedorias antigas, as religiões
e o cristianismo, interrogou-se finalmente sobre essa
questão. Desde então, começamos a abandonar a idéia
do poder pelo poder, da conquista pela conquista.
Além disso, uma das maiores aquisições da consciência
contemporânea passou a ser a consciência dos limites.
Infelizmente, esta consciência encontra-se restrita ape-
nas a alguns setores: limites do crescimento industrial e
técnico, da lógica, do espírito humano frente ao cosmos.


Encontramo-nos numa época de transição e de
tomada de consciência de uma falta. Daí decorre uma
necessidade de Oriente, que resulta do vazio de nossas
vidas de Ocidente. Esta necessidade foi estimulada pela
descoberta de que nosso individualismo está longe de
nos trazer a paz interior. O individualismo possui uma
face iluminada e clara: a das liberdades, autonomias e
responsabilidades. Mas possui também uma face som-
bria, cuja sombra amplia-se entre nós: a atomização, a
solidão, a angústia. Juntos, descobrimos que as relações
entre nossas almas, espíritos ( mentes) e corpos encon-
travam-se perturbadas. Daí o recurso ao Oriente do
budismo, do zen, dos gurus. Observamos, ainda, a pro-
pagação dos métodos propriamente ocidentais para tra-
tar a relação corpo-alma-espírito, como as psicoterapias

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AMOR POESIA SABEDORIA


e as psicanálises. Recorrendo às práticas orientais, por
vezes elas mesmas ocidentalizadas, e mesmo degrada-
das, porque "cronometradas", como tudo o que perten-
ce a nosso mundo ocidental, o que acabaremos final-
mente por aprender através delas? Um certo distancia-
mento em relação a si mesmo, que é o famoso "largar
mão", um esforço para se desvencilhar do que compul-
sivamente se quer reter nas mãos. É o que ocorre, igual-
mente, com a prática de uma meditação que consiste
em assumir o vazio ou o silêncio em si. É uma prática
diferente da nossa meditação ocidental, que consiste
em refletir sobre qualquer coisa, em fazer pelo espírito
o que os diferentes estômagos da vaca fazem (ruminar,
retomar, transformar). Permanece uma diferença, ou
uma impossibilidade que tem a ver, penso eu, com o
background cultural de nossa civilização, marcado pela
recusa da morte.
O budismo nasceu num ambiente de crenças no
qual a idéia de metempsicose impunha-se prioritaria-
mente. Desde então, trata-se de escapar a esse ciclo
infernal de sofrimentos, a fim de se atingir um nada
que, ao mesmo tempo, significa plenitude: o nirvana.
Em nossa paisagem mental ocidental ainda permanece
a idéia de que a morte é esse perigo medonho e terrí-
vel que nos dissolve, advindo daí a procura persistente
de uma salvação, de uma vitória sobre a morte e não de
uma aquiescência do nada. Eu mesmo escrevi que me


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EDGAR MORIN


considerava um "neobudista". Isto significava que,
não
podendo aderir ao substrato metafísico da
metempsico-
se, considerava que a mensagem de compaixão pelo
sofrimento não apenas humano, mas de qualquer ser
vivo - que constitui a mensagem fundamental de
Sidarta, podia e devia ser incorporada em nós. Essa
mensagem coincide com a mensagem evangélica, evi-
dentemente sempre recoberta pelo dogmatismo das
Igrejas, contido no Sermão da Montanha e nas Bea-
titudes. A compaixão cristã é limitada aos humanos
mas comporta algo de original ou importante: a
capaci-
dade do perdão. Em conseqüência disso, posso
integrar
em mim as duas mensagens num sincretismo filosófico-
ético-cultural, tomando dessa mestiçagem o que me
convém. Assim, o Oriente nos penetra através de mil

vias e mil tecidos cotidianos, enquanto que, por outro
lado, o Ocidente técnico industrial e capitalista se
,
expande sobre o Oriente.


Gostaria de passar agora à questão que hoje torna
inadequado o modelo antigo da sabedoria grega. Não
pela razão histórica de que somos agitados, ativados
vivendo o dia-a-dia, que somos incapazes de tomar
uma distância em relação a nós mesmos, mas - diria eu
- por uma razão antropológica chave. Quando quis
empreender uma reflexão antropológica em Oparadig-
ma perdido: a natureza humana, pareceu-me que não

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#

AMOR POESIA SABEDORIA


podia falar de homo sapiens, mas que era necessário
falar de homo sapiens-demens. Não se pode fazer como
se o homem fosse definido em relação aos outros ani-
mais unicamente por essa palavra sapiens, que, no
mínimo, significa "razão" e, no máximo, "sabedoria"
,
implicando que tudo que no homem não é razão e
sabedoria deveria ser considerado como égarement
provisório, acidental ou perturbador, devido à insufi-
ciência da educação etc.
Se se define homo unicamente como sapiens,
oculta-se dele a afetividade, disjuntando-a da razão
inteligente. Quando retroagimos para aquém da huma-
nidade, surpreendemo-nos pelo fato de que o desen-
volvimento da inteligência entre os mamíferos (capaci-
dade estratégica de conhecimento e ação) encontra-se
estreitamente correlacionado com o desenvolvimento
da afetividade. A imensa afetividade dos mamíferos
ini-
cia-se do modo mais doce e adorável, quando crianças
que saem imaturas do ventre das mães necessitam da
proteção e calor dessas mães peludas nos seios das
quais se aleitam. É no calor da ninhada amontoada sob
a mãe que se estabelece a relação afetiva, o laço que
continuará depois da infância e, entre os humanos, até
a idade adulta e mesmo senil. O que ocorre, portanto,
é a relação afetiva, e sobretudo intercomunicações que
se desenvolvem continuamente, como atestam as ob-
servações que se desenvolvem, por exemplo, entre os

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EDGAR MORIN

chimpanzés, que mantêm relações afetivas entre mães e
, filhos já adultos, mesmo sem incesto. Em resumo,a
multiplicidade da afetividade contribui para o desenvol-
vimento da inteligência.
A linguagem humana não responde apenas a
necessidades práticas e utilitárias. Responde a necessi-
dades de comunicação afetiva. A linguagem humana
permite dizer palavras gentis, mas permite, igualmente
,
falar por falar, dizer qualquer banalidade, pelo prazer
de se comunicar com o outro.
Portanto, inteligência e afetividade são correlacio-
nadas. A afetividade comporta evidentemente um as-
pecto negro (noir).0 aspecto rosa (rose) consiste na
participação, no amor e nas trocas, coisas que já apare-
cem entre nossos primos chimpanzés.O aspecto negro
aparece também entre eles com sua facilidade em se
, encolerizar por nada, como nós nas ruas de Paris. Eles
conhecem as cóleras,os furores,o estresse.
A afetividade é aquilo que, ao mesmo tempo, nos
cega e nos ilumina, mas a afetividade humana inventou
algo que não existia: o ódio, a maldade gratuita, a vonta-
de de destruir por destruir. Homo sapiens é igualmente
homo demens. Se pudéssemos dizer: somos 50% sapiens,
50% demens, com uma fronteira no meio, isso seria mui-
= to bom. Mas não há fronteira nítida entre os dois. Sapiens
e demens são dois pólos. Além disso,o que é caracterís-
tico no cérebro humano, este cérebro hipertrofiado,é

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AMOR POESIA SABEDORIA


ele funcionar com muito ruído (noise, em linguagem
informática) e desordem; mas, sem esta desordem não
haveria possibilidade de criação e invenção.
Quando Rimbaud disse: "Concluo por achar sagra-
da a desordem de meu espírito", ele demonstrou com-
preender que, na desordem, há algo sem o qual a vida
seria apenas insipidez mecânica. Assim, na copulação
entre sapiens e demens tem-se criatividade, invenção,
imaginação... mas também criminalidade e maldade.
Percebemos muito bem que o que chamamos gênio
situa-se sob, além e aquém da alternativa razão-loucu-
ra, e que alguns grandes espíritos por vezes sucumbi-
ram: H6lderlin, Nietzsche, Van Gogh.
Dito isto, podemos agora perguntar: o que é uma
vida racional? Não existe nenhum critério racional
para
defini-la. No limite, pode-se perguntar se comer e
viver
de modo sadio, não correr riscos, nunca ultrapassar a
dosagem prescrita significam realmente viver, ou me-
lhor, se a via racional não é uma vida demente. Não é
loucura pretender erradicar nossa loucura? A vida com-
porta um mínimo de desperdício, gratuidade, "consuma-
ção" (Bataille), desrazão. Castoriadis disse: "O homem
é
este animal louco cuja loucura inventou a razão."

Sejamos um pouco ambivalentes neste domínio.
Distinguirei entre racionalidade e racionalização. Elas
são oriundas da mesma origem, quer dizer, da necessi-

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EDGAR MORIN


dade de se ter uma concepção coerente, justificada por
uma argumentação fundada na indução e na dedução.
A racionalidade pesquisa e verifica a adequação entre o
discurso e o objeto do discurso, mas a racionalização se
fecha na sua lógica. Freud, porém, denominava "racio-
nalização" a esta forma de delírio que, a partir de um
postulado ou de uma constatação limitada, tira conse-
qüências lógicas absolutas, perdendo, nesse processo,
o suporte empírico. Os dogmas racionalizadores são os
que se verificam, não em relação à experiência ou aos
acontecimentos do mundo real, mas em relação à pala-
vra sacralizada de seus fundadores. Assim, a racionali-
zação se autoconfirma em seus textos sagrados, por
exemplo, nos de Marx, Freud, Lacan... A racionalídade,
em contrapartida, é aberta. Ela aceita que suas próprias
teorias sejam "biodegradáveis", que possam eventual-
mente ser superadas por argumentos ou acontecimen-
tos que as contradigam.
A razão do Iluminismo se apresenta sob uma for-
ma extraordinária ambivalente: de um lado, o espírito
crítico, cético, autocrítico da racionalidade (Voltaire,
Diderot); de outro, a racionalização que conduz à deu-
sa Razão, a quem Robespierre dedicou um culto.
A razão do racionalismo tornou-se auto-suficiente
e providencial: "A razão guia os nossos passos." Mesmo
Marx utilizou a razão histórica como fundamento de
uma religião terrestre. Marx mostrou-se um espírito

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AMOR POESIA SABEDORIA


dotado de um poder extraordinário, integrando simulta-
neamente em seu pensamento os aportes dos econo-
mistas ingleses, da filosofia alemã, das Luzes e do socia-
lismo francês. Mas, sem se dar conta disso, e acreditan-
do-se racional, científico e materialista, trouxe a pro-
messa de um mundo sem exploração. Trouxe um mes-
sias que era o proletariado, e o marxismo, sob uma for-
ma degradada, tornou-se uma religião terrestre capaz
de suscitar, como a religião celeste, inumeráveis márti-
res e carrascos.
Assim, devemos saber que os riscos de um delírio
da razão existem sempre. Mesmo assim, a herança da
racionalidade européia deve ser conservada, no sentido
de que essa racionalidade não seja somente crítica, mas
autocrítica. Foi essa racionalidade que permitiu a
Montaigne duvidar de nossa civilização em relação, por
exemplo, à dos índios da América, que permitiu a
Pascal dizer: "Verdade aquém dos Pireneus, erro além"
e que, tardiamente, nesse século, permitiu aos antropó-
logos ocidentais se darem conta de que as culturas ditas
primitivas não eram apenas uma rede de superstições,
mas podiam comportar, igualmente, sabedorias e ver-
dades profundas estreitamente interligadas. A partir daí,
é possível hoje reconhecer que as civilizações multisse-
culares da Ásia não comportam apenas atrasos, mas
também valores culturais subdesenvolvidos ou simples-
mente ignorados no Ocidente. Além disso, é preciso

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EDGAR MORIN


acrescentar que o racionalismo ocidental suscitou,
des-
de o século XIX, um contrafluxo, principalmente a par-
tir de 1848, data aproximativa da expansão do mundo
industrial e técnico, representado pelo retorno do
espi-
ritismo. Os espíritos, até então mais ou menos
recalca-
dos nas profundezas da floresta da Brocéliande, retor-
naram a uma casa urbana na Inglaterra. Puderam du-
rante um tempo ser caçados pela conjunção da Igreja
Católica e do racionalismo, mas terminaram por reapa-
recer. A Astrologia também reapareceu, assim como
milhares de artes mágicas. Sobre esse assunto, eu
diria
, que trazemos em nós um fundo antropológico mágico
que não podemos erradicar. Talvez seja necessário nos
divertirmos com ele. Vocês sabem que os amuletos, os
badulaques, os biorritmos, os horóscopos transmitem
confiança e são também formas de ajuda às decisões.
Com efeito, a coisa mais inofensiva que se pode imagi-
nar é o uso de um badulaque ou a consulta a um astró-
logo. São os racionalistas maníacos que pensam
irracio-
nalmente, os que consideram que a maior ameaça que
pesa sobre a humanidade é a astrologia. Muitos dentre
eles foram stalinistas em nome da Razão.
Ser racional não seria, então, compreender os limi-
tes da racionalidade e da parte de mistério do mundo?
A racionalidade é uma ferramenta maravilhosa, mas há
coisas que excedem o espírito humano. A vida é um
misto de irracionalizável e racionalidade. Seria
necessá-

57
#

AMOR POESIA SABEDORIA


rio aprender, de qualquer modo, a brincar com esta
parte irracional de nossas vidas e saber aceitá-las.
Confesso que, quando estou só na floresta durante a
noite, eu tenho medo. Não de bandidos, mas de fantas-
mas! Sei que se trata de um medo irracional, mas, ao
mesmo tempo, sei que não posso recalcá-lo.


Retornemos ao problema da vida segundo a razão.
Os gregos não inventaram a palavra "razão", contraria-
mente à opinião de certos helenistas que, orgulhosos de
seu saber, dizem: "Perdão, eles (os gregos) nomeavam a
razão Logos." Não! O Logos de Heráclito não é exata-
mente isso. Foi o mundo moderno que fez surgir o con-
ceito de razão, e foi a partir do momento em que o sen-
tido da palavra razão foi fixado que a razão tornou-se
desracionalizável. Desde então, a dialética, ou melhor,
segundo meus termos, a dialógica entre sapiens e de-
mens instalou-se no interior do racionalismo e da razão.
Agora, então, nos damos conta de que a racionali-
dade vai nos fornecer algumas indicações para a pes-
quisa da sabedoria perdida, mas que, finalmente, não
vamos encontrar nela um guia de vida. Quanto mais
cremos que a razão nos guia, mais deveríamos estar
inquietos a respeito do caráter desracionalizável desta
razão.

Retomemos agora um aspecto existencial: o que é
a vida? A vida é um tecido mesclado ou alternativo de


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#

EDGAR MORIN


prosa e de poesia. Pode-se chamar de prosa as
ativida-
des práticas, técnicas e materiais que são
necessárias à
(
existência. Pode-se chamar de poesia aquilo que nos
coloca num estado segundo: primeiramente, a poesia
em si mesma, depois a música, a dança, o gozo e, é
cla-
ro, o amor. Prosa e poesia eram intimamente
entrelaça-
das nas sociedades arcaicas. Por exemplo, antes de
par-
tir em expedição ou no momento das colheitas, havia
ritos, danças, cantos. Encontramo-nos numa sociedade
que tende a disjuntar prosa e poesia e na qual há uma
imensa ofensiva da prosa ligada ao desenvolvimento
técnico, mecânico, gélido, cronometrado em que tudo
se paga, tudo é monetarizado. A poesia tem, certamen-
te, ensaiado defender-se nos jogos, festas, bandos de
companheiros, nas férias. Cada um, em nossa socieda-
de, ensaia resistir à prosa do mundo, como, por exem-
plo, nos amores clandestinos, por vezes efêmeros, sem-
pre erráticos. Há pacotes prontos para consumir a poe-
sia que se vende nos clubes de férias, como o Clube
Mediterrâneo, por exemplo; lá vive-se num mundo sem
dinheiro, mas evidentemente tudo já foi pago adianta-
do. Em resumo, a poesia é a estética, o amor, o gozo,
o
prazer, a participação e, no fundo, é a vida! Mas o
que
é uma vida racional? Implica levar uma vida prosaica?
Loucura! Mas somos parcialmente obrigados a isso, por-
que se tivéssemos uma vida permanentemente poética,
não a sentiríamos mais. É-nos necessária a prosa para

59
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AMOR POESIA SABEDORIA


que possamos ressentir a poesia. Sobre ela, gostaria de
me referir àquilo que George Bataille denomina "con-
sumação", quer dizer, o fato de nos queimarmos num
grande fogo interior, oposto ao mero consumo, que é
um fenômeno de supermercado.
É preciso aceitar a "consumação", a poesia, o dis-
pêndio, o desperdício, uma parte de loucura na vida...
Talvez seja isso que constitui a sabedoria. Sabemos que
a atitude de gozar - e entendo, por isso, que, gozar a
vida, curtir uma boa refeição, um bom vinho, implica,
simultaneamente, a atitude de sofrer.
Se aprecio um bom vinho, espero quando me
obrigam a beber um vinho que considero ruim, en-
quanto que se não tivesse essa atitude, poderia muito
bem beber o que quer que fosse com a mesma indife-
rença. De modo semelhante, a atitude para a felicidade
implica a atitude para a infelicidade. É evidente que, se
conhecemos a felicidade com alguém que nos é caro e
esse alguém nos abandona, tornamo-nos infelizes por-
que justamente havíamos conhecido a felicidade. A ati-
tude de racionalização consistiria em dizer: para não ser
infeliz, não amarei mais ninguém e, desse modo, não
passarei por mais desgostos. O Tao-te-ching diz: "A
infelicidade caminha de braços dados com a felicidade,
e a felicidade deita-se ao pé da infelicidade." Você cha-
ma a felicidade, tira as conseqüências dela, que impli-
cam aceitar a infelicidade. Encontramo-nos aqui diante

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EDGAR MORIN


de uma situação muito difícil, pois não existe um pro-
grama de sabedoria. O que existe, em contrapartida, é
a idéia de que não podemos prescindir da dialógica
sempre em movimento entre nossa polaridade de de-
mens e de sapiens. Bem entendido, pode-se e deve-se
evitar a pior demência: mas é isso que é a sabedoria?


Eu veria o esforço da sabedoria em outro lugar, eu
o veria no esforço da auto-ética. A auto-ética implica
inicialmente evitar a baixeza, evitar ceder às pulsões
vingativas e maldosas. Isto supõe muita autocrítica,
auto-exame, aceitação da crítica do outro. Diz respeito,
também, aos universitários e aos professores de filoso-
fia, que não são melhores do que ninguém, mesmo que
a despeito dos manuais de filosofia. A auto-ética é,
antes de mais nada, uma ética da compreensão.
Devemos compreender que os seres humanos são seres
instáveis, nos quais há a possibilidade do melhor e do
pior, uns possuindo melhores possibilidades do que
outros. Devemos compreender também que os seres
possuem múltiplas personalidades potenciais e que
tudo depende dos acontecimentos, dos acidentes que
ocorrem com eles e que podem liberar alguns deles.
Hegel disse mais ou menos algo que é fundamen-
tal para a compreensão do outro: "Se você chama de
criminoso alguém que cometeu um crime, você ignora
todos os outros aspectos de sua personalidade ou de


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AMOR POESIA SABEDORIA


sua vida que não são criminosos." Nos filmes noirs, di-
tos de gangsters, há uma mensagem filosófica que pas-
sa despercebida. Vemos nela, com efeito, seres vivendo
no crime, na droga, que podem se amar, ter amizades e
que possuem seu código de honra. Descobrimos nesses
seres monstruosos uma humanidade. Acontece o mes-
mo nas tragédias de Shakespeare ou de Racine; nelas,
de modo inverso, são os reis, os príncipes, os modelos
de virtude que são acometidos pelas paixões mais bru-
tais e que praticam armadilhas e forfaits. Quando
vamos ao cinema, participamos mais do que na vida:
amamos um vagabundo, um palhaço, um Charlot-
Chaplin, mas, na saída, afastamo-nos daqueles com os
quais cruzamos e achamos que cheiram mal. Esta é a
mensagem do cinema, considerado uma arte menor, e
que sempre se esquece. Entretanto, a mensagem foi
transmitida no espaço de instantes. Houve uma com-
preensão antropológica.
É necessário igualmente compreender que as con-
dições e circunstâncias históricas podem conduzir os
seres humanos a derivas fatais. Pessoalmente, vivi a
época da tormenta histórica. A partir de 1930, a história
enlouqueceu. Vimos a ascensão do fascismo, do nazis-
mo, do stalinismo. Vimos a França sucumbir inteira-
mente. Um caso sinistro foi o do miliciano Darnand. Em
junho de 1940, ele quis partir para a Inglaterra, mas co-
mo não havia barco, seu ativismo conduziu-o finalmen-

62
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EDGAR MORIN


te a se tornar chefe de uma milícia que cometeu
atos
abomináveis na repressão aos maquis e aos
resistentes.
Vemos seres humanos se deixarem levar pelo sabor
dos
acontecimentos. Vi amigos tornarem-se
colaboracionis-
tas e stalinistas, deixarem-se envolver na
engrenagem
da máquina e praticar atos imundos que inicialmente
jamais o fariam.
Conheci Touvier em 1944, e o teria matado ou
ele
a mim. Mas a compreensão nos conduziu a outra
coisa:
a atitude para o perdão e a magnanimidade que deve-
mos cultivar. Considero sublime que Mandela tenha
perdoado os crimes ignóbeis que, durante anos,
foram
cometidos contra os negros. Este ato de
magnanimida-
de deveria permitir ao futuro sul-africano conhecer
uma
vida mestiçada. Se Rabin e Arafat fossem cada um
deles
advogar o castigo para os criminosos do campo
oposto,
não teria havido negociação. Num dado momento, não
se privilegiou a paz por razões meramente
pragmáticas
que, bem entendido, sempre existem, mas por razões
profundamente antropológicas: são as virtudes da
mag-
nanimidade ou do perdão que tornam possível o arre-
pendimento, como ocorreu com a filha de Aldo Moro
ao ver os assassinos de seu pai.
Na auto-ética, e principalmente no plano elemen-
tar da recusa das idéias de vingança e punição, é
onde
se situa o centro da sabedoria. É nesta auto-ética
para si
e para o outro que se encontram implicadas virtudes


~.
63
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AMOR POESIA SABEDORIA


antigas que nos remetem à via oriental: saber distanciar-
se de si mesmo, saber objetivar-se. Quero falar destas
práticas que consistem em se ver como objeto, sabendo
integralmente que se é sujeito, em poder descobrir-se
,
examinar-se, etc. Esse distanciamento pode ser tentado
de modo direto, como no caso de Montaigne. O esfor-
ço de introspecção é vital, mas o que é péssimo é que
ninguém o ensina. Não somente não é ensinado, mas é
também ignorado, como entre os psicólogos behavio-
ristas, para os quais a única coisa que conta é o com-
portamento, ou os neurocientistas para os quais o que
existe é o cérebro e os neurônios, e para os quais a
introspecção não tem nenhum valor.
É necessário, entretanto, ensinar e aprender a
saber distanciar-se, saber objetivar-se e aceitar-se. Seria
igualmente necessário saber meditar e refletir a fim de
não sucumbir a essa chuva de informações que nos cai
sobre a cabeça, ela mesma sucumbida pela chuva do
amanhã, que nos impede de meditar sobre o aconteci-
mento presente no cotidiano, não permitindo que o
contextualizemos ou que o situemos. Refletir é ensaiar,
e uma vez que foi possível contextualizar, compreen-
der, ver qual pode ser o sentido, quais podem ser as
perspectivas. Mais uma vez, para mim, a linha de força
de uma sabedoria moderna consistiria na compreensão.
Falo de um ponto de vista pessoal, porque não
posso fazer como se tudo isso fosse anônimo. Participei

64
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EDGAR MORIN


recentemente de um colóquio sobre o amor e me pare-
ceu que se falava do amor de um ponto de vista exte-
rior. Todos nós vivemos o amor, e essa vivência faz par-
te de nós. No que me concerne, ensaio assumir não
apenas minha própria dialógica de sapiens-demens,
mas também a dialógica entre as quatro forças que são
muito poderosas em mim, na qual nenhuma delas che-
ga a dominar as outras e na qual eu aceito a coexistên-
cia e o conflito. Quero falar da dúvida e do misticismo.
É por isso que amo Pascal, que se tornou um autor-cha-
ve para mim. Encontro nele esta alta racionalidade e o
conhecimento dos limites da razão. Ele sabia que a
ordem da caridade ultrapassava a da racionalidade.
Pascal era filho de Montaigne, embora tenha guardado
sua própria fé. De minha parte, não possuo essa fé num
deus da revelação, mas fé em alguns princípios que
podem ser chamados de "valores". Não vejo o meu mis-
ticismo como o de Santa Teresa d'Ávila, cujos "êxtases"
muito admiro, nem como o de São João da Cruz, ainda
que haja nele uma visão extremamente profunda da
relação entre conhecimento e ignorância. Creio que
posso ressenti-lo, por exemplo, numa flor, num pôr-do-
sol, numa visão. Em minha dialógica, nenhum elemen-
to destrói o outro. É dessa forma que assumo o proble-
ma. Assumo mesmo a contradição entre uma curiosida-


de. Quanto mais alto se sobe, tanto menos se entendia que é a
sombra tene-
brosa que actarava a noite.

65
#

AMOR POESIA SABEDORIA


de que me leva à dispersão e a necessidade de me
reconcentrar para produzir o fruto de minha experiên-
cia e de meu pensamento, quer dizer, O Método. Por
um lado, digo a mim mesmo que tenho necessidade de
conhecimento complexo - e sei que isso é racional.
Tenho necessidade de conhecer cada vez mais as ciên-
cias que trazem revelações sobre a vida, o universo e a
realidade... Mas até que ponto minha necessidade de
conhecimento é ela mesma racional? Sei perfeitamente
que adquirir um saber total é uma tarefa impossível.
Adorno diz de modo apropriado: "A totalidade é a não-
verdade." Ao mesmo tempo, não chego a ficar profun-
damente triste em virtude dessa necessidade de conhe-
cimento, e isso porque a necessidade de saber é o que
ocorre no mundo. Digo sempre a mim mesmo: seria
sábio renunciar a ser cidadão deste mundo e se sujeitar
a quaisquer processos sem ensaiar refletir sobre eles?
Vejo e vivo essa contradição. Finalmente, creio que as
grandes linhas da sabedoria se encontram na vontade
de assumir as dialógicas humanas, que podem ser resu-
midas na dialógica sapien demens e na dialógica prosa-
poesia.


A sabedoria deve saber que contém em si uma
contradição; é inteiramente loucura viver muito sabia-
mente. Devemos reconhecer que na loucura, que é o
amor, há a sabedoria do amor. No amor da sabedoria
,

66

;l
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ou da filosofia, falta amor. O importante na vida é o
amor. Com todos os perigos que ele contém.
Mas isso não é o suficiente. Se o mal que sofremos
e fazemos sofrer reside na incompreensão do outro, na
autojustificação, na mentira a si próprio (self deception),
então o caminho da ética - e é aí que introduzirei a sabe-
doria - reside no esforço da compreensão e não na con-
denação, no auto-exame que comporta a autocrítica e
que se esforça em reconhecer a mentira para si próprio.

67
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AMOR POESIA SABEDORIA


FONTES


O complexo de amor: conferência pronunciada
no colóquio "Palavras de amor", organizado pelo
"Planing familial" de Grenoble, em 16-17 de março de
1990.

A fonte de poesia: conferência pronunciada no
festival internacional de poesia de Strouga (então Ma-
cedônia iugoslava) no verão de 1990.
Necessária e impossível sabedoria: conferência
pronunciada sob o título: "Pode ainda existir uma sabe-
doria moderna?", no Centro de Pesquisas sobre o Ima-
ginário Social e de Educação, em Paris, no dia 26 de
novembro de 1995.

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I
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V


GRÁFICA E
EDITORA LTM.
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