quarta-feira, 28 de setembro de 2011 By: Fred

[livro] Jack London - Preparando uma Fogueira

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O dia tinha já rompido frio e cinzento, extremamente
frio e cinzento, quando o homem deixou o trilho principal do
Yukon e subiu pela alta margem de terra, onde um trilho
muito leve, pouco usado, se dirigia para Leste por entre
uma floresta de grossos abetos. A margem era íngreme e
ele parou para tomar fôlego, olhando o relógio para
justificar aquela paragem perante si próprio. Não havia sol,
nem vestígios dele, embora não houvesse uma só nuvem no
céu. Estava um dia claro, e contudo parecia haver um
manto intangível cobrindo todas as coisas, uma sutil
melancolia que tornava o dia escuro e que se devia à
ausência do sol no céu. Este fato não preocupava o homem.
Já estava habituado à falta do sol. Já não o via há alguns
dias e sabia que mais alguns se passariam antes que a
alegre esfera, a cumprir o seu percurso ao Sul, espreitasse
apenas acima do horizonte para logo desaparecer da vista.

O homem lançou um olhar para trás, para o caminho
que o trouxera. Lá estava o Yukon, uma milha de largura,
escondido sob um metro de gelo. E sobre este gelo outro
tanto de neve. Era toda uma brancura imaculada, rolando
em suaves ondulações nos lugares onde o congelamento
tinha formado montes de gelo. Para Norte e para Sul, até
onde a vista alcançava, era tudo de uma brancura
ininterrupta, salvo uma fina linha escura que em curva se
afastava da ilha coberta de abetos em direção ao Sul, e que
curvava depois para Norte e desaparecia por detrás de outra
ilha coberta de abetos. Esta fina linha escura era o trilho -o
trilho principal -que levava até ao Chilcoot Pass, Dyea, e à
água salgada, quinhentas milhas mais adiante; e que para
Norte ia até Dawson, a setenta milhas, e ainda mais para
Norte até Nulata, a mil milhas, e finalmente até St.Michael,
no Mar de Bering, mil e quinhentas milhas mais adiante.

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Mas nada disto - nem a misteriosa linha do trilho a
perder de vista, nem a ausência do sol, nem o tremendo
frio, nem a singularidade ou o caráter estranho de tudo
aquilo - deixava qualquer impressão no homem. Não que ele
já estivesse há muito habituado a eles. Ele era novo
naquelas terras, e este era o seu primeiro inverno naquelas
paragens. O problema dele era a falta de imaginação. Era
esperto e estava atento às coisas da vida, mas apenas às
coisas e não ao significado delas. Cinquenta graus negativos
significavam oitenta e tal graus de congelamento. Tal fato,
para ele, significava frio e desconforto, e apenas isso. Não o
levava a meditar sobre a sua fragilidade como criatura de
temperatura que era, ou sobre a fragilidade do homem em
geral, apenas capaz de viver dentro de certos limites muito
estreitos de calor e frio; e não o levava, daí para a frente,
para o campo das conjecturas sobre a imortalidade e sobre

o lugar do homem no universo. Cinquenta graus negativos
representavam uma picada do frio, que faz doer e de que a
gente se deve resguardar usando luvas, lobos de orelha,
botas quentes de pele e meias grossas. Cinquenta graus
negativos, para ele, eram apenas e só cinquenta graus
negativos. Nunca lhe passara pela cabeça que pudessem ser
mais alguma coisa.
Quando se virou para prosseguir o seu caminho, cuspiu,
distraído a refletir. Ouviu um estalido agudo que o
despertou. Cuspiu outra vez. E outra vez, no ar, antes de
cair na neve, o cuspe estalou. Ele sabia que a cinquenta
graus abaixo de zero o cuspe estalava na neve, mas este
cuspe tinha estalado no ar. Não havia dúvida de que estava
mais frio do que cinquenta abaixo de zero - quanto é que ele
não sabia. Mas a temperatura não importava. Ele dirigia-se
à velha concessão no braço esquerdo da bifurcação do
Henderson Creek, onde os rapazes já se encontravam. Eles
tinham vindo da região do Indian Creek, atravessando as
montanhas, enquanto que ele tinha feito um desvio para ver
das possibilidades de retirar os toros de madeira das ilhas
do Yukon na Primavera. Ia chegar lá pelas seis horas; um
pouco tarde, realmente, mas os rapazes lá estariam, já
teriam uma fogueira e uma refeição quente pronta. Quanto
ao almoço, apalpou o volume que sobressaía por baixo do
casaco. Estava também por baixo da camisa, embrulhado
num lenço contra a pele nua. Era a única maneira de
conservar as bolachas sem congelarem. Sorriu para si
próprio quando pensou naquelas bolachas, abertas uma a

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uma e embebidas na gordura do bacon e cada uma delas
com uma generosa fatia de bacon frito.

Mergulhou na floresta, no meio dos enormes abetos. O
trilho estava muito sumido. Já tinham caído trinta
centímetros de neve desde a última passagem de um trenó,
e ainda bem que ele não trazia um trenó, e ia assim tão
leve. De fato, ele não trazia senão o almoço embrulhado
num lenço. Estava era surpreendido com o frio. Estava
realmente muito frio, concluiu, enquanto esfregava, com a
mão enluvada, o nariz e as faces dormentes. Ele usava
suíças, mas aqueles pelos não lhe protegiam a parte frontal
da cara e o nariz ansioso, que se espetava agressivamente
no ar gelado.

A trote e atrás do homem, vinha um cão, um cão
grande arraçado de lobo, daqueles com que andam os
esquimós, e em nada diferente, física ou
temperamentalmente do seu irmão, o lobo selvagem. O
animal estava abatido, daquele frio tremendo. Ele sabia que
não era tempo para viajar. O instinto fornecia-lhe uma
informação mais real do que aquela que o homem obtinha
através da sua própria avaliação. Na verdade, aquele frio
não era só de cinquenta graus abaixo de zero; era de mais
de sessenta ou setenta graus abaixo de zero. Era de setenta
e cinco graus abaixo de zero. Como o ponto de
congelamento é de trinta e dois graus acima de zero, a
temperatura chegara portanto aos cento e sete graus abaixo
do ponto de congelamento. O cão não sabia nada de
termômetros. Provavelmente não havia no seu cérebro
qualquer noção exata do frio como a que havia no do
homem. Mas o animal tinha o seu instinto e sentia uma
vaga mas ameaçadora apreensão que o dominava e o fazia
seguir na peugada do homem e o fazia questionar
ansiosamente cada um dos seus movimentos menos
habituais como se estivesse à espera que ele fosse acampar
ali ou fosse procurar abrigo algures e fazer uma fogueira.
Ele aprendera a conhecer as fogueiras e precisava de uma
fogueira, ou então de escavar um buraco sob a neve para se
aquecer aninhando-se ao abrigo da atmosfera exterior.

O orvalho resultante da respiração fixava-se no pelo
como um fino pó de gelo, e em especial o queixo, o focinho
e as pestanas estavam brancos do seu bafo cristalizado. A
barba e o bigode ruivos do homem estavam igualmente
congelados, mas mais solidamente, tendo aqui a forma de
gelo mesmo e aumentando a cada uma das suas expirações

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quentes e húmidas. Além disso, o homem ia mascando
tabaco e o gelo que lhe cobria a boca firmava-lhe os lábios
de tal maneira que ele não conseguia limpar o queixo
quando cuspia o suco. O resultado era uma barba
cristalizada da cor e da consistência do âmbar e que ia
aumentando de tamanho no queixo. Se ele caísse, aquilo
estilhaçava-se como vidro. Mas aquele apêndice não o
preocupava. Era o preço a pagar por aqueles que mascavam
tabaco naquelas terras, e ele já tinha tido duas experiências
idênticas. O frio não era tanto, ele sabia-o, mas pelo
termômetro de álcool em Sixty Mile ele soubera que se
tinham registado temperaturas de cinquenta e de cinquenta
e cinco.

Continuou por uma extensão plana de floresta durante
algumas milhas, atravessou uma vasta planície coberta de
moitas e depois desceu por uma encosta abaixo em direção
ao leito gelado de um pequeno ribeiro. Era o Henderson
Creek, e ele sabia que estava a dez milhas da bifurcação.
Olhou o relógio. Eram dez horas. Andava a quatro milhas
por hora e calculou que devia chegar à bifurcação ao meio-
dia e meia. Resolveu que almoçaria lá para comemorar o
acontecimento.

O cão continuava a segui-lo num desânimo de cauda
pendente enquanto o homem gingava ao longo do leito do
ribeiro. O sulco do velho rastro de trenó era bem visível,
mas alguns centímetros de neve cobriam as marcas de
patins mais recentes. Há um mês que ninguém passava,
para cima ou para baixo, naquele ribeiro silencioso. O
homem prosseguiu determinado. Ele não era muito dado a
pensar, e particularmente naquela ocasião não tinha nada
em que pensar a não ser em que iria almoçar na bifurcação
e que às seis horas estaria no acampamento com os
rapazes. Não havia ninguém com quem falar; e, se
houvesse, teria sido impossível falar por causa da mordaça
de gelo que lhe cobria a boca. Assim, continuou
monotonamente a mascar tabaco e a fazer crescer a sua
barba de âmbar.

De vez em quando vinha-lhe à ideia o terrível frio que
fazia, e que nunca sentira tal frio. À medida que caminhava
ia esfregando a cara e o nariz com as costas da mão
enluvada. Fazia isto mecanicamente, mudando de mão de
quando em vez. Mas por muito que esfregasse, assim que
deixava de o fazer, os malares ficavam logo dormentes e
depois também a ponta do nariz. A cara ia certamente ficar

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gelada; ele sabia isso, e era com grande angústia que se
arrependia de não ter arranjado uma proteção para o nariz
do tipo da que o Bud usava durante as vagas de frio. Essas
proteções passavam também pela cara e protegiam-na.
Mas, afinal, também não importava muito. Qual era o
problema de ter a cara gelada? Um pouco doloroso, só isso;
nunca era coisa muito grave.

Vazia de ideias como a sua cabeça era, o homem era,
porém, muito observador, e reparou nas mudanças do
ribeiro, as lombadas, as curvas e os ramos de árvore, e
tinha sempre o cuidado de ver onde punha os pés. Uma vez,
depois de uma curva, recuou abruptamente, como um
cavalo assustado, desviou-se do lugar por onde tinha vindo
e retrocedeu alguns passos no trilho. O ribeiro sabia ele que
estava gelado até ao fundo - nenhum ribeiro podia ter água
naquele inverno polar -mas também sabia que havia
nascentes que borbulhavam nas encostas dos montes e cuja
água corria encosta abaixo sob a neve e por cima do gelo do
ribeiro. Ele sabia que mesmo as mais rigorosas vagas de frio
nunca conseguiam congelar estas nascentes, e conhecia
igualmente o seu perigo. Eram armadilhas. Escondiam poças
de água, debaixo da neve, que podiam ter um centímetro ou
um metro de profundidade. Às vezes estavam cobertos por
uma fina camada de gelo de três centímetros, que, por sua
vez, estava coberta de neve. Outras vezes, havia camadas
alternadas de água e gelo, de modo que, quando uma se
quebrava, as outras começavam a quebrar-se por ali abaixo
e a pessoa podia ficar na água até à cintura.

Esta a razão por que ele recuara tão assustado. Tinha
sentido o gelo a ceder sob os seus pés e ouviu o estalido da
camada de gelo escondida sob a neve. E molhar os pés com
tal temperatura significava perigo e problemas iminentes.
Significava na melhor das hipóteses um atraso, porque seria
obrigado a parar para acender uma fogueira cujo calor lhe
permitisse ficar descalço enquanto secava as botas e as
meias. Ficou a estudar o ribeiro e as margens e concluiu que
a água vinha da direita. Refletiu por momentos, esfregando
a cara e o nariz, depois desviou-se para a esquerda, a
caminhar cautelosamente e a experimentar a firmeza do
piso passo a passo. Passado o perigo, enfiou na boca mais
um bocado de tabaco para mascar e lá prosseguiu no seu
ritmo de quatro milhas por hora.

No decurso das duas horas seguintes, deparou com
várias destas armadilhas. Geralmente a neve que escondia

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as poças tinha um aspecto cavado, de açúcar cristalizado,
que anunciava o perigo. E mais uma vez escapou por um
triz; e uma das vezes, desconfiando do perigo, obrigou o
cão a ir na frente. O cão não queria ir. Foi ficando para trás
até que o homem o enxotou para a frente, e depois
atravessou rapidamente a superfície branca. Subitamente o
gelo quebrou e o cão debateu-se por momentos,
desequilibrado para um dos lados, mas depois conseguiu
sair para piso mais firme. Tinha molhado as patas e pernas
da frente, e quase imediatamente a água que ficara
agarrada ao pelo transformou-se em gelo. Fez rápidos
esforços para o remover lambendo as pernas e depois
sentou-se na neve começando a morder o gelo que se tinha
formado entre os dedos para o tirar também. Fez isto
apenas por instinto. Deixar ficar o gelo significaria pés em
ferida e ele não sabia isso. Apenas obedeceu à misteriosa
indicação vinda das profundezas ocultas do seu ser. Mas o
homem compreendeu-o, depois de avaliar a questão, e tirou
a luva da mão direita e ajudou-o a remover as partículas de
gelo. Não expôs os dedos ao ar mais do que um minuto, e
ficou espantado com a rapidez com que o entorpecimento os
atingiu. Estava realmente muito frio. Calçou rapidamente a
luva e começou a bater ferozmente com a mão no peito.

Às doze horas o dia atingia a sua claridade máxima. Mas

o sol andava tão para sul na sua viagem invernal que não
conseguia clarear o horizonte. O bojo da terra interpunha-se
entre ele e o Henderson Creek, onde o homem caminhava
sob um céu limpo, ao meio dia, sem projetar qualquer
sombra. Ao meio-dia e meia, pontualmente, chegava ele à
bifurcação do ribeiro. Estava satisfeito com o andamento
que conseguira. Se o conseguisse manter estaria
certamente com os rapazes pelas seis horas. Desabotoou o
casaco e a camisa e tirou o almoço. Esta tarefa não lhe
demorou mais de um quarto de minuto, mas esse curto
espaço de tempo foi suficiente para que os dedos expostos
ao ar lhe ficassem dormentes. Não calçou a luva, em vez
disso começou a bater repetidamente com os dedos nas
pernas. Depois sentou-se num tronco coberto de neve para
comer. O formigueiro nos dedos, depois de ter batido com
eles nas pernas, cessou tão depressa que ele ficou
sobressaltado. Não tinha tido qualquer possibilidade de dar
uma única dentada nas bolachas. Bateu com os dedos
repetidamente e calçou a luva, descalçando a outra mão
para comer. Tentou uma dentada de boca cheia, mas a
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mordaça de gelo impediu-o. Esquecera-se de fazer uma
fogueira para derreter o gelo. Riu-se da sua insensatez, e
enquanto ria começou a notar a dormência a subir-lhe pelos
dedos nus. E notou também que o formigueiro que
começara a sentir nos dedos dos pés quando se sentara já
estava a passar. Não sabia bem se os dedos dos pés
estavam quentes ou dormentes. Mexeu-os dentro das botas
e concluiu que estavam dormentes.

Calçou a luva rapidamente e pôs-se de pé. Começava a
ficar um tanto assustado. Começou a bater com os pés até o
formigueiro voltar. Só pensava que estava realmente muito
frio. Aquele homem de Sulphur Creek tinha razão quando
lhe falou do muito frio que às vezes se fazia sentir na
região. E ele nessa altura rira-se do homem! Isto mostrava
que não devemos ter tanta certeza das coisas. Não havia
qualquer dúvida sobre isso, estava mesmo frio. Começou a
andar energicamente de um lado para o outro, batendo com
os pés e sacudindo os braços até conseguir que
aquecessem. Depois pegou nos fósforos e começou a fazer
uma fogueira. Nas moitas, onde a água da primavera
anterior tinha deixado um monte de galhos secos, arranjou
ele a lenha. Começando cuidadosamente de um pequeno
lume, depressa conseguiu chamas grandes a crepitar, sobre
as quais derreteu o gelo da cara e ao calor das quais comeu
as suas bolachas. Por enquanto o ar frio estava vencido. O
cão aproveitou bem a fogueira, estendendo-se
suficientemente perto para receber o calor e suficientemente
longe para não ficar chamuscado.

Depois de acabar de comer, o homem encheu o
cachimbo e ficou a fumá-lo confortavelmente. Depois calçou
as luvas, apertou bem os lobos de orelhas e tomou o trilho
esquerdo da bifurcação. O cão ficou desapontado e olhava,
nostálgico, para a fogueira. Este homem não conhecia o frio.
Possivelmente nenhuma geração dos seus antepassados
conheceu o frio, o verdadeiro frio, o frio de cento e sete
graus abaixo do ponto de congelamento. Mas o cão
conhecia-o; todos os seus antepassados o conheceram, e
ele herdara esse conhecimento. E sabia que não era bom
andar fora com aquele frio terrível. O tempo estava bom era
para se estar metido num buraco da neve, bem
aconchegado, e esperar que uma cortina de nuvens se
viesse descerrar sobre o espaço exterior donde vinha aquele
frio. Por outro lado, também não havia grande intimidade
entre o cão e o homem. O primeiro era escravo do segundo,

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e as únicas carícias que alguma vez recebia eram as do
chicote e dos sons guturais que eram já uma ameaça de
chicote. E por isso o cão não fez qualquer esforço para dar a
conhecer ao homem a sua apreensão. Ele não estava
preocupado com o bem estar do homem; era apenas por ele
próprio que ele sentia aquela nostalgia da fogueira. E o
homem assobiou e falou-lhe em tom de chicote, e o cão lá
seguiu na sua peugada.

O homem meteu mais uma porção de tabaco na boca e
iniciou a construção de uma nova barba âmbar. E o seu bafo
húmido depressa lhe pulverizou de branco o bigode, as
sobrancelhas e as pestanas. Neste trilho esquerdo da
bifurcação do Henderson, parecia não haver tantas
nascentes, e durante meia hora o homem não viu vestígios
de nenhuma. Mas depois aconteceu. Num lugar onde não
havia quaisquer sinais, onde a neve macia e ininterrupta
parecia indicar alguma solidez por baixo, o piso cedeu. Não
parecia muito fundo. O homem molhou-se até meio dos
tornozelos antes de, a debater-se, conseguir saltar para
terra firme.

Ficou irritado e amaldiçoou a sua pouca sorte em voz
alta. Tivera a esperança de chegar ao acampamento onde
estavam os rapazes pelas seis horas, e isto ia atrasá-lo uma
hora, porque ia ter de acender uma fogueira para secar as
botas, as meias e os pés. Com aquela temperatura, isto
tornava-se imperativo - até aí sabia ele; e dirigiu-se para a
margem, que começou a trepar. Lá em cima, emaranhado
na vegetação rasteira à volta dos troncos de pequenos
abetos, estava um monte de lenha, deixado pela subida da
água - principalmente paus e galhos, mas também grandes
pedaços de ramos secos e boas canas secas do ano anterior.
Atirou vários destes últimos para baixo, para cima da neve.
Isto era para servir de base e evitar que as primeiras
chamas se afogassem na neve, que de outra maneira se
derreteria. O lume conseguiu-o friccionando um fósforo num
bocado de casca de vidoeiro que tirou do bolso. Isto ardia
ainda melhor do que o papel. Pô-lo sobre a base e foi
alimentando o fogo com tufos de erva seca e com os galhos
mais finos.

Trabalhava devagar, com muito cuidado e muito atento
ao perigo em que estava. Pouco a pouco, à medida que as
chamas cresciam, ia aumentando o tamanho dos ramos com
que as estava a alimentar. Agachou-se na neve, a
desemaranhar os ramos e ia-os atirando diretamente para a

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fogueira. Ele sabia que não podia falhar. Quando a
temperatura está a setenta e cinco graus abaixo de zero,
um homem não pode falhar na primeira tentativa para
acender uma fogueira -quer dizer, se tiver os pés
molhados. Se tiver os pés secos e falhar pode correr meia
milha pelo trilho fora para restabelecer a circulação. Mas a
circulação nos pés molhados e gelados não se pode
restabelecer correndo quando estão setenta e cinco graus
abaixo de zero. Por mais depressa que corra, os pés
molhados gelarão cada vez mais.

Tudo isto o homem sabia. Aquele veterano em Sulphur
Creek tinha falado nisto no outro outono e agora é que ele
estava a dar valor ao conselho. Já não sentia os pés. Para
fazer a fogueira tinha sido obrigado a descalçar as luvas, e
os dedos ficaram logo dormentes. O seu andamento de
quatro milhas por hora tinha-lhe mantido o coração a
bombear sangue para toda a superfície do corpo e para
todas as extremidades. Mas no momento em que ele parou,
a ação da bomba, abrandou. O frio do espaço atacou a
ponta desprotegida do planeta, e estando ele nessa ponta
desprotegida, recebeu o golpe em toda a sua força. O
sangue do corpo retraiu-se perante o ataque. O sangue
estava vivo, como o cão, e tal como o cão, queria recolher-
se e proteger-se daquele frio terrível. Enquanto andasse a
quatro milhas por hora, o coração, quisesse ou não,
bombeava esse sangue para a superfície; mas agora o
sangue refluiu e alojou-se nos recessos do corpo. As
extremidades foram as primeiras a sentir a sua ausência. Os
pés molhados eram os que gelavam mais depressa, e os
dedos nus eram os que adormeciam mais depressa, embora
ainda não tivessem começado a gelar. O nariz e a cara já
estavam a começar a gelar, enquanto a pele por todo o seu
corpo arrefecia com a perda do sangue.

Mas estava salvo. Os dedos dos pés, o nariz e a cara só
seriam ligeiramente afetados pelo congelamento, porque a
fogueira estava a começar a arder bem. Ele estava a
alimentá-la com ramos da espessura de um dedo. Mais um
instante e poderia começar a alimentá-la com ramos da
espessura do pulso, e então já poderia descalçar-se e,
enquanto secava as botas e as meias, poderia manter os
pés descalços quentes à fogueira, esfregando-os primeiro,
claro, com neve. A fogueira foi um sucesso. Estava salvo.
Lembrou-se do conselho do veterano em Sulphur Creek e
sorriu. O veterano tinha falado muito a sério quando lhe

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ditou a regra segundo a qual ninguém deve viajar sozinho
no Klondike com temperaturas abaixo dos cinquenta graus.
E ali estava ele; tinha tido aquele acidente; estava sozinho e
tinha-se salvado. Aqueles velhos veteranos eram muito
maricas, alguns deles, pensou. O que era preciso era não
perder a cabeça, e assim as coisas correriam bem. Qualquer
homem que seja homem pode viajar sozinho. Mas era
espantosa a rapidez com que a cara e o nariz estavam a
gelar. E nunca imaginara que os dedos pudessem ficar sem
vida em tão pouco tempo. E estavam de fato, sem vida,
porque ele mal os podia mexer para agarrar um ramo, e
parecia-lhe que estavam afastados do corpo e dele próprio.
Quando tocava num ramo, tinha de olhar para ver se o
estava a agarrar ou não. As comunicações entre ele e as
pontas dos dedos estavam bastante fracas.

Mas nada disto contava muito. Estava ali a fogueira a
estalar e a crepitar, uma promessa de vida a dançar em
cada labareda. Começou a desapertar as botas. Estavam
cobertas de gelo; as grossas meias alemãs pareciam
bainhas de ferro até ao meio da perna; e os cordões das
botas pareciam varetas de aço, todas torcidas e cheias de
nós como em resultado de uma explosão. Durante algum
tempo ainda tentou puxá-los com a mão, mas depois,
percebendo o disparate que estava fazendo pegou na
navalha.

Mas antes de poder cortar os cordões, aconteceu aquilo.
A culpa, ou melhor, o erro foi seu. Não devia ter feito a
fogueira por baixo dos abetos. Devia tê-la feito numa
clareira. Mas assim tinha sido mais fácil puxar os ramos e
pô-los diretamente sobre o fogo. Ora, a árvore sob a qual
ele a fizera tinha uma grande carga de neve sobre os ramos.
Há semanas que não corria vento nenhum, e todos os ramos
estavam carregadinhos de neve. Enquanto estivera a fazer a
fogueira, de cada vez que puxava um ramo transmitia uma
ligeira agitação à árvore -uma agitação imperceptível para
ele, mas a bastante para provocar o desastre. Um ramo no
topo da árvore cedeu e deixou cair a neve sobre os ramos
que lhe ficavam por baixo, os quais, por sua vez, cederam
também. Este processo continuou, estendendo-se a toda a
árvore. A neve cresceu como uma avalanche e acabou por
cair sobre o homem e sobre a fogueira e o fogo apagou-se!
No lugar da fogueira estava agora apenas um monte de
neve fresca.

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O homem ficou abalado. Era como se acabasse de ouvir
a sua própria sentença de morte. Ficou sentado por
momentos a olhar para o ponto onde ainda há pouco ardia a
fogueira. Depois ficou muito calmo. Talvez o velho veterano
de Sulphur Creek tivesse razão. Se tivesse ali consigo um
companheiro, não estaria agora em perigo. O companheiro
podia fazer a fogueira. Mas assim era ele que tinha de fazer
a fogueira de novo, e desta vez não podia falhar. Mesmo
que conseguisse, ia certamente ficar sem alguns dedos dos
pés. Os pés deviam estar agora gravemente congelados e a
segunda fogueira ainda ia demorar a fazer.

Era isto que ele estava a pensar, mas não se deixou
ficar parado. Esteve sempre em atividade enquanto estes
pensamentos lhe ocorriam. Construiu uma nova base para a
fogueira, desta vez numa clareira, onde nenhuma árvore
traiçoeira a poderia apagar. A seguir, juntou ervas secas e
alguns galhos do monte deixado pela subida das águas. Não
conseguia apertar os dedos para os puxar, mas conseguiu
juntá-los às mãos cheias. Mas desta maneira arrastou
também muitos galhos podres e bocados de musgo
indesejáveis, mas era o melhor que conseguia fazer.
Trabalhava metodicamente, juntando mesmo uma braçada
de ramos maiores que serviriam mais tarde quando o fogo
já estivesse mais forte. E enquanto isto, o cão estava
sentado a observá-lo com uma certa ansiedade nostálgica
no olhar, porque o estava a ver como o fazedor de
fogueiras, e a fogueira tardava.

Quando já estava tudo pronto, o homem procurou no
bolso uma segunda casca de vidoeiro. Ele sabia que a casca
lá estava e, embora não a pudesse sentir com os dedos,
ouvia o seu ruge-ruge enquanto tentava desajeitadamente
agarrá-la. Por muito que tentasse, não conseguia agarrá-la.
E durante todo o tempo, ele sabia, bem no fundo do seu
consciente, que os pés lhe estavam a congelar momento a
momento. Esta ideia inclinava-o para o pânico, mas lutou
contra isso e manteve a calma. Com os dentes, calçou as
luvas e começou a balançar os braços para a frente e para
trás batendo com as mãos nas pernas com toda a sua força.
Estava a fazer isto sentado e depois levantou-se; e durante
este tempo, o cão continuava sentado na neve, com a cauda
de lobo enroscada à volta das patas anteriores, as orelhas
pontiagudas de lobo viradas intencionalmente para a frente
enquanto observava o homem. E o homem, enquanto
balançava os braços e batia com as mãos, foi invadido por

13



um enorme sentimento de inveja ao ver aquela criatura que
estava quente e segura na sua proteção natural.

Algum tempo depois começou a sentir os primeiros
sinais muito longínquos de sensibilidade nos dedos. O ligeiro
formigueiro aumentou até se transformar em picadas muito
dolorosas, mas que o homem abençoou com satisfação.
Tirou a luva da mão direita e meteu-a no bolso a buscar a
casca de vidoeiro. Os dedos expostos ao ar começaram logo
a adormecer outra vez. A seguir tirou um punhado de
fósforos. Mas aquele frio tremendo já arrancara a vida aos
dedos outra vez. No seu esforço para separar um fósforo
dos outros, caíram todos na neve. Tentou apanhá-los mas
não conseguiu. Os dedos mortos não conseguiam tocar nem
agarrá-los. Ele agia com muito cuidado. Afastou do
pensamento a ideia da cara e dos pés e do nariz que
estavam a gelar, devotando toda a sua alma aos fósforos.
Ficou a observar, usando o sentido da visão em vez do do
tato, e quando viu os dedos um de cada lado do maço de
fósforos apertou-os - ou melhor, quis apertá-los, porque as
comunicações estavam cortadas e os dedos não obedeciam.
Calçou a luva da mão direita e bateu com ela violentamente
contra o joelho. Depois, com ambas as mãos enluvadas
servindo como que de colher apanhou o punhado dos
fósforos juntamente com muita neve e depositou tudo sobre

o colo. Contudo as coisas não melhoraram muito.
Depois de alguma manipulação, conseguiu agarrar o
maço de fósforos juntando as palmas das mãos enluvadas e
desta maneira levou-o até à boca. O gelo estalou e partiu-se
quando num violento esforço ele abriu a boca. Recolheu o
maxilar inferior e enrolou o lábio superior para abrir espaço
e arranhou o molho com os dentes de cima para separar um
fósforo. Conseguiu apanhar um, que deixou cair no colo.
Mas mesmo assim as coisas não melhoraram. Não
conseguia agarrá-lo. Então pensou numa maneira. Pegou-
lhe com os dentes e friccionou-o na perna. Vinte foram as
vezes que ele repetiu o movimento até conseguir acendê-lo.
Quando isso aconteceu, levou-o, sempre nos dentes, até à
casca de vidoeiro. Mas o enxofre foi-lhe para as narinas e
para os pulmões e fê-lo tossir convulsivamente. O fósforo
caiu na neve e apagou-se.

O velho veterano de Sulphur Creek tinha razão, pensou
ele durante aqueles momentos de desespero controlado que
se seguiram: abaixo dos cinquenta negativos um homem
deve viajar sempre acompanhado de um parceiro. Bateu

14



com as mãos, mas não conseguiu provocar nelas qualquer
sensação. Subitamente descalçou as luvas, puxando-as com
os dentes. Pegou no molho todo com a parte posterior das
palmas das mãos juntas. Os músculos dos braços não
estavam gelados, o que lhe permitia apertar as mãos contra
os fósforos. Depois friccionou todo o molho na perna. Os
setenta fósforos acenderam-se todos! Não havia vento para
os apagar. Virou a cabeça para o lado para evitar os gases
sufocantes e pôs os fósforos acesos junto da casca de
vidoeiro. Enquanto assim fazia, começou a sentir a mão.
Estava a queimá-la. Sentia-lhe bem o cheiro. Bem lá no
fundo, abaixo da superfície, ele sentia-a. A sensação
transformou-se em dor aguda. Mas aguentou, mantendo a
chama dos fósforos desajeitadamente junto da casca que só
não pegou logo porque as mãos se interpunham absorvendo
a maior parte da chama.

Por fim, quando já não aguentava mais, sacudiu as
mãos. Os fósforos acesos caíram, a crepitar, na neve, mas a
casca ficou a arder. Começou a pôr ervas secas e os galhos
mais finos sobre a chama. Não os podia escolher, porque
tinha de pegar neles entre as mãos. Alguns pequenos
pedaços de ramos podres e de musgo verde vinham
agarrados aos galhos e ele arrancou-os o melhor que pôde
com os dentes. Tratou da fogueira desajeitadamente, mas
com muito cuidado. Aquele fogo significava vida, não podia
morrer. Agora a retração do sangue da superfície do corpo
fê-lo começar a tremer e ele ficou ainda mais desajeitado.
Um grande pedaço de musgo verde caiu mesmo em cima da
pequena fogueira. Tentou empurrá-lo com os dedos, mas as
tremuras fizeram com que o seu movimento fosse fundo
demais e ele acabou por desfazer o núcleo da pequena
fogueira, e os pequenos galhos a arder separaram-se e
espalharam-se. Tentou juntá-los de novo, mas apesar da
tensão do esforço, as tremuras dominavam-no e os galhos
ficaram irremediavelmente espalhados. Os galhos deitaram
uma fumaça e apagaram-se. O fazedor de fogueiras falhara.
Ao olhar apático à sua volta, deu casualmente com os olhos
no cão sentado na neve à sua frente, do outro lado dos
restos da fogueira, fazendo movimentos impacientes com o
corpo, erguendo ligeiramente ora uma ora outra das patas
dianteiras e mudando o peso do corpo de uma para a outra
numa ansiedade melancólica.

Ao ver o cão, ocorreu-lhe uma ideia louca. Lembrou-se
daquela história do homem que, apanhado numa

15



tempestade de neve, matou um boi e depois se arrastou
para dentro da carcaça do animal, assim se salvando.
Matava o cão e enfiava as mãos no corpo quente do animal
até a dormência passar. Depois já podia fazer outra
fogueira. Falou para o cão, chamando-o; mas a voz saiu-lhe
com um estranho tom de medo que assustou o animal, que
nunca ouvira o homem a falar-lhe daquela maneira. Alguma
coisa se passava, e a sua natureza desconfiada pressentiu
perigo - não sabia exatamente que perigo, mas algures no
seu cérebro havia uma certa apreensão em relação ao
homem. Ao ouvir o homem, achatou as orelhas e os
movimentos impacientes do corpo e das patas acentuaram-
se; mas não se chegou a ele. O homem pôs-se de joelhos e,
apoiado nas mãos, gatinhou em direção ao cão. Esta sua
invulgar posição também levantou suspeitas e o animal, a
andar de lado, começou a afastar-se.

O homem sentou-se, por momentos, na neve a procurar
acalmar-se. Depois calçou as luvas com os dentes e pôs-se
de pé. Primeiro olhou para baixo para ver se de fato estava
de pé, porque a falta de sensibilidade nos pés deixava-o
desligado do solo. Esta sua posição fez com que as suspeitas
do cão se começassem a desvanecer; e quando ele falou em
tom peremptório, com aquele som de chicote na voz, o cão
retomou a sua habitual postura de lealdade e encaminhou-
se para ele. Quando chegou perto, o homem perdeu o
controle. Estendeu os braços para o cão e teve uma
verdadeira surpresa quando verificou que as mãos não
conseguiam agarrar, que os dedos não se dobravam e não
sentiam. Esquecera-se por momentos de que tinha as mãos
geladas e que continuavam a gelar cada vez mais. Tudo isto
aconteceu muito depressa e antes que o animal pudesse
fugir, ele rodeou-lhe o corpo com os braços. Sentou-se no
chão e segurou assim o cão, que entretanto rosnava, gania
e se debatia.

Mas o homem não podia fazer mais nada, apenas podia
mantê-lo seguro, abraçando-lhe o corpo, e continuar
sentado. Compreendeu que não conseguiria matar o cão.
Não tinha maneira de o fazer. Com as mãos naquele estado
não conseguia pegar na navalha nem segurá-la na mão, e
também não conseguia estrangular o animal. Soltou-o e ele
afastou-se furiosamente com um salto, rabo entre as pernas
e sempre a rosnar. Parou uns dez metros mais à frente e
olhou o homem intrigado, de orelhas espetadas. O homem
olhou para as mãos para as localizar e viu-as pendentes dos

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braços. E achou esquisita a sensação de ter de olhar para
ver onde estavam as próprias mãos. Começou a balançar os
braços para um lado e para o outro batendo com as mãos
enluvadas nas pernas. Esteve a fazer isto durante cinco
minutos, violentamente, e o coração bombeou para a
superfície do corpo sangue suficiente para ele deixar de
tremer. Mas a sensibilidade das mãos não voltava. Sentia as
mãos como se fossem pesos pendurados na extremidades
dos braços, mas quando tentou que essa impressão
descesse, não a encontrou.

Um certo medo da morte, opressivo e entorpecedor,
começou a apossar-se dele. Este medo depressa se tornou
pungente quando ele se apercebeu de que a questão já não
era só o fato de as mãos e os dedos dos pés estarem a gelar
ou de vir a ficar sem eles, mas uma questão de vida ou de
morte e de que as chances estavam todas contra ele. Isto
deixou-o em pânico e voltou-se e começou a correr pelo
leito do ribeiro seguindo o velho trilho já meio apagado. O
cão seguiu-o. Correu cegamente, sem destino, acossado por
um medo que nunca sentira na vida. Gradualmente, à
medida que ia sulcando a neve aos tropeções, começou a
ver as coisas outra vez - as margens do ribeiro, os velhos
montes de ramos, os choupos despidos de folhas e o céu. A
corrida fê-lo sentir-se melhor. Já não tremia. Se continuasse
a correr, quem sabe, talvez os pés descongelassem; e em
qualquer dos casos, se corresse bastante chegaria ao
acampamento onde estavam os rapazes. Ia ficar sem alguns
dedos das mãos e dos pés e uma parte da cara; mas os
rapazes iam tratar dele e salvar o que dele restasse quando
lá chegasse. Mas ao mesmo tempo tinha na cabeça um
outro pensamento que lhe dizia que nunca chegaria ao
acampamento dos rapazes; que o acampamento ficava a
muitas milhas de distância e que a congelamento tinha um
grande avanço sobre ele e em breve estaria hirto e morto.
Esta ideia estava em fundo e ele recusava-se a considerá-la.
Às vezes ela vinha à tona e exigia a sua atenção, mas ele
empurrava-a de novo para baixo para pensar noutras
coisas.

Ficou muito admirado de ainda poder correr, com os pés
assim tão gelados que nem os sentia quando eles tocavam o
chão e suportavam o peso do corpo. Tinha visto uma vez,
algures, um Mercúrio alado, e perguntava-se se o Mercúrio
se sentiria como ele, assim a planar sobre a terra.

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A sua ideia de ir a correr até ao acampamento tinha um
senão: faltava-lhe a resistência. Tropeçou várias vezes e por
fim cambaleou, não resistiu e acabou por cair. Quando
tentou levantar-se, não conseguiu. Resolveu sentar-se a
descansar e depois caminhar simplesmente e manter o
andamento. Depois de se sentar e de ter recuperado o
fôlego, notou que estava a sentir quente e bem disposto.
Não estava a tremer, e até lhe parecia sentir uma réstia de
calor a penetrar-lhe o peito e o tronco. Mas quando tocava
no nariz ou na cara não sentia nada. A corrida não lhes
provocava o degelo. Nem às mãos ou aos pés. E então
pensou que o congelamento do corpo devia estar se a
alastrar. Tentou afastar este pensamento, esquecê-lo,
pensar noutra coisa qualquer; tinha plena consciência do
pânico que aquela ideia lhe provocava, e ele receava o
pânico. Mas aquele pensamento instalou-se e persistiu até
lhe produzir uma imagem do corpo completamente gelado.
Isto era demais, e encetou uma nova corrida desenfreada
pelo trilho fora. Abrandou uma vez para voltar a andar a
passo, mas aquela ideia do congelamento a avançar fê-lo
começar a correr outra vez.

E o cão sempre atrás dele, na sua trilha. Quando caiu
uma segunda vez, o animal enrolou a cauda sobre as patas
dianteiras e sentou-se à sua frente, virado para ele,
curiosamente ansioso e atento. O calor e a segurança do
animal encolerizaram-no, e começou a amaldiçoá-lo até que

o animal, apaziguador, achatou as orelhas. Desta vez as
tremuras voltaram mais depressa. Estava a perder a sua
luta contra o gelo. O congelamento, vindo de todos os lados,
avançava-lhe pelo corpo. Esta ideia fê-lo continuar, mas não
correu mais do que trinta metros e logo vacilou e se
estatelou ao comprido. Era o seu derradeiro pânico. Quando
recobrou o fôlego e o controle, sentou-se e começou a
elaborar no seu espírito a ideia de encontrar a morte com
dignidade. Contudo, esta concepção não lhe ocorreu nestes
termos. A sua ideia era que tinha andado a fazer papel de
tonto ao lançar-se naquela correria, qual galinha sem
cabeça - foi esta a imagem que lhe veio à ideia. Bem, como,
de qualquer maneira, estava condenado a ficar todo gelado,
podia ao menos aceitar o fato com alguma decência. Com
esta paz de espírito recém descoberta chegaram também os
primeiros sinais de sonolência. Uma boa ideia, pensou ele,
dormir até morrer. Era como tomar um anestésico. Gelar
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não era afinal tão mau como se pensava. Havia muitas
maneiras de morrer bastante piores.

Imaginou os rapazes a encontrarem o corpo no dia
seguinte. E subitamente viu-se a si próprio a ir com eles
pelo trilho à sua procura. E, ainda com eles, depois de uma
curva, deparou com o próprio corpo deitado na neve. Já não
era parte de si mesmo, porque mesmo nessa altura ele
estava fora de si próprio, ali com os rapazes à procura de si
próprio. Estava realmente muito frio, foi o que pensou.
Quando voltasse para os Estados Unidos, já podia dizer aos
amigos o que era o verdadeiro frio. Passou desta imagem
para uma visão do velho veterano de Sulphur Creek. Via-o
distintamente, muito confortável e quente, a fumar
cachimbo.

- Tinhas razão, velho amigo, tinhas toda a razão sussurrou
para o velho veterano de Sulphur Creek.
Depois o homem caiu naquilo que lhe pareceu ser o
mais confortável e restaurador dos sonos que jamais
experimentara. O cão continuava sentado a olhar para ele, à
espera. O curto dia aproximava-se do fim num crepúsculo
longo e lento. Não havia sinais de que se fosse fazer
qualquer fogueira, e além disso, nunca na sua experiência o
cão conhecera homem nenhum que ficasse sentado na neve
sem fazer uma fogueira. À medida que o crepúsculo
avançava, o seu desejo por uma fogueira aumentava, e,
mexendo-se muito e trocando constantemente a posição das
patas dianteiras, começou a ganir baixinho e depois achatou
as orelhas, a antecipar a zanga do homem. Mas o homem
continuava calado. Depois o cão começou a ganir alto, e a
seguir rastejou até junto do homem, mas cheirou-lhe a
morte. Isto fê-lo eriçar-se e recuar. Ficou ainda um pouco a
uivar sob as estrelas, que saltitavam e dançavam brilhantes
no céu frio. Depois voltou-se e começou a trotar pelo trilho
adiante em direção ao acampamento que ele conhecia e
onde estavam os outros alimentadores e fazedores de
fogueiras.

************************


19



SOBRE O AUTOR E SUA OBRA



Jack London (1876-1916) é um dos
maiores escritores de aventuras de
todos os tempos. Neste impressionante
ensaio, Antes de Adão, ele fala de sua
personalidade dissociada: o Dentuço,
um ser pré-histórico, pertencente ao
Povo das cavernas, que teria vivido há
milhões de anos e transmitido intactas
suas impressões e vivências ao cérebro
de Jack. A descrição exata e a emoção
permanente fazem deste livro um

fantástico relato de aventuras.

Teve uma infância e juventude cheias de sacrifícios e
aventuras. Autodidata, na mais legítima expressão da
palavra, sua vocação para as letras foi imensa.

Dotado de um estilo próprio, vigoroso, sintético, dizer muito
com poucos vocábulo; amante da aventura e dono de uma
grande sensibilidade artística, London conseguiu em apenas
14 anos, escrever 43 livros, além de centenas de contos,
artigos e reportagens.

Aventureiro, jornalista, Jack London conheceu a fama e a
decadência, sendo considerado um dos escritores mais bem
pagos do seu tempo.

Mais tarde mergulhou no álcool e foi protagonista de alguns
desastres financeiros. Mas o certo é que sua obra
sobreviveu aos problemas que enfrentou no final da vida.

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Hoje é considerado um dos maiores escritores da língua
inglesa em todos os tempos; sobretudo, um extraordinário
narrador, e a sua influência marcou várias gerações de
escritores americanos, de Ernest Hemingway a John dos
Passos e Jack Kerouac.

Entre sua vasta obra destacam-se:

Martin Eden (1909), O Filho do Lobo (1900), O
Chamado da Floresta (1903), O Lobo do Mar (1904) e
Caninos Brancos (1906).

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Jack London - Preparando uma Fogueira



 

O dia tinha já rompido frio e cinzento, extremamente frio e cinzento, quando o homem deixou o trilho principal do Yukon e subiu pela alta margem de terra, onde um trilho muito leve, pouco usado, se dirigia para Leste por entre uma floresta de grossos abetos. A margem era íngreme e ele parou para tomar fôlego, olhando o relógio para justificar aquela paragem perante si próprio. Não havia sol, nem vestígios dele, embora não houvesse uma só nuvem no céu. Estava um dia claro, e contudo parecia haver um manto intangível cobrindo todas as coisas, uma sutil melancolia que tornava o dia escuro e que se devia à ausência do sol no céu. Este fato não preocupava o homem. Já estava habituado à falta do sol. Já não o via há alguns dias e sabia que mais alguns se passariam antes que a alegre esfera, a cumprir o seu percurso ao Sul, espreitasse apenas acima do horizonte para logo desaparecer da vista.


 

Link: http://www.ziddu.com/download/16504807/JackLondon-PreparandoumaFogueira.rar.html


Boa leitura
Abraços.

M. Loureiro

http://www.manuloureiro.blogspot.com/
http://www.livros-loureiro.blogspot.com/
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http://www.romancessobrenaturais-loureiro.blogspot.com/
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"Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos."

Henry Miller






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