O MUNDO DE SOFIA
Uma Aventura na Filosofia
Jostein Gaarder
Tradução de: Catarina Belo
EDITORIAL PRESENÇA
Quem não sabe prestar contas
De três milénios
Permanece nas trevas ignorante,
E vive o dia que passa
JOHANN WOLFGANG GOETHE
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O JARDIM DO ÉDEN
"...algo teria de surgir a certa altura do nada..."
Sofia Amundsen regressava da escola. Percorrera com Jorunn o
primeiro troço do caminho. Tinham conversado sobre robôs. Para Jorunn, o
cérebro humano era um computador complexo. Sofia não estava de acordo.
Um homem deveria ser algo mais do que uma máquina.
No supermercado, despediram-se. Sofia morava no extremo de um
extenso bairro de vivendas e o caminho que tinha de percorrer para a
escola era quase o dobro do de Jorunn. A sua casa parecia ficar no fim
do mundo, porque atrás do jardim já não havia casas, apenas floresta.
Meteu para Kõveveien. No fim da rua, havia uma curva estreita, a que
chamavam a " Curva do Capitão", e onde quase só ao fim-de-semana se
viam pessoas. Era o começo de Maio.
Nalguns jardins, os narcisos formavam coroas de flores sob as
árvores de fruto. As bétulas tinham uma fina penugem verde.
Não era estranho que nessa estação do ano tudo começasse a
crescer e a desenvolver-se? Porque é que essa massa de plantas verdes
podia nascer da terra inanimada logo que o tempo ficava mais quente e os
últimos vestígios de neve tinham desaparecido?
Sofia espreitou para a caixa do correio antes de abrir o portão
do jardim. Geralmente havia muita publicidade e alguns envelopes grandes
para a sua mãe. Sofia colocava sempre um monte de cartas na mesa da
cozinha, indo depois para o quarto fazer os trabalhos de casa. Para o
seu pai chegavam por vezes cartas do banco, mas ele também não era um
pai comum. O pai de Sofia era capitão num petroleiro e estava fora quase
todo o ano.
Quando regressava a casa por poucas semanas, deambulava de
chinelos pela casa, e cuidava de Sofia e da mãe de uma forma
enternecedora. No entanto, quando estava em viagem, podia parecer muito
distante.
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Nesse dia havia apenas uma pequena carta na grande caixa do
correio, e era para Sofia. " Sofia Amundsen", estava escrito no pequeno
envelope. "Klõverveien 3". Era tudo, sem remetente. A carta nem sequer
tinha selo. Imediatamente após ter fechado o portão, Sofia abriu o
envelope. Encontrou uma pequena folha, que não era maior do que o
respectivo envelope. Na folha estava escrito: "quem és tu"? Mais nada.
Não havia assinatura, apenas estas três palavras escritas à mão,
seguidas de um grande ponto de interrogação.
Observou uma vez mais o envelope. Sim, a carta era de facto para
si, mas quem é que a tinha posto na caixa do correio?
Sofia apressou-se a abrir a porta da casa vermelha.
Como de costume, o gato Sherekan saiu furtivamente dos arbustos,
saltou para o patamar e enfiou-se em casa, antes de Sofia fechar a
porta.
- Bichano, bichano, bichano!
Se, por algum motivo, a mãe de Sofia estava zangada, dizia que a
sua casa parecia uma feira de animais. Uma feira de animais era uma
colecção de animais diversos e, na realidade, Sofia estava bastante
satisfeita com a sua colecção. No início, tinha recebido um aquário com
os peixes dourados Caracolinho
Dourado, Capuchinho Vermelho e Diabrete. Mais tarde, foi a vez
dos periquitos Tom e Jerry, a tartaruga Govinda e finalmente o gato
amarelo Sherekan. Todos aqueles animais eram uma espécie de compensação
pelo facto de a sua mãe chegar tarde a casa e de o seu pai estar quase
sempre a viajar.
Sofia atirou a mala da escola para um canto e pôs um prato com
comida de gato para
Sherekan. Depois, foi sentar-se num banco da cozinha, com a
misteriosa carta na mão.
Quem és tu?
Se ela soubesse! Era obviamente Sofia Amundsen, mas quem era
Sofia Amundsen? Ainda não tinha descoberto totalmente. E se tivesse
outro nome? Anne Knutsen, por exemplo.
Seria então uma outra pessoa?
Subitamente, lembrou-se de que o seu pai inicialmente lhe
gostaria de ter dado o nome Synnõve. Sofia procurava imaginar como seria
se cumprimentasse alguém e se se apresentasse como Synnõve
Amundsen - mas não, não conseguia. Imaginava sempre uma outra
pessoa.
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Saltou do banco e, com a estranha carta na mão, dirigiu-se para
o quarto de banho. Colocou-se em frente do espelho, e olhou-se
fixamente nos olhos.
- Eu sou Sofia Amundsen - disse.
A rapariga do espelho nem sequer respondeu com uma careta.
Aquilo que Sofia fizesse, ela fá-lo-ia exactamente da mesma forma.
Sofia procurava adiantar-se em relação ao espelho com um movimento
muito rápido, mas a outra era igualmente rápida.
- Quem és tu? - perguntou Sofia.
De novo não recebeu nenhuma resposta, mas por um breve momento
não soube se tinha sido ela ou o seu reflexo no espelho a fazer a
pergunta.
Sofia tocou com o indicador no nariz reflectido no espelho e
disse:
- Tu és eu.
Não recebendo resposta alguma, inverteu a frase:
- Eu sou tu.
Sofia Amundsen nunca estivera particularmente satisfeita com a
sua figura. Ouvia frequentemente dizer que tinha uns belos olhos de
amêndoa, mas as pessoas diziam-no, sem dúvida, porque o seu nariz era
demasiado pequeno e a boca um pouco grande. Além disso, as orelhas
estavam demasiado junto aos olhos. Mas o mais grave eram os cabelos
lisos, difíceis de tratar. Por vezes, o pai passava a mão pelos seus
cabelos e chamava-lhe "a rapariga dos cabelos de linho", referindo-se
a uma composição de Claude Debussy. Para ele era fácil dizê-lo, visto
que não estava condenado para toda vida a ter cabelos compridos e
negros, completamente lisos. Nos cabelos de
Sofia nem o gel nem os sprays faziam efeito. Por vezes, achava
-se tão estranha que se perguntava se não seria disforme de nascença. A
sua mãe tinha-lhe falado num parto difícil. Mas seria possível o
nascimento determinar, de facto, a figura de cada um?
Não era estranho que ela não soubesse quem era? Não era absurdo
não poder decidir nada quanto à sua figura? Tinha simplesmente nascido
consigo. Podia escolher os seus amigos, mas não se escolhera a si mesma.
Nunca tinha decidido que queria ser um ser humano.
O que era um ser humano?
Sofia observou de novo a rapariga do espelho.
- Vou mas é fazer os meus trabalhos de biologia - disse, como
que desculpando-se. Em seguida, estava à entrada da casa.
- Não, prefiro ir para o jardim - pensou.
- Bichano, bichano, bichano!
Sofia enxotou o gato para a escada e fechou a porta.
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Quando ia pelo caminho de saibro com a misteriosa carta na mão,
teve uma estranha sensação. Imaginava-se como um boneco que, por artes
mágicas, se tivesse tornado vivo.
Não era estranho que estivesse no mundo e pudesse tomar parte
naquela aventura?
Sherekan saltou elegantemente pelo caminho de saibro e
desapareceu por entre os espessos arbustos. Um gato vivo, desde a ponta
dos bigodes brancos até à cauda ondulante na extremidade do corpo.
Também ele estava no jardim, mas certamente não estava tão consciente
disso como Sofia.
Depois de ter pensado um pouco acerca do facto de existir,
começou também a pensar que não estaria ali sempre. " Neste momento
estou no mundo", pensou, "mas um dia terei desaparecido". Haveria uma
vida após a morte? O gato também não tinha a mínima consciência deste
problema.
A avó paterna de Sofia tinha morrido recentemente.
Quase todos os dias, há mais de meio ano, Sofia pensava no
quanto sentia a sua falta.
Não era injusto que a vida tivesse sempre um fim?
Sofia parou no caminho de saibro, cismando. Procurou concentrar
-se no facto de existir, procurando assim esquecer que não existiria
sempre. Mas isso era de todo impossível. Quando se concentrava no
pensamento da sua existência, emergia imediatamente a ideia do fim da
vida.
O contrário era igualmente verdadeiro: só quando se apercebia
que um dia teria desaparecido, compreendia claramente que a vida era
infinitamente valiosa. Era como as duas faces da mesma moeda, uma moeda
que ela virava constantemente. E quanto maior e mais clara era uma face
da moeda, maior e mais clara se tornava também a outra. A vida e a morte
eram duas faces do mesmo problema.
Não podemos imaginar que vivemos sem pensar que temos de morrer,
dizia para consigo. Do mesmo modo, é impossível reflectir sobre o facto
que temos de morrer sem sentirmos simultaneamente que viver é algo
maravilhoso.
Sofia lembrou-se que a avó, no dia em que soubera da sua
doença, dissera algo semelhante. - Só agora tomo consciência de como a
vida é rica - dissera ela.
Não era triste que a maior parte das pessoas tivesse que ficar
doente para reconhecer que a vida era bela? Talvez tivesse bastado
receber uma carta misteriosa!
Decidiu verificar se teria chegado algo mais. Sofia correu para
o portão e espreitou para dentro da caixa do correio. Ficou espantada
quando
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encontrou um envelope totalmente idêntico. Mas, será que verificara,
quando retirou a primeira carta, se a caixa estava, de facto, vazia?
Naquele envelope também estava escrito o seu nome.
Abriu-o e retirou uma folha branca, igual à primeira. " De onde
vem o mundo"? - estava escrito.
Não fazia ideia. Ninguém sabe tal coisa! E, no entanto, Sofia
achou esta pergunta legítima. Pela primeira vez na sua vida pensou que
era quase impossível viver num mundo sem perguntar pela sua origem.
Sofia tinha ficado tão perturbada com a misteriosa carta que
decidiu ir para a sua toca. A toca de Sofia era um esconderijo. Só ia
para lá quando estava muito irritada, muito triste ou muito contente.
Nesse dia estava confusa.
A casa vermelha ficava no meio de um extenso jardim. Havia aí
muitos canteiros, groselheiras e diversas árvores de fruto, um grande
relvado com um baloiço e inclusivamente um pequeno caramanchão que o avô
construíra para a avó, quando a sua primeira filha morreu, poucas
semanas após o nascimento. A pobre criança chamava-se Marie. Na lápide
do seu túmulo estava escrito: " A pequena Marie veio ao nosso encontro,
acenou-nos e foi-se embora".
Num canto do jardim, por detrás das framboeseiras, havia uma
espessa moita que não produzia nem flores nem bagas. Na realidade,
tratava-se de uma velha sebe, que fazia fronteira com o bosque, e que
tinha crescido até se transformar numa moita impenetrável porque, nos
últimos vinte anos, ninguém cuidara dela. A avó contara que durante a
guerra, altura em que as galinhas corriam livremente pelo jardim, a sebe
tinha tornado um pouco mais difícil a caça às galinhas, levada a cabo
pelas raposas. Para os outros, a velha sebe era tão inútil como as
coelheiras antigas, que ficavam um pouco mais à frente no jardim. Mas
ninguém conhecia o segredo de Sofia. Tanto quanto Sofia se conseguia
lembrar, tinha descoberto uma estreita passagem através da sebe. Quando
a atravessava de gatas, atingia rapidamente um grande espaço, que era o
seu esconderijo. Aí, podia estar completamente segura de que ninguém a
encontraria.
Com os envelopes na mão, Sofia atravessou o jardim correndo e
rastejou com o apoio dos braços através da sebe. A toca era tão grande,
que quase podia ficar de pé, mas decidiu sentar-se numas raízes
grossas. De dentro conseguia ver para o exterior, através de dois
orifícios minúsculos, por entre ramos e folhas. Apesar de nenhuma destas
aberturas ser maior do que uma moeda, ela tinha o panorama
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de todo o jardim. Quando era mais pequena, observava divertida a mãe ou
o pai à sua procura, no meio das árvores. Para Sofia, o jardim tinha
sido sempre um mundo à parte. Sempre que ouvira falar do jardim do Éden
na história da Criação, lembrava-se da sua toca e de como era estar lá
sentada e observar o seu próprio pequeno paraíso. " De onde vem o
mundo?"
Não, ela não o sabia.
Sofia sabia obviamente que a Terra era apenas um pequeno planeta
no universo imenso. Mas de onde vinha o universo? Era possível pensar
que o universo tivesse existido sempre; sendo assim, não precisava de
procurar a resposta para a pergunta sobre a sua origem. Mas poderia
alguma coisa ser eterna? Qualquer coisa nela recusava esta ideia. Tudo o
que existe tem que ter um começo. Por isso, o universo tinha de ter
surgido de outra coisa. Mas se o universo tivesse surgido subitamente de
uma outra coisa, então também esta outra coisa teria de ter surgido, a
dada altura, de uma outra. Sofia compreendeu que apenas diferia o
problema. Afinal, alguma coisa teria de ter surgido do nada a certa
altura. Mas seria isso possível? Este pensamento não seria tão
impossível como o de o mundo ter sempre existido?
Na aula de religião, aprendiam que Deus tinha criado o mundo, e
Sofia procurou então tranquilizar-se com a ideia de que essa era, no
fundo, a melhor solução para o problema. No entanto, começou de novo a
pensar. Podia facilmente aceitar que Deus tivesse criado o universo, mas
o que se passava pensando em Deus? Será que se tinha criado a si mesmo
do nada? De novo, algo nela discordava deste pensamento.
Apesar de Deus poder criar todas as coisas, dificilmente se
poderia criar a si mesmo, antes de ter um "ele mesmo", com o qual
pudesse criar. Restava apenas uma possibilidade: Deus existira sempre.
Mas ela já pusera de parte essa possibilidade. Tudo o que existia tinha
de ter um começo.
- Que diabo!
Abriu de novo os envelopes.
- Quem és tu?
- De onde vem o mundo?
Que perguntas terríveis! E de onde vinham ambas as cartas? Isso
era igualmente misterioso.
Quem é que arrancara Sofia à realidade quotidiana e a
confrontara subitamente com os grandes enigmas do universo? Pela
terceira vez, Sofia foi à caixa do correio. Só nesta altura é que o
carteiro tinha trazido a correspondência diária. Sofia retirou um
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monte de correio com publicidade, jornais e duas cartas para a mãe.
Havia também um postal, com a fotografia de uma praia do Sul. Voltou o
postal. Tinha selos noruegueses e o carimbo " Contingente O NU". Seria
do seu pai? Mas ele não estava noutro sítio? De resto, não era a sua
letra.
Sofia sentiu o pulso bater com mais força à medida que lia a
direcção no postal. "Hilde Mõller Knag, a/c Sofia Amundsen, Klõverveien
3..." O resto da morada estava correcto. No postal estava escrito:
"Querida Hilde! Parabéns pelos teus 15 anos! Como compreendes,
quero dar-te um presente, que te ajudará a crescer. Peço desculpa por
mandar o postal pela Sofia. Era mais fácil deste modo.
Saudades, do pai"
Sofia correu para casa e precipitou-se para a cozinha.
Sentia uma tempestade dentro de si.
Quem era esta "Hilde" que completava 15 anos um mês antes do seu
aniversário? Foi buscar a lista telefónica à entrada. Havia muitas
pessoas com o nome Mõller, e algumas com o nome Knag, mas em toda a
lista telefónica não havia ninguém com o nome Mõller Knag. Examinou de
novo o misterioso postal. Sim, era autêntico, com selo e carimbo. Porque
é que um pai enviaria um postal de aniversário para a morada de Sofia,
se era óbvio que devia ser enviado para outro local? Que tipo de pai
enviaria um postal de aniversário para o endereço errado, impedindo que
a filha o recebesse? Como é que poderia ser "mais fácil" deste modo? E
sobretudo, como poderia ela encontrar essa tal Hilde?
Sofia tinha então mais um problema que se tornava um quebra
-cabeças. Procurou de novo organizar as ideias na sua mente.
No decorrer de poucas horas, tinha sido confrontada com três
enigmas. O primeiro enigma dizia respeito à identidade da pessoa que
tinha posto ambos os envelopes brancos na sua caixa do correio. O
segundo eram as questões difíceis que estas cartas colocavam. O terceiro
enigma era quem era Hilde Mõller Knag e por que motivo Sofia tinha
recebido um postal de aniversário endereçado a esta rapariga
desconhecida? Ela tinha a certeza de que estes três enigmas estavam de
algum modo relacionados, visto que, até então, vivera uma existência
normal.
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A Cartola
. "para nos tornarmos bons filósofos precisamos unicamente da
capacidade de nos surpreendermos"...
Sofia calculou que o autor das cartas anónimas daria de novo
notícias. Decidiu não contar nada a ninguém acerca das cartas.
Na escola, tornava-se-lhe difícil concentrar-se no que o
professor dizia. Achou que ele falava apenas de coisas sem importância.
Porque é que ele não falava antes acerca do que é um ser humano
- ou do que é o mundo, e qual fora a sua origem? Experimentava
uma sensação que nunca experimentara antes: na escola e por toda a parte
as pessoas ocupavam-se apenas com coisas fúteis. Mas havia questões
importantes e difíceis, cuja resposta era mais importante do que as
disciplinas normais da escola. Teria alguém respostas para estes
problemas? De qualquer modo, Sofia achava mais importante reflectir
sobre eles do que aprender de cor os verbos irregulares.
Quando, após a última aula, a campainha tocou, ela saiu tão
depressa do pátio da escola que Jorunn teve de correr para a alcançar.
Passado um pouco, Jorunn perguntou:
- Que tal se jogássemos às cartas hoje à tarde?
Sofia encolheu os ombros.
- Acho que já não estou muito interessada em jogos de cartas.
Jorunn pareceu cair das nuvens.
- Não? Jogamos então badminton?
Sofia olhou fixamente para o asfalto - e depois para a amiga.
- Acho que já nem o badminton me interessa.
- Está bem!
Sofia sentiu na voz de Jorunn um tom de azedume.
- Podes então dizer-me o que é que passou a ser mais
importante?
Sofia abanou a cabeça.
- Isso... é um segredo.
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- Já percebi. Estás apaixonada.
Caminharam juntas algum tempo em silêncio. Quando chegaram ao
campo desportivo, Jorunn disse:
- Eu vou pelo campo. "Pelo campo". Esse era o caminho mais curto
para Jorunn, mas ela só o fazia quando tinha que chegar cedo a casa,
porque esperava visitas, ou porque tinha consulta no dentista.
Sofia teve pena de ter magoado Jorunn. Mas o que deveria ter
respondido? Que estava subitamente muito ocupada em saber quem era e de
onde vinha o mundo e que já não tinha tempo para jogar badminton? Será
que a sua amiga teria entendido? Por que motivo era tão difícil tratar
das questões mais importantes e simultaneamente mais naturais?
Sentiu o coração bater mais depressa à medida que abria a caixa
do correio. Primeiro viu apenas uma carta do banco e alguns envelopes
amarelos e grandes, para a sua mãe. Que aborrecimento. Sofia tinha
esperado tanto receber uma nova carta do remetente desconhecido!
Quando estava a fechar o portão, encontrou escrito num dos
envelopes grandes o seu nome. No verso, lia-se: " Curso de Filosofia.
Não dobrar".
Sofia percorreu o caminho de saibro e deixou a mala da escola na
escada. Empurrou as restantes cartas para debaixo do capacho, correu
para o jardim atrás da casa e refugiou-se na toca. A carta grande tinha
de ser aberta ali.
Sherekan correra atrás dela, mas contra isso nada podia fazer.
Sofia tinha a certeza de que o gato não daria à língua.
O envelope continha três grandes folhas escritas à máquina,
unidas com um clipe.
Sofia começou a ler.
O que é a filosofia?
Cara Sofia! Há muitas pessoas que têm diversos "hobbys". Algumas
coleccionam moedas antigas ou selos, outras fazem trabalhos manuais,
outras ainda dedicam quase todo o tempo livre a uma modalidade
desportiva. Muitos gostam de ler. Mas aquilo que lemos pode variar
muito. Há quem leia apenas jornais ou banda desenhada, outros gostam de
romances, outros ainda preferem livros sobre os mais variados temas como
a astronomia, a vida selvagem ou as descobertas técnicas.
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Se estou interessado em cavalos ou pedras preciosas, não posso
exigir que todos os outros partilhem deste interesse. Se me sento em
frente à televisão encantado com todos os programas desportivos, tenho
de aceitar que outros possam achar o desporto aborrecido. Haverá alguma
coisa que interesse a toda a gente? Haverá alguma coisa que diga
respeito a todas as pessoas, independentemente do que são e do sítio do
mundo onde vivem? Sim, cara Sofia, há questões que dizem respeito a
todos os homens. E neste curso trata-se precisamente dessas questões.
Qual a coisa mais importante na vida? Se o perguntarmos a alguém
num país com o problema da fome, a resposta é: a comida. Se pusermos
esta questão a alguém que esteja com frio, nesse caso a resposta é: o
calor. E se perguntarmos a uma pessoa que se sinta muito sozinha a
resposta será certamente: a companhia de outras pessoas. Mas admitindo
que todas estas necessidades estão satisfeitas - será que resta alguma
coisa de que todos os homens precisam? Os filósofos acham que sim.
Segundo eles, o homem não vive apenas do pão. É evidente que todos os
homens precisam de comer. Todos precisam de amor e de atenção, mas há
algo mais de que todos os homens precisam. Precisamos de descobrir quem
somos e porque é que vivemos. Interessarmo-nos pela razão da nossa
existência não é um interesse ocasional, como o interesse em coleccionar
selos. Quem se interessa por tais problemas, preocupa-se com tudo
aquilo que os homens discutem desde que apareceram neste planeta. A
questão acerca da origem do universo, do globo terrestre e da vida é
mais vasta e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de
ouro nos últimos Jogos Olímpicos.
A melhor maneira de nos iniciarmos na filosofia é colocar
perguntas filosóficas:
Como se formou o mundo? Haverá uma vontade ou um sentido por
detrás daquilo que acontece? Haverá vida depois da morte? Como podemos
encontrar resposta para estas perguntas? E, acima de tudo, como
deveríamos viver? Estas perguntas foram colocadas desde sempre pelos
homens. Não conhecemos nenhuma cultura que não tenha perguntado quem são
os homens e de onde vem o mundo.
As perguntas filosóficas que podemos colocar não são muitas
mais. Já colocámos algumas das mais importantes.
A história oferece-nos muitas respostas diferentes para cada
uma destas perguntas.
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Por isso, é mais fácil formular perguntas filosóficas do que encontrar
a sua resposta. Mesmo hoje, cada um deve encontrar as suas respostas
para estas perguntas. Não podemos saber se Deus existe ou se há vida
depois da morte, consultando a enciclopédia. A enciclopédia não nos diz
como devemos viver. Mas ler o que outros homens pensaram pode no entanto
ser uma ajuda, se quisermos formar a nossa própria concepção da vida e
do mundo.
A busca da verdade pelos filósofos pode ser talvez comparada a
um romance policial. Alguns pensam que
Andersen é o assassino, outros pensam que é Nielsen ou Jepsen.
Talvez o verdadeiro mistério deste crime possa ser um dia esclarecido
subitamente pela polícia. Podemos também pensar que a polícia nunca
conseguirá resolver o enigma. Mas este tem, no entanto, uma solução.
Mesmo quando é difícil responder a uma pergunta, é possível imaginar que
a pergunta possa ter uma - e apenas uma - resposta correcta.
Ou há uma forma de vida após a morte ou não. Muitos enigmas
antigos foram entretanto resolvidos pela ciência. Outrora, o aspecto da
face oculta da Lua era um grande mistério. Não se podia descobrir a
resposta através da discussão, e assim era deixada à imaginação de cada
um. Mas hoje em dia sabemos exactamente qual é o aspecto da face oculta
da Lua. Já não podemos acreditar que haja um homem a viver na lua, ou
que ela seja um queijo.
Segundo um filósofo grego que viveu há mais de dois mil anos, a
filosofia surgiu da capacidade que os homens têm de se surpreender. O
homem acha tão estranho viver, que as perguntas filosóficas surgem por
si mesmas. Pensa no que sucede quando observamos um truque de magia: não
conseguimos perceber como é possível aquilo que estamos a ver. E
perguntamo-nos: como é que o ilusionista conseguiu transformar dois
lenços brancos de seda num coelho vivo? Para muitos homens, o mundo
parece tão inexplicável como o coelho que um ilusionista retira
subitamente de uma cartola até então vazia.
No que diz respeito ao coelho, percebemos claramente que o
ilusionista nos enganou. O que pretendemos descobrir é como nos enganou.
Quando falamos sobre o mundo, a situação é diferente.
Sabemos que o mundo não é pura mentira, uma vez que nós estamos
na Terra e somos uma parte do universo. Na verdade, somos o coelho
branco que é retirado da cartola. A diferença entre nós e o coelho
branco é apenas
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o facto de o coelho não saber que participa num truque de magia.
Connosco passa-se de modo diferente. Sentimos que tomamos parte em algo
misterioso, e gostaríamos de esclarecer de que modo tudo está
relacionado.
P. S. No que diz respeito ao coelho branco, o melhor é talvez compará-lo
com o conjunto do universo. Nós, que vivemos aqui, somos parasitas
minúsculos que vivem na pele do coelho. Mas os filósofos procuram trepar
pelos pêlos finos, de modo a poderem fixar nos olhos o grande
ilusionista.
Estás a seguir-me, Sofia? Receberás a continuação.
Sofia estava exausta. Se estava a seguir? Já nem sabia se tinha
respirado durante a leitura.
Quem tinha trazido a carta? Quem? Quem? Era impossível que fosse
a mesma pessoa que enviara o postal de aniversário a Hilde Mõller Knag,
visto que o postal tinha selo e carimbo, e o envelope amarelo fora
colocado directamente na caixa do correio exactamente como os envelopes
brancos.
Sofia olhou para o relógio. Eram apenas três menos um quarto. Só
daí a duas horas é que a sua mãe chegaria do trabalho.
Sofia foi de novo para o jardim, e correu para a caixa do
correio. Haveria mais alguma coisa? Encontrou um outro envelope amarelo,
no qual estava escrito o seu nome. Olhou à sua volta, mas não conseguiu
descobrir ninguém. Correu para a orla do bosque e olhou em redor, mas
não encontrou ali vivalma. De repente, pareceu-lhe ouvir ramos a
estalar mais à frente no bosque. Mas não tinha a certeza absoluta,
e não faria sentido ir no encalço de alguém que tentava fugir-lhe.
Sofia abriu a porta de casa com a chave e colocou a mala da
escola e a correspondência para a mãe no chão. Foi para o quarto, pegou
na grande caixa de biscoitos onde guardava a sua colecção de pedras, pôs
as pedras no chão e colocou os dois envelopes grandes na caixa. Foi de
novo para o jardim com a caixa nas mãos, depois de ter dado de comer a
Sherekan.
- Bichano, bichano, bichano!
Sentada de novo dentro da toca, abriu o envelope e retirou
várias folhas escritas à máquina. Começou a ler.
p. 21
Um ser estranho
Cá estamos de novo. Com certeza já percebeste que este pequeno
curso de filosofia vem em doses pequenas. Eis mais algumas observações
introdutórias. Eu já disse que a capacidade de nos surpreendermos é a
única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons filósofos? Se não
o disse, digo-o agora: A C AP A CI D A DE
DE N O S SURPREE N DERM O S É A Ú NI C A C OI S A DE QUE PRE CI
S AM O S P AR A N O S T OR N ARM O S B O N S FILÓ S OF O S. Todas as
crianças pequenas possuem essa capacidade, isso é ólvio. Com poucos
meses de vida, começam a aperceber-se de uma realidade completamente
nova. Mas quando crescem, esta capacidade parece diminuir. Qual será o
motivo? Poderá Sofia Amundsen responder a esta pergunta?
Se um recém-nascido pudesse falar, diria certamente muitas
coisas sobre o estranho mundo a que chegou. Porque ainda que a criança
não possa falar, vemos como aponta à sua volta e agarra com curiosidade
os objectos no quarto.
Quando começa a falar, a criança fica parada cada vez que vê um
cão e chama:
- ão, ão! Começa a agitar-se no carrinho, e move freneticamente
os braços: - \ão, ão! Nós, que temos mais idade, sentimo-nos talvez
pouco à vontade com o entusiasmo da criança. - Sim, sim, isso é um ão
ão! - dizemos muito sabedores. - Mas agora senta-te. Não estamos assim
tão entusiasmados. Já tínhamos visto cães antes. Provavelmente, esta
cena repete-se algumas cem vezes até que a criança possa passar por um
cão sem ficar fora de si. Ou por um elefante, ou por um hipopótamo. Mas
muito antes que a criança aprenda a falar correctamente
- ou antes que aprenda a pensar filosoficamente - o mundo tornou
-se para ela algo habitual. É pena.
Será a minha tarefa impedir que tu, cara Sofia, te tornes uma
daquelas pessoas para quem o mundo é evidente. Para termos a certeza,
vamos fazer duas experiências mentais, antes de começarmos com o curso
de filosofia propriamente dito. Imagina que dás um passeio pelo bosque.
De repente, descobres à tua frente uma pequena nave espacial. Da nave
espacial, um marciano desce e olha fixamente para ti...
O que pensarias numa situação dessas? Bom, isso, no fundo, é
indiferente. Mas já pensaste que tu mesma és também um marciano?
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Obviamente, não é particularmente provável que alguma vez dês
com uma criatura de outro planeta. Nem sequer sabemos se há vida nos
outros planetas. Mas é possível que tu dês contigo mesma. Pode acontecer
que um belo dia fiques surpreendida e te vejas de um modo completamente
diferente. Talvez isso se passe precisamente num passeio pelo bosque. Eu
sou um ser estranho, pensas tu. Sou um animal misterioso... Pareces
acordar de um sono de muitos anos como a Bela
Adormecida. Quem sou eu? perguntas. Sabes que estás num planeta
do universo. Mas o que é o universo?
Se te descobrires desta maneira, descobriste algo tão misterioso
como o marciano que mencionámos anteriormente. Não só descobriste um
extraterrestre mas sentes interiormente que tu própria és um ser desses.
Ainda me estás a seguir,
Sofia? Vamos fazer mais uma experiência:
Certa manhã, o pai, a mãe e o pequeno Tomás, que tem dois ou
três anos, estão sentados na cozinha durante o pequeno-almoço. De
repente, a mãe levanta-se e vira-se para o lava-louça: nesse preciso
momento, o pai começa a voar em direcção ao tecto, enquanto Tomás
observa.
O que te parece que Tomás diz? Provavelmente, aponta para o pai
e diz: - O pai voa!
Certamente que Tomás ficaria admirado. Mas o pai faz coisas tão
estranhas que um pequeno voo acima da mesa já não tem importância aos
seus olhos. Todos os dias faz a barba com uma máquina engraçada, por
vezes trepa ao telhado para orientar a antena da televisão - ou enfia a
cabeça junto ao motor do carro e aparece depois todo negro.
Depois, é a vez da mãe. Ela ouviu o que Tomás disse e volta-se
rapidamente. Como achas que reagirá vendo o marido a esvoaçar sobre a
mesa da cozinha?
O frasco da marmelada cai-lhe imediatamente da mão, começará a
gritar de medo. Talvez tenha de ir ao médico, mesmo depois de o pai se
ter sentado de novo na cadeira. (Ele já devia ter aprendido há
muito tempo como se comportar à mesa!). Porque é que Tomás e a mãe
reagem de forma tão diferente? É uma questão de hábito. (Toma nota
disto!). A mãe aprendeu que os homens não podem voar. Tomás não. Ainda
não distingue o que é possível do que não é. Mas o que dizer do mundo,
Sofia? Achas que o mundo é possível? Também está suspenso no
espaço.
O mais triste é que ao crescermos não nos habituamos apenas à
lei da gravidade, habituamo-nos, simultaneamente, ao mundo.
p. 23
Aparentemente, perdemos durante a nossa infância a capacidade de
nos surpreendermos com o mundo. Mas com isso, perdemos algo essencial
- algo que os filósofos querem reavivar. Porque em nós algo nos
diz que a vida é um grande mistério. Já tivemos essa sensação muito
antes de termos aprendido a pensar nisso.
Vou ser mais preciso: apesar de todas as questões filosóficas dizerem
respeito a todos os homens, nem todos os homens se tornam filósofos. Por
diversos motivos, a maior parte está presa de tal forma ao quotidiano
que o espanto perante a vida é muito escasso. ( Descem para a pele do
coelho, acomodam-se e permanecem lá em baixo para o resto da vida).
Para as crianças, o mundo
- e tudo o que existe nele
- é uma coisa nova, uma coisa que provoca estupefacção.
Os adultos não o vêem assim.
A maior parte dos adultos vê o mundo como qualquer coisa
completamente normal.
Os filósofos constituem uma excepção notável. Um filósofo nunca
se conseguiu habituar completamente ao mundo. Para um filósofo ou para
uma filósofa o mundo é ainda incompreensível, inclusivamente enigmático
e misterioso. Os filósofos e as crianças pequenas possuem uma importante
qualidade em comum. Podes dizer que um filósofo permanece durante toda a
sua vida tão capaz de se surpreender como uma criança pequena. E agora
tens que te decidir, cara Sofia: és uma criança que ainda não se
habituou ao mundo? Ou és uma filósofa que pode jurar que isso nunca lhe
acontecerá?
Se simplesmente abanas a cabeça e não te sentes nem como criança
nem como filósofa, é porque te acostumaste tão bem ao mundo que este já
não te surpreende. Nesse caso, o perigo está eminente. E por isso te
ofereço este curso de filosofia, para prevenir. Não quero que tu
pertenças à categoria dos apáticos e dos indiferentes. Quero que vivas a
tua vida de modo consciente. Este curso é completamente grátis. Por
isso, também não te será restituído dinheiro se não o fizeres. Se a
determinada altura quiseres interromper o curso, não há prollema. Basta
deixares-me uma mensagem na caixa do correio, por exemplo, uma rã viva.
De qualquer modo, tem de ser algo verde, pois não queremos assustar o
carteiro. Breve sumário: um coelho branco é retirado de uma cartola
vazia. Dado que é um coelho muito grande, este truque leva muitos
biliões de anos. Na extremidade dos pêlos finos nascem todas as crianças
humanas.
p. 24
Por isso, podem surpreender-se com a inacreditável arte da magia.
Mas à medida que envelhecem, deslizam cada vez mais para o fundo da
pelagem do coelho. E permanecem ali. Lá em baixo estão tão confortáveis
que nunca mais ousam trepar novamente pelos pêlos finos. Só os filósofos
se atrevem a fazer a perigosa viagem à procura das fronteiras extremas
da linguagem e da existência. Alguns deles perdem-se pelo caminho, mas
outros agarram-se bem ao pêlo do coelho e chamam os homens que, bem
acomodados em baixo, na pele do coelho, comem e bebem tranquilamente.
- Senhoras e senhores - gritam - estamos suspensos no espaço.
Mas nenhum dos homens em baixo, na pele, se interessa pelo ruído que os
filósofos fazem.
- Meu Deus, que barulhentos! - dizem. E continuam a falar como
até então: - Podes passar-me a manteiga? Como estão as acções hoje?
Qual é o preço do tomate? Já sabes que Lady Di deve estar de novo
grávida?
Quando, nessa tarde, a mãe chegou a casa, Sofia estava quase em
estado de choque. A caixa com as cartas do filósofo misterioso estava
bem escondida na toca. Depois de ter tentado estudar um pouco,
Sofia ficara a pensar no que tinha lido. Tantas coisas sobre as
quais nunca tinha reflectido antes! Já não era nenhuma criança - mas
também não era ainda verdadeiramente adulta.
Sofia reconheceu que já tinha começado a penetrar profundamente
na pelagem do coelho retirado da cartola negra do universo. Mas o
filósofo impedira-a. Ele - ou ela?
- agarrara-a firmemente pela nuca e trouxera-a de novo para o
pêlo, no qual brincara quando era criança. Ali fora, na extremidade do
pêlo fino, tinha visto de novo o mundo como se fosse pela primeira vez.
O filósofo salvara-a da indiferença quotidiana.
Ouvindo a mãe entrar, Sofia puxou-a para o quarto, e fê-la
sentar numa cadeira.
- Mãe, não achas que é estranho viver? - começou.
A mãe ficou de tal modo perplexa que não lhe ocorreu nenhuma
resposta. Normalmente, Sofia estava sempre sentada a fazer os trabalhos
da escola quando ela chegava a casa.
- Bom, por vezes é - disse.
- Por vezes? Quero dizer - não achas estranho que haja um mundo?
- Mas Sofia, de que é que estás a falar?
p. 25
- Estou a fazer-te uma pergunta. Mas provavelmente achas o
mundo completamente normal?
- Sim. Mas o mundo é normal. A maior parte das vezes.
Sofia compreendeu que o filósofo tinha razão. Para os adultos, o
mundo era evidente. Tinham adormecido no sono eterno da vida quotidiana.
- Tu apenas te habituaste tanto ao mundo, que já não te
surpreendes - disse ela.
- Desculpa, mas eu não estou a perceber nada.
- Estou a dizer que te habituaste demasiado ao mundo. Por outras
palavras: estás completamente embrutecida.
- Não podes falar comigo desse modo, Sofia.
- Então, vou dizê-lo doutra maneira. Já te acomodaste na pele
do coelho que neste momento é tirado da cartola negra do universo. E
agora, vais pôr as batatas a cozer. Depois, lês o jornal, e depois de
uma soneca de meia hora vais ver o noticiário na televisão.
No rosto da mãe, esboçou-se uma expressão preocupada.
De facto, foi à cozinha e pôs as batatas a cozer. Em seguida,
voltou à sala de estar, e aí fez Sofia sentar-se.
- Tenho que falar contigo - começou. Sofia apercebeu-se pelo
tom de que se tratava de algo sério.
- Não tomaste nenhuma droga, pois não, miúda?
Sofia não pôde deixar de se rir, mas compreendeu o motivo dessa
pergunta.
- Estás a brincar? perguntou. Com isso ainda se fica mais
apático.
Nessa tarde não se falou mais em droga nem em coelhos brancos.
p. 26
OS MITOS
. "um equilíbrio precário de poderes entre as forças do bem e as do
mal"...
Na manhã seguinte, não havia nenhuma carta na caixa do correio.
Sofia ficou aborrecida durante todo o tempo de aulas. Preocupou-se em
ser particularmente simpática com Jorunn durante os intervalos. Durante
o regresso a casa, fizeram planos para irem acampar, logo que, na
floresta, o terreno ficasse menos húmido. Em seguida, estava de novo em
frente à caixa do correio. Primeiro, abriu um pequeno envelope com um
carimbo do México e que continha um postal do pai. Falava das saudades e
de ter ganho pela primeira vez ao primeiro oficial no xadrez. De resto,
já quase tinha lido os vinte quilos de livros que levara consigo após as
férias de Inverno. Havia ainda um envelope amarelo com o seu nome! Sofia
trouxe a pasta da escola e a correspondência para casa e correu para a
toca. Retirou do envelope várias folhas escritas à mão e começou a ler.
A concepção mítica do mundo
Olá, Sofia! Há muito para dizer, por isso o melhor é começarmos
imediatamente. Vemos a filosofia como uma forma completamente diferente
de pensar, que nasceu aproximadamente em 600 a. C. na Grécia. Antes
disso, as diversas religiões tinham respondido a todas as perguntas do
homem. Essas explicações religiosas eram transmitidas de geração para
geração por meio dos mitos. Um mito é uma narração sobre os deuses que
procura explicar a vida nas suas diversas manifestações. As explicações
míticas floresceram durante milénios em todo o mundo. Os filósofos
gregos procuraram provar que os homens não podiam confiar nelas.
p. 27
Para compreendermos o pensamento dos primeiros filósofos, temos de
compreender igualmente o que significa ter uma concepção mítica do
mundo. Tomaremos como exemplo algumas concepções míticas da Europa do
Norte.
Não é de modo algum necessário irmos muito longe.
Certamente já ouviste falar de Thor e do seu martelo. Antes de o
cristianismo chegar à Noruega, os homens, aqui no Norte, acreditavam que
Thor viajava pelo céu num carro puxado por dois bodes. Quando ele
brandia o seu martelo, seguiam-se raios e trovões. A palavra "trovão"
significa originalmente "retumbar de Thor". Em sueco, "trovão" diz-se
"aska" - originalmente "as-aka" - que significa a "viagem do deus pelo
céu".
Quando troveja e relampeja, também chove. Isso podia ser
indispensável à vida para os camponeses da época dos Vikings. Por isso,
Thor era venerado como deus da fertilidade.
A resposta mítica à pergunta porque é que chove, era: Thor
brandiu o seu martelo. E quando a chuva vinha, as sementes germinavam e
cresciam nos campos. Era incompreensível para os camponeses que as
plantas crescessem e produzissem frutos. Mas em todo o caso, os
camponeses sabiam que isso estava de alguma forma relacionado com a
chuva. Além disso, todos acreditavam que a chuva tinha algo a ver com
Thor. Por isso, ele tornou-se um dos deuses mais importantes na Europa
do Norte. Thor era ainda importante por outro motivo, que estava
relacionado com toda a ordem universal.
Os Vikings imaginavam o mundo habitado como uma ilha que está
sempre ameaçada por perigos exteriores. Eles chamavam a esta parte do
mundo "Midgard", que significa: o reino que fica no centro. Em Midgard
ficava também " Asgard", a residência dos deuses. Em frente a Midgard
ficava "Utgard", ou seja, o reino do exterior, também chamado
Jotunheimen. Aqui moravam os perigosos gigantes, que procuravam sempre
destruir o mundo por meio de truques maldosos. Também podemos definir
esses monstros malignos como "forças do caos". Na religião nórdica e na
maior parte das outras culturas, os homens tinham a sensação de que
existia um equilíbrio precário de poderes entre as forças do bem e as
forças do mal. Uma das possibilidades que os gigantes tinham para
destruir Midgard era raptando Freyja, a deusa da fertilidade. Quando o
conseguiam, nada crescia nos campos, e as mulheres já não tinham filhos.
Por isso era tão importante que os deuses bons dominassem os gigantes.
Thor desempenhava também aí um papel importante: o seu martelo não
produzia apenas chuva, mas constituía também uma arma na luta
p. 28
contra as perigosas forças do caos. O martelo conferia-lhe um poder
quase ilimitado. Ele podia, por exemplo, lançá-lo contra os gigantes e
matá-los. Também não tinha que ter medo algum de o perder, porque o
martelo era como um "boomerang" e voltava sempre para ele. Esta era a
explicação "mítica" para o funcionamento da natureza, e para o facto de
haver uma luta constante entre o bem e o mal. Os filósofos pretendiam
refutar essas crenças. Mas não se tratava apenas de explicações.
Os homens não podiam ficar de braços cruzados à espera que os
deuses interviessem quando certas catástrofes - como as secas ou as
epidemias
- os ameaçavam. Os homens tinham que participar na luta contra o
mal. Faziam-no através de todo o tipo de práticas religiosas ou ritos.
A prática religiosa mais importante na antiguidade nórdica era o
sacrifício. Fazer um sacrifício a um deus significava aumentar o seu
poder. Os homens tinham, por exemplo, de oferecer vítimas aos deuses
para que estes ficassem suficientemente fortes para vencerem as forças
do mal. Nessa altura, sacrificava-se ao deus um animal. Pensa-se que a
Thor se ofereciam geralmente bodes. A Odin eram sacrificados também
homens.
Conhecemos o mito mais famoso na Noruega através do poema
"Trymskvida". Lemos nele que Thor estava a dormir e que, quando acordou,
o seu martelo tinha desaparecido. Thor ficou tão furioso que as suas
mãos e a sua barba tremiam. Juntamente com o seu companheiro "Loki" foi
ter com Freyja e pediu-lhe emprestadas as suas asas, para que Loki
pudesse voar até Jotunheimen e descobrir se os gigantes tinham roubdo o
martelo de Thor. Aí, Loki encontra "Thrym", o rei dos gigantes, que se
gaba imediatamente de ter enterrado o martelo a oitenta quilómetros
abaixo do solo. E acrescenta que os deuses só poderiam receber de volta
o martelo se Freyja se casasse com ele. Estás a seguir-me, Sofia?
Os deuses bons são subitamente confrontados com um crime
montruoso. Os gigantes têm então em seu poder a mais importante arma de
defesa dos deuses, e essa situação é absolutamente intolerável. Enquanto
os gigantes tivessem o martelo, possuíam o poder sobre o mundo dos
deuses e o mundo dos homens. Em troca do martelo, exigem Freyja. Mas
esta troca não é possível: se os deuses entregarem a deusa da
fertilidade - que protege todo o tipo de vida
- a relva murcha nos campos e os homens e os deuses têm de
morrer. Não há uma solução para esta situação. Imagina um grupo de
terroristas que ameaça fazer explodir uma bomba atómica no centro de
Londres ou de Paris se as suas exigências não forem atendidas; percebes
com certeza o que quero dizer.
p. 29
O mito narra ainda que Loki regressa a Asgard.
Aí, exorta Freyja a vestir-se e a enfeitar-se como uma noiva,
porque tem de se casar com o gigante (infelizmente!). Freyja fica
furibunda e afirma que as pessoas pensariam que ela estava louca por
homens se se casasse com um gigante. Então, o deus "Heimdall" tem uma
ideia brilhante. Propõe que Thor se disfarce de noiva. Podem prender
-lhe o cabelo e colocar-lhe duas pedras no peito, para que ele pareça
uma mulher. Thor não fica muito entusiasmado com a ideia, mas admite,
por fim, que só dessa forma os deuses têm a possibilidade de recuperar o
martelo. Por fim, Thor é mascarado de noiva e Loki acompanha-o como
dama de honor.
- Desta forma, levamos duas mulheres para os gigantes - afirma
Loki.
Se nos quisermos exprimir de uma forma mais moderna, podemos
caracterizar Thor e Loki como uma "brigada antiterrorista" dos deuses.
Disfarçados de mulheres, têm de entrar furtivamente no quartel general
dos gigantes e apoderar-se do martelo de Thor.
Quando se encontram em Jotunheimen, os gigantes preparam tudo
para as bodas. Mas durante a festa, a noiva
- ou seja, Thor - come um boi inteiro e oito salmões. Bebe
também três barris de cerveja, e Thrym fica atónito. Por pouco, o
comando antiterrorista teria sido desmascarado. Mas Loki conseguiu livrá
-los desse perigo. Ele conta que Freyja não comia há seis noites, por
ter ficado tão entusiasmada com a ideia de se fixar em Jotunheimen.
Nessa altura, Thrym levanta o véu da noiva para a beijar, mas
recua sobressaltado ao enfrentar o olhar duro de Thor. Também aqui Loki
salva a situação. Ele conta que a noiva, devido à alegria do casamento,
não pregara olho durante oito noites.
Ordena então Thrym que, durante a cerimónia, vão buscar o
martelo para o colocar no regaço da noiva.
Quando Thor se viu com o martelo no colo, soltou uma risada
sonora. Primeiro, matou Thrym com o martelo, e, em seguida, o resto dos
gigantes de Jotunheimen. Desta forma, o horrível drama teve um fim
feliz. Mais uma vez, Thor - uma espécie de Batman ou James Bond dos
deuses - vencera as forças do mal. Isto é um mito, Sofia. Mas o que é
que quer dizer exactamente? Não foi imaginado só por brincadeira,
pretende explicar algo. Esta é uma interpretação possível:
Quando a seca atingia uma terra, os homens precisavam de uma
explicação para o facto de não chover. Talvez os gigantes tivessem
roubado o martelo de Thor. É também possível que este mito procure
compreender a mudança das estações do ano: no Inverno, a natureza está
morta porque o martelo
p. 30
de Thor está em Jotunheimen. Mas na Primavera, recupera-o. E assim,
os mitos procuram explicar aos homens algo incompreensível. Mas os
homens não se deixavam ficar pelas explicações, como vimos. Procuravam
igualmente intervir num acontecimento tão importante para eles através
dos diversos ritos religiosos que estavam relacionados com os mitos.
Podemos supor que os homens representassem um drama sobre o conteúdo do
mito, no caso de uma seca, ou de uma má colheita. Talvez um homem da
aldeia se disfarçasse de noiva - com pedras como seios
- para roubar de novo o martelo aos gigantes. Os homens podiam,
assim, fazer alguma coisa para que a chuva viesse e as sementes
germinassem nos campos. Temos muitos exemplos semelhantes provenientes
de outros lugares do mundo: os homens encenavam um "mito das estações",
para acelerar os processos da natureza.
Passámos o olhar sobre a mitologia nórdica. Havia inumeráveis outros
mitos sobre "Thor" e " Odin, Freyr" e "Freyja", Hoder" e "Balder" e
sobre muitas outras divindades. Havia representações míticas como estas
em todo o mundo, antes de os filósofos começarem a criticá-las. Também
os Gregos tinham uma concepção mítica do mundo, quando surgiram os
primeiros filósofos. Durante séculos, uma geração transmitia à seguinte
as histórias dos deuses. Na Grécia, as divindades chamavam-se "Zeus" e
" Apolo, Hera" e " Atena, Dioniso" e " Asclépio, Hércules" e "Hefesto",
para citar apenas alguns.
Cerca do ano 700 a. C., "Homero" e "Hesíodo" escreveram grande
parte dos mitos gregos. Esse facto criou uma situação completamente
nova. Uma vez que os mitos estavam escritos, era possível falar acerca
deles.
Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia homérica
porque, para eles, os deuses eram demasiado semelhantes aos homens. Na
verdade, eram tão egoístas e de tão pouca confiança como nós. Pela
primeira vez na história da humanidade se afirmou que os mitos eram
apenas fruto da imaginação do homem. Encontramos um exemplo desta
crítica aos mitos no filósofo "Xenófanes", que nasceu em aproximadamente
570 a. C. Segundo ele, os homens tinham criado os deuses à sua própria
imagem: "Mas os mortais julgam que os deuses nasceram e têm aspecto
exterior, voz e figura igual à sua... Os Etíopes imaginam os seus deuses
negros e com o nariz chato, os Trácios, por sua vez, imaginam-nos
ruivos e de olhos azuis... Se as vacas, os cavalos ou os leões tivessem
mãos e pudessem pintar e criar obras como os homens, os cavalos
pintariam os seus ídolos semelhantes a cavalos, as vacas semelhantes a
vacas e criariam as figuras iguais a si."
p. 31
Nesta época, os Gregos fundaram muitas cidades-estado na Grécia
e nas suas colónias da Itália meridional e da Ásia Menor. Aí, os
escravos executavam todo o trabalho físico, e os cidadãos livres podiam
dedicar-se à poliítica e à cultura. Com estas condições de vida, a
maneira de pensar dos homens mudou: cada indivíduo podia colocar a
questão de como a sociedade devia ser organizada. Do mesmo modo, podia
também colocar perguntas filosóficas, sem ter de recorrer aos mitos
tradicionais.
Dizemos que se deu um desenvolvimento de um modo de pensar
mítico para um género de reflexão baseada na experiência e na razão. O
objectivo dos primeiros filósofos gregos era encontrar explicações
naturais para os fenómenos da natureza.
Sofia passeava pelo grande jardim. Procurava esquecer tudo o que
aprendera na escola. O mais importante era esquecer o que tinha lido nos
livros de ciências da natureza.
Se tivesse crescido naquele jardim, sem saber mais nada sobre a
natureza, como é que veria a Primavera? Imaginaria uma explicação para o
facto de, num certo dia, começar a chover? Inventaria uma explicação
para compreender o facto de a neve desaparecer e o Sol despontar no céu?
Sim, tinha a certeza disso, e começou a imaginar:
O Inverno envolvera a terra com um palmo de gelo porque o
malvado Muriat mantinha presa num cárcere frio a bela princesa Sikita.
Mas certa manhã, chegou o valente príncipe Bravato e libertou-a. Sikita
ficou tão contente que começou a dançar nos prados, enquanto cantava uma
canção que inventara no cárcere frio. Nessa altura, a terra e as árvores
ficaram tão comovidas que toda a neve se transformou em lágrimas.
O Sol surgiu no céu e secou todas as lágrimas. As aves imitaram
a canção de Sikita e, à medida que a bela princesa desprendia os seus
cabelos dourados, alguns caracóis caíram no solo, transformando-se em
lírios do campo...
Sofia achou que tinha inventado uma bela história.
Se não tivesse nenhuma outra explicação para a alternância das
estações do ano, teria com certeza acreditado na sua história. Percebeu
que os homens tinham tido sempre necessidade de encontrar explicações
para os fenómenos naturais. Talvez os homens não pudessem viver sem
essas explicações. Por isso tinham imaginado os mitos, quando ainda não
havia a ciência.
p. 32
Os Filósofos Da Natureza
"... do nada, nada pode nascer..."
Quando, nessa tarde, a mãe chegou a casa do trabalho,
Sofia estava sentada no baloiço e meditava sobre que relação
poderia existir entre o curso de filosofia e Hilde Mõller Knag, que não
receberia nenhum postal de aniversário do seu pai.
- Sofia! - chamou a mãe de longe - Há aqui uma carta para ti!
Sofia assustou-se. Ela tinha recolhido o correio, por isso a
carta tinha de ser do filósofo. O que havia de dizer à mãe? Ergueu-se
lentamente do baloiço e foi ter com a mãe.
- Não tem selo. Provavelmente é uma carta de amor.
Sofia pegou nela.
- Não a queres abrir?
O que é que havia de dizer?
- Já ouviste falar de pessoas que abrem cartas de amor quando a
mãe, por detrás, espreita de soslaio? Era preferível que a mãe
acreditasse que se tratava de uma carta de amor. Era uma situação
extremamente penosa, visto que Sofia era ainda bastante nova para
receber cartas de amor; mas seria ainda mais desagradável se se viesse a
saber que ela recebia, por correspondência, um curso de um filósofo
inteiramente desconhecido que brincava ao gato e ao rato com ela. Era um
envelope branco, pequeno. Já no quarto,
Sofia leu as três perguntas que o envelope continha: "Haverá um
elemento primordial a partir do qual tudo é gerado?
Será que a água se pode transformar em vinho?
Como é que a terra e a água se podem transformar numa rã viva?"
Sofia achou estas perguntas absurdas, mas andou com elas na
cabeça durante toda a tarde. Na manhã seguinte, na escola, reflectiu nas
três perguntas pela ordem apresentada.
p. 33
Haveria um "elemento primordial", a partir do qual tudo fosse gerado?
Mas se houvesse um elemento a partir do qual tudo o que está no mundo
fosse produzido, como é que este elemento poderia transformar-se de
repente num dente-de-leão ou num elefante? Passava-se o mesmo com a
pergunta sobre a água: poder-se-ia transformar em vinho? Sofia já
tinha ouvido dizer que Jesus tinha transformado água em vinho, mas não
interpretara esta história literalmente. E se Jesus tinha de facto
transformado água em vinho, era um milagre, algo que normalmente não era
possível. Sofia não tinha dúvidas sobre o facto de haver uma grande
percentagem de água no vinho e em muitas plantas e animais. Mas mesmo
que um pepino fosse constituído por noventa e cinco por cento de água,
teria de haver algo mais que fizesse com que um pepino fosse um pepino e
não apenas água. E havia ainda a questão da rã. O seu professor de
filosofia tinha um fraco por rãs.
Sofia poderia eventualmente aceitar que uma rã fosse feita de
terra e água, mas nesse caso a terra não podia ser feita de um só
elemento. Se a terra fosse composta de muitos elementos diversos, era
possível pensar que a terra juntamente com a água produzisse uma rã. Se
a terra e a água fizessem um desvio pelos ovos da rã e pelos girinos,
bem entendido. É que uma rã não podia simplesmente crescer numa horta,
mesmo que fosse regada muito escrupulosamente.
Quando, nessa tarde, regressou a casa da escola, havia uma carta
grossa dirigida a ela na caixa do correio.
Sofia foi para a toca, como já fizera nos dias anteriores.
O projecto dos filósofos
Eis-nos de novo! É preferível começarmos imediatamente com a lição de
hoje, deixando de parte os coelhos brancos e coisas parecidas. Vou
contar-te em linhas gerais como é que os homens, desde a Antiguidade
até hoje, pensaram sobre as questões filosóficas. Tudo por ordem
cronológica. Visto que a maior parte dos filósofos viveram numa outra
época - e possivelmente também numa cultura completamente diferente da
nossa
- vale a pena interessarmo-nos pelo projecto de cada filósofo.
Quero com isso dizer que temos de tentar compreender os aspectos a que o
filósofo quis dar resposta. Um filósofo pode perguntar-se como é que as
plantas e os animais surgiram. Um outro pode querer descobrir se Deus
existe, ou se os homens possuem uma alma imortal.
p. 34
A partir do momento em que determinámos qual é o projecto de um
determinado filósofo, podemos mais facilmente seguir o seu pensamento.
Com efeito, dificilmente um filósofo se ocupa de todas as questões
filosóficas. Falei sobre o pensamento "dele", porque a história da
filosofia foi escrita sobretudo por homens. Isso deve-se à condição de
inferioridade frequentemente atribuída à mulher, tanto no plano físico
como no plano intelectual. É grave, na medida em que, dessa forma, se
perderam muitas experiências. As mulheres só surgem verdadeiramente na
história da filosofia neste século.
Não te vou dar trabalhos de casa - nem trabalhos complicados de
matemática. As flexões dos verbos ingleses não me interessam. Mas, de
vez em quando, pedir-te-ei que faças um pequeno exercício. Se
aceitares estas condições, continuamos.
Os filósofos da natureza
Os primeiros filósofos gregos são designados por "filósofos da
natureza", porque se interessaram sobretudo pela natureza e pelos
processos físicos. Já nos interrogámos sobre a origem de tudo. Hoje em
dia, muitos homens acreditam que tudo nasceu do nada em determinada
altura. Este pensamento não estava muito difundido entre os Gregos. Eles
acreditavam que "algo" teria existido sempre.
A questão fundamental não era, portanto, como é que tudo poderia
surgir do nada. Em lugar disso, os Gregos admiravam-se que a água se
pudesse transformar em peixes vivos, e a terra morta em árvores altas ou
flores de cores vistosas. Para não falar de como um bebé pode nascer no
corpo da mãe!
Os filósofos viam com os seus próprios olhos que havia na
natureza transformações constantes. Mas como é que essas transformações
eram possíveis? Como é que algo feito de uma substância se poderia
transformar numa coisa completamente diferente? Era comum entre os
primeiros filósofos acreditarem que havia um elemento primordial
responsável por todas as transformações. De que forma teriam chegado a
este pensamento não é claro. Sabemos apenas que ele surgiu da concepção,
segundo a qual, teria de haver um elemento primordial, que daria origem
a todas as transformações da natureza.
O mais interessante para nós não são as respostas que estes
primeiros filósofos encontraram. O mais interessante são as questões que
punham e
p. 35
que tipo de respostas procuravam. Para nós, é mais importante saber
como é que eles pensaram do que o que pensaram. Podemos constatar que se
questionavam sobre a forma como aconteciam certas transformações na
natureza. Procuravam descobrir algumas leis naturais eternas. Desejavam
compreender os fenómenos da natureza, sem recorrer aos mitos
tradicionais. Acima de tudo, procuravam compreender os processos da
natureza através da observação da própria natureza. Isso é completamente
diferente da explicação do relâmpago e do trovão, do Inverno e da
Primavera, por meio da referência aos acontecimentos no mundo dos
deuses.
Desta forma, a filosofia libertou-se da religião. Podemos
afirmar que os filósofos da natureza deram os primeiros passos em
direcção a um modo de pensar "científico". Assim, abriram caminho a toda
a posterior ciência da natureza.
Quase tudo o que os filósofos da natureza disseram e escreveram
perdeu-se para a posteridade. O pouco que sabemos encontramo-lo nos
escritos de Aristóteles, que viveu duzentos anos após os primeiros
filósofos. Mas
Aristóteles resume apenas os resultados a que os filósofos
anteriores tinham chegado. O que significa que não podemos saber sempre
de que forma é que chegaram às suas conclusões. Mas sabemos o suficiente
para podermos afirmar que o projecto dos filósofos gregos consista nas
questões que estavam relacionadas com o elemento primordial nas
transformações da natureza.
Três filósofos de Mileto
O primeiro filósofo de que temos notícia é Tales, da colónia
grega de Mileto, na Ásia Menor. Ele viajava frequentemente. Diz-se que,
certa vez, teria medido a altura de uma pirâmide no Egipto, medindo a
sombra da pirâmide no momento em que a sua própria sombra estava tão
alta como ele. Além disso, conseguiu prever um eclipse do Sol no ano 585
a. C. Para Tales, a água era a origem de todas as coisas.
Não sabemos exactamente o que ele queria dizer com isto. Talvez
quisesse dizer que toda a vida começa na água - e que toda a vida se
torna de novo água quando se inicia a degradação.
Quando esteve no Egipto, viu certamente como os campos ficavam
férteis quando o Nilo abandonava as terras que constituíam o seu delta.
Talvez tenha visto também como as rãs e os vermes surgiam à luz do sol
depois de ter chovido.
p. 36
Além disso, é provável que Tales se tenha questionado quanto ao
modo como a água se pode tornar gelo e vapor - e de novo água.
Afirma-se que Tales disse que "tudo está cheio de deuses".
Apenas podemos avançar hipóteses sobre a interpretação desta frase.
Talvez tivesse pensado que a terra era a origem de tudo, desde as flores
e as sementes, até às abelhas e baratas. Tinha chegado à conclusão de
que a terra estava cheia de pequenos "gérmenes da vida" invisíveis. O
que é certo é que não estava a pensar nos deuses homéricos.
O filósofo seguinte de que temos conhecimento é Anaximandro, que
viveu igualmente em Mileto. Para ele, o nosso mundo é apenas um dos
muitos que nascem de algo e perecem em algo que ele denominou o
infinito. É difícil dizer o que queria significar com o termo infinito,
mas sabemos que não pensava, ao contrário de Tales, numa substância
totalmente determinada. Talvez quisesse dizer que aquilo, a partir do
qual tudo é criado, tem de ser completamente diferente de tudo o que é
criado. E visto que tudo o que é criado é finito, tudo o que lhe é
anterior ou posterior tem de ser infinito. É claro que o elemento
primordial não podia ser, assim, simples água. Um terceiro filósofo de
Mileto era Anaxímenes (cerca de 570 -526 a.
C.). Para ele, o ar era o elemento primordial de todas as
coisas. Anaxímenes conhecia, naturalmente, a teoria de Tales sobre a
água. Mas de onde surge a água? Para
Anaxímenes, a água era ar condensado. Nós sabemos que, ao
chover, a água é condensada a partir do ar. Quando a água é ainda mais
condensada, torna-se terra, segundo Anaxímenes. Talvez tivesse visto
que, quando o gelo se derrete, "expele" terra e areia.
De modo análogo, pensava que o fogo era ar rarefeito. Segundo
Anaxímenes, a terra, a água e o fogo tinham origem no ar.
A passagem da terra e da água às plantas no campo não era
demorada. Talvez Anaxímenes pensasse que a terra, o ar, o fogo e a água
tivessem de existir para que pudesse nascer vida. Mas o verdadeiro ponto
de partida era o ar. Ele partilhava, portanto, a concepção de Tales,
segundo a qual um elemento primordial estava na origem de todas as
transformações na natureza.
Do nada, nada pode nascer
Os três filósofos de Mileto acreditavam num - e apenas num
elemento primordial, a partir do qual todas as outras coisas eram
criadas. Mas como poderia uma substância transformar-se de repente e
p. 37
tornar-se uma coisa completamente diferente? Podemos designar este
problema pelo problema do devir.
A partir de aproximadamente 500 a. C. viveram na colónia grega
de Eleia, na Itália meridional, alguns filósofos, e estes "eleatas"
tratavam destes problemas. O mais conhecido de entre eles era Parménides
(aproximadamente 540 -480 a. C.). Parménides acreditava que tudo o que
existe, existiu sempre. Esta ideia estava bastante difundida entre os
Gregos. Tinham como evidente que tudo o que há no mundo existiu desde
sempre. Do nada, nada pode nascer, pensava Parménides. E nada do que
existe pode tornar-se nada. Mas Parménides foi mais longe que a maior
parte dos outros. Para ele, não era possível nenhuma verdadeira
transformação. Uma coisa só se pode transformar naquilo que já é.
Parménides não tinha dúvidas de que na natureza se dão constantemente
transformações. Os seus sentidos apercebiam-se do devir das coisas. Mas
não conseguia fazer coincidir o que os seus sentidos registavam, com o
que a razão lhe dizia. Quando foi obrigado a decidir se devia confiar
nos sentidos ou na razão, decidiu-se pela razão.
Conhecemos a frase: " Só acredito naquilo que vejo." Mas
Parménides nem sequer acreditava no que via. Pensava que os sentidos nos
forneciam uma imagem falsa do mundo, uma imagem que não coincidia com o
que a razão diz aos homens. Enquanto filósofo, encarava a sua tarefa
como o desmascarar de todas as formas de "ilusões sensoriais". Esta
forte confiança na razão humana é designada "racionalismo". Um
racionalista é uma pessoa que tem uma grande confiança na razão humana,
como fonte do nosso conhecimento sobre o mundo.
Tudo flui
"Heraclito", contemporâneo de Parménides, era originário de Éfeso na
Ásia Menor (aproximadamente 540 -480 a. C.). Segundo ele, as
transformações constantes eram a verdadeira característica da natureza.
Podemos dizer que Heraclito confiava mais nas impressões dos sentidos do
que Parménides. "Tudo flui", segundo Heraclito. Tudo está em movimento,
e nada dura eternamente. Por isso, não podemos "entrar duas vezes no
mesmo rio". Porque quando entro no rio pela segunda vez, tanto eu como o
rio estamos mudados. Heraclito explicou, também, que o mundo é
caracterizado por contrários constantes. Se nunca estivéssemos doentes,
não compreenderíamos
p. 38
o que é a saúde. Se nunca tivéssemos fome, não gostaríamos de comer.
Se nunca houvesse guerra, não saberíamos apreciar a paz, e se nunca
fosse Inverno, não saberíamos quando chega a Primavera. Tanto o bem como
o mal ocupam um lugar necessário no todo, dizia Heraclito. Sem o jogo
permanente entre contrários, o mundo terminaria. " Deus é o dia e a
noite, o Inverno e o Verão, a guerra e a paz, a saciedade e a fome",
dizia. Ele utiliza aqui a palavra " Deus", mas não se refere aos deuses
de que falam os mitos. Segundo Heraclito, Deus - ou o divino
- é algo que abrange tudo.
Sim, Deus está patente justamente na natureza, que é
contraditória e está em transformação constante. Em vez do termo "
Deus", Heraclito usa frequentemente a palavra grega "logos", que
significa razão. Mesmo que nós, homens, não pensemos sempre de modo
igual ou não tenhamos o mesmo bom-senso, tem de haver uma espécie de
"razão universal", que governe tudo o que acontece na natureza. Esta
razão universal
- ou "lei universal" - é comum a todos, e todos os homens se
devem orientar por ela. No entanto, a maior parte deles vive segundo a
sua própria razão particular, segundo Heraclito. Com efeito, ele não
tinha uma ideia muito positiva do seu próximo. As opiniões da maior
parte dos homens eram, para ele, "jogos de crianças". Em todas as
transformações e contradições da natureza, Heraclito via uma unidade ou
totalidade. Aquilo que está na origem de tudo, era designado por ele "
Deus", ou "logos".
Quatro elementos principais
Parménides e Heraclito tinham, sob um certo ponto de vista, concepções
opostas. A razão de Parménides defendia que nada se pode alterar. Mas as
experiências dos sentidos de Heraclito defendiam que, na natureza, se
dão constantemente transformações. Qual dos dois tinha razão? Devemos
confiar na razão, ou nos sentidos? Tanto Parménides como Heraclito fazem
duas afirmações respectivamente:
Parménides afirma que: a) nada se pode transformar e que: b)
consequentemente as impressões dos sentidos não podem ser dignas de
confiança.
p. 39
Heraclito, por seu lado, afirma que: a) tudo se transforma ("tudo
flui") e que: b) as impressões dos sentidos são dignas de confiança.
Dificilmente pode haver um desacordo maior entre filósofos! Mas
qual dos dois tinha razão? Por fim, Empédocles (aproximadamente 494 -434
a. C.), de Agrigento, haveria de encontrar o caminho para sair do novelo
no qual a filosofia se tinha emaranhado. Pensava que tanto Parménides
como Heraclito tinham razão numa das suas afirmações, mas que ambos se
enganavam num ponto.
Segundo Empédocles, a grande discórdia baseava-se no facto de
os filósofos terem pressuposto que apenas havia um elemento. Se isso
fosse verdade, então o abismo entre o que a razão diz e o que recebemos
dos sentidos seria intransponível.
A água não se pode transformar em peixe ou em borboleta. A água
não se pode transformar de todo. A água pura permanece água pura para
toda a eternidade. Parménides tinha razão em afirmar que nada se
transforma. Simultaneamente, Empédocles estava de acordo com Heraclito,
dizendo que devemos confiar nas impressões dos sentidos. Temos que
acreditar no que vemos, e vemos transformações permanentes na natureza.
Empédocles reconheceu que a ideia de um único elemento primordial tinha
de ser rejeitada. Nem a água, nem o ar se podiam transformar numa
roseira ou numa borboleta. A natureza não podia ter apenas um elemento
constituinte.
Segundo Empédocles a natureza é constituída por quatro elementos
primordiais ou "raízes", que identifica com a terra, o ar, o fogo e a
água. Todas as transformações da natureza resultam do facto de os quatro
elementos se misturarem e se separarem. Tudo é constituído por terra,
ar, fogo e água, misturados em proporções variáveis. Quando uma flor ou
um animal morrem, os quatro elementos separam-se novamente uns dos
outros. Podemos apercebermo-nos destas transformações a olho nu. Mas a
terra, o ar, o fogo e a água permanecem totalmente inalterados ou
intactos, apesar de todas as misturas em que estão presentes. Também não
é verdade que "tudo" se altera. Basicamente, nada se altera. O que
sucede é que quatro elementos diferentes se misturam e se voltam a
separar - para se misturarem novamente no futuro. Podemos fazer uma
comparação com um pintor. Se ele tem apenas uma cor - por exemplo, o
vermelho - não pode pintar árvores verdes.
p. 40
Mas se tem amarelo, vermelho, azul e preto, pode pintar centenas de
cores diferentes, porque mistura as cores em proporções diferentes. Um
exemplo da cozinha mostra-nos o mesmo. Se eu tivesse apenas farinha,
tinha de ser um ilusionista para fazer um bolo com ela. Mas se tenho
ovos e farinha, leite e açúcar, posso criar variados bolos com os quatro
elementos de base.
Não foi por acaso que para Empédocles as raízes da natureza eram
precisamente a terra, o ar, o fogo e a água.
Antes dele, outros filósofos tinham procurado mostrar que o
elemento primordial era a terra ou a água ou o ar ou o fogo. Tales e
Anaxímenes tinham insistido em que a água e o ar eram elementos
importantes na natureza. Para os Gregos, o fogo também era importante.
Por exemplo, viam a importância do Sol em toda a vida da natureza e,
obviamente, tinham conhecimento do calor do corpo nos homens e nos
animais. Talvez Empédocles tenha visto arder um pedaço de madeira. Neste
caso, há algo que se desagrega. Ouvimo-lo no crepitar da madeira. É a
água. Algo se torna fumo. É o fogo. E vemos claramente o fogo. Quando as
chamas se apagam, algo permanece. É a cinza, ou a terra.
Depois de Empédocles ter indicado que as transformações da
natureza são produzidas através da mistura e separação das quatro
raízes, há ainda uma questão em aberto: qual é a causa pela qual os
elementos se unem para que nasça uma nova vida? E o que é que contribui
para que a "mistura", uma flor, por exemplo, se desagregue de novo?
Segundo Empédocles, há na natureza duas forças diferentes que
nela agem. Designava estas forças por "amor" e "discórdia". Aquilo que
une as coisas é o amor, o que as desagrega é a discórdia. Empédocles faz
uma distinção importante entre elemento e força. É importante notar
isto. Ainda hoje, a ciência distingue elementos e forças da natureza. A
ciência moderna acredita que todos os processos da natureza se podem
explicar como resultado dos vários elementos e algumas forças da
natureza. Empédocles também se dedicou à questão do que acontece quando
sentimos algo. Como é que eu posso, por exemplo, "ver" uma flor? O que
sucede então? Já alguma vez reflectiste sobre isto, Sofia?
Caso não o tenhas feito, tens a oportunidade de o fazer agora.
Empédocles pensava que os nossos olhos, tal como todas as outras coisas
na natureza, são constituídos por terra, ar, fogo e água. Por isso, a
terra do meu olho apreende o que é feito de terra no que é visto, o ar
apreende o que é feito de ar, o fogo dos olhos apreende o que é feito de
fogo, e a água o que é feito de água. Se faltasse no olho um destes
elementos, eu não poderia ver toda a natureza.
p. 41
Algo de tudo em tudo
Um outro filósofo, Anaxágoras (500 -428 a. C.), não estava satisfeito
com a conclusão a que se tinha chegado: que um determinado elemento
primordial - água, por exemplo - se pudesse transformar em tudo o que
vemos na natureza. Também não aceitava a concepção segundo a qual a
terra, o ar, o fogo e a água se transformavam em sangue ou ossos, pele
ou cabelo.
Anaxágoras achava que a natureza era composta por ínfimas
partículas que não podiam ser apreendidas pelos olhos. Segundo ele, tudo
se pode dividir em partes ainda mais pequenas, havendo nessas partículas
um pouco de tudo.
Se a pele e o cabelo não podem nascer de uma outra coisa, então
tem de haver também, segundo ele, pele e cabelo no leite que bebemos e
nos alimentos que comemos.
Dois exemplos modernos apontam para aquilo em que
Anaxágoras pensou. Com a técnica "laser" podemos fabricar os
chamados "hologramas". Se um holograma representa, por exemplo, um carro
e este holograma é em seguida fragmentado, veremos ainda a imagem de
todo o carro, mesmo que já só tenhamos a parte do holograma que mostrava
o pára -choques. Isto sucede porque todo o motivo está presente em cada
parte, mesmo a mais reduzida.
O nosso corpo também é basicamente formado desta maneira. Se eu
raspar uma célula da pele do meu dedo, o núcleo da célula não contém
apenas a descrição da minha pele. Na mesma célula, há igualmente a
descrição dos meus olhos, da minha cor de cabelo, do número e aspecto
dos meus dedos, etc. Em cada célula do corpo há uma detalhada descrição
da constituição de todas as outras células do meu corpo. Em cada célula
há, portanto, "algo de tudo". A totalidade encontra-se na partícula
mais reduzida.
Anaxágoras chamou "sementes" a estes elementos infinitamente
divisíveis a partir dos quais se formam os vários corpos. Vimos que
segundo Empédocles o amor unia entre si as várias partes que formavam os
corpos na sua globalidade. Também Anaxágoras imaginava uma espécie de
força que, por assim dizer, produzia a ordem e criava homens, animais,
flores e árvores. Designava esta força por "espírito" ou razão.
Anaxágoras é também digno de nota por ser o primeiro filósofo em
Atenas de que temos notícia. Era oriundo da Ásia Menor, mas foi viver
para Atenas com cerca de quarenta anos. Aí, foi acusado de impiedade e
teve que deixar novamente a cidade.
Afirmara, entre outras coisas, que o Sol não era nenhum Deus,
mas uma massa incandescente, maior que a península do Peloponeso.
p. 42
Anaxágoras interessava-se muito por astronomia. Acreditava que
todos os corpos celestes eram feitos da mesma substância que a terra.
Ficou convencido disto após ter examinado um meteorito. Por isso, era
lícito pensar, segundo ele, que existissem homens noutros planetas. Além
disso, esclareceu que a Lua não brilhava por si mesma, mas era iluminada
pela terra. Por fim, explicou a formação dos eclipses solares.
P S. Obrigado pela atenção, Sofia. Talvez tenhas que ler este capítulo
duas ou três vezes até compreenderes tudo. Mas a compreensão implica um
pequeno esforço pessoal. Dificilmente admirarias uma amiga que soubesse
tudo se isso não lhe tivesse custado nada.
A melhor resposta para a questão do elemento primordial e das
transformações na natureza tem de esperar até amanhã. Conhecerás então
Demócrito. Não revelo mais nada!
Sofia estava na toca e espreitava para o jardim. Tinha que
tentar ordenar os seus pensamentos depois de tudo o que tinha lido. Era
óbvio que a água se podia tornar gelo ou vapor. Mas a água não podia
transformar-se numa melancia, visto que mesmo uma melancia era
constituída por algo mais que água. Mas se estava tão certa disso, era
porque o tinha aprendido. Poderia saber que o gelo era constituído
apenas por água se não o tivesse aprendido? Nesse caso, teria que ter
observado muito bem de que modo a água passava a gelo e como o gelo se
derretia.
De novo, Sofia procurava pensar por si mesma sem aplicar o que
tinha aprendido de outros. Parménides recusara-se a aceitar qualquer
forma de devir. E quanto mais ela reflectia sobre isso, mais se
convencia de que, de um certo ponto de vista, ele tinha razão. A sua
razão não podia aceitar que "algo" se transformasse subitamente em
"algo" completamente diferente. Tinha sido muito corajoso da parte dele
dizer isto, porque tivera de negar todas as alterações na natureza, que
todo o homem podia observar.
De certeza que muita gente se tinha rido dele. Também Empédocles
se tinha mostrado genial ao explicar que o mundo tinha necessariamente
de ser constituído por mais do que um só elemento. Desta forma, todas as
alterações na natureza eram possíveis, sem que alguma coisa se
transformasse de facto.
O antigo filósofo grego tinha descoberto isto com o simples uso
da razão. Naturalmente, tinha observado a natureza, mas não tivera
nenhuma possibilidade de efectuar análises químicas, ao contrário da
ciência moderna.
p. 43
Sofia não sabia se estava particularmente convencida de que tudo
era constituído por terra, ar, fogo e água. Mas o que é que isso
importava? Em princípio, Empédocles tinha razão. A nossa única
possibilidade de aceitarmos todas as alterações que os nossos olhos vêem
sem perdermos o juízo, é admitirmos mais do que uma substância.
Sofia achava a filosofia particularmente cativante porque podia
seguir todas as reflexões com o seu próprio entendimento - sem ter de
recordar tudo o que aprendera na escola. Verificou que, na verdade, não
se pode aprender filosofia, mas talvez se pudesse aprender a "pensar"
filosoficamente.
p. 44
DEMÓCRITO
"... o brinquedo mais genial do mundo..."
Sofia fechou a caixa dos biscoitos que continha todas as folhas
escritas à máquina do filósofo desconhecido.
Deslizou para fora da toca e ficou parada durante algum tempo a
observar o jardim.
De repente, lembrou-se do que acontecera no dia anterior. A mãe
fizera troça dela durante o pequeno-almoço devido à "carta de amor" que
recebera. Sofia correu em direcção à caixa do correio para que isso não
se repetisse. Receber duas cartas de amor em dois dias seguidos
equivalia a sentir-se embaraçada duas vezes. Havia de novo um envelope
branco pequeno! Sofia compreendeu então o sistema de correspondência:
todas as tardes, encontrara na caixa do correio um envelope grande e
amarelo. E, enquanto o lia, o filósofo ia lá às escondidas com uma
pequena carta branca. Isso significava que Sofia podia desmascará-lo
facilmente. Ou seria uma filósofa? Se se pusesse à janela do seu quarto,
tinha uma boa vista para a caixa do correio. Nessa altura, de certeza
que descobriria o misterioso filósofo, visto que os envelopes brancos
não podiam nascer por si mesmos.
Sofia decidiu tomar muita atenção no dia seguinte. Era sexta
-feira, e teria todo o fim-de-semana à sua frente. Foi então para o
seu quarto e abriu o envelope. Nesse dia, havia apenas uma pergunta na
folha, mas em compensação esta pergunta era ainda mais absurda do que as
três contidas na "carta de amor":
"Porque é que as peças do Lego são o brinquedo mais genial do mundo?"
Sofia não estava muito convencida de que achava as peças do Lego
o brinquedo mais genial do mundo; de qualquer modo, já não brincava com
elas há muitos anos.
Além disso, não conseguia compreender o que é que as peças do
Lego teriam a ver com filosofia.
p. 45
Mas era uma aluna obediente. Remexeu na prateleira mais alta do seu
armário e encontrou por fim um saco de plástico com peças de Lego de
variadíssimos tamanhos e formas. Há muito tempo que não construía nada
com as pequenas peças de plástico. Começou, então, a fazê-lo. À medida
que o fazia, começou a pensar acerca das peças do Lego. É fácil
construir com o Lego, pensou. Apesar de as peças serem de tamanho e
forma diferentes, todas podem ser montadas umas sobre as outras. Além
disso, não se estragam facilmente. Sofia não se conseguia lembrar de ter
alguma vez visto uma peça partida. Todas pareciam estar ainda tão novas
e frescas como quando as recebera há muitos anos. E, além disso, com as
peças do Lego podia construir tudo. Depois, podia desencaixar as peças e
construir algo completamente diferente.
Que mais se podia exigir?
Sofia verificou que as peças do Lego podiam, realmente, ser
consideradas o brinquedo mais genial do mundo. Mas ainda não percebia o
que é que isso tinha a ver com filosofia. Em pouco tempo, construiu uma
grande casa de bonecas. Quase não queria admitir que há muito tempo não
se divertia tanto. Porque é que as pessoas deixavam de brincar?
Quando a sua mãe chegou a casa e viu a casa de bonecas de Sofia,
disse de imediato:
- Que bom ver que ainda consegues brincar como uma criança!
- Bah! Eu estou a trabalhar em investigações filosóficas
complexas.
A mãe suspirou profundamente. Estava certamente a pensar no
coelho e na cartola.
Quando Sofia regressou da escola no dia seguinte, encontrou um
grande envelope amarelo com muitas folhas. Foi para o seu quarto. Queria
ler tudo imediatamente, mas nesse dia também queria ter a caixa do
correio debaixo de olho.
A teoria atomista
Aqui estou de novo, Sofia. Hoje vou falar sobre o último grande
filósofo da natureza. Chamava-se Demócrito (aproximadamente 460 -370 a.
C.) e vinha da cidade portuária de Abdera, a norte do Mar Egeu. Se
conseguiste responder à pergunta acerca das peças do Lego, não te será
difícil compreender o projecto deste filósofo.
p. 46
Demócrito concordava com os seus predecessores ao afirmar que as
transformações observáveis na natureza não significavam que algo se
alterasse realmente. Admitiu, portanto, que tudo tinha de ser composto
de elementos pequenos e invisíveis, eternos e imutáveis. Demócrito
designava estas pequenas partículas por átomos.
O termo "átomo" significa "indivisível". Para Demócrito, era
fundamental afirmar que aquilo a partir do qual tudo é formado não pode
ser dividido em partes cada vez mais pequenas. Se os átomos pudessem ser
constantemente divididos em partes cada vez mais pequenas, a natureza
teria começado a fluir como uma sopa cada vez mais líquida.
Os elementos constitutivos da natureza tinham ainda de se
conservar eternamente - porque nada pode nascer do nada. Nisto,
Demócrito estava de acordo com Parménides e os eleatas. Além disso, os
átomos eram sólidos e compactos. Mas não podiam ser iguais. Porque se os
átomos fossem iguais, não teríamos uma explicação válida para o facto de
poderem ser combinados de modo a formarem tudo, desde papoilas e
oliveiras a pele de cabra e cabelo humano. Existe uma quantidade
infinita de átomos diferentes na natureza segundo Demócrito. Alguns são
redondos e lisos, outros são irregulares e curvos. E precisamente porque
têm formas tão diversas, podem ser combinados para formarem corpos
completamente diversos. Mesmo sendo numerosos e diferentes, todos são
eternos, imutáveis e indivisíveis.
Quando um corpo - por exemplo, uma árvore ou um animal - morre e
entra em decomposição, os seus átomos dispersam-se e podem ser
utilizados de novo em novos corpos. Os átomos movem-se no espaço vazio
e agregam-se para formar as coisas que vemos à nossa volta. E agora já
percebes o que eu queria dizer com as peças do Lego? Elas possuem mais
ou menos as propriedades que
Demócrito atribuiu aos átomos, e precisamente por isso se pode
construir tão bem com elas. Em primeiro lugar, são indivisíveis. São
diferentes em forma e em tamanho, são sólidas e impenetráveis.
Além disso, as peças do Lego têm "ganchos", com os quais podem
ser encaixadas umas nas outras; por isso podem ser transformadas em
todas as figuras possíveis. Esta combinação pode ser mais tarde desfeita
e depois construírem-se novos objectos a partir das mesmas peças. E foi
justamente o facto de poderem ser sempre usadas de novo que tornou o
Lego tão popular. Uma e a mesma peça de Lego pode fazer hoje parte de um
carro, e amanhã de um palácio. Além disso, é possível dizer que as peças
do Lego são "imortais". As crianças de hoje podem brincar com as mesmas
peças com que os seus pais brincaram quando ainda eram pequenos.
p. 47
Com a plasticina damos forma a variadíssimas coisas, mas esta
não deve ser usada constantemente, pois pode desfazer-se em partes cada
vez mais pequenas, não podendo esses pequenos pedaços serem de novo
encaixados para formarem novos objectos. Hoje, podemos quase afirmar que
a teoria de Demócrito estava certa. A natureza é de facto formada por
diversos átomos, que se combinam uns com os outros e se separam de novo.
Um átomo de hidrogénio que está numa célula na extremidade do meu nariz
pertenceu, outrora, à tromba de um elefante. Um átomo de carbono do meu
miocárdio esteve já na cauda de um dinossauro. Hoje em dia, a ciência
descobriu que os átomos se dividiam em "partículas elementares" ainda
mais pequenas. A essas partículas elementares chamamos protões, neutrões
e electrões. E talvez estas se deixem fraccionar em partículas ainda
mais pequenas. Mas os físicos concordam em afirmar que tem de haver um
limite. Têm de existir as partículas mais pequenas a partir das quais a
natureza é formada.
Demócrito não tinha acesso aos aparelhos electrónicos do nosso
tempo. O seu único instrumento era a razão. Mas a razão não lhe deixava
nenhuma alternativa. Se aceitarmos que nada se pode alterar, que nada
surge do nada e que nada desaparece, nesse caso a natureza tem de ser
formada por elementos constitutivos minúsculos que se combinam e se
separam uns dos outros.
Demócrito não tinha em conta uma "força" ou um "espírito" que
interviesse nos processos naturais. As únicas coisas que existem,
segundo ele, são os átomos e o espaço vazio. Dado que ele só acreditava
no que é "material", denominamo-lo materialista.
Nos movimentos dos átomos não há uma finalidade consciente. Isso
não significa que tudo o que acontece seja ao "acaso", porque tudo segue
as leis constantes da natureza. Demócrito achava que tudo o que acontece
tem uma causa natural, uma causa que reside nas próprias coisas. Teria
dito um dia que preferia descobrir uma lei da natureza a tornar-se rei
da Pérsia.
Segundo Demócrito, a teoria atomista esclarecia também as nossas
"sensações". A percepção que temos de alguma coisa deve-se ao movimento
dos átomos no vazio. Quando vejo a lua, o que acontece é que os "átomos
lunares" atingem o meu olho. E a "alma"? Não pode ser constituída por
átomos, por "coisas" materiais? Para
Demócrito a alma era constituída por "átomos de alma" redondos e
lisos. Quando um homem morre, os átomos da alma dispersam-se em todas
as direcções e podem dar vida a outra alma.
p. 48
Isto significa que o homem não possui uma alma imortal. Este é um
pensamento partilhado hoje por muitas pessoas. Acreditam, como
Demócrito, que a alma está ligada ao cérebro, e que não podemos ter
nenhuma forma de consciência quando o cérebro se decompõe.
Com a sua teoria atomista,
Demócrito pôs um ponto final provisório na filosofia da natureza
grega. Estava de acordo com Heraclito quando pensava que, na natureza,
tudo flui; porque as formas vêm e vão. Mas por detrás de tudo o que
flui, há algo eterno e imutável que não flui: os átomos, segundo
Demócrito.
Durante a leitura, Sofia espreitava frequentemente pela janela
para verificar se o misterioso autor das cartas aparecia junto à caixa
do correio. Nesse momento, olhava fixamente para a rua, enquanto
reflectia no que tinha lido.
Segundo Sofia, Demócrito pensara de um modo simples e genial.
Ele encontrara a solução para os problemas do "elemento primordial" e do
"devir". Esta questão era tão complicada que os filósofos tinham
trabalhado muito nela durante várias gerações. Por fim, Demócrito
resolvera todo o problema, tendo usado simplesmente a sua razão.
Sofia quase se riu. Tinha de ser verdade que a natureza era
formada por partículas minúsculas que nunca se alteravam. Ao mesmo
tempo, Heraclito tinha razão em afirmar que todas as formas na natureza
"fluem", porque todos os homens e animais morrem, e mesmo uma montanha
se desagrega lentamente. No entanto essa montanha é constituída por
partículas pequenas e indivisíveis que nunca se quebram.
Demócrito colocara novas questões. Por exemplo, afirmara que
tudo acontece de uma forma mecânica. Não aceitava a ideia de forças
espirituais na existência - ao contrário de Empédocles e Anaxágoras.
Além disso, Demócrito não acreditava que o homem tivesse uma
alma imortal. Poderia ela ter a certeza de que ele tinha razão nesse
aspecto?
Não estava tão segura disso. Mas ela também estava apenas no
início do seu curso de filosofia.
p. 49
O Destino
"... o adivinho procura interpretar algo que, na realidade, é
obscuro..."
Sofia tinha mantido o portão da casa debaixo de olho enquanto
lia sobre Demócrito. Decidiu sair em direcção à caixa do correio, para
ter a certeza.
Quando abriu a porta da casa, descobriu lá fora, sobre a escada,
um pequeno envelope com o seu nome: Sofia
Amundsen. Era evidente que ele a tinha enganado! Precisamente
nesse dia, em que ela observara atentamente a caixa do correio, o
misterioso filósofo tinha entrado furtivamente em casa e colocado a
carta nas escadas, antes de se ter escondido novamente no bosque. Que
diabo!
Como é que ele poderia saber que, precisamente nesse dia, Sofia
estava com a caixa do correio debaixo de olho? Talvez ele (ou ela) a
tivesse visto à janela. De qualquer modo, estava contente por ter
encontrado o envelope antes de a mãe ter chegado a casa.
Sofia voltou para o seu quarto e abriu a carta. O envelope
branco estava um pouco húmido nos bordos e apresentava também alguns
cortes. Mas porquê? Não chovia há vários dias.
Na folha estava escrito:
" Acreditas no destino?
Será a doença um castigo dos deuses?
Quais são as forças que governam o curso da história?"
Se ela acreditava no destino? Não, na verdade não. Mas conhecia
muitas pessoas que acreditavam. Por exemplo, muitas das suas colegas
liam o horóscopo nas revistas. E se acreditavam na astrologia, com
certeza acreditavam também no destino, porque os astrólogos afirmam que
a posição das estrelas no céu pode dizer algo sobre a vida dos homens na
terra.
p. 50
Se se acredita que um gato preto que se atravessa no nosso
caminho significa azar
- sim, nesse caso também se acredita no destino. Quanto mais
reflectia nisto, mais exemplos descobria da crença no destino. Porque é
que se dizia, por exemplo, "bate na madeira"? E porque é que a sexta
-feira 13 é um dia de azar? Sofia tinha ouvido dizer que muitos hotéis
não tinham nenhum quarto com o número 13. Certamente porque havia muitas
pessoas supersticiosas. " Superstição" - não era uma palavra estranha?
Quando se acredita somente em Deus, isso chama-se apenas "fé". Mas
quando se acredita na astrologia ou na sexta -feira 13, trata-se
imediatamente de superstição!
Quem tinha o direito de designar a crença de outras pessoas como
superstição?
Sofia tinha a certeza de uma coisa: Demócrito "não" acreditava
no destino. Ele era materialista. Acreditava apenas nos átomos e no
vazio.
Sofia procurava reflectir sobre as outras perguntas escritas na
folha. " Será a doença um castigo dos deuses?" Hoje em dia já ninguém
acreditava numa coisa dessas. Mas depois lembrou-se que muitas pessoas
rezavam a Deus para ficarem boas, e nesse caso tinham de acreditar que
Deus também determinava quem devia estar doente e quem devia estar de
boa saúde.
A última pergunta era a mais difícil. Sofia nunca tinha pensado
no que é que governaria o curso da história. Deviam ser os homens.
Se fosse Deus ou o destino, os homens não podiam ter realmente
livre arbítrio.
A questão do livre arbítrio levou Sofia a um pensamento
completamente diferente. Porque é que haveria de aceitar que o
misterioso filósofo brincasse com ela ao gato e ao rato? Porque é que
não lhe escrevia também ela uma carta? Ele ou ela colocaria seguramente
uma nova carta no correio no decorrer da noite ou na manhã seguinte. E
por isso, ela iria deixar, no mesmo lugar, uma carta para o seu
professor de filosofia.
Sofia pôs mãos à obra.
Achou muito difícil escrever a uma pessoa que nunca tinha visto.
Nem sequer sabia se estava a escrever a um homem ou a uma mulher. Também
não sabia se esta pessoa era velha ou nova. E, no fim de contas, essa
pessoa podia inclusivamente ser alguém que
Sofia conhecia. Em pouco tempo, formulara uma pequena carta:
" Caro filósofo: aqui em casa temos em grande apreço o seu generoso
curso de filosofia. Mas também nos preocupa não saber quem você é. Por
isso lhe
p. 51
pedimos que se apresente com o nome completo. Em compensação, é
convidado para um café aqui em casa, mas de preferência quando a mãe não
estiver cá. Ela trabalha de segunda a sexta das 7.30 às 17.00 horas. Eu
própria estou na escola de manhã, mas estou sempre em casa da parte de
tarde, excepto às quintas -feiras, às 14.15. Além disso, faço um café
muito bom. Desde já agradeço.
Muitos cumprimentos da sua atenta aluna, Sofia Amundsen, 14 anos"
No fundo da folha, escreveu: " Solicita-se resposta". Pareceu
-lhe uma carta demasiado cerimoniosa. Mas não era fácil decidir com que
palavras havia de escrever a uma pessoa sem rosto.
Colocou a carta num envelope cor-de-rosa e fechou-o.
No envelope, escreveu: "Para o filósofo!"
O problema era como colocaria a carta na caixa do correio sem
que a sua mãe a descobrisse. Tinha que a pôr lá antes de a mãe chegar a
casa, e não se podia esquecer de revistar cedo a caixa do correio, na
manhã seguinte, antes que o jornal chegasse.
Se durante a tarde ou a noite não chegasse mais nenhuma carta
para ela, tinha que ficar de novo com o envelope rosa. Porque é que tudo
tinha de ser tão complicado?
Nessa tarde, Sofia foi cedo para o quarto apesar de ser sexta
-feira. A mãe tentou que ela ficasse, aliciando-a com pizza e com um
filme policial, mas Sofia disse que estava cansada e que queria ler na
cama. Enquanto a mãe olhava fixamente o ecrã,
Sofia foi sorrateiramente à caixa do correio.
A mãe estava claramente preocupada. Falava com Sofia num tom
completamente diferente desde a conversa sobre o coelho e a cartola.
Sofia não queria que ela se preocupasse, mas nesse momento tinha
de ir para o quarto para poder observar a caixa do correio.
Quando a mãe foi ter com ela cerca das onze horas,
Sofia estava sentada à janela e olhava fixamente para a rua.
- Não estás a observar a caixa do correio, pois não?
- perguntou a mãe.
- E porque não?
- Vejo que estás mesmo apaixonada, Sofia. Mas se ele trouxer uma
nova carta, certamente não será a meio da noite.
Que coisa! Sofia não podia suportar observações sobre a sua
suposta paixão. Mas tinha de deixar a mãe acreditar nisso.
p. 52
A mãe continuou:
- Foi ele que falou no coelho e na cartola?
Sofia acenou afirmativamente.
- Ele... ele não se droga, pois não?
Desta vez, Sofia teve pena dela. Não podia causar-lhe tanta
angústia. De qualquer modo, era uma idiotice completa julgar que
pensamentos estranhos tinham forçosamente algo a ver com
estupefacientes. Por vezes, os adultos eram mesmo parvos. Voltou-se e
disse:
- Mamã, eu prometo-te que nunca vou experimentar isso... e
"ele" também não toma drogas. Mas interessa-se muito por filosofia.
- É mais velho que tu?
Sofia abanou a cabeça.
- É da mesma idade?
Sofia acenou afirmativamente.
- Parece-me um rapaz fantástico. E agora acho que devias tentar
dormir. Mas Sofia ficou ainda sentada um bom bocado a observar a rua.
Por volta da uma hora estava tão cansada que os seus olhos se fechavam
constantemente. Por pouco não se deitava, mas descobriu subitamente uma
sombra que vinha do bosque. Lá fora estava quase totalmente escuro, mas
havia claridade suficiente para que ela reconhecesse uma silhueta
humana. Era um homem, e pareceu a Sofia bastante velho. Pelo menos, não
estava de forma alguma na sua faixa etária. Trazia na cabeça uma bóina,
ou algo semelhante.
A certa altura, pareceu que olhava para cima, para a casa, mas
Sofia não tinha nenhuma luz acesa. O homem foi à caixa do correio e
introduziu um envelope grande. Precisamente no momento em que introduziu
o seu envelope, descobriu o envelope de
Sofia. Enfiou a mão na caixa do correio e retirou a carta. Não
tardou muito para se pôr de novo a caminho do bosque. Correu e
desapareceu entre as árvores.
Sofia sentiu o coração a bater. Desejava ter corrido atrás dele
em camisa de noite. Mas não, não arriscava; não se atrevia a ir no
encalço de um homem completamente estranho a meio da noite. Mas tinha de
ir buscar a carta, isso era certo. Passado um pouco, desceu
silenciosamente as escadas, abriu a porta com cuidado e foi à caixa do
correio. Voltou ao seu quarto com o grande envelope na mão. Sentou-se
na cama e reteve a respiração. Passados poucos minutos, nada se movia
na casa, abriu a carta e começou a ler.
p. 53
Evidentemente, não podia esperar uma resposta à sua carta. Essa
chegaria de manhã, na melhor das hipóteses.
Mais uma vez, bom dia, cara Sofia! Deixa-me apenas dizer-te que nunca
deves tentar espiar-me. Um dia havemos de nos conhecer, mas serei eu a
decidir o momento e o local.
Agora já sabes: não vais querer ser desobediente, pois não?
Regressando aos filósofos. Vimos de que modo eles tentaram encontrar
explicações naturais para as transformações da natureza. Antes disto,
essas transformações eram explicadas através dos mitos. Mas noutros
campos a superstição antiga também tinha de ser posta de parte. Vemo-lo
não só em relação à saúde e doença como também na política. Nestes
domínios, os gregos acreditavam no destino. "Fatalismo" significa a
convicção de que está estabelecido "a priori" aquilo que irá acontecer.
Encontramos esta ideia em todo o mundo - tanto hoje como em qualquer
outro momento da história.
Aqui na Europa setentrional encontramo-la nas antigas sagas
islandesas. Tanto entre os gregos como noutros povos acreditava-se que
os homens, através de diversos oráculos, podiam estar ao corrente do seu
destino. Isso significa que o destino de uma pessoa ou de um Estado se
pode prever de diversas maneiras e que se pode interpretar a partir de
determinados "indícios".
Ainda há muitas pessoas que acham ser possível ler o destino nas
cartas, na palma da mão ou interpretando as estrelas. Uma prática muito
difundida na Noruega é também ler os restos do café. Depois de se tomar
um café fica geralmente no fundo da chávena um pouco da borra. Talvez a
borra forme uma determinada imagem ou um desenho - sobretudo se
recorrermos um pouco à imaginação. Quando a borra se parece com um
carro, isso significa talvez que a pessoa que bebeu o café irá em breve
fazer uma longa viagem de carro. Vemos que o "adivinho" procura
interpretar algo que, na realidade, é obscuro. Isso é típico da arte
divinatória. É precisamente porque aquilo a partir do qual nós
"predizemos" é tão pouco claro que, na maior parte das vezes, não é
fácil de todo contradizer o adivinho.
Quando erguemos os olhos para o céu estrelado vemos um
verdadeiro caos de pontinhos brilhantes. No entanto, muitos homens
acreditaram ao longo da história que as estrelas poderiam dizer-nos
algo acerca da
p. 54
nossa vida na terra. Ainda hoje há políticos que pedem conselho aos
astrólogos antes de tomarem decisões importantes.
" O oráculo de Delfos"
Os gregos acreditavam que o oráculo de Delfos poderia dar aos
homens informação sobre o seu destino. Aí, o deus Apolo era a divindade
do oráculo, que falava através da sacerdotisa, a Pítia ou Pitonisa que
estava sentada numa trípode sobre uma fenda aberta no solo. Desta fenda
subiam gases entorpecedores, por meio dos quais a Pítia ficava em estado
de transe. Só assim podia tornar-se porta -voz de Apolo.
Quem chegava a Delfos tinha primeiro de colocar aos sacerdotes
locais a sua pergunta. Estes iam ter com a Pítia. Ela dava uma resposta
que era tão incompreensível ou tão ambígua que os sacerdotes tinham de
"explicar" essa resposta àquele que a solicitara.
Desta forma, os gregos podiam servir-se da sabedoria de Apolo,
visto que acreditavam que Apolo sabia tudo
- passado e futuro. Muitos soberanos não ousavam partir para a
guerra ou tomar decisões importantes antes de consultarem o oráculo de
Delfos. Assim, os sacerdotes de Apolo tornaram-se quase uma espécie de
diplomatas e conselheiros que possuíam um vasto conhecimento do povo e
do país.
No templo de Delfos, havia uma inscrição famosa:
C O NHE CE -TE A TI ME SM O! Isso porque os homens nunca deviam
julgar que eram mais do que homens - e nenhum homem podia escapar ao seu
destino. Entre os gregos contavam-se muitas histórias acerca de pessoas
que tinham sido vítimas do seu destino. Com o decorrer do tempo, foram
escritos vários dramas - tragédias - acerca destas personagens
"trágicas". O exemplo mais famoso é a história do Rei Édipo que,
querendo fugir ao seu destino, acabou mesmo por cair nas suas garras.
"História e medicina"
Não era apenas a vida de pessoas individuais a ser determinada
pelo destino, segundo a opinião dos gregos na
Antiga Grécia. Eles pensavam também que o curso do mundo era
governado pelo destino. Acreditavam, por exemplo, que o desenlace de uma
guerra podia ser atribuído à intervenção divina. Ainda hoje, muitos
acreditam que Deus ou outras forças místicas governam os acontecimentos
históricos. Mas enquanto os filósofos gregos procuravam encontrar
explicações naturais para os processos da natureza, também se formava
pouco a
p. 55
pouco uma ciência da história, cujo objectivo era encontrar causas
naturais para o curso da história. Já não se atribuía aos desejos de
vingança dos deuses o facto de um Estado perder uma guerra. Os
historiadores gregos mais conhecidos foram Heródoto (484 -424 a.
C.) e Tucídides (460 -400 a. C.).
Os gregos acreditavam que os deuses eram responsáveis pelas
doenças. Assim, as doenças contagiosas eram frequentemente vistas como
castigo dos deuses. Em contrapartida, os deuses podiam tornar os homens
saudáveis se lhes fossem oferecidos os sacrifícios devidos. Esta ideia
não é tipicamente grega. Antes de se desenvolver, em tempos mais
recentes, a ciência médica moderna, predominava a opinião segundo a qual
cada doença tinha uma causa sobrenatural. A palavra "influenza", que
ainda hoje é utilizada, significava originalmente que alguém estava sob
a "influência" nefasta dos astros. Muitas pessoas em todo o mundo ainda
pensam que várias doenças - como, por exemplo, a sida - são um castigo
de Deus. E muitos acreditam que um doente pode ser curado de maneira
sobrenatural. Enquanto os filósofos gregos reflectiam sobre a natureza,
desenvolvia-se igualmente na Grécia uma ciência médica, que procurava
encontrar explicações naturais para a saúde e para a doença. Esta
ciência médica grega foi supostamente fundada por "Hipócrates", que
nasceu cerca do ano 460 a. C. na ilha de Cós.
A protecção mais importante contra a doença residia, segundo a
tradição hipocrática, na moderação e numa vida saudável. Para um ser
humano é natural estar bem; por isso, se se adoece, deve-se procurar o
motivo num desequilíbrio físico ou psíquico.
A vida saudável reside na moderação, na harmonia e em "uma mente
sã num corpo são". Hoje ainda se fala acerca de "deontologia médica".
Significa que um médico tem que exercer a sua profissão seguindo
determinadas normas éticas. Por exemplo, um médico não pode receitar
drogas a pessoas saudáveis. Um médico está também sujeito a um segredo
profissional que lhe proíbe contar aquilo que um paciente lhe revelou
sobre a sua doença. Estas ideias vêm de Hipócrates. Os seus discípulos
tinham de prestar um juramento ainda hoje conhecido como o juramento
hipocrático:
"Juro por Apolo, o médico, por Escolápio, por Higeia e por
Panaceia, tomando por testemunhas todos os Deuses e todas as Deusas, que
cumprirei com todas as minhas posses e conforme o meu saber o seguinte
juramento: Considerar e amar como a meus pais aquele que me ensinou esta
arte; viver com ele e, se necessário for, repartir com
p. 56
ele os meus bens; olhar pelos seus filhos como se fossem meus irmãos
e ensinar-lhes esta arte, se assim o pretenderem, sem receber qualquer
pagamento ou promessa escrita; ensinar aos meus filhos, aos filhos do
mestre que me ensinou e a todos os discípulos que se inscrevam e que
concordem com as regras da profissão, mas só a estes, todos os preceitos
e conhecimentos. Prescrever aos doentes, segundo as minhas
possibilidades e o meu saber, o regime conveniente para o seu bem e
nunca prejudicar ninguém. Não receitar drogas perigosas para agradar a
quem quer que seja, nem lhe dar conselhos que possam causar a sua morte.
Não dar às mulheres meios de abortarem. Conservar a pureza da minha vida
e da minha profissão. Não fazer operações para tirar pedras, mesmo nos
enfermos em que a doença seja manifesta, e deixar esta operação aos
especialistas nessa arte. Em todas as casas a que eu for, entrar somente
para benefício dos meus doentes, evitando qualquer prejuízo intencional
ou qualquer sedução, bem como, em especial, os prazeres do amor com
mulheres ou com homens, quer sejam livres ou escravos. Manter secreto e
nunca revelar aos outros tudo o que possa vir a saber no exercício da
minha profissão, fora da minha profissão ou na convivência diária com as
pessoas e que não deva ser divulgado. Se eu mantiver e observar este
juramento com fidelidade, que possa ter alegria em viver e praticar a
minha arte, respeitado por todos os homens e em todos os tempos, mas se
eu me desviar dele, ou o violar, que me suceda o contrário."
Quando acordou na manhã de sábado, Sofia sobressaltou-se. Teria
apenas sonhado, ou teria visto, de facto, o filósofo? Tacteando,
procurou debaixo da cama. Sim - aí estava a carta que chegara nessa
noite. Tinha lido sobre a crença no destino, no que dizia respeito aos
gregos. Não podia ser apenas um sonho.
Seguramente que tinha visto o filósofo! E mais - tinha visto com
os seus próprios olhos que ele ficara com a sua carta.
Sofia levantou-se e espreitou para debaixo da cama. Retirou as
folhas escritas. Mas o que era aquilo? Bem atrás, junto à parede, estava
uma coisa vermelha. Seria um lenço?
Sofia enfiou-se debaixo da cama e retirou um lenço de seda
vermelho. Nunca tinha visto aquele lenço. Examinou bem o lenço de seda e
soltou um grito quando viu que na bainha estava algo escrito a preto:
"Hilde". Hilde! Mas quem era esta Hilde? Como era possível que os seus
caminhos se cruzassem desta forma?
p. 57
SÓCRATES
"... a pessoa mais sábia é aquela que sabe que não sabe..."
Sofia vestiu um vestido de Verão e desceu para a cozinha. A mãe
estava debruçada sobre o lava-louça. Sofia decidiu não dizer nada sobre
o lenço de seda.
- Já foste buscar o jornal? - perguntou Sofia em voz baixa.
A mãe voltou-se.
- Não queres ser simpática e ir buscá-lo por mim?
Sofia correu pelo caminho de saibro e espreitou para a caixa do
correio verde.
Apenas jornais. Mas também não podia esperar uma resposta
imediata. Na primeira página do jornal leu algumas linhas acerca do
contingente norueguês da O NU no Líbano.
Contingente da O NU - não era o que estava escrito no postal do
pai de Hilde? Mas tinha um selo norueguês. Talvez os soldados
noruegueses da O NU tivessem uma caixa de correio apenas para eles.
Quando voltou à cozinha, a mãe afirmou ironicamente:
- De repente os jornais passaram a interessar-te muito.
Felizmente, não disse mais nada acerca da caixa do correio ou alguma
coisa semelhante, nem durante o pequeno-almoço nem durante o resto do
dia. Quando foi às compras, Sofia foi a correr para a toca com a carta
que falava do destino.
O seu coração deu um pulo quando encontrou um pequeno envelope
branco junto à caixa das cartas do seu professor de filosofia. Sofia
julgou saber quem o tinha colocado lá. Este envelope também tinha os
bordos húmidos. E apresentava dois golpes profundos, exactamente como o
envelope branco que recebera no dia anterior. Teria o filósofo estado
ali? Conheceria ele o seu esconderijo secreto? Porque é que os envelopes
estavam molhados?
Sofia ficou atordoada com todas estas perguntas. Abriu o
envelope e leu o que estava escrito na folha.
p. 58
"Cara Sofia! Li a tua carta com grande interesse - e também com
muita pena porque não posso aceitar o teu convite para tomar café em tua
casa. Havemos de nos encontrar um dia, mas, por enquanto, não posso ser
visto na Curva do Capitão.
Devo ainda acrescentar que já não posso entregar as minhas
cartas pessoalmente.
Com o decorrer do tempo, isso seria demasiado arriscado. O meu
pequeno mensageiro levará as próximas cartas. Em compensação, as cartas
serão depositadas directamente no teu esconderijo secreto, no jardim.
Daqui em diante, podes entrar em contacto comigo quando sentires que há
necessidade disso. Nesse caso, tens de usar um envelope cor-de-rosa
com uma bolacha doce ou com um torrão de açúcar. Quando o mensageiro
encontrar uma dessas cartas, não deixará de ma trazer.
P S. Não é nada divertido recusar o convite de uma jovem. Mas por vezes
é necessário. P S2. Se encontrares um lenço de seda, quero pedir-te que
o conserves cuidadosamente. Acontece, por vezes, que os objectos são
trocados, sobretudo na escola e em locais semelhantes, e esta é na
verdade uma escola de filosofia.
Cumprimentos cordiais,
Albert Knox"
Sofia já tinha catorze anos, e já recebera várias cartas durante
a sua breve existência, pelo menos no
Natal ou nos aniversários. Mas esta era a carta mais estranha
que alguma vez recebera.
Não trazia selo. Nem sequer tinha estado na caixa do correio.
Esta carta fora depositada directamente no esconderijo supersecreto de
Sofia, junto à antiga sebe. Também era estranho que a carta se
tivesse molhado, estando um tempo primaveril seco. Mas o mais estranho
era, obviamente, o lenço de seda.
O professor de filosofia tinha mais uma aluna. Está bem! E esta
outra aluna tinha perdido um lenço de seda vermelho. Está bem! Mas como
é que conseguira perder o lenço debaixo da cama de Sofia? E Alberto
Knox... que nome tão esquisito!
De qualquer forma, esta carta provara que havia uma relação
entre o professor de filosofia e Hilde Mõller Knag. Mas que o pai de
Hilde confundisse as moradas, era completamente incompreensível.
Sofia ficou muito tempo sentada, questionando-se sobre que
relação poderia haver entre ela própria e Hilde. Por fim, suspirou,
resignada. O professor de filosofia dissera que se encontrariam um dia.
Iria ela, nessa altura, conhecer também Hilde?
p. 59
Virou a folha. Descobriu então que havia algumas frases no verso.
"Existe um pudor natural?
A pessoa mais sábia é aquela que sabe que não sabe.
O verdadeiro conhecimento vem de dentro.
Quem sabe o que é correcto, age correctamente."
Sofia já sabia que as frases curtas dos envelopes brancos a
iriam preparar para o conteúdo do envelope grande que, entretanto,
receberia em seguida. E nesse momento, teve uma ideia: se o "mensageiro"
lhe levava para a toca o envelope amarelo, Sofia podia esperar por ele.
Ou por ela? De qualquer modo, havia de agarrar a pessoa em questão até
que lhe contasse mais qualquer coisa a respeito do filósofo! Na carta
estava escrito que o mensageiro era pequeno. Tratar-se-ia de uma
criança? "Existe um pudor natural?"
Sofia sabia que "pudor" era uma palavra antiquada para designar
certas inibições
- por exemplo, deixar-se ver nu. Mas seria realmente natural
ter pudor em relação a isso? Ser natural equivalia a dizer que era
válido para todos os homens. Mas em muitos países do mundo era natural
estar nu!
Seria a "sociedade" a estabelecer o que era permitido e o que
não era? Quando a avó era jovem, era completamente impossível tomar
banhos de sol em "topless". Mas hoje em dia, a maior parte das pessoas
achava isso "natural", apesar de ser totalmente proibido em muitos
países. Sofia coçou a cabeça.
Seria isto filosofia?
Depois podia ler-se: " A pessoa mais sábia é a que sabe que não
sabe". Mais sábia que quem? Se o filósofo queria dizer com isso que uma
pessoa que sabia que não sabia tudo era mais sábia do que uma que sabia
pouco e que pensava que sabia muito - sim, nesse caso não era muito
difícil partilhar a sua opinião. Sofia nunca tinha pensado nisso. Mas
quanto mais pensava, mais claro lhe parecia que, no fundo, saber que não
se sabe é uma espécie de saber. Ela não conseguia imaginar nada mais
estúpido do que pessoas que defendiam opiniões que julgavam
irrefutáveis, quando, na realidade, nada sabiam sobre isso. Em seguida,
havia a frase sobre o conhecimento que vinha de dentro. Mas, sem dúvida,
todo o conhecimento vinha primeiro do exterior passando depois para a
cabeça das pessoas. Por outro lado,
Sofia lembrava-se bem de situações em que a sua mãe ou os
professores, na escola, tinham tentado ensinar-lhe qualquer coisa em
que ela não estava interessada. Se aprendera de facto alguma coisa,
também tinha,
p. 60
de algum modo, contribuído para isso. Podia acontecer-lhe
compreender algo subitamente - e era isso que era designado por "saber".
Sim, Sofia achava que tinha resolvido as primeiras perguntas
muito bem. Mas em seguida vinha uma afirmação tão estranha que a deixara
perplexa. " Quem sabe o que é correcto, age correctamente".
Queria isso dizer que um assaltante de bancos não tinha uma
ideia melhor quando assaltava um banco? Sofia achava que não. Em vez
disso, estava convencida de que tanto as crianças como os adultos podiam
fazer disparates - dos quais se arrependeriam mais tarde - e que o
faziam tendo plena consciência de que poderiam ter agido de uma forma
mais correcta. Enquanto ainda estava sentada, ouviu de repente, do lado
da sebe que ia dar ao bosque, ramos secos a estalarem. Seria o
mensageiro?
Sofia sentiu de novo o coração aos pulos. Mas teve ainda mais
medo quando se deu conta de que, o que se aproximava, arfava como um
animal. Logo em seguida, entrou na toca um cão grande, vindo do bosque.
Devia ser um labrador. Segurava na boca um grande envelope amarelo que
deixou cair aos pés de Sofia. Tudo se passou tão depressa que Sofia não
conseguiu sequer reagir. Passados poucos segundos, tinha o grande
envelope nas mãos - e o cão amarelo desaparecera de novo no bosque. Só
depois de tudo isto se ter passado é que o choque surgiu. Sofia pôs as
mãos no colo e começou a chorar.
Não deu por quanto tempo ficou assim, mas, daí a um bocado,
levantou de novo os olhos. Então aquele era o mensageiro! Sofia sentiu
-se aliviada. Era por isso que os envelopes brancos estavam molhados nas
bordas. E era por isso que tinham golpes. Como é que ainda não pensara
nisso? Já fazia sentido que devesse colocar no envelope um biscoito ou
um torrão de açúcar quando quisesse escrever ao filósofo.
Nem sempre conseguia pensar tão depressa como desejava. No
entanto, era bastante curioso que o mensageiro fosse um cão amestrado.
Desta forma, podia pôr de lado a ideia de vir a saber pelo mensageiro o
paradeiro de
Alberto Knox.
Sofia abriu o envelope e começou a ler.
A filosofia em Atenas
Cara Sofia! Quando leres esta carta, já terás conhecido Hermes.
Por precaução, devo acrescentar que Hermes é um cão. Mas não tens que
p. 61
te preocupar. Ele é muito simpático - e, além disso, tem mais juízo
que muitas pessoas. Pelo menos, não tenta parecer mais esperto do que é
na realidade. Já podes perceber que o seu nome não é fruto do acaso.
Hermes era o mensageiro dos deuses gregos. Era ainda o deus dos
viandantes, mas por enquanto isso não nos diz respeito. O importante é
que do nome Hermes deriva o adjectivo "hermético", que significa obscuro
e indecifrável. Isso está relacionado com o facto de Hermes nos manter
afastados um do outro. Já apresentei o mensageiro. Ele responde pelo seu
nome e, em geral, é bastante obediente. Voltemos à filosofia. Já
deixámos a primeira unidade. Refiro-me à filosofia da natureza, a
verdadeira ruptura com a concepção mítica do mundo. Vamos conhecer agora
os três principais filósofos da Antiguidade. Chamam-se
Sócrates, Platão e Aristóteles. Cada um destes filósofos marcou
de uma certa maneira a civilização europeia.
Os filósofos da natureza são também designados por pré
-socráticos, visto que viveram antes de Sócrates. Na realidade,
Demócrito morreu alguns anos após Sócrates, mas todo o seu pensamento
pertence à filosofia da natureza pré -socrática. Sócrates representa uma
linha de separação não apenas do ponto de vista cronológico. Também do
ponto de vista geográfico,
Sócrates é o primeiro filósofo nascido em Atenas, e tanto ele
como ambos os seus sucessores viveram e exerceram a sua actividade em
Atenas. Talvez recordes que
Anaxágoras viveu algum tempo nesta cidade, tendo, no entanto,
sido expulso dela por defender que o sol era uma esfera de fogo. (
Sócrates não iria ter um destino melhor!).
A partir da época de Sócrates, Atenas torna-se o ponto de
encontro da cultura grega. É ainda mais importante notar que todo o
projecto filosófico muda essencialmente, se passarmos dos filósofos da
natureza para
Sócrates. Mas antes de conhecermos Sócrates, vamos saber um
pouco mais acerca dos chamados sofistas, que influenciaram o panorama
cultural da cidade de Atenas.
O pano vai subir, Sofia!
A história do pensamento é semelhante a um drama em muitos
actos.
" O homem no centro"
Por volta de 450 a. C.,
Atenas tornou-se o centro cultural do mundo grego. A filosofia
também tomou então uma orientação nova.
p. 62
Os filósofos da natureza eram, sobretudo, investigadores do
mundo físico. Ocupam consequentemente um lugar importante na história
das ciências. Em Atenas, o interesse concentrou-se então mais no homem
e no seu lugar na sociedade. Em Atenas desenvolvia-se progressivamente
uma democracia com assembleias populares e tribunais. Uma das condições
para a instauração da democracia exigia que os homens recebessem
instrução suficiente para poderem participar na vida política. Também
nos dias de hoje vemos que uma jovem democracia precisa do
esclarecimento popular. Entre os atenienses isso significava sobretudo
dominar a retórica. Vindo das colónias gregas, um grupo de professores
itinerantes e de filósofos afluiu então a Atenas. Chamavam-se sofistas.
A palavra "sofista" designa uma pessoa sábia ou erudita. Em Atenas, os
sofistas ganhavam o seu sustento ensinando os cidadãos.
Os sofistas tinham uma notável semelhança com os filósofos da
natureza, pois também eles eram críticos relativamente aos mitos
tradicionais. Mas, simultaneamente, os sofistas recusavam tudo o que
lhes parecia ser especulação filosófica desnecessária. Achavam que mesmo
que houvesse resposta para muitas questões filosóficas, os homens nunca
poderiam encontrar explicações verdadeiramente seguras para os enigmas
da natureza e do universo. Em filosofia, este ponto de vista é designado
por "cepticismo". Mas apesar de não podermos encontrar resposta para
todos os enigmas da natureza, sabemos que somos homens e que devemos
aprender como viver em comunidade. Os sofistas interessavam-se pelo
homem e pelo seu lugar na sociedade. " O homem é a medida de todas as
coisas", dizia o sofista Protágoras (cerca de 487 - 420 a. C.). Queria
dizer que a justiça e a injustiça, o bem e o mal devem ser sempre
avaliados em função das necessidades dos homens. À pergunta se
acreditava nas divindades gregas, respondeu: "sobre os deuses nada posso
dizer! Porque muitas coisas nos impedem que o saibamos: a dificuldade do
problema e a brevidade da vida humana". Chamamos "agnóstico" àquele que
diz não poder afirmar com segurança se Deus existe ou não.
Os sofistas faziam com frequência longas viagens, tomando assim
conhecimento de vários sistemas de governo.
Os usos e os costumes, e as leis das cidades-estado variavam
muito. Partindo destas experiências, os sofistas iniciaram em Atenas uma
discussão sobre o que era estabelecido pela natureza e o que era imposto
pela sociedade. Desta forma, criaram na cidade-estado de Atenas as
bases para uma crítica social.
p. 63
Podiam, por exemplo, mostrar que uma expressão como "pudor natural"
não era admissível, porque se o pudor fosse natural, teria de ser inato.
Mas é inato, Sofia,
- ou foi a sociedade que o criou? Para pessoas que viajaram
muito, a resposta tinha de ser simplesmente: não é natural - ou inata -
a vergonha de se mostrar nu. Pudor - ou a ausência de pudor
- tem a ver sobretudo com os usos e os costumes numa sociedade.
Como podes compreender, os sofistas provocavam fortes discussões
na sociedade ateniense, ao afirmarem que não havia normas absolutas para
estabelecer o que é justo e o que não é. Sócrates, pelo contrário,
tentou provar que algumas normas são realmente absolutas e
universalmente válidas.
" Quem era Sócrates?"
Sócrates (470 - 399 a.
C.) é talvez a personagem mais enigmática de toda a história da
filosofia. Não escreveu uma única linha.
Apesar disso, pertence ao número dos que exerceram maior
influência no pensamento europeu. O facto de ser conhecido, mesmo por
quem não possui muitos conhecimentos de filosofia, tem provavelmente a
ver com a sua morte trágica.
Sabemos que nasceu em
Atenas e que aí passou a sua vida, sobretudo nas praças e nas
ruas, onde conversava com todo o tipo de gente. Achava que os campos e
as árvores não lhe podiam ensinar nada. Por vezes, ficava longas horas
absorto em reflexão profunda.
Ainda no seu tempo, era considerado uma pessoa enigmática e após
a sua morte foi considerado o precursor das mais diversas orientações
filosóficas. E precisamente por ser tão enigmático e ambíguo,
variadíssimas orientações o podiam reivindicar.
Sabe-se que era muito feio. Era pequeno e gordo, e tinha olhos
salientes e um nariz achatado. Mas interiormente, dizia-se, era um
homem maravilhoso, nunca se poderia encontrar alguém igual a ele.
No entanto, foi condenado à morte devido à sua actividade
filosófica.
Conhecemos a vida de
Sócrates sobretudo através de Platão, que era seu discípulo,
também ele um dos maiores filósofos da história. Platão escreveu muitos
diálogos - ou conversas filosóficas - nas quais faz participar Sócrates.
Quando Platão põe as palavras na boca de Sócrates, não podemos
dizer com certeza que Sócrates as tivesse verdadeiramente pronunciado.
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Por isso, não é fácil distinguir a doutrina de Sócrates da de Platão.
Este problema é válido, também, para muitas outras personalidades
históricas que não deixaram fontes escritas. O exemplo mais famoso é
obviamente Jesus. Não podemos ter a certeza de que o "Jesus histórico"
tenha dito, de facto, aquilo que Mateus ou Lucas puseram na sua boca.
Da mesma forma, permanecerá sempre um enigma aquilo que o "
Sócrates histórico" disse realmente.
Quem era "realmente" Sócrates não é muito importante. É
sobretudo o seu retrato por Platão que inspira os pensadores ocidentais
de há quase dois mil e quatrocentos anos.
" A arte do diálogo"
O que distinguia, na verdade, a actividade de Sócrates era o seu
desejo de não ensinar os homens. Em vez disso, parecia querer ele mesmo
aprender com o seu interlocutor. Assim, não ensinava como um vulgar
professor de escola: dialogava. Mas não se teria tornado um filósofo
famoso se apenas tivesse escutado os seus interlocutores. Também não
teria sido condenado à morte. E, sobretudo no início, apenas punha
questões. Alegava, humildemente, nada saber. No decurso do diálogo,
levava frequentemente os outros a reconhecerem os pontos fracos das suas
reflexões. Podia suceder então que o interlocutor fosse encostado à
parede e tivesse de reconhecer, por fim, o que era o justo e o injusto.
Diz-se que a mãe de Sócrates era parteira, e Sócrates comparava
a sua actividade à arte da obstetrícia.
Não é a parteira que dá à luz a criança, ela apenas está
presente e ajuda a mãe.
Sócrates compreendeu também que a sua tarefa era ajudar os
homens a "parir" o saber correcto, porque o verdadeiro saber tem de vir
de dentro e não pode ser enxertado. Só o conhecimento que vem do
interior é a verdadeira "inteligência". Vou precisar: a capacidade de
dar à luz crianças é uma faculdade natural. Da mesma forma, todos os
homens podem compreender as verdades filosóficas, usando simplesmente a
razão. Quando alguém "recorre à razão", retira qualquer coisa de si
mesmo. Precisamente por se fingir ignorante, Sócrates obrigava as
pessoas a usarem a razão.
Sócrates podia simular ignorância ou parecer mais estúpido do
que na realidade era: a famosa "ironia socrática".
Desta forma, ele conseguia sempre descobrir os pontos fracos na
forma de pensar dos atenienses. Isto podia passar-se no centro de uma
praça, ou
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seja, em público. Um encontro com Sócrates podia levar o interlocutor
a fazer figura de estúpido, ou a ser ridicularizado perante uma grande
assistência. Por isso, não é de espantar que ele se tivesse tornado
incómodo e muito irritante
- sobretudo para aqueles que detinham o poder. Sócrates dizia
que Atenas era como um cavalo indolente, e ele era uma espécie de
aguilhão que lhe picava o flanco para o manter desperto. ( O que é que
se faz com o aguilhão,
Sofia? Sabes-mo dizer?)
"Uma voz divina"
Sócrates picava os seus próximos no flanco, não tendo, porém, a
intenção de os atormentar. Havia algo nele que não o deixava agir de
outra forma. Repetia frequentemente que ouvia interiormente uma voz
divina. Sócrates insurgia-se, por exemplo, com a condenação de pessoas
à morte. Além disso, recusava-se a denunciar inimigos políticos. Por
fim, isso iria custar-lhe a vida.
No ano de 399 a. C. foi acusado de "corromper a juventude" e de
"inventar novos deuses". Com uma maioria à justa, foi declarado culpado
por um júri de 500 membros. Podia ter pedido o indulto. Poderia, pelo
menos, ter salvo a sua vida, se estivesse disposto a deixar Atenas. Mas
se o tivesse feito, não teria sido Sócrates, porque a própria
consciência - e a verdade - eram mais importantes do que a vida.
Insistia que só agira para o bem do Estado, mas, mesmo assim, foi
condenado à morte. Pouco tempo depois, e em presença dos seus amigos
mais próximos, bebeu uma taça de cicuta. Porquê, Sofia? Porque é que
Sócrates teve de morrer? Há muitas pessoas que ainda fazem esta
pergunta. Mas ele não foi o único na história a ir até às últimas
conseqüências e a morrer em nome das suas convicções. Já mencionei Jesus
e entre Jesus e
Sócrates há, de facto, muitas afinidades. Vou referir apenas
algumas. Tanto Jesus como Sócrates eram já considerados pelos seus
contemporâneos pessoas enigmáticas. Nenhum deles escreveu a sua
mensagem, por isso estamos completamente dependentes da imagem que os
seus discípulos nos dão deles. Sabe-se, no entanto, que ambos eram
mestres na arte de comunicar. Além disso, expressavam-se de uma forma
clara, o que tanto poderia encantar como irritar. E ambos acreditavam
ser portadores de uma mensagem maior que eles mesmos. Desafiavam aqueles
que detinham o poder na sociedade porque criticavam todas
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as formas de injustiça e de abuso de poder. E ainda: esta actividade
custou a ambos a vida. Inclusivamente nos processos contra Jesus e
Sócrates vemos claros paralelismos.
Ambos poderiam ter talvez pedido o indulto e salvo assim as suas
vidas. Mas acreditavam estar a trair as suas convicções se não fossem
até ao fim. E o facto de terem enfrentado a morte de cabeça erguida
tornou-os dignos da confiança de todos, mesmo após a morte.
Se faço este paralelismo entre Jesus e Sócrates não é porque os
ache semelhantes.
Queria apenas sublinhar que é impossível dissociar a sua
mensagem da sua coragem.
"Um joker em Atenas"
Sócrates, Sofia! Ainda não discutimos tudo o que lhe diz
respeito, como compreendeste. Dissemos algumas coisas sobre o seu
método. Mas qual era o seu projecto filosófico?
Sócrates era um contemporâneo dos sofistas. Como eles,
preocupava-se com o homem e com a vida humana, não com os problemas dos
filósofos da natureza. Um filósofo romano - Cícero - disse alguns
séculos mais tarde que
Sócrates trouxera a filosofia do céu para a terra, a introduzira
nas cidades e nas casas e que tinha forçado os homens a reflectirem
sobre a vida e os costumes, o bem e o mal. Mas Sócrates diferia dos
sofistas num ponto importante. Não se considerava um sofista - uma
pessoa instru ída ou sábia. Ao contrário dos sofistas, não pedia
remuneração pelo seu ensino.
Não, Sócrates denominava-se filósofo, no sentido mais genuíno
do termo. Um "filósofo" é, na realidade, um "amante da sabedoria",
alguém que aspira a adquirir a sabedoria. Estás a seguir-me, Sofia? É
importante no teu curso que compreendas a diferença entre um sofista e
um filósofo. Os sofistas eram pagos pelas suas subtilezas e esses
"sofistas" estiveram presentes durante toda a história. Refiro-me a
todos os mestres-escola ou sabichões que estão satisfeitos com o seu
pouco saber ou que se gabam de saber muito acerca daquilo que, na
realidade, não conhecem. Certamente já deparaste, embora sejas jovem,
com alguns desses "sofistas". Um verdadeiro filósofo, Sofia, é alguém
completamente diferente, sim, é exactamente o contrário. Um filósofo
apercebe-se bem que, no fundo, sabe muito pouco. Precisamente por isso
ele procura sempre atingir o verdadeiro conhecimento.
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Por isso, Sócrates era um homem extraordinário. Sabia claramente que
nada sabia acerca da vida e do mundo. E mais importante ainda: o facto
de saber tão pouco atormentava-o. Um filósofo é, portanto, alguém que
reconhece que há muitas coisas que não entende. E isso aflige-o. Deste
ponto de vista, é porém mais sábio que todos os que se gabam do seu
pretenso saber. " A pessoa mais sábia é aquela que sabe que não sabe",
como eu disse. O próprio
Sócrates dizia que sabia apenas uma coisa, isto é, que nada
sabia. Presta atenção a isto, porque mesmo entre filósofos esta
declaração é uma coisa rara. Além disso, pode ser perigoso declará-lo
publicamente. Aqueles que perguntam são sempre os mais perigosos. Não é
perigoso responder. Uma simples pergunta pode ser mais explosiva do que
mil respostas.
Conheces a história dos trajes novos do rei, Sofia?
Na realidade, o rei ia nu, mas nenhum dos seus súbditos ousou
dizê-lo. E, de repente, uma criança exclamou que o rei estava nu. Era
uma criança corajosa, Sofia.
Deste modo, também Sócrates ousou esclarecer quão pouco os
homens sabem. Já falámos acerca da semelhança entre filósofos e
crianças. Vou ser mais preciso: a humanidade é confrontada com questões
importantes, para as quais não encontra facilmente as respostas
correctas. Temos, então, duas alternativas: podemos enganar-nos a nós
mesmos e ao resto do mundo e fingir que sabemos tudo o que é preciso
saber. Ou podemos fechar os olhos perante as grandes questões e desistir
de uma vez por todas de ir mais longe. Desta forma, a humanidade divide
-se em duas partes. Em geral, os homens ora estão totalmente seguros ou
são indiferentes. (Uns e outros rastejam na pele do coelho!) É como as
cartas, quando se divide um baralho. Colocam-se as cartas pretas num
monte e as vermelhas num outro. Mas de vez em quando surge um joker no
baralho, que não é copas nem paus, nem ouros nem espadas. Sócrates era
como um joker em Atenas. Não tinha certezas absolutas, nem era
indiferente. Sabia apenas que nada sabia - e isso preocupava-o, por
isso se tornou filósofo - uma pessoa que não desiste e que procura
incansavelmente o saber.
Conta-se que uma vez um ateniense perguntou ao oráculo de
Delfos quem era o homem mais sábio de Atenas. O oráculo respondeu:
Sócrates.
Quando Sócrates soube disso ficou verdadeiramente admirado. (
Acho que ele se riu,
Sofia!) Foi imediatamente para a cidade e procurou alguém que
fosse tido por ele e por outros como sábio. Mas quando se provou que
esse homem não conseguia responder com clareza às suas perguntas,
Sócrates reconheceu por fim que o oráculo tinha razão.
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Para Sócrates, era importante encontrar um fundamento seguro para o
nosso conhecimento. Acreditava que esse fundamento residia na razão
humana. Devido à sua forte convicção na razão humana, ele era um
racionalista.
" O verdadeiro conhecimento leva a agir correctamente"
Já referi que Sócrates julgava ouvir dentro de si uma voz divina, e essa
"consciência" dizia-lhe o que estava certo. Quem soubesse o que era o
bem, praticaria o bem. Segundo ele, o verdadeiro saber leva a agir
correctamente. E apenas aquele que age correctamente se torna um
verdadeiro homem.
Quando agimos mal, é porque não sabemos agir melhor. Por isso é
tão importante alargar o nosso saber. Para Sócrates, tratava-se
especificamente de encontrar definições totalmente claras e universais
para o que é justo e o que é injusto. Ao contrário dos sofistas, ele
achava que a faculdade de distinguir o justo do injusto residia na razão
e não na sociedade. Talvez não consigas engolir facilmente a última
frase, Sofia. Vou tentar mais uma vez: Sócrates achava impossível que
alguém fosse feliz se agisse contra as suas próprias convicções. E
aquele que sabe como atingir a felicidade vai, certamente, fazê-lo. Por
isso, quem sabe o que está certo, fará o que está certo. Ninguém deseja
ser infeliz, pois não?
O que te parece, Sofia? Podes viver feliz se estiveres sempre a
fazer coisas que, no fundo do coração, não aches correctas? Há muitas
pessoas que mentem e roubam constantemente, outras que lançam calúnias.
Pois bem!
Sabem que isso não é correcto - ou justo, se preferires. Mas
acreditas que isso as faz felizes? Sócrates não acreditava.
Depois de ter lido a carta sobre Sócrates, Sofia guardou-a
rapidamente na caixa e saiu de gatas para o jardim. Para se poupar a
perguntas eventuais acerca de onde tinha estado, decidiu estar em casa
antes que a mãe tivesse regressado das compras. Além disso, Sofia tinha
prometido lavar a louça. Mal abriu a torneira, a mãe entrou com dois
enormes sacos de plástico.
- Ultimamente, andas com a cabeça nas nuvens, Sofia.
Sofia respondeu sem reflectir:
- Passava-se exactamente o mesmo com Sócrates!
- Sócrates?
p. 69
A mãe esbugalhou os olhos.
- Que pena ter de o pagar com a vida - continuou Sofia muito
pensativa.
- Sofia! Já não sei o que hei-de fazer!
- Sócrates também não. A única coisa que ele sabia era que não
sabia nada. E, no entanto, era o homem mais sábio de Atenas.
A mãe ficou pura e simplesmente estupefacta. Por fim, afirmou:
- Aprendeste isso na escola?
Sofia abanou energicamente a cabeça.
- Aí não aprendemos nada... A grande diferença entre um mestre
-escola e um verdadeiro filósofo é que o mestre-escola acha que sabe
muito, e procura constantemente meter à força na cabeça dos alunos
aquilo que sabe.
O filósofo procura ir ao fundo das questões com os seus alunos.
- Bom, estamos a falar de coelhos brancos. Mas vou querer saber
com que tipo de namorado é que tu andas. Se não, começo a pensar que ele
não é bom da cabeça.
Sofia voltou-se de costas para o lava-louça, apontando com a
escova para a mãe.
- Ele é bom da cabeça. Mas é como um aguilhão que incomoda os
outros, para lhes incutir uma nova maneira de pensar.
- Pára com isso. Acho que parece um pouco pretensioso e
impertinente.
Sofia inclinou-se de novo para o lava-loiça.
- Ele não é sábio nem impertinente. Mas procura atingir o
verdadeiro saber. Essa é a grande diferença entre um verdadeiro joker e
as outras cartas do baralho.
- Disseste joker?
Sofia acenou afirmativamente.
- Já alguma vez reflectiste no facto de, num baralho, haver
muitas copas e ouros? Também há muitas espadas e paus. Mas há apenas um
joker.
- De que coisas tu falas, miúda!
- Que perguntas tu fazes!
A mãe tinha arrumado todas as compras. Pegou no jornal e foi
para a sala de estar.
Sofia teve a sensação de que ela fechara a porta com mais força
do que era habitual.
Quando acabou de lavar a louça, foi para o quarto. Pusera o
lenço de seda vermelho juntamente com as peças do Lego, bem no cimo do
armário. Retirou-o e observou-o atentamente. Hilde...
p. 70
Atenas
"... e das ruínas elevaram-se edifícios imponentes..."
Ao fim da tarde, a mãe de
Sofia foi visitar uma amiga. Mal ela saiu de casa, Sofia foi
para o jardim e depois para a toca na velha sebe.
Aí encontrou junto à caixa dos biscoitos um pacote volumoso.
Sofia rasgou imediatamente o papel. Era uma cassete de vídeo! Voltou
para casa a correr. Uma cassete de vídeo! Era algo completamente novo.
Mas como é que o filósofo podia saber que eles tinham um leitor de
vídeo? E o que é que haveria no vídeo?
Sofia introduziu a cassete no leitor. De imediato se viu uma
grande cidade no ecrã. Sofia concluiu que tinha de se tratar de Atenas,
porque estava a ver a Acrópole em grande plano. Sofia já tinha visto
várias vezes fotografias daquelas ruínas antigas. Os turistas, com
roupas leves e máquinas fotográficas ao pescoço, movimentavam-se
rapidamente entre o que restava dos templos.
Ora, não havia um que trazia mesmo um cartaz? Lá estava de novo
o cartaz. Não tinha escrito "Hilde"? Passado um pouco, apareceu um homem
de meia idade à frente da câmara. Era bastante pequeno, tinha uma barba
negra bem tratada e uma boina azul. Olhou imediatamente para a câmara e
disse:
- Bem vinda a Atenas,
Sofia. Com certeza, já calculaste que eu seria Alberto Knox. Se
ainda não tinhas pensado nisso, repito apenas que o coelho branco ainda
está a ser retirado da cartola do universo. Estamos na
Acrópole. Esta palavra significa: "cidadela" - ou propriamente:
"a cidade sobre as colinas". Aqui em cima viveram homens desde a Idade
da Pedra. Isso está relacionado com a posição privilegiada deste lugar.
Era fácil defender este planalto de inimigos. Da Acrópole desfrutava-se
de um belo panorama sobre um dos melhores portos do Mediterrâneo. À
medida que Atenas se expandia na planície, no sopé do planalto, a
Acrópole foi utilizada como fortaleza e como área dos templos. Na
primeira metade do século V a. C., rebentou uma guerra sangrenta contra
os persas e, no ano de 480, o rei
p. 71
persa "Xerxes" fez saquear Atenas e incendiar todos os antigos edifícios
de madeira da Acrópole. No ano seguinte, os persas foram derrotados, e
iniciou-se então o período áureo de Atenas, Sofia. A Acrópole foi
reconstruída - mais imponente e bela que nunca - e tornou-se a partir
de então exclusivamente zona dos templos. Precisamente nesta altura,
Sócrates andava pelas ruas e pelas praças falando com os atenienses.
Desta forma, pôde observar a reconstrução da
Acrópole e a construção de todos os edifícios imponentes que
aqui vemos. Que grande terreno de construção! Por detrás de mim vês o
templo maior. Chama-se Parténon - ou "morada das virgens" - e foi
construído em honra da deusa " Atena", a deusa protectora de Atenas.
Esta grande obra de mármore não apresenta nenhuma linha recta, todos os
lados apresentam uma ligeira curvatura. Assim, o edifício teria uma
estrutura mais dinâmica.
Apesar de o templo ser de grandes dimensões, não parece tão
pesado a quem o vê. Isso deve-se a uma ilusão óptica. Mesmo as colunas
estão ligeiramente curvadas para dentro e formariam uma pirâmide de mil
e quinhentos metros de altura se fossem suficientemente compridas para
se encontrarem num ponto acima do templo. A única coisa que havia no
interior deste enorme edifício era uma estátua de Atena, com doze metros
de altura. Devo ainda acrescentar que o mármore branco, que estava
pintado de cores vivas, foi retirado de uma montanha a dezesseis
quilómetros de distância...
O coração de Sofia batia desordenadamente. Seria verdadeiramente
o seu professor de filosofia que lhe falava através do vídeo? Ela
apenas vira uma vez o seu vulto na escuridão. Mas podia perfeitamente
ter sido o mesmo homem que estava agora na Acrópole em Atenas.
Começou então a percorrer a parte lateral do templo, e a câmara
seguia-o. Por fim, dirigiu-se para a beira do rochedo e apontou para a
paisagem. A câmara focou um teatro antigo, abaixo do planalto da
Acrópole.
- Aqui vês o antigo teatro de Dionisio - prosseguiu o homem da
boina. - É provavelmente o teatro mais antigo da Europa. Aqui foram
representadas as peças dos grandes dramaturgos "Ésquilo, Sófocles" e
"Eurípides", ainda no período em que Sócrates viveu. Já mencionei a
tragédia do infeliz rei Édipo. Foi aqui que se estreou. Mas também eram
representadas comédias. O comediógrafo mais famoso era
Aristófanes, que entre outras coisas escreveu uma comédia
maliciosa sobre Sócrates. Bem ao fundo, vês a parede de pedra em que os
actores entravam em cena. Chamava-se "skenê", e dela deriva a nossa
palavra "cena". A palavra grega "teatro" deriva de um termo grego antigo
que
p. 72
significava "ver". Mas vamos voltar rapidamente à filosofia, Sofia.
Damos uma volta ao Parténon e descemos depois pelo lado da entrada...
Aquele homem andou à volta do grande templo, à direita do qual
havia alguns templos mais pequenos. Desceu depois as escadas entre
algumas colunas altas. Quando chegou ao sopé do planalto da Acrópole,
subiu para uma pequena colina e apontou para Atenas:
- A colina sobre a qual estamos chama-se " Areópago". Aqui, o
supremo tribunal de Atenas tratava dos casos de homicídio. Vários
séculos mais tarde, esteve aqui o apóstolo Paulo e falou aos atenienses
sobre Jesus e o cristianismo. Mas voltaremos a falar disto numa outra
oportunidade. Em baixo, à esquerda, vês as ruínas da antiga ágora de
Atenas. À excepção do grande templo originalmente dedicado a
Atena e ao deus Hefesto, não resta muita coisa. Vamos descer...
Logo em seguida, ele surgiu de novo entre as ruínas antigas. Sob o céu -
e no ecrã de Sofia - estava o grande templo de Atenas sobre a
Acrópole. O professor de filosofia sentou-se em cima de um bloco de
mármore. Olhou para a câmara e disse:
- Estamos sentados junto da antiga ágora de Atenas. Uma vista
triste, não é?
Quero dizer, hoje. Mas outrora havia aqui templos imponentes,
tribunais e outros edifícios públicos, lojas, um auditório e
inclusivamente uma grande palestra. Tudo isto rodeava esta ágora, uma
praça grande quadrangular... Neste pequeno terreno foi lançado o
fundamento de toda a civilização europeia. Termos como "política" e
"democracia", "economia" e "história", "biologia" e "física",
"matemática" e "lógica", "teologia" e "filosofia", "ética" e
"psicologia", "teoria" e "método", "ideia" e "sistema" - e muitos outros
- provêm de um pequeno povo cuja vida quotidiana decorria à volta desta
praça. Aqui falava Sócrates com os homens que o procuravam. Talvez
agarrasse pelo braço um escravo, que trazia um cântaro com azeite, e
colocasse ao pobre homem uma pergunta filosófica, visto que
Sócrates achava que um escravo possuía a mesma capacidade de
raciocinar que qualquer cidadão. Talvez tivesse uma discussão agitada
com um cidadão - ou estivesse embrenhado numa conversa amena com o seu
jovem discípulo Platão. É estranho pensar nisso. Falamos sempre de
filosofia "socrática" ou "platónica", mas é completamente diferente ser
Platão ou Sócrates.
Sofia achou este pensamento estranho. Mas pareceu-lhe
igualmente estranho que o filósofo falasse com ela por meio de uma
gravação de vídeo que fora trazida por um cão misterioso para o seu
esconderijo secreto no jardim.
p. 73
O filósofo levantou-se então dos blocos de mármore, onde
estivera sentado. Disse em voz baixa:
- Na verdade, eu queria ficar por aqui, Sofia. Queria mostrar
-te a Acrópole e as ruínas da antiga ágora em Atenas. Mas ainda não sei
se percebeste como este local era imponente em tempos antigos... senti
-me tentado... a dizer algo mais. Isto é obviamente contra todas as
regras... mas espero que fique entre nós... bom, tanto faz, uma rápida
vista de olhos deve ser suficiente...
Não disse mais nada, ficou no mesmo lugar muito tempo a olhar
para a câmara. Em seguida, surgiu uma imagem completamente diferente no
ecrã.
Das ruínas surgiram vários edifícios altos. Todas as ruínas
antigas estavam reconstruídas como por magia.
No horizonte, Sofia via ainda a Acrópole, mas desta vez, a
Acrópole e os edifícios em baixo, na ágora, estavam completamente novos.
Eram dourados e pintados de cores brilhantes. Na grande praça
quadrangular passeavam homens em trajes de cores vivas. Alguns tinham
espadas, outros um cântaro na cabeça, e um deles tinha um rolo de papiro
debaixo do braço.
Sofia reconheceu então o seu professor de filosofia. Tinha ainda
a boina azul na cabeça mas vestia uma túnica como os outros homens. Veio
na direcção de Sofia, fixou a câmara e disse:
- Pois é. Agora encontramo-nos na antiga Atenas,
Sofia. Gostava que tu pudesses estar aqui. Estamos no ano 402 a.
C., apenas três anos antes da morte de
Sócrates. Espero que saibas apreciar esta visita que é
exclusiva: foi muito difícil alugar uma câmara de vídeo...
Sofia começou a ter tonturas. Como é que o misterioso homem
podia estar subitamente na Atenas de há dois mil e quatrocentos anos?
Como é que podia ver uma gravação de vídeo de outra época? Sofia sabia
obviamente que na
Antiguidade não havia vídeo. Estaria a ver um filme de ficção?
Mas os edifícios de mármore pareciam autênticos. Reconstruir toda a
antiga ágora de Atenas e a Acrópole apenas para um filme sairia muito
caro. Apresentar
Atenas apenas a Sofia era pagar um preço demasiado alto.
O homem com a boina levantou de novo os olhos.
- Estás a ver aqueles dois homens lá atrás, sob a arcada?
Sofia descobriu um homem mais velho, num traje um pouco
andrajoso. Tinha uma barba comprida desgrenhada, nariz achatado, olhos
azuis penetrantes e faces redondas.
Ao seu lado estava um jovem muito belo.
- Estás a ver, Sofia?
São Sócrates e o seu jovem discípulo. Mas vais conhecê-los
pessoalmente.
p. 74
O professor de filosofia foi ter com os dois homens que estavam
sob uma arcada alta. Quando os alcançou levantou um pouco a boina e
disse algo que Sofia não compreendeu. Seguramente estava a falar grego.
Pouco depois, olhou de novo para a câmara e disse:
- Eu contei-lhes que uma jovem norueguesa desejava conhecê
-los. Agora Platão vai colocar algumas questões sobre as quais tu podes
reflectir. Mas temos de nos apressar, para que os guardas não nos
descubram...
Sofia sentiu uma pressão nas fontes, no momento em que o jovem,
olhando para a câmara, se apresentou:
- Bem vinda a Atenas,
Sofia - disse ele com uma voz afável. Falava um norueguês muito
arranhado -
Chamo-me Platão e quero dar-te quatro tarefas. Primeiro, deves
reflectir em como é que um padeiro pode fazer cinqüenta bolos totalmente
iguais. Depois podes perguntar-te como é que todos os cavalos são
iguais. Em seguida, deves pensar se acreditas que o homem tem uma alma
imortal. E por fim, deves responder à pergunta: as mulheres e os homens
são igualmente racionais? Boa sorte!
De imediato, a imagem desapareceu. Sofia tentou bobinar para a
frente e para trás, mas tinha visto tudo o que estava no vídeo.
Sofia tentou ordenar os pensamentos. Mas mal começava a
reflectir numa coisa, surgia uma outra ideia, e a primeira evaporava
-se.
Que o seu professor de filosofia era bastante original, sabia-o
há muito tempo. Mas recorrer a métodos de ensino que destruíam todas as
leis da natureza conhecidas, isso era ir longe demais, segundo Sofia.
Teria ela realmente visto
Sócrates e Platão no ecrã? Era óbvio que não, isso era
totalmente impossível. Mas afinal, também não era um filme de desenhos
animados.
Sofia retirou a cassete do leitor e foi para o quarto. Enfiou
-a, então, na prateleira mais alta do armário, junto às peças do Lego.
Em seguida, caiu esgotada na cama e adormeceu. Horas mais tarde, a mãe
entrou no quarto. Foi junto de Sofia e disse:
- Mas o que é que te deu agora, Sofia?
- Mmm...
- Deitaste-te vestida!
Sofia mal conseguia abrir os olhos.
- Estava em Atenas - disse.
Não disse mais nada; virou-se para o outro lado e voltou a
adormecer.
p. 75
Platão
"... uma saudade de regressar à verdadeira origem..."
Na manhã seguinte, Sofia acordou sobressaltada. Passava pouco
das cinco, mas estava tão desperta que se levantou na cama. Porque é que
estava vestida? Lembrou-se, então, de tudo. Sofia subiu para um
banquinho e olhou para a prateleira superior do armário.
Sim - estava lá uma cassete de vídeo. Logo, não fora nenhum
sonho, pelo menos uma parte era verdade.
Não vira realmente Platão e Sócrates? Mas não queria pensar mais
nisso. Talvez a mãe tivesse razão ao afirmar que ultimamente andava com
a cabeça nas nuvens.
De qualquer modo, não conseguia dormir mais. Talvez devesse
verificar na toca se o cão tinha trazido uma nova carta.
Sofia desceu sorrateiramente as escadas, calçou as sapatilhas e
saiu.
No jardim tudo estava admiravelmente claro e silencioso. Os
pássaros chilreavam com tal intensidade que
Sofia sorriu. Na erva, o orvalho caía semelhante a gotas de
cristal. De novo percebeu como o mundo era uma maravilha inexplicável.
A velha sebe também estava um pouco húmida. Sofia não encontrou
nenhuma nova carta do filósofo, mas apesar disso enxugou uma raiz grossa
e sentou-se. Lembrou-se que o Platão do vídeo lhe tinha dado algumas
tarefas. Primeiro, tinha de pensar como é que um pasteleiro podia fazer
cinqüenta bolos iguaizinhos.
Sofia tinha de reflectir bem, visto que lhe parecia um trabalho
difícil. Quando a mãe fazia bolos, o que era raro, nunca havia dois
exactamente iguais. Ela não era uma pasteleira profissional e podia
fazer muitas coisas erradas, mas os bolos que compravam nas lojas também
nunca eram totalmente iguais. Cada bolo recebia uma forma diferente nas
mãos do pasteleiro.
Subitamente, Sofia sorriu com uma expressão astuta. Lembrava-se
que estivera uma vez com o pai na cidade, enquanto a mãe fazia os
p. 76
biscoitos de natal. Quando regressaram a casa, toda a mesa da cozinha
estava coberta com biscoitos. Mesmo não estando todos igualmente
perfeitos, de certo modo eram todos iguais. E porque é que eram iguais?
Porque a mãe tinha usado a mesma forma para todos os biscoitos,
obviamente.
Sofia estava tão contente por se ter lembrado da história dos
biscoitos que deu a primeira tarefa por terminada. Se um pasteleiro
fazia cinqüenta bolos todos iguais, é porque usava a mesma forma para
todos. E basta!
Depois, o Platão do vídeo olhara para a câmara e perguntara
porque é que todos os cavalos são iguais. Mas isso não era verdade.
Sofia diria, antes pelo contrário, que não havia dois cavalos iguais, da
mesma forma que não podia haver dois homens iguais. Estava quase para
abandonar a tarefa, mas lembrou-se do que tinha pensado a propósito dos
biscoitos. Também não havia dois iguais, alguns eram maiores que outros,
outros estavam partidos; no entanto, era claro para toda a gente que,
por assim dizer, eram "completamente iguais". Talvez Platão quisesse
perguntar porque é que um cavalo era sempre um cavalo e não, por
exemplo, uma coisa intermédia entre cavalo e porco. Porque, apesar de
alguns cavalos serem castanhos como ursos, e outros brancos como
cordeiros, todos os cavalos tinham qualquer coisa em comum. Sofia nunca
vira um cavalo com seis ou oito pernas. Mas Platão não podia querer
dizer que todos os cavalos eram iguais por terem sido moldados a partir
da mesma forma.
Se fosse esse o caso, Platão tinha, de facto, colocado uma
questão complexa. Terá o homem uma alma imortal? Sofia não se sentiu
capaz de responder a essa pergunta. Sabia apenas que um cadáver era
cremado ou enterrado, e que depois nada mais lhe acontecia. Se o homem
tivesse uma alma imortal, teria que ser constituído por duas partes
diferentes: um corpo que se decompõe passado algum tempo - e uma alma
que age mais ou menos independentemente dos processos do corpo. A sua
avó dissera uma vez que, para ela, era como se apenas o corpo
envelhecesse. Interiormente, tinha permanecido sempre jovem.
A questão da "jovem" levou
Sofia à última pergunta. Os homens e as mulheres são igualmente
racionais? Neste ponto, não tinha de todo a certeza. Dependia do que
Platão entendia por "racional".
Subitamente, lembrou-se daquilo que o seu professor de
filosofia dissera acerca de Sócrates. Sócrates explicara que todos os
seres humanos podiam compreender verdades filosóficas, se usassem a
razão. Ele acreditava também que um escravo podia resolver questões
filosóficas
p. 77
com a mesma facilidade de um aristocrata. Sofia estava convencida de
que ele também teria dito que as mulheres e os homens eram igualmente
racionais. E estando sentada, absorta nas suas reflexões, apercebeu-se
subitamente de um barulho na sebe e ouviu qualquer coisa a ofegar e a
arfar como se de uma máquina a vapor se tratasse. Pouco depois, o cão
amarelo infiltrou-se na toca. Trazia um grande envelope na boca.
- Hermes! - exclamou
Sofia. - Muito obrigada!
O cão deixou cair o envelope no regaço de Sofia; ela estendeu a
mão e afagou-o no pescoço.
- O Hermes é um cão valente - dizia.
O cão deitou-se e deixou-se acariciar por Sofia. Passados
alguns minutos, levantou-se e, passando com dificuldade pela sebe,
regressou pelo caminho por onde viera.
Sofia seguiu-o com o envelope na mão. Rastejou pela densa sebe
e pouco depois estava fora do jardim. Hermes correu para o bosque e
Sofia seguiu-o a alguns metros de distância. Por duas vezes, o cão
voltou-se e rosnou, mas Sofia não se deixou intimidar.
Agora, queria encontrar o filósofo, mesmo que tivesse de correr
até Atenas.
O cão correu com mais velocidade e chegou a um pequeno carreiro.
Sofia também começou a correr mais depressa, mas, passado pouco
tempo, o cão voltou-se e ladrou como um cão de guarda. Sofia não
desistiu; aproveitou a oportunidade para se aproximar ainda mais dele.
Hermes corria à frente, pelo carreiro. Até que,
Sofia teve de reconhecer que não o podia alcançar. Ficou muito
tempo parada, tentando detectar para onde o cão se afastava. Por fim,
tudo ficou silencioso.
Sofia sentou-se num tronco, junto a uma pequena clareira. Tinha
na mão o grande envelope amarelo. Abriu-o, retirou várias folhas
escritas e começou a ler:
A Academia de Platão
Que bom ver-te, Sofia!
Claro que quero dizer, em
Atenas. Penso ter-me finalmente apresentado, não achas? E uma
vez que também te apresentei Platão, podemos começar imediatamente.
Platão (428 -347 a. C.) tinha 29 anos quando Sócrates teve de beber a
taça de cicuta. Fora discípulo de
Sócrates por muito tempo e seguiu
p. 78
atentamente o processo instaurado contra ele. Que
Atenas pudesse condenar à morte o homem mais nobre da cidade não
provocou nele apenas uma impressão indelével; isso iria determinar a
orientação de toda a sua actividade filosófica. Para Platão, a morte de
Sócrates demonstrou muito claramente qual é a contradição que
pode existir entre as condições de facto numa sociedade e o que é
verdadeiro e ideal. Platão, ao transcrever o discurso da Apologia de
Sócrates, desempenhou uma importantíssima tarefa. Aí narrou tudo o que
Sócrates expôs ao tribunal.
Com certeza recordas ainda que Sócrates não escreveu nada pela
sua própria mão. Muitos pré -socráticos haviam-no feito, mas a maior
parte dos seus textos não se conservou para a posteridade.
No que diz respeito a Platão, pensa-se que todas as suas obras
principais se conservaram. ( Além da Apologia de Sócrates, escreveu um
conjunto de cartas e mais de trinta e cinco diálogos filosóficos). Se
estes escritos se conservaram deve-se ao facto de Platão ter fundado
perto de Atenas a sua própria escola filosófica, num pequeno bosque, que
tinha o nome do lendário herói grego
Academo. A escola de filosofia de Platão recebeu assim o nome de
Academia. ( Desde então, foram abertas em todo o mundo milhares de
academias. Falamos ainda de "académicos" e de "disciplinas académicas").
Na Academia de Platão leccionava-se filosofia, matemática e
ginástica. Talvez o termo "leccionar" não seja o mais adequado. Na
Academia de Platão também se usava o diálogo vivo. Não é por acaso que o
diálogo tenha sido a sua forma privilegiada de escrita.
O verdadeiro, o belo e o bom eternos
No início deste curso de filosofia, eu disse-te que, por vezes,
vale a pena perguntar qual o projecto de um determinado filósofo. E por
isso pergunto agora: o que é que Platão queria descobrir?
Dito em poucas palavras: Platão interessava-se por um lado pela
relação entre aquilo que é eterno e imutável e, por outro, por aquilo
que "flui". (Exactamente como os pré -socráticos!)
Dissemos que tanto os sofistas como Sócrates se tinham afastado
das questões da filosofia da natureza e se tinham interessado mais pelos
homens e pela sociedade. E isso está certo; mas tanto os sofistas como
Sócrates se ocupavam também, de certa maneira, da relação que existe
entre o que é eterno e constante - e aquilo que "flui". Preocupavam-se
p. 79
com esta questão quando se tratava da moral humana e dos ideais ou
virtudes da sociedade. Os sofistas achavam, grosso modo, que o conceito
de justiça e de injustiça variava de cidade-estado para cidade-estado
e de geração para geração. A questão da justiça e da injustiça seria,
portanto, algo "fluido".
Sócrates não podia aceitar isto. Acreditava em regras ou normas
eternas e intemporais para o procedimento humano. Quando usamos apenas a
nossa razão, segundo ele, podemos compreender todas essas normas
imutáveis, porque a razão humana é justamente algo eterno e imutável.
Estás a seguir-me, Sofia? E agora vem Platão. Ele interessa-se tanto
por aquilo que é eterno e imutável na natureza - como por aquilo que na
moral e na sociedade é eterno e imutável. Sim, para Platão trata-se de
uma mesma coisa. Ele procura obter uma "realidade" própria que seja
eterna e imutável. E na verdade é precisamente para isso que temos
filósofos. Para eles não se trata de eleger a mulher mais bela do ano ou
a verdura mais barata. (Por isso, eles nem sempre são populares!). Os
filósofos procuram dar pouca atenção a essas coisas frívolas e efémeras.
Procuram mostrar o que é "verdadeiro" em si, "belo" em si, e "bom" em
Si.
Com isto, temos uma ideia dos contornos do projecto filosófico
de Platão. A partir de agora, consideramos uma coisa de cada vez. Vamos
tentar compreender a visão deste pensador que deixou vestígios profundos
em toda a filosofia europeia posterior.
O mundo das ideias
Empédocles e Demócrito já tinham mostrado que todos os fenómenos na
natureza "fluem", mas que apesar disso há "algo" que nunca se transforma
(as "quatro raízes" ou os "átomos"). Platão confronta-se igualmente com
esta problemática - mas de uma forma completamente diferente. Platão
achava que tudo o que podemos tocar e sentir na natureza "flui". Não há,
portanto, nenhum elemento eterno. Tudo o que pertence ao "mundo
sensível" é composto por uma matéria que o tempo consome. Mas ao mesmo
tempo, tudo é constituído por uma forma intemporal que é eterna e
imutável.
Compreendeste? Porque é que os cavalos são iguais, Sofia? Talvez
penses que eles não o são de todo. Mas há algo que é comum a todos os
cavalos, algo que permite que nunca tenhamos problemas em reconhecer um
cavalo.
p. 80
Um cavalo particular "flui", obviamente. Pode ser velho e coxo, com o
tempo ficará também doente, e morre. Mas a verdadeira "forma de cavalo"
é eterna e imutável.
Assim, o eterno e imutável não é nenhum "elemento primordial". O
eterno e o imutável são modelos espirituais ou abstractos, a partir dos
quais se formam todos os fenómenos. Vou ser mais preciso: os pré
-socráticos tinham dado uma explicação verdadeiramente útil para as
transformações na natureza, sem ter que pressupor que algo se
"transforma" efectivamente. Na natureza há partículas minúsculas,
eternas e constantes que não entram em desagregação, segundo eles. Pois
bem, Sofia! Mas não tinham nenhuma explicação aceitável para o modo como
estas partículas minúsculas que eram elementos constituintes de um
cavalo podiam produzir quatro ou cinco séculos mais tarde um cavalo
totalmente novo! Ou talvez um elefante, ou um crocodilo. Platão quer
dizer que os átomos de Demócrito nunca se podem tornar um "crocofonte"
ou um "eledilo". E foi precisamente este o ponto de partida das suas
reflexões filosóficas.
Se já percebes o que quero dizer, podes saltar esta parte. Por
precaução, vou explicar melhor: tens uma caixa de peças de Lego e
constróis um cavalo. Depois, desmanchas o que fizeste e colocas
novamente as peças na caixa.
Não podes esperar ter um novo cavalo se apenas agitas a caixa.
Como é que as peças do Lego conseguiriam produzir por si mesmas um novo
cavalo? Não, tu tens de montar de novo o cavalo, Sofia. E se o consegues
é porque tens em ti uma imagem do aspecto do cavalo. O cavalo de Lego
foi portanto formado a partir de um modelo que se conserva inalterado de
cavalo para cavalo.
Conseguiste resolver a pergunta acerca dos cinqüenta bolos
iguais? Imaginemos agora que cais do espaço sideral para a terra e que
nunca tinhas visto uma pastelaria. Deparas com uma pastelaria atraente -
e vês, num tabuleiro, cinqüenta biscoitos em forma de homem, exactamente
iguais. Calculo que coçarias a cabeça e te questionarias como é que
podiam ser todos exactamente iguais. É fácil de imaginar que a um falta
um braço, um outro perdeu talvez um bocado da cabeça, e o terceiro tem
uma barriga demasiado gorda. Mas depois de uma reflexão fundada chegas à
conclusão de que todos os biscoitos possuem um denominador comum. Apesar
de nenhum deles ser totalmente perfeito, tens a ideia de que têm que ter
uma origem comum.
Compreendes que todos os biscoitos foram feitos a partir de uma
mesma forma. E não é tudo, Sofia: terás então o desejo de ver esta
forma. Porque é óbvio que a forma tem de ser indescritivelmente mais
perfeita
- e de certo modo mais bela
- do que uma das suas frágeis cópias.
p. 81
Se resolveste este problema sozinha, resolveste um problema
filosófico exactamente da mesma forma que Platão. Como a maior parte dos
filósofos, ele "caiu do espaço sideral", por assim dizer. (Ele instalou
-se no cimo de um dos pêlos finos da pelagem do coelho). Ele admirou-se
como todos os fenómenos na natureza podem ser tão semelhantes entre si,
e chegou então à conclusão de que "acima" ou "por detrás" de tudo o que
vemos à nossa volta há um número limitado de formas. A estas formas
chamou Platão ideias. Por detrás de todos os cavalos, porcos e homens há
a "ideia cavalo", a "ideia porco" e a "ideia homem". (E por isso, a
referida pastelaria pode ter, além de biscoitos em forma de homem,
biscoitos em forma de porco e de cavalo, visto que uma pastelaria
decente tem geralmente variadíssimas formas. Mas para cada tipo de
biscoito é suficiente uma única forma).
Conclusão: Platão defendia uma realidade própria por detrás do
"mundo sensível".
A esta realidade chamava ele "o mundo das ideias". Encontramos
aqui os "modelos" eternos e imutáveis, os "arquétipos" por detrás dos
diversos fenómenos que se nos deparam na natureza. Designamos esta
importante concepção por "teoria das ideias" de Platão.
Saber seguro
Até agora, seguiste-me, cara Sofia. Mas terá Platão realmente
querido dizer isto, perguntarás. Queria ele dizer que estas formas
existem numa realidade completamente diferente? Ele não o chegou a dizer
explicitamente, mas alguns dos seus diálogos têm de ser interpretados
desta forma. Vamos tentar seguir a sua argumentação. Um filósofo
procura, como já o dissemos, vir a compreender algo que é eterno e
imutável. Por exemplo, faria pouco sentido escrever um tratado
filosófico acerca da existência de uma determinada bola de sabão. Em
primeiro lugar, dificilmente alguém a poderia examinar bem antes de ter
rebentado. Em segundo lugar, seria provavelmente difícil vender um
tratado filosófico acerca de algo que ninguém viu e que só existiu
durante poucos segundos. Platão achava que tudo o que vemos à nossa
volta na natureza, sim, tudo o que podemos agarrar e tocar pode ser
comparado com a bola de sabão. Porque nada do que existe no mundo dos
sentidos dura. Tu sabes obviamente que todos os homens e animais mais
tarde ou mais cedo morrem e entram em decomposição. Mesmo um bloco de
mármore se desagrega lentamente. ( A
Acrópole está a cair em ruínas, Sofia! É
p. 82
escandoloso, mas é assim). Para Platão, nunca podemos ter um saber
seguro acerca de algo que se transforma.
Daquilo que pertence ao mundo sensível - e que nós podemos
portanto agarrar e tocar -, temos apenas opiniões incertas ou
suposições. Só podemos ter um saber verdadeiro daquilo que conhecemos
com a razão.
Sofia, eu vou explicar isto melhor: um biscoito em forma de
homem pode sofrer tanto ao ser amassado, ao levedar e ao ser cozido que
já não se possa dizer exactamente o que é. Mas depois de eu ter visto
vinte, trinta biscoitos - que podem ser mais ou menos perfeitos -, posso
saber com grande segurança qual é o aspecto da forma dos bolos. Posso
concluí-lo, mesmo que nunca tenha visto a própria forma. Nunca é claro
se seria melhor ver a forma a olho nu, visto que não podemos confiar
sempre nos nossos sentidos. A visão pode variar de homem para homem.
Inversamente, podemos confiar naquilo que a razão nos diz, visto que a
razão é a mesma em todos os homens.
Quando estás numa sala de aula com mais trinta alunos, e o
professor pergunta qual é a cor mais bonita do arco -íris - aí ele tem
certamente muitas respostas diferentes. Mas se ele perguntar quanto é
três vezes oito, toda a turma deveria dar a mesma resposta. Nesse caso,
é a razão que julga, e a razão é de certo modo exactamente o contrário
do opinar e do sentir. Podemos dizer que a razão é eterna e universal,
precisamente porque se pronuncia apenas acerca de realidades eternas e
universais. Platão interessou-se muito por matemática, porque as
verdades matemáticas nunca se alteram. Assim, podemos ter um saber
seguro acerca delas. Mas agora precisamos de um exemplo: imagina que
encontras na floresta uma pinha redonda. Talvez digas que achas que ela
parece redonda
- mas Jorunn afirma que ela é um pouco achatada num dos lados.
(Vocês discutem então!). Não podem ter um conhecimento seguro acerca do
que vêm com os olhos, mas podem saber com toda a segurança que a soma
dos ângulos num círculo perfaz 360". Vocês estão a falar de um círculo
"ideal" que não existe na natureza, mas que vêem muito claramente com a
vossa visão interior. (Vocês falam sobre a forma escondida do bolo
- e não sobre um qualquer biscoito em cima da mesa da cozinha).
Breve resumo: acerca daquilo que percepcionamos ou sentimos podemos ter
apenas opiniões incertas. Mas acerca daquilo que conhecemos com a razão,
podemos atingir um conhecimento seguro. A soma dos ângulos num triângulo
perfaz para toda a eternidade 180". Do mesmo modo, a "ideia" de que
todos os cavalos caminham sobre quatro patas será válida mesmo que todos
os cavalos do mundo sensível ficassem coxos.
p. 83
Uma alma imortal
Vimos que, segundo Platão, a realidade está dividida em duas partes.
Uma parte é "o mundo sensível" - de que só podemos atingir um
conhecimento impreciso e imperfeito, e onde usamos os nossos cinco
(imprecisos e imperfeitos) sentidos. A característica do mundo dos
sentidos é que "tudo flui" e consequentemente nada possui estabilidade.
Nada é no mundo dos sentidos, existe apenas um conjunto de
coisas que nascem e perecem.
A outra parte é "o mundo das ideias" - de que podemos alcançar
um saber certo usando a razão. Este mundo das ideias não pode ser
conhecido através dos sentidos. Em compensação, as ideias (ou formas)
são eternas e imutáveis.
Consequentemente, para Platão, o homem também é um ser dividido
em duas partes. Temos um corpo que "flui". Ele está indissoluvelmente
ligado ao mundo sensível e sofre o mesmo destino que o sensível (por
exemplo, uma bola de sabão). Todos os nossos sentidos estão ligados ao
corpo e são de pouca confiança. Mas nós possuímos também uma "alma
imortal" - ela é a sede da razão. Uma vez que a alma não é material,
pode observar o mundo das ideias. Bem, já disse quase tudo. Mas há mais,
Sofia: HÁ M AI S! Para Platão, a alma já existia antes de se ter
estabelecido no nosso corpo: antigamente, a alma estava no mundo das
ideias. (Estava junto às formas dos biscoitos em cima do armário). Mas
logo que a alma acorda num corpo humano, esquece-se das ideias
perfeitas. Inicia-se então um processo espantoso: quando o homem se
apercebe das formas na natureza, emerge progressivamente na alma uma
vaga recordação. O homem vê um cavalo - mas um cavalo imperfeito (sim,
um cavalo em biscoito!), e isso é o suficiente para despertar na alma
uma recordação vaga do cavalo perfeito que a alma viu outrora no mundo
das ideias. Com isto, surge igualmente uma saudade, um desejo da
verdadeira sede da alma. Platão chamava a este desejo Eros - ou seja
amor.
A alma sente, portanto, um "desejo amoroso" da sua verdadeira
origem. A partir daí, vê o corpo e tudo o que é sensível como imperfeito
e insignificante. A alma deseja voar "de volta" ao mundo das ideias nas
asas do amor.
Desejaria ser libertada da prisão do corpo.
Devo sublinhar que Platão descreve aqui o percurso ideal. Com
efeito, nem todos os homens permitem que a sua alma inicie a viagem de
regresso ao mundo das ideias.
A maior parte dos homens fixa-se nos
p. 84
"reflexos" das ideias no mundo sensível. Vêem um cavalo
- e outro. Mas não vêem aquilo de que todos os cavalos são
apenas uma cópia. (Entram de rompante na cozinha e atiram-se aos
biscoitos sem perguntar de onde é que vêm). Platão descreve o percurso
dos filósofos. Podemos ler a sua filosofia como descrição da actividade
de um filósofo. Quando vês uma sombra, Sofia, pensas também que há algo
que está a fazer sombra. Vês a sombra de um animal. Talvez seja um
cavalo, pensas tu, mas não consegues ter a certeza absoluta. Então,
voltas-te e vês o verdadeiro animal - que é obviamente de longe mais
bonito e nítido nos contornos do que a sua inconstante sombra. P OR I S
S O, SEGU N D O PL ATÄ O, T O D O S O S FE NÓME N O S D A
N ATUREZ A SÄ O MER A S S OMBR A S
D A S F ORM A S OU I DEI A S ETER N A S. Porém, a maioria das
pessoas está satisfeita com a sua vida entre as sombras.
Não pensam que há algo que provoca as sombras. Acham que as
sombras são tudo o que existe - e por isso não tomam as sombras como
sombras.
Deste modo, esquecem também a imortalidade das suas almas.
A saída da escuridão da caverna
Platão conta uma alegoria que ilustra precisamente esta reflexão.
Denominamo-la a alegoria da caverna. Vou contá-la com as minhas
próprias palavras. Imagina homens que vivem numa caverna subterrânea.
Estão virados de costas para a entrada, presos com correntes, pelas mãos
e pelos pés; por isso só podem olhar para a parede da caverna. Por
detrás deles há um muro alto, e atrás desse muro passam por sua vez
vultos humanos que levam diversos objectos por cima do muro. Uma vez que
atrás desses objectos arde uma fogueira, eles provocam sombras trêmulas
na parede da caverna. A única coisa que os homens da caverna podem ver é
portanto este "teatro de sombras". Estão ali desde que nasceram e para
eles as sombras são tudo o que existe. Imagina agora que um destes
habitantes da caverna consegue libertar-se da prisão. Primeiro,
questiona-se de onde é que vêm estas imagens na parede da caverna. O
que é que achas que sucede quando ele se volta para as figuras que são
levadas por cima do muro? De início, fica ofuscado pela luz brilhante. A
visão dos objectos com contorno nítido ofusca-o
- até então, ele vira apenas as suas sombras. Se pudesse subir
pelo muro e passar o fogo até sair para fora da caverna, ficaria ainda
mais encandeado. Mas depois de ter esfregado os olhos veria também como
tudo é belo. Pela primeira vez, veria cores e contornos nítidos. Veria
animais e flores verdadeiros - dos quais as figuras na caverna
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eram cópias. Mas nesse momento, perguntar-se-ia de onde é que os
animais e as plantas vêm. Vê o sol no céu e compreende que o sol dá vida
às flores e aos animais na natureza, da mesma forma que o fogo da
caverna fazia com que ele pudesse ver as sombras.
O feliz habitante da caverna poderia sair a correr para a
natureza e alegrar-se com a sua liberdade recém adquirida. Mas ele
pensa em todos aqueles que ainda estão na caverna. Por isso, regressa.
Logo que chega lá, tenta explicar aos outros habitantes da caverna que
as sombras na parede são apenas cópias trêmulas de coisas verdadeiras,
mas ninguém acredita nele. Eles apontam para a parede da caverna e
afirmam que o que aí vêem é tudo o que existe. Por fim, matam-no.
Aquilo que Platão descreve na alegoria da caverna é o percurso
do filósofo, desde as opiniões confusas até às ideias reais por detrás
da natureza. Pensa também em
Sócrates, que os "habitantes da caverna" assassinaram por
destruir as opiniões habituais e por lhes querer mostrar o caminho para
o verdadeiro conhecimento. Desta forma, a alegoria da caverna torna-se
uma imagem da coragem e da responsabilidade pedagógica do filósofo. Para
Platão, a relação entre a escuridão da caverna e a natureza lá fora
corresponde à relação entre os objectos da natureza e o mundo das
ideias. Ele não queria dizer que a natureza era escura e triste, mas que
ela é escura e triste em comparação com a claridade das ideias.
A fotografia de uma rapariga bonita também não é sombria e
triste, pelo contrário, mas é apenas uma fotografia.
O Estado dos filósofos
Encontramos a alegoria da caverna de Platão no diálogo " A República".
Platão descreve nessa obra também o Estado ideal, isto é, ele imagina um
Estado-modelo - ou aquilo que designamos por "Estado utópico".
Resumidamente, podemos dizer que, para Platão, o Estado deve ser
governado por filósofos. Toma como ponto de partida o homem individual.
Segundo Platão, o corpo humano é constituído por três partes, a
saber: a cabeça, o peito e o abdómen. A cada uma destas partes
corresponde uma faculdade. À cabeça corresponde a razão, ao peito a
vontade, ao abdómen o prazer ou a concupiscência. A cada uma destas
faculdades pertence ainda um ideal ou uma virtude. A razão deve procurar
a sabedoria, a vontade deve mostrar coragem, e a concupiscência deve ser
refreada, para que o homem possua temperança. Só
p. 86
quando as três partes actuam em consonância temos um homem harmonioso ou
íntegro. Na escola, as crianças têm de aprender primeiro a refrear a sua
concupiscência, depois é desenvolvida a coragem, e por fim devem
desenvolver a razão e adquirir a sabedoria. Platão imagina um Estado que
é organizado exactamente como um homem. Assim como o corpo possui
"cabeça", "peito" e "abdómen", o Estado possui soberanos, guardiões (ou
soldados) e os comerciantes (grupo ao qual pertencem, além dos
comerciantes, os artesãos e os camponeses). Torna-se claro que Platão
toma como modelo a ciência médica grega. Assim como um homem são e
harmonioso apresenta equilíbrio e temperança, aquilo que caracteriza um
Estado justo é o facto de cada um conhecer o seu lugar no todo. Tal como
a filosofia de Platão em geral, também a sua filosofia política está
impregnada de racionalismo. Decisivo para a criação de um bom Estado é
ele ser dirigido com razão. Tal como a cabeça dirige o corpo, são os
filósofos que têm de governar a sociedade. Faço agora uma apresentação
resumida da relação entre os três componentes do homem e do Estado:
Corpo Alma cabeça razão peito vontade abdómen concupiscência
Virtude Estado sabedoria soberano coragem guardiões temperança artesãos
O Estado ideal de Platão pode fazer lembrar o antigo sistema
indiano de castas, onde cada um tinha a sua função específica para o bem
do todo. Desde o tempo de Platão - e ainda antes - o sistema indiano de
castas conhece exactamente esta tripartição entre a casta governante (ou
a casta dos sacerdotes), a casta guerreira e a casta dos artesãos. Hoje
diríamos talvez que o Estado de Platão é um Estado totalitário. Devemos
reparar que ele era da opinião de que as mulheres poderiam governar o
Estado tal como os homens, precisamente porque os soberanos devem
governar a cidade -Estado em função da sua razão. Segundo Platão, as
mulheres tinham tanta racionalidade como os homens, se recebessem a
mesma formação, e se fossem ainda libertadas do cuidado das crianças e
das tarefas domésticas. Platão queria abolir nos soberanos e nos seus
guardiões a família e a propriedade privada. A formação das crianças era
demasiado importante para ser deixada aos indivíduos. A educação das
crianças tinha de estar a cargo do Estado. (Platão foi o primeiro
filósofo que se pronunciou a favor de jardins infantis e escolas
públicas).
p. 87
Depois de ter tido algumas desilusões políticas, Platão escreveu
o diálogo As Leis.
Descreve nele o "Estado de lei" como o segundo melhor Estado e
introduz de novo a propriedade privada e os laços familiares. Desta
forma, a liberdade das mulheres é restringida. Mas ele diz também que um
Estado que não educa e forma mulheres é como um homem que apenas
exercita o seu braço direito. Podemos basicamente dizer que Platão tinha
uma opinião positiva das mulheres - pelo menos para o seu tempo. No
diálogo " O Banquete" é uma mulher, Diotima, que revela a Sócrates o seu
saber filosófico. Isto era Platão, Sofia.
Desde há mais de dois mil anos, os homens discutem e criticam a
sua singular teoria das ideias. O primeiro foi seu discípulo na
Academia. Chamava-se " Aristóteles" - o terceiro grande
filósofo de Atenas. Mas não digo mais nada por hoje!
Enquanto Sofia estivera sentada no tronco, o sol elevara-se a oriente
sobre a colina. Espreitara por cima do horizonte precisamente no momento
em que estava a ler sobre o filósofo que saíra da caverna e piscara os
olhos ao ver a luz brilhante no exterior. Ela mesma tinha a sensação de
sair de uma gruta subterrânea. Sofia julgava ver a natureza de um modo
completamente novo depois de ter lido aquilo sobre Platão. Tinha a
sensação de ter sido cega às cores. Vira talvez sombras, mas não as
ideias claras.
Não tinha a certeza de que Platão tivesse razão em tudo o que
afirmava sobre os arquétipos eternos, mas pareceu-lhe muito bela a
ideia de que todas as coisas vivas eram apenas uma cópia imperfeita da
forma eterna no mundo das ideias. Afinal, era verdade que todas as
flores e árvores, homens e animais eram "imperfeitos". Tudo o que via à
sua volta era tão belo e vivo que Sofia pensou que tinha de esfregar os
olhos. Mas nada do que via era constante. No entanto, daí a cem anos
haveria ali as mesmas flores e animais. Mesmo que cada animal e cada
flor morresse e fosse esquecido, algo "faria lembrar" o aspecto de tudo.
Sofia admirava esta obra maravilhosa quando, subitamente, um
esquilo saltou para o tronco de um pinheiro, rodopiou e desapareceu por
entre os ramos. Já te vi por aqui, pensou Sofia. Sabia que provavelmente
não tinha visto aquele esquilo - ela vira, por assim dizer, a mesma
"forma". Porque é que Platão não havia de ter razão ao dizer que ela
vira outrora no mundo das ideias o "esquilo" eterno - muito antes de a
sua alma se ter estabelecido num corpo?
p. 88
Seria verdade que ela já vivera antes? Teria a sua alma existido
antes de ter recebido um corpo que tinha agora de arrastar consigo?
Seria verdade que ela tivesse em si um grão de ouro - uma jóia
que o tempo não consumia, uma alma que viveria depois de o seu corpo
envelhecer e morrer? .. linha 19, página a negro 70 a 88 - isilda
p. 89
A Cabana Do Major
"... a rapariga do espelho piscou ambos os olhos..."
Eram apenas sete e um quarto. Sofia não tinha de ir a correr para casa.
A mãe dormiria certamente mais duas horas; ao domingo era sempre
preguiçosa.
Deveria ela avançar mais no bosque e tentar encontrar
Alberto Knox? Mas porque é que o cão rosnara tão furiosamente
contra ela?
Sofia levantou-se do tronco e foi pelo carreiro do bosque
através do qual Hermes correra. Trazia na mão o envelope amarelo com a
longa carta sobre Platão. Por duas vezes o carreiro se bifurcou, mas ela
seguiu sempre o caminho principal.
Os pássaros chilreavam por toda a parte - nas árvores e pelo ar,
nos arbustos e no matagal. Estavam diligentemente absortos na sua
toilete matinal. Para eles, não havia distinção entre os dias da semana
e o fim-de-semana. Mas quem é que ensinara aos pássaros tudo aquilo?
Teria cada um um pequeno computador dentro de si, um "programa" que lhes
dizia o que tinham a fazer?
De início, o caminho conduzia ao cimo de um pequeno penhasco,
depois, descia abruptamente entre pinheiros altos. Daí em diante, o
bosque era tão denso que as árvores deixavam ver apenas alguns metros
adiante.
De repente, descobriu entre os troncos dos pinheiros qualquer
coisa azul. Era um lago. Nesse lugar, o carreiro seguia noutro sentido,
mas
Sofia continuou a andar por entre as árvores. Não sabia ao certo
porquê, mas os seus pés conduziam-na naquele sentido.
O lago não era maior do que um campo de futebol. Defronte a ela,
na outra margem, Sofia viu uma cabana pintada de vermelho numa pequena
clareira rodeada de bétulas brancas. Da chaminé elevava-se um fio de
fumo.
Sofia desceu até à água.
O solo estava muito húmido em quase todos os sítios, mas
descobriu rapidamente um barco a remos. Estava puxado para terra. Dentro
do barco havia um par de remos.
p. 90
Sofia olhou ao seu redor. Parecia-lhe impossível, indo à volta
do lago, alcançar a cabana com os pés secos. Resoluta, dirigiu-se para
o barco e empurrou-o para a água. Subiu para bordo, colocou os remos
nos toletes e remou através do lago. Depressa atingiu a outra margem.
Sofia desceu para terra e tentou puxar o barco para um lugar seco. A
margem era aí muito mais íngreme do que do outro lado.
Sofia olhou uma vez para trás e depois subiu em direcção à
cabana. Estava assustada consigo mesma. Como é que ousara fazer isto?
Não o sabia; qualquer coisa "estranha" parecia guiá-la.
Sofia chegou à porta e bateu. Ficou algum tempo à espera, mas
ninguém abriu. Girou com cuidado o puxador e a porta abriu-se.
- Com licença! - disse
- está alguém em casa?
Sofia entrou numa sala grande. Não se atrevia a fechar a porta.
Era óbvio que alguém morava ali. Sofia ouviu o crepitar de um fogão de
lenha. Logo, alguém estivera lá há pouco tempo. Em cima de uma grande
escrivaninha, havia uma velha máquina de escrever, alguns livros, duas
esferográficas e muito papel. Em frente à janela que dava para o lago,
havia uma mesa e duas cadeiras. De resto, não havia muitos móveis;
apenas uma parede estava coberta com uma estante cheia de livros. E
acima de uma cómoda branca, estava pendurado um grande espelho redondo
com uma moldura de latão. Parecia ser muito antigo.
Numa parede, estavam dois quadros. Um era uma pintura a óleo, e
representava uma casa branca que distava alguns metros de uma pequena
enseada com um barracão vermelho para os barcos. Entre a casa e o
barracão havia um jardim ligeiramente inclinado com uma macieira, alguns
arbustos espessos e rochedos.
As bétulas rodeavam o jardim como uma coroa. A pintura chamava
-se "Bjerkely".
Ao lado do quadro, havia um velho retrato de um homem que estava
sentado com um livro no regaço numa cadeira perto da janela e ao fundo
havia igualmente uma enseada com árvores e rochedos. A pintura devia ter
alguns séculos - e chamava-se "Berkeley", O pintor do retrato chamava
-se Smibert. Berkeley e Bjerkely... não era estranho?
Sofia continuou a olhar em seu redor na cabana. Da sala de
estar, uma porta conduzia a uma pequena cozinha. Aí, a louça fora
recentemente lavada. Pires e copos estavam empilhados sobre um pano de
linho, e alguns pires apresentavam ainda vestígios de detergente. No
chão, havia uma malga de metal com restos de comida. Logo, ali vivia
também um animal, um cão ou um gato.
p. 91
Sofia voltou para a sala de estar. Uma outra porta conduzia a um
pequeno quarto de dormir. À frente da cama estavam dois cobertores
amarrotados. Sofia descobriu nos cobertores alguns pêlos amarelos. Esta
era a prova;
Sofia estava totalmente convencida de que Alberto Knox e Hermes
moravam naquela cabana.
Quando voltou à sala de estar, Sofia aproximou-se do espelho
acima da cómoda. A superfície do vidro era opaca e irregular, por isso o
seu reflexo era pouco nítido.
Sofia começou a fazer caretas para si mesma - tal como o fazia
de vez em quando em casa, na casa de banho. O seu reflexo no espelho
imitava-a em tudo, mas também não se esperaria outra coisa.
De repente, algo estranho aconteceu - por um milésimo de
segundo, Sofia viu, muito claramente, que a rapariga do espelho piscava
ambos os olhos. Sofia recuou sobressaltada. Se ela própria tivesse
piscado os dois olhos
- como é que poderia ter "visto" a outra a piscar os olhos? E
mais uma vez, a rapariga do espelho parecia piscar os olhos para Sofia.
Parecia que queria dizer: eu estou a ver-te, Sofia. Estou aqui do outro
lado.
Sofia sentiu o coração martelar-lhe no peito. Simultaneamente,
ouviu ao longe um cão a ladrar. Era com certeza Hermes! Tinha de se ir
embora. Reparou então numa carteira verde sobre a cómoda, por baixo do
espelho de latão.
Sofia levantou-a e abriu-a cautelosamente. A carteira continha
uma nota de cem coroas, outra de cinqüenta e... um cartão de estudante.
No cartão de estudante havia uma fotografia de uma rapariga loira.
Abaixo da fotografia lia-se "Hilde Mõller Knag" e "Escola de
Lillesand".
Sofia sentiu um arrepio pela espinha. Depois, ouviu de novo o
cão ladrar. Tinha de sair dali.
Ao passar pela mesa, descobriu um envelope branco entre os
numerosos livros e papéis. No envelope estava escrito " Sofia".
Sem reflectir um segundo, apoderou-se da carta e pô-la dentro
do grande envelope amarelo, junto à carta sobre Platão. Precipitou-se
para fora da cabana e fechou a porta. Lá fora, ouvia o cão ladrar mais
alto. E viu então que o barco tinha desaparecido. Passados um ou dois
segundos, descobriu-o no meio do pequeno lago. Junto ao barco flutuava
um remo. Isso acontecera porque ela não tinha conseguido arrastar o
barco para terra. Ouviu de novo o cão ladrar, e ouviu em seguida uma
outra coisa que se mexia entre as árvores, no outro lado do lago.
Sofia não pensou duas vezes. Com o grande envelope na mão,
correu para os arbustos atrás da cabana. Pouco depois teve de atravessar
p. 92
um pântano, e por várias vezes se afundou na água até ao meio da barriga
da perna. Mas tinha mesmo de continuar. Tinha de chegar a casa. Passado
um pouco, deu com um caminho. Seria esse o caminho pelo qual viera?
Sofia parou e torceu o vestido. Só então lhe vieram as lágrimas aos
olhos.
Como é que podia ter sido tão imbecil? O mais grave de tudo era
a questão do barco.
Não conseguia esquecer a imagem do barco a remos e do remo à
deriva no lago. Era tudo tão desagradável, tão horrível...
Nessa altura, o professor de filosofia já tinha certamente
regressado ao lago. Ele precisava naturalmente do barco para chegar a
casa.
Sofia sentia-se uma imbecil, mas não o fizera de propósito.
O envelope! Isso era mais grave ainda. Porque é que ela trouxera
o envelope? Porque o seu nome estava escrito nele, obviamente; por isso,
num certo sentido, pertencia-lhe. No entanto, sentiu-se uma ladra. E
depois disso, era óbvio que ela estivera na cabana.
Sofia tirou uma folha do envelope que tinha escrito:
" O que é que vem primeiro
- a galinha ou a ideia "galinha"? Terá o homem ideias inatas?
Qual é a diferença entre uma planta, um animal e um homem?
Porque é que chove?
Do que é que o homem necessita para viver uma vida feliz?"
Nesse momento, Sofia não conseguia reflectir sobre estas
perguntas, mas calculou que tinham a ver com o filósofo seguinte. Não
era aquele que se chamava Aristóteles?
Quando, após aquela interminável corrida pelo bosque, descobriu
a sebe, sentiu-se como um náufrago que alcança a terra a nado. Era
estranho ver a sebe do outro lado. Só quando entrou agachada na toca,
olhou para o relógio. Eram dez e meia. Deixou o envelope grande junto
aos outros papéis na caixa dos biscoitos. Enfiou nos "collants" a folha
com as novas perguntas.
Quando Sofia entrou, a mãe estava ao telefone. Pousou,
entretanto, o auscultador.
- Onde é que estavas metida, Sofia?
- Eu... dei um passeio... no bosque - balbuciou Sofia.
- Estou a ver que sim.
Sofia ficou calada; via como a água pingava do seu vestido.
- Tenho que telefonar a Jorunn...
- Jorunn?
p. 93
A mãe foi buscar algo seco para ela vestir. Sofia conseguiu a
muito custo esconder a folha do seu professor de filosofia. Sentaram-se
na cozinha e a mãe preparou o cacau.
- Estiveste com ele? - perguntou.
- Com ele?
Sofia pensava apenas no professor de filosofia.
- Com "ele", sim. Com o teu... "coelho".
Sofia abanou a cabeça.
- O que é que vocês fazem quando estão juntos? Porque é que
estás tão molhada?
Sofia estava muito séria e olhava fixamente para o tampo da
mesa, mas dentro de si não conseguiu deixar de sorrir. Pobre mamã, como
se preocupava!
Abanou de novo a cabeça. Vieram então as perguntas em série.
- Agora, quero ouvir toda a verdade! Estiveste fora esta noite?
Entraste às escondidas depois de eu ter ido para a cama? Tu tens apenas
catorze anos, Sofia, quero saber com quem é que tu andas!
Sofia desatou a chorar e começou a contar. Ainda tinha medo, e
quando se tem medo diz-se geralmente a verdade. Sofia contou que tinha
acordado cedo, e que tinha dado um passeio no bosque. Falou sobre a
cabana e o barco e também sobre o estranho espelho. Mas conseguiu
ocultar tudo o que tinha a ver com o curso por correspondência. Também
não mencionou a carteira verde. Não sabia bem porquê, mas tinha de
guardar a história de Hilde para si.
A mãe abraçou-a. Sofia compreendeu que já acreditava nela.
- Eu não tenho nenhum namorado - soluçou - Eu só disse isso para
que tu não tivesses que te preocupar por causa do coelho branco.
- Então foste mesmo até à cabana do major... - disse a mãe com
um ar pensativo.
- Até à cabana do major?
- Sofia arregalou os olhos.
- A pequena cabana que tu descobriste no bosque chama-se a
"cabana do major". Há muitos, muitos anos, viveu aí um velho major. Ele
era um pouco excêntrico. Mas agora não vamos pensar nisso.
Desde essa altura, a cabana está desocupada.
- Isso é o que tu pensas.
Agora mora lá um filósofo.
- Não, não comeces de novo a fantasiar.
Sofia estava sentada no seu quarto e reflectia sobre o que lhe
acontecera. A sua cabeça era como um circo barulhento com elefantes
pesados e palhaços cómicos, trapezistas ousados e macacos amestrados.
Mas havia uma imagem que voltava sempre: um pequeno barco
p. 94
a remos e um remo flutuavam num lago no meio de um bosque
- e alguém precisava do barco para regressar a casa... Ela tinha
a certeza de que o professor de filosofia não lhe queria mal e, quando
percebesse que Sofia tinha visitado a cabana, talvez lhe perdoasse, mas
ela não cumprira o prometido. Era assim que agradecia. Como é que podia
remediar isso?
Sofia agarrou no papel de carta cor-de-rosa e escreveu:
" Caro filósofo: Estive na cabana no domingo, de manhã. Eu queria muito
encontrar-te, para discutir melhor alguns problemas filosóficos. Por
enquanto, sou uma fã de Platão, mas não tenho a certeza se ele tinha
razão ao afirmar que as ideias ou os arquétipos existem numa outra
realidade. Existem naturalmente na nossa alma, mas isso é completamente
diferente, segundo a minha opinião actual. Infelizmente, devo também
confessar que ainda não estou suficientemente convencida de que a nossa
alma seja realmente imortal. Pessoalmente, não tenho quaisquer
recordações da minha vida anterior. Se me pudesses convencer de que a
alma da minha falecida avó está bem no mundo das ideias, eu ficaria
muito grata.
Na verdade, não comecei esta carta, que vou deixar com um torrão
de açúcar, dentro de um envelope cor-de-rosa, por amor da filosofia.
Queria apenas pedir desculpa por te ter desobedecido. Tentei
puxar o barco para terra, mas pelos vistos não tive força suficiente.
Além disso, é possível que uma onda violenta tenha levado o barco de
volta para a água. Espero que tenhas chegado a casa enxuto. Caso
contrário, podes consolar-te, sabendo que eu fiquei molhada até aos
ossos e que provavelmente vou apanhar uma forte constipação, mas sou eu
a culpada por isto ter acontecido.
Não toquei em nada na cabana, mas infelizmente caí na tentação
quando vi o envelope com o meu nome. Não porque eu quisesse roubar
alguma coisa, mas uma vez que o meu nome estava escrito na carta, fiquei
confusa e a pensar durante alguns segundos que a carta me pertencia. Eu
peço sinceramente as minhas desculpas, e prometo que não te hei-de
desiludir de novo.
P S. Vou reflectir imediatamente sobre todas as perguntas. P S2. O
espelho de latão sobre a cómoda branca é um espelho normal, ou é um
espelho mágico? Pergunto apenas porque não estou muito habituada a que o
meu reflexo no espelho pisque os olhos.
Cumprimentos cordiais da tua aluna dedicada, S OFI A"
p. 95
Sofia leu a carta duas vezes antes de a colocar no envelope. Não
era tão cerimoniosa como a anterior. Antes de ir à cozinha para tirar um
torrão de açúcar, pegou uma vez mais na folha com os problemas. " O que
é que vem primeiro
- a galinha ou a ideia 'galinha'?" A pergunta era tão difícil
como o velho enigma acerca da galinha e do ovo. Sem ovo, não há galinha,
mas sem galinha também não há ovo. Seria realmente tão difícil descobrir
o que é que existia primeiro, se a galinha ou a "ideia" galinha?
Sofia sabia o que Platão teria dito. Ele teria dito que a ideia
"galinha" existira no mundo das ideias muito antes de haver uma galinha
no mundo sensível. Segundo Platão, a alma tinha visto a ideia "galinha"
antes de se ter estabelecido num corpo. Mas não era precisamente nesse
ponto que Sofia tinha pensado que Platão poderia ter-se enganado? Um
homem que nunca viu uma galinha viva, ou uma imagem de uma galinha,
também não pode ter nenhuma "ideia" de uma galinha. E com isto, tinha
chegado à pergunta seguinte. "Terá o homem ideias inatas?" Era muito
duvidoso, pensava Sofia. Dificilmente conseguia imaginar que um bebé
recém-nascido possuísse muitas ideias. Não se podia ter a certeza
absoluta, porque o facto de não falar não queria dizer que não houvesse
quaisquer ideias na sua cabeça. Porém, temos de ver as coisas no mundo,
antes que possamos saber algo sobre elas. " Qual é a diferença entre uma
planta, um animal e um homem?". Sofia compreendeu imediatamente que
havia diferenças bastante claras. Por exemplo, não acreditava que uma
planta tivesse uma vida mental muito complexa. Alguma vez ouvira falar
de uma campainha com um desgosto amoroso? Uma planta cresce, alimenta
-se e produz pequenas sementes, através das quais se multiplica. E com
isso estava dito quase tudo acerca da natureza das plantas.
Sofia apercebeu-se de que o que dissera sobre as plantas também
era válido para os animais e para os homens. Mas os animais tinham
outras características. Por exemplo, podiam mover-se (alguma vez uma
rosa teria participado numa corrida de 60 metros?). Era mais difícil
indicar a diferença entre um homem e um animal. Os homens podiam pensar,
mas não o conseguiriam igualmente os animais? Sofia estava convencida de
que o seu gato Sherekan podia pensar. Pelo menos conseguia comportar-se
de uma forma calculada. Mas conseguiria reflectir sobre questões
filosóficas? Podia o gato reflectir sobre a diferença entre uma planta,
um animal e um homem? Dificilmente! Um gato podia certamente estar
alegre ou triste
- mas questionar-se-ia o gato sobre a existência de Deus ou
sobre a imortalidade da alma? Sofia achou isto extremamente improvável.
p. 96
Neste, eram válidas as mesmas considerações feitas sobre um
recém-nascido e sobre as ideias inatas. Era tão difícil discutir sobre
estas ideias com um gato como com um bebé recém-nascido. "Porque é que
chove?" Sofia encolheu os ombros. Certamente porque o mar se evapora e
porque as nuvens se condensam em chuva. Não o aprendera já na terceira
classe? Também se podia dizer que chovia para que os animais e as
plantas pudessem crescer. Mas seria verdade? Um aguaceiro teria uma
intenção?
O último problema tinha de qualquer forma a ver com intenções. "
De que é que o homem necessita para viver uma vida feliz?" O professor
de filosofia já tinha escrito isso no início do curso. Todos os homens
precisam de comida, calor, amor e atenção. Esta era a condição básica
para uma vida feliz. Em seguida, tinha apontado para o facto de todos
precisarem de respostas a determinadas questões filosóficas. Para isso,
era bastante importante ter um emprego de que se gostasse. Uma pessoa
que odiasse o trânsito, dificilmente seria feliz como condutor de táxi.
E se se detestava o estudo, ser professor não seria certamente uma
escolha profissional inteligente.
Sofia adorava animais, e por isso podia facilmente imaginar
tornar-se veterinária.
De qualquer modo, não achava necessário ganhar um milhão no
totoloto para ter uma boa vida. Antes pelo contrário. Havia
inclusivamente o ditado: " O ócio é a origem de todos os vícios".
Sofia ficou no quarto, até que a mãe a chamou para comer. Tinha
grelhado costeletas e cozido batatas. Que delícia! Também tinha acendido
uma vela. Como sobremesa, havia creme de amoras.
Conversaram sobre diversos assuntos. A mãe perguntou como é que
Sofia queria festejar o seu dia de anos. Faltavam poucas semanas.
Sofia encolheu os ombros.
- Queres convidar alguém?
Quero dizer, desejas fazer alguma festa?
- Talvez...
- Podemos convidar a Marta e a Ana Maria... e Hege... e Jorunn,
evidentemente. E talvez Jõrgen... Mas isso tens de ser tu a decidir.
Sabes uma coisa - eu lembro-me perfeitamente de quando fiz os meus
quinze anos. E ainda não me parece ter sido há muito tempo.
Nesse tempo, já me sentia adulta, Sofia. Não é estranho? Não
acho que me tenha modificado muito desde essa altura.
- Tu não te modificaste, nada se "modifica". Apenas te
desenvolveste, tornaste-te mais velha...
- Mm... sim, isso soa muito adulto. Só acho que passou tudo tão
depressa...
p. 97
ARISTÓTELES
"... um homem meticuloso e metódico que queria pôr em ordem os conceitos
dos homens..."
Enquanto a mãe dormia a sesta, Sofia foi para a toca. Pôs um torrão de
açúcar no envelope cor-de-rosa e escreveu "Para Alberto".
Não tinha chegado nenhuma carta nova, mas passados poucos
minutos, Sofia ouviu o cão aproximar-se.
- Hermes! - chamou
Sofia; em seguida, Hermes entrou na toca, com um grande envelope
amarelo na boca.
Sofia pôs-lhe um braço à volta; ele arfava e ofegava.
Sofia pegou no envelope cor-de-rosa com o torrão de açúcar e
colocou-o na boca de Hermes. Ele saiu da toca e desapareceu no bosque.
Sofia estava um pouco nervosa ao abrir o envelope. Haveria algo
acerca da cabana e do barco?
O envelope continha, como era habitual, folhas juntas com um
clipe. Mas havia também uma folha solta. Na folha estava escrito:
" Cara detective! Ou cara assaltante, para ser mais preciso. O incidente
já foi notificado... Não, não estou muito zangado. Se és assim tão
curiosa quando se trata de encontrar respostas para os problemas da
filosofia, isso é muito promissor. A maçada é que agora tenho de mudar
de casa. Bom, é obviamente por minha culpa. Eu devia ter sabido que tu
és uma pessoa que quer examinar as coisas a fundo.
Cumprimentos cordiais do
Alberto"
Sofia respirou fundo. Ele não estava aborrecido. Mas porque é
que tinha de mudar de casa? Pegou nas folhas grandes e correu para o seu
quarto. Era melhor que estivesse em casa quando a mãe acordasse. Pouco
depois, já estava confortavelmente estendida na cama. Queria ler acerca
de Aristóteles.
p. 98
Filósofo e cientista
Cara Sofia! Ficaste certamente espantada com a teoria das ideias
de Platão.
Não és a primeira. Não sei se aceitaste tudo com facilidade ou
se fizeste alguns reparos críticos. Mas se fizeste reparos críticos,
podes estar certa de que as mesmas objecções foram levantadas já por "
Aristóteles" (384 -322 a. C.). Ele foi durante vinte anos aluno na
Academia de Platão.
Aristóteles não era um ateniense. Era natural da Macedónia, mas
foi para a
Academia quando Platão tinha 61 anos. O pai era um médico
reconhecido - ou seja, um cientista. Este pano de fundo já nos diz algo
sobre o projecto filosófico de
Aristóteles. Aquilo que o interessava acima de tudo era a
natureza viva. Não foi apenas o último grande filósofo grego, foi também
o primeiro grande biólogo da Europa.
Se quisermos formular tudo de um modo um tanto exagerado,
podemos dizer que Platão estava tão concentrado nas formas ou "ideias"
eternas que mal reparava nas transformações da natureza. Aristóteles,
pelo contrário, interessava-se precisamente pelas transformações - ou
aquilo que nós hoje designamos por processos físicos.
Se quisermos exagerar ainda mais, podemos dizer que Platão se
afastava do mundo sensível e só distinguia passageiramente aquilo que
vemos à nossa volta. (Ele queria sair da caverna! Queria olhar para o
eterno mundo das ideias!). Aristóteles fazia exactamente o inverso:
dirigia-se à natureza e estudava peixes e rãs, anémonas e papoilas.
Podes dizer que Platão usou apenas o seu entendimento; Aristóteles, por
seu lado, usou também os sentidos.
Até na sua maneira de escrever encontramos claras diferenças.
Enquanto Platão era poeta e criador de mitos, os textos de Aristóteles
são secos e pormenorizados como uma enciclopédia. Em compensação, na
origem de muitas coisas acerca das quais ele escreve, há estudos
naturalistas intensivos.
Na Antiguidade são referidos mais de 170 títulos que Aristóteles
terá escrito. Hoje, conservam-se 47 textos. Não se trata de livros
acabados. A maior parte dos textos de Aristóteles são constituídos por
apontamentos para as lições. Mesmo no tempo de Aristóteles, a filosofia
era sobretudo uma actividade oral.
A importância de Aristóteles para a cultura europeia não reside
apenas no facto de ele ter criado a linguagem técnica que ainda hoje as
diversas ciências utilizam. Ele foi o grande sistemático que fundou e
ordenou as diversas ciências.
p. 99
Como Aristóteles escreveu sobre todas as ciências, vou tratar
apenas de algumas das áreas mais importantes.
Dado que falei tanto de Platão, deves saber primeiro como é que
Aristóteles argumenta contra a teoria das ideias de Platão. Depois,
vamos ver como é que ele concebe a sua própria filosofia da natureza.
Aristóteles recapitulou aquilo que os filósofos da natureza antes dele
disseram. Vamos ver como é que ele ordena os nossos conceitos e funda a
lógica como ciência. Por fim, vou falar ainda um pouco da visão de
Aristóteles acerca do homem e da sociedade. Se aceitares estas
condições, só precisamos de arregaçar as mangas e começar.
" Não há ideias inatas"
Tal como os filósofos anteriores, também Platão queria encontrar algo
eterno e imutável no meio de todas as transformações. Deste modo,
encontrou as ideias perfeitas, que são superiores ao mundo sensível.
Além disso, para Platão, estas ideias eram mais reais do que todos os
fenómenos na natureza. Primeiro, vinha a ideia "cavalo" - em seguida,
todos os cavalos do mundo sensível, que galopavam como cópias na parede
de uma caverna. Logo, a ideia "galinha" veio antes da galinha e do ovo.
Aristóteles achava que Platão tinha posto tudo às avessas.
Estava de acordo com o seu professor em que o cavalo particular "flui",
e que nenhum cavalo vive eternamente. Também estava de acordo em que a
forma do cavalo é em si eterna e imutável. Mas a "ideia" cavalo é, para
ele, apenas um conceito que nós homens formámos, depois de termos visto
um determinado número de cavalos. Para Aristóteles, a "forma" cavalo
consiste nas características do cavalo - diríamos hoje na "espécie"
cavalo. Vou precisar: pela "forma" cavalo, Aristóteles designa aquilo
que é comum a todos os cavalos. E neste caso, a imagem da forma do
biscoito já não é válida, porque as formas existem independentemente do
biscoito particular.
Aristóteles não acreditava que essas formas, por assim dizer,
existissem na sua própria prateleira na natureza. Para Aristóteles, as
"formas" residem nas próprias coisas como qualidades específicas das
coisas.
Aristóteles também não concorda com Platão em que a ideia
"galinha" precede a galinha. Aquilo a que Aristóteles chama a "forma"
galinha, reside na forma das qualidades específicas de cada galinha -
por exemplo, pôr ovos. Assim, a galinha em si e a "forma" galinha são
tão inseparáveis como a alma e o corpo.
p. 100
Com isto, dissemos basicamente quase tudo acerca da crítica de
Aristóteles à teoria das ideias de Platão. Mas deves notar que estamos a
falar de uma viragem drástica no pensamento. Para Platão, o grau máximo
de realidade é o que pensamos com a razão. Para Aristóteles, é
igualmente evidente que o grau máximo de realidade é o que
percepcionamos ou sentimos com os sentidos. Segundo Platão, aquilo que
vemos à nossa volta na natureza é apenas reflexo de algo que existe no
mundo das ideias - e consequentemente na alma do homem. Aristóteles
dizia exactamente o contrário: aquilo que está na alma do homem é apenas
reflexo dos objectos da natureza. O mundo real é a natureza, segundo
Aristóteles, enquanto Platão fica preso a uma concepção mítica
do mundo que confunde as representações do homem com o mundo real.
Aristóteles aponta para o facto de que nada existe na
consciência que não tenha existido primeiro nos sentidos. Platão poderia
ter dito que não há nada na natureza que não tenha existido primeiro no
mundo das ideias.
Desta forma, Platão duplicou o número de coisas, segundo
Aristóteles. Ele explicara o cavalo particular recorrendo à ideia
"cavalo".
Que tipo de explicação é esta, Sofia? Isto é, de onde vem a
ideia "cavalo"? Existirá ainda um terceiro cavalo - do qual a ideia
"cavalo" é por sua vez apenas uma cópia?
Aristóteles defendia que tudo o que temos em pensamentos e em
ideias chegou à nossa consciência através daquilo que vimos e ouvimos.
Mas também temos uma razão inata. Temos uma faculdade inata de ordenar
todas as impressões sensíveis em diferentes grupos e classes. Assim
nascem conceitos como "pedra", "planta", "animal" e "homem".
Assim surgem os conceitos "cavalo", "lagosta" e "canário".
Aristóteles não negava que o homem tivesse uma razão inata.
Muito pelo contrário: para Aristóteles, a razão é precisamente a
característica mais importante do homem. Mas a nossa razão está
completamente "vazia" enquanto não sentirmos nada. Logo, um homem não
possui "ideias" inatas.
" As formas são as qualidades das coisas"
Após ter esclarecido a sua posição em relação à teoria das
ideias de Platão, Aristóteles afirma que a realidade é constituída por
diversas coisas particulares que apresentam uma unidade de "forma" e
"matéria". A "matéria" é aquilo a partir do qual a coisa é feita,
enquanto a "forma" caracteriza as qualidades particulares das coisas.
Uma galinha esvoaça à tua frente, Sofia. A "forma" da galinha é
precisamente o esvoaçar
p. 101
- assim como cacarejar e pôr ovos. Pela "forma" da galinha são
portanto designadas as qualidades particulares da sua espécie - ou
aquilo que a galinha faz. Quando a galinha morre e deixa de cacarejar, a
"forma" da galinha também deixa de existir. A única coisa que permanece
é a "matéria" da galinha (é bastante triste, Sofia!); mas já não é uma
galinha.
Como já afirmei, Aristóteles estava interessado nas
transformações da natureza.
Na matéria há sempre uma possibilidade de se atingir uma
determinada forma. Podemos dizer que a matéria se esforça por realizar
uma possibilidade em si inerente.
Cada mudança na natureza é para Aristóteles uma transformação da
matéria da "possibilidade" para a "realidade". Eu vou explicar isto,
Sofia. Vou contar uma história cómica. Era uma vez um escultor que
estava a trabalhar num enorme bloco de granito. Todos os dias esculpia e
talhava a pedra informe, e certo dia recebeu a visita de um jovem. - O
que é que procuras? - perguntou o jovem. - Espera - disse o escultor.
Passados alguns dias, o rapaz voltou e nessa altura, o escultor tinha
esculpido um belo cavalo a partir do bloco de granito. O rapaz fixou
emudecido o cavalo. Em seguida, voltou-se para o escultor e perguntou:
- Como é que sabias que isso estava ali?
Sim, como é que ele podia saber? De certo modo, o escultor tinha
visto a forma do cavalo no bloco de granito, porque nesse bloco de
granito estava inerente a possibilidade de se tornar cavalo.
Aristóteles achava que em todas as coisas da natureza está
inerente uma possibilidade de realizar uma forma determinada. Voltemos à
questão da galinha e do ovo. Num ovo de galinha está inerente a
possibilidade de se tornar galinha. Isto não significa que todos os ovos
de galinha se tornem galinhas - inclusivamente há alguns que vão parar à
mesa do pequeno-almoço, sob a forma de ovo estrelado, omeleta ou ovo
mexido, sem realizarem a forma inerente ao ovo. Mas também é óbvio que
um ovo de galinha nunca se pode converter em ganso. Esta possibilidade
não reside no ovo de galinha. A forma de uma coisa indica tanto as suas
possibilidades como as suas limitações.
Quando Aristóteles fala de forma e de matéria não está a pensar
apenas em organismos vivos. Tal como a "forma" da galinha é cacarejar,
bater com as asas e pôr ovos, a "forma" da pedra é cair ao chão. Tal
como a galinha não pode evitar cacarejar, também a pedra não pode evitar
cair ao chão. Obviamente, podes levantar uma pedra e lançá-la ao ar,
mas como a natureza da pedra é cair ao chão, não a podes lançar para a
lua. ( Se fizeres esta experiência, deves ser um
p. 102
pouco cautelosa, porque a pedra pode facilmente vingar-se. Ela quer
regressar à terra tão rapidamente quanto possível - e ai daquele que
estiver no seu caminho!).
" A causa final"
Antes de deixarmos este género de considerações, segundo as
quais todas as coisas animadas e inanimadas têm uma forma que diz algo
acerca da sua potencialidade, devo ainda acrescentar que Aristóteles
tinha uma visão bastante importante sobre as relações de causalidade na
natureza.
Quando, no dia-a-dia, falamos de "causas" que provocam isto ou
aquilo, referimo-nos ao modo como algo sucede. A janela parte -se
porque o Pedro atirou uma pedra, um sapato forma-se porque o sapateiro
cose algumas peças de couro. Mas Aristóteles achava que na natureza
havia vários tipos de causa. É sobretudo importante compreender o que é
que ele entendia por causa final.
No caso da janela partida também é naturalmente oportuno
perguntar porque é que Pedro atirou a Pedra. Perguntamos também qual era
a sua intenção, qual era a sua finalidade. Não podem subsistir dúvidas
de que uma intenção ou um fim têm um papel importante na produção de um
sapato. Mas Aristóteles também tinha em vista a mesma causa final em
alguns processos físicos na natureza. Vamos ficar-nos por um exemplo:
Porque é que chove, Sofia? Com certeza já aprendeste na escola que chove
porque o vapor de água das nuvens arrefece e se condensa em gotas de
água que caem no solo devido à gravidade.
Aristóteles teria concordado, mas acrescentando que apenas
mencionaste três causas. A causa material é o facto de o vapor de água
actual (as nuvens) estar presente quando o ar arrefeceu.
A "causa eficiente" é o facto de o vapor de água arrefecer, e a
"causa formal" é o facto de a "forma" ou natureza da água ser cair no
solo.
Se não tivesses dito mais nada, Aristóteles teria acrescentado
que chove porque as plantas e os animais precisam da água da chuva para
crescerem. Era o que ele designava por "causa final".
Como vês, Aristóteles atribuiu às gotas de água uma espécie de
finalidade vital ou a "intenção".
Nós diríamos ao contrário: as plantas crescem porque há
humidade. Percebes esta diferença, Sofia? Aristóteles acreditava que em
toda a natureza há uma finalidade.
Chove para que as plantas cresçam, e as laranjas e as uvas
crescem para que os homens as comam.
p. 103
Hoje, a ciência já não pensa assim. Dizemos que a alimentação e a
humidade são condições para que os homens e os animais possam viver.
Sem estas condições, nós não existiríamos. Mas não é intenção
das laranjas ou da água alimentarem-nos.
No que diz respeito à sua teoria das causas, podemos sentir-nos
tentados a afirmar que Aristóteles se enganou, mas não nos vamos
precipitar. Muitos homens acham que Deus criou o mundo para que homens e
animais pudessem viver nele. Perante este cenário, pode-se também
afirmar que a água corre nos rios porque os homens e os animais precisam
de água para viver. Mas, nesse caso, falamos do fim ou da intenção de
Deus.
Não são as gotas de chuva ou a água dos rios que nos querem bem.
"Lógica"
A distinção entre "forma" e "matéria" também tem um papel
importante na descrição que Aristóteles faz do modo como o homem conhece
os objectos na natureza.
Quando conhecemos algo, ordenamos as coisas em classes ou grupos
distintos. Eu vejo um cavalo, depois vejo mais um cavalo - e em seguida
mais um. Os cavalos não são totalmente idênticos mas há algo que é comum
a todos os cavalos e aquilo que é comum a todos os cavalos é a "forma"
do cavalo. O que é diferente ou individual pertence à "matéria" do
cavalo.
Desta forma, os homens ordenam as coisas e colocam-nas em
locais distintos. Colocamos as vacas no curral, os cavalos na
cavalariça, os porcos na pocilga e as galinhas no galinheiro. O mesmo
sucede quando Sofia Amundsen arruma o seu quarto. Põe os livros na
estante, mete os livros da escola na pasta e as revistas na gaveta da
cómoda. Os vestidos são dobrados cuidadosamente - a roupa interior numa
prateleira, as camisolas noutra e as meias numa gaveta. Repara que
fazemos o mesmo nas nossas cabeças: separamos coisas que são feitas de
pedra, de lã e de borracha. Distinguimos as coisas animadas das
inanimadas, e subdividimos ulteriormente estas coisas em "plantas",
"animais" e "homens". Estás a compreender, Sofia? Aristóteles queria
fazer uma arrumação profunda no quarto da natureza. Procurou provar que
todas as coisas na natureza pertencem a diversos grupos e subgrupos.
(Hermes é um ser vivo, mais exactamente, um animal, mais exactamente, um
vertebrado, mais exactamente, um mamífero, mais exactamente, um cão,
mais exactamente, um labrador, mais exactamente, um labrador macho).
p. 104
Vai ao teu quarto, Sofia. Levanta um objecto qualquer do chão. Seja
o que for que tu levantes, descobrirás que aquilo em que tocas pertence
a uma ordem. No dia em que vês algo que não consegues classificar sofres
um choque.
Se, por exemplo, descobrisses uma pequena coisa acerca da qual
não conseguias dizer com segurança se pertence ao reino vegetal, animal
ou mineral, acho que não te atreverias a tocar-lhe. Falei de reino
vegetal, reino animal e reino mineral. Estou a pensar naquele jogo em
que um pobre diabo é enviado para o corredor enquanto os outros imaginam
algo que ele deve adivinhar quando regressa à sala. Os outros decidem
pensar no gato Tareco que, nesse momento, está sentado no jardim. Em
seguida, o pobre jogador entra de novo e começa a adivinhar. Os outros
só podem responder "não" ou "sim". Se o jogador é um bom aristotélico -
e nesse caso não é de modo algum um pobre diabo, a conversa pode
decorrer mais ou menos assim:
- É concreto? - ( Sim!)
- Pertence ao reino mineral? - ( Não!) - É animado? - ( Sim!) -
Pertence ao reino vegetal? - ( Não!) - É um animal? - ( Sim!) - É um
pássaro?
- ( Não!) - É um mamífero? - ( Sim!) - É todo o animal? - (
Sim!) - É um gato? - ( Sim!) - É o Tareco? ( Siiiiiim! Risos...) Foi
portanto Aristóteles quem descobriu este jogo. Por seu lado, a Platão
cabe a honra de ter descoberto "às escondidas no escuro". A
Demócrito já atribuímos a honra de ter descoberto o jogo do
Lego.
Aristóteles foi um homem meticuloso e metódico que queria pôr em
ordem os conceitos dos homens. Por isso, foi ele quem fundou a "lógica"
como ciência. Estabeleceu várias regras precisas para determinar que
conclusões ou que demonstrações são válidas logicamente. Um exemplo deve
ser suficiente: se eu afirmo primeiro que "todos os seres vivos são
mortais" (1.a premissa), e afirmo em seguida que "Hermes é um ser vivo"
(2.a premissa), posso deduzir a conclusão: "Hermes é mortal.
O exemplo mostra que a lógica de Aristóteles trata da relação
entre termos, neste caso "ser vivo" e "mortal". Mesmo sendo forçoso
admitir que o silogismo dado é cem por cento sustentável, temos de
reconhecer que ele não nos diz propriamente nada de novo. Já sabíamos
que Hermes é "mortal". (Porque é um cão, e todos os cães são "seres
vivos" - logo, "mortais", ao contrário das pedras). Sim, Sofia, já
sabíamos isso. Mas nem sempre a relação entre grupos ou coisas nos
parece tão evidente. Por vezes, pode ser necessário ordenar os nossos
termos. Vou contentar-me com um exemplo: será verdade que crias de rato
podem mamar leite da mãe como sucede com as ovelhas ou os porcos? Isto
parece muito estranho, mas não nos podemos esquecer de que os ratos não
põem ovos. (Quando é que eu vi um ovo de rato ultimamente?).
p. 105
Mas dão à luz crias - tal como os porcos ou as ovelhas. Mas os
animais que dão à luz crias são chamados mamíferos
- e os mamíferos mamam o leite das mães. Com isto, atingimos o
nosso objectivo. Tínhamos a resposta dentro de nós, mas foi preciso
reflectir primeiro. De momento, tínhamo-nos esquecido de que os ratos
mamam realmente leite das mães. Talvez seja porque nunca vimos as crias
dos ratos a mamar, certamente porque os ratos se envergonham um pouco à
frente dos homens quando têm de alimentar as suas crias.
" A escala da natureza"
Quando Aristóteles quer "pôr ordem" na existência, ele aponta
primeiro para o facto de que tudo o que há na natureza pode ser dividido
em dois grupos principais. Por um lado, temos as "coisas inanimadas" -
como pedras, gotas de água e torrões de terra. Nelas não está inerente
nenhuma potencialidade de mudança. Essas coisas inanimadas só se podem
alterar, segundo Aristóteles, por acção do exterior. Por outro lado,
temos as "coisas animadas", nas quais é inerente a possibilidade de se
alterarem.
No que diz respeito às coisas animadas, Aristóteles salienta que
devem ser divididas em 2 grupos - por um lado o reino vegetal (ou
plantas) e por outro os seres animados. Por fim, os seres animados podem
dividir-se em subgrupos - nomeadamente os "animais" e os "homens". Tens
de admitir que esta classificação, apesar da imprecisão em relação às
plantas, é clara e compreensível. Entre as coisas animadas e não
animadas existe uma diferença essencial. Também entre as plantas e os
animais existe uma diferença essencial, por exemplo, entre uma rosa e um
cavalo. E eu gostaria de pensar também que existe uma diferença
essencial entre um cavalo e um homem. Mas onde é que residem exactamente
essas diferenças?
Consegues responder a isto? Infelizmente, não tenho tempo para
esperar que escrevas a resposta e a coloques num envelope cor-de-rosa
com um torrão de açúcar, por isso respondo eu mesmo imediatamente.
Quando Aristóteles classifica os fenómenos da natureza em diferentes
grupos, parte das qualidades das coisas, ou, mais exactamente, do que
elas podem fazer ou do que elas fazem. Todos os seres vivos (plantas,
animais e homens) têm a faculdade de assimilar a alimentação, de crescer
e de se multiplicar. Os homens e os animais têm ainda a capacidade de
sentir e de se mover na natureza.
p. 106
Todos os homens têm ainda a faculdade de pensar - ou, justamente, de
ordenar as suas impressões sensíveis em diferentes grupos e classes.
Deste modo, não há na natureza limites verdadeiramente
definidos. Vemos uma passagem gradual de plantas mais simples para
plantas mais complexas, de animais simples para animais complexos. No
cimo desta escala está o homem - que, segundo Aristóteles, reúne toda a
vida da natureza. O homem cresce e alimenta-se, tal como as plantas,
tem sensações e a capacidade de se mover, tal como os animais, mas além
disso tem uma característica muito particular, que só o homem possui: a
capacidade de pensar racionalmente.
Deste modo, o homem possui uma centelha da razão divina,
Sofia. Sim, eu disse "divina". Em alguns passos,
Aristóteles explica que tem de haver um Deus que deu origem a
todos os movimentos da natureza. Deste modo, Deus representa o vértice
absoluto na escala da natureza .
Aristóteles acreditava que os movimentos das estrelas e dos
planetas regiam os movimentos aqui na terra. Mas tinha de haver algo que
movesse os corpos celestes. A esse algo chamava Aristóteles "o primeiro
motor" ou Deus. O primeiro motor não se move, mas é a primeira causa dos
movimentos dos corpos celestes e, consequentemente, de todos os
movimentos na natureza.
"Ética"
Regressemos ao homem, Sofia. A "forma" do homem é, segundo Aristóteles,
possuir uma "alma vegetativa", uma "alma sensitiva", como uma "alma
racional". E ele pergunta então: como é que o homem deve viver? De que é
que o homem precisa para viver bem? Posso responder em poucas palavras:
o homem só é feliz quando pode desenvolver e usar todas as suas
faculdades e capacidades.
Aristóteles acreditava em três formas de se conseguir uma vida
feliz: a primeira forma de vida tem a ver com o desejo e o prazer do
corpo.
A segunda como cidadão livre e responsável. A terceira como
pesquisador e filósofo.
Aristóteles sublinha que estas três formas se completam para que
o homem possa ter uma vida feliz. Ele recusava portanto qualquer tipo de
parcialidade. Se vivesse hoje, talvez dissesse que um homem que apenas
cuida do seu corpo vive tão parcialmente e tão mal como aquele que
apenas usa a cabeça. Ambos os extremos são expressão de uma conduta
errada de vida.
p. 107
No que diz respeito à relação com o próximo, Aristóteles também
aconselha um "meio termo". Não devemos ser cobardes nem temerários, mas
corajosos. (Pouca coragem significa cobardia, demasiada coragem
significa temeridade). Também não devemos ser avarentos nem
esbanjadores, mas generosos. ( Ser pouco generoso é avareza, ser muito
generoso é esbanjamento).
O mesmo é válido para a alimentação. Comer pouco é perigoso, mas
comer muito também é perigoso. A ética de Platão e de Aristóteles faz
recordar a ciência médica grega: só através da harmonia e da moderação
me torno um homem feliz ou "harmonioso".
"Política"
A ideia de que o homem não deve levar nada ao extremo, na vida,
está também patente na visão aristotélica da sociedade. Aristóteles
afirmava que o homem é um "ser social". Na sua opinião, sem a sociedade
à nossa volta não somos verdadeiros homens. A família e a cidade
satisfazem as necessidades vitais mais básicas como a alimentação e o
calor, o casamento e a educação dos filhos. Todavia, a forma mais
elevada de comunidade humana só pode ser, para
Aristóteles, o Estado.
Com isto coloca-se a questão: como é que o Estado deveria ser
organizado? ( Ainda te recordas do Estado platónico dos filósofos?)
Aristóteles menciona várias formas boas de governo. Uma delas é
a "monarquia" - significa que há um único chefe supremo do Estado. Para
que esta forma de Estado seja boa, não pode degenerar em "tirania", caso
em que um único soberano governa o Estado em seu próprio proveito. Uma
outra forma boa de Estado é a "aristocracia". A aristocracia é o governo
de um grupo restrito de indivíduos. Esta forma de Estado tem de se
precaver para não degenerar numa oligarquia, um regime no qual apenas
são salvaguardados os interesses de poucas pessoas. Uma terceira forma
de Estado é a "democracia". Mas também esta forma de Estado tem o seu
lado contrário. Uma democracia pode facilmente degenerar numa
"oclocracia" que significa governo da multidão. (Mesmo que Hitler não se
tivesse tornado chefe de Estado da Alemanha, muitos pequenos nazis
teriam podido estabelecer uma terrível "oclocracia").
" A concepção da mulher"
Finalmente, temos de dizer algo acerca da opinião de
Aristóteles sobre a mulher. Infelizmente, não era tão animadora
como a de Platão.
p. 108
Aristóteles pensava que algo faltava à mulher. Ela é um "homem
incompleto". Na reprodução, a mulher é passiva e receptora, enquanto o
homem é activo e dador. Por isso, segundo Aristóteles, a criança herdava
apenas as características do homem. Todas as características da criança
estavam contidas no sémen do homem. A mulher é como o terreno que recebe
e conserva a semente, enquanto o homem é o próprio "semeador". Ou, dito
de uma forma verdadeiramente aristotélica: o homem dá a "forma", a
mulher dá a "matéria". É surpreendente e lamentável que um homem tão
perspicaz como Aristóteles se pudesse enganar de tal forma no que diz
respeito à relação entre os sexos. No entanto, revelo duas coisas: em
primeiro lugar, Aristóteles não tinha muita experiência prática da vida
das mulheres e das crianças; em segundo lugar mostra como nos podemos
enganar quando os homens detêm o poder absoluto na filosofia e na
ciência.
A concepção aristotélica da mulher é particularmente grave
porque se tornou predominante durante a Idade Média, e não a de Platão.
Deste modo, também a Igreja herdou uma concepção da mulher para
a qual não há justificação nenhuma na Bíblia. Jesus não era de modo
algum inimigo das mulheres! Por agora não digo mais nada! Mas
continuarás a ter notícias minhas.
Após ter lido duas vezes o capítulo acerca de Aristóteles, Sofia
meteu de novo as folhas no envelope amarelo e olhou ao seu redor. Viu
logo que estava tudo desarrumado. No chão, havia livros e "dossiers". Do
armário saíam peúgas e camisas, meias e "jeans". Em cima da cadeira,
junto à escrivaninha, estavam vestidos sujos, misturados.
Sofia sentiu um impulso irresistível de "arrumar". Em primeiro
lugar, despejou todas as gavetas do armário. Pôs os vestidos no chão.
Era importante começar tudo do princípio. Assim, deu-se ao trabalho de
dobrar cuidadosamente todas as peças de vestuário, e de as colocar nas
prateleiras. No armário havia sete prateleiras. Sofia reservou uma para
as cuecas e para as camisolas, outra para meias e "collants" e uma para
calças. Deste modo encheu por ordem todas as prateleiras do armário.
Nunca teve dúvidas sobre o lugar de cada peça de roupa. As coisas que
deviam ser lavadas colocou-as num saco de plástico que encontrara na
prateleira do fundo.
Só uma única peça de roupa lhe dava problemas. Era uma meia
branca comprida, normalíssima. O problema não era apenas o facto de a
segunda meia faltar. A meia nunca pertencera a Sofia.
p. 109
Observou a meia branca durante alguns minutos. Não havia nenhum
nome escrito. Mas Sofia tinha uma forte suspeita de quem era a dona.
Atirou-a para a prateleira mais alta juntamente com o saco de
peças de Lego, a cassete de vídeo e o lenço de seda vermelho. Era a vez
do chão. Sofia separou livros e "dossiers", revistas e cartazes -
exactamente como o seu professor de filosofia tinha descrito no capítulo
sobre Aristóteles. Quando o chão já estava despachado, fez primeiro a
cama, e em seguida passou à escrivaninha.
No fim de tudo, pôs as folhas sobre Aristóteles num monte
ordenado. Pegou num "dossier" vazio e num furador, furou as folhas e
juntou-as por ordem no "dossier". Colocou o "dossier" no armário, junto
à meia branca. Mais tarde, iria à toca buscar a caixa dos biscoitos.
A partir daí, devia haver ordem nas coisas. Sofia não pensava
apenas nas coisas do quarto. Depois de ter lido acerca de Aristóteles
sabia que era igualmente importante manter a ordem em conceitos e
ideias. Para estas questões, tinha reservado a prateleira especial no
cimo do armário. Era o único ponto do quarto sobre o qual ela ainda não
tinha controlo total. Há duas horas que não ouvia a mãe. Desceu ao rés
-do -chão. Tinha de dar comida aos animais antes que a mãe acordasse.
Na cozinha, debruçou-se para o aquário dos peixes dourados. Um
dos peixes era negro, o segundo laranja e o terceiro branco e vermelho.
Por isso os baptizara de " Diabrete", " Caracolinho
Dourado" e " Capuchinho Vermelho". Enquanto espalhava a comida
para os peixes dourados, ia dizendo:
- Vocês pertencem à parte animada da natureza. Por isso,
conseguem assimilar o alimento, podem crescer e podem multiplicar-se.
Mais precisamente, vocês pertencem ao reino animal. Assim, podem
movimentar-se e observar o quarto. Para ser mais precisa, vocês são
peixes, por isso podem respirar com as guelras e nadar de um lado para o
outro na água da vida.
Sofia fez girar a tampa da caixa da comida dos peixes dourados.
Estava contente com a classificação dos peixes dourados na ordem da
natureza - e sobretudo com a expressão "água da vida".
Agora era a vez dos periquitos. Sofia deitou comida nos
comedouros e disse:
- Queridos Tom e Jerry! Vocês são hoje dois belos periquitos
porque se desenvolveram a partir de pequenos ovos de periquito, e só
porque a "forma" desses ovos era tornarem-se periquitos vocês não se
tornaram papagaios palradores.
Sofia foi ao quarto de banho grande, onde estava a indolente
tartaruga numa grande caixa. Quando a mãe de Sofia tomava duche,
p. 110
gritava que um dia havia de matar aquele animal. Mas até então,
tinha-se ficado por essa mera ameaça. Sofia tirou uma folha de salada
de um frasco grande e colocou-a na caixa.
- Querida Govinda - dizia - tu não pertences propriamente ao
grupo dos animais mais velozes. Mas és um animal que pode ter
experiência de uma parte minúscula do grande universo em que vivemos.
Consola-te, porque não és a única que não pode sair da sua forma.
Sherekan devia estar lá fora a caçar ratos, porque essa era a
natureza dos gatos. Sofia passou pela sala de estar para ir ao quarto da
mãe. Na mesa havia um vaso com narcisos. As flores amarelas pareceram
inclinar-se respeitosamente quando Sofia passou. Sofia ficou algum
tempo parada e passou dois dedos pelas corolas.
- Vocês também pertencem à parte animada da natureza
- disse ela. Deste ponto de vista, vocês têm um certo privilégio
em relação ao vaso em que estão. Mas infelizmente, vocês não têm
capacidade para o sentir.
Sofia entrou silenciosamente no quarto da mãe. Ela dormia
profundamente, mas
Sofia colocou-lhe uma mão sobre a cabeça.
- Tu estás entre os mais felizes de todos - disse. - Porque não
és apenas animada, como os lírios do campo. E não és apenas um ser vivo,
como Sherekan ou Govinda. És um ser humano, e por isso possuis a rara
faculdade de pensar.
- O que estás para aí a dizer, Sofia?
A mãe despertou mais depressa do que era habitual.
- Estou a dizer que pareces uma tartaruga preguiçosa.
De resto, posso informar-te de que arrumei o meu quarto. Pus
mãos à obra com um cuidado filosófico.
A mãe sentou-se na cama.
- Eu já vou - disse. - Podes preparar-me o café?
Sofia sabia fazer o café, e pouco depois estavam as duas na
cozinha a tomar café, sumo e cacau. Passado pouco tempo,
Sofia perguntou:
- Já alguma vez pensaste porque é que vivemos?
- Ah, tu nunca desistes.
- Não, porque desta vez sei a resposta. Neste planeta vivem
homens para que alguém possa dar um nome a todas as coisas.
- Ah, sim? Nunca tinha pensado nisso.
- Nesse caso tens um grave problema, porque o homem é um ser
racional. Se não pensas, não és um ser humano.
- Sofia!
p. 111
- Imagina que aqui só viviam plantas e animais. Nesse caso,
ninguém poderia distinguir "gatos" de "cães", "lírios" de "arbustos". As
plantas e os animais também vivem, mas só nós podemos classificar a
natureza em grupos ou classes.
- Tu és realmente a filha mais estranha que eu tenho - disse
então a mãe.
- Espero que sim - afirmou Sofia. - Todos os homens são mais ou
menos estranhos. Eu sou um ser humano, por isso sou um tanto ou quanto
estranha. Tu tens só uma filha, por isso sou a mais estranha.
- O que eu quis dizer foi que tu me assustas com esta...
conversa.
- Nesse caso, assustas-te facilmente. Um pouco mais à tarde,
Sofia regressou à toca.
Conseguiu levar a grande caixa dos bolos para o quarto, às
escondidas da mãe. Primeiro, juntou todas as folhas pela ordem correcta,
furou-as e colocou-as no "dossier" antes do capítulo sobre
Aristóteles. Por fim, escreveu no canto superior direito de cada folha o
número da página. Já tinha mais de cinqüenta páginas. Sofia estava quase
a fazer o seu próprio livro de filosofia. Não o escrevia, mas era
escrito de propósito para ela.
Ainda não tivera tempo para pensar de modo algum nos trabalhos
de casa para segunda -feira. Talvez houvesse teste de religião, mas o
professor sempre dissera que, para ele, o que importava eram o empenho
pessoal e a reflexão individual. Sofia tinha a sensação de começar a ter
uma certa preparação para ambas as coisas.
p. 112
O HELENISMO
. uma centelha do fogo...
O professor de filosofia enviava as suas cartas directamente
para a sebe, mas, devido a um hábito antigo, na manhã de segunda -feira,
Sofia foi espreitar à caixa do correio. Estava vazia, e também não seria
de esperar outra coisa.
Começou a andar por Klõverveien.
De repente, viu no chão uma fotografia. A fotografia mostrava um
jipe branco com uma bandeira azul, onde estava escrito " O NU". Seria a
bandeira da O NU?
Sofia voltou a fotografia, e só então reparou que se tratava de
um postal. Para "Hilde Mõller Knag, a/c de Sofia Amundsen...". O postal
tinha um selo norueguês, e o carimbo: Contingente O NU, sexta -feira, 15
de Junho de 1990. 15 de Junho! Era o aniversário de Sofia!
No postal estava escrito:
" Querida Hilde: imagino que deves estar a festejar o teu aniversário.
Ou já passa um dia? De qualquer modo, não faz diferença para o teu
presente; desfrutarás dele durante toda a tua vida.
Dou-te os parabéns mais uma vez. Talvez compreendas agora
porque é que mando o postal, para a Sofia. Tenho a certeza de que ela to
dará.
P S. A mãe contou-me que perdeste a carteira. Prometo reembolsar-te
das 150 coroas. Receberás certamente um novo cartão de estudante na
escola antes que ela feche para o Verão.
Um abraço do pai"
Sofia ficou imóvel, como colada ao asfalto. Quando é que o
último postal tinha sido carimbado? Algo lhe dizia que o postal com a
praia tinha um carimbo de Junho - se bem que ainda faltasse um mês até
lá. Não tinha fixado...
p. 113
Olhou para o relógio e correu de volta a casa. Nesse dia ia
chegar atrasada.
Sofia abriu a porta e foi apressadamente para o quarto.
Aí, debaixo do lenço de seda vermelho encontrou o primeiro
postal dirigido a Hilde.
Sim - também tinha o carimbo do dia 15 de Junho, o aniversário
de Sofia e a véspera das férias de Verão. Enquanto corria para o
supermercado, onde queria encontrar Jorunn, Sofia tinha muitas perguntas
na cabeça.
Quem era Hilde? Como é que o pai dela achava evidente que Sofia
a encontraria?
Não fazia sentido nenhum que ele lhe enviasse os postais em vez
de os enviar directamente à filha. Era impensável que ele não soubesse o
endereço da filha. Seria tudo uma brincadeira? Quereria fazer uma
surpresa à filha no seu dia de anos servindo-se de uma rapariga
totalmente desconhecida como correio?
Seria por esse motivo que
Sofia tinha tido um mês de antecedência? Servia-se dela como
intermediária porque o presente de aniversário que queria dar à filha
consistia numa nova amiga? Era esse o presente de que "desfrutaria
durante toda a vida"?
Se esse estranho homem estava de facto no Líbano, como é que
podia ter descoberto o endereço de Sofia? Mas não era tudo: Sofia e
Hilde tinham pelo menos duas coisas em comum. Se Hilde também fazia anos
a 15 de Junho, tinham nascido no mesmo dia. E ambas tinham um pai que
viajava muito.
Sofia sentiu-se arrastada para um mundo mágico. Afinal, talvez
não fosse assim tão estúpido acreditar no destino. Mas ela não devia
tirar conclusões apressadas; tudo aquilo podia ter uma explicação
natural. Mas como é que Alberto Knox podia ter descoberto a carteira de
Hilde, se Hilde vivia em Lillesand, que ficava a mais de cem quilómetros
de distância? E porque é que Sofia encontrara aquele postal no chão?
Teria caído da mala do carteiro, antes de ter chegado à caixa do correio
de Sofia? Porque é que ele perdera precisamente aquele postal?
- Tu és completamente doida! - exclamou Jorunn, quando encontrou
Sofia no supermercado.
- Desculpa. Jorunn fixou-a com um olhar severo, como uma
professora.
- Espero que tenhas uma boa explicação.
- Tem a ver com a O NU
- respondeu Sofia. - Fui retida no Líbano por uma milícia
inimiga.
- Tu estás é apaixonada.
Correram para a escola tão rapidamente quanto as suas pernas
lhes permitiram.
p. 114
O teste de religião, para o qual Sofia não tinha estudado, foi
distribuído na terceira hora. Na folha estava escrito:
Concepção da vida e tolerância
1. Faz uma lista daquilo que um homem pode saber. Faz depois uma lista
daquilo em que apenas podemos acreditar. 2. Indica alguns factores que
determinam a concepção de vida para um homem. 3. O que é que entendemos
por consciência? Achas que é igual para todos os homens? 4. O que é que
se entende por "prioridade de valores"?
Sofia reflectiu um bom bocado antes de começar a escrever.
Poderia aproveitar alguma coisa do que aprendera com Alberto Knox? Tinha
de aproveitar, porque há muitos dias que não olhava para o livro de
religião. Mal tinha começado a escrever, as frases brotaram.
Sofia escreveu que podemos saber que a Lua não é um queijo e que
no seu lado oculto também há crateras, que tanto Sócrates como Jesus
foram condenados à morte, que todos os homens têm de morrer mais tarde
ou mais cedo, que os grandes templos da
Acrópole foram construídos cerca do ano 400 a. C. após as
guerras contra os Persas e que o oráculo grego mais famoso era o de
Delfos. Como exemplos daquilo em que podemos acreditar, Sofia escreveu
que, nos outros planetas, há vida ou não, que Deus existe ou não, que há
vida após a morte ou não, e que Jesus era filho de Deus ou apenas um
homem inteligente. " De qualquer modo, não podemos saber de onde vem o
mundo" escreveu ela, por fim. " O universo pode ser comparado a um
coelho gigantesco que é retirado de uma grande cartola. Os filósofos
procuram subir para um dos pêlos finos do coelho, para poderem fixar nos
olhos o grande ilusionista. Se eles o conseguirão algum dia é uma
questão em aberto. Mas se um filósofo sobe para as costas de outro, irão
chegando progressivamente mais acima na delicada pelagem do coelho, e
então, segundo a minha opinião pessoal, existe a possibilidade de eles o
conseguirem um dia. P S. Na Bíblia, podemos ler sobre uma coisa que pode
ter sido um dos pêlos finos na pelagem do coelho. Esse pêlo é designado
por torre de Babel e foi totalmente destruída porque não agradava ao
ilusionista que os homens fossem subindo ao longo dos pêlos do coelho
branco que ele acabara de criar."
p. 115
Era a vez da pergunta seguinte. "Indica alguns factores que
determinam a concepção de vida para um homem." A educação e o ambiente
eram obviamente factores importantes. Os homens que viviam no tempo de
Platão tinham uma concepção de vida diferente da dos homens de hoje,
simplesmente porque viviam num outro tempo e num outro meio. De resto,
as experiências adquiridas também eram importantes. Mas a razão humana
também é importante na determinação de uma concepção de vida. A razão
não era determinada pelo meio, era comum a todos os homens. Talvez se
pudesse comparar o meio e as relações sociais às condições presentes na
caverna de Platão. Por intermédio da razão, o indivíduo pode tentar sair
da escuridão da caverna. Mas essa viagem exige uma grande dose de
coragem pessoal. Sócrates era um bom exemplo de um homem que, com o
auxílio da razão, se conseguiu libertar das concepções predominantes no
seu tempo.
No fim, ela escreveu: "Hoje em dia, homens de países e culturas
diferentes têm um contacto cada vez mais estreito entre si. Por isso, no
mesmo bloco residencial, podem viver cristãos, muçulmanos e budistas. E
nesse caso é importante tolerar a crença dos outros em vez de se
perguntar porque é que não têm todos a mesma crença."
Sim, Sofia achou que com aquilo que aprendera com o seu
professor de filosofia já ia bastante longe. Podia ainda usar uma parte
de razão inata e aquilo que ouvira ou lera noutros contextos.
Começou a responder à terceira pergunta. " O que é que
entendemos por consciência?
Achas que é igual para todos os homens?" Sobre isto, tinha-se
discutido muito na aula. Sofia escreveu: " Consciência é a capacidade
dos homens para reagirem ao que é justo e ao que é injusto. Segundo a
minha opinião pessoal, todos os homens têm esta capacidade, ou seja, a
consciência é inata. Sócrates teria dito o mesmo. Mas aquilo que a
consciência diz pode variar muito de homem para homem. É necessário
pensar se os sofistas não estavam numa pista importante. Eles achavam
que o meio em que cada indivíduo cresce, determina aquilo que ele acha
ser correcto e aquilo que ele acha ser errado. Sócrates, pelo contrário,
achava que a consciência era igual em todos os homens. Talvez tivessem
todos razão. Apesar de nem todos os homens se envergonharem de andar
nus, a maior parte arrepende-se quando trata mal outro homem.
Além disso, temos de sublinhar que uma coisa é ter uma
consciência e outra coisa é usá-la. Em situações isoladas pode parecer
que os homens agem de uma forma totalmente inconsciente, mas, segundo a
minha opinião pessoal, também neles há uma forma de consciência, mesmo
quando está bem escondida.
p. 116
Pode também parecer que alguns homens não têm racionalidade, mas
isso deve-se apenas ao facto de não a usarem. P S. A razão e a
consciência podem ser comparadas a um músculo. Se não se usa um músculo,
ele vai-se tornando mais fraco e flácido." Faltava apenas uma pergunta.
" O que é que se entende por "prioridade de valores"?
Sobre isto também tinham discutido muito ultimamente. Podia, por
exemplo, ser importante andar de carro para nos podermos deslocar
depressa de um lugar para outro. Mas se andar de carro provocasse a
morte das florestas e a poluição da natureza, estava-se perante uma
"escolha de valores". Após uma reflexão profunda, Sofia achava ter
chegado à convicção de que florestas saudáveis e uma natureza pura eram
mais importantes do que a possibilidade de chegar depressa ao trabalho.
Deu mais exemplos. Por fim, escreveu: "É minha opinião pessoal que a
filosofia é mais importante do que a gramática inglesa. Por isso, seria
uma prioridade de valores sensata se a disciplina de filosofia fosse
admitida no plano de estudos e o horário da aula de inglês fosse
reduzido."
No último intervalo, o professor chamou Sofia à parte.
- Já li o teu teste de religião - disse. - Estava em cima do
monte dos testes.
- Espero que tenha gostado.
- Era precisamente sobre isso que queria falar contigo. Em
muitos aspectos, deste respostas muito maduras.
Surpreendentemente maduras,
Sofia. E autónomas. Tinhas feito os trabalhos de casa?
Sofia começou a torcer as mãos.
- Mas tinha dito que as reflexões pessoais são importantes para
si.
- Há limites.
Sofia fixou o professor nos olhos. Achava que o podia fazer
depois de tudo o que tinha vivido nos últimos dias.
- Eu comecei a estudar filosofia - afirmou. - É um bom
fundamento para opiniões autónomas.
- Mas não vai ser fácil classificar o teu trabalho.
Na verdade, só te posso dar um cinco ou um um.
- Porque respondi tudo certo ou tudo errado? É isso que quer
dizer?
- Dou-te o cinco. Mas na próxima vez tens de fazer os trabalhos
de casa. À tarde, quando Sofia chegou a casa, vinda da escola, atirou a
pasta para a escada e foi imediatamente para a toca.
p. 117
Havia um envelope amarelo sobre as raízes grossas. As bordas estavam
quase secas, portanto Hermes devia ter estado ali há um bom bocado.
Sofia levou o envelope consigo e entrou em casa. Primeiro, deu
comida aos animais e depois foi para o quarto. Deitou-se na cama, abriu
a carta de Alberto e leu.
Que bom ver-te, Sofia! Já te falei dos filósofos da natureza,
Sócrates, Platão e Aristóteles, e assim conheces o fundamento da
filosofia europeia. A partir de agora, as tarefas de reflexão que
recebeste até hoje em envelopes brancos já não são importantes. Imagino
que tenhas bastantes trabalhos e testes na escola. Vou falar-te do
extenso período entre Aristóteles, no final do século IV antes de
Cristo, e o início da Idade Média, cerca do ano 400 depois de Cristo.
Sabes que escrevemos "antes" e "depois de Cristo", precisamente porque o
cristianismo é um dos elementos mais importantes e mais singulares deste
período.
Aristóteles morreu no ano 322 antes de Cristo e, entretanto,
Atenas tinha perdido a sua hegemonia. Isso deve-se em grande parte às
profundas transformações políticas resultantes das conquistas de "
Alexandre Magno" (356 -323 a. C).
Alexandre Magno era rei da Macedónia. Aristóteles também vinha
da Macedónia, e durante algum tempo chegou mesmo a ser professor do
jovem Alexandre. Alexandre alcançou a última e decisiva vitória sobre os
persas e, através das suas inúmeras campanhas, criou um império
vastíssimo que compreendia a Grécia, o Egipto, a Pérsia e se estendia
até à Índia.
Começa então uma época nova na história da humanidade,
caracterizada pelo desenvolvimento de uma comunidade internacional em
que a cultura e a língua gregas desempenham um papel dominante. Este
período, que durou cerca de três séculos, é denominado "Helenismo",
termo que designa tanto um período histórico como a supremacia da
cultura grega nos três grandes reinos helenísticos - a Macedónia, a
Síria e o Egipto.
A partir do ano 50 antes de Cristo, Roma assumiu a hegemonia
política e militar.
A nova potência conquistou, uns a seguir aos outros, todos os
reinos helenísticos e, a partir de então, a cultura romana e a língua
latina dominaram desde a Espanha, a ocidente, até ao interior da Ásia.
Começa então o período romano também designado por " Antiguidade
tardia".
Mas deves reparar numa coisa: antes de os Romanos
p. 118
conquistarem o mundo helenístico, Roma tinha-se tornado uma
província cultural grega.
Deste modo, a cultura grega
- e a filosofia grega - teriam ainda um papel importante depois
do declínio político da Grécia.
"Religião, filosofia e ciência"
O Helenismo foi marcado pelo desaparecimento das fronteiras
entre os diversos países e culturas. Anteriormente, Gregos, Romanos e
Egípcios, Babilónios, Sírios e Persas tinham venerado os seus deuses
dentro do que geralmente chamamos uma "religião nacional". Nesta fase as
diversas culturas misturaram-se e fundiram-se num grande caldeirão que
continha ideias religiosas, filosóficas e científicas de todo o tipo.
Podemos dizer que a ágora urbana foi substituída pela arena mundial.
Também a ágora antiga foi animada por vozes que ofereciam as suas
diversas mercadorias, e diferentes pensamentos e ideias.
A novidade era que as ágoras eram agora invadidas por
mercadorias e ideias de todo o mundo. Por isso, as vozes soavam em
diversas línguas diferentes. Já referimos que as concepções gregas se
difundiram muito para além dos antigos territórios gregos. A partir de
então, deuses orientais eram também adorados em toda a região do
Mediterrâneo.
Nasceram várias religiões novas cujos deuses e concepções
religiosas provinham de diversas culturas antigas. Este fenómeno é
designado por fusão de religiões ou "sincretismo".
Anteriormente, os homens sentiam-se vinculados ao seu próprio
povo e à sua própria cidade-estado. Como essas fronteiras e divisões
eram cada vez mais postas de parte, muitos sentiram dúvidas e
insegurança em relação à sua concepção de vida. A Antiguidade tardia foi
marcada, em geral, pelas dúvidas religiosas, pela desagregação cultural
e pelo pessimismo. " O mundo está velho", dizia -
-se.
As novas religiões que surgiram então tinham duas
características em comum: fundavam-se em doutrinas que aspiravam a
libertar os homens da angústia da morte; além disso, muitas destas
doutrinas eram secretas. Seguindo os seus preceitos e participando em
determinados rituais, o homem podia esperar obter a imortalidade da alma
e uma vida eterna. O conhecimento acerca da verdadeira natureza do
universo podia ser tão importante para a salvação da alma como os
rituais. Eram as novas religiões,
Sofia. A filosofia caminhava também no sentido da "salvação" e
da serenidade no que diz respeito à vida. A visão filosófica não tinha
apenas um valor em si mesma, como ainda devia libertar os homens da
angústia da morte e do pessimismo. Desta forma, apagaram-se os limites
entre a religião e a filosofia.
p. 119
De um modo geral, podemos dizer que a filosofia do Helenismo não
foi particularmente original. Não apareceu nenhum outro Platão ou
Aristóteles. Em vez disso, os três grandes filósofos atenienses
tornaram-se uma importante fonte de inspiração para diversas correntes
filosóficas, das quais vou falar sucintamente. " A ciência" do Helenismo
também estava influenciada pela mistura de diversas experiências
culturais. A cidade de Alexandria, no Egipto, tinha um papel chave como
ponto de encontro do
Oriente e do Ocidente. Enquanto Atenas continuava a ser a
capital da filosofia, com as escolas filosóficas deixadas por Platão e
Aristóteles, Alexandria tornou-se a metrópole da ciência.
Com a sua grande biblioteca, esta cidade passou a ser o centro
dos estudos de matemática, astronomia, biologia e medicina.
A cultura helenística pode ser comparada com o mundo de hoje. O
século XX também é caracterizado por uma comunidade internacional cada
vez mais aberta, que provocou no nosso tempo grandes transformações na
religião e na concepção de vida. Tal como, no início da nossa era,
podíamos encontrar em Roma concepções religiosas gregas, egípcias e
orientais, no final do século XX podemos encontrar em todas as cidades
europeias de uma determinada extensão concepções religiosas de todas as
partes do mundo.
No nosso tempo, vemos que uma mistura de religião, filosofia e
ciência antigas e novas pode constituir a base para novas ofertas no
"mercado das concepções do mundo". Muito deste "novo saber" é, na
realidade, uma herança antiga cujas raízes remontam ao Helenismo.
Como já foi mencionado, a filosofia helenística continuou a
ocupar-se dos problemas que tinham sido levantados por Sócrates, Platão
e
Aristóteles. Todos desejavam estabelecer como é que o homem deve
viver e morrer da melhor forma. Deste modo, a "ética" foi colocada na
ordem do dia. Tornou-se o projecto filosófico mais importante da nova
comunidade internacional. A questão era esta: em que consiste a
verdadeira felicidade e de que modo pode ser alcançada? Vamos analisar
quatro dessas correntes filosóficas.
" Os cínicos"
Conta-se que Sócrates parou certo dia em frente de uma banca
onde estavam expostas muitas mercadorias. Por fim, exclamou: "Vejam só
de quantas coisas os Atenienses precisam para viver!". Com isto, queria
obviamente dizer que ele não precisava dessas coisas.
p. 120
A "filosofia cínica", que foi fundada por " Antístenes" cerca do
ano 400 a. C. em
Atenas, parte desta atitude de Sócrates. Antístenes tinha sido
discípulo de Sócrates.
Os "cínicos" defendiam que a verdadeira felicidade não dependia
de coisas exteriores, como o luxo material, o poder político e uma boa
saúde. A verdadeira felicidade significava não se tornar dependente
dessas coisas casuais e efémeras. Precisamente por não repousar sobre
essas coisas, a felicidade podia ser alcançada por todos. E uma vez
alcançada não se podia voltar a perder.
O cínico mais conhecido era " Diógenes", um discípulo de
Antístenes. Conta-se que morava num tonel e que só possuía um manto, um
bastão e um saco para o pão. ( Não era fácil roubar-lhe a sua
felicidade!). Certo dia, estava a tomar um banho de sol à frente do seu
tonel quando Alexandre Magno o visitou. Alexandre apresentou-se ao
sábio e disse-lhe que lhe daria o que ele desejasse. Diógenes pediu a
Alexandre que não lhe tapasse o sol. Foi assim que
Diógenes demonstrou que era mais rico e mais feliz do que o
grande homem. Tinha tudo o que desejava.
Segundo os cínicos, o homem não se deve preocupar com a sua
saúde, com a dor e com a morte. Também não se devia atormentar com a dor
dos outros. Hoje, os termos "cínico" e "cinismo" exprimem quase sempre a
impassibilidade perante o sofrimento dos outros.
" Os estóicos"
Os cínicos foram muito importantes para o desenvolvimento da
"filosofia estóica" que surgiu em Atenas cerca do ano 300 a. C.. O seu
fundador, "Zenão", era oriundo de Chipre mas juntou-se aos cínicos de
Atenas após um naufrágio. Reunia os seus ouvintes num pórtico. O nome
estóico vem do termo grego que designa "pórtico" ("stoa"). O estoicismo
iria adquirir posteriormente uma grande importância para a cultura
romana. Tal como Heraclito, os estóicos achavam que todos os homens
participavam da mesma razão universal - ou do mesmo "logos". Para eles,
cada homem era um mundo em miniatura, um "microcosmos" que reflectia o
"macrocosmos". Esta teoria levou à convicção de um direito
universalmente válido, o direito natural. O direito natural baseia-se
na razão intemporal do homem e do universo, por isso não se altera no
tempo e no espaço. Neste aspecto, os estóicos tomavam o partido de
Sócrates contra os sofistas.
p. 121
O direito natural é válido para todos os homens, inclusivamente
para os escravos.
As leis dos diversos Estados eram para os estóicos cópias
imperfeitas de um direito que se baseava na própria natureza.
Assim como os estóicos aboliam a diferença entre o indivíduo e o
universo, também contestavam uma oposição entre "espírito" e "matéria".
Segundo eles, há apenas uma natureza. Esta concepção é
denominada "monismo" (ao contrário, por exemplo, do claro dualismo de
Platão, a bipolarização da realidade).
Como verdadeiros filhos do seu tempo, os estóicos eram
cosmopolitas. Estavam portanto mais abertos à cultura contemporânea do
que os "filósofos do tonel" (os cínicos). Segundo eles, a comunidade dos
homens devia interessar-se por política, e muitos estóicos foram
estadistas activos, como, por exemplo, o imperador romano "Marco
Aurélio" (121 -180 d. C.). Contribuíram para que a cultura e a filosofia
gregas fossem difundidas em Roma sobretudo graças ao orador, filósofo e
político " Cícero" (106 -43 a. C.), que criou o conceito de "humanismo",
ou seja, uma concepção do mundo que tem o indivíduo como centro. O
estóico " Séneca" (4 a. C. -65 d. C.) disse alguns anos mais tarde que
o homem era sagrado para o homem, afirmação que se tornaria o mote de
todo o humanismo.
Além disso, os estóicos sublinharam que todos os processos
naturais - por exemplo, a vida e a morte - seguiam as leis constantes da
natureza. Por isso, o homem tem de se reconciliar com o seu destino.
Segundo eles, nada acontece por acaso. Tudo acontece por necessidade, e
de pouco serve lamentarmo-nos quando o destino nos bate à porta. Mesmo
as situações felizes da vida devem ser aceites com uma grande
serenidade. Esta posição é semelhante à dos cínicos, para quem todas as
coisas exteriores do mundo eram indiferentes. Ainda hoje falamos de uma
"serenidade estóica", quando alguém não se deixa arrebatar pelos seus
sentimentos.
" Os epicuristas"
Como vimos, Sócrates queria descobrir como é que o homem pode
viver uma vida feliz. Cínicos e estóicos afirmavam que o homem se devia
libertar do luxo material. Mas Sócrates teve também um discípulo que se
chamava " Aristipo". Para
Aristipo, a finalidade da vida era obter o máximo prazer
sensível. O supremo bem era o prazer, e o grande mal era a dor. Por
isso, queria desenvolver uma arte de viver que evitasse todas as formas
de dor. ( O objectivo que norteava os cínicos e os estóicos era suportar
todas as
p. 122
formas de dor, algo bem diferente de procurar evitá-la
intencionalmente).
Cerca do ano 300 a. C., "Epicuro" (341 -270 a.
C.) fundou em Atenas uma escola de filosofia. Desenvolveu a
ética do prazer de
Aristipo e combinou-a com a teoria atomista de " Demócrito".
Segundo se diz, os epicuristas reuniam-se num jardim. Por isso,
foram também designados "filósofos do jardim". Por cima do portão do
jardim diz-se que estaria escrito: "Estranho, aqui serás feliz. Aqui, o
prazer é o bem supremo." Epicuro esclareceu que o resultado agradável de
uma acção tem de ser sempre confrontado com os seus eventuais efeitos
secundários.
Se alguma vez comeste chocolate a mais, percebes o que eu quero
dizer. Caso o não tenhas feito, proponho-te o seguinte trabalho de
casa: pega no teu mealheiro e compra cem coroas de chocolate. ( Suponho
que gostas de chocolate.) Nesta tarefa, o importante é comeres todo o
chocolate de uma vez. Cerca de meia hora depois de teres comido esse
excelente chocolate, compreenderás o que é que Epicuro queria dizer com
"efeitos secundários". Epicuro pretendia confrontar um resultado
agradável a curto prazo com um prazer maior, mais duradouro ou intenso a
longo prazo. (Podemos, por exemplo, imaginar que decides não comer
chocolate durante um ano porque preferes poupar todo o teu dinheiro para
uma bicicleta nova ou para uma viagem ao estrangeiro.) Ao contrário dos
animais, o homem tem a possibilidade de planear a sua vida, tem a
capacidade de fazer um "cálculo dos prazeres". O chocolate é
naturalmente um valor, mas a bicicleta e a viagem para Inglaterra também
o são. Mas Epicuro também sublinhava que "prazer" não era
necessariamente o mesmo que prazer físico - por exemplo, chocolate.
Também a amizade e a contemplação de uma obra de arte podem ser
agradáveis. Uma condição para a fruição da vida são também antigos
ideais gregos como o autodomínio, a temperança e a serenidade, porque a
concupiscência tem de ser refreada.
Deste modo, a serenidade também nos ajudará a suportar a dor.
Os frequentadores do jardim de Epicuro, eram sobretudo homens
atormentados com angústias de natureza religiosa. Neste sentido, a
teoria atomista de Demócrito era um remédio útil contra a religião e a
superstição. Para termos uma vida feliz, é bastante importante
superarmos o medo da morte. Nesta questão, Epicuro recorre à teoria de
Demócrito sobre os "átomos da alma". Talvez te lembres que Demócrito não
acreditava na vida além da morte porque os "átomos da alma" se
dispersavam em todas as direcções.
p. 123
"Porque é que haveríamos de ter medo da morte?", perguntava Epicuro.
Porque enquanto existimos, a morte não está aqui, e logo que ela vem,
nós não existimos." ( Com efeito, nunca um homem se afligiu por estar
morto).
O próprio Epicuro resumia a sua filosofia libertadora através
daquilo "a que chamou o remédio quádruplo:
Não precisamos de temer os deuses. Não precisamos de nos
preocupar com a morte. É fácil atingir o bem. O mal suporta-se
facilmente".
Na Grécia, não era uma novidade comparar a tarefa do filósofo à
do médico. Segundo Epicuro, o homem deve munir-se de uma "farmácia
portátil filosófica" que, como dissemos, contém quatro medicamentos
importantes.
Ao contrário dos estóicos, os epicuristas interessavam-se pouco
por política e pela sociedade. "Vive escondido!" era o conselho de
Epicuro. Podemos talvez comparar o seu jardim com o modo de viver de
algumas comunidades de hoje. Também no nosso tempo muitos procuram um
lugar onde se possam refugiar para fugir à sociedade.
Após a morte de Epicuro, muitos epicuristas orientaram-se
apenas no sentido de uma busca constante de prazeres. O seu mote passou
a ser: "vive o momento!". O termo "epicurista" é hoje aplicado
pejorativamente a uma pessoa que vive apenas para o prazer.
"O neoplatonismo"
Vimos que cínicos, estóicos e epicuristas se baseavam na doutrina de
Sócrates.
Além disso, recorriam aos pré -socráticos Demócrito e Heraclito.
Por seu lado, a mais notável corrente filosófica da Antiguidade tardia
inspirava-se sobretudo na teoria das ideias de Platão, sendo por isso,
designada por "neoplatonismo".
O neoplatónico mais importante foi "Plotino" (cerca de 205 -270
d. C.), que estudou filosofia em Alexandria, e se transferiu
posteriormente para Roma. Devemos notar que ele vinha de
Alexandria, cidade que era já há muitos séculos o grande ponto
de encontro da filosofia grega e da mística oriental. Plotino levou
consigo para Roma uma doutrina de salvação que se tornaria uma séria
concorrente do cristianismo que começava a afirmar-se. Mas o
neoplatonismo também haveria de exercer uma forte influência na teologia
cristã.
p. 124
Lembras-te da teoria das ideias de Platão, Sofia?
Sabes que ele distinguia o mundo inteligível do mundo sensível.
Desse modo, também distinguia claramente a alma do homem do seu corpo.
Assim, o homem tornou-se um ser duplo: segundo Platão o nosso corpo é
constituído por terra e pó, tal como todas as outras coisas que
pertencem ao mundo sensível, mas possuímos também uma alma imortal. Esta
concepção já estava difundida na Grécia muito antes de Platão. Plotino
estava também familiarizado com concepções asiáticas semelhantes.
Plotino via o mundo separado em dois pólos. Num extremo está a luz
divina, que ele designava por "Uno". Por vezes, chamava-lhe também "
Deus". No outro extremo reina a escuridão total que a luz do Uno não
alcança. Mas para Plotino, essa escuridão não existe de facto. É apenas
uma ausência de luz - sim, não é. A única coisa que existe é Deus ou o
Uno, mas tal como uma fonte luminosa se perde progressivamente na
escuridão, também há um limite para o alcance dos raios divinos. Para
Plotino, a luz do Uno ilumina a alma, ao passo que a matéria é a
escuridão que na realidade não existe. Mas as formas da natureza também
possuem um fraco reflexo do Uno. Imagina uma enorme fogueira que arde de
noite, Sofia.
Do fogo jorram centelhas em todas as direcções. Em redor da
fogueira a noite fica iluminada, e a alguns quilómetros de distância
ainda se pode ver um débil clarão. Se nos afastarmos ainda mais, vemos
um minúsculo ponto luminoso, como uma lanterna à noite. E se nos
afastarmos ainda mais da fogueira, deixamos de ver a luz. Os raios
luminosos perdem-se algures na noite, e quando está totalmente escuro,
não vemos nada. Nessa altura, não há sombras nem contornos. Imagina
agora a realidade como se fosse esse fogo. O que arde é Deus - e a
escuridão exterior é a matéria gelada de que homens e animais são
feitos. Junto de Deus estão as ideias eternas que são os arquétipos de
todas as criaturas. A alma humana é sobretudo uma "centelha do fogo".
Mas em toda a natureza brilha um pouco dessa luz divina. Podemos vê-la
em todos os seres vivos, inclusivamente uma rosa ou um jacinto têm esse
reflexo divino. A terra, a água e as pedras são os seres mais afastados
de Deus. Em tudo o que vemos há algo do mistério divino. Vemos que ele
cintila num girassol ou numa papoila. Temos uma ideia mais clara desse
mistério impenetrável numa borboleta que levanta voo de um ramo - ou num
peixe dourado que nada no seu aquário. Mas estamos mais próximos de Deus
na nossa própria alma.
Só aí podemos unir-nos ao grande mistério da vida. Em momentos
raros podemos sentir que nós mesmos somos esse mistério divino.
p. 125
As imagens que Plotino usa fazem-nos recordar a alegoria da
caverna de Platão.
Quanto mais nos aproximamos da entrada da caverna mais nos
aproximamos da origem de tudo o que existe. Mas, ao contrário da clara
bipartição da realidade em Platão, o pensamento de Plotino denota uma
experiência do todo. Tudo é Uno - porque tudo é Deus. Mesmo as sombras
na caverna de Platão são um fraco reflexo do Uno. Plotino experimentou
algumas vezes no decurso da sua vida a fusão da sua alma com Deus. Damos
a isso o nome de "experiência mística". Plotino não era o único a ter
essas experiências, que foram relatadas por homens de todos os tempos e
culturas. Podem descrever a sua experiência de um modo completamente
diferente, mas as suas descrições apresentam muitas semelhanças
importantes. Vamos analisar algumas dessas semelhanças.
"Misticismo"
Uma experiência mística é uma experiência de unidade com Deus ou com o
"mundo espiritual". Muitas religiões afirmam que entre Deus e a
Criação há um abismo; mas o místico sente que esse abismo não
existe. Os místicos e as místicas sentem uma "fusão com Deus".
Sucede que aquilo a que geralmente chamamos "eu" não é o nosso
verdadeiro eu. Por breves momentos, podemos ter a experiência de uma
identificação com um eu maior. Alguns chamam-lhe Deus, outros "mundo
espiritual", "natureza absoluta" ou "universo". Na fusão, o místico
sente que "se perde a si mesmo", desaparece ou perde-se em Deus, tal
como uma gota de água "se perde" quando se mistura no oceano. Um místico
indiano disse outrora o seguinte: " Quando eu existia, Deus não existia.
Agora, Deus existe e eu já não existo."
O místico cristão " Angelus Silesius" (1624 -1677) afirmou: " A
gota torna-se oceano quando atinge o oceano, a alma torna-se Deus quando
alcança Deus." Talvez estejas a pensar que não é muito agradável "a
ideia de se perder a si mesmo". Compreendo o que pensas, Sofia, mas o
importante é que aquilo que tu perdes é inferior em relação ao que
ganhas. Perdeste quanto à forma que possuis de momento, mas ao mesmo
tempo compreendes que na realidade és algo infinitamente maior. És todo
o universo. És a alma do mundo, Sofia. És Deus. Se tens de renunciar a
ti mesma como Sofia Amundsen, podes consolar-te com a ideia de que um
dia perderás o teu "eu quotidiano". O teu verdadeiro eu - que só podes
descobrir quando consegues libertar-te a ti mesma - é, para os místicos,
um fogo maravilhoso que arde eternamente.
p. 126
Mas uma experiência mística deste género nem sempre vem por si
mesma. Muitas vezes, o místico tem de percorrer uma via de purificação e
de iluminação para poder encontrar Deus. Essa via consiste numa vida
simples e na meditação. De repente, o místico atinge então a sua meta e
pode exclamar: "eu sou Deus" ou "Eu sou Tu!". Encontramos em todas as
grandes religiões correntes místicas, e aquilo que os místicos escrevem
sobre a sua experiência mística revela notáveis semelhanças, apesar das
diferenças culturais. Só quando o místico tenta dar uma interpretação
religiosa ou filosófica à sua experiência mística é que o ambiente
cultural se torna manifesto.
Na "mística ocidental" - ou seja, no judaísmo, no cristianismo e
no islamismo
- o místico afirma sentir o encontro com um Deus pessoal. Apesar
de Deus estar presente na natureza e na alma humana, está além deste
mundo. Na "mística oriental"
- ou seja, no hinduísmo, no budismo e na religião chinesa
- o místico experimenta uma fusão total com Deus ou com a "alma
do mundo". "Eu sou a alma do mundo", poderá dizer o místico, ou "eu sou
Deus". Porque Deus não só está presente no mundo, como não está em
qualquer outro lugar.
Antes de Platão, havia fortes correntes místicas, sobretudo na
Índia. " Swami Vivekananda", que contribuiu para a difusão do hinduísmo
no Ocidente, afirmou: "Tal como certas religiões do mundo afirmam que um
homem que não acredita num Deus pessoal transcendente é ateu, nós
afirmamos que um homem que não acredita em si mesmo é ateu. Não
acreditar na grandeza da própria alma é aquilo que chamamos ateísmo."
Uma experiência mística também pode ser importante do ponto de vista da
ética. Um presidente da Índia, "Radhakrishnan", afirmou um dia: " Deves
amar o teu próximo como a ti mesmo, porque tu és o teu próximo. Só uma
ilusão te leva a pensar que o teu próximo é um outro em relação a ti
mesmo." Homens que não pertençam a nenhuma religião também podem relatar
experiências místicas. De repente, vivem algo a que chamam "consciência
cósmica" ou "sentimento oceânico". Sentem-se arrancados ao tempo e vêem
o mundo "do ponto de vista da perspectiva da eternidade".
Sofia sentou-se na cama. Tinha de verificar se ainda possuía
corpo. Ao ler sobre Plotino e os místicos, tivera a sensação de flutuar
pelo quarto, sair pela janela e sobrevoar a cidade. Vira todas as
pessoas em baixo, na praça, voara mais alto sobre o mar do Norte e a
Europa até ao Sara e às extensas savanas de África.
p. 127
Todo o globo terrestre se tornara um ser vivo e esse ser era Sofia.
"Eu sou o mundo", pensava ela. Todo o universo, que tantas vezes lhe
parecera insondável e inquietante - era o seu próprio eu. O universo
continuava a ser grande e majestoso, mas, nesse momento, ela sentia-se
tão grande como o universo. Essa sensação maravilhosa extinguiu-se
rapidamente, mas
Sofia tinha a certeza de que nunca a esqueceria. Algo parecia
ter saído de si e ter-se misturado com tudo, tal como uma gota de
corante pode tingir um copo de água.
Quando tudo passou, teve a sensação de que acordava com dores de
cabeça de um sonho espantoso. Sofia verificou com uma certa desilusão
que tinha um corpo que tentava levantar-se da cama. Tinha dores nas
costas por ter estado tanto tempo deitada de barriga para baixo enquanto
lia a carta de Alberto Knox. Mas sentira qualquer coisa de que nunca se
esqueceria. Por fim, conseguiu pôr-se de pé. Furou as folhas e colocou
-as junto às outras lições no "dossier". Depois, saiu para o jardim.
Os pássaros chilreavam como se o mundo tivesse sido criado de
novo. Atrás das velhas coelheiras as bétulas eram de um verde -claro tão
intenso que parecia que o
Criador ainda não terminara a diluição das cores. Poderia de
facto pensar que tudo era um Eu divino? Poderia pensar que possuía uma
alma que era uma "centelha do fogo"? Se assim fosse, ela mesma era um
ser divino.
p. 128
OS POSTAIS
. "eu imponho a mim mesmo uma severa censura"...
Passaram alguns dias durante os quais Sofia não recebeu mais cartas do
seu professor de filosofia. Na quinta -feira, 17 de Maio, era o feriado
nacional da
Noruega. Também tinha o dia 18 livre.
Na quarta -feira, a caminho da escola, Jorunn disse de repente:
- Que tal irmos acampar?
O primeiro pensamento de
Sofia foi recusar por não poder estar afastada de casa por muito
tempo.
Depois, mudou de ideias.
- Por mim, está bem.
Duas horas mais tarde, Jorunn chegou a casa de Sofia com uma
grande mochila.
Sofia também já tinha metido a tenda dentro da sua mochila.
Levaram ainda consigo sacos -cama e roupa quente, colchões de borracha,
lanternas, termos grandes com chá e muita comida saborosa.
Quando a mãe de Sofia chegou a casa, cerca das cinco horas, fez
-lhes muitas recomendações sobre o que deviam fazer e não fazer. A mãe
também queria saber onde elas pensavam acampar. Responderam que queriam
ir para Tiurtoppen ( Cabeço do Galo Silvestre). Talvez ouvissem o canto
do galo silvestre, na manhã seguinte.
Ao escolher aquele local para acampar, Sofia também tinha uma
segunda intenção.
Se não estava enganada, a cabana do major não ficava longe de
Tiurtoppen. Algo a levava a lá voltar, mas também sabia que nunca se
atreveria a ir sozinha. Foram pelo caminho que saía do parque de
estacionamento em frente do portão do jardim de Sofia. Jorunn e Sofia
conversaram acerca de Deus e do mundo, e Sofia achou por bem fazer uma
pausa em relação a tudo o que tinha a ver com filosofia.
p. 129
Cerca das oito horas, já tinham montado a tenda num planalto
perto de Tiurtoppen. Tinham preparado o local do acampamento e os sacos
-cama. Depois de terem comido, Sofia perguntou:
- Já alguma vez ouviste falar da cabana do major?
- A cabana do major?
- Algures neste bosque há uma cabana... junto a um pequeno lago.
Em tempos viveu lá um major, e por isso lhe chamam a cabana do major.
- E ainda mora lá alguém?
- Vamos ver?
- Onde é que fica?
Sofia apontou para as árvores. Jorunn não queria ir, mas
Sofia conseguiu convencê-la.
O sol começava a desaparecer no horizonte. Primeiro, caminharam
por entre pinheiros altos, em seguida tiveram de abrir caminho por entre
os arbustos e os silvados. Finalmente, chegaram a um carreiro. Seria o
que Sofia percorrera na manhã de domingo?
Sim - pouco depois, viu qualquer coisa cintilar entre as árvores
no lado direito do caminho.
- Ali está ela - afirmou. Passados uns instantes, estavam junto
ao pequeno lago. Sofia olhou para a cabana, do outro lado. As portadas
das janelas estavam fechadas. A casinha vermelha parecia totalmente
abandonada. Jorunn olhou em volta.
- Vamos pela água? - perguntou.
- Não, remamos.
Sofia apontou para o canavial. Lá estava o barco como da outra
vez.
- Já estiveste aqui?
Sofia abanou a cabeça.
Seria demasiado complicado relatar à amiga a sua última visita.
Como é que seria capaz de não revelar nada acerca de Alberto Knox e do
curso de filosofia? Gracejavam e riam enquanto remavam no lago. Na outra
margem, Sofia teve muito cuidado em puxar bem o barco para terra. Pouco
depois, estavam à porta. Jorunn rodou a maçaneta, mas a porta não se
abriu. Era óbvio que não havia ninguém na cabana.
- Fechada, estavas à espera de outra coisa?
- Talvez encontremos uma chave - afirmou Sofia.
Começou a procurar junto ao muro.
- O melhor é voltarmos à tenda - disse Jorunn, passado alguns
minutos.
p. 130
Mas, nesse momento, Sofia exclamou:
- Encontrei-a, encontrei-a! Mostrou a chave com uma expressão
triunfante. Introduziu-a na fechadura e a porta abriu-se.
As duas amigas entraram furtivamente na casa. No interior estava
escuro e fazia frio.
- Não se vê nada - disse Jorunn.
Sofia também pensara nisso. Tirou uma caixa de fósforos do bolso
e acendeu um fósforo. Antes de o fósforo se apagar, só conseguiram ver
que a cabana estava vazia.
Sofia acendeu outro e descobriu então uma pequena vela num
candelabro de ferro forjado em cima da lareira.
Acendeu a vela com mais um fósforo, e a pequena sala ficou de
repente tão clara que podiam ver à sua volta.
- Não é estranho que uma pequena vela possa iluminar tanta
escuridão? - perguntou
Sofia.
A amiga acenou afirmativamente.
- Mas a luz perde-se algures na escuridão - prosseguiu Sofia. -
Na realidade não existe nenhuma escuridão em si. É apenas ausência de
luz.
- Credo, que coisas estranhas estás para aí a dizer. Vamos
embora...
- Primeiro vamos ver o espelho. - Sofia apontou para o espelho
de latão que estava em cima da cómoda, exactamente como na outra vez.
- Que bonito...
- Mas isto é um espelho mágico.
- Espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?
- Eu não estou a brincar, Jorunn. Acho que se pode ver qualquer
coisa no outro lado do espelho.
- Não disseste que nunca tinhas estado aqui? E porque é que te
divertes tanto em assustar-me?
Sofia não podia responder a estas perguntas.
- Desculpa. Mas Jorunn descobriu então uma coisa que estava, no
chão, a um canto. Levantou-a.
- Postais ilustrados - afirmou.
Sofia sobressaltou-se.
- Não lhes toques! Estás a ouvir, não podes tocar-lhes! Jorunn
recuou assustada.
Deixou cair a caixa como se se tivesse queimado. Os postais
espalharam-se pelo chão. Passados uns instantes, desatou a rir.
p. 131
- São apenas postais normalíssimos. Jorunn agachou-se e pegou
nos postais. Em seguida,
Sofia também se baixou.
- Líbano... Líbano... Líbano... os postais foram todos enviados
do Líbano - afirmou Jorunn.
- Eu sei - Sofia quase soluçava.
- Mas então já estiveste aqui.
- Sim, estive.
Sofia compreendeu que tudo seria mais fácil se confessasse que
já tinha estado ali. Também não faria mal relatar à amiga os
acontecimentos misteriosos dos dias anteriores.
- Era aqui que te queria contar. Jorunn tinha começado a ler os
postais.
- São todos endereçados a uma certa Hilde Mõller Knag.
Sofia ainda não tocara em nenhum postal.
- É esse o endereço completo? Jorunn leu alto:
- Hilde Mõller Knag, a/c Alberto Knox, Lillesand, Noruega.
Sofia respirou de alívio. Receara que nos postais estivesse
escrito "a/c Sofia
Amundsen". Só então os observou melhor.
- 28 de Abril... 4 de Maio... 6 de Maio... 9 de Maio... foram
carimbados há poucos dias.
- Mas não é tudo. Todos os carimbos são "noruegueses".
Olha - Contingente O NU!
Os selos também são noruegueses...
- Eu acho que é sempre assim. Eles têm de ser neutrais, e por
isso têm lá uma estação de correios norueguesa.
- Mas como é que a correspondência é enviada para casa?
- Em aviões militares, acho eu.
Sofia pôs a vela no chão.
As duas amigas leram o que estava nos postais. Jorunn ordenou
-os. Leu em voz alta o primeiro postal.
" Querida Hilde! Acredita que estou desejoso de voltar para casa em
Lillesand. Vou chegar a Kjevik no dia 23 de Junho, à tarde. Gostava de
poder chegar a tempo para o teu aniversário, mas estou sob ordens
militares. Em compensação posso prometer-te que vou escolher com todo o
cuidado um grande presente que vais receber no dia dos teus anos. Beijos
daquele que pensa sempre no futuro da filha
P S. Envio a uma amiga comum uma cópia deste postal.
Compreende-me, querida Hilde, de momento estou muito
misterioso, mas tu hás-de compreender".
p. 132
Sofia leu o segundo postal:
"Querida Hilde! Aqui, temos de viver o dia-a-dia.
Se mais tarde me vier a recordar de alguma coisa relacionada com
todos estes meses no Líbano, será da longa espera. Mas esforço-me ao
máximo para te poder dar um presente tão bonito quanto possível pelo teu
aniversário. Por agora, não posso dizer mais nada. Imponho a mim mesmo
uma severa censura.
Beijos do pai"
As duas amigas estavam sem fôlego devido à tensão. Nenhuma delas
fazia comentários, apenas liam o que estava nos postais.
"Minha querida filha! Gostava de te poder enviar os meus pensamentos com
uma pomba branca. Mas, no Líbano, não há pombas brancas.
Se este país devastado pela guerra precisa realmente de alguma
coisa, é de pombas brancas. Se um dia a O NU pudesse trazer realmente a
paz ao mundo! P S. Talvez possas partilhar o teu presente de aniversário
com uma outra pessoa. Vamos ver, quando eu chegar a casa. Mas tu ainda
não sabes do que estou a falar.
Muitos beijos de uma pessoa que tem muito tempo para pensar em nós os
dois".
Depois de terem lido seis postais, só faltava um.
"Querida Hilde! Estou quase a rebentar com todos os segredos que têm a
ver com o teu aniversário, e várias vezes por dia tenho de me conter
para não telefonar e contar tudo. É uma coisa que não pára de crescer. E
tu sabes que quando uma coisa cresce é mais difícil guardá-la para nós.
Beijos do pai.
P S. Vais conhecer uma rapariga chamada Sofia. Para poderem saber um
pouco uma da outra antes de se conhecerem, comecei a enviar-lhe cópias
de todos os postais que te escrevo. Será que ela já começou a perceber,
Hilde? Até agora, não sabe mais do que tu. Tem uma amiga chamada Jorunn.
Talvez essa te possa ajudar".
Quando Jorunn e Sofia acabaram de ler o último postal, olharam
-se fixamente nos olhos. Jorunn agarrou no pulso de Sofia.
p. 133
- Tenho medo - disse.
- Eu também.
- Qual é a data do último postal?
Sofia observou de novo o postal.
- 16 de Maio - disse.
- Hoje, portanto.
- Impossível! - ripostou Jorunn. Estava quase a irritar-se.
Examinaram bem o carimbo, e não havia erro possível. Estava escrito
"16.05. - 90"
- Mas não é possível - insistiu Jorunn. - E eu não consigo
compreender quem é que poderá ter escrito isto. Tem de ser alguém que
nos conhece. Mas como é que ele pode ter sabido que nós viríamos hoje
aqui? Jorunn era a que tinha mais medo. Para Sofia, a história de Hilde
e do pai já não era novidade.
- Eu acho que isto tem a ver com o espelho de latão. Jorunn
assustou-se de novo.
- Não estás a querer dizer que os postais saltam do espelho no
preciso momento em que são carimbados no Líbano?
- Tens uma explicação melhor?
- Não.
- Mas este não é o único mistério.
Sofia levantou-se e iluminou com a vela os quadros da parede.
Jorunn inclinou-se para as pinturas.
- "Berkeley" e "Bjerkely". O que é que isto significa?
- Não faço ideia.
Nesse momento, a vela já estava quase no fim.
- Vamos embora! - disse Jorunn. - Anda!
- Eu só quero levar o espelho.
Dito isto, Sofia levantou-se e tirou da parede o grande espelho
de latão que estava pendurado sobre a cómoda branca. Jorunn tentou
dissuadi-la, mas Sofia não se deteve.
Quando saíram, estava uma noite típica de Maio e havia luz
suficiente para poderem reconhecer os contornos dos arbustos e das
árvores. O céu espelhava-se no lago. As duas amigas remaram lentamente
para a outra margem.
Nenhuma falou muito enquanto regressavam à tenda, mas ambas
pensavam que a outra reflectia sobre o que tinham visto. De quando em
quando, um pássaro levantava voo, espantado; ouviram duas vezes uma
coruja.
Quando chegaram à tenda, enfiaram-se nos sacos -cama. Jorunn
recusou-se a deixar o espelho entrar na tenda. Antes de adormecerem,
pensaram
p. 134
que era inquietante que ele ficasse à entrada da tenda.
Sofia também trouxera os postais, que colocou num bolso exterior
da mochila.
Na manhã seguinte, acordaram cedo. Sofia foi a primeira a sair
do saco -cama.
Calçou as botas e saiu da tenda. O espelho de latão estava
deitado na relva, coberto de orvalho. Sofia limpou o orvalho com a
camisola e observou o seu reflexo. Felizmente, não encontrou nenhum
postal recente do Líbano.
Sobre a planície atrás da tenda pairava uma neblina matinal
esfarrapada como pequenos tufos de algodão. Os pássaros chilreavam
energicamente, mas não conseguia ver nem ouvir galos silvestres.
As duas amigas vestiram mais uma camisola e tomaram o pequeno
-almoço diante da tenda. Depressa recomeçaram a falar da cabana do major
e dos misteriosos postais.
Depois do pequeno-almoço, desarmaram a tenda e puseram-se a
caminho de casa.
Sofia levava o grande espelho de latão debaixo do braço. Por
vezes, tinha de fazer uma curta pausa, porque Jorunn se recusava a tocar
no espelho. À medida que se aproximavam das primeiras casas, ouviram uns
estampidos. Sofia lembrou-se do que o pai de Hilde escrevera acerca do
Líbano devastado pela guerra. Compreendeu como era bom viver num país em
paz. Os estampidos vinham de inocentes fogos de artifício.
Sofia convidou Jorunn para tomar cacau. A mãe quis saber logo de
onde vinha o grande espelho. Sofia disse que o tinham encontrado na
cabana do major. A mãe voltou a afirmar que essa cabana estava
desabitada há muitos anos.
Depois de Jorunn ter ido para casa, Sofia vestiu um vestido
vermelho. O resto do feriado nacional decorreu normalmente. No
telejornal da noite houve uma reportagem que mostrava como os soldados
noruegueses da O NU no Líbano tinham festejado o dia.
Sofia olhava fixamente para o écran. Um dos homens que ali via
podia ser o pai de Hilde.
A última coisa que Sofia fez nesse dia 17 de Maio foi pendurar o
grande espelho de latão no seu quarto. Na manhã seguinte, encontrou na
toca um novo envelope amarelo. Abriu-o e leu imediatamente o que estava
escrito nas folhas.
p. 135
DUAS CULTURAS
. "só assim não flutuarás no vazio"
Já não falta muito para nos encontrarmos, Sofia.
Calculei que regressarias à cabana do major, por isso deixei lá
todos os postais do pai de Hilde. Só assim podem chegar a Hilde. Mas não
precisas de te preocupar com isso. Até 15 de Junho ainda vai correr
muita água debaixo das pontes. Vimos como os filósofos do Helenismo
assimilaram os antigos filósofos gregos, e como alguns foram fundadores
de seitas religiosas. Plotino prestou homenagem a Platão como se se
tratasse de um redentor da humanidade. Mas, como sabemos, no mesmo
período nasceu um outro redentor fora do âmbito cultural greco-romano.
Refiro-me a Jesus de Nazaré. Vamos ver neste capítulo como o
cristianismo foi penetrando no mundo greco-romano - mais ou menos como
o mundo de Hilde começou lentamente a penetrar no nosso mundo. Jesus era
judeu, e os judeus pertencem à cultura semítica. Os gregos e os romanos
pertencem à cultura indo-europeia. Podemos constatar que a civilização
europeia tem duas raízes. Antes de observarmos melhor como é que o
cristianismo se mistura lentamente com a cultura greco-romana, vamos
tratar dessas duas raízes.
Os indo-europeus.
Designamos por "indo-europeus" todos os países e culturas onde
se falam línguas indo-europeias. Pertencem a este grupo todas as
línguas europeias, excepto as línguas ugro -fínicas (lapão, finlandês,
estónio e húngaro) e basco. A maior parte das línguas indianas e
iranianas pertencem à família linguística indo-europeia. Há cerca de
quatro mil anos, os primeiros indo-europeus viviam provavelmente na
região do mar Negro e do mar
Cáspio. Pouco depois, essas
p. 136
tribos indo-europeias começaram a migrar para o Sudeste, para o
Irão e para a índia; para o Sudoeste, para a Grécia, Itália e Espanha;
para Oeste, através da Europa Central, para Inglaterra e França; para
Noroeste, para a Escandinávia; e para o Norte, para a Europa de Leste e
Rússia. Por toda a parte, os indo-europeus foram-se misturando com as
culturas anteriores, se bem que a religião e a língua indo-europeias
desempenhassem um papel dominante. Tanto os antigos escritos indianos
védicos como a filosofia grega e inclusivamente a mitologia de " Snorri"
estão portanto escritos em línguas aparentadas. Este parentesco não se
limita às línguas. As línguas aparentadas correspondem geralmente a
ideias aparentadas. Por isso podemos falar de uma "cultura indo
-europeia".
A cultura dos Indo-europeus era sobretudo caracterizada pela
crença em vários deuses diferentes, ou seja, pelo "politeísmo".
Encontramos em toda a área indo-europeia nomes de deuses, muitos termos
religiosos importantes e expressões semelhantes. Vou dar alguns
exemplos:
Os antigos hindus veneravam o deus " Dyaus". Em grego, este deus
chama-se "Zeus", em latim "Júpiter" (na realidade "Iovpater", ou seja,
"pai Iov"), e em antigo nórdico "Tyr". Os nomes Dyaus, Zeus, Iov e Tyr
são portanto diferentes variantes da mesma palavra. Talvez ainda te
lembres que os Vikings no Norte da Europa veneravam deuses a que
chamavam "ases". Também encontramos este termo para "deuses" no conjunto
do âmbito indo-europeu. Em antigo hindu (sânscrito), os deuses chamam
-se "asura", em antigo persa "ahura". Uma outra palavra para deus em
sânscrito é "deva", em persa "daeva", em latim "deus" e em antigo
nórdico "tivurr".
No Norte da Europa havia ainda um grupo próprio de divindades da
fertilidade (por exemplo, Njõrd, Freyr, Freyja). Estas divindades eram
designadas "vanes". Esta palavra é aparentada com o nome da deusa latina
da fertilidade "Vénus". Em sânscrito há o termo aparentado "vani", que
significa "prazer" ou "desejo".
Determinados mitos apresentam em toda a área indo-europeia um
claro parentesco. Quando Snorri fala acerca dos antigos deuses nórdicos,
alguns mitos fazem recordar mitos hindus que foram narrados dois ou três
mil anos antes. Obviamente, os mitos de Snorri estão relacionados com a
natureza nórdica e os indianos com a natureza indiana. Mas muitos dos
mitos têm um núcleo que aponta para uma origem comum. Este núcleo é
claramente visível nos mitos sobre as poções da imortalidade e sobre a
luta dos deuses contra as forças do caos. Inclusivamente no próprio
pensamento vemos claras conexões entre as culturas indo-europeias. Uma
semelhança típica reside no facto de
p. 137
conceberem o mundo como um combate eterno entre as forças do bem e
as forças do mal. Por isso, os indo-europeus procuraram predizer qual
seria o futuro do mundo. Podemos afirmar que não é por acaso que a
filosofia grega nasceu justamente no âmbito da cultura indo-europeia.
As mitologias indiana, grega e nórdica apresentam claros princípios de
um pensamento filosófico ou "especulativo". Os indo-europeus procuravam
ter conhecimento da evolução do mundo. Podemos inclusivamente seguir em
toda a área indo-europeia um termo preciso para "conhecimento" ou
"saber" de cultura para cultura. Em sânscrito, este termo é "vidya".
Esta palavra é idêntica à palavra grega "idea", que como sabes,
desempenha um papel importante na filosofia de Platão.
Do latim conhecemos a palavra "video", que para os romanos
significava simplesmente "ver". ( Só nos nossos dias é que "ver" é quase
sinónimo de fixar o ecrã da televisão). Do inglês conhecemos as palavras
"wise" e "wisdom" (sabedoria), em alemão "weise" e "Wissen". Em
norueguês temos a palavra "viten". A palavra norueguesa "viten" tem
portanto as mesmas raízes que a palavra indiana "vidya", a grega "idea"
e a latina "video". Em traços largos, podemos verificar que a visão era
o sentido mais importante para os indo-europeus. Entre os indianos e
entre os gregos, entre os iranianos e os germanos, a literatura é
caracterizada por grandes visões cósmicas. (Temos de novo a palavra
"visão", que vem do verbo latino "video".) Além disso era costume nas
culturas indo-europeias produzir pinturas e esculturas dos deuses e dos
acontecimentos mitológicos. Finalmente, os indo-europeus tinham uma
"concepção cíclica da história". Significa que para eles a história
decorre circularmente - ou em "ciclos" - tal como as estações do ano
alternam entre Verão e Inverno. Não há um verdadeiro começo nem um
verdadeiro fim da história. Trata-se de civilizações diversas que
nascem e perecem na alternância constante entre nascimento e morte.
Ambas as grandes religiões orientais - hinduísmo e budismo - são
de origem indo-europeia. O mesmo é válido para a filosofia grega, e
vemos claros paralelismos entre o hinduísmo e o budismo por um lado e a
filosofia grega por outro. Ainda hoje o hinduísmo e o budismo estão
fortemente influenciados pela reflexão filosófica. Frequentemente se põe
em evidência que no hinduísmo e no budismo o divino está presente em
tudo (panteísmo) e que o homem pode alcançar a unidade com Deus através
do conhecimento religioso. (Tu lembras-te de Plotino, Sofia!). Para
isso, é geralmente necessária uma grande concentração e meditação. No
Oriente, a passividade e o recolhimento são um ideal
p. 138
religioso. Na Grécia, era frequente pensar-se que o homem tinha de
viver uma vida de ascese - ou retiro religioso - para libertar a sua
alma. Alguns elementos da vida monástica medieval remontam a essas
concepções do mundo greco-romano. Em muitas culturas indo-europeias a
crença na "metempsicose" era também muito importante; assim, no
hinduísmo, o objectivo de cada crente é ser libertado um dia da migração
das almas. E sabemos que Platão também acreditava na migração das almas.
"Os semitas"
E agora vamos aos semitas,
Sofia. Trata-se aqui de uma cultura completamente diferente,
com uma língua também completamente diferente.
Originariamente, os semitas provinham da península árabe, mas a
cultura semítica expandiu-se igualmente em diversas regiões do globo.
Desde há mais de dois mil anos, os judeus vivem afastados da sua pátria
original. A história e a religião semíticas afastaram-se muito das suas
raízes geográficas devido ao cristianismo. Além disso, a cultura
semítica estendeu-se a todo o mundo através da expansão do islamismo.
As três religiões ocidentais - judaísmo, cristianismo e
islamismo - têm uma base semítica. O " Alcorão", o texto sagrado do
islamismo, e o " Antigo Testamento" estão escritos em línguas semíticas
aparentadas. Uma das palavras do Antigo Testamento para " Deus" tem a
mesma raiz linguística que o " Alá" dos muçulmanos. ( A palavra "alá"
significa simplesmente " Deus").
No cristianismo, o quadro é mais complicado. O cristianismo
também tem uma base semítica. Mas o " Novo Testamento" foi escrito em
grego, e quando a teologia cristã foi formulada, recebeu a influência
das línguas grega e latina, e consequentemente da filosofia grega.
Sabemos que os indo-europeus acreditavam em muitos deuses. Os
semitas adoptaram muito cedo a crença num único Deus, que é designada
por "monoteísmo". No judeísmo, no cristianismo e no islamismo a
existência de um só Deus é uma ideia fundamental. Uma outra
característica semítica é a concepção linear da história. Significa que
a história era vista linearmente. Deus criou o mundo, e nesse momento
começou a história, que terminará no dia do "juízo final", quando Deus
julgar os vivos e os mortos. Uma característica importante das três
grandes religiões ocidentais é precisamente o papel da história.
Deus intervém na história e esta existe apenas para que Deus
realize a sua vontade no mundo. Tal como outrora
p. 139
Deus conduziu Abraão à Terra Prometida, dirige a vida dos homens
através da história até ao dia do juízo, momento em que todo o mal do
mundo será destruído.
Devido à importância da acção divina na história, os semitas
ocupam-se da historiografia desde há muitos milhares de anos. As raízes
históricas estão no centro dos seus escritos religiosos.
Ainda hoje, a cidade de Jerusalém é um importante centro
religioso para judeus, cristãos e muçulmanos. Isto diz alguma coisa
acerca da base histórica comum a estas três religiões. Existem em
Jerusalém importantes sinagogas (judias), igrejas (cristãs) e mesquitas
(muçulmanas). Por isso é tão trágico que esta cidade se tenha tornado um
pomo de discórdia - que os homens se matem aos milhares, porque não
conseguem chegar a acordo acerca de quem deve ter o domínio da "cidade
eterna". Esperemos que a O NU consiga um dia que Jerusalém se torne um
ponto de encontro religioso das três religiões! ( Sobre esta parte
prática do curso de filosofia não vamos dizer mais nada por enquanto.
Deixamos isso ao pai de Hilde. Tu sabes que ele é observador da O NU no
Líbano, não é verdade? Para ser mais preciso, posso revelar-te que ele
presta serviço como major. Se começas a entrever uma relação, é porque é
correcta. Por outro lado, não quero antecipar o curso dos
acontecimentos).
Caracterizámos a visão como o sentido mais importante para os
indo-europeus. É espantoso o importante papel que a audição desempenha
na área semítica. Não é por acaso que o acto de fé judaico começa com as
palavras " Ouve, Israel!". No Antigo Testamento, lemos como os homens
"ouviam" as palavras do Senhor, e os profetas judeus iniciavam as suas
predições com a fórmula "assim falou Jeová" (deus). No cristianismo,
também se dá importância a "ouvir" a palavra de Deus. As cerimónias
religiosas hebraicas, cristãs e muçulmanas são caracterizadas sobretudo
pela leitura em voz alta dos textos sagrados. Mencionei também que os
indo-europeus produziam imagens e esculturas dos seus deuses. Para os
semitas, era proibido representar Deus. Isto significa que eles não
podiam produzir imagens ou esculturas de Deus nem de tudo o que fosse
sagrado. Também no Antigo Testamento se afirma que os homens não podem
criar nenhuma imagem de Deus. Esta norma é ainda hoje válida para o
islamismo e para o judeísmo.
No islamismo, existe uma aversão geral pela fotografia e pela
arte plástica. Os homens não devem competir com Deus em "criar" algo.
Mas na Igreja Cristã há muitas imagens de Deus e de Jesus, talvez
estejas a pensar. É verdade, Sofia, e isso é precisamente um exemplo do
facto de o cristianismo ter sido influenciado pelo mundo greco-romano.
p. 140
(Na Igreja Ortodoxa - ou seja, na Grécia e na Rússia
- existe ainda uma proibição de criar imagens esculpidas, isto
é, esculturas e crucifixos com cenas da história bíblica.)
Ao contrário das grandes religiões orientais, as três religiões
ocidentais defendem uma separação entre Deus e a sua Criação. O fim não
é a libertação da reencarnação, mas ser-se libertado do pecado e da
culpa. Além disso, a vida religiosa baseia-se mais na oração, no sermão
e na leitura da Bíblia do que na concentração e na meditação.
"Israel"
Agora, não quero entrar em concorrência com o teu professor de
religião, cara
Sofia, mas vamos ainda observar rapidamente a influência
hebraica no cristianismo. Tudo começou quando Deus criou o mundo. Podes
ler na primeira página da Bíblia como isso sucedeu. Mas depois, os
homens insurgiram-se contra Deus. O castigo não foi apenas a expulsão
de
Adão e Eva do paraíso. A morte também surgiu no mundo.
A desobediência dos hamens em relação a Deus representa o fio
condutor de toda a Bíblia. Se continuarmos a folhear o "Génesis",
podemos ler acerca do dilúvio e da arca de Noé. Depois lemos que Deus
fez um pacto com
Abraão e o seu povo. Este pacto estabelecia que Abraão e o seu
povo respeitariam os mandamentos de Deus. E Deus prometeu proteger os
sucessores de Abraão. Mais tarde, este pacto foi renovado, quando
"Moisés" recebeu as Tábuas da Lei no monte Sinai (a lei mosaica!). Isto
aconteceu cerca de 1200 a. C. Nessa época, os israelitas tinham vivido
muito tempo no Egipto como escravos, mas com a ajuda de Deus o povo foi
reconduzido a Israel.
Cerca do ano 1000 a. C., muito antes de existir algo que se
chamasse filosofia grega - ouvimos falar de três grandes reis em Israel.
O primeiro foi " Saul", seguiu-se-lhe " David", e após
David veio " Salomão". Todo o povo israelita estava unido num
reino e, sobretudo no reinado do rei David, viveu um período de
prosperidade política, militar e cultural.
Quando os reis eram consagrados, eram ungidos pelos sacerdotes.
Por isso, tinham o título de Messias, que significa "o ungido". No
contexto religioso, os reis eram vistos como intermediários entre Deus e
o povo. Por isso, os reis podiam ser igualmente designados por "filhos
de Deus", e o país por "reino de Deus". Mas o período de esplendor não
durou muito. O reino foi dividido em duas partes: o "reino do Norte"
(Israel) e o "reino do Sul" (Judeia). No ano de 722,
p. 141
o reino do Norte foi ocupado pelos assírios e perdeu toda a
importância política e religiosa. No Sul, as coisas não correram muito
melhor. O reino do Sul foi conquistado pelos babilónios no ano 586.
O templo de Jerusalém foi destruído, e uma grande parte do povo
foi levada para a Babilónia. Este "cativeiro babilónico" só terminou no
ano de 539. O povo pôde regressar a Jerusalém e reconstruir o grande
templo. Mas até ao início da nossa era, os judeus estiveram sempre sob
domínio estrangeiro.
Os judeus perguntavam-se porque é que o reino de David fora
destruído e porque é que desgraças após desgraças se abatiam sobre o
povo.
Deus tinha prometido proteger Israel. Mas o povo também
prometera observar os mandamentos divinos. Por fim, difundiu-se a ideia
de que Deus castigara Israel devido à desobediência.
A partir aproximadamente de 750 a. C. surgiu uma série de
"profetas" que anunciaram o castigo de Deus sobre Israel, porque o povo
não observava os mandamentos do
Senhor. "Um dia, Deus julgará Israel", diziam. Esses profetas
são designados por "profetas do dia do juízo".
Cedo surgiram também profetas que profetizavam que Deus salvaria
uma parte do povo e enviaria um "príncipe da paz", ou um rei da paz, da
estirpe de David. Este príncipe da paz deveria erigir de novo o antigo
reino de David e assegurar ao povo um futuro feliz. " O povo que caminha
na escuridão, verá uma grande luz", afirmou o profeta Isaías, "aqueles
que habitam na terra da sombra da morte, sobre eles brilhará a luz".
Esses profetas são designados por "profetas da salvação". Vou ser mais
conciso: o povo de Israel viveu feliz sob o reinado do rei David.
Quando as coisas começaram a correr pior para os israelitas, os
profetas profetizaram a vinda de um novo rei da estirpe de David. Este
"Messias", ou "filho de Deus", havia de "salvar" o povo, restaurar
Israel como potência, e construir um "reino de
Deus".
"Jesus"
Bom, Sofia. Parto do princípio de que me estejas a seguir. As
palavras -chave são "Messias", "Filho de Deus", "salvação" e "Reino de
Deus". De início, tudo isto tinha um significado político. Mesmo na
época de Jesus, muitos imaginavam o novo messias como chefe político,
militar e religioso do mesmo calibre que o rei David. O salvador era
portanto visto sobretudo como libertador nacional, o qual poria fim ao
sofrimento dos judeus sob o domínio romano.
p. 142
Mas também se levantaram outras vozes. Já dois séculos antes do nascimento
de Cristo, outros profetas tinham anunciado que o messias prometido
seria o redentor de todo o mundo. Ele não libertaria apenas os
israelitas do jugo estrangeiro, mas libertaria todos os homens do pecado
e da culpa - e também da morte. A esperança numa salvação neste sentido
da palavra também estava difundida em todo o mundo helenístico. E veio
então Jesus. Ele não é o único que surge como o messias prometido e, tal
como outros, usa as palavras "filho de Deus", "reino de Deus", "Messias"
e "salvação". Deste modo, parte das antigas profecias. Vai para
Jerusalém e é venerado pelas massas como salvador do povo.
Assim, faz lembrar os antigos reis que eram entronizados através
de um "ritual de elevação ao trono" característico. Ele também é ungido
pelo povo. " O tempo está completo", afirma, "o reino de Deus chegou." É
importante notar tudo isto. Mas agora tens de prestar muita atenção:
Jesus distinguia-se dos outros que se apresentavam como messias por
afirmar muito claramente não ser um chefe militar ou político. A sua
tarefa era muito maior. Anunciava a salvação e o perdão de Deus para
todos os homens, por isso podia andar entre os homens e dizer: " Os teus
pecados são-te perdoados." Pronunciar isto era inaudito. Por isso,
também não foi preciso muito tempo para os escribas levantarem protestos
contra Jesus. Por fim, empenharam-se também na preparação do seu
suplício. Vou explicar melhor: muitos homens no tempo de Jesus esperavam
um messias que havia de restabelecer o reino de Deus com grande poder e
esplendor (isto é, com a espada e com a lança). A expressão "reino de
Deus" está presente como fio condutor na mensagem de Jesus - aliás com
um significado muito mais alargado. Jesus apresentava o reino de Deus
como amor pelo próximo, solicitude para com os fracos e perdão para
todos os que erraram. Encontramos aqui uma modificação drástica no
significado de uma expressão antiga e em parte militar. Os homens
esperavam um líder militar que proclamasse o reino de Deus. Chega então
Jesus de túnica e sandálias e explica que o reino de Deus ou o " Novo
Testamento" significa: " Deves amar o próximo como a ti mesmo." Além
disso, ele afirmou que devemos amar os nossos inimigos. Se nos dão uma
bofetada, não devemos pagar na mesma moeda, mas apresentar a outra face.
E devemos perdoar - não sete vezes, mas setenta vezes sete.
Durante a sua vida, Jesus mostrou que não desdenhava falar com
prostitutas, publicanos corruptos e indivíduos politicamente
subversivos. Mas ele ainda vai mais longe: afirma que um filho que
dissipou toda a herança - ou um publicano corrupto que extraviou
dinheiro - é perante
p. 143
Deus justo desde que se dirija a Ele e peça perdão, porque tal é a
generosidade de Deus na Sua graça. Mas ele vai ainda mais longe - e
agora tens de te segurar: Jesus dizia que esses "pecadores" eram perante
Deus mais justos -, e mereciam preferencialmente o seu perdão - do que
aqueles que se orgulhavam da sua própria virtude. Jesus insistia em que
nenhum homem pode julgar por si se é digno do perdão de Deus. Não nos
podemos salvar a nós mesmos. (Muitos gregos acreditavam nisto!).
Quando Jesus apresenta as suas severas exigências éticas no
"sermão da montanha" não era apenas porque quisesse mostrar a vontade de
Deus. Ele quer também mostrar que nenhum homem é justo perante Deus. O
perdão de Deus é ilimitado, mas devemos dirigir-nos a ele pela oração
para obtermos o perdão.
Deixo a cargo do teu professor de religião mais esclarecimentos
acerca da personalidade de Jesus e da sua mensagem. Não é uma tarefa
fácil. Espero que ele também vos possa esclarecer como Jesus foi um
homem único.
De um modo genial, ele usa a linguagem do seu tempo e dá
simultaneamente às ideias antigas um conteúdo completamente novo e mais
vasto. Não admira que ele tenha sido crucificado. A sua radical mensagem
de salvação punha a nu tantos interesses e jogos de poder que tinha de
ser afastado.
No caso de Sócrates, vimos como pode ser perigoso apelar à razão
dos homens.
No caso de Jesus vemos como pode ser perigoso pedir um amor
incondicional pelo próximo e um perdão igualmente incondicional. Ainda
hoje vemos como Estados poderosos vacilam se são postos perante pedidos
simples de paz, amor e alimento para os pobres e perdão para os inimigos
do Estado.
Sabes ainda como Platão ficou contrariado pelo facto de o homem
mais justo de
Atenas ter de pagar com a vida. Para o cristianismo, Jesus é o
único homem justo que alguma vez viveu. Porém, foi condenado à morte.
Para o cristianismo, ele morreu pela humanidade. E isso é frequentemente
designado como a "paixão" de Cristo. Jesus foi o "servo sofredor" que
assumiu a culpa de todos os pecados dos homens para nos reconciliar com
Deus e nos salvar da Sua punição.
"Paulo"
Poucos dias após a crucificação e o enterro de Jesus surgiram rumores de
que ele havia ressuscitado dos mortos. Deste modo, mostrou que era mais
do que um homem, que era verdadeiramente "filho de Deus".
p. 144
Podemos dizer que a Igreja cristã teve início nessa manhã de Páscoa,
com o anúncio da ressurreição de Jesus. Já Paulo esclareceu isto: " Se
Jesus não ressuscitou, então a nossa prédica é vã, vã a nossa fé."
A partir daquele momento, todos os homens podiam ter esperança
na ressurreição da carne. Jesus foi crucificado para a nossa salvação. E
agora, querida Sofia, tens de reparar que não se trata da "mortalidade
da alma" ou de uma forma de reencarnação. Essa era uma concepção grega
- consequentemente indo-europeia. Mas o cristianismo ensina que
não há nada no homem - por exemplo, nenhuma "alma" - que fosse imortal
por si. A Igreja acredita na ressurreição da carne e na vida eterna, mas
é justamente graças a Deus que somos salvos da morte e da perdição.
Não é nosso mérito, nem se deve a nenhuma qualidade natural ou
inata.
Os primeiros cristãos começaram então a anunciar a "boa nova" da
salvação através da fé em Jesus Cristo.
Com a sua mensagem de redenção, o reino de Deus estava iminente.
Todo o mundo podia então ser conquistado por Jesus. (a palavra " Cristo"
é uma tradução grega da palavra hebraica "messias" e significa portanto
"o ungido"). Poucos anos após a morte de Jesus, o fariseu Paulo
converteu-se ao cristianismo.
Através das suas muitas viagens de missionário por todo o mundo
greco-romano, o cristianismo tornou-se uma religião universal. Tomamos
conhecimento disso nos Actos dos Apóstolos. A pregação de Paulo e as
suas directivas fornecidas aos cristãos foram também difundidas por meio
das epístolas que enviou às primeiras comunidades cristãs. Esteve também
em Atenas.
Caminhava na ágora da capital da filosofia. E estava indignado,
"de tal forma via a cidade tão idólatra", segundo se diz. Visitou a
sinagoga de Atenas e falou com os filósofos epicuristas e estóicos da
cidade. Levaram-no ao Areópago. Aí, disseram: "também podemos saber que
doutrina nova é essa que ensinas? Porque tu trazes algo novo para os
nossos ouvidos; por isso, gostaríamos muito de saber o que é." Estás a
imaginar isto,
Sofia? Aparece um judeu na ágora de Atenas e fala acerca de um
redentor que foi crucificado e que ressuscitou dos mortos. Já durante a
visita de Paulo a Atenas podemos ter uma ideia do choque entre a
filosofia grega e a doutrina cristã da salvação. Mas Paulo conseguiu ser
ouvido pelos atenienses. Enquanto está no Areópago - entre os imponentes
templos da Acrópole - faz o seguinte discurso: " Atenienses", começa,
"eu vejo que sois em todos os aspectos muito religiosos. Indo a passar,
vi os vossos cultos e encontrei um altar
p. 145
sobre o qual estava escrito:
Ao Deus desconhecido. Agora, anuncio -vos aquele ao qual
prestais culto sem saber. Deus, que fez o mundo e tudo o que nele há,
uma vez que é o senhor do céu e da terra, não habita nos templos feitos
pelos homens. Também não é servido pelas mãos dos homens, como se
precisasse de alguém, ele que dá a todos a vida e o alento por toda a
parte. E de um só fez todo o género humano, para que habitasse em toda a
face da terra, e colocou o limite para o tempo e o lugar da habitação;
para que busquem o Senhor como que às apalpadelas. E na verdade, ele não
está longe de cada um de nós. Pois nele vivemos, nos movemos e
existimos; como também disseram alguns dos vossos poetas: nós somos da
sua linhagem.
Sendo nós da linhagem de Deus, não devemos pensar que a
divindade é igual às imagens douradas, prateadas e de pedra feitas pela
arte dos homens. E na verdade, Deus não teve em conta o tempo da
ignorância; mas ordena a todos os homens, por toda a parte, que façam
penitência, porque ele estabeleceu um dia em que há-de julgar o mundo
com justiça através de um homem que escolheu e no qual todos têm fé,
depois de o ter ressuscitado dos mortos."
Paulo em Atenas, Sofia. Estamos a falar de como o cristianismo se
infiltra progressivamente no mundo greco-romano, como algo diferente,
muito diferente da filosofia epicurista, estóica ou neoplatónica. Porém,
Paulo encontra nesta cultura um apoio sólido. Diz que a busca de Deus
está presente em todos os homens, o que não era uma coisa nova para os
gregos. O que Paulo anuncia de novo é que Deus se revelou aos homens e
que foi verdadeiramente ao seu encontro.
Não é apenas um " Deus filosófico" ao qual os homens podem
aspirar com a razão. Também não se assemelha a nenhuma imagem de "ouro,
prata ou pedra" - já era suficiente o que havia na Acrópole e na ágora.
Mas Deus "não habita em templos feitos pelos homens". É um Deus pessoal
que intervém na história e morre na cruz pelos homens.
Depois de Paulo ter feito o seu discurso no Areópago, os Actos
dos Apóstolos contam que alguns fizeram troça dele por ele ter contado
que
Cristo tinha ressuscitado dos mortos. Mas alguns ouvintes
afirmaram também: " Queremos que nos voltes a falar disso." Outros
juntaram-se, por fim, a ele e tornaram-se cristãos. Entre estes estava
uma mulher, " Dâmaris", e devemos reparar nisso. Nessa altura, houve
muitas mulheres que se converteram ao cristianismo. Paulo prosseguiu a
sua actividade missionária. Poucas décadas depois da morte de
Cristo existiam comunidades cristãs em todas as cidades
p. 146
gregas e romanas mais importantes - em Atenas, Roma,
Alexandria, Éfeso, Corinto. No decorrer de três, quatro séculos,
todo o mundo greco-romano estava cristianizado.
" A profissão de fé"
Mas a importância de Paulo para o cristianismo não se limitou à sua
importante actividade missionária.
Dentro das comunidades cristãs também teve uma grande
influência. Havia uma grande necessidade de instrução espiritual.
Nos primeiros anos após a morte de Jesus, levantou-se uma
questão: teriam os não -judeus de passar primeiro pelo judeísmo? Por
exemplo, teria um grego que observar as leis de Moisés? Paulo não achava
isso necessário.
O Cristianismo era mais do que uma seita hebraica. Dirigia-se a
todos os homens com uma mensagem universal de salvação. A Velha Aliança,
entre Deus e Israel, era substituída pela Nova
Aliança, que Jesus concluíra entre Deus e todos os homens. Mas o
cristianismo não era a única nova religião daquele tempo. Vimos que o
Helenismo era caracterizado por uma mistura de religiões. Por isso, a
Igreja tinha de delinear claramente a doutrina cristã. Era importante
evitar uma cisão na Igreja
Cristã e a demarcação em relação a outras religiões.
Deste modo surgiu a profissão de fé, que teve como objectivo
reunir os mais importantes "dogmas" cristãos. Um desses dogmas afirma
que Jesus foi simultaneamente Deus e homem. Portanto, ele não foi "filho
de Deus" apenas pelos seus actos. Ele próprio era Deus, mas foi também
um "verdadeiro" homem que partilhou a vida dos homens e sofreu
verdadeiramente na cruz. Isto pode parecer uma contradição. Mas a
mensagem da Igreja afirma então que Deus se tornou homem. Jesus não era
nenhum "semideus" (ou seja, meio humano e meio divino). A crença em tais
semideuses estava bastante difundida nas religiões gregas e
helenísticas. A Igreja ensinava que Jesus é "inteiramente Deus,
inteiramente homem". "Postscriptum".
Estou a tentar explicar como todas as coisas estão relacionadas, cara
Sofia. A entrada do cristianismo no mundo greco-romano significou um
confronto dramático entre duas culturas, mas também uma das grandes
transformações culturais da história.
p. 147
Estamos quase a deixar a Antiguidade. Desde os primeiros filósofos gregos passaram-se
quase mil anos. À nossa frente está a Idade Média cristã, que também
durou cerca de mil anos.
O poeta alemão "Johann Wolfgang Goethe" escreveu:
" Quem não sabe prestar contas de três milénios, permanece nas trevas
ignorante, e vive apenas o dia que passa"
Mas não quero que pertenças a este tipo de pessoas. Eu esforço-me o
máximo para que conheças as tuas raízes históricas. Só assim te tornarás
um ser humano. Só assim serás mais do que um macaco. Só assim não
flutuarás no espaço vazio.
" Só assim te tornarás um ser humano. Só assim serás mais do que um
macaco..."
Sofia ficou ainda algum tempo a olhar fixamente para o jardim
pelos pequenos orifícios da sebe. Nesse momento, começou a perceber como
era importante conhecer as suas raízes históricas. Pelo menos, tinha
sido importante para o povo de Israel. Ela era simplesmente uma pessoa
qualquer. Mas se conhecesse as suas raízes históricas, a sua existência
tornar-se-ia um pouco menos aleatória. Vivia há poucos anos no
planeta, mas se a história da humanidade era também a sua própia
história, tinha num certo sentido muitos milhares de anos.
Sofia juntou todas as folhas e saiu da toca. Saltando
alegremente atravessou o jardim e foi para o seu quarto.
p. 148
A Idade Média
"... percorrer apenas uma parte do caminho não significa enganar-se..."
Na semana seguinte, Sofia não soube nada de Alberto Knox. Também
não recebeu mais postais do Líbano, mas continuou a falar com Jorunn
acerca dos postais que elas tinham encontrado na cabana do major. Jorunn
ficara nervosíssima, mas como depois nada mais sucedera, o seu medo
perdeu-se entre os trabalhos de casa e o "badminton".
Sofia leu as cartas de Alberto muitas vezes e procurou uma
referência que pudesse explicar a questão de Hilde.
Assim, também podia assimilar bem a filosofia antiga. Depressa
deixou de confundir
Demócrito e Sócrates, Platão e Aristóteles.
Na sexta -feira, dia 25 de Maio, estava junto ao fogão e fazia o
jantar porque a mãe não tardaria a chegar a casa vinda do trabalho. Era
o acordo habitual de sexta -feira. Nesse dia, Sofia cozinhava sopa de
peixe com batatas e cenoura. Nada mais fácil. Lá fora, levantara-se
vento. Enquanto mexia a panela,
Sofia voltou-se e olhou pela janela. As bétulas baloiçavam como
espigas.
De repente, algo bateu contra a vidraça. Sofia voltou-se de
novo e descobriu então um bocado de cartão colado à janela.
Aproximou-se e viu que se tratava de um postal ilustrado.
Através do vidro, leu: "Hilde Mõller Knag, a/c de
Sofia Amundsen..." Pensara imediatamente nisso. Abriu a janela e
recolheu o postal. Teria percorrido o longo caminho desde o Líbano
transportada pelo vento? Também este postal tinha a data: " Sexta
-feira, 15 de Junho".
Sofia tirou a panela do fogo e sentou-se à mesa. No postal,
estava escrito:
"Querida Hilde! Não sei se ainda estarás a festejar o teu aniversário
quando leres este postal. Por um lado, espero que sim, de qualquer modo
tenho esperança que ainda não tenham passado muitos dias.
Que passem
p. 149
uma ou duas semanas para Sofia não significa que suceda o mesmo
connosco. Eu regresso a casa na noite de S. João.
Nessa altura, ficaremos sentados no baloiço e poderemos olhar
juntos para o mar, Hilde. Temos muito para conversar. Beijos do pai, a
quem por vezes o conflito milenar entre judeus, cristãos e muçulmanos
deprime. Tenho que estar sempre a lembrar-me que as três religiões
remontam a
Abraão. Mas, nesse caso, não têm de rezar ao mesmo Deus?
Aqui, a história de Caim e
Abel repete-se todos os dias.
P S. Poderias dar cumprimentos à Sofia? Pobre criança, ela ainda não
compreendeu como as coisas estão relacionadas. Mas talvez tu já tenhas
compreendido."
Sofia inclinou-se esgotada sobre o tampo da mesa. Era claro que
não compreendia como as coisas se relacionavam.
Será que Hilde compreendia?
Se o pai de Hilde podia pedir-lhe que apresentasse cumprimentos
à Sofia, era porque Hilde sabia mais sobre
Sofia do que Sofia sobre Hilde. Era tudo tão complicado que
Sofia preferiu voltar ao fogão. Um postal que ia bater contra a janela
da cozinha. Correio aéreo no verdadeiro sentido da palavra... Mal Sofia
colocou de novo a panela no fogão, o telefone tocou.
Se fosse o seu pai! Se ele voltasse para casa, ela contar-lhe
-ia tudo o que lhe acontecera na semana anterior. Mas devia ser apenas
Jorunn ou a mãe... Sofia correu para o telefone.
- Sofia Amundsen.
- Sou eu -, respondeu uma voz no outro lado da linha.
Sofia tinha a certeza de três coisas: não era o pai. Mas era uma
voz masculina. E ela estava convencida de já ter ouvido uma vez esta
voz.
- Quem fala? - perguntou.
- Fala o Alberto.
- Ah...
Sofia não sabia o que havia de responder. Reconheceu a voz do
vídeo de Atenas. - Estás boa? - Sim...
- Mas a partir de agora já não há mais cartas. - Mas eu não te
mandei nenhuma rã!
- Temos de nos encontrar,
Sofia. E depressa, compreendes?
- Mas porquê?
- Estamos quase a ser encurralados pelo pai de Hilde.
p. 150
- Encurralados como?
- Por todos os lados, Sofia. Temos de colaborar.
- Como...?
- Mas infelizmente, só me podes ajudar quando eu te tiver falado
da Idade Média. Temos ainda de falar do Renascimento e do século XVII.
Além disso, Berkeley desempenha um papel -chave.
- Não havia um retrato dele na cabana do major?
- Sim, exactamente. Talvez a batalha se trave justamente por
causa da sua filosofia.
- Falas como se se tratasse de uma espécie de guerra.
- Eu diria que é uma guerra espiritual. Temos de tentar chamar a
atenção de Hilde e trazê-la para o nosso lado, antes que o seu pai
regresse a Lillesand.
- Não estou a perceber nada.
- Talvez os filósofos te abram os olhos. Encontramo-nos amanhã
de madrugada às quatro, na Igreja de Santa Maria. Mas vem sozinha, minha
filha.
- Tenho de ir a meio da noite?
- ... clic.
- Está?
Que infame! Tinha desligado. Sofia voltou a correr para o fogão.
Por pouco a sopa não tinha vindo por fora. Ela mexeu os pedaços de peixe
e as cenouras na panela e baixou o lume.
Na Igreja de Santa Maria? Era uma velha igreja de pedra da Idade
Média. Sofia achava que ali já só se realizavam concertos e missas muito
especiais. No Verão era aberta por vezes para os turistas. Mas não
estaria fechada a meio da noite?
Quando a mãe voltou para casa, Sofia tinha posto o postal do
Líbano no armário, junto às outras coisas de Alberto e de Hilde. Depois
do jantar, foi a casa de Jorunn.
- Temos que ter um encontro um pouco especial - afirmou, quando
a amiga abriu a porta.
Não disse mais nada até terem fechado a porta do quarto de
Jorunn.
- É um bocado complicado
- prosseguiu Sofia.
- Conta!
- Tenho de dizer à minha mãe que hoje durmo em tua casa.
- Que bom!
- Mas isso é o que eu vou dizer, compreendes? Vou estar noutro
local.
- Valha-me Deus! Isso tem alguma coisa a ver com um rapaz?
p. 151
- Não, tem a ver com Hilde. Jorunn assobiou baixo.
Sofia olhou fixamente para ela.
- Venho cá hoje à noite - disse - mas tenho de sair por volta
das três. Tens de me encobrir até que eu esteja de volta.
- Mas onde vais? Qual é o teu plano?
- Desculpa. Não posso dizer nada.
Dormir em casa de Jorunn não era problema, pelo contrário. Sofia
tinha por vezes a sensação de que a mãe gostava de ter a casa para si.
- Mas vens amanhã para o pequeno-almoço? - foi a única pergunta
que fez quando Sofia saiu.
- Caso não venha, tu sabes onde estou. Porque é que dissera
aquilo? Era esse precisamente o ponto fraco do seu plano.
A visita de Sofia começou como a maior parte das visitas quando
se dorme fora de casa, com conversas íntimas até alta noite. A diferença
é que desta vez Sofia pôs o despertador para as três e um quarto quando
elas se deitaram por fim, cerca da uma. Jorunn acordou quando Sofia
desligou o despertador duas horas mais tarde.
- Tem cuidado - pediu ela.
Sofia saiu para a rua e pôs-se a caminho. A Igreja de Santa
Maria ficava a alguns quilómetros de distância, mas apesar de ter
dormido apenas duas horas, sentia-se extremamente desperta. Por cima
das colinas, a oriente, o céu estava vermelho.
Quando ela chegou à entrada da velha igreja de pedra, eram quase
quatro. Sofia empurrou a porta pesada. Estava aberta!
A igreja estava deserta e imersa num profundo silêncio.
Através dos vitrais penetrava uma luz azulada que tornava
visíveis milhares de particulazinhas de pó que andavam no ar. O pó
parecia concentrar-se em raios espessos que atravessavam a nave da
igreja.
Sofia sentou-se num banco, no centro. Observou o altar e um
velho crucifixo de cores desmaiadas. Passaram-se alguns minutos.
Subitamente, o órgão começou a tocar. Sofia não se atrevia a
voltar-se. Parecia uma melodia muito antiga; certamente, medieval.
Pouco depois, voltou o silêncio. Ouviu então passos atrás de si que se
aproximavam. Deveria olhar para trás? Preferiu continuar a fixar
Cristo na cruz.
p. 152
Os passos passaram ao lado dela, e viu então uma figura avançar
pela igreja. O vulto trazia um hábito castanho de monge. Sofia podia ter
jurado que se tratava de um monge medieval. Tinha medo, mas não ficou em
pânico. O monge fez uma curva em frente à balaustrada do altar e subiu
ao púlpito. Inclinou-se sobre o parapeito, olhou para Sofia e disse em
latim:
- Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto. Sicut erat in
principio et nunc et semper in saecula saeculorum.
Amen.
- Fala em norueguês, imbecil! - exclamou Sofia.
As suas palavras ressoaram na antiga igreja de pedra. Ela sabia
que o monge tinha de ser Alberto Knox. Apesar disso, arrependeu-se de
se ter exprimido de uma forma tão irreverente numa igreja antiga. Mas
tivera medo e, quando se tem medo, é por vezes reconfortante quebrar
todos os tabus.
- Silêncio!
Alberto levantou uma mão, como um sacerdote que pede à
comunidade para se sentar.
- Que horas são, filha? - perguntou.
- Cinco para as quatro - respondeu Sofia, que já não tinha medo.
- Então já é a hora. Agora começa a Idade Média.
- A Idade Média começa às quatro horas? - perguntou
Sofia surpreendida.
- Sim, cerca das quatro.
Depois eram cinco, seis e sete. Mas o tempo parecia parado.
Passaram as oito, as nove e as dez. Mas estava-se ainda na Idade Média,
compreendes? Tempo, talvez penses, de nos levantarmos para um novo dia.
Eu percebo o que queres dizer. Mas é fim-de-semana, se me entendes, um
longo fim-de-semana. Passaram as onze, doze e treze. Chamamos a esta
época a baixa Idade Média. Foram então construídas as grandes catedrais
na Europa. Só cerca das catorze horas cantou aqui e ali um galo. E só
nessa altura começou o seu declínio.
- Então a Idade Média durou dez horas - concluiu
Sofia.
Alberto lançou a cabeça para a frente espreitando pelo capuz do
hábito de monge, e olhou para a sua comunidade, que naquele momento era
constituída apenas por uma rapariga de catorze anos.
- Se uma hora dura cem anos, sim. Podemos pensar que Jesus
nasceu à meia-noite. Paulo iniciou as suas viagens missionárias pouco
antes da meia noite e meia e morreu um quarto de hora mais tarde, em
Roma. Até às três horas, a Igreja Cristã era mais ou menos proibida, e
no ano de 313 o cristianismo foi reconhecido como
p. 153
religião no Império Romano. Isso sucedeu sendo imperador
Constantino, que só foi baptizado anos mais tarde no leito de
morte. No ano de 380, o Cristianismo tornou-se a religião do Estado de
todo o Império Romano.
- Mas o Império Romano não entrou em decadência nessa altura?
- Sim, já estava a ruir por todos os lados. Estamos perante uma
das mais importantes transformações culturais da história. No século IV,
Roma foi ameaçada tanto pelas tribos que se aproximavam vindas do Norte
como por conflitos internos. No ano de 330, o imperador Constantino
transferiu a capital do Império Romano para Constantinopla, cidade que
ele próprio fundara à entrada do mar Negro. A nova cidade foi considerada
a partir de então como a "segunda Roma". No ano de 395, o Império
Romano foi dividido - passou a haver o "Império Romano do
Ocidente", com Roma no centro, e o "Império Romano do
Oriente", cuja capital era a cidade de Constantinopla. Em 410,
Roma foi saqueada por tribos bárbaras, e em 476 todo o Império Romano do
Ocidente caiu. O Império Romano do Oriente conservou-se até ao ano de
1453, quando os turcos conquistaram Constantinopla.
- E desde então, a cidade chama-se Istambul?
- Correcto. Uma outra data que devemos fixar é o ano de 529.
Nesse ano, a Academia de Platão em Atenas foi encerrada. E nesse mesmo
ano, foi fundada a Ordem Beneditina, a primeira grande ordem monástica.
Deste modo, o ano de 529 foi o ano em que a Igreja Cristã impediu a
expansão da filosofia grega. A partir dessa altura, os conventos
detinham o monopólio do ensino, da reflexão e da meditação. A hora
avançava para as cinco e meia...
Sofia já percebera há muito tempo o que Alberto queria dizer com
as diversas horas.
A meia noite era o ano 0, a uma era o ano 100 d. C., as seis
eram o ano 600 d. C., e as catorze horas eram o ano de 1400 d. C...
Alberto prosseguiu:
- Por "Idade Média", entendemos na realidade o tempo que medeia
entre duas outras épocas. Esta expressão surgiu no Renascimento. Nessa
época, a Idade Média era tida como uma longa "noite de mil anos" que
tinha obscurecido a Europa entre a Antiguidade e o Renascimento. Ainda
hoje utilizamos a expressão "medieval" pejorativamente para tudo o que
nos parece dogmático e retrógrado. Mas houve também quem tivesse visto a
Idade Média como o "crescimento milenar". Foi na Idade Média, por
exemplo, que se formou o ensino público. Muito cedo surgiram as
primeiras escolas nos mosteiros.
p. 154
No século XII, nasceram as escolas nas catedrais, e a partir do
século XIII foram fundadas as primeiras universidades. Ainda hoje, as
disciplinas estão divididas em diversos grupos ou "faculdades", como na
Idade Média.
- Mas mil anos é muito tempo.
- O cristianismo precisava de tempo para ser aceite pelo povo.
Além disso, durante a Idade Média nasceram as diferentes nações - com
cidades e castelos, a música e a poesia populares. O que seriam as
lendas e as canções populares sem a Idade Média? Sim, o que seria a
Europa sem a Idade Média? Uma província romana? Mas a ressonância de
nomes como Noruega, Inglaterra ou Alemanha reside precisamente no abismo
extraordinário a que chamamos Idade Média. Nesta profundidade há muitos
peixes graúdos, mesmo que não os possamos encontrar. Mas Snorri era um
homem da Idade Média. E Olaf, o
Santo. E Carlos Magno. Para não falar de Romeu e Julieta, os
Nibelungos, a Branca de Neve ou os gigantes das florestas norueguesas. E
ainda um conjunto de príncipes esplêndidos e reis majestosos, cavaleiros
corajosos e belas donzelas, anónimos pintores de vitrais e geniais
construtores de órgãos. E não mencionei os monges, os cruzados e as
bruxas.
- Também ainda não falaste dos sacerdotes.
- Tens razão. O cristianismo só chegou à Noruega após a viragem
do milénio, mas seria um exagero se afirmássemos que a Noruega se tornou
um país cristão após a batalha de Stiklestad. Antigas concepções pagãs
coexistiam com a doutrina cristã, e muitos destes elementos pré
-cristãos misturavam-se com os costumes cristãos. Nas festas de Natal
norueguesas, por exemplo, coabitam ainda hoje costumes cristãos e
costumes nórdicos antigos. Subsiste a antiga norma segundo a qual os
cônjuges tendem a assemelhar-se cada vez mais. Apesar disso, temos de
sublinhar que o cristianismo se tornou por fim a religião dominante,
pelo que, a Idade Média é considerada um período dominado por uma
"cultura unitária cristã".
- Então não foi apenas um período obscuro e triste?
- Os primeiros cem anos a seguir ao ano 400 trouxeram, de facto,
uma decadência cultural. A época romana foi notável pelo seu alto grau
de civilização, com grandes cidades que dispunham de redes públicas de
esgotos, termas públicas e bibliotecas. Para não falar da arquitectura
grandiosa. Toda esta cultura se desmoronou durante os primeiros séculos
da Idade Média. O mesmo sucedeu com o comércio e a economia baseados na
moeda. Na Idade Média, a economia de subsistência e o pagamento em
géneros surgiram de novo. O feudalismo
p. 155
caracterizou a economia. Feudalismo significa que alguns grandes
senhores possuíam a terra que os camponeses tinham de cultivar para
ganhar o seu sustento. Durante o primeiro século, a densidade
populacional também baixou fortemente. Roma fora na Antiguidade uma
cidade com mais de um milhão de habitantes. Já no século VII, a
população da antiga metrópole estava reduzida a quarenta mil habitantes.
Uma população modesta caminhava entre os restos dos opulentos edifícios
da época áurea da cidade. Quando os homens precisavam de materiais de
construção, havia suficientes ruínas antigas de que se podiam servir,
motivo de grande desgosto para os arqueólogos actuais, que teriam
preferido que os homens da Idade Média tivessem deixado em paz os
monumentos antigos.
- À medida que o tempo passa, sabe-se sempre mais.
- A época de Roma como potência política terminara por volta de
finais do século IV. Mas depressa o bispo de Roma se tornou o chefe de
toda a Igreja católica romana. Recebeu o nome de "papa"
- ou "pai" - e, por fim, foi considerado o representante de
Jesus na terra. Por isso, durante quase toda a Idade Média, Roma foi a
capital da Igreja. E não havia muitas pessoas que ousassem "elevar a sua
voz contra Roma". Mas, pouco a pouco, os reis e os príncipes dos novos
Estados nacionais ganharam tanto poder que alguns deles tinham coragem
para se oporem ao forte poderio da Igreja.
Sofia fixava o erudito monge.
- Disseste que a Igreja encerrou a Academia de Platão em Atenas.
Os filósofos gregos foram todos esquecidos posteriormente?
- Só em parte. Havia quem conhecesse alguns escritos de
Aristóteles, e quem conhecesse alguns de Platão. Mas o antigo
Império Romano dividiu-se progressivamente em três espaços culturais
distintos. Na Europa Ocidental difundiu-se uma cultura cristã de língua
latina, com a capital em Roma. Na Europa
Oriental, formou-se uma cultura cristã de língua grega, com a
capital em Constantinopla. Mais tarde, Constantinopla recebeu o nome
grego de Bizâncio. Falamos portanto da "Idade Média bizantina", por
oposição à "Idade Média católica romana". Mas também o Norte de África e
o Médio Oriente tinham pertencido ao Império Romano. Estas regiões
desenvolveram na Idade Média uma cultura muçulmana de língua árabe. A
seguir à morte de Maomé, no ano de 632, o Médio Oriente e o Norte de
África foram conquistados para o Islão. Em seguida, também a Espanha foi
anexada ao domínio cultural islâmico. O Islão obteve por exemplo os seus
lugares sagrados em Meca, Medina, Jerusalém e Bagdad. Do ponto de vista
histórico -cultural é importante
p. 156
reparar que os árabes também tomaram a antiga cidade helenística de
Alexandria. Herdaram, assim, uma grande parte da ciência grega. Durante
toda a Idade Média, os árabes detiveram o papel cimeiro em ciências como
a matemática, a química, a astronomia e a medicina. Ainda hoje
utilizamos "algarismos árabes". Em algumas áreas, a cultura árabe era
superior à cultura cristã.
- Eu gostava de saber o que é que se passou com a filosofia
grega.
- Consegues imaginar um rio que por algum tempo se reparte em
três cursos distintos antes de se juntarem novamente numa grande
corrente?
- Estou a imaginar.
- Então também consegues imaginar como a cultura greco-romana
foi transmitida, em parte, através da cultura católica romana no
Ocidente, em parte através da cultura romana no Oriente e em parte
através da cultura árabe, no
Sul. Mesmo que simplifiquemos muito, podemos dizer que o
neoplatonismo sobreviveu no
Ocidente, Platão no Oriente e Aristóteles no Sul, entre os
árabes. É importante o facto de todos os três cursos terem confluído
numa corrente no final da Idade Média, no norte de Itália. Na Espanha,
os árabes contribuíam com influências árabes, a Grécia e Bizâncio com
influências gregas. E começa então o Renascimento, inicia-se o
"renascer" da cultura antiga. De certo modo, a cultura antiga
sobrevivera à longa Idade Média.
- Compreendo.
- Mas não nos devemos antecipar ao curso dos acontecimentos.
Primeiro, vamos conversar um pouco acerca da filosofia da Idade Média,
minha filha. E não te vou falar mais do púlpito. Vou descer.
Sofia sentia os olhos pesados de sono. Ao ver o estranho monge
descer do púlpito da Igreja de Santa Maria, parecia-lhe estar a sonhar.
Alberto dirigiu-se para a balaustrada do altar. Primeiro, olhou
para o altar com o velho crucifixo. Depois, voltou-se para Sofia, foi
ter com ela a passos lentos e sentou-se ao seu lado no banco. Era
estranho estar tão perto dele. Sob o capuz, Sofia viu dois olhos
castanhos de um homem de meia-idade, de cabelos escuros e pêra.
Quem és tu? pensou ela. Porque é que apareceste na minha vida?
- Havemos de nos conhecer melhor - afirmou ele, como se lhe
tivesse lido os pensamentos. Enquanto ali permaneciam, a luz que entrava
na igreja através dos vitrais tornava-se cada vez mais clara. Alberto
Knox começou então a falar da filosofia medieval.
p. 157
- Os filósofos medievais aceitaram como um dado adquirido que o
cristianismo era a verdade - começou ele. - As questões principais eram
outras: temos simplesmente que acreditar na revelação cristã ou podemos
também chegar às verdades cristãs com o auxílio da razão? Como era a
relação entre os filósofos gregos e as doutrinas da Bíblia? Existia uma
contradição entre a Bíblia e a razão, ou a fé e o saber estavam de
acordo? Quase toda a filosofia medieval girava em torno desta questão.
Sofia acenou a cabeça com impaciência. Já respondera a esta
questão da fé e do saber no seu trabalho de religião.
- Vamos ver como esta problemática se situa nos filósofos mais
importantes da Idade Média e podemos começar com
Santo Agostinho, que viveu entre 354 e 430. Na vida deste homem
podemos estudar a passagem da Antiguidade tardia ao início da Idade
Média. Santo Agostinho nasceu na vila de Tagaste, no norte de África,
mas com dezasseis anos foi estudar para Cartago. Mais tarde, visitou
Roma e Milão e passou os últimos anos da sua vida como bispo de Hipona,
a trinta ou quarenta quilómetros a oeste de Cartago. Mas ele não foi
sempre cristão. Santo Agostinho conheceu muitas correntes filosóficas e
religiosas antes de se converter ao cristianismo.
- Podes dar-me exemplos?
- Durante algum tempo, foi "maniqueu". Os maniqueus pertenciam a
uma seita típica da
Antiguidade tardia. Proclamavam uma teoria da salvação em parte
religiosa e em parte filosófica. Dividiam o mundo em bem e mal, luz e
trevas, espírito e matéria. Através do seu espírito, os homens podiam
elevar-se acima do mundo material e deste modo criar a base para a
salvação da sua alma. Mas a rigorosa separação entre o bem e o mal não
dava descanso a Santo Agostinho. O jovem Agostinho ocupava-se sobretudo
com aquilo a que costumamos chamar "o problema do mal". Por este
problema, devemos entender a questão da origem do mal.
Durante algum tempo, ele foi influenciado pela filosofia
estóica, e os estóicos negavam uma separação clara entre o bem e o mal.
Mas acima de tudo, Santo Agostinho foi influenciado por uma outra
corrente filosófica importante da
Antiguidade tardia - o neoplatonismo, que defendia que tudo o
que existia era de natureza divina.
- E tornou-se então um bispo neoplatónico?
- Sim, talvez o possas dizer assim. Primeiro que tudo, tornou
-se cristão, mas o cristianismo de Santo Agostinho é, em grande parte,
influenciado pelo pensamento platónico. E por isso, Sofia, não há uma
ruptura dramática com a filosofia grega quando entramos na Idade
p. 158
Média cristã. Boa parte da filosofia grega foi levada para a nova
época por padres da Igreja como Santo Agostinho.
- Queres dizer que Santo Agostinho era cinqüenta por cento
cristão e cinqüenta por cento neoplatónico?
- Ele achava-se obviamente cem por cento cristão. Mas não via
nenhuma contradição profunda entre o cristianismo e a filosofia
platónica. Os paralelismos entre a filosofia de Platão e a doutrina
cristã pareciam-lhe tão evidentes que se questionava se Platão não
poderia ter conhecido pelo menos partes do Antigo Testamento, o que é
naturalmente muito duvidoso. Podemos, pelo contrário, afirmar que Santo
Agostinho "cristianizou" Platão.
- Pelo menos não rejeitou tudo o que tinha a ver com filosofia,
apesar de acreditar no cristianismo?
- Mostrou que há limites para o alcance da razão em questões
religiosas. O cristianismo é também um mistério divino ao qual só
podemos chegar através da fé. Mas quando acreditarmos no cristianismo,
Deus "iluminará" a nossa alma, e então obteremos uma espécie de saber
sobrenatural acerca de Deus. O próprio Santo Agostinho sentira que a
filosofia não podia ser ilimitada. A sua alma só encontrou descanso
quando ele se tornou cristão. " Agitado está o nosso coração, enquanto
não repousa em Ti" escreveu.
- Eu não compreendo bem como é que a teoria das ideias de Platão
se pôde conciliar com o cristianismo - objectou
Sofia. - O que é que sucede às ideias eternas?
- Santo Agostinho explica que Deus criou o mundo do nada, e isso
é uma ideia bíblica. Os gregos inclinavam-se mais para a ideia de que o
mundo existira sempre. Mas, segundo S. Agostinho, antes de Deus ter
criado o mundo as "ideias" existiam no pensamento de Deus. Ele atribuiu
as ideias eternas a Deus e salvou deste modo a concepção platónica da
ideia eterna.
- Muito inteligente!
- Mas isso também mostra como Santo Agostinho e muitos outros
padres da Igreja se esforçaram por conciliar o pensamento grego e o
hebraico.
De certo modo, eram cidadãos de duas culturas. Na sua concepção
do mal, também recorre ao neoplatonismo. Achava, como Plotino, que o mal
consistia na "ausência" de Deus. O mal não tem uma existência própria, é
algo que não é, porque a Criação de Deus é apenas boa. O mal surge
através da desobediência dos homens, segundo Santo Agostinho. Ou, usando
as suas próprias palavras: a "boa vontade" é "obra de Deus", a "má
vontade" é a "negação da obra de Deus".
p. 159
- Também acreditava que o homem possui uma alma imortal?
- Sim e não. Santo Agostinho explica que entre Deus e o mundo
existe um abismo insuperável. Baseia-se no fundamento bíblico e rejeita
a teoria de Plotino, segundo a qual tudo é uno. Mas Santo Agostinho
também salienta que o homem é um ser espiritual. Possui um corpo
material - que pertence ao mundo físico e é corrompido pelos agentes
naturais -, mas ele também tem uma alma que pode conhecer Deus.
- O que é que acontece à alma quando morremos?
- Segundo Santo Agostinho, toda a geração humana foi condenada
após o pecado original. Apesar disso, Deus decidiu que alguns homens
deviam ser poupados à condenação eterna.
- Mas então também podia ter decidido que ninguém devia estar
condenado - objectou
Sofia.
- Mas, nesse ponto, Santo Agostinho nega que o homem tenha
direito a criticar Deus. Sustenta o que Paulo escreveu na sua "Epístola
aos Romanos": "Ó homem, quem és tu para disputares com Deus?
Acaso uma obra também diz a quem a fez: porque é que me fizeste
assim? Porventura um oleiro não tem poder para fazer da mesma massa um
vaso para bom uso e outro para uso vil?"
- Então Deus está no céu e brinca com os homens? Quando alguma
coisa daquilo que ele mesmo criou não lhe serve, deita-a imediatamente
fora?
- É que, para Santo Agostinho, nenhum homem é digno da salvação
de Deus.
No entanto, Deus escolheu alguns que devem ser salvos da
condenação. Para ele, não é pois um segredo quem é que deve ser salvo e
quem é que deve ser condenado. Isso está determinado previamente. Logo,
nós somos barro nas mãos de Deus. Estamos completamente dependentes da
Sua graça.
- Então ele voltou de certo modo à antiga crença no destino.
- Talvez tenhas razão nisso. Mas Santo Agostinho não retira ao
homem a responsabilidade pela sua própria vida.
Segundo o seu ponto de vista, nós devemos viver de modo a
podermos saber que pertencemos ao número dos eleitos. Não nega que
tenhamos livre arbítrio. Só que Deus já "previu" como é que vamos viver.
- Isso não é um pouco injusto? - perguntou Sofia -
Sócrates acreditava que todos os homens tinham as mesmas
possibilidades por partilharem a mesma razão. Mas Santo Agostinho
separava os homens em dois grupos. Um dos grupos é salvo, o outro é
condenado.
- Sim, com a teologia de Santo Agostinho afastamo-nos do
humanismo de Atenas. Mas não era Santo Agostinho que dividia a
p. 160
humanidade em dois grupos. Ele baseia-se na doutrina da Bíblia
acerca da salvação e da condenação. Na sua grande obra A Cidade de Deus,
explica-o mais exactamente.
- Conta!
- A expressão "cidade de Deus" ou "reino de Deus" vem da Bíblia
e da mensagem de Jesus. Santo Agostinho acreditava que a história trata
do modo como o combate entre a "cidade de Deus" e a "cidade terrena" é
conduzido. Estas duas cidades não são Estados políticos distintos um do
outro. Lutam pelo poder em cada homem. A cidade de Deus está presente na
Igreja e a cidade terrena nos Estados políticos - por exemplo, no
Império Romano, que começou a desagregar-se precisamente na época de
Santo Agostinho. Esta concepção tornou-se cada vez mais evidente à
medida que a Igreja e o Estado lutavam pelo poder durante toda a Idade
Média. " Não há salvação fora da Igreja", dizia-se. A cidade de Deus de
Santo Agostinho era inclusivamente comparada à Igreja como instituição.
Só durante a Reforma, no século XVI, se levantou um protesto contra a
ideia de que o homem tinha que percorrer o caminho da Igreja para obter
a graça divina.
- Já não era sem tempo.
- Também podemos notar que Santo Agostinho foi o primeiro dos
nossos filósofos a incluir a história na sua filosofia. A aceitação de
um combate entre o bem e o mal não era nada de novo. A novidade em Santo
Agostinho é que este combate é disputado na história. Deste ponto de
vista, não encontramos nele muito platonismo. Em vez disso, apoia-se
firmemente na concepção linear da história que encontramos no Antigo
Testamento. É que para Santo Agostinho Deus precisa de toda a história
para erigir a sua "cidade de Deus". A história é necessária para
instruir os homens e destruir o mal. Em certo passo, Santo Agostinho
afirma que a providência divina dirige a história da humanidade desde
Adão até ao fim da história, tal como a história de um único homem que
se vai desenrolando progressivamente desde a infância até à velhice.
Sofia olhou para o relógio.
- Já são oito horas - afirmou - tenho de ir.
- Mas primeiro, vou falar-te do segundo grande filósofo da
Idade Média. Vamos sentar-nos lá fora?
Alberto levantou-se do banco. Juntou as palmas das mãos e
avançou pela nave. Parecia rezar ou meditar em verdades espirituais.
Sofia seguia-o; parecia-lhe não ter outra escolha.
p. 161
Lá fora, uma fina camada de neblina cobria ainda o solo.
O Sol nascera há muitas horas, mas ainda não conseguira
dissolver a neblina matinal.
A igreja de Santa Maria ficava junto ao bairro antigo.
Alberto sentou-se num banco em frente da igreja. Sofia pensou
no que sucederia se alguém passasse naquele momento. Já era bastante
estranho estar ali sentada num banco, às oito da manhã; e o facto de ter
por companhia um monge da Idade Média ainda era mais estranho.
- São oito horas - começou ele. - Desde Santo Agostinho passaram
quatro séculos, e agora começa o longo dia de escola. Até às dez horas,
os mosteiros detêm o monopólio do ensino. Entre as dez e as onze, são
estabelecidas as primeiras escolas nas catedrais, e cerca das doze horas
são fundadas as primeiras universidades. Além disso, são construídas as
grandes catedrais. Esta igreja também foi construída cerca das doze
horas - ou na chamada baixa Idade Média. Aqui, nesta cidade, não podiam
construir catedrais maiores.
- Também não era preciso - interrompeu Sofia. - Detesto ver as
igrejas vazias.
- Mas as grandes catedrais não foram construídas apenas para
acolherem grandes multidões. Foram erigidas em honra de Deus e tinham
por si só uma espécie de função religiosa. Mas na baixa Idade Média
sucedeu uma outra coisa que é muito interessante para filósofos como
nós.
- Conta!
Alberto prosseguiu:
- Nessa altura, a influência dos árabes era dominante na
Espanha. Os árabes tinham conservado viva durante toda a Idade Média uma
tradição aristotélica e, a partir aproximadamente de 1200, eruditos
árabes foram para o Norte de Itália a convite dos príncipes locais.
Assim, muitos dos seus escritos foram divulgados e por fim traduzidos do
grego e do árabe para o latim. E isso, por seu lado, criou um novo
interesse no que diz respeito às ciências da natureza.
Além disso, foi de novo equacionada a relação entre a revelação
cristã e a filosofia grega. Nas questões das ciências naturais, todos os
caminhos passavam por Aristóteles. Mas quando é que se devia escutar o
"filósofo" - e quando é que se devia ater exclusivamente à Bíblia? Ainda
estás a seguir?
Sofia acenou vivamente que sim e o monge prosseguiu:
- O maior e mais importante filósofo da baixa Idade Média foi "
S. Tomás de Aquino", que viveu entre 1225 e 1274. Era natural da pequena
vila de Aquino entre Roma e Nápoles, mas ensinou em Paris. Eu chamo-lhe
filósofo, mas ele era igualmente teólogo. Nessa
p. 162
altura, não havia uma verdadeira separação entre filosofia e teologia.
Muito resumidamente, podemos dizer que S. Tomás "cristianizou"
Aristóteles, da mesma forma que Santo Agostinho o fizera com Platão no
início da Idade Média.
- Não era um pouco estranho cristianizar filósofos que tinham
vivido tantos séculos antes de Cristo?
- Sim, mas por "cristianização" dos dois grandes filósofos
gregos entendemos que eles foram interpretados e entendidos de forma a
não constituírem uma ameaça para a doutrina cristã. Acerca de S. Tomás
de Aquino, diz-se que "agarrou o touro pelos cornos".
- Eu realmente não sabia que a filosofia tinha alguma coisa a
ver com tourada.
- S. Tomás de Aquino fazia parte daqueles que queriam conciliar
a filosofia de Aristóteles com o cristianismo. Dizemos que ele realizou
a grande síntese entre fé e saber. E conseguiu-o porque partiu da
filosofia de Aristóteles e a tomou à letra.
- Ou pelos cornos. Infelizmente, esta noite quase não dormi e
por isso receio que tenhas de me explicar isso melhor.
- S. Tomás de Aquino não acreditava numa contradição inevitável
entre o que a filosofia ou a razão, por um lado, e a revelação cristã ou
a fé, por outro, nos dizem. Frequentemente, o cristianismo e a filosofia
dizem-nos o mesmo. Por isso, podemos examinar com a ajuda da razão as
mesmas verdades que lemos na Bíblia.
- Mas como é que isso é possível? Pode a razão dizer-nos que
Deus criou o mundo em seis dias? Ou que Jesus era filho de Deus?
- Não, só podemos ter acesso a essas "verdades de fé" através da
fé e da revelação cristã. Mas S. Tomás de
Aquino achava que havia também uma série de "verdades teológicas
naturais", ou seja, verdades que podem ser alcançadas tanto através da
revelação cristã como através da nossa razão inata ou "natural". Uma
verdade dessas é, por exemplo, dizer-se que Deus existe. S. Tomás
acreditava portanto em dois caminhos que levam a Deus. Um dos caminhos
passa pela fé e pela revelação, o outro pela razão e pelos sentidos. Das
duas vias, a que passa pela fé e pela revelação é a mais segura, porque
podemos facilmente errar se confiarmos apenas na razão. Mas para S.
Tomás não é preciso haver nenhuma contradição entre a doutrina cristã e
um filósofo como Aristóteles.
- Então podemos confiar tanto em Aristóteles como na Bíblia?
- Não, não. Aristóteles só percorre uma parte do caminho, porque
não conheceu a revelação cristã. Mas percorrer apenas uma parte do
caminho não significa enganar-se. Por exemplo, não é falso dizer
p. 163
que Atenas fica na Europa. Mas também não é muito preciso. Quando um
livro apenas te informa que Atenas é uma cidade europeia, devias
consultar ainda um atlas. E aí ficas a saber toda a verdade:
Atenas é a capital da Grécia, um pequeno país no sudeste da
Europa. Se tiveres sorte, talvez fiques ainda a saber alguma coisa sobre
a Acrópole. Para não falar de Sócrates, Platão e Aristóteles.
- Mas a primeira informação acerca de Atenas também estava
correcta.
- Exacto! S. Tomás quer mostrar que há apenas uma verdade.
Quando Aristóteles apresenta algo que reconhecemos como verdadeiro por
intermédio da razão, isso não entra em contradição com a doutrina
cristã. Podemos obter uma parte da verdade com a ajuda da razão e da
observação - e
Aristóteles fala acerca dessas verdades quando, por exemplo,
descreve o reino vegetal e o reino animal. Uma segunda parte da verdade
foi-nos revelada por Deus através da Bíblia. Mas as duas partes da
verdade coincidem em muitos pontos importantes. Há algumas perguntas a
que a Bíblia e a razão nos respondem exactamente da mesma maneira.
- Por exemplo, que Deus existe?
- Exacto. A filosofia de
Aristóteles também pressupunha que Deus existe - ou uma primeira
causa que põe em movimento todos os processos naturais. Mas não descreve
Deus mais detalhadamente.
Aí, temos de nos basear na Bíblia e na mensagem de Jesus.
- Mas é mesmo verdade que Deus exista realmente?
- Isso é obviamente discutível. Mas, ainda hoje, a maior parte
das pessoas admitiria que pelo menos a nossa razão não pode provar que
Deus não existe. S. Tomás foi mais longe. Acreditava poder provar a
existência de Deus com base na filosofia de Aristóteles.
- Nada mau!
- Segundo ele, com a razão também podemos reconhecer que tudo
tem de ter uma "primeira causa". Deus, para S. Tomás, revelou-se aos
homens por meio da Bíblia e por meio da razão. Logo, há uma teologia
"revelada" e uma teologia "natural". O mesmo se passa no domínio da
moral. Podemos ler na Bíblia como é que devemos viver segundo a vontade
de Deus. Mas Deus também nos dotou de uma consciência que nos
habilita a distinguir o justo do injusto numa base "natural". Também
existem "duas vias" para a vida moral. Podemos saber que não devemos
maltratar os outros mesmo que não tenhamos lido na Bíblia que devemos
tratar os outros como gostaríamos de ser tratados por eles. Mas, também
neste caso, os mandamentos da Bíblia são a norma mais segura.
p. 164
- Acho que estou a perceber - disse então Sofia. -
Da mesma forma, podemos saber que há uma trovoada quando vemos o
relâmpago e ouvimos o trovão.
- É isso. Mesmo que sejamos cegos, podemos ouvir o trovão. E
mesmo que sejamos surdos, podemos ver a trovoada. É óbvio que o melhor é
poder ver e ouvir. Mas não há nenhuma contradição entre aquilo que vemos
e o que ouvimos. Pelo contrário - as duas impressões enriquecem-se
mutuamente.
- Compreendo.
- Deixa-me dar mais um exemplo. Quando lês um romance - por
exemplo "Vitória" de Knut Hamsun... (")
- De facto, já o li...
- ... não descobres também alguma coisa acerca do autor, só
porque lês o romance escrito por ele?
- Pelo menos posso partir do princípio de que há um autor que
escreveu o livro.
- Podes saber algo mais acerca dele?
- Acho que tem uma concepção bastante romântica do
................. "Knut Hamsun (1859 -1952) - Escritor norueguês,
autor de "Fome" (1890), "Pan" (1894), "Vitória" (1898) e "Frutos da
Terra" (1917). Recebeu em 1920 o Prémio
Nobel da Literatura. amor.
- Ao leres esse romance - uma criação de Hamsun -, também ficas
a saber qualquer coisa acerca do próprio Hamsun. Mas não podes esperar
informações muito pessoais sobre o autor. Podes, por exemplo, saber
através de "Vitória" que idade tinha o autor quando o escreveu, onde
morava ou quantos filhos tinha?
- Claro que não.
- Mas uma biografia acerca de Knut Hamsun fornece-te esse tipo
de informações. Só numa biografia - ou autobiografia - podes conhecer
melhor a pessoa do autor.
- Sim, é verdade.
- A relação entre a Criação de Deus e a Bíblia é mais ou menos
assim. Se observarmos a natureza, podemos saber que Deus existe. Pode
mos ver que ele gosta de flores e de animais, de outra forma não os
teria criado. Mas só encontramos informações acerca de Deus na Bíblia -
ou seja, na autobiografia de Deus.
- Esse é um exemplo inteligente.
- Mm... Pela primeira vez, Alberto mergulhou nos seus
pensamentos e não deu resposta.
p. 165
- Isso tem alguma coisa a ver com Hilde? - perguntou Sofia.
- Nós nem sequer sabemos se Hilde existe.
- Mas descobrimos aqui e ali vestígios dela. Postais e um lenço
de seda, uma carteira verde, uma meia...
Alberto acenou afirmativamente.
- E parece depender do pai de Hilde o número de pistas que quer
deixar. Mas, até agora, só sabemos que existe uma pessoa que escreve os
postais. Acho que ele devia também escrever qualquer coisa acerca de si
mesmo. Mas ainda havemos de voltar a falar sobre isso.
- São doze horas. Eu tenho mesmo de voltar para casa antes do
fim da Idade Média.
- Vou concluir dizendo em poucas palavras como é que S. Tomás de
Aquino adoptou a filosofia de Aristóteles em todos os domínios que não
colidiam com a teologia da Igreja. Isso é válido para a sua lógica, a
sua filosofia do conhecimento e ainda para a sua filosofia da natureza.
Ainda te lembras do modo como
Aristóteles descreveu uma escala ascendente da vida, desde as
plantas e os animais, até ao homem?
Sofia acenou afirmativamente.
- Já Aristóteles acreditava que esta escala remetia para um Deus
que representava uma espécie de vértice máximo da existência. Este
esquema era facilmente adaptável à teologia cristã. S. Tomás acreditava
num grau de existência crescente, desde as plantas e os animais até aos
homens, dos homens até aos anjos, e dos anjos até Deus. O homem, tal
como os animais, possui um corpo com órgãos dos sentidos, mas o homem
também possui uma razão que pensa.
Os anjos não têm corpo nem órgãos dos sentidos, mas em vez disso
têm uma inteligência directa e imediata. Não precisam de "discorrer",
como os homens, não precisam de fazer deduções. Sabem tudo o que os
homens podem saber, mas não precisam de avançar progressivamente às
apalpadelas como nós. Uma vez que os anjos não têm corpo, nunca vão
morrer.
Não são eternos como Deus, visto que também eles foram criados
por Deus, mas não têm um corpo do qual poderiam ser separados, e por
isso nunca hão-de morrer.
- Isso soa maravilhosamente.
- Mas acima dos anjos reina Deus, Sofia. Ele pode ver e saber
tudo numa única visão de conjunto.
- Nesse caso, também nos está a ver agora.
- Sim, talvez nos esteja a ver. Mas não "agora". Para Deus, o
tempo não existe como para nós. O nosso "agora" não é o "agora" de Deus.
O facto de passarem algumas semanas para nós não significa que também
passem para Deus.
p. 166
- Mas isso é inquietante!
- exclamou Sofia, colocando a mão na boca. Alberto olhou para
ela, e Sofia explicou:
- Recebi novamente um postal do pai de Hilde. Escreveu qualquer
coisa assim: " Se passa uma semana ou duas para
Sofia, não significa que passe o mesmo tempo para nós." É quase
o mesmo que disseste sobre Deus!
Sofia viu que o rosto no capuz castanho se contorceu num
veemente trejeito.
- Ele devia ter vergonha!
Sofia não percebeu o que
Alberto queria dizer com aquilo. Talvez fosse apenas uma maneira
de falar. E prosseguiu:
- Infelizmente, S. Tomás de Aquino também adoptou a concepção
aristotélica da mulher. Talvez ainda te lembres que, para Aristóteles, a
mulher era uma espécie de homem imperfeito. Ele achava ainda que os
filhos apenas herdavam as características do pai, porque a mulher era
passiva, enquanto o homem era activo.
Segundo S. Tomás, estas reflexões estavam de acordo com as
palavras da Bíblia - onde está escrito, por exemplo, que a mulher foi
criada da costela do homem.
- Que disparate!
- Talvez seja importante acrescentar que os mecanismos de
ovulação nos mamíferos só foram descobertos em 1827. Por isso, talvez
não fosse de surpreender que o homem fosse considerado aquele que
fornece a forma e dá a vida na reprodução. Podemos também notar que para
S. Tomás a mulher só era inferior ao homem enquanto criatura física.
Para ele, a alma da mulher é tão importante como a do homem.
No céu, há igualdade entre os sexos, muito simplesmente porque
já não há diferenças corporais entre os sexos.
- Mas isso é um fraco consolo. Na Idade Média não havia
filósofas?
- Na Idade Média, a Igreja era fortemente dominada pelos homens.
Mas isso não significa que não tenha havido pensadoras. Uma delas era
"Hildegard von Bingen"...
Sofia arregalou os olhos:
- Ela tem alguma coisa a ver com Hilde?
- Que perguntas fazes! Hildegard viveu entre 1098 e 1179 como
freira na Renânia. Era mulher, mas no entanto foi pregadora, escritora,
médica, botânica e cientista. Foi um exemplo de que na Idade Média as
mulheres eram frequentemente mais práticas
- e mesmo mais científicas - que os homens.
- Eu perguntei se ela tem alguma coisa a ver com Hilde!
p. 167
- Existe uma antiga concepção cristã e hebraica segundo a qual
Deus não é apenas homem. Ele também tem um lado feminino ou "natureza
maternal". Porque também a mulher foi criada à imagem de Deus. Em grego,
este lado feminino de Deus chamava-se " Sophia". " Sophia" ou "sofia"
significa "sabedoria".
Sofia abanou a cabeça perplexa. Porque é que nunca ninguém lho
dissera? E porque é que nunca fizera perguntas acerca disso?
Alberto prosseguiu:
- Entre os Judeus e na Igreja grega ortodoxa, "sophia" - ou a
natureza maternal de Deus - desempenhou um papel determinado durante a
Idade Média. No ocidente caiu em esquecimento. Mas depois veio
Hildegard. Ela conta que Sofia lhe apareceu em visões. Tinha uma túnica
dourada enfeitada de pedras preciosas...
Nesse momento, Sofia levantou-se bruscamente do banco. Sophia
mostrara-se a Hildegard em visões...
- Talvez eu também apareça a Hilde. Voltou a sentar-se. Pela
terceira vez, Alberto colocou-lhe a mão no ombro.
- Isso é o que temos de descobrir. Mas é quase uma hora. Tens de
ir para casa almoçar e nós temos à nossa frente uma nova época. Vou
marcar-te um encontro no Renascimento. Hermes irá buscar-te ao jardim.
E com isto o estranho monge levantou-se e caminhou em direcção à
igreja. Sofia ficou sentada pensando em Hildegard e Sophia, Hilde e
Sofia.
De repente, sentiu um calafrio na espinha. Levantou-se de um
pulo e chamou pelo professor de filosofia disfarçado de monge.
- Na Idade Média havia algum Alberto?
Alberto retardou um pouco os seus passos, virou a cabeça e
disse:
- S. Tomás de Aquino teve um professor de filosofia famoso.
Chamava-se " Alberto Magno"!
Com isto, inclinou a cabeça e desapareceu na entrada da igreja
de Santa Maria.
Sofia não se deu por satisfeita. Voltou também à igreja. Mas
esta estava completamente vazia. Ter-se-ia ele afundado no chão?
Ao deixar a igreja, o seu olhar poisou numa imagem de
Nossa Senhora. Aproximou-se e examinou-a com minúcia. De
repente, descobriu uma gota de água por baixo de um dos olhos da imagem.
Seria uma lágrima?
Sofia precipitou-se para fora da igreja e correu para casa de
Jorunn.
p. 168
O Renascimento "... ó estirpe divina em vestes humanas..."
Jorunn estava em frente à casa amarela quando, por volta da uma e meia,
Sofia chegou esbaforida ao portão do jardim.
- Estiveste fora mais de dez horas - exclamou Jorunn.
Sofia abanou a cabeça.
- Estive fora durante mais de mil anos.
- Onde é que estiveste?
- Tive um encontro com um monge da Idade Média. Uma pessoa
estranha.
- Estás doida. A tua mãe telefonou há meia hora.
- E o que é que lhe disseste?
- Disse que tinhas ido ao quiosque.
- O que é que ela respondeu?
- Disse que telefonasses quando voltasses. Com os meus pais, o
caso foi mais grave.
Cerca das dez horas, levaram-nos o pequeno-almoço. E nessa
altura, uma das camas estava vazia.
- O que é que disseste?
- Foi extremamente desagradável. Disse que nos tínhamos zangado
e que tu tinhas voltado para casa.
- Nesse caso, temos de fazer rapidamente as pazes. E durante
alguns dias os teus pais não podem falar com a minha mãe. Achas que
vamos conseguir? Jorunn encolheu os ombros. Em seguida, o pai dela
apareceu no jardim com um carrinho de mão. Trazia um fato-macaco. Tinha
decidido limpar do jardim a folhagem que caíra no último ano.
- Então, de novo unha com carne? - perguntou - Já não há uma
única folha em frente à janela da cave.
- Que bom - respondeu
Sofia. - Assim, podemos tomar lá o cacau em vez de o tomarmos na
cama. :,
p. 169
O pai fez um sorriso forçado e Jorunn estremeceu. Na casa de
Sofia nunca se dera tanta atenção a uma linguagem cuidada como na casa
do conselheiro financeiro Ingebrigtsen e da sua esposa.
- Desculpa, Jorunn. Mas achava que também tinha de entrar na
história.
- Vais contar-me alguma coisa?
- Se me levares a casa. A história não diz respeito a
conselheiros financeiros ou a Barbies crescidas.
- Tu és horrível. Achas que um casamento falhado que leva uma
das partes à vida do mar é melhor?
- Claro que não. Esta noite quase não dormi. E começo a
perguntar-me se Hilde não estará ver tudo o que fazemos.
Caminharam lentamente para Klõverveien.
- Achas que ela é vidente?
- Talvez sim. Ou talvez não. Era evidente que Jorunn começava a
fartar-se de todos aqueles segredos.
- Mas isso não explica porque é que o pai lhe envia postais sem
sentido para uma cabana abandonada no bosque.
- Admito que esse seja um ponto fraco.
- Não me queres contar onde estiveste?
Sofia contou. Falou também do seu curso de filosofia secreto.
Para isso, obteve de Jorunn a promessa solene de que tudo ficaria entre
elas.
Caminharam algum tempo em silêncio lado a lado.
- Não estou a gostar disto
- disse Jorunn, à medida que se aproximavam de Klõverveien, 3.
Parou em frente do portão do jardim e voltou para trás.
- Ninguém te pediu que gostasses. Mas a filosofia é importante.
Trata de quem somos e de onde viemos.
Aprendemos alguma coisa acerca disso na escola?
- Mas ninguém pode responder a essas perguntas.
- Nós nem sequer aprendemos a pôr estas questões.
Quando Sofia entrou na cozinha, o almoço já estava na mesa. Não
se falou acerca do facto de não ter telefonado da casa de Jorunn.
Depois do almoço, quis fazer uma sesta. Confessou não ter
dormido quase nada em casa de Jorunn. Mas isso não era estranho para uma
visita de uma noite.
Antes de ir para a cama, colocou-se em frente ao grande espelho
de latão que pendurara na parede. Primeiro, apenas viu o seu próprio
p. 170
rosto cansado e pálido. Mas em seguida - por detrás do seu próprio
rosto, pareciam emergir subitamente os contornos débeis de um outro
rosto.
Sofia respirou profundamente. Desta vez não podia estar a
imaginar nada. Em contornos nítidos, via o seu rosto pálido, que os
cabelos negros emolduravam, cabelos que apenas serviam para fazer o
penteado "cabelos lisos" naturais. Mas por baixo ou por detrás deste
rosto aparecia o rosto de uma outra pessoa.
De repente, a rapariga estranha do espelho piscou energicamente
os olhos. Parecia querer avisar que estava, de facto, do outro lado do
espelho. Poucos segundos depois, desapareceu.
Sofia sentou-se na cama. Tinha a certeza de ter visto o rosto
de Hilde no espelho. Uma vez, durante alguns segundos, vira a fotografia
de Hilde num cartão da escola, na cabana do major. Tinha de ser a mesma
rapariga que surgira agora no espelho.
Não era estranho que estas coisas misteriosas lhe sucedessem
sempre quando estava exausta? Por isso se interrogava depois se não
tinha sido uma fantasia.
Sofia colocou a roupa sobre a cadeira e enfiou-se na cama.
Adormeceu imediatamente. Teve um sonho extremamente intenso e
claro.
Sonhou que estava num grande jardim que dava para um barracão
para barcos, vermelho. Na doca, junto ao barracão, estava sentada uma
rapariga loira que olhava para o lago. Sofia foi ter com ela e sentou
-se ao seu lado. Mas a rapariga desconhecida não pareceu notar a sua
presença.
Sofia apresentou-se. "Eu chamo-me Sofia." Mas a desconhecida
não a conseguia ver nem ouvir. " Deves ser surda e muda", afirmou Sofia.
E a desconhecida era na realidade surda às palavras de Sofia.
De repente, Sofia ouviu uma voz a chamar: "Hilde!". A rapariga
saltou da doca e correu em direcção à casa. Era evidente que não podia
ser cega nem surda. Um homem de meia-idade foi em direcção a ela.
Vestia um uniforme e trazia uma bóina azul. A desconhecida atirou-se ao
pescoço do homem e ele andou com ela à roda. Sofia encontrou então à
beira da doca, onde a rapariga se sentara, um colar com um pequeno
crucifixo de ouro.
Apanhou-o e manteve-o na mão.
Depois, acordou.
Sofia olhou para o relógio. Tinha dormido duas horas.
Sentou-se na cama e reflectiu sobre aquele estranho sonho.
Tinha sido tão intenso e claro como um acontecimento verdadeiro. Sofia
tinha a certeza de que a casa e a doca do seu sonho existiriam algures.
Não havia uma semelhança com o quadro que vira na cabana do
major? De qualquer modo, tinha a certeza de que a rapariga do seu sonho
era
p. 171
Hilde Mõller Knag e o homem o pai dela que voltava do Líbano. No sonho,
ele fazia lembrar um pouco Alberto Knox...
Quando Sofia se levantou para fazer a cama descobriu debaixo do
travesseiro um colar com um crucifixo de ouro.
No lado de trás do crucifixo estavam gravadas três letras:
"HMK".
Não era a primeira vez que
Sofia encontrava um tesouro num sonho, mas nunca tinha
conseguido transportar um tesouro de um sonho para a realidade.
- Que diabo! - exclamou alto para si mesma. Estava tão furiosa
que abriu violentamente a porta do armário e atirou o belo colar para
junto do lenço de seda, a meia branca e os postais do Líbano.
No domingo de manhã, Sofia foi acordada para tomar um grande
pequeno-almoço com torradas, sumo de laranja, ovos e salada. Aos
domingos, a mãe raramente se levantava antes de Sofia. E quando isso
acontecia, era para ela uma questão de honra preparar um suculento
pequeno-almoço de domingo antes de acordar Sofia.
Ao pequeno-almoço, a mãe disse:
- Está um cão desconhecido no jardim. Andou à volta da sebe
velha toda a manhã. Tens ideia de onde possa ter vindo?
- Sim, claro - exclamou
Sofia, e mordeu imediatamente os lábios com força.
- Já esteve aqui outras vezes?
Sofia já se tinha levantado e ido à janela da sala de estar.
Exacto - Hermes sentara-se à entrada da toca.
O que haveria de dizer agora? Não conseguiu imaginar nenhuma
resposta antes de a mãe já estar ao seu lado.
- Disseste que ele já esteve aqui outras vezes?
- Deve ter enterrado um osso ali. E agora quer recuperar o seu
tesouro. Os cães também têm memória...
- Sim, talvez, Sofia. Tu tens mais experiência com animais do
que eu.
Sofia pensou um pouco.
- Eu levo-o a casa - disse então.
- E sabes onde ele vive?
Sofia encolheu os ombros.
- Deve ter o endereço escrito na coleira.
Dois minutos mais tarde,
Sofia corria através do jardim. Quando Hermes a descobriu, pôs
-se a correr, abanou a cauda desenfreadamente e saltou para ela.
p. 172
- Valente cão, Hermes - disse Sofia. Ela sabia que a mãe estava
à janela. Oxalá o cão não corresse para dentro da toca! Mas ele
percorreu o caminho de saibro em frente à casa, e correu pelo pátio e em
direcção ao portão do jardim.
Depois de fecharem o portão, Hermes continuou a correr, dois
metros à frente de
Sofia. Seguiu-se uma longa caminhada pelas ruas do quarteirão.
Sofia e Hermes não eram os únicos na rua. Famílias inteiras passeavam;
Sofia sentiu uma ponta de inveja. Por vezes, Hermes farejava um
outro cão ou alguma coisa que encontrava na sarjeta, mas, logo que Sofia
o chamava, voltava imediatamente para ela. Pouco depois, já tinham
passado o jardim, o grande campo de jogos e um recinto de recreio.
Chegaram a uma zona mais frequentada. Aí, uma rua larga calcetada e com
trilhos de eléctrico seguia em direcção à cidade.
Quando chegaram ao centro da cidade, Hermes conduziu
Sofia pela praça principal e pela rua da igreja. Chegaram ao
bairro antigo com os seus edifícios de fim de século. Era quase uma e
meia. Encontravam-se então na outra extremidade da cidade.
Sofia não estivera ali muitas vezes. Quando era pequena,
visitara uma vez uma velha tia algures naquela zona. Pouco depois,
chegaram a uma pequena praça entre as casas antigas. A praça chamava-se
" Nytorget" - "Praça
Nova", apesar de parecer muito velha. A própria cidade era muito
antiga; fora fundada na Idade Média. Hermes dirigiu-se para a entrada
da casa com o número 14, parou, e esperou que
Sofia abrisse a porta. Ela sentiu o seu coração bater mais
depressa.
No vão da escada, havia uma série de caixas de correio verdes.
Sofia descobriu um postal que estava colado a uma das caixas. Um carimbo
do carteiro declarava que o destinatário era desconhecido. A
destinatária era: "Hilde Mõller Knag,
Nytorget 14..." O postal tinha o carimbo de 15 de Junho. Até
essa data faltavam ainda duas semanas, mas era óbvio que o carteiro não
reparara nisso.
Sofia arrancou o postal da caixa do correio e leu.
" Querida Hilde: Agora,
Sofia está a entrar na casa do professor de filosofia. Em breve
fará quinze anos, enquanto o teu aniversário já foi ontem. Ou será hoje,
Hilde? Se for hoje, já deve ser muito tarde. Mas os
p. 173
nossos relógios nem sempre andam a par. Uma geração envelhece, enquanto
outra geração cresce. Entretanto, a história segue o seu curso. Já
alguma vez pensaste que a história da Europa pode ser comparada à vida
de uma pessoa? A
Antiguidade é a infância da Europa. Vem depois a longa Idade
Média - é a idade escolar da Europa. E depois chega o Renascimento.
Termina o longo período escolar, e a jovem Europa quer lançar-se
finalmente na vida. Talvez possamos designar o Renascimento como o
décimo quinto aniversário da Europa. Estamos a meio de Junho, minha
filha - e "que bom estar aqui! Oh quão bela é a vida!" P S. Sinto muito
que tenhas perdido o teu crucifixo de ouro. Tens mesmo de prestar mais
atenção às tuas coisas.
Beijos do pai - que regressará muito em breve"
Hermes já estava a subir as escadas. Sofia, levando o postal, seguiu-o.
Tinha de correr para acompanhar o cão que abanava vigorosamente a cauda.
Passaram o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto andar. A partir
daí só uma escada estreita seguia para cima. Com certeza, não iriam para
o telhado! Mas Hermes continuou a correr. Parou em frente de uma porta
estreita e arranhou-a com a pata. Em seguida, Sofia ouviu passos de
alguém que se aproximava do outro lado. A porta abriu-se e Alberto Knox
estava à sua frente. Ele tinha mudado de roupa, mas nesse dia também
estava disfarçado. Trazia meias brancas altas, calções vermelhos largos
e uma jaqueta amarela com chumaços grossos. Fazia lembrar a Sofia um
"joker" de um baralho de cartas. Se não estava enganada, tratava-se de
um traje típico do Renascimento.
- Que palhaço! - exclamou
Sofia, afastando-o para o lado, e entrou na residência.
Ainda estava perturbada pelo postal que encontrara no vão da
escada.
- Calma, minha filha - afirmou então Alberto, e fechou a porta
atrás dela.
- Aqui está o correio - disse Sofia, e deu-lhe o postal, como
se ele fosse o responsável.
Alberto leu a carta de pé e abanou a cabeça.
- Está cada vez mais insolente. Digo-te que ele nos usa como
uma espécie de entretenimento para o aniversário da filha. Ele rasgou o
postal e deitou os pedaços no cesto dos papéis.
- Estava escrito no postal que Hilde tinha perdido um crucifixo
de ouro - afirmou
Sofia.
p. 174
- Eu li isso.
- Mas eu encontrei precisamente esse crucifixo hoje, na minha
cama. Como é que achas que poderá ter chegado lá?
Alberto fixou-a seriamente nos olhos.
- Talvez tenha um efeito persuasivo. Mas é apenas um truque
fácil, que não lhe custa nada. É melhor concentrarmo-nos no grande
coelho que é retirado da cartola do universo. Entraram na sala de estar,
e Sofia nunca vira uma sala de estar tão estranha.
Alberto morava numa grande casa nas águas -furtadas, com tecto
inclinado. Neste tecto, havia uma janela que deixava entrar a luz
penetrante directamente do céu. Mas o quarto tinha também uma janela com
vista para a cidade. Através desta janela, Sofia podia ver os telhados
das muitas casas antigas. Mas o que mais surpreendeu
Sofia foi o recheio da grande sala de estar. A sala estava cheia
de móveis e objectos das mais variadas épocas. Um sofá devia ser dos
anos 30, uma escrivaninha antiga do final de século, e uma das cadeiras
devia ter vários séculos. Mas os móveis eram apenas uma parte daquela
maravilha! Nas estantes e nas prateleiras havia bibelôs antigos,
relógios e jarros, almofarizes e retortas, facas e bonecas, penas e
encostos para livros, octantes e sextantes, bússolas e barómetros. Uma
parede inteira estava coberta de livros, mas não era o tipo de livros
que se encontram numa livraria. A biblioteca também parecia uma selecção
da produção de livros ao longo de muitos séculos.
Nas paredes, estavam pendurados desenhos e quadros.
Alguns seriam certamente de décadas mais recentes, mas muitos
deviam ser muito antigos. Nas paredes havia também alguns mapas antigos.
Um dos mapas representava o fiorde de
Sogne entre a região de Trõndelag e o fiorde de Trondheim, que
ficam a quase 300 quilómetros para norte daquele.
Sofia ficou parada alguns minutos, sem fala. Voltou-se e não
parou até ter visto a sala de todos os ângulos.
- Tu coleccionas muita tralha - afirmou por fim.
- Bem, bem. Imagina quantos séculos de história estão guardados
nesta sala. Eu não lhe chamaria tralha.
- Tens uma loja de antiguidades, ou alguma coisa do género?
Alberto fez uma expressão triste.
- Nem todos podem deixar-se levar pela corrente da história,
Sofia. Alguns têm de se deter e conservar o que fica nas margens do rio.
- Dizes isso de uma forma tão estranha!
p. 175
- Mas é a verdade, minha filha. Nós não vivemos apenas na nossa
própria época. Também transportamos a nossa história connosco. Não te
esqueças de que tudo o que vês aqui foi outrora novo em folha. Esta
pequena boneca de madeira do século XVI talvez tenha sido feita para o
quinto aniversário de uma menina. Talvez pelo seu velho avô...
Depois, chegou à adolescência, Sofia. Depois, tornou-se adulta
e casou-se. Talvez ela própria tenha tido uma filha que herdou esta
boneca.
Depois, envelheceu, e um dia morreu. Talvez tenha tido uma vida
longa, mas deixou de existir. E nunca mais regressará. No fundo, ela fez
aqui apenas uma curta visita. Mas a boneca está na estante.
- Tudo se torna tão triste e sério quando falas assim.
- Mas a vida é triste e séria. Entramos num mundo lindíssimo,
encontramo-nos aqui, apresentamo-nos uns aos outros - e caminhamos
juntos mais um pouco. Depois, perdemo-nos e desaparecemos tão súbita e
inexplicavelmente como viemos.
- Posso fazer-te uma pergunta?
- Já não brincamos às escondidas.
- Porque é que foste morar para a cabana do major?
- Para que não estivéssemos muito longe um do outro quando nos
comunicávamos apenas por carta. Eu sabia que a velha cabana estava
vazia.
- E foste simplesmente para lá?
- Fui simplesmente para lá.
- Então talvez possas também explicar como é que o pai de Hilde
soube que moravas lá.
- Se não estou em erro, ele sabe quase tudo.
- Mas continuo sem perceber como é que ele conseguiu convencer o
carteiro a ir entregar correspondência no meio do bosque.
Alberto esboçou um sorriso astuto.
- Mesmo isso é apenas uma ninharia para o pai de Hilde.
Charlatanice barata, um jogo desprezível. Talvez vivamos sob a
mais apertada vigilância.
Sofia reparou que estava a ficar irritada.
- Se ele passar alguma vez no meu caminho, arranco-lhe os
olhos.
Alberto dirigiu-se para o sofá e sentou-se. Sofia seguiu-lhe
o exemplo e afundou-se numa poltrona.
- A filosofia pode levar-nos mais perto do pai de Hilde -
afirmou Alberto - Hoje, vou falar-te acerca do Renascimento.
- Começa.
- Poucos anos após a morte de S. Tomás de Aquino, a unidade
cultural cristã começou a apresentar fissuras. A filosofia e a ciência
p. 176
libertavam-se cada vez mais da teologia cristã, e isso proporcionou
também à religião uma relação mais livre com a razão. Cada vez mais
pensadores acentuaram que nós não podemos compreender Deus com o
entendimento, porque Deus é sempre inconcebível para o nosso pensamento.
Para os homens, o importante não é compreender o mistério cristão, mas
submeterem-se à vontade divina.
- Compreendo.
- O facto de a religião e a ciência terem desenvolvido uma
relação mais livre entre si levou a um novo método científico e a um
novo fervor religioso. Deste modo, lançaram-se as bases para duas
importantes revoluções dos séculos XV e XVI, a saber, o "Renascimento" e
a "Reforma".
- Vamos ver uma de cada vez.
- Pelo termo Renascimento, entendemos um período histórico de
grande prosperidade cultural que teve início por volta do final do
século XIV. Começou em Itália mas difundiu-se rapidamente para norte.
Aquilo que devia renascer eram a arte e a cultura da Antiguidade. Também
se fala frequentemente de "humanismo" renascentista, porque o homem
voltou a ser o centro de tudo, após a longa Idade Média, em que todos os
aspectos da vida tinham sido interpretados à luz de Deus.
O mote era: "Regresso às fontes!", e a fonte mais importante era
o humanismo da
Antiguidade. Tornou-se quase um desporto popular desenterrar
esculturas e manuscritos da Antiguidade. Também se tornou moda aprender
grego, o que levou a um interesse renovado pela cultura grega. O
interesse pelo humanismo grego tinha também uma finalidade pedagógica: o
estudo das disciplinas humanísticas proporcionava uma "formação
clássica" que fomentava o desenvolvimento das "qualidades humanas". " Os
cavalos nascem", dizia-se, "mas os homens não nascem, formam-se".
- Temos então de ser "educados" para sermos seres humanos?
- Sim, pensava-se assim naquela época. Mas antes de observarmos
mais de perto as ideias do humanismo renascentista vamos falar do pano
de fundo político e cultural do Renascimento.
Alberto levantou-se e começou a dar voltas pela sala.
Depois parou e apontou para um instrumento muito antigo numa
estante. - O que é isto? - perguntou.
- Parece uma bússola antiga.
- Certo.
Apontou então para uma espingarda antiga na parede, acima do
sofá.
- E isto?
p. 177
- É uma espingarda antiga.
- Está certo - e isto?
Alberto tirou um grande livro da estante.
- Isso é um livro antigo.
- Para ser mais preciso, um incunábulo.
- Um incunábulo?
- A palavra significa na realidade "berço". Assim se chamam os
livros que foram impressos na infância da tipografia. Isto é, antes de
1500.
- É assim tão antigo?
- Sim, muito antigo. E precisamente estes três inventos que
vemos à nossa frente
- bússola, pólvora e tipografia -, são importantes condições
para a nova época a que chamamos Renascimento.
- Tens de me explicar isso melhor.
- A bússola facilitava a navegação. Era, noutras palavras, uma
importante condição para as grandes viagens de descobrimento. O que
também era válido para a pólvora. As novas armas trouxeram aos europeus
superioridade em relação às culturas americanas e asiáticas, mas a
pólvora também teve uma grande importância na Europa. E a tipografia era
importante para difundir as novas ideias do Renascimento. Ela contribuiu
inclusivamente para que a Igreja perdesse o seu antigo monopólio como
propagadora do saber. Posteriormente, seguiram-se novos instrumentos e
novos recursos. Um importante instrumento era por exemplo o telescópio.
Criou condições completamente novas para a astronomia.
- E, por fim, vieram os foguetões e as naves espaciais que nos
permitiram chegar à Lua?
- Agora estás a avançar um pouco depressa de mais. Mas, no
Renascimento, iniciou-se um processo que havia de levar finalmente os
homens à Lua, embora também a Hiroshima e a
Chernobyl. Mas primeiro houve uma série de transformações no
domínio cultural e económico. Um pressuposto fundamental foi a passagem
de uma economia de subsistência para uma economia monetária. No final da
Idade Média, desenvolveu-se nas cidades uma sólida manufactura e um
comércio activo de novas mercadorias que levaram a uma notável
circulação de dinheiro e à criação de um sistema bancário. Deste modo,
surgiu uma burguesia que alcançara pelo trabalho uma certa independência
das condições impostas pela natureza.
Aquilo que era necessário para viver comprava-se com dinheiro.
Este desenvolvimento fomentou a iniciativa, a fantasia e a criatividade
do indivíduo, ao qual foram colocadas exigências novas.
p. 178
- Isso faz lembrar um pouco o aparecimento das cidades gregas
dois mil anos antes.
- Talvez, sim. Falei do modo como os filósofos gregos se tinham
libertado da concepção mítica do mundo relacionado com a cultura rural.
Do mesmo modo, os burgueses começaram a libertar-se dos senhores
feudais e do poder da Igreja. Simultaneamente, a cultura grega foi
redescoberta devido a um contacto mais estreito com os árabes na Espanha
e a cultura bizantina no
Oriente.
- Os três rios da
Antiguidade confluíram numa única grande corrente.
- Tu és uma discípula atenta. Portanto isto deve ser o
suficiente como pano de fundo do Renascimento. Vou falar-te agora
acerca do novo modo de pensar.
- Despacha-te, porque tenho de ir para casa à hora do jantar.
Só então é que Alberto se sentou de novo, fixando Sofia nos
olhos.
- Antes de mais, o Renascimento trouxe consigo uma nova
"concepção do homem". Os humanistas renascentistas tinham uma confiança
totalmente nova no homem e no seu valor, o que estava em nítido
contraste com a Idade Média, na qual se realçara apenas a natureza
pecaminosa do homem. O homem foi então visto como um ser infinitamente
grande e precioso. Uma das figuras principais do Renascimento foi
"Marsilio Ficino". Ele exclamou: " Conhece-te a ti mesma, ó estirpe
divina em vestes humanas!". Outro, "Giovanni Pico della Mirandola",
escreveu uma oração sobre a "dignidade do homem". Uma coisa deste género
teria sido impensável na Idade Média. Durante todo o período medieval,
tudo se movia em torno a Deus. O ponto de partida para os humanistas do
Renascimento foi o próprio homem.
- Mas isso já os filósofos gregos tinham feito.
- Por isso falamos também de um "renascimento" do humanismo
antigo. No entanto, o humanismo do Renascimento estava mais marcado pelo
"individualismo" do que o humanismo da Antiguidade. Não somos apenas
homens, somos também indivíduos únicos. Esta ideia deu origem a uma
veneração do génio. O ideal tornou-se aquilo a que chamamos o "homem
renascentista", ou seja, um homem que se ocupa com todos os domínios da
vida, da arte e da ciência. A nova concepção do homem também estava
patente no interesse pela anatomia do corpo humano. Tal como na
Antiguidade, começou-se a dissecar cadáveres para se descobrir como o
corpo é constituído. Isso foi importante tanto para a medicina como para
a arte. Na arte, tornou-se novamente habitual representar o homem nu.
Pode dizer-se
p. 179
que isto sucedeu passados mil anos de pudor. O homem ousou de novo ser
ele mesmo, já não tinha nada de que se envergonhar.
- Isso parece ter sido um período de grande entusiasmo,
- comentou Sofia, apoiando-se na mesinha que estava entre ela e
o seu professor de filosofia.
- Sem dúvida. A nova imagem do homem levou a uma "concepção de
vida" totalmente nova. O homem não existia apenas para Deus. Deus
também criara o homem em função do homem. Por isso, o homem podia
alegrar-se com a vida presente. E uma vez que o homem se podia
desenvolver livremente, tinha possibilidades ilimitadas. O seu objectivo
era ultrapassar todos os limites, o que também era diferente do
humanismo da Antiguidade. Os humanistas antigos tinham insistido na
serenidade, temperança e autodomínio.
- Mas os homens do Renascimento perderam o autodomínio?
- Pelo menos, não foram particularmente moderados. Tinham a
sensação de que o mundo despertara de novo.
Surgiu então a consciência da época contemporânea e foi
introduzida a designação "Idade Média" para o período entre a
Antiguidade e a sua própria época. Iniciou-se uma época única
de desenvolvimento em todos os domínios, na arte e na arquitectura, na
literatura e na música, na filosofia e na ciência. Vou dar um exemplo
concreto. Nós falamos da Roma da Antiguidade, que tinha epítetos
imponentes como "cidade das cidades", e "centro do mundo". No decurso da
Idade Média, a cidade entrou em decadência e, em 1417, a antiga cidade
de mais de um milhão de habitantes tinha apenas dezassete mil.
- Pouco mais do que Lillesand.
- Para os humanistas, reconstruir Roma era um objectivo cultural
e político. A grande Basílica de S. Pedro foi erigida então sobre o
túmulo do apóstolo Pedro. E no caso da Basílica de S. Pedro, não se pode
mesmo falar de moderação. Vários nomes importantes do Renascimento se
empenharam no maior projecto arquitectónico do mundo. Os trabalhos
começaram no ano de 1506 e duraram cento e vinte anos, e só após outros
cinqüenta anos, ficava terminada a grande Praça de
S. Pedro.
- Deve ser uma igreja muito grande.
- Tem mais de duzentos metros de comprimento e cento e trinta de
altura e uma superfície de dezasseis mil metros quadrados. Mas com isto,
já falei o suficiente sobre a ousadia dos homens do Renascimento. Também
foi muito importante o facto de o Renascimento ter levado a uma nova
"concepção da natureza", de o homem sentir alegria em viver
- e de não ver a vida na Terra apenas como preparação para a
p. 180
vida no céu. Isso deu origem a uma posição totalmente nova em relação ao
mundo físico. A natureza era já tida como positiva. Muitos acreditavam
também que Deus estava presente na Criação. Ele é infinito e, nesse
caso, também tem de estar em toda a parte. Esta concepção é designada
por "panteísmo". Os filósofos da Idade Média tinham apontado
reiteradamente para o abismo insuperável entre Deus e a Criação. Agora,
a natureza podia ser caracterizada como divina - sim, inclusivamente
como "manifestação de Deus". Estas novas ideias nem sempre foram
acolhidas com simpatia pela Igreja. O destino de "Giordano Bruno"
mostrou-o de forma dramática. Ele não afirmava apenas que Deus estava
presente na natureza, defendia que o universo era infinito. Por isso,
foi severamente punido.
- Como?
- Morreu na fogueira no ano de 1600, no mercado das flores em
Roma...
- Isso é terrível - é estúpido. É a isso que chamas humanismo?
- Não, isso não. Bruno era o humanista, não os seus carrascos.
Mas durante o Renascimento também se desenvolveu uma coisa a que podemos
chamar "anti-humanismo", isto é, um poder autoritário da Igreja e do
Estado. Durante o Renascimento, também houve processos contra bruxas e
autos de fé, magia e superstição, guerras de religião sangrentas - e
ainda a conquista brutal da América. O humanismo sempre teve um lado
brutal. Nenhuma época é apenas boa ou apenas má. O bem e o mal são como
dois fios que atravessam toda a história da humanidade. Frequentemente,
entrelaçam-se. Isso é ainda válido para a nossa próxima palavra -chave.
Vou falar do modo como o Renascimento desenvolveu um "novo método
científico".
- Foram construídas também as primeiras fábricas?
- Ainda não. Mas uma condição para todo o desenvolvi mento
técnico que se iniciou após o Renascimento foi o novo método científico.
Este método consiste numa nova atitude em relação à natureza da ciência.
Os frutos técnicos do novo método surgiram pouco a pouco.
- Em que é que consistia esse novo método?
- Sobretudo, tratava-se de investigar a natureza com os
sentidos. Já desde o início do século XIV, cada vez mais pessoas
criticavam a confiança cega nas autoridades antigas. Essas autoridades
eram tanto os dogmas da Igreja como a filosofia natural de Aristóteles.
Também se negou que um problema se pudesse resolver apenas por reflexão.
Essa confiança exagerada na importância da razão predominara durante
toda a Idade Média.
Dizia-se que a investigação
p. 181
da natureza tinha de se basear na observação, na experiência e na
experimentação. É o chamado método "empírico".
- O que é que significa?
- Significa simplesmente que obtemos o conhecimento das coisas
através de experiências nossas - e não de pergaminhos poeirentos ou
fantasias. Na
Antiguidade, também se fez ciência empírica, e Aristóteles fez
muitas experiências importantes para o conhecimento da natureza. Mas
"experimentações" sistemáticas eram algo completamente novo.
- Não havia instrumentos técnicos como hoje, pois não?
- Obviamente não havia máquinas de calcular nem balanças
electrónicas. Mas havia a matemática e havia balanças. Foi
particularmente realçada a importância de exprimir as
observações científicas numa linguagem matemática exacta. " Deve medir
-se aquilo que pode ser medido, e tornar mensurável o que não pode ser
medido", segundo "Galileu Galilei", um dos cientistas mais importantes
do século XVII. Ele afirmou também que o livro da natureza estava
escrito em caracteres matemáticos.
- E através de muitas experimentações e medições estava aberto o
caminho para novas invenções?
- A primeira fase foi um novo método científico, que
possibilitou a revolução técnica, e o desenvolvimento técnico
possibilitou todas as invenções que se realizaram desde então. Podemos
dizer que os homens começaram a libertar-se das imposições da natu
reza. O homem já não era apenas uma parte da natureza. A natureza era
uma coisa que podia ser usada e explorada. " Saber é poder", afirmou o
filósofo inglês "Francis Bacon". Com isso, chamava a atenção para a
utilidade prática do saber - e isso era algo novo. Os homens começavam a
intervir na natureza e a dominá-la.
- Mas isso não foi apenas positivo, pois não?
- Não, e assim estamos de novo na questão do fio bom e do fio
mau que se estão sempre a entrelaçar em tudo o que fazemos. O
desenvolvimento técnico que se iniciou no Renascimento deu origem à
máquina de fiar e ao desemprego, a medicamentos e a novas doenças, ao
desenvolvimento da agricultura e à destruição da natureza, a novos
recursos práticos como máquinas de lavar e frigoríficos, mas também à
poluição do meio ambiente e ao problema dos resíduos. industriais. Vendo
hoje que o nosso ambiente está terrivelmente ameaçado, muitos vêem a
própria revolução técnica como um afastamento perigoso das condições de
vida que nos são dadas pela natureza. Nós homens, devido a esta
concepção, pusemos em marcha um
p. 182
processo que já não conseguimos controlar. Os optimistas acreditam que
ainda vivemos na infância da técnica. A civilização técnica, segundo
eles, tem de facto as suas doenças infantis, mas, por fim, os homens hão
-de aprender a dominar a natureza sem a ameaçar de morte.
- O que é que tu pensas?
- Que talvez ambos os pontos de vista estejam certos. Em alguns
domínios, os homens já não devem intervir na natureza, noutros, podemos
fazê-lo com confiança. O certo é que nenhum caminho nos leva de volta à
Idade Média. Desde o Renascimento, o homem já não é uma mera parte da
Criação. O homem intervém na natureza e forma-a segundo as suas
próprias ideias. Isso diz-nos alguma coisa acerca da admirável criatura
que é o homem.
- Já fomos à Lua. Nenhum homem da Idade Média achou isso
possível?
- Não, podes ter a certeza. E isso leva-nos à "nova concepção
do mundo". Durante toda a Idade Média, os homens olharam para o Sol e
para a Lua, estrelas e planetas. Mas ninguém duvidara de que a Terra
fosse o centro do universo. Nenhuma observação introduzira a dúvida de
que a Terra estava imóvel e os "corpos celestes" circulavam em seu
redor. Chamamos a esta concepção a "teoria geocêntrica do universo". A
ideia cristã de que Deus governa todos os corpos celestes também
contribuiu para que esta concepção do universo se mantivesse.
- Eu gostaria que fosse assim tão simples.
- Mas, no ano de 1543, foi publicada uma obra intitulada " Seis
livros sobre as revoluções das esferas celestes", escrita pelo astrónomo
polaco " Copérnico" que morreu no próprio dia em que foi publicada a sua
revolucionária obra. Copérnico afirmava que não era o Sol que girava à
volta da Terra, mas a Terra à volta do Sol. Achava-o possível com base
nas observações dos corpos celestes que havia até então. Se os homens
tinham acreditado que o Sol girava à volta da Terra, era, segundo ele,
apenas porque a Terra girava sobre o seu próprio eixo. Ele apontou para
o facto de todas as observações dos corpos celestes serem muito mais
fáceis de compreender se se pressupuser que a Terra e os outros planetas
se movem em trajectórias circulares à volta do Sol. Chamamos a esta
concepção "teoria heliocêntrica do universo", que significa que tudo
gira em volta do Sol.
- E essa teoria está certa?
- Não totalmente. O postulado mais importante de
Copérnico - o facto de a Terra girar à volta do Sol
- está obviamente correcto. Ele pensava que o Sol era o centro
do universo. Hoje, sabemos que o Sol
p. 183
é apenas uma entre inumeráveis estrelas - e que todas as estrelas à
nossa volta constituem apenas uma entre muitos milhões de galáxia.
Copérnico acreditava também que a Terra e os outros planetas se
moviam em trajectórias circulares em torno do
Sol.
- E isso não está certo?
- Não, ele não tinha nenhuma prova para os movimentos circulares
além da antiga ideia segundo a qual os corpos celestes eram redondos
como esferas e descreviam trajectórias circulares apenas porque eram
"celestes". Já desde o tempo de Platão, a esfera e o círculo eram
considerados as figuras geométricas mais perfeitas. Mas no início do
século XVII, o astrónomo alemão "Johannes Kepler" conseguiu apresentar
os resultados de observações pormenorizadas que provavam que os planetas
se moviam em trajectórias elípticas - ou ovais - à volta do Sol como um
dos focos. Ele provou também que os planetas se movem tanto mais
rapidamente quanto mais próximos estão do Sol. Finalmente, provou ainda
que um planeta se move tanto mais lentamente quanto mais afastado está
do Sol. Só através de Kepler se tornou claro que a Terra é um planeta
como todos os outros. Kepler sublinhou ainda que as mesmas leis físicas
são válidas para todo o Universo.
- Como é que ele tinha a certeza disso?
- Tinha a certeza porque investigou os movimentos dos planetas
com os seus próprios sentidos, em vez de confiar cegamente na tradição
da
Antiguidade. O famoso cientista italiano "Galileu Galilei" viveu
aproximadamente na mesma altura que Kepler. Também ele observava os
corpos celestes com o telescópio. Estudou as crateras na Lua e verificou
que lá existem montes e vales tal como na terra. Galileu descobriu
também que o planeta Júpiter tem quatro luas. Logo, a Terra não era o
único planeta com Lua. Mas o mais importante foi o facto de Galileu ter
descoberto a chamada "Lei da Inércia".
- E o que é que diz essa lei?
- "Todos os corpos conservam o estado de repouso ou de movimento
constante em trajecto rectilíneo desde que não sejam constrangidos por
forças exteriores a alterar esse estado". Mas ele ainda não o formulara
assim. Quem o fez, posteriormente, foi "Isaac
Newton".
- Está bem.
- Desde a Antiguidade, um dos mais importantes argumentos contra
a ideia de que a terra girava em torno do seu próprio eixo dizia que,
nesse caso, a terra teria de se mover tão rapidamente que uma pedra
lançada ao ar na vertical cairia a muitos metros de distância.
- E por que é que não é assim?
p. 184
- Quando estás no comboio e deixas cair uma maçã, a maçã não cai
longe de ti pelo facto de o comboio estar em movimento. Ela cai em linha
recta ao teu lado. Isso deve-se à lei da inércia. A maçã conserva a
mesma velocidade que tinha antes de tu a teres deixado cair.
- Acho que estou a perceber.
- Mas no tempo de Galileu não havia comboios. Mas se tu, de
repente, fazes rolar uma esfera pelo chão... ... continua a rolar... ...
porque a velocidade se mantém mesmo depois de teres largado a esfera.
- Mas no fim ela pára, caso a sala seja suficientemente grande.
- Isso é porque outras forças travam a velocidade, em primeiro
lugar, o pavimento, e sobretudo soalhos de madeira não tratada. Mas a
força da gravidade também provoca a paragem da esfera mais cedo ou mais
tarde. Espera, vou mostrar-te uma coisa.
Alberto levantou-se e dirigiu-se para a velha escrivaninha.
Retirou uma coisa de uma gaveta, e colocou-a na mesa do sofá. Era
simplesmente uma placa de madeira que numa das extremidades tinha alguns
milímetros de espessura e na outra era muito fina. Junto à placa de
madeira, que cobria quase toda a mesa, ele colocou um berlinde.
- Chama-se a isto "plano inclinado" - afirmou então.
- O que te parece que vai acontecer se eu largar o berlinde aqui
em cima, onde a placa é mais espessa?
Sofia suspirou.
- Aposto dez coroas em como rola para a mesa e vai cair no chão.
- Vamos ver.
Alberto largou o berlinde, e este portou-se exactamente como
Sofia anunciara. Rolou para a mesa, continuou a rolar sobre o tampo da
mesa, tocou no solo com um ruído surdo e por fim foi de encontro ao
limiar da porta.
- Impressionante - afirmou Sofia.
- É, não é? E Galileu fez estas experiências.
- Ele era assim tão parvo?
- Não te precipites. Ele queria investigar tudo com os próprios
sentidos, e nós mal começámos. Diz-me primeiro porque é que o berlinde
rola para baixo no plano inclinado.
- Ele começa a rolar porque é pesado.
- Está bem. E o que é verdadeiramente o peso?
- Agora estás mesmo a fazer perguntas parvas.
p. 185
- Eu não estou a fazer perguntas parvas se tu não consegues
responder. Porque é que o berlinde rolou para o chão?
- Por causa da força da gravidade.
- Exactamente - ou da "gravitação", como também se diz. Logo, o
peso tem algo a ver com a força da gravidade. E foi esta força que pôs o
berlinde em movimento.
Alberto levantara o berlinde do chão e curvou-se sobre o plano
inclinado.
- Agora, vou tentar fazer rolar o berlinde pelo plano inclinado
na diagonal - afirmou - observa bem como ele se move. Ele curvou-se e
apontou o berlinde. Depois, fê-lo rolar pelo plano inclinado. Sofia viu
que o berlinde se desviou imediatamente e rolou para baixo.
- O que é que aconteceu?
- Ele fez um desvio porque se trata de um plano inclinado.
- Vou pintá-lo com uma caneta de feltro... depois talvez
possamos ver exactamente o que tu querias dizer com "desvio". Pegou numa
caneta de feltro e pintou o berlinde de preto.
Depois, fê-lo rolar de novo.
Sofia podia ver exactamente o trajecto do berlinde no plano
inclinado, visto que deixara um traço negro.
- Como é que descreverias o movimento deste berlinde? -
perguntou Alberto.
- Como uma curva... parece uma parte de um círculo.
- Acertaste em cheio!
Alberto olhou para ela e ergueu as sobrancelhas.
- Apesar de não ser exactamente um círculo. Esta figura chama
-se parábola.
- Sim.
- Mas porque é que a esfera se move exactamente assim?
Sofia reflectiu um pouco. Por fim, afirmou:
- Visto que a placa tem uma inclinação, a esfera é arrastada
para o chão pela força da gravidade.
- É, não é? Isso é sensacional. Eu trago uma rapariga qualquer a
minha casa e, após uma única experiência, ela chega imediatamente à
mesma conclusão que Galileu.
Alberto bateu palmas, e
Sofia receou por um momento que ele pudesse ter perdido o juízo.
Ele prosseguiu:
- Viste o que sucede quando "duas forças" actuam simultaneamente
sobre o mesmo objecto. Galileu descobriu que isto também é válido, por
exemplo, para uma bala de canhão. Ela é disparada para o ar e continua a
voar. mas por fim também é atraída para o solo. E descreve
p. 186
então uma trajectória que corresponde à do nosso berlinde no plano
inclinado. E isso foi verdadeiramente uma nova descoberta no tempo de
Galileu. Aristóteles acreditava que um projéctil lançado ao ar
descreveria primeiro uma ligeira curva e cairia depois no solo em linha
recta. Mas isso não era verdade, e só se poderia saber que Aristóteles
estava errado quando fosse demonstrado.
- Está bem. Mas isto é mesmo importante?
- Se é importante! É de uma importância cósmica, minha filha. De
todas as descobertas científicas na história da humanidade esta é uma
das mais importantes.
- Então calculo que me vais explicar imediatamente porquê.
- Mais tarde, veio o físico inglês Isaac Newton, que viveu entre
1642 e 1727.
Devemos-lhe a descrição definitiva do sistema solar e dos
movimentos dos planetas. Ele não conseguiu apenas descrever como os
planetas se movem à volta do Sol, conseguiu ainda explicar exactamente
"porque" é que o fazem. Conseguiu-o através, entre outras coisas, dos
estudos de Galileu e da sua lei da inércia, que ele, como sabemos,
formulou definitivamente.
- E os planetas são berlindes num plano inclinado?
- Mais ou menos, sim. Mas espera mais um pouco, Sofia.
- Não tenho outra escolha.
- Já Kepler apontara para o facto de que tem de haver uma força
que provoque a atracção "entre" os planetas.
Do Sol, por exemplo, tem de partir uma força que mantenha os
planetas nas suas órbitas. Essa força também pode explicar porque é que
os planetas na proximidade do Sol se movem mais depressa do que os mais
distantes do Sol. Kepler defendia também que a maré baixa e a maré alta,
ou seja, a subida e a descida da superfície do mar - estão dependentes
de uma força da Lua.
- Isso também está certo.
- Sim, está certo. Mas Galileu contestou isso. Ele fazia troça
de Kepler e da sua ideia fixa de que "a Lua domina o mar". Galileu
contestou a hipótese de que essas forças pudessem ter efeito a uma
grande distância e consequentemente entre os planetas.
- Nisso, ele estava errado.
- Sim, neste ponto ele estava errado. E isso é quase cómico,
visto que ele se preocupou muito com a força da gravidade da Terra e a
queda dos corpos ao solo. Além disso, ele mostrou como diversas forças
podem dirigir os movimentos de um corpo.
- Mas tu falaste de
Newton.
- Sim, em seguida veio
Newton. Ele formulou a chamada lei da Gravitação Universal. Esta
lei afirma que qualquer objecto atrai outro
p. 187
objecto com uma força que aumenta em proporção com o tamanho dos
objectos e que diminui com o crescente distanciamento entre eles.
- Acho que estou a perceber. Entre dois elefantes, por exemplo,
existe uma maior força de atracção do que entre dois ratos. E entre dois
elefantes no mesmo jardim zoológico há maior força de atracção do que
entre um elefante indiano na Índia e um elefante africano em África.
- Nesse caso compreendeste tudo. E agora, vem o mais importante.
Newton sublinhou que esta força de atracção - ou gravitação - é
universal.
Quer dizer que é válida em toda a parte, inclusivamente no
espaço entre os corpos celestes. Diz-se que ele chegou a esta conclusão
certo dia, quando estava sentado debaixo de uma macieira. Ao ver uma
maçã cair da árvore, deve ter perguntado a si mesmo se a Lua é atraída
para a Terra pela mesma força e se, consequentemente, a Lua gira à volta
da Terra para toda a eternidade.
- Isso foi inteligente, mas não muito inteligente.
- Como não, Sofia?
- Se a Lua fosse atraída para a Terra pela mesma força que faz
cair a maçã, a Lua acabaria por cair na Terra, em vez de andar à volta.
- Agora, estamos a aproximar-nos da lei dos movimentos dos
planetas de Newton.
Naquilo que dizes acerca do modo como a força da gravidade da
Terra atrai a Lua, tens apenas cinqüenta por cento de razão. Porque é
que a Lua não cai sobre a Terra,
Sofia? A força da gravidade da Terra atrai a Lua com uma força
poderosa. Pensa bem como são necessárias forças potentes para fazer
subir o mar um ou dois metros durante a maré alta.
- Não, isso eu não entendo.
- Pensa no plano inclinado de Galileu. O que é que sucedeu
quando eu fiz rolar para baixo o berlinde no plano inclinado?
- Mas então há duas forças diferentes que agem sobre a Lua?
- Exacto. No aparecimento do sistema solar, a Lua foi lançada da
órbita com muita força - logo, para longe da Terra. Esta força
continuará a agir para toda a eternidade, dado que a Lua se move sem
resistência no vácuo...
- Mas é simultaneamente atraída para a Terra pela força da
gravidade desta?
- Exacto. Ambas as forças são constantes, e ambas agem
simultaneamente. Por isso, a Lua vai continuar a girar à volta da Terra.
- Isso é assim tão simples?
p. 188
- É muito simples, e justamente esta "simplicidade" era para
Newton o mais importante. Ele também provou que algumas leis físicas,
tal como a lei da inércia, são válidas para todo o universo. E nos
movimentos dos planetas, ele aplicou apenas duas leis da natureza, que
Galileu já indicara: a lei da inércia e a que afirma que um corpo no
qual agem simultaneamente duas forças se moverá numa trajectória
elíptica, tal como o mostravam as esferas de Galileu no plano inclinado.
- E com isso, Newton conseguiu explicar porque é que todos os
planetas giram à volta do Sol.
- Exacto. Todos os planetas giram à volta do Sol em órbitas
elípticas, devido a dois movimentos diferentes: primeiro, o movimento
rectilíneo que eles seguiram durante o aparecimento do sistema solar, e
em segundo lugar um movimento em direcção ao Sol devido à gravitação.
- Muito inteligente.
- Bem podes dizê-lo.
Newton provou que as mesmas leis para os movimentos dos corpos
são válidas em todo o universo. Com isto, ele destruiu também antigas
concepções medievais, segundo as quais "no céu" são válidas leis
diferentes das nossas na terra. A teoria heliocêntrica teve a sua
confirmação e a sua explicação definitiva.
Alberto levantou-se e voltou a pôr o plano inclinado na gaveta.
Baixou-se e levantou o berlinde do chão, mas colocou-o na mesa, entre
ele e
Sofia. Ela achou inacreditável o quanto tinham retirado de uma
placa de madeira inclinada e de um berlinde. Ao observar agora o
berlinde verde
- que ainda estava parcialmente negro de tinta -, pensou
imediatamente no globo terrestre. Perguntou:
- E os homens tiveram de se conformar com o facto de viverem num
planeta ao acaso no Universo?
- Sim, e a nova teoria era em muitos aspectos um duro golpe.
Talvez possa ser comparado com a situação em que
Darwin provou que o homem descende dos animais. Em ambos os
casos, o homem perdeu algo da sua posição especial na Criação. Em ambos
os casos, a Igreja opôs-se energicamente.
- Isso eu consigo perceber. Onde é que fica Deus em toda esta
história? De certo modo, tudo era mais fácil quando a Terra estava no
centro e Deus e todos os corpos celestes viviam um piso acima.
- Mas isso ainda não era o maior desafio. Quando Newton provou
que as mesmas leis físicas eram válidas para todo o Universo, podia ter
-se pensado que ele perdera a fé na omnipotência de Deus. Mas a fé
pessoal de Newton não foi abalada. Ele via as leis da natureza
p. 189
como prova da grandeza e omnipotência de Deus. O mais grave era a
questão da imagem que os homens tinham de si próprios.
- O que queres dizer com isso?
- Desde o Renascimento, o homem tivera que se habituar à ideia
de viver num planeta ao acaso no Universo. Mas eu não sei se nos
habituámos completamente a isso. Já no Renascimento havia quem afirmasse
que o homem passara a ocupar uma posição mais central do que
anteriormente.
- Não compreendo.
- Anteriormente, a Terra tinha sido o centro do mundo. Mas
quando os astrónomos explicaram que no Universo não há nenhum centro
absoluto, concluiu-se que eram tantos os centros quantos os homens.
- Compreendo.
- O Renascimento também trouxe consigo uma nova "concepção de
Deus". À medida que a filosofia e a ciência se separavam da teologia,
surgiu uma nova religiosidade cristã.
Começou então o Renascimento com a sua nova concepção do homem,
e isso também foi importante para a prática religiosa. Mais importante
do que a relação com a Igreja como instituição, tornou-se a relação
pessoal do indivíduo com Deus.
- A oração da noite, por exemplo?
- Sim, isso também. Na Igreja Católica da Idade Média, a
liturgia latina da Igreja e as suas orações tinham formado a verdadeira
coluna vertebral do culto religioso. Apenas sacerdotes e monges liam a
Bíblia, porque esta só existia em latim. Mas durante o Renascimento a
Bíblia foi traduzida do hebraico e do grego para as línguas populares.
Isso foi importante para a "Reforma"...
- "Martinho Lutero"...
- Sim, Lutero foi importante, mas ele não foi o único
reformador. Também havia reformadores da Igreja que, apesar de
pertencerem à Igreja Católica Romana, queriam agir. Um deles foi "Erasmo
de Roterdão".
- Lutero rompeu com a Igreja Católica porque não queria pagar
indulgências?
- Sim, também, mas tratava-se de algo muito mais importante.
Para Lutero, o homem não precisava de fazer o desvio pela Igreja ou
pelos seus sacerdotes para obter o perdão de Deus. E o perdão de Deus
não estava dependente de uma quantia para a indulgência paga à Igreja. O
chamado tráfico de indulgências também foi proibido na Igreja
Católica em meados do século XVI.
p. 190
- De certeza que Deus se alegrou com isso.
- Lutero distanciou-se de um modo geral de muitos costumes
religiosos e dogmas que a Igreja desenvolvera na Idade Média. Ele queria
voltar ao cristianismo original tal como o encontramos no Novo
Testamento. " Apenas as Escrituras" - afirmava ele. Com este mote,
Lutero queria regressar "às fontes" do cristianismo, tal como os
humanistas do Renascimento queriam voltar às fontes antigas da arte e da
cultura. Ele traduziu a Bíblia para o alemão e criou assim a base para a
língua escrita do alemão padrão. Cada qual poderia ler a Bíblia e, de
certo modo, ser o seu próprio pastor.
- Como assim? Isso não vai demasiado longe?
- Ele achava que os sacerdotes não ocupam nenhuma posição
privilegiada em relação a Deus. As comunidades luteranas também
empregavam pastores por razões práticas, e eles celebravam o serviço
religioso e realizavam as tarefas religiosas diárias. Mas ele achava que
o homem não alcança o perdão de Deus e a remissão dos seus pecados pelos
rituais eclesiásticos. A salvação é dada ao homem totalmente "grátis",
apenas através da fé, afirmava ele. Ele chegara a esta conclusão por
meio da sua leitura da Bíblia.
- Lutero também era um homem típico do Renascimento?
- Sim e não. Um traço típico do Renascimento era a importância
que se dava ao indivíduo e à sua relação pessoal com Deus. Ele aprendeu
grego com trinta e cinco anos e lançou-se à morosa tarefa de traduzir a
Bíblia para o alemão. O facto de a língua popular substituir o latim
também era típico do Renascimento. Mas Lutero não era um humanista como
Ficino ou Leonardo da Vinci. Alguns humanistas, como Erasmo de Roterdão,
criticaram-no devido à sua concepção demasiado negativa do homem.
Lutero sublinhou nomeadamente que o homem estava completamente
corrompido pelo pecado original e a humanidade só podia ser salva
através da graça divina. Porque a recompensa do pecado é a morte.
- Isso é realmente um pouco triste.
Alberto Knox levantou-se. Tirou o berlinde da mesa e pô-lo no
bolso do peito.
- Já passa das quatro! - exclamou Sofia.
- E a próxima grande época na história da humanidade é o
Barroco. Mas vamos guardar isso para um outro dia, querida Hilde.
- O que é que disseste?
Sofia levantou-se de um pulo.
- Querida "Hilde" foi o que tu disseste.
p. 191
- Então foi um lapso.
- Mas os lapsos têm sempre um motivo.
- Talvez tenhas razão.
Certamente o pai de Hilde já nos anda a colocar palavras na
boca. Acho que ele se aproveita da situação quando nós estamos cansados.
Nessa altura, não podemos defender-nos com tanta facilidade.
- Tu disseste que não és o pai de Hilde. Juras-me que isso é
verdade?
Alberto acenou afirmativamente.
- Mas então eu sou Hilde?
- Estou cansado, Sofia. Tens de compreender. Já estamos aqui há
mais de duas horas e eu falei durante quase todo o tempo. Não tens de ir
para casa jantar?
Sofia teve a sensação de que ele a queria pôr na rua.
A caminho da saída, perguntava-se incessantemente porque é que
ele tivera aquele lapso.
Alberto vinha atrás dela.
Debaixo de uma pequena fila de cabides, onde estavam pendurados
muitos fatos estranhos que pareciam trajes de teatro, Hermes estava
deitado e dormia. Alberto apontou com a cabeça para o cão e afirmou:
- Ele vai buscar-te.
- Obrigada pela lição de hoje - disse Sofia. Ela pôs-se nos
bicos dos pés e abraçou Alberto.
- Tu és o professor mais competente e mais querido que eu já
tive. Em seguida, abriu a porta.
Antes de fechar a porta,
Alberto afirmou:
- Ver-nos-emos em breve, Hilde. E com estas palavras deixou
Sofia entregue a si mesma.
De novo, Alberto tivera um lapso, aquele patife. Sofia teria
batido de novo à porta, mas algo a impediu de o fazer.
Na rua, lembrou-se de que não tinha dinheiro nenhum.
Deste modo, tinha que fazer a pé todo o caminho para casa.
Que diabo! A mãe ia ficar furiosa e preocupada se não
conseguisse chegar a casa às seis. Mas alguns metros adiante, descobriu
de repente no passeio uma moeda de dez coroas. Um bilhete de transbordo
custava exactamente dez coroas.
Sofia foi para a paragem e esperou pelo autocarro seguinte para
a praça principal. De lá, partia um outro que ia quase até sua casa.
p. 192
Só na praça principal reflectiu na sorte que tivera em encontrar
a moeda de dez coroas precisamente no momento em que precisava tanto
dela.
O pai de Hilde nunca poderia tê-la colocado ali. Mas ele era
sem dúvida um mestre na arte de colocar todo o género de coisas nos
lugares mais estranhos. Mas como é que o conseguia, se estava no Líbano?
E porque é que Alberto tivera aqueles lapsos? Não apenas uma vez, mas
duas de seguida.
Sofia sentiu um calafrio percorrer-lhe as costas.
p. 193
O Barroco
"... da mesma matéria de que são feitos os sonhos..."
Durante alguns dias, Sofia não teve mais notícias de Alberto,
mas procurou por Hermes no jardim várias vezes ao dia. Dissera à mãe que
o cão fora sozinho para casa, e o seu dono, um velho professor de
física, a convidara para tomar café. Ele falara a Sofia acerca do
sistema solar e da nova ciência que nascera no século XVI.
Contou mais a Jorunn. Falou-lhe da sua visita a Alberto, do
postal no vão da escada e da moeda de dez coroas que encontrara no
caminho para casa. Mas guardou para si o sonho com Hilde e a história do
crucifixo de ouro.
Na terça -feira, dia 29 de Maio, Sofia estava na cozinha e
enxugava a louça, enquanto a mãe via as notícias na sala de estar.
Quando a música de abertura esmoreceu,
Sofia ouviu na cozinha que um major do contingente norueguês da
O NU fora morto por uma granada.
Sofia deixou cair o pano da louça no lava-louça e correu para a
sala de estar. Durante alguns segundos tremeluziu uma fotografia do
soldado da
O NU no ecrã - depois, as notícias continuaram.
- Oh, não! - exclamou
Sofia.
A sua mãe voltou-se.
- Sim, a guerra é terrível...
Sofia desfez-se em lágrimas.
- Mas, Sofie. Não é assim tão grave.
- Disseram o nome dele?
- Sim... mas já não me recordo. Ele era de Grimstad.
- Isso não é o mesmo que Lillesand?
- Não, estás a brincar?
- Mas quando se é de Grimstad, também se pode ir à escola em
Lillesand. Já não chorava. Por sua vez, a mãe reagiu. Levantou-se e
desligou o televisor.
- Mas que excessos são estes, Sofia?
p. 194
- Ah, nada...
- Sim, tem de haver alguma coisa! Tu tens um namorado, e eu
começo a acreditar que ele é muito mais velho que tu. Responde-me
agora: conheces algum homem no Líbano?
- Não, não é bem isso...
- Conheces o filho de alguém que esteja no Líbano?
- Não, ouve. Eu nem sequer conheço a filha dele!
- De quem é que estás a falar?
- Não tens nada a ver com isso.
- Ah, não?
- Talvez devesse ser antes eu a interrogar. Porque é que o pai
nunca está em casa? Talvez porque vocês sejam demasiado cobardes para se
separarem? Terás um namorado do qual o pai e eu nada sabemos? E assim
por diante. Ambas temos as nossas perguntas.
- De qualquer modo, acho que temos de conversar uma com outra.
- Talvez. Mas agora estou tão cansada que prefiro ir para a
cama. E além disso estou com o período.
Saiu da sala a correr com um nó na garganta. Mal saíra da casa
de banho e se enfiara nos lençóis, a mãe entrou no quarto.
Sofia fingiu que dormia, apesar de saber que a mãe não
acreditava. Também sabia que a mãe sabia que Sofia sabia que ela não
acreditava nisso.
No entanto, a mãe fez como se
Sofia já estivesse a dormir.
Sentou-se ao canto da cama e acariciou-lhe a cabeça.
Sofia pensou como era difícil levar uma vida dupla.
Começava a alegrar-se com o fim do curso de filosofia. Talvez
terminasse até ao dia dos seus anos - ou pelo menos até à noite de S.
João, quando o pai de Hilde regressasse do Líbano...
- Eu queria fazer uma festa no meu aniversário - afirmou então.
- É uma boa ideia. E quem queres convidar?
- Muitas pessoas... posso?
- Claro. Temos um jardim grande. E talvez o bom tempo se
mantenha.
- Mas, de preferência, eu gostaria de festejar só na noite de S.
João.
- Está bem, então fazemos isso.
- É um dia importante - afirmou Sofia, e não estava a pensar
apenas no seu aniversário.
- Ah...
- Acho que me tornei tão adulta nos últimos tempos.
p. 195
- Sim, não é bom?
- Não sei.
Sofia mantivera a cabeça enterrada na almofada enquanto falavam.
A mãe sondou então:
- Mas Sofia, tens de me contar porque é que... porque é que
agora estás tão desequilibrada.
- Tu não eras assim com quinze anos?
- Certamente. Mas tu sabes o que quero dizer.
Sofia voltou-se para a mãe.
- O cão chama-se Hermes
- afirmou.
- Sim?
- Pertence a um homem chamado Alberto.
- Ahá.
- Ele mora na parte antiga da cidade.
- Foste tão longe atrás do cão?
- Mas não é perigoso.
- Tu disseste que o cão já tinha estado aqui outras vezes.
- Sim!
Sofia tinha de reflectir. Ela queria revelar o máximo que lhe
era possível, mas não podia contar tudo.
- Tu quase nunca estás em casa - começou.
- Não, estou muito ocupada.
- Alberto e Hermes já estiveram aqui muitas vezes.
- Mas porquê? Também já estiveram dentro de casa?
- Podes fazer uma pergunta de cada vez? Eles não estiveram na
casa. Mas vão frequentemente passear no bosque.
Achas isso estranho?
- Não, isso não é nada estranho.
- Como todos os outros, passam pelo nosso portão ao passearem.
Uma vez em que eu vinha da escola, Hermes farejava aqui à volta. Foi
deste modo que eu conheci o Alberto.
- E quanto ao coelho branco e todas as outras coisas?
- Foi o Alberto que falou nisso. É que ele é um verdadeiro
filósofo. Falou-me dos filósofos.
- Assim por cima da vedação do jardim?
- Não, sentámo-nos. Mas ele também me escreveu cartas,
bastantes. Por vezes, vieram pelo correio, outras vezes ele pô-las na
nossa caixa do correio ao passar.
- Essas eram então as "cartas de amor" de que falámos.
- Só que não eram cartas de amor.
- Ele só escreveu sobre filósofos?
p. 196
- Sim, imagina tu. E já aprendi mais com ele do que em oito anos
de escola. Já ouviste falar, por exemplo, de Giordano Bruno, que morreu
na fogueira em 1600? Ou da lei da gravitação de Newton?
- Não, há muita coisa que eu não sei...
- Se bem te conheço, nem sequer sabes porque é que a Terra gira
à volta do Sol, e não o contrário.
- Que idade é que ele tem, aproximadamente?
- Não faço ideia. Pelo menos cinqüenta.
- E o que é que ele tem a ver com o Líbano? Isso era mais
complicado.
Sofia pensou em dez respostas possíveis ao mesmo tempo. Depois
escolheu a única que lhe parecia credível:
- O irmão do Alberto é major na O NU. E ele é de Lillesand. Deve
ter morado a certa altura na cabana do major.
- Alberto não é um nome um pouco estranho?
- Talvez.
- Soa a italiano.
- Eu sei. Quase tudo o que é importante vem da Grécia ou da
Itália.
- Mas ele fala norueguês?
- Sim, fluentemente.
- Sabes o que acho, Sofia? Acho que devias convidar o Alberto
para nossa casa.
Nunca estive com um verdadeiro filósofo.
- Vamos ver.
- Talvez o possamos convidar para a tua grande festa. É
divertido misturar as gerações. E nessa altura, eu podia estar também
presente. Eu poderia servir à mesa. Achas uma boa ideia?
- Sim, se ele quiser. De qualquer modo, é muito mais
interessante conversar com ele do que com os rapazes da minha turma.
Mas... nesse caso, todos acharão que o Alberto é o teu namorado.
- Então, dizes-lhes que isso não é verdade.
- Vamos ver.
- Sim, vamos ver. E Sofia - é verdade que nem tudo foi fácil
entre mim e o pai. Mas eu nunca tive um namorado...
- Agora, quero dormir. Tenho uma dor de barriga horrível.
- Queres uma aspirina?
- Está bem.
Quando a mãe voltou com um comprimido e um copo de água,
Sofia já tinha adormecido.
O dia 31 de Maio era uma quinta -feira. Sofia esteve preocupada
durante as últimas aulas. Em algumas disciplinas tinha melhorado desde
que o curso de Filosofia começara.
Na maioria das disciplinas
p. 197
estivera sempre entre "bom" e "muito bom"; mas nos últimos meses tinha
conseguido um "muito bom" num trabalho escrito de ciências humanas e
numa composição de casa. Na matemática as coisas não estavam tão bem...
Na última aula, o professor entregou uma composição que tinha
corrigido. Sofia tinha escolhido o tema " O homem e a técnica".
Escrevera sobre o Renascimento e o desenvolvimento científico, sobre a
nova visão da natureza, sobre Francis Bacon, que afirmara "saber é
poder", e sobre o novo método científico. Explicara detalhadamente que o
método empírico era mais antigo do que as invenções técnicas. Escrevera
depois o que lhe ocorrera acerca das desvantagens da técnica. Tudo o que
os homens faziam podia resultar no bem ou no mal, escrevera no fim. Bem
e mal eram como um fio branco e um fio preto que se estavam sempre a
entrelaçar. Por vezes, ambos os fios estão tão unidos que é impossível
separar um do outro.
Ao entregar as composições, o professor olhou para Sofia e
piscou-lhe o olho. Teve um cinco, e o professor perguntou: - Como é que
sabes isso tudo?
Sofia agarrou numa caneta de feltro e escreveu em maiúsculas na
folha: "Eu Estudo Filosofia".
Ao fechar o livro de exercícios, algo caiu das páginas do meio.
Era um postal ilustrado do Líbano.
Sofia debruçou-se sobre a mesa e leu:
" Querida Hilde: Quando leres isto, já teremos falado ao telefone acerca
da trágica morte ocorrida aqui. Por vezes, pergunto-me se a guerra e a
violência não poderiam ser evitadas se os homens pudessem pensar de
outro modo. Talvez o melhor meio contra a guerra e a violência fosse um
pequeno curso de filosofia. Que tal um "Pequeno livro de filosofia da O
NU" - de que cada novo cidadão do mundo receberia um exemplar na língua
materna? Vou expor esta ideia ao secretário-geral.
Ao telefone, contaste que agora já prestas mais atenção às tuas
coisas. Isso é bom, porque és realmente a maior cabeça de vento que eu
conheço. Depois, disseste que desde a nossa última conversa apenas
perdeste uma moeda de dez coroas. Farei o possível para te compensar. Eu
estou muito longe de casa, mas ainda tenho uma mão amiga na velha
pátria. ( Se encontrar a moeda de dez coroas, junto-a ao teu presente
de aniversário.)
Beijos do pai, que tem a sensação de já ter iniciado a longa viagem de
regresso."
p. 198
Sofia acabara de ler o postal quando a aula terminou.
De novo se desencadeou uma forte tempestade de pensamentos na
sua mente.
No pátio da escola, Jorunn esperava por ela como sempre.
A caminho de casa, Sofia abriu a sua pasta da escola e mostrou à
amiga o postal.
- De quando é o carimbo?
- perguntou Jorunn.
- De certeza que é de 15 de Junho...
- Não, espera... aqui está 30 -5 -1990.
- Isso foi ontem... ou seja, no dia a seguir à tragédia no
Líbano.
- Não acredito que um postal leve apenas um dia do Líbano até à
Noruega - reflectiu Jorunn.
- Pelo menos não com esta direcção: Hilde Mõller Knag, a/c Sofia
Amundsen, Escola Secundária Furulia...
- Achas que veio pelo correio? E o professor meteu-o
simplesmente no livro?
- Não faço ideia. E também não sei se me atrevo a perguntar.
Não falaram mais acerca do postal.
- Na noite de S. João, vou fazer uma grande festa no jardim -
contou Sofia.
- Com rapazes?
Sofia encolheu os ombros.
- Não precisamos de convidar os mais parvos.
- Mas vais convidar Jõrgen?
- Se quiseres. Talvez convide o Alberto Knox.
- Deves estar doida.
- Eu sei.
Não falaram mais, e separaram-se no supermercado.
A primeira coisa que fez quando chegou a casa foi procurar
Hermes no jardim. E nesse dia, ele andava de facto entre as macieiras.
- Hermes!
O cão ficou parado por um momento. Sofia sabia exactamente o que
se iria passar nesse segundo. O cão ouvira-a chamar, reconhecera a sua
voz e decidira verificar se ela estava ali, e de onde viera o ruído. Só
então a descobriu e decidiu correr para ela. As suas quatro pernas
desataram a agitar-se. Era de facto muito para um só segundo. Foi ter
com ela a correr, abanou a cauda energicamente e saltou para ela.
- Bonito cão, Hermes!
Não... não, pára de lamber, estás a ouvir? Senta... assim, sim!
p. 199
Sofia abriu a porta de casa. Sherekan surgiu então dos arbustos.
O animal estranho era um pouco sinistro para o gato. Mas Sofia colocou
comida no prato dele, pôs sementes no comedouro dos pássaros, deixou à
tartaruga uma folha de alface e escreveu um bilhete à mãe. Escreveu que
queria levar Hermes para casa e que telefonaria caso não pudesse estar
em casa antes das sete.
Depois, puseram-se a caminho pela cidade. Desta vez,
Sofia tinha trazido dinheiro. Pensou em apanhar o autocarro com
Hermes, mas depois lembrou-se que Alberto podia não estar de acordo.
Ao andar atrás de Hermes, começou a pensar no que era um animal.
Qual era a diferença entre um cão e um homem? Ela ainda sabia o que
Aristóteles dissera a esse respeito. Afirmara que homens e animais eram
seres vivos com muitas semelhanças importantes. Mas havia também uma
diferença essencial entre um homem e um animal, a razão.
Como é que ele tinha a certeza desta diferença?
Demócrito, por seu lado, não vira uma grande diferença entre
homens e animais, visto que ambos são compostos por átomos. Também não
acreditava que homens ou animais tivessem almas imortais. Acreditava que
a alma era formada por pequenos átomos que se separavam em todas as
direcções quando as pessoas morriam. Para ele, a alma do homem estava
indissociavelmente ligada ao cérebro. Mas como é que a alma podia ser
constituída por átomos? É que a alma não podia ser tocada, ao contrário
de todas as outras partes do corpo. Era algo "espiritual". Tinham
atravessado a praça principal e aproximavam-se da parte antiga da
cidade. Quando chegaram ao local onde
Sofia encontrara a moeda de dez coroas, o seu olhar dirigiu-se
instintivamente para o chão. E ali - precisamente ali, onde já se
inclinara uma vez para apanhar uma moeda de dez coroas - estava agora,
com a fotografia virada para cima, um postal ilustrado. A fotografia
mostrava um jardim com palmeiras e laranjeiras.
Sofia baixou-se e apanhou o postal. Simultaneamente, Hermes
começou a rosnar. Parecia não gostar que Sofia tivesse agarrado no
postal.
No postal estava escrito:
" Querida Hilde! A vida consiste numa cadeia interminável de
coincidências. Não é totalmente inverosímil que as dez coroas que
perdeste tenham chegado aqui. Talvez uma senhora idosa, que esperava
pelo
p. 200
autocarro para Kristiansand, a tenha encontrado na praça principal de
Lillesand. Em Kristiansand, apanhou o comboio para visitar os seus
netos, e muitas horas mais tarde pode ter perdido aqui a moeda de dez
coroas. Em seguida, é possível que essa moeda tenha sido apanhada mais
tarde por uma rapariga que precisava de dez coroas para poder ir para
casa de autocarro. Nunca se pode saber, Hilde, mas se foi mesmo assim
temos de nos questionar de facto se não há uma providência divina por
trás de tudo. Beijos do pai que em pensamento já está sentado na doca em
Lillesand.
P S. Eu bem disse que ia ajudar-te a procurar as dez coroas."
Como endereço, estava escrito no postal: "Hilde Mõller Knag, a/c
de uma transeunte acidental..." O postal tinha o carimbo do dia 15 de
Junho.
Sofia subiu os degraus atrás de Hermes. Quando Alberto abriu a
porta, disse:
- Sai do caminho, velhote.
Aqui vem o correio! Ela achava que naquele preciso momento tinha
uma boa razão para estar um pouco irritada. Ele deixou-a entrar. Hermes
deitou-se debaixo dos cabides, como na vez anterior.
- O major deixou um novo cartão de visita, minha filha?
Sofia olhou para Alberto.
Só então descobriu que ele trazia um traje novo. Reparou
primeiro numa comprida peruca encaracolada.
Além disso, trazia um fato comprido largo com muitas rendas. À
volta do pescoço tinha um vistoso lenço de seda e sobre o fato uma capa
vermelha. Trazia meias brancas e, nos pés, elegantes sapatos de verniz,
com laços. No conjunto, fazia lembrar aqueles quadros representando a
corte de Luís XIV que Sofia já tinha visto.
- Que pavão! - comentou, entregando-lhe o postal.
- Hm... e tu encontraste de facto as dez coroas precisamente no
local onde o postal estava hoje?
- Precisamente ali.
- Ele está cada vez mais atrevido. Mas talvez isto seja bom.
- Porquê?
- Assim será mais fácil desmascará-lo. Esta encenação é
realmente empolada e repugnante. Cheira a perfume barato.
- Perfume?
p. 201
- Tem um efeito indiscutivelmente elegante, mas é apenas uma
brincadeira. Vês como ele ousa comparar os seus fracos métodos de
vigilância com a providência divina? Ergueu o postal. Depois rasgou-o
em pedaços tal como o anterior. Para não perturbar ainda mais o seu
estado de espírito, Sofia não mencionou o postal que encontrara no livro
da escola.
- Vamos sentar-nos na sala de estar, cara discípula. Que horas
são?
- Quatro.
- Hoje vamos falar sobre o século XVII. Foram para a sala que
tinha o tecto inclinado e a clarabóia. Sofia reparou que Alberto
substituíra alguns objectos desde a última vez.
Na mesa via-se um antigo cofre com uma colecção de diversas
lentes. Ao lado, estava um livro aberto. Era muito antigo.
- O que é isto? - perguntou Sofia.
- É uma primeira edição do famoso livro de "René Descartes", " O
Discurso do Método". É do ano de 1637 e é um dos meus objectos mais
estimados.
- E o cofre...
- ... contém uma colecção exclusiva de lentes - ou vidros
ópticos. Foram polidos por volta de meados do século XVII pelo filósofo
holandês "Espinosa". Ficaram-me caras, mas também são das minhas
preciosidades mais valiosas.
- Eu compreenderia sem dúvida melhor o valor do livro e do cofre
se soubesse alguma coisa sobre Descartes e Espinosa.
- Claro. Mas vamos tentar primeiro familiarizar-nos um pouco
com a sua época.
Sentemo-nos. E sentaram-se como na vez anterior, Sofia numa
poltrona grande e Alberto no sofá. Entre eles estava a mesa com o livro
e o cofre. Quando se sentaram, Alberto tirou a peruca e pô-la na
escrivaninha.
- Vamos falar agora sobre o século XVII - ou a época que é
designada por "Barroco".
- Barroco? Não é um nome estranho?
- A designação "barroco" provém de uma palavra que significa na
realidade "pérola irregular". Típico da arte do Barroco eram as formas
exuberantes e com muitos contrastes, ao contrário da arte do
Renascimento, mais simples e harmoniosa. O século XVII é caracterizado
pela tensão entre opostos inconciliáveis. Por um lado, continuava a
haver a visão optimista do mundo como no Renascimento - por outro,
muitos se agarraram ao extremo oposto e levavam uma vida de recusa do
mundo e retiro religioso. Na arte e na vida real encontramos uma
p. 202
ostentação pomposa de vida.
Simultaneamente, surgiram os movimentos monásticos que
renunciavam ao mundo.
- Palácios imponentes e mosteiros escondidos, portanto.
- Sim, podes dizê-lo assim. Um chavão do Barroco era o
provérbio latino "carpe diem" - que significa: "goza o dia!". Um outro
provérbio latino muito evocado diz: "memento mori" - e significa:
"Recorda que tens de morrer!". Na pintura, o mesmo quadro podia mostrar
simultaneamente uma grande exuberância enquanto num canto inferior
estava pintada uma caveira. Em muitos aspectos, o Barroco caracteriza
-se pela "frivolidade" e a "afectação", mas também pela consciência da
"efemeridade" de todas as coisas, ou seja, pelo facto de que tudo o que
é belo tem de perecer e decompor-se um dia.
- É verdade, mas é uma ideia triste pensar que nada é estável.
- Nesse caso, pensas exactamente como muitas pessoas no século
XVII. No domínio político, o Barroco também foi a época de grandes
conflitos. Primeiro, a Europa foi devastada por guerras. A mais grave
foi a Guerra dos Trinta Anos, que assolou quase toda a Europa de 1618 a
1648. Na realidade, consistiu em muitas guerras pequenas, que atingiram
sobretudo a
Alemanha. Como conseqüência da Guerra dos Trinta Anos, a França
tornou-se pouco a pouco a potência dominante na Europa.
- Porque é que eles combatiam?
- Era sobretudo uma guerra entre protestantes e católicos. Mas
também se tratava do poder político.
- Mais ou menos como no Líbano.
- Além disso, o século XVII estava marcado por enormes
diferenças de classes.
Com certeza já ouviste falar da nobreza francesa e da corte de
Versalhes. Não sei se também estudaste a miséria do povo. Mas toda a
ostentação do luxo assenta sobre a ostentação do poder. Diz-se que a
situação política do Barroco pode ser comparada com a arte e a
arquitectura contemporâneas. Os edifícios do Barroco estavam
sobrecarregados de volutas, estuques e decorações. E a política estava
cheia de assassínios, intrigas e tramas.
- Não houve um rei sueco que foi assassinado no teatro nessa
altura?
- Estás a pensar em Gustavo III, e tens aí um verdadeiro exemplo
daquilo a que me refiro. O assassínio de Gustavo III deu-se já no ano
de 1792, mas em circunstâncias muito barrocas. Ele foi assassinado num
grande baile de máscaras.
- E eu pensava que tinha sido no teatro.
p. 203
- O baile de máscaras teve lugar na Ópera. O Barroco sueco, no
fundo, só terminou com o assassínio de Gustavo III. Durante o seu
reinado dominou o despotismo esclarecido, mais ou menos como quase cem
anos antes com Luís XIV. Além disso, Gustavo III era um homem muito
frívolo, que adorava todas as cerimónias e cortesias francesas. E repara
que também gostava muito de teatro...
- E isso foi-lhe fatal.
- Mas o teatro no Barroco era mais do que uma mera forma
artística. Era o símbolo mais importante da sua época.
- E o que é que simbolizava?
- A vida, Sofia. Não sei quantas vezes se disse durante o século
XVII: " A vida é teatro". Certamente muitas vezes. E foi durante o
barroco que surgiu o teatro moderno
- com a sua maquinaria e cenografia. No teatro, punha-se em
cena uma ilusão - que era desmascarada como mera ficção.
Deste modo, o teatro tornou-se a imagem da vida humana em
geral. O teatro podia mostrar que "quanto mais alto é o voo, maior é a
queda", oferecendo uma representação impiedosa da fragilidade humana.
- "William Shakespeare" viveu no período do Barroco?
- Ele escreveu os seus grandes dramas por volta do ano de 1600.
Desse modo, tem um pé no Renascimento e o outro no Barroco. Mas já em
Shakespeare se encontram muitas reflexões sobre a vida como
teatro. Gostarias de ouvir alguns exemplos?
- Sim, muito.
- No drama " As You Like It", ele afirma:
" O mundo é um palco e todos os homens e mulheres meros actores. Entram
e saem de cena, e cada um representa muitos papéis no seu tempo..."
E em "Macbeth" diz-se:
" A vida é apenas uma sombra
inconstante; Um pobre comediante que se pavoneia e se agita
Durante a sua hora em cena, e
depois nada mais
Se ouve dele; é uma história,
contada Por um idiota, cheia de som e de fúria,
Que nada significa."
- Isso é mesmo pessimista.
- Mas a brevidade da vida preocupou-o. Provavelmente já ouviste
a mais famosa citação de Shakespeare:
p. 204
- Ser ou não ser - eis a questão.
- Sim, foi Hamlet que o disse. Num dia estamos na terra - no dia
seguinte desaparecemos.
- Obrigada, isso eu já compreendi.
- Quando não comparam a vida com o teatro, os escritores
barrocos comparam-na com um sonho. Já Shakespeare afirmava, por
exemplo: " Somos feitos da mesma matéria que os sonhos, e esta breve
vida abrange um sono..."
- Que poético.
- O poeta espanhol " Calderón", que nasceu por volta de 1600,
escreveu um drama com o título " A vida é sonho". Aí afirma " O que é a
vida? Loucura! O que é a vida? Uma ilusão, uma sombra, uma ficção. E o
maior dos bens tem pouco valor, pois a vida é um sonho."
- Talvez ele tenha razão.
Nós lemos uma peça na escola.
Chamava-se "Jeppe de Bjerget".
- De "Ludvig Holberg", sim. Aqui no Norte uma grande figura de
transição entre o Barroco e o Iluminismo.
- Jeppe adormece num fosso de estrada... e depois acorda na cama
do barão. E pensa ter sonhado ser apenas um pobre camponês. Depois, é
levado de volta para o fosso, a dormir
- e acorda de novo. E acha nessa altura ter sonhado que estivera
deitado na cama do barão.
- Holberg retirou este motivo de Calderón, como Calderón o
fizera a partir dos contos árabes das "Mil e Uma
Noites". Mas a comparação entre vida e sonho é ainda mais
antiga, e encontramo-la inclusivamente na Índia e na
China. Já o antigo sábio chinês "Tchuang Tsu (cerca de 350 a.
C.) sonhou uma vez que era uma borboleta e, após ter acordado perguntou
se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que
estava nesse momento a sonhar que era um homem.
- De qualquer modo, é impossível provar qual está certo.
- Na Noruega tivemos um poeta barroco típico, de nome "Petter
Dass". Viveu entre 1647 e 1707. Por um lado, queria retratar a vida como
é realmente, por outro sublinhava que apenas Deus é eterno e constante.
- Deus é Deus, mesmo se tudo fosse deserto, Deus é Deus, mesmo
se todos estivessem mortos...
- Mas no mesmo hino ele descreve também a cultura norueguesa -
escrevendo sobre todos os tipos de peixe que se encontram nesta zona.
Isso é típico do Barroco. Num mesmo texto é descrito o terreno, imanente
- e o celestial, transcendente. O conjunto pode
p. 205
fazer-nos lembrar a separação platónica entre o mundo sensível concreto
e o mundo imutável das ideias.
- E a filosofia?
- Também a filosofia era caracterizada por duras lutas entre
modos de pensar contraditórios. Como já ouvimos, para alguns filósofos,
a realidade era fundamentalmente de natureza mental ou espiritual.
Designamos essa perspectiva por "idealismo". A concepção oposta
é o "materialismo", uma filosofia que defende que a realidade se reduz a
substâncias materiais concretas. O materialismo também teve no século
XVII muitos defensores. O mais influente talvez tenha sido o filósofo
inglês "Thomas Hobbes". Segundo ele, todos os seres - logo, também
homens e animais - consistem exclusivamente em partículas de matéria.
Mesmo a consciência do homem - ou a alma humana - nasce através do
movimento de partículas minúsculas no cérebro.
- Então ele pensava o mesmo que Demócrito dois mil anos antes.
- Idealismo e materialismo são como fios condutores através de
toda a história da filosofia. Mas muito raramente as duas concepções
surgiram tão claramente numa mesma época como no Barroco. O materialismo
consolidou-se progressivamente através das novas ciências da natureza.
Newton mostrou que as mesmas leis para o movimento são válidas
em todo o universo, e que as leis da gravitação e dos movimentos dos
corpos são responsáveis por todas as transformações na natureza - tanto
na terra como no espaço. Portanto, tudo é governado com a mesma
regularidade constante - ou com a mesma mecânica. Assim, em princípio,
podemos calcular qualquer transformação na natureza com exactidão
matemática. Deste modo, Newton forneceu os últimos elementos para a
chamada "concepção mecanicista do mundo".
- Ele imaginava o mundo como uma grande máquina?
- Exactamente. O termo "mecânico" provém da palavra grega
"mêchanê", que significa máquina. Mas devemos ter em atenção que nem
Hobbes nem
Newton viam uma contradição entre uma concepção mecanicista do
mundo e a crença em Deus. Isto não é válido para todos os materialistas
dos séculos XVIII e XIX. O médico e filósofo francês "La Mettrie"
escreveu em meados do século XVIII um livro com o título "L'homme
machine". Significa: "o homem máquina". Tal como a perna tem músculos
para andar, assim o cérebro, escreveu ele, tem "músculos" para pensar.
Posteriormente, o matemático francês "Laplace" exprimiu com o seguinte
pensamento uma concepção mecanicista extrema: se uma inteligência
conhecesse a posição de todas as
p. 206
partículas de matéria num certo momento, nada seria incerto, e tanto o
futuro como o passado seriam evidentes. Estaria "nas cartas" o que
haveria de suceder. Designamos esta concepção por "determinismo".
- Nesse caso, o homem não pode ter livre arbítrio.
- Não, tudo é produto de processos mecânicos - inclusivamente os
nossos pensamentos e sonhos. No século XIX, materialistas alemães
afirmaram que os processos de pensamento se comportam em relação ao
cérebro tal como a urina em relação aos rins e a bílis em relação ao
fígado.
- Mas a urina e a bílis são materiais. Os pensamentos não.
- Estás a dizer uma coisa importante. Posso contar-te uma
história que diz o mesmo.
Certa vez, um cosmonauta e um neurocirurgião russos discutiam
sobre religião. O cirurgião era cristão, o cosmonauta não. "Eu já estive
várias vezes no espaço", gabava-se o cosmonauta, "mas não vi nem Deus
nem anjos". "E eu já operei muitos cérebros inteligentes", respondeu o
cirurgião, "e também não encontrei em lado algum um único pensamento".
- O que não significa que os pensamentos não existam.
- Não. Apenas esclarece que os pensamentos são algo
completamente diferente de tudo o que pode ser amputado ou dividido em
partes cada vez mais pequenas. Por exemplo, não é fácil remover uma
alucinação com uma operação. Um importante filósofo do século XVII,
chamado "Leibniz", referiu que a grande diferença entre tudo o que é
feito de "matéria" e tudo o que é feito de "espírito" consiste
precisamente no facto de a matéria poder ser dividida em partes cada vez
mais pequenas. Mas a alma não pode ser cortada em pedaços.
- Pois não, que tipo de faca se usaria?
Alberto abanou a cabeça.
Depois, apontou para a mesa entre ambos e afirmou:
- Os dois filósofos mais importantes do século XVII foram
Descartes e Espinosa. Também eles se preocuparam com questões como a
relação entre alma e corpo. Vamos observar mais pormenorizadamente estes
filósofos.
- Conta. Mas, se não estivermos despachados até às sete, tenho
de telefonar à minha mãe.
p. 207
Descartes
"... ele queria remover todos os velhos materiais do terreno de
construção..."
Alberto levantara-se e despira a capa vermelha. Pô-la numa
cadeira e voltou a sentar-se confortavelmente no sofá.
- "René Descartes" nasceu em 1596 e viveu em vários países da
Europa ao longo da vida. Já na sua juventude, sentia o forte desejo de
tomar conhecimento da natureza do homem e do universo. Mas depois de ter
estudado filosofia tornou-se consciente sobretudo da sua própria
ignorância.
- Mais ou menos como Sócrates?
- Sim, mais ou menos assim. Tal como Sócrates, estava convencido
de que só a razão nos pode dar conhecimento seguro. Nunca podemos
confiar no que está escrito em livros antigos. Nem sequer podemos
confiar no que os nossos sentidos nos transmitem.
- Platão era da mesma opinião. Ele achava que só a razão nos
pode dar um saber sólido.
- Exacto. De Sócrates e Platão, através de S. Agostinho, há uma
linha directa até Descartes. Todos eles eram racionalistas convictos.
Para eles, a razão era a única fonte segura de conhecimento. Após muitos
estudos,
Descartes reconheceu que não era forçoso confiar no saber
transmitido na Idade Média. Podes fazer uma comparação com Sócrates, que
não confiava nas concepções mais difundidas com que se defrontava na
ágora em Atenas. E o que é que se faz neste caso, Sofia?
Sabes responder-me?
- Começa-se a filosofar por si mesmo.
- Exacto. Descartes decidiu então viajar pela Europa
- tal como Sócrates, que passou a vida em diálogo com homens de
Atenas. Ele próprio relata que a partir dessa altura só queria procurar
o saber que podia encontrar em si mesmo ou "no grande livro do mundo".
Por isso, entrou para o exército e pôde permanecer em diversos locais da
Europa Central. Mais tarde, passou alguns anos em Paris. Em Maio
p. 208
de 1629, viajou para os Países Baixos, onde viveu durante quase vinte
anos, enquanto trabalhava nos seus escritos filosóficos. Em 1649, a
rainha Cristina convidou-o a viver na Suécia. Mas esta estadia "no país
dos ursos, do gelo e dos rochedos", como ele lhe chamou, provocou -lhe
uma pneumonia, e morreu no Inverno de 1650.
- Então só tinha 54 anos!
- Mas ainda havia de ser muito importante para a filosofia,
mesmo após a sua morte. Sem exagero, podemos dizer que Descartes foi o
fundador da filosofia da época moderna.
Depois da imponente redescoberta do homem e da natureza no
Renascimento, surgiu de novo a necessidade de reunir todas as ideias
contemporâneas num único "sistema filosófico" coerente. O primeiro
grande construtor de sistema foi " Descartes", e seguiram-se-lhe
"Espinosa" e "Leibniz", "Locke" e "Berkeley", "Hume" e "Kant".
- O que é que entendes por "sistema filosófico"?
- Entendo uma filosofia construída desde a base e que procura
encontrar uma resposta para todas as questões filosóficas importantes. A
Antiguidade teve grandes construtores de sistemas como Platão e
Aristóteles. A Idade Média teve S. Tomás de Aquino, que queria fazer uma
ponte entre a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Veio depois
o Renascimento
- com uma mistura de velhas e novas ideias sobre a natureza e a
ciência, Deus e os homens. Só no século XVII a filosofia tentou de novo
pôr em sistema as novas ideias. O primeiro a fazer esta tentativa foi
Descartes. Ele deu o sinal de partida para aquilo que se tornaria o
projecto filosófico mais importante para as gerações seguintes. Antes de
mais, preocupava-o o que nós podemos saber, ou seja, a questão da
"solidez do nosso conhecimento". A segunda grande questão que o
preocupava era a "relação entre corpo e alma". Estas duas problemáticas
determinariam a discussão filosófica dos cento e cinqüenta anos
seguintes.
- Então ele estava adiantado em relação à época.
- Mas as questões já andavam no ar na época. Na questão de como
podemos alcançar saber seguro, alguns exprimiram o seu total
"cepticismo" filosófico. Achavam que os homens tinham de se conformar
com o facto de nada saberem. Mas Descartes não se conformou com isso. Se
o tivesse feito, não teria sido um verdadeiro filósofo. De novo, podemos
fazer um paralelismo com Sócrates, que não se contentou com o cepticismo
dos sofistas. Justamente na época de Descartes, a nova ciência da
natureza desenvolvera um método que havia de fornecer uma descrição
totalmente segura e exacta dos processos naturais. Descartes interrogou
-se se não havia um método igualmente seguro e exacto para a reflexão
filosófica.
p. 209
- Entendo.
- Mas esse era apenas um dos problemas. A nova física colocara
também a questão sobre a natureza da matéria, ou seja, sobre o que
determina os processos físicos na natureza.
Cada vez mais pessoas defendiam uma compreensão materialista da
natureza. Mas quanto mais o mundo físico era concebido de forma
mecanicista, mais urgente se tornava a questão da relação entre corpo e
alma. Antes do século XVII, a alma fora descrita geralmente como uma
espécie de "espírito vital" que percorria todos os seres vivos. Aliás, o
significado original de "alma" e "espírito" é também "sopro vital" ou
"respiração". É esse o caso em quase todas as línguas europeias. Para
Aristóteles, a alma é algo que está presente em todo o organismo
como "princípio vital" desse organismo - e que é inconcebível separada
do corpo. Por isso também podia falar de uma "alma vegetativa" e de uma
"alma sensitiva". Foi só no século XVII que os filósofos estabeleceram
uma separação radical entre alma e corpo, porque todos os objectos
físicos - também um corpo animal ou humano - eram explicados como
processos mecânicos. Mas a alma humana não podia ser uma parte desta
"máquina fisiológica"? O que era então? Tinha que se esclarecer como é
que algo "espiritual" podia dar origem a um processo mecânico.
- Essa é realmente uma ideia bastante estranha.
- O que queres dizer com isso?
- Eu decido levantar o meu braço - e o braço eleva-se.
Ou eu decido correr para o autocarro e imediatamente as minhas
pernas começam a mover-se. Por vezes, penso numa coisa triste: as
lágrimas vêm-me logo aos olhos. Assim, tem de haver alguma ligação
misteriosa entre o corpo e a consciência.
- Foi precisamente este problema que levou Descartes a
reflectir. Tal como Platão, ele estava convencido de que há uma divisão
rígida entre espírito e matéria. Mas Platão não conseguiu dar resposta
ao problema de como o espírito influencia o corpo, ou a alma o corpo.
- Eu também não, por isso estou desejosa de saber o que
Descartes descobriu.
Ouçamos as suas próprias reflexões.
Alberto indicou o livro que estava entre eles na mesa e
prosseguiu:
- Neste pequeno livro, " Discurso do Método", Descartes levanta
a questão de qual o método filosófico que um filósofo deve utilizar para
resolver um problema filosófico. As ciências da natureza já tinham
desenvolvido o seu novo método...
- Já falaste nisso.
p. 210
- Descartes explica em seguida que não podemos dar nada como
verdadeiro enquanto não tivermos reconhecido claramente que é
verdadeiro. Para conseguirmos isso, temos que decompor um problema
complexo em tantas partes simples quanto possível. Podemos começar então
pela ideia mais simples. Talvez se possa dizer que cada ideia é "pesada
e medida"
- mais ou menos do mesmo modo que Galileu queria medir tudo e
tornar mensurável o não mensurável. Descartes achava que o filósofo
podia prosseguir do simples para o complexo. Deste modo poderia ser
construído um novo conhecimento. Até ao final, é necessário verificar
que não se omitiu nada, por meio de um controlo e de uma verificação
constantes. Só assim se pode atingir conclusões filosóficas.
- Isso parece um problema matemático.
- Sim, Descartes queria aplicar o "método matemático" à reflexão
filosófica. Queria provar verdades filosóficas aproximadamente do mesmo
modo que um teorema matemático.
Queria usar exactamente o mesmo instrumento que usamos ao
trabalhar com números, a "razão", porque só a razão nos fornece
conhecimento seguro.
Não estabelece de modo algum que se possa confiar nos sentidos.
Já referimos a sua afinidade com Platão. Também este dissera que a
matemática e as relações numéricas fornecem conhecimento mais seguro do
que os testemunhos dos nossos sentidos.
- Mas é possível responder desse modo a questões filosóficas?
- Voltemos ao raciocínio de Descartes. O seu objectivo é
portanto obter conhecimentos seguros acerca da natureza da realidade, e
ele torna claro em primeiro lugar que no início devemos duvidar de tudo.
Ele não queria edificar o seu sistema filosófico sobre areia.
- Porque se o fundamento cede, toda a casa se desmorona.
- Obrigado pela ajuda,
Sofia. Descartes não achava sensato duvidar de tudo, mas pensava
que, em princípio, podemos duvidar de tudo. Em primeiro lugar, não é
certo que façamos progressos na nossa busca filosófica pela leitura de
Platão ou Aristóteles. Talvez alarguemos com isso o nosso saber
histórico, mas não descobrimos mais acerca do mundo. Descartes achava
importante lançar ao mar o património intelectual antigo antes de
iniciar a sua própria investigação filosófica.
- Ele queria remover todos os velhos materiais do terreno de
construção, antes de iniciar a construção da nova casa?
- Sim, para ter a certeza de que o novo edifício de ideias era
estável, ele queria usar apenas material de construção novo e sólido.
Mas as dúvidas de Descartes vão ainda mais longe. Segundo ele,
p. 211
nunca podemos confiar no que os nossos sentidos nos transmitem, porque
podemos ser enganados por eles.
- Como é que isso é possível?
- Mesmo quando sonhamos, acreditamos estar a viver uma situação
real. E haverá alguma coisa que distinga as nossas sensações, quando
estamos despertos, das sensações "sonhadas"? " Quando reflicto
cuidadosamente nesta questão, não encontro nenhum indício pelo qual
possa distinguir com segurança a vigília do sono", escreve Descartes. E
ele prossegue: " São ambos tão semelhantes que eu fico totalmente
perplexo e não sei se não estarei a sonhar neste momento".
- Jeppe também achava que tinha sonhado ter estado deitado na
cama do barão.
- E enquanto estava deitado na cama do barão achava que a sua
vida como camponês pobre era um sonho. Assim, Descartes duvida de tudo.
Muitos filósofos antes dele já tinham terminado as suas reflexões
filosóficas neste ponto.
- Nesse caso, não foram muito longe.
- Mas Descartes tentou continuar a trabalhar a partir do zero.
Ele chegou à conclusão de que duvidava de tudo e que isso é a única
coisa de que se pode ter uma certeza absoluta. E em seguida, há algo que
se lhe torna claro: há um facto, do qual ele pode ter toda a certeza:
duvida. Mas se duvida, tem que concluir que pensa, e se pensa tem de
concluir que é um ser pensante. Ou, como ele próprio diz: "cogito, ergo
sum".
- E o que significa?
- Penso, logo existo.
- Não me surpreende que ele tenha chegado a essa conclusão.
- Está bem. Mas não te esqueças com que certeza intuitiva ele se
concebe subitamente como um eu pensante. Talvez ainda te lembres que
para Platão é mais real o que compreendemos com a razão do que o que
obtemos dos sentidos. Com Descartes, passava-se exactamente o mesmo.
Ele não compreende apenas que é um eu pensante, entende simultaneamente
que este eu pensante é mais real do que o mundo físico, que apreendemos
com os sentidos. E a partir daqui, ele prossegue, Sofia. Ainda não
concluiu de modo algum a investigação filosófica.
- Prossegue tu também com calma.
- Descartes interrogou-se então sobre se havia algo mais que
ele pudesse apreender com a mesma evidência intuitiva, além do facto de
ser um ser pensante. Ele descobre que tem também uma ideia clara e
nítida de um ser perfeito. Teve sempre essa ideia e, para Descartes, é
p. 212
evidente que essa ideia não pode provir dele mesmo. A ideia de um ser
perfeito não pode provir de um ser imperfeito. Por isso, a ideia de um
ser perfeito tem de provir desse mesmo ser perfeito - por outras
palavras, de Deus.
Que Deus existe é deste modo tão imediatamente evidente para
Descartes como o facto de alguém que pensa ter de ser um eu pensante.
- Agora, acho que ele precipita um pouco as conclusões. E era
tão atento no princípio!
- Sim, houve quem afirmasse ser este o ponto mais fraco de
Descartes. Mas tu estás a falar de deduções. Na verdade, não se trata
aqui de uma demonstração. Descartes queria apenas dizer que todos nós
temos uma ideia de um ser perfeito, e que esta ideia implica que este
ser perfeito existe. Porque um ser perfeito não seria perfeito se não
existisse. Além disso, não teríamos a ideia de um ser perfeito se esse
ser não existisse. Nós somos imperfeitos e, por isso, a ideia do
perfeito não pode provir de nós.
A ideia de um Deus é, segundo Descartes, uma ideia inata que nos
foi implantada ao nascermos - "tal como a marca que o artista imprimiu
na sua obra", como ele escreve.
- Mas mesmo que eu tenha uma ideia de um crocofante, isso não
significa que existam crocofantes.
- Descartes teria dito que o conceito de "crocofante" não
implica que ele exista. Mas o conceito de "ser perfeito" implica que
este ser exista. Para Descartes isto é tão certo como o facto de a ideia
de círculo implicar que todos os pontos do círculo estão à mesma
distância do centro do círculo. Logo, não podes falar de um círculo se
ele não preenche estes requisitos. E também não podes falar de um ser
perfeito se lhe falta a mais importante de todas as qualidades, a
existência.
- É um modo de pensar muito especial.
- Isto é um modo de pensar claramente "racionalista". Tal como
Sócrates e Platão,
Descartes via uma conexão entre pensamento e existência.
Quanto mais evidente uma coisa é para o pensamento, mais certa é
a sua existência.
- Até aqui, ele reconheceu que é um ser pensante, e que existe
um ser perfeito.
- E, a partir destas certezas, prossegue. Todas as ideias que
temos da realidade exterior - por exemplo, Sol e Lua -, podiam também
ser apenas visões oníricas. Mas a realidade exterior também tem algumas
características que podemos conhecer com a razão. Por exemplo, as
relações matemáticas, ou seja, aquilo que pode ser medido,
p. 213
o comprimento, a altura e a profundidade. Estas "propriedades
quantitativas" são tão claras para a razão como o facto de eu ser um ser
pensante. "Propriedades qualitativas" como cor, cheiro e sabor estão por
seu lado relacionadas com os nossos sentidos e não descrevem nenhuma
realidade exterior.
- Então afinal a natureza não é um sonho?
- Não. E, neste ponto,
Descartes recorre novamente à nossa ideia de um ser perfeito. Se
a nossa razão conhece algo muito clara e distintamente - que é o caso
das relações matemáticas na realidade exterior - é porque é assim mesmo.
Um Deus perfeito não faria pouco de nós.
Descartes recorre a Deus como garantia de que aquilo que
conhecemos com a nossa razão corresponde a uma coisa real.
- Está bem. Ele descobriu que é um ser pensante, que Deus existe
e ainda que existe uma realidade exterior.
- Mas entre a realidade exterior e a realidade das ideias há uma
diferença essencial. Descartes pressupõe que existem duas formas
diferentes de realidade - ou duas "substâncias". Uma substância é o
"pensamento" ou a alma, a outra a "extensão" ou a matéria.
A alma é apenas consciente, não ocupa espaço e, por isso, também
não pode ser dividida em partes mais pequenas. A matéria, por seu lado,
é extensa, ocupa espaço e pode ser dividida em partes cada vez mais
pequenas - mas não é consciente. Descartes afirma que ambas as
substâncias provêm de Deus, porque apenas Deus existe independentemente
de todas as outras coisas. Mas mesmo provindo pensamento e extensão de
Deus, as duas substâncias são completamente independentes uma da outra.
O pensamento é livre na sua relação com a matéria - e vice -versa: os
processos materiais operam de forma totalmente independente do
pensamento.
- E assim, a Criação ficou dividida em dois.
- Exacto. Dizemos que
Descartes é "dualista", e isso significa que ele traça uma clara
linha de separação entre a realidade espiritual e a realidade em
extensão. Por exemplo, apenas o homem tem alma. Os animais pertencem
totalmente à realidade em extensão. A sua vida e os seus movimentos são
puramente mecânicos. Descartes via os animais como uma espécie de
autómatos complexos. Em relação à realidade em extensão, ele tem dela
uma concepção mecanicista
- tal como os materialistas.
- Mas eu duvido muito que Hermes seja uma máquina ou um
autómato. Certamente, Descartes nunca gostou de um animal. E em relação
a nós? Também somos autómatos?
p. 214
- Sim e não. Descartes chegou à conclusão de que o homem é um
ser duplo que pensa e ocupa espaço. O homem tem uma alma e um corpo
extenso.
S. Agostinho e S. Tomás de
Aquino já tinham afirmado algo semelhante. Acreditavam que o
homem tem corpo tal como os animais, mas também espírito como os anjos.
Para Descartes, o corpo é um mecanismo muito sofisticado. Mas o homem
tem também alma que pode operar independentemente do corpo. Os processos
corporais não têm essa liberdade, seguem as suas próprias leis. Mas
aquilo que pensamos com a razão não acontece no corpo.
Acontece na alma, que é independente da realidade extensa. Eu
posso ainda acrescentar que Descartes não queria excluir a possibilidade
de também os animais pensarem. Mas, se possuírem essa faculdade, também
tem de existir neles a mesma divisão entre pensamento e extensão.
- Já falámos sobre isso.
Quando eu decido correr para o autocarro, todo o "autómato" se
põe em movimento. E se perco o autocarro, vêm-me as lágrimas aos olhos.
- Nem Descartes podia contestar que existe sempre esse efeito
recíproco entre alma e corpo. Enquanto a alma está no corpo, segundo
ele, está ligada ao corpo através de um órgão do cérebro muito especial,
uma glândula, na qual se dá uma reacção constante entre o espírito e a
matéria. Deste modo, segundo
Descartes, a alma pode ser permanentemente confundida com os
sentimentos e sensações que têm a ver com as necessidades do corpo. O
objectivo é transmitir à alma a ordem:
Seja qual for a gravidade das minhas dores de barriga, a soma
dos ângulos num triângulo é sempre cento e oitenta graus. Deste modo, o
pensamento pode elevar-se acima das necessidades do corpo e proceder
"racionalmente". Deste ponto de vista, a alma é totalmente independente
do corpo. As nossas pernas podem ficar velhas e fracas, as nossas costas
tortas, e os nossos dentes podem cair - mas dois mais dois serão sempre
quatro, enquanto ainda houver razão em nós. Porque a razão não fica
velha e caduca. Os nossos corpos é que envelhecem. Para
Descartes, a própria razão é a alma. Paixões e humores
inferiores como a concupiscência e o ódio estão estreitamente ligados às
funções corporais
- e consequentemente à realidade extensa.
- Eu não me conformo com o facto de Descartes ter comparado o
corpo com uma máquina ou um autómato.
- O motivo da comparação é o facto de as pessoas, no tempo de
Descartes, estarem completamente fascinadas com as máquinas e os
mecanismos dos relógios, que aparentemente funcionavam por si mesmos. A
palavra "autómato" designa precisamente algo que se
p. 215
move por si mesmo. Mas eles moverem-se por si era apenas uma ilusão. Por
exemplo, os homens construíram nessa época um relógio astronómico e
deram-lhe corda. Descartes acentua que estes mecanismos artificiais são
compostos muito simplesmente por poucas partes, em comparação com as
quantidades de ossos, músculos, nervos, artérias e veias que compõem os
corpos de homens e animais. Mas porque é que Deus não havia de produzir
um corpo animal ou humano com base nas leis mecânicas?
- Hoje fala-se muito de "inteligência artificial".
- Estás a pensar nos nossos autómatos actuais. Construímos
máquinas que por vezes nos podem convencer realmente da sua
inteligência. Essas máquinas teriam certamente posto Descartes em
pânico. Talvez ele se interrogasse se a razão humana é realmente tão
livre e autónoma como ele tinha pensado. Há filósofos que pensam que a
vida espiritual humana é tão pouco livre como os processos corporais. A
alma de um homem é infinitamente mais complexa do que qualquer programa
de computador, mas há também quem pense que em princípio somos tão pouco
livres como esses programas. Mas olha para aqui,
Sofia. Quero mostrar-te uma coisa.
Alberto indicou então uma grande secretária no outro extremo da
sala. Havia ali um pequeno ecrã. Ele levantou-se e foi até lá, seguido
por Sofia.
Alberto ligou o computador e em breve apareceu escrito no canto
superior c:. Ele escreveu "Laila" e disse:
- Este é um programa avançado de conversação. Em seguida
apareceu um texto no ecrã:
- Olá, eu chamo-me Laila. Estás comodamente sentada?
Sofia escreveu três letras: " Sim", apesar de ainda não se ter
sentado. Alberto empurrou uma cadeira para ela. " Como te chamas?",
estava agora escrito no ecrã. " Sofia Amundsen", escreveu
Sofia, e o computador respondeu: "Klõverveien 3. É um prazer
conhecer-te, Sofia. Estás entusiasmada com o teu aniversário?"
Sofia sobressaltou-se. Alberto colocou-lhe a mão no ombro e
disse:
- Eu apenas dei a Laila o teu nome, a tua morada e a tua data de
nascimento. É como quando alguém se apresenta a um novo amigo. Gostamos
de saber antecipadamente alguns dados sobre o outro. "Bem" - escreveu
então
Sofia.
- Sim, estás mesmo bem,
Sofia? Tens de tentar conversar com frases completas. "
Obrigada, estou muito bem. Posso fazer-te uma pergunta?"
p. 216
"Por favor, faz uma pergunta". " Que idade tens?" - perguntou Sofia.
"Fui construída em Atlanta a 8 de Agosto de 1988, e traduzida para
norueguês a 28 de Março de 1990 na Escola
Superior Técnica Norueguesa." "Bolas!" "Eu disse que tinhas de
falar com frases completas". "Eu disse: bolas". " Não percebo calão.
Conheço mais de cem mil palavras, mas a palavra "bolas" só conheço em
relação a bola. De que é que estás a falar exactamente?" " Não sei". "
Não saber alguma coisa é em geral um estádio na via para um novo
conhecimento". " Sócrates teria certamente dito o mesmo. Ou Descartes".
" Sócrates era um filósofo grego que viveu entre 470 e 399 antes de
Cristo. Se queres saber mais, toca em F7. Descartes era um filósofo
francês que viveu entre 1596 e 1650. Se quiseres saber mais toca em F8".
" Obrigada, é suficiente. Posso perguntar-te outra coisa?" "Pergunta
outra coisa".
Alberto sorria. Sofia escreveu: " Quem é Hilde Mõller Knag?"
"Hilde Mõller Knag mora em Lillesand e tem a mesma idade que Sofia
Amundsen". " Como é que sabes isso?" "Eu não sei como sei, mas encontrei
-o no meu disco rígido".
Sofia sentiu uma mão sobre o ombro.
- Eu dei-lhe o pouco que sabemos sobre Hilde. " Sabes mais
alguma coisa sobre Hilde?" - escreveu
Sofia. " O pai de Hilde é observador da O NU no Líbano. É major
e envia postais à filha. " Quero que o encontres". " Não consigo. Não o
encontro em nenhum arquivo, e não estou ligada a mais nenhum terminal".
"Eu disse para o encontrares!!!!!!!" "Estás irritada, Sofia? Tantos
pontos de exclamação são um indício de sentimentos violentos". "Eu quero
falar com o pai de Hilde!" "Tens problemas em controlar a tua vontade.
Se quiseres falar sobre a tua infância, toca em F9".
p. 217
Alberto colocou de novo a mão no ombro de Sofia.
- Ela tem razão. Isto não é nenhuma bola de cristal, minha
filha. Laila é apenas um programa de computador. " Cala o bico" -
escreveu
Sofia. " Como queiras, Sofia. As nossas relações duraram apenas
treze minutos e cinqüenta e dois segundos. Vou recordar tudo o que nós
dissemos. Agora, vou interromper o programa."
De novo, surgiu o sinal c: no ecrã.
- Agora, podemos voltar ao trabalho - disse Alberto. Mas Sofia
já tinha escrito mais algumas letras. Escrevera "Knag". No momento
seguinte, apareceu a seguinte informação no ecrã:
- Aqui estou!
Alberto estremeceu. " Quem és tu?" - escreveu
Sofia. "Major Albert Knag, às ordens. Venho directamente do
Líbano. O que ordenam os senhores"?
- Nunca me aconteceu nada tão terrível - gemeu Alberto. - Agora,
o malvado já se introduziu no disco rígido.
Afastou Sofia da cadeira e sentou-se em frente ao teclado. "
Como diabo entraste no meu P C?", escreveu ele. "Isto não é nada, caro
colega. Eu estou exactamente onde desejo estar." " Seu vírus de
computador repugnante!" "Então, então! De momento, apresento-me como
vírus de aniversário. Posso enviar uma saudação muito especial?" "
Obrigado, já temos que cheguem". "Mas eu vou ser rápido: tudo acontece
apenas em tua honra, querida Hilde. Eu dou-te os parabéns pelo teu
aniversário. Tens de perdoar as circunstâncias, mas gostaria que as
minhas felicitações te seguissem por toda a parte onde estejas. Beijos
do pai que gostaria tanto de te ter nos braços!"
Antes de Alberto poder escrever mais, apareceu de novo o c: no
ecrã.
Alberto escreveu "dir knag"."" e obteve a seguinte informação:
knag.lib 147.643 15 -06 -90 1247 knag.lil 326.439 23 -06 -90 2234
Escreveu "erase knag"."" e desligou o computador.
- Agora, apaguei-o - afirmou, - mas é impossível dizer onde
surgirá de novo.
p. 218
Olhou fixamente para o ecrã, depois acrescentou: -
O mais grave é o nome. Albert Knag... Sofia só então se
apercebeu da semelhança dos nomes. Albert Knag e Alberto Knox. Mas
Alberto estava tão irritado, que ela não se atreveu a abrir a boca.
Sentaram-se novamente à mesa.
p. 219
ESPINOSA
"... Deus não é um titereiro..."
Já estavam sentados em silêncio há algum tempo. Por fim, Sofia disse,
apenas para distrair Alberto:
- Descartes deve ter sido um homem estranho. Ele era famoso?
Alberto respirou fundo por duas vezes com dificuldade antes de
responder:
- Ele obteve progressivamente uma grande influência.
A mais importante foi talvez a exercida noutro grande filósofo.
Estou a pensar no filósofo holandês "Baruch Espinosa", que viveu entre
1632 e 1677.
- Também vais falar sobre ele?
- Sim, tinha essa intenção. E não nos vamos deixar atrasar por
provocações militares.
- Sou toda ouvidos.
- Espinosa pertencia à comunidade judaica de Amesterdão, mas foi
excomungado devido às suas supostas heresias. Poucos filósofos da época
moderna foram tão escarnecidos e perseguidos por causa dos seus
pensamentos como este homem. Tentaram inclusivamente assassiná-lo, só
por ter criticado a religião oficial. Ele achava que apenas dogmas
rígidos e rituais exteriores mantinham o cristianismo e o judaísmo
vivos. Foi o primeiro a fazer uma interpretação "histórico -crítica" da
Bíblia.
- Tens que explicar isso melhor.
- Ele contestou que a Bíblia fosse inspirada por Deus até à mais
pequena palavra. Quando lemos a Bíblia, segundo ele, temos de ter em
conta a época em que teve origem. Esta leitura "crítica" permite-nos
reconhecer uma série de contradições entre os diversos Livros e
Evangelhos da Bíblia. Sob a superfície dos textos do Novo Testamento
encontramos Jesus, o qual podemos designar por porta -voz de Deus. A
mensagem de Jesus significava precisamente uma libertação
p. 220
do judaísmo rígido. Jesus anunciou uma "religião racional", para a qual
o amor era o valor mais elevado. Espinosa refere-se aqui tanto ao amor a
Deus como ao amor ao próximo. Mas também o cristianismo se cristalizara
rapidamente em dogmas e rituais rígidos.
- Eu compreendo que essas ideias fossem muito indigestas para as
igrejas e para as sinagogas.
- Quando a situação se tornou mais grave, Espinosa foi
inclusivamente abandonado pela família. Queriam deserdá-lo por heresia.
O paradoxo disto era que poucas pessoas tinham defendido tão
energicamente a liberdade de opinião e a tolerância religiosa como
Espinosa. As numerosas oposições com que teve de lutar levaram-no por
fim a escolher uma vida tranquila, inteiramente dedicada à filosofia.
Ganhava o seu sustento a polir vidros ópticos. Algumas destas lentes,
como disse, foram adquiridas por mim.
- Impressionante.
- O facto de ele viver de polir lentes é quase simbólico. Os
filósofos devem ajudar os homens a ver a realidade segundo uma
perspectiva nova. E é fundamental para a filosofia de Espinosa o desejo
de ver as coisas sob a "perspectiva da eternidade".
- A perspectiva da eternidade?
- Sim, Sofia. Achas que poderias conseguir ver a tua própria
vida num contexto cósmico? Nesse caso, terias de certo modo de te ver a
ti mesma e à tua vida com os olhos semicerrados...
- Hm... não é fácil.
- Pensa que és apenas uma partícula minúscula de toda a vida da
natureza. Fazes parte de um todo muito grande.
- Acho que percebo o que queres dizer.
- Também consegues entender isso? Consegues abarcar toda a
natureza de uma só vez
- sim, todo o universo - num único relance?
- Depende. Talvez eu precise de um par de vidros ópticos.
- E eu não estou apenas a pensar no universo infinito. Penso
também num espaço de tempo infinito. Há trinta mil anos vivia um menino
na Renânia. Era uma partícula minúscula de toda a natureza, um pequeno
encrespar num mar infinitamente grande. Assim, também tu vives uma parte
minúscula da vida da natureza. Entre ti e esse jovem não há nenhuma
diferença.
- Em todo o caso, eu vivo agora.
- Pois, era sobre isso que eu queria que reflectisses. Mas quem
és tu daqui a trinta mil anos?
- Isso é que era a heresia?
p. 221
- Bom, Espinosa não disse apenas que tudo o que existe é
natureza. Ele colocou também um sinal de igual entre Deus e a natureza.
Ele via Deus em tudo o que existe e tudo o que existe em Deus.
- Então era panteísta.
- Sim. Para Espinosa, Deus não é alguém que criou outrora o
mundo e está desde então junto à sua Criação.
Não, Deus "é" o mundo. Ele refere o discurso de Paulo no
areópago. "Porque nele vivemos, nele nos movemos e existimos" dissera
Paulo. Mas vamos prosseguir no pensamento de Espinosa. A sua obra mais
importante chama-se " A Ética
Demonstrada Segundo o Método Geométrico".
- Ética... e método geométrico?
- Isso soa talvez um pouco estranho aos nossos ouvidos. Por
ética, os filósofos entendem a teoria de como devemos conduzir-nos para
termos uma vida feliz. Neste sentido, falamos por exemplo acerca da
ética de Sócrates ou de Aristóteles. Apenas na nossa época a ética foi
de certo modo reduzida a algumas regras segundo as quais podemos viver
sem pisarmos os pés dos nossos próximos.
- Porque pensarmos na nossa própria felicidade é tido como
egoísmo?
- É mais ou menos assim.
Quando Espinosa utiliza a palavra ética, ela pode ser traduzida
igualmente por arte de viver ou conduta moral.
- Mas então... " Arte de viver demonstrada segundo o método
geométrico"?
- O método geométrico diz respeito à linguagem ou à forma de
exposição. Ainda te lembras que Descartes queria aplicar o método
matemático à reflexão filosófica. Por isso, ele entendia uma reflexão
filosófica que é formada a partir de deduções exactas. Espinosa situa
-se na mesma tradição racionalista. Na sua ética, queria demonstrar como
a vida humana é dirigida pelas leis da natureza. Para isso, temos de nos
libertar dos nossos sentimentos e sensações, porque só assim podemos
encontrar a tranquilidade e sermos felizes, segundo ele.
- Mas nós não somos apenas governados pelas leis da natureza,
pois não?
- Bom, Espinosa não é fácil de compreender, Sofia.
Ainda tens presente que Descartes achava que a realidade era
constituída por duas substâncias claramente separadas uma da outra, o
pensamento e a extensão.
- Como é que eu poderia ter esquecido isso?
- A palavra "substância" pode ser traduzida aproximadamente do
seguinte modo: aquilo em que uma coisa consiste, o que é no
p. 222
fundo, ou a que pode ser reduzida. Tudo é ou pensamento ou extensão,
segundo ele.
- Não era preciso repetir.
- Mas Espinosa não aceitou esta separação. Ele acreditava que
havia uma única substância. Tudo o que existe pode ter origem na mesma
coisa, segundo ele. E designou-a simplesmente por "substância".
Noutras passagens chama-lhe " Deus" ou "natureza". Portanto,
Espinosa não tem uma concepção dualista da realidade como Descartes.
Dizemos que é "monista".
Significa que, segundo ele, toda a realidade se reduz a uma
única substância.
- Dificilmente poderiam estar menos de acordo um com o outro.
- Mas a diferença entre
Descartes e Espinosa não é tão profunda como se diz muitas
vezes. Descartes também aponta para o facto de só Deus existir por si
mesmo.
Só quando Espinosa põe no mesmo plano Deus e a natureza
- ou Deus e a Criação - é que se afasta consideravelmente de
Descartes e também da concepção hebraica e cristã.
- Porque aí, a natureza "é" Deus, e basta.
- Mas quando Espinosa usa o termo "natureza", não está apenas a
pensar na natureza extensa. Como substância, Deus ou a natureza, entende
tudo o que existe, incluindo tudo o que é espiritual.
- Então, tanto pensamento como extensão.
- Tal qual! Segundo Espinosa, nós homens conhecemos duas das
qualidades ou manifestações de Deus. Espinosa designa estas qualidades
por "atributos" de Deus, e estes dois atributos são justamente o
pensamento e a extensão de Descartes. Deus, ou a natureza, surge
portanto ou como pensamento ou como uma coisa no espaço. É possível que
Deus possua ainda outras qualidades além do pensamento e da extensão,
mas os homens conhecem apenas estes dois atributos.
- Sim, mas ele exprime-se de um modo bastante complicado.
- Sim, quase precisamos de martelo e cinzel para penetrarmos na
linguagem de Espinosa. Podemos consolar-nos ao encontrar no fim uma
ideia que é tão cristalina como um diamante.
- Estou à espera.
- Tudo o que há na natureza, é ou pensamento ou extensão. Os
fenómenos particulares, com que deparamos na vida quotidiana - por
exemplo, uma flor ou um poema de "Henrik Wergeland" (") -, são diversos
"modi" dos atributos pensamento e extensão. Com "modus"
p. 223
plural "modi" - entendemos um determinado modo no qual a substância,
Deus ou a natureza, se manifestam. Uma flor é ................... (")
Henrik WERGEL A N D (1808 -1845) - Poeta no rueguês, defensor de uma cul
tura especificamente norue guesa foi um dos fundadores da literatura do
seu país. um modo do atributo extensão, e um poema sobre a mesma flor um
modo do atributo pensamento. Mas no fundo, ambos são expressão da mesma
coisa: a substãncia, Deus ou a natureza.
- Meu Deus, que complicação!
- Mas em Espinosa só a linguagem é realmente complicada. Sob as
suas formulações rígidas esconde-se um conhecimento admirável, que é
tão simples que a linguagem quotidiana não o consegue traduzir.
- Mas eu acho que prefiro a linguagem quotidiana.
- Está bem. Então vou começar justamente por ti.
Quando tens dores de barriga, quem é que tem dores de barriga?
- Tu próprio o dizes. Eu.
- Certo. E quando mais tarde pensas que tiveste dores de
barriga, quem é que pensa?
- Eu, também.
- Porque tu és uma pessoa que pode ter hoje dores de barriga e
amanhã estar dominada por outro estado de espírito. E Espinosa pensava
do mesmo modo que todas as coisas físicas que nos rodeiam ou sucedem à
nossa volta manifestam
Deus ou a natureza. Isso é também válido para todos os
pensamentos que são pensados.
Assim, todos os pensamentos que são pensados são os pensamentos
de Deus ou da natureza. Porque tudo é uno. Existe apenas um Deus, uma
natureza ou uma substância.
- Mas quando eu penso em alguma coisa, então sou "eu" que penso.
E quando me mexo, sou "eu" que me mexo. Porque é que queres meter Deus
no assunto?
- O teu entusiasmo agrada-me. Mas tu quem és? És a
Sofia Amundsen, mas és também expressão de algo infinitamente
maior. Bem podes dizer que "tu" pensas, ou que "tu" te mexes, mas não
podes afirmar também que a natureza pensa os teus pensamentos e que a
natureza se move em ti? É já uma questão das lentes com que queres ver o
problema.
- Queres dizer que eu não disponho de mim mesma?
- Bom, talvez tenhas uma espécie de liberdade de mover o teu
polegar como desejas. Mas o polegar só se pode mover de acordo com a sua
natureza. Não pode saltar da tua mão e correr pela sala. E deste modo
tens o teu lugar no todo, minha filha. És a Sofia, mas és também um dedo
no corpo de Deus.
- Então Deus determina tudo o que eu faço?
p. 224
- Ou a natureza, ou as leis da natureza. Para Espinosa, Deus, ou
as leis da natureza, são a "causa imanente" de tudo o que acontece.
Não é uma causa exterior, porque Deus manifesta-se através das
leis da natureza, e apenas através delas.
- Não sei se estou a ver a diferença.
- Deus não é um titereiro, que mexe os fios e determina o que
sucede. Um titereiro dirige os fantoches de fora e é assim a "causa
exterior". Mas
Deus não dirige o mundo deste modo. Deus governa o mundo por
meio das leis da natureza.
Assim, Deus - ou a natureza
- é a causa "imanente" de tudo o que sucede. Isso quer dizer que
tudo na natureza acontece necessariamente. Espinosa tinha uma concepção
determinista da vida natural.
- Acho que já uma vez disseste uma coisa parecida.
- Estás a pensar nos "estóicos". Eles também afirmaram que tudo
sucede por necessidade. Por isso era tão importante para eles encarar
todos os acontecimentos com uma "serenidade estóica". O homem não se
devia deixar arrebatar pelos seus sentimentos. É o que diz também a
ética de Espinosa, se a quisermos explicar muito sinteticamente.
- Acho que percebo o que ele quer dizer. Mas não me agrada a
ideia de não escolher por mim mesma.
- Regressemos a este jovem da Idade da Pedra, que viveu há
trinta mil anos. Quando ele cresceu, caçou animais, amou uma mulher, que
se tornou a mãe dos seus filhos, e podes ter a certeza de que ele
adorava os deuses dos seus antepassados. Em que é que estás a pensar
quando afirmas que ele decidiu tudo isto por si mesmo?
- Não sei.
- Ou imagina um leão em África. Achas que escolhe uma vida de
animal predador? É por isso que ele se atira a um antílope fraco? Será
que ele devia ter escolhido uma vida de vegetariano?
- Não, o leão vive de acordo com a sua natureza.
- Ou de acordo com as leis da natureza. Tu também o fazes,
Sofia, porque tu também és natureza. Agora, podes naturalmente - com
base em
Descartes - objectar afirmando que o leão é um animal e não um
homem com faculdades mentais livres. Mas pensa numa criança recém
-nascida. Ela chora e agita-se, e quando não recebe leite chucha no
dedo. Esta criança tem livre arbítrio?
- Não.
- E quando é que esta criança tem livre arbítrio? Com dois anos,
esta criança corre por todo o lado e aponta para tudo o que vê. Com três
anos choraminga, e com quatro tem repentinamente medo do escuro.
Onde é que está a liberdade,
Sofia?
p. 225
- Não sei.
- Com quinze anos está em frente ao espelho e experimenta
cosméticos. Está a tomar as suas decisões pessoais e faz o que quer?
- Eu percebo o que queres dizer.
- Ela é a Sofia Amundsen, está certa disso. Mas também vive de
acordo com as leis da natureza. Mas não o reconhece porque, por detrás
de cada coisa que faz, escondem-se causas numerosas e complexas.
- Acho que não quero ouvir mais.
- Mas tens de responder a uma última pergunta: duas árvores da
mesma idade crescem num grande pomar. Uma das árvores está num local com
muito sol e recebe água e está num solo com muitos nutrientes. A outra
árvore cresce na sombra e em solo de má qualidade.
Qual destas árvores produz mais frutos?
- Obviamente aquela que tem melhores condições para crescer.
- Segundo Espinosa, esta árvore é livre. Tinha toda a liberdade
de desenvolver todas as possibilidades que lhe eram inerentes. Mas, se
se trata de uma macieira, não tem a possibilidade de produzir pêras ou
ameixas. Passa-se exactamente o mesmo com os homens. Por exemplo,
certas condições políticas podem pôr obstáculos ao nosso desenvolvimento
e ao nosso crescimento pessoal. Circunstâncias exteriores podem
constituir obstáculos. Só quando podemos desenvolver livremente as
capacidades que possuímos é que vivemos como homens livres. Mas, apesar
disso, somos dirigidos por aptidões interiores e condições exteriores
tal como o jovem da Idade da Pedra na Renânia, o leão em África ou a
macieira no pomar.
- Acho que daqui a pouco não suporto mais.
- Espinosa afirma que apenas um único ser é totalmente "causa de
si mesmo" e pode agir com toda a liberdade. Só
Deus ou a natureza apresentam este desenvolvimento livre e "não
-acidental". Um homem pode ansiar por liberdade para poder viver sem
obrigação exterior. Mas nunca alcançará o "livre arbítrio". Não
determinamos tudo o que se passa no nosso corpo, porque o nosso corpo é
um modo do atributo extensão. E também não "escolhemos" os nossos
pensamentos. Logo, o homem não possui uma alma livre. Ela encontra-se
presa num corpo mecânico.
- É isso que é um pouco difícil de compreender.
- Espinosa achava que as paixões humanas - por exemplo, a
ambição e a cobiça - nos impedem de atingir a verdadeira felicidade e
harmonia. Mas, quando reconhecemos que tudo acontece por necessidade,
podemos obter um conhecimento intuitivo da natureza como
p. 226
totalidade. Podemos ter uma experiência muito clara de que tudo está
relacionado, de que tudo é uno. O nosso objectivo é compreender tudo o
que existe numa visão de conjunto coerente. Espinosa chamava a isto: ver
tudo "sub specie aeternitatis".
- E o que é que significa?
- Ver tudo "sob a perspectiva da eternidade". Não foi por aí que
começámos?
- E é por aí que temos de terminar. Tenho de ir para casa agora,
sem falta.
Alberto levantou-se e foi buscar uma grande fruteira à estante.
Colocou a fruteira na mesa.
- Não queres comer alguma coisa antes de te ires embora?
Sofia tirou uma banana.
Alberto escolheu uma maçã verde. Ela partiu o pé da banana e
começou a descascá-la.
- Há aqui qualquer coisa
- disse.
- Onde?
- Aqui, dentro da casca da banana. Parece escrito com caneta de
feltro preta.
Sofia inclinou-se para
Alberto e mostrou-lhe a banana. Ele leu alto: " Aqui estou de
novo, Hilde. Estou por toda a parte, minha filha. Parabéns pelo
aniversário!"
- Muito estranho - afirmou Sofia.
- Está cada vez mais refinado.
- Mas isto é... completamente impossível. Sabes se se cultivam
bananas no Líbano?
Alberto abanou a cabeça.
- Seja como for, não a vou comer.
- Então deixa-a ficar aí. Uma pessoa que envia os parabéns pelo
aniversário à filha no interior de uma banana por descascar tem de estar
mentalmente perturbada. Mas, ao mesmo tempo, deve ser muito esperta.
- Tens razão em ambas as coisas.
- Podemos então declarar que Hilde tem um pai esperto? Ele é
tudo menos parvo.
- Eu já tinha dito isso.
Do mesmo modo, pode ter-te obrigado a chamares-me Hilde. É bem
possível que ele nos ponha todas as palavras na boca.
- Não podemos excluir nada. Mas também temos de duvidar de tudo.
- Porque toda a realidade pode ser um sonho.
p. 227
- Não nos devemos precipitar. Afinal, também pode haver uma
explicação mais simples.
- De qualquer modo, tenho mesmo de ir agora para casa.
A minha mãe está à espera.
Alberto levou Sofia à porta. Quando ela se ia embora, ele disse:
- Até à próxima, querida Hilde! Em seguida, a porta fechou-se
atrás dela.
p. 228
LOCKE
. "tão vazia como um quadro antes de o professor entrar na sala de
aula"...
Sofia chegou a casa às oito e meia. Uma hora e meia mais tarde
do que o combinado. Na verdade não tinham combinado nada. Sofia tinha
simplesmente saltado a refeição e escrito à mãe numa folha que estaria
em casa às sete, o mais tardar.
- Isto não pode continuar assim, Sofia. Tive de telefonar para
as informações e perguntar se havia um Alberto no bairro antigo. Riram
-se na minha cara.
- Não foi fácil vir-me embora. Acho que nos falta pouco para a
resolução de um grande mistério.
- Que disparate.
- Não, isto é mesmo verdade.
- Convidaste-o para a festa no jardim?
- Não, esqueci-me.
- Mas agora eu quero conhecê-lo sem falta. E já amanhã. Não é
bom para uma rapariga nova encontrar-se tão frequentemente com um homem
mais velho.
- Mas não precisas de ter medo do Alberto. O pai de Hilde é que
é talvez mais perigoso.
- Qual Hilde?
- A filha daquele que está no Líbano. Esse parece ser um grande
patife. Talvez controle o mundo inteiro...
- Se não me apresentas imediatamente esse Alberto, não te deixo
encontrares-te mais com ele. Não tenho descanso enquanto não souber
pelo menos qual é o seu aspecto.
Sofia teve uma ideia.
Correu para o quarto.
- O que é que te deu? - gritou-lhe a mãe. Pouco depois, Sofia
entrava de novo na sala de estar.
- Podes ver imediatamente qual é o aspecto dele. Mas espero que
depois me deixes em paz.
p. 229
Acenou com a cassete de vídeo que trazia na mão e foi para junto
do leitor de cassetes.
- Ele ofereceu-te uma cassete de vídeo?
- De Atenas... Em breve surgiram as imagens da Acrópole no ecrã.
A mãe estava muda de espanto quando Alberto se apresentou e falou
directamente para Sofia. E, nessa altura, Sofia viu uma coisa em que já
tinha reparado da primeira vez, mas de que se esquecera: no meio de um
dos grupos de turistas na
Acrópole, um pequeno cartaz estava erguido - e no cartaz estava
escrito "HIL DE"...
Alberto avançava pela
Acrópole. Em seguida, estava no Areópago, onde o apóstolo Paulo
falara aos Atenienses. E da antiga ágora, Alberto dirigia-se a Sofia.
A mãe comentava o vídeo com breves interjeições:
"Inacreditável... "este" é o
Alberto?... Lá está de novo o coelho... mas, sim, ele está mesmo
a falar contigo, Sofia... Eu nem sabia que Paulo esteve em Atenas...
O vídeo aproximava-se do ponto em que a antiga Atenas se erguia
subitamente das ruínas. No último segundo, Sofia parou a cassete a
tempo. Já tinha mostrado Alberto à mãe, e não tinha de lhe apresentar
também Platão. A sala ficou completamente silenciosa.
- Não achas que ele tem um ar distinto? - disse Sofia num tom de
provocação.
- Mas deve ser uma pessoa muito estranha, se se faz filmar em
Atenas só para enviar o vídeo a uma rapariga que mal conhece. E quando é
que ele esteve lá?
- Não faço ideia.
- Mas há mais...
- Sim?
- Ele é parecido com o major que morou durante alguns anos na
pequena cabana do bosque.
- Talvez seja ele mesmo, mamã.
- Ninguém o vê há mais de quinze anos.
- Talvez se tenha mudado várias vezes. Para Atenas, por exemplo.
A mãe abanou a cabeça.
- Quando o vi uma vez nos anos 70, não parecia nem um bocadinho
mais velho do que este Alberto no vídeo. Tinha um apelido estrangeiro...
- Knox?
- Sim, talvez, Sofia. Talvez se chamasse Knox.
- Ou Knag?
p. 230
- Não, realmente já não sei... De que Knox ou Knag estás a
falar?
- Um é Alberto, o outro é o pai de Hilde.
- Estou a ficar completamente confusa.
- Ainda há alguma coisa para comer?
- Podes aquecer as almôndegas.
Depois disto, passaram-se exactamente duas semanas sem
Sofia ter notícias de Alberto. Recebeu mais um postal de
aniversário para Hilde, mas, apesar de o dia se aproximar, não veio
nenhuma felicitação para ela.
Numa tarde, Sofia foi ao bairro antigo e bateu à porta de
Alberto. Ele não estava em casa, mas na porta estava pendurada uma
pequena folha, onde se lia:
"Parabéns, Hilde! Agora, o grande momento está à porta.
O momento da verdade, minha filha. Todas as vezes em que penso
nisso rio-me tanto que quase não consigo parar. Tem a ver com Berkeley,
segura-te bem"!
Sofia arrancou a folha e enfiou-a na caixa do correio de
Alberto ao sair do prédio.
Que diabo! Teria ido novamente para Atenas? Como podia deixar
Sofia sozinha com todas as perguntas por responder?
Quando chegou da escola na quinta -feira, dia 14 de Junho,
Hermes vadiava pelo jardim. Sofia correu para ele e ele saltou para ela.
Pôs o braço à sua volta, como se o cão pudesse resolver todos os
mistérios.
De novo escreveu um bilhete para a mãe, mas indicou também o
endereço de Alberto. Enquanto andavam pela cidade, Sofia pensava no dia
seguinte. Não pensava tanto no seu aniversário, que só seria
verdadeiramente festejado na noite de S. João. Mas, no dia seguinte,
Hilde fazia anos. Sofia estava convencida de que nesse dia sucederia
qualquer coisa de completamente insólito. Em todo o caso, as muitas
felicitações do Líbano tinham que terminar.
Depois de atravessarem a praça principal e quando se aproximavam
do bairro antigo, passaram por um parque com um campo de jogos. Aí,
Hermes parou em frente de um banco; parecia querer que Sofia se sentasse
nele. Ela sentou-se e acariciou o cão amarelo no pescoço, enquanto o
olhava nos olhos. De imediato, um forte estremecimento percorreu o cão.
"Vai começar a ladrar", pensou Sofia.
p. 231
As suas maxilas começaram a vibrar, mas Hermes não rosnava nem
ladrava. Abriu a boca e disse:
- Parabéns, Hilde!
Sofia ficou petrificada. O cão tinha realmente falado com ela?
Não, devia ter imaginado, por estar sempre a pensar em Hilde.
Mas, no fundo do coração, ela estava convencida de que Hermes
pronunciara aquelas duas palavras, num tom grave, sonoro. Em seguida,
tudo estava como antes. Hermes ladrou duas vezes - como que para
disfarçar que acabara de falar com voz humana - e continuou a andar em
direcção à casa de
Alberto. Durante todo o dia tinha estado bom tempo, mas nesse
momento concentravam-se nuvens pesadas ao longe.
Quando Alberto abriu a porta, Sofia disse:
- Por favor, não quero discursos. Tu és um imbecil e sabe-lo
muito bem.
- O que é que aconteceu, minha filha?
- O major ensinou Hermes a falar!
- Meu Deus! As coisas já chegaram a esse ponto?
- Sim, imagina tu.
- E o que disse?
- Adivinha.
- Ele deve ter dito "parabéns!", ou uma coisa do género.
- Acertaste.
Alberto deixou Sofia entrar em casa. Nesse dia, tinha-se
mascarado de novo. Não estava muito diferente da última vez, mas o seu
traje quase não apresentava laços, fitas e rendas.
- Mas não é tudo - afirmou então Sofia.
- O que queres dizer?
- Não encontraste a folha na caixa do correio?
- Ah, isso - deitei-a fora imediatamente.
- Por mim, ele pode rir-se sempre que pensa em Berkeley. Mas o
que tem este filósofo que provoque isso?
- Vamos ver já.
- Mas vais falar dele hoje, não vais?
- Hoje, sim.
Alberto acomodou-se.
Depois disse:
- Na última vez que estivemos aqui, falei sobre Descartes e
Espinosa.
Concordámos que têm uma coisa importante em comum, são ambos
racionalistas típicos.
- E um racionalista é uma pessoa que acredita na importância da
razão.
p. 232
- Sim, um racionalista acredita na razão como fonte do saber.
Acredita frequentemente em certas ideias inatas do homem - que existem
no homem independentemente de qualquer experiência. E quanto mais clara
é essa ideia ou concepção, mais certo é que corresponda a um dado real.
Ainda te lembras que Descartes tinha uma ideia clara e nítida de
um "ser perfeito".
A partir desta ideia, ele conclui que Deus existe realmente.
- Eu não sou uma pessoa esquecida.
- Este pensamento racionalista era típico da filosofia do século
XVII. Na Idade Média, também estava fortemente implantado e conhecemo
-lo ainda de Platão e de
Sócrates. Mas, no século XVIII, foi exposto a uma crítica cada
vez mais forte. Vários filósofos defenderam a ideia de que não temos
conteúdos na consciência, enquanto não temos nenhuma experiência
sensível. Esta ideia é designada por "empirismo".
- E tu queres falar hoje sobre estes empiristas?
- Vou tentar. Os empiristas mais importantes foram "Locke,
berkeley e Hume", todos eles britânicos. Os principais racionalistas do
século XVII foram o francês " Descartes", o holandês "Espinosa" e o
alemão "Leibniz". Por isso, costumamos fazer a distinção entre o
"empirismo inglês" e o "racionalismo continental".
- Por mim, está bem, mas são muitas palavras. Podes repetir o
que é que se entende por empirismo?
- Um empirista defende que todo o saber acerca do mundo provém
daquilo que os sentidos nos transmitem. A formulação clássica de uma
posição empirista provém de Aristóteles, que afirmava que nada estava na
consciência que não tivesse estado primeiro nos sentidos. Esta ideia
contém uma crítica clara a Platão, que defendia que o homem trazia
ideias inatas do mundo das ideias. Locke repete as palavras de
Aristóteles e, quando Locke as utiliza, é contra Descartes.
- Não há nada na consciência que não tenha estado primeiro nos
sentidos?
- Não temos ideias ou concepções inatas sobre o mundo.
Não sabemos absolutamente nada sobre o mundo em que somos postos
antes de o termos "percepcionado". Quando temos uma opinião ou uma ideia
que não podemos relacionar com dados percepcionados, trata-se de uma
ideia falsa. Quando, por exemplo, usamos palavras como " Deus",
"eternidade" ou "substância", a nossa razão move-se no vazio. Porque
nunca ninguém percepcionou Deus, a eternidade, ou aquilo a que os
filósofos chamam "substância". Assim se escrevem tratados eruditos que
no fundo não contêm nenhum conhecimento
p. 233
novo. Essa filosofia reflectida com rigor pode impressionar, mas é
apenas devaneio.
Os filósofos dos séculos XVII e XVIII tinham herdado muitos
desses tratados eruditos. Agora, eram examinados à lupa. Era necessário
excluir deles as ideias vazias. Podemos comparar isso à lavagem do ouro.
A maior parte é areia e argila, mas de vez em quando encontramos uma
pepita.
- E essas pepitas são experiências verdadeiras?
- Ou pelo menos ideias que podem ser relacionadas com as
experiências. Para os empiristas britânicos era importante examinar
todas as opiniões humanas para verificar se podem ser comprovadas com
verdadeiras experiências. Mas vamos falar de um filósofo de cada vez.
- Fala.
- O primeiro foi o inglês "John Locke", que viveu entre 1632 e
1704. A sua obra mais importante chama-se " An Essay Concerning Human
Understanding, Ensaio Sobre o Entendimento Humano", e foi publicada em
1690. Nessa obra, ele procura esclarecer duas questões. Em primeiro
lugar, pergunta de onde é que os homens recebem os seus pensamentos e
ideias. Em segundo lugar, se podemos confiar naquilo que os nossos
sentidos nos dizem.
- É um grande projecto!
- Vamos tratar de um problema de cada vez. Locke está convencido
de que todos os nossos pensamentos e ideias são apenas um reflexo
daquilo de que já tivemos sensações.
Antes de sentirmos alguma coisa, a nossa consciência é como uma
"tabula rasa" - uma "ardósia em branco".
- Podes deixar o latim!
- Antes de sentirmos alguma coisa, a nossa consciência está tão
vazia como um quadro antes de o professor entrar na sala de aula. Locke
compara também a consciência a uma sala não mobilada. Mas, depois, vêm
as nossas sensações. Vemos o mundo à nossa volta, cheiramos, saboreamos,
tacteamos e ouvimos. E ninguém o faz de forma mais intensiva do que as
crianças pequenas.
Deste modo, surgem ideias simples. Mas a consciência não recebe
estas impressões exteriores passivamente. Na consciência também sucede
alguma coisa. As ideias simples são trabalhadas por meio de reflexão e
meditação, crença e dúvida. Deste modo, surge aquilo a que Locke chama
ideias reflexivas. Ele distingue portanto "sensação" e "reflexão",
porque a consciência não é apenas um receptor passivo. Ordena e trabalha
todas as sensações que recebe. E é precisamente aqui que devemos estar
alerta.
- Alerta?
p. 234
- Locke sublinha que através dos sentidos recebemos unicamente
"sensações simples". Quando, por exemplo, como uma maçã, sinto toda a
maçã numa única sensação simples. Na realidade, recebo toda uma série
dessas sensações simples - que uma coisa é verde, cheira bem, é
suculenta e tem um sabor ácido.
Só depois de eu ter comido muitas maçãs é que penso: agora,
estou a comer "uma maçã". Locke afirma que nós formámos então uma "ideia
complexa" de uma maçã. Quando éramos pequenos e comemos pela primeira
vez uma maçã, não tínhamos essa ideia complexa. Mas víamos uma coisa
verde, provávamos uma coisa fresca e suculenta, ... bom, também era um
pouco ácida. A pouco e pouco, ligamos muitas sensações e formamos
conceitos como "maçã", "pêra" e "laranja". Mas devemos aos nossos
sentidos todo o material para o nosso saber sobre o mundo. O
conhecimento que não tem na origem impressões sensíveis simples é
portanto falso conhecimento e deve ser rejeitado.
- Pelo menos podemos ter a certeza de que aquilo que vemos e
ouvimos, cheiramos e provamos é tal como o percepcionamos.
- Sim e não. Essa é a segunda questão a que Locke procura dar
resposta. Ele explicou em primeiro lugar de onde retiramos as nossas
ideias e opiniões. Mas, em seguida, pergunta também se o mundo é
realmente tal como o percepcionamos. É que isso não é nada evidente,
Sofia.
Não devemos precipitar-nos. É a única coisa proibida a um
verdadeiro filósofo.
- Estou muda como um peixe.
- Locke fazia a distinção entre o que designava por qualidades
"primárias" e "secundárias". Reconhecia assim a sua dívida perante os
grandes filósofos - incluindo Descartes - que o tinham precedido.
- Explica-me isso!
- Por "qualidades primárias", ele entende a dimensão, o peso, a
forma, o movimento e o número das coisas. Nestas qualidades, podemos ter
a certeza de que os sentidos reproduzem as qualidades reais das coisas.
Mas também percepcionamos outras qualidades das coisas. Dizemos que uma
coisa é doce ou amarga, verde ou vermelha, quente ou fria. A isto, Locke
chama "qualidades secundárias". E essas impressões sensíveis - como cor,
cheiro, sabor ou som - não reproduzem qualidades reais que residem nas
próprias coisas. Reproduzem apenas o efeito das qualidades exteriores
nos nossos sentidos.
- Justamente, gostos não se discutem.
- Exacto. Sobre as qualidades primárias - como extensão e peso -
podemos estar todos de acordo, porque residem nas próprias coisas.
p. 235
Mas as qualidades secundárias - como cor e sabor - podem variar de
animal para animal e de pessoa para pessoa, dependendo da natureza das
sensações de cada indivíduo.
- Quando Jorunn come uma laranja, faz exactamente a mesma cara
que outras pessoas quando comem um limão. Geralmente, nunca consegue
comer mais do que um gomo. "É ácida", diz ela. E, normalmente, eu acho
que exactamente a mesma laranja é doce e saborosa.
- E nenhuma das duas tem razão, mas também nenhuma está errada.
Vocês descrevem apenas o efeito desta laranja nos vossos sentidos. O
mesmo se passa com a experiência das cores. Admitamos, por hipótese, que
um certo tom de vermelho não te agrada. Se Jorunn tiver comprado um
vestido justamente dessa cor, talvez devesses guardar a tua
sensibilidade para ti mesma. Vocês têm uma sensibilidade diferente em
relação a esta tonalidade, mas o vestido não é bonito nem feio.
- Mas todos estão de acordo em que uma laranja é redonda.
- Sim, se tens uma laranja redonda, não a podes ver como se
fosse cúbica. Podes achá-la doce ou ácida, mas não podes "achar" que
pesa oito quilos se pesa apenas duzentas gramas. Podes talvez
"acreditar" que pesa vários quilos, mas, nesse caso, estás completamente
enganada. Quando várias pessoas têm de adivinhar o peso de um objecto,
há sempre uma que está mais perto da verdade do que as outras. Isso
também se aplica ao número de coisas. Ou há novecentas e oitenta e seis
ervilhas no frasco ou não. O mesmo se passa com o movimento.
O carro está em movimento, ou está parado.
- Compreendo.
- No que diz respeito à "realidade extensa", Locke tem a mesma
opinião que Descartes, isto é, ela apresenta certas qualidades que o
homem pode compreender com o seu entendimento.
- Estar de acordo com isso também não é difícil.
- Em outros domínios, Locke também admite o que designa por
conhecimento "intuitivo" ou "demonstrativo". Ele considerava, por
exemplo, que certas regras fundamentais da ética são dadas a todos.
Assim ele defende a chamada "concepção do direito natural" e
isso é uma característica racionalista. Uma outra característica
racionalista clara é o facto de Locke achar que é inerente à razão
humana saber que Deus existe.
- Talvez tivesse razão.
- Em quê?
- Em dizer que Deus existe.
p. 236
- Sim, é concebível. Mas ele não deixa que isso seja
simplesmente uma questão de fé. Ele acha que o conhecimento que o homem
tem de Deus tem origem na razão humana. "Isso" é uma característica
racionalista. Devo acrescentar que ele defendia a liberdade de opinião e
a tolerância. Defendia também a igualdade de direitos de ambos os sexos.
Segundo ele, a posição subordinada da mulher tinha sido criada pelos
seres humanos. E, por isso, podiam transformá-la.
- Estou totalmente de acordo.
- Locke foi um dos primeiros filósofos da época moderna que se
preocupou com a questão dos papéis dos sexos. Ele foi posteriormente
muito importante para o seu homónimo John
Stuart Mill, que por sua vez foi muito importante na luta pela
igualdade de direitos entre os sexos. Locke manifestou muito cedo ideias
liberais que foram retomadas durante o Iluminismo francês do século
XVIII. Por exemplo, foi ele o primeiro a defender o chamado "princípio
da separação dos poderes"...
- Isso significa que o poder do Estado está repartido em
diversas instituições.
- Ainda te lembras de que instituições se trata?
- Há o poder legislativo, ou o parlamento. Depois há o judicial,
ou os tribunais. Por fim, há o executivo, ou o governo.
- Essa tripartição provém do filósofo iluminista francês
"Montesquieu". Locke realçara que o poder legislativo e o executivo
tinham de estar separados se se quisesse evitar a tirania. Ele foi
contemporâneo de Luís XIV, que reunira todo o poder em si. "Eu sou o
Estado", afirmou ele. Era um monarca absoluto, e hoje diríamos que
governava de modo arbitrário. Locke defendia, pelo contrário, que para
garantir um Estado de direito, os representantes do povo têm de criar
leis, que são em seguida implementadas pelo rei e pelo governo.
p. 237
Hume
. então lançai-o à fogueira...
Alberto olhava fixamente para a mesa entre os dois. Por fim
voltou-se e olhou pela janela.
- O céu está a ficar nublado - afirmou Sofia.
- Sim, está carregado.
- Vais falar agora de Berkeley?
- Ele foi o segundo dos três empiristas britânicos. Mas uma vez
que em muitos aspectos ele é um caso à parte, vamos concentrar-nos
primeiro em David Hume, que viveu entre 1711 e 1776. A sua filosofia é
hoje tida como a mais importante filosofia empírica. Ele também foi de
importância essencial por ter inspirado o grande filósofo Immanuel Kant
para a sua própria filosofia.
- E não tem importância o facto de a filosofia de Berkeley me
interessar muito mais?
- Isso não tem importância, não. Hume cresceu perto de
Edimburgo, na Escócia, e a família queria fazer dele um jurista. Mas ele
afirmava sentir "uma insuperável aversão a tudo menos à filosofia e ao
conhecimento em geral". Viveu, como os grandes pensadores franceses
"Voltaire" e "Rousseau", em plena época do Iluminismo e realizou longas
viagens pela Europa, antes de se fixar novamente em Edimburgo. A sua
obra mais importante, Tratado Sobre a Natureza Humana, foi publicada
quando Hume tinha vinte e oito anos. Ele mesmo afirmou que já tivera a
ideia para esse livro aos quinze anos.
- Estou a ver que tenho de me apressar.
- Já falta pouco.
- Mas se fizer a minha própria filosofia, será completamente
diferente de tudo o que ouvi até agora.
- Sentes a falta de alguma coisa em particular?
- Primeiro, todos os filósofos dos quais ouvi falar até agora
eram homens. E os homens parecem viver no seu próprio mundo. A mim
interessa-me mais o mundo real. Flores, animais e crianças que
p. 238
nascem e crescem. Os teus filósofos estão constantemente a falar do
homem, e está sempre a aparecer um tratado sobre a natureza do ser
humano. Mas este ser humano parece ser quase sempre um homem de meia
-idade. Afinal, a vida começa com a gravidez e o nascimento. Acho que
até agora não houve suficientes fraldas e gritos de crianças. Talvez
também tenha havido muito pouco amor e amizade.
- Aí, tens toda a razão. Mas talvez Hume seja justamente um
filósofo que pensa de forma um pouco diferente. Mais do que qualquer
outro, ele tem como ponto de partida o mundo quotidiano. Acho que Hume
tinha um sentido muito apurado para o modo como as crianças - ou seja,
os novos cidadãos do mundo - vivem a realidade.
- Eu vou conter-me.
- Enquanto empirista, Hume via como sua tarefa a supressão de
todos os conceitos e construções especulativas pouco claros que os teus
homens tinham concebido até então. Nessa altura, estava em circulação na
escrita e em conversas todo o tipo de conceitos da Idade Média e dos
filósofos racionalistas do século XVII. Hume queria regressar à
sensibilidade humana original do mundo. Segundo ele, nenhuma filosofia
pode alguma vez ignorar as experiências quotidianas ou dar-nos regras
de comportamento diferentes daquelas que obtemos por meio da nossa
reflexão sobre a vida quotidiana.
- Até agora isso parece aliciante. Podias dar exemplos?
- Na época de Hume, estava muito difundida a ideia de que
existem anjos. Por anjo, entendemos uma figura humana com asas. Alguma
vez viste um ser desses, Sofia?
- Não.
- Mas já viste uma figura humana?
- Que pergunta tão parva.
- E também já viste asas?
- Claro, mas nunca num homem.
- Segundo Hume, os "anjos" são uma ideia complexa. Esta ideia é
constituída por duas experiências diferentes que não estão juntas na
realidade, mas foram ligadas na fantasia humana. Por outras palavras, a
ideia é falsa e deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de fazer uma
arrumação em todos os nossos pensamentos e ideias. Tal como Hume
afirmou: "Pegando ao acaso em qualquer volume acerca de teologia ou
filosofia da escola, devemos perguntar:
Contém algum raciocínio abstracto acerca da grandeza ou dos
números? Não. Contém algum raciocínio sobre factos e sobre a realidade
p. 239
baseado na experiência? Não. Então, lançai-o à fogueira porque só
contém ilusão e aparência."
- Bastante drástico.
- Mas há o mundo, Sofia. Mais fresco e nítido nos seus contornos
do que anteriormente. Hume queria regressar ao modo como uma criança vê
o mundo - antes de ideias e reflexões ocuparem espaço na mente. Não
disseste que muitos filósofos, dos quais ouviste falar, vivem no seu
próprio mundo e que o mundo real te interessa mais?
- Sim, mais ou menos isso.
- Hume poderia ter dito exactamente o mesmo. Mas observemos mais
exactamente o seu raciocínio.
- Estou a ouvir.
- Hume verifica em primeiro lugar que o homem possui por um lado
"impressões", e por outro "ideias". Por impressão, ele entende a
sensação imediata da realidade exterior. Por ideia ele entende a
recordação dessa sensação.
- Exemplos, por favor.
- Se te queimas num fogão quente, tens uma impressão imediata.
Mais tarde, podes recordar que te queimaste. É a isso que Hume chama
ideia.
A diferença é que a impressão é mais forte e viva do que a
recordação posterior da impressão. Podes dizer que a impressão sensível
é o original e a ideia ou recordação a cópia pálida. Porque, afinal, a
impressão é a causa directa da ideia que é conservada na mente.
- Até agora estou a acompanhar bem.
- Mais adiante, Hume sublinha que tanto uma impressão como uma
ideia podem ser ou "simples ou complexas". Ainda te lembras que em Locke
falámos de uma maçã. A experiência imediata de uma maçã é também uma
impressão complexa.
Assim, a ideia de uma maçã é também uma ideia complexa.
- Desculpa a interrupção, mas isso é muito importante?
- Se é! Apesar de os filósofos se terem preocupado com uma série
de problemas aparentes, não podes agora desistir quando se trata de
construir um raciocínio. Hume teria certamente dado razão a
Descartes quanto à importância de se construir um raciocínio a
partir da base.
- Rendo-me.
- Para Hume, a questão é que, por vezes, podemos juntar coisas
sem que exista um objecto composto correspondente na realidade. Assim,
surgem ideias falsas de coisas que não existem na natureza. Já
mencionámos os anjos. E, antes disso, já se tinha falado de crocofantes.
p. 240
Um outro exemplo é o Pégaso, um cavalo com asas. Em todos estes
exemplos, temos de reconhecer que a nossa mente fez uma construção no
vazio. Retirou as asas de uma impressão e os cavalos de outra. Todos os
elementos foram percepcionados uma vez e por isso entraram no palco da
mente como impressões verdadeiras. No fundo, a mente não inventou nada.
A mente agarrou na tesoura e na cola e construiu ideias falsas.
- Entendo. E agora também compreendo que isso pode ser
importante.
- Ainda bem. Hume quer examinar cada ideia e descobrir se ela é
composta de um modo que não encontramos na realidade. Ele pergunta: em
que impressões tem origem esta ideia? Em primeiro lugar, ele tem que
determinar de que ideias simples é composto um conceito. Deste modo,
obtém um método crítico para analisar as ideias humanas. E é assim que
quer organizar os nossos pensamentos e ideias.
- Tens um ou dois exemplos?
- Na época de Hume, muitas pessoas tinham uma ideia clara do
paraíso. Talvez ainda te lembres que Descartes explicara que ideias
claras e evidentes em si podiam ser uma garantia de que existe uma
correspondência na realidade.
- Como já disse, não sou esquecida.
- É-nos imediatamente claro que "paraíso" é uma ideia
extremamente complexa. Vou referir apenas alguns elementos: no "paraíso"
há um "portão de pérolas", há "estradas de ouro" e "exércitos de anjos"
- e assim por diante. Mas ainda não examinámos tudo nos seus elementos
particulares. Porque também "portão de pérolas", "estradas de ouro" e
"exércitos de anjos" são ideias compostas. Só quando verificamos que a
nossa ideia complexa de paraíso é constituída por ideias simples como
"pérola", "portão", "estrada", "ouro", "figura vestida de branco" e
"asa", é que podemos perguntar se já tivemos de facto alguma vez
"impressões simples" correspondentes.
- E temos. Mas depois montámos todas as impressões simples numa
ilusão.
- Sim, exacto, porque quando sonhamos, usamos, por assim dizer,
tesoura e cola. Mas Hume sublinha que toda a matéria, a partir da qual
formamos as nossas ilusões, chega à nossa mente na forma de impressões
simples. Uma pessoa que nunca tenha visto ouro também não poderá
imaginar nenhuma estrada de ouro.
- Ele é muito esperto. E quanto a Descartes e a sua ideia clara
de Deus?
p. 241
- Hume também tem uma resposta para isso. Digamos que imaginamos
Deus como um ser infinitamente inteligente, sábio e bom. Temos então uma
ideia complexa que é constituída por algo infinitamente sábio,
infinitamente inteligente e infinitamente bom. Se nunca tivéssemos tido
a experiência da inteligência, sabedoria e bondade, nunca poderíamos ter
esse conceito de
Deus. Talvez a nossa ideia de Deus implique que ele seja um pai
severo, mas justo - ou seja, uma ideia que é composta por "severo",
"justo" e "pai".
A partir de Hume, muitos críticos da religião apontaram
precisamente para este facto: a saber, que esta ideia de
Deus pode provir do modo como víamos o nosso próprio pai quando
éramos crianças. A ideia de um pai teria levado à ideia de um pai do
céu, conforme dizem alguns.
- Talvez seja verdade. Mas eu nunca aceitei que
Deus fosse forçosamente um homem. Em compensação, a minha mãe
diz por vezes "Graças a Deusa", ou uma coisa do género.
- Hume quer atacar todas as concepções e ideias que não provêm
de impressões sensíveis correspondentes. Ele afirmava que queria
afugentar a algaraviada sem sentido que dominara durante tanto tempo o
pensamento metafísico e o desacreditara. Mas também usamos conceitos
complexos no quotidiano sem nos questionarmos se possuem de facto
legitimidade. É o caso da ideia de um eu ou de um núcleo da
personalidade. Esta ideia constituía o fundamento da filosofia de
Descartes. Era a ideia clara e evidente sobre a qual edificou toda a sua
filosofia.
- Espero que Hume não tenha negado que eu sou eu. Senão falava
por falar.
- Sofia, se há uma coisa que eu quero que tu aprendas neste
curso de filosofia, é que não podes tirar conclusões precipitadas.
- Continua.
- Não, tu podes usar o método de Hume para analisares o que
entendes pelo teu "eu".
- Então tenho de perguntar primeiro se a ideia do eu é simples
ou complexa.
- E a que conclusão chegas?
- Tenho de admitir que me sinto bastante complexa. Por exemplo,
sou bastante bem humorada. É difícil decidir-me em relação a certas
coisas.
Além disso, posso gostar e não gostar da mesma pessoa.
- Nesse caso, a tua ideia do eu é complexa.
- Está bem. Agora tenho de perguntar se tenho uma impressão
complexa correspondente a eu. E tenho-a mesmo? Tenho-a sempre?
- Não tens a certeza?
p. 242
- Estou sempre a mudar. Hoje já não sou a mesma que há quatro
anos. A minha disposição e a minha ideia de mim própria mudam de minuto
para minuto. Por vezes, sinto-me de repente uma pessoa totalmente nova.
- Então a sensação de se ter um núcleo de personalidade
inalterável é uma ideia falsa.
A nossa ideia do eu consiste numa longa série de impressões
particulares que tu nunca experimentaste "simultaneamente". Hume fala de
um "conjunto de diversos conteúdos da consciência que se seguem uns aos
outros com uma rapidez inacreditável e estão constantemente em fluxo e
movimento".
A nossa consciência seria "uma espécie de teatro", em que esses
diversos conteúdos "entram em cena uns a seguir aos outros, vão e vêm e
se misturam entre si numa variedade infinita de situações e
disposições". Para Hume não temos qualquer personalidade de base formada
em que essas opiniões e disposições vêm e vão. É como as imagens numa
tela de cinema: pelo facto de mudarem tão depressa, não vemos que o
filme é composto por imagens individuais. Na realidade, estas imagens
não estão ligadas, ou seja, na realidade, o filme é um conjunto de
instantes.
- Acho que desisto.
- Isso quer dizer que desistes da ideia de teres um núcleo de
personalidade imutável?
- Sim, significa isso.
- E ainda há pouco tinhas uma opinião completamente diferente!
Tenho de acrescentar ainda que a análise de Hume da consciência humana e
a sua negação de um núcleo imutável da personalidade já tinham sido
expostas dois mil e quinhentos anos antes no outro extremo do planeta.
- Por quem?
- Por "Buda". É quase inquietante a semelhança do modo como
ambos se exprimem. Buda via a vida humana como uma série ininterrupta de
processos mentais e físicos que alteram o homem a cada instante. O bebé
não é o mesmo que o adulto, e eu não sou o mesmo que ontem. Buda
afirmava: " Nada há de que eu possa dizer "isto é meu", nada de que
possa dizer "isto sou eu".
Não há, portanto, nenhum eu nem nenhum núcleo constante da
personalidade."
- Sim, isso tem uma semelhança surpreendente com Hume.
- Como continuação da ideia de um eu imutável, muitos
racionalistas tinham por evidente que o homem tem uma alma imortal.
- Mas essa também é uma ideia falsa?
- Pelo menos é o que dizem Hume e Buda. Sabes o que se conta que
Buda disse aos seus discípulos imediatamente antes da sua morte?
p. 243
- Não, como é que posso saber?
- "Todas as coisas compostas estão sujeitas à corrupção." Hume
poderia ter dito o mesmo. Ou Demócrito. Sabemos que Hume recusou
qualquer tentativa de provar a imortalidade da alma ou a existência de
Deus. Isso não significa que achasse ambas as coisas impossíveis, mas
achava um absurdo racionalista acreditar que é possível provar a fé
religiosa com a razão humana. Hume não era cristão; mas também não era
um ateu convicto. Ele era um homem a quem chamamos "agnóstico".
- E o que significa isso?
- Um agnóstico é uma pessoa que não sabe se Deus existe. Ao
receber a visita de um amigo no leito de morte, o amigo perguntou-lhe
se acreditava na vida após a morte.
Diz-se que Hume respondeu que também era possível que um bocado
de carvão atirado ao fogo não ardesse.
- Ah...
- A resposta foi típica da sua incondicional ausência de
preconceitos. Ele apenas aceitava como verdade aquilo de que tinha
experiências sensíveis seguras. Deixava todas as outras possibilidades
abertas. Ele não rejeitou nem a crença em Cristo nem a crença em
milagres. Mas em ambos os casos se trata justamente de "fé" e não de
"razão". Podes dizer que a última ligação entre fé e saber foi desfeita
com a filosofia de Hume.
- Disseste que ele não negou categoricamente os milagres.
- Mas isso também não significa que tenha acreditado em
milagres. Ele sublinha que os homens têm uma forte necessidade de
acreditar naquilo a que hoje chamaríamos "acontecimentos sobrenaturais".
Mas todos os milagres que se narram aconteceram muito longe de nós ou há
muito tempo. Hume recusava os milagres simplesmente porque não tinha
visto nenhum. Mas ele também não viu que não pode haver milagres.
- Tens que ser mais preciso.
- Hume caracteriza um milagre como uma ruptura das leis da
natureza. Mas também não podemos afirmar que "percepcionámos" as leis da
natureza. Vemos que uma pedra cai no chão quando a largamos, e se não
caísse também o veríamos.
- Eu chamaria a isso um milagre - ou algo sobrenatural.
- Acreditas então em duas naturezas, uma natureza e uma
"natureza" sobrenatural. Não estarás a voltar ao absurdo nebuloso dos
racionalistas?
- Talvez, mas acho que a pedra cai sempre ao chão quando a
largamos.
p. 244
- E porquê?
- Estás a ser insistente.
- Eu não sou insistente,
Sofia. Para um filósofo, nunca é errado fazer perguntas. Talvez
estejamos a falar do ponto mais importante da filosofia de Hume.
Responde agora: como é que podes ter tanta certeza de que a pedra cai
sempre ao chão?
- Eu vi-o tantas vezes que tenho a certeza.
- Hume diria que viste muitas vezes uma pedra cair ao chão, mas
nunca viste que "cairá sempre". Normalmente diz-se que a pedra cai ao
chão devido à lei da gravitação. Mas nós nunca vimos essa lei.
Só vimos que as coisas caem.
- Não é a mesma coisa?
- Não é bem a mesma coisa.
Disseste que achas que a pedra vai cair ao chão porque viste
isso muitas vezes. É precisamente esse o problema de Hume. Estás tão
habituada a que uma coisa se siga à outra que esperas que, cada vez que
deixas cair uma pedra, suceda o mesmo. Deste modo, surgem ideias daquilo
a que chamamos "leis constantes da natureza".
- Ele quer dizer que se pode pensar que a pedra não caia ao
chão?
- Ele estava tão convencido como tu de que a pedra vai cair ao
chão sempre, mas diz que não percepcionou "porque é que" é assim.
- Não nos afastámos das crianças e das flores?
- Não, muito pelo contrário. Podes consultar as crianças como
testemunhas para as asserções de Hume. Quem te parece que ficaria mais
surpreendido se uma pedra ficasse no ar uma ou duas horas
- tu ou uma criança de um ano?
- Eu ficaria mais surpreendida.
- E porquê, Sofia?
- Provavelmente porque eu compreendo melhor do que uma criança
pequena que isso não seria natural.
- E porque é que a criança não entenderia?
- Porque ainda não aprendeu o que é a natureza.
- Ou porque a natureza não se tornou para ela uma coisa
habitual.
- Eu percebo o que queres dizer. Hume queria levar as pessoas a
tomarem mais atenção.
- Agora, dou-te a seguinte tarefa: se tu e uma criança pequena
vêem juntas um grande ilusionista - que por exemplo põe alguma coisa
suspensa no ar -, qual das duas se divertiria mais durante o
espectáculo?
- Eu diria que era eu.
p. 245
- E porquê?
- Porque eu compreenderia o que estava errado.
- Está bem. A criança não se alegra por ver as leis da natureza
violadas porque ainda não as conhece.
- Também podes dizê-lo dessa maneira.
- Ainda estamos a tratar do cerne da filosofia empírica de Hume.
Ele teria acrescentado que a criança ainda não se tornou escrava das
suas expectativas. A criança pequena tem menos preconceitos que tu.
Resta saber se a criança não é também o maior filósofo. Uma criança não
tem opiniões preconcebidas. E isso, minha querida Sofia, é a primeira
virtude em filosofia. A criança vive o mundo tal como ele é, sem
acrescentar às coisas mais do que o que vê.
- Eu nunca gosto de ter preconceitos.
- Quando Hume trata do poder do hábito, refere-se à chamada
"lei da causalidade". Esta lei diz que tudo o que acontece tem que ter
uma causa. Hume usa como exemplo duas bolas de bilhar. Se lanças uma
bola de bilhar preta contra uma bola branca parada, o que é que acontece
à bola branca?
- Quando a preta toca na branca, esta move-se.
- Sim, e porque é que faz isso?
- Porque foi atingida pela bola preta.
- Neste caso, dizemos que o choque da bola preta é a "causa" do
movimento da bola branca. Mas não podemos esquecer que só podemos dizer
que uma coisa é totalmente certa quando a experienciámos.
- Eu já experienciei isso várias vezes. Jorunn tem uma mesa de
bilhar na cave.
- Hume afirma que tu apenas viste que a bola preta atinge a
branca e que a branca rola pela mesa. Tu não conheceste pela experiência
a causa pela qual a bola branca rola.
Conheceste pela experiência que um acontecimento se segue ao
outro temporalmente, mas não que o segundo acontecimento sucede "por
causa" do primeiro.
- Isso não é um pouco sofístico?
- Não, é importante. Hume sublinha que a expectativa de que uma
coisa se siga à outra não está nos objectos, mas na nossa consciência.
Uma criança pequena não teria esbugalhado os olhos se uma bola tivesse
atingido a outra e ambas ficassem totalmente imóveis.
Quando falamos de "leis da natureza", ou de "causa e efeito",
estamos na realidade a falar dos hábitos humanos e não do que é
racional. As leis da natureza não são nem racionais nem irracionais,
"são", simplesmente. A expectativa de a bola de bilhar branca ser posta
em movimento quando a preta choca contra ela, não é uma ideia inata.
Nós nascemos
p. 246
sem quaisquer expectativas sobre o mundo ou sobre o comportamento das
coisas. O mundo é como é e nós apreendemo-lo progressivamente pela
experiência.
- Tenho de novo a sensação de que isso não é assim tão
importante.
- Pode ser importante se as nossas expectativas nos levam a
conclusões precipitadas. Hume não contesta que há leis da natureza
constantes, mas uma vez que não podemos ter experiência das leis da
natureza, podemos tirar as conclusões erradas.
- Podes dar-me exemplos?
- O facto de eu ver um conjunto de cavalos pretos não significa
que todos os cavalos sejam pretos.
- Tens toda a razão.
- E mesmo que durante toda a minha vida tenha visto apenas
corvos pretos não significa que não haja corvos brancos. Para um
filósofo e para um cientista, pode ser importante provar que não existem
corvos brancos. Quase podes dizer que a caça ao corvo branco é a tarefa
mais importante da ciência.
- Compreendo.
- Quando se trata da relação de causa e efeito, muitos imaginam
o relâmpago como causa do trovão, porque o trovão se segue sempre ao
relâmpago. Este exemplo não é muito diferente do das bolas de bilhar.
Mas será o relâmpago realmente a causa do trovão?
- Não, na realidade relampeja e troveja exactamente ao mesmo
tempo.
- Porque relâmpago e trovão são efeitos de uma descarga
eléctrica. Mesmo que vejamos sempre que o trovão se segue ao relâmpago,
não significa que o relâmpago seja a causa do trovão. Na realidade há
um terceiro factor que provoca os dois.
- Compreendo.
- Um empirista do nosso século, "Bertrand Russell", deu um
exemplo um pouco mais grotesco: um pintainho que tem a experiência de
receber todos os dias comida quando o avicultor passa pela capoeira,
tirará a conclusão de que há uma relação entre a passagem do avicultor
pela capoeira e a comida no comedouro.
- Mas um dia o pintainho não é alimentado, pois não?
- Um dia, o avicultor passa pela capoeira e torce-lhe o
pescoço.
- Que horror!
- O facto de as coisas se seguirem umas às outras no tempo não
significa necessariamente que exista um nexo causal. Impedir os homens
de tirar conclusões precipitadas é uma das tarefas mais
p. 247
importantes da filosofia.
Além disso, conclusões precipitadas podem levar a muitas formas
de superstição.
- Como assim?
- Vês um gato preto andar pela rua. Um pouco mais tarde nesse
dia tropeças e partes um braço. Mas isso não significa que haja um nexo
causal entre os dois acontecimentos. Em contextos científicos também é
importante não se tirar conclusões muito rápidas. Apesar de muitas
pessoas ficarem sãs depois de terem tomado um determinado remédio, isso
não significa que o remédio as curou. Por isso, precisamos de um grande
grupo de controlo de pessoas que acreditam receber o mesmo remédio
quando na realidade recebem farinha com água. Se estas pessoas são
curadas, tem de haver um terceiro factor que as cura - por exemplo, a
confiança na eficácia deste remédio.
- Acho que começo a perceber o que é o empirismo.
- Em relação à ética e à moral, Hume também se opôs ao
pensamento racionalista. Os racionalistas achavam que era inerente à
razão humana a distinção entre o justo e o injusto. Esta concepção do
direito natural apareceu-nos em muitos filósofos de Sócrates a Locke.
Mas Hume não acredita que seja a razão a determinar aquilo que dizemos e
fazemos.
- Então é o quê?
- Os nossos "sentimentos".
Quando decides ajudar um necessitado, são os teus sentimentos
que te levam a isso, não a tua razão.
- E se eu não tiver vontade nenhuma de ajudar?
- Também nesse caso tudo depende dos teus sentimentos.
Não ajudar um necessitado não é racional nem irracional, mas
pode ser maldoso.
- Mas tem de haver um limite algures. Toda a gente "sabe" que
não é correcto matar uma pessoa.
- Segundo Hume, todos os homens têm sensibilidade para o bem
-estar dos outros. Temos portanto uma capacidade de compaixão. Mas nada
disso tem a ver com razão.
- Não sei se estou de acordo.
- Nem sempre é assim tão irracional assassinar uma pessoa,
Sofia. Quando se quer atingir alguma coisa, pode até ser uma grande
ajuda.
- Isso é demais! Eu discordo!
- Nesse caso, podes tentar explicar-me porque é que não se deve
matar uma pessoa importuna.
- A outra pessoa também ama a vida. Por isso não a podes matar.
- Isso é uma demonstração lógica?
p. 248
- Não faço ideia.
- O que tu fizeste foi, de uma "frase descritiva" - "a outra
pessoa também ama a vida" deduzir uma "frase normativa" - "por isso não
a podes matar". Do ponto de vista puramente lógico, isso é um absurdo.
Poderias da mesma forma deduzir, do facto de muitas pessoas fugirem aos
impostos, que tu também devias fazer o mesmo. Hume explicou que nunca se
pode deduzir "proposições de dever" de "proposições de realidade".
Contudo, isso sucede com muita frequência - inclusivamente em artigos de
jornais, programas de partidos e discursos no parlamento.
Queres que dê alguns exemplos?
- Sim.
- " Cada vez mais pessoas preferem viajar de avião. Por isso, é
preciso construir mais aeródromos." Achas este argumento convincente?
- Não, isso é um disparate. Temos que pensar também no ambiente.
Eu acho que devíamos antes construir novas vias férreas.
- Ou então, diz-se: "a ampliação dos campos petrolíferos
aumentará o nível de vida do país em dez por cento. Por isso, temos que
explorar o mais depressa possível novos campos petrolíferos".
- Que absurdo! Nesse caso, também temos que pensar no ambiente.
Além disso, o nível de vida na Noruega já é suficientemente elevado.
- Por vezes, diz-se também: "Esta lei foi deliberada pelo
parlamento, e por isso todos os cidadãos do país têm que agir de acordo
com ela." Mas muitas vezes, seguir essas leis vai contra as convicções
mais profundas de um povo.
- Compreendo.
- Verificámos portanto que não podemos provar com a nossa razão
o modo como devemos proceder. Um comportamento consciente da
responsabilidade não significa que temos de apurar a nossa razão, mas
que temos de apurar os nossos sentimentos pelo bem-estar dos outros.
Para Hume, não era irracional preferir a destruição de todo o mundo a
uma arranhadela no dedo.
- Que afirmação horrível!
- É ainda mais horrível se baralhares as cartas. Sabes que os
nazis assassinaram milhões de judeus. O que é que dirias que não estava
certo nestes homens, a razão ou os sentimentos?
- Antes de mais, alguma coisa estava errada com os seus
sentimentos.
- Muitos deles tinham uma ideia muito clara do que estavam a
fazer. Por detrás das resoluções sem sentimentos pode justamente
p. 249
ocultar-se um calculismo extremamente frio. Depois da guerra, muitos
nazis foram condenados, mas não por terem sido irracionais. Foram
condenados pela sua crueldade.
Sucede também que pessoas que não sabem bem o que estão a fazer
são absolvidas apesar do seu crime. Dizemos que "não estão em plena
posse das faculdades mentais no momento do crime" ou "não estão em plena
posse das faculdades por tempo ilimitado". Mas ainda ninguém foi
absolvido por falta de sentimentos.
- Pois não, era melhor!
- Mas não precisamos sequer de recorrer aos exemplos mais
grotescos. Quando, após uma cheia, muitos homens precisam de ajuda, são
os nossos sentimentos que decidem se intervimos. Se nós fôssemos
insensíveis e deixássemos esta decisão à "razão fria", talvez
reflectíssemos que é bom se alguns milhões de homens morressem, num
mundo que sofre já de excesso demográfico.
- Fico furiosa com o facto de alguém poder pensar assim.
- E nesse caso não é a tua razão que fica furiosa.
- Obrigada, já chega.
p. 250
Berkeley
"... como um planeta que gira vertiginosamente à volta de um sol
incandescente..."
Alberto pôs-se à janela que dava para a cidade e Sofia foi ter
com ele. Passado um pouco viram um pequeno avião a hélice aparecer por
cima dos telhados. Uma longa faixa estava presa ao avião.
Sofia esperava publicidade a um grande concerto ou uma coisa do
género na faixa que esvoaçava ao vento como uma grande cauda atrás do
avião. Mas quando este se aproximou, ela viu que o que estava escrito
era completamente diferente: "P AR ABÉ N S PEL O TEU A NIVER SÁRI O, HIL
DE!"
- Importuno - foi o único comentário de Alberto.
Nuvens escuras revolviam-se nas colinas a sul em direcção à
cidade. O pequeno avião desapareceu numa destas nuvens pesadas.
- Receio que haja um temporal - afirmou Alberto.
- Nesse caso, eu vou de autocarro para casa.
- Se ao menos o major não estivesse por detrás do temporal!
- Mas ele não é omnipotente, pois não?
Alberto não deu resposta. Voltou para junto da mesa e sentou-se
na cadeira.
- Temos que falar ainda um pouco de Berkeley - disse ele.
Sofia já voltara a sentar-se. Deu-se então conta de que tinha
começado a roer as unhas.
- "George Berkeley" era um bispo irlandês que viveu entre 1685 e
1753 - começou
Alberto, e em seguida calou-se por muito tempo.
- Berkeley era um bispo irlandês... - Sofia retomou o fio.
- Mas também era filósofo...
- Sim?
- Ele acreditava que a filosofia e a ciência do seu tempo
constituíam uma ameaça para a concepção cristã do mundo. Além disso, via
o materialismo, cada vez mais difundido, como uma ameaça à crença cristã
de que Deus cria e mantém vivas todas as coisas na natureza. :,
p. 251
- Sim?
- Ao mesmo tempo Berkeley era um dos empiristas mais coerentes.
- Ele achava que não podemos saber mais acerca do mundo do que o
que sentimos?
- Não apenas isso. Berkeley achava que as coisas no mundo são
exactamente como nós as sentimos mas não são "coisas".
- Tens de explicar isso melhor.
- Ainda te lembras que Locke tinha apontado para o facto de nós
não podermos dizer nada sobre as "qualidades secundárias" das coisas.
Não podemos afirmar que uma maçã é verde e ácida. Somos "nós" que
sentimos essa maçã desse modo. Mas Locke dissera também que as
"qualidades primárias" - como solidez, peso e gravidade - pertencem de
facto à realidade exterior à nossa volta. Esta realidade exterior tem
portanto uma "substância" física.
- Eu continuo a ter uma memória boa. E pensava que Locke tinha
apontado uma diferença importante.
- Ah, Sofia, se fosse só isso!
- Continua!
- Para Locke - como para
Descartes e Espinosa - o mundo físico era uma realidade.
- Sim?
- E é precisamente isso que Berkeley põe em dúvida e para isso
ele recorre a um empirismo consequente. Ele afirma que a única coisa que
existe é o que nós sentimos. Mas não sentimos "matéria" ou "substância".
Não sentimos as coisas como "coisas" palpáveis. Quando pressupomos que
aquilo que sentimos tem uma "substância" subjacente, estamos a tirar
conclusões precipitadas. Não temos nenhuma prova empírica para essa
afirmação.
- Que disparate! Observa isto.
Sofia bateu com o punho na mesa.
- Au! - exclamou, tal foi a força com que bateu - Isto não é uma
prova de que a mesa é uma mesa verdadeira e é matéria ou substância?
- O que é que sentiste?
- Uma coisa dura.
- Tiveste uma clara percepção sensível de uma coisa dura, mas
não sentiste a verdadeira "matéria" da mesa. Da mesma forma, podes
sonhar que bates em algo duro, mas no teu sonho não há nada duro, pois
não?
- No sonho não. :,
p. 252
- Além disso uma pessoa pode ser persuadida de que "sente" todas
as coisas. Uma pessoa pode ser hipnotizada e sentir calor e frio,
carícias suaves e socos duros.
- Mas se não era a mesa que era dura, o que me levou a senti
-la?
- Segundo Berkeley, é a "vontade" ou "espírito". Ele também
achava que todas as nossas ideias têm uma causa exterior à nossa
consciência, mas que esta causa não é de natureza material. Ela é,
segundo Berkeley, espiritual.
Sofia voltou a roer as unhas. Alberto prosseguiu.
- Segundo Berkeley, a minha alma pode ser causa dos meus
pensamentos - como quando sonho -, mas só uma outra vontade ou espírito
pode ser causa das ideias que constituem o nosso mundo material. Tudo
vem do espírito, "que realiza tudo em tudo e através do qual tudo
subsiste", afirma ele.
- E que espírito é esse?
- Berkeley está naturalmente a pensar em Deus. Ele achava que
nós poderíamos afirmar que sentimos a existência de Deus mais claramente
do que a de qualquer homem.
- Mas não é óbvio que existimos?
- Bom... tudo o que vemos e sentimos é, segundo Berkeley, um
efeito do poder de
Deus. É que Deus está intimamente presente na nossa consciência
e provoca nela toda a multiplicidade de ideias e sensações às quais
estamos constantemente expostos. Toda a natureza à nossa volta e toda a
nossa existência residem em Deus. É a única causa de tudo o que existe.
- Para dizer a verdade, estou espantada.
- " Ser ou não ser" não é toda a questão. A questão é também "o
que" nós somos.
Somos realmente pessoas de carne e osso? O nosso mundo é
constituído por coisas reais
- ou estamos apenas rodeados pela consciência?
Sofia começou mais uma vez a roer as unhas. Alberto prosseguiu:
- Berkeley não põe apenas a realidade material em dúvida. Ele
duvida também de que o tempo e o espaço tenham uma existência absoluta
ou autónoma. Mesmo a experiência do tempo e do espaço pode residir
apenas na nossa consciência. Uma ou duas semanas para nós não têm de ser
uma ou duas semanas para Deus...
- Disseste que para Berkeley este espírito, no qual tudo
repousa, é o Deus cristão.
- Sim, foi o que eu disse. Mas para nós...
p. 253
- Sim?
- ... para nós esta vontade ou espirito que realiza tudo pode
ser também o pai de Hilde.
Sofia emudeceu. A sua expressão parecia um grande ponto de
interrogação. E, simultaneamente, uma coisa tornou-se-lhe clara.
- Acreditas nisso? - perguntou.
- Não consigo ver nenhuma outra possibilidade. Esta é talvez a
única explicação possível para tudo o que presenciámos. Estou a pensar
nos diversos postais e notícias que surgiram nos mais diversos locais.
Estou a pensar no facto de Hermes falar de repente e estou a pensar nos
meus lapsos involuntários.
- Eu...
- A ideia de eu te ter chamado Sofia, Hilde! Eu sempre soube que
tu não te chamavas Sofia.
- O que estás a dizer? Estás a enlouquecer de vez!
- Sim, tudo gira e gira, minha filha. Como um planeta que gira
vertiginosamente à volta de um sol incandescente.
- E esse sol é o pai de Hilde?
- Podes dizer isso.
- Achas que ele se tornou uma espécie de deus para nós?
- Para ser sincero, sim. Mas devia ter vergonha!
- E quanto a Hilde?
- Ela é um anjo, Sofia.
- Um anjo?
- É a ela que se dirige este "espírito".
- Achas que Alberto Knag fala a Hilde sobre nós?
- Ou escreve sobre nós.
Nós não podemos sentir a matéria da qual a nossa realidade é
feita. Pelo menos foi o que aprendemos. Não podemos saber se a nossa
realidade exterior é constituída por ondas sonoras ou por papel e
letras.
Segundo Berkeley, só podemos saber que somos feitos de espírito.
- E Hilde é um anjo...
- É um anjo, sim. E com isto, terminámos por hoje. Parabéns,
Hilde! Uma luz azulada invadiu então a sala. Passados poucos segundos,
ouviram um trovão a ribombar, e a casa foi abalada.
Alberto estava com um olhar ausente.
- Tenho de ir para casa - disse Sofia. Levantou-se de um pulo e
correu em direcção à porta de entrada. Ao abrir violentamente a
p. 254
porta, Hermes, que dormia debaixo dos cabides, acordou.
Quando Sofia saiu, parecia dizer:
- Adeus, Hilde!
Sofia desceu as escadas precipitadamente e correu para a rua.
Aí, não se via ninguém. Entretanto chovia a cântaros.
Dois carros passaram pelo asfalto molhado, mas Sofia não
conseguia encontrar um autocarro. Correu até à praça principal e
continuou a correr pela cidade. Enquanto isso, um único pensamento se
revolvia na sua cabeça. " Amanhã faço anos", pensava ela. E não era
extremamente duro ter de reconhecer, um dia antes de fazer quinze anos,
que a vida é um sonho? Era como sonhar ter ganho um milhão e, pouco
antes de o grande prémio ser pago, compreender que tudo fora apenas um
sonho.
Sofia correu pelo campo de jogos molhado. Nessa altura viu uma
pessoa a correr na sua direcção. Era a mãe. Relâmpagos potentes rasgavam
o céu.
A mãe abraçou Sofia.
- O que se passa connosco, minha filha?
- Não sei - Sofia chorava. - É como um pesadelo.
p. 255
Bjerkely
"... um espelho mágico antigo que a bisavó comprara a uma cigana..."
Hilde Mõller Knag acordou na mansarda na antiga moradia do capitão perto
de Lillesand. Olhou para o relógio; eram apenas seis horas. Porém, já
era de dia. Uma larga faixa de sol matinal iluminava o quarto. Hilde
levantou-se e foi à janela. A caminho, inclinou-se para sua
escrivaninha e para uma folha do calendário da mesa. Quinta -feira, 14
de Junho de 1990. Amarrotou a folha e deitou-a no cesto dos papéis. "
Sexta -feira, 15 de Junho de 1990" era o que estava escrito no
calendário; o algarismo brilhava para ela. Já em Janeiro escrevera nesta
folha do calendário "15 anos". Achava que fazer quinze anos num dia
quinze fazia um efeito especial. Nunca haveria de viver isso de novo.
Quinze anos! Não era o seu primeiro dia na sua vida "adulta"?
Ela não conseguia voltar para a cama; além disso, era o último dia de
aulas antes das férias. Nesse dia os alunos só tinham de ir à igreja à
uma. E além disso, dentro de uma semana o seu pai regressaria do Líbano.
Ele prometera estar em casa para a noite de S. João. Hilde assomou à
janela e olhou para o jardim, para a pequena ponte e para o barracão
vermelho dos barcos. O barco à vela ainda não fora arranjado para a
época do Verão, mas o velho barco a remos estava amarrado à doca.
Não se podia esquecer de tirar a água, depois da forte chuvada.
Enquanto observava a pequena enseada, lembrou-se de que uma vez, com
seis ou sete anos, trepara para o barco a remos e remara sozinha no
fiorde. Em seguida, caíra à água e só a custo conseguira voltar a terra.
Arrastara-se por entre os espessos arbustos completamente molhada. Ao
chegar ao jardim em frente à casa, a mãe veio a correr. Vira o barco e
os remos flutuarem lá fora no fiorde.
p. 256
Hilde ainda sonhava por vezes com o barco, que boiava lá fora às voltas,
completamente abandonado. Tinha sido uma experiência horrível.
O jardim não era nem particularmente frondoso nem cuidado. Mas
era grande e pertencia a Hilde. Uma macieira maltratada pelas
intempéries e algumas groselheiras que já quase não produziam frutos
tinham sobrevivido às violentas tempestades do Inverno. Entre os
rochedos e o matagal estava o velho baloiço, no relvado. À brilhante luz
matinal parecia completamente abandonado. Parecia mais triste porque as
almofadas estavam em casa. A mãe de Hilde saíra precipitadamente à tarde
para as salvar do temporal. Todo aquele grande jardim estava rodeado de
bétulas.
Deste modo, ficava um pouco protegido das rajadas de vento mais
fortes. Devido a estas árvores - bjõrketreer -, o terreno recebera o
nome de Bjerkely há mais de cem anos.
O bisavô de Hilde mandara construir a casa pouco antes da
viragem do século. Ele fora capitão de um dos últimos grandes navios à
vela. Ainda hoje, muita gente chamava à casa a "moradia do capitão".
Nessa manhã, ainda se notava pelo jardim que na tarde anterior
chovera violentamente. Hilde fora acordada várias vezes por trovões. Mas
agora já não se via uma única nuvem no céu.
Após os aguaceiros estivais, o tempo ficava sempre bastante
fresco. Nas últimas semanas, o tempo estivera quente e seco, e as
bétulas tinham ficado com feias manchas amarelas na parte exterior da
folhagem. Agora, o mundo parecia lavado de fresco. Nessa manhã, toda a
sua infância parecia também ter-se extinguido com o trovão. " Claro,
dói quando os botões desabrocham..." Não fora uma poetisa sueca que
dissera uma coisa do género? Ou fora uma finlandesa? Hilde pôs-se em
frente do espelho de latão que estava pendurado sobre a velha cómoda da
avó. Era bonita? Pelo menos não era feia... Estava talvez no meio
termo... Tinha longos cabelos loiros. Hilde tinha sempre desejado ter os
cabelos mais claros ou mais escuros. Esta cor de cabelo intermédia não
tinha graça. Mas gostava dos seus caracóis suaves. Muitas das suas
amigas tratavam dos cabelos para conseguirem ondulações, mas Hilde nunca
precisara disso. Também gostava dos seus olhos verdes, de um verde
esmeralda. " São de facto verdes?", perguntavam sempre as tias e os tios
quando se inclinavam para ela. Hilde reflectiu sobre se a imagem que
estava a examinar era o reflexo de uma rapariga ou de uma jovem mulher.
Chegou à conclusão de que não era nenhuma das duas. O seu corpo já se
assemelhava
p. 257
muito ao de uma mulher; o rosto, pelo contrário, fazia lembrar uma maçã
ainda verde.
Algo no velho espelho fazia Hilde pensar no pai. Anteriormente,
tinha estado pendurado em baixo, no atelier. O atelier ficava por cima
do barracão dos barcos e servia ao pai de biblioteca, local de
inspiração para escrever e um refúgio para se isolar quando estava
irritado. Albert, como Hilde lhe chamava quando ele estava em casa,
quisera sempre escrever uma grande obra. Tentara uma vez um romance, mas
tinha-se ficado pela tentativa. Alguns poemas e descrições inspiradas
na paisagem que o rodeava tinham sido publicados regularmente no jornal
local. Hilde ficava quase tão orgulhosa como ele quando via o seu nome
impresso. Alberto Knag. Pelo menos em Lillesand, este nome tinha uma
ressonância especial. O bisavô também se chamava Albert.
O espelho, sim. Há muitos anos, o seu pai dissera na brincadeira
que talvez fosse possível piscar os olhos para si mesma no espelho, mas
com ambos os olhos isso não seria possível de todo. A única excepção era
este espelho de latão por ser um espelho mágico antigo que a bisavó
comprara a uma cigana logo a seguir ao seu casamento. Hilde tentara
durante muito tempo, mas piscar ambos os olhos para si mesma era tão
difícil como fugir da sua própria sombra. Por fim, recebera de presente
a velha peça herdada. Durante toda a sua infância, tentara esta
habilidade impossível regularmente.
Não admirava que estivesse um pouco pensativa nesse dia.
Não admirava que pensasse só em si. Quinze anos...
Só então deitou um olhar à sua mesa de cabeceira. Estava lá um
grande embrulho. Com papel de um lindíssimo azul celeste e uma fita de
seda vermelha. Devia ser um presente de aniversário!
Seria esse o "presente"?
Seria o grande PRE SE NTE do seu pai, o presente à volta do qual
fizera tanto mistério?
Nos seus postais do Líbano, ele fizera repetidamente alusões
estranhas. Mas submetera-se a si mesmo a "uma censura rigorosa". Era um
presente que crescia, escrevera ele. E depois fizera alusões a uma
rapariga que havia de conhecer em breve
- e à qual ele enviara uma cópia de cada postal. Hilde procurara
saber pela mãe o que queria ele dizer com aquilo, mas ela também não
fazia ideia.
O mais estranho de tudo tinha sido a indicação de que o presente
podia talvez ser partilhado com outras pessoas.
Não era por acaso que trabalhava na O NU: se o pai de Hilde
tinha uma ideia fixa - e ele tinha muitas -, então era a de que a O NU
devia assumir a seu cargo
p. 258
uma espécie de responsabilidade governativa em todo o mundo. "Possa
a O NU um dia aproximar de facto a humanidade". escrevera ele num
postal. Poderia ela abrir o embrulho antes de a mãe subir com pão de
passas e limonada, a canção dos parabéns e a bandeira norueguesa? Podia,
certamente, por isso é que estava ali. Hilde atravessou o quarto de
mansinho e levantou o embrulho da mesa de cabeceira. Era pesado! Tinha
um cartão: "Para Hilde, do pai, pelos seus quinze anos." Ela sentou-se
na cama e desfez com cuidado o nó da fita de seda vermelha. Em seguida,
já podia remover o papel. Era um grande "dossier". Era este o presente?
Era este o presente para o seu aniversário do qual se falara tanto? Era
este o presente que crescera e que além disso podia ser partilhado com
outros? Um olhar rápido mostrou que o "dossier" estava cheio de folhas
escritas à máquina. Hilde reconheceu o tipo de letra da máquina de
escrever que o seu pai levara consigo para o Líbano. Teria ele escrito
um livro para ela?
Na primeira folha estava escrito à mão, em maiúsculas:
O MU N D O DE S OFI A Um pouco mais abaixo lia-se, em letra de
máquina:
A QUIL O QUE A LUZ D O S OL É P AR A A TERR A FÉRTIL É O VER D A
DEIR O S ABER P AR A O S AMIG O S D A TERR A
N. F. S. Grundtvig
Hilde folheou o "dossier".
No cimo da página seguinte começava o primeiro capítulo.
O título dizia: " O jardim do Éden". Sentou-se comodamente na
cama, apoiou o "dossier" nos joelhos e começou a ler:
Sofia Amundsen regressava da escola. Percorrera com Jorunn o
primeiro troço do caminho. Tinham conversado sobre robôs. Para Jorunn, o
cérebro humano era um computador complexo. Sofia não estava de acordo.
Um homem deveria ser algo mais do que uma máquina.
Hilde continuou a ler, e pouco depois esqueceu-se de todas as outras
coisas; esqueceu-se inclusivamente de que fazia anos. De vez em quando,
uma ideia ainda conseguia introduzir-se entre as linhas:
p. 259
Teria o pai escrito um romance? Teria retomado a tentativa de
escrever o grande romance e queria terminá-lo no Líbano? Tinha-se
queixado tanto de que o tempo demorava a passar.
Sofia também viajava na história universal. Era com certeza a
rapariga que Hilde devia conhecer...
Só quando se apercebia que um dia teria desaparecido,
compreendia claramente que a vida era infinitamente valiosa... De onde
vem o mundo?...
Afinal, alguma coisa teria de ter surgido do nada a certa
altura. Mas seria isso possível? Este pensamento não seria tão
impossível como o de o mundo ter sempre existido?
Hilde continuou a ler, e sentiu-se surpresa ao saber que Sofia Amundsen
recebera um postal do Líbano. "Hilde Mõller Knag, a/c Sofia
Amundsen. Klõverveien 3..."
Querida Hilde! Parabéns pelos teus 15 anos! Como compreendes,
quero dar-te um presente, que te ajudará a crescer. Peço desculpa por
mandar o postal pela Sofia. Era mais fácil deste modo.
Saudades, do pai
Este malvado! Hilde sempre achara o seu pai um maroto, mas nesse dia
surpreendeu-a completamente. Em vez de colocar o postal no embrulho,
escrevera-o no próprio presente. Pobre Sofia! Estava totalmente
perplexa.
Porque é que um pai enviaria um postal de aniversário para a morada de
Sofia, se era óbvio que devia ser enviado para outro local? Que tipo de
pai enviaria um postal de aniversário para o endereço errado, impedindo
que a filha o recebesse? Como é que poderia ser "mais fácil" deste modo?
E sobretudo, como poderia ela encontrar Hilde?
Não, como é que Sofia havia de conseguir? Hilde virou a folha e
começou a ler o segundo capítulo. Chamava-se " A cartola". Pouco
depois, chegou a uma longa carta que essa pessoa misteriosa escrevera a
Sofia. Hilde reteve a respiração.
Interessarmo-nos pela razão da nossa existência não é um interesse
ocasional, como o interesse em coleccionar selos. Quem se interessa por
p. 260
tais problemas, preocupa-se com tudo aquilo que os homens discutem desde
que apareceram neste planeta...
" Sofia estava exausta". Hilde também. O pai não lhe escrevera apenas um
livro para o aniversário; ele escrevera um livro muito estranho e
misterioso. Breve sumário: um coelho branco é retirado de uma cartola
vazia. Dado que é um coelho muito grande, este truque leva muitos
biliões de anos.
Na extremidade dos pêlos finos nascem todas as crianças humanas.
Por isso, podem admirar-se com a inacreditável arte da magia. Mas à
medida que envelhecem, deslizam cada vez mais para a pele do coelho. E
permanecem ali...
Não era só Sofia a ter a sensação de ter estado à procura de um
lugar para si muito em baixo na pelagem do coelho branco. Nesse dia,
Hilde fazia quinze anos. Também ela tinha a sensação de ter de se
decidir quanto à orientação a seguir. Leu acerca dos filósofos da
natureza gregos. Hilde sabia que o pai se interessava por filosofia.
Escrevera no jornal que a filosofia tinha de ser introduzida como
disciplina escolar. "Porquê inserir a filosofia nos programas
escolares?", era o título do artigo. O pai até levara o tema à discussão
na reunião dos pais e professores da turma de Hilde. Para Hilde, isso
fora extremamente embaraçoso.
Olhou então para o relógio. Já eram sete e meia. Mas a mãe só
subiria daí a uma hora com o pequeno-almoço. Felizmente, porque Hilde
estava completamente concentrada em
Sofia e nas questões filosóficas. Leu o capítulo sobre
Demócrito. Primeiro, Sofia tinha de reflectir acerca de uma
questão: "Porque é que as peças do Lego são o brinquedo mais genial do
mundo?". Em seguida, encontrou "um grande envelope amarelo" na caixa do
correio.
Demócrito concordava com os seus predecessores ao afirmar que as
transformações observáveis na natureza não significavam que algo se
alterasse realmente. Admitiu, portanto, que tudo tinha de ser composto
de elementos pequenos e invisíveis, eternos e imutáveis.
Demócrito designava estas pequenas partículas por átomos.
Hilde inquietou-se quando
Sofia encontrou o seu lenço de seda vermelho debaixo da cama.
Então era ali que fora parar? Mas como é que um lenço podia cair numa
história? Tinha de estar noutro lugar...
p. 261
O capítulo sobre Sócrates começava com Sofia a ler num jornal
"algumas linhas sobre o contingente norueguês da
O NU no Líbano". Típico do pai! Ele tinha muita pena que as
pessoas na Noruega se interessassem tão pouco pelo trabalho dos soldados
da
O NU de conservar a paz. E se mais ninguém se preocupava com
isso, pelo menos Sofia devia fazê-lo. Deste modo, era possível atrair a
si uma certa atenção dos "media". Hilde não pôde deixar de sorrir quando
leu na carta do professor de filosofia endereçada a Sofia um "P S2".
P S2. Se encontrares um lenço de seda, quero pedir-te que o conserves
cuidadosamente. Acontece, por vezes, que os objectos são trocados,
sobretudo na escola e em locais semelhantes, e esta é na verdade uma
escola de filosofia.
Hilde ouviu passos na escada. Devia ser a mãe com o pequeno-almoço do
dia de anos.
Antes de ela bater à porta, Hilde leu ainda que Sofia tinha
encontrado um vídeo de
Alberto no seu esconderijo no jardim.
- Parabéns a você, nesta data querida...
A mãe começara a cantar nas escadas.
- Muitas felicidades...
- Entra! - disse Hilde. Estava a ler sobre o professor de
filosofia que falava a
Sofia directamente da Acrópole. Ele era fisicamente muito
parecido com o pai de Hilde - com uma "barba negra bem tratada" e uma
bóina azul.
- Parabéns, Hilde!
- Mmm...
- Hilde?
- Deixa-o aí.
- Não queres...
- Não vês que estou ocupada?
- Pensa que já tens quinze anos!
- Já estiveste em Atenas, mamã?
- Não, porquê?
- É bastante estranho que os templos antigos ainda estejam de
pé. Têm dois mil e quinhentos anos. O maior chama-se "Parténon".
- Abriste o embrulho do pai?
- Que embrulho?
- Olha para mim, Hilde! Estás completamente nas nuvens! Hilde
deixou cair o grande "dossier" nos joelhos.
p. 262
A mãe inclinou-se para a cama. No tabuleiro havia velas,
sanduíches e sumo de laranja. Havia também um pacote. Mas a mãe só tinha
duas mãos e por isso tinha entalado a bandeira norueguesa debaixo do
braço.
- Muito obrigada, mamã. É muito amável da tua parte, mas não
tenho mesmo tempo.
- Só tens de estar na igreja à uma. Hilde só nesse momento se
apercebeu onde estava. A mãe pôs o tabuleiro na mesa de cabeceira.
- Desculpa. Estava tão concentrada nisto... Hilde mostrou o
"dossier" e prosseguiu:
- Isto é do pai...
- Mas o que é que ele escreveu, Hilde? Estou tão curiosa como
tu. Há meses que não se lhe ouve uma palavra sensata. Por algum motivo,
Hilde sentiu-se subitamente embaraçada.
- Ah, é apenas uma história.
- Uma história?
- Sim, uma história. E também um livro de filosofia, mais ou
menos.
- Não queres abrir o meu pacote? Hilde achava que não podia
fazer distinção entre os presentes e por isso abriu também o da mãe. Era
uma pulseira de ouro.
- Que bonita! Muito obrigada! Hilde deu um beijo à mãe.
Conversaram um pouco.
- Agora tens de ir embora
- disse Hilde depois. - Ele está mesmo no cimo da
Acrópole, percebes?
- Quem?
- Bom, não faço ideia, e a
Sofia também não. O problema é esse.
- Eu tenho de ir para o escritório. Tens de comer qualquer
coisa. O teu vestido está lá em baixo. Por fim, a mãe foi-se embora. E
o professor de filosofia de Sofia fez o mesmo; desceu as escadas da
Acrópole e subiu para a elevação do
Areópago, para aparecer pouco depois na antiga ágora de
Atenas. Hilde sobressaltou-se ao ler que os antigos edifícios
se elevavam subitamente das ruínas. O pai tinha a ideia fixa de que
todos os países da O NU deviam fazer em conjunto uma cópia fiel da
antiga ágora de Atenas. Aí se poderia trabalhar em questões filosóficas
e hipóteses de desarmamento. Um projecto gigantesco desses havia de unir
a humanidade, segundo ele.
p. 263
Em seguida leu sobre Platão. " A alma deseja voar nas asas do amor de
'volta' ao mundo das ideias. Deseja ser libertada da 'prisão do
corpo...'"
Sofia tinha passado através da sebe e seguira Hermes, mas
perdera-o de vista depois.
Após ter lido sobre Platão, caminhou pelo bosque e chegou a uma
cabana vermelha junto a um pequeno lago. Havia ali uma fotografia de
Bjerkely. Pela descrição, era evidente que tinha de se tratar de
Bjerkely de Hilde. E ali estava também um retrato de um homem chamado
Berkeley. "Berkeley e Bjerkely... Não era estranho?" Hilde pousou o
volumoso "dossier" na cama, foi à estante e consultou a enciclopédia em
três volumes que recebera de presente quando fizera catorze anos.
Berkeley... lá estava!
Berkeley, George, 1685 -1753, filósofo anglo -saxónico, bispo de Cloyne.
Nega a existência de um mundo material exterior à consciência humana. As
nossas percepções sensoriais provêm de Deus. B. é também famoso pela sua
crítica às ideias universais abstractas. Obra principal: " A Treatise
Concerning the Principles of Human Knowledge" - Tratado Sobre os
Princípios do Conhecimento Humano (1710).
Sim, era estranho. Hilde ficou alguns segundos parada e
pensativa, antes de voltar à cama e ao "dossier". Teria sido o pai a
pendurar aqueles dois quadros? Poderia haver uma outra relação além da
semelhança entre os nomes? Berkeley era um filósofo que negara a
existência de um mundo material exterior à consciência humana. Era
possível fazer-se muitas afirmações estranhas, mas nem sempre era fácil
invalidar essas afirmações. Essa descrição prestava-se ao mundo de
Sofia. As suas "sensações" eram provocadas pelo pai de Hilde. Mas
saberia mais se continuasse a ler. Hilde levantou os olhos do "dossier"
e riu-se ao ler que Sofia vira o reflexo de uma rapariga no espelho que
piscava os dois olhos. " A rapariga do espelho parecia piscar os olhos
para Sofia. Parecia querer dizer: eu estou a ver-te, Sofia. Estou aqui
do outro lado." Lá, encontrou também a carteira verde - com dinheiro e o
resto! Como teria ido lá parar?
Que disparate! Por um ou dois segundos, Hilde acreditara que
Sofia tinha encontrado de facto a carteira. Mas mesmo depois, tentou
compreender como tudo acontecia do ponto de vista de Sofia.
Devia ser muito insondável e misterioso. :,
p. 264
Pela primeira vez, Hilde sentiu um forte desejo de conhecer Sofia
pessoalmente. Gostaria de discutir com ela a relação entre todas as
coisas. Mas agora, Sofia tinha de sair da cabana se não queria ser
surpreendida em flagrante. Era óbvio que o barco andava à deriva no
lago. Ele não resistira a referir a velha história do barco. Hilde bebeu
um gole de sumo e trincou uma sanduíche com salada de maionese e camarão
enquanto lia sobre Aristóteles, que criticara a teoria das ideias de
Platão.
Aristóteles aponta para o facto de que nada existe na
consciência que não tenha existido primeiro nos sentidos. Platão poderia
ter dito que não há nada na natureza que não tenha existido primeiro no
mundo das ideias. Desta forma, Platão duplicou o número de coisas,
segundo Aristóteles.
Hilde não sabia que fora
Aristóteles a inventar o jogo do "reino vegetal, reino animal,
reino mineral".
Aristóteles queria fazer uma arrumação profunda no quarto da
natureza. Procurou provar que todas as coisas na natureza pertencem a
diversos grupos e subgrupos.
Ao ler a concepção de
Aristóteles sobre a mulher, ficou simultaneamente admirada e
irritada. Como é que alguém pode ser um filósofo tão competente e ao
mesmo tempo um ignorante!
Sofia deixara-se inspirar por Aristóteles ao arrumar o seu
próprio quarto. E aí, no meio do caos completo, encontrou a meia branca
que desaparecera há um mês do armário de Hilde. Sofia reunira todas as
folhas que Alberto lhe escrevera num "dossier". " Agora já tem mais de
cinqüenta páginas". Hilde, por seu lado, já tinha chegado à página cento
e setenta e oito, porque ainda tinha de ler, além das cartas filosóficas
de Alberto Knox, toda a história de Sofia.
O capítulo seguinte chamava-se " O Helenismo". Nesse capítulo,
Sofia encontrava um postal com a fotografia de um jipe da O NU. O postal
tinha o carimbo do contingente da O NU do dia 15 de Junho. Mais um
"postal" dirigido a Hilde que o pai integrara no "dossier" em vez de o
enviar pelo correio.
" Querida Hilde: imagino que deves estar a festejar o teu aniversário.
Ou já passa um dia? De qualquer modo, não faz diferença para o teu
p. 265
presente; desfrutarás dele durante toda a tua vida. Dou-te os parabéns
mais uma vez. Talvez compreendas agora porque é que mando o postal para
a Sofia. Tenho a certeza de que ela to dará. P S. A mãe contou-me que
perdeste a carteira. Prometo reembolsar-te das 150 coroas. Receberás
certamente um novo cartão de estudante na escola antes que ela feche
para o Verão.
Um abraço do pai"
Nada mau, pensou Hilde, com isso tinha ficado com mais cento e
cinqüenta coroas. Ele achava com certeza que um presente de fabrico
caseiro não era suficiente.
Descobriu que o dia 15 de Junho era também o dia de aniversário
de Sofia. Mas o calendário de Sofia ainda estava na primeira metade de
Maio. Nessa altura, o pai de Hilde devia ter acabado de escrever esse
capítulo e dera uma data posterior ao "postal de aniversário" para
Hilde. Entretanto, a pobre Sofia corria para o supermercado, onde Jorunn
esperava por ela.
Quem era Hilde? Como é que o pai dela achava evidente que Sofia
a encontraria? Não fazia sentido nenhum que ele lhe enviasse os postais
em vez de os enviar directamente à filha...
Também Hilde se sentira suspensa no ar enquanto estava a ler acerca de
Plotino.
Em tudo o que vemos há algo do mistério divino. Vemos que ele cintila
num girassol ou numa papoila. Temos uma ideia mais clara desse mistério
impenetrável numa borboleta que levanta voo de um ramo - ou num peixe
dourado que nada no seu aquário. Mas estamos mais próximos de Deus na
nossa própria alma. Só aí podemos unir-nos ao grande mistério da vida.
Em momentos raros podemos sentir que nós mesmos somos esse mistério
divino.
Até então, isto era do mais vertiginoso que ela tinha lido. Mas
era ao mesmo tempo o mais fácil. Tudo é uno, e este "uno" é um mistério
divino no qual todos participam.
Não era nada que fosse difícil de acreditar. É assim, pensava
Hilde. E depois, cada um pode acrescentar a palavra "divino", ou o que
lhe agradar.
p. 266
Folheou rapidamente o "dossier" para chegar ao capítulo seguinte. Sofia
e Jorunn queriam ir acampar na noite de 17 de Maio. E depois foram para
a cabana do major... Hilde ainda não lera muitas páginas quando saltou
da cama agitada e deu alguns passos pelo quarto com o "dossier" nos
braços. Raramente vira um truque tão descarado como aquele! Na pequena
cabana do bosque o pai fez com que ambas as raparigas encontrassem
cópias de todos os postais que enviara a Hilde na primeira metade de
Maio. E as cópias eram autênticas. Hilde tinha lido várias vezes todos
os postais do pai. Reconheceu cada palavra:
" Querida Hilde! Estou quase a rebentar com todos os segredos que têm a
ver com o teu aniversário, e várias vezes por dia tenho de me conter
para não telefonar e contar tudo. É uma coisa que não pára de crescer. E
tu sabes que quanto mais uma coisa cresce mais difícil é guardá-la para
nós..."
Sofia recebeu uma nova lição de Alberto. Tratava de Judeus e
Gregos e das duas grandes culturas. Hilde ficou contente com esta ampla
panorâmica da história. Na escola, nunca tinham aprendido nada assim.
Eram só pormenores e mais pormenores. Quando acabou de ler a carta, o
pai transmitira-lhe uma perspectiva completamente nova de Jesus e do
Cristianismo. Gostou da citação de Goethe: " Quem não sabe prestar
contas de três milénios, permanece nas trevas ignorante, vive apenas o
dia que passa."
O capítulo seguinte começava com um bocado de cartão que ficara
colado na janela da cozinha de Sofia. Era obviamente mais uma
felicitação para Hilde.
" Querida Hilde! Não sei se ainda estarás a festejar o teu aniversário
quando leres este postal. Por um lado, espero que sim, de qualquer modo
tenho esperança que ainda não tenham passado muitos dias.
Que passem uma ou duas semanas para Sofia não significa que
suceda o mesmo connosco. Eu regresso a casa na noite de S. João. Nessa
altura, ficaremos sentados no baloiço e poderemos olhar juntos para o
mar, Hilde. Temos muito para conversar..."
Em seguida, Alberto telefona a Sofia e ela ouve a sua voz pela primeira
vez.
"Falas como se se tratasse de uma espécie de guerra." "Eu diria que é
uma guerra espiritual. Temos de tentar chamar a atenção de Hilde e trazê
-la para o nosso lado, antes que o seu pai regresse a Lillesand."
p. 267
E depois, Sofia encontra-se com Alberto Knox disfarçado de monge da
Idade Média numa antiga igreja de pedra do século XII.
Numa igreja, sim. Hilde olhou para o relógio. Um quarto para a
uma. Tinha-se esquecido completamente do tempo. Talvez não fosse tão
grave faltar à escola no seu dia de anos, mas havia uma coisa que a
enervava nesse aniversário.
Os colegas não festejariam com ela. Bom, no fundo não houvera
falta de felicitações. Em seguida, Hilde teve de ouvir um longo sermão.
Alberto não parecia ter grandes problemas em pisar o púlpito. Ao
ler sobre Sophia, que se mostrara a Hildegard em visões, teve de
recorrer novamente à enciclopédia. Mas não encontrou nem Hildegard nem
Sophia. Era típico.
Quando se tratava de mulheres ou de alguma coisa relativa a
mulheres, a enciclopédia era tão omissa como uma cratera da Lua. Haveria
uma comissão de homens a censurar as enciclopédias? Hildegard von Bingen
tinha sido pregadora, escritora, médica, botânica e cientista. E além
disso era um "exemplo de que na Idade Média as mulheres eram
frequentemente mais práticas - e mesmo mais científicas - que os
homens". Mas na enciclopédia não havia uma única sílaba sobre ela.
Que vergonha! Hilde nunca ouvira dizer que Deus também tinha "um
lado feminino", ou uma "natureza maternal". E esse lado chamava-se
Sophia - mas também não valia um grama de tinta para os autores da
enciclopédia.
O mais próximo que encontrou foi a igreja Hagia
Sophia em Constantinopla. "Hagia Sophia" queria dizer "santa
sabedoria". Uma capital e inúmeras rainhas eram conhecidas por esta
"sabedoria", mas na enciclopédia não vinha nada a dizer que tal
sabedoria fosse feminina. Se aquilo não era censura... Hilde continuou a
ler e achou que Sofia lhe "aparecia" de facto. Achava poder ver à sua
frente a rapariga de cabelos negros...
Quando Sofia chegou a casa, depois de ter passado quase toda a
noite na igreja de Santa Maria, pôs-se em frente do espelho de latão
que trouxera da cabana no bosque.
Em contornos nítidos, via o seu rosto pálido, que os cabelos negros
emolduravam, cabelos que apenas serviam para fazer o penteado "cabelos
lisos" naturais. Mas por baixo ou por detrás deste rosto aparecia o
rosto de uma outra pessoa.
De repente, a rapariga estranha do espelho piscou energicamente
os olhos. Parecia querer avisar que estava, de facto, do outro lado do
espelho. Poucos segundos depois, desapareceu.
p. 268
Quantas vezes Hilde já tinha estado em frente ao espelho como se
procurasse a imagem de outra? Mas como é que o pai podia saber isso? Não
procurara com os olhos uma rapariga de cabelos negros? A sua bisavó
tinha comprado o espelho a uma cigana... Hilde sentiu que as suas mãos
tremiam ao segurar no volumoso "dossier". Estava convencida de que Sofia
existia de facto algures "no outro lado".
Depois, Sofia sonhava com Hilde e Bjerkely. Hilde não a
conseguia ver nem ouvir, mas em seguida Sofia encontrou na doca o
crucifixo de ouro de Hilde. E este crucifixo, com as iniciais de Hilde -
estava na cama de Sofia quando ela acordou do sonho. Hilde tinha que
reflectir.
Não podia ter perdido também o seu crucifixo de ouro. Foi à
cómoda e tirou a sua caixa de jóias. O crucifixo de ouro
- que a avó lhe dera de presente pelo seu baptizado - tinha
desaparecido! Então tinha mesmo perdido a jóia! Bom! Mas como é que o
pai podia saber se nem ela reparara nisso? E mais: Sofia tinha sonhado
que o pai de Hilde regressara do Líbano. Mas até lá faltava uma semana
inteira. Teria Sofia tido um sonho profético? Pensava o pai que, quando
chegasse a casa, Sofia também estaria presente? Ele tinha escrito uma
coisa a respeito de ela encontrar uma nova amiga...
Numa visão clara mas também extremamente breve, Hilde teve a
convicção de que Sofia era mais do que papel e tinta. Ela "existia"!
p. 269
O Iluminismo
"... desde a produção de agulhas até à fundição de canhões..."
Hilde começara com o capítulo sobre o Renascimento, mas ouviu então a
mãe entrar em casa. Olhou para o relógio. Eram quatro horas.
A mãe subiu as escadas precipitadamente e abriu a porta com
violência.
- Não estiveste na igreja?
- Sim, claro.
- Mas... o que é que tinhas vestido?
- O mesmo que agora.
- A tua camisa de noite?
- Mmm... eu estive na igreja de Santa Maria.
- Na igreja de Santa Maria?
- É uma igreja medieval de pedra.
- Hilde! Hilde deixou cair o "dossier" nos joelhos e levantou os
olhos para a mãe.
- Eu esqueci-me totalmente do tempo, mamã. Desculpa, mas vê se
compreendes, estou a ler uma coisa empolgante.
A mãe não pôde deixar de sorrir.
- Isto é um livro mágico
- acrescentou Hilde.
- Está bem, pronto. E mais uma vez: parabéns, Hilde!
- Não sei se consigo suportar mais felicitações.
- Mas eu não... Olha, vou só descansar um bocadinho e depois
faço um jantar óptimo.
Comprei morangos.
- E eu vou continuar a ler.
A mãe desapareceu novamente, e Hilde continuou a ler.
Sofia passeava com Hermes pela cidade. No vão da escada de
Alberto encontrou novamente um postal do Líbano. Também tinha o carimbo
de 15 de Junho.
Só então compreendeu o sistema de todas as datas: os postais que
eram datados de antes de 15 de Junho eram "cópias" de postais que
p. 270
Hilde já recebera. Os que eram datados de 15 de Junho só os recebia
pelo "dossier".
" Querida Hilde: Agora, Sofia está a entrar na casa do professor
de filosofia. Em breve fará quinze anos, enquanto o teu aniversário já
foi ontem. Ou será hoje, Hilde? Se for hoje, já deve ser muito tarde.
Mas os nossos relógios nem sempre andam a par..."
Hilde leu o que Alberto contara a Sofia acerca do Renascimento e da nova
ciência, sobre os racionalistas do século xvii e o empirismo britânico.
Sobressaltou-se várias vezes quando chegavam novos postais e
felicitações que o pai incluíra na história. Fizera-as cair de um
livro, fizera-as surgir no interior da casca de uma banana, e fizera
inclusivamente com que se introduzissem num computador.
Sem o mínimo esforço, conseguia levar Alberto a "ter lapsos" e a
chamar Hilde a
Sofia. Mas o cúmulo de tudo era ter posto Hermes a dizer:
"Parabéns, Hilde!". Hilde estava de acordo com
Alberto em que o pai estava a ir um pouco longe demais ao
comparar-se com Deus e com a providência divina. Mas com quem é que ela
estava de acordo? O pai colocara estas palavras repreensivas - ou
autocríticas - na boca de Alberto! Ela reconheceu que a comparação com
Deus talvez não fosse tão estúpida. O pai era para o mundo de Sofia uma
espécie de Deus omnipotente.
Quando Alberto ia falar de Berkeley, Hilde estava tão empolgada
como Sofia. O que aconteceria a partir daí? Já se previa há muito tempo
que algo de extraordinário sucederia quando chegasse a vez deste
filósofo, que negara a existência de um mundo material exterior à
consciência humana, como Hilde já vira na enciclopédia.
Começava com Alberto e
Sofia à janela a verem o pai de Hilde enviar um avião com uma
longa faixa com felicitações. Simultaneamente, nuvens escuras avançavam
em direcção à cidade.
- " Ser ou não ser" não é toda a questão. A questão é também "o
que" nós somos.
Somos realmente pessoas de carne e osso? O nosso mundo é
constituído por coisas reais
- ou estamos apenas rodeados pela consciência?
Não admirava que Sofia começasse a roer as unhas. Hilde nunca
tivera esse hábito, mas também ela estava muito nervosa.
p. 271
E veio o momento em que Alberto disse que, para eles, a vontade ou o
espírito que realizava tudo podia ser o pai de Hilde.
- Achas que ele se tornou uma espécie de deus para nós?
- Para ser sincero, sim. Mas devia ter vergonha!
- E quanto a Hilde?
- Ela é um anjo, Sofia.
- Um anjo?
- É a ela que se dirige este "espírito".
Depois disso, Sofia correra para a chuva. Mas nunca podia ter
sido o mesmo temporal que se abatera na noite anterior sobre Bjerkely -
alguns segundos depois de
Sofia ter corrido pela cidade!
" Amanhã faço anos", pensava ela. E não era extremamente duro ter de
reconhecer, um dia antes de fazer quinze anos, que a vida é um sonho?
Era como sonhar ter ganho um milhão e, pouco antes de o grande prémio
ser pago, compreender que tudo fora apenas um sonho.
Sofia correu pelo campo de jogos molhado. Nessa altura viu uma
pessoa a correr na sua direcção. Era a mãe. Relâmpagos potentes rasgavam
o céu.
A mãe abraçou Sofia.
- O que se passa connosco, minha filha?
- Não sei - Sofia chorava. - É como um pesadelo.
Hilde sentiu que os olhos se lhe tinham humedecido. "To be, or not to be
- that is the question". Hilde atirou o "dossier" para os pés da cama e
levantou-se de um pulo. Andou de um lado para o outro no quarto. Por
fim, pôs-se em frente do espelho de latão e ficou parada, até que a mãe
a chamou para comer. Quando ela bateu à porta, Hilde não fazia ideia de
há quanto tempo já estava ali. Mas tinha a certeza, toda a certeza, de
que o reflexo do espelho lhe piscara ambos os olhos.
Durante a refeição, Hilde procurou ser uma aniversariante grata.
Mas estava sempre a pensar em Sofia e Alberto.
O que seria deles agora, que sabiam que o pai de Hilde
determinava tudo? Mas - sabiam-no realmente? Era provavelmente um
absurdo acreditar que soubessem o que quer que fosse. Era o pai de Hilde
que fazia com que soubessem alguma coisa. Porém, o problema era :,
p. 272
sempre o mesmo: quando Sofia e Alberto conhecessem toda a verdade,
estariam de certo modo no fim da viagem. Hilde quase ficara engasgada
com um grande bocado de batata na garganta quando se apercebeu de que a
mesma hipótese podia ser válida para o seu próprio mundo. Os homens
tinham sem dúvida chegado cada vez mais longe na compreensão das leis da
natureza. Mas poderia a história continuar quando a filosofia e a
ciência tivessem colocado as últimas peças do "puzzle" no local
respectivo? Ou a história da humanidade aproximar-se-ia do fim? Não
haveria uma relação entre o desenvolvimento do pensamento e da ciência
por um lado, e realidades como o efeito de estufa e as florestas
tropicais desarborizadas por outro? Talvez não fosse estúpido designar o
desejo de conhecimento do homem por "pecado original".
A questão era tão importante e tão assustadora que Hilde tentou
esquecê-la. Além disso, compreenderia mais se continuasse a ler o
presente de aniversário do seu pai.
- Minha querida, queres mais? - disse a mãe, depois de terem
comido gelado com morangos italianos. - Agora fazemos aquilo que te
apetecer.
- Eu sei que parece estranho, mas o que eu gostaria de fazer era
continuar a ler o presente do papá.
- Não podes deixar que ele te dê volta ao juízo.
- Não, não.
- Podemos descongelar uma "pizza" e ver o " Derrick" na
televisão...
- Sim, pode ser. Hilde lembrou-se de como
Sofia falara com a mãe. O pai atribuíra certamente à outra mãe
algo da sua. Por precaução, decidiu não dizer nada sobre o coelho branco
que é retirado da cartola do universo, pelo menos não nesse dia...
- Ah, a propósito - disse, ao levantar-se.
- Sim?
- Não consigo encontrar o meu crucifixo de ouro.
A mãe olhou para ela com uma expressão enigmática.
- Encontrei-o há semanas lá em baixo na doca. Deves tê-lo
deixado lá, minha tonta!
- Contaste isso ao papá?
- Deixa cá ver. Sim, contei...
- E onde está agora?
- Espera.
p. 273
A mãe levantou-se e, pouco depois, Hilde ouviu um grito de
admiração vindo do quarto.
Depois, a mãe voltou à sala de estar.
- De momento não o consigo encontrar.
- Já estava à espera disso. Hilde deu um beijo à mãe e correu
novamente para a sua mansarda. Finalmente - agora podia continuar a ler
sobre
Sofia e Alberto. Deitou-se na cama e apoiou o pesado "dossier"
sobre os joelhos.
Sofia acordou de manhã, quando a mãe entrou no quarto, trazendo
nas mãos um tabuleiro cheio de presentes. Tinha posto uma bandeira numa
garrafa de limonada vazia.
- Parabéns, Sofia!
Sofia esfregou os olhos. Tentou lembrar-se do que acontecera no
dia anterior. Mas tudo se assemelhava às peças soltas de um puzzle. Uma
peça era Alberto, outra Hilde e o major. Uma era Berkeley, outra
Bjerkely. E a mais escura era o terrível temporal. Sofia quase ficara em
estado de choque. A mãe enxugara-a e metera-a na cama depois de lhe
ter levado uma caneca de leite quente com mel. Sofia adormecera
imediatamente.
- Acho que estou viva - balbuciou então.
- Claro que estás viva. E hoje fazes quinze anos.
- Tens a certeza absoluta?
- Tenho a certeza absoluta, sim. Achas que uma mãe não sabe
quando nasceu a única filha? Foi no dia 15 de Junho de 1975, às... à uma
e meia. Foi sem dúvida o momento mais feliz da minha vida.
- Tens a certeza de que tudo isto não é apenas um sonho?
- Seja como for, tem que ser um bom sonho, se acordas com pão de
passas, limonada e presentes de aniversário. Ela pousou o tabuleiro com
os presentes numa cadeira e saiu do quarto por pouco tempo. Quando
voltou, trazia mais um tabuleiro com pão de passas e limonada. Pousou-o
aos pés da cama de Sofia.
Seguiu-se uma manhã normal de aniversário a abrir os presentes,
enquanto a mãe lhe falava das dores de parto há quinze anos. Da mãe,
Sofia recebeu uma raquete de ténis.
Nunca tinha jogado ténis, mas havia um campo a dois minutos de
Klõverveien. O pai enviara-lhe um minitelevisor e um rádio de ondas
curtas. O ecrã não era maior do que uma fotografia normal. Havia ainda
presentes de velhas tias e amigos da família. Por fim, a mãe disse:
- Achas que hoje devo tirar folga?
- Não, porquê?
p. 274
- Ontem estavas bastante transtornada. Se isto continua assim,
acho que devemos marcar uma consulta para um psicólogo.
- Deixa estar.
- Foi apenas o temporal - ou esse Alberto também tem algo a ver
com isto?
- E o que é que se passa contigo? Tu perguntaste passa connosco,
minha filha?".
- Eu estava a pensar no facto de andares pela cidade para te
encontrares com gente estranha. Talvez seja culpa minha...
- Não é "culpa" de ninguém eu fazer um curso de filosofia no meu
tempo livre. Vai para o escritório. Tenho de estar na escola às dez.
Hoje entregam as notas, e depois ficamos livres.
- Já sabes que notas vais ter?
- Em todo o caso, mais cincos do que no último semestre. Pouco
depois de a mãe se ter ido embora, o telefone tocou.
- Sofia Amundsen.
- Daqui fala Alberto.
- Oh...
- Ontem o major não poupou nas munições.
- Não percebo o que queres dizer.
- A trovoada, Sofia.
- Não sei em que é que devo acreditar.
- Essa é a primeira virtude de uma verdadeira filósofa. Estou
orgulhoso por teres aprendido tanto em tão pouco tempo.
- Tenho medo que nada disto seja real.
- Isso chama-se angústia existencial, e em geral é apenas uma
fase no caminho para uma nova tomada de consciência.
- Acho que preciso de uma pausa no curso.
- Há muitas rãs no teu jardim nesta altura?
Sofia sorriu. Alberto prosseguiu:
- Eu acho que devemos continuar. A propósito, parabéns! Temos de
terminar o curso até à noite de S. João. É a nossa última esperança.
- A nossa última esperança de quê?
- Estás bem sentada? Isto vai levar o seu tempo, percebes? Ainda
te lembras de
Descartes?
- "Penso, logo existo".
- No que diz respeito à nossa dúvida metódica, estamos de mãos
vazias. Nem sequer sabemos se pensamos. Talvez se venha a verificar que
nós "somos" pensamentos, e isso é completamente diferente de nós mesmos
pensarmos. Pelo menos temos todo o motivo para supor que o :,
p. 275
pai de Hilde nos criou, que representamos uma espécie de entretenimento
de aniversário para a Filha do major em Lillesand. Estás a
acompanhar-me?
- Sim...
- Mas também há uma contradição nisso. Se somos inventados, não
temos o direito de supor o que quer que seja.
Nesse caso, toda esta conversa ao telefone é pura ilusão.
- E nós não temos nem um bocadinho de livre arbítrio.
Nesse caso, o major planeia tudo o que dizemos ou fazemos.
Assim, podíamos até desligar.
- Não, estás a simplificar demasiado.
- Explica-te!
- Queres afirmar que as pessoas planeiam tudo o que sonham? Pode
ser verdade que o pai de Hilde "saiba" exactamente tudo o que fazemos.
Fugir à sua omnisciência é tão difícil como fugirmos da nossa própria
sombra. Mas - e eu comecei a elaborar um plano - não é claro que o major
tenha decidido previamente tudo o que vai acontecer. Talvez ele o decida
só no último momento - no instante da criação, portanto. Precisamente
nessa altura, pode-se pensar que temos uma iniciativa própria que
determina o que dizemos e fazemos. Essa iniciativa é muito fraca em
comparação com o enorme poder que o major exerce. Talvez estejamos
indefesos em relação a coisas exteriores importunas como cães que falam,
aviões a hélice, mensagens em bananas e trovoadas por encomenda. Mas não
devemos excluir termos a nossa própria vontade, embora fraca.
- Mas como é que isso seria possível?
- O major sabe tudo do nosso pequeno mundo, mas isso não quer
dizer que também seja omnipotente. Pelo menos, temos de tentar viver
como se ele não o fosse.
- Acho que percebo onde queres chegar.
- O truque seria conseguirmos fazer alguma coisa sozinhos, em
segredo, uma coisa que o major não conseguisse descobrir.
- Mas como é que isso é possível, se não existimos?
- Quem diz que não existimos? A questão não é se existimos, mas
"o que" nós somos e "quem" somos. Mesmo que se verificasse que somos
apenas impulsos na mente dividida do major, isso não significa que não
tenhamos nenhuma consciência.
- E também não nos retira o nosso livre arbítrio?
- Estou a trabalhar no caso, Sofia.
- Mas o pai de Hilde deve ter plena consciência de que tu "estás
a trabalhar no caso". :,
p. 276
- Sem dúvida. Mas ele não conhece o meu plano. Estou a tentar
encontrar um ponto de
Arquimedes.
- Um ponto de Arquimedes?
- " Arquimedes" era um cientista do período helenístico. Ele
afirmou - " Dêem-me um ponto fixo e eu moverei a terra". Temos de
encontrar um ponto como esse para sermos lançados para fora do universo
interior do major.
- Não será fácil.
- Tens razão. E só podemos escapar-nos quando tivermos
terminado o curso de filosofia. Até lá, ele controla-nos. É obvio que
decidiu que eu te devo orientar através dos séculos até à nossa época.
Mas só faltam poucos dias, depois ele senta-se num avião algures no
Médio
Oriente. Se não nos tivermos libertado da sua pegajosa fantasia
antes de ele chegar a Bjerkely estamos perdidos.
- Estás a assustar-me...
- Em primeiro lugar, tenho de te contar o indispensável acerca
do Iluminismo francês.
Depois, temos de tratar a filosofia de "Kant" em traços gerais,
antes de podermos falar do Romantismo. E, para nós, "Hegel" é uma ajuda
importante. Ao tratarmos dele, não podemos ignorar a crítica indignada
de "Kierkegaard" à filosofia hegeliana. Temos de falar um pouco sobre
"Marx,
Darwin e Freud". Se conseguirmos ainda algumas observações
finais sobre " Sartre" e o Existencialismo, podemos pôr o nosso plano em
prática.
- É muita coisa para uma semana.
- Por isso temos de começar imediatamente. Podes vir até cá
agora?
- Tenho de ir à escola. Temos uma pequena festa de turma, e
depois recebemos os diplomas.
- Esquece a festa! Se somos mera imaginação, então é pura ilusão
que limonada e doces saibam bem.
- Mas o diploma...
- Sofia, ou vives num universo extraordinário de um pequeno
planeta numa de centenas de milhões de galáxias - ou és apenas um
punhado de impulsos electromagnéticos na consciência de um major. E
perante esta situação falas-me de um diploma! Devias ter vergonha!
- Desculpa.
- Mas podes passar pela escola antes de vires ter comigo.
Poderia exercer uma má influência em Hilde tu faltares ao último dia de
aulas. Ela vai certamente à escola mesmo no dia de anos, porque é um
anjo.
- Então eu vou logo a seguir à escola.
- Podemos encontrar-nos na cabana do major.
- Na cabana do major?
- ... clic!
p. 277
Hilde deixou o "dossier" cair nos joelhos. O pai tinha feito com que ela
se sentisse de facto um pouco arrependida por ter faltado ao último dia
de aulas. Que maroto! Ficou algum tempo sentada, tentando imaginar que
plano
Alberto iria tramar. Deveria ver a última página do "dossier"?
Não, isso era batota; devia antes despachar-se a ler. Ela estava
convencida de que Alberto tinha razão num ponto fundamental. Uma coisa
era o seu pai ter uma ideia geral do que sucedia a Sofia e a Alberto,
mas, enquanto escrevia, não sabia certamente tudo o que ia suceder.
Talvez escrevesse a grande velocidade alguma coisa por descuido, que só
descobrisse muito mais tarde. E era justamente neste "descuido" que
Sofia e Alberto tinham uma certa liberdade. Mais uma vez, Hilde tinha
quase a nítida sensação de que
Sofia e Alberto existiam realmente. Mesmo quando o mar está
calmo, isso não significa que nas profundezas não suceda alguma coisa,
pensou. Mas porque é que pensava assim? Em todo o caso, não era um
pensamento claro.
Na escola, Sofia recebeu felicitações e foram-lhe cantados os
parabéns, como é habitual quando se trata de uma aniversariante. Talvez
recebesse muita atenção porque, diante dos diplomas e da limonada, todos
estavam agitados.
Depois de o professor se ter despedido dela com votos de um bom
Verão, Sofia correu para casa. Jorunn procurou retê-la, mas Sofia
gritou-lhe que tinha de tratar de uma coisa sem falta.
Na caixa do correio encontrou dois postais do Líbano. Em ambos
estava escrito: "Happy Birthday - 15 Years". Eram postais de aniversário
comprados. Um dos postais vinha dirigido a "Hilde Mõller Knag, a/c Sofia
Amundsen...". O outro, pelo contrário, era mesmo para Sofia. Ambos os
postais tinham o carimbo: " Contingente da Onu, 15 de Junho".
Sofia leu primeiro o seu próprio postal:
" Cara Sofia Amundsen! Hoje também quero felicitar-te pelo teu
aniversário. Muitos parabéns, Sofia! Muito obrigado por tudo o que
fizeste até agora por Hilde.
Cumprimentos,
Albert Knag, major"
p. 278
Sofia não sabia bem como havia de reagir ao facto de o pai de
Hilde lhe ter finalmente enviado um postal. De certo modo, achou isso
comovente.
No postal de Hilde estava escrito:
" Querida Hilde! Não sei nem que dia é nem que horas são agora em
Lillesand. Mas, como disse, isso não é muito importante. Se bem te
conheço, não estou muito atrasado para uma última ou pelo menos
penúltima felicitação. Mas também não podes levantar-te muito tarde! O
Alberto vai falar-te dentro em pouco do pensamento do Iluminismo
francês, concentrando-se em sete pontos. Esses pontos são: 1. Revolta
contra as autoridades 2. Racionalismo 3. Pensamento do iluminismo 4.
Optimismo cultural 5. Regresso à natureza 6. Cristianismo humanista 7.
Direitos humanos"
Era evidente que o major os tinha debaixo de olho.
Sofia abriu a porta de casa e pôs o diploma com muitos cincos na
mesa da cozinha. Em seguida, enfiou-se pela sebe e correu para o
bosque.
Novamente, teve de remar no pequeno lago. Alberto estava sentado
na soleira da porta quando ela chegou e fez-lhe sinal para ela se
sentar ao seu lado. Estava bom tempo, mas do pequeno lago subia uma
corrente de ar fresco e cortante em direcção a eles. O lago parecia não
ter recuperado ainda do temporal.
- Vamos directamente ao assunto - começou Alberto.
- Após Hume, o alemão Kant foi o grande sistemático seguinte.
Mas também a França teve no século XVIII muitos pensadores importantes.
Podemos dizer que, na primeira metade do século XVIII, o centro
filosófico da Europa estava em Inglaterra, a meio do século na França, e
cerca do final do século na Alemanha.
- Uma deslocação de oeste para leste.
- Exacto. Vou apresentar resumidamente algumas ideias que eram
comuns a muitos filósofos franceses do Iluminismo, nomes importantes
como "Montesquieu, Voltaire, Rousseau" e muitos, muitos outros.
Concentrei-me em sete pontos principais.
p. 279
- Obrigada. Infelizmente, já sei.
Sofia deu-lhe o postal do pai de Hilde. Alberto suspirou
profundamente.
- Não era preciso isto... Um primeiro mote é portanto a revolta
contra as autoridades. Vários filósofos franceses do Iluminismo tinham
visitado Inglaterra, que em alguns aspectos era mais liberal do que a
sua pátria. A ciência da natureza inglesa fascinava-os, sobretudo
Newton e a sua física universal. Mas os filósofos ingleses também os
inspiravam, sobretudo Locke e a sua filosofia política. De volta a
França, começaram a opor-se a pouco e pouco às velhas autoridades.
Achavam importante mostrar cepticismo em relação a todas as verdades
herdadas, e pensavam que o indivíduo tinha de encontrar por si mesmo a
resposta para todas as perguntas. Neste ponto, a influência de Descartes
era evidente.
- Porque ele construiu tudo a partir da base.
- Exacto. A insurreição contra as velhas autoridades dirigia-se
também contra o poder da Igreja, do rei e da nobreza. Estas instituições
eram, no século XVIII, muito mais poderosas em França do que em
Inglaterra.
- E depois veio a Revolução.
- Em 1789, sim. Mas as novas ideias vieram mais cedo.
A próxima palavra chave é o "racionalismo".
- Eu julgava que o racionalismo tivesse desaparecido com Hume.
- Hume só morreu em 1776, cerca de vinte anos depois da morte de
Montesquieu e apenas dois anos antes da morte de Voltaire e Rousseau, em
1778. Talvez te lembres que Locke não era um empirista radical. Ele
achava, por exemplo, que a fé em Deus e certas normas morais eram
elementos constituintes da razão humana. Esse é também o cerne da
filosofia iluminista francesa.
- Também disseste que os franceses foram sempre um pouco mais
racionalistas do que os britânicos.
- Essa diferença remonta à Idade Média. Quando os ingleses falam
de "common sense", os franceses falam de "évidence". A expressão inglesa
pode ser traduzida por "senso comum", a francesa por "evidência".
- Compreendo.
- Tal como os humanistas da Antiguidade - como Sócrates e os
estóicos - a maior parte dos iluministas tinham uma fé inabalável na
razão humana. Essa característica era tão marcada que muitos também
designam a época do Iluminismo francês simplesmente por "racionalismo".
A nova ciência da natureza tinha mostrado que a natureza estava
organizada racionalmente. Para os filósofos do Iluminismo, a sua tarefa
p. 280
era criar um fundamento para a moral, a ética e a religião que estivesse
de acordo com a razão imutável do homem. E isso conduziu ao verdadeiro
pensamento do "Iluminismo".
- O nosso terceiro ponto
- Em primeiro lugar, dizia-se, amplos estratos do povo tinham
de ser "iluminados". Isso era a condição absoluta para uma sociedade
melhor. Mas o povo era dominado pela ignorância e pela superstição. Foi,
portanto, dada muita atenção à educação. Não é por acaso que a pedagogia
como ciência tenha sido fundada na época do Iluminismo.
- Então a noção de escola provém da Idade Média, e a pedagogia
do Iluminismo.
- Podes dizer isso. O grande monumento do Iluminismo é uma
enciclopédia. Estou a pensar na "Enciclopédia", que foi publicada entre
1751 e 1772, em vinte e oito volumes, com contributos de todos os
grandes filósofos iluministas. " Aqui há de tudo", dizia-se, "desde a
produção de agulhas até à fundição de canhões".
- O ponto seguinte é o optimismo cultural.
- Podes pôr de lado esse postal enquanto eu falo, por favor?
- Desculpa.
- Só quando razão e saber fossem difundidos, segundo os
iluministas, é que a humanidade faria grandes progressos. Era apenas uma
questão de tempo, e o irracionalismo e a ignorância desapareceriam, e
haveria uma humanidade esclarecida. Esta ideia era dominante na Europa
Ocidental até há algumas décadas. Hoje já não estamos tão convencidos de
que mais saber leve a condições de vida melhores.
Aliás, esta crítica da "civilização" já tinha sido apresentada
pelos filósofos franceses do Iluminismo.
- Nesse caso, talvez devêssemos tê-los ouvido.
- "Regresso à natureza!" era o lema da crítica da civilização.
Mas, por natureza, os filósofos do Iluminismo entendiam quase o mesmo
que por razão. Porque a razão é dada ao homem pela natureza - ao
contrário da Igreja ou da civilização. Dizia-se que os "povos
primitivos" viviam de uma forma mais saudável e feliz do que os
europeus, justamente porque não tinham civilização. O estribilho
"regresso à natureza!" provém de Jean -Jacques Rousseau. Ele explicou
que a natureza era boa e por isso o homem também era bom "por natureza".
Todo o mal residia na sociedade civilizada que afastava o homem da sua
natureza. Por isso, Rousseau queria também deixar viver as crianças no
seu estado "natural" de inocência tanto tempo quanto possível. Podemos
dizer que a ideia de um valor próprio da infância provém do tempo do
Iluminismo.
Antes disso, a infância era vista sobretudo como preparação para
a vida
p. 281
de adulto. Mas nós somos seres humanos e já estamos a viver quando somos
crianças.
- É o que eu acho.
- E, finalmente, para os Iluministas era importante uma religião
"natural".
- O que queriam dizer com isso?
- A religião também tinha de ser posta em harmonia com a "razão
natural" dos homens. Muitos lutavam por aquilo a que podemos chamar um
"cristianismo humanista", e este é o sexto ponto da lista. Naturalmente,
havia também materialistas coerentes que não acreditavam em Deus e se
reconheciam como ateus. Mas a maior parte dos filósofos iluministas
achavam irracional pensar num mundo sem Deus.
Consideravam que o mundo tinha uma ordem demasiado racional.
Também Newton, por exemplo, defendera o mesmo ponto de vista. Da mesma
forma, a crença na imortalidade da alma era para eles racional. Tal como
para Descartes, para os iluministas, a questão da imortalidade da alma
humana era mais uma questão de razão do que uma questão de fé.
- É justamente isso que me admira um pouco. Para mim, isso é um
exemplo típico daquilo em que se pode acreditar, mas não saber.
- Tu não vives no século XVIII. Os iluministas queriam libertar
o cristianismo dos dogmas irracionais que, no decorrer da história da
Igreja, tinham sido enxertados na mensagem simples de Jesus.
- Então entendo-os.
- Muitos professavam o chamado "deísmo".
- Explica-te!
- Por "deísmo" entendemos uma concepção segundo a qual
Deus criou o mundo há muito tempo, mas não se revela ao mundo
desde então. Deste modo, Deus é o Ser supremo que se dá a conhecer aos
homens apenas por meio da natureza e das suas leis - mas que não se
revela de modo sobrenatural. Este " Deus filosófico" já nos aparecia em
Aristóteles. Para ele, Deus era a primeira causa ou o primeiro
motor do universo.
- Agora, já só nos resta um ponto, os "direitos humanos".
- Mas, em compensação, esse é talvez o mais importante. Podes
dizer de um modo geral que a filosofia iluminista francesa tinha uma
orientação mais prática do que a inglesa.
- Tiraram as conseqüências da sua filosofia e agiram de forma
coerente com ela?
- Sim, os filósofos franceses do Iluminismo não se contentaram
com concepções teóricas sobre o lugar do homem na sociedade. Lutavam
activamente por aquilo a que chamavam os "direitos naturais" dos
p. 282
cidadãos. Tratava-se sobretudo da luta contra a censura - ou seja,
pela liberdade de imprensa. Em relação à religião, moral e política
tinha de se assegurar ao indivíduo o direito de pensar livremente e de
exprimir livremente as suas ideias. Além disso, lutou-se contra a
escravatura, e por um tratamento mais humano dos criminosos.
- Acho que estou de acordo com quase tudo.
- O princípio da "inviolabilidade do indivíduo" culminou
finalmente na " Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão", que foi adoptada em 1789 pela Assembleia Nacional
Francesa. Esta Declaração dos Direitos Humanos foi uma base importante
para a nossa Constituição Norueguesa de 1814.
- Mas ainda há muitos homens que têm de lutar por esses
direitos.
- Sim, infelizmente. Mas os filósofos iluministas queriam
estabelecer determinadas leis a que todos os homens tinham direito
simplesmente por serem homens. Era o que entendiam por direitos
"naturais". Falamos ainda hoje de "direito natural", que pode estar em
contradição com as leis oficiais de qualquer país. Ainda vemos
indivíduos
- ou populações inteiras - que reivindicam a escravatura e a
opressão para estes "direitos naturais", quando se defendem contra a
anarquia.
- E o que é que se passava com os direitos das mulheres?
- A Revolução de 1789 estabeleceu uma série de direitos que
deviam valer para todos os cidadãos. Mas, no fundo, só os homens eram
considerados cidadãos. Porém, justamente durante a Revolução Francesa,
vemos os primeiros exemplos de um movimento feminista.
- E não era sem tempo.
- Já em 1787, o filósofo iluminista Condorcet publicou um
tratado sobre os direitos da mulher. Nele concedia às mulheres os mesmo
direitos naturais que aos homens. Durante a Revolução de 1789, as
mulheres participaram activamente na luta contra a aristocracia. Por
exemplo, foram as mulheres que dirigiram as manifestações que obrigaram
o rei a abandonar o seu palácio em Versalhes. Em Paris, formaram-se
diversos grupos de mulheres. Além dos mesmos direitos políticos que os
homens, as mulheres exigiam também novas leis do matrimónio e outras
condições de vida.
- Obtiveram esses direitos?
- Não. Como veio a suceder tantas vezes mais tarde, a questão
dos direitos das mulheres foi levantada com uma revolução. Mas logo que
tudo voltou a acalmar com um novo regime, o velho domínio dos homens foi
restabelecido.
- É típico.
p. 283
- Uma das mulheres que mais lutou pelos direitos das mulheres
durante a Revolução Francesa foi Olympe de Gouges. Em 1791 - ou seja,
dois anos após a Revolução - publicou uma declaração dos direitos das
mulheres. A declaração dos direitos dos cidadãos não dedicara
propriamente muitos parágrafos aos direitos naturais das mulheres.
Olympe de Gouges exigia para as mulheres exactamente os mesmo direitos
que para os homens.
- E qual foi o resultado?
- Foi decapitada. As mulheres foram proibidas de ter qualquer
actividade política.
- Que horror!
- Só no século XIX é que o feminismo começou verdadeiramente -
na França e por toda a Europa. E, muito lentamente, essa luta começou
também a produzir frutos. Mas na Noruega, por exemplo, as mulheres só
obtiveram o direito de voto em 1913. E em muitos países, as mulheres
lutam ainda pela igualdade de direitos.
- Podem contar com o meu apoio.
Alberto olhou para o pequeno lago. Passado um pouco, disse:
- Acho que era tudo o que eu tinha a dizer sobre a filosofia do
Iluminismo.
- O que queres dizer com "acho"?
- Não me parece que haja mais alguma coisa. Enquanto ele dizia
isto, algo sucedeu subitamente no meio do lago. A água borbulhava vinda
do fundo. E, em seguida, uma criatura enorme e monstruosa ergueu-se
acima da superfície da água.
- Uma serpente marinha! - exclamou Sofia.
O escuro monstro contorceu-se várias vezes para a frente e para
trás, depois mergulhou de novo. E o lago ficou tão calmo como
anteriormente.
Alberto desviara a vista.
- Vamos entrar - disse. Levantaram-se e entraram na cabana.
Sofia parou em frente às imagens de Berkeley e Bjerkely. Apontou
para o quadro de Bjerkely e afirmou:
- Acho que Hilde mora algures nesta imagem. Entre as imagens
estava agora pendurado um bordado onde se lia: Liberdade, Igualdade,
Fraternidade.
Sofia voltou-se para Alberto.
- Foste tu que penduraste isto aqui? Ele abanou a cabeça com uma
expressão triste.
p. 284
Sofia encontrou então um envelope na consola da lareira. "Para
Hilde e Sofia", estava escrito. Sofia compreendeu imediatamente quem era
o remetente. Abriu o envelope e leu alto:
"Minhas queridas Hilde e
Sofia! O professor de filosofia da Sofia devia ter ainda
sublinhado como a filosofia francesa do Iluminismo foi importante para
os ideais e princípios sobre os quais assenta a O NU. Há duzentos anos,
o slogan "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" ajudou a unir a nação
francesa. Hoje, estas palavras têm de unir todo o mundo. A humanidade é
hoje uma grande família como nunca foi antes. Os nossos descendentes são
os nossos filhos e netos. Que tipo de mundo herdam de nós?"
A mãe de Hilde chamou-a, porque " Derrick" começava dentro de
dez minutos e ela pusera a "pizza" no forno. Hilde sentia-se esgotada
por ter lido tanto. Já estava a pé desde as seis horas.
Decidiu passar o resto da tarde a festejar o aniversário com a
mãe. Mas, antes de tudo, tinha de consultar a enciclopédia. Gouges...
não. De Gouges? Também não. Talvez Olympe de Gouges? Não havia nada!
A enciclopédia não escrevera uma única palavra sobre a mulher
que fora decapitada devido à actividade política a favor das mulheres.
Não era escandaloso?
Seria apenas uma invenção do pai de Hilde? Hilde correu para o
piso térreo para consultar a enciclopédia maior.
- Tenho de ver uma coisa rapidamente - explicou à mãe, que a
olhava estupefacta. Retirou o volume de Forv a Gp e correu de novo para
o quarto com ele. Gouges... lá estava!
"Gouges", Marie Olympe (1748 -93), escritora francesa, teve um papel
importante durante a Revolução francesa, através de numerosos opúsculos
sobre questões sociais e uma série de peças de teatro. Defendeu a
opinião de que os direitos humanos também deviam ser válidos para as
mulheres e publicou em 1791 " A Declaração dos Direitos das Mulheres".
Decapitada em 1793 por ter ousado defender Luís XVI e criticado
Robespierre. (Lit: L. Lacour: "Les
Origines du féminisme contemporain", 1900).
p. 285
Kant ... "o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim"...
O major Albert Knag só telefonou para casa por volta da meia
noite, para dar os parabéns a Hilde.
A mãe de Hilde atendeu o telefone.
- Para ti, Hilde.
- Está?
- Aqui é o pai.
- Diz - Já é quase meia-noite!
- Eu só te queria dar os parabéns...
- Tens feito isso todo o dia. ... mas eu queria telefonar só
quando o dia já tivesse passado.
- Porquê?
- Não recebeste o "presente"?
- Ah, isso! Sim, muito obrigada!
- Não me aflijas. O que dizes?
- É fantástico. Não comi nada quase todo o dia.
- Tens de comer.
- Mas é tão excitante.
- Até onde já chegaste?
- Eles foram para dentro de casa porque tu brincavas com uma
serpente marinha...
- O Iluminismo.
- E Olympe de Gouges.
- Então não me enganei.
- O que queres dizer com isso?
- Acho que só falta uma felicitação. Mas essa tem música, em
compensação.
- Eu vou continuar a ler até adormecer.
- Então estás a compreender?
p. 286
- Hoje aprendi mais coisas do que... em toda a minha vida. É
inacreditável que não tenha passado um único dia desde que Sofia chegou
a casa e encontrou a primeira carta.
- É estranho o pouco tempo que é necessário...
- Mas eu tenho alguma pena dela.
- De quem?
- Da Sofia, obviamente.
- Ah...
- Ela está completamente confusa, a pobrezinha.
- Mas ela é apenas... quero dizer...
- Queres dizer que foste tu que a criaste.
- Sim, mais ou menos isso.
- Eu acho que a Sofia e o
Alberto existem.
- Falaremos sobre isso quando eu voltar para casa.
- Sim.
- E desejo-te uma boa noite.
- O que disseste?
- Boa noite!
- Boa noite!
Quando Hilde foi para a cama, meia hora mais tarde, lá fora
havia ainda tanta claridade que podia ver o jardim e a enseada. Nessa
estação do ano, não escurecia.
Divertia-a a ideia do que seria viver num quadro pendurado na
parede de uma pequena cabana no bosque. Poderia sair da imagem e
observar o que havia cá fora?
Antes de adormecer, leu mais algumas páginas do grande
"dossier".
Sofia voltou a pôr a carta do pai de Hilde na consola da
lareira.
- O que ele diz sobre a
O NU pode ser importante - afirmou Alberto - mas não gosto que
ele interfira na minha exposição.
- Acho que não devias preocupar-te tanto com isso.
- A partir de agora, não vou dar atenção a qualquer fenómeno
extraordinário como serpentes marinhas e coisas semelhantes. Vamo-nos
sentar à janela, e eu falo-te sobre Kant.
Sofia reparou num par de óculos que estava numa pequena mesa
entre duas poltronas. Também reparou que as lentes eram vermelhas.
Seriam óculos de sol fortes?
- São quase duas - disse ela. - Tenho de estar em casa o mais
tardar às cinco.
A minha mãe tem provavelmente planos para o meu dia de anos.
p. 287
- Então temos três horas.
- Começa.
- Immanuel Kant nasceu em 1724 em Kõnigsberg, uma cidade da
Prússia Oriental, e era filho de um seleiro. Passou aí quase toda a sua
vida até morrer com a idade de oitenta anos. Vinha de uma família
extremamente cristã.
A sua fé cristã foi uma base importante para a sua filosofia.
Tal como Berkeley, também ele queria salvar as bases da fé cristã.
- Eu sei o bastante sobre Berkeley, obrigada.
- Kant foi também o primeiro dos filósofos que tratámos que
leccionava filosofia numa universidade. Era professor de filosofia.
- Professor?
- A palavra "filósofo" é usada hoje em dois sentidos diferentes.
Por filósofo, entendemos primeiro que tudo uma pessoa que procura
encontrar as suas próprias respostas para as questões filosóficas. Mas
um filósofo pode também ser um conhecedor da história da filosofia, sem
desenvolver necessariamente uma filosofia própria.
- E Kant era um conhecedor?
- Era ambas as coisas. Se ele tivesse sido apenas um professor
brilhante - ou seja, um conhecedor das ideias dos outros - nunca teria
tido um lugar tão importante na história da filosofia. Mas também é
importante o facto de Kant ter conhecido realmente a tradição filosófica
como nenhum outro. Ele estava tão familiarizado com racionalistas como
Descartes e Espinosa como com empiristas como Locke, Berkeley e Hume.
- Já te disse que parasses de falar de Berkeley.
- Sabemos que os racionalistas consideravam que o fundamento de
todo o conhecimento humano residia na razão. E sabemos ainda que os
empiristas achavam que todo o conhecimento sobre o mundo provinha da
experiência sensível. Hume tinha apontado para o facto de existirem
claros limites no que diz respeito às conclusões a que podemos chegar
com a ajuda das nossas impressões sensíveis.
- E com quem é que Kant estava de acordo?
- Ele achava que todos tinham de certa forma razão, mas também
que todos estavam parcialmente errados. A questão que os preocupava era
aquilo que podemos saber sobre o mundo. Esse foi o projecto filosófico
comum a todos os filósofos depois de Descartes. Estavam em debate duas
possibilidades: o mundo é exactamente como o percepcionamos - ou como a
nossa razão o representa?
- E o que achava Kant?
- Kant achava que tanto as sensações como a razão tinham um
papel importante no nosso conhecimento do mundo. Ele defendia que os
racionalistas
p. 288
davam demasiada importância à razão e que os empiristas defendiam de
forma parcial a experiência sensível.
- Se não me deres imediatamente um bom exemplo, fica tudo no ar.
- Kant está de acordo com Hume e com os empiristas ao defender
que devemos todos os nossos conhecimentos às sensações. Mas - e nisto
concorda com os racionalistas - na nossa razão também há condições
importantes para o modo como compreendemos o mundo à nossa volta. Por
conseguinte, há certas condições em nós mesmos que contribuem para a
nossa concepção do mundo.
- E isso é que é um exemplo?
- Vamos antes fazer uma pequena experiência. Podes trazer os
óculos daquela mesa? Isso. Agora, põe-os.
Sofia pôs os óculos. Tudo o que estava à sua volta se tornou
vermelho. As cores claras ficaram vermelho claro, as escuras vermelho
escuro.
- O que é que vês?
- Vejo exactamente o mesmo que antes, mas agora é tudo vermelho.
- Isso deve-se ao facto de as lentes determinarem o modo como
vês a realidade. Tudo o que vês é uma parte de um mundo exterior a ti
mesma; mas o modo como a vês está relacionado com as lentes. Não podes
dizer que o mundo é vermelho, mesmo que te pareça vermelho.
- Não, claro que não...
- Se tu andasses agora pelo bosque - ou se estivesses em casa na
Curva do Capitão -, verias tudo aquilo que sempre viste. Mas tudo o que
visses seria vermelho.
- Desde que eu não tirasse os óculos, sim.
- Os óculos são a condição do modo como vês o mundo. E do mesmo
modo, segundo Kant, também existem condições na nossa razão que
influenciam todas as nossas experiências.
- De que condições é que estamos a falar?
- Tudo o que vemos, é visto primeiro como fenómeno no tempo e no
espaço. Segundo Kant, o tempo e o espaço eram as duas "formas da
intuição" do homem. E ele sublinha que estas duas formas na nossa
consciência são anteriores a qualquer experiência. Isso significa que
podemos saber, antes de percepcionarmos alguma coisa, que a vamos ver
como fenómeno no tempo e no espaço.
Não conseguimos, por assim dizer, tirar os óculos da razão.
- Então ele considerava que compreender as coisas no tempo e no
espaço era uma propriedade inata em nós.
- De certo modo, sim. O que vemos depende ainda de termos
crescido na Índia ou na Gronelândia. Mas em toda a parte a nossa
experiência do
p. 289
mundo é de uma coisa no tempo e no espaço, e sabemo-lo antecipadamente.
- Mas o tempo e o espaço não existem fora de nós?
- Não. Kant explica que o tempo e o espaço pertencem à própria
condição humana. Tempo e espaço são sobretudo propriedades da nossa
consciência e não propriedades do mundo.
- Isso é um modo de ver completamente diferente.
- A consciência do homem não é, portanto, uma "cera" passiva que
apenas regista as sensações exteriores. É uma instância que se exerce
criativamente. A própria consciência contribui para determinar a nossa
concepção do mundo. Podes comparar com o que se passa quando deitas água
num jarro de vidro. A água toma a forma do jarro.
Do mesmo modo, as nossas sensações ajustam-se às nossas "formas
da intuição".
- Acho que percebo o que queres dizer.
- Kant afirma que não é apenas a consciência que se adapta às
coisas. As coisas também se adaptam à consciência. O próprio Kant
chamava a isto a "revolução copernicana" na questão do conhecimento
humano. Com isso, queria dizer que esta ideia é tão nova e diferente em
relação à tradição como a afirmação de Copérnico de que a terra gira à
volta do sol e não o inverso.
- Agora entendo o que ele queria dizer ao afirmar que tanto os
racionalistas como os empiristas tinham uma parte da razão. Os
racionalistas tinham esquecido a importância da experiência, e os
empiristas não queriam admitir que a nossa razão influencia a nossa
concepção do mundo.
- Também a lei da causalidade - que, segundo Hume, os homens não
podiam percepcionar - é para Kant um elemento da razão humana.
- Explica-me isso!
- Ainda te lembras que Hume afirmou que apenas vemos um nexo
causal necessário por detrás de todos os fenómenos da natureza devido ao
hábito. Hume achava que não podemos ver que a bola de bilhar preta é
causa do movimento da bola branca. Por isso, também não podemos provar
que a bola preta provoque sempre o movimento da bola branca.
- Ainda me lembro disso.
- Mas justamente aquilo que segundo Hume não podemos provar é
visto por Kant como uma propriedade da razão humana. A lei da
causalidade é sempre e absolutamente válida pelo facto de a razão humana
ver tudo o que acontece como relação entre causa e efeito.
p. 290
- De novo, eu diria que a lei da causalidade está na natureza e
não no homem.
- Kant diz que está em nós. Ele está de acordo com Hume em não
podermos saber com segurança o que o mundo é "em si". Apenas podemos
saber como o mundo é "para mim" - logo, para todos os homens. A
distinção que Kant faz entre as "coisas em si" e as "coisas para nós" é
o seu contributo mais importante para a filosofia. Nunca podemos saber
com segurança como as coisas são "em si". Em compensação, podemos, sem
qualquer experiência, dizer como as coisas são compreendidas pela razão
humana.
- E é mesmo assim?
- Antes de saíres de casa de manhã, não podes saber o que vais
ver nesse dia. Mas podes saber que apreenderás como fenómenos no tempo e
no espaço tudo aquilo que vires.
Além disso, podes ter a certeza de que a lei da causalidade é
válida porque faz parte da tua consciência.
- Mas também podíamos ter outra estrutura?
- Sim, podíamos ter uma outra estrutura sensível. E, nesse caso,
podíamos ter também uma outra percepção do tempo e do espaço, ou ser
constituídos de tal modo que não procurássemos as causas dos fenómenos.
- Podes dar um exemplo?
- Imagina um gato que está deitado no chão da sala. Imagina que
uma bola rola para dentro do quarto. O que faz o gato nessa altura?
- Eu já experimentei isso várias vezes. O gato vai a correr
atrás da bola.
- Sim. E agora imagina que tu estás na sala em vez do gato. Se
vês de repente uma bola que vem a rolar, também corres imediatamente
atrás dela?
- Em primeiro lugar, volto-me para ver de onde vem a bola.
- Sim, por seres um ser humano, procurarás forçosamente a causa
de cada acontecimento. A lei da causalidade faz parte do que te
constitui.
- E é de facto assim?
- Hume diria que não podemos sentir nem provar as leis da
natureza, mas Kant não se conformava com isso. Acreditava poder provar a
validade absoluta das leis da natureza ao mostrar que na realidade
estamos a falar de leis do conhecimento humano.
- Uma criança pequena também voltaria a cabeça para saber quem
tinha tocado na bola?
- Talvez não. Mas Kant afirma que a razão não está completamente
desenvolvida numa criança porque ainda não pôde trabalhar com material
p. 291
sensível. Por um lado, temos as condições exteriores, das quais nada
podemos saber antes de as termos percepcionado. Podemos dizer que são a
matéria do conhecimento. Por outro lado, temos as condições interiores
no próprio homem - por exemplo, vermos tudo como fenómenos no tempo e no
espaço e também como processos que seguem uma lei causal imutável.
Podemos dizer que isso é a forma do conhecimento.
Alberto e Sofia ficaram um tempo parados olhando pela janela. De
repente, Sofia viu surgir uma rapariga por entre as árvores, na outra
margem do lago.
- Olha! - disse Sofia.
- Quem é?
- Não faço ideia. Viram a rapariga durante mais alguns segundos,
mas depois desapareceu. Sofia reparara que ela trazia um chapéu
vermelho.
- De qualquer modo, não nos podemos distrair.
- Continua.
- Kant também apontou para o facto de existirem claros limites
para o que os homens podem conhecer. Podes dizer que os óculos da razoo
nos impõem limites.
- Como assim?
- Talvez ainda recordes quais foram as verdadeiras "grandes"
questões filosóficas dos filósofos anteriores a Kant: se o homem possui
uma alma imortal; se Deus existe; se a natureza é constituída por partes
indivisíveis; e se o universo é finito ou infinito.
- Sim.
- Kant achava que o homem nunca poderia atingir um conhecimento
seguro destas questões. Isso não quer dizer que não se preocupasse com
estes problemas. Muito pelo contrário. Se ele tivesse simplesmente
rejeitado estas perguntas, dificilmente lhe poderíamos chamar filósofo.
- E então o que é que ele fez?
- Tens de ter um pouco de paciência. Kant achava que nestas
grandes questões filosóficas, a razão operava fora dos limites daquilo
que o homem pode conhecer. Por outro lado, era inerente à natureza
humana, ou à razão humana, a necessidade de colocar essas questões.
Quando, por exemplo, perguntamos se o universo é finito ou infinito,
perguntamos sobre um todo do qual nós mesmos somos uma parte
extremamente pequena. E nunca podemos conhecer este todo completamente.
- Porque não?
- Quando puseste os óculos vermelhos, nós sabíamos que, segundo
Kant, há dois elementos que contribuem para o nosso conhecimento.
- Experiência sensível e razão.
p. 292
- Sim, recolhemos a matéria para o nosso conhecimento através
dos sentidos, mas esta matéria também se ajusta às características da
nossa razão. Por exemplo, é inerente à nossa razão perguntarmos quais as
causas de um fenómeno.
- Por exemplo, porque é que uma bola rola pelo chão.
- Sim. Mas quando nos questionamos sobre de onde vem o mundo - e
discutimos respostas possíveis -, a razão move-se de certo modo no
vazio. Nessa altura, não pode "trabalhar" nenhuma matéria dos sentidos;
não tem experiências às quais se possa agarrar, porque nunca tivemos
experiência da realidade total da qual somos uma pequena parte.
- É como se fôssemos uma ínfima parte da bola que rola pelo
chão. E por isso não podemos saber de onde vem.
- Mas reside na razão humana a necessidade de perguntar de onde
vem esta bola. Por isso, perguntamos constantemente e esforçamo-nos
para encontrar respostas às grandes questões. Mas como não temos matéria
concreta com que possamos trabalhar, nunca obtemos respostas seguras
porque a razão discorre no vazio.
- Obrigada, conheço bem essa sensação.
- Nas grandes questões, que dizem respeito à realidade no todo,
haverá sempre dois pontos de vista exactamente opostos, igualmente
prováveis e improváveis.
- Dá-me exemplos, por favor.
- Faz tanto sentido dizer que o mundo tem um começo no tempo
como dizer que não tem começo. A razão não pode decidir entre as duas
possibilidades; por isso não pode afirmá-las. Podemos naturalmente
afirmar que o mundo existiu sempre - mas pode alguma coisa ter existido
sempre sem ter tido começo algum? E consideremos o ponto de vista
oposto, dizendo que o mundo tem de ter um início - nesse caso, o mundo
tem de ter surgido do nada, porque de outro modo apenas poderíamos falar
de uma passagem de um estado para outro. Pode alguma coisa vir do nada,
Sofia?
- Não, ambas as possibilidades são problemáticas. Mas uma tem de
ser verdadeira e a outra falsa.
- E sabes que Demócrito e os materialistas tinham explicado que
a natureza era constituída por partículas minúsculas, de que tudo é
composto.
Outros - por exemplo, Descartes - defendiam que a realidade
extensa era divisível em partes cada vez mais pequenas. Qual deles tinha
razão?
- Ambos... nenhum.
- Muitos filósofos tinham também afirmado que a liberdade do
homem era um dos seus mais importantes atributos.
Ao mesmo tempo,
p. 293
deparámos com filósofos - por exemplo, os estóicos e Espinosa -, que
explicavam que tudo no mundo acontecia apenas segundo as leis
necessárias da natureza. Também neste ponto, Kant achava que a razão não
podia pronunciar um juízo seguro.
- Ambos os pontos de vista são plausíveis.
- E, por fim, também não podemos provar com a nossa razão a
existência de Deus.
Nesta questão, os racionalistas - por exemplo, Descartes
- tinham tentado provar que
Deus existe porque temos a ideia de um ser perfeito.
Outros - por exemplo, Aristóteles e S. Tomás de Aquino - eram da
opinião que
Deus tinha de existir porque tudo tem de ter uma primeira causa.
- E o que é que Kant pensava?
- Ele rejeitou ambas as provas da existência de Deus.
Nem a razão nem a experiência têm um fundamento seguro para
afirmarem que Deus existe. Para a razão é tão provável como improvável
que Deus exista.
- Mas tu disseste primeiro que Kant queria defender as bases da
fé cristã.
- Sim, e ele deixa de facto espaço para a religião, a saber,
onde a nossa experiência e a nossa razão não alcançam, a religião pode
preencher este espaço.
- E foi assim que ele salvou o Cristianismo?
- Podes dizer isso. Mas temos de ter em conta que Kant era
protestante. Desde a Reforma, o ênfase na fé foi uma das características
do
Cristianismo protestante. A Igreja Católica, pelo contrário,
confiara mais na razão como um pilar da fé, desde o início da Idade
Média.
- Estou a ver.
- Mas Kant fez mais do que verificar que estas questões
importantes tinham de ser deixadas no domínio da fé. Para ele, a
suposição de que o homem tem uma "alma imortal", que Deus existe e que o
homem tem "livre arbítrio" era uma condição imprescindível para a moral.
- É quase como em
Descartes. Primeiro, é muito crítico em relação àquilo que
podemos compreender. E depois faz entrar novamente Deus e o resto pela
porta traseira.
- Mas, ao contrário de
Descartes, Kant sublinha expressamente que não foi a razão que o
levou até aí, mas a fé. Ele mesmo afirmava que a crença numa alma
imortal e inclusivamente a crença na existência de Deus e no livre
arbítrio do homem eram "postulados práticos".
- O que significa isso?
- Postular significa afirmar uma coisa que não pode ser provada.
Por postulado prático, Kant entende algo que tem de ser afirmado para a
"praxis" do homem, ou seja, para a sua acção e por conseguinte para a
p. 294
sua moral. "É moralmente necessário pressupor a existência de Deus"
afirmou.
Subitamente, alguém bateu à porta. Sofia levantou-se
imediatamente, e como Alberto ficasse sentado impassível, disse:
- Não devíamos abrir a porta?
Alberto encolheu os ombros, mas acabou por se levantar também.
Sofia abriu a porta, e lá fora estava uma rapariga novinha com um
vestido branco de Verão e um pequeno capuz vermelho. Era a mesma que
Sofia vira na outra margem do lago. Reparou que trazia um cesto
com comida.
- Olá - disse Sofia. -
Quem és tu?
- O Capuchinho Vermelho, não vês?
Sofia olhou para Alberto e este acenou afirmativamente.
- Estou à procura da casa da minha avó - explicou a pequena. Ela
está velha e doente, mas eu levo-lhe comida e vinho.
- Não é aqui - disse
Alberto. - Portanto, segue o teu caminho.
Ao dizer isto, fez um gesto com a mão como se estivesse a
enxotar uma mosca.
- Mas eu também tenho de entregar uma carta - explicou a
rapariga do capuz vermelho. Tirou um pequeno envelope da algibeira e
entregou-o a
Sofia. Feito isto, retomou o seu caminho.
- Tem cuidado com o lobo!
- exclamou Sofia.
Alberto já ia novamente a caminho da sua poltrona. Sofia seguiu
-o e sentou-se à sua frente como anteriormente.
- O Capuchinho Vermelho, imagina - disse Sofia abanando a
cabeça.
- E não faz sentido avisá-la. Ela vai para casa da avó e lá
será comida pelo lobo. Não aprende nada; tudo se repete para toda a
eternidade.
- Mas eu nunca ouvi dizer que ela tivesse batido à porta de
outra cabana quando ia ter com a avó.
- Isso é uma ninharia,
Sofia.
Só então olhou Sofia para o envelope. Nele estava escrito: "Para
Hilde". Abriu o envelope e leu alto:
" Querida Hilde! Mesmo que o cérebro humano fosse tão simples
que nós o pudéssemos compreender, seríamos mesmo assim tão estúpidos que
não o compreenderíamos.
Um beijo do pai"
p. 295
Alberto acenou afirmativamente.
- Tem toda a razão. E eu acho que Kant poderia ter dito uma
coisa semelhante.
Não podemos esperar compreender o que somos. Talvez possamos
compreender realmente uma flor ou um insecto, mas nunca nós mesmos. E
muito menos podemos esperar compreender todo o universo.
Sofia teve de ler a estranha frase várias vezes antes de Alberto
prosseguir:
- Não nos podemos deixar distrair por serpentes marinhas e
artifícios semelhantes.
Antes de terminarmos por hoje, ainda te vou falar da ética de
Kant.
- Então despacha-te, tenho de ir para casa.
- O cepticismo de Hume em relação ao que a razão e os sentidos
nos podem transmitir realmente obrigou Kant a reflectir mais uma vez
sobre muitas das mais importantes questões da vida. Isso também era
válido para o campo da moral.
- Hume não disse que não podemos provar o que é justo e o que é
injusto, porque não podemos concluir frases normativas de frases
descritivas?
- Hume considerava que nem a nossa razão nem as nossas
experiências estabelecem a diferença entre o justo e o injusto, só os
nossos sentimentos. Este fundamento parece a Kant demasiado fraco.
- Sim, eu compreendo bem isso.
- Kant tinha desde o princípio a forte impressão de que a
diferença entre o justo e o injusto tinha de ser mais do que uma questão
de sentimentos. Nesse aspecto ele estava de acordo com os racionalistas,
que tinham explicado que era inerente à razão humana distinguir o justo
do injusto. Todos os homens sabem o que é justo e o que não é, e nós
sabemo-lo não apenas porque o aprendemos mas também porque é inerente à
nossa razão. Kant achava que todos os homens tinham uma "razão prática"
que nos diz sempre o que é justo e o que é injusto no domínio da moral.
- Então é inata?
- A capacidade de distinguir o justo do injusto é tão inata como
todos os outros atributos da razão. Todos os homens vêem os fenómenos
como determinados causalmente - e também têm acesso à mesma lei moral
universal. Esta lei moral tem a mesma validade absoluta que as leis
físicas da natureza. Isso é tão fundamental para a nossa vida moral como
é fundamental para a nossa vida racional que tudo tenha uma causa, ou
que sete mais cinco sejam doze.
- E o que é que diz essa lei moral?
p. 296
- Uma vez que precede qualquer experiência, é "formal".
Significa que não está relacionada com possibilidades morais de escolha
determinadas. É válida para todos os homens em todas as sociedades e em
todos os tempos. Logo, não diz que tens de fazer isto ou aquilo nesta ou
naquela situação. Diz como te deves comportar em todas as situações.
- Mas que sentido tem uma lei moral, se não nos diz como nos
devemos comportar numa situação determinada?
- Kant formula a lei moral como imperativo categórico. Por isto,
ele entende que a lei moral é "categórica", quer dizer, é válida em
todas as situações. Além disso, é um "imperativo" e consequentemente uma
"ordem" e absolutamente inevitável.
- Hm...
- Aliás, Kant formula o seu imperativo categórico de diversas
formas. Primeiro, diz: "devíamos agir sempre de tal forma que pudéssemos
desejar simultaneamente que a regra segundo a qual agimos fosse uma lei
universal".
- Quando faço alguma coisa, tenho de ter a certeza de que desejo
que todos façam o mesmo na mesma situação.
- Exacto. Só nessa altura ages de acordo com a tua lei moral
interior. Kant também formulou o imperativo categórico da seguinte
forma: devemos tratar os outros homens sempre como um fim em si e não
como um meio para alguma outra coisa.
- Não podemos portanto "explorar" os outros para obtermos
benefícios.
- Não, porque todos os homens são um fim em si. Mas isso não é
válido apenas para os outros, mas também para nós mesmos. Também não nos
devemos explorar como meio para alcançar algo.
- Isso faz-me lembrar a "regra dourada": não faças aos outros o
que não queres que te façam a ti.
- Sim, e isso é uma norma formal que abrange basicamente todas
as possibilidades éticas de escolha. Podes afirmar que essa regra
dourada exprime aproximadamente aquilo a que Kant chamou lei moral.
- Mas isso é apenas conversa. Hume tinha razão ao dizer que não
podemos provar com a razão o que é justo e o que é injusto.
- Para Kant, a lei moral era tão absoluta e universalmente
válida como, por exemplo, a lei da causalidade. Também não pode ser
provada pela razão, mas é incontornável. Nenhum homem a contestaria.
- Começo a ter a sensação de que estamos realmente a falar da
consciência, porque todos os homens têm uma consciência.
- Sim, quando Kant descreve a lei moral, descreve a consciência
humana. Não podemos provar o que a consciência diz, mas sabemo-lo.
p. 297
- Por vezes, sou muito simpático para com os outros simplesmente
porque é vantajoso para mim. Desse modo, posso ser popular.
- Mas quando és simpática para com os outros apenas para seres
popular, não estás a agir de acordo com a lei moral. Talvez não estejas
a observar a lei moral. Talvez estejas a agir numa espécie de acordo
superficial com a lei moral - e isso já é alguma coisa -, mas uma acção
moral tem de ser o resultado de uma superação de ti mesma. Só quando
fazes algo porque achas ser teu "dever" seguir a lei moral é que podes
falar de uma acção moral. Por isso, a ética de Kant é frequentemente
chamada "ética do dever".
- Eu posso achar ser meu dever juntar dinheiro para a
Cruz Vermelha ou a Caritas.
- Sim, e o importante é tu fazeres uma coisa porque a achas
correcta. Mesmo quando o dinheiro que tu juntaste se extravia ou nunca
alimente as pessoas que devia alimentar, tu cumpriste a lei moral.
Agiste com a atitude correcta e, segundo Kant, a atitude é
decisiva para podermos dizer que uma coisa é moralmente correcta. Não
são as conseqüências de uma acção que são decisivas. Por isso, também
dizemos que a "ética de Kant é uma ética da boa vontade".
- Porque é que era tão importante para ele saber quando é que
agimos por respeito à lei moral? Não é mais importante que aquilo que
fazemos ajude os outros?
- Sim, Kant concordaria, mas só quando sabemos que agimos por
respeito à lei moral é que agimos em "liberdade".
- Só obedecendo a uma lei é que agimos em liberdade? Isso não é
estranho?
- Segundo Kant, não. Talvez ainda te lembres que ele "postulou"
o livre arbítrio do homem. Esse é um ponto importante, porque Kant
achava que todas as coisas seguem a lei da causalidade.
Como é que podemos ter livre arbítrio assim?
- Não me perguntes.
- Aqui, Kant divide o homem em duas partes, e nisso faz lembrar
Descartes, que afirmava que o homem era um ser duplo visto que tem corpo
e razão. Enquanto seres sensíveis, estamos completamente sujeitos às
leis imutáveis da causalidade, segundo Kant.
Não decidimos o que sentimos; as sensações surgem
necessariamente e influenciam-nos, quer queiramos quer não. Mas o homem
não é apenas um ser sensível. Somos também seres racionais.
- Explica-me isso!
- Enquanto seres sensíveis, pertencemos à ordem da natureza. Por
isso estamos sujeitos à lei da causalidade.
Deste ponto de vista, não
p. 298
temos livre arbítrio. Mas enquanto seres racionais, participamos no
mundo "em si" - ou seja, no mundo independente das nossas sensações. Só
quando seguimos a nossa "razão prática" - que nos possibilita fazer uma
escolha moral -, temos livre arbítrio. Se obedecermos à lei moral, somos
nós que fazemos a lei pela qual nos orientamos.
- Sim, isso está certo. Eu digo - ou alguma coisa em mim diz -
que eu não devo ser má para os outros.
- Se decides não ser má - mesmo quando ages contra o teu próprio
interesse - então estás a agir livremente.
- Pelo menos, não somos livres e autónomos quando seguimos
apenas os nossos instintos.
- Podemos fazer-nos escravos de tudo. Sim, podemos
inclusivamente ser escravos do nosso próprio egoísmo. Para nos elevarmos
acima dos nossos instintos e vícios é necessário autonomia - e
liberdade.
- E quanto aos animais? Eles seguem só os seus instintos e
necessidades. Não têm essa liberdade de seguir uma lei moral?
- Não, é justamente esta liberdade que nos torna seres humanos.
- Estou a ver.
- Para concluir, podemos dizer que Kant conseguiu mostrar a
saída para o impasse no qual a filosofia caíra com a disputa entre
racionalistas e empiristas. Com Kant, termina também uma época na
história da filosofia. Ele morreu em 1804 - no começo da época a que
chamamos Romantismo.
No seu túmulo, em Kõnigsberg, está uma das suas frases mais
citadas: "duas coisas preenchem o meu espírito com uma admiração e
respeito sempre novos e crescentes, quanto mais o pensamento se ocupa
delas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim".
Alberto recostou-se na sua poltrona.
- E isto - afirmou. -
Acho que era o mais importante sobre Kant.
- E já quatro e um quarto.
- Mas há mais. Por favor, espera um momento!
- Eu nunca me vou embora antes de o professor dar a aula por
terminada.
- Eu também disse que, segundo Kant, não temos liberdade se
vivermos apenas como seres sensíveis.
- Sim, mais ou menos isso.
- Mas quando seguimos a razão universal, somos livres e
autónomos. Eu também disse isso?
- Sim, porque é que estás a repetir?
p. 299
Alberto inclinou-se para
Sofia e olhou-a profundamente nos olhos e sussurrou:
- Não te deixes enganar por tudo o que vês, Sofia.
- O que é que queres dizer?
- Olha para o outro lado.
- Não estou a perceber nada.
- Dizemos frequentemente: "só acredito quando vir". Mas também
não podes acreditar no que vês.
- Já disseste uma vez uma coisa semelhante.
- Sobre Parménides, sim.
- Mas ainda não compreendo o que queres dizer.
- Bom, nós sentámo-nos na soleira da porta e conversámos. E, de
repente, uma serpente marinha começou a andar às voltas na água.
- Não foi estranho?
- De modo algum. E depois, o Capuchinho Vermelho bate à nossa
porta. "Estou à procura da casa da minha avó". Isto é embaraçoso, Sofia.
Mas todas estas coisas são apenas os truques do major. Tal como a carta
na banana e a trovoada absurda.
- Achas que...
- Estou a dizer que tenho um plano. Desde que sigamos a razão,
ele não nos pode pregar partidas. Nisso, somos de certo modo livres. Ele
pode fazer-nos "experienciar" todas as coisas e nada disso me
surpreenderia. Se ele em seguida obscurecer o céu com elefantes que
voam, no máximo sorrio. Mas sete mais cinco são doze. Isso é um facto
que sobrevive a todos estes efeitos de banda desenhada. A filosofia é o
contrário da fábula.
Sofia olhou para ele admirada.
- Agora podes ir-te embora
- disse por fim. - Volto a telefonar-te para um encontro sobre
o Romantismo. Ficas a saber alguma coisa sobre Hegel e Kierkegaard. Mas
já só falta uma semana para o major regressar à Noruega. Até lá, temos
de nos libertar das suas fantasias de mau gosto. É tudo por hoje, Sofia.
Mas quero que saibas que estou a trabalhar num plano fantástico para
nós.
- Então vou-me embora.
- Espera - se calhar, esquecemo-nos do mais importante.
- O quê?
- A canção dos parabéns,
Sofia. Hilde faz hoje quinze anos.
- Eu também.
- Tu também, sim. Cantemos.
Ambos se levantaram e cantaram:
p. 300
- Parabéns a você, nesta data querida, muitas felicidades,
muitos anos de vida. Hoje é dia de festa, cantam as nossas almas, para a
menina Hilde, uma salva de palmas.
Eram quatro e meia. Sofia desceu em direcção ao lago e remou para a
outra margem. Empurrou o barco para o canavial e correu pelo bosque.
Quando chegou ao carreiro, viu subitamente uma coisa que se
movia entre os troncos.
Sofia pensou no Capuchinho Vermelho, que tinha ido sozinho pelo
bosque para a casa da avó, mas este vulto entre as árvores era muito
mais pequeno.
Aproximou-se. O vulto não era maior do que uma boneca; era
castanho, mas trazia uma camisola vermelha.
Sofia ficou petrificada quando se apercebeu que era um urso de
peluche. Que alguém tivesse esquecido um urso de peluche no bosque não
era estranho, mas este urso de peluche estava vivo e parecia muito
preocupado com alguma coisa.
- Olá - disse Sofia.
A pequena figura voltou-se.
- Eu sou Winnie the Pooh
- disse - e infelizmente perdi-me no bosque, senão seria um bom
dia. Mas nunca te vi.
- Talvez eu nunca tenha estado aqui - disse Sofia.
- Estamos perto de tua casa, no Bosque de Cem Acres?
- Essa pergunta é demasiado difícil. Não te esqueças que eu sou
um urso pouco inteligente.
- Já ouvi falar de ti.
- Então chamas-te Alice.
Christopher Robin falou uma vez sobre ti, deve ter sido assim
que nos conhecemos. Bebeste tanto de uma garrafa que ficaste cada vez
mais pequena. Mas depois bebeste uma outra garrafa e voltaste a crescer.
Temos de ter muito cuidado com aquilo que levamos à boca. Eu próprio
comi tanto uma vez que fiquei preso na toca de um coelho.
- Eu não sou Alice.
- Não é importante quem nós somos. O mais importante é o que nós
somos. E o que diz a coruja e ela é muito inteligente. " Sete mais
quatro são doze", disse num dia de sol. O burro e eu estávamos muito
embaraçados; é tão difícil calcular os números.
Calcular o tempo é muito mais fácil.
- Eu chamo-me Sofia.
- É um prazer conhecer-te,
Sofia. Acho, como disse, que és nova por aqui. Mas agora o
pequeno urso tem de se ir embora. Tenho de tentar
p. 301
encontrar o leitão. Fomos convidados para uma grande festa ao ar livre
com Bugs Bunny e os seus amigos.
Acenou com uma pata. Só então Sofia descobriu que ele segurava
uma folha na outra pata.
- O que tens aí? - perguntou. Winnie the Pooh levantou a folha e
disse:
- Foi por causa disto que me enganei no caminho.
- Mas é apenas uma folha.
- Não, isto não é "apenas uma folha". É uma carta para Hilde -
por-trás-do-espelho.
- Oh, então eu posso levá-la.
- Mas tu não és a rapariga do espelho, pois não?
- Não, mas...
- Uma carta deve sempre ser entregue pessoalmente. Foi
Christopher Robin que me explicou isso ontem.
- Mas eu conheço Hilde.
- Isso não tem importância. Mesmo quando conhecemos alguém muito
bem, nunca devemos ler as suas cartas.
- Eu estou apenas a dizer que lha posso entregar.
- Isso é completamente diferente. Faz o favor, Sofia.
Só quando me livrar desta carta encontrarei o caminho para ir
ter com o leitão. Para encontrar Hilde do espelho, precisas primeiro de
ter um grande espelho, mas isso não é fácil aqui.
O pequeno urso deu a Sofia a folha que segurara na pata e deitou
a correr com os seus pequenos pés. Quando ele desapareceu, Sofia
desdobrou a folha e leu: " Querida Hilde! É uma vergonha que Alberto não
tenha falado a Sofia sobre o facto de Kant se ter pronunciado a favor da
fundação de uma sociedade das nações". Na obra " A paz perpétua", de
1795, ele escreveu que todos os países deviam unir-se numa sociedade
das nações, que asseguraria a coexistência pacífica das diversas nações.
Aproximadamente cento e vinte e cinco anos após a publicação
desta obra - imediatamente a seguir à Primeira Guerra Mundial - esta
Sociedade das Nações foi realmente fundada. Após a Segunda Guerra
Mundial, foi substituída pela
O NU. Podes dizer que Kant foi uma espécie de padrinho da ideia
da O NU. A ideia de Kant era que a "razão prática" dos homens obrigasse
os Estados a abandonar um estado de natureza" que causa sempre novas
guerras, e criasse um sistema jurídico internacional que evitasse as
guerras. Apesar de ser longo o percurso até à fundação de uma sociedade
das nações que
p. 302
funcione verdadeiramente, é nosso dever tratar de assegurar a paz
universal. Para Kant, o estabelecimento de uma sociedade como esta era
um objectivo distante, quase o objectivo último da filosofia. Eu mesmo
me encontro de momento no Líbano.
Beijos do pai"
Sofia pôs a carta no bolso e prosseguiu o seu caminho para casa.
Alberto prevenira-a de encontros no bosque. Mas ela não podia deixar o
pequeno urso às voltas numa busca interminável de Hilde do espelho.
p. 303
O Romantismo
"... o caminho misterioso conduz ao interior..."
Hilde deixou cair o grande "dossier" nos joelhos. Depois, deixou-o
escorregar para o chão.
No quarto, já havia mais claridade do que quando fora para a
cama. Olhou para o relógio. Eram quase três. Voltou-se e fechou os
olhos. Ao adormecer, questionou-se por que razão o seu pai fizera
aparecer subitamente o Capuchinho Vermelho e Winnie the Pooh.
Dormiu até às onze da manhã. Em seguida, teve a sensação de que
sonhara intensamente durante toda a noite, mas não se conseguia lembrar
do que sonhara.
Desceu as escadas e fez o pequeno-almoço. A mãe vestira o fato
-macaco. Queria ir para o barracão dos barcos e reparar o barco. Mesmo
que não fosse para a água, tinha de estar pronto para navegar quando o
pai voltasse do Líbano.
- Vens ajudar-me?
- Primeiro tenho de ler um pouco. Queres que te leve chá e
alguma coisa para comer a meio da manhã?
- Qual meio da manhã?
Depois de ter comido, Hilde voltou para o seu quarto, puxou a
coberta da cama e sentou-se com o grande "dossier" sobre os joelhos.
Sofia passou através da sebe e viu-se no grande jardim que
comparara outrora com o jardim do Éden... Via que havia ramos e folhas
por toda a parte devido ao temporal do dia anterior. Entre o temporal e
os ramos soltos, por um lado, e os seus encontros com o Capuchinho
Vermelho e Winnie the Pooh, por outro, parecia haver uma relação.
Sofia afastou as agulhas de pinheiro e os ramos do baloiço. Era
bom o facto de o baloiço ter almofadas de plástico que não era preciso
levar para casa cada vez que chovia.
Sofia entrou em casa. A mãe acabara :,
p. 304
de chegar. Arrumava garrafas de limonada no frigorífico.
Na mesa da cozinha havia um bolo de chocolate com um aspecto
delicioso.
- Estás à espera de visitas? - perguntou Sofia, que quase se
esquecera do seu aniversário.
- Eu pensei que apesar da festa ao ar livre no sábado devíamos
festejar hoje.
- Como assim?
- Convidei Jorunn e os pais.
Sofia encolheu os ombros.
- Por mim está bem.
Os convidados chegaram pouco antes das sete e meia. A atmosfera
estava um pouco formal porque a mãe de Sofia não se encontrava
frequentemente com os pais de Jorunn.
Sofia e Jorunn subiram logo para o quarto de Sofia para
escreverem os convites para a festa ao ar livre. Visto que queria
convidar também Alberto Knox, Sofia teve a ideia de convidar as pessoas
para uma "festa de jardim filosófica". Jorunn concordou. Afinal era a
festa de Sofia e nessa altura essas "festas com temas" eram muito
populares.
Até terem escrito o texto, passaram mais de duas horas e as duas
raparigas não conseguiam parar de rir.
" Caro...
Convidamos-te para uma festa de jardim filosófica no sábado,
dia 23 de Junho (noite de S. João) às 19 horas em Klõverveien 3. No
decurso da noite esperamos resolver o mistério da vida. Traz um casaco
quente e ideias inteligentes que possam contribuir para uma resolução
dos enigmas da filosofia. Devido ao grande perigo de incêndio florestal,
infelizmente não podemos fazer fogueiras, mas as chamas da fantasia
podem arder livremente. Entre os convidados encontra-se pelo menos um
verdadeiro filósofo. Por isso, o convívio vai ser privado nesta festa.
Membros da imprensa não serão admitidos!
Com os nossos melhores cumprimentos,
Jorunn Ingebrigtsen (comissão organizadora) e Sofia Amundsen (anfitriã)"
Depois foram ter com os adultos que já estavam a falar mais à
vontade. Sofia deu à mãe o convite que escrevera com uma caneta
caligráfica.
- Dezoito fotocópias, por favor - disse. Já tinha pedido outras
vezes à mãe para lhe fazer fotocópias no escritório.
p. 305
A mãe leu rapidamente o convite e passou-o depois ao pai de
Jorunn.
- Estão a ver? Ela perdeu completamente a cabeça.
- Mas isto parece mesmo interessante - disse o pai de Jorunn
enquanto passava a folha à esposa.
- Estou pasmada! - disse esta. - Também podemos vir,
Sofia?
- Então vinte cópias - disse Sofia.
- Deves estar maluca - disse Jorunn.
Antes de ir para a cama nessa noite, Sofia ficou muito tempo a
olhar pela janela. Lembrou-se como uma vez vira a sombra de Alberto na
escuridão. Já passara mais de um mês. Nesse momento também era de noite,
mas era uma noite clara de Verão.
Alberto só voltou a dar notícias suas na manhã de terça -feira.
Telefonou logo depois de a mãe de Sofia ter ido trabalhar.
- Sofia Amundsen.
- Alberto Knox.
- Era o que eu estava a pensar.
- Peço desculpa por telefonar só agora, mas estive a trabalhar
intensivamente no nosso plano. Só quando o major se concentra
completamente em ti é que tenho descanso e posso trabalhar sem ser
perturbado.
- Estranho.
- Posso esconder-me, percebes? Mesmo o melhor serviço secreto
do mundo tem as suas limitações, se tem apenas um agente... Recebi um
postal teu.
- Um convite, queres dizer.
- Arriscas mesmo?
- Porque não?
- Nunca se sabe o que pode suceder numa festa destas.
- Vens?
- Claro que vou. Mas há mais uma coisa. Já pensaste que o pai de
Hilde regressa do Líbano nesse mesmo dia?
- Não, não tinha pensado nisso.
- É impossível ser obra do acaso que ele te faça organizar uma
festa filosófica justamente no dia em que regressa a Bjerkely.
- Como disse, não tinha pensado nisso.
- Mas ele pensou. Bom, ainda vamos falar sobre isso. Podes ir
hoje de manhã à cabana do major?
- Eu tenho que tirar a erva daninha de alguns canteiros.
- Então às duas. Pode ser?
- Lá estarei.
p. 306
Desta vez, Alberto Knox também estava sentado na soleira da
porta quando Sofia chegou.
- Senta-te aqui - disse
- e foi directo ao assunto.
- Até agora falámos sobre o Renascimento, o Barroco e o
Iluminismo. Hoje vamos falar sobre o Romantismo, ao qual podemos chamar
a última grande época cultural da Europa. Estamos a aproximar-nos do
fim de uma longa história, minha filha.
- O Romantismo durou tanto tempo?
- Começou em finais do século Xviii e durou até meados do século
passado. Mas a partir de 1850 já não faz sentido falar de épocas
completas que abranjam do mesmo modo poesia e filosofia, arte, ciência e
música.
- Mas o Romantismo foi ainda uma dessas épocas?
- Sim, e como disse, a última na Europa. Teve início na
Alemanha, como reacção ao culto da razão no Iluminismo.
Após Kant e a sua fria filosofia racional, os jovens na
Alemanha pareciam respirar fundo.
- E o que é que colocaram no lugar da razão?
- Os novos "slogans" eram "sentimento", "fantasia", "vivência" e
"nostalgia". Alguns pensadores do Iluminismo também tinham apontado para
a importância dos sentimentos - por exemplo, Rousseau - e criticado a
insistência exclusiva na razão. Esta corrente secundária tornou-se a
corrente principal da vida cultural alemã.
- Então Kant não foi popular por muito tempo?
- Sim e não. Muitos românticos viam-se como herdeiros de Kant.
Kant afirmara que havia limites para aquilo que podemos conhecer. Por
outro lado, mostrara como era importante o contributo do eu para o
conhecimento. E agora, no Romantismo, o indivíduo tinha, por assim
dizer, livre curso para a sua interpretação pessoal da existência. Os
românticos professavam um culto quase desenfreado do eu. Por isso, a
essência da personalidade romântica é também o génio artístico.
- Havia muitos génios naquela época?
- Alguns. "Beethoven", por exemplo. Na sua música, encontramos
uma pessoa que exprime os seus próprios sentimentos e nostalgias. Deste
modo, Beethoven era um artista "livre" - ao contrário dos mestres do
Barroco como Bach e Haendel que compunham as suas obras para glória de
Deus e geralmente segundo regras rigorosas.
- Eu conheço apenas a sonata " Ao luar" e a " Quinta sinfonia".
- Mas vês como é romântica a sonata " Ao luar" e como Beethoven
se exprime de forma dramática na " Quinta sinfonia".
- Disseste que os humanistas do Renascimento também eram
individualistas.
p. 307
- Sim, há muitos paralelismos entre o Renascimento e o
Romantismo. Um desses paralelismos é, por exemplo, o grande valor dado à
importância da arte para o conhecimento humano. Também neste aspecto,
Kant tinha aberto caminho para o Romantismo. Na sua estética ele
investigara o que sucede quando somos dominados por uma coisa bela, uma
obra de arte, por exemplo.
Quando vemos uma obra de arte sem outro interesse que o de "vivê
-la" tão intensamente quanto possível, ultrapassamos o limite daquilo
que podemos conhecer, ou seja, o limite da nossa razão.
- Isso quer dizer que o artista nos proporciona algo que o
filósofo não pode proporcionar-nos?
- Era assim que Kant pensava, e juntamente com ele os
românticos. Segundo Kant, o artista joga livremente com a sua faculdade
de conhecer. O poeta "Friedrich Schiller" desenvolveu a ideia de Kant.
Ele achava que a actividade do artista era como um jogo e só quando o
homem jogava era livre, porque fazia as suas próprias leis. Os
românticos acreditavam que apenas a arte nos podia aproximar do
"indizível". Alguns foram até às últimas conseqüências e compararam o
artista com Deus.
- Porque o artista cria a sua própria realidade, tal como Deus
criou o mundo.
- Dizia-se que o artista tinha uma espécie de imaginação
criadora de universos. No seu arrebatamento artístico, conseguia
experimentar o desaparecimento da fronteira entre sonho e realidade. O
poeta " Novalis", um dos jovens génios da Alemanha, afirmou: " O mundo
torna-se sonho, o sonho mundo". Ele escreveu um romance medieval com o
título "Heinrich von Ofterdingen", que ainda estava incompleto quando o
autor morreu em 1801, mas que teve grande importância para o Romantismo.
Nele lemos que o jovem Heinrich procurava a "flor azul", que
vira uma vez em sonhos e da qual se finava de saudades desde então. O
poeta romântico inglês Coleridge exprimiu a mesma ideia do seguinte
modo:
"What if you slept? And what if, in your sleep, you dreamed? And what
if, in your dream, you went to heaven and there plucked a strange and
beautiful flower? And what if, when you awoke, you had the flower in
your hand? Ah, what then? (E se adormecesses? E se, no teu sono,
sonhasses? E se, no teu sonho, subisses aos céus e ali colhesses uma
estranha e bela flor? E ainda se, ao acordares, tivesses a flor na tua
mão. Ah, como seria, então?)" :,
p. 308
- Que bonito!
- Este desejo de algo longínquo e inatingível era típico dos
românticos. Eles também podiam ter a nostalgia de um mundo desaparecido
- por exemplo, a Idade Média, que no Iluminismo fora tida pela idade das
trevas e era agora revalorizada. Ou tinham nostalgia de culturas
distantes, por exemplo, o " Oriente" com a sua mística. E sentiam-se
atraídos pela noite, por ruínas antigas e pelo sobrenatural. Preocupavam
-se com aquilo a que chamamos o lado nocturno da vida, ou seja, o
obscuro, o lúgubre e místico.
- Acho que parece uma época excitante. Mas quem eram então esses
românticos?
- O romantismo foi sobretudo um fenómeno urbano. Na primeira
metade do século passado, a cultura urbana viveu uma época áurea em
muitas regiões da Europa, em especial na Alemanha. Os "românticos"
típicos eram jovens, frequentemente estudantes - apesar de nem sempre
serem muito dedicados ao estudo. Tinham uma atitude declaradamente anti
-burguesa e chamavam a mortais vulgares como policias, por exemplo, ou
às senhorias, "filisteus", ou simplesmente "inimigos".
- Então eu nunca alugaria um quarto a um romântico.
- A primeira geração de românticos era ainda muito jovem por
volta do ano 1800.
Deste ponto de vista, podemos dizer que o movimento romântico
foi a primeira revolta juvenil da Europa. Há um claro paralelismo com a
cultura "hippie" cento e cinqüenta anos depois.
- Flores e cabelos compridos, tocar a guitarra e não fazer nada?
- Sim, dizia-se que o ócio era o ideal do génio e a inércia a
primeira virtude romântica. Era dever do romântico viver a vida - ou
afastar-se dela, sonhando. Os filisteus é que deviam preocupar-se com
os assuntos do dia-a-dia.
- Houve românticos na
Noruega?
- "Wergeland" e "Welhaven" foram dois deles. Wergeland defendeu
também muitos ideais do Iluminismo, mas a sua vida foi típica de um
romântico. Ele entusiasmava-se, estava apaixonado, mas - e este também
era um traço romântico típico - Stella, a quem ele dedicou os seus
poemas de amor, estava tão distante e tão inacessível como a "flor azul"
de Novalis. O próprio Novalis ficou noivo de uma rapariga que tinha
apenas catorze anos. Ela morreu quatro dias após ter feito quinze anos,
mas Novalis amou-a durante toda a vida.
- Ela morreu mesmo quatro dias após ter feito quinze anos?
- Sim...
- Eu tenho hoje quinze anos e dez dias.
-Tens razão...
p. 309
- Como é que se chamava?
- Chamava-se Sophie.
- O que estás a dizer?
- Sim, chamava-se Sophie...
- Estás a assustar-me!
Será um acaso?
- Não faço ideia, Sofia. Mas ela chamava-se Sophie.
- Continua!
- O próprio Novalis morreu com apenas vinte e nove anos. Muitos
românticos morreram jovens, geralmente de tuberculose. Alguns suicidaram
-se...
- Meu Deus!
- E aqueles que chegaram a velhos, normalmente deixavam de ser
românticos quando atingiam os trinta anos. Alguns tornavam-se mais
tarde burgueses e conservadores.
- Então passaram-se para o campo do inimigo.
- Sim, talvez. Mas estávamos a falar sobre a paixão romântica: a
grande obra sobre o amor inacessível é o romance epistolar de amor, de
"Goethe", " Die Leiden des jungen Werthers" ( As mágoas do Jovem
Werther), que foi publicado em 1774. Termina com o suicídio do jovem
Werther por não poder ter aquela que ama...
- Ele não terá ido demasiado longe nisso?
- Os seus contemporâneos podiam compreender muito bem estes
sentimentos. Pelo menos, por toda a parte em que o romance foi
publicado, o suicídio aumentou rapidamente. Por isso, o livro foi
proibido durante algum tempo na Dinamarca e na Noruega. Não era
totalmente inofensivo ser-se romântico, estavam em jogo sentimentos
muito fortes.
- Quando dizes "romântico", eu penso em grandes pinturas de
paisagens. Vejo florestas misteriosas e a natureza selvagem...
envolvidas em névoa.
- Aos traços mais característicos do Romantismo pertenciam
efectivamente a nostalgia pela natureza e uma verdadeira mística
natural. Era um fenómeno urbano, como disse - uma coisa deste género não
surge no campo. Sabes que o estribilho "Regresso à natureza!" provém de
Rousseau. Só então, no Romantismo, é que este mote recebeu um verdadeiro
impulso. O romantismo era também uma reacção à concepção mecanicista do
mundo do Iluminismo. Com razão se afirmou que o Romantismo trouxe
consigo um Renascimento do antigo pensamento da totalidade.
- Explica-me isso!
- Significa que a natureza foi vista novamente como unidade. Os
românticos recorreram a "Espinosa", mas também a "Plotino" e a filósofos
do
p. 310
Renascimento como "Jakob Boehme" e "Giordano Bruno". Todos eles tinham
visto na natureza um "Eu" divino.
- Eram panteístas...
- Descartes e Hume tinham traçado uma fronteira nítida entre o
eu e a realidade "extensa". Também Kant tinha colocado uma separação
clara entre o eu como sujeito e a natureza "em si". Agora, a natureza
era tida como único grande "eu". Os românticos usavam também expressões
como "alma do mundo", ou "espírito do mundo".
- Compreendo.
- O filósofo mais influente do Romantismo foi "Friedrich Wilhelm
Schelling", que viveu entre 1775 e 1854. Ele procurou eliminar a
separação entre "espírito" e "matéria". Toda a natureza - tanto a alma
do homem como a realidade física - era expressão de um Deus ou do
"espírito do mundo", segundo ele.
- Sim, isso faz lembrar Espinosa.
A natureza era o espírito visível, o espírito a natureza
invisível, segundo Schelling. Pois em toda a natureza pressentimos um
espírito ordenador, estruturante. Via a matéria como uma espécie de
inteligência adormecida.
- Tens de explicar isso melhor.
- Schelling via na natureza um espírito do mundo, mas também via
este espírito do mundo na consciência do homem.
Deste ponto de vista, a natureza e a consciência humana são na
verdade expressão da mesma coisa.
- Sim, porque não?
- Podemos procurar o espírito do mundo tanto na natureza como no
nosso próprio espírito. Deste modo, Novalis podia dizer que o "caminho
misterioso" conduzia ao interior. Ele achava que o homem trazia em si
todo o universo e que por isso podia experienciar melhor o mistério do
mundo se penetrasse dentro de si.
- É uma ideia bonita.
- Para muitos românticos, a filosofia, a investigação natural e
a poesia formavam uma unidade. Quer se estivesse no quarto de estudo e
escrevesse poemas inspirados, quer se investigasse a vida das plantas ou
a composição das pedras - tratava-se apenas de duas faces da mesma
moeda, porque a natureza não era um mecanismo morto, mas um espírito
vivo.
- Se contares mais coisas, eu torno-me imediatamente romântica.
- O naturalista norueguês "Henrik Steffens" - a quem Wergeland
chamava "desaparecida folha de louro norueguesa", por ele ter ido viver
para a Alemanha - foi em 1801 para Copenhaga, para dar aulas
p. 311
sobre o Romantismo alemão. Ele caracterizou o movimento romântico com as
seguintes palavras: "cansados das tentativas eternas para forçarmos o
caminho pela matéria rude, escolhemos um outro caminho e procurávamos
atingir o infinito. Entrámos em nós mesmos e criámos um novo mundo".
- Como é que sabes tudo isso de memória?
- Uma ninharia, Sofia.
- Continua!
- Schelling via também um desenvolvimento na natureza, desde as
pedras até à consciência humana, referindo-se a transições progressivas
desde a natureza inanimada até formas de vida mais complexas. A visão
romântica da natureza estava marcada pela concepção da natureza como um
organismo, ou seja, como unidade, que através dos tempos desenvolve as
suas potencialidades inerentes. A natureza é como uma flor, que
desenvolve as suas folhas e pétalas. Ou como um poeta, que cria os seus
poemas.
- Isso não faz lembrar um pouco Aristóteles?
- Sim, claro. A filosofia romântica apresenta tanto traços
aristotélicos como traços neoplatónicos. Aristóteles tinha uma concepção
mais orgânica dos processos naturais do que os materialistas
mecanicistas.
- Estou a ver.
- Também encontramos ideias semelhantes numa nova visão da
história. O filósofo da história "Johann Gottfried Herder" que viveu
entre 1744 e 1803 teve uma grande importância para os românticos.
Segundo ele, o curso da história era o resultado de um processo
teleológico. Justamente por isso designamos a sua visão da história como
"dinâmica". Os iluministas tinham uma visão "estática" da história. Para
eles, havia apenas uma razão universal, e que podia estar ora mais ora
menos presente, consoante as diferentes épocas. Herder mostrou, pelo
contrário, que cada época da história tinha o seu próprio valor, e cada
povo tinha o seu carácter especial, a sua própria "alma do povo".
A questão era apenas se e como nos podíamos identificar com
outros tempos e culturas.
- Da mesma maneira que nos temos de identificar com a situação
de outra pessoa para a entendermos melhor, também temos de nos
identificar com outras culturas para as conhecermos.
- Hoje, isso tornou-se quase evidente. Mas, durante o
Romantismo, era um conhecimento novo. O Romantismo contribuiu para
fortalecer o sentimento da identidade própria de cada nação. Não é por
acaso que também aqui na Noruega a luta pela independência nacional se
tenha desenvolvido justamente em 1814.
p. 312
- Compreendo.
- Uma vez que o Romantismo trazia consigo uma nova orientação em
tantos domínios, é frequente distinguir duas formas de Romantismo. Por
Romantismo entendemos, por um lado, aquilo a que podemos chamar
"Romantismo universal". Estamos a pensar nos românticos que se
preocupavam com a natureza, a alma universal e o génio artístico. Esta
forma de Romantismo foi a primeira e floresceu sobretudo na cidade alemã
de Jena por volta do ano 1800.
- E a outra forma de Romantismo?
- Era o chamado "Romantismo nacional". Surgiu um pouco mais
tarde e o seu centro era em Heidelberg. Os românticos nacionais
interessavam-se sobretudo pela história do povo, a sua língua e por
toda a cultura "popular".
O povo também era visto como um organismo que desenvolve as
capacidades que lhe são inerentes - exactamente como a natureza e a
história.
- Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és.
- Aquilo que ligava as duas formas de romantismo era sobretudo a
palavra -chave "organismo". Todos os românticos viam tanto uma planta
como um povo, inclusivamente uma obra de poesia, como um organismo vivo.
Por isso, não há uma fronteira nítida entre as duas formas. O espírito
do mundo estava tão presente no povo e na cultura popular como na
natureza e na arte.
- Compreendo.
- Já Herder reunira canções populares de muitos países e deu à
sua colecção o expressivo título "Vozes do povo". Ele dizia que a poesia
popular era a "língua materna dos povos". Em Heidelberg, começou-se a
reunir canções populares e contos populares. Já ouviste falar dos contos
dos Irmãos Grimm?
- Claro que sim - a "Branca de Neve", o " Capuchinho Vermelho",
a "Gata Borralheira" e "Haensel e Gretel"...
- E muitos, muitos outros.
Na Noruega tivemos " Asbjõrnsen" e "Moe", que viajavam pelo
país, para recolherem a "Poesia do povo". Era a colheita de um fruto
suculento, que se reconheceu subitamente ser saboroso e nutritivo. E era
urgente - o fruto já caía das árvores. "Landstad" recolheu canções
populares e "Ivar Aasen" recolheu por assim dizer a própria língua
norueguesa. Também os mitos e as sagas da época pagã foram redescobertos
em meados do século xix. Em toda a Europa, os compositores utilizavam
canções populares nas suas composições. Procuravam assim fazer uma ponte
entre a música erudita e a música popular.
- Música erudita?
p. 313
- A música erudita é composta por uma pessoa determinada - por
exemplo, Beethoven. A música popular não foi criada por uma pessoa
específica, mas pelo próprio povo. Por isso, também não sabemos
exactamente de quando é cada canção. Do mesmo modo distinguimos contos
populares e contos eruditos.
- O que significa um conto erudito?
- É um conto que um escritor imaginou, por exemplo, "Hans
Christian Andersen".
O género do conto foi cultivado com grande ardor pelos
românticos. Um dos mestres alemães foi "E. T. A. Hoffmann".
- Acho que já ouvi falar dos " Contos de Hoffmann".
- O conto era o ideal literário dos românticos - mais ou menos
como o teatro era a forma artística do Barroco.
Dava ao escritor a possibilidade de jogar com o seu próprio
poder criativo.
- Ele podia representar o papel de Deus para um mundo imaginado.
- Exacto. E agora, é necessário uma espécie de resumo.
- Faz favor.
- Os filósofos do Romantismo compreendiam aquilo a que chamavam
"alma do mundo" como um "eu", que cria as coisas no mundo num estado
mais ou menos de sonho. O filósofo "Johann Gottlieb Fichte" afirmou que
a natureza provinha de uma actividade imaginativa elevada, inconsciente.
Schelling afirmava explicitamente que o mundo estava "em
Deus". Deus estaria consciente de alguma coisa, segundo ele, mas
havia também aspectos da natureza que representavam o inconsciente de
Deus. Pois Deus tinha também uma "face obscura".
- Essa ideia é simultaneamente assustadora e fascinante. Faz-me
lembrar Berkeley.
- A relação entre o escritor e a sua obra era vista
aproximadamente desse modo. O conto dava ao escritor a possibilidade de
jogar com a sua imaginação criativa. E o acto criador nem sempre era
muito consciente. O escritor podia ter a sensação de que a história que
ele escrevia surgia de uma força interior. Ele quase podia escrever como
que hipnotizado.
- Sim?
- Mas em seguida também podia romper a ilusão de repente. Podia
intervir na história através de pequenos comentários irónicos para o
leitor, e este lembrar-se-ia de que o conto era apenas um conto.
- Compreendo.
- Deste modo, o escritor podia também fazer recordar o leitor
que a sua existência era fictícia. Esta forma de destruir a ilusão é
designada por ironia romântica. O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen põe
uma das personagens da sua peça Peer Gynt a dizer: " Não se pode morrer
no meio do quinto acto."
p. 314
- Compreendo que essa fala é um pouco estranha. Com isso, ele
está simultaneamente a dizer que é apenas um personagem de fantasia.
- Esta fala é tão paradoxal que devíamos terminar com ela um
parágrafo.
- O que queres dizer com isso?
- Ah, nada, Sofia. Lembras-te de que a noiva de
Novalis se chamava Sofia como tu, e além disso morreu com quinze
anos e quatro dias...
- Ainda não percebeste que eu fiquei assustada?
O olhar de Alberto endureceu. Prosseguiu:
- Tu não tens que ter medo de vir a sofrer o mesmo destino da
amada de Novalis.
- Porque não?
- Porque ainda faltam muitos capítulos.
- O que estás a dizer?
- Digo que todos os que lêem a história de Sofia e
Alberto, sentem nas pontas dos dedos que ainda faltam muitas
páginas da história.
Ainda só chegámos ao Romantismo.
- Estou a ficar mesmo confusa com a tua conversa.
- Na realidade, o major tenta pôr Hilde confusa. Não achas isso
maldoso, Sofia?
Novo parágrafo!
Alberto não terminara ainda a sua frase quando um rapaz veio a
correr do bosque. Trazia vestes árabes e um turbante. Tinha uma
lamparina na mão.
Sofia agarrou no braço de
Alberto.
- Quem é este? - perguntou. Mas o jovem respondeu por si mesmo.
- Eu chamo-me Aladino e venho do Líbano.
Alberto examinou-o severamente.
- O que tens na tua lamparina, rapaz?
O rapaz esfregou a lamparina - e dela subiu um fumo espesso. Do
fumo formou-se a figura de um homem. Tinha uma barba negra como a de
Alberto e trazia uma bóina azul. Flutuava no ar sobre a lamparina e
disse:
- Estás a ouvir-me, Hilde? Venho certamente demasiado tarde
para novas felicitações. E agora quero apenas dizer que Bjerkely e o sul
da
Noruega me parecem quase um sonho. Lá nos veremos dentro de
poucos dias.
A figura masculina voltou a desaparecer em fumo - e toda a nuvem
foi sugada para dentro da lamparina. O rapaz com o turbante pôs a
lamparina debaixo do braço, correu para o bosque e desapareceu.
p. 315
- Isto... isto é inacreditável. - afirmou Sofia.
- Uma bagatela, minha filha.
- O génio falou exactamente como o pai de Hilde.
- Era o seu génio...
- Mas...
- Eu e tu, e tudo o que sucede à nossa volta - tudo isso se
passa no fundo da mente do major. É noite avançada no sábado, dia 28 de
Abril; à volta do major desperto dormem todos os soldados da
O NU, e ele também já está muito sonolento. Mas tem de terminar
o livro que quer oferecer a Hilde pelo seu aniversário. Por isso tem de
trabalhar, Sofia, por isso o pobre homem não tem descanso.
- Acho que desisto!
- Novo parágrafo!
Sofia e Alberto olhavam fixamente para o pequeno lago.
Alberto estava como que petrificado. Passado um pouco,
Sofia atreveu-se a dar-lhe um toque no ombro.
- Perdeste a fala?
- Ele interveio directamente, sim. Os últimos capítulos foram
inspirados por ele até às mais pequenas letras.
Devia ter vergonha. Mas assim também se traiu, deu-se a
conhecer completamente. Agora sabemos que vivemos a nossa vida num livro
que o pai de Hilde lhe envia pelos anos. Tu ouviste o que eu disse, não
ouviste? - Apesar de na realidade não ter sido "eu" quem disse isso.
- Se isso é verdade, vou tentar fugir do livro e seguir o meu
próprio caminho.
- É exactamente esse o meu plano secreto. Mas primeiro, temos
que tentar falar com Hilde. Ela lê todas as palavras que estamos a
dizer. E quando tivermos fugido daqui tornar-se -á muito mais difícil
retomar o contacto com ela.
- O que havemos de dizer?
- Acho que o major adormece sobre a sua máquina de escrever. Os
seus dedos percorrem ainda o teclado com uma pressa febril.
- Um pensamento estranho.
- Mas, justamente agora, ele pode escrever coisas de que se
venha a arrepender. E não tem corrector, Sofia. Este é um elemento
importante do meu plano. Ai daquele que der ao major Albert Knag um
corrector!
- De mim ele não leva sequer papel nem corrector!
- Exorto neste momento a pobre rapariga a rebelar-se contra o
seu pai. Ela devia ter vergonha por se divertir com o seu jogo ridículo
de
p. 316
sombras. Se ele estivesse aqui, o senhor major sentiria a nossa
irritação no corpo.
- Mas ele não está aqui.
- O seu espírito e a sua alma estão aqui, mas ele está no
Líbano. Tudo o que vemos à nossa volta é o "eu" do major.
- Mas ele é mais do que isso.
- Nós somos apenas sombras na sua alma. Não é fácil para uma
sombra atacar o seu mestre, Sofia. Para isso, é necessário coragem e uma
reflexão madura. Mas nós temos a possibilidade de influenciar Hilde. Só
um anjo se pode insurgir contra um deus.
- Nós podemos incitar Hilde a dizer-lhe das boas logo que ele
chegue a casa. Ela pode dizer-lhe que acha que ele é um trapaceiro.
Pode estragar-lhe o barco - ou pelo menos destruir as luzes de bordo.
Alberto acenou afirmativamente. Em seguida, disse:
- E ela pode fugir dele. É mais fácil para ela do que para nós.
Pode deixar a casa do major e não pôr lá mais os pés. Isso seria justo
para o major, que brinca à nossa custa com a sua imaginação.
- Já estou a imaginar: o major viaja pelo mundo à procura de
Hilde, mas Hilde desapareceu sem deixar rasto porque não quer viver com
um pai que faz troça de Sofia e
Alberto.
- Ele faz troça, sim. Era o que eu queria dizer com o facto de
nos utilizar como entretenimento de aniversário. Mas ele devia ter
cuidado,
Sofia. E Hilde também.
- O que queres dizer?
- Estás bem sentada?
- Desde que não venham mais génios, sim.
- Tenta imaginar que tudo o que vivemos se passa na consciência
de uma outra pessoa. Nós somos essa consciência. Não temos uma alma
própria, somos a alma de um outro. Até agora encontramo-nos em solo
filosófico familiar Berkeley e Schelling arrebitariam as orelhas.
- Sim?
- E podemos imaginar que esta alma é o pai de Hilde Mõller Knag.
Ele está no Líbano e escreve à filha um livro de filosofia para o seu
aniversário. Quando Hilde acordar no dia 15 de Junho, encontrará o livro
na mesa de cabeceira e então ela e outras pessoas podem ler sobre nós.
Ele já disse há muito tempo que o "presente" pode ser partilhado com
outros.
- Eu sei.
- E Hilde lê aquilo que te estou a dizer depois de o pai ter
estado em dada altura no Líbano e ter imaginado que eu te conto que ele
está no Líbano... imaginando que eu te conto que ele está no Líbano...
p. 317
De repente, tudo se voltou na cabeça de Sofia. Tentou lembrar
-se do que ouvira sobre Berkeley e os românticos. E
Alberto prosseguiu:
- Mas por isso eles não deviam estar tão convencidos. E
sobretudo não se deviam rir, porque podem engasgar-se com esse riso.
- Quem?
- Hilde e o pai. Não é deles que estamos a falar?
- Mas porque é que eles não deviam estar convencidos?
- Porque não é um pensamento totalmente impossível eles serem
também apenas consciência.
- Como é que isso é possível?
- Se era possível para Berkeley e para os românticos, também tem
de ser possível para eles. Talvez o major seja um fantasma num livro que
trata dele e de Hilde, mas também de nós, que somos uma pequena parte da
sua vida.
- Isso seria ainda mais grave. Assim, seríamos apenas sombras de
sombras.
- Mas podemos pensar que um outro autor está em algum lado e
escreve um livro que trata deste major da O NU,
Albert Knag que escreve um livro para a sua filha Hilde. Este
livro trata de um certo
Alberto Knox que começa subitamente a enviar modestas lições de
filosofia a Sofia
Amundsen, em Klõverveien 3.
- Acreditas nisso?
- Apenas estou a dizer que é possível. Para nós, este autor
seria um Deus oculto,
Sofia. Apesar de tudo o que dizemos e fazemos vir dele, porque
nós somos ele, nunca poderemos saber algo sobre ele. Estamos arrumados
na caixa mais interior.
Sofia e Alberto ficaram calados muito tempo. Sofia quebrou por
fim o silêncio:
- Mas se existe realmente um escritor que imagina a história
sobre o pai de Hilde no Líbano exactamente como imaginou a história
sobre nós...
- Sim?
- ... nesse caso podemos pensar que ele também não se devia
gabar demasiado.
- O que queres dizer com isso?
- Ele está lá, e algures no fundo da sua mente estão Hilde e eu.
Mas não se pode imaginar que ele também viva numa consciência ainda mais
elevada?
Alberto acenou afirmativamente com a cabeça.
- É evidente, Sofia. Também isso é possível. E se é assim, ele
fez-nos ter esta conversa filosófica para indicar essa possibilidade.
Assim, quer
p. 318
sublinhar que também é uma sombra indefesa e que este livro, em que
Hilde e Sofia vivem, é na realidade um manual de filosofia.
- Um manual?
- Porque todas as conversas que tivemos, todos os diálogos,
Sofia.
- Sim?
- São na realidade um monólogo.
- Agora, tenho a sensação de que tudo se dissolve em consciência
e em espírito. Estou contente por ainda haver alguns filósofos. A
filosofia, que começou tão bem com Tales, Empédocles e
Demócrito, não pode encalhar aqui?
- Claro que não. Eu vou falar-te de Hegel. Foi o primeiro
filósofo que tentou salvar a filosofia depois de o Romantismo ter
dissolvido tudo em espírito.
- Estou ansiosa.
- Para não sermos interrompidos por outros génios ou sombras,
vamos para dentro, está bem?
- Está um pouco frio, de qualquer modo.
- Próximo capítulo!
p. 319
Hegel
"... o que é racional é real..."
Hilde deixou cair o grande "dossier" no chão com um estampido. Ficou
deitada na cama e a olhar fixamente para o tecto. Tudo parecia andar à
roda. O seu pai tinha conseguido efectivamente que ela ficasse tonta.
Que pirata!
Como é que ele podia fazer isto?
Sofia tinha tentado falar directamente com ela. Exortara Hilde a
rebelar-se contra o pai. E tinha realmente conseguido inculcar uma
ideia em Hilde. Um plano...
Sofia e Alberto não podiam tocar num cabelo do seu pai, isso era
claro. Mas Hilde podia! E através de Hilde,
Sofia também. Hilde estava de acordo com
Sofia e Alberto no facto de o seu pai ter ido longe demais com o
jogo das sombras. Apesar de ter concebido Sofia e
Alberto, havia limites para a demonstração do seu poder. Pobre
Sofia, pobre Alberto! Estavam tão indefesos em relação à fantasia do pai
de Hilde como uma tela está indefesa em relação ao projec - cionista.
Hilde queria dar-lhe um raspanete quando ele chegasse a casa. Em
contornos nítidos, ela via nesse mesmo instante o esboço de um golpe
astuto. Foi para a janela e olhou para a enseada. Eram quase duas horas.
Abriu a janela e gritou em direcção ao barracão dos barcos:
- Mãe! Pouco depois, a mãe apareceu.
- Daqui a uma hora levo-te umas sanduíches. Está tudo bem?
- Sim.
- Ainda tenho que ler um pouco sobre Hegel.
Sofia e Alberto sentaram-se na poltrona em frente à janela que dava para o pequeno lago.
p. 320
- "Georg Wilhelm Friedrich Hegel" era um verdadeiro filho do
Romantismo - começou Alberto. - Quase podes dizer que ele seguiu
fielmente o desenvolvimento do espírito alemão. Nasceu em Estugarda em
1770 e iniciou um curso de teologia em Tubinga com dezoito anos. A
partir de 1799 trabalhou com Schelling em Iena, onde o movimento
romântico estava no apogeu. Depois de ter sido docente em Iena, recebeu
uma cátedra em Heidelberg - o centro do Romantismo nacional alemão.
Finalmente, tornou-se professor em Berlim em 1818 - exactamente na
época em que esta cidade começava a tornar-se um centro espiritual da
Europa. Em
Novembro de 1831, morreu de cólera, mas nessa altura o
"hegelianismo" já tinha grupos de discípulos em quase todas as
universidades alemãs.
- Então ele apanhou o principal.
- Sim, e isso também é válido para a sua filosofia. Hegel uniu
nela quase todas as ideias que se tinham desenvolvido com os românticos
e sintetizou-as. Mas ele era também um forte crítico da filosofia de
Schelling, por exemplo.
- O que é que criticou nela?
- Schelling e os outros românticos tinham visto o mais profundo
fundamento da realidade no chamado espírito do mundo. Hegel também
emprega o conceito "Weltgeist", mas dá-lhe outro significado.
Quando Hegel fala de espírito do mundo ou de "razão do mundo",
quer dizer a soma de todas as manifestações humanas, pois só o homem tem
espírito. Nesta acepção, ele também fala do percurso do espírito do
mundo através da história. Não podemos esquecer que ele fala da vida,
dos pensamentos e da cultura dos homens.
- Então este espírito é menos assustador. Já não está à espreita
como uma inteligência adormecida em pedras e árvores.
- E tu sabes ainda que Kant tinha falado da "coisa em si".
Apesar de negar que os homens pudessem ter um conhecimento claro dos
segredos mais íntimos da natureza, ele apontou para uma espécie de
verdade inatingível. Segundo Hegel, esta verdade era fundamentalmente
subjectiva - e negou que pudesse haver uma verdade acima ou além da
razão humana. Todo o conhecimento é conhecimento humano.
- Ele queria trazer a filosofia de volta à terra?
- Sim, talvez possas dizer isso. Mas a filosofia de Hegel é tão
abrangente e diversificada que temos de nos contentar por agora com a
clarificação de alguns dos pontos mais importantes. É difícil dizermos
que Hegel tinha uma filosofia própria. Aquilo a que chamamos a filosofia
de Hegel é sobretudo um método para compreender a evolução da história.
Por isso, quase não podemos falar sobre Hegel sem mencionarmos
p. 321
a evolução da história. A filosofia de Hegel não nos ensina
realmente nada sobre a "natureza profunda da vida", mas pode ensinar
-nos a pensar de um modo frutífero.
- E isso também é muito importante.
- Todos os sistemas filosóficos anteriores a Hegel tinham
tentado estabelecer critérios eternos para aquilo que o homem pode saber
acerca do mundo. Isso sucede em
Descartes e Espinosa, Hume e Kant. Qualquer deles queria
investigar qual era o fundamento de todo o conhecimento humano. Mas
todos tinham falado sobre os pressupostos intemporais para o
conhecimento do mundo.
- Não é esse o dever do filósofo?
- Hegel achava impossível encontrar esses pressupostos
intemporais. Segundo ele, as bases do conhecimento humano mudam de
geração para geração. Por isso, também não há para ele "verdades
eternas". Não há razão intemporal. O único ponto fixo em que o filósofo
se pode basear é a própria história.
- Não, tens de me explicar isso. A história altera-se
constantemente, como é que pode ser um ponto fixo?
- Um rio também se altera constantemente. Mas isso não significa
que não possas falar sobre esse rio. Mas não podes perguntar em que
parte do vale o rio é mais verdadeiro.
- Não, porque o rio é em toda a parte igualmente rio.
- Para Hegel, a história era como o curso de um rio. O mais
pequeno movimento na água num ponto determinado do rio é na realidade
determinado pela queda da água e pela agitação da água mais acima. Mas
também é importante que pedras e curvas há no rio no ponto em que tu
estás e o observas.
- Acho que estou a perceber.
- A história do pensamento
- ou da razão - é como o curso desse rio. Contém todas as ideias
que gerações de pessoas pensaram antes de ti e que determinam o teu
pensamento do mesmo modo que as condições de vida da tua época. Por
isso, não podes afirmar que uma determinada ideia é eternamente
verdadeira. Mas essa ideia pode ser verdadeira onde tu estás.
- Mas isso não significa que tudo é falso - ou que tudo é
verdadeiro, pois não?
- Não, uma coisa só pode ser verdadeira ou falsa em relação a um
contexto histórico.
Se argumentas a favor da escravatura no ano de 1990 tornas-te
ridícula, na melhor das hipóteses. Há dois mil e quinhentos anos não era
tão ridículo, apesar de já nessa época haver vozes progressistas que
defendiam a abolição da escravatura. Mas podemos
p. 322
tomar um exemplo mais próximo. Há apenas cem anos ainda não era
irracional queimar extensas áreas de floresta para se obter terreno
arável. Mas hoje é extremamente irracional.
Nós temos condições completamente diferentes - e melhores
- para julgarmos.
- Agora compreendi.
- Também a razão, diz Hegel, é algo dinâmico, é um processo. E a
"verdade" é apenas este processo. Não há critérios exteriores ao
processo histórico que possam decidir o que é mais verdadeiro ou
racional.
- Exemplos, por favor.
- Não podes examinar diversas ideias da Antiguidade ou da Idade
Média, do Renascimento ou do Iluminismo e dizer que isto estava certo e
aquilo errado. Por isso, também não podes dizer que Platão estava errado
ou que
Aristóteles tinha razão. Também não podes dizer que Hume estava
errado enquanto Kant ou Schelling tinham razão. Isso é um modo de pensar
anti-histórico.
- Pois, não me parece bem.
- Não podes arrancar nenhuma filosofia nem nenhuma ideia do seu
contexto histórico. Mas, e agora estou a falar de um aspecto novo, uma
vez que os homens compreendem sempre coisas novas, a razão é
"progressiva". Significa que o conhecimento humano está constantemente
em expansão e em progresso.
- Assim, a filosofia de Kant seria um pouco mais correcta do que
a de Platão?
- Sim. O "espírito do mundo" desenvolveu-se no tempo que medeia
entre Platão e Kant. Se regressarmos à nossa imagem do rio podes dizer
que agora leva mais água. Entre as duas épocas passaram mais de dois mil
anos. Kant não pode pretender que as suas "verdades" fiquem na margem
como pedras imóveis. As suas ideias também não são a última conclusão da
sabedoria e a geração seguinte criticá-las-ia seriamente. Foi
exactamente o que se passou.
- Mas este rio do qual estás a falar...
- Sim?
- Para onde corre?
- Hegel explicou que o espírito tem cada vez mais consciência de
si mesmo. Os rios são cada vez mais largos quanto mais se aproximam do
mar.
Segundo Hegel, na história, o espírito do mundo desperta
lentamente para a consciência de si mesmo. O mundo existiu sempre, mas,
através da cultura e do desenvolvimento do homem, o espírito fica cada
vez mais consciente do seu valor intrínseco.
- Como é que ele podia ter tanta certeza disso?
p. 323
- Para ele era uma realidade histórica, não era de modo algum
uma mera profecia. Para quem estuda a história, segundo ele, torna-se
claro que a humanidade caminha em direcção a um autoconhecimento e a um
autodesenvolvimento cada vez maiores. A história mostra um inequívoco
desenvolvimento no sentido de uma racionalidade e liberdade
progressivamente maiores. Naturalmente, tem todo o tipo de hesitações,
mas em geral avança de modo imparável. Para Hegel, a história dirige-se
a um fim.
- Então estamos sempre a desenvolver-nos. Que bom, nesse caso
ainda há esperança.
- A história é para Hegel uma longa cadeia de pensamentos, cujos
elos não se ajustam ao acaso, mas segundo leis determinadas. Quem estuda
a história pormenorizadamente há-de reparar que geralmente uma nova
ideia é exposta com base noutra anteriormente expressa. Mas se uma nova
ideia é apresentada, será forçosamente contestada por outra nova ideia.
Deste modo, surgem duas formas de pensar opostas e entre elas uma
tensão. Esta tensão é superada quando uma terceira ideia que preserva o
melhor dos dois pontos de vista precedentes é apresentada. Hegel chama a
isto o processo "dialéctico".
- Tens um exemplo?
- Talvez ainda te lembres que os pré -socráticos tinham
discutido a questão do elemento primordial e do devir.
- Sim.
- E os eleatas declararam que qualquer transformação era
impossível. Por isso, tinham de negar todas as alterações, mesmo que as
sentissem com os sentidos. Os eleatas tinham exposto uma perspectiva, e
Hegel chama a essa perspectiva uma "tese".
- Sim?
- Mas cada vez que uma perspectiva é apresentada, surge uma
perspectiva contrária. Hegel chama-lhe "negação". A negação da
filosofia dos eleatas era a filosofia de Heraclito, que afirmava que
"tudo flui". Surgiu então uma tensão entre duas formas de pensar
diametralmente opostas. Mas esta tensão foi "suprimida" quando
Empédocles afirmou que ambos estavam parcialmente certos e parcialmente
errados.
- Sim, começo a compreender...
- Os eleatas tinham razão em dizer que por princípio nada se
altera; mas não era verdade que não podemos confiar nos nossos sentidos.
Heraclito tinha razão ao dizer que podemos confiar nos nossos
sentidos; mas não tinha razão ao dizer que "tudo" flui.
- Porque existe mais do que um elemento primordial. A composição
altera-se, mas os elementos não.
p. 324
- Exacto. O ponto de vista de Empédocles, que medeia entre os
pontos de vista opostos, é designado por Hegel a "negação da negação".
- Meu Deus!
- Ele também chamava aos três estádios do conhecimento "tese,
antítese" e "síntese". Podes dizer que o racionalismo de Descartes é a
tese - o qual foi depois criticado pela antítese empírica de Hume. Mas
esta oposição, a tensão entre duas formas de pensamento opostas foi
superada pela síntese de Kant. Kant deu razão por um lado aos
racionalistas, por outro aos empiristas. Ele mostrou também que ambos
estavam errados em pontos importantes. Mas a história não termina com
Kant. A síntese de Kant tornou-se o ponto de partida para uma nova
cadeia de pensamentos tripartida ou "tríade". Porque a síntese também se
tornou tese e segue-se uma nova antítese.
- Mas isso é extremamente teórico.
- Sim, é teórico. Mesmo que isto pareça verdade, Hegel não
queria de modo algum espartilhar a história num esquema. Ele achava
poder retirar este modelo dialéctico da própria história. Estava
fortemente convicto de ter encontrado leis para o desenvolvimento da
razão - ou para a evolução do espírito através da história.
- Compreendo.
- Mas a dialéctica de Hegel não se aplica apenas à história.
Mesmo quando discutimos - ou debatemos - pensamos dialecticamente.
Tentamos detectar os erros de uma forma de pensar. Hegel chamou-lhe
"pensamento negativo". Mas quando tivermos descoberto os erros de uma
forma de pensar conservamos ainda o que estava correcto nela.
- Exemplos, por favor!
- Quando um socialista e um conservador se reúnem para resolver
um problema social, será logo patente uma tensão entre ambas as maneiras
de pensar. Mas isso não quer dizer que um tem toda a razão e o outro
está completamente errado. É perfeitamente pensável que ambos estejam
parcialmente certos e parcialmente errados. No decurso da discussão
conservar-se -ão, se eles são inteligentes, os melhores argumentos de
ambos os lados.
- Esperemos que sim.
- Se estamos no meio de uma discussão destas, infelizmente nem
sempre é fácil verificar o que é mais racional. No fundo, é a história
que tem de mostrar o que é verdadeiro e o que é falso. O que é
racional é real, segundo Hegel.
- Isso quer dizer que o que sobrevive está certo? - Ou ao
contrário: o que está certo sobrevive.
p. 325
- Não tens um pequeno exemplo? Isso parece tudo tão abstracto.
- Há cento e cinqüenta anos muitos lutavam pela igualdade de
direitos para as mulheres. E muitos lutavam encarniçadamente contra a
igualdade. Se hoje examinarmos os argumentos de ambos os lados, não é
difícil reconhecer quais eram os mais racionais. Mas não podemos
esquecer que posteriormente sabemos sempre mais. Provou -se que aqueles
que lutaram pela igualdade de direitos tinham razão. Muitas pessoas
teriam certamente vergonha se tivessem de ler o que o seu avô disse
acerca deste tema.
- Sim, percebo. O que é que Hegel achava?
- Sobre a igualdade?
- Sim, não é disso que estamos a falar?
- Queres ouvir uma citação?
- Sim.
- " A diferença entre homem e mulher é a mesma que entre o
animal e a planta" - escreveu ele. " O animal corresponde mais ao
carácter do homem, a planta mais ao da mulher, pois o seu
desenvolvimento é mais tranquilo, e o princípio que lhe está subjacente
é sobretudo a unidade indeterminada do sentimento. Se as mulheres estão
no topo do poder, o governo está em perigo, porque elas não agem de
acordo com as exigências da universalidade, mas de acordo com uma
inclinação e opinião arbitrárias.
A formação das mulheres dá-se, por assim dizer, na atmosfera da
imaginação, mais através da vida do que da aquisição de conhecimentos.
Enquanto o homem atinge o seu lugar apenas através da aquisição das
ideias e de muito empenho técnico."
- Obrigada, já chega. Prefiro não ouvir mais citações dessas.
- Mas a citação é um exemplo brilhante de que a nossa noção do
que é "racional" se altera constantemente. Mostra também que Hegel era
um filho do seu tempo - tal como nós. Muito do que nos parece hoje
"evidente" não passará o teste da história.
- Tens um exemplo?
- Não, não tenho.
- Porque não?
- Porque eu apenas poderia falar do que já está em vias de
transformação. Eu não poderia, por exemplo, dizer que andar de carro
será tido um dia como algo terrivelmente estúpido porque destrói a
natureza. Hoje, já muita gente pensa assim. Por isso, seria um mau
exemplo. Mas a história vai mostrar que muito do que todos nós temos
por evidente não passará o teste da história.
- Compreendo.
p. 326
- E podemos reparar ainda noutra coisa: o facto de os homens no
tempo de Hegel fazerem estas afirmações extremas sobre a inferioridade
da mulher apenas acelerou o desenvolvimento do feminismo.
- Como assim?
- Os homens apresentaram - como teria dito Hegel - uma tese. A
razão pela qual eles achavam isso importante era obviamente o facto de
as mulheres já terem começado a insurgir-se. Não é preciso ter uma
opinião tão decidida sobre uma coisa com a qual todos estão de acordo.
Quanto mais eles discriminavam as mulheres, mais forte se tornava a
antítese ou negação.
- Acho que estou a compreender.
- Podes dizer que adversários enérgicos são o melhor que pode
acontecer a uma ideia. Quanto mais extremistas melhor, porque mais forte
será a reacção a que terão de fazer face. Sob o ponto de vista
puramente lógico ou filosófico existe também uma tensão dialéctica entre
dois conceitos.
- Exemplos, por favor!
- Quando reflicto sobre o conceito "ser", tenho também que
introduzir o conceito oposto "não-ser". É impossível pensarmos que
existimos sem nos lembrarmos em seguida que não existiremos sempre. A
tensão entre "ser" e "não-ser" é resolvida no conceito "devir". O
processo do devir significa de certo modo que uma coisa é e não é.
- Compreendo.
- A razão de Hegel é uma razão dinâmica. Uma vez que a realidade
é caracterizada por antíteses, uma descrição da realidade também tem que
ser contraditória. Vou dar-te um exemplo: diz-se que o físico
dinamarquês " Niels Bohr" pendurou uma ferradura sobre a porta da sua
casa.
- Diz-se que traz sorte.
- Mas isso é apenas superstição, e Niels Bohr era de facto tudo
menos supersticioso. Quando, certa vez, um amigo o visitou, perguntou
-lhe: - " Não acreditas numa coisa dessas, pois não?". " Não",
respondeu Niels Bohr, "mas disseram-me que resulta".
- Não tenho palavras.
- A resposta foi bastante dialéctica; alguns diriam que é
contraditória. Niels Bobr era conhecido, bem como o poeta norueguês
Vinje, por uma visão dialéctica do mundo. Ele afirmou certa vez que
existem dois tipos de verdade, as superficiais, cuja antítese era
incontestavelmente falsa, mas também as profundas, cuja antítese era
tão verdadeira como elas próprias.
- Que tipo de verdades eram essas?
p. 327
- Se, por exemplo, digo que a vida é curta...
- Eu estou de acordo.
- Numa outra ocasião posso abrir os braços e dizer que a vida é
longa.
- Tens razão. De certo modo, também é verdade.
- Para terminar vou dar-te ainda um exemplo de como uma tensão
dialéctica pode provocar uma acção espontânea que leva a uma mudança
súbita.
- Diz!
- Imagina uma rapariga que diz sempre: " Sim, mamã", " Claro,
mamã", " Como queiras, mamã", " Sim, vou já fazer isso, mamã!".
- Sinto um calafrio nas costas.
- Certo dia, a mãe irrita-se por a filha ser sempre tão
obediente e grita enervada: " Não sejas tão obediente!", e a filha
responde: " Sim, mamã!"
- Nesse caso, eu dava-lhe uma bofetada.
- É, não é? Mas o que farias se ela tivesse respondido: " Não,
eu quero ser obediente".
- Seria uma resposta estranha. Talvez lhe desse à mesma uma
bofetada.
- Por outras palavras, estamos num impasse. A tensão dialéctica
agravou-se tanto que tem de haver uma mudança.
- Referes-te à bofetada?
- Temos de mencionar ainda um último aspecto da filosofia de
Hegel.
- Sou toda ouvidos.
- Lembras-te que caracterizámos os românticos como
individualistas?
- O caminho misterioso conduz ao interior.
- Justamente este individualismo encontrava na filosofia de
Hegel a sua "negação". Hegel dava um grande peso àquilo a que chamava
"poderes objectivos", isto é, a família e o Estado. Podes dizer que
Hegel não perdeu o indivíduo de vista; apenas o via sobretudo como um
elemento orgânico da comunidade. A razão, ou o espírito, são visíveis
sobretudo na colaboração entre homens, segundo Hegel.
- Explica-te!
- A razão manifesta-se sobretudo na língua. E a língua é algo
no qual nascemos. A língua norueguesa passa bem sem o senhor Hansen, mas
o senhor Hansen não pode viver sem a língua norueguesa. Não é o
indivíduo que forma a língua, mas a língua que forma o indivíduo.
- Sim, podes dizer isso.
p. 328
- Assim como o indivíduo nasce numa língua, também nasce no seu
contexto histórico. E ninguém tem uma relação "livre" com esse contexto.
Quem não encontra o seu lugar no Estado é uma pessoa anti
-histórica. Talvez te lembres ainda que esta ideia também era importante
para os grandes filósofos de Atenas.
O Estado é tão inconcebível sem cidadãos como os cidadãos sem o
Estado.
- Compreendo.
- Para Hegel, o Estado é "mais" do que o cidadão individual. E é
mais do que a soma de todos os cidadãos. Hegel acha impossível que
alguém se despeça, por assim dizer, da sociedade. Quem encolhe os
ombros em relação à sociedade em que vive e prefere "encontrar-se a si
mesmo" é, segundo ele, um louco.
- Não sei se estou de acordo, mas está bem.
- Para Hegel, não é o indivíduo que se encontra a si mesmo, mas
o espírito.
- O espírito encontra-se a si mesmo?
- Hegel tentou mostrar que o espírito regressa a si em três
estádios, ou seja, torna-se consciente de si mesmo em três estádios.
- Continua!
- Em primeiro lugar, o espírito toma consciência de si no
indivíduo, o que Hegel designa "espírito subjectivo".
O espírito atinge uma consciência mais elevada de si na família,
na sociedade, e no Estado, que Hegel designa por "espírito objectivo",
porque é uma razão que se manifesta na interacção entre os homens. Mas
há ainda um terceiro estádio...
- Estou ansiosa.
- A forma mais elevada de autoconhecimento é atingida pelo
espírito no "espírito absoluto". E este espírito absoluto é a arte, a
religião e a filosofia. Dentre estas, a filosofia é a forma mais
elevada da razão, pois na filosofia o espírito reflecte sobre o seu
papel na história. Só na filosofia é que o espírito se encontra a si
mesmo.
Deste ponto de vista, poderíamos dizer que a filosofia é o
espelho do espírito.
- Isso parece tão misterioso que tenho que assimilá-lo com
calma. Mas a última coisa que disseste agradou-me.
- Eu disse que a filosofia é o espelho do espírito.
- Isso é bonito. Achas que isso tem alguma coisa a ver com o
espelho de latão?
- Sim, já que perguntas.
- O que queres dizer com isso?
- Eu penso que este espelho de latão tem uma importância
especial, uma vez que está sempre a vir à baila.
- Então também tens uma ideia de qual é a importância dele?
p. 329
- Não, não. Eu apenas disse que o espelho não seria mencionado
tantas vezes se não tivesse uma importância especial para Hilde e o seu
pai. Mas só Hilde pode revelar qual é a sua importância.
- Isto foi ironia romântica?
- É uma pergunta sem esperança, Sofia.
- Porquê?
- Nós não podemos ser irónicos. Somos vítimas indefesas dessa
ironia. Quando uma criança desenha alguma coisa numa folha de papel, não
podes perguntar ao papel o que representa o desenho.
- Deixas-me arrepiada.
p. 330
KIERKEGAARD
. "a Europa está a caminho da bancarrota"...
Hilde olhou para o relógio. Já passava das quatro. Pôs o "dossier" na
escrivaninha e desceu a correr para a cozinha. Tinha de ir para o
barracão dos barcos com as sanduíches antes que a mãe desistisse de
esperar. Ao sair, lançou um olhar ao espelho de latão.
Com toda a pressa, pôs ao lume a água para o chá e barrou alguns
pães.
Sim, havia de pregar uma partida ao pai. Hilde via-se cada vez
mais como aliada de
Sofia e Alberto. Ele já devia estar a partir de
Copenhaga...
Desceu para o barracão com um grande tabuleiro nas mãos.
- Faça favor, a refeição!
A mãe tinha um grande pedaço de lixa na mão. Limpou da fronte os
cabelos, cinzentos devido ao pó de esmeril.
- Mas assim, saltamos o almoço.
Sentaram-se na doca e comeram.
- Quando é que chega o pai? - perguntou Hilde passado um pouco.
- No sábado. Mas tu sabes isso.
- Mas quando? Não disseste que ele tem de fazer transbordo em
Copenhaga?
- Sim...
A mãe mastigava uma sanduíche com chouriço e pepino.
- ... ele chega a
Copenhaga por volta das cinco. O avião parte em seguida às oito
e um quarto para Kristiansand. Acho que ele chega às nove e meia.
- Então fica algumas horas em Copenhaga.
- Sim. Porquê?
- Ah... eu só queria saber qual era o percurso.
Continuaram a comer.
Quando Hilde achou que já tinha passado tempo suficiente,
perguntou:
- Tens ouvido falar de
Anne e Ole ultimamente?
p. 331
- Sim, às vezes telefonam. Vêm cá em Julho, de férias.
- Não vêm antes disso?
- Não, acho que não.
- Então estão em
Copenhaga esta semana...
- Hilde, o que é que se passa?
- Nada. Sobre alguma coisa temos que falar.
- Mas já falaste duas vezes sobre Copenhaga.
- A sério?
- Falámos sobre o facto de o pai passar por lá...
- E depois lembrei-me de
Anne e Ole de repente.
Depois de terem comido, Hilde colocou os pratos e as chávenas no
tabuleiro.
- Tenho de continuar a ler, mamã...
- Suponho que sim... Haveria nesta resposta uma ligeira censura?
Tinham dito que queriam ter o barco preparado até ao regresso do pai.
- O pai quase me fez prometer que eu teria o livro terminado
quando ele chegasse.
- Não sei se acho isso bem. Uma coisa é ele estar fora tantas
vezes, mas dirigir ao longe tudo o que se passa aqui em casa...
- Se tu soubesses tudo o que ele dirige - disse Hilde
misteriosamente. - E nem podes calcular como ele gosta disso. Foi para o
quarto e continuou a ler.
Sofia ouviu alguém bater à porta. Alberto lançou-lhe um olhar
severo. - Não queremos ser incomodados. Bateram com mais força.
- Vou falar-te sobre um filósofo dinamarquês que se irritou
muito com a filosofia de Hegel - disse Alberto. Mas estavam a bater com
tanta força que a porta tremia.
- É óbvio que o major nos enviou de novo alguma personagem
fantástica para ver se caímos na armadilha - explicou Alberto. - Não lhe
custa nada.
- Mas se não abrirmos e virmos quem é, também não lhe custa nada
deitar a casa abaixo.
- Talvez tenhas razão. Vamos abrir. Foram à porta. Uma vez que
tinham batido com tanta força,
Sofia esperava uma pessoa grande. Mas lá fora estava uma
rapariga novita com um vestido florido e cabelos loiros compridos. Tinha
duas pequenas garrafas nas mãos. Uma era vermelha, a outra azul.
p. 332
- Olá - disse Sofia - quem és tu?
- Eu chamo-me Alice - disse a rapariga, e fez uma mesura
acanhada.
- Já estava à espera - afirmou Alberto. - É a
Alice no País das Maravilhas.
- Mas como é que ela encontrou o caminho?
Alice respondeu por Sofia:
- O País das Maravilhas é um país totalmente ilimitado.
Significa que está em toda a parte - mais ou menos como a O NU. O País
das Maravilhas devia por isso tornar-se sócio honorário da
O NU. Devíamos ter representantes próprios em todas as
comissões.
- Ah, aquele major! - disse Alberto, sorridente.
- O que te traz aqui? - perguntou Sofia.
- Tenho de entregar estas garrafas de filosofia. E entregou a
Sofia as pequenas garrafas. Ambas eram de vidro brilhante, mas numa
encontrava-se um líquido vermelho, na outra um líquido azul. Na garrafa
vermelha estava escrito: BEBE -ME!, na azul: BEBE -ME T AMBÉM! Em
seguida, passou um coelho branco a correr pela cabana. Andava direito
sobre as patas traseiras e trazia colete e casaco. Em frente da cabana,
tirou um relógio do bolso do colete e disse:
- Não, agora estou demasiado atrasado.
Depois, desatou a correr.
Alice correu atrás dele. Ao afastar-se, fez mais uma vénia e
disse:
- Lá começa tudo de novo!
- Tens de cumprimentar
Dina e a rainha! - gritou-lhe Sofia. E Alice desapareceu.
Alberto e Sofia ficaram parados na escada e observaram as
garrafas.
- BEBE -ME! E BEBE -ME T AMBÉM! - leu Sofia alto.
- Não sei se me atrevo. Se calhar é veneno.
Alberto encolheu os ombros.
- As garrafas vêm do major, e tudo o que vem do major é apenas
consciência. É apenas sumo imaginário.
Sofia tirou a rolha da garrafa vermelha e levou-a à boca com
cuidado. O sumo tinha um sabor doce e estranho. Imediatamente, aconteceu
algo com o mundo à sua volta: primeiro, as imagens do lago, do bosque e
da cabana pareciam convergir. Em seguida, Sofia julgou estar a ver
apenas uma pessoa e esta pessoa era ela própria. Quando finalmente olhou
para Alberto, este também parecia ter-se tornado uma parte de si mesma.
- Que estranho - afirmou.
- De repente, tudo o que eu vejo parece estar relacionado.
p. 333
Tenho a sensação de que tudo é apenas uma consciência.
Alberto acenou afirmativamente - mas Sofia teve a sensação de
estar a acenar para si mesma.
- Isso é o panteísmo ou a filosofia da unidade - disse
Alberto. - É o espírito dos românticos. Eles viram tudo como um
único grande "eu". Também é Hegel - que por um lado não descurou o
indivíduo, e por outro lado entendia tudo como expressão de uma razão
universal.
- Será que devo beber da outra garrafa?
- É o que está escrito.
Sofia tirou a rolha da garrafa azul e bebeu um grande gole. Este
sumo tinha um sabor mais fresco e amargo do que o vermelho, mas também
se deu uma mudança súbita com tudo à sua volta: num segundo desapareceu
o efeito da bebida vermelha; e tudo voltou ao lugar. Alberto era de novo
Alberto, as árvores eram de novo árvores e a água parecia de
novo um lago. Isso durou apenas um segundo, e em seguida tudo o que
Sofia via deslizou afastando-se. O bosque já não era um bosque, a mais
pequena árvore parecia-lhe um mundo à parte, o mais pequeno ramo um
conto sobre o qual se podiam contar mil histórias.
O pequeno lago parecia-lhe um mar infinito - não por ser muito
fundo ou extenso, mas devido aos seus milhares de pontos cintilantes e
formas variadas de ondas. Sofia compreendeu que podia observar este mar
até ao resto da sua vida - e contudo ele havia de lhe parecer sempre um
mistério insondável.
Sofia elevou o olhar em direcção à copa de uma árvore.
Aí, três pequenos pardais faziam um jogo divertido. Já estavam
na árvore quando
Sofia bebera da garrafa vermelha, mas Sofia não os tinha visto
bem. A garrafa vermelha tinha apagado todos os contrastes e todas as
diferenças individuais.
Sofia desceu da laje sobre a qual estava e ajoelhou-se na
relva. E aí encontrou um novo mundo - mais ou menos como se tivesse
mergulhado e abrisse os olhos no fundo do mar pela primeira vez. Entre
tufos de relva e caules de plantas formigavam seres vivos. Sofia viu uma
aranha que se arrastava pelo musgo com energia e segurança, um pulgão
vermelho que corria para cima e para baixo numa haste, e todo um
exército de formigas trabalhando em conjunto. Mas cada formiga movia as
pernas à sua maneira.
O mais estranho sucedeu quando Sofia se levantou e olhou para
Alberto, que ainda estava à soleira da porta. De repente, viu nele um
ser completamente estranho, qualquer coisa como um homem de um outro
planeta - ou como uma figura encantada de um conto de fadas. E viu-se
também como
p. 334
um indivíduo único: não era apenas uma pessoa, não era apenas uma
rapariga de quinze anos - era Sofia Amundsen, e só ela o era!
- O que estás a ver? - perguntou Alberto.
- Vejo que és um pássaro estranho.
- A sério?
- Acho que nunca vou compreender como é ser uma outra pessoa.
Não há duas pessoas iguais em todo o mundo.
- E o bosque?
- Já não parece o mesmo. É todo um universo de contos
fantásticos.
- Era o que eu suspeitava.
A garrafa azul é o individualismo. Foi a reacção de
Sõren Kierkegaard ao idealismo dos românticos. O contista Hans
Christian
Andersen não foi contemporâneo de Kierkegaard por acaso. Ele
tinha o mesmo olho apurado para a infinita riqueza de pormenores da
natureza. Leibniz já o possuíra cem anos antes e reagiu à filosofia da
unidade de Espinosa tal como Kierkegaard a Hegel.
- Estou a ouvir o que dizes, mas soa tão estranho que tenho
vontade de rir.
- Compreendo. Nesse caso bebe um gole da garrafa vermelha. E
depois sentamo-nos aqui na escada. Temos de dizer alguma coisa sobre
Kierkegaard antes de terminarmos por hoje.
Sentaram-se e Sofia bebeu um gole da garrafa vermelha.
As coisas confluíram de novo, inclusivamente um pouco demais,
pois Sofia tinha novamente a sensação de que nenhuma diferença tinha
qualquer importância. Tocou no gargalo da garrafa azul com a língua e o
mundo ficou mais ou menos como estava antes de Alice ter trazido as
garrafas.
- Mas isto é "verdadeiro"?
- perguntou então Sofia. - É a garrafa vermelha ou a azul que
nos proporciona a verdadeira experiência do que o mundo é na realidade?
- Ambas, Sofia. Não podemos dizer que os românticos estavam
errados. Mas talvez fossem um pouco parciais.
- E a garrafa azul?
- Acho que Kierkegaard deve ter bebido alguns fortes goles
dessa. Ele tinha um olho extremamente apurado para o significado do
indivíduo. Mas nós também não somos apenas "filhos do nosso tempo".
Cada um de nós é igualmente um indivíduo único que apenas vive
uma vez.
- Aparentemente, Hegel não estava particularmente interessado
nisso?
- Não, ele preocupava-se sobretudo com as grandes linhas da
história. E foi justamente isso que irritou Kierkegaard. Ele achou que a
filosofia da unidade dos românticos e o "historicismo" de Hegel tinham
retirado ao
p. 335
indivíduo a responsabilidade pela sua própria vida. Para Kierkegaard,
Hegel e os românticos eram talhados exactamente na mesma pedra.
- Consigo compreender que ele se tenha irritado.
- Sõren Kierkegaard nasceu em 1813 em Copenhaga e foi educado
pelo pai de uma forma muito severa. Dele herdou também a melancolia
religiosa.
- Isso não é bom.
- Não. Devido a melancolias, sentiu-se forçado a romper um
noivado quando era jovem, o que não foi nada bem aceite pela burguesia
de
Copenhaga. Ele tornou-se muito cedo uma pessoa excluída e
escarnecida. Bom, com o tempo, aprendeu a reagir. Com o tempo, tornou
-se aquilo que Ibsen descreveu mais tarde como "inimigo do povo".
- Tudo isso por causa de um noivado desfeito?
- Não, não apenas por isso. Sobretudo por volta do final da sua
vida, tornou-se um crítico cada vez mais acérrimo de toda a cultura
europeia. Ele achava que a Europa estava a caminho da bancarrota.
Julgava viver numa época sem paixão nem empenho, e vociferava contra a
atitude tíbia e desleixada da Igreja. A sua crítica ao chamado "
Cristianismo de domingo" era tudo menos delicada.
- Hoje devíamos falar antes de " Cristianismo do crisma". A
maior parte das crianças só são crismadas por causa dos presentes.
- Sim, tens razão. Para Kierkegaard, o Cristianismo era ao mesmo
tempo tão grandioso e tão irracional que só podia haver um ou/ou. Era
impossível, segundo ele, ser-se "um pouco" cristão ou cristão "até um
certo grau".
Ou Jesus ressuscitou no
Domingo de Páscoa - ou não. E se Ele ressuscitou verdadeiramente
dos mortos, se Ele morreu verdadeiramente por nós, isso é tão grandioso
que "tem" de determinar toda a nossa vida.
- Compreendo.
- Kierkegaard sentia que a Igreja e a maior parte dos cristãos
do seu tempo tinham uma posição francamente pedante em relação às
questões religiosas. Para ele, isso era impensável. Religião e razão
eram para ele como fogo e água. Não era suficiente ter o cristianismo
por "verdadeiro", segundo ele. Fé cristã significava seguir o exemplo de
Jesus.
- E o que é que isso tinha a ver com Hegel?
- Oh! Se calhar começámos pela ponta errada.
- Então proponho que metas a marcha atrás e comeces do
princípio.
- Kierkegaard iniciou os estudos de teologia com dezassete anos,
mas começou a interessar-se cada vez mais por questões filosóficas. Com
vinte e oito anos fez o seu doutoramento com a dissertação
O "conceito de ironia, sobre
p. 336
tudo em Sócrates". Nela fez contas com a ironia romântica e o jogo
descomprometido dos românticos com a ilusão.
Confrontou a ironia romântica com a "ironia socrática".
Sócrates também se tinha servido do efeito da ironia, mas apenas
para ensinar aos seus interlocutores as verdades fundamentais sobre a
vida.
Sócrates era para Kierkegaard, ao contrário dos românticos, um
pensador existencial, ou seja, um pensador que tem totalmente em conta a
sua existência na sua reflexão filosófica. Ele acusou os românticos de
não o fazerem.
- Ah!
- Depois de ter desfeito o seu noivado, Kierkegaard foi para
Berlim em 1841, onde assistiu às lições de
Schelling.
- Encontrou-se com Hegel lá?
- Não, Hegel morrera dez anos antes, mas as ideias de Hegel
predominavam ainda em Berlim e muitas partes da Europa. O seu "sistema"
era usado como uma espécie de explicação multi-usos para todas as
questões filosóficas possíveis. Kierkegaard tomou a posição radicalmente
oposta e explicou que as "verdades objectivas" com as quais a filosofia
hegeliana se ocupava eram completamente irrelevantes para a existência
do indivíduo.
- Quais são então as verdades relevantes?
- Mais importante do que a busca da Verdade com letra maiúscula
era, para Kierkegaard, a busca das verdades importantes para a vida do
indivíduo. Importante era, segundo ele, encontrar a "verdade para mim".
Ele confrontava o "sistema" com o indivíduo. Segundo Kierkegaard, Hegel
esquecera-se de que ele próprio era apenas um homem. Ele fazia troça do
tipo de professor hegeliano que vive num castelo de nuvens e, enquanto
explica toda a realidade, se esquece, na sua distracção, do próprio nome
e de que é um homem, simplesmente um homem, não um parágrafo subtil.
- E o que é um homem para Kierkgaard?
- Não se pode responder a isso de uma forma tão geral. Uma
descrição universalmente válida da natureza humana ou do "ser" humano é
totalmente desinteressante para Kierkegaard. Importante é a "existência"
do indivíduo. E o homem não vive atrás de uma escrivaninha. Só quando
agimos - e sobretudo quando fazemos uma "escolha" importante
-, agimos em relação à nossa existência. Uma história sobre Buda
pode ilustrar o que Kierkegaard tinha em mente.
- Sobre Buda?
- Sim, porque a filosofia de Buda também tem como ponto de
partida a existência humana. Era uma vez um monge que achava que Buda
dava respostas pouco claras sobre questões importantes, por exemplo,
p. 337
o que é o mundo ou o que é um homem. Buda respondeu contando a história
de uma pessoa que tinha sido ferida por uma flecha envenenada. Este
homem nunca perguntaria por puro interesse teórico de que material é
feita a flecha, em que veneno foi embebida ou a partir de que ponto ele
fora atingido.
- Ele havia de querer que alguém lhe tirasse a flecha e tratasse
a ferida.
- É, não é? Isso seria existencialmente importante. Buda e
Kierkgaard sentiam que existiam por um curto espaço de tempo. E como eu
disse: nesse caso, não nos sentamos a uma escrivaninha a especularmos
sobre o espírito.
- Compreendo.
- Kierkegaard disse também que a verdade é "subjectiva".
Não queria afirmar que é indiferente o que pensamos ou aquilo em
que acreditamos.
Queria dizer que as verdades realmente importantes são
"pessoais". Só essas verdades são "verdades para mim".
- Podes dar-me um exemplo de uma verdade subjectiva desse tipo?
- Uma questão importante é, por exemplo, se o Cristianismo é a
verdade. Segundo Kierkegaard, não podemos ter uma posição teórica ou
académica em relação a essa questão. Para alguém que se vê como ser
existente, é uma questão de vida ou de morte.
Não se discute sobre isso apenas por amor da discussão. É uma
coisa com que nos preocupamos muito.
- Compreendo.
- Se cais à água, não tens uma atitude teórica em relação à
questão se te vais afogar ou não. Nesse caso, não é interessante nem
desinteressante saber se há crocodilos na água. É uma questão de vida ou
de morte.
- Sim, sem dúvida!
- Por isso temos de fazer a distinção entre a questão filosófica
sobre a existência de Deus e a relação do indivíduo com a mesma questão.
Qualquer indivíduo está completamente só perante essas questões.
Além disso, só podemos aceder a elas pela "fé".
As coisas que podemos compreender com a nossa razão não são
importantes para Kierkegaard.
- Tens de explicar isso.
- Oito mais quatro são doze, Sofia. Podemos ter a certeza disso.
É um exemplo de verdades da razão, de que todos os filósofos desde
Descartes falaram. Mas vamos incluí-las na nossa oração da
noite? E vamos quebrar a cabeça com elas no leito de morte? Não, essas
verdades podem ser "objectivas" e "universais", mas justamente por isso
são indiferentes para a existência do indivíduo.
p. 338
- E quanto à fé?
- Não podes saber se uma pessoa te perdoou por lhe teres feito
algo de mal. Mas justamente por isso é importante para ti
existencialmente. É uma questão com a qual tens uma relação viva. Também
não podes saber se alguém gosta de ti. Só podes acreditar ou esperar que
goste. No entanto, isso é mais importante para ti do que o facto
indiscutível de a soma dos ângulos de um triângulo perfazer cento e
oitenta graus. Enfim, também não se pensa na lei da causalidade ou nas
formas kantianas da intuição quando se dá o primeiro beijo.
- Não, isso seria estranho.
- A fé é o mais importante quando se trata de questões
religiosas. Kierkegaard pensa que se posso compreender Deus
objectivamente, não acredito, mas justamente porque não posso
compreender, tenho de acreditar. E se quero conservar a minha fé, tenho
de ter em atenção não esquecer que estou na incerteza, e no entanto
acredito.
- Isso é um pouco complicado.
- Antigamente, muitos tentaram provar a existência de
Deus - ou pelo menos compreendê-la com a razão. Mas se nos
contentamos com essas provas da existência, ou argumentos racionais,
perdemos a fé
- e consequentemente também o sentimento religioso. Porque o
essencial não é o cristianismo ser verdadeiro, mas ser verdadeiro "para
mim". Na Idade Média a mesma ideia foi expressa através da fórmula
"credo quia absurdum".
- O quê?
- Significa: "creio porque é absurdo". Se o cristianismo tivesse
apelado à razão - e não a outros aspectos nossos, não seria uma questão
de fé.
- Compreendi isso agora.
- Vimos então o que Kierkegaard entendia por "existência",
"verdade subjectiva" e "fé". Estes três conceitos foram formulados como
uma crítica à tradição filosófica e sobretudo a Hegel. Mas havia neles
toda uma "crítica da civilização".
Segundo Kierkegaard, na sociedade urbana moderna, o homem
tornara-se "público", e a primeira característica da multidão era a
"tagarelice" irrelevante. Hoje usaríamos talvez o termo "conformismo",
ou seja, todos "pensam" e "defendem" as mesmas coisas, sem que ninguém
tenha uma relação apaixonada com isso.
- Eu pergunto-me o que é que Kierkegaard teria dito dos pais de
Jorunn.
- De qualquer modo, não era muito tolerante com os seus
próximos. Ele tinha uma pena afiada e podia ser irónico de uma forma
mordaz. Escreveu, por exemplo: "a multidão é a falsidade". Explicou
também que a maior
p. 339
parte das pessoas tinham uma atitude demasiado superficial em relação à
existência.
- Uma coisa é coleccionar Barbies. Ser uma Barbie é mais grave
ainda...
- Isso leva-nos à teoria de Kierkegaard dos três estádios da
vida.
- O que disseste?
- Segundo Kierkegaard, existiam três possibilidades de
existência. Ele próprio usa o termo "plano". Chama a estas
possibilidades o "plano estético", o "plano ético" e o "plano
religioso". Ao escolher o termo "plano" quer mostrar que podemos viver
num dos dois inferiores e fazer subitamente o "salto" para um mais
elevado. Mas muitos homens passam toda a sua vida no mesmo plano.
- Aposto que vem aí uma explicação. E além disso estou curiosa
para saber em que plano me encontro.
Quem vive no "plano estético", vive no momento e procura sempre
o prazer. O que é bom é o que é belo, interessante ou agradável. Assim,
essa pessoa vive completamente no mundo dos sentidos. O esteta torna-se
joguete dos seus próprios prazeres e disposições. Tudo o que é monótono
é negativo, como se diz hoje.
- Eu conheço essa atitude.
- O típico romântico é esteta, porque não se trata apenas de
prazer sensual. Uma pessoa com uma atitude contemplativa em relação à
realidade
- ou por exemplo em relação à arte ou à filosofia, com que se
preocupa - vive no estádio estético. Mesmo em relação à aflição e ao
sofrimento nos podemos comportar de um modo estético ou "contemplativo".
É a frivolidade que reina. Ibsen descreveu o retrato de um esteta típico
em "Peer Gynt".
- Acho que percebo o que Kierkegaard queria dizer.
- Conheces alguém assim?
- Não totalmente assim. Mas acho que faz lembrar um pouco o
major.
- Sim, talvez, Sofia - apesar de isso ser novamente um exemplo
da sua ironia romântica de mau gosto. Devias levar pimenta na língua!
- O que disseste?
- Bom, não é culpa tua.
- Continua.
- Quem vive no plano estético está exposto aos sentimentos de
angústia e de vazio.
Se sente estes sentimentos, ainda há esperança. Para
Kierkegaard, a "angústia" é algo quase positivo. É um sinal de que
alguém se encontra numa "situação existencial".
O esteta pode decidir que quer fazer o "salto" para um estádio
mais elevado. Ou consegue, ou não consegue.
Não serve de nada ter quase saltado, quando não salta
p. 340
de facto. " Ou/ou". E ninguém pode fazer o salto por nós. Temos de
decidir e saltar por nós próprios.
- É o mesmo quando alguém quer deixar a bebida ou as drogas.
- Sim, talvez. Quando Kierkegaard fala sobre esta decisão, faz
lembrar um pouco
Sócrates, que explicara que qualquer conhecimento verdadeiro vem
de dentro. A escolha que leva um homem a saltar de uma visão da vida
estética para uma visão ética ou religiosa também tem que vir de cada
um. É exactamente isso que Ibsen descreve em "peer Gynt". Uma outra
descrição magistral de uma escolha existencial que surge da necessidade
e desespero interiores encontramo-la num romance do escritor russo "
Dostoievski".
Chama-se " Crime e Castigo" e, quando tivermos terminado o
curso, tens de lê-lo sem falta.
- Vamos ver. Então Kierkgaard pensa que quando alguém é sério
deve escolher uma outra forma de vida?
- E começa a viver no "plano ético". Este caracteriza-se pela
seriedade e decisões coerentes com critérios morais. Faz lembrar a ética
do dever de Kant, que também exige que procuremos viver de acordo com a
lei moral. Tal como Kant, também Kierkegaard dirige a sua atenção em
primeiro lugar para a sensibilidade humana. Não é importante o que
alguém considera verdadeiro ou falso. O importante é que alguém se
decida a ter uma opinião em relação ao que é correcto ou falso. O esteta
interessa-se apenas pelo que é divertido ou aborrecido.
- Mas não nos podemos tornar "demasiado" sérios se vivermos
assim?
- Sim, claro. Mas o plano ético não satisfaz Kierkegaard. O
homem ético também se cansa de ser apenas consciente do dever. Muitas
pessoas vivem essa fase de enfado e cansaço quando são adultos. E alguns
recaem então na vida leviana do plano estético. Mas outros fazem um novo
salto para o novo plano, o "plano religioso". Ousam fazer o verdadeiro
grande salto na profundidade da fé. Preferem a fé ao gozo estético e às
leis da razão. E apesar de poder ser assustador "cair nas mãos do Deus
vivo", como Kierkegaard afirmou, só então o homem se pode reconciliar
com a sua vida.
- Pelo Cristianismo, portanto.
- Para Kierkegaard o estádio religioso era o
Cristianismo. Mas, a sua filosofia influenciou pensadores não
-cristãos. No nosso século nasceu mesmo uma filosofia existencial
fortemente inspirada por ele.
Sofia olhou para o relógio.
- São quase sete. Tenho de ir para casa, senão a minha mãe
endoidece.
Acenou com a mão ao seu professor de filosofia e desceu a correr
para o lago e para o barco.
p. 341
MARX
. "um fantasma assombra a Europa" ...
Hilde levantara-se da cama e assomou à janela que dava para a enseada.
Tinha começado o sábado a ler sobre o aniversário de Sofia. No dia
anterior fora o seu próprio aniversário. Se o pai calculara que ela já
tivesse chegado até aí no aniversário de
Sofia, sobrestimara-a. No dia anterior, ela de facto "só" tinha
lido! Por outro lado, recebera só mais uma felicitação: quando Alberto e
Sofia tinham cantado os parabéns. Isso fora embaraçoso para
Hilde.
Sofia tinha convidado amigos para uma "festa filosófica ao ar
livre" no dia em que o seu pai voltava do Líbano. Hilde estava
convencida de que nesse dia sucederia qualquer coisa de que nem ela nem
o pai tinham uma ideia clara. Uma coisa era certa: antes de o pai voltar
para Bjerkely, devia receber um pequeno raspanete. Era o mínimo que ela
podia fazer por Alberto e
Sofia, pensou Hilde. Eles tinham-lhe pedido ajuda...
A mãe ainda estava no barracão. Hilde desceu silenciosamente
para o piso de baixo e dirigiu-se ao telefone. Procurou o número de
Anne e
Ole em Copenhaga e marcou.
- Anne Kvamdal.
- Olá, é a Hilde.
- Que simpática! Como vão as coisas em Lillesand?
- Muito bem, estou de férias. E agora falta apenas uma semana
para o pai voltar do Líbano.
- Vai ser bom, não achas, Hilde?
- Claro, estou ansiosa. E sabes, é justamente por isso que te
estou a telefonar...
- Ah, sim?
- Acho que ele chega no dia 23 a Kastrup, por volta das cinco da
tarde. Vocês vão estar em Copenhaga?
- Acho que sim.
- Queria saber se me podiam fazer um favor.
p. 342
- É claro que podemos.
- Mas é um favor um pouco especial. Não sei sequer se é
possível.
- Estou a ficar curiosa. Hilde contou. Falou sobre o "dossier",
sobre Alberto e
Sofia e tudo o resto. Teve de recomeçar várias vezes porque ela
e a tia desatavam a rir. Mas, quando desligaram, o plano de Hilde estava
decidido. Em casa também tinha de fazer certos preparativos. Bom
- não havia pressa. Hilde passou o resto da tarde e a noite com
a mãe.
Acabaram por ir de carro a Kristiansand e foram ao cinema, como
uma espécie de substituição de festa de anos, visto que no dia anterior
não tinham festejado verdadeiramente. Quando passaram pelo desvio para o
aeroporto, Hilde juntou mais algumas peças ao grande "puzzle" em que
pensara ininterruptamente desde manhã.
Só quando foi para a cama nessa noite continuou a ler o grande
"dossier".
Quando Sofia entrou pelo carreiro, eram quase oito. A mãe estava
a trabalhar nos canteiros à entrada, quando ela apareceu.
- Donde é que vens?
- Da sebe.
- Da sebe?
- Não sabes que há um caminho do outro lado?
- Onde é que estiveste,
Sofia? Não vieste para o jantar, sem me informares.
- Desculpa. O tempo estava tão bom. Dei um grande passeio.
A mãe levantou-se e olhou para ela.
- Por acaso não te encontraste de novo com esse filósofo?
- Sim, encontrei-me. Eu contei-te que ele gosta de passear.
- Mas ele vem à festa?
- Sim, claro, está ansioso.
- Eu também, Sofia.
Conto os dias.
Não havia um tom severo na sua voz? Por precaução, Sofia disse:
- Estou contente por ter convidado também os pais de Jorunn. De
outro modo, seria um pouco embaraçoso.
- Bom... pelo menos, vou falar com esse Alberto de adulto para
adulto.
- Vocês podem ir para o meu quarto. Tenho a certeza de que vais
gostar dele.
- Espera. Chegou uma carta para ti.
p. 343
- Ah...
- No carimbo está escrito: " Contingente da O NU"
- Então é do irmão do Alberto.
- Acho que já é de mais,
Sofia.
Sofia reflectiu febrilmente e, passado alguns segundos, lembrou
-se de uma resposta adequada. Um espírito solícito parecia tê-la
inspirado.
- Eu disse a Alberto que colecciono selos raros. Podes ver para
que servem os irmãos.
Com esta resposta, conseguiu acalmar a mãe.
- O jantar está no frigorífico - disse ela, num tom um pouco
mais amigável.
- Onde está a carta?
- Em cima do frigorífico.
Sofia correu para a cozinha. A carta tinha o carimbo de 15 -6
-1992. Abriu o envelope e retirou uma folha bastante pequena: "Então que
vale a eterna criação?
Coisas criadas ao nada reduzir!"
Não, para esta pergunta,
Sofia não tinha resposta.
Antes de comer, juntou a folha a todas as outras coisas que
reunira no armário nas semanas anteriores. Haveria de saber na altura
devida por que motivo esta pergunta lhe fora feita.
Na manhã seguinte, Jorunn visitou-a. Primeiro, jogaram
"badminton", depois ocuparam-se novamente com a planificação da festa
filosófica. Precisavam de algumas surpresas para o caso de não haver a
atmosfera desejada.
Quando a mãe de Sofia veio do trabalho, ainda estavam a falar
sobre a festa. A mãe estava sempre a repetir uma frase: " Não, não vamos
poupar em nada." Não o dizia ironicamente. Ela parecia estar fortemente
convencida de que uma festa filosófica era exactamente o que Sofia
precisava para pôr novamente os pés na terra, após tantas semanas de
lições intensivas de filosofia. Por fim, chegaram a acordo sobre tudo -
desde as tortas e lampiões nas árvores até ao questionário filosófico
com um livro de filosofia para jovens como prémio. Caso houvesse um
livro desse tipo. Sofia não tinha a certeza.
Na quinta -feira, dia 21 de Junho - apenas dois dias antes da
noite de São João,
Alberto voltou a telefonar.
- Sofia.
p. 344
- Alberto.
- Como estás?
- Muito bem. Acho que encontrei a solução.
- Solução para quê?
- Tu sabes. Para a prisão espiritual em que vivemos há demasiado
tempo.
- Ah, isso...
- Mas eu só posso falar sobre o plano quando tudo estiver em
curso.
- Não é muito tarde? Tenho que saber no que me estou a envolver.
- Estás a ser ingénua.
Sabes bem que somos espiados sempre e em toda a parte. O mais
sensato seria guardarmos silêncio...
- É assim tão grave?
- Claro. O mais importante sucede quando não falamos um com o
outro.
- Oh...
- Vivemos a nossa vida numa realidade fictícia, por detrás das
palavras de uma longa história. Cada letra é batida pelo major numa
máquina de escrever portátil barata.
Nada do que é escrito pode escapar à sua atenção.
- Não, eu compreendo. Mas como nos podemos esconder dele?
- Chiu!
- O quê?
- Nas entrelinhas também acontecem coisas. É justamente aí que
procuro agir com toda a minha astúcia.
- Ah...
- Temos de nos encontrar hoje e também amanhã. No sábado
acontece tudo. Podes vir imediatamente?
- Vou já.
Sofia pôs comida aos pássaros e aos peixes, deu a Govinda uma
folha de alface e abriu uma lata de comida para
Sherekan. Ao sair colocou o prato com a comida na escada.
Depois, enfiou-se pela sebe e saiu para o caminho do outro
lado. Após ter andado um bocado descobriu no meio da urze uma grande
escrivaninha.
Atrás da escrivaninha estava sentado um homem velho. Parecia
concentrado a fazer contas. Sofia foi ter com ele e perguntou-lhe o
nome.
- Scrooge - disse e voltou a debruçar-se sobre os seus papéis.
- Eu chamo-me Sofia. És um homem de negócios? Ele acenou
afirmativamente.
- E podre de rico. Não se pode desperdiçar nem um centavo. Por
isso, tenho de me concentrar na minha contabilidade.
p. 345
- Como é que aguentas?
Sofia acenou-lhe com a mão e prosseguiu. Mas não andara muito
quando viu uma rapariga sentada sozinha debaixo de uma árvore grande. A
pequena estava vestida com andrajos e parecia pálida e doente.
Quando Sofia passou, enfiou a mão num pequeno saco e tirou uma
caixa de fósforos.
- Queres comprar fósforos?
- perguntou.
Sofia procurou no seu bolso. Ainda tinha uma coroa.
- Quanto custam?
- Uma coroa.
Sofia deu a coroa à pequena e ficou imóvel com a caixa de
fósforos nas mãos.
- És a primeira pessoa que me compra alguma coisa há mais de cem
anos. Às vezes, passo fome, às vezes, fico com frio.
Sofia pensou que não era de admirar que a pequena não
conseguisse vender fósforos no meio do bosque. Mas lembrou-se do homem
de negócios rico. A rapariga não tinha necessidade de passar fome, se
ele tinha tanto dinheiro.
- Vem comigo - disse
Sofia. Pegou na mão da pequena e levou-a consigo para junto do
homem rico.
- Tens de fazer com que esta rapariga tenha uma vida melhor -
afirmou.
O homem levantou os olhos dos seus papéis e declarou:
- Isso custa dinheiro, e eu já te disse que não se pode
desperdiçar um centavo sequer.
- Mas é injusto que tu sejas tão rico e ela tão pobre
- insistiu Sofia.
- Que disparate! Só há justiça entre iguais.
- O que queres dizer com isso?
- Eu venci pelo trabalho e o trabalho deu os seus frutos.
Chama-se a isso progresso.
- Vejam só!
- Se não me ajudas, eu morro - disse a rapariga pobre.
O homem de negócios voltou a levantar os olhos dos papéis.
Depois, atirou com a pena para a mesa num gesto impaciente.
- Tu não fazes parte da minha contabilidade. Por isso, vai para
o asilo.
- Se não me ajudas, incendeio o bosque - disse a rapariga pobre.
O homem só então se levantou da sua escrivaninha, mas a rapariga
já tinha acendido um fósforo. Levou-o a alguns tufos de erva seca que
se incendiaram imediatamente.
p. 346
O homem rico agitava freneticamente os braços.
- Socorro - gritou. - Fogo!
A rapariga olhou para ele com um sorriso malicioso.
- Certamente não sabias que eu era comunista.
No momento seguinte, a rapariga, o homem de negócios e a
escrivaninha tinham desaparecido. Sofia estava ali sozinha, enquanto a
erva ardia cada vez mais. Tentou apagar as chamas com o pé e, passado
pouco tempo, conseguiu. Graças a Deus! Sofia olhou para os tufos de erva
negros. Segurava na mão uma caixa de fósforos. Não teria sido ela a
deitar o fogo?
Quando encontrou Alberto em frente à cabana, contou-lhe o que
tinha sucedido.
- Scrooge é um capitalista avarento em "Um Conto de
Natal" de Charles Dickens.
A rapariga com os fósforos conhece-la certamente do conto de
Hans Christian Andersen.
- Mas não é estranho que eu os tenha encontrado aqui no bosque?
- Não, de modo algum. Este não é um bosque normal. E uma vez que
vamos falar de "Karl Marx" é bom que tenhas visto um exemplo das enormes
lutas de classes em meados do século passado. Mas vamos lá para dentro.
Apesar de tudo, estamos um pouco mais protegidos do major.
Sentaram-se à mesa junto da janela que dava para o lago.
Sofia ainda se lembrava bem como vira o pequeno lago depois de
ter bebido da garrafa azul. Nesse momento, a garrafa vermelha e a
garrafa azul estavam sobre a consola da lareira. Na mesa havia uma
reprodução em miniatura de um templo grego.
- O que é isto? - perguntou Sofia.
- Cada coisa de sua vez, minha filha. E Alberto começou a falar
sobre Marx:
- Quando Kierkegaard foi para Berlim em 1841, talvez tenha
estado sentado ao lado de Marx nas lições de Schelling. Kierkegaard
escreveu uma tese sobre Sócrates e Karl Marx escreveu na mesma altura
uma tese sobre Demócrito e Epicuro - ou seja, sobre o materialismo na
Antiguidade. Assim, já tinham definido o curso futuro da sua filosofia.
- Porque Kierkegaard se tornou um existencialista e Marx
materialista?
- Marx é definido como um materialista histórico. Mas ainda
vamos voltar a esse ponto.
- Continua!
- Seja Marx, seja Kierkegaard, tiveram como ponto de partida a
filosofia de Hegel.
Ambos foram influenciados pelo seu modo de pensar,
p. 347
mas também ambos se distanciaram da ideia de Hegel de um espírito do
mundo - ou daquilo a que chamamos o "idealismo" de Hegel. Isso era um
pouco vago. Exacto. De um modo geral, dizemos que a época dos grandes
sistemas filosóficos terminou com Hegel. Depois dele, a filosofia segue
uma orientação completamente nova. Em lugar de grandes sistemas
especulativos surgem as chamadas "filosofias da existência", ou também
"filosofias da acção". Em relação a isto, Marx dizia que até então os
filósofos apenas tinham interpretado o mundo, em vez de o transformar.
Estas palavras caracterizam um ponto de viragem importante na história
da filosofia.
- Depois de ter encontrado
Scrooge e a rapariguinha dos fósforos, não tenho dificuldade em
compreender o que Marx tinha em mente.
- O pensamento de Marx tinha uma finalidade prática
- e política. Devemos também reparar que ele não era apenas
filósofo. Era também historiador, sociólogo e economista.
- E foi inovador em todos esses domínios?
- Pelo menos, nenhum outro filósofo teve tanta importância para
a política prática. Por outro lado, temos que nos precaver de
identificar com o seu pensamento tudo o que foi designado por
"marxista".
Diz-se que Marx se tornou "marxista" por volta de 1845; mas ele
não gostou da designação durante toda a vida.
- Jesus era cristão?
- Isso também é discutível.
- Continua.
- Desde o início, o seu amigo e colega "Friedrich Engels"
contribuiu para aquilo que mais tarde foi designado por marxismo. No
nosso século, "Lenine, Estaline e Mao" desenvolveram o marxismo. Nos
países de Leste falava-se de "marxismo-leninismo", a partir de Lenine.
- Então eu proponho que nos limitemos a Marx.
Disseste que era um "materialista histórico"?
- Não era um materialista filosófico como os atomistas da
Antiguidade e os materialistas mecanicistas do século XVII e XVIII.
Segundo ele, são antes de mais as condições materiais de vida numa
sociedade que determinam o nosso pensamento e a nossa consciência. Estas
relações materiais são também determinantes para o desenvolvimento
histórico.
- Isso parece totalmente diferente do "espírito" de Hegel.
- Hegel defendera que o desenvolvimento histórico derivava da
tensão entre os opostos, que desapareciam por meio de mudança súbita - e
com eles a tensão. Marx achou correcta esta ideia. Mas considerava que
Hegel tinha colocado tudo de pernas para o ar.
p. 348
- Não para todo o sempre, espero?
- Hegel chamava à força que faz avançar a história "espírito do
mundo" ou "razão do mundo". Segundo Marx, esta perspectiva invertia a
verdade. Ele queria provar que as transformações das condições materiais
são determinantes para a história. Não são as condições espirituais numa
sociedade que levam a alterações materiais, mas o inverso: as relações
materiais determinam em última análise as espirituais. São sobretudo as
forças económicas numa sociedade que provocam as transformações em todos
os outros domínios e dirigem a história.
- Podes dar-me um exemplo?
- A filosofia e a ciência da Antiguidade tinham um fim puramente
teórico. Não interessava aos filósofos da Antiguidade que o seu saber
teórico implicasse quaisquer vantagens práticas.
- Ah, sim?
- Isso tinha a ver com o modo como as sociedades em que viviam
estavam organizadas. A vida e a produção de bens nas sociedades antigas
eram baseadas sobretudo na mão-de-obra escrava. Por isso, os cidadãos
não achavam necessário melhorar a produção por meio de inventos
práticos. Isso é um exemplo do modo como as relações materiais numa
sociedade podem nela influenciar o pensamento filosófico.
- Compreendo.
- Marx designava estas relações materiais, económicas e sociais
como a base da sociedade. O modo como se pensa numa sociedade as suas
instituições políticas, as suas leis, e também a sua religião, a moral,
a arte, a filosofia e a ciência eram designados por Marx a sua
"superestrutura".
- Base e superestrutura, portanto.
- E agora, podes-me passar o templo grego?
- Faz favor.
- É uma cópia em miniatura do antigo Parténon na Acrópole. Na
realidade já o viste.
- Em vídeo, queres tu dizer.
- Vês que o templo tem um telhado elegante e com muitos
ornamentos. Talvez seja o telhado e o frontão que atraem primeiro a
atenção. É isto que poderíamos designar por superestrutura. Mas o
telhado não fica suspenso no ar.
- É sustentado por colunas.
- Todo o edifício precisa de um fundamento sólido, uma base que
sustente toda a construção. Segundo Marx, as relações materiais
sustentam de certo modo todos os pensamentos e ideias que há na
sociedade. Significa que a superestrutura de uma sociedade é um reflexo
da sua base material.
p. 349
- Queres dizer com isso que a teoria das ideias de Platão é
apenas um reflexo da olaria daquela época e da viticultura ateniense?
- Não, também não é assim tão simples, e Marx chamou a atenção
para isso. Naturalmente, a estrutura e superestrutura de uma sociedade
influenciam-se reciprocamente.
Se Marx tivesse negado isso, teria sido um "materialista
mecanicista", mas uma vez que admitiu que entre a estrutura e a
superestrutura existia também uma relação recíproca, uma tensão, dizemos
que Marx é um "materialista dialéctico". Ainda te lembras do que Hegel
entendia por desenvolvimento dialéctico. E além disso podes reparar que
Platão não era nem oleiro nem viticultor.
- Compreendo. Queres dizer mais alguma coisa sobre o templo?
- Sim. Observando bem a base, podes fazer-me uma descrição
dela?
- As colunas estão sobre um fundamento constituído por três
níveis ou degraus.
- Analogamente, podemos distinguir três níveis na base da
sociedade. Em baixo está aquilo que Marx designa por condições de
produção de uma sociedade. Por isto, entende as condições e recursos
naturais de uma sociedade, ou seja, o tipo de vegetação, o clima, as
matérias primas, as riquezas do solo, entre outras coisas. Constituem os
verdadeiros alicerces de uma sociedade, e estes alicerces estabelecem
limites claros para o tipo de produção possível na sociedade. Desse
modo, estabelecem também claros limites para o tipo de sociedade e
cultura que podem existir num local.
- No Sara é impossível a pesca do arenque. E na Lapónia é
impossível o cultivo de tâmaras.
- Entendeste perfeitamente. Mas numa cultura nómada, os homens
pensam de um modo completamente diferente do de uma aldeia de pescadores
no norte da Noruega. O nível seguinte é constituído pelas forças
produtivas de uma sociedade. Marx refere-se à mão-de-obra humana, mas
também aos seus utensílios, aos seus instrumentos e às suas máquinas, os
chamados meios de produção.
- Antigamente pescava-se em barcos a remos, hoje o peixe é
apanhado por arrastões enormes.
- E, desse modo, chegas ao terceiro nível da base de uma
sociedade. Torna-se mais complicado, porque diz respeito a quem possui
os meios de produção numa sociedade e ao modo como o trabalho é nela
organizado, ou seja, diz respeito às relações de propriedade e à divisão
do trabalho. Marx chama-lhes as relações de produção numa sociedade.
Constituem o terceiro nível.
- Compreendo.
p. 350
- Até agora, podemos pois verificar que, segundo Marx, o modo de
produção numa sociedade determina as relações políticas e ideológicas
que encontramos nela. Não é um acaso o facto de pensarmos hoje de um
modo diferente - e termos uma moral um pouco diferente - da dos membros
de uma sociedade feudal.
- Então Marx não acreditava num direito natural válido
eternamente?
- Não, a resposta à pergunta do que é moralmente correcto era
para Marx um produto da base social. De facto não é por acaso que numa
antiga sociedade camponesa os pais decidiam com quem os filhos iriam
casar. Era um problema ligado à herança da terra.
Numa grande cidade moderna, as relações sociais são diferentes e
por isso as pessoas também escolhem os seus companheiros de um modo
diferente. Podemos conhecer os nossos futuros companheiros numa festa ou
na discoteca, se estamos bastante apaixonados vamos morar juntos.
- Eu não aceitaria que os meus pais me escolhessem o marido.
- Não, porque tu és filha do teu tempo. Marx acentua ainda que
geralmente é a classe dominante numa sociedade que determina o que é
falso e o que é correcto, porque toda a história, segundo ele, é a
história da "luta de classes", ou seja, de lutas para decidir quem
possuirá os meios de produção.
- Então os pensamentos e as ideias dos homens não contribuem
para mudar a história?
- Sim e não. Marx sabia que as relações na superestrutura de uma
sociedade influenciam a sua base; mas negava que a superestrutura
tivesse uma história independente.
Aquilo que faz a história progredir desde a sociedade da
Antiguidade baseada na "escravidão" até à sociedade industrial
foi acima de tudo, segundo ele, transformações na estrutura.
- Sim, já disseste isso.
- Em todas as fases da história existia, segundo Marx, uma
oposição entre duas classes sociais dominantes.
Na "sociedade esclavagista" da Antiguidade, havia a oposição
entre os cidadãos livres e os escravos, na sociedade feudal da Idade
Média entre os senhores feudais e os servos e, mais tarde, entre nobres
e burgueses. Mas mesmo no tempo de Marx, numa sociedade burguesa ou
capitalista, a oposição existia sobretudo entre capitalistas e
trabalhadores ou proletários - ou seja, entre aqueles que detinham os
meios de produção e aqueles que não os possuíam. E visto que a classe
dirigente nunca cederia o seu poder voluntariamente, só por meio de uma
revolução poderia haver mudança.
- E quanto à sociedade comunista?
p. 351
- Marx preocupava-se sobretudo com a questão da passagem de uma
sociedade capitalista para uma sociedade "comunista". Ele faz uma
análise detalhada do modo de produção capitalista. Mas, antes de
tratarmos disso, temos de falar um pouco sobre a sua concepção do
trabalho humano.
- Diz.
- Antes de se tornar comunista, o jovem Marx tinha-se
interessado pelo que sucede verdadeiramente com os homens quando
trabalham. Hegel também o tinha analisado e vira um efeito recíproco ou
"dialéctico" entre o homem e a natureza. O jovem Marx defendeu a mesma
tese: quando o homem modifica a natureza, o próprio homem é modificado.
Ou, dito de outra forma: quando o homem trabalha, intervém na
natureza e influencia-a; mas neste processo de trabalho a natureza
também intervém no homem e influencia o seu modo de pensar.
- Diz-me que trabalho fazes e dir-te-ei quem és.
- Exacto. Marx achava que o modo como trabalhamos influencia a
nossa consciência, e que a nossa consciência também influencia o modo
como trabalhamos. Podes dizer que existe uma relação recíproca entre
"mão" e "cabeça". Deste modo, o conhecimento do homem está estreitamente
relacionado com o seu trabalho.
- Então deve ser terrível ser-se desempregado.
- Sim, quem não tem trabalho sente-se de certo modo vazio. Já
Hegel falara neste aspecto. Para Hegel e Marx, o trabalho é uma coisa
positiva, que diz respeito à natureza, que tem a ver com o ser humano.
- Então é positivo ser-se trabalhador?
- Sim. Mas, justamente nesse ponto, Marx faz uma crítica
demolidora ao modo de produção capitalista.
- Diz!
- No sistema capitalista, o trabalhador trabalha para outra
pessoa. E assim, o trabalho torna-se exterior a ele
- ou uma coisa que não lhe pertence. O trabalhador torna-se
estranho ao seu próprio trabalho - e consequentemente, a si mesmo. Ele
perde a sua dignidade humana. Marx, usando uma expressão hegeliana, fala
de alienação.
- Eu tenho uma tia que embrulha bombons numa fábrica há mais de
vinte anos, e por isso percebo perfeitamente o que queres dizer. Ela diz
que odeia quase todos os dias ir para o trabalho.
- E se ela odeia o trabalho, Sofia, tem de se odiar a si mesma.
- Pelo menos odeia bombons.
- Na sociedade capitalista, o trabalho está organizado de tal
forma que um trabalhador executa na realidade um trabalho de escravo
para
p. 352
uma outra classe social.
Deste modo, o trabalhador não "aliena" apenas a sua mão-de-obra,
mas toda a sua natureza humana.
- É assim tão grave?
- Estamos a falar do modo como Marx via as coisas. Por isso,
temos de ter como ponto de partida as relações nas sociedades europeias
em meados de 1850. E aí, a resposta tem de ser um sim. Os trabalhadores
tinham um dia de catorze horas em recintos gelados. O salário era tão
baixo que até crianças e parturientes tinham de trabalhar, o que deu
origem a condições sociais indescritíveis. Muitas vezes, uma parte do
salário era paga em aguardente barata e muitas mulheres tinham de se
prostituir, e os seus clientes eram os melhores senhores da cidade:
exactamente aquilo que devia dignificar o homem, o trabalho, fazia do
trabalhador um animal de carga.
- Isso põe-me furiosa.
- Também Marx se enfureceu. Ao mesmo tempo, os filhos da
burguesia podiam tocar violino em salas grandes e quentes após terem
tomado um banho refrescante.
- Que injustiça!
- Marx também pensava assim. No ano de 1848, publicou juntamente
com Friedrich Engels o famoso "Manifesto do Partido Comunista". A
primeira frase neste manifesto diz: "Um espectro assombra a Europa - o
espectro do comunismo."
- Estou a ficar assustada.
- Foi o que se passou com os burgueses, porque os proletários
começaram a sublevar-se. Queres ouvir como o "manifesto" termina?
- Sim.
- " Os comunistas rejeitam ocultar as suas opiniões e intenções.
Declaram publicamente que os seus objectivos apenas podem ser alcançados
pelo derrube violento de toda a organização social existente.
As classes dominantes que tremam perante uma revolução
comunista. Os proletários não têm nada a perder senão as suas correntes.
Têm um mundo a ganhar. "Proletários de todos os países, uni -vos!"".
- Se as relações eram de facto tão más como disseste, eu também
subscreveria isso. Mas hoje são diferentes, não são?
- Na Noruega, sim, mas não em toda a parte. Ainda hoje muitos
homens vivem em condições desumanas. Ao mesmo tempo, produzem
mercadorias que tornam os capitalistas cada vez mais ricos. A isso chama
Marx "exploração".
- Podes explicar um pouco melhor essa palavra?
- Quando o trabalhador produz uma mercadoria, esta mercadoria
tem um certo valor de venda.
p. 353
- Sim.
- Se tu retirares ao preço de venda do produto o salário do
trabalhador e outros custos de produção, sobra uma quantia. A esta soma
chama Marx mais -valia ou lucro. Significa que o capitalista se apodera
de um valor que na verdade foi o trabalhador a produzir. E a isso chama
Marx exploração.
- Compreendo.
- Nesse caso, o capitalista pode investir uma parte do lucro em
novo capital - por exemplo, na modernização das instalações de produção,
na expectativa de poder produzir artigos ainda mais baratos e,
consequentemente, aumentar ainda mais o seu lucro no futuro.
- Sim, é lógico.
- Pois, pode parecer lógico, mas sob este aspecto e ainda sob
outros, Marx previa que, a longo prazo, as coisas não se passam como o
capitalista imagina.
- O que é que isso significa?
- Segundo Marx, o modo de produção capitalista era contraditório
em si. O capitalismo era um sistema económico autodestrutivo, porque lhe
faltava um governo racional.
- De certo modo, é um bem para os oprimidos.
- Pode-se dizer isso. Marx estava certo de que o sistema
capitalista caminhava para a ruína devido às suas contradições. O
capitalismo era "progressivo" - ou seja, orientado para o futuro -, mas
apenas porque era um estádio necessário a caminho do comunismo.
- Podes dar-me um exemplo do facto de o capitalismo ser
autodestrutivo?
- Sim. Falámos do capitalista que tem muito dinheiro de sobra e
moderniza a sua empresa com uma parte deste excesso; Ao mesmo tempo, tem
de pagar as lições de violino dos filhos e além disso a esposa adquiriu
certos hábitos caros.
- Sim?
- Mas isso não é tão importante neste contexto. Ele moderniza,
ou seja, compra novas máquinas e por isso não precisa de tantos
empregados. Fá-lo para aumentar o poder concorrencial.
- Compreendo.
- Mas não é o único a pensar assim. Significa que o conjunto da
produção num ramo é constantemente racionalizado. As fábricas são cada
vez maiores e pertencem a menos pessoas. E o que acontece então, Sofia?
- Hm...
p. 354
- É preciso menos mão-de-obra. E cada vez mais trabalhadores
ficam desempregados. Por isso, há problemas sociais cada vez maiores e
essas crises, segundo Marx, são um indício de que o capitalismo se
aproxima do declínio. Mas o capitalismo tem ainda mais características
autodestruidoras. Se há cada vez mais lucro com os meios de produção sem
se criar simultaneamente mais -valia suficiente para manter a produção a
preços concorrenciais... Sim? O que faz o capitalista nessa altura?
Sabes-me dizer?
- Não, não sei mesmo.
- Mas imagina que tinhas uma fábrica, e não consegues atingir os
teus objectivos. Temes a falência. E agora pergunto-te: de que modo
podes poupar dinheiro?
- Talvez baixando os salários.
- Esperta! Sim, isso é o mais inteligente que podes fazer. Mas
se todos os capitalistas são tão inteligentes como tu - e são-no - os
trabalhadores ficam tão pobres que já não te podem comprar nada. Dizemos
então que o poder de compra numa sociedade diminui. E caímos num círculo
vicioso. Para a propriedade particular capitalista é a hora fatal,
porque nos encontramos numa situação que se torna revolucionária.
- Compreendo.
- Para resumir: Marx acreditava que, por fim, os proletários se
sublevariam e se apoderariam dos meios de produção.
- E depois?
- Segundo Marx, há por algum tempo uma nova sociedade de
classes, na qual os proletários submetem a burguesia pela força. A esta
fase de transição chamava Marx "ditadura do proletariado". Em seguida a
ditadura do proletariado era substituída por uma sociedade sem classes,
o "comunismo". E seria uma sociedade em que os meios de produção
pertencem "a todos" - ou seja, ao povo. Nessa sociedade cada um
trabalharia "segundo a sua capacidade" e "receberia de acordo com as
suas necessidades". O trabalho pertenceria ao povo e por isso deixaria
de haver alienação.
- Isso soa muito bem, mas o que se passou de facto?
Deu-se a revolução?
- Sim e não. Hoje, os economistas podem provar que Marx errou em
vários pontos importantes, inclusivamente na sua análise das crises do
capitalismo. Marx também não teve em conta a exploração da natureza que
hoje é cada vez mais perigosa. Mas - porque há um grande mas...
- Sim?
p. 355
- O marxismo levou a grandes transformações. Não há dúvida de
que o socialismo, que se baseia em Marx na sua luta por justiça social,
mesmo que não o siga em tudo e recuse por exemplo a ditadura do
proletariado, conseguiu vencer na luta por uma sociedade mais humana.
Sem dúvida vivemos hoje na Europa numa sociedade mais justa e solidária
do que no tempo de Marx. E devemo-lo também a todo o movimento
"socialista".
- Podias explicar mais exactamente o que é o movimento
socialista?
- Depois de Marx, esse movimento dividiu-se em duas correntes
principais: de um lado a "social-democracia", de outro o "leninismo". A
social-democracia, que queria seguir uma via progressiva e pacífica
para uma organização mais justa, tornou-se dominante na Europa
ocidental. Podemos dizer que esta via consiste numa revolução lenta. O
leninismo, que continuava a acreditar que apenas a revolução podia
combater a antiga sociedade de classes, foi importante para a Europa de
Leste, Ásia e África. Cada um destes movimentos, à sua maneira, lutou
contra a miséria e a opressão.
- Mas não se criou uma nova forma de opressão? Por exemplo, na
União Soviética e na Europa de Leste?
- Sem dúvida. E aqui vemos novamente que tudo aquilo em que o
homem toca se torna uma mistura de bem e de mal.
Seria errado responsabilizar Marx pelos erros e pelos aspectos
negativos dos países socialistas cento e cinqüenta anos após a sua
morte. O que se pode dizer é que ele reflectiu pouco sobre o facto de
que mesmo o comunismo, se viesse a existir, não seria levado a cabo sem
os homens - e os homens cometem erros. Por isso, acho difícil imaginar
um paraíso na terra. Os homens arranjarão sempre novos problemas.
- Claro.
- E com isto, terminamos com Marx.
- Um momento! Não disseste que apenas há justiça entre iguais?
- Não, foi Scrooge que disse isso.
- Como é que sabes que ele disse isso?
- Bom, nós dois temos o mesmo escritor. Deste modo, estamos
muito mais estreitamente ligados do que possa parecer a uma observação
superficial.
- Maldita ironia!
- Dupla, Sofia, foi uma ironia dupla.
- Mas voltemos a essa questão da injustiça. Disseste que, para
Marx, o capitalismo era uma sociedade injusta. Como definirias uma
sociedade justa?
p. 356
- Um filósofo moral de inspiração marxista, "John Rawls", tentou
dar uma definição, servindo-se deste exemplo: imagina que eras membro
de um conselho supremo que tem de fazer todas as leis de uma sociedade
futura.
- Consigo muito bem imaginar-me num conselho desses.
- Eles têm de pensar em tudo, porque mal estiverem de acordo e
tiverem subscrito todas as leis, morrem.
- Que horror!
- E segundos mais tarde acordarão na sociedade cujas leis
fizeram. O truque é o facto de não fazerem ideia de onde acordarão nessa
sociedade, ou seja, qual será a sua posição nela.
- Compreendo.
- Uma sociedade destas seria uma sociedade justa. Cada um
estaria entre iguais.
- E cada "uma" entre iguais.
- É evidente. Porque no jogo de Rawls também não saberíamos se
íamos acordar como homem ou como mulher. E uma vez que a probabilidade é
de cinqüenta para cinqüenta, a sociedade seria organizada de forma igual
para mulheres e homens.
- Isso parece fascinante.
- Diz-me então. A Europa no tempo de Marx era uma sociedade
assim?
- Não!
- Então talvez me possas indicar uma sociedade semelhante no
mundo de hoje.
- Bem...
- Reflecte sobre isso. Terminámos com Marx.
- O que é que disseste?
- Fim de capítulo!
p. 357
Darwin
"... um barco que atravessa a vida com uma carga de genes..."
Na manhã de domingo, Hilde acordou com um estrondo. O "dossier"
caíra ao chão. Tinha lido até tarde sobre Sofia e Alberto, que falavam
sobre Marx. Depois adormecera meio sentada, com o "dossier" sobre a
coberta. A lâmpada tinha ficado acesa toda a noite.
O despertador na mesa de cabeceira indicava em números verdes as
8.59. Hilde sonhara com fábricas gigantescas e cidades enegrecidas pela
fuligem. A um canto de uma rua uma miudita vendia fósforos. Pessoas bem
vestidas, com casacos compridos, passavam sem prestar atenção.
Quando Hilde se levantou, lembrou-se dos legisladores que
haviam de acordar numa sociedade organizada por eles mesmos. Hilde
estava contente por acordar em Bjerkely. Gostaria de acordar na Noruega
sem saber exactamente onde e quando? Na Idade Média, por exemplo - ou
numa sociedade da Idade da Pedra há dez mil anos? Hilde procurou
imaginar como seria estar sentada à entrada duma caverna. Talvez
estivesse a raspar uma pele. Como teria vivido uma rapariga de quinze
anos antes de ter existido qualquer coisa como a civilização? Como
pensaria, se fosse essa rapariga de quinze anos? Hilde vestiu um
pulóver, levantou o "dossier" do chão e sentou-se na cama com ele para
continuar a ler o que o pai escrevera.
Mal Alberto dissera "Fim de capítulo!", alguém bateu à porta da cabana
do major.
- Não temos outra escolha, pois não? - perguntou Sofia.
- Não - resmungou Alberto. Lá fora estava um homem muito velho
com cabelos compridos e barba. Na mão direita trazia um bordão de
viandante, na esquerda um :,
p. 358
grande cartaz que mostrava um barco. No barco havia animais de todo
o género.
- E quem é este senhor? - perguntou Alberto.
- O meu nome é Noé.
- Já imaginava.
- Teu antepassado, meu rapaz. Mas já não está na moda lembrarmo
-nos dos antepassados, pois não?
- O que tens aí na mão?
- Uma imagem de todos os animais que foram salvos do
Dilúvio Universal. Toma, minha filha, isto é para ti.
Sofia pegou no grande cartaz e o velho disse:
- E agora tenho que ir para casa, regar as videiras.
Deu um pequeno salto, bateu os calcanhares no ar e foi a
saltitar em direcção ao bosque, como só os homens muitos velhos e com
bom humor sabem fazer.
Sofia e Alberto voltaram para dentro e sentaram-se.
Sofia olhou para o grande cartaz, mas ainda não vira muito
quando Alberto lho arrancou das mãos.
- Primeiro, temos de nos concentrar nas grandes linhas.
- Então começa.
- Esquecemo-nos de referir que Marx passou os últimos trinta e
quatro anos da sua vida em Londres. Mudou-se em 1849 para Londres e lá
morreu em 1883. Durante todo este tempo, " Charles Darwin" também viveu
nos arredores de Londres. Morreu em 1882 e foi sepultado com todas as
honras na abadia de Westminster como um dos grandes filhos da
Inglaterra. Mas não foi apenas no tempo e no espaço que os caminhos de
Marx e Darwin se cruzaram. Marx quis dedicar a edição inglesa da sua
grande obra, " O Capital", a Darwin, mas este recusou. Quando Marx
morreu, um ano após Darwin, o seu amigo Friedrich Engels disse: "Tal
como Darwin descobriu a lei da evolução da natureza orgânica, também
Marx descobriu a lei da evolução da história humana."
- Compreendo.
- Um outro pensador importante que também pode ser relacionado
com Darwin é o psicólogo " Sigmund Freud". Também ele passou, mais de
meio século mais tarde, os seus últimos anos de vida em Londres. Freud
apontou para o facto de a teoria da evolução, tal como a sua psicanálise
terem ofendido os homens no seu "ingénuo amor próprio".
- São nomes a mais. Vamos falar de Marx, Darwin ou Freud?
- Num sentido lato, podemos falar também de uma "corrente
naturalista" que se estendeu de meados do século XIX até ao nosso. Por
"naturalismo" entendemos uma concepção da realidade que não aceita
nenhuma
p. 359
outra realidade além da natureza e do mundo sensível. Um naturalista,
consequentemente, vê também o homem como uma parte da natureza. Primeiro
que tudo, um investigador naturalista parte apenas dos factos dados pela
natureza - logo, não parte nem de especulações racionalistas nem de
qualquer forma de revelação divina.
- E isso é válido tanto para Marx como para Darwin e para Freud?
- Exacto. Em meados do século XIX, as palavras -chave eram
"natureza", "ambiente", "história", "evolução" e "crescimento". Marx
tinha referido que a consciência humana era um produto da base material
de uma sociedade. Darwin provou que o homem é o resultado de uma longa
evolução biológica, e o estudo de Freud do inconsciente revelou que as
acções do homem se devem frequentemente a certos impulsos ou instintos
"animais" que residem na sua natureza.
- Acho que compreendo mais ou menos o que queres dizer com
naturalismo. Mas não devíamos falar de um de cada vez?
- De Marx já falámos. Falemos então sobre Darwin. Talvez ainda
te lembres de que os pré -socráticos queriam encontrar "explicações
naturais" para os processos da natureza. Do mesmo modo, para isso tinham
de se libertar de antigas explicações mitológicas, Darwin teve de se
libertar da doutrina cristã vigente sobre a criação do homem e dos
animais.
- Mas ele era um filósofo?
- Darwin era biólogo e naturalista. Foi o cientista que nos
últimos tempos fez vacilar a visão bíblica do lugar do homem na Criação,
mais do que qualquer outro.
- Então vais falar sobre a teoria da evolução de Darwin.
- Vamos começar pelo próprio Darwin. Nasceu em
Shrewsbury em 1809. O seu pai, o doutor Robert Darwin, era um
médico conhecido e foi muito severo na educação do filho. Quando Charles
frequentava a escola superior de
Shrewsbury, o reitor descreveu-o como um rapaz que vadiava e
dizia disparates, sem fazer nada de útil. Por útil, entendia ele o
estudo dos verbos gregos e latinos. E quando falava de vadiar pensava no
facto de Charles coleccionar todo o tipo de coleópteros.
- Deve ter-se arrependido dessas palavras.
- Ainda durante o seu curso de teologia, Darwin já se
interessava mais por aves e insectos que pelos estudos. Por isso, não
fez nenhum exame em teologia com boa nota. Mas, paralelamente ao curso
de teologia, conseguiu obter uma certa fama como naturalista.
Interessava-se também por geologia, que era naquela época a ciência
mais em expansão.
Depois de ter feito o seu exame final de teologia em
Cambridge, em Abril de 1813, viajou pelo Norte do País de Gales,
para estudar formações rochosas e procurar fósseis. Em Agosto do mesmo
p. 360
ano, com apenas vinte e dois anos, recebeu uma carta que havia de ser
determinante para toda a sua vida...
- O que estava escrito nessa carta?
- A carta era do seu amigo e professor John Steven Henslow.
Escreveu que lhe tinham pedido para dar o nome de um naturalista que
pudesse viajar com o capitão Fitzroy, o qual recebera da parte do
governo o encargo de desenhar uma carta geográfica da ponta meridional
da América do
Sul, e que achava Darwin a pessoa mais qualificada para essa
tarefa. Não sabia nada sobre o salário para o investigador procurado,
mas a viagem duraria dois anos...
- Como consegues fixar tudo de memória?
- Nada mais fácil, Sofia.
- E ele aceitou?
- Ele tinha uma grande vontade de aproveitar a oportunidade, mas
naqueles tempos os jovens não faziam nada sem o consentimento dos pais.
Darwin perguntou ao pai, que concordou depois de muita hesitação
- e ainda pagou a viagem do filho. No que diz respeito ao salário, viu
-se logo que não estava previsto...
- Ah...
- O navio pertencia à Marinha Inglesa e chamava-se "H. M. S.
Beagle". Largou de Plymouth a 27 de Dezembro de 1831 em direcção à
América do Sul e só regressou a Inglaterra em Outubro de 1836.
Os dois anos passaram a cinco e a viagem à América do Sul tornou-se uma
volta ao mundo. E estamos a falar da viagem de investigação mais
importante da época moderna.
- Eles viajaram mesmo à volta do mundo?
- No verdadeiro sentido da palavra, sim. A partir da
América do Sul, a viagem prosseguiu pelo Pacífico em direcção à
Nova Zelândia,
Austrália e África do Sul.
Daqui, navegaram novamente para a América do Sul para
regressarem finalmente a Inglaterra. O próprio Darwin afirmou que a
viagem com o Beagle fora o acontecimento mais importante de toda a sua
vida.
- Não devia ser fácil ser naturalista no mar, pois não?
- Durante o primeiro ano, o "Beagle" navegou de um lado para o
outro ao longo costa sul-americana. Isso deu a
Darwin a oportunidade de se familiarizar em terra com o
continente. De importância decisiva foram também os numerosos
desembarques nas ilhas Galápagos no oceano Pacífico, a oeste da América
do
Sul. Deste modo, ele recolheu material precioso que era
progressivamente enviado para o seu país. Guardou para si as numerosas
reflexões que fez sobre a natureza e a evolução da vida. Quando
regressou a casa. com apenas vinte e sete anos, era já um famoso natura
p. 361
lista. E secretamente tinha já uma ideia clara daquilo que seria a sua
teoria da evolução. No entanto, passaram muitos anos até ele publicar a
sua obra principal. Porque
Darwin era um homem cauteloso, Sofia, e assim deve ser sempre um
naturalista.
- Como se chama essa obra principal?
- Bom, houve várias. Mas o livro que desencadeou em Inglaterra
os debates mais acesos foi " A Origem das Espécies", publicado em 1859.
O seu título completo era " On the Origin of Species by Means of Natural
Selection or the Preservation of Favoured Races in the Struggle
for Life". Este título comprido é basicamente um resumo da teoria de
Darwin.
- Então devias traduzi-lo para mim.
- Isso não é fácil, porque os conceitos que aparecem nele foram
traduzidos de diversos modos desde então. Uma tradução actual poderia
ser: " Sobre a Origem das Espécies por Meio de Selecção Natural ou a
Preservação das Raças Favorecidas na Luta pela Vida".
- É um título muito rico em conteúdo.
- Vamos analisá-lo parte por parte. Na " Origem das Espécies",
Darwin apresentou duas teorias ou teses principais: primeiro, partiu do
princípio de que todas as plantas e animais existentes hoje descendem de
formas anteriores primitivas. Pressupôs também uma evolução biológica.
Em segundo lugar, afirmou que esta evolução se devia à "selecção
natural".
- Por que motivo são os mais fortes que sobrevivem?
- Vamos concentrar-nos primeiro na ideia de evolução. Isso por
si só não era particularmente original. Em certos meios, a aceitação de
uma evolução biológica já estava muito difundida cerca do ano 1800. O
zoólogo francês "Jean de Lamarck" já dera o tom. Ainda antes dele, o avô
de Darwin, "Erasmus Darwin", apresentara a teoria segundo a qual plantas
e animais tinham evoluído a partir de algumas espécies primitivas. Mas
ninguém tinha fornecido uma explicação aceitável para o modo como essa
evolução se tinha dado. E, por isso, também não eram adversários muito
perigosos para a Igreja.
- Ao contrário de Darwin?
- Sim, e havia um motivo para isso. Tanto os religiosos como
muitos cientistas seguiam a doutrina bíblica segundo a qual as diversas
espécies vegetais e animais são imutáveis. Partiam do princípio de que
cada espécie animal tinha nascido de uma vez para sempre através de um
único acto criador. E, além disso, esta concepção cristã estava de
acordo com a de Platão e
Aristóteles.
- Como assim?
p. 362
- A teoria das ideias de Platão pressupunha que todas as
espécies animais eram imutáveis, uma vez que eram criadas segundo o
arquétipo da respectiva ideia ou forma. O facto de as espécies animais
serem imutáveis era também um ponto assente na filosofia de
Aristóteles. Mas justamente no tempo de Darwin, fizeram-se
algumas observações e descobertas que punham em risco esta concepção
tradicional.
- Que tipo de observações e descobertas foram?
- Em primeiro lugar, descobriram-se cada vez mais fósseis e em
segundo lugar descobriram-se grandes fósseis dos ossos de animais
extintos. O próprio Darwin se admirou ainda com o facto de se terem
encontrado fósseis de animais marinhos em montanhas. Ele mesmo fizera
essas descobertas nos Andes, na América do
Sul. Mas o que faziam animais marinhos nos Andes,
Sofia? Sabes responder-me?
- Não.
- Havia quem achasse que homens ou animais os tinham deixado aí.
Outros achavam que Deus tinha criado esses fósseis de animais marinhos
para induzir em erro os incrédulos.
- E o que pensava a ciência?
- A maioria dos geólogos seguia uma "teoria da catástrofe",
segundo a qual a Terra fora assolada várias vezes por grandes cheias,
terramotos e outras catástrofes que tinham destruído todas as formas de
vida. Uma catástrofe desse género é descrita na Bíblia: o Dilúvio
Universal, devido ao qual Noé construiu a sua arca. Após cada
catástrofe,
Deus teria renovado a vida na Terra criando plantas e animais
novos - e mais perfeitos.
- Nesse caso, os fósseis seriam as marcas de todas as formas de
vida anteriores que tinham sido exterminadas por essas catástrofes
gigantescas?
- Exacto. Dizia-se, por exemplo, que os fósseis eram as marcas
de animais que não tiveram lugar na arca. Mas quando Darwin partiu com o
Beagle, levou consigo o primeiro volume da obra "Principles of Geology"
do geólogo inglês " Charles Lyell". Ele achava que a geografia actual da
Terra - com montanhas altas e vales profundos - era o resultado de uma
evolução muito longa e lenta e afirmava que alterações muito pequenas
podiam provocar grandes alterações geográficas se se tivesse em
consideração grandes espaços de tempo.
- Em que tipo de mudanças estava ele a pensar?
- Nas mesmas forças que ainda hoje actuam: o tempo e o vento,
degelos, terramotos e desabamentos. Diz-se que o gotejar constante fura
a pedra, não pela sua força mas pela sua acção contínua. Lyell defendia
que essas transformações pequenas e progressivas podiam alterar
p. 363
completamente a natureza num grande espaço de tempo. Darwin compreendeu
que esta ideia não podia explicar só por si o motivo pelo qual
encontrara nos Andes fósseis de animais marinhos. Mas nunca se esqueceu,
durante toda a sua vida de investigador, que "mudanças pequenas e
progressivas" podem levar a alterações dramáticas se pensarmos no factor
tempo.
- Ele pensava que uma explicação semelhante podia ser aplicada à
evolução dos animais?
- Sim, e fez a si mesmo essa pergunta. Mas, como eu disse,
Darwin era um homem prudente. Ponderava longamente as questões antes de
ousar dar as respostas. Deste modo, usava o método de todos os
verdadeiros filósofos, que afirma: é importante perguntar mas não é
preciso pressa para responder.
- Compreendo.
- Um factor decisivo na teoria de Lyell era a idade da terra. No
tempo de Darwin estava muito difundida a opinião de que Deus tinha
criado a Terra há cerca de seis mil anos. Tinha-se calculado este
número contando todas as gerações desde Adão e Eva até ao presente.
- Que ingenuidade!
- Sabemos sempre mais posteriormente. Darwin estimou a idade da
Terra em trezentos milhões de anos. Uma coisa era clara: nem a teoria de
Lyell da evolução biológica progressiva nem a própria teoria da evolução
de Darwin faziam sentido se não se tinha em conta períodos muito
extensos.
- Qual é a idade da Terra?
- Hoje sabemos que a Terra tem alguns milhares de milhões de
anos.
- Já é suficiente...
- Até agora, concentrámo-nos num dos argumentos de
Darwin a favor de uma evolução biológica, o da "presença
estratificada de fósseis" nas várias formações rochosas. Um outro
argumento era a "distribuição geográfica" das espécies vivas. A viagem
de pesquisa de Darwin forneceu material novo e extremamente rico. Ele
vira com os próprios olhos que as diversas espécies animais de uma
região se podiam distinguir entre si graças a diferenças mínimas. Fez
algumas observações interessantes sobretudo nas ilhas Galápagos, a oeste
do Equador.
- Conta!
- Trata-se de um grupo de ilhas vulcânicas muito próximas entre
si. Por isso não havia grandes diferenças na flora e fauna. Mas Darwin
estava interessado justamente nas pequenas diferenças. Em todas as ilhas
encontrou grandes tartarugas gigantes, que diferiam sempre um
p. 364
pouco de ilha para ilha. Teria Deus realmente criado uma raça específica
de tartarugas gigantes para cada ilha?
- É pouco provável.
- Mais importante ainda foi o que Darwin observou na vida das
aves das ilhas Galápagos. De ilha para ilha variavam as espécies de
tentilhões - sobretudo na forma do bico. Darwin demonstrou que estas
variações estavam intimamente relacionadas com o modo como os tentilhões
se alimentavam nas diversas ilhas. O tentilhão de bico afiado vivia de
pinhões, o tentilhão pequeno vivia de insectos, o tentilhão de bico mais
grosso alimentava-se de insectos que viviam nos troncos e nos ramos.
Cada uma destas espécies tinha um bico que se ajustava perfeitamente ao
modo de se alimentar. Poderiam todos estes tentilhões descender de uma
mesma espécie de tentilhão? Essa espécie tinha-se adaptado de tal forma
ao seu ambiente nas diversas ilhas, com o decurso dos anos, que tivessem
surgido finalmente novas espécies de tentilhões?
- Foi essa a conclusão a que ele chegou?
- Foi. E provavelmente
Darwin só se tornou um "darwinista" nas ilhas Galápagos.
Ocorreu-lhe também que a fauna nesse pequeno arquipélago
apresentava grandes semelhanças com muitas espécies que ele vira na
América do Sul. Tinha Deus criado de uma vez por todas estes animais
ligeiramente diferentes uns dos outros - ou teria havido uma evolução?
Teve cada vez mais dúvidas de que as espécies fossem imutáveis. Mas
faltava-lhe ainda uma boa explicação para o modo como poderia suceder
uma evolução ou uma adaptação ao mundo. O que ele possuía era um
argumento a favor do parentesco entre todos os animais na Terra.
- Qual era?
- Era o desenvolvimento dos fetos nos mamíferos. Se comparares
os fetos do cão, morcego, coelho e homem no mesmo estádio primitivo,
quase não vês diferenças. Só num estádio muito mais tardio do
desenvolvimento dos fetos podes distinguir fetos de homens e de coelhos.
Seria isso um indício de que somos parentes afastados?
- Mas ele ainda não tinha encontrado uma explicação para o modo
como a evolução para espécies diferentes se tinha dado?
- Ele continuava a reflectir sobre a teoria de Lyell acerca das
pequenas transformações que tinham grandes efeitos com o decorrer do
tempo. Mas não encontrou uma explicação que pudesse servir como
princípio universal. Conhecia a teoria de Lamarck, que reconhecera que
as diversas espécies animais tinham desenvolvido exactamente aquilo de
que precisavam. E considerara que as girafas tinham um pescoço muito
comprido por se terem esticado durante muitas gerações para chegar às
p. 365
folhas das árvores. Lamarck achava portanto que as características que
um indivíduo adquire através do próprio esforço são legadas à
descendência. Mas a teoria de que as "características adquiridas" eram
hereditárias foi recusada por Darwin - precisamente porque Lamarck não
podia provar as suas teses ousadas. Porém havia outra coisa - e muito
mais próxima - na qual
Darwin pensava cada vez mais. Podes dizer que o verdadeiro
mecanismo da evolução das espécies estava à frente do seu nariz.
- Estou muito curiosa.
- Preferia que descobrisses esse mecanismo por ti. Por isso,
pergunto: Se tens três vacas, mas apenas comida suficiente para duas, o
que fazes?
- Tenho de abater uma vaca.
- Exacto... e que vaca havias de abater?
- Aquela que dá menos leite.
- Estás a falar a sério?
- Sim, é lógico.
- É exactamente isso que os homens fazem desde há milénios. Mas
ainda sobram duas vacas. Partindo do princípio que queres fazer
reprodução com uma, qual é que escolhes?
- A que dá mais leite.
Nesse caso, a vitela será também uma boa vaca leiteira.
- Preferes boas vacas leiteiras às más? Então, só nos falta uma
tarefa. Se gostas de caçar e tens dois cães de caça, mas tens de dar um
deles, que cão conservarias para ti?
- Ficaria com aquele que tivesse melhor faro para a caça.
- Preferirias portanto o melhor cão de caça, sim. E é assim,
Sofia, que os homens criam os animais há mais de dez mil anos. As
galinhas nem sempre puseram cinco ovos por semana, as ovelhas não
tiveram sempre tanta lã e os cavalos não foram sempre tão fortes e
rápidos como são hoje. Os homens fizeram uma "selecção artificial". Isso
também é válido para o reino vegetal.
Não plantamos batatas más se queremos ter renovos melhores.
Não nos damos ao trabalho de ceifar espigas sem grãos. Segundo
Darwin, não há duas vacas, duas espigas, dois cães e dois tentilhões
iguais. A natureza apresenta uma enorme variedade. Nem na mesma espécie
há dois indivíduos totalmente iguais. Tu mesma te apercebeste disso
quando bebeste o líquido azul.
- Podes ter a certeza!
- Darwin tinha que pôr a questão: poderia haver também na
natureza um mecanismo análogo? Seria possível que a natureza também
fizesse uma "selecção natural" dos indivíduos que devem sobreviver?
p. 366
E poderia esse mecanismo a longo prazo provocar o aparecimento de
espécies vegetais e animais completamente novas?
- Aposto que a resposta é sim.
- Darwin ainda não conseguia imaginar exactamente como essa
selecção natural podia dar-se. Mas em Outubro de 1838 - passados
exactamente dois anos depois do seu regresso com o Beagle - veio-lhe às
mãos por acaso um pequeno livro do economista "Thomas Malthus". O livro
tinha o título " An Essay on the Principle of Population". O americano
"Benjamin Franklin", que tinha inventado entre outras coisas o pára-raios,
dera a Malthus a ideia de escrever esse livro. Franklin referira
que na natureza também tem de haver factores limitantes, porque, de
outro modo, uma única espécie vegetal ou animal ter-se-ia difundido em
todo o planeta. Só por existirem muitas espécies diversas é que elas se
equilibram umas às outras.
- Compreendo.
- Malthus desenvolveu esta ideia e aplicou-a à situação
demográfica da Terra. Explicou que a capacidade de procriação do homem é
tão grande que nasciam sempre mais crianças do que as que podiam
sobreviver. E uma vez que a produção de alimento nunca pode andar a
passo com o crescimento populacional, um grande número de pessoas está
condenado a sucumbir na luta pela existência. Conseguirão sobreviver - e
consequentemente assegurar a subsistência da sua família - só aqueles
que melhor se impuserem na luta pela sobrevivência.
- Parece lógico.
- E era justamente esse o mecanismo universal de que Darwin estivera à procura.
De repente, tinha uma explicação para o modo como decorria a
evolução: a "selecção natural" na luta pela sobrevivência, graças à qual
quem está melhor adaptado ao ambiente continuará a viver e a reproduzir-se.
Era a segunda teoria por ele proposta no seu livro " A Origem das
Espécies". Ele escreveu: " O elefante reproduz-se mais lentamente do
que todos os outros animais, e eu tive o cuidado de calcular o mínimo
provável da sua reprodução natural. Podemos ter como bastante seguro que
ele inicia a reprodução aos trinta anos e a mantém até ao nonagésimo ano
de vida, e que durante este período gera seis crias e vive até aos cem
anos. Neste caso, ao cabo de 740 a 750 anos haveria cerca de 19 milhões
de elefantes descendentes de um primeiro casal."
- Para não falar dos milhares de ovos de um único bacalhau.
- Darwin explicou ainda que a luta pela sobrevivência entre as
espécies mais semelhantes é frequentemente mais dura, porque lutam pelo
mesmo tipo de alimento. E, nessa altura, são as pequenas diferenças
p. 367
- as pequenas vantagens em relação à média - que são determinantes.
Quanto mais dura é a luta pela sobrevivência mais rapidamente se dá o
desenvolvimento de novas espécies. Só os indivíduos mais bem adaptados
ao ambiente sobrevivem: todos os outros se extinguem.
- Então, quanto menos alimento e quanto mais descendência há,
mais rápida é a evolução?
- Não se trata apenas de alimento. Também pode ser importante
não se ser devorado por outros animais. Pode ser uma vantagem ter uma
certa cor de camuflagem, poder correr rapidamente, aperceber-se da
presença de animais inimigos
- ou pelo menos ter mau sabor. Um veneno que mate um predador é
também importante.
Não é por acaso que muitos cactos são venenosos, Sofia.
No deserto, quase só crescem cactos. E por isso estão
particularmente expostos aos ataques dos animais herbívoros.
- Além disso, a maior parte dos cactos têm picos.
- A capacidade de reprodução tem também uma importância
fundamental. Darwin estudou bem a polinização. As plantas, com os seus
perfumes e as suas cores, atraem os insectos que contribuem para a
difusão do pólen. O canto dos pássaros também é importante para a
reprodução. Um touro lento e melancólico, que não se interessa por
vacas, não é importante para a história da sua espécie. A única tarefa
do indivíduo é atingir a maturidade sexual e reproduzir-se, para
conservar a espécie. É como uma longa estafeta, em que aqueles que, por
algum motivo, não conseguem transmitir os genes são sempre excluídos.
Deste modo, a raça melhora progressivamente. A resistência às
doenças também é uma característica que se conserva nas variantes que
sobrevivem.
- Então tudo melhora progressivamente?
- A selecção contínua faz com que aqueles que estão adaptados a
um determinado ambiente - ou a um determinado nicho ecológico -
sobrevivam nesse ambiente. Mas aquilo que é uma vantagem num ambiente
pode não sê-lo noutro. Para alguns dos tentilhões das ilhas Galápagos,
a capacidade de voar era muito importante, mas não se o alimento tem que
ser escavado do solo e não existem animais predadores. Justamente porque
na natureza há tantos nichos é que se desenvolveram tantos animais com o
decurso do tempo.
- Mas há apenas uma espécie humana.
- Sim, porque os homens possuem uma capacidade fantástica de se
adaptar às mais diversas condições de vida.
Darwin ficou impressionado quando viu como os índios da Terra do
Fogo conseguiam sobreviver num clima tão frio.
Se os homens junto ao equador têm uma pele mais escura
p. 368
do que os habitantes das regiões setentrionais é porque a pele escura
protege da luz solar. Homens de pele branca que se expõem demasiado ao
sol estão mais sujeitos ao cancro de pele.
- A pele branca também é uma vantagem quando se vive num país a
norte?
- Claro, senão os homens teriam por toda a parte a pele escura.
Mas a pele branca tem mais facilidade em produzir um certo tipo de
vitaminas - do grupo D -, e isso é muito importante nas regiões que têm
pouco sol. Hoje, isso tem pouca importância porque tomamos vitaminas
através da alimentação, mas nada é casual na natureza: tudo se deve
àquelas pequenas variações que actuaram por um número infinito de
gerações.
- Isso é uma ideia fantástica.
- É, não é? Podemos agora resumir a teoria de Darwin deste
modo...
- Despacha-te!
- ... dizendo que: a matéria-prima responsável pela evolução da
vida na Terra são as contínuas "variações" entre indivíduos dentro de
uma mesma espécie. E é a alta "taxa de natalidade" que permite que uma
pequena percentagem deles consiga sobreviver. O mecanismo na base da
evolução é a "selecção natural" na luta pela sobrevivência. Esta
selecção faz com que apenas os mais fortes ou os que se adaptam melhor
consigam sobreviver.
- Parece lógico. Como foi recebido o livro sobre a origem das
espécies?
- Desencadeou uma grande celeuma. A Igreja protestou fortemente
e o meio científico inglês dividiu-se. No fundo, estas reacções não
eram estranhas, uma vez que Darwin eliminara em parte Deus do acto
criador. Mas algumas pessoas, mais iluminadas, disseram que era obra
muito maior criar alguma coisa que contivesse em si as possibilidades de
desenvolvimento do que criar todas as coisas de uma vez por todas,
determinadas nos mínimos detalhes.
De repente, Sofia levantou-se de um pulo do seu sofá.
- Olha, ali! - exclamou.
Apontava para a janela. Junto ao lago, um homem e uma mulher
passeavam de mão dada. Estavam completamente nus.
- São Adão e Eva - afirmou Alberto. - Mais tarde ou mais cedo,
tinham de compartilhar a mesma irrealidade do Capuchinho Vermelho e da
Alice. Por isso apareceram aqui.
Sofia foi à janela para ver melhor, mas o par desapareceu
rapidamente entre as árvores.
- Porque, segundo Darwin, o homem evoluiu dos animais?
p. 369
- Em 1871, publicou "The
Descent of Man", " A Descendência do Homem", no qual evidencia
as semelhanças existentes entre os homens e os animais, e defende que os
seres humanos e os símios antropóides devem ter-se desenvolvido a
partir de um antepassado comum. Entretanto, tinham-se encontrado os
primeiros fósseis de crânios de um tipo humano extinto, primeiro numa
pedreira no Rochedo de Gibraltar e alguns anos mais tarde em Neandertal,
na Renânia. Por estranho que pareça, houve menos reacção em 1871 do que
em 1859, o ano em que Darwin publicara " A
Origem das Espécies", se bem que, de facto, a tese de que o
homem descendia de animais já estava implícita no primeiro livro. E como
eu já disse, quando morreu em 1882, Darwin foi sepultado com muitas
honras como um pioneiro da ciência.
- E obteve no fim fama e glória?
- No fim, sim. Mas antes disso chamaram-lhe o homem mais
perigoso de Inglaterra.
- Meu Deus!
- "Esperemos que não seja verdade, mas se é esperemos que não se
venha a saber", disse uma senhora da alta sociedade. Um cientista
conhecido disse uma coisa semelhante: "uma descoberta humilhante, e
quanto menos se falar dela, melhor."
- Desse modo, quase demonstraram que o homem é aparentado com a
avestruz!
- Sim, bem podes dizer isso. Mas é fácil para nós criticar.
Muitas pessoas se sentiram forçadas a rever a sua opinião sobre a
narração bíblica da Criação. O jovem autor "John Ruskin" exprimiu-o do
seguinte modo: " Se os geólogos pudessem deixar-me em paz! No fim de
cada versículo da Bíblia ouço as suas marteladas."
- E as marteladas eram as dúvidas quanto à palavra de
Deus?
- Era isso que ele queria dizer, porque não foi apenas a
interpretação literal da descrição bíblica a ser abalada.
A teoria de Darwin afirmava também que variações totalmente
"casuais" tinham criado o homem. E mais, Darwin reduziu o ser humano a
um produto de uma coisa tão "desprezível" como a luta pela existência.
- Darwin explicou o modo como nascem essas "variações casuais"?
- Estás a tocar no ponto mais frágil da sua teoria.
Darwin tinha apenas ideias muito vagas sobre a hereditariedade.
Alguma coisa desaparece no cruzamento. Um casal nunca tem dois filhos
exactamente iguais e isso já representa uma certa variação. Por outro
lado, dificilmente surge alguma coisa verdadeiramente nova. Além disso,
há plantas e animais que se reproduzem através de germinação ou simples
divisão
p. 370
celular, logo sem cruzamentos. Para explicar como se criam estas
variações viria depois o chamado neodarwinismo, que completou a teoria
de Darwin.
- Conta!
- Toda a vida e toda a reprodução andam à volta da divisão
celular. Quando uma célula se divide em dois, formam-se duas células
exactamente iguais com o mesmo material genético. Por divisão celular
entendemos portanto que uma célula se copia a si mesma.
- Sim?
- Mas, por vezes, há erros minúsculos neste processo - e por
isso a célula copiada não é totalmente igual à célula mãe. Este fenómeno
é chamado "mutação" na biologia moderna.
As mutações podem ser insignificantes ou, pelo contrário, levar
a transformações evidentes nas características do indivíduo. Podem ser
directamente prejudiciais e, neste caso, os "mutantes" são
constantemente eliminados. Muitas doenças também se devem a mutações.
Mas, por vezes, uma mutação pode fornecer ao indivíduo precisamente
aquela característica positiva da qual precisa para se poder impor na
luta pela sobrevivência.
- Um pescoço mais comprido, por exemplo?
- A explicação de Lamarck para o longo pescoço das girafas era
que as girafas tinham esticado constantemente o pescoço para comerem as
folhas das árvores. Mas, segundo
Darwin, as características adquiridas pelo hábito não podiam ser
transmitidas. Para
Darwin, o pescoço comprido das girafas era uma variação natural
dos pescoços dos seus antepassados. O neodarwinismo completa esta tese
indicando a causa de tais variações.
- As mutações.
- Sim. Algumas mutações casuais no material genético deram a
alguns antepassados das girafas um pescoço ligeiramente mais longo do
que a média. Variação que se pode ter tornado positiva e importante num
período de escassez de alimento: quem chegava aos ramos mais altos das
árvores conseguia sobreviver melhor. Podemos ainda imaginar que algumas
destas "primeiras girafas" desenvolveram a capacidade de esgravatar
alimento do solo. Passado muito tempo, uma espécie animal pode ter-se
dividido em duas novas espécies animais.
- Compreendo.
- Vou dar exemplos mais recentes do mecanismo da selecção
natural. O princípio é muito simples.
- Diz.
- Em Inglaterra há uma espécie de borboleta que vive nos troncos
claros das bétulas. Se recuarmos ao século XIII, podemos verificar que
p. 371
a maior parte destas borboletas eram de um tom cinzento -claro. Porquê,
Sofia?
- Para não serem vistas pelos pássaros.
- De quando em quando, nasciam exemplares mais escuros e isso
devia-se a mutações casuais. O que te parece que aconteceu às variantes
escuras?
- Eram mais visíveis, e por isso presa fácil dos pássaros.
- De facto, nesse ambiente, ou seja, nos troncos claros das
bétulas, a cor escura não era uma característica favorável, razão pela
qual as borboletas de cor clara se multiplicaram muito. Mas, em seguida,
aconteceu uma coisa no ambiente: com a industrialização, em muitas
localidades, os troncos brancos tornaram-se mais escuros por causa da
fuligem. O que aconteceu então a estas borboletas?
- Foi a vez de os exemplares escuros se desenvencilharem melhor.
- Precisamente, e não foi necessário muito tempo para o seu
número aumentar. De 1848 a 1948 a quantidade dos exemplares escuros
passou, em algumas zonas, de um a noventa e nove por cento. O ambiente
tinha mudado, e não era uma vantagem ter-se cor clara, pelo contrário!
Os exemplares brancos eram imediatamente eliminados pelos pássaros mal
pousavam nos troncos. Mas houve uma nova transformação do ambiente: um
uso mais limitado do carbono e melhores instalações de filtragem
tornaram nos últimos anos o ambiente mais limpo.
- Então agora os troncos das bétulas são novamente brancos?
- Por esse motivo as borboletas estão a voltar à cor branca. É o
que chamamos "adaptação" e estamos a falar de uma lei da natureza. Há
também outros exemplos que mostram como os seres humanos intervieram no
ambiente.
- A que é que te referes?
- Tentou-se eliminar animais nocivos recorrendo a várias
substâncias venenosas.
De início, o resultado foi positivo, mas quando pulverizamos um
campo ou um pomar com insecticidas, provocamos na realidade uma pequena
catástrofe ecológica para os elementos nocivos que queremos exterminar.
E devido a mutações contínuas, pode desenvolver-se um grupo de factores
nocivos mais resistentes contra o veneno usado. Estes "vencedores" têm
mais possibilidades de sobreviver e tornam-se cada vez mais difíceis de
eliminar justamente porque o ser humano tentou destruí-los. São as
variantes mais resistentes que sobrevivem.
- Terrível!
- Mesmo no nosso corpo tentamos eliminar parasitas nocivos:
refiro-me às bactérias.
- Usamos a penicilina ou antibióticos.
p. 372
- Uma cura à base de penicilina representa realmente uma "catás
trofe ecológica" para estes hóspedes indesejados, mas, pouco a pouco,
algumas bactérias resistem inclusivamente à penicilina. Temos de
recorrer a doses cada vez maiores, e no fim...
- No fim saem-nos pela boca, talvez tenhamos de começar a
disparar contra elas.
- Isso seria talvez um pouco exagerado. Mas é evidente que a
medicina moderna criou um sério dilema. Não se trata apenas do facto de
as bactérias se terem tornado mais resistentes do que eram.
Antigamente, muitos bebés morriam destas doenças, e sobreviviam
muito poucos. Num certo sentido, a medicina moderna eliminou a selecção
natural. Mas aquilo que ajuda o indivíduo pode a longo prazo enfraquecer
a capacidade de resistência da humanidade às doenças. Quer dizer que, a
longo prazo, a capacidade hereditária dos homens de resistir a doenças
sérias torna-se mais fraca.
- É uma perspectiva terrível.
- Mas um filósofo tem de referir isso. Uma questão completamente
diferente é a de saber quais são as suas conseqüências. Tentemos fazer
um pequeno resumo.
- Faz favor!
- Podemos dizer que a vida é uma grande lotaria onde apenas
vemos os bilhetes vencedores.
- O que queres dizer?
- Aqueles que perderam na luta pela existência, desapareceram.
Por detrás de cada espécie animal e vegetal sobre a face da Terra, há
milhões de anos de extracções de "bilhetes perdedores". Todas as
espécies animais e vegetais presentes hoje no mundo devem ser
consideradas, pelo menos por enquanto, "vencedoras" na grande lotaria da
vida.
- Porque apenas os melhores sobrevivem.
- Podemos dizer isso. E agora vamos ver o cartaz que
Noé te deu.
Sofia passou-lhe o cartaz.
De um lado, havia a imagem da arca de Noé, noutro estava
desenhada a árvore genealógica de todas as diferentes espécies animais.
Era esse o lado que Alberto lhe queria mostrar.
- O esquema mostra a subdivisão das diferentes espécies animais
e vegetais: podes ver como cada espécie pertence a diversos grupos e
classes.
- Sim, estou a ver.
- O homem pertence, juntamente com os símios, aos chamados
primatas. Todos os primatas são mamíferos e todos os mamíferos pertencem
ao grupo dos vertebrados, que por sua vez pertence ao grupo dos animais
pluricelulares.
p. 373
- Faz lembrar Aristóteles.
- É verdade. Mas o esquema não mostra apenas qual é a subdivisão
das espécies modernas. Também diz algo sobre a história da evolução.
Podes ver, por exemplo, que os pássaros se separaram dos répteis, que
por sua vez se separaram dos anfíbios, que por sua vez se separaram dos
peixes.
- Sim, é muito claro.
- Cada vez que uma destas linhas se divide, é porque houve
mutações que levaram à formação de novas espécies.
Deste modo, no decurso de milhões de anos formaram-se os
diversos grupos e classes de animais. Mas este esquema é muito
simplificado: na realidade hoje existe mais de um milhão de espécies
animais, e este milhão é apenas uma pequena parte de todas as espécies
animais que viveram na Terra. Como vês, um grupo animal como o dos
trilobites extinguiu-se completamente.
- E em baixo temos os animais unicelulares.
- Alguns desses não mudaram provavelmente desde há alguns
milhões de anos. Vês também uma linha que vai desde estes organismos
unicelulares até ao reino vegetal porque, muito provavelmente, as
plantas provêm da mesma célula primordial que os animais.
- Estou a ver, mas agora tenho uma pergunta.
- Sim?
- Donde vem essa célula primordial? Darwin deu uma resposta?
- Eu disse-te que era um homem prudente, mas neste aspecto
especulou um pouco. Ele escreveu: " Se (e que se!) pudéssemos imaginar
uma pequena poça de água quente, onde todo o tipo de sais de amónio e
fósforo, a luz, o calor, a electricidade estivessem presentes, e onde se
tivesse criado um composto proteico, apto a sofrer mutações ainda mais
complexas..."
- Sim, e então?
- Darwin estava a imaginar de que modo a primeira célula viva se
podia ter formado da matéria inorgânica. E mais uma vez acertou no alvo.
A ciência de hoje pensa que a primeira forma de vida nasceu numa
"pequena poça de água quente" tal como Darwin a imaginara.
- Continua!
- Um esboço sumário deve ser o suficiente. Lembra-te de que
estamos a deixar Darwin e a dar um salto para as mais recentes
investigações sobre a origem da vida na terra.
- Isso põe-me um pouco nervosa. Ninguém sabe como a vida
surgiu?
- Talvez não, mas cada vez mais peças do quadro se ajustam para
formar a imagem de como a vida pode ter surgido.
p. 374
- Continua!
- Devemos primeiro que tudo ter presente que toda a forma de
vida na terra, vegetal ou animal, é constituída pelas mesmas
substâncias. A definição mais simples da vida é: cada ser vivo possui um
metabolismo e reproduz-se autonomamente. Este processo é dirigido por
uma substância a que chamamos A D N. Desta substância são feitos os
cromossomas, ou seja, o material genético que se encontra em qualquer
célula viva. O
A D N é uma molécula, ou melhor, uma macromolécula, muito
complexa. A pergunta é: como nasceu a primeira molécula de
A D N?
- Como?
- A Terra foi criada quando se formou o sistema solar há cerca
de 4'500 milhões de anos. Inicialmente era uma massa incandescente, mas
pouco a pouco, a crusta terrestre arrefeceu. E, segundo a ciência
moderna, a vida surgiu há cerca de três a quatro mil milhões de anos.
- Parece inacreditável.
- Só podes dizer isso depois de teres ouvido o resto.
Antes de mais, deves reparar que a Terra era muito diferente do
que é hoje. Visto que não havia nenhuma forma de vida, nem sequer havia
oxigénio na atmosfera. O oxigénio livre só foi criado com a fotossíntese
das plantas. O facto de não existir oxigénio era importante: é
impossível que os fundamentos da vida, que podem dar origem ao
A D N, tivessem nascido numa atmosfera rica em oxigénio.
- Porquê?
- Porque o oxigénio é uma substância muito reactiva: antes de
poderem formar complicadas moléculas de A D N, estes tijolos da molécula
de
A D N ter-se-iam oxidado.
- Está bem.
- Por isso sabemos com segurança que hoje não pode nascer
nenhuma forma nova de vida, nem uma bactéria ou vírus. Por isso, toda a
vida na Terra deve ter a mesma idade. Um elefante tem uma árvore
genealógica tão longa como a da mais simples bactéria. Podemos dizer que
um elefante, ou um homem, é na realidade uma colónia de animais
unicelulares porque em cada célula do nosso corpo temos exactamente o
mesmo material genético. A receita pela qual somos o que somos está em
cada célula do nosso corpo.
- É estranho.
- Um dos grandes mistérios da vida é que todavia as células dos
animais pluricelulares têm a capacidade de se especializarem numa função
particular, porque as diversas características hereditárias não estão
activas em todas as células. Algumas destas características, ou genes,
estão "activadas", outras "desactivadas". Uma célula hepática
p. 375
produz proteínas diferentes das de uma célula nervosa ou de uma célula
da pele. Mas em todas encontramos a mesma molécula de A D N que contém
toda a receita do organismo de que estamos a falar.
- Continua!
- Quando não havia oxigénio na atmosfera, não havia sequer, à
volta do globo terrestre, uma camada protectora de ozono. Isso significa
que não havia nada a deter as radiações provenientes do espaço. Isto
também é importante porque, muito provavelmente, estas últimas tiveram
um papel decisivo na formação das primeiras moléculas complexas. Uma
radiação cósmica foi a energia que uniu as diversas substâncias químicas
presentes na Terra para formar macromoléculas complexas.
- Está bem.
- Vou recapitular: para que se possam constituir as moléculas
complexas de que se forma a vida, pelo menos duas condições têm de ser
satisfeitas: "não pode existir oxigénio na atmosfera e não deve haver
obstáculo às radiações provenientes do espaço".
- Compreendo.
- Na pequena "poça de água quente" - ou "sopa primordial", como
lhe chama a ciência moderna, formou-se a dada altura uma macromolécula
muito complexa, que tinha a estranha capacidade de se poder dividir. E
com isto se iniciou a longa evolução, Sofia. Se quisermos simplificar um
pouco, diremos que já podemos falar do primeiro material genético, do
primeiro A D N ou da primeira célula viva. Ela continuou a dividir-se;
desde o primeiro momento sucederam mutações constantes. Depois de um
espaço de tempo muito longo, sucedeu que os organismos unicelulares se
uniram para constituir organismos pluricelulares mais complexos.
Do mesmo modo, teve início a fotossíntese das plantas, e assim
se formou uma atmosfera rica em oxigénio. Este acontecimento teve um
efeito duplo: antes de mais, a atmosfera permitiu que se pudessem
desenvolver animais aptos a respirar com os pulmões. Além disso, a
atmosfera protegeu a vida das radiações nocivas provenientes do espaço.
Na realidade, estas radiações, importantes "centelhas" para a criação da
primeira célula, são também prejudiciais para toda a vida animada.
- Mas a atmosfera não se formou da noite para o dia.
Como conseguiram sobreviver as primeiras formas de vida?
- A vida nasceu primeiro no oceano, aquilo a que chamamos a
"sopa primordial". Aí, as primeiras formas de vida puderam desenvolver
-se protegidas das radiações perigosas.
Só muito mais tarde, quando a vida no oceano criou a atmosfera,
é que os primeiros anfíbios subiram para terra. Já falámos do resto.
Estamos aqui sentados numa cabana de um bosque e olhamos em
retrospectiva para um processo que durou
p. 376
três ou quatro mil milhões de anos. E foi justamente em nós que este
processo teve consciência de si mesmo.
- Mas achas que foi tudo mero acaso?
- Não disse isso. O cartaz de Noé mostra-nos que a evolução
tinha uma direcção.
Durante milhões de anos desenvolveram-se animais dotados de um
sistema nervoso cada vez mais complexo e com um cérebro cada vez maior.
Pessoalmente não acho que tenha sido um acaso. O que é que tu pensas?
- O olho humano não pode ter surgido por mero acaso.
Não achas que haja um significado por detrás do facto de
podermos ver o mundo que nos rodeia?
- A evolução do olho também surpreendeu Darwin. Não conseguia
imaginar que uma coisa tão bela e delicada pudesse ter nascido devido à
selecção natural.
Sofia olhou para Alberto. Pensou como era estranho ela estar a
viver naquele momento, o facto de viver apenas aquela vez e de não
tornar a viver.
De repente, exclamou:
- "Então que vale a eterna criação? Coisas criadas ao nada
reduzir!"
Alberto fixou-a severamente:
- Não podes falar assim, minha filha. Essas são as palavras do
diabo.
- Do diabo?
- Ou de Mefistófeles - no "Fausto" de Goethe.
- O que querem dizer exactamente estas palavras?
- Enquanto Fausto morre, e olha retrospectivamente para a sua
longa vida - diz num tom triunfante:
"És tão belo, demora-te! Por
séculos E séculos de meus terrenos
dias
Não se apaga o vestígio Agora mesmo,
Somente em pressentir tanta
delícia, Gozo ditoso o mais celeste
instante."
- Que bonito!
- Mas agora é a vez do diabo. Mal Fausto morre exclama:
p. 377
" Acabou-se! Palavra sem sentido!
Acabou-se porquê?
Acabou e nada,
É tudo a mesma coisa!
Então que vale
A eterna criação?
Coisas criadas
Ao nada reduzir! "Está acabado!..."
Que quer isto dizer? É exac tamente
Como se nunca fosse, e toda via
Circula, como tendo inda existência!
Preferira ao que acaba o vácuo eterno." (")
................. (") J. W. Goethe, Fausto. Tradução de Agos tinho de
Ornellas - nova edição ao cuidado de Paulo Quintela. Por ordem da
Universidade de Coimbra, 1953.
- Que pessimismo. Gostei mais da primeira citação.
Apesar de a sua vida ter terminado, Fausto viu um significado
nos vestígios que deixou atrás de si.
- Não é uma conseqüência da teoria da evolução de Darwin
sentirmo-nos parte de alguma coisa de grande onde a mais pequena forma
de vida tem um significado na totalidade?
Nós somos o planeta vivo, Sofia! Somos a grande embarcação que
navega à volta de um sol ardente no universo. Mas cada um de nós é
também um barco que atravessa a vida com uma carga de genes. Quando a
tivermos transportado até ao porto seguinte, não teremos vivido em vão.
Bjornstjerne Bjornson exprimiu a mesma ideia no poema " Salmo II":
"Louva o eterno na nossa vida que criou todas as coisas!
Na manhã da ressurreição o mínimo é dado, apenas as formas se perdem.
A estirpe gera a estirpe, e alcança poderes crescentes; a
espécie gera a espécie em milhões de anos Mundos morrem e nascem.
Na alegria de viver, tu, a quem foi concedido ser uma flor desta
primavera, goza um dia em honra do eterno na condição de homem; oferece
o teu óbolo até ao surgir do eterno, respira num único e imperceptível
fôlego o dia eterno!"
p. 378
- Que bonito!
- Mas agora vamos terminar. Digo apenas: fim de capítulo!
- Pára com essa tua ironia!
- Fim de capítulo, disse eu. Presta atenção ao que eu te digo!
p. 379
FREUD
"...um desejo horrível, egoísta, emergira nela..."
Hilde Mõller Knag saltou da cama com o grande "dossier" nos braços.
Deixou-o na mesinha de cabeceira, correu com a roupa para a casa de
banho, tomou duche em dois minutos e vestiu-se a toda a pressa. Em
seguida, desceu as escadas a correr.
- Pequeno-almoço, Hilde?
- Antes tenho de remar um pouco.
- Mas, Hilde! Hilde saiu a correr da casa para o jardim.
Desamarrou o barco da doca e saltou para dentro dele. Depois, começou a
remar. Remou sem direcção pela enseada, primeiro com golpes enfurecidos,
depois começou a acalmar-se. " Nós somos o planeta vivo, Sofia!
Somos a grande embarcação que navega à volta de um sol ardente
no universo. Mas cada um de nós é também um barco que atravessa a vida
com uma carga de genes. Quando a tivermos transportado até ao porto
seguinte, não teremos vivido em vão..." Hilde sabia-o de cor: afinal
tinha sido escrito para si. Não para Sofia, mas para si. Tudo o que
estava escrito no "dossier" era uma carta do pai para ela. Retirou os
remos dos toletes e pô-los dentro do barco, que começou a balouçar para
cima e para baixo. As ondas batiam levemente no fundo. Tal como o
pequeno barco se movia na água de uma pequena enseada em Lillesand,
também ela era uma casca de noz na superfície da vida.
Onde estavam Sofia e
Alberto neste quadro? Sim, onde estavam Sofia e Alberto?
Não conseguia aceitar a ideia de que fossem apenas "impulsos
electromagnéticos" no cérebro do pai. Não fazia sentido que fossem
apenas papel e tinta de uma fita da máquina de escrever do pai.
Nesse caso poderia dizer que ela própria era uma aglomeração de
ligações
p. 380
proteicas que se tinham reunido outrora "numa pequena poça quente". Mas
ela era mais do que isso. Ela era Hilde Mõller Knag!
O "dossier" era, de facto, um presente de aniversário
fantástico. E o pai soubera fazer ressoar nela uma corda nova. Mas o tom
impertinente com o qual escrevia sobre Sofia e Alberto não lhe agradava.
O major havia de levar um raspanete no regresso a casa. Ela
devia-o àqueles sobre os quais estava a ler. Hilde já estava a ver o
pai a andar de um lado para o outro como um garoto no aeroporto de
Copenhaga. Hilde tinha-se acalmado. Remou novamente até à doca e
amarrou o barco. Depois tomou o pequeno-almoço com a mãe. Gostaria de
poder dizer que o ovo estava muito bom, mas na realidade estava um pouco
mole. À noite, voltou a pegar no "dossier". Já não faltavam muitas
páginas.
Voltaram a bater à porta.
- Tapamos as orelhas? - perguntou Alberto. - Talvez parem.
- Não, eu quero ver quem é.
Quando foi à porta,
Alberto foi atrás dela. Lá fora estava um homem nu. Pusera-se
numa postura muito solene, mas a única coisa que trazia vestida era uma
coroa na cabeça.
- Então? - perguntou. -
O que pensam os senhores das novas vestes do rei?
Alberto e Sofia ficaram mudos de perplexidade, mas isso não fez
diferença para o homem nu.
- Vós nem vos inclinais!
- exclamou.
Alberto ganhou coragem:
- É verdade, mas o rei está completamente nu.
O homem manteve a mesma posição solene. Alberto inclinou-se
para Sofia e sussurou-lhe ao ouvido:
- Julga ser uma pessoa muito distinta.
O homem fez uma expressão carrancuda.
- Esta casa exerce algum tipo de censura? - perguntou.
- Infelizmente - respondeu Alberto. - Aqui estamos completamente
despertos e em plena posse das nossas faculdades mentais. Na condição
vergonhosa em que se encontra não lhe é permitido passar a soleira desta
pequena casa.
Sofia achou aquele homem, pomposo mas nu, tão cómico que desatou
a rir. Como se isso fosse o sinal secreto, o homem com a coroa na cabeça
deu-se subitamente conta de não ter nada vestido. Cobriu-se com ambas
as mãos, correu para o bosque e desapareceu. Talvez
p. 381
se encontrasse com Adão e Eva, Noé, Capuchinho Vermelho e Winnie the
Pooh.
Alberto e Sofia ficaram à porta. Finalmente, Alberto disse:
- Talvez seja melhor voltarmos a entrar. Vou falar-te de Freud
e da sua teoria sobre o inconsciente.
Sentaram-se em frente à janela. Sofia olhou para o relógio e
disse:
- Já são duas e meia, e ainda tenho que fazer muita coisa para a
festa do jardim.
- Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
- Era um filósofo?
- Podemos defini-lo como um filósofo da cultura. Freud nasceu
em 1856 e estudou medicina na universidade de Viena, cidade em que
passou a maior parte da sua vida, justamente no período em que a vida
cultural de Viena estava no apogeu. Especializou-se no ramo da medicina
que se chama neurologia. Em finais do século passado - e durante a
primeira metade deste século
- elaborou a sua "psicologia analítica" ou "psicanálise".
- Espero que expliques isso melhor.
- Por psicanálise entendemos quer uma descrição da psicologia
humana em geral quer um método para a cura das doenças nervosas e
psíquicas.
Não tenho intenção de te fornecer um quadro completo nem de
Freud nem da sua actividade, mas a sua doutrina do inconsciente é
fundamental para compreendermos o que é um ser humano.
- Já conseguiste despertar o meu interesse. Fala!
- Segundo Freud, existe sempre uma tensão entre um ser humano e
o ambiente que o rodeia. Mais precisamente, trata-se de uma tensão, ou
de um conflito, entre as pulsões e necessidades do homem e as exigências
do mundo externo.
Não é exagerado afirmar que foi Freud a descobrir a vida
instintiva do homem, e isto torna-o um expoente das correntes
naturalistas, dominantes no final do século.
- O que queres dizer com "vida instintiva" do homem?
- Nem sempre a razão domina as nossas acções: o homem não é
apenas um ser racional como os racionalistas do século XVIII pensavam.
Muitas vezes, são os impulsos irracionais que determinam o que pensamos,
o que sonhamos e fazemos. Estes impulsos irracionais podem ser expressão
de pulsões profundas ou de necessidades. Tão importante como a
necessidade de sucção do recém-nascido é o impulso sexual do homem.
- Compreendo.
- Em si, talvez não fosse uma verdadeira descoberta, mas Freud
mostrou que as necessidades deste género podem ser "camufladas" ou
p. 382
"transformadas" e dominar assim as nossas acções sem que tenhamos
consciência disso. Mostrou ainda que mesmo as crianças têm a sua forma
de sexualidade. Esta constatação da sexualidade infantil provocou na
burguesia culta vienense uma reacção de repulsa que tornou Freud muito
impopular.
- Não é de admirar.
- Estamos a falar da chamada época vitoriana, quando tudo o que
tinha a ver com a sexualidade era considerado tabu. Freud tinha chegado
às suas conclusões sobre a sexualidade infantil através da sua prática
como psicoterapeuta, logo, as suas afirmações tinham um fundamento
empírico. Ele tinha também verificado que muitas formas de doenças
psíquicas podiam ser reconduzidas a conflitos na instância.
Gradualmente, desenvolveu um método de cura que podemos definir como uma
espécie de "arqueologia psíquica".
- O que queres dizer com isso?
- Um arqueólogo procura encontrar vestígios de um passado
longínquo escavando os diversos estratos culturais: encontra uma faca do
século XVII, um pouco mais abaixo descobre um pente do século XIV e
ainda mais abaixo um vaso do século IV.
- E então?
- Da mesma forma, um psicólogo pode "escavar" na consciência do
seu paciente com a ajuda deste, para trazer à luz as experiências que
estão na origem dos sofrimentos psíquicos. Segundo Freud, conservamos
dentro de nós todas as recordações do passado.
- Agora compreendo.
- E por vezes encontra uma experiência dolorosa que o paciente
tentou sempre esquecer, mas que permaneceu no fundo e destrói a sua
resistência.
Quando essa "experiência traumática" é trazida à consciência - e
apresentada ao paciente - ele pode "libertar-se" dela e curar-se.
- Parece lógico.
- Mas fui demasiado rápido. Vamos primeiro ver como Freud
descreve a mente humana. Já alguma vez viste um recém-nascido?
- Eu tenho um primo de quatro anos.
- Quando vimos ao mundo, vivemos de modo directo e sem
constrangimento as nossas necessidades físicas e psíquicas. Se não nos
dão leite, choramos e gritamos. Fazemo-lo também quando as fraldas
estão molhadas. E exprimimos directamente o nosso desejo de contacto
físico e de calor humano. Freud chama a este "princípio de prazer" "id".
Quando somos bebés somos quase apenas "id".
- Continua!
p. 383
- O "id" está presente em nós durante toda a vida, mas pouco a
pouco aprendemos a controlar os nossos desejos e a adequar-nos às
circunstâncias. Aprendemos a adaptar as pulsões instintivas ao
"princípio de realidade". Freud diz que construímos um eu (ou ego) que
tem esta função reguladora. Mesmo se desejamos algo, não podemos
simplesmente pôr-nos a gritar até que os nossos desejos ou necessidades
sejam satisfeitos.
- Claro que não.
- Pode acontecer desejarmos algo intensamente e simultaneamente
o mundo não o aceitar. Nesse caso, temos de "reprimir" os nossos
desejos, ou seja, tentamos afastá-los ou esquecê-los.
- Compreendo.
- Freud tem ainda em conta uma terceira instância na mente
humana: desde a infância confrontamo-nos constantemente com as
obrigações morais impostas pelos pais e pelo mundo exterior. Quando
fazemos alguma coisa errada, os pais dizem: "Isso não!", ou " Que
vergonha!". Mesmo na idade adulta trazemos connosco um eco dessas
obrigações morais e dessas condenações. As convenções morais do mundo
externo parecem ter penetrado em nós e terem-se tornado parte de nós. A
isso chama Freud "super-ego".
- Queria dizer consciência?
- Num passo, Freud diz efectivamente que o Super-ego se coloca
perante o Eu como consciência moral. Mas aquilo que importa a Freud é
que em primeiro lugar o super-ego nos dá sinal de si quando temos
desejos "indecorosos" ou "inconvenientes", sobretudo se se trata de
desejos eróticos ou sexuais. E, como dissemos, Freud afirmou que esse
tipo de desejos já estão presentes num estádio precoce da infância.
- Explica-te!
- Hoje sabemos e vemos que as crianças pequenas gostam de tocar
nos órgãos genitais. Podemos observar isso em qualquer praia. No tempo
de Freud, crianças de dois ou três anos levavam uma palmada nos dedos
por isso. Nesse tempo, as crianças ouviam constantemente: " Que
vergonha!", ou "Está quieto!", ou " As mãos quietas".
- Isso está mal.
- Deste modo, cria-se um sentimento de culpa, e uma vez que
este sentimento de culpa se conserva no Super-ego, muitas pessoas, -
segundo Freud a maior parte - têm um sentimento de culpa em relação ao
sexo. Mas os desejos e as necessidades sexuais são uma componente
natural e fundamental do homem. E então, minha cara Sofia, surge um
conflito entre prazer e culpa que durará toda a vida.
p. 384
- Não achas que esse conflito se atenuou desde o tempo de Freud?
- Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam-no tão
intensamente que desenvolviam aquilo a que Freud chamou "neurose". Uma
das suas pacientes, por exemplo, estava apaixonada pelo cunhado. Quando
a irmã morreu devido a uma doença, ela pensou: " Agora ele está livre e
podemos casar!" Este pensamento entrou naturalmente em contradição com o
super-ego. Era tão monstruoso que ela o recalcou, como diz Freud.
Quer dizer que ela o empurrou para o inconsciente. Essa rapariga
adoeceu e apresentou graves sintomas histéricos, e quando Freud se
encarregou da cura, verificou-se que ela se tinha esquecido
completamente da cena junto ao leito de morte da irmã e do desejo
horrível, egoísta, que emergira nela. Mas durante o tratamento recordou
-o, reproduziu aquele momento patogénico e ficou curada.
- Agora compreendo melhor o que queres dizer com "arqueologia
psíquica".
- Então vou tentar fazer uma descrição geral de mente humana.
Após uma longa experiência na cura dos doentes, Freud chegou à conclusão
de que a "consciência" constitui apenas uma pequena parte da mente
humana. A parte consciente é comparável à ponta de um iceberg que vemos
sobressair da água. Sob a superfície da água, - ou sob o limiar da
consciência - há o "inconsciente".
- Então o inconsciente é tudo aquilo que está em nós mas que
esquecemos ou não recordamos?
- Não temos sempre presentes na consciência todas as nossas
experiências, mas tudo o que pensámos ou vivemos e que nos vem à mente
se "pensarmos um pouco", foi designado por Freud "preconsciente".
O termo inconsciente foi usado por Freud apenas para aquilo que
recalcámos, ou seja, as coisas que queremos esquecer por serem
desagradáveis, indecentes ou repugnantes. Se temos desejos ou vontades
que são intoleráveis para a nossa consciência - ou para o super-ego, -
empurramo-los para o rés-do -chão. Fora com eles!
- Compreendo.
- Este mecanismo funciona em todas as pessoas sãs, mas manter
longe da consciência os pensamentos desagradáveis ou proibidos exige tal
esforço que provoca problemas nervosos. Aquilo que é recalcado tenta
reemergir por si na consciência, de forma que cada vez mais energia tem
de ser usada para manter os impulsos desse género longe da consciência.
Quando Freud deu lições sobre a psicanálise em 1909 nos EU A, explicou
com um exemplo simples o funcionamento deste mecanismo de recalcamento.
- Conta!
p. 385
- Ele disse aos ouvintes: "Imaginemos que nesta sala se encontra
um indivíduo que me perturba e distrai rindo de um modo insolente,
falando e batendo com os pés. Declaro que assim não posso continuar a
conferência e, nessa altura, alguns homens robustos levantam-se e
depois de uma breve luta lançam fora o importuno. Ele é assim "removido"
e eu posso continuar. Para que não haja mais distúrbios, caso o
indivíduo tente entrar novamente na sala, os homens que executaram a
minha vontade põem as suas cadeiras à porta, feita a remoção, e ficam lá
como "resistência". Se imaginarmos a sala como o consciente e o corredor
como o inconsciente temos uma boa imagem do processo de recalcamento."
- Eu também acho que é uma boa imagem.
- Mas o indivíduo quer voltar a entrar, Sofia. Isto é o que
acontece, pelo menos com os pensamentos e os impulsos recalcados:
vivemos sob uma "pressão" constante devido aos pensamentos recalcados
que tentam emergir do inconsciente. Por esse motivo, dizemos ou fazemos
frequentemente coisas sem querer e, deste modo, as reacções
inconscientes dominam os nossos sentimentos e as nossas acções.
- Podes dar-me um exemplo?
- Freud descreve muitos destes mecanismos. Por exemplo, aqueles
a que chamou "actos falhados", quando dizemos ou fazemos coisas que
tentámos recalcar. Ele dá o exemplo de um empregado que ia brindar ao
seu chefe, que não era muito popular. Ele era aquilo a que se pode
chamar "um sacana".
- E o que aconteceu?
- O empregado levantou-se, elevou o seu copo solenemente e
disse: " Convido -vos a arrotarem pelo nosso chefe."
- Não tenho palavras.
- O empregado também não.
Na realidade tinha apenas dito aquilo que pensava sem a intenção
de o dizer. Esta expressão involuntária de sinceridade era um lapso, ou
seja, uma troca de palavras devido à semelhança. Em alemão - não te
esqueças de que Freud era vienense - o verbo "anstossen", "beber à
saúde", é muito semelhante a "aufstossen" que significa entre outras
coisas "arrotar". Queres ouvir outro exemplo?
- Sim.
- A família de um pastor, que tinha muitas filhas boas e
amáveis, esperava a visita de um bispo. Acontece que este bispo tinha um
nariz extremamente grande e por isso foi imposto às raparigas não
fazerem comentários sobre o seu nariz. Porém, acontece muitas vezes que
as crianças deixem escapar alguma coisa, porque o seu mecanismo de
recalcamento ainda não está muito desenvolvido.
p. 386
- E então?
- O bispo chegou e as raparigas esforçaram-se o máximo para não
dizerem nada sobre o nariz. E mais ainda: tentaram nem sequer olhar para
o nariz; tinham de tentar esquecê-lo. E pensavam nisso o tempo todo.
Mas quando uma das filhas mais pequenas serviu o açúcar para o café, pôs
-se em frente do austero bispo e disse-lhe: " Quer um pouco de açúcar
no nariz?"
- Embaraçoso.
- Por vezes, também "racionalizamos", ou seja, damos a nós e aos
outros, para justificarmos aquilo que fazemos, motivos diferentes da
verdadeira causa, precisamente porque a causa real é desagradável.
- Um exemplo, por favor.
- Eu posso hipnotizar-te e fazer com que abras a janela.
Ordeno-te portanto que te levantes e abras a janela quando eu
bater com os dedos na mesa.
Depois pergunto-te por que razão abriste a janela. Talvez me
respondas que abriste a janela porque achaste que estava calor. Mas esse
não é o verdadeiro motivo: não queres admitir para ti mesma que fizeste
uma coisa por minha ordem, sob hipnose. Neste caso estás a racionalizar,
Sofia.
- Compreendo.
- Quase todos os dias acontece comunicarmos, por assim dizer,
com sentido duplo.
- Eu falei do meu primo de quatro anos. Não me parece que tenha
muitas crianças com quem jogar, pelo menos fica muito contente quando o
vou ver. Uma vez disse-lhe que tinha de me apressar para voltar a casa
e sabes o que me respondeu?
- Diz!
- "Ela é estúpida", disse ele.
- Sim, isso é verdadeiramente um exemplo do que entendemos por
racionalização: o rapaz queria dizer que segundo ele era estúpido que
tivesses que te ir embora, mas não queria admiti-lo. Por vezes,
acontece também que "projectamos".
- Traduz.
- Quando projectamos, transferimos para outros características
nossas que tentamos recalcar. Uma pessoa muito avara, por exemplo, está
inclinada a dizer que os outros são avaros. Uma outra pessoa que não
quer admitir para si mesma ter interesse por sexo, será talvez a
primeira a irritar-se porque os outros têm fixação pelo sexo.
- Compreendo.
- Segundo Freud, a nossa vida quotidiana apresenta numerosos
exemplos de acções inconscientes. Acontece frequentemente esquecermos o
p. 387
nome de uma pessoa, remexermos na roupa enquanto falamos ou mudarmos
o sítio dos objectos, aparentemente por acaso, na sala. Além disso,
podemos tropeçar nas palavras e enganarmo-nos a falar, acções que
poderiam parecer totalmente incautas. Mas, para Freud, os lapsos nem
sempre são tão casuais nem tão inocentes como acreditamos, devem ser
vistos como sintomas. Actos falhados deste tipo ou "acções casuais"
podem revelar os segredos mais íntimos.
- A partir de agora vou reflectir bem antes de dizer uma
palavra.
- Mas não conseguirás fugir aos teus impulsos inconscientes. A
arte reside em não nos esforçarmos em empurrar demasiadas coisas
desagradáveis para o inconsciente. É o mesmo que querermos tapar o
buraco de uma toupeira. Podemos consegui-lo, mas também podemos ter a
certeza de que a toupeira aparecerá numa outra parte do jardim. O mais
saudável é deixar entreaberta a porta entre consciente e inconsciente.
- Se fechamos a porta podemos ter distúrbios psíquicos?
- Sim, um neurótico é justamente uma pessoa que despende
demasiada energia para afastar da consciência aquilo que é desagradável.
Frequentemente, são experiências particulares que esta pessoa quer
recalcar: Freud chamou-lhes "traumas". A palavra é grega e significa
"ferida".
- Compreendi.
- Na cura do paciente, foi importante para Freud tentar abrir
com cautela esta porta fechada, ou talvez abrir uma nova. Com a
colaboração do paciente tentava trazer à luz as experiências recalcadas.
O paciente não tem consciência daquilo que recalca, mas pode desejar que
o médico (ou "analista" como se diz na psicanálise) o ajude a encontrar
os traumas escondidos.
- Como procede o psicanalista?
- Freud chamou-lhe a técnica da "associação livre". Fazia o
paciente deitar-se descontraído e deixava-o falar sobre o que lhe
vinha à cabeça nesse momento, independentemente de poder parecer
insignificante, casual, desagradável ou embaraçoso. O analista parte do
princípio de que, naquilo que o paciente associa no divã, estão sempre
contidas referências aos seus traumas e às resistências que impedem que
eles se tornem conscientes. É que os pacientes preocupam-se com os seus
traumas sempre - mas não conscientemente.
- Quanto mais nos esforçamos por esquecer alguma coisa, mais
pensamos inconscientemente nisso?
- Exacto. Por isso é importante tomar atenção aos sinais que
provêm do inconsciente. O caminho certo para penetrar no inconsciente
reside, segundo Freud, nos sonhos. Um dos seus livros mais importantes
foi de
p. 388
facto " A Interpretação dos Sonhos", publicado em 1900.
Nessa obra ele afirmou que aquilo que sonhamos não é casual:
através dos sonhos os pensamentos inconscientes tornam-se manifestos à
consciência.
- Continua!
- Depois de muitos anos de experiência com os pacientes, e
depois de ter analisado os seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos
os sonhos são a "satisfação" de um desejo. Podemos observar isto nas
crianças, afirmou. Sonham com gelados e cerejas. Mas, nos adultos, os
desejos que o sonho quer realizar são frequentemente camuflados, porque,
mesmo quando dormimos, há uma censura relativamente àquilo que podemos
ou não podemos fazer. Mesmo se durante o sono essa censura, ou mecanismo
de recalcamento, está enfraquecida em relação ao nosso estado de
vigília, é suficientemente forte para deformar os desejos que não
queremos reconhecer.
- É por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
- Freud defende que devemos distinguir o sonho como o recordamos
de manhã do seu verdadeiro significado. Chamou às imagens oníricas ou
seja, ao "filme" que sonhamos, o "conteúdo manifesto" do sonho. Este
conteúdo manifesto tem por motivo acontecimentos que se deram
recentemente, muitas vezes no dia anterior. Todavia, o sonho tem também
um significado mais profundo e oculto à consciência. Freud chamou-lhe
"conteúdo onírico latente". Estes pensamentos ocultos, de que o sonho
trata, podem dizer respeito a um tempo passado, por exemplo, a primeira
infância.
- Então temos de analisar o sonho para compreendermos do que se
trata.
- Sim, e quando são pessoas doentes, é interpretado com o
terapeuta. Mas não é o mé-dico que interpreta sozinho o sonho: só o
pode fazer com a ajuda do paciente. Nesta situação, o psicanalista
desempenha a função de uma parteira socrática que está presente e ajuda
durante a interpretação.
- Compreendo.
- A transformação que se dá na passagem dos pensamentos oníricos
latentes ao conteúdo manifesto é chamada por Freud "trabalho onírico".
Podemos falar de um camuflamento ou de uma codificação do verdadeiro
significado do sonho; através da sua interpretação, deve-se percorrer
um processo inverso para desmascarar ou descodificar o motivo do sonho,
para descobrir o verdadeiro tema do sonho.
- Podes dar-me um exemplo?
- Nos livros de Freud há muitos desses exemplos. Mas nós podemos
imaginar um muito freudiano e simples. Quando um jovem sonha que a sua
prima lhe envia dois balões...
p. 389
- Sim?
- Não, tens que tentar interpretá-lo sozinha.
- Hmm... o "conteúdo manifesto" do sonho é exactamente aquilo
que disseste: recebe dois balões da sua prima.
- Continua!
- Disseste que o material contido pode ter a ver com algo
recentemente vivido...
No dia anterior, ele estava numa feira popular ou viu a
fotografia de dois balões no jornal.
- Sim, é possível, mas bastava-lhe ter visto a palavra "balão"
algures ou uma coisa que lhe fizesse recordar um balão.
- Mas quais são os pensamentos oníricos latentes, ou seja, o
verdadeiro significado do sonho?
- Tu és a analista.
- Talvez desejasse apenas dois balões.
- Não, isso é pouco provável. É verdade que o sonho é a
realização de um desejo, mas um homem adulto não pode desejar
ardentemente ter dois balões. E mesmo que isso fosse um desejo seu, não
teria necessidade de sonhar com isso.
- Então, acho que na realidade ele desejava a sua prima, e os
dois balões são os seus seios.
- Sim, é uma explicação provável, sobretudo se esse desejo é um
pouco embaraçoso para ele, de tal forma que não goste de o admitir no
estado de vigília.
- Então os nossos sonhos falam numa linguagem que é preciso
descodificar?
- Sim. Segundo Freud, o sonho é uma realização camuflada de
desejos recalcados.
Aquilo que nós hoje camuflamos pode ter mudado muito desde que
Freud era médico em Viena, mas o mecanismo de camuflagem do conteúdo
onírico é o mesmo.
- Compreendo.
- A psicanálise de Freud teve uma grande importância nos anos
20, sobretudo na cura de pacientes que sofriam de distúrbios psíquicos.
Mas a teoria do inconsciente foi também muito importante para a arte e
para a literatura.
- Queres dizer que os artistas começaram a interessar-se mais
pela vida inconsciente da mente?
- Exacto. Se bem que esse interesse já se tivesse manifestado na
literatura nos últimos dez anos do século passado, ou seja, antes de a
psicanálise de Freud ser conhecida. Isso significa que não foi por
acaso que a psicanálise de Freud surgiu nessa época.
- Queres dizer que fazia parte do espírito do tempo?
p. 390
- Freud foi o primeiro a afirmar que não fora ele a inventar
fenómenos como o recalcamento, os actos falhados e a racionalização, mas
simplesmente o primeiro a levar essas experiências humanas à
psiquiatria. Freud foi muito hábil a servir-se de exemplos literários
para ilustrar a sua teoria. Mas, como dissemos, a partir dos anos 20 a
psicanálise influencia mais directamente a arte e a literatura.
- Como?
- Os poetas e os pintores procuraram servir-se das forças
inconscientes no seu trabalho de criação. Isto é válido para os chamados
surrealistas.
- E quem eram?
- " Surrealismo" é uma palavra de origem francesa e significa
literalmente "além da realidade". Em 1924, " André Breton" publicou um
"manifesto surrealista" no qual afirmou que a arte devia provir do
inconsciente, pois só assim o artista podia obter as suas imagens
oníricas com inspiração livre e tender para uma "suprarrealidade", na
qual as diferenças entre sonho e realidade são suprimidas. De facto,
também pode ser importante para um artista destruir a censura da
consciência, para que as palavras e as imagens possam fluir livremente.
- Compreendo.
- De certo modo, Freud tinha mostrado que todos os homens são
artistas: um sonho é uma pequena obra de arte e todas as noites criamos
sonhos. Para interpretar os sonhos dos seus pacientes, Freud tinha de
atravessar uma floresta de símbolos, mais ou menos como sucede quando
interpretamos um quadro ou um texto literário.
- E sonhamos todas as noites?
- Investigações recentes mostram que sonhamos cerca de vinte por
cento do tempo em que dormimos, ou seja, duas a três horas por noite. Se
somos perturbados durante o sono, tornamo-nos nervosos e irritáveis.
Isto significa, entre outras coisas, que todos os homens têm uma
necessidade inata de dar expressão artística à sua situação existencial,
e o sonho trata de nós.
Somos os realizadores, somos nós que imaginamos o enredo, somos
nós que desempenhamos todos os papéis. Uma pessoa que afirma não
entender nada de arte conhece-se mal.
- Compreendo.
- Freud também mostrou que a consciência humana é fantástica. O
seu trabalho com os pacientes convenceu-o de que conservamos em algum
local profundo da mente tudo aquilo que vimos e que vivemos e todas
estas impressões podem ser trazidas à superfície. Quando temos um "vazio
mental" e depois temos isso "na ponta da língua" e por fim "nos veio à
mente", estamos a falar de algo que estava no inconsciente e que de
repente
p. 391
se torna manifesto passando por uma porta entreaberta.
- Mas, por vezes, isso demora muito tempo.
- Todos os artistas têm consciência disso, mas, subitamente,
todas as portas e gavetas dos arquivos parecem abrir-se. Tudo flui por
si, e podemos escolher exactamente as palavras e as imagens de que
precisamos. Isso sucede quando abrimos um pouco mais a porta para o
inconsciente. Também podemos chamar a isso "inspiração", Sofia. Temos
então a sensação de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não vem de
nós mesmos.
- Deve ser uma sensação maravilhosa.
- Certamente já a experimentaste. Podemos observar esse estado
em crianças muito cansadas. Por vezes, as crianças estão tão cansadas
que agem de forma totalmente desperta. De repente começam a falar, e é
como se descobrissem palavras que ainda não aprenderam. Mas apredram
-nas. Essas palavras e pensamentos estavam latentes na consciência,
porém só naquele momento, quando devido ao cansaço o cuidado diminui e
já não há censura, é que elas vêm à luz. Para um artista a situação é
diferente. Mas para ele também é importante que a razão e a reflexão não
controlem aquilo que se desenvolve melhor de uma forma livre, espontânea
e inconsciente. Posso contar-te uma pequena fábula que ilustra o que eu
disse?
- De bom grado.
- É uma fábula muito séria e muito triste.
- Começa!
- Era uma vez uma centopeia que com as suas cem pernas era muito
boa a dançar.
Quando dançava, os animais reuniam-se no bosque para a admirar
e todos estavam muito impressionados pela sua habilidade. Só um animal
não podia suportar que a centopeia dançasse, um sapo...
- Certamente tinha inveja.
- " Como é que posso impedi-la de dançar", pensou o sapo. Não
podia dizer que não gostava da dança nem que era melhor a dançar do que
a centopeia, seria um absurdo. Por fim, tramou um plano diabólico.
- Fala!
- Escreveu uma carta à centopeia: "Ó incomparável centopeia! Sou
um devoto admirador da tua requintada dança. Gostaria de saber como te
moves a dançar. Levantas primeiro a perna esquerda número 22 e depois a
perna direita número 59? Ou começas por levantar a tua perna direita
número 26 antes de levantares a tua perna esquerda número 44? Aguardo
ansiosamente uma resposta tua. Saudações cordiais, o sapo."
- Que horror!
p. 392
- Quando a centopeia recebeu esta carta, reflectiu pela primeira
vez na sua vida no que fazia quando dançava. Que perna movia em primeiro
lugar? E que perna vinha a seguir?
O que te parece que aconteceu depois?
- Acho que a centopeia não voltou a dançar.
- Sim, foi o fim. É justamente isso que pode suceder quando a
fantasia é sufocada pela razão.
- É uma história mesmo triste.
- Para um artista pode ser importante "deixar-se ir". Os
surrealistas tentaram atingir um estado no qual tudo fluísse por si.
Sentavam-se em frente a uma folha em branco e começavam a escrever sem
pensarem no que estavam a escrever.
Chamaram-lhe "escrita automática". A expressão provém do
espiritismo, onde um médium acreditava que a caneta era guiada pelo
espírito de um defunto. Mas voltaremos a falar destas coisas amanhã.
- Está bem.
- O artista surrealista também é de certo modo um médium, o
médium do seu inconsciente. Mas talvez esteja presente um elemento
inconsciente em qualquer processo criativo. Porque, o que é na realidade
aquilo a que chamamos "criatividade"?
- Não é o facto de se criar uma coisa nova?
- Sim, e isso sucede quando existe uma colaboração entre
fantasia e razão.
Demasiadas vezes, a razão sufoca a fantasia e isso é uma coisa
grave, porque sem fantasia nunca nasce algo verdadeiramente novo. Eu
vejo a fantasia como um sistema darwiniano.
- Desculpa, mas não compreendi isso.
- O darwinismo mostra que na natureza nascem mutantes uns a
seguir aos outros, mas a natureza só precisa de alguns.
Só alguns têm a possibilidade de sobrevivência.
- Sim?
- O mesmo sucede quando pensamos, quando estamos inspirados e
temos muitas ideias. Um "pensamento mutante" surge a seguir a outro na
nossa consciência, se não nos submetemos a uma censura demasiado severa.
Mas só alguns destes pensamentos podem ser utilizados. Neste ponto a
razão ocupa o seu lugar, porque também tem uma função importante.
Quando a caça do dia está na mesa, não podemos esquecer-nos de
ser selectivos.
- É uma boa comparação.
- Imagina que tudo aquilo que nos impressionou, ou seja, toda a
nossa fonte de inspirações, passasse pelos nossos lábios! Ou abandonasse
o bloco de notas ou a gaveta da escrivaninha. O mundo afogar-se-ia num
mar de ideias acidentais e não haveria qualquer escolha, Sofia.
p. 393
- E é a razão que selecciona todas as ideias?
- Sim, ou achas que não? Talvez seja a fantasia que cria uma
coisa nova, mas não é responsável pela escolha. Não é a fantasia que
"compõe": uma composição, e qualquer obra de arte é uma composição,
surge de uma colaboração admirável entre fantasia e razão, ou entre
sensibilidade e pensamento. Há sempre algo de casual num processo
criativo e, numa certa fase, é importante não fechar a porta a essas
ideias casuais. É preciso soltarmos as ovelhas antes de começarem a
pastar.
Alberto ficou em silêncio algum tempo a olhar pela janela. Sofia
seguiu o seu olhar e viu uma grande multidão de personagens de Walt
Disney de todas as cores na margem do pequeno lago.
- Olha o Pateta - disse.
- E o Pato Donald e os sobrinhos... e a Margarida... e o Tio
Patinhas. Vês o Tico e o Teco? Não ouves o que eu digo, Alberto? Lá em
baixo estão também o Rato Mickey e o Pardal! Ele voltou-se para ela:
- Sim, isto é triste, minha filha.
- O que queres dizer com isso?
- Estamos aqui sentados, vítimas impotentes das ovelhas postas
em liberdade pelo major. Mas é culpa minha, fui eu a falar do jogo livre
da fantasia.
- Não tens nada a censurar-te.
- Queria dizer que a fantasia também é importante para nós
filósofos. Para pensarmos uma coisa nova, temos de ter a coragem de nos
deixarmos ir. Mas eu exprimi-me de um modo um pouco vago.
- Não te preocupes.
- Eu queria dizer alguma coisa sobre a importância da reflexão
silenciosa. E ele vem-nos com estas doidices coloridas. Devia ter
vergonha!
- Estás a ser irónico?
- "Ele" está a ser irónico, eu não. Mas tenho uma consolação, a
verdadeira pedra angular do meu plano.
- Já não estou a perceber nada.
- Falámos sobre sonhos: nisso há uma pequena ponta de ironia! O
que somos senão as imagens oníricas do major?
- Ah...
- Mas ele esqueceu-se de uma coisa.
- O quê?
- Talvez tenha consciência do seu sonho, sabe tudo o que fazemos
e o que dizemos, tal como o sonhador recorda o conteúdo onírico
manifesto. É ele que o escreve. Mas mesmo que se lembre de tudo o que
dizemos um ao outro, não está completamente desperto.
p. 394
- O que queres dizer com isso?
- Não conhece os pensamentos oníricos latentes, Sofia. Esquece
-se de que também este é um sonho disfarçado.
- Falas de um modo tão estranho...
- O major também pensa assim. E é assim porque não compreende a
sua própria linguagem onírica. Devíamos alegrar-nos com isso, porque
nos dá um mínimo de espaço para agirmos. Com esta liberdade
conseguiremos escapar à sua consciência lamacenta como um arganaz que
num dia quente de sol sai da sua toca.
- Achas que conseguimos?
- Temos de conseguir.
Dentro de dois dias dar-te-ei um novo horizonte, e nessa
altura o major já não saberá onde estão os arganazes e onde vão
aparecer.
- Mesmo que sejamos apenas imagens oníricas, eu sou à mesma uma
filha. São cinco horas. Tenho que ir para casa preparar a festa de
jardim.
- Mmmm... podes fazer-me um pequeno favor enquanto vais para
casa?
- O quê?
- Tenta atrair a atenção. Tenta fazer com que o major não te
perca de vista durante todo o caminho para casa. Tenta pensar nele
quando chegares a casa - assim, ele também pensará em ti.
- Para quê?
- Desse modo, posso trabalhar no meu plano sem ser perturbado.
Mergulharei nas profundezas do inconsciente do major, Sofia, e ficarei
lá até nos voltarmos a ver.
p. 395
ONOSSO TEMPO ... "o homem está condenado à liberdade"...
O despertador indicava 23.55. Hilde olhava para o tecto. Tentava
deixar fluir as associações livres que lhe vinham à mente. Cada vez que
o curso dos pensamentos se interrompia, tentava compreender por que
motivo não conseguia avançar.
Seria algo que tentava recalcar?
Se conseguisse eliminar toda a censura, talvez começasse a
sonhar estando desperta, pensamento que a assustava um pouco.
Quanto mais tentava descontrair-se e abrir-se aos seus
pensamentos e imagens, mais tinha a sensação de estar na cabana do major
junto ao lago, no bosque.
O que estaria Alberto a maquinar? Bom, na verdade era o pai dela
que decidira que
Alberto maquinasse qualquer coisa. Mas saberia exactamente o
quê? Talvez estivesse a tentar afrouxar tanto as rédeas que Alberto o
surpreendesse por fim? Faltavam poucas páginas: deveria dar uma olhadela
à última? Não, isso não seria correcto. Mas não era só isso: Hilde não
tinha a certeza de que já estivesse decidido o que sucederia na última
página.
Não era uma ideia estranha?
O "dossier" estava ali, e o pai não podia acrescentar mais nada.
No máximo Alberto, se conseguisse. A surpresa... Mas Hilde haveria de
tratar de algumas surpresas por si mesma. O major Knag não tinha
controlo sobre ela. Mas teria ela controlo sobre si mesma?
O que era a consciência?
Não seria um dos maiores mistérios do universo? O que era a
memória? O que é que faz com que "recordemos" tudo o que vimos e
vivemos? Que tipo de mecanismo nos faz criar sonhos fabulosos noite após
noite? Enquanto reflectia sobre estas questões, Hilde fechava por vezes
os olhos. Depois abria-os de novo e voltava a fixar o tecto. Por fim
esqueceu-se de os reabrir.
Dormia.
p. 396
Quando acordou com os gritos das gaivotas, o despertador
indicava as 6.66. Era um número estranho! Hilde saltou da cama. Como
sempre, foi à janela e observou a enseada: tinha-se tornado um hábito,
tanto no Verão como no Inverno. Enquanto estava ali, teve subitamente a
sensação de que na sua cabeça explodia um conjunto de cores: lembrou-se
do que sonhara. Mas fora mais do que um sonho normal. Tivera cores e
contornos tão vivos...
Sonhara que o pai regressara do Líbano, e todo o sonho era como
uma continuação do sonho de Sofia quando esta encontrara o seu crucifixo
de ouro. Hilde estava sentada na doca - exactamente como no sonho de
Sofia. Depois ouvira uma voz muito suave a sussurrar-lhe: "Eu chamo-me
Sofia!". Hilde tinha ficado imóvel, tentando compreender de onde
vinha aquela voz semelhante a um fraco crepitar, como se um insecto lhe
estivesse a falar: " Deves ser cega e surda!". Em seguida, o pai chegara
ao jardim no seu uniforme da O NU. "Hilde!", gritara. Hilde correra em
direcção a ele e lançara-lhe os braços à volta do pescoço. O sonho
terminara aí. Recordou alguns versos de um poema de Arnulf \õverland:
" Acordei uma noite de um
estranho sonho, era como se uma voz me estivesse a falar, longínqua como
uma corrente
subterrânea... e eu levantei-me: o que
queres de mim?"
Enquanto estava à janela, a mãe entrou no quarto.
- Bom dia! Já estás acordada?
- Não sei...
- Volto cerca das quatro, como de costume.
- Está bem.
- Desejo-te um bom dia, Hilde.
- Obrigada. Mal ouviu a porta de entrada a fechar-se, voltou à
cama e abriu o "dossier". "Mergulharei nas profundezas do inconsciente
do major,
Sofia, e ficarei lá até nos voltarmos a ver."
Sim, chegara até ali. Hilde continuou a ler. Com o indicador
direito, sentiu que faltavam poucas páginas para o fim.
p. 397
Quando Sofia deixou a cabana do major, viu que junto ao lago
ainda havia algumas personagens de Walt Disney, mas que se diluiam à
medida que se aproximava. Quando chegou ao barco, tinham desaparecido
todas. Enquanto remava e depois de ter puxado o barco para a margem,
tentou fazer caretas e agitar os braços: tinha de chamar a atenção do
major, para que Alberto pudesse trabalhar sem ser incomodado. Enquanto
corria pelo bosque, pôs-se a saltitar.
Depois, tentou caminhar como uma boneca de corda e, por fim,
para evitar que o major se aborrecesse, começou a cantar. Por um
momento, parou para reflectir procurando compreender em que é que
consistiria o plano de Alberto... Mas quando se apercebeu do seu erro,
ficou tão arrependida que trepou a uma árvore.
Subiu tão alto quanto pôde.
Quando estava quase no topo, percebeu que não conseguiria descer
imediatamente. Teria de fazer uma nova tentativa mais tarde, mas não
podia ficar quieta ali em cima - o major cansar-se-ia de ficar a vê
-la e começaria à procura de
Alberto para descobrir o que estava a fazer.
Sofia agitou os braços, por duas vezes tentou cantar como um
galo, depois cantou à tirolesa. Era a primeira vez que o fazia e estava
muito contente com o resultado. Tentou descer, mas estava presa. De
repente, um grande ganso pousou sobre um dos ramos ao qual Sofia se
segurava. Tendo visto recentemente as personagens de Disney,
Sofia não se admirou pelo facto de o ganso começar a falar:
- Chamo-me Morten - disse. - Na verdade sou um ganso doméstico,
mas excepcionalmemte venho hoje do Líbano com gansos selvagens. Pareces
precisar de ajuda para descer.
- Mas tu és demasiado pequeno para me ajudares - respondeu
Sofia.
- Uma conclusão precipitada, minha jovem. Tu é que és demasiado
grande.
- Faz alguma diferença?
- Fica a saber que eu transportei um camponês por toda a Suécia.
Chamava-se
Nils Holgersson.
- Eu tenho quinze anos.
- E Nils tinha catorze. Um ou dois anos de diferença não tem
importância.
- Como conseguiste levá-lo?
- Dei-lhe uma bofetada ao de leve e ele perdeu os sentidos.
Quando voltou a acordar, estava tão pequeno como um polegar.
p. 398
- Então podes tentar dar-me também uma leve bofetada. Eu não
posso ficar aqui sentada eternamente. No sábado dou uma festa
filosófica.
- Isso é interessante. Então este é certamente um livro de
filosofia. Quando voei pela Suécia com Nils Holgersson, fiz escala em
Marbacka na região de Vãrmland. Nils encontrou aí uma senhora de idade
que tinha a intenção de escrever um livro sobre a Suécia: seria um livro
para crianças, por isso devia ser instrutivo e conter toda a verdade,
dizia sempre.
Quando ouviu o que acontecera a Nils, decidiu escrever um livro
sobre aquilo que o rapaz vira no dorso de um ganso.
- Que estranho.
- Para dizer a verdade foi uma coisa um pouco irónica porque nós
já estávamos nesse livro.
Sofia sentiu uma bofetada na face e em seguida estava muito
pequena. A árvore parecia todo um bosque, e o ganso era tão grande como
um cavalo.
- Sobe - disse o animal.
Sofia caminhou ao longo do ramo e subiu para o dorso do ganso.
As penas eram macias, mas estava tão pequena que picavam em vez de
fazerem cócegas. Mal encontrou uma posição cómoda, o ganso levantou voo.
Voaram alto sobre as árvores.
Sofia olhou para o lago e para a cabana do major. Lá estava
Alberto a elaborar os seus planos complicados.
- Deves contentar-te com uma breve volta panorâmica - afirmou o
ganso batendo as asas.
Depois aterrou ao pé da árvore à qual Sofia subira há pouco.
Quando o ganso tocou o solo, Sofia escorregou para o chão. Depois de
alguns trambolhões na urze, sentou-se e verificou que tinha adquirido
as suas dimensões normais.
O ganso bamboleou-se à sua volta algumas vezes.
- Muito obrigada pela ajuda - disse Sofia.
- De nada. Não disseste que este é um livro de filosofia?
- Não, tu é que disseste isso.
- Bom, é a mesma coisa. Por mim, ter-te-ia levado a voar
através de toda a história da filosofia, tal como levei Nils Holgersson
a voar através da Suécia. Poderíamos ter dado uma volta por Mileto e
Atenas, Jerusalém e Alexandria, Roma e Florença, Londres e Paris, Jena e
Heidelberg, Berlim e Copenhaga...
- Obrigada, já chega.
- Mesmo para um ganso muito irónico seria muito difícil voar
através dos séculos: é mais fácil sobrevoar as regiões da Suécia.
Dito isto, o ganso tomou balanço e levantou voo.
p. 399
Sofia estava exausta, mas, quando entrou para o jardim pelo
carreiro, pensou que
Alberto teria certamente ficado muito satisfeito com a sua
manobra de distracção: era impossível que o major tivesse conseguido
pensar em Alberto na última hora. Caso contrário, sofria de um grave
desdobramento de personalidade.
Sofia tinha acabado de entrar em casa quando a mãe chegou do
trabalho. Evitara assim ter de justificar o facto de um ganso doméstico
a ter ajudado a descer de uma árvore.
Após a refeição, começaram os preparativos para a festa.
Subiram ao sótão para irem buscar um tampo de mesa de quase
quatro metros de comprimento e levaram-no para o jardim; depois foi a
vez dos pés.
Queriam pôr a mesa debaixo das árvores de fruto. A última vez
que tinham utilizado a mesa fora por ocasião do décimo aniversário do
casamento dos seus pais. Sofia tinha apenas oito anos, mas lembrava-se
muito bem da grande festa ao ar livre, na qual tinham participado todos
os parentes e amigos.
A previsão do tempo era óptima. Desde o violento temporal na
véspera do aniversário de Sofia não caíra uma gota de chuva. Decidiram
deixar a decoração e a toalha da mesa para sábado de manhã. A mãe de
Sofia já estava satisfeita com o facto de a mesa estar no jardim. À
tarde fizeram pão usando dois tipos diferentes de massa. Haveria frango
assado e salada. E bebidas. Sofia receava que alguns rapazes da sua
turma trouxessem cerveja.
Não queria problemas.
Quando Sofia se foi deitar, a mãe quis assegurar-se mais uma
vez de que Alberto viria realmente à festa.
- É claro que vem - exclamou Sofia. - Ele até prometeu fazer um
truque filosófico.
- Um truque filosófico...
Que tipo de truque?
- Bom... se ele fosse um ilusionista, faria um número de magia,
tirar um coelho branco de uma cartola, por exemplo...
- Outra vez a mesma história?
- ... mas uma vez que é filósofo, faz um truque de filosofia.
Afinal é uma festa filosófica. Estás a pensar em fazer algum número?
- Sim, não te preocupes.
- Um discurso?
- Não digo nada. Boa noite!
Na manhã seguinte, Sofia foi acordada pela mãe que se queria
despedir antes de ir trabalhar. Deu a Sofia uma pequena lista de coisas
que ela devia comprar na cidade para a festa.
p. 400
Mal saíra, o telefone tocou: era Alberto. Já sabia quando Sofia estava
sozinha em casa.
- Como vai o teu plano secreto?
- Chiu! Nem uma palavra. Ele não pode ter sequer a possibilidade
de pensar sobre isso.
- Acho que o distraí muito bem ontem.
- Isso é bom.
- E a filosofia?
- É por isso que telefono. Já chegámos ao nosso século e a
partir de agora devias conseguir orientar-te sozinha. A coisa mais
importante eram as bases. Todavia, temos de nos encontrar para falarmos
um pouco sobre o nosso tempo.
- Mas tenho que ir à cidade...
- Perfeito. Não te disse que vamos falar sobre o nosso tempo?
- E então?
- Será muito bom encontrarmo-nos lá.
- Vou a tua casa?
- Não, não. Aqui há muita confusão! Ando à procura de microfones
escondidos por toda a parte.
- Ah...
- Abriram um bar novo na praça principal, o Café Pierre. Sabes
onde é?
- Sim. A que hora nos encontramos?
- Pode ser ao meio-dia?
- Ao meio-dia no café.
- Ficamos assim.
- Adeus.
Dois minutos após o meio-dia, Sofia entrou no
Café Pierre. Era um dos novos cafés na moda com mesinhas
redondas e cadeiras negras e garrafas voltadas e suspensas, baguetes e
sanduíches.
O café não era muito grande, e Sofia apercebeu-se logo de que
Alberto não estava lá. Havia muitas pessoas sentadas nas mesinhas, mas
nenhuma tinha o rosto de Alberto.
Não estava habituada a ir sozinha a cafés. Deveria sair e voltar
mais tarde para ver se Alberto tinha chegado?
Dirigiu-se ao balcão de mármore e pediu um chá de limão. Depois
pegou na chávena e foi sentar-se numa mesa livre. Fixou a porta de
entrada. Muitas pessoas entravam e saíam, mas Alberto não chegava.
Se ao menos tivesse um jornal!
p. 401
Passado um pouco, não resistiu à tentação de olhar em seu redor e
alguém lhe devolveu o olhar: por um momento sentiu-se uma mulher jovem.
Tinha apenas quinze anos, mas podia aparentar dezassete - ou pelo menos
dezasseis e meio.
O que pensariam todas aquelas pessoas sobre o facto de
existirem? Quase parecia que estavam simplesmente ali, que estavam
sentadas por acaso.
Discutiam e gesticulavam, mas não pareciam falar de algo
importante.
De repente, veio-lhe à mente o que Kierkegaard dissera: a
característica mais importante da multidão era a tagarelice irrelevante.
Todas aquelas pessoas viviam então no estado estético? Ou haveria algo
realmente importante existencialmente?
Numa das suas primeiras cartas, Alberto escrevera que havia uma
ligação entre crianças e filósofos. Sofia pensou novamente que tinha
medo de se tornar adulta. E se acabasse por entrar no pêlo do coelho
branco que é retirado da cartola negra do universo?
Se bem que estivesse concentrada nos seus pensamentos,
Sofia não perdera de vista a porta de entrada. Alberto entrou de
repente. Apesar de ser Verão, trazia uma bóina negra e um sobretudo
cinzento de meio comprimento com padrão espinhado. Ele viu-a
imediatamente e foi ter com ela.
Sofia pensou que um encontro com ele em público era algo
completamente novo.
- É meio-dia e um quarto!
Seu pateta!
- Chama-se o quarto de hora académico. Posso oferecer algo de
comer à jovem?
Sentou-se e fixou-a nos olhos. Sofia encolheu os ombros.
- Está bem. Pode ser uma sanduíche.
Alberto foi ao balcão. Voltou com uma chávena de café e baguetes
grandes com queijo e fiambre.
- Foi caro?
- Uma ninharia, Sofia.
- Não tens pelo menos uma desculpa para justificares o teu
atraso?
- Não, não tenho, porque cheguei atrasado de propósito. Vou-te
já explicar porquê.
Deu algumas mordidelas na sua sanduíche e depois disse:
- Agora vamos falar do nosso século.
- Houve alguma coisa importante na filosofia?
- Muitas coisas, tantas que se estendem a todos os domínios.
Para começar falaremos de uma corrente que se chama "existencialismo".
Este termo reúne diversas correntes filosóficas que têm como ponto de
partida a situação existencial do homem. Falamos também da filosofia
existencial do
p. 402
século XX. Muitos dos pensadores que se podem chamar existencialistas
basearam as suas ideias não apenas em Kierkegaard mas também em Hegel e
Marx.
- Ah...
- Um outro filósofo que teve muita influência no século xx foi o
alemão "Friedrich Nietzsche" que viveu entre 1844 e 1900.
Nietzsche também reagiu à filosofia de Hegel e ao "historicismo"
alemão proveniente dela. A um interesse anémico pela história contrapôs
a própria vida. Exigia uma "transformação de todos os valores". Recusava
sobretudo a moral cristã - a que chamou "moral dos escravos" - para que
a força vital dos fortes não fosse reprimida pelos fracos. Segundo
Nietzsche, tanto o cristianismo como a tradição filosófica se tinham
afastado do mundo verdadeiro e dirigido para o "céu" ou o "mundo das
ideias". Eram considerados o "verdadeiro mundo" mas eram na realidade um
mundo falso. " Sede fiéis à terra", disse. " Não deis ouvidos àqueles
que vos oferecem esperanças sobrenaturais."
- Bem...
- Um filósofo existencialista que foi influenciado por
Kierkegaard e por Nietzsche foi o alemão "Martin Heidegger". Mas vamos
concentrar-nos no existencialista francês "Jean -Paul Sartre", que
viveu entre 1905 e 1980. Foi o filósofo existencialista mais influente,
pelo menos para o grande público. Elaborou o seu pensamento sobretudo
nos anos 40, após a Ii Guerra Mundial. Em seguida aderiu ao movimento
marxista francês, mas nunca foi membro de nenhum partido.
- É por esse motivo que nos encontrámos num café francês?
- Digamos que não foi por acaso. O próprio Sartre era um
frequentador assíduo de cafés. Foi justamente num destes que encontrou a
companheira da sua vida, " Simone de Beauvoir". Também ela foi uma
filósofa existencialista.
- Uma filósofa?
- Sim.
- Já era tempo de a humanidade se tornar civilizada.
- Mas a nossa época é também um período de grandes preocupações.
- Ias falar do existencialismo.
- Sartre afirmou: "Existencialismo é humanismo." Significa que o
existencialismo parte exclusivamente do homem. Podemos acrescentar que o
humanismo de Satre vê a situação do homem de uma forma diferente e mais
sombria do que o humanismo do Renascimento.
- E porquê?
- Kierkegaard e alguns existencialistas do nosso século eram
cristãos, mas
Sartre defende o que chamamos um existencialismo ateu.
p. 403
A sua filosofia pode ser considerada uma análise impiedosa da
situação humana desde que " Deus morreu", uma expressão de Nietzsche.
- Continua!
- A palavra -chave da filosofia de Sartre, como para
Kierkegaard, é "existência", um termo que não siifica o mesmo que
"existir". Também as plantas e os animais existem, ou seja, vivem, mas
não sabem o que isso "significa".
O homem é o único ser vivo consciente da sua existência.
Sartre diz que as coisas físicas são "em si", mas o ser humano é
também "para si".
Ser homem é portanto diferente de ser uma coisa.
- Estou de acordo.
- Sartre afirma também que a existência humana é anterior ao seu
significado: o facto de eu existir é anterior ao que eu sou. " A
existência precede a essência", afirmou.
- Que frase complicada.
- Com essência entendemos aquilo que uma coisa é realmente, a
"natureza" de uma coisa. Para Sartre, o homem não tem nenhuma natureza
deste género, por isso deve criar-se a si mesmo: deve criar a sua
natureza ou "essência" porque esta não está dada a "priori".
- Acho que compreendo o que queres dizer.
- Durante toda a história da filosofia, os filósofos tentaram
responder à questão de o que é um homem - ou qual é a natureza do homem.
Segundo Sartre, por seu lado, o homem não possui nenhuma
"natureza" eterna. Por isso é inútil procurar o significado da vida em
geral. Por outras palavras, estamos condenados a improvisar.
Somos como actores que são mandados para cena sem ter um papel,
um guião ou um ponto que nos possa sussurrar aquilo que devemos fazer.
Nós próprios temos de escolher como queremos viver.
- De certo modo é verdade.
Seria bom se bastasse consultarmos a Bíblia ou um manual de
filosofia para sabermos como devemos viver.
- Compreendeste. Mas quando o homem sente que vive, e que vai
morrer um dia, e sobretudo quando não vê sentido em tudo isto, gera-se
a "angústia", segundo Sartre. Talvez te lembres de que a angústia era
também um elemento importante na descrição que Kierkegaard fizera do
homem que se encontra numa situação existencial.
- Sim, lembro-me.
- Sartre diz ainda que o ser humano se sente "estranho" num
mundo privado de sentido.
Quando descreve a "alienação" do homem, aceita ideias centrais
de Hegel e de Marx. A sensação humana de se ser um estranho no mundo
gera um sentimento de desespero, tédio, náusea e absurdo.
- É normal sentir-se deprimido ou frustrado.
p. 404
- Sim, Sartre descreve o homem do século XX. Recordas que os
humanistas renascentistas tinham afirmado quase triunfalmente a
liberdade e a independência do homem?
Sartre sentia a liberdade humana como uma maldição. " O homem
está condenado a ser livre", afirmou. Condenado porque não se criou a si
mesmo, mas todavia é livre, porque quando é posto no mundo é responsável
por tudo o que faz.
- Não pedimos a ninguém que nos criasse como seres livres.
- É essa a questão, segundo Sartre. Porém, nós "somos"
indivíduos livres e a nossa liberdade faz com que durante toda a vida
estejamos condenados a escolher. Não existem nem valores eternos nem
normas pelas quais nos possamos orientar. Por isso é ainda mais
importante a "escolha" que fazemos, porque somos totalmente responsáveis
pelas nossas acções. Sartre põe em evidência justamente o facto de o
homem não poder negar a sua responsabilidade pelo que faz: deve tomar as
suas decisões e não pode, para se subtrair a essa responsabilidade,
afirmar que "devemos" trabalhar ou "devemos" orientar-nos por
determinadas perspectivas burguesas acerca do mundo no qual "devemos"
viver.
Quem se envolve assim na massa anónima é apenas um homem
massificado e impessoal: foge de si mesmo e vive uma vida de mentiras. A
liberdade humana, pelo contrário, impõe-nos que façamos algo de nós
mesmos, que existamos "de um modo autêntico".
- Compreendo.
- Isso é válido sobretudo para as nossas escolhas éticas. Não
podemos nunca atribuir a culpa à "natureza humana", à "fraqueza humana",
ou coisa semelhante. Por vezes sucede que certos homens se comportam de
modo ignóbil e empurram a sua responsabilidade para o "velho Adão", que
supostamente têm em si. Mas esse "velho Adão" não existe, é apenas uma
personagem a que recorremos para fugirmos à nossa responsabilidade.
- Devia haver um limite para aquilo de que o homem pode ser
acusado.
- Se bem que Sartre afirme que a vida não tem significado algum
a "priori", isso não significa que queira que seja assim: Sartre não era
um "niilista".
- O que é isso?
- Um niilista é uma pessoa para a qual nada tem significado e
tudo é possível. Para
Sartre, a vida deve ter um significado, mas somos nós que o
devemos criar para a nossa vida: existir é criar a nossa própria
existência.
- Podes explicar isso um pouco melhor?
p. 405
- Sartre tenta demonstrar que a consciência não é nada antes de
percepcionar alguma coisa, porque consciência é sempre consciência de
alguma coisa. E essa coisa depende tanto de nós como do ambiente que nos
rodeia: nós próprios temos um papel activo no que percepcionamos,
escolhendo o que é importante para nós.
- Tens um exemplo?
- Duas pessoas podem estar presentes no mesmo local e senti-lo
de um modo completamente diferente, porque, quando percepcionamos o
mundo externo, fazemo-lo partindo do nosso ponto de vista ou dos nossos
interesses. Por exemplo, uma mulher grávida pode ter a sensação de ver
grávidas em todo o lado. Isso não significa que antes não houvesse, mas
a gravidez fez com que o mundo adquirisse para ela um novo significado.
Uma pessoa doente pode ver ambulâncias por toda a parte...
- Acho que compreendo.
- A nossa existência contribui portanto para determinar o modo
como percepcionamos as coisas: se uma coisa não é importante para mim,
não a vejo. Agora posso explicar-te o motivo do meu atraso.
- Disseste que foi de propósito, não é verdade?
- Quero saber o que viste quando entraste aqui.
- A primeira coisa em que reparei foi que tu não estavas.
- Não é um pouco estranho que a primeira coisa que tenhas visto
fosse algo que não estava aqui?
- Talvez, mas eu tinha um encontro contigo.
- Sartre serve-se justamente de um encontro no café para
explicar o modo como nós "destruímos" o que não tem importância para
nós.
- Foi apenas para mostrar isso que chegaste atrasado?
- Sim, eu queria que compreendesses esse ponto importante na
filosofia de Sartre. Podes vê-lo como um pequeno exercício.
- Safa!
- Se estás apaixonada e esperas uma chamada do teu namorado,
"ouves" durante todo o tempo que não te telefona. Reparas justamente no
facto de ele não te telefonar. Se tens de ir ter com ele à estação, e há
um mar de gente nas plataformas, tu não vês as pessoas: apenas
perturbam, são insignificantes para ti. Se calhar até as achas
desagradáveis e repugnantes. Ocupam muito espaço. A única coisa em que
reparas é que ele não está lá.
- Compreendo.
- Simone de Beauvoir tentou aplicar o existencialismo à análise
dos papéis dos sexos. Sartre tinha afirmado que o homem não tem uma
natureza eterna a que se agarre.
Nós próprios criamos o que somos.
p. 406
- Sim?
- Isso também se aplica à nossa concepção dos sexos.
Simone de Beauvoir defende que não existe uma "natureza
feminina" e uma "natureza masculina". Mas esta é a opinião tradicional.
Por exemplo, afirmou-se sempre que o homem tem uma natureza
"transcendente", ou seja, que supera o mundo sensível, e por isso
procura sempre um significado e um objectivo fora do domínio doméstico.
E que a mulher, pelo contrário, tem uma orientação de vida oposta: ela é
"imanente", ou seja, quer estar onde está. Por isso se preocupa com a
família, com a natureza e com as coisas próximas. Hoje diz-se que a
mulher está mais interessada do que o homem nos aspectos mais suaves e
doces da vida.
- Mas Simone de Beauvoir pensava desse modo?
- Não, não me ouviste com atenção. Segundo Simone de Beauvoir
não existe uma natureza feminina ou masculina desse género. Pelo
contrário: segundo ela, as mulheres e os homens devem libertar-se
desses preconceitos.
- Estou de acordo.
- O seu livro mais importante foi publicado em 1949 e tinha o
título " O Segundo
Sexo".
- O que é que queria dizer com esse título?
- Pensava na mulher, que na nossa cultura foi sempre considerada
o "segundo sexo".
Só um homem aparece como sujeito nesta cultura. A mulher é
tratada como o objecto do homem e por isso é privada da responsabilidade
pela sua vida.
- Continua.
- Para Simone de Beauvoir, a mulher deve reconquistar esta
responsabilidade. Deve recuperar-se a si mesma e não ligar a sua
identidade ao homem. Com efeito, não é apenas o homem que oprime a
mulher, a mulher também se reprime a si mesma não assumindo a
responsabilidade pela sua vida.
- Somos nós que decidimos de que modo queremos ser livres e
independentes?
- Exacto. O existencialismo também influenciou a literatura
desde os anos quarenta até hoje. Isso é válido sobretudo para o teatro.
O próprio Sartre escreveu romances e obras teatrais.
Outros autores importantes são o francês " Albert
Camus", o irlandês " Samuel Beckett", o romeno "Eugène Ionesco"
e o polaco "Witold Gombrowicz". A característica comum a estes e a
muitos outros escritores, foi a tendência para enfatizar a presença do
"absurdo" na vida, um termo que é usado sobretudo quando se fala de
teatro.
- Bom.
p. 407
- Compreendes o que se entende por "absurdo"?
- Não significa uma coisa que não tem sentido ou é irracional?
- Exacto. O "teatro do absurdo" nasceu por contraposição ao
"teatro realista" e queria mostrar em cena a falta de sentido da
existência. Esperava-se que os espectadores não apenas vissem mas
também reagissem. Mas não se tratava de um culto do absurdo. Pelo
contrário, mostrando e pondo a nu o absurdo, por exemplo nos
acontecimentos de todos os dias, o público era forçado a reflectir na
possibilidade de uma existência mais autêntica e verdadeira.
- Continua.
- Muitas vezes, o teatro do absurdo apresenta situações
completamente banais: por isso podemos falar de uma espécie de
"hiperrealismo". O homem é representado exactamente como é. Mas se se
mostra no palco de um teatro aquilo que acontece numa casa de banho de
um dia qualquer numa casa qualquer, o público começa a rir. Este riso
pode ser interpretado como uma defesa por se ser posto a nu em cena.
- Sim, é possível.
- O teatro do absurdo também pode ter conotações surrealistas:
muitas vezes as personagens encontram-se enredadas nas situações mais
improváveis e quase oníricas.
Se aceitam tudo sem se espantarem, o público é obrigado por seu
lado a reagir com perplexidade. Isto também vale para os filmes mudos de
" Charles Chaplin": o aspecto cómico das suas obras cinematográficas
consiste frequentemente na ausência de espanto do protagonista perante
as situações absurdas nas quais se encontra. O público é levado a entrar
em si mesmo para procurar algo mais verdadeiro e mais autêntico.
- É incrível ver como as pessoas toleram certas situações.
- Por vezes pode ser melhor "fugir", mesmo que não se saiba
aonde ir.
- Se a casa arde, devo deixá-la mesmo que não tenha outra onde
ir morar.
- Sim, é mesmo assim.
Queres mais chá, ou preferes uma "coca -cola"?
- Pode ser coca -cola. De qualquer modo não devias ter chegado
atrasado.
Alberto voltou com um expresso e uma "coca -cola". Enquanto
isso, Sofia tinha chegado à conclusão de que lhe agradava a vida nos
cafés. Já não estava tão convencida de que as conversas nas outras mesas
eram tão insignificantes.
Alberto bateu com a garrafa da "coca -cola" na mesa: o ruído fez
alguns dos presentes voltarem-se.
- E com isto chegámos ao fim - disse.
p. 408
- Queres dizer que a história da filosofia termina com
Sartre e o existencialismo?
- Não, seria um exagero dizer isso. O existencialismo teve uma
grande importância em todo o mundo. Como vimos, tinha as suas raízes na
história, e através de Kierkegaard poder-se-ia voltar a
Sócrates. Outras correntes filosóficas do passado também tiveram
seguimento no nosso século.
- Podes dar-me exemplos?
- O "neo-tomismo" recupera ideias que pertencem à tradição de
S. Tomás de Aquino.
A chamada "filosofia analítica" ou o "empirismo lógico" parte de
Hume e do empirismo britânico e da lógica de
Aristóteles. E além disso, no nosso século, o "neo-marxismo",
com todas as suas diferentes ramificações, teve uma grande importância.
Já falámos sobre "neo-darwinismo" e depois sobre a influência da
"psicanálise" na cultura e na filosofia do nosso século.
- Compreendo.
- Uma última corrente que vale a pena citar é o materialismo,
que tem raízes profundas na história. A ciência moderna pode sugerir
-nos um paralelelismo com os esforços dos pré -socráticos: por exemplo,
continua à procura daquela "partícula elementar" indivisível da qual é
formada toda a matéria. Mas ninguém nos consegue ainda explicar com
exactidão o que é a "matéria".
As ciências modernas, por exemplo a física nuclear ou a
bioquímica, são tão fascinantes que se tornaram uma parte importante na
concepção de vida de muitas pessoas.
- Um misto de velho e novo, portanto.
- Podemos dizer isso porque as mesmas perguntas com que
iniciámos o nosso curso não tiveram ainda uma resposta. Sartre tocou um
ponto importante ao dizer que as questões existenciais nunca terão uma
resposta definitiva: uma questão filosófica é por definição uma coisa
que cada geração, sim, cada ser humano, deve colocar a si mesmo
novamente.
- Um pensamento um pouco triste.
- Não sei se estou de acordo. Não é justamente colocando-nos
estas questões que sentimos que estamos vivos?
Além disso, não sucedeu sempre que quando o homem se esforçou
por encontrar uma resposta às grandes questões, encontrou respostas
claras e definitivas a questões menores?
Ciência, investigação e técnica nasceram, por assim dizer, da
reflexão filosófica.
No fundo, não foi o espanto do homem pela existência que o levou
por fim à Lua?
- É verdade.
- Quando Neil Armstrong pôs o pé na lua, comentou: "É um pequeno
passo para o homem, mas um grande salto para a humanidade". E incluía
assim
p. 409
todos os homens que viveram antes dele na sensação que sentia dando o
primeiro passo na Lua. Não era apenas mérito seu.
- Claro que não.
- O nosso tempo também teve de defrontar problemas completamente
novos, sobretudo os ambientais. Uma nova corrente filosófica surgiu, a
filosofia ecologista, ou "ecofilosofia". Muitos filósofos ecologistas
mostraram que toda a civilização ocidental está na via errada, em rota
de colisão com aquilo que o nosso planeta pode suportar. Estes filósofos
tentaram ir mais fundo, para além dos fenómenos concretos de poluição e
destruição ambiental, e concluíram que há algo de errado no próprio modo
de pensar do
Ocidente.
- Acho que têm razão.
- Os filósofos ecologistas debateram, por exemplo, o próprio
conceito de desenvolvimento. Este conceito baseia-se na premissa de que
o homem é superior na natureza, que é o seu dono. Precisamente este modo
de pensar pode ser perigoso para toda a vida do planeta.
- Irrito-me sempre que penso nisso.
- Na sua crítica a este modo de pensar, os ecofilósofos tiveram
em conta as ideias e reflexões de outras culturas, por exemplo, a
indiana. Estudaram também o modo de pensar dos chamados "povos
primitivos", para retornar àquilo que perdemos.
- Compreendo.
- Nos próprios meios científicos muitas vozes se levantaram nos
últimos anos para explicar que o nosso modo científico de pensar se
encontra perante uma "mudança paradigmática", ou seja, uma transformação
fundamental. Em alguns campos específicos vimos já os primeiros frutos,
por exemplo, em "movimentos alternativos" que põem a tónica num
pensamento global e trabalham para um novo estilo de vida.
- Isso é bom.
- Todavia, como sempre em tudo o que os homens fazem, temos de
separar o trigo do joio. Alguns anunciaram que estamos a entrar numa
nova época, ou " New Age". Mas nem tudo o que é novo é melhor, assim
como nem tudo o que é velho deve ser deitado fora. Também por este
motivo te ofereci um curso de filosofia: agora tens uma bagagem
histórica tal que te permitirá orientares-te sozinha na vida.
- Obrigada pela atenção.
- Verificarás, acho, que muito do que é entendido por
New Age é apenas disparate. " Neo-religiosidade", "neo
-ocultismo", "superstição moderna" invadiram o mundo moderno nos últimos
decénios. Tornaram-se uma grande indústria. Aproveitando a menor
influência do
p. 410
cristianismo, as novas ofertas no mercado das concepções de vida
apareceram como cogumelos.
- Tens um exemplo?
- A lista é tão extensa que nem ouso começar. De resto, não é
fácil descrever o nosso próprio tempo. Mas agora proponho-te irmos dar
uma volta pela cidade, quero mostrar-te uma coisa.
Sofia encolheu os ombros.
- Não tenho muito tempo.
Não te esqueceste da festa de amanhã, pois não?
- Claro que não, porque vai acontecer alguma coisa
extraordinária. Temos apenas que terminar o curso de filosofia de Hilde.
O major não pensou em mais nada e por isso perderá também uma parte da
sua vantagem. Levantou a garrafa da "coca -cola", que já estava vazia, e
bateu com ela na mesa.
Saíram para a rua. Pessoas muito apressadas corriam de um lado
para o outro ocupadas como formigas num formigueiro.
Sofia perguntou a si mesma que coisa lhe quereria
Alberto mostrar. Passaram junto a uma loja de electrodomésticos:
vendiam de tudo, desde televisores a câmaras de vídeo, das antenas
parabólicas aos telefones portáteis, dos computadores ao telefax.
Alberto apontou para a vitrina da loja e disse:
- Eis o século XX,
Sofia. A partir do Renascimento podemos dizer que o mundo
explodiu: os europeus começaram então a viajar por todo o mundo. Hoje
sucede o contrário: podemos chamar-lhe uma explosão ao contrário, ou
"implosão".
- O que queres dizer?
- Quero dizer que o mundo está concentrado numa única rede de
comunicação: não passou muito tempo desde que os filósofos tinham de
viajar de cavalo e carroça para se encontrarem com outros pensadores ou
conhecer o mundo. Hoje podemos encontrar-nos em qualquer parte do mundo
e recolhermos toda a informação humana num ecrã de computador.
- É uma ideia fantástica, mas simultaneamente um pouco
assustadora.
- O problema é se a história se está a aproximar do fim ou se
pelo contrário estamos no limiar de uma nova era. Já não somos apenas
cidadãos de uma cidade ou de um único Estado, vivemos numa civilização
planetária.
- É verdade.
p. 411
- O desenvolvimento técnico, sobretudo no que diz respeito às
comunicações, foi mais rápido nos últimos trinta, quarenta anos, do que
em toda a história. Talvez seja apenas o início...
- Era isto que me querias mostrar?
- Não, é do outro lado da igreja, lá em baixo.
Quando se preparavam para prosseguir, no ecrã de um televisor
apareceu a imagem de alguns soldados da O NU.
- Olha! - exclamou
Sofia. Via-se um soldado em grande plano. Tinha quase a mesma
barba negra de Alberto. De repente, levantou um cartaz onde estava
escrito: " Chego dentro em pouco, Hilde!".
Acenou e depois desapareceu.
- É louco! - exclamou
Alberto.
- Era o major?
- Nem quero responder.
Atravessaram o parque em frente à igreja e chegaram à rua
principal. Alberto estava ligeiramente nervoso e, naquele momento,
apontou para uma livraria. Chamava-se Libris e era a maior da cidade.
- Queres mostrar-me alguma coisa aqui?
- Vamos entrar.
Na livraria, Alberto apontou para a estante maior. Tinha três
secções: NEW
AGE, E STIL O S DE VI D A
ALTER N ATIV O S E MI STI CI SM O.
Nas estantes, havia livros com títulos muito empolgantes:
"Haverá Vida para Além da Morte?, Os Segredos do Espírito, Tarot, O
Fenómeno OV NI, Healing, O Regresso dos Deuses, A Reencarnação, O Que é
a
Astrologia?", e muitos outros. Havia mais de cem títulos
diferentes. Sobre um banco via-se uma pilha de livros semelhantes.
- Isto também é o século XX, Sofia. Este é o templo do nosso
tempo.
- Não acreditas nestas coisas?
- Muito disto é disparate, mas vende tão bem como pornografia.
De facto, muito do conteúdo destes livros pode ser definido como uma
espécie de pornografia. Aqui, os jovens podem comprar exactamente aquilo
que mais lhes interessa. Todavia, a relação entre a verdadeira filosofia
e estes livros é comparável à relação que existe entre o amor verdadeiro
e a pornografia.
- Não estarás a exagerar?
- Vamos sentar-nos no parque.
Saíram da livraria e encontraram um banco livre em frente à
igreja. Debaixo das árvores, alguns pombos pavoneavam-se e havia um ou
outro pardal agitado.
p. 412
- É a parapsicologia ou PE S - explicou Alberto. -
Ou "telepatia", "clarividência", "psicocinética", ou
"espiritismo", "astrologia" e "ovnilogia".
- Mas diz-me: achas que isso é tudo uma fraude?
- Não seria digno de um filósofo tratar tudo da mesma maneira.
Mas não quero excluir a hipótese de que os termos que referi possam
formar um mapa bastante detalhado de uma paisagem que não existe. E há
muito daquilo a que Hume chamava "ilusão e engano" e queria lançar às
chamas. Em muitos destes livros não se encontra uma única experiência
autêntica.
- Mas então porque são escritos tantos livros deste género?
- É um dos negócios mais lucrativos do mundo e é isto que muitas
pessoas gostam de ler.
- E porque é que achas que gostam de ler estas coisas?
- Porque sentem um desejo de algo "místico", de algo "diferente"
que quebre a monotonia do quotidiano. É andar à procura de uma coisa que
está à frente do nariz.
- O que queres dizer?
- Fazemos parte de uma aventura maravilhosa. Em frente a nós há
uma obra, a criação. À luz do dia,
Sofia! Não é inacreditável?
- Sim.
- Porque havíamos de ir à procura da cigana que lê a sina ou de
saguões académicos para experimentar algo de "empolgante" ou
"transcendente"?
- Achas que aqueles que escrevem estes livros contam apenas
mentiras?
- Não, não foi isso que eu disse. Vou-te explicar de um modo
darwinista.
- Estou a ouvir!
- Pensa em tudo o que se passa no decorrer de um único dia.
Limita-te a um dia da tua vida. Pensa em tudo o que vês e experimentas.
- Sim?
- Por vezes, há coincidências estranhas. Entras numa loja, por
exemplo, e gastas vinte e oito coroas. Mais tarde encontras Jorunn que
te restitui as vinte e oito coroas que lhe tinhas emprestado, finalmente
vão ao cinema e dão-te o lugar número vinte e oito.
- Sim, seria uma estranha coincidência.
- Mas seria uma coincidência. A questão é que algumas pessoas
"recolhem" coincidências deste tipo. Reúnem-se experiências misteriosas
ou inexplicáveis e quando elas, fruto da vida de alguns milhares de
pessoas, são reunidas num livro, podem dar a impressão de ser um
imponente
p. 413
material de prova. E o material aumenta constantemente. Mas neste
caso, também estamos perante uma lotaria onde apenas os bilhetes
vencedores são visíveis.
- Não há pessoas videntes ou "médiuns" que têm experiências
destas constantemente?
- Sim, há. E se excluirmos os vigaristas, encontramos também uma
outra explicação para essas experiências místicas".
- Diz!
- Recordas que falámos de Freud e da sua teoria do inconsciente?
- Quantas vezes tenho de te dizer que a minha memória é boa?
- Já Freud mostrara que muitas vezes nos podemos comportar como
se fôssemos médiuns do nosso inconsciente. Podemos fazer ou dizer coisas
de repente sem conseguirmos compreender porquê. O motivo disso é o facto
de nós termos mais experiências, pensamentos e recordações do que
aqueles de que temos consciência.
- E então?
- Por vezes, as pessoas falam ou andam enquanto dormem. Chamamos
a este género de fenómenos "automatismo psíquico". Mesmo sob hipnose, os
homens podem dizer ou fazer coisas que sucedem "por si". E lembras-te
dos surrealistas, que tentavam escrever "automaticamente". Tentavam
tornar-se assim médiuns da sua própria consciência.
- Ainda me lembro disso.
- Com intervalos regulares, neste século, surgem notícias de
homens, de médiuns, que conseguem entrar em contacto com defuntos.
Falando com a voz do morto, ou servindo-se da escrita automática, o
médium receberia uma mensagem de um ser humano que tinha vivido há
muitos séculos. Estes factos são usados como prova de que existe uma
vida além da morte ou de que um homem vive muitas vidas.
- Compreendo.
- Não estou a dizer que todos estes médiuns sejam vigaristas:
alguns agiram de boa fé. De facto, foram médiuns, mas do seu
inconsciente. Houve bastantes médiuns que em estado de transe mostraram
capacidades e conhecimentos que nem eles próprios nem os outros sabiam
explicar. Por exemplo, uma mulher que não sabia hebraico, começou a
falar nessa língua. Das duas uma: ou tinha vivido uma vida anterior ou
estava em contacto com o espírito de um morto.
- O que te parece?
- Soube-se depois que a mulher tinha tido uma "baby -sitter"
judia quando era pequena...
- Ah...
p. 414
- Ficaste desiludida? De qualquer modo, é fantástico ver até
onde vai a capacidade de algumas pessoas de acumularem no inconsciente
experiências anteriores.
- Compreendo o que queres dizer.
- Muitas coisas estranhas quotidianas também podem ser
explicadas à luz da teoria do inconsciente. Se recebo uma chamada de um
amigo que não vejo há muitos anos, justamente quando estava à procura do
seu número de telefone...
- Sinto um arrepio...
- A explicação pode ser, por exemplo, que ambos ouvimos uma
velha canção na rádio, uma canção que ouvimos juntos na última vez que
nos vimos. O ponto fundamental é o facto de esta relação oculta não ser
consciente...
- Então, ou é aldrabice... ou o truque do bilhete vencedor na
lotaria... ou o inconsciente?
- De qualquer modo, é melhor aproximarmo-nos com cepticismo
destas estantes, sobretudo para um filósofo. Em Inglaterra existe uma
associação dos cépticos. Há muitos anos, esta associação ofereceu uma
grande soma de dinheiro à primeira pessoa que conseguisse um único
exemplo verificável de uma coisa sobrenatural. Não era necessário ser um
milagre, bastava um pequeno exemplo de transmissão de pensamento. Até
agora, ninguém se apresentou.
- Compreendo.
- Uma coisa completamente diferente é admitirmos que há muitas
coisas que não compreendemos. Talvez não conheçamos ainda todas as leis
da natureza. No século passado, muita gente considerava o magnetismo e a
electricidade como uma espécie de magia. Aposto que a minha bisavó
abriria os olhos de espanto se eu lhe falasse da televisão ou dos
computadores.
- Então não acreditas em nada de sobrenatural?
- Já falámos disso. A própria expressão "sobrenatural" é um
pouco bizarra. Não, acho que existe uma única natureza, que em
compensação é espantosa.
- E todos aqueles fenómenos de que falam os livros que me
mostraste?
- Todos os verdadeiros filósofos devem manter os olhos abertos.
Mesmo que não tenhamos visto nenhum corvo branco, não devemos deixar de
o procurar. E um dia, mesmo um céptico como eu será obrigado a aceitar
um fenómeno em que não acreditara anteriormente. Se não mantivesse
aberta esta possibilidade, seria um dogmático, e não um verdadeiro
filósofo.
p. 415
Sofia e Alberto ficaram sentados no banco em silêncio.
Os pombos estendiam o pescoço e arrulhavam, e de quando em
quando assustavam-se com uma bicicleta ou com o movimento brusco de um
transeunte.
- Tenho de ir para casa preparar a festa - disse por fim Sofia.
- Mas antes de nos separarmos, quero mostrar-te um corvo
branco. Está mais próximo do que pensamos. Levantou-se e fez sinal para
entrarem de novo na livraria.
Desta vez passou por todos os livros sobre fenómenos
sobrenaturais para parar em frente de uma estante muito pequena que se
encontrava no fundo da livraria. Sobre a estante estava escrito FIL O S
OFI A.
Alberto indicou um livro e
Sofia teve um sobressalto quando leu o título: O MU N D O DE S
OFI A.
- Queres que eu to compre?
- Não sei se tenho coragem para o ler. Um pouco mais tarde,
voltava para casa com o livro numa mão e um saco com o que tinha
comprado para a festa na outra.
p. 416
A FESTA NO JARDIM "... um corvo branco..."
Hilde estava sentada na cama como que paralisada.
Sentia os braços rígidos e as mãos, que seguravam no "dossier",
tremiam. Eram quase onze. Tinha lido durante mais de duas horas. Por
vezes, rira alto, outras assustara-se. Felizmente não havia ninguém em
casa. E o que ela lera em duas horas! Primeiro, Sofia tinha tentado
atrair a atenção do major quando voltava a casa, depois subira a uma
árvore, o ganso Morten viera do Líbano como anjo salvador. Mesmo tendo
passado muito tempo, Hilde nunca se esquecera de que o pai lhe tinha
lido " A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson Através da Suécia".
Durante muitos anos tinham usado entre si uma língua secreta que estava
relacionada com aquele livro. E agora, o seu pai trazia de novo à baila
o velho ganso.
Depois, Sofia estreara-se como frequentadora de cafés. Hilde
lera com grande interesse as páginas nas quais
Alberto explicara Sartre e o existencialismo. Quase conseguira
convencê-la, como de resto soubera fazer muitas outras vezes.
No ano anterior, Hilde comprara um livro sobre astrologia,
depois chegara a casa com cartas do "tarot" e finalmente com um livro
sobre o espiritismo. Todas as vezes o pai a advertira a respeito da
superstição, fazendo apelo ao seu "sentido crítico", mas agora chegara a
hora da vingança. O contra-ataque tinha sido muito forte. Era evidente
que a filha não tinha intenções de abandonar aquele tipo de leituras. E
ele, por precaução, aparecera no ecrã de um televisor numa loja de
electrodomésticos e fizera-lhe sinal. Não era preciso aquilo...
O que a espantava mais era a rapariga de cabelos escuros.
Sofia, Sofia, quem és? De onde vens? Porque entraste na minha
vida? Por fim, Sofia recebera um livro sobre si mesma. Seria o mesmo que
Hilde tinha nas mãos naquele momento? Mas era apenas um
p. 417
"dossier". Tanto fazia: como era possível encontrar num livro sobre
si mesma? O que aconteceria se Sofia tivesse começado a ler aquele
livro?
O que sucederia agora? O que poderia suceder? Hilde sentiu com
os dedos que faltavam poucas páginas.
No autocarro que a levava a casa, Sofia encontrou a mãe.
Que diabo! O que diria se lhe visse o livro na mão?
Sofia tentou pô-lo no saco juntamente com as serpentinas e os
balões comprados para a festa, mas não conseguiu.
- Olá, Sofia! As duas no mesmo autocarro? Que bom!
- Olá...
- Compraste um livro?
- Não.
- " O Mundo de Sofia" - que estranho!
Sofia compreendeu que não tinha hipótese de mentir à mãe.
- Foi o Alberto que mo deu.
- Ah! Como já te disse várias vezes, estou ansiosa por conhecê
-lo. Posso ver o livro?
- Não podes esperar até chegarmos a casa? É o meu livro, mãe.
- Está bem, é o teu livro.
Quero apenas dar uma vista de olhos à primeira página... Então:
" Sofia Amundsen regressava da escola. Percorrera com Jorunn o primeiro
troço do caminho. Tinham conversado sobre robôs...
- É mesmo o que está aí escrito?
- Sim, está escrito assim mesmo, Sofia. O autor é um certo
Albert Knag. Nunca ouvi falar dele. Como se chama o teu Alberto?
- Knox.
- Vais ver que esse homem estranho escreveu um livro inteiro
sobre ti, Sofia, usando um pseudónimo.
- Não é ele, mãe. Porque é que não desistes? De qualquer modo,
não compreenderias.
- Está bem. Amanhã é a festa: nessa altura tudo voltará ao
normal.
- Albert Knag vive noutra realidade. Por isso, este livro é um
corvo branco.
- Não tinhas falado de um coelho branco?
- Deixa estar!
A conversa entre a mãe e a filha foi interrompida pela chegada
do autocarro à paragem de Klõverveien. Aí, Sofia e a mãe depararam com
uma manifestação.
p. 418
- Meu Deus! - exclamou a mãe de Sofia. - Julgava que estávamos a
salvo de manifestações nesta zona da cidade.
Não tinha mais do que dez ou doze pessoas. Nos cartazes estava
escrito: " O M AJ OR
CHEG A EM BREVE!", "VIV A A B O A
C OMI D A P AR A A N OITE DE S. J OÄ O" e "M AI S P O DER P AR A
A O NU!".
Sofia teve pena da mãe.
- Não te preocupes com eles - disse.
- Que manifestação tão estranha, Sofia. Quase absurda.
- Não é nada importante.
- O mundo está a mudar cada vez mais depressa. Para dizer a
verdade, não me espanta.
- Devias espantar-te de não te espantares.
- De modo algum. Estes manifestantes não são violentos. Basta
que não tenham pisado as nossas roseiras. De resto, não sei para que
serve uma manifestação num jardim. Vamos para casa para ver.
- Era uma manifestação filosófica, mamã. Os verdadeiros
filósofos não pisam as roseiras.
- Sabes o que te digo,
Sofia? Não sei se acredito na existência de verdadeiros
filósofos: hoje em dia quase tudo é artificial.
Passaram a tarde e a noite ocupadas com os preparativos.
Na manhã seguinte começaram a decorar o jardim e a pôr a mesa.
Jorunn chegou e também ajudou.
- Meu Deus! - disse. -
Os meus pais também vêm à festa. Tu é que és a culpada,
Sofia. Meia hora antes da chegada dos convidados estava tudo
pronto. As árvores no jardim tinham sido decoradas com serpentinas e
lampiões de papel. Longos cabos eléctricos partiam da cave. O portão, as
árvores ao longo do carreiro que levava ao jardim e a fachada da casa
estavam decoradas com balões. Sofia e Jorunn tinham passado duas horas a
enchê-los.
Sobre a mesa estava já disposta a comida: frango assado, salada
e sanduíches. Na cozinha havia um bolo com natas, outro com chocolate,
roscas, mas no centro da mesa havia um bolo gigantesco com vinte e
quatro andares sobrepostos. Em cima do bolo via-se uma pequena rapariga
que ia ser crismada. A mãe de Sofia assegurou que também podia ser uma
rapariga de quinze anos não crismada, mas Sofia estava convencida de que
a figura estava no bolo porque Sofia afirmara há pouco tempo que ainda
não sabia se queria ser crismada.
- Não, não poupámos nada
- repetia constantemente a sua mãe.
p. 419
Depois chegaram os convidados. As primeiras foram três colegas
da escola. Traziam camisas de verão e casacos de malha leves, com saias
compridas e uma sombra de maquilhagem nos olhos. Depois, foi a vez de
Jõrgen e Lasse entrarem pelo portão passeando vagarosamente com um misto
de timidez e de arrogância juvenil.
- Parabéns!
- Agora, também és adulta!
Sofia reparou que Jorunn e Jõrgen deitavam olhares furtivos um
ao outro. Havia algo no ar: era a noite de S. João. Todos tinham trazido
um presente. Uma vez que se tratava de uma festa filosófica, muitos
convidados tinham tentado descobrir o que era a filosofia e encontrar um
"presente filosófico"; nem todos tinham conseguido, mas a maior parte
tinha-se esforçado por escrever alguma coisa filosófica nos cartões de
parabéns.
Sofia recebeu um dicionário filosófico e um diário com cadeado
que dizia: " Os meus apontamentos filosóficos". À medida que os
convidados entravam, a mãe de Sofia servia sumo da maçã em copos altos.
- Bem vindo! Como se chama o jovem?... Não nos conhecemos... Que
bom teres vindo,
Cecília!
Só depois de todos os jovens terem chegado e quando já
passeavam, com os copos na mão, debaixo das árvores de fruto, é que o
"Mercedes" branco dos pais de Jorunn estacionou em frente do portão de
entrada. O conselheiro financeiro trazia um belo fato cinzento de corte
elegante, enquanto a sua mulher trazia um fato completo - casaco e
calças vermelhas com lantejoulas vermelho-escuro. Sofia calculou que
tinha comprado uma "Barbie" com este fato numa loja de brinquedos, e ido
a um alfaiate para lhe fazer um fato igual. Havia outra possibilidade:
talvez o conselheiro financeiro tivesse comprado a boneca, levando-a a
um feiticeiro, que a transformara numa mulher de carne e osso. Mas essa
hipótese era tão pouco provável que Sofia a rejeitou.
Desceram do "Mercedes" e entraram no jardim, enquanto os jovens
olhavam espantados para eles. Foi o conselheiro financeiro a entregar um
embrulho comprido e estreito da parte da família Ingebrigtsen. Sofia
tentou manter a calma quando viu que se tratava justamente de uma
"Barbie". Jorunn estava fora de si:
- Vocês estão doidos? A
Sofia já não brinca com bonecas!
A senhora Ingebrigtsen interveio precipitadamente, e as suas
lantejoulas tiniram.
- Também pode estar exposta como adorno, Jorunn.
- Muito obrigada - disse
Sofia, para acalmar a tensão.
- Talvez comece uma colecção.
p. 420
Entretanto, os convidados já estavam à volta da mesa.
- Só falta o Alberto - disse a mãe de Sofia com um tom de voz
simultaneamente excitado e inquieto. Os convidados já lhe tinham
perguntado várias vezes quando apareceria o convidado especial, o
"verdadeiro filósofo".
- Ele prometeu que vinha, logo não tardará a chegar.
- Entretanto, porque não nos sentamos?
- Sim, sentemo-nos.
A mãe de Sofia começou a sentar as pessoas à volta da mesa.
Deixou um lugar vago entre ela e Sofia. Disse algumas coisas sobre a
comida, o bom tempo e sobre o facto de
Sofia ser quase uma mulher adulta. Estavam sentados há meia hora
quando um homem de meia-idade, com uma pêra negra e uma bóina entrou
pelo portão. Trazia nas mãos um grande ramo com quinze rosas.
- Alberto!
Sofia levantou-se de um pulo e correu para ele. Lançou-lhe os
braços ao pescoço e recebeu as rosas. Alberto reagiu a esta recepção
começando a remexer nos bolsos do casaco. Tirou algumas bombinhas de
carnaval que acendeu e atirou para o ar. Enquanto se dirigia para a
mesa, acendeu uma vela mágica e colocou-a em cima do bolo antes de
ocupar o lugar vago entre Sofia e a mãe.
- É um grande prazer - disse Alberto com um sorriso.
Os convidados estavam estupefactos. A senhora Ingebrigtsen
lançou ao marido um olhar eloquente. A mãe de
Sofia, pelo contrário, estava tão aliviada pela sua chegada que
se sentia disposta a perdoar-lhe qualquer coisa. A festejada só com
todo o esforço conseguiu reprimir uma risada.
A mãe de Sofia tocou no seu copo e disse:
- Vamos dar as boas -vindas a Alberto Knox nesta festa
filosófica! Não é o meu novo namorado, porque se bem que o meu marido
esteja sempre no mar, não tenho nenhum namorado. Este homem é o
professor de Filosofia de Sofia. Significa que sabe mais do que acender
bombinhas. Este homem é, por exemplo, capaz de retirar um coelho vivo de
uma cartola. Ou era um corvo, Sofia?
- Obrigado, obrigado - disse Alberto, e sentou-se.
- Tchin, tchin! - exclamou Sofia e os presentes elevaram os
copos e beberam à sua saúde. Ficaram sentados algum tempo a comer frango
e salada. Mas a certa altura, Jorunn levantou-se e dirigiu-se a Jõrgen
com um passo decidido e beijou-o na boca. Jõrgen respondeu a esta
tentativa de aproximação tentando puxá-la para si para poder retribuir
melhor o beijo.
p. 421
- Acho que vou desmaiar - disse a senhora Ingebrigtsen.
- À mesa não, meninos - foi o único comentário da senhora
Amundsen.
- Porque não? - Alberto voltou-se para ela.
- Que pergunta estranha.
- Para um verdadeiro filósofo não há perguntas estranhas.
Naquele momento, dois rapazes que não tinham sido beijados
começaram a lançar os ossos do frango ao ar. Isso provocou também um
comentário da parte da mãe de Sofia.
- Parem com isso, por favor! É tão chato ter ossos de frango nas
goteiras.
- Desculpe - disse um dos jovens, e passaram a atirar os ossos
pela sebe.
- Acho que chegou a hora de recolher os pratos e de servir os
doces - disse a senhora Amundsen. - Quem quer café?
O casal Ingebrigtsen,
Alberto e dois dos convidados levantaram o braço.
- Sofia e Jorunn podiam-me ajudar... Enquanto iam à cozinha, as
duas amigas conversaram.
- Porque é que o beijaste?
- Vi a boca dele, e tive uma vontade terrível. Ele é tão giro.
- Como foi?
- Foi diferente do que eu tinha imaginado, mas...
- Então foi a primeira vez?
- Mas não será a última. Em seguida, havia café e bolo na mesa.
Alberto distribuiu bombinhas pelos jovens, mas naquele momento a mãe de
Sofia pediu novamente a palavra.
- Não tenho intenção de fazer um grande discurso, mas tenho
apenas uma filha e esta é a primeira e a última vez que ela faz quinze
anos. Fê-los há uma semana e um dia, para ser exacta. Como podem ver,
não poupámos em nada. O bolo tem vinte e quatro andares, ou seja, pelo
menos um para cada. Quem se servir primeiro pode tirar dois, porque
começaremos por cima, e os andares são progressivamente maiores. O mesmo
sucede com a nossa vida.
Quando Sofia era pequena, movia-se timidamente em círculos
pequenos, mas, com o passar dos anos, os círculos tornaram-se cada vez
maiores.
Agora, chegam à cidade. Além disso, tendo um pai que viaja
muito, Sofia telefona para o mundo inteiro. Parabéns pelos teus quinze
anos, Sofia!
- Encantador! - exclamou a senhora Ingebrigtsen.
Sofia não sabia se aludia à sua mãe, ao discurso, ao bolo ou a
ela.
p. 422
Os convidados aplaudiram e um dos rapazes atirou uma bombinha
para uma pereira. Naquele momento, Jorunn pôs-se de pé e tentou fazer
com que Jõrgen se levantasse da cadeira. Ele deixou-se levar e ambos
começaram a beijar-se deitados na relva, depois rolaram para debaixo
dos arbustos.
- Hoje em dia são as raparigas a tomarem a iniciativa
- afirmou o conselheiro financeiro.
Com estas palavras levantou-se e foi para junto dos arbustos
para ver de perto o que se passava ali. Todos os convidados seguiram o
seu exemplo. Apenas Alberto e
Sofia ficaram sentados. Em seguida, os convidados estavam em
semicírculo à volta de Jorunn e Jõrgen, que tinham abandonado os beijos
inocentes e tinham passado a beijos mais audazes.
- Ninguém os consegue deter! - disse a senhora Ingebrigtsen com
um certo orgulho.
- Não, o bom sangue não mente - disse o marido.
Olhou em redor com a esperança de obter uma espécie de aprovação
pelas suas palavras bem escolhidas. Teve apenas um sinal mudo de
assentimento, e acrescentou:
- Não se pode fazer nada contra. Mesmo de longe, Sofia reparou
que Jõrgen tentava desabotoar a camisa branca de Jorunn, que já estava
suja de erva. Ela tentava desapertar o cinto dele.
- Cuidado para não apanharem uma constipação - aconselhou a
senhora Ingebrigtsen.
Sofia olhou para Alberto com um olhar desesperado.
- As coisas estão a precipitar-se - disse Alberto. - Temos de
nos afastar daqui o mais rapidamente possível. Farei apenas um pequeno
discurso.
Sofia bateu palmas.
- Podem sentar-se de novo?
Alberto quer fazer um discurso.
Com excepção de Jorunn e Jõrgen, todos voltaram ao seu lugar.
- Quer realmente fazer um discurso? - perguntou a mãe de Sofia -
Que amável!
- Agradeço-lhe atenção.
- Soube que gosta de passear! É tão importante mantermo-nos em
forma. E sobretudo acho simpático levar consigo um cão. Chama -se
Hermes, não é verdade?
Alberto levantou-se e bateu com a colher na chávena.
- Querida Sofia - começou. - Quero antes de mais recordar que
esta é uma festa filosófica e por isso farei um discurso filosófico.
p. 423
Foi imediatamente interrompido por aplausos.
- Nesta festa animada pode ser útil uma dose de razão... Mas, em
primeiro lugar, não nos esqueçamos de dar os parabéns à aniversariante
pelos seus quinze anos.
Ainda não terminara a frase quando ouviram o ruído de um avião:
o aparelho passou pelo jardim em voo rasante. Preso à cauda havia uma
longa faixa onde estava escrito: "Parabéns pelos teus quinze anos!"
O facto desencadeou aplausos mais ruidosos.
- Como podem ver - exclamou a senhora Amundsen - este homem não
sabe apenas acender bombinhas.
- Obrigada, não foi nada.
Nestas últimas semanas,
Sofia e eu levámos a cabo uma grande investigação filosófica.
Nesta ocasião, queremos expor -vos as nossas conclusões: vamos revelar o
grande segredo da nossa existência. Entre os convidados reinava um tal
silêncio que era possível ouvir os pássaros cantar e os ruídos vindos
dos arbustos.
- Continua! - disse
Sofia.
- Após minuciosas investigações filosóficas, que vão desde os
primeiros filósofos gregos até hoje, descobrimos que vivemos as nossas
vidas na consciência de um major que se encontra no Líbano como
observador na O NU e que escreveu um livro sobre nós para a sua filha
que vive em Lillesand. Ela chama-se Hilde Mõller Knag e fez quinze anos
no mesmo dia que a Sofia. O livro que fala de todos nós encontrava-se
na sua mesinha de cabeceira quando acordou na manhã do dia 15 de Junho.
Mais precisamente, trata-se de um volumoso "dossier". Neste momento,
ela sente as últimas páginas passarem sob o seu indicador. Um certo
nervosismo começara a espalhar-se à volta da mesa.
- A nossa existência é apenas um presente de aniversário para
Hilde Mõller Knag, porque todos nós fomos criados para servir de
enquadramento ao ensinamento filosófico que o major quer dar à filha.
Isto significa, por exemplo, que o "Mercedes" branco estacionado à
entrada não vale um tostão furado.
Não vale mais do que todos os "Mercedes" brancos na cabeça do
pobre major da O NU, que acaba de se sentar à sombra para evitar uma
insolação. No Líbano faz muito calor, meus amigos.
- Que loucura! - exclamou o conselheiro financeiro. - Isso é um
disparate.
- Cada um pode pensar o que quiser, naturalmente - continuou
Alberto impassível.
- Mas na verdade o absurdo é toda esta festa. Aqui, a única dose
de razão é o discurso que eu estou a fazer.
O conselheiro levantou-se e disse:
p. 424
- Estamos a fazer o possível para cumprirmos o nosso dever a fim
de que as coisas corram bem. Temos o cuidado de fazer seguros em relação
a tudo. E de repente, vem um relaxado imbecil que tenta destruir tudo
com base em certas afirmações "filosóficas".
Alberto acenou afirmativamente.
- Contra esta espécie de conhecimento filosófico não há seguro
que sirva. Estamos a falar de uma coisa pior do que qualquer catástrofe
natural, senhor administrador do erário e, como bem sabe, as seguradoras
não cobrem este género de coisas.
- Esta não é uma catástrofe natural.
- Não, é uma catástrofe existencial. Pode dar uma olhadela aos
arbustos e compreenderá o que quero dizer.
Não podemos assegurar-nos contra a destruição da nossa
existência, como não o podemos fazer contra o desaparecimento do sol.
- E temos que nos conformar? - perguntou o pai de Jorunn à
esposa, que abanou a cabeça, como a mãe de Sofia.
- Que tristeza! - disse esta. - E nós que não quisemos poupar
nada.
Os jovens olhavam para
Alberto fixamente. Muitas vezes, estão mais abertos em relação a
novas ideias e pensamentos do que aqueles que viveram mais tempo.
- Gostaríamos de ouvir mais - disse um rapaz de caracóis loiros
e óculos.
- Obrigado, mas não há muito mais a acrescentar. Visto que
chegámos à conclusão de que somos uma imagem onírica da consciência
sonolenta de uma outra pessoa, quanto a mim o mais inteligente é
ficarmos calados. Mas posso concluir aconselhando aos jovens um pequeno
curso de história da filosofia. Deste modo, podem desenvolver uma
atitude crítica em relação ao mundo em que vivem, sobretudo em relação
aos valores da geração dos vossos pais. Aquilo que tentei ensinar a
Sofia foi justamente como pensar de modo crítico. Hegel chamou-lhe
"pensar negativamente".
O conselheiro financeiro ainda estava de pé, tamborilando com os
dedos na mesa.
- Este agitador tenta destruir todos os valores sensatos que a
escola, a Igreja e nós próprios tentamos inculcar nas gerações jovens -
a geração que é o nosso futuro e herdará um dia os nossos bens.
Se ele não for afastado imediatamente desta festa, telefono ao
meu advogado. Ele saberá o que há a fazer.
- Não tem importância nenhuma o que julga dever fazer, porque o
senhor é apenas uma sombra. Além disso, Sofia e eu deixaremos esta
p. 425
festa dentro em breve. Este curso de filosofia não foi um projecto
puramente teórico: teve também um lado prático.
Quando chegar a altura, faremos o truque da evaporação.
Deste modo, conseguiremos fugir da consciência do major. Helene
Amundsen segurou
Sofia pelo braço.
- Não me vais deixar, pois não, Sofia?
Sofia pôs-lhe um braço à volta dos ombros e olhou para
Alberto.
- A mãe vai ficar tão triste...
- Não, isso é ridículo.
Não te podes esquecer do que aprendeste: é justamente deste
absurdo que nos temos de libertar. A tua mãe é uma senhora muito
simpática e carinhosa, tal como o cesto do
Capuchinho Vermelho estava cheio de bolos para a avó. E ela está
tão triste como o avião que passou há pouco precisava de gasolina para a
sua manobra.
- Acho que compreendo o que queres dizer - disse
Sofia. Voltou-se de novo para a mãe. - Por isso, tenho que
fazer o que ele diz, mamã. De qualquer modo, eu teria de te deixar um
dia.
- Vou ter saudades tuas - afirmou a mãe - mas se existe um céu
acima deste, tens mesmo de voar. Eu prometo tomar conta de Govinda.
Costumas dar-lhe uma ou duas folhas de alface por dia?
Alberto colocou-lhe a mão nos ombros:
- Nem a senhora nem nenhuma outra pessoa aqui sentirá a nossa
falta pela simples razão de que não existem, por isso não têm meio de o
fazer.
- Isto é o pior insulto que já ouvi! - exclamou a senhora
Ingebrigtsen.
O conselheiro financeiro concordou.
- Podemos denunciá-lo por difamação. Vais ver que é comunista.
Quer levar-nos tudo o que nos é mais querido. É um patife, um perfeito
canalha...
Alberto e o conselheiro financeiro sentaram-se ao mesmo tempo.
Este tinha o rosto vermelho de raiva. Naquele momento, Jorunn e Jõrgen
reapareceram e sentaram-se nos seus lugares. Tinham as roupas sujas e
amarrotadas. Os cabelos loiros de Jorunn estavam cheios de erva e terra.
- Mamã, vou ter um bebé - anunciou.
- Está bem, mas tens de esperar até chegarmos a casa. Teve o
apoio imediato do seu marido.
- Sim, só tem de se esperar, e se quiser o baptismo esta noite,
tem de se arranjar sozinha.
Alberto olhou para Sofia com uma expressão séria.
- Já é hora.
p. 426
- Podes trazer-nos o café antes de partires? - perguntou a sua
mãe.
- Claro, mamã, vou já.
Sofia levou os termos da mesa. Tinha de fazer mais café.
Enquanto esperava que o café estivesse pronto, deu de comer aos pássaros
e aos peixes. Foi à casa de banho e pôs uma folha de alface na caixa de
Govinda. Não viu
Sherekan, mas abriu uma lata de comida para gatos e deitou o
conteúdo num prato que deixou na escada. Reparou que tinha os olhos
húmidos.
Quando voltou com o café, a festa mais parecia a de um grupo de
crianças pequenas do que a festa de uma rapariga de quinze anos. Havia
muitas garrafas deitadas pela mesa, um pedaço de bolo de chocolate
estava esborrachado na toalha, o prato com as sanduíches no chão. Quando
Sofia chegou, um dos rapazes colocou uma bombinha no bolo de nata que
explodiu, lançando creme e natas pela mesa e pelos convidados, atingindo
sobretudo o fato vermelho da senhora Ingebrigtsen.
Curiosamente, ela e todos os outros assistiam a tudo com a
máxima calma. Jorunn agarrou numa fatia de bolo de chocolate e espalhou
-a no rosto de Jõrgen. Logo em seguida, começou a lamber-lhe a cara.
A mãe de Sofia e Alberto tinham-se sentado a alguma distância
no baloiço. Fizeram sinal a Sofia.
- Finalmente vocês podem falar a sós - disse Sofia.
- E tu tinhas toda a razão
- disse a mãe num tom alegre.
- O Alberto é um grande homem. Confio-te aos seus fortes
braços.
Sofia sentou-se entre os dois.
Dois rapazes tinham conseguido trepar ao telhado. Uma das
raparigas furava os balões com um gancho do cabelo. Naquele momento,
chegou um intruso de mota. No porta -bagagens tinha uma caixa com
garrafas de cerveja e aguardente. Foi acolhido de braços abertos por
alguns rapazes. Imediatamente a seguir, o conselheiro financeiro
levantou-se da mesa bateu as palmas e disse:
- Vamos jogar, meninos?
Agarrou numa garrafa de cerveja, bebeu-a de um trago e pô-la
no meio da relva. Depois dirigiu-se à mesa e pegou nos cinco últimos
anéis do bolo. Mostrou aos convidados como deviam lançar os anéis para
ficarem à volta do gargalo.
- As últimas convulsões - disse Alberto. - Agora temos mesmo que
desaparecer antes que o major escreva a palavra final e Hilde feche o
"dossier".
- Tens de arrumar tudo sozinha, mamã.
p. 427
- Não faz mal, minha filha. Acho que esta não era vida para ti.
Se Alberto conseguir oferecer-te uma existência mais feliz, ninguém
ficará mais contente do que eu. Tem um cavalo branco, não é verdade?
Sofia olhou ao seu redor.
O jardim estava irreconhecível. Havia garrafas, ossos de frango,
sanduíches e balões pisados por toda a relva.
- Este já foi o meu pequeno paraíso - disse.
- E agora és expulsa dele
- respondeu Alberto. Um rapaz sentara-se no "Mercedes" branco.
Pô-lo em marcha, entrou pelo portão, fez a curva para o caminho de
saibro e continuou pelo jardim dentro.
Sofia foi agarrada pelo braço. Alguém a levava para a toca.
Depois, ouviu a voz de
Alberto:
- Agora!
No mesmo instante, o "Mercedes" branco bateu contra uma
macieira. Choveram maçãs verdes sobre o "capot".
- Isto é demais! - gritou o conselheiro financeiro. Exijo uma
indemnização!
A mulher apoiou-o completamente:
- A culpa é desse imbecil?
Onde é que ele se meteu?
- Parece que foram engolidos pela terra - disse a mãe de Sofia
com um certo orgulho. Levantou-se, dirigiu-se para a mesa que parecia
um campo de batalha e começou a levantá-la, perguntando:
- Alguém quer mais café?
p. 428
CONTRAPONTO
"... duas ou mais melodias soam simultaneamente..."
Hilde sentou-se na cama.
Ali terminava a história de
Sofia e Alberto. Mas o que se passara realmente? Por que motivo
tinha o seu pai escrito aquele último capítulo? Apenas para demonstrar o
seu poder sobre o mundo de Sofia? Profundamente concentrada nos seus
pensamentos, Hilde lavou-se e vestiu-se. Depois de um rápido pequeno
-almoço, desceu para o jardim e sentou -
-se no baloiço. Estava de acordo com Alberto: a única coisa
sensata naquela festa tinha sido o discurso que ele fizera. O seu pai
pretenderia insinuar que o mundo de Hilde era tão caótico como a festa
de jardim de Sofia? Ou que por fim o seu mundo também se dissolveria? E
Sofia e Alberto? O que sucedera ao seu plano secreto? Talvez ela mesma,
Hilde, devesse inventar a continuação? Ou tinham verdadeiramente
conseguido fugir do romance? Mas então, onde estavam?
Subitamente, ocorreu-lhe um pensamento: se Alberto e Sofia
tinham realmente saído da história, não poderia haver mais nada sobre
eles nas folhas do "dossier". O pai conhecia muito bem o conteúdo
daquelas páginas. Poderia haver qualquer coisa nas entrelinhas? Houvera
alusões nesse sentido. Hilde reconheceu que teria de ler toda a história
algumas vezes mais. Enquanto o Mercedes branco entrava pelo jardim,
Alberto puxou Sofia para o carreiro.
Depois, correram pelo bosque em direcção à cabana do major.
- Depressa! - exclamou
Alberto. - Temos de conseguir antes que ele comece à nossa
procura.
- Já estamos fora do seu alcance?
p. 429
- Encontramo-nos numa zona de charneira. Remaram pelo lago e
precipitaram-se para a cabana. Alberto abriu a porta da cave e empurrou
Sofia para dentro. Fez-se escuro.
Nos dias seguintes, Hilde continuou a trabalhar no seu plano:
enviou várias cartas a
Anna Kvamsdal, em Copenhaga e telefonou-lhe algumas vezes. Em
Lillesand também recrutou amigos e conhecidos como tropas auxiliares;
quase metade da turma foi mobilizada. Entretanto, releu " O Mundo de
Sofia". Não era uma história que se pudesse despachar com uma única
leitura.
Ocorriam-lhe constantemente novos pensamentos sobre o que
poderia ter sucedido a Alberto e Sofia após o seu desaparecimento na
festa de jardim.
No sábado, dia 23 de Junho, Hilde acordou por volta das nove
horas. Sabia que o pai tinha já deixado o acampamento no Líbano. Agora,
tinha apenas que esperar. A última parte do dia do major fora planeada
até ao mínimo detalhe.
De manhã, ela começou a preparar a noite de S. João com a mãe.
Hilde não conseguia deixar de pensar no modo como Sofia e a mãe tinham
preparado a sua festa. Mas não o tinham já feito? Estavam
verdadeiramente a pôr a mesa naquele momento?
Sofia e Alberto sentaram-se num relvado em frente a dois
grandes edifícios que no exterior tinham desagradáveis válvulas e tubos
de ventilação. Uma rapariga e um jovem saíram de uma das construções:
ele tinha uma pasta castanha, ela uma mala vermelha ao ombro. Numa
estrada lateral passou um carro.
- O que aconteceu? - perguntou Sofia.
- Conseguimos!
- Mas onde estamos?
- Este local chama-se "Majorstua", ou seja, a "cabana do
major".
- E daí?
- Estamos em Oslo, e Ma - jorstua é uma das zonas principais
desta cidade.
- Tens a certeza?
- Absoluta. Aquele edifício chama-se " Château Neuf", que
significa "castelo novo": ali estuda-se música. No outro edifício
estuda-se teologia. Naquela colina lá em cima estão as faculdades de
ciências naturais, literatura e filosofia.
p. 430
- Estamos fora do livro de Hilde e do controlo do major?
- Sim. Nunca nos encontrará, aqui.
- Mas onde estávamos quando atravessámos o bosque a correr?
- Enquanto o major se preocupava em fazer bater contra uma
macieira o "Mercedes" do conselheiro financeiro, escondemo-nos na toca.
Foi a primeira parte, Sofia: naquele momento pertencíamos tanto ao velho
como ao novo mundo, mas o major não deve ter pensado que nos
esconderíamos justamente lá dentro.
- Porque não?
- Nesse caso, não nos teria deixado ir embora tão facilmente.
Tudo se passou como num sonho, e talvez ele também tenha entrado no
jogo...
- O que queres dizer?
- Foi ele a pôr em marcha o Mercedes. Talvez se tenha esforçado
o máximo para não nos controlar. Devia estar exausto depois de tudo o
que aconteceu...
O jovem casal estava a poucos metros de distância deles.
Sofia achou um pouco embaraçoso estar ali sentada na relva com
um homem muito mais velho que ela. E queria ter a prova de que aquilo
que Alberto lhe tinha dito era verdade. Levantou-se e correu para os
dois.
- Podem dizer-me por favor como se chama este local? -
perguntou.
Nenhum respondeu, e não lhe deram atenção.
Sofia ficou tão irritada, que voltou a dirigir-lhes a palavra.
- É exigir muito pedir que respondam à minha pergunta? Mas o
jovem estava visivelmente ocupado a explicar uma coisa à rapariga:
- A composição contrapontística desenvolve-se em duas
dimensões: a horizontal, ou melódica, e a vertical, ou harmónica. Trata
-se portanto de duas ou mais melodias que soam ao mesmo tempo...
- Peço desculpa se vos estou a interromper, mas... - disse
Sofia.
- As melodias combinam-se de modo a desenvolverem-se da forma
mais independente possível uma da outra. Mas deve haver também uma
harmonia. Isto é chamado contraponto, o que na realidade significa nota
contra nota.
Que insolência! Não eram cegos nem surdos. Sofia fez uma última
tentativa: pôs-se em frente deles, obstruindo-lhes o caminho. Foi
simplesmente empurrada para o lado.
- Começa a levantar-se vento - disse a rapariga.
Sofia voltou a correr para
Alberto.
p. 431
- Eles não me ouvem! - disse - e enquanto o dizia, lembrou-se
do sonho com Hilde e o crucifixo de ouro.
- Temos de pagar o preço,
Sofia. Se conseguimos sair de um livro, não podemos esperar
obter o mesmo estatuto que o seu autor. Mas estamos aqui. E a partir de
agora não ficaremos nem um dia mais velhos do que quando deixámos a
festa filosófica no jardim.
- Mas nunca poderemos entrar em contacto com as pes - soas à
nossa volta?
- Um verdadeiro filósofo nunca diz nunca. Tens horas?
- São oito.
- Como quando deixámos a festa.
- Hoje o pai de Hilde volta do Líbano.
- Por isso, temos de nos apressar.
- O que queres dizer?
- Não estás curiosa para ver o que sucederá quando o major
chegar a Bjerkely?
- Sim, mas...
- Então, vem!
Caminharam para o centro. Passaram por várias pessoas no
caminho, mas Sofia e Alberto pareciam ser apenas ar para todas elas.
Ao longo da rua havia carros estacionados. De repente,
Alberto parou em frente a um carro vermelho de modelo
desportivo, descapotável.
- Acho que podemos usar este. Temos de ter a certeza de que este
é o nosso carro.
- Não percebo nada.
- Então vou-te explicar.
Não podemos levar um carro normal, que pertença a uma pessoa
aqui da cidade. O que é que achas que sucederia se as pessoas vissem um
carro que anda sem condutor? Além disso nunca conseguiríamos pô-lo em
movimento.
- E o carro desportivo?
- Acho que o vi num filme antigo.
- Desculpa, mas começo a irritar-me com todos estes mistérios.
- Este é um carro de fantasia, Sofia. É igual a nós.
As pessoas nesta cidade vêem aqui apenas um lugar livre para
estacionar e é justamente disso que nos temos de assegurar antes de
partirmos. Ficaram à espera. Pouco depois, viram um rapaz que estava a
andar de bicicleta no passeio, mas em seguida virou para a estrada
passando pelo meio do carro vermelho.
- Como vês, é o nosso carro.
Alberto abriu a porta do lugar ao lado do condutor.
- Faz favor! - disse, e
Sofia entrou.
p. 432
Ele sentou-se ao volante, girou a chave que já estava na ignição e o
carro arrancou.
Depois de ter deixado atrás de si Kirkeveien, chegaram a
Drammensveien. Passaram Lysaker e Sandvika. Pouco a pouco,
começaram a ver as primeiras fogueiras de S. João, sobretudo depois de
deixarem
Drammen.
- É o solstício de Verão,
Sofia! Não é maravilhoso?
- E há ar fresco com o carro aberto. É mesmo verdade que ninguém
nos pode ver?
- Só os que são como nós. Talvez encontremos alguém.
Que horas são?
- Oito e meia.
- Então temos que ir por atalhos, não podemos ficar todo o tempo
atrás deste camião.
Alberto virou para um grande campo de trigo. Sofia voltou-se e
viu que tinham deixado atrás de si a marca dos pneus nas espigas
pisadas.
- Amanhã vão dizer que foi culpa do vento - disse Alberto.
O major Albert Knag aterrou em Copenhaga. Era um sábado, dia 23
de Junho, quatro e meia da tarde. O dia tinha sido comprido: o major
tinha feito a penúltima escala em Roma, de onde tinha apanhado um avião
para Copenhaga. Tinha passado o controlo de passaportes vestido com o
uniforme da O NU, que usava sempre com grande orgulho.
Com efeito, Albert Knag sentia que não representava apenas o seu
país, mas também uma organização internacional e consequentemente uma
tradição secular que abrangia todo o planeta. Trazia apenas uma pequena
mala à tira -colo. O resto da bagagem seria transferido do avião
proveniente de Roma para o avião que se dirigia a Kristiansand. Apenas
tinha de mostrar o seu passaporte vermelho.
- " Nada a declarar".
O major Albert Knag tinha de esperar três horas no aeroporto de
Kastrup antes de apanhar o avião para Kristiansand. Tinha também de
comprar alguns presentes para a família. Enviara a Hilde o presente
maior quase duas semanas antes. Na noite anterior ao aniversário de
Hilde, Marit tinha-o colocado na mesinha de cabeceira do quarto da
filha, de modo a que ela o pudesse encontrar mal acordasse. Desde o seu
telefonema nesse dia não tinha falado com Hilde.
p. 433
Albert comprou alguns jornais noruegueses, sentou-se num bar e
pediu uma chávena de café. Ainda não lera os títulos quando ouviu o
altifalante:
- Uma notícia importante para o senhor Albert Knag. Pede-se ao
senhor Albert Knag que se dirija ao balcão da S A S.
O que era aquilo? Albert Knag sentiu um calafrio na espinha.
Seria uma ordem para voltar para o Líbano? Não estariam as coisas bem em
casa? Pouco depois estava em frente ao balcão das informações.
- Eu sou Albert Knag.
- Faça favor: é urgente.
Abriu imediatamente o envelope. Dentro dele havia um envelope
ainda mais pequeno.
Neste estava escrito: "Major
Albert Knag, a/c balcão de informações, aeroporto de Kastrup,
Copenhaga.
Albert sentiu o coração bater com mais força. Abriu o segundo
envelope e encontrou uma folhinha.
" Querido papá: dou-te as boas vindas a casa. Fico contente por
voltares do Líbano.
Como deves compreender, não posso esperar até tu voltares para
casa. Desculpa ter-te feito chamar pelo altifalante, mas era o mais
fácil.
P S. O conselheiro financeiro Ingebrigtsen exige infelizmente uma
indemnização por um acidente com um "Mercedes" roubado.
P S 2. Talvez me encontres sentada no jardim quando chegares, mas é
possível que tenhas notícias minhas antes disso.
P S 3. Tenho um certo receio de ficar muito tempo no jardim: em lugares
como este é fácil ser-se engolido pela terra.
Beijos da Hilde, que teve muito tempo para preparar o teu regresso".
O major Albert Knag sorriu, mas não lhe agradou nada a ideia de
ser manipulado daquele modo. Gostava de ter sempre os cordelinhos na
mão. E aquela garota atrevida em Lillesand estava a dirigir os seus
movimentos no aeroporto de Kastrup! Como é que tinha conseguido? Pôs o
envelope no bolso interior e passou por várias lojas. Justamente quando
ia a entrar na loja de especialidades dinamarquesas, encontrou um
pequeno envelope colado na montra. "M AJ OR K N AG" estava escrito com
uma
p. 434
caneta de feltro grossa. Ele arrancou o envelope e leu:
"Importante mensagem para o major Albert Knag, a/c
Dansk Mat, aeroporto de Kastrup, Copenhaga. Querido papá: por
favor, compra-me um grande salame dinamarquês, de preferência de dois
quilos. A mãe deve ficar contente com uma salsicha de conhaque.
P S. Caviar Limfjord também não era má ideia.
Beijos da Hilde"
Albert Knag olhou à sua volta. Estaria Hilde ali perto? Ter-lhe
-ia Marit oferecido um voo para Copenhaga, para que o fosse receber? Era
a letra de Hilde... De repente, o observador da O NU sentiu-se
observado. Parecia que alguém dirigia à distância tudo o que fazia.
Sentiu-se como um boneco nas mãos de uma criança. Entrou na loja e
comprou um salame dinamarquês, uma salsicha de conhaque e três latas de
caviar de Limfjord, depois prosseguiu para as outras lojas. Queria
comprar mais um presente de anos para Hilde. Talvez ela precisasse de
uma calculadora, ou de um pequeno rádio portátil. Seria algo do género.
Quando entrou na loja dos electrodomésticos, reparou num outro
envelope na montra: "Major Albert Knag, a/c da loja mais interessante de
todo o aeroporto". Na folha dentro estava escrito:
" Querido papá: cumprimento-te e agradeço-te da parte da
Sofia pelo televisor portátil com rádio incorporado que recebeu
do pai generoso pelo seu aniversário. Foi muito bom, se bem que tenha
sido uma ninharia. No entanto, tenho de admitir que também tenho o mesmo
interesse que Sofia por esse género de coisas.
P S. Se ainda não estiveste no minimercado e na grande
Duty Free Shop, onde se vende vinho e cigarros, encontrarás lá
outras instruções.
P S 2. Recebi dinheiro no meu aniversário e posso contribuir para a
compra de um televisor portátil com a soma de 350 coroas.
Beijos da Hilde que já recheou o peru e preparou a salada Waldorf"
O televisor custava 985 coroas dinamarquesas. Não era nada em comparação
com o que Albert Knag sentia por ser dirigido para um lado e para
p. 435
o outro pelas ideias estranhas da sua filha. Estaria ela ali - ou não?
A partir de então, olhava em seu redor a cada passo.
Sentia-se simultaneamente um espião e uma marioneta. Não estava
a ser privado dos seus direitos humanos básicos? Tinha de ir ainda à
grande
Duty Free Shop. Encontrou aí um envelope branco no qual estava
escrito o seu nome. Todo o aeroporto parecia transformado numa espécie
de jogo de computador, no qual ele servia de cursor. Na folha estava
escrito: "Major Knag, a/c Duty Free Shop no aeroporto. Tudo o que eu
quero daqui é um saco de caramelos e algumas caixas de maçapão de "
Anton Berg". Não te esqueças de que tudo isto é muito mais caro na
Noruega! Se bem me lembro, a mãe gosta de " Campari".
P S. Tens de manter os sentidos alerta durante toda a viagem de
regresso. Não vais querer perder nenhuma mensagem importante, pois não?
Beijos da tua filha Hilde que tem muita facilidade em aprender".
Albert Knag suspirou resignado; depois entrou na loja e comprou
tudo o que estava escrito na folha. Com três sacos de plástico e a mala
a tira -colo, dirigiu-se para a saída 28 para esperar pela hora da
descolagem: se houvesse outras mensagens ficariam onde estavam.
Numa coluna da saída 28, encontrou um envelope branco: "Para o
major Albert Knag, a/c saída 28, aeroporto de Kastrup, Copenhaga".
Também era a letra de Hilde, mas o número da saída não tinha sido
acrescentado com outra letra? Infelizmente, não era fácil distinguir,
uma vez que não podia comparar letras, apenas números.
Sentou-se numa poltrona que estava encostada a uma parede.
Pousou os sacos nos joelhos.
O orgulhoso major estava para ali olhando fixamente em frente
como uma criança pequena que viaja sozinha pela primeira vez. Se ela
estivesse ali, não teria a satisfação de o descobrir primeiro.
Olhava ansiosamente para todos os passageiros que iam entrando.
Viu-se como um espião perigoso constantemente sob controlo dos serviços
secretos. Quando foi chamado para embarcar suspirou de alívio. Foi o
último a entrar a bordo.
Quando entregou o seu bilhete de embarque, arrancou rapidamente
um outro envelope que estava colado ao balcão.
p. 436
Sofia e Alberto tinham acabado de passar a ponte de Brevik e a
saída para Kragerõ.
- Vais a cento e oitenta à hora - comentou Sofia.
- São quase nove horas.
Daqui a pouco, ele aterrará no aeroporto de Kjevik...
Felizmente, ninguém nos pode deter por excesso de velocidade.
- E se batermos?
- Desde que se trate de um carro normal, não corremos perigo.
Mas se fosse um dos nossos...
- Sim?
- Nesse caso, temos de prestar atenção. Não viste que passámos
por Herbie, o carocha?
- Não!
- Estava estacionada algures em Vestfold.
- Não será tão fácil ultrapassar o autocarro à nossa frente: há
bosque cerrado de todos os lados.
- Isso não tem importância, Sofia. Já vais ver. Ele virou para o
bosque e guiou pelo meio das árvores cerradas.
Sofia respirou de alívio.
- Assustaste-me.
- Não sentiríamos nada mesmo que passássemos por uma parede de
aço.
- Significa que em relação ao que nos rodeia somos apenas almas
feitas de ar.
- Não, estás a pôr tudo do avesso. É a realidade que nos
circunda que é apenas uma ilusão feita de ar.
- Tens de me explicar isso melhor.
- Então, ouve com atenção. É opinião difundida e falsa que o
espírito é algo "mais etéreo" do que o vapor, mas é exactamente o
contrário: o espírito é mais compacto do que o gelo.
- Nunca tinha pensado nisso.
- Vou-te contar uma história. Era uma vez um homem que não
acreditava nos anjos. Um dia, quando estava a trabalhar na floresta,
recebeu a visita de um anjo. Percorreram juntos um troço de estrada e,
por fim, o homem voltou-se para o anjo e disse-lhe: " Sim, tenho que
admitir que os anjos existem, mas não como nós". " O que queres dizer?",
perguntou-lhe o anjo. O homem respondeu: " Quando chegámos em frente a
um bloco de rocha, eu tive que ir à volta, mas tu passaste através dele.
E quando chegámos em frente a um tronco que tinha caído atravessado
p. 437
no caminho, eu tive que saltar por cima, e tu passaste pelo meio".
Admirado com esta resposta, o anjo disse: " Não reparaste que também
atravessámos um pântano? Aí, conseguimos ambos passar pela bruma. Isso
deve-se ao facto de termos uma consistência mais compacta do que a
bruma".
- Ah...
- O mesmo se passa connosco, Sofia. O espírito pode atravessar
portas de aço.
Nenhum tanque, nenhuma bomba pode destruir o que é feito de
espírito.
- Parece tão estranho!
- Vamos passar por Risõr dentro em pouco, e arrancámos há menos
de uma hora. Gostaria muito de tomar café.
Quando chegaram a Fiane, mesmo antes de S0ndeled, viram do lado
esquerdo uma estação de serviço que se chamava " Cinderela". Alberto
virou e estacionou o carro na relva.
No café, Sofia tentou tirar da arca frigorífica, uma garrafa de
coca -cola mas esta não se moveu. Parecia estar colada. Um pouco mais à
frente, Alberto tentava deitar café num copo de papel que tinha
encontrado no carro. Tinha apenas que premir um botão, mas, apesar de
todos os esforços, não conseguiu. Ficou tão furioso que se voltou para
os que estavam no café e pediu ajuda. Visto que ninguém reagia, pôs-se
a gritar tão alto que Sofia teve que tapar as orelhas.
- Quero um café!
A sua cólera evaporou-se rapidamente e, pouco depois, ele não
parava de rir.
- Não podem ouvir-nos, e é óbvio que não nos podemos sequer
servir do café - explicou a Sofia. Estavam para sair quando uma mulher
muito velha se levantou e foi ao seu encontro. Trazia uma saia vermelha
cor de fogo, um casaco de malha azul esverdeado e na cabeça um lenço
branco. Tanto as cores como a sua figura eram muito mais nítidas do que
tudo o que havia naquele café.
Dirigiu-se a Alberto e disse:
- Como gritas, meu rapaz!
- Desculpe.
- Disseste que querias café?
- Sim, mas...
- Temos aqui perto um pequeno estabelecimento.
Saíram do café com a mulher e foram por um caminho atrás da
estação de serviço. Entretanto, ela perguntou:
- Vocês são novos aqui?
- Temos de o admitir - respondeu Alberto.
- Sim, sim. Bem vindos à eternidade, meus filhos!
- E tu?
- Eu venho de um conto dos irmãos Grimm. Foi escrito há mais de
cento e cinqüenta anos. E de onde vêm vocês?
- Vimos de um livro de filosofia. Eu sou professor de filosofia
e Sofia é a minha aluna.
- Hi... hihi... sim, isso é novo.
p. 438
Pouco depois chegaram a uma clareira. Aí, havia várias casinhas
castanhas acolhedoras. Uma grande fogueira de
S. João ardia num largo entre as casas e à volta da fogueira
dançavam figuras coloridas. Sofia reconheceu muitas delas. Viu Branca de
Neve e alguns dos anões, João Ratão e Sherlock Holmes. Viu
também o Capuchinho Vermelho e Cinderela. Em redor da grande fogueira
tinham-se reunido também muitas figuras conhecidas que não tinham nome:
duendes e sílfides, faunos e bruxas, anjos e diabinhos. Sofia encontrou
inclusivamente um gigante autêntico.
- Que barulheira! - exclamou Alberto.
- Mas é a noite de S. João - respondeu a velha. -
Não temos um encontro assim desde a noite de Valpurgis, que
festejámos na Alemanha. Vou aqui fazer apenas uma pequena visita.
Querias café, não era?
- Sim, por favor.
Sofia reparou então que todas as casinhas eram feitas de
maçapão, caramelo e calda de açúcar. Algumas das figuras roíam as
casinhas, mas uma padeira andava entre os edifícios reparando de quando
em quando os danos. Sofia retirou um pedaço de um canto. Era mais doce e
melhor do que tudo o que já tinha provado.
A velha voltou com a chávena de café.
- Muito obrigado - disse
Alberto.
- E quanto pensam pagar pelo café?
- Pagar?
- Aqui paga-se geralmente com uma história. Pelo café basta uma
pequena.
- Nós podíamos contar a incrível história da humanidade - disse
Alberto. - Mas o problema é que estamos com muita pressa. Não podemos
voltar uma outra vez e pagar?
- Naturalmente. E porque é que têm tão pouco tempo?
Alberto contou o que planeavam e a velha disse:
- De facto vocês são uma coisa nova, mas têm de cortar depressa
o cordão umbilical que ainda vos liga à vossa origem corpórea: nós já
não estamos dependentes da carne e do sangue, pertencemos ao "povo
invisível".
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Pouco depois, Sofia e Alberto estavam novamente junto ao café Cinderela
e ao carro vermelho. Junto ao carro, uma mãe atarefada ajudava o filho a
fazer chichi. x Após algumas corridas e atalhos, chegaram rapidamente a
Lillesand.
O voo SX 876 proveniente de Copenhaga aterrou no aeroporto de
Kjevik às 21.35. Enquanto o avião estava a descolar de Copenhaga, o
major abrira o envelope que encontrara no balcão de embarque. Na folha
estava escrito:
"Major Knag enquanto entrega o cartão de embarque em Kastrup na noite de
S. João, 1990.
Querido papá: talvez tenhas acreditado que eu estava em
Copenhaga, mas o meu controlo sobre o que tu fazes é muito mais
refinado. Vejo-te por toda a parte, papá. Com efeito, entrei em
contacto com uma antiga família de ciganos que há muito tempo vendeu à
bisavó um espelho mágico de latão. E além disso, adquiri um bola de
cristal. Neste preciso instante vejo que acabaste de te sentar no avião.
Não te esqueças de apertar o cinto e manter as costas do assento na
vertical até que o sinal de Fasten Seat Belt se apague. Enquanto o avião
estiver no ar, podes baixar as costas do banco e descansar. Será melhor
estares repousado quando chegares a casa. O tempo em Lillesand está
maravilhoso, mas a temperatura anda alguns graus abaixo da do Líbano.
Desejo-te uma boa viagem.
Beijos da tua pequena bruxa, a rainha do espelho e a maior protectora da
ironia".
Albert Knag não sabia bem se estava irritado ou apenas cansado e
esgotado. Mas, de repente, começou a rir. Riu-se tão alto que os outros
passageiros se voltaram para ver. Em seguida, o avião descolou. Era a
sua vez de provar do seu próprio remédio, mas havia uma diferença
importante...
As únicas vítimas do seu remédio tinham sido Sofia e
Alberto... E essas eram apenas fantasia.
Seguiu o conselho de Hilde: inclinou as costas do assento e
adormeceu. Só acordou verdadeiramente depois de ter passado o controlo
de passaportes e quando estava no "hall" de chegadas do aeroporto de
Kjevik. Ali, foi recebido com uma manifestação. Havia oito a dez
manifestantes, a maior parte da idade de Hilde. Nos cartazes estava
escrito: "BEM -VI N D O A
C A S A, P APÁ!", "HIL DE E SPER A N O J AR DIM" E "VIV A A IR O
NI A!".
p. 440
O mais grave foi o facto de o major não poder entrar
imediatamente num táxi. Tinha de esperar pela sua bagagem. E enquanto
isso, as colegas de Hilde formigavam à sua volta, obrigando-o a ler
várias vezes todos os cartazes. Só quando uma rapariga lhe levou um ramo
de rosas é que esboçou um sorriso. Remexeu num dos seus sacos e deu a
todas as manifestantes doces. No final, só sobravam dois para Hilde.
Depois de recolher a bagagem, um jovem explicou-lhe que estava
sob as ordens da rainha do espelho e que fora encarregado de o levar de
carro para Bjerkely. As manifestantes desapareceram na multidão.
O carro foi pela E 18. Em todas as pontes e túneis estavam
pendurados cartazes: "Bem -vindo a casa!", " O peru está à espera!",
"Estou a ver-te, papá!".
Albert Knag respirou de alívio quando o deixaram em frente do
portão do jardim de Bjerkely. Agradeceu ao condutor com uma nota de cem
coroas e três latas de cerveja.
A sua mulher Marit esperava por ele à entrada da casa.
Após um longo abraço, perguntou:
- Onde está ela?
- Está sentada no cais,
Albert.
Alberto e Sofia deixaram o seu carro desportivo vermelho em
frente do hotel Noruega na praça principal de Lillesand. Faltava um
quarto para as dez. Viram junto aos recifes uma grande fogueira.
- Como havemos de encontrar Bjerkely? - perguntou
Sofia.
- Temos de procurar. Ainda te recordas do quadro na cabana?
- Temos é de nos apressar. Eu quero estar lá antes dele. Guiaram
por caminhos estreitos, mas também por cima de rochas e escolhos.
Bjerkely ficava junto ao mar, disso tinham a certeza.
De repente, Sofia gritou:
- Ali! Encontrámos!
- Acho que tens razão, mas não devias fazer tanto alarido.
- Ah, aqui ninguém nos pode ouvir.
- Querida Sofia - depois do extenso curso de filosofia, é uma
desilusão que tu tires ainda conclusões precipitadas.
- Mas...
- Parece-te que este local não tem duendes nem gigantes, nem
espíritos do bosque nem fadas...
- Desculpa!
p. 441
Naquele momento, entraram através do portão e seguiram o caminho
em frente à casa. Alberto parou na relva, junto ao baloiço. Um pouco
mais à frente, estava uma mesa posta para três pessoas.
- Estou a vê-la! - sussurrou Sofia. - Está sentada, no cais,
exactamente como no meu sonho.
- Estás a ver que o jardim se assemelha ao teu em Klõverveien?
- Sim, tens razão. Inclusivamente o baloiço. Posso sair para ir
ter com ela?
- Claro. Eu fico no carro...
Sofia correu para o cais.
Quase tropeçava e caía sobre Hilde, mas sentou-se ao seu lado
calmamente. Hilde estava a brincar com a corda do barco a remos amarrado
ao cais. Na mão esquerda segurava uma pequena folha. Via-se que estava
à espera.
Olhava constantemente para o relógio.
Sofia achou-a muito bonita. Tinha caracóis loiros -claros
- e olhos verde-esmeralda. Trazia um vestido amarelo de Verão.
Era um pouco parecida com Jorunn.
Sofia tentou falar com ela, apesar de saber que não servia de
nada.
- Hilde! É a Sofia! Hilde não reagiu.
Sofia ajoelhou-se ao seu lado e tentou gritar-lhe ao ouvido:
- Estás a ouvir-me, Hilde? Ou és cega e surda?
Não abrira mais os olhos?
Não era um pequeno sinal, mesmo que muito fraco, de que ouvia
alguma coisa? Hilde voltou-se. De repente, voltou a cabeça para a
direita e fixou os olhos de Sofia. Mas o seu olhar não estava
completamente fixo, parecia atravessar Sofia.
- Não grites tanto, Sofia
- era a voz de Alberto que vinha do carro vermelho.
- Eu não quero ficar com o jardim cheio de sereias!
Sofia permaneceu sentada em silêncio. Sentia-se bem por estar
tão perto de Hilde. Em seguida, ouviu uma voz masculina: "Hilde!". Era o
major - com uniforme e boina azul. Estava em cima, no jardim. Hilde
levantou-se de um pulo e correu na sua direcção. Encontraram-se entre
o assento suspenso e o carro desportivo vermelho. Ele elevou-a no ar e
fê-la rodopiar.
Hilde sentara-se no cais para esperar pelo pai. A cada quarto de hora
que passara desde a sua chegada a Copenhaga, ela tentara imaginar
p. 442
onde ele estava precisamente, o que estava a fazer e como se sentia.
Tinha escrito todos os horários numa folha de papel que mantivera na mão
durante todo o dia. Estaria ele zangado? Não estava certamente à espera
que tudo fosse como anteriormente depois de ter escrito para ela um
livro misterioso. Voltou a olhar para o relógio: eram dez e um quarto.
Ele podia chegar a qualquer momento. Mas o que era aquilo? Não estava a
ouvir uma respiração fraca, tal como no seu sonho com Sofia? Voltou-se.
Estava ali alguma coisa, tinha a certeza disso. Mas o quê?
Seria apenas devido à noite de Verão?
Durante alguns segundos, receou estar a ouvir alguma coisa.
- Hilde!
Olhou na outra direcção. Era o pai! Estava em cima, no jardim!
Hilde levantou-se de um pulo e correu na sua direcção. Encontraram-se
junto ao baloiço, ele elevou-a no ar e fê-la rodopiar. Hilde começou a
chorar e o major também teve de reprimir algumas lágrimas.
- Estás quase uma mulher adulta, Hilde.
- E tu um verdadeiro poeta! Hilde enxugou as lágrimas com as
mangas do vestido amarelo.
- Então, estamos quites?
- Estamos quites.
Sentaram-se à mesa. Em primeiro lugar, Hilde quis saber
exactamente o que sucedera em Copenhaga e no regresso de lá a Lillesand.
As gargalhadas sucediam-se.
- Não viste o envelope no bar?
- Eu nem sequer tive tempo suficiente para me sentar e comer
alguma coisa, minha malandra. Agora, tenho uma fome de leão.
- Pobre papá.
- A história do peru não era só uma invenção, espero.
- Não! Preparei tudo. A mamã vai trazer a comida.
Depois, falaram detalhadamente sobre o "dossier" e a história de
Sofia e Alberto. Pouco depois, estavam na mesa o peru e a salada
Waldorf, uma garrafa de vinho rosé e o pão feito por Hilde. Enquanto o
pai estava a falar de Platão, Hilde interrompeu-o subitamente:
- Chiu!
- O que é?
p. 443
- Não ouviste nada? Um ruído?
- Não.
- Tenho a certeza que ouvi alguma coisa. Deve ter sido apenas um
rato.
A última coisa que o pai disse enquanto a mãe trazia o vinho,
foi:
- Mas o curso de filosofia ainda não terminou.
- O que queres dizer?
- Hoje à noite vou falar-te do universo.
Antes de começarem a comer, ele disse:
- Hilde já é muito grande para se sentar nos meus joelhos, mas
tu não! Puxou Marit para o seu colo, e ela ficou sentada muito tempo
antes de poder comer alguma coisa.
- E pensar que tens quase quarenta anos...
Quando Hilde correu para o pai, os olhos de Sofia encheram-se
de lágrimas.
Não conseguia chegar a Hilde!
Sofia sentiu uma grande inveja pelo facto de Hilde ser uma
pessoa verdadeira, de carne e osso.
Quando Hilde e o major se sentaram à mesa, Alberto buzinou.
Sofia olhou para ele. Hilde não fizera o mesmo?
Sofia correu para Alberto e sentou-se ao seu lado no carro.
- Vamos ficar algum tempo a ver o que sucede, está bem?
- disse.
Sofia acenou afirmativamente.
- Estiveste a chorar?
Sofia acenou novamente.
- O que se passa?
- Ela tem a sorte de ser uma pessoa verdadeira... Vai crescer e
será uma verdadeira mulher. Também há-de ter filhos verdadeiros...
- E netos, Sofia. Mas tudo tem duas faces. É o que eu te queria
ensinar no início do curso.
- O que queres dizer com isso?
- Eu também acho que ela tem sorte, mas quem ganha a lotaria da
vida, ganha também a lotaria da morte, porque o destino da vida é a
morte.
- Mas não é melhor ter vivido do que nunca se viver
verdadeiramente?
- Não podemos ter uma vida como a da Hilde... bom, ou como a do
major. Em compensação, nunca morreremos. Já não te lembras do que a
p. 444
velha disse no bosque? Pertencemos ao "povo invisível". Ela disse também
que tem mais de cento e cinqüenta anos. Na festa de S. João eu vi
inclusivamente personagens que têm mais de três mil anos.
- Talvez eu inveje sobretudo esta vida familiar.
- Mas tu também tens uma família. Afinal tens um gato, dois
pássaros e uma tartaruga...
- Nós deixámos essa realidade.
- De modo algum. Foi o major que a deixou. Foi ele que pôs o
ponto final. Nunca nos voltará a encontrar.
- Achas que podemos voltar?
- Sempre que quisermos. Mas também vamos fazer novos amigos nos
bosques atrás da cafetaria " Cinderela".
A família Mõller Knag tinha começado a comer. Por um momento,
Sofia temeu que essa refeição tivesse o mesmo desfecho que a festa
filosófica no jardim em Klõverveien. O major parecia querer deitar Marit
sobre a mesa, mas limitou-se a puxá-la para o colo.
O carro estava estacionado a uma certa distância da mesa, e só
podiam ouvir o que eles diziam de vez em quando.
Olharam para o jardim, e tiveram tempo suficiente para recordar
tudo o que tinha sucedido durante a infeliz festa de Sofia no jardim.
A família Knag só se levantou da mesa por volta da meia-noite.
Hilde e o major sentaram-se no baloiço e acenaram à mãe, que ia entrar
em casa.
- Vai dormir, mamã. Temos muito que conversar.
. linha 6 - DESDE PAG 428 A 444 - 52 folha S - ABEL -FOLHA 1426
p. 445
O BIG BANG
"...nós também somos poeira de estrelas..."
Hilde sentou-se confortavelmente no baloiço, junto ao pai. Era quase
meia-noite.
Olharam para a enseada; no céu, delineavam-se as primeiras
estrelas pálidas. Ondas suaves embatiam contra as pedras, sob a doca.
O pai quebrou finalmente o silêncio:
- É uma ideia estranha, a de vivermos num pequeno planeta,
algures no universo.
- Sim...
- A Terra é um dos muitos planetas que giram à volta do
Sol. Mas o nosso planeta é o único que tem vida.
- E será o único com vida em todo o universo?
- Sim; é possível. Mas também é lícito pensarmos que o universo
fervilha de vida, porque o cosmos é extremamente grande. As distâncias
são tão grandes que as medimos em minutos-luz e em anos-luz.
- O que é que isso significa?
- Um minuto-luz é a distância que a luz percorre num minuto. E
é uma grande distância, porque a luz consegue percorrer 300,000
quilómetros no espaço, em apenas um segundo. Um minuto-luz corresponde,
por outras palavras, a 300,000 vezes 60, ou a 18 milhões de quilómetros.
Um ano luz corresponde a quase 9,5 mil milhões de quilómetros.
- A que distância está o
Sol?
- A pouco mais de oito minutos-luz. Os raios solares, que nos
aquecem o rosto num dia quente de Junho, viajaram portanto oito minutos
no espaço antes de chegarem a nós.
- Continua!
- Plutão, o planeta mais afastado no nosso sistema solar - está
afastado de nós um pouco mais do que cinco horas-luz. Quando um
astrónomo observa Plutão com um telescópio, vê na realidade
p. 446
o planeta como era há cinco horas atrás. Podemos também dizer que a
imagem de Plutão leva cinco horas para chegar até nós.
- É difícil imaginar, mas acho que compreendi o que queres
dizer.
- Bom, Hilde, mas só agora começámos a orientar-nos. O nosso
sol é uma entre quatrocentos mil milhões de outras estrelas, numa
galáxia a que chamamos Via Láctea. Esta galáxia assemelha-se a um
grande disco com muitos braços em espiral, e o nosso sol está situado
num desses braços. Se observarmos o céu numa noite clara de Inverno,
podemos ver uma larga faixa luminosa, porque olhamos para o centro da
Via Láctea.
- É por isso que, em sueco, Via Láctea se diz "via do inverno".
- A distância em relação à primeira estrela mais próxima de nós
na Via Láctea perfaz quatro anos-luz. Talvez seja aquela estrela que
vemos lá em cima, sobre aquela ilhota. Se imaginares que neste preciso
momento um astrónomo está a observar Bjerkely lá de cima com um
telescópio potentíssimo, veria Jerkely como era há quatro anos. Talvez
visse uma rapariga de onze anos, aqui sentada, e a baloiçar os pés.
- Não tenho palavras.
- Mas isso é apenas a estrela que está mais próxima de nós. Toda
a galáxia, ou "nebulosa", como também se chama, tem a extensão de 90,000
anos-luz. Significa que a luz de uma extremidade da galáxia até à outra
extremidade, leva todos esses anos a percorrê-la. Quando observamos uma
estrela na Via Láctea, que está afastada do nosso sol 50,000 anos-luz,
vemos como era há 50,000 anos.
- Esse pensamento é demasiado grande para uma cabeça tão pequena
como a minha.
- Quando observamos o espaço, observamos o passado.
Não temos outra escolha.
Nunca sabemos como o universo "é" agora. Quando observamos uma
estrela, que dista milhares de anos-luz, estamos a regressar a milhares
de anos atrás na história do espaço.
- É inacreditável.
- Mas tudo o que vemos, atinge o nosso olho sob a forma de ondas
luminosas, ondas que precisam de tempo para a sua viagem pelo espaço.
Podemos fazer uma comparação com o trovão. Ouvimos sempre o trovão algum
tempo após termos visto o relâmpago. Deve-se ao facto de as ondas
sonoras se moverem mais lentamente do que as ondas luminosas. Quando
ouço um trovão, ouço o estrondo de uma coisa que se deu há algum tempo.
O mesmo se passa com as estrelas. Quando vejo uma estrela que está a
milhares de anos-luz de distância,
p. 447
estou a ver o "trovão" de um acontecimento que se deu há milhares de
anos no passado.
- Compreendo.
- Mas até agora falámos apenas da nossa galáxia. Segundo os
astrónomos, existem cerca de cem mil milhões no universo, e cada uma
destas galáxias é formada por cem mil milhões de estrelas. A galáxia
mais próxima da Via Láctea é a nebulosa de Andrómeda: está a dois
milhões de anos-luz da nossa. Como vimos, isso significa que a luz
dessa galáxia leva dois mil milhões de anos a chegar até nós, e que,
quando observamos no céu a nebulosa de Andrómeda, vemos como era na
realidade há dois milhões de anos.
Se um astrónomo estivesse nesta nebulosa - estou a imaginar um
pobre diabo, que dirige o seu telescópio para a Terra -, não nos
consegue ver. Na melhor das hipóteses, descobre alguns homens primitivos
com cérebro minúsculo.
- Estou espantada.
- As galáxias mais afastadas, de que temos conhecimento,
encontram-se a cerca de dez mil milhões de anos-luz de nós. Quando
recebemos sinais destas galáxias, recuamos portanto "dez mil milhões" de
anos na história do universo. Trata-se do dobro do tempo da existência
do nosso sistema solar.
- Estou a ficar tonta.
- Pode ser difícil compreender o que significa ver tão longe no
passado. Mas os astrónomos descobriram uma coisa ainda mais importante
para a nossa concepção do mundo.
- Diz-me!
- Nenhuma galáxia está imóvel no espaço, mas todas se movem a
uma velocidade enorme, afastando-se umas das outras.
Quanto mais longe estão de nós, mais velozmente parecem mover
-se. Isso significa que a distância entre as galáxias se torna cada vez
maior.
- Estou a tentar imaginar isso.
- Se tens um balão e desenhas nele alguns pontos pretos, estes
afastar-se -ão cada vez mais entre si, conforme vais soprando. O mesmo
fenómeno sucede com as galáxias do universo. Dizemos que o universo se
expande.
- Qual é o motivo?
- A maior parte dos astrónomos concorda em que a expansão do
universo só pode ter uma explicação: há cerca de dezoito mil milhões de
anos, toda a matéria que constitui o universo estava concentrada num
espaço muito pequeno. A matéria era tão densa que a força da gravidade a
tornou extremamente quente. Por fim, a temperatura
p. 448
atingiu níveis tão elevados e a matéria era tão densa e compacta que
explodiu. Esta explosão é chamada o "big bang".
- Fico arrepiada só de pensar nisso.
- O "big bang" fez com que toda a matéria no universo fosse
lançada em todas as direcções; à medida que arrefeceu, formaram-se as
estrelas, as galáxias, as luas e os planetas...
- Mas estavas a dizer que o universo "continua" em expansão?
- E isso deve-se justamente à explosão que se deu há milhões de
anos. O universo não tem uma geografia intemporal. O universo é um
acontecimento, uma explosão. As galáxias continuam a mover-se no espaço
a velocidades enormes.
- E vai ser sempre assim?
- Há essa possibilidade, mas existe também uma outra: lembras
-te que Alberto falou a Sofia sobre as duas forças que permitem aos
planetas manterem constantemente as suas órbitas à volta do Sol?
- Sim, não eram a força da gravidade e a da inércia?
- A relação que existe entre as galáxias é análoga, porque
apesar de o universo continuar a expandir-se, a gravitação actua numa
direcção contrária. E um dia - daqui a alguns mil milhões de anos
- talvez a gravitação faça com que os corpos celestes se
contraiam novamente à medida que as forças provocadas por esta enorme
explosão comecem a diminuir. Teremos então uma explosão ao contrário, ou
seja, uma "implosão". As distâncias são tão grandes que isto acontecerá
lentamente. Podes compará-lo com o que sucede se deixares sair o ar de
um balão.
- Isso significa que todas a galáxias serão comprimidas até
formarem novamente um centro compacto?
- Vejo que compreendeste. Mas o que sucederá em seguida?
- Haverá provavelmente uma outra explosão que provocará uma nova
expansão do universo, porque as mesmas leis naturais continuam a agir.
Desse modo, formar-se -ão novas estrelas e novas galáxias.
- Um raciocínio correcto.
No que diz respeito ao futuro do universo, os astrónomos
previram duas possibilidades: ou o universo continua a expandir-se
eternamente e as galáxias afastar-se -ão entre si cada vez mais, ou o
universo começará a contrair-se. O factor decisivo para o que pode
acontecer é a massa total do universo; mas, até agora, os astrónomos não
tiraram conclusões definitivas.
- Mas "se" o universo tiver tanta massa que se volte a contrair,
isso não quer dizer que esses fenómenos de expansão e contracção já
aconteceram mais vezes?
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- É uma conclusão aceitável, mas também há a possibilidade de o
universo se expandir apenas uma vez. Mas se continuar eternamente em
expansão, há uma questão mais importante: de que modo terá tudo
começado?
- Como é que surgiu aquilo que explodiu de repente?
- Para um cristão, é natural considerar o "big bang" como o
momento da Criação: na Bíblia está escrito que Deus disse: "Faça-se
luz!". Talvez te lembres que Alberto explicou que o cristianismo tem uma
visão "linear" da história. A ideia de que o universo continuará em
expansão adequa-se mais à fé cristã.
- Ah!
- No Oriente, tem-se uma visão "cíclica" da história, ou seja,
a história repete-se eternamente. Na Índia, por exemplo, encontramos
uma antiga doutrina, segundo a qual o mundo continua a expandir-se e a
contrair-se. Deste modo, há uma alternância entre aquilo a que os
hindus chamam o "dia de Brahma" e a "noite de Brahma". Este pensamento
adequa-se mais à hipótese da expansão e contracção do universo, segundo
um processo cíclico eterno. Consigo ver à minha frente um grande coração
cósmico que bate constantemente...
- Para mim, ambas as teorias são incríveis e fascinantes.
- E podem ser comparadas aos pensamentos contraditórios sobre a
eternidade que Sofia formulou no jardim: ou o universo existiu sempre ou
foi criado do nada, de repente...
- Au! Hilde bateu na cabeça.
- O que é?
- Acho que fui mordida por um moscardo.
- Deve ter sido Sócrates, que tenta arrancar-te à inércia...
Sofia e Alberto estavam sentados no carro e ouviam o que o major
dizia a Hilde sobre o universo.
- Já pensaste que os papéis se inverteram complemente? -
perguntou Alberto pouco depois.
- O que queres dizer?
- Antigamente, eram eles que nos ouviam, e nós podíamos vê-los.
Agora, somos nós que os ouvimos, e eles não nos podem ver.
- Não é só isso.
- O que queres dizer?
- No início, não sabíamos que havia outra realidade, onde Hilde
e o major viviam. E agora, eles não sabem nada sobre a nossa realidade.
p. 450
- A vingança é suave.
- Mas o major podia intervir no nosso mundo...
- O nosso mundo era apenas fruto da sua intervenção.
- Não quero perder a esperança de poder penetrar também no
deles.
- Mas sabes que é impossível. Não te lembras do que aconteceu na
estação de serviço? Eu vi como tentavas retirar aquela garrafa de coca
-cola.
Sofia ficou sentada a observar o jardim, enquanto o major falava
sobre o "big bang", a grande explosão. Foi justamente aquela expressão
que a fez ter uma ideia.
Começou a remexer dentro do carro.
- O que é?
- Nada.
Abriu o porta-luvas, onde estava uma chave-inglesa, depois
saiu do carro. Foi para junto do baloiço e pôs-se em frente de Hilde e
do pai. Primeiro, tentou atrair o olhar de Hilde, mas não conseguiu. Por
fim, levantou a chave-inglesa e bateu com ela na testa de Hilde.
- Au! - exclamou Hilde. Em seguida, Sofia bateu com a chave
-inglesa na cabeça do major, mas ele não reagiu.
- O que foi? Hilde olhou para ele:
- Acho que fui mordida por um moscardo.
- Deve ter sido Sócrates, que tenta arrancar-te à inércia...
Sofia deitou-se na relva e tentou empurrar o baloiço, mas ficou
imóvel. Ou teria conseguido movê-lo um milímetro?
- Está a levantar-se um vento frio.
- Não, está uma temperatura amena.
- Não é só isso. Há alguma coisa aqui.
- Só nós dois e esta suave noite de Verão.
- Não, há alguma coisa no ar.
- O quê?
- Lembras-te do plano secreto do Alberto?
- Sim, claro!
- Eles desapareceram da festa de repente, como se tivessem sido
engolidos pela terra...
- Mais tarde ou mais cedo, a história tinha de acabar, de resto
foi uma coisa que eu escrevi.
- Sim, mas não escreveste o que aconteceu depois. Imagina se
estivessem aqui...
p. 451
- Acreditas nisso?
- Eu sinto isso, papá.
Sofia voltou a correr para
Alberto.
- Impressionante - admitiu Alberto, quando ela voltou a entrar
no carro com a chave-inglesa na mão. - Esta rapariga é dotada de
poderes raros!
O major pôs um braço à volta de Hilde.
- Estás a ouvir o som maravilhoso das ondas?
- Sim.
- Amanhã levamos o barco para a água.
- Mas estás a ouvir como é estranho o sussurrar do vento? Estás
a ver como as folhas dos choupos tremem?
- Este é o planeta vivo.
- Tu escreveste que havia alguma coisa nas entrelinhas.
- Sim?
- Talvez também haja alguma coisa nas entrelinhas deste jardim.
- Bom, a natureza está cheia de mistérios. Vamos falar sobre as
estrelas no céu.
- E em breve haverá também estrelas na água.
- Sim, e quando eras pequena chamavas-lhes "fosforescências" do
mar, e de certo modo tinhas razão, porque as fosforescências do mar e
todos os outros organismos são constituídas pela matéria que
anteriormente estava junta numa estrela.
- Nós também?
- Sim, nós também somos poeira de estrelas.
- Que palavras bonitas!
- Quando os radiotelescópios captam a luz proveniente de
galáxias que estão a vários milhares de milhões de anos-luz de
distância, mostram-nos o aspecto do universo como era nos tempos
primitivos. Vemos as galáxias mais longínquas, por assim dizer, logo a
seguir ao "big bang". Tudo o que um homem pode ver no céu, são fósseis
cósmicos que têm milhares e milhões de anos. A única coisa que um
astrólogo pode fazer é prever o passado.
- Porque as estrelas que formam as constelações se afastaram
umas das outras antes que a sua luz chegasse até nós?
- Há alguns milhares de anos, as constelações tinham uma forma
completamente diferente da que têm hoje.
- Não sabia.
p. 452
- Quando a noite é clara vemos a história do universo há
milhões, sim, há mil milhões de anos. De certo modo, voltamos a casa.
- Explica isso melhor.
- Nós também nascemos com o "big bang", porque toda a matéria do
universo forma uma unidade orgânica. Nos tempos primitivos, toda a
matéria estava concentrada numa massa tão pesada que uma cabeça de
alfinete pesava muitos milhares de milhões de toneladas. Essa "matéria
primordial" explodiu devido ao excesso de gravidade, e desfez-se em
muitos bocados. Mas quando olhamos para o céu, tentamos encontrar um
caminho que nos leve lá acima.
- É uma maneira estranha de pôr as coisas.
- Todas as estrelas e galáxias do espaço são formadas pela mesma
matéria. Parte dessa matéria comprimiu-se. Uma galáxia pode estar a mil
milhões de anos-luz de outras, mas todas têm a mesma origem. Todas as
estrelas e planetas são da mesma família...
- Estou a ver.
- E o que é essa matéria?
O que é que explodiu há milhões de anos? De onde é que veio?
- Esse é o grande mistério?
- Mas é uma coisa que nos diz respeito, porque nós também somos
feitos dessa matéria. Somos uma centelha da grande fogueira que foi
ateada há milhões de anos.
- Já tinhas dito isso.
- Mas não devemos exagerar a importância dos grandes números.
Basta agarrar numa pedra. Mesmo que fosse constituído apenas por esta
pedra, das dimensões de uma laranja, o universo seria igualmente
incompreensível. A pergunta continuaria a ser: de onde vem esta pedra?
Sofia saiu do carro vermelho e apontou para a enseada.
- Apetece-me experimentar o barco - exclamou.
- Está preso, e além disso não conseguiríamos levantar os remos.
- Vamos tentar. É o solstício de Verão...
- Bom, podemos descer até à água.
Saíram do carro e atravessaram o jardim.
No cais, tentaram soltar a amarra que estava presa a uma argola
de aço. Mas não conseguiram sequer levantá-la.
- É como se estivesse pregada - disse Alberto.
- Mas nós temos muito tempo!
p. 453
- Um verdadeiro filósofo nunca desiste. Se nós ao menos...
conseguíssemos desfazer este nó...
- Agora há mais estrelas no céu - disse Hilde.
- Sim, é o momento em que a noite de Verão está mais escura.
- Mas no Inverno são mais brilhantes. Lembras-te da noite
anterior à tua ida para o Líbano? Era o Ano Novo.
- Foi nessa altura que decidi escrever-te um livro de
filosofia. Tinha estado numa grande livraria de Kristiansand, e também
na biblioteca, mas não encontrei nada que se adequasse aos jovens.
- É como se estivéssemos no cimo de um dos pêlos da pelagem
delicada do coelho branco.
- Será que está alguém lá fora, na noite dos anos-luz?
- O barco está a andar à deriva! - exclamou Hilde.
- Sim, é verdade...
- Não entendo. Ainda antes de tu chegares fui verificar se
estava bem amarrado.
- A sério?
- Isso faz-me lembrar quando a Sofia se serviu do barco do
Alberto. Lembras-te que andou à deriva no lago?
- Vais ver que foi ela outra vez - disse o major.
- Brinca, brinca, mas durante toda a noite senti que há alguma
coisa aqui.
- Um de nós tem de se atirar à água.
- Então vamos os dois, papá.
p. 455
ÍNDICE REMISSIVO
Aasen, Ivar ........ 312
Academo ............. 78
Alberto Magno ...... 167
Alexandre Magno
(356-323 a.C) 117,
120
Anaxágoras (500 -428 a.C)........ 41,
48
Anaximandro de
Mileto ............ 36
Anaxímenes de Mileto
(c. 570-526 a.C) 36,
40
Andersen, Hans
Christian ......... 313,
334,
346
Angelus Silesius
(1624-1677) .... 125
Antístenes .......... 120
Apolo ............... 30,
54,
56
Aristipo de Cirene, 121
Aristófanes ......... 71
Aristóteles ......... 35,
61,87,97-111,117,119,
148,156,161-163,166,
180-181,186,199,208,
210,221, 232, 264, 281,
293, 311, 322, 361-362,
373, 408
Arquimedes ........... 276
Armstrong, Neil ..... 408
Asbjõrnsen, Peter
Christian .......... 312
Asclépio ............. 30
Atena ................ 30,
72
Bach, Jobann
Sebastian .......... 306
Bacon, Francis ...... 181,
197
Balder ............... 30
Beauvoir, Simone de 402,
405-406
Beckett, Samuel ..... 406
Beethoven, Ludwig
van ................. 306,
313
Berkeley, George .... 90,
133,150,208,231,232,
237,250,251-254,270,
273, 283, 287, 316, 317
Bjõrnson, Bjõrnstjerne 377
Bõhme, Jakob .......... 310
Bohr, Niels ........... 326
Breton, André ......... 390
Bruno, Giordano ....... 180
196
310
Buda ................... 242
336-337
Calderón, Pedro ....... 204
Camus, Albert ......... 406
Carlos Magno .......... 154
Chaplin, Charles ...... 407
Cristina da Suécia,
rainha ................ 208
Cícero, Marius Tullius 66,
121
Coleridge, Samuel
Taylor ............... 307
Condorcet, Marie Jean
A. N. ............... 282
Constantino, imperador 153
Copérnico, Nicolau 182-183
Dâmaris ................ 145
Darwin, Charles ....... 188
276, 360-370, 373
Darwin, Erasmus ....... 361
Darwin, Robert ........ 359
Dass, Petter .......... 204
David, rei .........140-141
Demócrito de Abdera ... 42
44, 45-48, 61, 80, 104
122-123, 148, 205, 243,
260, 299
Descartes, René ....... 201
206-216, 221-224, 231
232, 234, 235, 240,
241, 251,279,281,287,
292-293, 321, 324, 346
Dickens, Charles ..... 346
Diógenes de Sínope ... 120
Dioniso ............... 30
Diotima ............... 87
456
Dostoievski ........... 340
Dyaus ................. 136
Édipo, rei ............ 54,
71
Empédocles ........ 39-40,
42-43, 48, 79,
323-324
Engels, Friedrich 347, 352
Epicuro ..... 122-123, 346
Erasmo de Roterdão 189-190
Espinosa, Baruch ...... 201
206,208,219-226, 231
232, 251, 294, 309,
310, 321, 334
Ésquilo ................ 71
Estaline ............... 347
Eurípides .............. 71
Fichte, Johann
Gottlieb ............. 313
Ficino, Marsilio 178, 190
Franklin, Benjamin .... 366
Freud, Sigmund ........ 276
381-384 386-390, 413
Freyja ........ 27-30, 136
Freyr ............. 30, 136
Galilei, Galileu ...... 181
183-188, 210
Gigantes ...... 27-29, 30
Goethe, Johann
Wolfgang von ......... 147
309, 376
Gombrowicz, Witold .... 406
Gouges, Olympe de 283-285
Grimm, Jacob e Wilhelm
(os Irmãos Grimm) 312
438
Grundtvig, Nikolai
Frederik Severin .... 258
Gustavo III da
Suécia, rei ..... 202-203
Hamsun, Knut .......... 164
Haendel, Georg
Friedrich ............ 306
Hegel, Georg Whilhelm
Friedrich ............ 276
299, 320-329, 331, 333
334-336, 346-349, 351
402-403, 424
Heidegger, Martin ..... 402
Hefesto ............ 30, 72
Heimdall ................ 29
Henslow, John Steven 360
Hera ................... 30
Heraclito de Éfeso 37-39
48, 120, 123, 323
Hércules ................ 30
Herder, Johann
Gottfried ...... 311-312
Hermes ................ 60
Heródoto ............... 55
Hesíodo ................ 30
Hildegard von
Bingen ......... 166-167
267
Hipócrates ............. 55
Hobbes, Thomas ....... 205
Hoder .................. 30
Hoffmann, E. T. A. 313
Hollerg, Ludvig ...... 204
Homero ................. 30
Hume, David .......... 208
232, 237, 238-248, 278
279, 287, 289-290
295-296, 310, 321
324, 408, 412
Ibsen, Henrik ........ 313
335, 340
Ionesco, Eugène ...... 406
Isaías ............... 141
Jesus Cristo .......... 33
64, 66,72, 108, 114
126, 135, 141-144, 146
152,160, 163, 219, 220
281, 336, 347
Júpiter ............... 136
Kant, Immanuel ....... 208
237, 276, 278, 286-291
293, 295-298, 301-302
303, 307, 310, 320
321, 323, 340
Kepler, Johannes 183, 186
Kierkegaard, Soren ... 276
299, 334-340, 346, 401
403, 408
Lamarck, Jean de ..... 361
364-365, 370
456-57
Lamettrie, Julien
Offray de ........... 205
Landstad, Magnus ..... 312
Laplace, Pierre Simon
de .................. 205
Leibniz, Gottfried
Wilhelm Freiherr von 206
208, 232, 334
Leonardo da Vinci .... 190
Lenine ................ 347
Loki ................28-29
457
Locke, John ........ 208
232, 233, 234, 235
236, 239, 251, 279, 287
Luís XIV de França,
rei ................ 200
203, 236
Lucas, apóstolo ....... 64
Lutero, Martinho 189-190
Lyell, Charles 362-364
Malthus, Thomas .... 366
Maomé ............... 155
Mao Tse-Tung ...... 347
Marco Aurélio ...... 121
Marx, Karl ......... 276
346-356, 357-359, 403
Mateus, apóstolo .... 64
Mill, John Stuart 236
Mirandola, Giovanni
Pico della ........ 178
Moe, Jõrgen ........ 312
Montesquieu, Charles 236
278-279
Newton, Isaac ...... 183
186-188, 196
205, 279, 281
Nietzsche, Friedrich 402
403
Njõrd ............... 136
Novalis ........ 307-310
314
Odin ................ 28
30
Olaf da Noruega,
rei ................ 154
\õverland, Arnulf ... 396
Parménides ....... 37-39
42, 46
Paulo, apóstolo ...... 72
144-146, 152
159, 221, 229
Pégaso .............. 240
Pítia ............... 54
Platão ............... 61
63, 75,76-87, 89
95, 98-100, 107-108
115, 117, 119, 124-126
135, 137, 143, 148, 153
155-156,158, 162-163
207,209-212, 229, 232
263, 264, 322, 349
361-362
Plotino ........ 123-126
135, 137, 265, 309
Protágoras de Abdera 62
Radhakrishnan ....... 12
Rawls, John ........ 356
Rousseau, Jean -Jacques .......... 237
278-280, 309
Ruskin, John ....... 369
Russell, Bertrand .. 246
Salomão, rei ........ 140
Santo Agostinho 157-162
207, 214
Sartre, Jean-Paul 276
402-404, 408, 416
Saul, rei ........... 140
Schelling, Friedrich
Wilhelm ........... 310
313, 316, 322, 336 346
Schiller, Friedrich 307
Séneca .............. 121
Shakespeare, William 203
Snorri, Sturlason .. 136
154
Sócrates ............ 61
63-68, 75-79, 85, 87
115, 117, 119-121, 123
143, 148, 163, 207-208
212, 216, 221, 232, 261
279, 337, 340, 346
449-450
Sófocles ............ 71
Steffens, Henrik ... 310
S. Tomás de
Aquino ....... 161-163
165-166, 175, 208, 214
293, 408
Tales de Mileto 35-36
40
Thor ............ 27-30
Trym ............ 28-29
Tucídides ......... 55
Tyr ............... 136
Vénus ............. 136
Vinje, Aasmud O. 326
Vivekananda, Swami 126
Voltaire ......... 237
278-279
Welhaven, Johann
Sebastian ......... 308
Wergeland, Henrik 222
308, 310
Xenófanes de Crípton 30
Xerxes .............. 71
Zenão de Crípton 120
Zeus ........... 30-136
459
ÍNDICE GERAL
O JARDIM DO ÉDEN
. algo teria de surgir
a certa altura do nada... 9
A CARTOLA
. para nos tornarmos
bons filósofos precisamos unicamente da capacidade
de nos surpreendermos... 16
OS MITOS
. um equilíbrio precário
de poderes entre as forças
do bem e as do mal... .... 26
OS FILÓSOFOS DA
NATUREZA
. do nada, nada pode
nascer... ............. 32
DEMÓCRITO
. o brinquedo mais
genial do mundo... ..... 44
O DESTINO
. o adivinho procura
interpretar algo que, na
realidade, é obscuro... 49
SÓCRATES
. a pessoa mais sábia é
aquela que sabe que não
sabe... ............. 57
ATENAS
. e das ruínas
elevaram-se edifícios imponentes... ............... 70
PLATÄO
. uma saudade de
regressar à verdadeira origem... .............. 75
A CABANA DO MAJOR
. a rapariga do espelho
piscou ambos os olhos... 89
459-60
ARISTÓTELES
. um homem meticuloso e metódico que queria pôr em
ordem os conceitos dos homens... ............. 97
460
O HELENISMO
. uma centelha do
fogo... ............ 112
OS POSTAIS
. eu imponho a mim
mesmo uma severa
censura... ........... 128
DUAS CULTURAS
. só assim não
flutuarás no vazio... 135
A IDADE MÉDIA
. percorrer apenas uma
parte do caminho não
significa enganar-se... 148
O RENASCIMENTO
. ó estirpe divina em
vestes humanas... .... 168
O BARROCO
. da mesma matéria de
que são feitos os
sonhos... .......... 193
DESCARTES
. ele queria remover
todos os velhos materiais
do terreno de
construção... ........ 207
ESPINOSA
. Deus não é um titereiro... .............. 219
LOCKE
. tão vazia como um quadro
antes de o professor entrar na
sala de aula... .... 228
HUME
. então lançai-o à fogueira... .............. 237
BERKELEY
. como um planeta que
gira vertiginosamente à
volta de um sol incandescente... ............ 250
Bjerkely
. um espelho mágico
antigo que a bisavó
comprara a uma cigana... 255
O ILUMINISMO
. desde a produção de
agulhas até à fundição
de canhões... ...... 269
KANT
. o céu estrelado
acima de mim e a lei
moral dentro de mim... 285
O ROMANTISMO
. o caminho misterioso conduz ao interior... ..... 303
HEGEL
. o que é racional é
real... ............ 319
KIERKEGAARD
. a Europa está a
caminho da bancarrota... 330
MARX
. um fantasma assombra
a Europa... ....... 341
DARWIN
. um barco que
atravessa a vida com
uma carga de genes... 357
FREUD
. um desejo horrível,
egoísta, emergira
nela... ........... 379
O NOSSO TEMPO
. o homem está
condenado à liberdade... 395
A FESTA NO JARDIM
. um corvo branco... 416
CONTRAPONTO
. duas ou mais melodias
soam simultaneamente... 428
O BIG BANG
. nós também somos
poeira de estrelas... 445
ÍNDICE REMISSIVO ... 455
Repassando em anexo alguns livros.
--
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Mania de Livros
Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos.
(Antoine de Saint-Exupéry)
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