domingo, 2 de outubro de 2011 By: Fred

Lançamento Arcanjo Micael - A Quarta Praga - Edgar Wallace

EDGAR WALLACE

A QUARTA
PRAGA

Tradução de ADOLFO AMARANTE RIBEIRO

Editora ITATIAIA Limitada

PRÓLOGO

A umas sessenta milhas ao sul da cidade de Florença e à
distância tríplice, ao oeste de Roma, descansando sobre três
formosas colinas, acha-se situada Siena, talvez a mais -
soberba das cidades da Toscana.
Sobre o Terzo de la Cità, encontra-se o Palácio Festini.
O edifício ergue-se solitário, em sua sombria e arruinada
magnificência. Contemplando-o do Batístério de San
Giovani, que fica adjacente, tem-se a impressão de que um
fragmento se desprendeu e desgarrou do sacro edifício e
transitou da cólera súbita para decair no abandono atual.
No Palácio, em sua penosa grandeza, viviam os Festini, que
pretendiam descender nada mais nada menos do que de
Guido Novelio, de quem o arqueologista Compagni
escrevera certa vez: «Il conte Guido non aspetto il fine, ma
zanza dare colpto di spadna al parti.»
Os Festini eram uma família cujo nome, ao ser
simplesmente enunciado, tornava imóvel a face da aobreza
italiana. Se um se punha a elogiá-los, aceitava-se
cortêsmente o elogio. Se alguém censurava-os escutava-se a
acusação em silêncio. Se alguém, entretanto, atrevia-se a
interrogar a respeito de sua hierarquia, podia-se ter a certeza
de que a pergunta, desde Milão até Roma, provocaria
imediatamente uma mudança de assunto da conversação.
Qualquer que tivesse sido o vínculo de parentesco dos
Festini com: Guido, o Covarde, podia-se assegurar que seus
herdeiros alardeavam o mesmo método de ação dos
Polomei, dos Salvani, dos Ponzi, dos Piccolomini e dos
Forteguerri.
— «O Conde Guido não esperou seu fim e partiu sem haver
dado uma só cutilada com sua espada».
As «vendettas» da Idade Média voltavam a sei revividas e
sustentadas por êstes produtos da civilização do século XIX e
o velho Salvani Festini ultrapassara (e isso era notoriamente
evidente) o raio dos próprios rancores de família, para aliar-
se ativa ou simpaticamente a cada uma das sociedades que
ameaçavam a todos os bons governos da Itália.
Era uma tarde bastante quente dos últimos dias do mis de
junho do ano de 1899, quando um homem e dóis jovens
estavam sentados diante da mesa de refeições, na sombria
sala de jantar do Palácio.
O homem, sentado à cabeceira da mesa, tinha, apesar dos
anos, os ombros bem largos e tdda a aparência de uma
criatura de vigorosa vitalidade.
A cabeça leonina, coroada de grande massa de cabelos
grisalhos, destacava-lhe a personalidade, mesmo que não
possuísse a farta barba, que lhe caia por sobre o casaco de
veludo negro.
Apesar de tdda a sua aparência patriarcal, havia no rosto
pálido, na fineza dos olhos, que olhavam por baixo de farta
sobrancelha, algo de sinistro e ameaçador.
Comia em silêncio, não se perturbando sequer em responder
as perguntas que lhe eram propostas.
O moço, sentado à sua direita, era um formoso jovem de
dezessete anos e tinha essa compleição marfínea e essa
perfeita e definida feição patrícia, que caracterizam a
nobreza italiana. Seus olhos, castanhos e brilhantes, a
delicadeza da boca, seu quase efeminado queixo
evidenciavam, claramente, a raça de onde provinha.
Já o outro jovem, sentado do lado oposto, era quatro anos
mais velho. Achava-se na idade em que a mocidade caminha
para o pleno desenvolvimento e tinha, marcadas em seu
contorno facial, tddas as particularidades próprias de sua
condição. Era de aspecto débil, de queixo estreito e somente
a severa fixidez dos olhos graves salvava-o de uma fealdade
positiva.
— Mas, pai — perguntou o mais jovem dos dois, — que o
leva a pensar que o Governo suspeita de que o senhor esteja
informado a respeito da «Mão Vermelha»?
O mais velho dos dois jovens nada disse, mas seus olhos
inquisitores fixaram-se em seu pai.
Salvani Festini pareceu voltar o pensamento ao momento
premente e sentiu uma espécie de estremecimento.
— Que disse? — perguntou.
Sua voz era grossa, mas não desagradável, quando se dirigiu
ao jovem. E o brilho de um orgulho inconsciente, que se
refletiu em seus olhos ao fitar o rapaz suavizou, em parte, a
severa expressão de sua fisionomia.
— Estou muito bem informado, meu filho, — disse em
brando resmungo. — Bem sabe que disponho de excelentes
informantes. Os carabineiros estão dando prosseguimento às
suas investigações e esse infernal amigo seu, — disse,
voltando-se para o mais velho dos dois jovens, — está à
frente das investigações.
O jovem, a quem ele se dirigiu, esboçou um sorriso.
— Quem é? — perguntou incertamente.
O ancião olhou para o filho com suspeita.
— Tillizini, — respondeu de maneira breve. — O velho
louco... porque não poderá ficar tranqüilo com seus livros e
com suas conferências...?
— Foi muito bondoso para comigo, — disse o mais velho dos
dois. Falava com reflexão, muito pensativamente. — Sinto
muito que o aborreça pai, mas esta é precisamente sua
fraqueza... a investigação de crimes...
— Crime! — protestou o ancião. — Como pode atrever-se,
meu filho, sentado à minha própria mesa, a qualificar como
crime as ações da «Mão Vermelha»?
Seu rosto tornou-se rubro de raiva e olhou para seu rebento
com tanta maldade, que essa centelha de furor teria feito
estremecer a outro homem mais susceptível.
Antonio Festini, porém, possuía muitas qualidades que não
são muito comuns a seus compatriotas. A fleuma e a atitude
mental de impassibilidade eram-lhe inatas. Não se sentiu
nem inquieto, nem embaraçado diante desta nova expressão
de desagrado do pai. Conhecia bem e desculpava o
favoritismo que seu pai demonstrava para com seu irmão
mais jovem, Simone. E isto não o levava a gostar menos do
irmão e não provocava tampouco nele nenhum sentimento
de rancor para com o pai. Continuou, pois, tranqüilo. Algum
remoto antepassado, imperturbável e frio, talvez carregando
nas veias uma dose de sangue ainda mais frio, devia ter
transmitido a esse jovem impassível, alguma coisa do seu
poder de auto-domínio.
Bem sabia que seu pai odiava o velho professor de
Antropologia de Florença, porque os Festini, até os dias
atuais, mantinham o mesmo espírito da antagonismo, que os
sienenses de quinhentos anos atrás, demonstravam sempre
contra os florentinos.
Em Siena, havia escolas suficientes. A cidade contava com
um estabelecimento famoso por seus advogados e doutores.
Simone cursava suas aulas e o que era bom para ele devia ser
bom também para Antônio.
O filho mais velho, porém, escolhera Florença, com essa
deliberação própria, tão peculiar nele, desde os dias de sua
infância e, apesar de toda a oposição de seus antepassados,
desrespeitou a tradição dos Festini e foi a Florença a fim de
aperfeiçoar seus estudos.
Tillizini, o notável homem de ciência, concebeu uma
profunda amizade pelo rapaz. Tomou-o sob sua proteção,
formando-o pela sua escola, tão tortuosa, tão irregular e tão
pouco conseqüente.
Tillizini era um mestre no estudo do crime e possuía um
conhecimento enciclopédico dos homens.
Estava à disposição das polícias secretas de um a outro
extremo da Itália e, segundo os rumôres circulantes, eram
enormes as somas de dinheiro que recebia dos governos de
outras nações.
Foi o próprio Tillizini que se dedicou voluntariamente, a dar
com a pista da «Mão Vermelha», que durante tantos anos
aterrorizara o Sul da Itália e que acabava de estender suas
operações à região sententrional.
E era lamentável o fato de que suas atividades estivessem
coroadas de êxito. Suas investigações levaram-no a dar com
a pista de nada menos que a pessoa do considerado Mateo
degli Orsini, o advogado romano, que durante tantos anos
dirigira as operações de uma das mais poderosas ramificações
da «Mão Vermelha».
Havia uma sensação de temor no peito do ancião, mas ele
era também um Festini de primeira água e não poderia
demonstrar temor, embora fôsse o medo que lhe aumentava
a fúria.
— Ainda ouvirá uma história diferente a respeito deste
Tillizini, — murmurou, — não se esqueça disto, Antônio.
Algum dia, encontrá-lo-ão morto: uma faca no coração, ou
com a garganta cortada ou com uma ferida de bala, no meio
da cabeça... quem, sabe...? «A Mão Vermelha» não é uma
organização com a qual se possa brincar.
Olhou longa e insistentemente pata seu filho.
Simone inclinou-se para a frente, os cotovelos sobre a mesa,
o queixo nas mãos e fitou o irmão com interesse
desapaixonado.
— O que Tilizini sabe sobre mim? — perguntou o ancião de
improviso. — Que foi que você lhe disse?
Antônio sorriu.
— Essa é uma pergunta abusda, pai, — disse-lhe. — Chegou
a pensar que eu falaria a seu respeito com o senhor Tillizini?
— Por que não? — disse o outro, como se protestasse. —
Oh! Sei como você é. Você herdou alguma coisa de sua mãe.
Esses Bonnichi seriam capazes de vender tuas esposas a
troco de uma centena de liras!
Nem mesmo essa referência à sua própria mãe conseguiu
modificar a serenidade do jovem.
Continuou sentado com as mãos metidas nos bolsos, a
cabeça um pouco inclinada para a frente, olhando para seu
pai, friamente, com especulativa curiosidade.
Durante minutos, permaneceram, assim, entreolhando-se
mutuamente e o mais jovem, sentado do outro lado, olhava
também do pai para o irmão, deste para aquele,
alternativamente, com vivo interesse.
Finalmente, o ancião retirou o olhar com um gesto de
enfado.
Antônio inclinou-se sobre a mesa, servindo-se de um cacho
de uvas de uma grande travessa, com a mão e nem o gesto
de fastio, nem o temor tizeram-no perder a serenidade. O
velho voltara a falar com seu filho favorito.
— De hoje até amanhã, você pode esperar a visita do «birri»,
— disse. — Virão procurar pelos papéis. Uma récua de sujos
napolitanos entrará nesta casa, para dar busca. Suponho que
você esteja desejando que eu convide seu amigo Tillizini
para jantar? — perguntou, olhando para o outro com um
trejeito de desdém.
— Quanto a isto, faça o que melhor lhe agradar, pai, muito
me agradaria que o convidasse...
— Se lhe agradaria! — disse o ancião. — Se eu tivesse a
certeza de que esse velho cachorro se afogaria, não vacilaria
um minuto em fazê-lo. Conheço seu Tillizini, —
acrescentou desagradavelmente. — Paulo Tillizini... — E
deu um sorriso, mas não havia nenhuma nota alegre em sua
fisionomia.


Antônio levantou-se da mesa, dobrou o guardanapo em um
quadrado e deixou-o descuidosamente entre os copos
venezianos, que estavam à sua frente.
— Tenho sua licença para me retirar? — perguntou, com
cerimoniosa inclinação de cabeça.
Fazendo outra inclinação, diante de seu irmão, o jovem
retirou-se da sala de jantar.
Atravessou o sombrio e imponente vestíbulo e
encaminhou-se para a pesada porta do Palácio.
Um criado de libré abriu-a para ele e o jovem saiu à plena
luz do dia.
A emanação do calor da rua chegava até ele, como se fosse o
de uma fornalha acesa.
Não tinha plano definido para passar a tarde, mas, achava-se
ansioso para evitar novos conflitos com seu pai e ainda que
não aprovasse a associação que sua casa formara com tantas
quadrilhas de bandidos e culpados, que tiranizavam toda a
Itália, sentia-se ansioso por encontrar um modo pelo qual
pudesse evitar a terrível desgraça que ameaçava cair sobre
todos.
No que a ele se referia, não entrava em linha de
consideração o seu sentimentalismo. Chegara a um ponto
desde o qual podia considerar, não só a seu pai, como
também a seu irmão mais moço (tão ansioso estava por
ajudá-los e tão desejoso, ao mesmo tempo de que chegasse o
dia em que pudesse tomar parte ativa nas operações da Liga),
como se fossem pessoas afastadas de todos os seus afetos.
Era muito natural que seus passos o conduzissem até a
Piazza del Campo.
Siena inteira encaminhava-se para este lugar histórico, com
seus pavimentos de coloração vermelha e a inevitável
associação que recordava seus triunfos e processos famosos.
Deteve-se junto ao pavimento central que marca a trajetória,
do Pallio, completamente absorto em seus pensamentos,
sem notar os olhares curiosos que se fixavam em sua
direção.
Porque, apesar do calor reinante, toda Siena parecia estar na
rua.
Se, contudo, estivesse menos absorvido, em seus
pensamentos e apreensões, parecer-lhe-ia curioso que os
sienenses, que sempre dedicavam estas horas ao repouso da
sesta, se agrupassem na praça e nas ruas, numa tarde tão
quente como aquela, do mês de junho.
Enquanto se encontrava parado ali, abstraído e meditativo,
ouviu que o chamavam suavemente, às suas costas.
Tirou o leve chapéu de feltro que usava e, sorrindo,
estendeu a mão.
— Não esperava ter o prazer de vê-lo, senhor Tillizini, —
disse.
O prazer do encontro, não obstante, ficou estragado pouco
depois, ao certificar-se, com alguma contrariedade, de que a
visita do professor estava sombriamente relacionada com as
atividades de sua casa.
Nessa época, o professor Tillizini andava beirando a casa dos
oitenta anos.
Alto como um álamo, seu rosto ascético e alongado, via-se
iluminado por dois olhos de mirar muito vivo, que eram um
perfeito reflexo de sua alma.
Deu o braço a seu pupilo e a passo lento e vagaroso,
conduziu-o através da praça.
— Meu caro Antônio, — disse-lhe com grave afeição, —
vim vê-lo, porque o governo deseja certas informações...
Apesar de ainda não lhe haver dito, você sabe que estamos
fazendo investigações sobre certa organização.
Pousou sua fraca e branca mão no ombro do jovem e
deteve- se para fitá-lo bem no rosto, com intensa atenção.
— Antônio, — prosseguiu lentamente, — essa investigação
conduz diretamente a seu pai e às atividades que ele vem
desenvolvendo.
O outro fez um sinal de assentimento.
— Já sei, — disse simplesmente.
— Agrada-me que já o saiba, — disse Tillizini, com um
suspiro de alívio. — Isso preocupou-me sobremaneira. Há
muito tempo desejava dizer-lhe que seria inevitável uma
investigação semelhante, mas pensei que não cumpriria meu
dever para com o Estado, se lhe falasse disto.
Antônio sorriu um pouco tristemente.
— Não tem importância, — disse. — Na realidade, meu pai já
o sabe e já está esperando pela visita do senhor.
Tillizini concordou com um movimento de cabeça.
— Isso era o que eu desejava também, — afirmou, — ou,
para ser ainda mais franco, confiava em que seria assim,
porque um policial esperado é um policial derrotado, —
acrescentou com um sorriso.
Continuaram caminhando em silêncio e de repente...
— O senhor está mentalmente satisfeito por saber que meu
pai acha-se complicado nessas coisas? — perguntou
Antônio.
O ancião olhou para êle um tanto severamente.
— Você por acaso não o está também? — perguntou-lhe.
O herdeiro dos Festini não respondeu. E como se fosse por
mútuo acordo, ambos mudaram o tema da conversa e
falaram de outros assuntos.
O velho aristocrata estava aguardando a chegada dos
funcionários da Polícia, isso era o que Antônio estava
supondo.
Falaram do Colégio de Florença e de amizades mútuas. Em
seguida, por etapas sucessivas, o professor desviou a
conversação para seu tema favorito, o tópico do trabalho de
tôda sua existência.
— Não é verdadeiramente lamentável, — disse, — que
tenho chegado a esta idade, Deus não me dê outros cem
anos de vida?
Sorriu e encolheu os ombros.
— No fim de cujo prazo, eu havia de requerer outros cem a
mais, — acrescentou filosoficamente. É muito certo que não
podemos realizar nossos desejos. A mim, me satisfaria, —
continuou dizendo, — possuir um filho que desse
prosseguimento à minha tarefa. Nesse particular, tampouco
pude ver satisfeitos os meus desejos, é certo, devo admiti-lo,
— disse com aquela ingenuidade que era seu encanto, —
que não me preocupei, no devido tempo, — em arranjar
uma esposa. E isso foi um descuido pelo qual me vejo
duramente castigado!
Deteve-se, no momento em que um alto oficial, que usava
uniforme dos carabineiros, atravessava a Piazza del Campo e
Antônio Festini separou-se, instintivamente, do lado de seu
mestre.
Os dois conversaram e, pouco depois, fazendo ao jovem
uma ligeira inclinação de cabeça, vendo passar uma sombra
por seus olhos, Tillizini acompanhou o oficial em direção ao
Palácio Festini.
Antônio ficou observando-o, até perdê-lo de vista. Em
seguida, reiniciou seu passeio pelos arredores da praça, as
mãos nas costas, a cabeça caída sobre o peito.
Tillizini acompanhou o alto funcionário policial até à
residência dos Festini.
Bateu a aldraba que se colocava ao lado da porta e, segundos
depois, eram introduzidos no vestíbulo.
Foi admitido com toda a cerimônia, que sua hierarquia tinha
direito — porque, não era um oficial de carabineiros quem o
acompanhava e esse oficial não o tratava com toda
deferência? Fizeram-nos passar para o grande salão dos
Festini.
O aposento estava desprovido de móveis. Os antigos
esplendores das pinturas do teto apareciam apagadas e
difusos. O outrora formoso chão de mármore estava
quebrado em muitos lugares, não tendo sido feita nenhuma
tentativa para consertá-lo. As poucas e velhas cadeiras e a
mesa francesa, que haviam sido encostadas â parede,
pareciam perdidas nessa solidão de mármores gelados.
Poucos instantes depois, apareceu o Conde Festini.
Continuava vestido com o paletó e o colete de veludo.
Usava culote de montar, que tanto ele como seu filho
costumavam vestir, invariavelmente, porque ambos eram
ótimos cavaleiros e só tinham esse gosto em comum.
Cumprimentou Tillizini, com uma inclinação de cabeça, que
o professor prontamente correspondeu.
— Estou à disposição de sua excelência, — disse
formalmente e ficou esperando.
— Conde Festini, — falou Tillizini, — vim cumprir missão
bem desagradável.
— É lamentável, — respondeu o Conde Festini, secamente.
— É de meu dever cientificá-lo de que me foi recomendado
que procedesse a um exame de seus documentos,
pessoalmente.
— Isto não só é lamentável, como ultrajante, — disse Festini,
mas não com os sinais de irritação que o oficial de
carabineiros, cujos dedos brincavam nervosamente com o
apito para chamar seus companheiros, esperara.
— Não desejo, — continuou Tillizini, — que esta revista se
torne mais desagradável a sua excelência do que o
estritamente necessário e, por isso, peço-lhe que me
considere mais como um amigo que deseja limpar seu nome
das acusações que...
— Será melhor que poupe suas palavras, — disse secamente
o Conde Festini. — Eu conheço-o, Paulo Tillizini. Pensei
que fôsse um cavalheiro e por isso confiei-lhe a educação de
meu filho. Vejo, entretanto, que não passa de um esbirro!
Nestes dias, — disse com um encolher de ombros, — a
nobreza italiana, e se não estou enganado, você provém da
casa de um dos Buonsignori...
Tillizini fêz um gesto de assentimento.
— ...nestes dias, — prosseguiu dizendo Festini, — é
necessário, segundo entendo, que nossa decaída nobreza
encontre meios para prover suas filhas casadoiras do
necessário.
— Em meu caso, — disse Tillizini, — isso não é necessário.
Falou suavemente e com calma. Cada uma das palavras que o
Conde Festini pronunciava era, pelo código de honra dos
dois homens, um insulto mortal.
Tillizini manteve, entretanto, a mesma tranqüilidade de
aparência que Festini vira tão lamentavelmente reproduzido
em seu filho.
— Só posso acrescentar isso, — seguiu dizendo o ancião, —
quaisquer que sejam os abismos a que possa haver descido
um membro da nobreza, para ajudar o Estado a fazer justiça
com os homens que desafiaram abertamente as leis do país,
é possível, senhor, que um homem caia ainda mais baixo e
se converta num desses bandidos que praticam atos
abomináveis e cruéis, obrigando a que comece a se mover a
máquina da lei?
Falou com aquele tom desapaixonado que lhe era peculiar e
no rosto do Conde apareceu um enrubescimento
pronunciado.
— Pode revistar como quiser, — disse-lhe. — Minha casa
está à sua disposição. Aqui estão as chaves.
Tirou do bôlso uma argola de aço, com uma dúzia de chaves.
Tillizini não fêz nenhum gesto para tomar as chaves.
— Se tiver a bondade de me conduzir a seu dormitório, não
o incomodarei com maiores buscas.
O Conde Festini vacilou durante um segundo. Uma rápida
nuvem de temor passou-lhe pelo rosto.
Em seguida, com uma inclinação de cabeça, estendeu a mão
para a porta.
Acompanhou-os até ao vestíbulo e começou a subir as
escadas. Seu quarto era amplo e dava para a rua. Estava tão
pobremente mobiliado, como o resto da casa.
Tillizini fechou a porta, ao passar e o oficial ficou parado
junto dela, como para impedir a saída de alguém.
— Aqui estão minhas chaves.
— Muito obrigado, não tenho necessidade delas, — disse
Tillizini. Colocou-se diante do Conde com toda sua estatura
e prosseguiu com delicadeza: — Creio que será melhor
informá-lo do que sei. Há quatro dias, foi preso um homem,
no momento em que colocava uma bomba sobre a linha
férrea, que vai de Roma a Florença. Aparentemente, tratava-
se de um novo recruta. Mas, depois de preso, soube-se que
era um homem que ocupava lugar de destaque nos concílios
do ramo florentino de sua excelente sociedade.
Festini nada disse. Escutava cheio de interesse.
— De certo modo, — continuou falando Tillizini, — este
homem descobrira muitos segredos que, estou convencido,
a «Mão Vermelha» não tinha nenhuma intenção de revelar.
Tive ocasião de atuar como secretário de um dos chefes de
sua Ordem. De todo modo, sabia que certos documentos,
que o incriminavam e a uma quantidade de pessoas
influentes da Itália, achavam-se escondidos nesta casa.
— Realmente? — perguntou Festini, com frieza. — Em
verdade, o senhor dispõe das chaves e poderá verificar por si
mesmo, a realidade da declaração de seu informante.
De novo, Tillizini não fez nenhuma tentativa para tomar as
chaves que o outro lhe oferecia.
— Sabia ao certo o que informava, — disse lentamente. —
Indicou-me um lugar oculto, que suponho que seja só de seu
conhecimento e dos chefes da quadrilha.
Caminhou até um canto do aposento, aonde havia quatro
basculantes que iluminavam o interior. Entre a segunda e a
terceira janelas pendia um quadro, rodeado por grande
moldura dourada. Passou suavemente uma das mãos pelo
canto do quadro.
Encontrou o que procurava e fez pressão.
Imediatamente, abriu-se o fundo da valiosa moldura, como
se fosse um estreito caixão.
Festini ficou observando-o, sem fazer movimento algum,
enquanto se apoderava de um rolo de documentos que
estavam escondidos ali.
Tillizini examinou-os ràpidamente, à luz da janela e
guardou- os com todo cuidado no bolso interior de seu
casaco.
Olhou para Festini detidamente, mas, antes que pudesse di-
zer qualquer coisa, abriu-se a porta e Simone entrou no
aposento.
Caminhou diretamente para o lado de seu pai.
— Que é que aconteceu? — perguntou, pondo os olhos
angustiados em seu pai.
— Não houve nada, meu filho, — disse o Conde Festini.
Colocou a mão sobre a cabeça do filho e sorriu.
— Será melhor descer e esperar lá, até que termine meus
negócios com sua excelência.
O jovem vacilou.
— Por que deverei sair? — perguntou.
Pressentia o perigo e custava a se mover. Olhou de um para
outro dos presentes, com aparente calma. Mas, estava alerta
e sua atitude era a de um verdadeiro felino.
— Se me acontecer alguma coisa, Simone, — disse o Conde
Festini Suavemente, — quero que saiba que provi
amplamente suas necessidades e que há uma provisão que é
a maior de todas que lhe posso oferecer: a proteção e a
amizade e, como espero, mais tarde, a direção dos camaradas
que saberão servi-lo muito bem. E, agora, desça.
Inclinou-se e beijou o filho na face.
Simone retirou-se. Seus olhos estavam secos, mas cheios de
compreensão.
Em baixo, no vestíbulo, encontrou-se com o irmão, que
acabava de regressar da praça.
— Venha para cá, Antônio, — disse o mais jovem,
severamente .
Dirigiu-se para a sala, onde, uma hora antes, os três haviam
almoçado.
— Nosso pai foi preso, segundo creio, — disse friamente,
como se estivesse fazendo o relato de um acontecimento
trivial. — Penso também que sei o que acontecerá, depois.
Agora, desejo perguntar-lhe uma coisa: qual será sua atitude,
no caso de que eu venha a continuar a tarefa de meu pai?
Seus olhos estavam brilhantes e excitados. Parecia que, de
repente, se transformara num homem, ao ter certeza das
responsabilidades que o esperavam.
Antônio olhou-o tristemente.
— Seguirei o caminho reto, Simone, — disse-lhe com toda
calma. — O caminho que seja honesto e decentse, será o
que seguirei .
— Buono! — disse o outro. — Então, a menos que Deus
opere um milagre, nos separaremos aqui, você para seu
destino e eu, para o meu!
Deteve-se. De repente, empalideceu e ao olhar para ele,
Antônio acreditou ver gotas de suor em sua fronte.
— Que está sentindo? — perguntou e deu um passo em sua
direção, mas o irmão obrigou-o a retroceder.
— Não é nada, — disse, — não é nada!
Mantinha-se ereto, rígido, com o formoso rosto erguido,
com os olhos fixos nas decorações descoradas do teto.
Porque, naquele instante, ouvira o estampido de revólver,
abafado pelas pesadas janelas e grossas paredes e que
claramente lhe dizia qual tinha sido o fim do Conde Festini.
Tillizini, que descera apressadamente para lhe dar a infausta
notícia, encontrou-o totalmente preparado para recebê-la.
— Agradeço a sua excelência, — disse o rapaz. — Já o sabia.
Sua excelência não viverá para ver a resultado de seu
trabalho, porque já é um homem idoso. Mas, se ainda tiver
muitos anos para viver, conhecerá a vingança que tomarei
por esse assassinato. Porque, sou ainda muito jovem e pelo
favor de Deus, restam-me muitos anos de vida!
Tillizini nada disse e quando regressou a Florença era um
homem abatido pela tristeza.
Três meses mais tarde, visitou novamente Siena e na Via
Cavour, em plena luz do dia, foi baleado por dois
mascarados, que conseguiram fugir.
E sua cátedra, no Colégio de Antropologia de Florença,
passou, em seu devido tempo, para o jovem Tillizini.

CAPÍTULO I
SIR RALPH PROFERE UMA SENTENÇA

Era absurdo chamar o assunto de «O Processo da Mão
Vermelha», porque a Mão Vermelha não tivera nenhuma
participação no feito, pelo menos, no que se referia ao
roubo.
Havia sido um roubo vulgar, em que interviera um
conhecido e humilde membro da localidade de Burboro,
agora no banco dos réus. Fôra encontrado dentro da casa, às
primeiras horas da manhã. Dera uma explicação incoerente
ao vigilante mordomo que o encontrara e além de uma
confusa história, segundo a qual alguns italianos misteriosos
o haviam encarregado de certa missão, não se pôde
encontrar nenhum sinal da extraordinária associação, que
estava agitando as pessoas que respeitavam a lei na Grã-Bre-
tanha.
Era igualmente absurdo e grosseiro acusar de injustificável
sensacionalismo os jornais que qualificavam a ocorrência
como o «Caso da Mão Vermelha».
Além de tudo, aparecia um italiano mencionado nos termos
da acusação, o que, nestes dias de pânico, bastava para
justificar a referência.
A sessão do Tribunal foi muito concorrida, porque o assunto
despertou, logo, algo mais que o interesse habitual. Todo
mundo estava presente. Lady Morte-Mannery ocupava a
cadeira no estrado, como lhe correspondia por direito. A
maior parte dos convidados, procedentes de East Mannery,
chegara também e achava-se sentada em lugares
privilegiados, para não pouco incômodo dos membros do
foro e representantes da imprensa.
Estes últimos, indignados, protestavam amargamente ao
serem desalojados de seus já restritos domínios, para
cumprimento de suas funções.
Mas, Sir Ralph Mannery, presidente da sessão, tinha certa
maneira de proceder com a imprensa e professava — ainda
que nem sempre agisse de acordo com sua teoria — a idéia
de que não se devia tomar conhecimento dela, convencido
de que ela, a imprensa, não tinha nenhuma importância.
Os jornalistas que assistiam às sessões do Tribunal em
Burboro sentiam, constantemente, esse misterioso
procedimento que é conhecido como «cada um em seu
lugar». E desejavam, muito ardentemente, por certo, que o
princípio fosse aplicado às presentes circunstâncias, ao ver,
como estavam vendo, que seus lugares achavam-se, agora,
ocupados pelos convidados do presidente do Tribunal.
Hilary George, pertencente à ordem dos «Cavalheiros de
Colombo», estava sentado juntamente com seus colegas,
advogados, embora só na qualidade de expectador, pois não
exercia nenhuma função na sessão que se realizava.
Sentia curiosidade de ver como era o procedimento da
justiça, tal como Sir Ralph a concebia.
As sentenças de Sir Ralph eram notórias. Seus julgamentos
haviam sido revistos em mais de uma ocasião.
Era, talvez, um dos homens mais odiados do país.
As mãos amedrontavam os rebentos desobedientes,
mencionando o nome de Sir Ralph. Era o pesadelo dos
moradores, um tormento moral para os vagabundos, para os
que dormiam ao relento e para toda a classe de pessoas
desafortunadas e delinqüentes.
De pequena estatura, magro e ossudo, parecia que suas rou-
pas, muito folgadas, caíam-lhe do corpo como de um cabide.
O rosto, branco e alongado, possuía certo ar de solenidade.
Seus lábios eram caídos nos cantos da boca, num gesto de
desdém. Um par de óculos com aro de ouro assentava-se em
ângulo inclinado sobre seu nariz, como para sugerir que
assim o colocara para não obstruir o campo de sua visão.
O cabelo era ralo e encanecido. Usava costeletas um pouco
grandes e colarinho à moda de Gladstone.
Quando falava, sua voz era queixosa e pouco segura, dando a
impressão de que sentia um ressentimento pessoal contra o
desgraçado réu que estava sentado diante da Justiça, no
banco dos réus, impaciente por tê-lo obrigado a abandonar a
comodidade de sua biblioteca e ser constrangido a respirar o
ar tão rarefeito da sala de julgamento.
Sir Ralph estava perto dos sessenta anos. Sua esposa, que
parecia extremamente adorável com seu vestido de veludo
negro, o enorme chapéu também preto, com penas
coloridas, tinha uns trinta anos menos.
Era uma formosa mulher, sob muitos aspectos. Beleza como
a de Juno, imperial, impressionante. Seus lábios, quando em
repouso, eram finos e retos e, para dizer a verdade, um tanto
repelentes. Algumas pessoas assim os qualificavam. Hilary
George, o temerário caçador, confessava que jamais vira
aqueles lábios bem fechados e que, pelo contrário, muitas
vêzes parecera-lhe sair deles uma palavra de advertência ao
perigo: Cuidado! Cuidado!
Era uma formosa mulher, mas dessas beldades que
desagradam. Casara-se com Sir Ralph Morte-Mannery, cinco
anos antes, na absoluta certeza de que conseguiria sair para
sempre da atmosfera de penúria que a acompanhara durante
toda a adolescência .
Com o casamento dissera «adeus» às preocupações e
aperturas com que a mãe, ansiosa por ter projeção social e
com uma renda anual de cento e cinqüenta libras, a rodeara
sempre.
Muito cedo, Vera Forsyth compreendeu que havia saído de
uma atmosfera de penúria forçada pelas circunstâncias, para
passar para outra igualmente mesquinha, mas desta vez
praticada por amor à própria mesquinhez. Sir Ralph era um
homem mesquinho e miserável. Podia-se quase qualificá-lo
de avaro e abrigava a profunda convicção, quando
administrava seus centavos, de que, por direito divino, fora
eleito, para ser o natural herdeiro de muitas centenas.
No primeiro ano de casada, Vera acreditou que jamais po-
deria escapar ao eterno livro de contas. Sir Ralph era um
homem que acreditava na felicidade do lar, baseada no
controle dos centavos. Ele sabia muito melhor do que ela,
qual era o preço das batatas e assinalava com lápis vermelho,
qualquer aumento na conta do armazém, dedicando-se
trabalhosamente a conferir a causa de qualquer aumento nas
contas domésticas.
Nesse momento, ela observava a sala do Tribunal e depois de
correr os olhos pelo recinto, fitou curiosamente o marido.
O ambiente que a rodeava era uma fonte de interesse que a
ajudava a entreter-se, sem desfalecimentos, nas suas relações
diárias com esse homem.
Sir Ralph procedia, às vezes, com parcialidade egoísta.
Apesar de já ter tido duas ou três anulações de sentença pela
Corte Criminal de Apelação, não iria recuar em seus
propósitos de limpar o país desses indivíduos e malfeitores,
que demonstravam má inclinação e não queriam distinguir
entre o «meum» e o «teum».
Toda pessoa, que conhecia tais circunstâncias, inteirava-se
de que a forma por que ele havia encarado o processo
presente denotava o pior critério.
O jovem de rosto pálido, que estava sentado no banco dos
réus, com as mãos batendo nervosamente nas grades que
tinha diante de si, estava sendo processado por roubo e o
roubo ocorrera na própria residência de Sir Ralph.
— Ele declarou, senhores jurados, — continuou dizendo Sir
Ralph em seu discurso, — que um italiano misterioso pediu-
lhe para se introduzir na casa, em cujo interior, alguém o
estaria esperando, para entregar-lhe um pacote, igualmente
misterioso. Declarou que não tinha intenção de roubar.
Estava cumprindo as instruções desse misterioso, talvez, não
devesse dizer, mas desse «mítico» — falou Sir Ralph ao se
recordar dos comentários do presidente do Supremo
Tribunal, ante seu pronunciamento similar em outro
processo, — mas que pode aparecer, ante os senhores
jurados, como uma personagem mítica.
Correu os olhos pela sala.
— Declarou mais que foi induzido pela pobreza em que está
vivendo a se dirigir à meia-noite a Highlaw e introduzir-se
na cozinha, devendo esperar ali uma pessoa mascarada, que
lhe daria um embrulho, para conduzir para fora da casa.
Disse que não tinha a mínima intenção de roubar-me, que
era somente um cúmplice de uma pessoa da casa.
Sir Ralph inclinou-se para trás, sorrindo desdenhosamente.
— Bem, senhores jurados, — disse estendendo as mãos, num
gesto de falsa condescendência, — se acreditam nisso,
deverão declarar que o homem é acusado de cumplicidade.
Como sabem, há em minha casa, uma valiosa coleção de
jóias do Renascimento. E, quando o Fiscal da Coroa assegura,
como já o fez; que a inferência a ser tirada da presença do
homem na cozinha, aonde o mordomo o surpreendeu, é a
de que ele pretendia roubar as jóias, os senhores, talvez,
estarão perfeitamente justificados se acreditarem nesta
sugestão, como estariam, se acreditarem no defensor do réu,
quando sustenta que ele estava meramente agindo como um
cúmplice neste caso.
Acrescentou mais algumas palavras alusivas às provas que
ainda não pudera ver e instou com os jurados que
deliberassem, adotando o ar de benevolência com que
habitualmente rodeava a peroração de seus discursos mais
malévolos.
Os jurados retiraram-se da sala e no recinto ouviu-se o
murmúrio das conversações.
O prisioneiro aproximou-se um pouco mais da grade. Fitou o
delicado rosto de sua esposa, uma bela moça de dezessete
anos, que durante todo o processo ficara olhando-o,
escutando com ansiedade .
— Isto não nos pode servir de ajuda, querida! — disse.
Era um homem da classe operária, mas sua voz denotava
uma cultura imprópria de seu aspecto.
A jovem olhava-o cheia de piedade, seus lábios tremiam e
não pode responder-lhe nada. Estava convencida de que seu
esposo dizia a verdade. A pobreza levara-o ao desespero e
fosse qual fôsse a finalidade de suas aventuras, jamais a
miséria poderia convertê-lo num ladrão.
Os jurados voltaram cinco minutos depois. Assentaram-se
em seus lugares e foram respondendo ao ser chamado cada
nome. Todos os olhos estavam voltados para o acusado. O
oficial de justiça formulou as perguntas de rigor.
— Julgaram o acusado «culpado» ou «não culpado» do delito
de roubo?
— Culpado! — disse o primeiro jurado, com voz insegura.
Sir Ralph moveu a cabeça, em sinal de assentimento.
Voltou-se para o réu, no momento em que o oficial
perguntava:
— Tem alguma coisa a manifestar, antes que se passe a
sentença?
O prisioneiro olhou penalizado para o lugar em que se
encontrava sua esposa. A pobre mulher acabava de desmaiar
e um solícito policial estava levando-a para fora da sala.
— O que eu disse, — falou com clareza e sem vacilação
alguma, — foi a verdade. Não tive a menor intenção de
roubar, Sir Ralph. Fui lá unicamente porque acreditei que
estava agindo como agente de alguém, que estava
executando certa espécie de... — vacilou, — custa-me dizê-
lo... certa espécie de intriga, — continuou (alando
apressadamente, — e não desejava que a ocorrência
transpirasse...
Seus olhos percorreram os membros do júri e seu olhar
deteve-se ao encontrar-se com o de Lady Morte-Mannery.
Ambos entreolharam-se; ela, com toda calma, sem
curiosidade; ele, cheio de esperança, com um cintilar de
assombro.
— Este foi meu primeiro delito, — prosseguiu. — Jamais
estive em semelhante situação e ainda que o júri tenha
declarado que eu sou culpado, excelência, espero que saberá
considerar minha falta com clemência, não só pelo meu
próprio bem, como também por minha esposa e pelo
menino que está por nascer.
Sua voz tremeu um pouco, enquanto implorava clemência.
Foi esse o único sinal de emoção que demonstrou.
Sir Ralph tornou a fazer um movimento afirmativo de ca-
beça. O prisioneiro interrompera-lhe a palavra.
O presidente do Tribunal acomodou os óculos sobre o nariz
e meneou a cabeça, da esquerda para a direita, consultando
os colegas.
— Seu delito, George Mansingham, — disse, —
peculiarmente é para comigo. Não considero o fato de que a
casa onde entrou seja a minha própria. Afortunadamente,
não sou uma pessoa a quem afetem as considerações pessoais
e o fato de que eu me encontrasse ausente de minha
residência, esta noite, habilita-me a julgar o caso com o
espírito desprovido de todo preconceito.
Olhou os papéis que estavam sobre a mesa e em seguida
levantou a cabeça com um gesto violento.
— Sofrerá a pena de sete anos de presídio, — disse.
Algo como um zunzum correu pela sala.
Hilary George, com o monóculo na mão, começou a
levantar- se, mas tornou a se sentar.
O homem, sentado no banco dos réus, ficara com a boca
aberta.
— Sete anos! — repetiu e moveu a cabeça, como se não
entendesse o que acabara de ouvir.
Em seguida, abandonou seu lugar e, levado por um guarda,
começou a descer as escadas que conduziam para as celas, lá
em baixo.
Hilary George era um homem forte: possuía um rosto
corado e seus olhos revelavam enorme vitalidade física e
alegria de viver. Ao vê-lo, tomá-lo-iam, infalivelmente, por
um rapagão crescido e o monóculo, tal como notara um
amigo, parecia deslocado num homem como ele. Tinha uma
grande prática do júri, era um hábil advogado e brilhante
argumentador.
Alguém poderia julgar que ele fosse fácil de ser dominado,
ao ver seus lábios separados que mostravam duas fileiras de
dentes brancos e notar esse olhar de deleite que brilhava em
seus olhos. Nenhum homem tivera êxito, entretanto, ao
procurar persuadir Hilary George contra sua vontade e não
se soube de ninguém que procurasse repetir a tentativa.
Pouco depois, parado sôbre os degraus da escada do Tribu-
nal, tinha o aspecto de uma figura imaculada.
Não sorria e olhava com toda a gravidade que lhe permitia
sua configuração facial. Muito lenta e deliberadamente,
começou a abotoar suas luvas brancas. Olhou para o relógio.
Nesse momento saíam do Tribunal os convidados de East
Mannery e Lady Morte-Mannery vinha um pouco à frente,
seguida de Sir Ralph e de três ou quatro convidados mais.
— Quer ir em nosso carro ou prefere tomar o ônibus? —
perguntou Sir Ralph com complacência.
Sentia certo receio do advogado, tanto quanto pudesse
temer a alguém e invariavelmente escondia a inquietação
sob as maneiras afetadas, que poderiam parecer fruto de seu
bom-humor.
— Não, muito obrigado, Ralph, — disse Hilary George com
tranqüilidade.
O presidente do Tribunal levantou as sobrancelhas.
— Não vem? — repetiu. — O que quer dizer com isto?
— Vou regressar à cidade, — disse Hilary tão lentamente
quanto antes.
— Mas, por quê? Que aconteceu? Pensei que também nos
acompanharia à caçada.
— Prefiro não dizer o motivo, — falou. — Se fizesse a
gentileza de avisar meu criado para levar minha bagagem à
estação... ainda ficarei uma hora, aqui, em Burboro.
— Mas, qual o motivo de sua partida tão repentina? —insistiu
Sir Ralph. — Recebeu más notícias? Tem necessidade
imperiosa de regressar à cidade?
Hilary cofiou a barba e ficou pensando.
— Dir-lhe-ei, — falou e fitou diretamente o rosto de seu
interlocutor. — Acaba de sentenciar a sete anos de prisão a
um homem.
— Sim, — concordou Sir Ralph com ar surpreso.
— Pois foi uma sentença absurda, disse o «Cavalheiro de
Colombo» e cada uma de suas palavras parecia cortante
como uma faca.
— Uma sentença perfeitamente maligna, vingativa, injusta,
— repetiu, — e eu não poderia permanecer nem mais uma
hora na casa do homem que a proferiu!
Não deu tempo, a que seu interlocutor desse a resposta que
começou a balbuciar.
— Além disso, — disse, com uma repentina entonação de
rudeza e bondade, ao mesmo tempo, se é que se possa
compreender o paradoxo, quase paralisando seu
interlocutor, — não descansarei, enquanto esta sentença não
for anulada. Meus procuradores levarão o assunto à Corte de
Apelação.
— Você... vo... como se atreve!... — murmurou Sir Ralph.
— Uma sentença torpe, injusta, — repetiu o outro, com
deliberação. — Não me fale, Sir Ralph, não sou um qualquer.
Sou um advogado do foro. Conheço melhor do que você o
mecanismo da lei. Sei perfeitamente qual era a sentença que
devia ter pronunciado. Sei perfeitamente como sua
prevenção pessoal influiu para condenar esse homem, esse
rapaz que cometeu uma falta pela primeira vez... a um
inferno de vida!
Ao falar, fê-lo com veemência: seu rosto ia enrubescendo
cada vez mais, à medida que a raiva aumentava.
— Jamais me esquecerei, Hilary, — gritou Sir Ralph
estremecendo de indignação. — Acaba de ferir-me
mortalmente. Sabe perfeitamente que acredito nas
condenações longas.
— Não me importo com o que você creia ou não, — disse o
outro com calma enfática de linguagem. — Desejo-lhe bom
dia!
Dirigiu-se para onde Lady Morte-Mannery continuava
esperando .
— Sinto muito, Lady Morte-Mannery, — disse o advogado,
— por não poder regressar à sua casa. Um compromisso
importante obriga-me a voltar para Londres.
Ela mussitou seu pesar muito convencionalmente, ainda que
náo deixasse de ver com desagrado o afastamento de um
homem que desde o princípio havia considerado fácil de
influenciar.
Suas visitas, deve ser anotado de passagem, eram muito
peculiares.
— Por que se vai? — perguntou ao esposo, enquanto o carro
corria pela estrada principal em direção a Burboro.
Sir Ralph, que ainda tremia de raiva, murmurou uma
contestação.
— Como posso sabê-lo? Para que me faz perguntas ridículas?
Vai porque é um idiota, — acrescentou com enfado. —
Porque é um homem mau. Acaba de insultar-me
grosseiramente e não poderei perdoá-lo nunca!
Empalideceu de emoção e durante o resto do dia falou da
afronta que Hilary lhe infligira.
Vera fez uma ou duas tentativas para acalmá-lo, sem
resultado. Estava demasiadamente interessada em vê-lo
calmo. Tinha um ou dois pedidos a fazer e nesse estado de
espírito tinha a certeza de que suas pretensões seriam
recusadas. Continuou esforçando-se para acalmá-lo.
— Gostaria de que não me aborrecesse, — murmurou,
quando ela entrou na biblioteca, com o pretexto de arrumar
uns livros, ali deixados pelos convidados.
— Oh, venha cá! — disse êle, quando a espôsa já se retirava
do aposento. — Está aqui uma conta de Burt. Quantas caixas
de aveia preparada recebemos na última semana?
— Esqueci-me, querido, — disse ela.
— Seis! — murmurou. — Não sabe que nunca compramos
antes mais de quatro?
— Mr. George gostava muito de aveia no almoço, —
respondeu ela.
— Mr. George! — quase gritou o esposo. — Não me fale
nesse homem. Por que Bulgered cobra um xelim e meio pela
libra de carne? É monstruosa essa conta do açougueiro!
Mude de açougue. Gostaria de que prestasse mais um pouco
de atenção na direção da casa, Vera.
Fitou a esposa por sob a farta sobrancelha.
— Você procede como se eu tivesse uma fábrica de dinheiro.
Precisa de fazer um pouco de economia. Antes do
casamento, querida, você costumava contar centavo por
centavo. Imagine que estes aqui são também de sua mãe e
conte também, os meus!
Ela movimentou os ombros com enfado e se retirou do
aposento.
Seu esposo era intolerável quando ficava assim. Passou para a
sala, perguntando a si mesma como poderia conduzir o
marido para o assunto que tanto a interessava. Junto à janela,
uma jovem estava lendo. Quando Vera entrou, ela levantou
os olhos e fitou-a, sorrindo.
— Não é um aborrecimento? — comentou. — Disseram-me,
agora, que George regressou à cidade. E ele jogava tão bem o
piquete. Por que se foi?
Levantou-se preguiçosamente, deixando o livro de lado.
Era uma jovem alta, formosa, desse colorido delicado que
constitui o principal dote das moças inglesas. A cabeça bem
posta, coroada de formosos cabelos ruivos. Suas
sobrancelhas, duas delicadas linhas de veludo, adornavam o
melhor e mais adorável par de olhos que um homem
poderia desejar. Pelo menos, assim pensavam todos que a
viam. E o próprio Sir Ralph, tão vaidoso e depreciativo como
era, dissera que a beleza havia sido pródiga com essa jovem.
Um nariz reto, um queixo firme e rebelde, uma moça
completamente calma, completavam sua descrição.
Ao andar, demonstrava a graça de sua silhueta harmoniosa.
Cada movimento sugeria a vida ao ar livre, vida de campo e
de rua, de forma tão eloqüente como demonstrava sua cútis,
repleta das suavidades próprias de sua nativa Irlanda.
— A coisa mais terrível de ser uma parente pobre, — disse,
enquanto colocava a mão no ombro da outra, — consiste em
não poder dispor das amizades de seus parentes ricos. Eu
teria dito a Hilary George: «Não poderá regressar a Londres,
por mais importantes que sejam seus negócios, porque
minha sobrinha, Marjorie, deseja que alguém jogue o
piquete com ela!»
Vera, com um ligeiro e imperceptível movimento, retirou a
mão da outra, que se apoiava em seu ombro.
— Não seja tola, Marjorie! — disse-lhe. — Ralph está muito
aborrecido. Hilary foi muito grosseiro com seu tio.
A jovem levantou as sobrancelhas.
— Grosseiro? — repetiu. — Por quê? Eu sempre pensei que
êles eram muito bons amigos...
— Foi muito grosseiro, — disse ela novamente. — E a
propósito, — perguntou, — seu pretendente não vem hoje,
não é?
A face da jovem enrubesceu e ela empertigou-se um pouco
mais.
— Desejaria que não me falasse dessa espécie de coisas, Vera,
— disse-lhe. — Eu procuro tratá-la com bondade e não
perde oportunidade para me aborrecer com essas tolices.
Vera riu e dirigiu-se para o piano.
— Não sabia que era uma tolice, — disse, enquanto se sen-
tava e procurava algumas peças musicais.
A jovem aproximou-se com as mãos nas costas e ficou pa-
rada atrás dela.
— Você gosta de mim, Vera? — perguntou-lhe.
Vera voltou-se e olhou-a fixamente.
- Mas, criança querida, — disse-lhe, — não seja tola. Você
não me desagrada.
Aproximou uma cadeira ao lado do piano e sentou-se.
— Não toque, — disse, — falemos de coisas mais íntimas.
— Essa é justamente a espécie de conversa que me desagra-
da. Acabo de ter uma conversa íntima sobre aveia, — disse a
outra. — Mas esse jovem... como se chama?
— Gallingford. Frank Gallingford, — disse Marjorie
brevemente.
— É você que está apaixonada ou é ele — falou com senso de
humor, esquecendo-se do ressentimento de antes.
— Penso que é ele que está apaixonado.
— Qual é sua profissão... um engenheiro ou o quê? —
perguntou Vera, tocando as teclas do piano, com suavidade.
— Algo pelo estilo... — E Marjorie mudou o tema da
conversa. — Será que o tio... será que o tio, — pareceu vaci-
lar um instante, — tal como diria Mr. George, «descarregou
toda sua força» contra aquele desgraçado homem?
— Você refere-se ao ladrão?
Morjorie concordou com um movimento de cabeça.
— Não penso que tenha recebido mais do que merecia, —
disse Vera.
— Pensa, realmente, que veio roubar as jóias do tio?
— Por que não? — perguntou Vera, sem olhá-la. — E uma
coleção de muito valor. Há medalhões que valem de
trezentos a quatrocentas libras cada uma. .. há um que vale,
pelo menos, um milhão, — acrescentou rapidamente. —
Assim acredito.
— Mas, de que serviriam para o ladrão? — insistiu a jovem.
— Bem... — Vera encolheu os ombros. — Você está que-
rendo que eu faça um estudo da psicologia da mente do
ladrão e eu não estou preparada para isto.
Marjorie voltou para junto da janela e contemplou a
paisagem. Fazia mais de uma hora que estava chovendo e as
árvores tinham um mísero aspecto, envoltas numa espécie
de neblina que se levantava desde Medway Valley.
— Aconselho-a a não discutir esse assunto da sentença com
seu tio, — falou Vera, por cima do ombro, — Está muito
contrariado: penso que foi por causa da discussão com
Hilary George.
A jovem permaneceu calada. Não podia compreender Vera.
Sempre fora um enigma para ela. Que era uma mulher
desapontada, Majorie sabia. Esperara encontrar uma vida de
luxo e negligência e, em vez disso, converteu-se meramente
numa governanta, ocupando o lugar da outra que Sir Ralph
despedira, e despedira justamente na época do casamento.
Vera era mulher ambiciosa. Não havia fixado limites para
suas possibilidades.
Viera, como pensava, para um mundo mais amplo, para uma
vida melhor, na ânsia de exercer sua arte e gênio e, em vez
disso, viu-se reduzida aos prosaicos deveres domésticos, sob
a direção de um homem velho, mesquinho e avaro.
O sonho de Marjorie foi interrompido pelo cessar repentino
da música. Houve uma pequena pausa e logo ouviu-se a voz
de Vera, que lhe perguntava:
— De onde poderei tirar quinhentas libras esterlinas?

CAPÍTULO II
A VISITA DE TILLIZINI

Marjorie voltou-se com um sobressalto.
— Quinhentas libras? — repetiu.
Vera confirmou com a cabeça.
— Necessito desta soma, — disse, — para determinado fim.
Compreende que o que lhe digo é absolutamente
confidencial, pois não?
— Oh, certamente! — asseverou Marjorie. — Mas é uma
quantia muito grande de dinheiro. Não poderá obtê-la
diretamente com o tio Ralph?
— Com o tio Ralph! — exclamou a outra com desdém. —
Seria incapaz de dar quinhentas batatas! Um pedido de
quinhentas libras bastaria para nos separar pelo resto da vida!
Ela riu amarguradamente.
Marjorie cerrou as sobrancelhas de maneira pensativa.
— Não posso pensar em ninguém, — disse de modo vaga-
roso.
— Então, não sei, — falou Vera bruscamente, — não sei
exatamente por que lhe perguntei.
Não puderam prosseguir com o objeto de sua discussão,
porque Sir Ralph entrou naquele preciso instante.
Evidentemente, já se esquecera de que suas relações com a
espôsa tinham estado tensas, em conseqüência justamente
da provisão de aveia e carnes.
— Vera, — disse, aproximando-se dela, — lembra-se daquele
homem que estava no Tribunal, um tipo característico de
estrangeiro?
Ela ficou pensando.
— Sim, havia uma pessoa sentada perto... — quase disse
«Hilary George», mas achou mais prudente interromper-se e
mencionar o nome de outro advogado, interessado no caso.
— Que impressão lhe causou? — perguntou-lhe.
— Quase lhe diria que nenhuma impressão me causou, —
respondeu, sorrindo. Sentia-se ansiosa por fazê-lo voltar a
seu bom-humor. — Mas, desgraçadamente, não prestei
muita atenção nele. Era um homem de aspecto distinto, bem
barbeado, com uma fisionomia pensativa.
Sir Ralph fez um gesto de assentimento.
— É ele mesmo. Acabo de receber um bilhete seu. Não sabia
que estava em Burboro. E Tillizini.
Disse isto muito preocupadamente. Naquela ocasião o nome
de Tillizini andava na boca da metade da população da
Inglaterra.
— Tillizini? — repetiu Vera, semi cerrando os olhos.
Ele concordou com um assentimento de cabeça.
— Nem mais, nem menos, — disse. — Recebi uma carta de
um dos subsecretários do Ministério do Interior,
anunciando-me sua vinda para cá. Não posso compreender
como nosso pequeno roubo tenha podido despertar sua
atenção, mas, "de toda maneira deve ter muito interesse,
desde que nos visita e não regressou até hoje. Mandou
avisar-me de que se hospeda no «George» e escrevi-lhe
convidando-o para jantar, esta noite.
Ela fez um trejeito..
— Não é um detetive ou algo parecido? — perguntou.
Sir Ralph era muito susceptível de se mostrar irritado,
quando alguém não estava de acordo com suas idéias. Era
sempre melhor acatá-las em excesso do que menosprezá-las,
de qualquer modo.
— É claro! Não tem lido os jornais? — prosseguiu falando
com ar magistral. — é impossível que não tenha visto seu
nome, nestes dias. E o homem que o governo da Inglaterra
tem como uma espécie de consultor e ao qual encarregou de
deslindar tudo que se relacione com a onda de crimes que
avassala o país.
— Já ouvi alguma coisa a respeito disto, — disse
descuidadamente sua esposa. — A «Mão Negra» ou a «Mão
Vermelha»... esqueci-me da cor exata..."
Sir Ralph franziu a testa.
— Você não deve tratar estas questões tão frivolamente,
Vera, — disse friamente. — A «Mão Vermelha» é uma
organização misteriosa, que está assestando golpes sobre
golpes em nossa tranqüilidade doméstica. Todo homem e,
poderia acrescentar, toda mulher, deveriam mostrar-se
devidamente agradecidos para com aqueles que, mercê de
seus dotes de adivinhação, procuram resguardar as vítimas
inocentes dos ataques de uma quadrilha de criminosos
organizada.
Vera odiava o esposo, quando lhe fazia discursos. Ela sabia
muito mais da «Mão Vermelha» do que estava disposta a
discutir com Sir Ralph.
Era essa uma pose sua, como da maior parte de certas pes-
soas de sua classe: fingir uma completa ignorância sobre
assuntos que chamavam a atenção dos leitores de jornais.
A atitude de ignorância é muito comum entre pessoas da
classe endinheirada. Popular, porque sugere uma
superioridade acima das influências que as rodeiam. Porque
significa também uma independência para com os fatos da
crônica e também porque é a mais fácil de tôdas as poses a
assumir e a sustentar.
Vera compreendeu que esta atitude lhe convinha muito a
suas maneiras. Dava-lhe algo da poderosa ingenuidade que
tinha um efeito paralisante sôbre os demais membros
melhor informados, mas socialmente inferiores da
comunidade. Assim, evitava ser aborrecida com o longo
detalhe de notícias que já lera nos jornais da manhã, em
forma bem mais concisa e mais acurada.
Seu interesse pelo grande detetive italiano era, no momento,
muito convencional, exclusivamente doméstico, tanto que
se levantou da cadeira junto ao piano.
— Terei que avisar a Parker para pôr mais outro talher na
mesa, — disse.
— Se ele aceitar, — interrompeu-a Marjorie.
— Não seja absurda, Marjorie, é claro que aceitará o convite.
Como deveremos chamá-lo... inspetor, sargento ou como?
— indagou de Sir Ralph.
Ela trazia dentro de si mesmo o espírito de rebelião e sé
permitia essas liberdades de atitudes que, em circunstâncias
normais, teria evitado assumir.
Nem por um momento pensara que seu espôso lhe adianta-
ria o dinheiro de que necessitava. Mas, talvez pudesse dar-
lhe uma parte, desde que ela soubesse encontrar uma
desculpa suficientemente plausível. A verdade não poderia
ser dita, estava fora de cogitação. Sorriu ao pensar na
situação. Era mulher de imaginação, mas não de tanta que
pudesse conceber Sir Ralph em semelhante conjuntura.
Precisava dêste dinheiro com tanta urgência como jamais
necessitara em outras ocasiões. Não era para ela própria. Suas
próprias necessidades eram poucas e seus gostos muito
simples. Talvez, pudesse induzir o esposo a dar-lhe uma
centena de libras, se conseguisse encontrar um bom
pretexto e era mister ter um superlativamente bom para
levar Sir Ralph a se desprender de seu dinheiro.
O descontentamento pela vida que levava, o aborrecimento
por uma situação que não desejava pareceu pesar sobre ela e
tudo isso levou-a a tratar do assunto presente numa forma
que, bem sabia, o esposo não poderia aprovar.
— Pode chamá-lo de Dr. Tillizini, — disse Sir Ralph
severamente. — É professor de Antropologia na Escola de
Medicina de Florença. É um cavalheiro, Vera, e espero que
você o trate como tal.
Marjorie, que fora uma expectadora da conversa entre Sir
Ralph e a esposa, pôs-se de pé, retirando-se discretamente
com seu livro, da cadeira em que se achava para a janela
próxima. Quando Sir Ralph voltou-se para sair, ela voltou-se.
— É certo tio, que esse homem virá? — perguntou. — Será
divertido!
Sir Ralph fez um gesto de assentimento.
— Assim o espero. Não posso deixar de convidá-lo, mas,
como é um homem muito ocupado, é possível que tenha
que regressar à cidade, imediatamente. De qualquer maneira,
tenho a certeza, — disse com afetada gravidade, — de que
aprovará a forma pela qual tratei, hoje, o delinqüente. Penso
que foi monstruosidade a forma por que Hilary George...
Sentia-se ainda magoado com a forma por que o tratara o
amigo e pôs-se a dar à jovem uma quantidade de desculpas e
justificativas, relatando-lhe, brevemente, o ocorrido fora do
Tribunal, cena em que ele tivera uma atitude digna e correta,
ao passo que Hilary perdera a serenidade, ao grau máximo.
Sir Ralph justificava-se com exagerada veemência.
— Hilary George arrepender-se-á disso, — disse.
Falou num tom de convicção de alguém que já tivesse
arranjado com a Providência para que as coisas sucedessem
de acordo com seu desejo.
Marjorie ia caminhando atrás de seu tio, quando um olhar de
Vera fê-la retroceder. A mulher mais velha esperou até que
a porta fosse fechada atrás de seu esposo.
— Marjorie, — disse-lhe com o mais suave e o mais melífluo
de seus tons caseiros. — Quero que faça um favor por mim.
— Com todo o prazer, querida, — contestou a jovem
calmamente.
Lady Morte-Mannery brincou descuidadamente com uns
pequenos ornamentos de prata, que estavam sobre uma das
mesas e que havia ali em profusão, na sala, colocando-os
como se fossem peças de um novo jogo que ela estivesse
jogando. Parecia concentrar toda sua atenção em alguma
coisa, enquanto estava falando.
— Quero que me faça um favor especial, — repetiu. — Além
do mais, sei que posso confiar em você, a respeito do
dinheiro, que já lhe disse e agora desejo que me ajude num
pequeno estratagema. Esse homem que virá, hoje, — disse,
— este italiano, não é, em realidade, a pessoa, a espécie de
homem que eu desejaria encontrar. Odeio os detetives e
toda essa gente mais ou menos melodramática. Falam de
crimes e coisas deste estilo e, ademais, — pareceu vacilar, —
penso que poderei confiar em você, não é assim?
Olhou-a fixamente.
— Sim, — respondeu a jovem com tôda a gravidade,
perguntando-se qual seria o serviço e o que é que estaria por
vir.
— Bem, você sabe, querida, — disse Vera lentamente,
enquanto continuava brincando com as caixas de confeitos e
os objetos de prata, — eu pertenço a um clube. É. um clube
de senhoras. Você não encontrará o nome dele no guia
Whitaker, porque é lógico que não desejamos e nem nos
agradará revelar sua existência para todo mundo, se bem que
esteja devidamente registrado. Pois bem, há dois ou três
meses, tivemos ali um conflito inesperado. Nós outras... nós
outras... Porque haveria eu de enganá-la? — disse, num
repente de confiança e com um sorriso raro. — Houve uma
batida no clube! Você compreende Uma batida policial!
Jogava-se, ali, querida, muito fortemente. Não nos
contentávamos com o bridge. Uma mulher, esqueci-me de
seu nome, iniciou o jogo de bacará e tínhamos também uma
roleta, você sabe...
Ela encolheu os ombros.
— Era uma coisa muito fascinadora. Enquanto umas perdiam,
outras ganhavam somas consideráveis. Então, houve uma
briga e, à noitinha, a polícia chegou, inesperadamente. Seu
querido tio Ralph estava na cidade, ocupado em suas
reuniões e comícios e felizmente eu pude dispor de todo o
tempo, à minha vontade. Foi uma sorte ter conseguido
escapar das conseqüências de minha loucura. Dei um nome
falso e na manhã seguinte fui levada com as outras mulheres
a Bow Street. Você deve lembrar-se disto. O caso causou
sensação. Ali, interrogaram-me e ficharam-me com o nome
falso. Ninguém me reconheceu e ninguém veio a saber de
nada, a não ser você, agora, mas você é muito discreta.
Deteve-se outra vez e olhou rapidamente, de soslaio, para a
jovem.
— Oh! não há necessidade de se sentir chocada, — disse
com certa acritude. — Conduzi-me muito bem, mas o caso é
que Tillizini estava no Tribunal, nesse dia e temo que me
venha a reconhecer .
— Que desgraça! — disse Marjorie. — Realmente, Vera, não
senti um choque, mas seu relato, impressionou-me
profundamente. Não sou chamada, entretanto, para fazer o
julgamento de suas ações. Que deseja que eu faça por você?
— Quero que me ajude a convencer a Sir Ralph que estou
muito indisposta e não posso receber o convidado. Irei agora
mesmo diretamente para a cama e quero que você, como
um anjo tutelar, faça as honras da casa ao detetive.
— Com todo o prazer, — disse Marjorie, com um sorriso.
— De todo modo, — disse Vera, um tanto asperamente, —
Ralph não a repreenderá diante das visitas, nem fará
qualquer menção ao gosto exagerado pelas batatas. Ralph é
um tanto fanático em tudo que se refere a matéria de
comidas, — disse. — Há um padrão pelo qual julga tddas as
fases da economia doméstica.
Marjorie sentia uma infinita piedade de Vera. Não era mais
nova do que a outra senão uns sete ou oito anos e, portanto,
Vera era muito jovem ainda e poderia encontrar, na vida,
toda a alegria, a cor e o movimento.
— Farei o que me pede, — disse-lhe.
Pela segunda, vez, nesse dia, colocou sua mão no ombro da
outra.
— Não me encoste, querida, — disse Vera com repentina
aspereza e o cálido e generoso coração da jovem sentiu-se
gelado, de repente.
Vera deu-se conta disso e tratou de reparar seu erro.
— Peço-lhe o favor de não se inquiçtar por minha causa,
querida, — disse num tom mais suave. — Sinto-me deveras
incomodada, muito preocupada em saber como enfrentar
tudo isto.
Neste instante, abriu-se a porta da sala e William, o
mordomo, entrou, cheio de importância.
Ficou parado junto à porta.
— O professor Tillizini! — anunciou.

CAPÍTULO III
UM CAÇADOR DE HOMENS

Pareceu a Marjorie que Vera retrocedia, ao ouvir pronunciar
seu nome.
A jovem esperou que ela se adiantasse, para cumprimentar o
recém-chegado, mas vendo que a outra não fazia nenhum
movimento, Marjorie compreendeu que devia agir e dispôs-
se a cumprir com seus deveres de dona de casa.
O homem, que apareceu no umbral da porta, era de alta
estatura. Talvez, parecesse mais alto, em conseqüência de
sua magreza. Estava todo vestido de preto, da cabeça aos pés
e a larga gravata, que adornava seu colarinho, era também de
um tom de negra severidade. Levava na mão um chapéu de
suave feltro preto, que o mordomo não havia podido tomar,
apesar das reiteradas tentativas.
Seu rosto era magro e comprido, abatido e cheio de viços.
Os olhos grandes eram cinzentos e de olhar penetrante.
Eram terrivelmente vivos e expressivos, pareceu a Marjorie.
Davam a impressão de que em suas profundezas ficava
contido todo o decurso de sua vida. O cabelo era preto e
aparecia ligeiramente penteado, atrás das orelhas.
Não se podia chamá-lo de feio, nem tampouco de formoso
Devido a seu caráter e fortaleza, podia dizer-se que seu rosto
era atraente e fora do comum. A boca era grande e sensitiva.
As mãos, sem luvas, compridas e branca e tão delicadas
quanto as de um cirurgião.
Olhou com rapidez de uma para outra das mulheres.
— Sinto muito ter vindo aqui incomodá-las, — disse. Em sua
voz não se notaya o menor sotaque estrangeiro. — Pensei
encontrar Sir Ralph aqui. — Saiu, pois não?
Tinha um modo rápido e insinuante de falar. Parecia como
se estivesse ávido de antecipar-se à resposta. Antes que a
jovem pudesse contestar, ele havia falado novamente.
— Convidou-me, gentilmente para jantar em sua casa e sinto
muito não poder contentá-lo. Devo regressar a Londres
dentro de poucas horas. Tenho que realizar duas entrevistas
importantes.
Seu sorriso era difícil de interpretar; iluminou todo seu rosto
e mudou-lhe q aspecto severo, moroso e funéreo, no de um
ser novo e radiante.
Marjorie percebeu que havia nele algo de formoso em seu
divertimento. O sorriso aparecia e desaparecia, como um
raio de sol num céu de nuvens.
A senhorita é Marjorie Meagh, — disse, — e a senhora, —
acrescentou com ligeira inclinação de cabeça, — é Lady
Morte-Mannery.
Fez um gesto interrogativo com a cabeça. Esse gesto e a
inclinação que fez foram os únicos indícios que traíram sua
origem continental.
Vera fez o impossível para sorrir. Adiantou-se um pouco
embaraçada. Esperara poder escapar a essa apresentação,
pretextando uma dor de cabeça para sair do aposento.
— Eu a vi no Tribunal, — disse Tillizini, com rapidez. — Foi
um caso interessante, não é verdade ? Aquele pobre
homem...
Estendeu a mão num gesto de piedade.
— Não compreendo por que possa simpatizar com ele, —
disse Vera.
— Sete anos! — Tillizini moveu a cabeça de um lado para
outro. — É uma condenação muito longa, senhora, para um
homem inocente.
Novamente notou-se um ligeiro estremecimento nele. O
homem caminhou, nervosamente, pela sala.
— Ouviram sua declaração, não? Disse que havia entrado
nesta casa para esperar um homem que devia dar-lhe um
embrulho.
— Sim! Mas, não creio que o senhor possa dar crédito a isso,
não é certo? — disse Vera com tom de desdém.
— Sim, é claro que acredito, — falou Tillizini com toda
calma e gravidade. — Por que não acreditaria? Toda a atitude
do homem, cada uma de suas palavras mostraram de forma
indubitável e eloqüente que ele não disse nada mais do que a
verdade.
— O senhor acredita, então, na existência deste italiano
misterioso? — perguntou Vera com ansiedade.
— Oh, Vera! Não se lembra? — interveio, de repente,
Marjorie, com alguma excitação. — Havia um italiano na
localidade! Nós o vimos um dia antes do roubo. Não se
recorda? — perguntou novamente. — Um homem baixo,
que usava uma capa grande, que o cobria todo, chegando até
os calcanhares. Passamos diante dele, quando íamos por
Breckley Road e lembro-me de haver dito que parecia um
espanhol ou italiano, pela maneira peculiar com que
segurava seu cigarro.
— Ah, sim!
Foi Tillizini, pletórico de vitalidade, que se estremeceu,
como se movido por algum toque mágico, como se suas
cordas vitais tivessem sido tocadas pela mão de algum
músico invisível.
— Era baixo e de compleição forte e estava vestido de preto,
— disse a jovem.
— Com bigode... não? — perguntou Tillizini.
A jovem moveu negativamente a cabeça.
— Estava muito bem barbeado.
— Vocês seguiam na mesma direção que ele, pois não?
A jovem confirmou, novamente, respondendo com um
sorriso a pergunta do homem.
— Voltou o rosto para vocês ou deixou de olhá-las?
Outra vez Marjorie assentiu.
— Não queria, talvez, que lhe vissem o rosto? E o próprio
Tillizini sacudia a cabeça, dando ênfase à pergunta e como
que respondendo a si mesmo.
— Que tolice, Marjorie! — exclamou Vera, com petulância.
— Não me lembro de nada disto. Vêem-se, sempre, pelas
ruas tocadores de realejo com mulas e outras coisas, através
do povoado e vendedores de gelados, que vêm do lado de
Chatham. Você está deixando-se levar pela imaginação!
Marjorie ficou surpreendida. Recordava-se, claramente, do
incidente. Nesta mesma noite, falara a Vera sobre isso, na
hora do jantar. E era estranho que ela viesse esquecer-se de
tudo isto, ali, naquele instante.
— Mas, você deve lembrar-se, — disse.
— Não me lembro de nada, — contestou a outra, secamente.
— Além disso, engana-se ao dar ao senhor Tillizini uma
pista falsa. Não resta a menor dúvida de que esse homem,
Mansingham, penetrou na casa com o propósito de roubar a
coleção de jóias de Sir Ralph.
— Instigado pelo italiano, — disse Tillizini. — Oh, vocês
ingleses! — exclamou com um gesto de desgosto. — Sinto-
me desolado, quando falo com vocês! Têm tal temor ao
melodrama! São tão insistentes sobre os fatos que só
explicam com facilidade as coisas evidentes.
Meneou a cabeça, novamente, com ar resignado.
Na boca de outro homem, estas palavras teriam sido de
impertinência imperdoável. Mas, Tillizini tinha o
extraordinário dom de criar a seu redor uma atmosfera de
amizade antiga. Até a própria Vera, francamente antagonista
como era, tinha uma vaga sensação de haver discutido a
questão, anteriormente, com o homem que falava de seus
compatriotas de maneira tão desdenhosa .
Ele olhava para o relógio.
— Antes de me retirar, queria ver Sir Ralph. Onde poderei
encontrá-lo?
Vera tinha uma vaga suspeita de que nesse momento seu
esposo estava discutindo acaloradamente com o açougueiro,
que havia cobrado meio centavo a mais no preço da carne,
mas pensou que não seria digno de sua posição dar-lhe esse
detalhe a conhecer.
— Estará aqui dentro de breves instantes, — disse.
Tillizini olhou-a fixamente e ela não pôde suspeitar da causa.
Em seu tom, não houvera nada que justificasse o olhar de
intenso interesse que apareceu, subitamente, no rosto dele.
— Já a vi em outra parte, Lady Morte-Mannery, — disse
rapidamente, — e é estranho que nesse momento não
consiga me lembrar em que circunstâncias.
— Realmente? — disse Vera, num tom que denotava não ter
nenhum interesse no assunto. — Às vezes, temos umas
curiosas impressões... queira desculpar-me um momento,
doutor? — disse. — Sinto uma dor de cabeça muito forte e
creio que seria melhor deitar-me. Miss Meagh lhe fará
companhia, até à volta de Sir Ralph.
file caminhou até à porta com presteza, abrindo-a e quando
ela passou, saudou-a com uma graciosa inclinação de cabeça.
Em seguida, fechou a porta e voltou lentamente para junto
de Marjorie.
— Onde, onde, onde? — perguntou, batendo nervosamente
no rosto, sem deixar de olhar para a jovem.
Ela riu.
— Bem sabe, doutor, que é a si mesmo que poderia fazer tal
pergunta, — disse Marjorie. — Não deve confundir-me com
o Oráculo.
Novamente, viu-se o formoso sorriso que iluminava o rosto
do homem.
— Eu estava perguntando ao Oráculo, — disse êle, tocando
no peito. — E agora já me lembro. Foi quando houve uma
visita policial, numa casa de jogo. A casa era administrada
por um de meus compatriotas. Eu compareci ao Tribunal.
— Espero que saberá esquecer-se disto, doutor Tillizini, —
falou Marjorie com toda a calma. — Lady Morte-Mannery
foi muito descuidada, em ter se deixado apanhar num lugar
assim e não seria muito amável recordar...
Deteve-se, de repente, ao ver o olhar de assombro no rosto
do outro.
— Minha estimada senhorita, — disse, com o rosto ilumi-
nado por um sorriso só seu, — não quer dizer que Lady
Morte- Mannery estivesse, de certo modo, complicada neste
assunto, não é? Seria absurdo, doloroso e quase uma vilania,
— disse com extravagância, — associar semelhante dama
com um assunto tão pouco limpo. Esse foi um erro muito
comum, — prosseguiu. — A maior parte das pessoas ali
presentes eram italianos da mais baixa origem e minha
intervenção no assunto, deveu-se unicamente à esperança
de identificar alguns dos participantes, como pessoas que
para mim tinham outro interesse. Lady Morte-Mannery
esteve no Tribunal, não posso negá-lo, mas, achava-se ali,
como convidada do Magistrado da polícia metropolitana,
Mr. Curtain, que, segundo suponho, é amigo intimo de Sir
Ralph.
Isto, certamente, tinha acontecido assim e Marjorie sabia
também da amizade alegada entre Sir Ralph e Mr. Curtain.
Então, por que Vera lhe mentira? Deu-se conta da rapidez
com que ela preparou o relato. Mas, por que apresentava o
acontecimento como uma desculpa para evitar um encontro
com Tillizini?
— Sir Ralph vem aí, — disse, de repente.
Havia visto passar o carro, diante da janela.
— Poderá ficar só, um instante, enquanto vou anunciar-lhe
sua visita?
Ele abriu a porta, fazendo uma reverência.
Marjorie encontrou Sir Ralph no vestíbulo e disse-lhe que
seu convidado o esperava.
— Onde está Vera? — perguntou.
— Foi para o quarto deitar-se, — disse Marjorie. — Estava -
queixando-se de forte dor de cabeça.
Ouviu-se Sir Ralph praguejar baixinho.
Essas dores de cabeça, pensava, constituíam a principal arma
de defesa de sua mulher. Um método muito conveniente,
mas muito inconveniente para ele, de evitar as
responsabilidades domésticas. Sentia-se mais aborrecido,
porque ela não só havia deixado de fazer as honras da casa a
um homem, por cuja posição ele tinha grande respeito, mas
também porque sua atitude era de completo descuido.
Havia descoberto que só poderia atribuir à sua esposa o meio
centavo cobrado a mais na conta do açougueiro. Ela aceitara
a imposição numa carta que o fornecedor mostrara
triunfalmente, para justificar sua atitude.
E foi assim que se encontrou na posição desvantajosa em
que todo homem pode sentir-se, quando sua mente está
ocupada
com alguma dificuldade privada. Nesse estado de espírito, foi
ao encontro de Tillizini.
Os dois homens passaram à biblioteca, permanecendo ali
pelo espaço de um quarto de hora.
Findo esse tempo, voltaram ao salão. Tillizini, para despedir-
se da jovem, Sir Ralph para acompanhá-lo até ao automóvel
que o esperava.
Marjorie notou que seu tio parecia consideràvelmente
excitado. Seu rosto estava vermelho, incendiado, os cabelos
grisalhos em desordem. Além disso, pareceu-lhe notar que
tratava um pouco secamente a seu hóspede.
Quanto a Tillizini, era o mesmo homem imperturbável e frio
de antes. Era um homem notável. Sim, essa era a palavra que
Marjorie acreditava que melhor o definia. O homem era um
artista, elevado a um grau que ela não podia conceber.
— Algum dia voltarei a vê-la, — disse Tillizini, enquanto
tomava a mão da jovem entre a sua e ela ficou surpreendida
com a força de seu aperto. — Não me retiraria tão cedo, mas
Sit Ralph deu-me permissão para ver Mansingham, o
homem que foi condenado hoje.
— Creio que suas suspeitas são completamente infundadas,
professor, — disse-lhe Sir Ralph. — Não acredito que possa
saber alguma coisa da bdea desse homem, a não ser um
amontoado de mentiras.
— Oh, nada mais do que mentiras! — disse Tillizini, com um
gesto especial. — São às vezes interessantes, Sir Ralph,
muito mais interessantes do que a verdade corrente e vulgar
e, portanto, muito mais informativas.
O velho cavalheiro que se orgulhava de ser completamente
simples em suas palavras, não podia pensar em paradoxos.
Murmurou um protesto, ao ouvir as palavras de Tillizini.
— O senhor é um italiano, — disse-lhe. — E suponho que
essas coisas o divirtam. Mas, aqui na Inglaterra, considera-
mos como coisas inúteis. Não lhes dando muita atenção,
evitam-se muitos aborrecimentos e aproxima-se muito mais
da verdade. O senhor sabe, — disse, com aprumo, — que
tddas essas histórias sobre as organizações misteriosas ficara
muito bem em novelas. Admito que em seu pais, vocês
contam com a Camorra e a posse desse fator contribui em
muito para modificar seu julgamento,
mas posso assegurar-lhe, — disse, pondo suas mãos com
paternal solicitude sobre as costas do visitante, — que nada
dessa espécie...
Estavam parados junto à janela. A tarde começava a cair e as
luzes ainda não tinham sido acesas.
De repente, um dos vidros da janela, justamente na altura da
cabeça de Tillizini, saltou com estrépito.
Pareceu repercutir três vezes, em rápida sucessão e
simultaneamente, desde o interior, ouviu-se o impacto:
Craque! craque! craque!

CAPÍTULO IV
A «MÃO VERMELHA» ERRA O GOLPE

Sir Ralph sentiu o assobio das balas passando diante dele e
ouviu o ruído que fizeram ao se chocar contra um quadro
que estava dependurado na parede oposta. Deu um salto para
trás, ficando branco e trêmulo. Tillizini estendeu a mão e
empurrou a jovem, obrigando-a a retroceder, refugiando-se
num canto.
Imediatamente, ajoelhou-se e caminhou, assim agachado até
junto da janela. Agarrou o caixilho e ficou, repentinamente,
de pé. Por um instante permaneceu quieto, imóvel e, em
seguida, viu-se partir de sua direção o fogo de uma
Browning, que entrava em ação.
O ruído foi ensurdecedor. Tornou a atirar e esperou.
Voltou-se e dirigiu-se para onde estavam Sir Ralph e a
jovem. Em seu rosto, surpreendeu-se um sorriso de
beatitude.
— O senhor estava dizendo, — falou com toda calma, — que
essas coisas não acontecem na Inglaterra!
Sua voz estava tranqüila como sempre. A mão que tirou o
lenço do bolso para limpar um filete de sangue, que corria
de sua fronte, não tremia nem um pouco.
— Que aconteceu? — perguntou Sir Ralph, todo agitado. —
Deve ter sido algum vagabundo ou ladrão ou algo
semelhante. Esses mendigos odeiam-me.
— Os vagabundos não usam revólver Mauser, — disse
tranqüilamente Tillizini. — Se se der ao trabalho de extrair
as balas que estão metidas na parede, que penso devem ter
causado algum dano, verá que esses projetis não têm a
menor semelhança com os cartuchos que seus amigos usam.
E depois de uma pausa, concluiu:
— Não, estes tiros não lhe estavam destinados, Sir Ralph.
Posso assegurar-lhe que eram para mim, — e sorriu.
Depois, olhou para fora escrutadoramente, através da janela.
Sinto não o haver alcançado, — disse. — Cheguei ainda a
ver claramente o atacante, quando fugia correndo por entre
as árvores.
— Quem era? — perguntou Sir Ralph, com ansiedade.
Tillizini fixou-o com certa malicia.
— Quem foi o atacante? — repetiu deliberadamente a
pergunta. — Creio que deve ter sido o italiano que mandou
William Mansingham a esta casa, para receber o embrulho.
— Mas, de quem? — perguntou Sir Ralph.
— Isso é o que chegaremos a saber um dia, — respondeu o
outro evasivamente.
Mais tarde, Sir Ralph dirigiu-se até à estação ferroviária,
consumido pela curiosidade por encontrar Tillizini e saber
do resultado da entrevista que ele permitira ao detetive
realizar com Mansingham.
Se tinha ou não o direito de ordenar aos guardas da prisão
local, que deixassem Tillizini entrevistar-se com o preso, era
coisa que não poderia assegurar. Mas, como o italiano gozava
de plenos poderes, conferidos pelo Ministério do Interior,
era provável que a entrevista se realizasse, mesmo sem o seu
consentimento.
O Presidente do Tribunal havia insinuado que seria
preferível que a entrevista se realizasse em sua presença,
mas o italiano soubera deixar de lado a sugestão, de maneira
muito delicada.
Cinco minutos antes da hora do trem partir, Tillizini desceu
do automóvel que o deixou à porta da estação.
Fumava um charuto fino e comprido e, segundo Sir Ralph
pôde julgar, sentia-se sumamente satisfeito consigo mesmo,
porque entre os dentes apertados, assobiava uma ária
conhecida, enquanto caminhava pela plataforma.
— E então? — perguntou curiosamente Sir Ralph, — que lhe
disse nosso amigo?
— Nada que o senhor não saiba, — replicou o outro
secamente. — Tornou a repetir a história relatada no
Tribunal sobre meu misterioso compatriota. Deu-me um ou
dois detalhes que serão de muito maior interesse para mim
do que para o senhor. ..
— Tais como...? — sugeriu Sir Ralph.
— Bem... — Tillizini vacilou. — Disse-me que o mandante
informou-o de que o embrulho que receberia, seria muito
pequeno e que poderia carregá-lo no bolsinho de seu colete.
Sir Ralph sorriu sarcàsticamente.
— Em minha coleção, há vários objetos que podem ser
carregados no bolsinho do paletó. Não! — pareceu corrigir-
se a si mesmo, — há, pelo menos, cinqüenta. E a propósito,
— disse de repente, o senhor jamais teve oportunidade de
ver minha coleção.
Tillizini sacudiu a cabeça decididamente com um
divertimento passando-lhe pelos olhos.
— Isso não é necessário, — disse. — Conheço cada um dos
objetos que o senhor possui, Sir Ralph. O tamanho, origem e
quase a quantia exata que pagou, peça por peça.
Sir Ralph voltou-se para ele com assombro.
— Mas, como? — perguntou admirado. — Só tenho um
catálogo particular e fora de casa não existe nenhuma cópia.
— Está muito bem, — ponderou Tillizini. — Permita-me que
os enumere, — e começou a contar nos dedos,
pausadamente, — número um, um medalhão egípcio, da
coleção Calliciti, em ouro salpicado de rubis, sem lapidar, no
valor de quatrocentas e vinte libras. Número dois, uma placa
de Tanagra, um verdadeiro exemplar, muito raro, com
moldura de ouro suave, com inscrições sírias. Número três,
um medalhão de cristal, tomado em Nápoles por Napoleão,
em cujo reverso pode ser visto um busto de Beatriz de Este e
do outro, «Il Moro», o duque de Milão, no valor de... a
propósito, não lhe dei prèviamente seu valor, porque havia
me esquecido, cerca de seiscentas libras. Número quatro,
um objeto veneziano, em forma de harpa...
— Mas, — murmurou Sir Ralph, — esses dados sobre minha
coleção somente são conhecidos por mim.
— Também eu os conheço, — disse o outro.
Enquanto conversavam, o trem chegou e Tillizini dirigiu-se
para um vagão vazio, ocupando um compartimento livre.
Em seguida, fechou a porta e chegou-se à janela.
— Há muita coisa que lhe falta conhecer, — disse, — e esta
não será certamente a última. Entre o homem com o
segredo e o homem que conhece esse segredo, há um
intermediário, que surpreendeu o primeiro e informou o
segundo.
Sir Ralph ficou preocupado, ante tais revelações e enquanto
o trem partia da estação, ficou parado, até que as luzes
traseiras desaparecessem, à distância, entre as colinas de
Burboro.
Ao encontrar-se a sós no vagão, Tillizini fechou as duas
portas com a chave e abaixou as cortinas. Não tinha a menor
dúvida sôbre as sinistras intenções do homem ou homens
que o haviam seguido, com tanta tenacidade,
acompanhando todos os seus passos, desde o instante em
que saíra de Londres. Se devia ser assassinado decidiu que
não seria morto por um tiro disparado por qualquer homem
que se postasse no estribo do vagão.
Esse trem era o expresso de Burboro a Londres e a primeira
parada seria na Tôrre de Londres.
Ocupou o assento central do carro, colocou os pés sôbre os
almofadões à sua frente, deixou o revólver Browning
descansando ao lado e dispôs-se a ler. Levava consigo, na
pasta, uma boa quantidade de jornais londrinos, que o
acompanhavam inseparavelmente.
Já lera um deles na viagem de vinda. Agora, dedicou-se a ler
o outro.
Seu interesse parecia concentrar-se na página dos anúncios.
Não se preocupou com nenhuma outra espécie de
informações. Um a um, foi percorrendo os anúncios que
apareciam sobre a classificação «Pedidos de Serviço
Doméstico».
Chegou ao final, sem descobrir nada de interessante. Deixou
o diário e pegou outro.
Encontrava-se na metade de uma coluna, quando seus olhos
se detiveram ante um anúncio. Para o leitor comum, não
passava do. pedido usual de alguma dona de casa. O anúncio
dizia:
"Cozinheiro-chefe, de preferência italiano. Para família de
cinco pessoas. Quinta-feira, não quarta, como se anunciou
primeiramente. Informe que retribuição dará.» Trazia o
endereço de uma agência de publicidade de Londres Tornou
a lê-lo e, em seguida, retirou um pequeno canivete do bolso
de seu colete e com todo o cuidado recortou o anúncio.
Parecia tratar-se de um anúncio um tanto especial.
Acreditou ver alguma coisa oculta neste detalhe de quinta-
feira e não quarta, como se anunciou, primeiramente. Era
uma redação muito pouco usual, nesta espécie de anúncio.
Quem poderia se preocupar que a noite «livre» fosse a de
quarta-feira e não de quinta, que antes se anunciara?
Mas, o erro flagrante do anúncio estava evidentemente no
último parágrafo. Geralmente, a maioria dos anunciantes
mostrava interesse em conhecer que salário o pretendente
desejava. Logicamente, jamais sugeriria que o «cozinheiro-
chefe», cujos serviços se solicitavam, contribuísse, além de
seu próprio trabalho, com alguma coisa que significasse
pagamento por semelhante privilégio.
Tillizini olhou para cima e ficou pensando.
Ainda era segunda-feira. Alguma coisa fora preparada para a
quarta-feira e isso fora transferida para o dia seguinte. Por
isso, deveria pagar um preço. Possivelmente, pedia-se uma
antecipação, do preço original, já combinado. O anunciante
devia ter feito algum arranjo prévio sobre o pagamento.
De forma alguma, associava o anúncio com os recentes
acontecimentos de Highlaw. Estes eram uma parte do plano
que desenvolvia. Os emissários daquela terrível sociedade,
cujas maquinações ela estava disposto a frustrar, quase
poderia assegurá-lo viajavam no mesmo trem.
Achava-se tão acostumado a essa espécie de espionagem,
que passava por cima dela, sem contudo se esquecer
completamente de seus riscos, por completo. Estava sempre
preparado para qualquer movimento, por inevitável que
pudesse ser e que fosse intentado contra sua vida ou contra
sua segurança.
Era esperar demais, pretender que a «Mão Vermelha» lhe
perdoasse as atividades que havia desenvolvido na América
do Norte. Seus serviços serviram para limpar os Estados
Unidos dessa peste de criminosos e terroristas tão temíveis.
Não era sua culpa que eles tivessem se aproveitado das leis
de emigração da Inglaterra, para assentar seus arraiais na
metrópole.
Tornou a colocar os jornais na pasta e pouco antes do
trem entrar na Torre de Londres, levantou as cortinas
das janelas do compartimento.
Escurecera completamente e a atmosfera estava
úmida.
Não fez o menor movimento para descer na estação.
Não era, como o sabia por experiência própria, um
lugar muito seguro para que, um homem ameaçado
como ele, desse por terminada sua viagem.
Havia ali túneis escuros que conduziam à entrada da
estação. Túneis que um homem não poderia
percorrer, sem arriscar a vida, se por acaso, fôsse o
único transeunte ocasional e seria conveniente dilatar
a descida por mais uns cinco minutos, dando tempo a
que os assassinos profissionais escapassem.
Um pouco além de Waterloo, desceu novamente as
cortinas. Seus movimentos eram automáticos,
desprovidos de temor.
Tomava as mesmas precauções que um pedestre
apressado, ao atravessar um cruzamento de ruas de
muito trânsito. Olhava da esquerda para a direita,
antes de atravessar essa zona perigosa de seu
caminho.
Ao longo da ponte ferroviária, que atravessa o rio até
à estação de Charing Cross, existe um caminho para
pedestres, conhecido pelo nome de ponte Old
Hungerford.
Nesse caminho, postavam-se três homens, a curta
distância um do outro e que pareciam estar
aguardando a chegada do trem, procedente de
Burboro.
Podiam ver chegar o comboio das duas direções,
estando em condições de, no preciso momento, abrir
fogo contra o vagão que desejassem.
Tillizini não sabia disto, mas podia pressupô-lo. Não
se tratava de uma contingência improvável.
Na apinhada estação de Charing Cross, podia sentir-se
seguro. Por outro lado, encontravam-se ali dois
homens que haviam passado toda a tarde, sem chamar
a atenção, andando de um lado para outro e que se
puseram à sua disposição, tão logo atravessou a grade
da estação.
Fez um sinal convencionado a um deles, tão
dissimuladamente, que nem o mais sagaz observador
poderia perceber.
Os dois agentes de Scotland-Yard, cuja tarefa era
seguir-lhe os passos, em Londres, começaram a andar
atrás dele e ficaram parados, na calçada, até vê-lo
subir tranqüilamente no táxi, que o esperava.

CAPÍTULO V
A HISTÓRIA DA «MÃO VERMELHA»

Em torno do nome do Professor Antônio Tillizini
centralizaram-se interessantes e movimentadas
controvérsias. Nenhum homem de ciência poderá ter
se esquecido do extraordinário documento que ele
leu, perante a Royai Society, em Sheffield.
Qualificou-o prosaicamente com o título de «Algumas
Reflexões sobre as Impropriedades do Código
Criminal» e, do ponto de vista do leigo, considerava-
se que o professor admitira, tranqüilamente, no
transcurso de sua conferência, que nos dez anos de
sua carreira, vira-se obrigado a matar dez criminosos.
Fora suficientemente discreto, não oferecendo
maiores detalhes, nesse particular e ainda que seus
inimigos, valendo-se de suas próprias palavras,
tivessem tentado inculpar-lhe um só desses crimes,
não tiveram resultados em suas tentativas.
O mais significativo no julgamento da opinião pública
era que Tillizini não se viu privado de sua cátedra de
Antropologia na Universidade de Florença, nem
muito menos que a sociedade de Londres tivesse
fechado suas portas ao estrangeiro, que se confessava
matador de homens.
Por outro lado, sabia-se que, ao preparar seu projeto
de reforma da lei criminal, o governo solicitara o
conselho deste homem extraordinário. E havia se
verificado, em conexão com o repentino
aparecimento da onda de criminosos de caráter muito
especial, precisamente a notoriedade deste homem,
destacando-se aos olhos do público, ele que passava
seis meses do ano na Inglaterra e os outros seis
restantes, na sua adobada Itália e de quem tantas
coisas se diziam e que vivia pensando em inglês e
agindo como italiano.
Dizia-se dele que conhecia todos os segredos dos Bórgias.
Murmurava-se alguma coisa sobre superstições e
micromancia e esta reputação, sustentada entre a colônia
italiana de Londres, servira- lhe em boa hora, quando
chegou o dia em que resolveu dedicar-se à caça e a dar fim à
«Mão Vermelha».
A organização conhecida como a «Mão Vermelha» foi
varrida da América, graças ao heroísmo de Tillizini e ao
concurso do habilíssimo Teurn, destacado detetive de
Cincinati.
Haviam implantado leis severas e temíveis, até à brutalidade.
O sistema de investigações, conhecido como «Terceiro
Grau» fora elaborado de tal forma, que pouco faltava para
igualar-se com os métodos da Inquisição espanhola e tinha
sido necessário proceder assim, para acabar com a onda de
chantagens e de crimes, em que se especializava a «Mão
Vermelha».
Depois da eletrocução de sete homens, em Pittsburg, notou-
se uma diminuição da onda criminosa, mas o silêncio da
«Mão Vermelha» não se prolongaria por muito tempo.
Foi no mês de dezembro de 19..., quando Carlo Gattini,
opulento italiano que residia em Cromwell Square Gardens,
recebeu um bilhete, escrito à máquina, em que se lhe exigia
que colocasse a soma de mil libras esterlinas, em espécie, em
determinado sítio do Hyde Park. Na missiva, mencionava-se
a hora e a data. A carta estava assinada com uma pequena
mão vermelha, impressa, evidentemente, com um carimbo
de borracha.
Mister Gattini sorriu ao recebê-la e não demorou a passá-la
às mãos da polícia.
Por indicação da polícia, respondeu por intermédio do
«Times», concordando com o que pediam. Fez um
embrulho e foi levá-lo ao lugar indicado e quatro homens da
Scotland Yard ficaram de guarda, durante toda a noite,
esperando a chegada do mensageiro da «Mão Vermelha».
O mensageiro não apareceu. Ou suspeitaram da trama ou
estavam informados. Para o código da polícia, sempre
desprovido de romantismo, o assunto podia dar-se por
encerrado nesta altura.
Na manhã seguinte, porém, o rico súdito italiano recebeu
uma nova comunicação que dizia assim:
«Oferecemos-lhe outra oportunidade. Se for à polícia, pode
dar-se por morto. Coloque duas mil libras em notas, dentro
de um envelope e deixe-o junto ao primeiro arbusto de seu
jardim.
Gattini sentiu-se alarmado e foi notificar a polícia. Esta
instou com ele para que não se intimidasse. Vários agentes,
vestidos à paisana, ocultaram-se na sua residência e se
distribuíram pelo jardim. Outros homens, do serviço
secreto, instalaram-se na casa vizinha, mas novamente o
mensageiro não apareceu e o italiano não recebeu mais
comunicação.
Nas vésperas do Natal, Mister Gattini regressava da cidade,
depois de um dia atarefado. Era viúvo e vivia em companhia
de quatro criados: uma mulher de idade, que servia de
cozinheira, uma arrumadeira e dois homens.
Às sete e meia, o camareiro dirigiu-se a seu aposento, para
avisá-lo de que o jantar estava servido. A porta do quarto de
Gattini estava fechada.
O criado chamou, mas não obteve resposta. Tornou a bater,
sem resultado.
Voltou à dependência dos criados e contou o que estava
acontecendo. Acompanhado do chofer, saiu para o jardim e
os dois observaram a frente da casa, olhando até à janela do
quarto de seu patrão.
Estava completamente escura.
Providencialmente, nesse momento, chegou um homem da
Scotland Yard, que vinha por causa das cartas e os criados
confiaram-lhe seus temores.
Os três subiram até chegar à porta do quarto de Mr. Gattini e
bateram com força. Não obtendo resposta, apoiaram os
ombros contra a porta e abriram-na com estrépito.
A princípio, nada viram. O quarto estava aparente e
completamente vazio.
Um deles apressou-se a acender a luz e, então, puderam ver.
O desgraçado homem fora atacado, enquanto se encontrava
junto à sua mesa de toalete. A faca que o vitimara não
aparecia em nenhum lugar e era evidente que a vítima
sucumbira sem soltar um grito, um «ai» sequer.
Esse foi o primeiro assassinato... e outros mais haveriam de
seguir.
Sir Cristóforo Angeli, rico banqueiro italiano, que se
naturalizara súdito inglês, recebeu ameaça idêntica à de
Gattini. Também não deu atenção ao pedido de dinheiro,
que lhe era feito. Foi morto por uma bala, enquanto se
achava recostado na janela de sua casa, numa bela tarde de
primavera e nenhum ser vivo pôde dar notícia a respeito do
homicida.
Houve um novo período de calmaria, mas era evidente para
a polícia, que procurava uma pista por toda a Europa, que
esta aparente inatividade não significava, absolutamente,
uma cessação das atividades por parte da quadrilha, mas, ao
contrário, uma prova cabal do êxito de suas operações e um
novo recrudescimento. Muitos homens, que temiam por
suas vidas, pagavam as somas que lhes eram exigidas, e
tratavam de ocultar toda e qualquer informação à polícia.
O reinado do terror ia crescendo e, quando não havia mais
nenhum membro rico da colônia italiana para extorquir,
voltaram seus olhos para outras fontes propícias e
promissoras de copiosos resultados.
Henry S. Grein, abastado corretor da bolsa de Chicago,
conhecido também em tôda a Europa, por suas valiosas
coleções de objetos de arte, recebeu um pedido de dinheiro,
escrito à máquina.
Telefonou para a polícia e a Scotland Yard mandou o melhor
investigador para entrevistar o milionário no Fitz Hotel,
onde estava hospedado.
— Não pagarei nem um centavo, — disse o milionário.
Era um homem de elevada estatura, rosto severo, com uma
boca no feitio de armadilha de ratos e o agente de serviço
secreto, inteirou-se de que nesse caso, a «Mão Vermelha»
havia tropeçado com um candidato um pouco difícil.
— Compete-lhe, — disse ao policial, — evitar que me
matem. Pode fazer os arranjos que desejar e estou disposto a
oferecer uma recompensa de vinte mil dólares pela prisão da
quadrilha ou simplesmente de seu chefe.
Foi, então, que começou uma luta extraordinária, que abriu
pela primeira vez os olhos do público, em geral, para um
fato que vinha ocorrendo há muito tempo.
A história da luta de Grein com seus assassinos, no andai
mais elevado do Fitz Hotel, o tiro certeiro que matara
Antônio Ferrino, que conseguira penetrar em seu
dormitório, o fracasso da tentativa de fazer voar o edifício
do hotel por meio de dinamite — todos esses fatos já são do
domínio histórico.
Foi na manhã em que o corpo de Henry S. Grein foi
encontrado boiando sobre as águas do Tâmisa, em frente a
Cleopatra's L'eedle, que o governo voltou sua atenção para
Tillizini.
Na noite de seu regresso de Burboro, Tillizini achava-ee
sentado em sua ampla mesa de trabalho, dedicando-se a
solucionar um problema.
O reflexo vermelho da lâmpada que tinha a seu lado, dava-
lhe ao rosto um aspecto sinistro, que comumente não
possuía. Seu rosto fino era sulcado de profundos vincos — o
nariz comprido, as sobrancelhas negras e arqueadas, mas
qualquer que fosse a desagradável impressão que esses traços
mefistofélicos pudesse dar, essa impressão desfazia-se ao
observar-se o brilho agradável que iluminava os olhos de
Tillizini.
Italiano como era, em cada um de seus traços, os olhos eram
quase irlandeses, pela suavidade de sua cor cinzenta,
grandes, claros e luminosos. Os longos cílios negros que os
sombreavam, aumentavam a beleza do olhar.
A mão esquerda apoiava-se sobre o livro, para mantê-lo
aberto no lugar desejado. Estendeu o braço, por cima da
mesa, para pegar a cigarreira de ouro que ali se achava. Tirou
um cigarro e acendeu-o na pequena lâmpada, que
descansava ao lado de seu cotovelo.
O aposento, aonde se encontrava, era amplo e espaçoso. O
teto e a lareira tinham sido artisticamente decorados pela
arte mágica de Adam. As paredes possuíam painéis de
carvalho escuro, que chegavam até à metade de sua altura e,
a não ser por uma aquarela que representava uma paisagem,
e que estava dependurada ao lado esquerdo da lareira, não se
via nelas nenhum quadro.
Numa das paredes, achava-se uma estante de livros, que
corria desde a parede exterior até uma porta, situada perto da
janela, ocupando toda a sua extensão.
As janelas eram compridas e estreitas e estavam adornadas
com pesadas cortinas vermelhas.
O ambiente denotava comodidade e severo luxo.
Tillizini continuava lendo, enquanto as nuvens de fumaça de
seu cigarro subiam lentamente para o teto. De repente,
fechou o livro, com um golpe e levantou-se, sem fazer
barulho. Olhou para o relógio. Era um olhar inútil, porque
ele tinha o sentimento inconsciente das horas, fosse durante
o dia ou durante a noite.
Aproximou-se de uma das janelas e olhou para fora at£ o
Embankment.
Viu a crescente fileira de luzes que se estreitava na direção
de Blackfrials, interceptadas, de certo modo, pela mole de
Waterloo Bridge. Do outfo lado do rio, via-se um anúncio
iluminado pela mole, que sugeria ao transeunte beber, à sua
própria custa, determinada marca de vinho. Mais além,
abaixo, uma alta torre iluminada por luzes que se apagavam e
acendiam anunciava a marca do único uísque que valia a
pena.
O professor observou tudo aquilo muito seriamente.
De súbito, viu-se um clarão de luz, que se extinguiu quase
imediatamente. A luz tornou a acender-se logo. Era uma luz
branca, brilhante, que voltou a se apagar.
Tillizini volveu com rapidez. De uma ornada mísula, tirou
uma lâmpada de curioso aspecto e uma bobina de arame.
Rapidamente fixou o fio da lâmpada num interruptor de uma
tomada elétrica da parede. Apagou todas as luzes do
aposento e ficou esperando. Novamente, viu-se brilhar a luz,
na margem oposta do rio.
O professor ligou uma chave, na base da lâmpada e de seu
aparelho de forma cônica partiu um raio de luz azulada.
Repetiu a operação por duas vezes, quando a luz na outra
margem começou a brilhar furiosamente, em precipitadas
marchas, com interrupções sumamente rápidas. Um
pestanejar longo, um curto, um longo, outro curto. Parecia
que não desejava perder um instante na transmissão de sua
mensagem.
À medida que a luz «falava», Tillizini respondia de maneira
idêntica. Leu a mensagem com tanta facilidade, como se se
tratasse de um livro impresso, porque conhecia o inglês tão
bem quanto sua língua materna e, além do mais, era um
perito nas questões semafóricas.
A luz do outro lado da margem deixou de falar e Tillizini
cerrou a janela, aonde estivera. Tornou a colocar o projetor
na mísula, encostada contra a parede. Desceu em seguida a
cortina e acendeu a luz do escritório.
Aproximou-se de sua escrivaninha e escreveu rapidamente o
significado da mensagem que acabara de receber. Escreveu
em caracteres diminutos, que poderiam passar por escrita
cifrada e cujo significado só ele mesmo conhecia.
Apenas acabara de escrever, quando soou o timbre musical
da campainha elétrica, que chegou suavemente a seus
ouvidos. Apertou um botão, colocado ao pé da mesa, enfiou
com rapidez o livro de notas na gaveta da mesa e voltou-se,
no mesmo momento, para a porta que se abria.
O criado, impecavelmente vestido, apareceu com um
visitante.
— O inspetor Crocks, senhor, — anunciou.
Crocks era um homem baixo, forte e de aspecto jovial. Sua
cabeça era tão calva como uma bola de bilhar. A barba, em
ponta, já estava salpicada de cabelos brancos. Era o mais
burguês dos burgueses.
Malgrado a tranqüilidade de sua aparência, Tillizini não tinha
muitas ilusões sobre a visita do policial que acabava de
chegar.
— Sente-se, inspetor, — disse-lhe, indicando uma das
cadeiras. — Aceita um cigarro?
O inspetor sorriu.
— São muito fracos para mim, — disse, — prefiro meu
cachimbo.
— Pois encha-o, — disse o professor, com um sorriso.
Não quis oferecer-lhe fumo, porque sabia que essa era uma
atenção que aborrecia aos fumantes de cachimbo, deixando
a iniciativa à sua própria vontade.
— E, bem? — perguntou, quando o outro começou a encher
o brilhante cachimbo.
— Se me perguntar, — começou o inspetor, — dir-lhe-ei
que seus compatriotas não são muito serviçais, são um
pouco... hum...
— Um pouco mentirosos, — falou o professor com toda
calma. — Todos os homens são mentirosos, quando têm
medo e posso assegurar-lhe que essa gente está com medo
de alguma coisa, que não posso entender. Não temem por
eles mesmos, mas por seus filhos, suas esposas, por suas
velhas mães e por seus velhos pais...
Levantou-se da mesa e pôs-se a caminhar, lentamente, de
um lado para outro do escritório.
— Estes homens a quem se refere são sem piedade... O se-
nhor não sabe o que quero dizer, quando falo sem piedade.
É uma palavra que talvez para o senhor signifique uma
atitude injusta, talvez um pouco cruel. Mas, meu amigo...
crueldade! — Pôs-se a rir amargamente. — Não sabe o que é
crueldade, essa espécie de crueldade que se conhece sôbre
as margens do Adriático. Não lhe direi nada sôbre isto, pois
que lhe tiraria o sono.
O detetive sorriu.
— Eu conheço... um pouco disto, — falou, — com calma,
enquanto observava uma nuvem de fumaça de seu
cachimbo, que se desfazia no ar.
— A sua idéia, — continuou dizendo o professor, — de
agarrá-los, parece-me muito boa. E quando tenha
conseguido alguma prova contra eles... isso estará muito
bem, — disse secamente, — uma coisa é tão fácil quanto a
outra. E agora, meu ponto de vista é que êsses tipos estão
cheios de veneno, são ratos sociais que devem ser
exterminados, sem processos e sem remorsos!
Falava com tranqüilidade. Em sua voz ou em seu gesto não
se podia notar nenhum sinal de emoção. A mão que
estendeu até a cigarreira, para retirar um cigarro, estava
firme. Mas, Crocks, que nada tinha de sentimental, não
pôde, ainda assim, evitar um estremecimento de temor.
— Sei que essa é sua maneira de pensar, — replicou com um
sorriso forçado, — mas, não é uma opinião que encontre
apoio em seu país. É uma opinião perigosa, que talvez possa
envolvê-lo em sérias dificuldades com as autoridades e
também conduzi-lo até ao estrado de Old Bailey, debaixo de
acusação capital...
O professor riu... seu riso era musical, baixo. Passou os dedos
pelos cabelos encanecidos, fazendo um gesto que lhe era
característico, e, em seguida, recostou-se no encosto
almofadado de sua cadeira.
— Bem, — disse vivamente, — que foi que descobriu?
O detetive meneou a cabeça negativamente.
— Nada, — respondeu, — ou melhor, nada que valha a pena.
A quadrilha é inacessível... quem pode dar alguma
informação, mostra-se obstinado e nada quer dizer. Ou estão
temerosos, ou quem sabe, ligados à própria «Mão
Vermelha»? Procurei ameaçá- los, tentei suborná-los, mas
em nenhum caso obtive resultado.
Tillizini sorriu suavemente.
— E a «Mão Vermelha»... já fez algum outro movimento?
A mão do detetive penetrou num de seus bolsos. Tirou um
punhado de papéis, presos por uma borracha elástica. Dentre
eles, separou uma carta.
— Esta foi dirigida ao embaixador de San Remo — disse. —
Não o aborrecerei, lendo-a. É igual a todas as demais. Mas,
neste caso, a ameaça é contra uma criança, um menino.
— Um menino!
As negras sobrancelhas de Tillizini juntaram-se num gesto
de fealdade e repulsão.
— Esta é a sua principal carta, — disse lentamente. Eu estava
admirado deles demorarem tanto tempo a começar a
ameaçar as crianças. O que pretende nosso desconhecido
ameaçante?
— Primeiro, o rapto... o crime depois, na hipótese de que o
rapto não produza os resultados que esperam...
Tillizini tomou a carta das mãos do outro e leu-a
cuidadosamente. Aproximou o papel da luz.
— Esta é uma quadrilha americana... pensei que tivéssemos
acabado com ela, mas, evidentemente, era uma organização
maior do que havíamos suposto.
Ouviu-se, novamente, soar a campainha elétrica.
Tillizini alçou os olhos e ficou escutando.
Depois de um breve intervalo, a campainha soou
novamente.
O professor fez um movimento com a cabeça. Numa ponta
da mesa, estava uma grande caixa preta... abriu-a, enquanto
o detetive observava-o curiosamente. Ao dar volta à chave e
levantar a tampa, descobriu uma tríplice fileira de pequenas
ampolas de vidro.
Tillizini tomou uma da frente, colocou-a no bolso e
agachando-se, tocou o botão da campainha, que ficava a um
lado da mesa.
A porta abriu-se, dando passagem ao criado, que vinha
acompanhado de um jovem de muito bom aspecto e que
parecia, evidentemente, um operário.
Crocks olhou-o, percebendo que se tratava de um inglês e
perguntou de que forma esses dois homens haviam chegado
a se conhecer. O jovem aceitou o convite de Tillizini e
sentou-se.
— Bem, meu amigo, — disse o professor agradavelmente, —
quer prosseguir com nosso assunto?
— Sim, senhor, — respondeu o outro com firmeza.
Tilliziniofêz um movimento afirmativo com a cabeça.
— Recebi sua mensagem, — falou e fitou o detetive,
explicando, — este homem chama-se Carter, — disse
brevemente. — E um ferreiro, especializado em trabalhos de
chumbo. Está sem trabalho, é solteiro, não tem família e está
disposto a correr alguns riscos. Já esteve no exército, pois
não? — perguntou-lhe.
O recém-chegado concordou com um movimento de
cabeça. Achava-se sentado inquietamente, numa ponta da
cadeira, como o fazem as pessoas que não estão muito
acostumadas a lidar na alta sociedade e "se encontram
embaraçadas.
— Publiquei um anúncio num jornal, — prosseguiu Tillizini,
— solicitando os serviços de um homem que desejasse
arriscar a vida. Ofereci duzentas libras em pagamento e esse
homem se propôs ganhá-las.
Crocks parecia mistificado.
— Mas, que é exatamente o que ele faz? — perguntou.
— Isso, — disse Tillizini, com um sorriso, — nem ele
exatamente sabe.
Voltou-se para o homem que piscava continuadamente.
— Cumpro com as atribuições que me são atribuídas e já
ganhei cem libras.
— Parece-me muito bem, Mr. Crocks: este homem não faz
outra coisa senão viver em Soho, caminhar por uma e outra
margem do cais, — e apontou para fora da janela. — Dali,
deve transmitir-me, toda tarde a esta hora, um sinal
impossível de ser compreendido por qualquer outra pessoa
e, em seguida, pôr-se a caminhar pela ponte de Westminster
até ao Embankment, depois até Willers Street e, em seguida,
chegar até minha casa.
Passeou pelo aposento com largos e vacilantes passos.
— Ele carrega a própria vida nas mãos e está informado disto,
— explicou. — Eu o avisei de que provavelmente seria
assassinado, mas isso não pareceu inquietá-lo.
— Nestes tempos difíceis, — disse o operário, — a pessoa
não deve preocupar-se com uma coisa assim. É muito
melhor ser assassinado do que morrer de fome e quando Mr.
Tillizini me deu este trabalho, já fazia dois meses que eu
estava desempregado.
— O pagamento de duzentas libras, — prosseguiu Tillizini,
— recebe-o por contrato. Já lhe paguei cem libras e esta
noite farei a entrega do restante e a importância de seus
gastos. Provavelmente, — disse, com um sorriso, — poderá
escapar a todo dano, hipótese em que, muito me alegrarei.
Olhou fixamente para o jovem.
— Agora, deixe-me ver esses papéis que traz no bolso.
Ponha-os sobre a mesa.
O homem procurou nos bolsos e tirou pedaços de papéis,
cadernetinhas, apontamentos esparsos.
Tillizini, por sua vez, tirou do bolso a ampola que retirara do
armariozinho medicinal de sua mesa. Abriu a tampa do
frasco e logo se percebeu, no aposento, um perfume
penetrante.
Com a ponta umedecida da tampa, tocou um dos objetos,
que o jovem deixara sobre a mesa.
— Logo se acostumará com esse cheiro, — disse sorrindo, —
depois de um instante já não o perceberá.
— De que se trata? — perguntou Crocks curiosamente.
— Ficará surpreendido, quando lhe disser o nome da
substância. É uma dupla destilação de rosas e a ampola que
tenho entre as mãos, vale comercialmente perto de vinte e
quatro libras.
A um sinal de Tillizini, Carter recolheu os papéis e tornou a
guardá-los no bolso.
— Tem um revólver? — perguntou-lhe o professor.
— Sim, senhor, — confirmou o outro. — Já estou me
acostumando a carregá-lo. Não entendo bem desses
revólveres automáticos, mas estive outro dia em Wembley e
pratiquei um pouco.
— Espero que não tenha ocasião de usá-lo diretamente, —
disse Tillizini secamente.
Apertou o botão da campainha e quase em seguida o criado
atendeu.
Dê comida a Mr. Cárter, — ordenou-lhe e inclinou a cabeça,
enquanto o homem se retirava.
— Qual o significado disto? — perguntou Crocks.
— Verá depois, disse o outro.
— Mas, não estou entendendo nada, — asseverou o espan-
tado detetive. — Por que razão daria uma soma tão grande
de dinheiro a um homem que não faz outra coisa, além de
enviar-lhe sinais elétricos todas as tardes?
Tillizini estava sentado junto à sua mesa.
— Mr. Crocks, — disse-lhe, — seria uma falsa modéstia de
minha parte se pretendesse que meus movimentos
escapassem aos olhos da «Mão Vermelha». Tenho plena
certeza de que não entro nem saio desta casa, sem que a
quadrilha se inteire de meus movimentos. Cada um de meus
passos é vigiado; cada uma das minhas ações considerada
como uma possível ameaça para a mesma quadrilha. Esta
sociedade sabe que todas as noites dedico- me a trocar
mensagens com um homem, que se encontra na outra
margem do Tâmisa. O mistério desses sinais surpreende
naturalmente o temperamento latino e seu significado
aparece engrandecido ante eles. Na segunda noite, pode
estar certo de que Carter foi visto e localizado por eles. Pode
também ter certeza de que o seguiram do cais até à entrada
desta casa.
Uma suspeita começou a surgir na mente do detetive.
— Então, Carter é uma farsa?
— Uma farsa que me custa duzentas libras, — disse o outro
gravemente. — Ele sabe o risco que corre e por isto estou
lhe pagando uma grande quantia. Afortunadamente,
conhece alguma coisa sobre sinais e, de certo modo, pode
avisar-me, graças a um código próprio, o que está
acontecendo do outro lado do rio.
E, concluiu com um sorriso:
— Até agora, nada ocorreu, que seja digno de se mencionar.
Vejamos daqui para frente.
— Matá-lo-ão, — disse Crocks.
— Procurarão fazê-lo, — disse Tillizini, — com toda a calma,
— mas, penso que ele é um homem muito esperto. Confio
em que nada de grave venha a lhe acontecer e que eles só
procurarão resolver o mistério que o rodeia. Olá!
A porta abriu-se, de repente, e o criado entrou de maneira
precipitada.
— Sinto muito, senhor... — disse, detendo-se,
imediatamente.
— Que aconteceu? — perguntou Tillizini, pondo-se de pé.
— Houve alguma coisa com Carter?
— Não, senhor... ele está na cozinha. Ouvi tocar a cam-
painha e a jovem... — prosseguiu com voz entrecortada, —
... uma jovem caiu dentro da casa... na hora que atendi. Que
devo fazer, senhor?
— Caiu dentro da casa? — perguntou Tillizini, adiantando- se
e caminhando em direção ao vestíbulo, descendo as escadas
de dois em dois degraus.
O criado tivera suficiente presença de espírito, fechando a
porta depois da chegada da estranha visitante.
Estendida sobre o tapete do vestíbulo inferior, achava-se o
corpo de uma jovem. Tillizini, que estava alerta ante cada
um dos movimentos da quadrilha que vinha combatendo,
avançou cautelosamente.
A mulher estava de costas e caíra justamente debaixo de
uma das lâmpadas e ele pôde ver-lhe o rosto. Levantou-a
nos braços e encaminhou-se com sua carga, em direção à
escada.
Crocks estava parado no umbral da porta.
— Que aconteceu? — perguntou.
Tillizini não lhe deu resposta. Carregou a desfalecida figura
até depositá-la sobre o sofá, que estava junto da parede.
— O que ocorreu? — perguntou ao criado, incisivamente.
— Ouvi soar a campainha, senhor, — disse o excitado ser-
viçal, — e desci até à porta, pensando que era...
— Não interessa o que pensou... seja breve, — cortou
Tillizini.
— Bem, abri a porta, senhor, e a mulher deve ter desmaiado
pouco antes e devia estar encostada junto à porta. Cheguei a
tempo de segurá-la, carregando-a até ao meio do vestíbulo,
antes que desfalecesse de todo.
— Viu alguém na parte de fora?
— Não, senhor, — respondeu o homem.
— Fechou a porta atrás de si, segundo pude ver, — falou
Tillizini aprovativamente. — Realmente, penso que
aproveitarei alguma coisa de bom que você ainda possui,
Thomas.
De sua farmácia caseira, tirou uma pequena ampola,
removeu a tampa, umedeceu a ponta do dedo no conteúdo,
passando, em seguida, o dedo sobre os lábios da jovem
inconsciente.
— É apenas um desmaio, — disse, — enquanto com a mão
experiente tomava o pulso da enferma e seus dedos
sensitivos apertavam-lhe suavemente o pescoço.
A droga teve um efeito rápido e surpreendente. Ela abriu os
olhos, quase imediatamente e olhou a seu redor.
No mesmo instante, seu olhar caiu sôbre o rosto de Tillizini.
— Não procure falar, — disse-lhe com doçura. — Espere um
momento. Vou dar-lhe um pouco de vinho, ainda que não
acredite que lhe faça muita falta.
A jovem procurou sentar-se, mas uma firme pressão em sua
mão, conteve-a em seu movimento.
— Fique quieta por um momento, — disse. — Esse cava-
lheiro i um detetive da Scotland Yard. Não precisa de ter
medo...
— É o senhor Tillizini? — perguntou.
Ele confirmou com um movimento de cabeça.
— Viu meu esposo? — murmurou a jovem.
Tillizini meneou novamente a cabeça.
— Sim, sim. É o homem que foi condenado no Tribunal de
Burboro.
Viu passar uma sombra de dor pelo rosto pálido da moça.
— Sim, foi condenado, — disse debilmente. — Era inocente,
mas condenaram-no.
As lágrimas velaram seus olhos.
Tillizini tinha ainda o frasquinho azul de remédio na mão.
Tornou a destampá-lo e passou a ponta do dedo novamente
nos lábios da jovem.
Ela franziu as sobrancelhas.
— O que é isto? — perguntou. — E alguma coisa muito doce.
O professor sorriu.
— Sim, é muito doce, minha pobre jovem, — disse-lhe, —
mas lhe fará muito bem.
Sua predição foi logo confirmada, porque instantes depois,
pôde sentar-se... tranqüila e reposta.
— Soube que o senhor esteve com meu esposo, — disse. —
Desejava falar-lhe, mas, quando cheguei, o senhor já partira.
Pensei escrever-lhe e estava começando a carta, quando um
cavalheiro veio...
— Que cavalheiro? — perguntou Tillizini.
— O cavalheiro italiano, replicou, — o mesmo que pediu a
meu esposo para ir a Highlaw. Oh, eu bem sabia que não era
verdade que ele pretendesse roubar a casa de Sir Ralph!
Pobres como somos, jamais cometeríamos semelhante ação.
Tillizini assentiu com a cabeça e levantou a mão num gesto
de simpatia.
— Sim, o italiano esteve lá e o que queria?
Ela já estava completamente tranqüila.
— Deu-me algum dinheiro, — disse a moça, — e disse-me
que faria o possível para que meu esposo fosse libertado.
Fiquei muito contente, porque tive a certeza de que ele iria
procurar Sir Ralph e supus que George seria logo posto em
liberdade.
Era pouco mais alta que uma menina e os homens que a
escutavam, sentiam-se cheios de piedade, ao pensar na
ingenuidade de sua crença no poder imenso de Sir Ralph.
— E, então, — prosseguiu, — pediu-me algo horrível!
Sentiu um leve estremecimento ao se recordar.
— Pediu-me que fizesse a mesma coisa, pela qual meu
marido foi condenado.
— Ir à casa?
— Sim, — respondeu.
— E pegar o embrulho?
Novamente respondeu que sim.
— Devia fazê-lo na noite de quarta-feira?
Os olhos dele denotaram excitação.
— Sim, — disse ela, — como o sabe?
Pelo rosto dela, passou uma expressão de temor.
Essa moça simples do campo estava alheia às profundas
maquinações dos jovens e havia chegado ao casamento
numa idade em que a maioria das jovens ainda freqüentam
as escolas.
— Eu sei, — disse enigmaticamente Tillizini.
Pôs-se a caminhar de um lado para outro. Estava com as
mãos nos bolsos e a cabeça baixa.
— Agora não o poderá fazer. Viram-na dirigir-se para aqui.
Suponho que foi para isso que veio...
— Sim, — disse ela. — Tenho muito medo dessa gente Nós
somos pessoas tranqüilas. Nunca estivemos complicados em
coisas assim.
Tillizini ficou pensando um momento. Em seguida,
aproximou-se do telefone e tomando o receptor, pediu um
número Falou brevemente em italiano com alguém e tinha
um ar autoritário. Desligou o aparelho.
— Chamei uma dama aqui para levá-la para a casa dela, —
disse. — Não acredito que essa gente possa molestá-la, já que
não sabe de nada que possa comprometê-los. Suponho, —
acrescentou, olhando para Crocks, — que poderá me enviar
um par de homens para acompanhar essa jovem até chegar à
casa, para onde a enviarei...
Crocks concordou com um movimento de cabeça.
— Eu mesmo a levarei, — disse com jovialidade. — Eu valho
por dois homens.
Tillizini sorriu.
Às vezes penso que você vale por três, — disse, o que é, o
que pode ser e o que jamais parece ser.
Crocks soltou uma gargalhada.

CAPÍTULO VI
OS TRÊS

Quem caminha de London Bridge, ao longo de Tooly Street,
cruzando por Rotherhithe, chega a alcançar Lower
Deptford. Cruzando por essa zona, chega-se a Deptford
propriamente dito e, virando para a esquerda, encontrará um
caminho comprido e reto, que atravessa Ravesbourne e faz
conexão com Greenwich — o único rincão de Londres que
se obstina em não se modernizar completamente — com
sua vizinhança de gente trabalhadora e atarefada.
O caminho serviu, em outros tempos, como distração da
classe média de Deptford, naqueles dias em que o próprio
Pedro o Grande trabalhava num estaleiro e vivia de maneira
deplorável, em Evelyn House.
As casas são estreitas na frente e estão edificadas em uma
série padronizada e em cada uma de suas portas vêem-se
enfeites de madeira pendurados. Nalgumas, podem
encontrar-se ainda marcas de painéis de carvalho, mas, de
um modo geral, os habitantes atuais utilizaram-se de toda a
madeira que puderam tirar das portas, para o muito prosaico
serviço de seus fogões. O que em outros tempos foi a glória
de Deptford, hoje não é mais do que a miséria de Deptford.
As grandes casas vibram com a gritaria das inumeráveis
crianças. Andares sobre andares foram transformados em
casas de cômodos e, em alguns lugares, uma dezena de
famílias ocupam o reduzido espaço que em tempos passados
serviram escassamente para hospedar a prole de um só
abastado provedor marítimo.
Quando Mill Lane foi um tanto modernizada, seus tugúrios,
seus porões infectos e a inumerável quantidade de moradias
derrubadas por um arquiteto modernista, a colônia italiana,
que fixara residência nessa vizinhança suja e pobre, mudou-
se para o Norte, distribuindo-se ao largo do caminho de
antigo renome.
De um modo geral, o italiano constitui uma boa vizinhança.
É tranqüilo, quieto, inofensivo. Seus realejos, amontoados
num canto do pátio posterior da casa, talvez tornem-se
incômodos para as pessoas que gostam de dormir até mais
tarde, mas, afora isto, não aborrecem em mais nada.
Numa dessas casas, num dos andares superiores, três
homens estavam sentados em volta de grande mesa.
Um grande fiasco de Chianti ocupava o lugar de honra sobre
a mesa e viam-se os copos que indiscutivelmente foram
colocados pelo hospedeiro.
As janelas estavam com os postigos fechados e eram
cobertas por espessas cortinas. Até a porta do aposento tinha
sido recoberta com feltro em todas as suas gretas e para
maior precaução contra interrupções estranhas, dois degraus
abaixo das escadas, podia-se ver um homem sentado, cuja
tarefa era evitar que a entrevista fosse interrompida.
O hospedeiro era um homem alto, imensamente forte. Sua
negra cabeleira era bem cortada. O rosto enrugado e severo
estava semi-oculto por uma barba espessa.
Pela camisa entreaberta, podia-se ver um pouco de seu peito
peludo e os braços potentes que apareciam das mangas
arregaçadas mostravam, claramente, uma força muito pouco
comum. E eles explicavam eloqüentemente porque
Tommasino Patti tinha em seu. próprio país o apelido de «Il
Bue», que significa «O Boi».
E era com «O Boi» que seus companheiros conversavam,
ainda que não se pudesse notar nada de bovino em seu rosto
diabólico e inteligente.
O homem, sentado à sua esquerda, era baixo, mas forte.
Estava barbeado, com exceção do bigode, que era
cuidadosamente retorcido em suas pontas. Falava como
alguém que estivesse atacado de asma, com um tom
dificultoso e profundo.
Defronte do «Boi», encontrava-se um homem que formava
um contraste marcante com seus companheiros. Porque,
enquanto o gigante vestia-se descuidadamente e o homem
baixo estava um pouco mais bem vestido, o terceiro usava
roupas de muito apurado gosto.
Tratava-se de um magro e gracioso jovem, de estatura
mediana. Formoso, com uma pele azeitonada, possuía bela
fronte e usava um bigode escuro, que apenas despontava.
Vestia um traje simples, que lhe caía perfeitamente.
A gravata era de seda preta e sobre ela estava a fina jóia que
usava, uma bela pérola negra e uma fina corrente de ouro
cruzava de um para outro dos bolsinhos do colete.
Esse homem não podia negar que recebera os atenciosos
cuidados de um camareiro e, tanto pelas polainas claras,
como pelas unhas bem manicuradas, via-se que era a
correção personificada.
O paletó forrado de seda pendia do encosto de uma
poltrona. O chapéu de feltro negro descansava sobre o
sobretudo. Estava sentado, comodamente, na única das
cadeiras confortáveis do aposento e, por baixo de sua calça,
aparecia parte das meias de seda cinzentas. Parecia não ter
muito mais de vinte anos, ainda que na realidade tivesse
mais.
Sua atitude para com os companheiros era de divertida
curiosidade. De tempos em tempos, examinava as unhas
polidas, com solicitude, como se as achasse mais
interessantes do que a conversa que mantinha com seus
interlocutores. E a conversação era, não obstante, de suma
importância.
O homem baixo acabara de contar a história de sua aventura.
— E, senhores, — disse em tom convincente, — eu mesmo
poderia apoderar-me dessa jóia, se não fossem as restrições
que vossas excelências me impuseram.
Falava, dirigindo-se, alternadamente, a «O Boi» e ao homem
elegante.
— Por quê? — perguntou, cheio de extravagante desespero, -
por que era preciso recorrer a uma terceira pessoa, a alguém
sem finura, como esse Mansingham, que entra na casa,
acorda os criados e é preso, em seguida? Isso foi tentar a
Providência, senhores. Teria sido a mesma coisa, que se
utilizar da jovem...
O mais jovem sorriu.
— Você é um idiota! — disse.
Falavam em italiano e o tom de voz do jovem era doce e
melodioso.
— Será que, por acaso, já não temos outro exemplo de seu
modo idiota de agir?
Levantou as sobrancelhas e por um momento pôde ser visto
um brilho em seus olhos, mudando-lhe a expressão
fisionômica.
— Ouçam, meus amiguinhos. — Bateu sobre a mesa e falou
com certa ênfase. — O que para vocês poderá parecer muito
simples, não o é para nós outros. E uma regra estabelecida
por «Nossos Amigos» que cada vez que se fizer um raide, a
pessoa que opera e a pessoa que recebe imediatamente o
produto da subtração não devem ser conhecidas, uma da
outra. Além disto, - prosseguiu, escolhendo as palavras
cuidadosamente, — é necessário, desde que ocorreu certo
fato de que vocês devem se recordar, que o medalhão, se for
medalhão mesmo, deva ser recebido por dois de nossos
irmãos e não por um só.
Sorriu.
— Repito, — disse, — e não por um só!
Fitou o «Boi» sorrindo ainda e, em seguida, o homem forte.
— Há cerca de um ano, — disse, — anotamos algo que nos
fazia falta. Era um medalhão. Um desses medalhões, posso
dizê-lo, contém um segredo que nos enriquecerá.
Encarregamos um irmão muito hábil e esperto de que se
apoderasse da jóia. Mas, parece, querido Pietro, que o
mesmo cérebro de um homem, que pode manejar com toda
a perícia as ferramentas necessária para remover fechaduras
ou para forçar vidros, pode tornar-se completamente
ineficaz ou inadequado, quando se trata da remoção ou
salvaguarda de um tesouro. No roubo, como nas demais
artes, o especialista tem suas vantagens. Nós instruímos um
especialista, para que retirasse o medalhão do estojo, ou de
onde quer que ele estivesse, empregamos outros dois para
receber a jóia e levá-la a um lugar seguro, vigiando-se a um e
a outro. Compreendeu?
O homem baixo assentiu com um protesto e o outro
continuou falando.
— O cavalheiro, — prosseguiu com certo tom de
humorismo,
— que recebeu essa preciosa relíquia, da qual a sociedade
muito necessita, conseguiu desaparecer com ela. Jurou falso,
faltou à sua promessa, demonstrou a falsidade do provérbio
inglês de que existe honra, mesmo entre os ladrões, e que na
realidade não é. Quando, eventualmente, o encontramos,
não pudemos encontrar a jóia.
Tirou do bolso uma cigarreira achatada, de ouro, e tomando
um cigarro, acendeu-o.
— Não teríamos nenhum proveito, matando esse errante
irmão. Foi uma sorte que nos evitasse o incômodo,
suprimindo-se a si mesmo.
E como os outros não dissessem nada, concluiu:
— Não pudemos encontrar a jóia. Seguramente, num
momento de pânico, entregou o tão cobiçado objeto a outra
pessoa. E já sabemos quem é essa pessoa.
Trocou um rápido olhar com o «Boi» e o homem grande fez
um movimento de ênfase afirmativa com a cabeça.
— Resta saber se conseguiremos encontrar a jóia, —
continuou o delicado jovem, enquatito fumava àvidamente
o cigarro.
— De todo modo, salta à vista, a necessidade de tomar
precauções no assunto relacionado com a recepção dêsses
artigos, que nos são tão preciosos e que conseguimos
localizar com tanto trabalho.
Olhou para o relógio.
— Agora, resta-me muito pouco tempo para perder. Vejamos
o que precisa de ser feito.
O homem grande levantou-se e encaminhou-se
pesadamente para o outro lado do aposento. Pôs a mão
debaixo do travesseiro de uma pequena cama, sem arrumar,
que havia num dos cantos do quarto e tirou uma caixa
comprida e achatada. Levou-a até onde o outro se
encontrava e abriu-a com uma chave, que pendia junto com
um crucifixo de uma corrente que trazia ao pescojo.
Os olhos do jovem contemplaram uma bela coleção de jóias.
A caixa estava quase cheia de medalhões dos mais diversos
aspectos e formas.
Havia medalhões de prata, de ouro, esculpidos com cristais e
incrustações de pedras, que impossibilitavam saber quais os
metais subsidiários que serviam para sua fabricação.
Alguns possuíam miniaturas pintadas e outros brilhavam
com seus esmaltes.
O jovem tocou-os com mão rápida e experiente. Retirou
um. por um da caixa, colocou-os sobre a palma da mão e foi
examinando-os. Acabado o exame, punha-os de lado.
Finalmente terminou a tarefa.
— São muito valiosos, — disse, — mas, não do valor que eu
esperava. Temos que continuar procurando. Penso, todavia,
que o verdadeiro medalhão acha-se em poder desse idiota de
Morte- Mannery. Não devemos perder mais tempo, nem
evitar-nos o menor aborrecimento para consegui-lo.
Do bolso interior de seu casaco, retirou um pequeno livro de
notas. Abriu-o e arrancou uma folha de papel". Via-se um
desenho feito a lápis.
— É assim, — afirmou, — se é que não estou enganado.
Passou o desenho para o homem baixo.
— Vê estes curiosos arabescos, esse Cupido, esse diabinho
tão bem detalhados? £ um trabalho do próprio mestre.
Falava com entusiasmo. Por um momento, o sinistro
objetivo de suas perseguições perdeu-se ante a apreciação
artística do desenho.
— No mundo, existem dois medalhões iguais a este.
Falava agora com maior rapidez e de maneira um tanto
brusca.
— Um deles devemos conseguir esta noite. O outro, na
quarta-feira. Ê mister que façamos uma combinação. Se for
necessário, irei pessoalmente receber o medalhão. Neste
desenho, — disse, indicando o papel, — quase me enganei.
Podemos suspender nossos esforços de procurá-lo em outras
partes e concentrar nossas atenções unicamente em
Burboro. E a propósito, de quanto dinheiro precisaremos?
— Um milhão de libras inglesas, — declarou o homem baixo,
quase sem respirar.
O jovem sorriu.
— £ absurdo pedir um milhão de libras por algo que talvez
não tenha nenhum valor. Pode prometer à jovem e, a
propósito, aonde se encontra?
— Esta noite estará na cidade, senhor, — afirmou Pietro.
O jovem fêz um movimento afirmativo com a cabeça.
— Ela sente-se muito confiada e entusiasmada, — ajuntou,
pondo-se de pé. — Mulher curiosa, nossa Lisa.
O «Boi» também levantou-se e passou a ajudá-lo a vestir o
paletó.
— Acredito que, provàvelmente comprovaremos esta noite
se é mulher útil.
— Porque não lhe confia a tarefa de tirar a jóia da casa desse
cachorro maldito? — perguntou o homem alto com um
esgar.
O jovem da fala suave sorriu.
— Meu pobre amigo, — disse, — se não confio num irmão,
como haveria de confiar...? Não, — prosseguiu um tanto
nervosamente, enquanto parava junto à porta, abotoando o
sobretudo.
— Não vou mais correr riscos! Meu pai advertiu-me contra
semelhante loucura e descuidei-me de seus conselhos.
Tenho que pagar o preço do meu descuido. Quem está aí
fora? — perguntou, de repente.
— Beppo, — disse o «Boi». — Tive que recorrer a alguém
que fôsse de confiança. Beppo gosta da obscuridade.
— É uma besta completa, — afirmou rapidamente o jovem.
— Seria capaz de nos cortar a garganta a troco de moeda de
uma lira...
É possível, confirmou o outro, com um resmungo, — mas,
um homem cuja cabeça está a prêmio e cuja vida depende
da forma como se conduza conosco, é o único em que
podemos confiar.
Abriram a porta e o dono da casa avançou levando uma
lanterna na mão. Sobre o segundo degrau, achava-se
agachada uma figura humana, com os joelhos encolhidos e a
cabeça baixa.
— Uma linda sentinela! Está dormindo! — disse o jovem.
O «Boi» abaixou-se e pegou o homem pelo pescoço.
— Desperta, pedaço de cão, — ordenou-lhe. — É dessa
forma...?
Imediatamente ficou sem poder pronunciar uma só palavra,
porque a cabeça da sentinela pendeu pesadamente para trás
e o cabo de um punhal, que aparecia na altura do coração,
bastava, por si só, para explicar o silêncio do desgraçado!
Sim! Ali estava o homem que faltara ao próprio juramento,
conseguindo escapar ao patíbulo em dois países, esse chacal
de uma confederação de vilões e os três homens olharam-no
com assombro e cheios de horror.
O que se repôs mais rapidamente foi o mais jovem dos três,
que, sem nenhum outro sinal de emoção, continuou
abotoando as luvas.
— Só existe um homem que poderia ter feito isso, —
afirmou, pensativamente. — E esse homem é Antônio
Tillizini!

CAPÍTULO VII
O EXCELENTE ANTONIO

— Signor... pelo amor de Deus!
O Strand estava apinhado da multidão matinal e os passeios,
superlotados com os pedestres desocupados, que percorriam
o famoso bairro, na véspera das festas da Páscoa.
Para o homem com pressa, o nome dos passeantes ociosos,
em busca de prazer, significava um anátema. Frank
Gallingford estava apressado, porque o expresso das seis e
meia para Burboro não espera por ninguém. E, apesar de
Charing Cross estar à vista, só lhe restavam dois minutos
para se livrar da multidão e chegar à estação e encontrar-se
tranqüilamente na plataforma.
Protestou contra os ociosos passeantes matinais e fazendo
não pequenos esforços, conseguiu abrir caminho.
Sair do passeio era um grande perigo, porque a rua estava
atravancada com o movimento do tráfego e além do mais,
uma autoridade inteligente determinara a ocupação da
metade de seu espaço livre, para proceder a consertos.
Frank Gallingford fez a curva, descendo da calçada, para
voltar novamente ao meio fio, desviando-se dos transeuntes.
Conseguira escapar das rodas de um automóvel e caiu em
cima de um homem baixo e desocupado e de um "grupo de
cavalheiros, no seu esforço para alcançar a estação a tempo.
Parecia, contudo, achar-se tão longe de conseguir seu
objetivo quanto antes.
Repentinamente, sentiu que lhe agarravam a manga do e
ouviu uma voz estranha.
— Signor, pelo nome de Maria! — disse alguém.
As palavras foram antes arranhadas que pronunciadas e o
idioma empregado era o italiano.
Frank deteve-se e olhou à sua volta, com uma fisionomia de
espanto. Quem poderia falar-lhe em italiano, nesse trecho
tão inglês do Strand?... E quem poderia saber que ele
compreendia italiano?
O homem, que estava a seu lado, era inquestionavelmente
italiano.
Tinha a face cadavérica, coberta com a barba de uma semana
Gesticulava convulsivamente em sua agitação. Os grandes
olhos negros, que o fitavam por baixo de espessa
sobrancelha, despediam centelhas, como só podem fazê-lo
os olhos de ura meridional.
Num instante, o inglês esqueceu-se da ansiedade que tinha
por alcançar o trem.
Os suaves acentos que tanto conhecia e de que tanto gostava
chegaram a seus ouvidos, como a primeira sensação da brisa,
que sopra sobre o Adriático, nas noites de verão.
Trouxeram-lhe recordações de horas felizes, vividas na
campina italiana e trazendo visões de palácios de mármore
da antiga nobreza veneziana.
— Que deseja meu amigo? — perguntou suavemente.
— Não posso falar-lhe aqui, — disse o homem, abaixando a
voz e falando com rapidez. — Lembra-se de mim, Signor?
Sou Romano... fui seu capataz, nos trabalhos do porto de
Cattaro.
Frank recordou-se imediatamente e sua mão pousou com
carinho sobre o ombro do italiano.
— Já me lembro, Miguelo mio! — disse-lhe rindo. — Como
poderia esquecê-lo! Não foi o homem que nadou para me
socorrer, quando tive uma câimbra, salvando assim minha
vida?
Um débil sorriso debuxou-se-lhe nos lábios e os olhos do
italiano voltaram a fitá-lo com ansiedade.
— Siga-me, — disse-lhe. — Trata-se de algo muito urgente.
Não pode sabê-lo, nem entendê-lo.
Sem pronunciar outra palavra, misturou-se com a multidão e
Frank Gallingford seguiu-o, sem perdê-lo de vista. Romano
virou ao chegar à primeira esquina. Era uma rua que levava
ao Adelphi.
Nessa parte, cessava um tanto, o movimento do trânsito.
Nela só se viam os transeuntes experimentados, que
conheciam esse atalho para atingir a estação ferroviária e os
dois homens puderam encontrar-se mais à vontade.
Depois de caminharem umas cinqüenta jardas, o italiano
parou e Frank observou que ele escolhera um lugar situado
entre dois postes de iluminação, de modo que a luz chegava
até eles ura tanto difusamente.
— Signor, — disse-lhe, falando ràpidamente, quase de
maneira incoerente. — Conhece-me um pouco. Sou um
pedreiro e vim para Londres trabalhar num restaurante
italiano do Regent Street. Não tenho amigos aqui, nem sei
de ninguém a quem possa recorrer... estou desesperado, —
disse, apertando fortemente as mãos e abaixando a voz, num
esforço para mantê-la assim, a despeito de sua intensa
emoção. — E, ao ver seu rosto sereno e vigoroso àe inglês,
pareceu-me um encontro angelical, signor... como de um
santo...
Frank estava demasiadamente acostumado às extravagâncias
dos cumprimentos italianos, para se sentir embaraçado. Não
pôde sobrepor-se, entretanto, a essa sensação que o mais
fleumático anglo-saxão sente, ao ouvir um elogio caloroso.
— Não tenho riada de angélico, Miguelo, — disse-lhe com
um sorriso, enquanto se lembrava do trem que perdera.
— Ouça-me, Signor, — prosseguiu o homem. — Há alguns
anos, quando era mais moço, estive em New York e, a título
de brincadeira, creia-me, Signor, alistei-me nas fileiras de
uma sociedade secreta. Prestei um juramento e não lhe dei a
menor importância. Tempos depois, regressei à minha
pátria, mais tarde estive em Monte-Carlo e novamente voltei
à minha terra. Agora, encontro-me em Londres. E veja,
Signor, eles encontraram-me... as pessoas da minha
sociedade secreta. Disseram-me coisas tremendas e querem
que eu faça coisas impossíveis... muito horríveis, Signor...
Cobriu o rosto com as duas mãos e pareceu soluçar.
Frank ficou perplexo. Sabia da existência de tais sociedades
secretas e estava a par de seus modos de proceder.
Tivera de suportar mais de uma greve, movida por esses
elementos, mas nunca havia lançado um olhar à tragédia, no
terror escondido das ditas associações misteriosas. Pousou
suavemente as mãos no braço do italiano.
— Meu amigo, — falou-lhe com certo afeto, — não deve
inquietar-se... está na Inglaterra. Estas coisas não acontecem
aqui. Se foi ameaçado, não tem mais do que procurar pela
polícia...
— Não, não, não! — protestou o homem, cheio de terror. —
O senhor não me entendeu. Minha única esperança é poder
fugir... poder chegar à Argentina. Venha, venha!
Levou o outro até debaixo da luz do poste mais próximo e
enfiou a mão no bolso, procurando por alguma coisa.
— Procuram-me por muitas razões, — disse, — e
especialmente por isso...
Seu paletó era do tipo muito usado pelos operários italianos,
com as bordas dos bolsos debruadas com triângulos de
veludo negro. De dentro de um desses bolsos, tirou um
pequeno estojo. Parecia um estojo de jóias e o inglês notou
que era novo.
A mão de Romano tremia ao abrir o fecho. Por fim, con-
seguiu achá-lo e abriu a tampa. Sobre o forro de veludo azul,
aparecia um medalhão.
— San Antônio. — exclamou o italiano, com voz cheia de
ansiedade.
Era uma bela peça artística. A parte do fundo estava
salpicada de diamantezinhos, e a efígie do santo com o
menino aparecia em relevo de ouro. Não se tratava de um
trabalho simples, mas, pelo contrário, indicava a mão hábil
de artista, de um ourives da antiguidade.
— Signor, — disse Miguelo, — há um mês, um homem, que
era meu amigo, entregou-me isto e não tenho idéia de como
chegou a seu poder. Pediu-me que o retivesse comigo, em
meu poder, até que pudesse, e estas são suas próprias
palavras Signor entregá-lo a...
Um automóvel passou pela rua e o italiano voltou-se para
olhá-lo aterrorizado. — Tome-o!
Dizendo isto, colocou o estojo nas mãos de Gallingford,
fechando a tampa ao fazê-lo. — Mas... — Tome-o... oh...!
O carro parou junto deles e quando a porta se abriu, Romano
deu um passo para trás, violentamente.
Desceram dois homens. Eram seguidos por uma jovem. A
mulher era esbelta, alta e graciosa. Frank não pôde ver-lhe o
rosto, porque estava coberto com um véu, mas sua voz era
suave e doce.
— É este o homem, — disse, — assinalando o italiano.
Os dois homens atiraram-se sobre ele, pegando-o pelos
braços. Ouviu-se o ruído de uma algema, que se fechava
— Que significa isto? — perguntou Gallingford, ainda que
pudesse supor qual seria a resposta.
— Este homem roubou-me uma jóia, — respondeu a dama.
— O que ela está dizendo? O que está dizendo? — interrogou
o italiano.
Conversaram em inglês. Frank traduziu-lhe as palavras.
— É tudo mentira, mentira! — gritou Romano, lutando
desesperadamente, enquanto os desconhecidos levaram-no
em direção ao carro. — Salve-me, Signor, pelo amor de
Deus, não me abandone!
O inglês vacilou. Sentia toda a repugnância, própria de sua
raça, por semelhantes cenas. Sabia que o italiano estaria de
todo modo mais seguro no distrito policial e, se em realidade
fosse culpado, não necessitaria de nenhuma proteção.
— Para onde o conduzem? — perguntou.
— A Marlborough Street, — respondeu um dos homens,
— Vai tranqüilo, Miguelo, — disse Frank, voltando-se para o
italiano. — Eu o seguirei.
O prisioneiro, porém, não o ouviu. Havia desmaiado.
Carregaram-no até colocá-lo dentro do carro e os homens
entraram atrás, em seguida. A mulher aguardou um
momento. Logo depois, Frank viu que chegava outro carro.
No momento em que o primeiro fazia manobra para dar a
volta, ouviu vozes, como se discutissem.
Miguel voltara a si. Ouviu-se um ruído e a cabeça do italiano
apareceu na janela.
— Signor! — Em sua voz havia um intenso tom de agonia.
— Diga ao senhor Tillizini...
A mão de um homem apertou-lhe a boca e foi arrastado para
traz, no instante em que o carro começava a rodar.
Frank esperou. Ficara na expectativa de que a mulher dis-
sesse alguma coisa. Em seguida, ocorreu-lhe o pensamento
de que talvez ela estivesse julgando-o cúmplice do italiano,
ou, quando menos, amigo do prisioneiro e pôs-se vermelho
de vergonha.
Ela avançou tranqüilamente na direção do segundo
automóvel. O carro não seguira a mesma direção do
anterior.
Estava a ponto de se movimentar, quando se lembrou de
que não era o ladrão, mas que poderia ser tomado por um
receptador involuntário. A jóia ainda se encontrava em seus
bolsos.
O carro começou a se mover, quando se deu conta de sua
situação e atirou-se, por assim dizer, contra a porta.
— Senhora, — disse, — uma palavra... tenho algo a dizer-
lhe... tenho...
Pela janela do carro, viu que a mulher inclinava-se para traz.
— Quero que... começou a dizer e deu um salto para traz, ao
ver um punhal de aço na mão da desconhecida.
Seu movimento foi oportuno.
O estilete, cuja folha lhe estava destinada, golpeou a borda
da janela e Frank, um tanto abalado, pela violência do
movimento executado, para evitar o golpe, caiu sobre o
calçamento, enquanto o auto arrancava em toda velocidade,
dando volta na esquina de Adams Street.
Conseguiu, todavia, ver a mão muito branca, que
empunhava o mortífero punhal e num dedo distinguiu uma
opala quadrada de cor negra.
Pôs-se, lentamente, de pé, meio tonto. Estava indignado. Ela
confundira-o evidentemente com um ladrão. Limpou o
barro dos joelhos com um lenço e pôs-se a ordenar seus
pensamentos, praguejando entre dentes.
Ali estava ele, um prosaico engenheiro a caminho da
estação, para que o trem o levasse à localidade em que
morava sua noiva, Burboro, mesclado numa aventura que
tinha três partes de melodrama e de uma comédia.
— Isto me acontece por prestar atenção a certos italianos,
disse com enfado.
Dirigiu-se para o Strand e chamou um taxi.
— Para o distrito policial de Marlboroug Street, — disse ao
chofer.
Livrar-se-ia dessa jóia infernal e aclararia sua situação,
perante as autoridades policiais.
O sargento, que o recebeu, olhou-o com alguma suspeita,
pois tinha diante de si um homem meio sujo de lodo da rua.
— Romano, — disse. — Não, aqui não temos nenhum
Romano preso.
— Faz um momento que foi preso, por dois homens, —
afirmou Frank.
— Não foi dada nenhuma ordem de detenção para uma pes-
soa desse nome, — disse o sargento, movendo a cabeça de
um lado para outro. — Espere um minuto, enquanto
pergunto ao distrito policial de Bow Street.
Passou ao aposento contíguo e Frank pôde ouvir o ruído do
telefone.
Pouco depois o sargento tornava a aparecer na sala.
— Nem em Bow Street, nem em Vine Street há qualquer
preso com este nome, — declarou.
O jovem engenheiro relatou, brevemente, a história do
incidente a respeito da prisão, omitindo unicamente que a
jóia estava em seu bolso. Não tinha o menor desejo de ser
detido. Com a presença de Miguel para confirmar sua
história e também da acusadora para identificar a jóia, a coisa
seria diferente. E além disto, tinha um enorme desejo de
explicar a essa dama criminosa quais haviam sido suas boas
intenções.
— Não, senhor — prosseguiu o sargento, — não temos
nenhum italiano... já prendemos muitos, desde que a «Mão
Vermelha» iniciou suas atividades, na Inglaterra. Mas, desde
que o senhor Tillizini começou a trabalhar no assunto com a
Scotland Yard, já não estamos tão atarefados.
— Tillizini? — exclamou Frank, com assombro.
O sargento concordou com a cabeça.
— É êsse o cavalheiro, — disse complacentemente. — Se
deseja saber alguma coisa acerca dos criminosos italianos,
será melhor que o procure pessoalmente... De todo modo,
será melhor voltar aqui novamente.
Frank encaminhou-se para a rua e esteve dando voltas pelas
proximidades da estação, até às dez horas da noite. Enviou
um telegrama à sua noiva e jantou num restaurante de
Picadilly.
O relógio estava dando a hora, quando tornou a subir os
degraus da escada do posto policial de Marlborough Street.
O sargento não estava só. Três homens, vestidos de sobre-
tudo estavam conversando, a um canto do escritório.
— Está aqui, — disse o sargento, e os três homens voltaram-
se de repente, observando gravemente o engenheiro, que
acabara de entrar.
— Qual era o nome do italiano, por quem o senhor veio
perguntar? — interrogou-o o sargento.
— Migguelo della Romano, — replicou Frank. —
Encontraram-no?
O oficial fez um movimento de cabeça.
— Foi recolhido, há uma hora antes, de Embankment
Gardens, — disse.
— E aonde está? — perguntou Frank.
— Numa sala do necrotério, — respondeu o sargento, —
com vinte e cinco feridas de arma branca no corpo.

CAPÍTULO VIII
A COLEÇÃO RARA

Marjorie Meagh estava almoçando em companhia de seu tio.
Sir Ralph estava de um mau humor fora do comunp. O
almoço jamais fora um momento de muito agrado seu e
sempre tinha pretextos para reclamar contra a negligente
administração com que sua espôsa geria a casa.
Nesses momentos, seus protestos abrangiam um raio muito
mais extenso. Deixou, repentinamente, o jornal que lia e
teve um gesto de enfado.
— Queira Deus que Vera não tenha saído para a cidade,
como o faz constantemente, — disse.
Ainda que fosse uma espécie de tirano doméstico do tipo
corrente, sentia certa classe de temores com respeito à
esposa. Em três oportunidades, durante sua vida em comum,
ela o havia surpreendido pela veemência de suas rebeliões e,
em cada uma de suas explosões, ele se sentira menos
confiante e satisfeito, ao notar sua insuficiente capacidade
para dominar a situação.
Marjorie levantou a vista das cartas que estava lendo.
— Vera está fazendo um estudo aplicado da arte dramática,
— disse. — Deve recordar-se, tio, de que se por qualquer
motivo chegar a ter êxito, como escritora, isso significará
uma renda considerável para ela.
A jovem possuía muito tato. Sabia que os assuntos monetá-
rios influenciavam seu tio. Era essa a carreira que Vera
descobrira há dois anos, quando uma peça teatral que
escrevera para uma festa de beneficência fora recebida com
aplausos pela crítica.
Ainda que tivesse surpreendido agradavelmente ao marido, a
possibilidade de que sua esposa chegasse a sustentar-se
sozinha, isto lhe proporcionava, ao mesmo tempo, uma
fonte constante de irritações.
Seu gosto pelo teatro significava gastos, visitas constantes à
metrópole, o preço das entradas do teatro, ainda que essas
últimas, segundo pudera saber, não lhe custavam grande
coisa, desde que um de seus amigos, que tinha ligação com
os jornais, fornecia-lhe entradas em profusão.
Essas atividades, porém, implicavam na abertura do aparta,
mento que possuíam na cidade, outra vez. Significava a
obrigação de ter de tirar um criado do serviço da casa, aonde
os arranjos domésticos, planejados por Sir Ralph, eram tão
engenhosos, que cada pessoa tinha seu tempo total e
devidamente tornado.
Sir Ralph tornou a pegar o jornal para deixá-lo novamente
em seu lugar.
— O vagabundo do Mansingham apelou, — disse. — Isto é
monstruoso.
A instituição da Corte Criminal de Apelação era para Sir
Ralph uma fonte constante de aborrecimentos. Acreditava
que tinha sido instituída expressamente com a finalidade de
molestá-lo.
Escrevera cartas ao «Times» a respeito. Em todas as opor
tunidades públicas que se lhe ofereciam, manifestava-se em
têrmos severos. Era estranho, pensava, que nas
circunstâncias atuais, o tribunal continuasse funcionando.
— É monstruoso, — disse novamente, — uma zombaria para
os homens que se acham comprometidos na tarefa de fazer
cumprir as leis criminais.
Suas ânsias manifestavam-se em espasmos. A cada
movimento, tinha um novo motivo de protesto. Voltou a
tomar o jornal, deixando-o, em seguida.
— Esse jovem Galligford não veio ontem à noite, Marjorie,
— disse severamente. — Parece que os jovens de hoje
carecem das mais elementares noções das boas maneiras.
— Mas, se me telegrafou, tio! — protestou a moça. — Disse
que se via obrigado a ficar na cidade.
— Bolas! — respondeu o tio, — isso não é uma desculpa
satisfatória. Sou um homem do mundo, Marjorie. Essas
desculpas ridículas não me satisfazem. E advirto-a, se é que
deseja viver feliz, e a única maneira de ser feliz, — disse
com tôda ênfase, — é não ter ilusões e que sempre
considere estas desculpas com suspeita. É um homem
jovem, — prosseguiu, — chegado, recentemente à
Inglaterra, depois de uma grande ausência, em que esteve
em países semibárbaros...
— Na Itália, tio, — murmurou, — não creio que ali sejam
bárbaros, não ?
— Bárbaros? — disse com raiva. — Mas, se aqui tivemos dois
italianos assassinados num só dia!
Levantou o jornal, como em apoio de suas palavras.
— É claro que é um país de bárbaros! E volta para a
civilização, depois de longa ausência, ao lado de uma
formosa jovem e devo admitir que você é bela, Marjorie; —
disse com agrado, com um ar de quem fosse responsável, em
parte, por sua beleza, - e em vez de correr a seu encontro,
como devia é fazê-lo como em meus dias fazíamos os
jovens, quando se tratava da noiva, quebra o compromisso e
permanece na cidade. Isso é completamente indesculpável!
Ela não defendeu mais o noivo. Sabiam quão inúteis
resultam seus argumentos. O homem era um homem sem
nenhuma nação para a razão... pelo menos, na hora do
almoço... Durante todo o resto da refeição, continuou lendo
e protestando contra os periódicos.
Fazia a jovem pensar num cachorro que estivesse roendo
um osso. De tempos em tempos, pronunciava frases curtas,
frases que não tinham princípio nem fim e que de modo
geral estavam Associadas com a. escassez das rendas do
governo.
De repente, ela ouviu o ruído das rodas de um automóvel
que se aproximava pelo caminho e levantou-se da mesa,
olhou pela janela e sem dizer uma palavra ao tio, retirou-se
da sala. Ele acompanhou-a com o olhar, irritado. Marjorie
voltou poucos instantes depois, com um tom mais posado
nas faces e um sorriso nos olhos, acompanhada de um
jovem alto, de ombros largos, rosto queimado pelo sol e cuja
expressão geral era de embaraço, porquanto não
contemplava com muita tranqüilidade a entrevista que o
esperava.
— Este é Mr. Gallingford, tio — disse a jovem. — Ainda se
conhecem, pois não?
Sir Ralph não só nunca o havia visto, como também não
desejava vê-lo, nesse momento. Não se encontrava em
estado de ânimo para que lhe apresentassem gente nova. Por
outro lado, existia certa animosidade contra o jovem que tão
pouco zeloso se mostrara de sua hospitalidade.
Cumprimentou Frank Gallingford secamente, como se
quisesse demonstrar-lhe ser essa a retribuição que merecia,
por ter chegado com tanto atraso em sua primeira visita.
— Agrada-me muito conhecê-lo, senhor, — disse Frank.
Estendeu a mão, sincera e forte e apertou a de Sir Ralph.
— Devo-lhe uma excusa por não haver comparecido, ontem,
à noite.
Sir Ralph inclinou a cabeça. Não restava a menor dúvida de
que lhe devia explicações.
— Tive uma pequena aventura, — prosseguiu Frank,
relatando os principais pormenores do acontecimento
anterior.
Apesar do propósito que Sir Ralph tivera de não aceitar
como verdadeiras as explicações do pretendente, não perdeu
uma palavra do relato do jovem.
O rosto da moça também denotava enorme interesse.
— Oh, Frank! — exclamou com voz trêmula, — que coisa
terrível! Mataram-no?
Frank assentiu com um movimento de cabeça.
— Tive uma entrevista com o famoso detetive... como se
chama?
— Tillizini? — perguntou Sir Ralph.
— Sim, — afirmou Frank, — é esse seu nome. Um homem
notável! Entreguei-lhe o medalhão e Tillizini o tem, agora,
em seu poder.
— É muito extraordinário, — disse Sir Ralph, com um gesto
de desagrado. — A descrição que faz dessa jóia. assemelha-
se muito a um medalhão que possuo em minha coleção.
Um repentino pânico colheu-o. E se fosse o seu famoso
medalhão? E se o tivessem roubado, sem que ele suspeitasse?
— Desculpem-me, — rogou-lhes.
Na metade do caminho, antes de alcançar a porta, voltou-se.
— Quer vir comigo?... Talvez sua descrição da jóia seja de
utilidade. Tenho certo temor de que...
Fez um movimento com a cabeça.
— Pensa que possa ser o seu? — perguntou o jovem.
— Não sei, — respondeu Sir Ralph.
Achava-se sumamente agitado.
Os dois jovens acompanharam-no até ao vestíbulo, uma
formosa combinação de escritório e biblioteca.
De uma caixa de aço do escritório, retirou uma chave,
tornando a subir ao andar superior.
Sir Ralph era mais do que um colecionador amador.
Quaisquer que fossem suas opiniões sobre a justiça e os
tribunais, existiam muito poucas pessoas que pudessem
disputar-lhe o conhecimento sôbre a qualidade dos artigos
preciosos, que com tanto esmêro soube colecionar.
A coleção Morte-Mannery era famosa, apesar do reduzido
de suas proporções. E para Sir Ralph era um verdadeiro
prazer mostrar, de vez em quando, sua valiosa coleção aos
entendidos de toda a Europa.
A satisfação de possuir alguma coisa que ninguém tinha, ou
se tinha era muito inferior e de valor muito menor; o poder
ter em sua casa as maravilhosas peças saídas das mãos de
artistas já "falecidos, que eram cobiçados por pessoas de
grande fortuna, o 'que constitui orgulho para todo
colecionador, — essa era a grande paixão da vida de Sir
Ralph Morte-Mannery.
Dedicara quarenta anos de sua existência à obtenção dos
'cento e cinqüenta medalhões que formavam sua coleção.
O aposento, em que encontravam, fora construído
especialmente para guardá-la e, portanto, era feito à prova de
fogo e protegido contra os ladrões.
Era um segredo conhecido que, ao reedificar a residência de
Highlaw, depois de havê-la adquirido, toda a obra
concentrara-se em torno do aposento destinado a conservar
o tesouro.
Parecia mais uma prisão que um museu, pensava Frank,
enquanto acompanhava o dono da casa pela estreita entrada,
defendida por portas de aço e tendo uma outra ornamental,
com painéis de pau rosa.
O recinto estava iluminado por uma janela, guarnecida de
fortes barras de ferro e os vidros da mesma eram colocados
com grades de aço. As campainhas de alarme, dispostas de
modo engenhoso, tornavam impossível que a entrada de
qualquer pessoa ali ficasse inadvertida.
O chão, as paredes e o teto eram de concreto reforçado.
Uma grande caixa-vitrine estendia-se em todo o
comprimento do aposento. Dos dois lados, foram colocados
tapetes para passagem. As caixas eram cobertas por pesadas
tampas, que Sir Ralph começou a abrir.
A visão das jóias era algo impressionante para o homem que
não estava acostumado a tantas riquezas.
Fileiras de medalhões de ouro, prata, esmalte das mais
variadas espécies, apareciam perfeitamente selecionadas.
Ali não havia nada que pudesse despertar o entusiasmo de
alguém que não fosse um verdadeiro apreciador do assunto.
Com toda rapidez, Sir Ralph foi abrindo cada um dos estojos,
enquanto seus olhos ansiosos observavam detidamente as
jóias;
— Não, — disse depois de um rápido exame, — aqui não
falta nada. Pela descrição que me fez, pensei que meu
Leonardo...
Viu-se em seus olhos uma centelha de entusiasmo. Com as
mãos trêmulas, abriu outro estojo e tirou de dentro dele um
belo medalhão de ouro,
— Mas! — exclamou Frank, assombrado, enquanto o tomava
em suas mãos. — Mas, êste é o medalhão que o homem me
entregou!
Sir Ralph sorriu.
— Isso é impossível! Só existem dois medalhões semelhantes
e um perdeu-se para sempre. — Segurava a pequena jóia
com mão trêmula. Este e seu companheiro foram feitos pelo
maior artista que o mundo já conheceu: Leonardo da Vinci.
Data provàvel- mente do ano de 1387 e o desenho é do
próprio Leonardo. No trabalho está em relêvo alguma coisa
do gênio do mestre. Como sabe, Leonardo foi um homem
que não se satisfez só com a pintura de quadros. Não houve
nenhum ramo da arte, desde a escultura até a pintura, que
não fizesse com perfeição. Foi um médico e um químico de
não poucas qualidades e foi depois da grande praga que
assolou Milão em 1386 que fêz os dois medalhões, dos quais
êste é o único existente.
Tomou a jóia em suas próprias mãos e continuou:
— Um deles, ofereceu-o a seu patrão, O Mouro, o usurpador
do ducado e o outro deu-o, um ano ou dois depois, a César
Bórgia. Fez os medalhões em recordação da escapada
milagrosa de seu amo da terrível peste. Poderá ver isto tudo
simbolizado no reverso, — e virou suavemente a jóia, —
que tem uma alegoria. Vê a pintura dêsse pequeno diabinho?
— perguntou, apontando com o dedo. — Isto representa a
enfermidade, que assolou a Itália.
— E o anjo?
— Bem, deve representar os amos que não foram atacados
pela praga. O que significam os outros signos? — perguntou
como para si mesmo, num sorriso. — São coisas
incompreensíveis para mim. Provavelmente, Leonardo era
um futurista.
Começou a rir, ante suas próprias palavras e a jovem
contemplou-o com assombro, porque, nessa atmosfera, seu
tio parecia- lhe um homem diferente. Jamais o vira nesse
estado: humano, terno e expansivo.
— O outro medalhão, — prosseguiu Sir Ralph, — foi rou-
bado do museu de Dublin. Puderam dar com a pista do,
ladrão, depois de muito trabalho e souberam que tomara um
barco, que atravessava o Canal, indo de Harwich até Hook,
na Holanda. É possível que algum de seus cúmplices se
encontrasse a bordo, que, durante a noite ouviu-se um grito
numa das cabines e a pessoa que o vigiava, viu-o correndo
pela coberta, perseguido por dois homens. Antes que
pudesse prender os que o perseguiam ou capturar o ladrão, o
homem saltou pela borda e possivelmente perdeu-se o
segundo medalhão, com ele, no mar.
— Que significado tinha tudo isto? — perguntou Frank.
Sir Ralph moveu negativamente a cabeça. — Não o
sabemos. Supôs-se então, que o homem estaria para entregar
a jóia a um de seus cúmplices e que foi descoberto nesse
momento. Os homens que o perseguiam, à noite, no barco,
explicaram plausivelmente sua atitude, dizendo que
pensaram que se tratava de um louco que ia suicidar e
fizeram o possível para salvá-lo.
Virou a jóia novamente, olhando-a com todo carinho, antes
dc tornar a depositá-la no estojo.
— Qualquer que fosse o medalhão que o infortunado italiano
teve em mãos, — disse, — não podia ser o companheiro
deste.
Ao sair do aposento, voltou a ser o mesmo homem de antes:
frio, calculista, vulgar. Mas, esse aspecto de seu verdadeiro
caráter revelou muitas coisas a Marjorie.
Agora compreendia a ferocidade da sentença que Sir Ralph
ditara contra Mansingham. Para ele, sua coleção significava
muito mais do que um filho ou a esposa, muito mais preciosa
que qualquer outra coisa no mundo!
Sua paixão era bastante forte para sobrepor-se a todo senti-
mentalismo.
Olhou o relógio e fez um trejeito. Recordava-se, neste
momento, de fatos desagradáveis de sua vida.
— Vera ainda não regressou. Pensei que viesse no mesmo
trem que você tomou.
— Fui o único passageiro para Burboro, segundo me pareceu,
— disse Frank.
Sir Ralph tornou a consultar o relógio.
— Deve chegar outro trem, agora, — disse, — não tardará
muito mais.
Apenas terminara de pronunciar estas palavras, quando se
ouviu a voz de Vera no vestíbulo inferior, fazendo
perguntas aos criados.
— Oh, vocês estão aí? — gritou.
Olhou para cima, vendo o grupo que descia a escada que
dava para o vestíbulo. Por um instante seus olhos mostraram
sobressalto, ao notar a presença de Frank.
— Não conhece ainda Mr. Gallingford? — perguntou-lhe
Marjorie, enquanto fazia as apresentações.
— Tenho muito prazer em conhecê-lo, — disse Vera com
afabilidade.
Sentia-se feliz de que seu esposo tivesse algum outro
interesse, para se esquecer dos protestos e censuras de
sempre. Era essa a atmosfera que a esperava a cada um de
seus regressos da cidade.
Ele olhou novamente para o relógio e, em seguida, fitou-a e
Vera entendeu o significado do exame.
— Sinto muito, — disse com o maior cuidado. — Perdi o
rápido e vi-me obrigada a tomar um outro trem, que parava
em todas as localidades e andava vagarosamente. Foi uma
viagem muito aborrecida. Acho que meu relógio estava
atrasado.
Vera possuía uma voz muito bonita, cheia de belas
entonações.
— Esteve vendo nossa bela coleção? — perguntou.
Sir Ralph murmurou algo. Odiava toda pretensão de
sociedade com respeito a seus medalhões e Vera sabia disto.
Era essa sua resposta indireta ao ataque não formulado em
palavras.
— Não viu a melhor de todas, devia ver a dos cintos, —
disse.
— Esta coleção não está completa, — interrompeu-a Sir
Ralph, com enfado, — para ser examinada.
Em realidade, Vera desejava que ele não fizesse tantas
referências.
Saiu da biblioteca, deixando-os a sós.
Ela sorriu suavemente.
— As vezes, torna-se impossível, — disse ela, como para si
mesma.
Em seguida, voltou-se para Marjorie e a jovem pôde
compreender, com certo prazer, que a depressão do dia
anterior havia desaparecido de seu rosto. Nesse momento,
Vera parecia-se mais cheia de vida, mais contente e mais
sorridente.
Logo, pôs-se a conversar com Frank Gallingford, sobre a
Itália, como se já o conhecesse durante toda a sua vida.
— Deve ser um belo país, — disse. — Agrada-me
sobremaneira a campina e eu mesmo tenho algo de italiana.
— E tem realmente?
Foi Marjorie quem fez a pergunta.
— Oh, que romântico! Alguma vez pretendeu matar o tio
com algum estilete ou algo parecido?
Ela sorriu. O rosto de Frank tinha um trejeito que mais se
assemelhava a um esgar. Guardava uma recordação muito
recente de alguém que pretendera golpeá-lo com uma arma
semelhante, para que a pergunta pudesse agradá-lo.
Essa parte da história, ele não contara, por não julgar
necessário.
— Oh, não! — exclamou Vera. — Nunca senti sede de
sangue!
De repente, o rosto de Frank empalideceu e o jovem
retrocedeu um passo, deixando escapar um grito.
— Que lhe aconteceu? — perguntou Marjorie alarmada,
Ele passou as mãos pelos olhos.
— Mas, diga francamente... está doente?
Frank meneou negativamente a cabeça.
— Não, foi um enjôo passageiro, — murmurou.
Estava ansioso por retirar-se dali.
— Tinha me esquecido, — disse a jovem, — de que' você
passou uma noite cheia de sobressaltos. Vou ver se seu
quarto está pronto. Seria melhor que se deitasse um pouco e
logo se sentirá melhor.
Ele concordou com um movimento de cabeça e levantando
a vista, seus olhos encontram-se com os de Vera.
— Se me desculpa a impertinência, — disse-lhe, — seu anel
é muito curioso!
Ela empalideceu por sua vez e apressadamente escondeu as
mãos atrás das costas.. Mas, o movimento fora feito
demasiado tarde... ele havia visto a opala quadrada, pela
segunda vez em vinte e quatro horas!

CAPÍTULO IX
O CONDE FESTINI

— Que delicioso prazer de vê-la, miss Meagh!
Marjorie voltou-se com um sobressalto. Saía, nesse
momento, de Vitoria Station e parara num quiosque para
comprar umas revistas.
Tinha ido visitar Ida Mansingham, a esposa do condenado,
que se encontrava em uma casa de saúde. A mulher sofrera
uma crise de nervos e, graças à generosidade de Hilary
George e de Tillizini, pôde ser enviada a uma clínica de
repouso.
Um homem, bastante jovem ainda, achava-se parado diante
dela e seus dentes, muito brancos, apareciam num sorriso de
prazer.
— Que casualidade! Há dois meses que não a vejo! Onde
esteve escondida?
Ela estendeu a mão um pouco embaraçada. Sua última
despedida do Conde Festini havia sido de tal maneira, que
lhe parecera que jamais se encontrariam como amigos. Sua
apaixonada declaração ainda lhe repercutia nos ouvidos. Ele
tinha ido à Irlanda para uma caçada e ficara, segundo
declarou, desesperadamente apaixonado por ela e lhe
declarara seu amor.
Quando ela gentilmente o recusou, sentiu-se enraivecido e
atormentado. Esse homem bem nascido e de boas maneiras,
con- duzia-se mais como um louco que como um produto
da civilização do século XX.
E estava a seu lado, como se nada houvesse acontecido.
— Procurei saber onde se encontrava, — disse-lhe.
Seus olhos tinham a doçura das pessoas do sul. A voz não
acusava nenhum sotaque estrangeiro. Como sempre, estava
impecavelmente vestido, sem nenhuma dessas ostentações
ou erros que, tão a miúdo cometem os que viajam, apesar
dos esforços dos melhores alfaiates.
— Estive no campo, — disse ela com certa pressa.
Marjorie estava na estação, à espera de Frank. Ele podia
chegar de um momento para outro e perguntava a si mesma
que efeito causaria nesse homem vulcânico a apresentação
do jovem inglês, de que era noiva.
— E eu estive preso na cidade, — disse. — Oh, que lugar
deplorável é Londres, para quem se vê obrigado a
permanecer aqui, por causa dos negócios! A cidade é
deliciosa para o visitante, para o que viaja, mas não para o
infortunado morador por obrigação. E terrível!
Estendeu a mão num gesto de desespero.
— Londres é um mau costume, — prosseguiu, — mas é
também um ideal, porque é um mau costume de que se
pode livrar, quando desejamos.
— São poucos os maus hábitos como este, — disse ela, com
um sorriso.
Aparentemente, ele recobrara-se de seus modos enfatuados
e estava sendo mais comedido, até ao ponto da correção.
Ela recordou-se de alguma coisa e não pôde evitar um
sorriso.
— Diverte-lhe, por acaso, minha situação? — perguntou com
um pestanejar dos olhos negros.
— Estava pensando, — falou, — que é muito curioso que nos
últimos dias só encontrei italianos ou pessoas que estiveram
vivendo na atmosfera do Renascimento.
Os olhos dele fizeram-se mais graves.
— É muito curioso, — disse com tranqüilidade, depois de um
momento. — Quase poderia dizer a mesma coisa. E quais
são os italianos que foram favorecidos com a convivência da
mais graciosa das damas da Inglaterra?
Ela levantou a mão.
— Faça o favor, — disse com suavidade, — esqueçamo-nos
disso.
— Não poderia olvidá-lo, — respondeu.
Falou com bastante calma para que ela não se sentisse
aborrecida.
— Mas é que já fiz o possível para esquecê-lo. O certo é que,
— prosseguiu com um imperceptível movimento de
ombros, — que não se pode ter neste mundo tudo que se
deseja? Consegui a maioria de meus desejos. O que mais
desejava, contudo, não pude alcançar. Esse é o meu castigo!
Voltou a sorrir de novo.
— Mas, não me respondeu,
Ela vacilou. Não desejava falar de Tillizini. Era um dos mais
misteriosos indivíduos, interessado em assunto de tal natu-
reza que tôda referência sôbre êle seria trair-se. Viu o
absurdo de seu raciocínio quase no mesmo instante.
— Um dêles, — disse, — foi o professor Tillizini.
Ele levava um cigarro à bôca e parou o gesto em meio do
caminho. E ao ouvir tal nome, sentiu um estremecimento
pela fração de um segundo.
— O Signor Tillizini? — repetiu. — Que interessante! Que
foi que o grande Antônio lhe disse? Quis conhecer suas
impressões digitais, fazer uma análise de sangue ou
expressou o desejo de medir as proporções de sua cabeça?
— Oh, não! — respondeu sorrindo.-— Não fez nada disso.
Conhece-o?
— Ligeiramente, — assentiu o outro descuidadamente. —
Todo mundo na Itália conhece Tillizini e poderia imaginar
que tôda a Inglaterra parece, agora, inteirada de sua
existência. Quando conheceu esse grande homem? —
acrescentou.
— Em Burboro. Esteve ali visitando meu tio.
— Em Burboro?
— Marjorie notou novamente uma ligeira ênfase em suas
palavras.
Olhava-a fixamente. Compreendeu, de repente, que sua
atitude era algo mais do que desinteressada e não pôde
reprimir um sorriso.
— Pensa que me tornei um tanto curioso, não é assim? —
disse-lhe. — Mas, não sabe que tudo que se relaciona com
você, interessa-me sobremaneira. Veja, — disse, como se
estivesse desculpando, — não conheço seu tio. Nem sabia
que tivesse um parente deste grau. Consegui, entretanto,
saber onde éstá morando, — disse com um sorriso meio
ameaçador. — Só terei que encontrar seu tio e o resto ser-
me-á muito fácil. Irei a Burboro, — prosseguiu "levantando
um dedo, em sinal de advertência, — e perguntarei a
quantas pessoas encontrar lá: "Alguém viu o tio de Miss
Marjorie?» Isso despertará sensação, não é verdade?
— Evitar-lhe-ei este trabalho, — disse, sorrindo. — Meu tio
é Sir Ralph Morte-Mannery.
— Ah, certamente! — continuou, meneando a cabeça. —
Pensei mesmo que fosse ele,
— Por quê?
— É simples. Bem sabe que se trata de um grande homem.
Ouve-se falar dele, constantemente. É um juiz e possui
também a mania de colecionador. Não é exato?
Ela acabara de avistar um homem alto que vinha na direção
deles e enrubesceu.
— Vou apresentar-lhe meu noivo: Frank Gallingfotd, Conde
Festini.
Desviou o olhar do rosto dele e não pôde ver, então, o
repentino movimento de seus lábios, nem o curioso
pestanejar de seus olhos.
— Este é o Conde Festini, Frank.
O inglês de alta estatura estendeu a mão e estreitou com
força a do aristocrata italiano. Era quase uma cabeça mais
alto do que o conde, mas, para surpresa de Frank, não foi um
aperto débil nem efeminado o que lhe devolveu o seu.
Tinha um modo de apertar a mão que lhe recordava Tillizini.
Frank era nitidamente inglês, alto, espadaúdo, de rosto,
comprido; os olhos cinzentos, honestos, brilhavam cheios
de prazer por conhecer um amigo de sua adorada.
— Desejaria que nos trouxesse um pouco do brilho do sol da
Itália, senhor conde, — disse-lhe, — a esta cidade de
nevoeiro, de prisões, de investigações...
— Investigações? — interrompeu Marjorie.
Frank assentiu com um movimento de cabeça.
— Sim, a respeito do desgraçado que assassinaram outro dia.
Hoje, tenho que responder a um interrogatório.
— De que homem se trata? — perguntou o conde com
algum interesse.
— Do homem que encontraram nos jardins do
Embankment.
— Oh!
Foi só uma exclamação, mas Frank ao notá-lo, olhou-o
surpreso.
— Conhecia-o? — perguntou.
— Só sei o que li nos jornais, — confirmou o outro com
calma. — Posso perguntar-lhe, Mr. Gallingford, qual a parte
que teve na tragédia?
— Era o homem que estava com ele, quando o raptaram, —
disse. — Desde então, fiquei muito impressionado. Se o
tivesse retido ao meu lado, talvez ter-lhe-ia salvo a vida...
— Ou talvez perdido a sua! — disse o conde. — Essa gente
não parece preocupar-se muito com uma ou duas vidas a
mais. Viveu bastante tempo em minha pátria, para se dar
conta de que nós não damos o mesmo apreço à vida humana
que os habitantes dos países do norte.
— Não podem deixar de dar um valor exagerado à vida
humana, — disse Frank gravemente. — É a coisa mais
preciosa do mundo.
O conde encolheu os ombros.
— Esse é um ponto de vista. Não é assim que penso. De
minha parte, considero a vida como a menos valiosa de
nossas posses. É um grande disco de gramofone no qual se
gravaram todos os sons estridentes e ingratos da vida, ao
mesmo tempo. Afinal de contas, — acrescentou, — estamos
em completo desacordo. A música da vida fica diminuída,
sobrepujada, acalmada pelas notas mais agudas das lutas e
ambições. No que se refere a mim, — disse sorrindo, —
penso que a gravação mais clara e desprovida de sons é a
melhor.
— Qual é a gravação mais clara? — perguntou Frank.
— Dormir, — respondeu o outro com certa amargura, — ou
morrer. É mais ou menos a mesma coisa.
Estendeu a mão, sorrindo calmamente.
— Estou estorvando-os, — disse. — Onde poderei ter o
prazer de vê-la novamente, Miss Meagh?
— Ficarei na casa de meu tio mais um mês.
Fez uma inclinação de cabeça a Frank e, dando meia volta,
começou a andar na direção oposta.. Parou um momento ao
chegar ao quiosque de cigarros, observando o par com o
canto dos olhos. Viu que caminhavam lentamente para fora
da estação. Voltou-se, quando os viu desaparecer por uma
das saídas.
Sua fisionomia mudou. Seus olhos olhavam fixamente e
desprendiam chispas. Ficou contemplando a porta de saída,
por onde os vira passar e, em seguida, entrou numa cabine
telefônica.
Saiu cinco minutos depois, com um semblante mais agradá-
vel e tranqüilo.
Era quarta-feira, uma noite antes do ataque que estava
planejado. Se o medalhão não fosse roubado, pensou que já
tinha em Suas mãos o meio de consegui-lo... e tratava-se de
um meio que muito lhe agradava. O único temor que tinha
era saber se ela resistiria à tentação que lhe proporcionaria a
experiência. Se sua ambição por dinheiro seria superior à
paixão crescente que parecia começar a arder no peito por
essa fria e formosa mulher inglesa.
Inteirara-se já do suficiente para saber que o segundo
medalhão achava-se em poder de Tillizini. E a casa dele
poderia ser muito facilmente assaltada, a qualquer momento,
mas agora o problema mudava de aspecto. Tratava-se do
próprio Tillizini e o seu nome inspirava temor entre os
delinqüentes que trabalhavam para obter benefícios ilegais.
Até esse momento, só à vista do rosto comprido e refinado
do professor, havia detido e paralisado o golpe da espada
assassina que iria pôr fim a seus dias. A menção de Tillizini
era suficiente para provocar a intranqüilidade e desassossego
entre os Vilões, em cujo peito estavam mortos todos os
sentimentos de piedade e compaixão.
Mas, sobre o Conde Festini, este nome não produzia o
menor efeito. Estava num plano superior, acima de qualquer
temor a respeito de qualquer homem. Procedia de uma
linhagem que durante centenas de anos havia dominado
uma ou outra sociedade secreta. Os Festini remontavam aos
antigos e nefastos dias da história italiana, quando o crime
era método fácil e rápido de eliminar pessoas que
incomodavam sua família.
Isto estava em seu sangue. Fazia parte de sua composição.
Jovem como era, tornara-se já a força diretriz da terrível
associação que trabalhara em algumas regiões dos Estados
Unidos, causando pavor e preocupando as autoridades.
Mas, Tillizini, com a segurança e astúcia de seu trabalho,
com ã prudência de seu julgamento, conseguira enfraquecer
a organização .
Festini não era tolo. Reconhecera que na América já não
havia mais nada a fazer. Era inútil continuar batendo com a
cabeça contra uma parede de concreto. Tinha previsto a
possibilidade de ser preciso transportar o poderio de seu
comando para a Inglaterra. Tratava-se de um pais em que o
povo era mais calmo, acostumado a certa espécie de crime,
geralmente sem violência. Essa seria a última etapa da «Mão
Vermelha». Seus membros haviam sido expulsos de todos os
países da Europa. E era somente uma questão de tempo e a
adormecida Inglaterra despertaria para fazer funcionar todos
os seus recursos e pôr fim às atividades da organização.
Nesse breve espaço de tempo, entretanto, Festini preparava
o golpe... o maior e mais terrível de todos os seus temerários
planos! Não agiria contra determinadas pessoas, porque isto
era demasiado perigoso, mas haveria de burlar a Nação e
antes de mais nada era mister que estivesse de posse dos
medalhões.
Ao sair da estação, tomou um táxi e fez-se conduzir a uma
pequena ruela de Soho. Sabia que haveria de encontrar o
«Boi» num restaurante de baixa categoria, ali existente. Não
tinha muito tempo a perder.
O homem que procurava, entretanto, não havia chegado
ainda e o conde sentou-se para esperá-lo, pedindo ao
obsequioso garção que lhe servisse um prato de sopa.
Poucos minutos depois, o homem grande chegou.
— Fale o mais que lhe seja possível em inglês, — disse-lhe
Festini.
— O homem é um irmão, — replicou o outro.
— Isso não importa, — insistiu o conde. — Fale em inglês,
por favor. Mandou seus homens a Burboro?
O outro assentiu com um movimento de cabeça.
— Seguiu minhas instruções?
— Sim, padrone. Os homens que mandei tinham o aspecto
de verdadeiros ingleses. Foram os melhores que pude
conseguir.
— São de confiança?
O outro tornou a fazer um sinal de assentimento e sorriu
com certa malícia.
— Tão de confiança como homens que estão cuidando por
suas próprias vidas... — disse, enquanto fazia um gesto
significativo.
Festini sorriu.
— Não creio que vamos ter dificuldades, — disse. — Quando
conseguir o medalhão, traga-o imediatamente. Ficará na
estação para esperar sua gente. Receba-o de suas mãos. Não
saia da estação até que o tenha em seu poder. Esperá-lo-ei
em Deptford. E, agora, o que há com Tillizini?
Um olhar de temor apareceu nos olhos do homem grande.
— Tillizini? — perguntou com dificuldade.
— Sim, — disse o outro com impaciência, — que é que
teme? E somente um homem, Touro. Um dos medalhões
está em seu poder. Acha-se naquele aposento grande que dá
para o Tâmisa, do Embankment. Será que poderemos nos
apoderar desse objeto?
O italiano grande moveu vigorosamente a cabeça de um lado
para outro.
— Signor, — disse com certa ansiedade, — isto não poderá
ser feito. Não contamos com nenhum homem que se atreva
a fazê-lo... Bem sabe que ele não é um homem, é um
demônio! Tillizini é um diabo completo. Lembre-se de
Beppo Ferosti! Na noite passada foi morto em nossas
próprias barbas, por um homem que ouviu tudo quanto
dizíamos. Não creio, Signor, que possamos enganar esse
homem. Já o intentamos em vão!
Moveu-se incomodamente na cadeira, antes de prosseguir,
no seu tom lastimoso.
— Já não tentamos a mesma coisa em New York? —
perguntou com veemência. Subornamos o moço de seu
hotel, entramos em seu quarto, durante a noite, depois de
narcotizá-lo o envolvemos num lençol. Atiramos com ele
pela abertura do elevador. Caiu do oitavo andar, Signor, —
disse com um acentuado estremecimento de terror, — e,
quando pouco depois, fomos vê-lo no fundo do poço, o
homem não estava lá mais! Em seu lugar, jazia o pobre
Antônio Barrici, o encarregado de todos os preparativos e o
mesmo que havia planejado sua morte. Não pudemos ver-
lhe o rosto na obscuridade, porque não nos atrevíamos a
levar nenhuma luz! Simplesmente tiramos o narcotizado da
cama e o levamos até ao elevador!
E fez-se silêncio profundo, durante alguns momentos.
— Lembra-se de que mandamos um homem de Florença
para matá-lo? Nunca mais tornamos a vê-lo, — a voz do
homenzarrão tremia um pouco, porque o homem que viera
de Florença era seu irmão. — Tillizini enviou-me sua mão
decepada, como encomenda postal. Nada mais que a mão do
homem que viera da Itália, tendo no dedo o anel da
fraternidade. Não havia nenhum nome que identificasse o
remetente e a encomenda levava a etiqueta postal de Paris.
Não será possível fazê-lo, Signor. Esse homem não é um ser
humano!
Festini escutava-o com um sorriso divertido.
— É suficientemente humano, meu amigo, — disse-lhe sua.
vemente. — O que há é que é um pouco mais astuto que os
homens postos a trabalhar contra ele. Agora, propus-me eu
mesmo a agir e acertar as contas com o Signor Tillizini!
Tentei utilizar cada um de nossos agentes e todos
fracassaram. Também devo ter minha parte na tarefa. Trata-
se de um inimigo perigoso que poderá arruinar nossos
planos. Esta noite, enquanto nossos amigos andarem
reconhecendo o terreno em Burboro, agirei independen-
temente.
— Devo ir também? — perguntou o outro com veemência,
— Sabe, Signor, que daria minha vida pela sua?
Falava com sinceridade. Não era para se pôr dúvida a
fidelidade deste homenzarrão, como não se duvida da
fidelidade de um cão.
O Conde Festini sorriu novamente.
— Trabalharei sozinho, meu amigo, — disse-lhe dando um
tapinha de confiança no ombro. — Estas coisas devem ser
feitas com sutileza, se quisermos lograr êxito.
Deixou cair a cabeça entre as mãos por um momento e ficou
pensativo. O outro esperou pacientemente, os olhos
profundos cheios de amor e admiração pelo amo.
— Há um homem, — disse Festini de improviso, — que é
uma espécie de agente de Tillizini. Você irá buscá-lo, agora,
para matá-lo.
Falava como se se tratasse de uma transação torrente que o
outro deveria realizar.
O «Boi» assentiu com a cabeça.
— Será muito simples, — disse. — Poderei fazê-lo esta
mesma noite.
Festini continuava pensando.
— Não, — disse, depois de um instante. — Não deve matá-
lo, agora. Leve-o para a casa junto ao rio. Sabe aonde e a que
lugar me refiro?
O outro fez um sinal afirmativo.
— Quando conseguir aprisioná-lo e o tiver bem guardado,
mande uma carta a Tillizini, dizendo-lhe que o tem em seu
poder e exija um resgate de quinhentas libras. O resto corre
por minha conta.
O homenzarrão pôs-se de pé.
— Vou cumprir suas instruções, imediatamente, Signor, e
que Deus o proteja!
E com essas palavras, retirou-se do restaurante.

CAPÍTULO X
OS PROCEDIMENTOS DE TILLIZINI

Tillizini achava-se sentado em seu escritório, examinando
um grande número de fotografias que recebera de Florença,
nesta mesma manhã, quando chegou a comunicação.
Abriu-a e pôs-se a lê-la.
Era breve e concisa.
«Já prendemos seu espião. Pedimos quinhentas libras pelo
resgate. Ao recebê-las, dar-lhe-emos liberdade.
Por ordem da
«Mão Vermelha».»
Dobrou-a cuidadosamente.
— O mensageiro está esperando? — perguntou ao criado.
— Não, senhor, — respondeu o outro. — Foi um rapazinho
que a trouxe.
Tillizini tornou a examinar o bilhete e sorriu.
Levantou-se e acercou-se do telefone que descansava em
um suporte, próximo da janela. Deu um número que não
figurava na lista telefônica e que somente poderia ser
encontrado num pequeno volume que se edita para os
ministros do gabinete e determinados funcionários públicos
de certa categoria.
Poucos minutos depois, estava em comunicação com o
inspetor Crocks.
— Agarraram o meu agente, — disse, — pelo menos dizem
que o fizeram e suponho que seja verdade. Exigem
quinhentas libras para sua libertação.
— Que pretende fazer? — perguntou o inspetor.
— Vou libertá-lo, — respondeu Tillizini, — ainda que tenha
minhas dúvidas de que possam desejar o dinheiro solicitado.
Minutos depois, iam ambos em direção à morada de Smith.
A dona da casa deu-lhe tôdas as informações solicitadas e
depois de uma hora de buscas, deram com o lugar onde
haviam capturado o homem. Tal como pensava, o rapto
ocorrera no cais, precisamente aonde o homem fazia os
sinais com a lanterna.
Notavam-se marcas de luta. Alguns meninos que brincavam
num beco escuro, próximo dali e por onde se chegava ao
cais, haviam visto quatro homens que lhes pareceram
bêbados e que iam com passos vacilantes para um táxi que os
esperava.
No Soho há um pequeno clube, onde os homens que têm
certas pretensões políticas podem ser encontrados, entre as
onze da noite e as cinco da manhã.
As doze menos um quarto, o vigoroso Pietro, que formara o
terceto na conferência de Deptford, penetrou no clube e
depois de uma procura inútil, tornou a sair.
Caminhou pelas ruas de Soho, atravessou Oxford Street e
perdeu-se nos miseráveis bairros que abundam nas
proximidades de Tottenhan Court Road. Valendo-se de uma
chave, abriu a porta de uma casa e entrou.
Sua moradia ficava no andar inferior. Correu o fecho da
porta, penetrou no interior e tornou a fechar, retirando a
chave, antes de acender um fósforo.
Suas mãos ainda manejavam a caixa de fósforo, quando
percebeu um rápido clarão e encontrou-se paralisado no
meio de um círculo de luz, que partia de uma lanterna
elétrica.
— Não se mova, — disse uma voz, — ou o matarei
imediatamente.
O intruso falava em italiano.
— Pode acender o gás, — disse o desconhecido.
O circulo de luz seguiu o braço do homem assustado,
enquanto se locomovia pelo centro do aposento. Levantou-
se a acendeu a lâmpada.
— Tillizini! — exclamou.
— Sim, em pessoa, — replicou o outro, com toda calma. —
As portas estão fechadas, as janelas com os postigos e as
cortinas descidas, não é verdade? Sente-se!
Estremecendo dos pés à cabeça, o homem obedeceu. O
revólver que o professor tinha nas mãos era um argumento
excelente para a obediência.
— Onde esteve esta noite?
— Isso não lhe interessa, — murmurou o outro. — Não tem
nenhum direito de vir a meus aposentos. Que foi que
roubei?
— Não seja tolo, — disse-lhe Tillizini com calma. — Fique
parado e levante as mãos acima da cabeça. Obrigado, senhor.
Seus dedos introduziram-se habilmente nos bolsos do outro,
tiraram a arma que levava na calça e um punhal do cinturão
de couro. Deixou as armas sobre a mesa, abrindo primeiro o
carregador do revólver cientificamente. Ouviu-se o ruído
das balas que caíam no chão.
— Agora, dê-me sua mão, — disse Tillizini. — Estenda-as.
Com alguma vacilação, o outro obedeceu, os olhos
temerosos
fixos sobre o imutável rosto do professor.
Tillizini inclinou-se um pouco e levou a mão do outro à
altura de seu rosto. Suas narinas sensíveis dilataram-se. Não
teve dificuldade em reconhecer o perfume de rosas velhas
com que estavam impregnados os papéis de seu espião e que
ele tivera a precaução de perfumar na tarde anterior.
— Sim, — disse, — você é o homem que eu procurava.
O temor acentuou-se no rosto do homem.
— Que quer dizer com isto? — murmurou.
Tinha um temor supersticioso desse homem impossível de
se vencer! Com a ignorância das pessoas de sua classe, havia-
se dotado de poderes quase sobrenaturais.
— Preciso agora do homem a quem ajudou, esta noite, na
realização do rapto, ou que o ajudou na busca, — disse
afavelmente o italiano.
— Isso é mentira, — falou o outro. — Não sei nada sobre
nenhum homem raptado...
— O homem que capturaram esta noite, — continuou
Tillizini imutável, — cujos bolsos revistou e cujos papéis
vocês examinaram. Onde está este homem?
O temor acentuava-se cada vez mais nos olhos do homem.
— Como o sabe? — murmurou.
— Eu sei, — disse Tillizini, — é o suficiente.
Esperou que o homem falasse, mas qualquer que fôsse o
medo que sentia do detetive, era muito maior o terror das
represálias de seus camaradas.
— Não posso falar... nada... — murmurou.
— Então, terá que fazer uma viagenzinha comigo, — disse
Tillizini. — Se não o aborrece, deixaremos a luz acesa.
Levante-se. Vamos.
Aproximou-se da porta, ficando de costas para ela e abriu-a.
— Saia você primeiro, — disse.
A rua estava completamente deserta, com exceção de uma
apressada mulher que por ali transitava.
— Para a direita, — ordenou laconicamente Tillizini.
O homem obedeceu.
No outro lado da rua, estava parado um carro, puxado por
um par de cavalos. Pietro ficou parado perto do veículo,
esperando até que Tillizini ordenou:
— Entre.
O homem obedeceu novamente e Tillizini entrou atrás.
Fechou a porta e o prisioneiro percebeu que êle não havia
dado instruções ao condutor. Evidentemente, tudo havia
sido planejado de antemão. Seu assombro foi dissipando-se,
quando viu que o carro arrancava em direção ao
Embankment, readquirindo então, a perdida serenidade.
Estavam dirigindo-se para a casa de Tillizini e ali ele não
poderia torturá-lo, no coração de Londres, sendo como era,
funcionário do governo.
O carro deteve-se junto a Adelph Terrace, diante da casa do
detetive.
— Desça!
O homem seguiu as instruções. O chamado de Tillizini foi
respondido imediatamente pelo criado. Os dois recém-
chegados penetraram no vestíbulo.
— Alguém esteve aqui? — perguntou o detetive, em inglês.
— Não, senhor, a não ser um homem que veio trazer uma
encomenda.
— Uma encomenda? — Tillizini ficou pensando. — Uma
encomenda grande? — perguntou.
— Não, senhor. Uma encomenda pequena, — respondeu o
criado. — Não quis deixá-la, enquanto não assinei o recibo.
— Já percebi, — disse o detetive. — Deixou-o na porta do
vestíbulo, enquanto procurava por um lápis?
O criado sorriu.
— Não, senhor, recebi logo a encomenda... está ali sobre a
mesa. Não me retirei da porta.
Os lábios de Tillizini moveram-se. Nos momentos mais
trágicos de sua vida sabia encontrar motivos de diversão.
Olhou apenas superficialmente para a encomenda. Em vez
dela, porém, seus olhos revistaram imediatamente o
pavimento.
Abriu a porta e examinou a fechadura. Era uma fechadura
especial com fecho-patenteado. Tirou dois fios delgados do
buraco em que a lingüeta devia encaixar. Examinou-os
brevemente e reteve-os entre os dedos. Durante todo este
tempo, continuou com o revólver na mão, de um modo que
o criado não se apercebesse.
— Muito bem, Thomas, — disse-lhe, enquanto fechava
novamente a porta, — pode retirar-se. Adiante, meu amigo.
Estas últimas palavras foram dirigidas ao prisioneiro. Pietro
obedeceu. Subiu a ampla escada, até chegar ao corredor
superior e Tillizini aproximou-se mais do prisioneiro.
— Atravesse a porta, — ordenou.
Pietro assim o fez.
Abriu a porta, vacilou por um momento e avançou.
Quando a mão do italiano estava no trinco da porta, Tillizini
falou. Parecia que falava com uma pessoa que se achasse em
baixo.
— Está bem, Thomas, — disse em voz alta, — pode trazer-
me essa encomenda.
Em seguida, empurrou Pietro para dentro do aposento. Tal
como estava esperando, o quarto estava às escuras. O
prisioneiro ficou vacilante, junto à entrada, por uma fração
de segundos.
Tillizini estava por trás dele, em atitude de expectativa. Teve
que esperar também só por uma fração de segundos.
Da obscuridade do quarto, partiram quatro disparos, em
rápida sucessão e Pietro caiu de bruços, atingido pelas balas.
Tillizini afastava-se ligeiramente para um lado,
resguardando- se atrás da folha da porta. Não oferecia
nenhuma visão a seu oculto inimigo.
Ouviu os passos rápidos de Thomas. N° vestíbulo de baixo,
havia uma chave elétrica, que permitia iluminar qualquer
aposento que se desejasse.
A uma ordem rápida de Tillizini, as luzes acendeiam-se ao
escritório.
Deitou-se sôbre o homem que jazia no chão.
O aposento estava vazio, não oferecia esconderijo para
ninguém que pretendesse ocultar-se ali. Não havia
necessidade de procurar além da janela aberta. O homem
que havia estado na peça, esperando, já saltara, certamente e
fugira.
Tillizini deu volta à chave de luz e o quarto ficou novamente
às escuras. Correu para a janela. Uma corda havia sido presa
num dos pés da escrivaninha. Estendia-se através do apo-
sento e balançava de um lado para outro, do lado de fora.
A rua estava deserta. Não valia a pena perder tempo com
uma busca. Fechou a janela e telefonou para a polícia.
O homem que estava estendido no assoalho não necessitava
de ajuda. Quando Tillizini chegou junto dele, já estava
agonizando. Com a ajuda do criado e de um policial, cujos
serviços requisitara logo após, foi colocado numa poltrona,
onde poucas noites atrás uma vítima inocente da «Mão
Vermelha» estivera formulando seus planos.
As mãos afanosas de Tillizini buscaram todos os frascos de
sua farmácia de emergência... o homem reviveu um pouco,
mas era evidente que não passaria muito tempo, até que
chegasse a morte.
Olhou para Tillizini com um débil sorriso.
— Signor, — disse em italiano, — devia ter adivinhado... foi
assim que enganou os outros. Tenho algum dinheiro no
banco, — deu o nome do estabelecimento, — e desejo que
esse dinheiro seja enviado à minha irmã, que é uma viúva e
mora em Sezzori.
— Enviá-lo-ei, Pietro.
— Sabe meu nome? — perguntou o moribundo.
— Conheço-o muito bem, — respondeu Tillizini.
O homem olhou-o sem compreender.
— Algum dia, — disse por último, com voz que ia tornando-
se cada vez mais fraca, — êles lhe darão caça, nossa brava
«Mão Vermelha», Signor, e então a matança será enorme!
Conteve-se e olhou à sua volta, até ao policial, que não
entendia suas palavras e para o criado inglês, que parecia
agitado pelo caráter extraordinário do acontecimento.
— Há algo que quero dizer-lhe, Signor, — balbuciou.
Sua voz estava muito difícil de ser ouvida. Tillizini abaixou a
cabeça para apreender bem as palavras e, nesse momento, o
moribundo fez um esforço para despender a última reserva
de energia que lhe restava.
Com um resto de vontade maligna, chamou em seu próprio
auxílio todas as forças vitais que lhe restavam e quando a
cabeça de Tillizini ia abaixando mais e mais, a mão de Pietro
encrespou-se a seu lado.
— Signor! — disse-lhe, tome isto!
Mas, pôr mais rápido que fosse seu movimento, Tillizini foi
um pouco mais. Voltando-se, sua mão de ferro apertou em
volta do pulso do homem e a folha de aço que brilhava nela,
caiu com estrépito sobre o chão polido.
Então, empurrou com um esforço a mão do moribundo, que
caiu pesadamente sobre a poltrona em que ele estava
deitado.
— Não podia negar que era um réptil, Pietro! Um asqueroso
réptil!
E o moribundo, sem se arrepender de suas muitas vilanias,
nem pelas tristezas e desgraças que acarretara a tanta gente,
olhou com a nebulosidade da morte e conseguiu ver os
olhos de Tillizini e os lábios do detetive que mostravam um
sorriso de desdém e de desprezo.
Uma hora mais tarde, Tillizini achava-se sentado no escri-
tório particular do Inspetor Crocks, em Scotland Yard.
— Foi uma boa escapada a sua, — disse o inspetor, com
admiração.
— Houve duas, — disse Tillizini secamente. — A qual delas
se refere?
— Creio que a mais perigosa foi a primeira, — respondeu o
policial .
—- É estranho que diga isto, — disse Tillizini. — Creio que a
segunda foi a pior, porque o punhal estava envenenado.
Verifiquei logo depois.
— Envenenado?
— Sim, com um veneno que não é muito agradável...
tétano!..— disse.
— Bom Deus! — exclamou o inspetor, deveras surpreendido.
— O germen da paralisia, não é?
Tillizini assentiu com a cabeça.
— Com efeito, — acrescentou concordantemente, — Um
fim muito desagradável e especialmente preparado para
mim. Posso dizer-lhe que essa gente è científica à sua
maneira. Eu já sabia que devia estar alguém esperando em
cima. É um velho método. Provavelmente você mesmo já o
terá posto em prática, em muitas ocasiões.
O inspetor confirmou com um olhar.
— Quando o atento Thomas fechou a porta, o amigo que
levou a encomenda tratou de tirar rapidamente um molde,
com um pedaço de fazenda preta. O trinco ficou calçado
com o pedaço de pano. Quando pensou que a costa estava
livre e calculou que Thomas não andaria por ali, pôs-se a
puxar a ponta da sêda, que sobressaía do outro lado...
— Conheço o truque, — afirmou o inspetor. — Já o vi ser
feito um punhado de vêzes.
— Suspeitei de algo semelhante, — asseverou Tillizini, —
mas, suspeitei muito mais da encomenda. Pensei também
que o rapto de Smith era um truque, para me fazer sair, de
modo que no meu regresso me esperasse aqui uma bela
recepção!...
— Encontrou o homem?
— Será encontrado, — disse Tillizini. — Amanhã pela
manhã...
— Designei vários agentes para procurá-lo, — esclareceu
Crocks. — É uma tarefa difícil, Tillizini, ter que disputar
com essa gente.
Tillizini sorriu.
— Diferenciam-se um pouco dos criminosos comuns da
Inglaterra, — disse. — Um desses dias, quando for a
Florença, inspetor, terá oportunidade de passar por meu
museu e lhe mostrarei os crânios típicos dos criminosos de
todos os países. Explicar-Ihe-ei, então, porque nossos
homens do meio-dia são mais perigosos de ser manejados. E
se tiver um pouco de paciência, — inclinou ligeiramente a
cabeça, — dar-lhe-ei, ainda que resumidamente, as bases
sôbre as quais poderá julgar, antecipadamente, os atos desses
homens.
— Em outras palavras, — disse jovialmente o inspetor, —
dar-me-á lições elementares de nigromancia.
— Algo parecido com isto, — respondeu Tillizini.
Havia passado meia hora em companhia de Crocks e do
Comissário Chefe. Outro crime fora acrescentado aos muitos
cometidos relacionados com a «Mão Vermelha». Era um
aborrecimento a mais para a Polícia inglesa, apesar de toda a
satisfação que pudesse causar a Tillizini.
Levantou-se da cadeira e consultou o relógio, Eram quase
doze horas. O inspetor seguiu-lhe o exemplo.
— Onde vai agora?
— Voltarei para minha casa. Quer vir comigo?
— Tenho uma hora livre, — disse o outro, — e como me
agrada o seu escritório, irei descansar um pouco ali. De
passagem, poderei recolher algumas impressões,
diretamente.
— Então venha, — convidou Tillizini.
Passaram pelos amplos corredores de Scotland Yard.
Desceram as escadas e saíram por baixo do grande arco de
entrada. O policial, que estava de guarda, cumprimentou-o
respeitosamente.
Seguiram juntos até à residência de Adelph Terrace. Tillizini
tocou a campainha. Era um ato de preguiça de sua parte não
retirar as chaves do bolso para abrir a porta.
Não obteve resposta e tornou a chamar. Então, ele mesmo
abriu a porta e entrou. As duas lâmpadas do vestíbulo
estavam apagadas, mas não se via sinal de Thomas.
Tillizini fechou a porta atrás de si. Poderia talvez encontrar
Thomas no subsolo. Caminhou pelo corredor e chamou-o,
deitando-se sobre o corrimão da escada, sem obter, também,
nenhuma resposta. Ostensivamente dobrado, atrás de um
vaso de cristal, achava-se um bilhete.
Tillizini retirou-o e pôs-se a lê-lo. O bilhete explicava a
ausência de Thomas. Era dirigido ao criado.
«Fui preso pelo crime de hoje, faça-me o favor de trazer
meu agasalho a Bow Street».
A nota estava assinada:
Antônio Tillizini.
Sem dizer uma palavra, passou o papel ao detetive inglês.
— Agora, iremos revistar a casa. Talvez, descubramos alguma
coisa, — disse e começou a subir a escada.
Não se preocupou em armar-se, porque conhecia a maneira
de agir da «Mão Vermelha», demasiadamente bem, para
acreditar que algum membro da organização se encontrasse
ali.
Provavelmente tiveram mais de meia hora depois da saída
apressada de Thomas, levando seu agasalho. Dez minutos era
tempo de sobra para fazer o que pretendiam.
Abriu a porta do quarto e entrou, sem revelar o mínimo
temor. Acendeu a luz. O aposento estava em completa
desordem. Fôra efetuada ali uma completa e minuciosa
busca. As gavetas da escrivaninha tinham sido arrombadas,
com violência e o chio estava cheio de papéis e lascas de
madeira do móvel. Nem as cadeiras, nem a poltrona
escaparam da revista. A tapeçaria havia sido cortada e tudo
anunciava que a busca tinha sido feita apressadamente.
Os pés das cadeiras pareciam cortados por um machado. E
era estranho que a caixa com a farmácia de emergência,
portátil, que estava sobre a escrivaninha, houvesse sido
poupada.
A «Mão Vermelha» respeitava demasiadamente os
conhecimentos químicos de Tillizini. E tantas foram as
lições convincentes que tiveram de seu saber sobre altos
explosivos que essa caixa foi deixada em seu lugar, sem ser
tocada. Mas, era evidente que cada uma das pequenas
ampolas havia sido tirada cuidadosamente de seu lugar e
detidamente examinada.
Com um rápido olhar ao dano sofrido, o italiano avançou em
largas passadas pelo aposento, levantou uma ponta do tapête
e suspendeu uma tábua estreita do assoalho, Quem estivesse
na ignorância do segrêdo, jamais poderia saber da existência
dêsse receptáculo, que servia de esconderijo. Enfiou a mão
lá dentro e por um instante Tillizini permaneceu em
expectativa, mas logo começou a retirá-la lentamente. O
detetive observou que o companheiro retinha um papel
entre as mãos.
E pôde ler o que dizia o bilhete:
«MUITO AGRADECIDO PELO MEDALHÃO. E AGORA
OUVIRÁ FALAR DE NÓS. TILLIZINI!»
O italiano permaneceu calado. Parou no centro do quarto, as
mãos no peito, absorto em seus pensamentos.
— Levaram o medalhão, — disse o inspetor Crocks, com
espanto.
Tillizini não deu resposta.
Ouviu-se uma batida na porta e Thomas entrou, tendo ainda
no braço o casaco de seu patrão.
— Sinto muito, senhor, será que... — começou a dizer.
Tillizini levantou a cabeça.
— Thomas, já lhe disse que sob nenhum pretexto devia sair
de casa. Sua desobediência às minhas recomendações de-
correu, em parte, de culpa própria minha. Amanhã, mostrar-
lhe-ei uma pequena indicação que só verá nas cartas e papéis
que eu mesmo escrever, de meu próprio punho.
— Sinto muito, senhor, — desculpou-se Thomas.
Tillizini pediu-lhe que parasse de se desculpar.
— Não foi nada, — sorriu. — Devo-lhe, também, uma
pequena desculpa. Você tem um filhinho, não ê certo?
— Sim, senhor, — afirmou Thomas.
— Trás seu retrato num medalhão, não é verdade?
— Sim, senhor, — respondeu Thomas. — Porque o
pergunta, se o senhor mesmo sabe, senhor? Trouxe outro dia
o medalhão para o senhor ver.
— Sinto dizer-lhe, Thomas, que o perdi... e espero encontrá-
lo. Posso assegurar-lhe que o coloquei num lugar seguro.
— Oh, não é nada, senhor! — disse Thomas. — Posso
conseguir outro. Não valia nem meia coroa.
— Uma recordação do amor paterno é muito valiosa, — disse
Tillizini.
Extraiu o revólver da capa, apertou a mola de segurança,
perto do gatilho e viu-se aparecer uma pequena abertura na
culatra. Sacudiu a arma e alguma coisa que estava
embrulhada num pedaço de papel prateado caiu em suas
mãos.
Desembrulhou e entregou o conteúdo a Crocks.
— Estou inclinado a pedir-lhe que leve isto para Scotland
Yard, — disse-lhe. — Acho, entretanto, que não voltarão a
assaltar minha casa.
Era o medalhão!
— Quanto ao que roubaram, — afirmou Tillizini, — é
lamentável. Penso que nunca me perdoarei por haver
perdido essa sua recordação, Thomas!
Sua voz tinha um tom zombeteiro e o criado fez um gesto,
traduzindo que a perda não representava grande coisa para
ele.
— Não me aborrece absolutamente, senhor, — disse.
O que éra verdade para Thomas não o era, igualmente, para
os líderes da «Mão Vermelha» que, nesse momento,
achavam-se sentados num pequeno quarto, em Deptford,
examinando consternados e pesarosos os traços um tanto
apagados da fotografia de um saudável menino de dois anos!

CAPÍTULO XI
LADY MORTE-MANNERY AJUDA UM AMIGO

Sir Ralph Morte-Mannery estava de gênio amável. Acabara
de ler uma referência muito agradável à sua própria pessoa,
sobre sua perspicácia e seu talento, num jornal francês,
dedicado unicamente aos interesses dos colecionadores.
Sua alegria comunicara-se às demais pessoas que
compareceram ao jantar e de certo modo havia servido a
referência para diminuir as preocupações devidas à
libertação de George Mansingham.
O infortunado não havia sido libertado, porque os juízes da
Côrte de Apelação acreditaram que a sentença fora
excessiva, mas porque, ao rever as peças do processo, Sir
Ralph havia ultrajado a maioria dos cânones do bom-gosto
que um juiz pudesse ultrajar.
Ao pronunciar a sentença, os juízes haviam dito muitas
coisas amargas sobre Sir Ralph.
A dizer a verdade, tão pouco amáveis haviam sido em seus
comentários, que Hilary George, ao ouvi-los com esse ar
deliciado de assombro, que sempre adotava em tôdas as suas
manifestações na vida, sentira um sobressalto no próprio
coração, ante o pensamento da humilhação que devido a
seus esforços, causara ao amigo de outros tempos.
Hilary era um homem demasiadamente bom e um
cavalheiro no sentido da palavra, para se vangloriar de sua
vitória. Era, além disto, um homem forte. E nenhuma outra
pessoa que não fosse corajosa, tomaria o primeiro trem para
Burboro, a fim de levar a notícia do resultado do processo a
um homem que se podia considerar com pleno direito de
assassinar o mensageiro.
A entrevista na biblioteca fora um tanto violenta. Pouco
depois, porém, houve a reconciliação. Hilary, em termos
que só poderia permitir-lhe a velha amizade, cientificou-o
do resultado de suas investigações, suavizando as mais
vigorosas manifestações dos juízes da Corte, ainda que
temendo que o «Times» haveria de reproduzir, em suas
páginas, os pormenores mais detalhados do processo.
Sir Ralph estava preparado para semelhante emergência. Era
um bom advogado, para quem os prejulgamentos não
afetavam as opiniões. O advogado que existia dentro dele
dizia-lhe que a sentença havia sido excessiva, enquanto que
o colecionador pedia com toda ênfase, que o acusado fosse
levado à forca.
Mas, Hilary, com seu rosto infantil e aspecto jovial, sua
prontidão para rir até das brincadeiras que lhe eram
adversas, havia logrado quebrar a reserva do homem mais
velho, que o convidara, enfim, para ficar em casa.
A hora do jantar, Sir Ralph mostrou-se satisfeito.
O estado de ânimo do dono da casa não era a melhor de suas
qualidades, mas era suficiente, como ocorre com todas as
pessoas pouco expansivas e um tanto alheias, para manter
um clima tolerável a seus hóspedes.
Insistiu em referir-se a Hilary como o «inimigo» ou «meu
opressor» e deu a ele muitos motivos de divertimento ao
fazê-lo.
— Agora, Hilary, — disse-lhe com jovialidade, — terá que
nos dar todas as notícias dos melhores criminosos. Que estão
fazendo os membros da «Mão Vermelha»? Estão matando
tanta gente quanto os caminhões e ônibus?
— As pessoas que estão melhor informadas, — disse Hilary
gravemente, — consideram com algum receio e apreensão o
atual silêncio da «Mão Vermelha». Pude saber que os
membros do governo mostram-se preocupados ante tal
situação. Esses homens estão brilhantemente organizados e
não se detêm diante de nada.
— Alguém conseguiu descobrir porque estão saqueando as
coleções? — perguntou Marjorie. — Outro dia vi um artigo
no «Post Herald» a este respeito.
Hilary meneou negativamente a cabeça.
— Não, não posso compreender, — disse, — mas penso que
há alguma coisa escondida atrás disso. Não desejo aborrecê-
lo,
Ralph, — prosseguiu, — mas, não lhe parece, como
advogado e também como homem de fina percepção, que
tenha havido realmente intervenção da «Mão Vermelha»
nesse roubo realizado em sua casa?
Sir Ralph moveu negativamente a cabeça.
— Não posso supor coisa semelhante. E possível que tenha
havido, — disse, posto que em seu íntimo estivesse satisfeito
de que as coisas não tivessem ocorrido assim.
— Sua última façanha foi raptar um dos agentes de Tillizinl.
O homem ficou preso durante uma noite e foi libertado, sem
nenhum dano, na manhã seguinte. Por alguma razão,
ordenaram sua libertação, desde que, segundo penso,
estavam sob a impressão de que poderiam matar o próprio
Tillizini, e, portanto, não havia nenhuma razão para deter
seu agente. Este, muito pouco ou quase nada pôde dizer
sobre o que lhe aconteceu, salvo que havia ficado muito
tonto ao ingerir a droga que o forçaram a beber e que, de
certo modo, entorpeceu seus poderes de recordação. Não
pôde ajudar a Polícia a encontrar a casa para onde foi levado.
Encontraram-no num estado lastimável, sentado sobre um
dos bancos do London Bridge, nas primeiras horas da manhã
e desde este momento tem permanecido semi-inconsciente.
— Isto é muito interessante, — disse Frank, que se achava
sentado ao lado de Marjorie. — Na Itália, vi homens nestas
condições. E uma espécie de preparado à base de ópio que
alguns camponeses tomam, O termo de gíria italiana que se
emprega para dar nome a esta droga é algo parecido com
uma abreviação: non mi ricordo.
— Esse homem não se lembra de nada, disse Hilary, —
exceto que... — Deteve-se.
— Exceto que? — perguntou Vera.
Durante toda a conversação, ela permanecera calada. Esta
noite, estava mais bonita do que nunca, pensava Hilary.
Vestia um traje de chiffon cinza de veludo e sobre o corpete
trazia uma rosa vermelha.
— Esqueci-me, agora, — disse Hilary.
Lembrava-se em realidade de que recebera a informação
confidencialmente e que poderia, mais tarde, ser envolvido
no assunto.
— A propósito, — prosseguiu, — outro dia via-a na cidade.
Vera ergueu suas delicadas sobrancelhas.
— Realmente? — perguntou. — Não se pode ocultar-lhe
nada. Onde me encontrava?
— Estava em Oxford Street, num curioso automóvel. Era o
de Festini?
Ela encarou-o fixamente.
— Festini? — repetiu.
— Pareceu-me vê-la com Festini, — concordou com
precipitação.
Para um homem que possuía tantos conhecimentos sobre as
pessoas humanas e que, por outro lado, era tão versado em
regras da sociedade, parecia que estava cometendo uma
quantidade de gafes.
— Não conheço Festini, — disse, — se é que se refere ao
Conde Festini, cujo nome aparece tão seguidamente nos
jornais. Também não estive em nenhum automóvel, em
Oxford Street, desde que, no Natal, saímos com Sir Ralph,
para ir à casa de Buzzard.
— Sinto muito, — murmurou o advogado.
Vera mudou de conversa com toda facilidade.
Era a perfeita dona de casa, ainda que nesse momento
tivesse que recorrer a todo seu autodomínio, para não
denotar a raiva de que estava possuída.
— Prossiga contando-nos algo sobre a «Mão Vermelha», —
pediu Sir Ralph. — Qual é o golpe tremendo de que tem
ouvido falar? Gostaria de saber.
— Parece que ninguém tem informações a respeito, —
afirmou, — nem o próprio Tillizini.
— Nem Tillizini? — repetiu Marjorie com certa surpresa.
— Nem o próprio Tillizini, — disse por sua vez Hilary. —
Parece que está às escuras, como todo o mundo.
— O povo começa a pensar demais sobre isto, — afirmou Sir
Ralph, quando, a um sinal de Vera, as duas mulheres
levantaram-se da mesa.
— No jornal desta manhã, vi outro artigo. Bem sei que os
jornalistas, que de um modo geral sempre estão metidos
nisto, esperam sempre que ocorra alguma coisa de
grandioso. A Polícia está vigiando os edifícios públicos, e
cada um dos ministros do Gabinete anda seguido de uma
guarda especial, como se a «Mão Vermelha» fosse uma
organização de sufragistas...
Os convidados riram-se polidamente da saída de Sir Ralph.
— Posso confirmar isto, — disse Frank, enquanto escolhia
um charuto da caixa que Marjorie lhe passara, momentos
antes.
— As diversas corporações responsáveis pela segurança
pública pediram a vários engenheiros que efetuassem uma
inspeção nas pontes.
— Das que atravessam o Tâmisa?
Frank fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Todas as noites é feito um serviço especial de vigilância, -
disse. — Todos os sinais e movimentos inspiram
desconfiança.
Sir Ralph e o advogado Hilary puseram-se a andar. Ambos
achavam-se interessados na coleção e Vera reuniu-se aos
outros dois.
— Não ficarei muito tempo com vocês, — disse com um
sorriso. — Portanto, não se alarme, Mr. Gallingford.
Era muito sincero o seu desejo de despertar as simpatias do
jovem engenheiro. Sua atitude para com ela era um tanto
estranha e severa. Se Vera conhecia a razão, não o
demonstrava. De certo modo, ele a divertia. Era tão franco e
tão inglês em suas atitudes. O sangue dos antepassados, que
corria em suas veias, fazia-a sentir certo ressentimento ao
notar a evidente honestidade do jovem.
A atitude dele para com Vera era, ao mesmo tempo, cortês e
antagônica. A jovem já o notara. Orgulhosa do noivo,
desejava que ele se achasse à vontade com os demais e que
lhes inspirasse a mesma admiração que ela sentia por ele.
A tentativa de conciliação por parte de Vera não foi coroada
de maior êxito, que em oportunidades anteriores. Depois de
um instante, ela bocejou ligeiramente, tapando a boca com a
mão. Desculpou-se toda risonha.
— Não pensem que me aborrecem, — disse, — mas estas
últimas noites não descansei devidamente. Onde vão? —
perguntou.
— Irei ao bilhar, ganhar uma partida de Marjorie no mínimo
de cem carambolas de diferença, — disse Frank, fazendo um
heróico esforço para parecer alegre.
Vera assentiu com um movimento de cabeça.
— E eu tenho que pôr em dia minha contabilidade.
E fez uma feia careta.
— Tenham pena de mim, — solicitou com um gracioso
sorriso.
— Posso ajudá-la, querida? — perguntou Marjorie.
Veta meneou a cabeça negativamente.
— As contas, — disse secamente, — são mistérios que
desejo que seu futuro esposo jamais a faça conhecer.
E com um movimento de cabeça, retirou-se do aposento.
Voltou, dentro de poucos minutos, como se tivesse es-
quecido de alguma coisa e encontrou a peça vazia. Dirigiu-se
ao salão de bilhar. A partida estava começando. Teriam jogo
para meia hora, pelo menos. Olhou para seu relógio de
pulso. Esperava que faltassem cinco minutos para às dez.
Voltou ao vestíbulo e começou a subir, lentamente, as
escadas, andando bem de leve, quando passou em frente do
museu.
A porta de aço estava fechada, mas a contraporta de madeira
estava entreaberta.
Ralph discutia sobre os valores dos artistas do Renascimento
e esse tema iria ocupá-los por uma hora.
Apressou os passos. No outro extremo do corredor, ficava
situado seu quarto. Highlaw fora reconstruída para melhor
conveniência de Sir Ralph.
De certo modo, também lhe convinha, porque Vera
escolhera um pequeno aposento na ala do edifício que não
era ocupada, a menos que na casa estivessem muitos
hóspedes.
Fechou a porta com a chave ao passar. Era um belo apo-
sento, mobilhado com todo gosto, ainda que na mobília,
assim como nos adornos, nada houvesse que pudesse ser
considerado de valor. Sir Ralph possuía suas próprias
opiniões sobre os luxos da época e a sua simplicidade, para
não dizer mesquinhês, dos arranjos domésticos, era uma
expressão concreta do desagrado com que via as modernas
tendências para o luxo.
O quarto possuía amplas janelas francesas, que davam para
um balcão, —, coisa muito pouco usual nas casas de campo
inglesas.
Ela olhou novamente para o relógio e fechou a pesada
cortina da porta. A iluminação era um pouco difusa. O
aposento poderia passar por uma saleta, se não fosse o amplo
leito que se via num dos cantos, rodeado por espessas
cortinas de seda escura.
Não se preocupou em iluminar melhor o recinto. Relanceou
o olhar, duvidosa e logo dirigiu-se para a janela. Olhou,
novamente, com vacilação e, retrocedendo, apagou
completamente a luz. Abriu a porta e saiu para o balcão.
A noite estava agradável e o ar temperado.
A lua aparecia oculta atrás de alta montanha de nuvens, mas
havia bastante claridade para se distinguir os objetos mais
proeminentes do jardim, que se estendia à frente.
Ela olhou para ambos os lados, mas não pôde ver nada. Vol-
tou ao aposento, fazendo um movimento de ombros e ficou
em atitude de quem espera.
O relógio da igreja do povoado batia a última badalada das
dez, em tom lúgubre, quando ouviu um ligeiro ruído que
partia do jardim, em baixo.
Caminhou ràpidamente para o interior de seu quarto e do
armário retirou uma escada de seda. Era uma corda que tinha
um gancho erg., uma das extremidades e ela prendeu-o, com
os dedos trêmulo numa argola do balcão, colocada ali, para
segurar o toldo, quando fosse necessário cobrir a varanda.
Deixou cair a escada.
Da obscuridade, surgiu uma sombra. Começou a trepar com
precaução.
O homem saltou a balaustrada pouco depois e deteve-se um
instante, para recolher a escada, deixando-a no chão do
balcão.
Ela tomou-o pela mão e conduziu-o para o interior do
aposento. Fechou as janelas, prendeu os postigos e, em
seguida, cerrou a pesada cortina. Logo depois, acendeu a luz
e voltou-se para o recém-chegado. Colocou as duas mãos
sobre seus ombros e fitou-o avidamente.
Formosa como era, o amor que brilhava em seus olhos
transfigurava-lhe o rosto e intensificava sua atração.
— É você, — murmurou-lhe. — Oh, agradecida por ter
vindo pessoalmente! Temia que enviasse um desses malditos
homens que trabalham com você!
Festini sorriu. Beijou-a carinhosamente na face.
— Tinha que vir, — disse, — ainda que não faça muito
tempo que a tenha visto.
— Dois dias, — ela afirmou com reprovação.
Ele assentiu com um movimento de cabeça.
— Justamente, — disse com um sorriso. — Recebeu minha
carta?
Por toda resposta, ela tirou do peito um envelope
amarrotado.
— Devia ter queimado isso, — falou seriamente. — É peri-
goso guardar certas cartas, ainda que na aparência sejam
inocentes
— Veio sozinho? — perguntou-lhe.
Ele inclinou a cabeça. A mão que descansava na sua estava
trêmula, mas não era de temor.
— Estou achando você muito esquisito. Odeio esse lugar, —
disse com veemência. — Para mim é uma verdadeira prisão.
A vida que vivo aqui rói-me as entranhas. Olhe, Festini, —
disse- lhe, colocando as mãos outra vez em seus ombros, o
rosto procurando o dele, — não pode imaginar minha
existência aqui!...
— Será por muito pouco tempo mais, querida, — respondeu-
-lhe.
Ela era mais velha do que ele, mas seus modos paternais
eram perfeitos.
— Depois, iremos para longe e abandonaremos para sempre
este país tão triste. Deixaremos este céu cinzento e iremos
viver sob o céu azul de nossa Itália. Trocaremos estas
paisagens monótonas pelas campinas banhadas pelo sol do
meio-dia.
Beijou-a outra vez. Ele estava ansioso por falar de negócios.
Ninguém conhecia as relações que ambos mantinham,
porque Festini sabia guardar muito bem seus segredos. Nem
mesmo nos círculos mais privados de seus conselhos deixou
de falar nela como se fosse a mais perfeita desconhecida.
— Desejo ir para algum lugar, — manifestou,, — sair de uma
vez por todas de tudo isto. Havia planejado vê-lo o ano
passado na Irlanda, mas, no último momento, Sir Ralph não
quis deixar-me partir.
De repente, voltou-se para olhá-lo.
— Deve de ter visto Marjorie, lá!
— Marjorie? — perguntou com toda inocência. - íamos
juntas, — prosseguiu, — e quando soube que só ela o havia
feito, depois de todos os meus projetos...
Ela meneou a cabeça e sorriu com tristeza.
— Não me atrevi a mandar-lhe uma carta por seu inter-
médio, nem queria dar-lhe ocasião para enamorar-se dela, —
disse-lhe.
— Não posso recordar-me dela. Qual é o seu tipo? —
perguntou Festini, com toda calma.
— Ela lembrou-se de você!, — disse-lhe Vera. — Dava-me
uma raiva ouvi-la falar de você! Mas, sinto-me feliz por
saber que não lhe agradava.
Festini sorriu.
— Acontece o mesmo com muita gente, — disse.
Tirou o agasalho que vestia.
— Aqui estamos livres de qualquer interrupção? —
perguntou.
Ela inclinou a cabeça.
— Não existe nenhuma espécie de perigo?
— Por agora não!
— Então, — disse ele bruscamente, — falemos durante cinco
minutos de nossos negócios, querida.
Sentaram-se, um em frente do outro e puseram-se a
conversar. Os cinco minutos transformaram-se em dez. O
homem falava ràpidamente, com veemência e ela respondia
com monossílabos.
Não tinha muita importância que ele lhe pedisse tanto. Ela
sacrificaria muito mais que as posses do esposo, com o
objetivo de contentá-lo.
As leis do mundo, com exceção da de gravidade, dependem
do amor da mulher. A fé, a honra, todos os princípios
conhecidos vão por água abaixo e de nada valem. Ela não
tem a noção do certo e do errado, quando é dêle de que se
trata. Só tem o desejo de servi-lo.
— Seria melhor que fizesse isto entre as três e as quatro ho-
ras, — disse-lhe. — Ficarei esperando no jardim. Tenho uma
bicicleta escondida perto daqui e no caminho um automóvel
me esperará, para me conduzir a Londres.
— Quisera dizer-lhe algo, — falou bruscamente. —
Repugna-me admitir um fracasso e olhe, querido, que tudo
fiz para conseguir...
Com sua rápida intuição, adivinhou imediatamente o
significado daquelas palavras.
— Oh, o dinheiro! — disse ele. — Não deixe que isto a
inquiete. Dei meus próprios passos e consegui algum.
Ultimamente, andamos com pouca sorte. Esse infernal
Tillizini dificultou todos nossos recursos habituais. A semana
passada, tivemos um contratempo, mas, dentro de um mês,
— disse e ela pôde ver como se apagava a luz de seus olhos e
como a bôca ficava mais grave, — dentro de um mês, —
repetiu, — seremos muito ricos. E a Inglaterra irá sofrer
muito!
Acalmou-se e voltou a ser o mesmo de antes.
— Não deixe que o assunto do dinheiro a aborreça. Por ago-
ra, temos o bastante. Imaginava mesmo que lhe seria muito
difícil conseguir, assim, de repente, essas q'uinhentas libras.
Levantou-se e ela ajudou-o a vestir o abrigo.
— A propósito, — disse, — essa sua sobrinha, como se cha-
ma?
— Marjorie.
— É esse mesmo o nome, — assentiu. — Parece-me que me
lembro dela. Aonde está agora?
Fez a pergunta com tom de despreocupação.
— Aqui em casa, — disse Vera.
— Que coincidência curiosa, — exclamou ele com um sor-
riso. — Suponho que não fale de mim, não é certo? — per-
guntou .
Vera moveu negativamente a cabeça. Ocorrera a ele que
talvez a jovem tivesse feito alguma alusão ao encontro da
Estação Vitória.
— Que estupidez a minha! — acrescentou de pronto. — Vi-a
outro dia... numa estação... agora me recordo. Moça alta, de
aspecto saudável, um tanto robusta...
A descrição não era muito lisonjeira para Marjorie, mas de-
via ter agradado a mulher que a ouvira, que sentia ciúmes de
qualquer outro interesse que ele pudesse ter na vida.
— Não é esse o seu tipo, — disse sorrindo, — mas, penso
que a descreveu mais ou menos.
— Lembro-me de que estava com um homem alto.
— Ele também está aqui! — afirmou.
Ele olhou-a pensativamente.
— Também está aqui? — repetiu e sua voz tornou-se mais
grave.
Ela supôs que Festini estivesse cansado e adiantou-se até à
janela. Sua mão estava sobre a cortina. Havia ficado
esperando ali, quando, deixando escapar um suspiro,
aproximou-se outra vez dele.
— Amo-o tanto! — murmurou. — Deus meu, como o adoro!
Não sabe o que quero dizer... o que significam minhas
palavras... o que sinto!...
Ele riu com tolerância.
Estendeu os braços e, por um momento, ela recostou-se em
seu peito, o coração batendo violentamente... sentindo-se
perfeitamente feliz,
— Agora devo ir... — disse suavemente. — Temo que nos
possam surpreender aqui!
Com algum enfado, ela abriu a janela.
Ele ficou um instante no balcão, reconhecendo o terreno.
A costa estava livre. Em um segundo, esteve sobre a
balaustrada e pouco depois descia até ao jardim, sem fazer o
menor rumor.

CAPÍTULO XII
O SEGUNDO MEDALHÃO

Ela esperou até que êle desaparecesse entre as sombras. Em
seguida, recolheu a escada e colocou-a na gaveta do armário,
de onde tirara e tornou a fechar as janelas.
Ele havia deixado as instruções muito precisas e ela foi
repassando-as na mente, para estar mais segura.
Conhecia o medalhão. Havia preparado um desenho
especial, feito por êsse homem, cuja influência era o guia e a
parte dominante de sua vida.
Olhou cuidadosamente à sua volta, para apagar todo o sinal
de visita do amante. Em seguida, tirou o ferrolho da porta e
saiu.
Ao passar diante do pequeno museu, Sir Ralph e o convi-
dado saíam do interior. Olhou-a com surpresa.
— Olá, Vera, — disse-lhe, — pensei que estivesse em baixo
com os outros.
— Estava fazendo minhas contas, — respondeu com um
ligeiro trejeito.
Sir Ralph começou a rir. Quando se encontrava de bom
humor, considerava sempre, com certa zombaria, a questão
de suas próprias economias.
Estava fechando a porta do museu, quando Vera interveio.
— Queria ver novamente seus medalhões, — disse-lhe.
Sir Ralph sentiu-se lisonjeado. Vera mostrava tão pouco
interesse pela coleção, que seu pedido agradava-o
muitíssima. Era uma de suas preocupações saber que a
esposa jamais desejara entrar no recinto que ele chama de «a
maior parte de sua vida».
— Vamos, vamos, — disse, — não procure provocar uma
discussão com Hilary, sobre arte, porque ele é um tanto
filisteu.
E tornou a rir.
O museu era a única dependência da casa iluminada por
eletricidade. Nesse cômodo, Sir Ralph havia denotado uma
extravagância que era completamente alheia à sua natureza.
Havia instalado uma bateria especial para a iluminação da
dependência em que guardava sgus tesouros.
A jovem examinou os medalhões com um interesse maior
do que o habitual. Já os havia visto antes e muito
recentemente, ainda que Sir Ralph não o soubesse.
Ao pedir-lhe que lhe permitisse essa inspeção, moviam-na
dois objetivos. Seu esposo começara a ficar nervoso, por
causa das atividades da «Mão Vermelha» e manifestara a
intenção de trocar todas as fechaduras e cadeados. Desejava
certificar-se de que ele não realizara seus planos.
O primeiro olhar tranqüilizou-a. Ainda estavam as mesmas
fechaduras e os medalhões não tinham sido tirados de seus
lugares.
— São muito formosos, — disse ela.
Na realidade, pensava que não tinham o menor interesse,
mas não era de sua política dar a conhecer suas impressões.
— Parece-me que ficou impressionada, não? — disse Sir
Ralph, com todo entusiasmo. — Algum dia, chegará
também a ser uma entendida, Vera!
Ela desceu as escadas na frente dos dois homens. Estava
pensativa.
Já passava da meia-noite, quando o grupo de convidados
despediu-se para dirigir-se a seus respectivos dormitórios.
Frank foi um dos últimos que subiu ao andar superior. Pas-
sou pelo salão e encontrou-se com Vera, arranjando as peças
de xadrez, com que Sir Ralph e Hilary estiveram jogando.
Teria prosseguido, mas algo induziu-o a deter-se.
— Boa-noite, Lady Morte-Mannery, — cumprimentou-a.
Estava inclinada sôbre a mesa e não se deu ao trabalho de
levantar a cabeça.
— Boa-noite, Mr. Gallingford, — respondeu.
Ele continuou esperando.
— Penso que devo explicar-lhe alguma coisa que tinha em
mente, — disse-lhe, com alguma perturbação.
Não possuía grande facilidade de expressão e sentia-se de
certo modo perturbado.
— Se fosse você, não falaria, — disse-lhe tranqüilamente. —
Deixe as coisas que sigam como estão e seja um pouco
caridoso.
Essa noite ela parecia mais meiga do que nunca.
Por alguma razão que não podia explicar a si mesma, sentia
um desejo de estar bem com todo o mundo e especialmente
com essa parte do mundo que esse inglês de tão agradável
presença representava.
— Existe uma palavra chave, — disse, — que explica as
situações mais contraditórias... as mais incríveis loucuras.
Deve conhecer esça palavra.
— Só conheço uma, afirmou gentilmente, — e essa é
«amor»!
Vera olhou-o com um sorriso. Era um sorriso atrevido,
muito
humano, que revelava numa centelha as profundidades de
sua natureza .
— E essa a palavra, — afirmou, enquanto continuava
arranjando as coisas.
Ele permaneceu aí durante uns momentos mais e, em
seguida, com outro boa-noite, retirou-se, deixando-a
inquieta e um tanto envergonhada de sua própria atitude.
Ao chegar ao andar superior, Marjorie esperava-a para
desejar-lhe boa-noite e nesse instante apagou-se em sua
imaginação toda a imagem da mulher que ele havia deixado
no salão, assim como as palavras que trocara com ela.

Vera ficou lendo junto à lareira acesa de seu dormitório.
Toda a noite esteve lendo e pensando. A leitura processava-
se mecanicamente. Não podia recordar-se de uma só frase,
de uma só passagem da emocionante novela, que tinha ao
colo.
Olhou para o relógio sobre a lareira. Os ponteiros marcavam
um quarto para as quatro horas.
Levantou-se e tirando do cabide uma capa impermeável,
vestiu-a sobre o roupão e abotoou-a cuidadosamente, para
não atrapalhar seus movimentos.
Pegou a chave e abrindo uma gaveta de sua escrivaninha
tirou um estojo de marroquim.
Debaixo de seu travesseiro estava uma penca de chaves que
ela retirou e com uma delas abriu o estojo. Estava
aparentemente vazio, mas apertou a mola e o fundo
levantou-se.
Três belas chaves adornadas estavam sobre o acolchoado de
veludo do fundo falso. Tomou-as em suas mãos, fechou o
estojo e apagou a luz.
Ficou parada junto à porta, em atitude de quem escuta.
Logo, abriu-a e saiu para o corredor escuro.
Devia caminhar de vinte a trinta jardas e seus pés calçados
de chinelos de feltro não faziam o menor ruído ao pisar no
espêsso tapete. A casa estava em completo silêncio, entregue
ao repouso. Tão silenciosa, nesse momento, como a própria
morte.
Não se ouvia nada, com exceção do caminhar de algum rato,
que andasse pelo telhado.
Avançou com cuidado até chegar diante da porta do museu.
Tornou a parar e ficou escutando novamente.
Sir Ralph dormia num aposento situado do outro extremo e,
por sorte, tinha o sono muito pesado. O quarto de Hilary
ficava do outro lado.
Introduziu a chave, abriu a primeira porta, de madeira,
tomou a outra chave e fez girar a fechadura da porta de aço.
Sem fazer ruído, a fechadura lubrificada funcionou no
mesmo instante. Empurrou uma das folhas e penetrou no
interior, fechando ambas as portas, atrás de si. Não poderia
cerrá-las a chave pelo lado de dentro, mas também não
podia temer que alguém passasse por ali casualmente, a uma
hora tão intempestiva, mesmo que houvesse alguém
vagando pela casa.
Tirou do bolso da capa impermeável uma diminuta lanterna
elétrica e fez correr um facho de luz por cima das caixas
com os objetos valiosos. Encontrou o que procurava, abriu a
tampa da caixa-vitrina com tôda precaução, moveu o vidro
da parte interna e retirou o medalhão.
Examinou-o com rapidez para se assegurar de que era a peça
que procurava.
Sem fazer o menor ruído, cruzou novamente a porta,
trancou-a à chave, ao passar e prendeu com rapidez a folha
de madeira.
Imediatamente, dispôs-se a voltar sôbre seus próprios passos,
em direção ao dormitório.
Deu um salto e deteve-se, como pregada ao solo, cheia de
temor e desalento, porque, diante dela, aparecia uma sombra
espraiada. Não havia suficiente luz para poder ver-Ihe o
rosto, mas sabia que se tratava de Hilary George.
— Quem está aí? — perguntou em voz baixa.
Ela estava paralisada de terror. Não conseguia articular as
palavras, sua garganta estava seca.
— Quem é? — perguntou novamente, levantando a voz.
Fazendo um esforço sobre-humano, Vera conseguiu
acalmar-se.
Se ela falasse mais alto, despertaria Sir Ralph e isso signifi-
caria o final de tudo.
— Sou eu, — disse, — falaindo no mesmo tom.
— Lady Morte-Mannery? Sinto muito, — murmurou. —
Pensei que ouvia alguém andar lá fora e fiquei escutando,
mas, não percebi mais nada e me tranqüilizei.
— Está bem, — disse ela, no mesmo tom de antes. — Estive
no quarto de Sir Ralph, para buscar um pouco de Veronal.
Não consigo dormir.
Com uma desculpa, Hilary voltou a seu dormitório.
Encontrava-se do lado oposto do museu e ela perguntava a si
mesma se não haveria feito algum barulho, embora
caminhasse furtivamente e com todo cuidado. Será que
Hilary a teria visto, ao sair da peça? Suas palavras seguintes,
contudo, tiraram-lhe o peso do coração.
— Não podia ver de onde vinha, — disse-lhe — nem de
quem se tratava. Espero que não tenha se assustado.
— Oh, não! — disse com suavidade.
Desculpando-se, novamente, encaminhou-se para o quarto e
com todo o cuidado fechou a porta atrás de si.
Ela caminhou, apressadamente, ao longo do corredor. O
coração batia violentamente. Uma vez em seu quarto,
trancou a porta e correu a cortina. Acendeu a luz do gás,
com a mão trêmula. Logrou ver seu rosto refletido no
espelho e sobressaltou-se diante do aspecto que apresentava.
Restava-lhe ainda alguma coisa a fazer.
Hilary ouvira alguém que andava no jardim. Deveria ser
Festini. Assegurou-se de que levava a jóia, apagou a luz,
abriu os postigos e saiu para o balcão.
Na sombra de alguns arbustos, percebeu uma silhueta. O
homem adiantou-se ao vê-la aparecer.
— Tome! — disse-lhe suavemente.
O homem, lá em baixo, estendeu a mão, quando ela fiz o
gesto.
Pegou sem dificuldade o medalhão e guardou-o no bolso.
Em seguida, sem pronunciar uma só palavra, perdeu-se entre
os arbustos.
Ela permaneceu imóvel ali mesmo, durante uns momentos...
sentindo certo desalento no coração. Depois de tudo quanto
arriscara, de tudo que intentara com temeridade, esperava,
pelo menos, uma palavra de agradecimento.
Estava voltando para entrar no quarto, quando uma voz
sibilante a deteve.
Seu coração deu um salto. Ele havia voltado. Olhou nova.
mente a escura silhueta que aparecia em baixo.
— Conseguiu-o? — perguntou ele em tom muito baixo.
— Se consegui o medalhão? — repetiu com assombro. —
Acabo de atirá-lo para você!
— Atirá-lo para mim? — A voz dele era cruel. — Não me
atirou coisa alguma. Há meia hora que estou esperando.
Ela apoiou-se contra a balaustrada, sentindo-se desfalecer de
terror.
— Diga-me, diga-me, — pediu impacientemente a voz que
vinha lá de baixo, subindo de tom. — A quem o entregou?
— Atirei-o para um homem, — exclamou debilmente.
— Que caminho ele tomou?
— Correu por entre os arbustos, — respondeu.
Sem dizer mais nada, ele começou a correr na direção que o
outro homem devia ter seguido.
Ela teve tempo para voltar ao quarto, fechar os postigos e
correr as cortinas, antes de cair, quase desfalecida, sobre o
assoalho.
Festini era rápido de movimentos e como se fosse um gato
podia correr com segurança, por entre as sombras. Não
havia avançado ainda vinte jardas, quando conseguiu ver o
outro homem, que lhe levava dianteira.
Não era ocasião para que se empregassem gentilezas.
Afortunadamente para ele, Festini tinha mudado seus
planos. Desistira da idéia de seguir de bicicleta e o carro
encontrava-se num pequeno beco, que ficava perto da casa.
Ao ver o homem que ia na frente, tirou a automática do
bolso e acionou duas vezes o gatilho.
Sem um só lamento, o homem caiu ao solo.
Festini não podia perder tempo em examinar sua vítima.
Sabia que ela estava viva e agachando-se sobre o corpo, pôs-
se a examinar-lhe os bolsos.
Pensou que a jóia se encontrava ali, mas não estava.
Achava-se na mão apertada e contraída do homem caído.
Festini teve ciência disso, forçou os dedos que se abriram e
entrou na posse do cobiçado medalhão.
— E agora, façam o que quiserem! — murmurou, enquanto
voltando-se, levantava o punho ameaçador, como se o
mundo tivesse se voltado contra êle. — Façam o que
quiserem!
O ruído das detonações despertou o pessoal da casa. Em dois
ou três aposentos, apareceram luzes.
Vera, caída no chão, voltou a si, ouvindo que batiam na
porta.
Levaintou-se lentamente. A cabeça rodava-lhe e pôs-se a
caminhar vacilante.
— Quem é? — perguntou.
— Sou eu, — respondeu a voz de seu esposo. — Abre a
porta. Está ferida?
Enfiou a mão num jarro de água, que estava no lavatório e
passou-a no rosto. O contato da água fria pareceu reavivar-
lhe as forças. Enxugou o rosto com uma toalha e abriu a
porta.
— Que aconteceu? — perguntou.
Estava calma. Ouvira os disparos e estava preparada para
tudo.
Sir Ralph estava vestido de roupão.
— De onde veio o barulho dos tiros? — perguntou.
— Não ouvi nenhum tiro! — disse ela com firmeza.
— Alguém atirou no jardim, — afirmou Sir Ralph.
Ela ouviu a voz de Hilary no corredor.
— Sente-se bem, Lady Morte-Manney? — perguntou o
advogado.
— Estou muito bem, — respondeu — Que aconteceu?
A voz tremia um pouco e o tom era alto. De certo modo,
sua agitação era desculpável. Tinham feito disparos no
jardim e alguém devia estar ferido... mas, quem?
Neste momento, começou a sentir um princípio de pânico.
— Alguém foi ferido? — perguntou com ansiedade. — A
quem feriram?
— No jardim havia um homem que procurava entrar dentro
da casa, — disse a voz de Hilary. — Possivelmente foi visto.
Sir Ralph atravessou o aposento e abrindo os postigos saiu
para o balcão. Em baixo, viam-se dois homens.
— Encontraram alguma coisa? — perguntou.
Dirigia-se aos criados que, despertados repentinamente pelas
detonações, revistavam o jardim.
Vera escutava. Seu coração quase deixara de bater, ouvindo
novamente a voz do criado.
— Há um homem ferido entre os arbustos, Sir Ralph, —
respondeu um dos criados. — Parece um estrangeiro.
Ela apertou as mãos e esperou... rígida... sem fazer o menor
movimento.
— Que espécie de homem? — perguntou Sir Ralph.
— Que quer dizer precisamente com esse «estrangeiro»,
Philip? — voltou a insistir o dono da casa.
— Bem, é um cavalheiro bem barbeado, — respondeu o
criado. — Não creio que esteja muito ferido. E um homem
alto.
Uma grande alegria apoderou-se da mulher. Não era ele.
Qualquer que fosse o ferido, vivesse ou morresse, não era
Festini.
Continuou escutando. Ouviu de novo a voz.
— Está bem, Sir Ralph, — disse.
Reconheceu quem falava e apertou os dentes. Parte do que
falavam chegava, entrecortadamente, a seus ouvidos.
— Não foi mais do que um arranhão da balai, perto da
fronte... é a segunda vez que erram o tiro... temo que o
senhor acaba de perder alguma coisa...
Era a voz de Tillizini.
Todos reuniram-se no corredor. Suas vestimentas
apresentavam o mais curioso aspecto.
A ferida de Tillizini era superficial. A bala atingira-o detrás
da orelha, resvalando pelo parietal. Sentia-se muito satisfeito.
— Cheguei de automóvel, — disse, — porque recebi certas
informações que me fizeram suspeitar de que esta noite
haveria um roubo nesta casa. Agora estou pronto.
Pôs-se de pé.
— Desejo examinar o museu e descobrir o que lhe roubaram.
— Oh, não posso ter perdido nada de lá! — disse Sir Ralph,
cheio de confiança. — Em todas as janelas existem
campainhas de alarme e aquilo tudo está muito bem
guardado.
— Existe também alarme na porta? — perguntou Tillizini.
Sir Ralph olhou-o surpreso.
— Não é necessário, — disse.
Começou a caminhar, seguido pelos outros.
Abriu o recinto, onde guardava seus tesouros e todos
penetraram no aposento atrás dêle. Ia um pouco adiante de
Tillizini e no umbral parou para acender a chave de luz.
Foi nesse preciso instante que Vera viu a evidência de sua
loucura criminosa. Sobre a tampa de uma das caixas
fechadas, achava-se a lanterna elétrica que Sir Ralph lhe dera
de presente, num momento de generosidade.
Tillizini também viu-a. Foi tão rápido quanto ela e o seu
movimento mais rápido ainda. Com um passo, ficou entre a
lâmpada e os olhos dos curiosos que estavam junto à porta.
Estendeu a mão e escondeu o objeto.
Quando Sir Ralph voltou, a lanterna havia desaparecido.
Efetuou-se uma rápida inspeção.
— Foi-se! — gritou o cavalheiro. — Levaram o meu
medalhão de Leonardo!
— Pensei que era isto mesmo o que acontecera, — disse
Tillizini, com toda a calma, — e pensei também que poderei
recuperá-lo, mas, no momento, esse prazer me foi roubado!
— Mas, será possível? — exclamou Sir Ralph,
completamente atônito. — Ninguém poderia entrar aqui,
sem que eu o soubesse!
Estava a ponto de chorar. Seu pesar era imenso.
— Era valiosíssimo, — disse. — Não poderá ser substituído.
E o único de sua espécie que existe no mundo. O que
significa isso, Tillizini? Tem de dizer-me tudo quanto sabe!
Insisto em que devo saber de tudo! Não poderá deixar-me
nas trevas!
Protestou e gritou ante Tillizini, como se e detetive fosse o
responsável pelo roubo. Passou-se um longo momento,
antes que se acalmasse e, então, o italiano mostrou-se um
pouco mais informativo.
Vera, que continuava calada, observava-o e aguardava. Fosse
o que fosse que acontecesse, Festini achava-se a salvo.
Talvez, nesse momento, estivesse muito longe, a caminho
de Londres. Levava a preciosa jóia e isso era o suficiente. Ela
havia-o servido e nada mais desejava.
Desde o instante em que Tillizini estendera a mão para
dissimular a lanterna elétrica, escondendo-a, percebera que
o italiano conhecia seu segredo.
Iria atraiçoá-la?
Para sua surpresa e tranqüilidade, ele não fez nenhuma
referência ao que havia visto ou sabia. Mostrava-se, contudo,
preocupado, — percebeu, mas isto devia-se ao fato do perigo
que o roubo representava para o mundo civilizado.
Ele andou de um lado para outro, no vestíbulo.
Era uma figura destacada, com a venda branca que lhe
rodeava a cabeça, as mãos enfiadas nos bolsos, a barba por
fazer, os olhos cansados, com todos os sinais de um infinito
esgotamento.
Não se preocupou em discutir inutilmente, como o ladrão
poderia ter entrado. Sobre o particular, já possuía toda a
informação de que necessitava.
Parou de andar e tirou do bolso um objeto brilhante, que
segurou entre as mãos, examinando detidamente.
Sir Ralph, atraído pelo brilho do ouro, que o homem
mostrava na mão, adiantou-se um pouco e deixou escapar
um grito!
— Mas, este é o medalhão! — exclamou.
Tillizini meneou a cabeça.
— É muito parecido com o outro, — disse, — mas não é o
mesmo. Este é o famoso medalhão que foi roubado da
coleção de Dublin e que atualmente acreditava-se achar no
fundo do mar. Foi entregue a um passageiro de um barco,
para que o guardasse e entregasse a mim. Lembra-se que fui
encarregado da investigação do caso?
Caminhou até à estufa.
Havia ali dois braços de luz que forneciam boa iluminação.
Tinha o medalhão em ambas as mãos e fazendo uma ligeira
pressão, abriu-o pela metade.
Sir Ralph deixou escapar uma exclamação.
— Não sabia que se abriam pela metade! — disse com sincera
admiração.
— Pois eu desejaria que não se abrissem! — argumentou
Tillizini com tristeza.
Introduziu o dedo e extraiu do interior do medalhão algo
parecido com quatro discos de papel, que eram isto mesmo
em realidade. Estavam cobertos por uma letra muito
pequena, tão pequena que era difícil, quase impossível de
ler, sem o auxílio de uma lente de aumento.
— Entende italiano? — perguntou Tillizini.
— Um pouco, — afirmou Sir Ralph, — mas não o bastante
para compreender isto.
— Olhe-o bem, — disse o outro, — procede da mão do
maior gênio, desde que Jerusalém estava sob o domínio de
Roma!
Falava com respeito... quase com adoração... do seu famoso
compatriota.
— Essa era a mão de Leonardo da Vinci, — disse.
— E o que diz isto? — perguntou Frank. — Não está escrito
também no reverso?
Ele estivera examinando os discos com seus bons olhos.
Tillizini sorriu.
— O mestre escrevia sempre com a mão esquerda. Isto aju-
dá-lo-á
Tirou do bolso uma diminuta lente.
— Leia, — ordenou Tillizini.
Frank levou o disco para mais perto da luz e aproximou-o
mais dos olhos. Marjorie, que o observava, viu que seus
lábios se" moviam, enquanto lia o italiano. Notou a
contração das sobrancelhas e logo viu-o levantar os olhos.
— Mas, — disse, — tudo isto refere-se a uma praga.
Tullizini fez um movimento afirmativo de cabeça.
— A GRANDE PRAGA, como os homens modernos
chamariam, a Quarta Praga que assolou simultaneamente a
Itália e a Irlanda, no mesmo ano. Foi uma praga que nossos
doutores modernos não podem entender, nem explicar! Na
realidade, o único homem que a entendeu foi Leonardo da
Vinci. Ele foi, como o senhor bem sabe, Sir Ralph, algo mais
que um pintor. Possuía mente científica, perfeitamente
desenvolvida. Foi o primeiro a prever o reinado do
aeroplano e do encouraçado. Foi engenheiro, escultor,
químico e...
Estendeu as mãos.
— Que adianta falar? — Não poderia enumerar todas as suas
qualidades, — disse. — Achava-se tão acima de seus
contemporâneos que não puderam perceber a espécie de
gênio que vivia entre eles. Nem mesmo a posteridade tem
podido fazer-lhe justiça. Só ele compreendeu a Quarta Praga,
seu significado e suas causas.
— Essa praga chegou a existir, devido à cultura de um ger-
men, ainda que ele não soubesse de tudo isto, porque no seu
tempo não existia microscópio. Mas, imaginava-o, com a
intuição quase divina que possuía, — disse Tillizini, com o
rosto resplandecendo de entusiasmo e de orgulho.
— As condições sob as quais entrou em atividade a praga,
condições que não podiam ser compreendidas nem pelas
próprias pessoas que a tinham diante dos olhos, foram
reveladas a Leonardo da Vinci. Ordinariamente, —
prosseguiu, — poderiam ser produzidas neste ano em que
estamos.
— O que quer dizer com isto? — perguntou Sir Ralph.
— Segundo o sistema moderno, — disse Tillizini, — essa
praga jamais poderia aparecer. Mas, na farmacopéia britânica
existem seis drogas, — prosseguiu, — que se uma pessoa
pudesse misturá-las, produziriam um gás...
Falava sem afetação, com a segurança de um completo
homem de ciência.
— Este gás, passado através de um filtro de matérias vegetais,
produziria condições tais que tornaria possível a repetição da
praga de 1.500!
— Deus nosso! — exclamou Frank. — Quer dizer que seria
possível produzir de forma sintética uma praga?
Tillizini assentiu com a cabeça.
— Foi isso o que Leonardo da Vinci descobriu.
Manteve os discos de papel entre as mãos.
— Não existe a menor dúvida de que Leonardo pôde produ-
zir sinteticamente a praga, dois anos depois. De qualquer
maneira, produziu-se uma epidemia semelhante na cidade
onde estava situado seu laboratório. Acredita-se que, como
resultado dessa praga, perdeu a vida Mona Lisa, «La
Gioconda».
— Oh, essa é a mulher do quadro! — exclamou Marjorie.
— Sim, é essa a mulher do quadro famoso, — repetiu
Tillizini, — a única mulher no mundo que Leonardo amou.
A única influência benéfica que teve em toda sua vida. Suas
investigações sobre a causa da praga ficaram concretizadas
nesses filamentos. Foi ele mesmo que projetou os
medalhões. Um, como o senhor sabe...
— Já conheço a história, — afirmou Sir Ralph. — Outro dia
contei-a a Mr. Gallingford. Como é extraordinário que volte
- a reviver a história antiga!
— Mas, porque os da «Mão Vermelha» querem a posse
desses medalhões?
— Só desejam possuir um. Um só bastará! — disse Tillizini.
— Ainda não perceberam? Amanhã, com a ajuda de um
homem que possua a mais elementar noção de química,
poderão devastar Londres, e não somente Londres, como
toda a Inglaterra e se lhes ocorresse, a Europa inteira,
trabalhando de pontos diferentes!
Enquanto os ouvintes ficavam silenciosos, todos sentindo o
horror da situação, Tillizini soltou um suspiro.
Vera adiantara-se nervosamente e dobrando as pernas, teria
caído ao solo, se não fosse Frank, cujos braços estenderam-
se a tempo, para ampará-la.

CAPÍTULO XIII
O RAPTO DE MARJORIE

Uma semana depois do roubo em Highlaw, um homem
perfeitamente feliz ia para o trabalho, assobiando cheio de
satisfação.
Caminhava com passo rápido. No lenço, de cores vivas, tra-
zia enrolado uma lata, com boa provisão de chá para sua
primeira refeição matinal. George Mansingham levantou os
olhos para os céus que se tornavam nublados e agradeceu
sua liberdade.
Por intermédio de Hilary George encontrara trabalho numa
pequena granja, situada um pouco afastada da cidade. Ele e
sua esposa tinham ido morar numa cabanazinha de
propriedade de Sir Ralph. Para fazer justiça a Sir Ralph, deve
ser dito, que ele admitira a injustiça da sentença, coisa que
significava bastante e não foi necessário que Hilary insistisse
muito para induzi-lo a deixar o homem, a quem tanto
prejudicara, habitar a desocupada cabana.
Apesar de ser ainda muito cedo, encontrou o patrão e o filho
já de pé. Há muito trabalho para ser feito, em determinadas
partes do mundo. Os cavalos devem ser alimentados e
cuidados. As ovelhas e o gado requerem atenção. As vacas
devem ser ordenhadas e há latões de leite para entregar.
O céu ficou mais claro, o sol saiu e pareceu a George que o
tempo corria velozmente.
As oito e meia sentiu fome e buscou a refeição. Sentou-se
para comer a frugal merenda, suspendendo suas tarefas no
cultivo dos dez acres de terreno de Farmer Wensell. Logo
que terminou a leve refeição, tirou do bolso um volumoso
livro e pôs-se a ler. Tinha enorme paixão pela leitura, e esse
livro, Forerunner, que Marjorie lhe havia emprestado, estava
despertando grande interesse em toda a Inglaterra. Achava-
se tão extasiado nas páginas do livro, que não percebeu a
jovem, que atravessava os campos com passos apressados.
Ouviu que chamavam seu nome e levantou os olhos. Em
seguida, ficou de pé e tirou o chapéu.
— Parece muito absorvido na leitura, Mansingham, — disse-
lhe Marjorie sorridente.
— Sim, senhorita, — respondeu o outro, — é um livro
maravilhoso e o homem admirável. Não me surpreende,
pois, que todo o mundo o leia com tanto interesse.
— Não é devido a seu gênio que estão falando dele, — disse a
jovem gravemente.
Ela trazia um jornal debaixo do braço e, a dizer verdade,
havia ido à estação de Burboro, para consegui-lo.
— E terrível o que aconteceu, senhorita, — afirmou o ho-
mem. Deixou o livro de lado. — Não parece possível que,
numa cidade civilizada, façam tais coisas, sobretudo, na
Inglaterra. Os jornais dizem algo de novo?
Ela moveu gravemente a cabeça.
— A «Mão Vermelha» dirigiu-se ao Primeiro Ministro, —
disse, — e pediu dez milhões de libras esterlinas, uma lei de
imunidades da Câmara dos Comuns e permissão para se
retirar livremente do país.
O homem fitou-a incrédulo.
— Mas, eles jamais obterão o que pedem, não é certo,
senhorita? — perguntou. — Semelhante solicitação é
contrária à razão! Suponha que não seja verdade que tenham
descoberto essa praga...
Ela meneou negativamente a cabeça.
— Não há nenhuma dúvida sôbre isto, Mansingham, —
disse. — Mr. Gallingford sabe que é verdade. Esteve
investigando, revendo documentos antigos, relacionados
com a praga do ano de 1.500. Esses homens têm em suas
mãos o modo de dizimar tôda a Inglaterra.
O tema, que eles discutiam, prendia, neste momento, o
pensamento e a atenção dos homens da Grã-Bretanha,
quase, poder-se-ia dizer, de toda a Europa. Onde quer que se
aglomerassem homens civilizados, o telefone e o telégrafo
levavam a notícia da ameaça que pairava sobre o país.
Era essa a última exigência da «Mão Vermelha», uma
exigência que, a princípio, pareceu absurda e que, pouco
depois, havia sido discutida pelos membros do gabinete,
desejosos de encontrar uma solução rápida.
A «Mão Vermelha» agia suavemente. Três dias antes do
desaparecimento do medalhão da localidade de Burboro,
uma proclamação temerária da «Mão Vermelha», impressa
em caracteres vermelhos, em grandes cartazes, havia sido
espalhada por Londres inteira!
Foi, então, que, pela primeira vez, a Inglaterra despertou
diante do terrível perigo que a ameaçava, Era algo
incompreensível, alguma coisa em que não se poderia
acreditar. Algo quase fantástico. Os homens, que liam a
proclamação, sorriam muito a contragosto, ainda que
estivessem lendo algo que se achava muito além de sua
compreensão.
A proclamação dizia assim:
«AO POVO DE LONDRES»
Nós, os dirigentes da «MÂO VERMELHA» pedimos ao
governo da Grã-Bretanha, o seguinte:
1. — A soma de dez milhões de libras esterlinas.
2. — Uma lei de garantias pela qual serão libertados todos
os homens da Fraternidade, que estejam presos, eximindo-os
de toda culpa, por qualquer delito anteriormente cometido;
3. — Um salvo-conduto para cada um dos membros da
«Mão Vermelha» e as facilidades necessárias para poderem
sair do país.
Em caso de negativa do Governo, depois de transcorridos
dez dias, nós, os diretores da «Mão Vermelha»,
espalharemos pela cidade o gérmen daquilo que se conhece
pelo nome de Quarta Praga e que no ano de 1500 destruiu
seiscentas mil pessoas. O bacilo dessa praga acha-se em
nosso poder e foi cientificamente preparado e provado.
Cidadãos!
Façam pressão sobre seu governo para que concorde com
nosso pedido e nos livre da necessidade de infligir tamanho
mal sobre todos!
A proclamação não trazia assinatura, nem selo. Naturalmen-
te, isto era algo absurdo. Os jornais da tarde, que dispuseram
de pouco tempo para analisar os fatos, encaravam-nos de
maneira diferente e jocosa.
Mas uma noticia diversa apareceu nos jornais matutinos.
Todos os homens de ciência conhecidos, todos os médicos
de maior notoriedade, que puderam entrevistar, convinham
em que nesse assunto, existia algo mais que mera ameaça.
Os diários qualificavam-na com o nome de «O Terror», a
«AMEAÇA DA MÃO VERMELHA» ou «Uma Chantagem
sôbre Londres» e suas colunas estavam repletas de tôdas as
informações referentes à terrível praga que havia assolado a
Itália e também a Irlanda, naquele ano de desolação de
1.500.
— É um assunto muito terrível, — disse novamente
Mansingham. — Temo que exista alguma verdade em tudo
isto.
A jovem assentiu com a cabeça.
Com uma cortesia pouco usual em homens de sua classe, ele
acompanhou-a até ao limite do campo e ajudou-a a passar
para o outro lado do caminho, despedindo-se.
Ela havia desviado um pouco do caminho da estação, para
falar com Mansingham. A moça sentia muito interesse por
ele, e, entre o advogado e ela, haviam combinado que
saberiam vigiar amistosamente seu protegido.
A manhã tornara-se deliciosa. O mundo estava cheio de
fragrâncias, nessa manhã primaveril. As árvores ofereciam o
melhor de seus aspectos; as flores silvestres perfumavam o
ambiente. Procurou deixar de lado as preocupações e as
tristezas que lhe provocavam a terrível ameaça e começou a
andar com mais vivacidade, cantando um estribilho
conhecido, em voz baixa.
Na metade do caminho de regresso, Mansingham deu meia
volta, recolheu os jornais que ela trouxera e deixara cair e
começou a correr para alcançá-la.
Ela devia demorar uns vinte minutos a chegar a Highlaw,
que distava um quarto de milha do limite da cidade, mas
estava numa idade em que a manhã agradável não oferecia
nenhuma dificuldade ao caminhar e ela parecia ser ligeira de
pés, que corriam sem nenhum esforço.
Ouviu um ruído de automóvel, que vinha atrás dela e
aproximou-se da margem do caminho, para deixá-lo passar.
Sem se dar conta, voltou-se para ver quem era o ocupante
do carro.
Nesse momento, o auto pôs-se de um lado e parou justa-
mente a poucos metros dela. Um homem jovem, vestido
dos pés à cabeça com um guarda-pó branco, saltou.
— O Conde Festini! — gritou com assombro. — O Conde
Festini, — repetiu ele com um sorriso. — Desejava vê-la.
Não quer entrar no carro? Vou até sua casa, — disse-lhe.
Ela vacilou. Gostaria mais de continuar andando, nessa
formosa manhã. Mas, seria um ato de desatenção recusar o
gentil convite que lhe era feito. Além disso, pensou que
estava um pouco atrasada para a refeição e lembrou-se de
que Sir Ralph sempre se aborrecia, quando alguém chegava
atrasado.
Entrou no carro e nesse instante apareceu Mansingham,
quase sem fôlego, a poucos passos do veículo. — Que
curioso! — disse Marjorie, enquanto Festini sentava-se a seu
lado.
— Que é curioso? — perguntou.
— Um carro fechado como este, num dia assim, — disse. —
E vocês os italianos que adoram o sol!
— Nós adoramos o sol, — respondeu, — mas, sem os
incômodos ventos que sopram aqui na Inglaterra.
Inclinou-se para a frente e abaixou uma pequena cortina
vermelha que ocultava a vista do chofer e a visão do
caminho à frente.
Ela observava-o sem poder dar-se conta da necessidade
dessa atitude. Logo, com um movimento rápido, desceu
também as cortinas laterais do carro.
O automóvel corria a grande velocidade. Continuando nessa
marcha, chegariam muito depressa a Highlaw. Na realidade,
já tinham passado pela casa, enquanto o embaraçado
Mansingham, agarrado à parte traseira e esperando que a
marcha do carro diminuísse, para fazer entrega dos jornais à
jovem, não compreendia , o que estava acontecendo.
— Por que faz isso? — perguntou a jovem friamente. — Faça
o favor, Conde Festini, de levantar as cortinas, sim?
— Dentro de um momento, — respondeu.
— Insisto, — disse ela, batendo com os pés. — Não tem o
direito de fazer semelhante coisa.
Ficou enrubescida e com raiva ao ver a ofensa que lhe
infligiam.
— Dentro de um momento, — repetiu, — por agora,
continuaremos com as cortinas descidas, se assim me
permitir.
Olhou-o cheia de assombro.
— Ficou louco? — perguntou Marjorie ,com raiva.
— Você fica mais bonita quando se zanga, — disse-lhe com
um sorriso.
A insolente segurança do tom fê-la estremecer. Já deviam
ter passado de Highlaw.
— Faça o carro parar, — ordenou.
— O carro somente parará mais tarde, — disse Festini. —
Enquanto isto, — pegou-lhe na mão, no momento em que
ela procurava suspender a cortina, — enquanto isto, —
repetiu, prendendo-lhe com força o pulso, — considere-se
minha prisioneira!
— Sua prisioneira! — exclamou apavorada. Seu rosto
empalideceu.
— Minha prisioneira, — disse Festini, com toda calma. —
Tenho um grande desejo de retê-la para pedir um resgate.
Não percebe? — Seus olhos despediam chispas, — não
percebe? — gritou, — o que você significa para mim? Eu
sim, percebo claramente. Nesses últimos dias, — prosseguiu
rapidamente, — vi todo o paraíso que um homem poderia
desejar. Mas, isto não tem valor para mim! Sabe por quê?
Porque existe somente uma coisa no mundo que desejo
acima de tudo e essa coisa é você!
Segurava-a com as mãos e ela não pôde mover-se. Estava
aterrorizada de tal modo, com sua atitude e com o aperto de
seus poderosos braços, que não pôde mover-se.
— Desejo-a, — disse-lhe. A voz parecia tremer-lhe na
garganta. — A você mais do que a qualquer outra coisa, no
mundo, Marjorie. Você é inacessível de um modo, devo,
então, obtê-la por outros meios!
A jovem caiu para trás, num dos cantos do carro,
contemplando fascinada seu raptor. Procurou gritar, mas de
sua boca, por mais esforços que fizesse, não pôde sair
nenhum som.
Festini observava-a. Os olhos despediam chispas apaixona-
das. Sua mão cálida, achava-se apertada convulsivamente
sobre a dela.
— Não sabe o que estou fazendo? — disse, falando
rápidamente. — Não sabe a que estou me arriscando por sua
causa? — Não percebe que estou metendo-me num novo
perigo, tanto para mim, como para minha organização? Mas,
é que a desejo, desejo-a mais do que qualquer outra coisa no
mundo, — disse-lhe apaixonadamente.
Ela conseguiu falar.
— Está louco, — exclamou, — completamente louco!
Ele sacudiu a cabeça.
— O que está dizendo é a verdade, — contestou, — mas,
nem minha loucura estou obedecendo às próprias leis que
governam a humanidade. Algo aqui, — disse, tocando-se no
peito, — me diz que você é a mulher que me é destinada.
Obedeço a esse instinto. Isso é loucura? Então, estamos
todos loucos, toda a criação animada está louca!
A terrível alegria da posse dominava-o e ela lutou e gritou, -
mas o ruído do motor abafou seus gritos.
Num instante, estava entre seus braços, apertada
violentamente contra ele, seus lábios ardentes beijando-lhe
as faces. Ele devia ter visto em suas pupilas um lampejo de
raiva e uma expressão de horror no rosto, porque, de
repente, libertou-a e ela caiu para trás, toda trêmula, pálida e
emocionada.
— Sinto muito, — apressou-se em se desculpar, — mas você
disse que eu estava louco... no entanto, é você quem
enlouqueceu...
Seus modos mudaram bruscamente e tornaram-se suaves
como os céus de abril. Agora, estava implorando. Disse-lhe
todos os argumentos que lhe vieram à mente. Pareceu
amável, por um momento, jurou que ia libertá-la, levou a
mão para fora, a fim de chamar a atenção do chofer, mas
logo arrependeu-se de sua generosidade.
De repente, falou-lhe rápida e brutalmente do destino que a
esperava no caso de lhe resistir.
Era a lembrança do belo noivo dela que o fazia enfurecer-se
mais. Sentia-se tão exausto quanto ela, quando o carro se
afastou da estrada principal. Depois de uma corrida louca, de
dez minutos, o carro diminuiu a marcha e, em seguida,
parava.
Ele saltou, abrindo a porta para que ela descesse e voltou-se
para ajudá-la. Uma brisa fresca e suave chegou-lhe ao rosto,
um vento carregado de perfume dos prados.
Permaneceu olhando a seu redor. A menos de cem jardas,
via-se o mar, com sua solene grandiosidade. Não havia
nenhuma habitação à vista, a não ser uma pequena casa de
campo.

Perto da casa, viam-se três homens. Com um grito de
agradecimento, ela começou a correr nessa direção, quando
uma gargalhada de Festini fê-la deter-se extenuada.
— Apresentá-la-ei a essas pessoas, — disse-lhe
sarcasticamente.
Ela voltou-se para correr em direção ao mar, mas, em duas
passadas ele estava a seu lado e segurou-a pelo braço.
Imediatamente uma poderosa mão pegou-o pelo pescoço e
com um violento empurrão fê-lo voltar-se.
Os olhos dele deitavam fogo. Fitou o assaltante George
Mansingham, alto e rijo de costas, sujo com o pó do
caminho. Estava assim, porque durante toda a viagem viera
recebendo a poeira da estrada.
Mansingham defrontou o olhar vicioso de Festini e com um
movimento rápido e poderoso de seu braço descarregou um
golpe no rosto do italiano, que caiu ao solo.
A jovem ficou aturdida, ante o aparecimento repentino de
seu salvador, até que Mansingham fê-la voltar à realidade das
coisas.
— Por aqui, senhorita, — disse-lhe.
Tomou-a, sem maior cerimônia, pela cintura, levantando-a
como se fosse uma criança e pulou por cima de um rego,
que servia para irrigar esta parte da campina.
— Corra, — disse-lhe.
Ele também tinha visto os homens e supôs que fossem as-
seclas do italiano. A jovem apelou para todas as suas reservas
de energia e correu como o vento. Mansingham seguia-a.
O vento trazia-lhes a voz de seus perseguidores.
Ouviu-se um estampido. A bala passou assobiando junto
deles, mas uma ordem deve ter sido dada, para que não
atirassem porque não se ouviram novos disparos.
Verdadeiramente, isso resultava muito mais perigoso para os
perseguidores que para os perseguidos.
À meia milha de distância, existia uma estação de vigilância
costeira e ainda que nem a jovem, nem Mansingnam
soubessem disso, sentiram, por instinto, que a costa era o
lugar que melhor refúgio e possibilidades de fuga lhes
oferecia.
De repente, Marjorie tropeçou e caiu ao solo. Mansingham
deteve-se, imediatamente e tornou a segurá-la. Enquanto se
levantava, deixou escapar uma exclamação de impotência.
Diante dele, encontravam-se dois homens,
indubitavelmente italianos, com os revólveres apontados.
Na fuga, haviam chegado a um posto avançado da «Mão
Vermelha».
Tudo passou-se em menos de dez minutos. Os perseguidores
entraram em ação e a jovem foi arrebatada de seus braços.
Ele lutou valentemente. Homem após homem foi caindo
sob a potência de seus golpes vigorosos. Logo, viu-se um
punhal ondear no ar, golpeando-o no meio da testa e ele
caiu como se fora um touro.
Festini, com a respiração agitada, o rosto completamente
vermelho pela violência da luta e sentindo também a
pancada que o derrubara momentos antes, era quem dirigia
as operações.
— Sem fazer o menor rumor, — disse, — se não podem
despertar a atenção de alguém que os possa ver, e recairá
sobre vocês a morte dessa pessoa e possivelmente teremos
que matá-los também!
Falava cortesmente, de forma impessoal, como se ela fosse
Mansingham.
— Não o maltratem, — pediu a jovem.
Referia-se ao homem prostrado, que parecia começar a
voltar
a si.
Festini não disse uma palavra. Pertencia a uma raça que não
sabia se esquecer com facilidade de uma ofensa e muito
menos uma pancada.
— Levem-na daqui, — ordenou.
Ele ficou para trás, com seus auxiliares
— Penso que vamos cortar-lhe a garganta, Signor, — disse o
«Boi», — e assim acabaremos de uma vez com ele.
— E acabaremos também conosco, — disse Festini. — Esta
costa é patrulhada. Encontrariam o homem, far-se-ia uma
completa busca, até chegar aos autores da morte.
Caminhou uma dúzia de passos, até à borda de um
promontório e olhou para baixo. O declive tinha uns
duzentos metros e a maré começava a subir.
— Aqui deve haver pelo menos vinte pés de água, — insi-
nuou significativamente.
Levaram o homem, já mais reposto, pegando-o pela cabeça e
outro pelos pés, até à borda do barranco. Balançaram-no por
duas vezes e logo. atiraram-no ao mar. O homem foi caindo,
dando cambalhotas.
Festini e seus companheiros observaram a cena. Em seguida,
a água abriu-se para dar-lhe passagem e a figura humana
desapareceu na profundeza do oceano.
Esperaram um momento, não o viram voltar à superfície e
Festini e seus auxiliares dirigiram-se para a casa de campo.

CAPÍTULO XIV
TILLIZINI DEIXA UM SINAL

O prazo do ultimatum estava por vencer. Durante quatro
dias, a Inglaterra teria a oportunidade de concordar com as
condições estipuladas pela «Mão Vermelha». Na ampla
biblioteca de Dowing Street, ocupando a poltrona que
homens eminentes e famosos ocuparam em épocas já
remotas, achava-se sentado o Primeiro Ministro, grave e
preocupado, enquanto conferenciava com Tillizini.
O italiano estava loquaz, essa manhã. Vestia-se com sumo
cuidado, sinal evidente de que estava disposto a jogar uma
de suas mais terríveis cartadas contra a organização, cujo
extermínio se havia proposto.
Porque essa era uma das suas excentricidades e já se
convertera em lenda entre os criminosos da Itália, segundo a
qual «um Tillizini bem vestido, era um Tillizini perigoso».
Em Florença há um ditado que diz: «Tillizini tem um traje
novo... a quem mandará para a prisão perpétua?»
O Primeiro Ministro estava brincando distraidamente com
sua lapiseira, fazendo desenhos impossíveis sôbre o mata-
borrão.
— Então associa o desaparecimento de miss Marjorie Meagh
com as atividades da «Mão Vermelha»?
— Sim, Excelência, — disse o outro.
— E o que aconteceu com Mansingham?
— Isso também, — afirmou Tillizini, — deve-se a eles.
Assim foram vistos juntos no campo, onde Mansingham
trabalhava,
livro e seu paletó foram encontrados tal como os deixara, os
dois estiveram caminhando juntos pelas proximidades. Foi
visto por outro jornaleiro, quando voltava ao campo, para
deter-se de improviso e levantar alguma coisa do solo,
provavelmente o lenço da jovem. Viram-no, também,
quando começava a correr apressadamente, possivelmente
em perseguição da moça. Desde esse momento, ninguém
mais soube dar qualquer informação sobre ambos. A mulher
que interroguei na cabana, situada de um lado da estrada,
lembra-se de ter visto um grande automóvel que passava, no
momento. Reúno essas três circunstâncias e considero-as
ligadas entre si.
— Mas, é claro, — disse o Primeiro Ministro, — que não se
atreveriam a levar também o homem. Que objetivo teriam
para fazê-lo? Que intenção teriam também, ao levar a
jovem?
Tillizini olhou pela janela. Do lugar de onde estava sentado,
avistava-se Green Park. Era uma bela paisagem. A guarda
acabava de ser substituída pela Horse Guards e os soldados
marchavam pelo lugar destinado aos desfiles. As couraças
brilharam ao sol, os capacetes brilhantes também, refletindo
em mil aspectos as luzes da manhã. Todas as armas da
Inglaterra, todo seu poderio militar e naval, todas as suas leis
e esplêndidas instituições não poderiam salvá-la da traição da
«Mão Vermelha».
Voltou-se com um sobressalto para olhar para o Primeiro
Ministro e viu que era examinado com curiosidade.
— De certa maneira, — disse, — esse rapto não me preo-
cupa, desde que nenhuma das pessoas seja maltratada. Não
posso compreender porque se incomodaram em fazê-lo.
Mas, são essas vinganças particulares que sempre levam as
grandes organizações ao descalabro.
— Seriamente, professor Tillizini, — disse o Primeiro
Ministro, — acredita que esses homens cumprirão suas
ameaças?
— Com toda a sinceridade, acredito, — afirmou Tillizini.
— Seus peritos riram-se ante a idéia de que a «Mão
Vermelha» seja capaz de cultivar esse germen especial. A
resposta da «Mão Vermelha» vai surpreendê-los muito, —
disse, enquanto sorria. — Se não estou enganado, enviaram
uma cultura ao laboratório bacteriológico do Governo. Os
animais que foram inoculados com a cultura morreram com
todos os sintomas que foram descritos pelos escritores do
século XV.
O Primeiro Ministro moveu afirmativamente a cabeça.
— Não podemos dar-lhes o dinheiro que pedem. Isso é
impossível. Não é verdade que também o senhor o
reconhece, professor?
Tillizini assentiu com a cabeça.
— Isso significará a negação da lei. Criaria um precedente
que poria termo a toda autoridade da civilização. Seria
melhor que a Inglaterra fosse assolada pela epidemia, antes
que um centavo saísse dos cofres fiscais. É esse o meu ponto
de vista. Estou preparado, — disse com alguma pressa, —
para aceitar não só a responsabilidade dessa atitude, como
também a sofrer as primeiras conseqüências das
maquinações desses homens. Já mandei sugerir isto pelas
colunas dos jornais. A única esperança que temos é que
possamos nos apoderar das culturas e não só obtê-las, como
também encontrar o laboratório, aonde estão sendo feitas. É
uma esperança, — disse com um movimento de ombros —
Bem sei que está fazendo todo o possível, Tillizini, e que a
Scotland Yard...
— A Scotland Yard está trabalhando esplendidamente,
afirmou Tillizini. —. A organização dessa Polícia é
maravilhosa.
Pôs-se de pé.
— Quatro dias, — acrescentou em seguida, — é um prazo
bastante longo.
— Tomará as medidas que creia necessárias para a segurança
pública ?
— Pode estar completamente certo disso, — respondeu
Tillizini.
O Primeiro Ministro dobrou o mata-borrão, num gesto
despreocupado.
— Dizem, professor, — acrescentou com deliberação, — que
não vacilaria em cometer o que aos olhos do mundo
respeitador da lei, poderia ser considerado como um ato
criminoso, no sentido de ajudar a ação da justiça.
— Jamais vacilaria em fazê-lo, senhor, — disse Tillizini, — se
quer dizer com isso...
— Não me refiro a coisa alguma em particular, — esclareceu
o funcionário oficial. — Só queria dizer-lhe que, se consi-
derasse necessário afastar-se da lei para administrar um
castigo preventivo, eu poderia assegurar-lhe completa
imunidade por parte do Parlamento.
Tillizini inclinou a cabeça.
— Agradeço a Vossa Excelência por esta atenção, — disse, e
pode estar seguro de que não abusarei de tal poder e que
nenhum dos crimes que possa cometer necessitará de
imunidade.
O Primeiro Ministro olhou-o com assombro.
— Por quê?
— Porque, — afirmou Tillizini, com a voz mais suave, —
porque meus crimes jamais me podem ser imputados.
Com outra reverência retirou-se do gabinete oficial.
O inspetor Crocks esperava-o do lado de fora da casa de
Downing Street.
— Trago-lhe alguns telegramas, — disse-lhe. — Estou
convertendo-me em seu secretário particular.
Tillizini sorriu. Um sentimento afetuoso crescera entre estes
dois homens de constituição e temperamento tão diversos.
Quando Crocks foi designado para prestar ajuda a Tillizini
em seus trabalhos, não faltaram pessoas descrentes que
sorriram, porque não poderia ser encontrada uma pessoa
mais afastada do detetive das novelas do que o próprio
inspetor de Polícia. Não era porque lhe faltassem qualidades.
Nada disso. Era astuto, vivo, sutil até chegar ao brilhantismo.
Era um rápido e eficiente organizador, com um
conhecimento do baixo mundo criminal que muito poucos
homens possuíam.
Tillizini abriu os telegramas. Leu-os duas vêzes e dobrando-
os, enfiou-os no bolso. Depois de lançar uma vista de olhos
nas cartas, nas direções e indicações postais, colocou-as, sem
abrir, no bolso interior do paletó.
— Não lhe mostrei os telegramas, porque são em código.
Em poucas palavras comunicou-lhe o conteúdo dos
mesmos.
O livro de código de Tillizini estava em sua cabeça.
— Agora vou ver meu «laço»...
— Ainda está viva? — perguntou o inspetor com simulada
surpresa.
— Até há poucos minutos, estava, — disse Tillizini.
Por esta vez, não tratou superficialmente do assunto e o
inspetor sabia que a pergunta que lhe formulara com toda
boa intenção tinha um significado um pouco mais sério.
— Consegui-lhe um emprêgo, — disse Tillizini, de repente.
— É carregador de bagagens na Victoria Station. Isso
permitir- lhe-á entrar em contato com muitas espécies de
pessoas.
— E, ao mesmo tempo, poderá dar-lhe algumas informações,
— acrescentou Crodes. — Penso que a idéia não é má. Não
parece muito esperto e não creio que tenha alguma coisa de
extraordinário, mas dispõe do poder que desgraçadamente
não possuem muitos oficiais de Polícia. No momento em
que o. homem começa a parecer importante, todo o seu
valor decresce.
Tillizini riu.
— Oh, homem sem importância! — disse.
Poucos minutos depois, separaram-se. O detetive voltou a
Scotland Yard e Tillizini chamou um táxi, fazendo-se
conduzir em direção à parte sul de Londres.
Nesse dia, às doze e meia, o rápido de Burboro para Victoria.
Station vinha entrando lentamente na grande terminal.
Vera Morte-Mannery foi uma das primeiras pessoas que
desceram do trem. Seu pé tocou o chão, quase no mesmo
instante que o comboio detinha sua marcha.
Caminhava com rapidez até à grade e saiu para o amplo
espaço que existe ao fim da estação. Olhou em torno com
ansiedade e, em seguida, consultou o relógio.
O homem que ela procurava não se encontrava por ali.
Andou de um lado para outro da estação e voltava para a
banca de revistas, quando Festini veio em sua direção, dando
grandes passadas.
Fitou-o nos olhos e êle conteve-se e voltou-se
descuidadamente para o outro lado. Dirigiu-se à parte
externa da estação e ela seguiu-o.
Ao levantar um dedo, um carro saiu da fila e parou junto ao
passeio.
Sem pronunciar uma só palavra, ela entrou no carro, seguida
de Festini.
Ambos seguiram em silêncio, até que o veículo dobrou por
Hyde Park e foi diminuindo a marcha de acordo com os
regulamentos do trânsito.
Nesse instante, ela voltou-se repentinamente para seu com-
panheiro e com voz emocionada perguntou-lhe:
— Onde está Marjorie Meagh?
Ele levantou as sobráncelhas.
— Marjorie Meagh? — perguntou por sua vez. — Não que-
rerá me fazer crer que me fez vir a Londres para me
perguntar onde se encontra Marjorie Meagh? — perguntou
outra vez.
— Onde está Marjorie Meagh? — tornou a perguntar.
— Como poderia sabê-lo?
— Festini, — disse-lhe suplicante, — sejamos francos mu-
tuamente. Marjorie foi raptada pela «Mão Vermelha» e a
«Mão Vermelha» é você.
— Psiu, psiu! — murmurou selvagemente. - Não grite, as
pessoas poderiam ouvir da rua!
As maneiras dele mudaram imediatamente. Mostrava-se um
pouco frio, um tanto impaciente, talvez um pouco mais que
intolerante. Percebera a mudança desde o momento em que
se encontraram.
Vera apertou os lábios com força e ficou calada, durante um
bom momento.
— Qual foi seu objetivo ao raptá-la? — perguntou-lhe.
— Não lhe posso dizer. Não confia em mim?
— Confiar em você! — disse, rindo-se com amargura. Já não
confiei em você até o máximo que seja possível? Quem
deveria formular esta pergunta era eu. Não confia em mim,
Festini, não é verdade?
Era mais que uma declaração, uma verdadeira súplica.
Desejava que não negasse, mas não ouviu nenhuma
negativa.
— Existem certas coisas que eu não tenho o direito de lhe
dizer.
— Por quê? — perguntou. — Existe por acaso algum segredo
da «Mão Vermelha» que eu desconheça?
Ele sorriu com dificuldade.
— Nada sabe sobre a Quarta Praga, — disse-lhe suavemente.
— Não me queixo disso, — afirmou, — era algo muito
grandioso para que você confiasse a um homem ou a uma
mulher. Mas, não vejo nada de sutil no rapto de Marjorie
Meagh.
Ele estendeu a mão num gesto de desamparo.
— Não lhe posso dizer. Existe algo atrás de tudo isso que
você não pode saber.
— Há' algo que posso supor! — protestou com firmeza. —
Ama Marjorie Meagh... roubou-a para tê-la a seu lado,
porque a adora. Não negue. Posso vê-lo em seu rosto. Oh,
pedaço de mentiroso! Você é um mentiroso!
Jamais a vira nesse estado. Era uma nova fôrça que ela
começava a lhe opor, algo que a principio lhe agradou, mas
que não deixava de incomodá-lo.
Fora sempre toda suavidade, tôda complacência para com
ele, uma conquista fácil para êsse belo homem de voz doce e
olhar eloqüente.
Em sua ansiedade de mulher, aparecia-lhe um tanto terrível,
mas não poderia aterrorizá-la. Estava habituado à oposição e
sabia acabar muito rapidamente com ela. Existia nele muita
coisa de feminino, para poder apreciar os sentimentos dela.
E autocrata como era, aborrecia-se com sua rebelião e em
seu ressentimento chegou a falar mais do que em tais
circunstâncias valia a pena dizer.
— Sim, é verdade, — disse friamente. — Amo-a. Por que
haveria de negá-lo? Pelo fato de amá-la, não deixo de gostar
de você. Ela está num plano diferente do nosso.
Vera respirava com rapidez, seu peito arfava com a
intensidade da raiva.
Não falou durante um minuto. Sentia um desejo de atirar-se
do carro, de sair correndo para qualquer parte, de
desaparecer de sua vista, desde que já sabia que não tinha
mais o afeto de seu coração.
O fogo do ciúme, da humilhação devorava-a de forma
intensa, para que pudesse encontrar palavras para se
expressar.
Diversas vezes, esforçou-se para conter a torrente de pala-
vras selvagens que pugnavam por sair de sua boca.
Então era esse o final! O fim de seus sonhos, a recompensa
de todo seu trabalho, de todas as traições impostas às pessoas
que a estimavam, o último trecho do caminho feliz que
ingenuamente acreditara levá-la-ia à eternidade!
De tempos em tempos, ele olhava-a com o rabo dos olhos.
— Compreendo, — disse finalmente, falando com certa
compostura, — seu grande plano vai começar a dar frutos.
Não precisa mais de mim, não é verdade?
— Não diga. isso, Vera, — rogou-lhe.
Sentia-se imensamente aliviado ao verificar o modo pelo
qual
ela recebera a notícia, que, apesar de todo o seu sangue frio,
não tinha o menor desejo de lhe dar
— Você é indispensável, — avisou-a. Procurou pegar-lhe a
mão, mas ela retirou-a. — Foram as exigências do projeto
que estamos em vésperas de realizar que me impediram de
confiar mais amplamente em você. No que se refere a
Marjorie, desejo que seja generosa, — disse-lhe, — quero
que perceba...
— Oh, já entendi! — respondeu com ansiedade. — Será que
alguma vez você foi sincero, Festini? Algum dia você me foi
fiel?
Olhou-o indagadoramente.
— Juro... — começou a dizer.
— Não jure, — disse-lhe. — Penso que compreendo.
Pôs-se a rir com atrevimento.
— Vou descer aqui. Desejo andar um pouco. Esse não é, em
realidade, o resultado da reunião matinal que eu esperava, —
prosseguiu. — Ainda quando me sentia enciumada, jamais
acreditei que minhas suspeitas fossem verdadeiras.
Procurou persuadi-la em vão, para que ficasse no carro, mas
ela mostrou-se inflexível.
Bateu na janela e o carro parou. Ele ajudou-a descer do carro
e prendeu-lhe a mão.
— Adeus, Festini, — disse-lhe.
Os olhos dele entrecerraram-se.
— Deve ver-me outra vez. Comigo, não existem adeuses, —
disse-lhe bruscamente. — Já lhe disse que você é
indispensável... e é verdade.
Ela não respondeu uma só palavra. Desprendeu suavemente
a mão que retinha a sua e deixou cair o braço.
Em seguida, deu uma volta e começou a andar, afastando-se
dali.
Ele permaneceu olhando-a até perdê-la de vista. Poderia
confiar nesta mulher? Possuía grande conhecimento dos
homens e talvez um pouco maior ainda das mulheres. Pesara
todas as possibilidades. Ela não o trairia, ficou pensando.
Esses ingleses, dizia-se, gostam de amar e sofrer em silêncio,
escondendo seus segredos no fundo do coração.
Sorriu, encolhendo os ombros e soltou uma gargalhada.
Voltou-se para o chofer e ordenou-lhe que o levasse a um
restaurante da moda. Porque os homens, ainda que sejam
conspiradores, também têm apetite.
Fez o carro parar em Oxford Street, para comprar um jornal
da tarde. As colunas estavam cheias, iguais aos jornais da
manhã, com comentários sobre a Quarta Praga. Chegaria a
«Mão Vermelha» a cumprir suas ameaças? Um jornal
entrevistara um cientista, que havia descoberto um
específico contra a praga.
Outro oferecia um retrato a bico de pena do próprio
Tillizini.
Os mais caprichosos rumores adquiririam contornos
consideráveis e encontravam ambiente no público, mas em
todas essas informações e comentários não havia nada que
valesse realmente a pena.
Estava dobrando o jornal, quando um parágrafo, que
evidentemente havia sido publicado para encher um espaço
em branco, chamou sua atenção.
Estava no final da página.
«O desgraçado Mansingham, que acrescentara à tragédia de
vida o fato de se achar associado com o desaparecimento de
Miss Marjorie Meagh, era um hábil nadador e na reunião
anual dn Clube Aquático de Burboro, comentava-se ontem à
noite, com pesar e simpatia o desaparecimento do
infortunado».
Festini franziu o cenho. Um bom nadador? Isso era um
absurdo. Evidentemente, tinha havido um grande perigo ao
atirá;lo na água. Já tinham transcorrido três dias e não se
tivera notícia sobre seu desaparecimento.
Sabia, mercê de prolixas investigações, que não fôra reco-
lhido nenhum cadáver, na costa, ainda que, às vezes se
passim semanas inteiras antes que o mar entregue seus
despojos. Era um absurdo, preocupar-se com esse homem.
Durante todo o almoço, entretanto, notou que esse
pensamento o incomodava demasiadamente. E se o homem
tivesse conseguido sair com vida da água? Teria sido muito
melhor seguir a sugestão de «O Boi» e matá-lo ali no ato.
O garção levou-lhe a conta. Pagou-a e deu uma gorjeta.
Levantou-se e chegou ao vestíbulo, passando pelo grande
corredor do restaurante. Escolheu um cigarro na vitrina e
saiu, tomando a direção de Ficadilly.
Seu automóvel, que era guiado por um homem de confiança
da «Mão Vermelha», seguiu-o, ao longo do grande passeio
que, a essa hora, era muito concorrido.
Ao chegar à esquina de Picadilly Circus, encontrou-se frente
a frente com Frank Gallingford.
O inglês parecia doente. A angústia dos últimos dias reve-
lava-se claramente em seu rosto.
A perda da noiva desesperara-o. Não conseguia dormir. Seus
detetives estavam revistando o país de um extremo a outro.
Fundara, por sua conta, uma pequena organização policial,
porque Frank Gallingford era um homem muito rico.
Os homens pararam, fitando-se por uma fração de segundos.
Em seguida, Festini estendeu a mão, com um suave sorriso.
— Como vai, Mr. Gallingford? — disse.
Frank não se achava com disposição para conversar ou re-
ceber solidariedade. Respondeu apenas com umas poucas
palavras convencionais, devolveu o aperto de mão de Festini
e afastou-se apressadamente, deixando que o conde
prosseguisse em sua caminhada.
Frank não tinha dado uns vinte passos, quando alguém
tocou- lhe suavemente o braço. Olhou a seu redor. A
princípio, não o reconheceu, porque usava uma roupa de
operário, mas quando o ouviu falar, reconheceu-o
imediatamente.
— Siga atrás de Festini, — pediu Tillizini rapidamente. —
Diga-lhe qualquer coisa e retenha-o por alguns minutos, —
disse, enquanto ambos começaram a andar um pequeno
trecho, — e, quando chegarem a St. James Street, faça-o
virar para a direita e então procure convencê-lo a ir até ao
outro extremo da rua.
— Mas, por quê?
— Não me pergunte o porquê, — disse Tillizini. — E fez um
de seus raros gestos de impaciência. — Faça como lhe
indiquei .
Frank assentiu com a cabeça. Ainda que não se sentisse com
ânimo para fazer o que lhe pedia o detetive, apressou os
passos e chegou novamente ao lado de Festini.
Tillizini observava-os de longe. Viu-os prosseguir andando
distraidamente e virar a rua que lhe indicara. O automóvel
que esperava do outro lado dobrou também essa rua e ficou
esperando .
O passeio estava sofrendo reparos e por ali não havia lugar
para o carro estacionar.
O chofer olhou para todos os lados, procurando um lugar
conveniente. Tinha que retroceder e dar uma volta,
seguindo o mesmo caminho que tomara anteriormente.
Chegando a Regent Street e em seguida a Picadilly teria
somente uma alternativa, que era esperar.
Olhou indeciso. Um policial veio tirá-lo do aperto, orde-
nando que retrocedesse até à rua principal.
Com toda lentidão, o carro começou a retroceder.
Passaram-se alguns minutos, antes que o grande carro
Napier pudesse chegar ao meio da corrente de trânsito, que
se movia rumo a Piccadilly Circus. Havia ali uma esquina e
nesse momento produziu-se uma parada.
Tillizini colocou-se num lugar de onde poderia observar to-
dos os movimentos.
Notou um olhar de ansiedade no rosto do chofer. A
oportunidade que estivera esperando há dois dias acabava de
se apresentar .
Avançou através do trânsito e aproximou-se do automóvel.
Tirou algo do bolso e agachando-se junto da roda traseira,
apertou com a mão com muita força sobre o pneu. Era uma
pedaço de borracha, com um gancho de ferro em cada
ponta.
Com todo cuidado, prendeu-o na roda. No centro,
projetava- se a cabeça de uma flecha.
O dispositivo havia sido cuidadosamente preparado e só um
perito em acessórios de automóveis poderia notar esse
pedaço de borracha e que era algo pouco usual.
Com um olhar para ver se seu trabalho estava bem feito,
voltou a misturar-se com o trânsito e cruzou a rua, em
direção ao passeio oposto. Caminhou mais um trecho por
Regent Street e daí viu os dois homens que continuavam
conversando.
Festini voltava para trás. Notara a ausência do automóvel e
compreendera precisamente porque o chofer não pudera
segui-lo.
Tillizini viu quando se despedia apressadamente de Frank e
começava a andar pela rua. O professor sorriu. Interessava-
lhe esse espetáculo de Festini brincando de esconde-
esconde com o seu automóvel.
Não voltou para o lado de Frank. Em vez disso, chamou um
táxi, que parou com alguns protestos por parte do chofer,
porque esse homem com traje de operário, que o chamava,
não parecia inspirar-lhe confiança. Tillizini fez-se conduzir
diretamente para Scotland Yard.
Essa noite, cada um dos departamentos policiais recebeu um
aviso e, imediatamente, policiais a pé, em motocicletas e a
cavalo, percorriam as estradas, procurando rastro de um
automóvel, cuja roda deixava no chão, de trecho em trecho,
a marca de uma flecha.


CAPÍTULO XV
A CASA PERTO DO RIO

Pela janela, Marjorie podia ver a margem e a amplidão do
rio. Quando o nevoeiro não encobria os objetos, conseguia
ver os barcos, que cruzavam as águas, de vez em quando.
Eram rebocadores que arrastavam filas de chatas, barcos de
cor escura, que se dirigiam preguiçosamente para o mar. Do
lado da outra margem, viam-se terras sem cultura, de
aspecto mais ou menos pantanoso.
Esse rio de águas um tanto turvas e de margens afastadas era
o Tâmisa. Os terrenos pantanosos do outro lado, formavam
uma faixa que se estende para o lado norte, entre Southend e
Barking.
Aproximando o rosto do vidro da janela, ela podia ver um
pequeno edifício de teto baixo e dele viam-se sair, a todo
momento, homens que vestiam pesados sobretudos.
A casa em que se encontrava era de construção velha, de
ladrilhos, os aposentos eram frios e um tanto úmidos.
Na peça que fora destinada a seu uso, o papel há muito se
desprendera da parede, em grandes pedaços e nem a própria
lareira, que a mulher italiana que lhe servia de criada se
preocupava em encher de lenha constantemente, chegava
para proporcionar um pouco de calor ao aposento.
Da casa junto ao promontório, levaram-na para ali, durante a
noite. Deitara-se depois do jantar, na prisão de Kent para
acordar e ver que se encontrava no quarto em que estava
nesse momento.
A certeza de que lhe deviam ter dado algum narcótico no
alimento enchera-a de terror.
No dia seguinte ao de sua chegada, negou-se a beber e a
comer e só quando a mulher italiana comeu e bebeu do
alimento, diante de seus olhos, a jovem consentiu em tocar
na comida.
Afortunadamente, possuía algum conhecimento do idioma
italiano. Ultimamente, estava aperfeiçoando-se nesta língua.
Como o trabalho de seu noivo se radicasse na Itália, ambos
haviam visto a necessidade de ela aprender o mais depressa
possível essa língua, para não se ver em nenhuma
dificuldade, desde o primeiro dia em que pisasse o solo
italiano.
Mas, apesar de suas perguntas, não obteve a menor resposta
por parte da mulher.
Não viu Festini desde o dia em que estiveram no
promontório, ainda que acreditasse ter ouvido sua voz, em
diversas ocasiões.
Supôs que a casa de teto baixo, que se erguia nas proximi-
dades fosse o lugar onde estariam preparando a terrível
cultura que deveria obrigar a Inglaterra a se pôr submissa, de
joelhos, em poder dos bandidos.
Evidentemente, tudo aquilo que Festini teria acreditado
necessário fazer para diminuir a monotonia de seus dias, fôra
feito.
Tinha à sua disposição uma grande quantidade de livros e
jornais e para o serviço de sua mesa, — soubera obter a
colaboração de uma excelente cozinheira italiana.
O único homem com quem falava era um sujeito de alta
estatura, que também viera na companhia de Festini, no dia
do rapto, junto ao promontório. Ele respondia-lhe as
perguntas com monossílabos, protestando sempre e
mostrando mau-humor ao ser interrogado.
Só havia chegado ao quarto, segundo imaginava, para se
certificar da segurança dos barrotes que ficavam do lado de
fora da janela. Marjorie sentia enorme ansiedade. Não se
atrevia a deixar que sua imaginação começasse a trabalhar.
Era cm Fiank que pensava, em Frank que certamente estaria
cheio de pesar. Durante a noite, chorava e rezava,
alternadamente, pedindo forças para resistir à situação em
que se encontrava.
Estava no terceiro dia de sua captura. Encontrava-se sentada,
junto à janela, com um livro na mão, quando o ruído da
fechadura, que se abria, fê-la levantar-se imediatamente.
Ouviu-se a voz de Festini, do lado de fora e pouco depois ele
apareceu no quarto, fechando a porta ao entrar.
Ambos ficaram entreolhando-se. Ela caminhou em seguida,
com suavidade, até ao centro da peça e foi colocar-se do
outro lado da mesa.
— Tudo bem ? — perguntou-lhe com- um sorriso de
surpresa.
— Espero que tenha tudo de que necessite.
Ela não respondeu logo.
— Desejo minha liberdade, — disse.
— Isso, — retorquiu, com uma inclinação de cabeça, —
sinto muito não poder conceder-lhe. É necessário, para meu
bem e minha segurança, que você permaneça aqui um
pouco mais. Mais adiante, espero poder convertê-la na
esposa de um homem dos mais ricos de toda a Europa.
— Isso não acontecerá jamais, — respondeu com firmeza.
— Prefiro ser a primeira vítima da Praga com que ameaça a
Inglaterra a suportar semelhante humilhação.
Ele pestanejou ao ouvir suas palavras.
— Não se trata de nenhuma humilhação, — esclareceu. — É
uma honra para qualquer mulher ser escolhida para esposa
de um Festini. Pelas minhas veias, corre o melhor sangue da
Itália.
Ela sentiu-se sobressaltada ante a inesperada vaidade do
homem.
Jamais o considerara, nem no melhor período de suas
relações, como algo mais que um bom e bem educado moço
da classe média. Que ele considerasse seu nascimento como
base suficiente para se acreditar superior a toda crítica, era o
que ela não podia compreender.
Olhou-o com curiosidade, a contragosto.
— Peço-lhe que concorde em ser minha esposa, — disse-lhe
Festini.
Reforçou as palavras:
— Deve perceber que, além de lhe fazer uma honra, estou
agindo com grande magnanimidade. Encontra-se sozinha
aqui, — disse, — completa e totalmente à minha mercê.
Está rodeada de homens e mulheres que não atreveriam a se
opor a nenhum ato meu, por bárbaro e monstruoso que
pudesse lhes parecer. Entendeu agora?
Ela compreendia perfeitamente bem.
Estaria em segurança, enquanto o fizesse acreditar que
estava disposta a se sujeitar à sua vontade. Precisava de
contemporizar.
Ele deve ter suspeitado o que lhe passava pela cabeça.
— Compreenda, — disse-lhe, — que não há escapatória
possível daqui, a não ser como minha esposa. Serei paciente.
Continuarei sendo, — acrescentou. — Amanhã virá um
sacerdote para nos casar, de acordo com o ritual da igreja,
que professo.
— Amanhã! — exclamou horrorizada.
— Amanhã, — afirmou ele, com ar de mofa. — Parece-lhe
muito cedo, por acaso? E, além disso, você não tem enxoval!
Ela passou por alto a observação.
— Esse é um assunto que pode ser arranjado ou deixado de
lado.
Não fez a menor tentativa de se aproximar para tocá-la.
— Posso sentar-me? — perguntou.
Assentiu com a cabeça e ele colocou a cadeira junto à mesa
e sentou-se.
— Creio que devo fazê-la participar de certas confidências
disse, com a maneira suave que sabia tão bem adotar, em
certas circunstâncias. — E preciso apressar as coisas. Seu
amigo (como é que se pronuncia seu nome... Mansingham?)
foi apanhado por uma rede de pescadores. Penso que foi
nadando para o mar largo e assim foi salvo, mas isso não
importa! Está vivo e tenho minhas razões para supor que o
homem falou o que não me convém.
Viu o brilho de esperança que se refletiu no rosto da jovem
e sorriu.
— O fato de que me possa identificar com este rapto, —
prosseguiu, — aborrece-me sumamente, mas,
afortunadamente, nosso plano encontra-se tão adiantado que
já não tenho necessidade de disfarçar nem dissimular minha
associação com a «Mão Vermelha». O único fato que me
aborrece um pouco, é que devo permanecer neste lugar
desagradável, por mais uns dias. Todo o trabalho que ainda
deve ser feito, meus agentes poderão fazer. Se não fosse sua
presença aqui, a situação seria impossível! Nem por todo o
ouro da terra aceitaria viver aqui sozinho, nas margens do
Tâmisa!
Seu sorriso atrevido atemorizou a jovem. Tinha um modo de
discutir os assuntos mais ultrajantes com um ar de
convencimento e seriedade. Era todo superficial, mas
também essa superficialidade tinha nele uma profundidade
maior que nos demais homens.
Bem sabia que era um homem de sangue frio e sem remorso
algum, incapaz de se deter ante qualquer coisa, desde que
lograsse seus propósitos. O verniz de educação cobria-o mais
intensamente, escondendo a maldade de sua alma,
impedindo que ela viesse constantemente à tona, o que o
distinguia de seus companheiros.
Mas, a sua crueldade estava latente e demonstrava-a.
— A propósito, — disse. — Outro dia vi Mr. Gallingford e
dei-lhe meus pêsames pelo seu desaparecimento.
— Pedaço de bruto! — exclamou furiosa. — Como se atreve
a zombar de mim.
— Agrada-me vê-la zangada! — disse-lhe com admiração
sincera. — Estou tentado a prosseguir, contando-lhe o
aspecto de- solado que tinha aquele homem.
Começou a rir, mas em seu gesto não havia nenhum sinal de
divertimento ou alegria.
— Um homem de cabeça absolutamente sem qualquer
compreensão! Se fosse um italiano, perceberia logo pelo.
meu rosto, pela mudança de meus olhos, cada vez que se
pronunciou seu nome, que era eu, — indicou-se a si mesmo,
— quem lhe roubara a presa. Mas, estes ingleses são tão
fleumáticos! Esquecem-se muito rapidamente. Não deve
preocupar-se muito com o pobre Frank — disse-lhe,
enquanto se levantava para se retirar. — Dentro de um ou
dois anos casar-se-á com alguma inglesa de posição, levando
a vida a caçar faisões e discutindo sobre sistema de irrigação.
Ela sentiu-se incapaz de lhe contestar.
Ele saiu do quarto e fechou a porta com chave.
Ela ficou com a cabeça entre os braços. Suas lágrimas eram
impotentes!
Festini encontrou o «Boi» no aposento de baixo, juntamente
com dois homens que haviam chegado do laboratório, que
íôra montado na coberta de madeira.
— E então? — perguntou, enquanto se sentava na cadeira, à
cabeceira da mesa. — Quais as novidades?
— Signor, — disse um dos homens, — tudo está pronto.
Obtivemos culturas perfeitas, ainda mais perfeitas do que as
que mandamos para o Instituto de Bacteriologia.
Festini meneou a cabeça em sinal de assentimento.
— Amanhã receberei a resposta do Governo. Pedi que
avisassem pelos jornais.
— E qual será a resposta? — perguntou o «Boi», com os olhos
fixos no rosto de Festini.
Festini encolheu os ombros.
— Ninguém poderá sabê-lo! — exclamou. — Creio que no
último instante, aceitarão as condições.
Um dos ajudantes, que estava de avental branco, era um
homem forte e de rosto pouco agradável.
Não tomou parte nas discussões sôbre os métodos a adotar
para a distribuição da Praga.
Festini havia feito preparativos cuidadosos e já estava pronta
a literatura descritiva, que se repartiria entre os membros da
«Mão Vermelha».
Era sincero em seu desejo de que os integrantes da
organização pudessem escapar às conseqüências de sua
própria vilania.
Uma vez terminada a discussão, o homem de aspecto pouco
agradável, moveu a cabeça e fitou Festini.
Achava-se sentado à sua direita, os cotovelos apoiados sobre
a mesa, as grandes mãos carnosas apertadas, fortemente.
— E que faremos com esta mulher, Signor Festini? —
perguntou.
O jovem fitou-o fixamente.
— Esta mulher? — repetiu com suavidade. — Não sei o que
quer dizer.
O homem levantou a cabeça, indicando a peça de cima.
Era da espécie de homens que são expressivos em suas
manifestações.
— A que está no andar superior, — disse.
Festini levantou-se vagarosamente da mesa.
— Compreenderá, Gregório, — respondeu-lhe num tom
muito suave, — que jamais poderá referir-se em tais termos
a uma dama. Na realidade, — disse-lhe com mais cuidado,
— jamais deverá referir-se a ela.
— Entre os irmãos da Fraternidade não pode haver segredos,
— murmurou o homem. — Nós todos desejamos saber quais
são os planos referentes a ela.
Sem dizer uma palavra, Festini deu um salto.
Seus dedos rápidos e potentes agarraram o outro pela
garganta. Com um movimento para um lado, forçou o
homem a abaixar a cabeça sobre a mesa.
Festini era um homem forte, apesar da fragilidade de seu
físico.
— Seu cachorro! — disse-lhe aproximando o rosto do outro.
— Por acaso, devo dar-lhe conta de tudo que faço?
O homem lutou para recuperar o equilíbrio, mas diante de
seus olhos viu brilhar a folha de um punhal.
Festini vacilou. Em seguida, afrouxou a pressão de suas mãos
e o homem endireitou-se.
— Lembre-se disto, — indicou o conde. — Recorde-se por
toda sua vida, Gregório. Algum dia essa recordação ser-lhe-á
útil!
O homem estava lívido, tremia.
— Sinto muito, Signor! — disse humildemente. — Não fiz de
propósito. Não pensei em ofender a V. Excia.
Com um sinal, Festini ordenou que ele se retirasse.
— E não se esqueça, — disse-lhe, — de que não permitirei
que nenhum homem se expresse com o menor sinal de
irreverência a respeito da dama que irá ser a Condessa
Festini. Esse é meu plano, se querem sabê-lo. Isso é bastante
e talvez já falei até demasiadamente. Dei-lhes o melhor de
minha experiência e devem fé e obediência. É tudo quanto
lhes peço.
Não se achava em disposição de espírito para tolerar nada
mais.
George Mansingham chegara à Inglaterra. Estava em terra
firme e por isso Tillizini já sabia de tudo quanto supusera
anteriormente. Londres era um lugar sem segurança para
Festini e ele se opunha a qualquer disfarce.
Devia ficar esperando a hora no lugar escolhido para seu
refúgio: o cumprimento de seus planos assim o exigia.
Permaneceu na casa somente o tempo necessário para vestir
o avental branco que usavam seus companheiros e passou ao
galpão de madeira. O «Boi» e os dois homens reuniram-se a
ele, na porta da cabana.
A única luz existente provinha de uma enorme clarabóia. A
casa e a coberta ou galpão tinham pertencido, noutros
tempos, a um estabelecimento de construções navais,
desaparecendo depois de uma bancarrota e estavam em
completo abandono. Convinham admiravelmente a seus
planos. Achavam-se bastante afastados da estrada principal e
ofereciam um refúgio cômodo e eficaz.
Tinha uma desculpa aceitável para justificar a presença de
seus homens.
A construção era de propriedade de uma pequena
companhia que se formara, algum tempo atrás, para a
fabricação de borracha sintética.
Existe alguma coisa sobre borracha sintética e seus
fabricantes que basta para afastar os curiosos.
O galpão dividia-se em duas partes. Na primeira
encontravam-se uma coleção de tubos de ensaios, retortas e
aparelhos científicos colocados sôbre uma comprida mesa.
A entrada para o segundo compartimento era feita por uma
porta pesada, presa com duas fechaduras.
O homem grande começou a abri-las. Antes de mover as
folhas, colocou no rosto a máscara antiséptica e prendeu-a
com um elástico, na gola de seu traje branco.
Os demais seguiram seu exemplo.
Os três pegaram umas luvas de borracha, que se viam numa
estante e colocaram-nas, em seguida. O «Boi» abriu a porta e
chegou-lhes ao nariz um perfume de essência muito suave.
No meio do compartimento central, via-se estreita mesa,
sobre a qual se achavam quatro grandes pratos de porcelana,
cobertos com campânulas de vidro.
Aparentemente, não eram senão estreitas travessas de vidro,
cobertas com uma capa gelatinosa, mas cada uma continha
elementos suficientes para semear a morte abundantemente.
Festini observou-os com curiosidade. Era quase inacreditável
que essas travessas tão inocentes de vidro pudessem ter uma
ação tão mortífera.
— Isso é tudo? — perguntou, como se. falasse consigo mes-
mo.
— Isso é tudo, Signor, — disse o «Boi».
Seu rosto enorme fez um trejeito significativo.
— Parece uma coisa muito simples, — afirmou com altivez.
— Poderia anular seus efeitos com um tapa de minha mão.
O homem de cara desagradável olhou-o de cima para baixo.
— Morreria quase imediatamente, — disse.
Era o químico do grupo. Um homem brilhante que havia
entrado para a Fraternidade da «Mão Vermelha» e
encontrado ali uma forma de se dedicar às suas nefastas
atividades.
Festini encaminhou-se para a porta. Esperou que o «Boi» a
fechasse com a chave e, em seguida, saiu do galpão retirando
a máscara.
O ar fresco chegou-lhe num odor tonificante. Parecia-lhe
que estivera provando a atmosfera da morte nessa pequena
seção do telheiro, que seguramente já estava saturado com a
Praga que muito breve iria ser espalhada.
Não fez nenhuma outra tentativa para ver a jovem. Estava
satisfeito com a recente entrevista.
Permaneceu em seu quarto, lendo à luz de uma lâmpada
poderosa, alguns comentários dos jornais sobre a «Mão
Vermelha», que seus agentes haviam conseguido obter.
Às dez horas da noite, chegaram mais duas pessoas.
Numa delas, Festini estava sumamente interessado. Era o
sacerdote que fora contratado para realizar a cerimônia do
casamento.
Os psicólogos tinham procurado interpretar o estado da
mente de Festini; analisar, por meio de alguma fórmula
conhecida, suas exatas proporções. Era um vilão
inteiramente? Estes gestos fantásticos de cavalheirismo, tão
inusitados como eram, recordando-se das circunstâncias em
que se realizaram, não eram indicações positivas de uma
natureza melhor?
Tillizini, numa análise meticulosa do caráter do homem,
havia atribuído a tais atos, como o do casamento, uma
simples evidência ou influência do costume.
A grande convivência de Festini com homens e mulheres,
de sua própria classe ensinara-o a manter o respeito habitual
por certas convenções sociais.
Era essa a opinião de Tillizini e possivelmente a mais
acertada de todas, porque Tillizini conhecia os homens é
especialmente Festini.
O sacerdote escolhido, foi trazido a tôda pressa da Itália e a
viagem tinha sido feita de dia e de noite.
Era conhecido e qualificado pela associação como homem
de «confiança». Era suspeito de cumplicidade em certos
delitos que tinham abalado a Itália, no ano anterior ao
processo.
Estivera junto com outros sessenta presos, em presença do
Tribunal, mas, graças à sua habilidade, conseguira escapar ao
castigo.
Festini cumprimentou-o cordialmente, com o grave respeito
de um verdadeiro filho da Igreja e quer demonstrar sua
piedade para com o superior espiritual e com essa espécie de
proteção que o intelecto superior adota instintivamente para
com o inferior.
Deu ordens para preparar o alojamento do sacerdote e
depois de breve conversação, ficou outra vez só.
Era quase meia-noite, quando Festini estendeu-se na cama
para descansar algumas horas.
Nas primeiras horas do dia, seus espiões levar-lhe-iam
notícias da resposta do Primeiro Ministro. Caiu num sono
intranqüilo, com pesadelos, coisa que muito poucas vezes
lhe acontecia.
Ouviu chamar suavemente na porta e levantou-se para abri-
la. O «Boi» estava esperando do lado de fora.
— Que aconteceu? — perguntou Festini.
— Acaba de chegar um dos irmãos, — disse o homem que
parecia evidentemente perturbado. — Veio de bicicleta, do
lugar em que estava vigiando a estrada e diz que alguns
soldados estão vindo do lado de Londres.
Festini teve um gesto de impaciência.
— Despertou-me para me dizer tal coisa? — perguntou com
irritação. — Não está há bastante tempo na Inglaterra, meu
amigo, para saber que os soldados nada têm com as tarefas da
Polícia? Aqui não é a Itália. Estamos na Inglaterra. Volte e
diga a seu espia que regresse a seu posto, que deve vigiar a
chegada de Tillizini e seus amigos e não os movimentos do
exército!
Regressou ao quarto e novamente deitou-se na cama,
cobrindo-se com um cobertor de pêlo de camelo. Virou de
um lado para outro, mas não conseguiu conciliar o sono.
Levantou-se depois de um instante e saiu.
Diante da porta, achava-se um homem de guarda.
— Diga a Catrin», — ordenou-lhe, — para me preparar um
pouco de chocolate.
— Sim, padrone.
Minutos mais tarde, a mulher levou-lhe uma taça fervendo,
deixando-a sobre a mesa e ele correspondeu sua gentileza
com' »ma breve palavra de agradecimento. Depois voltou-se,
de repente, para ela.
— Catrina, — perguntou-lhe, — a senhora está bem?
— Sim, padrone — ela respondeu. — Eu a vi há duas horas
mais ou menos, antes que ela fosse dormir.
Festini fez um movimento de assentimento.
— Veja-a de novo, agora, — disse-lhe. — Eu subirei com
você.
Tomando a lâmpada que se achava sobre o aparador, no
meio do corredor, a mulher caminhou na frente e começou
a subir, lentamente, as escadas, acompanhada de perto por
Festini.
Ele esperou no corredor, enquanto a mulher tirava a chave e
entrava.
Ouviu-se imediatamente uma exclamação.
— Padrone! — gritou a mulher ansiosamente, — Padrone!
Ele atirou-se para dentro do quarto.
A cama, que ficava num canto do aposento, estava vazia. A
janela estava aberta e faltavam três barrotes.
Marjorie Meagh conseguira fugir!

CAPÍTULO XVI
TILLIZINI DEPÕE PERANTE O PARLAMENTO

Apesar de já passar de meia-noite, as ruas de Londres esta-
vam cheias de gente. O comércio estava aberto, as luzes
brilhavam por toda parte, até em lugares que em outras
ocasiões ficavam costumeiramente às escuras.
Os serviços de ônibus e automóveis que levam o londrino de
casa e para a casa continuavam funcionando ainda. As
edições especiais dos jornais da noite estavam sendo
vendidas nas ruas e nos arredores da Câmara dos Comuns,
aonde a multidão era inusitada e os compradores disputavam
a posse dos exemplares.
Entre Whitehall e Victoria Street aglomeravam-se perto de
trinta mil pessoas e a Polícia não tinha dificuldades para
controlar a multidão, porque o trânsito de veículos que ia até
à Câmara era constante.
O caráter da multidão era interessante. Não se tratava de
massa de espectadores curiosos ou simplesmente ociosos,
atraídos pela possibilidade de alguma excitação sensacional.
Eram pessoas elegantes da classe média londrina, de chapéu
copado, bons agasalhos, óculos, que esperavam
impacientemente pelas notícias que significariam a vida ou a
morte de todos.
Porque, pela primeira vez, em toda sua história os membros
da Câmara dos Comuns achavam-se reunidos em sessão
secreta.
Essa noite, pelas onze horas, as galerias haviam sido
evacuadas, por ordem do Líder e os estranhos haviam sido
excluídos não só dos corredores, como também de todas as
dependências da casa. O Parlamento resolvera converter-se
em Júri Nacional.
Cinco minutos depois das doze horas, viu-se chegar do lado
de Whitehall um grande automóvel, coberto de pó. Levava
três luzes sobre o radiador, dispostas em forma de triângulo.
O veículo passou sem dificuldade.
Atravessou Bridge Street e seguiu por Palace Yard. Perto da
entrada do edifício, havia uma guarda policial, mas os
agentes deram imediatamente passagem para que o homem
de alta estatura, que era passageiro, descesse comodamente
do carro. Dois homens esperavam o recém-chegado, que
vestia uma capa impermeável, cinza, de viagem. Eram eles:
Hilary George, Membro do Parlamento e o Inspetor Crocks.
Os três penetraram na Câmara e caminharam até uma sala de
reuniões que havia sido preparada para eles.
— E então? — perguntou Crocks.
Seu rosto estava mais pálido que de costume e falava com a
irritação peculiar do homem que está sofrendo uma forte
tensão nervosa.
Tillizini tirou o abrigo, colocou sobre uma poltrona e
aproximou-se do fogo. Permaneceu um momento
esquentando as mãos nas brasas e em seguida falou.
— Localizei-os finalmente de modo definitivo!
— Graças a Deus! — exclamou Crocks.
— Não tem qualquer dúvida? — perguntou Hilary.
Tillizini moveu negativamente a cabeça.
Tirou do bolso interior do paletó uma caderneta de
apontamentos, abriu-a e retirou três pedacinhos de papel.
Eram avisos recortados da página de um diário da semana
anterior.
— Não sei se vocês chegaram a ver isto? — perguntou.
Os outros inclinaram-se sobre a mesa e puseram-se a ler os
anúncios.
— Não possa cOmpreendê-lo, — falou Hilary. — É um
anúncio oferecendo bons preços por pombos. — Examinou
o outro.
— Este diz a mesma coisa, — acrescentou.
— São todos iguais, — afirmou tranqüilamente Tillizini. —
Perceberam que pedem pombos velhos?
Hilary assentiu com um movimento de cabeça.
— O endereço é um determinado sítio de Londres. O
homem que publicou os anúncios recebeu milhares de
respostas e também efetuou muitíssimas compras. Durante a
semana anterior, chegaram-lhe cestas cheias de pombos. Os
despachos vinham pelas estações terminais da cidade. Os
animais foram recolhidos por agentes da «Mão Vermelha» e
enviados, em seguida, a Festini.
— Mas, para quê? — perguntou Crocks, sem compreender.
— Não creio que o homem vá começar, agora, a praticar o
tiro aos pombos!
Tillizini riu. Voltara para junto do togo e suas mãos tocavam
as chamas.
— Se me acreditam, — manifestou, — eu de há muito já
estava esperando semelhante anúncio. — Endireitou-se um
pouco, ficando de costas para o fogo, com as mãos para trás.
Em seguida, dirigiu-se aos interlocutores.
— Como é que a «Mão Vermelha» iria espalhar o gérmen
com as sementes da Praga? — perguntou. — Chegaram a
pensar alguma vez no método que seria empregado? Como
poderiam, sem perigo para si mesmos, espalhar os germens,
com as sementes da Peste Negra?
— Deus nos acuda! — disse Hilary, porque começava a
compreender, agora, em que é que os pombos seriam
utilizados.
— Amanhã, pela manhã, — prosseguiu Tillizini, — se a
resposta do Primeiro Ministro fôr desfavorável, essa gente
libertará êsses milhares de pombos e eles serão deixados em
liberdade, no meio de grande quantidade de bactérias, em
cultura, capazes de espalhar a morte em qualquer localidade
onde os pombos voarem, levando consigo os germens da
Praga. Como se trata de animais velhos, voarão, sem dúvida,
em direção às casas aonde foram criados. O método é muito
engenhoso. Poderiam fazer a mesma com pelo correio, mas
isso significaria expor-se a correr muitos riscos. O método
atual é o que mais conveniente pareceu a Festini. Prendi esta
tarde o homem que estava procurando os pombos velhos.
Não resta dúvida, pertence à quadrilha da «Mão Vermelha»,
ainda que tenha protestado ante semelhante imputação.
— Que devemos fazer? — perguntou Hilary. — Será melhor
entrevistar-se imediatamente com o Primeiro Ministro.
Neste momento, abriu-se a porta e apareceu um jovem
muito apressado.
— O professor Tillizini encontra-se aqui? — perguntou,
Hilary indicou o detetive italiano.
— Quer entrar em seguida, professor? O Primeiro Ministro
deseja que o senhor compareça ao recinto da Câmara, para
explicar aos digníssimos membros da casa qual é a situação
real e exata.
Tillizini fez um movimento de aquiescência.
Seguiu o jovem, ao largo do amplo corredor, através do
vestíbulo, que atravessaram, passando por diversas salas.
De repente, Tillizini encontrou-se em pleno recinto da
Câmara. Deu-lhe a impressão de que ali se encontrava em
plena luz do dia.
De cada lado, viam-se os rostos dos assistentes, sentados
escalonadamente em suas cômodas cadeiras. No extremo
oposto, atrás de uma grande mesa, coberta por uma toalha
vermelha e dourada, estava sentado um homem de aspecto
imponente.
Perto da mesa, à sua esquerda, um homem pôs-se de pé e
falou com o Líder.
Tillizini não pôde ouvir as palavras que êle pronunciou. Um
momento depois, a pessoa que ocupava a cadeira de honra
convidou-o a se adiantar.
Tillizini conhecia alguma coisa sôbre o augusto caráter da
assembléia. Sabia, pois era de seu dever sabê-lo, com que
zêlo eram guardadas suas portas, contra o estranho curioso,
sem privilégios e experimentou uma sensação de irrealidade,
enquanto caminhava sobre o piso atapetado da sala e
atendendo ao convite do Primeiro Ministro, foi ocupar um
lugar no estrado da frente.
A Câmara estava em silêncio. Um débil murmúrio fora
ouvido, saudando-o, para ficar novamente em completo
silêncio.
Sua figura era estranha e curiosa em semelhante ambiente.
Trazia ainda na roupa o pó da longa viagem que acabara de
realizar.
Sentou-se na cômoda poltrona que lhe foi indicada, ao lado
do Primeiro Ministro e olhou curiosamente para a Mãe de
todos os Parlamentos!
Em meio a um silêncio de morte, o Primeiro Ministro levan-
tou-se e dirigiu-se ao Líder.
— Senhor Líder, — disse. Está dentro de minhas atribuições
pedir a V. Excia, que deixe a presidência esta noite com o
objetivo de que a Câmara, em funcionamento, se converta
num comitê. Em tais circunstâncias, contaremos com
poderes ilimitados e dessa forma, assiste-nos o direito de
chamar à nossa presença qualquer pessoa que nos possa
administrar soluções. Mas, o tempo é muito curto e o
assunto que nos reúne, muito sério. Por causa disso, pedi
que se permitisse ao professor Tillizini talar perante a
Câmara e deste próprio lugar.
O Primeiro Ministro tornou a sentar-se e o homem da
peruca branca, sentado na tribuna de honra, olhou para
Tillizini e fiz ura movimento de assentimento, novamente,
com a cabeça.
Durante um momento, o professor não entendeu seu
significado. Uma palavra do Primeiro Ministro, que estava a
seu lado, fê-lo levantar-se, um pouco embaraçado e com
certa intranqüilidade .
Falou com vacilação, detendo-se de vez em quando, para
procurar a palavra adequada. Agradeceu à Câmara a
indulgência e o privilégio extraordinário que significava sua
atitude para com ele.
— O Primeiro Ministro, — prosseguiu, — pediu-me para
fazer um breve resumo da história da «Mão Vermelha».
Acredita, e estou de acordo com sua opinião, que Vossas
Excelências devem ser informados, de modo mais completo,
a respeito de um fato monstruoso que a «Mão Vermelha»
está a ponto de levar a "cabo.
Por espaço de cinco minutos, relatou a história da
organização; do seu crescimento, desde a «Sociedade dos
Três Dedos da Sicília». Falou brevemente de seus crimes,
tanto no Continente, como nos Estados Unidos da América,
porque sabia de todos os detalhes na ponta da língua e ele
próprio havia estado encarregado de desvendar muitos
mistérios que rodearam a tarefa de tais homens.
— Não sei, — disse, — quais são os planos que o Parlamento
traçou para varrer do país esta fôrça tão temível, quanto
perigosa. Nenhum plano, — prosseguiu com toda ênfase,
acentuando cada uma de suas palavras com gestos
expressivos, — que possa ter traçado surtirá o menor efeito,
a menos que signifique uma espécie de exterminação física.
É possível que não me expresse com clareza, — apressou-se
a dizer, — ainda que esteja muito ao corrente do idioma
inglês.
Sublinhou este ponto, com um dedo sobre a palma da mão.
— Os bandidos estão prontos a destruir, senhores, tôdas as
suas famílias e todo o país. Creiam-me, não terão o menor
escrúpulo em fazê-lo! A Praga espalhar-se-á por toda a
Inglaterra, a menos que Vossas Excelências adotem as
medidas mais enérgicas, dentro de poucas horas. Não existe
nenhuma lei nos livros escritos que enquadre exatamente
em semelhante situação. Devem criar um novo método que
se refira ao crime e. Senhor Líder, qualquer que seja a forma
de castigo que o Conselho possa encontrar, nunca será tão
drástico, nem severo, para dar punição ao tipo de orga-
nização criminosa que a «Mão Vermelha» representa. Eu
posso, se assim o desejar, — disse, com um sorriso, —
prender cinqüenta membros dessa quadrilha esta noite. E,
talvez, com um pouco de sorte, poderia assassinar o próprio
Festini.
Falava com o tom de um homem convencido, como se o
assassinato fosse o pão de cada dia e notou-se por toda a
Câmara o sussurro de conversações.
— Talvez minhas palavras não agradem a Vossas Excelências,
— disse com um sorriso. — A mim, também, tampouco
agradam. Empreguei a palavra «crime», porque sinto que é a
única que está mais de acordo com os feitos, desde o próprio
ponto de vista de Vossas Excelências. Para mim, algumas
emoções são justificadas: diria também, necessárias. Deve-se
opor a inteligência à inteligência, o crime ao crime. A lei
não trata todos os crimes do mesmo modo. A ciência
produziu um novo tipo de criminoso. Os parlamentos do
mundo inteiro, entretanto, ainda não conseguiram
encontrar um novo tipo de castigo. O Código Criminal
requer severas revisões, tão severas quanto aquelas que
recebera e quando apagou de duas disposições os castigos
repugnantes e vingativos que eram aplicados aos antigos
ladrões.
Prosseguiu falando de suas últimas descobertas e relatou os
fatos que poderiam melhor esclarecer à Câmara. Jamais se
esquecia de suas suspeitas com respeito às multidões. A
Câmara dos Comuns, com sua quantidade tão diversa de
membros, era para ele uma multidão, multidão simpática,
intelectual, muito diferente das outras, talvez, houvesse
algum homem capaz de trair seus planos e revelá-los ao
inimigo.
— Compreendo, — disse, — que tenham uma lei em
estudo. Os termos dessa lei foram-me comunicados
resumidamente e posso dizer, Senhor Líder, como aos
demais membros dessa Câmara, que nesta medida, não vi
nenhuma cláusula que não fosse justificada pelas
circunstâncias. Dentro de sete dias. — disse solenemente,
este país será assolado pela mais mortífera de todas as
epidemias que já se viu na história moderna. Os horrores da
Grande Praga de Londres multiplicar-se-ão. Os portos de
todos os países do mundo serão fechados ao seu comércio e
o país se encontrará numa situação desesperadora! Devem
afrontar cara a cara, não somente a morte, na mais terrível
de suas formas, como também lutar contra a fome, a
anarquia, talvez a guerra civil. Sabendo de tudo isto,
contudo, posso dizer que faltariam às suas velhas tradições,
se pagassem um só centavo a essa infame confederação de
criminosos.
Sentou-se, em meio a um estrondo de aplausos. Em poucos
minutos, havia saído por trás da cadeira do Líder e
encontrava-se na saleta do Primeiro Ministro, que chegou
pouco depois.
— A lei será sancionada esta noite, — disse. — A Câmara
dos Lordes está em sessão também e espero obter o
«cumpra-se», amanhã pela manhã. Poderá descansar esta
noite, professor?
Tillizini moveu a cabeça.
—-Esta noite não posso descansar, — respondeu.
Olhou para o relógio. Os ponteiros marcavam doze horas e


um quarto. Um servente aproximou-se com uma bandeja de
café. Depois que se retirou, o Primeiro Ministro perguntou:
— Está satisfeito com as providências que tomamos?
Tillizini fez um sinal de assentimento.
— Sim, penso que o número será suficiente.
— Enviamos quatro brigadas de infantaria, que já seguiram
esta noite, — explicou o Ministro. — A cavalaria e a arti-
lharia vêm de Golchester.
— E os destróieres? — perguntou Tillizini.
— Saíram esta tarde de Chatham com ordens de avançar
lentamente pelo rio.
Tillizini voltou a concordar com a cabeça.
— Estará um esperando-o em Tilbury, — disse o Primeiro
Ministro. — Isto foi estabelecido de acordo com seu desejo.
Minutos depois, Tillizini voltava a ocupar o automóvel e,
envolto em seu abrigo, deixou-se cair no assento do carro.
O poderoso Mercedes começou a andar, através dos grandes
portões, passou entre a multidão agrupada em Whitehall,
chegou a Trafalgar Square e dobrando à direita, chegou ao
Strand.
Diminuiu a velocidade para dar passagem a um caminhão de
verduras, que surgira de uma rua que conduzia a Waterloo
Bridge. Ao fazê-lo, um homem avançou rapidamente pela
rua e trepou no estribo do automóvel.
Era de meia-idade, pobremente vestido e parecia Italiano,
porque foi nesse idioma que falou.
— Signor Tillizini?
— Sim, — respondeu Tillizini no mesmo idioma.
O homem não deu resposta. Sua mão levantou-se com a
velocidade de um raio. Mas, antes que seus dedos tivessem
apertado o gatilho, a poderosa mão do detetive agarrara o
revólver, perto do cabo.
Levantou-se um pouco e, com um movimento brusco,
atraiu o homem para junto de si e atirou-o violentamente
para dentro do veículo.
Tudo passou-se num segundo. Antes que os pedestres e
curiosos, que andavam pela rua, pudessem perceber o fato
que acabara de ocorrer, o homem já estava firmemente
preso no interior do carro. Seu revólver descansava no bolso
de Tillizini e o pé do detetive italiano, suavemente, oprimia
a garganta do atacante, mas sem pressão bastante sugestiva.
— Fique quieto, — ordenou Tillizini, agachando-se. — Le-
vante as mãos, assim!
O homem obedeceu com uma feia careta de dor. Algo frio e
duro apertou-se em seus pulsos.
Ao alcançar East Dock Road, Tillizini fez o carro parar junto
ao distrito policial e entregou o prisioneiro ao inspetor. O
agente policial sentia-se inclinado a desconfiar de um
cavalheiro, com aspecto de estrangeiro, que fazia entrega de
um preso algemado. Mas, uma palavra de Tillizini fê-lo
mudar imediatamente de opinião.
— Revistem-no, — disse Tillizini.
Abriu as algemas e os dois agentes, com a inimitável
habilidade nascida de sua experiência, efetuaram um rápido
e cuidadoso exame de tudo que o sujeito levava consigo.
Parecia achar-se bem provido de dinheiro, segundo Tillizini
pôde constatar. Não carregava papéis de espécie alguma. Um
lápis, duas estampilhas e várias fórmulas telegráficas, sem
endereço, constituíam todos os seus pertences.
Tillizini levou as fórmulas telegráficas ao escritório do
inspetor e examinou-as detidamente.
Não estavam escritas, nem tinham endereços, mas pôde
perceber impressões, que demonstraram que outro
telegrama havia sido escrito com lápis, em cima dessas
fórmulas.
Examinou mais de perto, mas não pôde identificar nenhuma
escrita. Retirou do bolso um lápis e com toda suavidade
começou a passá-lo pelo papel. Pouco a pouco, as palavras
foram se tornando visíveis.
O endereço era ininteligível. Evidentemente havia sido
escrito sobre uma substância mais dura.
Havia duas palavras em italiano e Tillizini não teve
dificuldade para decifrá-las.
— Lisa vai, — leu.
Olhou o homem.
— Quem é Lisa? — perguntou-lhe.
E antes que o prisioneiro pudesse mover a cabeça, alegando
ignorância, Tillizini soube e procurou abafar uma
exclamação que acudiu a seus lábios.
Vera havia saído ao encontro do amante de outros tempos
Essa era, na realidade, uma nova complicação.

CAPÍTULO XVII
MARJORIE ATRAVESSA O PÂNTANO

Marjorie tinha ido descansar mais ou menos às otize horas.
Abandonara a tentativa de entrincheirar a porta do quarto
contra qualquer intruso, porque seus esforços para reforçá-la
tinham sido impedidos pela mulher e, por outro lado, foram
tão inúteis que converteram a tentativa numa sensível perda
de tempo e de energias.
A casa possuía dois andares. Seu quarto achava-se primeiro,
na parte de trás. Haviam-no escolhido, em parte por ser o
mais confortável dos aposentos de que podiam dispor, como
também porque, dessa posição, ela não poderia ver nada ou
muito pouco dos movimentos dos membros da «Mão
Vermelha», que estavam ocupados no preparo das culturas.
A noite está extremamente clara. Depois de meia hora de
insônia levantou-se para fugir aos tumultuados pensamentos
que a assaltavam, seus passos levaram-na, instintivamente,
até ao único mirante, que o aposento oferecia.
Estendeu o braço até ao parapeito da velha janela e ticou
olhando as luzes que brilhavam do outro lado do rio.
Nenhum som perturbava a calma da noite. A casa estava
envolta em silêncio. De vez em quando, chegava a seus
ouvidos um ruído distante de uma sirene muito além, ao
longo do rio.
Ficou, assim, de pé, por muito tempo e, de repente, fora um
tremor, sentiu que a noite não estava de nenhum modo
quente.
Festini e a mulher haviam fornecido a ela um grande manto
negro. Retirou-o do cabide e envolveu-se nele.
Seus dedos estavam afanosamente abotoando-o, em volta do
pescoço, quando ouviu, sob a janela, do lado de fora, um
ruído metálico, que a fez sobressaltar-se.
Esperou um pouco mais e ouviu um chamado proferido em
voz muito baixa e abafada: inclinou-se para trás. Não sabia
por que, mais lhe pareceu que o desconhecido pretendia
adverti-la de alguma coisa.
No mesmo instante, um objeto caiu a seus pés.
Agachou-se e passou a mão pelo assoalho. Encontrou o que
procurava. Era um calhau, atado num fio muito fino de
cânhamo puxando-o para cima, conseguiu fazer chegar até
ela um rolo de corda mais grosso.
Agora entendia seu significado. Prosseguiu puxando
rapidamente. Na ponta, havia um objeto mais pesado e
pouco depois sentiu deslizar por suas mãos um rolo de corda
trançada. Era a última série.
Alguém, que se encontrava em baixo, sustinha, a corda com
relativa firmeza...
As mãos tremiam-lhe de excitação.
Prendeu uma das pontas da corda num dos batentes da
janela e sentiu que o homem, lá em baixo, experimentava a
resistência da corda. Pouco a pouco, começou a puxar,
enquanto ela contemplava os nós que a corda possuía, de
trecho em trecho.
Parecia que a corda era resistente. Viu-a estirar-se
novamente. Não ouviu nenhum ruído e, pouco depois, com
extrema rapidez, viu aparecer a cabeça descoberta de um
homem na borda da janela.
O desconhecido estendeu a mão e agarrou-se num barrote e
ficou descansando, bem na ponta da abertura.
— Não faça nenhum barulho! — disse-lhe baixinho.
O homem começou a trabalhar metodicamente. Os barrotes
achavam-se presos num travessão de madeira quadrada,
encravada na própria alvenaria.
Ela não podia ver o rosto do homem e o desconhecido
falava tão baixo que ela não pôde reconhecer-lhe a voz. Só
poderia ser Tillizini, entretanto e nem poderia supor de
outro modo. Ele não perdeu tempo e a luz da lanterna
elétrica mostrou como ele trabalhava com toda rapidez. Em
dez minutos, conseguira retirar dois barrotes do lugar.
Ao tirá-los, passou-os para as mãos da jovem, que os
colocou, com todo o cuidado, sem barulho, sobre o leito.
Ele penetrou cautelosamente no interior do quarto e
prendeu a corda num outro barrote, que restava na janela,
atou uma ponta na cintura dela e ajudou-a a sair pela
abertura.
— Fique aí em baixo, até que eu desça, ordenou.
Ela não precisou de esperar muito tempo. Enquanto seus
dedos ainda desatavam o nó da cintura, Tillizini descia
lentamente.
— Espere, — disse-lhe.
Desapareceu, em seguida, nas sombras, na direção do
telheiro.
Num dos lados da parede, viam-se empilhados numerosos
cistos. Tillizini caminhou com precaução e abriu, sem ruído,
a tampa de um por um.
Logo, começaria a amanhecer e, ao primeiro indício da luz
do dia, os pombos levantariam vôo, em busca de seus ninhos
e demarcando os lugares aonde foram criados. Os cestos
estavam cheios de pombos.
Em seguida, Tillizini voltou para junto da jovem.
— Caminhe de mansinho e siga-me sem fazer barulho —
murmurou.
Foram avançando agachados e quase de gatinhas, pelo
grande pátio aberto, cujos limites não conseguiam ver.
Chegaram pouco depois ao terreno pantanoso, que ficava
entre eles e a margem do rio.
Tillizini não deu sinal de abandonar as precauções e a jovem
que se sentia toda dolorida, pela violência dos movimentos,
com os quais não estava acostumada e que acabava de
realizar, perguntava a si mesma, porque continuavam a se
movimentar, assim, arrastando-se, quando todo perigo
parecia ter desaparecido.
O terreno sob seus pés era pantanoso: a cada passo, parecia
que seu tornozelo aprofundava mais e mais no lodo. Ela
respirava com dificuldade. As costas doíam-Ihe com uma
pontada importuna e intolerável. Sentiu que não poderia
avançar mais. Parecia-lhe que ela estivera caminhando,
durante horas, através de milhas e milhas de terra, posto
que, em verdade, não havia andado mais do que duzentas
jardas da casa, quando Tillizini parou e a advertiu.
— Fique aqui! — disse-lhe.
Ainda que o terreno fosse nivelado, existiam algumas
elevações e depressões, em intervalos irregulares e foi na
direção de uma dessas elevações que ele se dirigiu
resolutamente.
Pareceu a Marjorie ter visto a negra silhueta de um homem,
num pedaço seco de terreno, mas talvez fosse sua
imaginação que a fazia ver coisas nas trevas.
O coração, por outro lado, batera-lhe descompassadamente,
muitas vezes, durante a fuga do cativeiro, enquanto pensava
nos perigos a que estava exposta.
Mas o homem que se encontrava sentado sobre uma
elevação do terreno não era produto de sua imaginação.
Estava sentado como os alfaiates, com as pernas cruzadas,
um manto sobre os ombros e um revólver de cano largo
sobre os joelhos.
A «Mão Vermelha» havia estabelecido um sistema de
sentinelas, para evitar qualquer surpresa e de onde estava
sentado, Gregório poderia fiscalizar muito bem as
proximidades do rio. Achava-se sentado e alerta, os dedos
no gatilho da arma. E tudo isso, Tillizini percebeu
imediatamente. Sabia que qualquer movimento, qualquer ato
de violência, a menos que fosse inesperado e mortal,
serviria, apenas, para dar o alarme. O único meio possível
era o direto e sem mais delongas. Endireitou-se e avançou
diretamente para a sentinela. Gregório ouviu-o e pôs-se de
pé. — Quem vem lá? — perguntou suavemente.
— É um irmão, — respondeu Tillizini em Italiano. O outro
resmungou alguma coisa.
— Alguma coisa esta atrapalhada? — perguntou Gregório,
Olhando através das sombras para ver se conseguia distinguir
melhor o homem que se aproximava.
A resposta de Tillizini foi um bocejo pronunciado e
prodigiosamente simulado, como de uma pessoa que tivesse
sido despertada recentemente de profundo sono e sentia-se
renitente a obedecer ao chamado que era feito.
O bocejo prolongou-se por quase uma dúzia de passos que o
separavam da sentinela.
Gregório não desconfiou de coisa alguma. Seu dedo,
mecanicamente, afrouxou a pressão que exercia sobre o
gatilho da arma e o braço caiu-lhe frouxamente ao longo do
corpo.
— Que... ? — começou a dizer a sentinela.
Então, como se fosse uma catapulta, o punho de Tillizini
caiu com toda força no rosto do italiano. Um segundo
depois, tinha-o agarrado pela garganta. Com a mão esquerda,
apoderou-se do revólver que a sentinela tinha em suas mãos
e arrancou-o com um golpe violento. Os dois homens
caíram por terra.
O grito da sentinela, pedindo ajuda ficou abafado em sua
garganta.
Marjorie, que se encontrava a uma dezena de passos,
ajoelhada sobre o chão lamacento, ouviu o ruído da luta e
também um grito abafado e, em seguida, reinou novamente
o silêncio.
Instantes depois, Tillizini encontrava-se a seu lado.
— Pode levantar-se, — disse-lhe, — já não existe mais
necessidade de nos ocultar.
Deu-lhe o braço, prestando-lhe, assim, ajuda pelo resto do
caminho.
Ao chegar à beira da água, achou a canoa canadense que o
trouxera pelo rio e ajudou Marjorie a subir na embarcação.
Seguiu-a imediatamente e apoderando-se dos remos,
começou a remar, vigorosamente, até chegar na metade do
rio.

CAPÍTULO XVIII
A MULHER

Festini ficou de boca aberta junto à janela. Viu a corda, que
pendia, balançando, atada num barrote e percebeu
imediatamente o perigo, de sua situação.
A jovem havia sido resgatada com o auxílio vindo do exte-
rior. Viu os barrotes abandonados sobre a cama e o rolo de
corda atado a um cabo mais fino. Tudo isso revelou-lhe a
própria história da fuga.
Com um juramento de raiva saiu do aposento.
Num instante, todos os moradores da casa já se encontravam
de pé.
Nos aposentos inferiores, dormia uma dúzia de homens de
confiança da «Mão Vermelha». Outros doze vigiavam os
caminhos.
— Não podem ainda estar muito longe, — disse Festini. —
Por suas próprias vidas, tratem de lhes dar caça!
Ele próprio seguiu com um homem, em direção ao rio,
certamente o caminho mais provável da fuga.
Conhecia cada um dos postos que seus vigias ocupavam e,
meio andando, meio correndo, chegou ao lugar que tocava a
Gregório, que era o homem de mais confiança de todos
quanto se encarregaram dos postos de vigia.
Atingiu o pé da pequena elevação e chamou em voz baixa.
Gregório não deu nenhuma resposta.
Festini subiu a pequena ladeira. Iluminou o caminho e os
arredores com sua lanterna e viu o corpo da sentinela ali
caído.
— Virem-no, — disse com calma.
Olhou para baixo e observou o rosto do homem morto e
uma sensação de temor pareceu correr-lhe por todo o corpo.
Sem pronunciar uma só palavra, deu meia volta e começou a
caminhar lentamente, pelo trilho de volta à casa, A cada
passo que dava, murmurava: Tillizini! Tillizini! Tillizini!
Isso era o fim, bem o sabia. Sua mente estava menos
ocupada como os pensamentos de sua fuga, do que com a
quantidade de projetos para torná-la memorável!
O Primeiro Ministro negara a petição.
Não era necessário esperar a chegada do mensageiro para lhe
dar a notícia.
Tillizini havia localizado o laboratório: a conclusão era
evidente. De que modo conseguira realizar a façanha. Festini
não o poderia adivinhar, mas o último trunfo da «Mão
Vermelha» ainda não fora jogado. Ele dispunha ainda dos
germens da terrível Praga. Eles, ali mesmo, poderiam ser as
primeiras vítimas e deixar atrás deles os rastos de uma
herança pavorosa para o resto da humanidade.
Admirou-se de não ter sido, logo, atacado pelo professor.
Seguramente, na hora precisa, teria ele sentido pena? Festini
abandonou a hipótese com um sorriso. Ele conhecia muito
bem a têmpera de que era feito o antropologista, para
imaginar que ele pudesse deixar se dominar pela piedade ou
por qualquer outro sentimento de compaixão.
Foi, então, que se lembrou da jovem. A presença dela
explicava tudo. O primeiro cuidado de Tillizini fôra conduzi-
la para um lugar seguro. E por isso não tivera tempo de mais
nada.
Ordenou que a guarda se postasse mais perto dela. Penetrou
em seu aposento, revistou os bolsos e retirou as cartas que
desejava destruir, a fim de que não caíssem nas mãos do
inimigo. Queimou-as, sentou-se à mesa e começou a
escrever. Estava ainda na metade de sua tarefa, quando
surgiu o «Boi».
— Nossos homens encontraram uma mulher, — avisou.
— Uma mulher! — Festini levantou-se com um pulo e seus
olhos brilhavam.
— Não se trata de sua dama, Signor — disse o homem e o
coração do outro sofreu um abalo completo.
— Onde a encontraram ? Que estava fazendo?
— Andava procurando o caminho para esta casa, — disse o
«Boi».
— Tragam-na aqui!
Em poucos minutos, o homem voltou à peça, introduzindo a
mulher.
Festini, que ainda trazia em suas roupas os vestígios da
umidade do pântano, tinha ido postar-se do outro lado da
mesa.
A pequena lâmpada elétrica era a única iluminação do
quarto. A mulher quê estava parada no umbral da porta
percebeu imediatamente a pobreza da casa e caminhou,
lentamente, até Festini, com os olhos fixos em seu rosto.
— Vera! — murmurou e ficou perplexo.
Ela fez um movimento de concordância com a cabeça e
adiantou-se mais.
Observou que o aposento era mal mobilhado. O fogo quase
apagara na esquecida lareira. O forro de papel das paredes
estava estragado e roto em muitos lugares. Havia uma
atmosfera de ruína e decadência no quarto.
— Mande sair o homem, — disse-lhe.
A um sinal de Festini, o homenzarrão retirou-se, fechando a
porta.
— Para que veio? Como conseguiu chegar até aqui? Como
sabia que me encontrava neste lugar?
Foram essas as suas perguntas, cheias de ansiedade.
Permaneceu calada e começou a tirar o casaco que vestia,
com toda a deliberação. — Vim, — disse finalmente, — para
estar a seu lado, no grande momento, no fim! As
sobrancelhas dele contraíram-se.
— Que quer dizer? — perguntou-lhe.
— Você foi derrotado, Festini! Ontem, à noite, pude
descobrir. Sir Ralph recebeu informações confidenciais do
Governo, ordenando-lhe que se apresente para assistir ao
fim. — Ao fim? — repetiu ele. — Não entendo. Quando
deverá haver o fim?
— Hoje, — respondeu com firmeza.
— Mas, você... você, — perguntou-lhe, — por que veio...?
Ela não falou, logo. Seus olhos continavam fixos nos dele.
— Servi-o bem. — disse lentamente. — Deixe-me, então,
servi-lo até o fim.
— Mas, é que haverá muitos perigos para você!
— Já sei que haverá perigo, — respondeu tranqüilamente.
— Não posso permitir isso. Volte para junto dos seus amigos.
Deixe-me lutar sozinho pela minha causa.
Ela moveu negativamente a cabeça e sorriu.
— Nós combatemos juntos, Festini. Vim para ficar. Já
conhecem seu esconderijo.
— Tillizini? — perguntou sem ressentimentos.
Ela concordou com a cabeça.
— Viu seu automóvel na cidade e suspeitou de você. Ajustou
um pedaço de borracha numa das rodas. Essa adaptação
possuía um sinal particular; Soube-o, ontem, à noite. A
Polícia de todo o país esteve examinando as "estradas, para
encontrar os vestígios de seu carro. Tillizini fez o resto.
— Já compreendi. Que ira acontecer?
— O lugar está cercado, — disse-lhe.
— Cercado? — Ele não levantou a voz.
Aparentemente, não parecia alarmado. Fez a pergunta com
ansiedade e pareceu-lhe que o interesse dele em conhecer o
método empregado para capturá-lo era muito maior do que
o das possíveis conseqüências.
— Que quer dizer?
Ela conduziu-o até à janela.
Estavam no lado oposto do aposento em que Marjorie
estivera encerrada e dali dominava-se uma vista sem
interrupção do campo, num espaço de seis a sete milhas.
A neblina noturna já descera e a noite estava clara e tran-
qüila. As colinas baixas podiam ser distinguidas com clareza.
Ele viu as luzes que piscavam e que não lhe eram
desconhecidas. Pertenciam a uma cabana situada a duas
milhas de distância e pôde orientar-se até onde ficava a
estrada.
Ambos ficaram observando em silêncio. De repente, viram
uma nova luz. Era mais potente do que as outras. Brilhou
três vezes seguidas e logo desapareceu. Voltou a iluminar em
intervalos regulares e manteve-se, assim, como se fôsse uma
vela, cuja chama era movimentada pelo vento.
— Agora compreendo, — disse. — É um sinal luminoso. Viu
algum soldado?
Ela assentiu com um movimento de cabeça.
— Deste lado do campo, há perto de uma dúzia de
regimentos.
— De infantaria? — perguntou.
— Sim, — respondeu Vera, — e também soldados a cavalo.
Vi algumas metralhadoras e canhões, pelo lado de Witham.
— E pelo lado do rio? — interrompeu Festini.
— Creio que estão alguns torpedeiros. Ontem, à noite,
saíram de Chatham.
Ele dirigiu-se para o outro lado da casa, mas não pôde ver
nada. Voltou ao quarto e conseguindo um par de binóculos
de campanha, pôs-se a olhar o rio, perscrutando o
panorama, detidamente.
Conseguiu distinguir as chaminés baixas dos destróieres
ancorados no meio do rio, com as luzes apagadas, sem dar
sinal de vida.
Meneou lentamente a cabeça.
— Compreendo agora, — disse pela segunda vez. — Venha
comigo.
Colocou afetuosamente a mão no ombro de Vera e ela
estremeceu a seu contato.
Nada perguntara sobre Marjorie e nesse instante pensou
nela. Parece que ele adivinhou seu pensamento, sem que ela
o externasse.
— A jovem fugiu, — disse. — Tillizini libertou-a, há menos
de uma hora. Soltou também algumas pombas, — explicou
com um sorriso.
Contou-lhe, então, tudo o que ocorrera ali.
— Penso que é o melhor, — disse Vera gravemente.
Não tinha nenhum ressentimento no coração contra essa
traição, nem ele acreditou que fosse necessário explicar sua
conduta, nem expressar seu remorso.
Esses dois seres possuíam muita coisa em comum, como ele
sempre havia observado. Sabiam considerar as coisas debaixo
de um mesmo ponto de vista.
— Suponho, — falou, depois de se sentar junto "da mesa,
com a cabeça entre as mãos, — que não há nenhuma
possibilidade de rendição?
Ela meneou a cabeça.
— Não aceitarão nenhuma rendição, — afirmou. — Vêm
para exterminá-lo. Não se atrevem a prendê-lo, com medo
de disseminar a Praga.
— São muito prudentes, — disse, — mas, contudo, eu
creio...
Mordeu os lábios e ficou pensando.
— Talvez... — começou de novo, mas sacudiu os ombros.
Caminhou com passo firme até à porta e chamou pelo «Boi».
Em poucas palavras, explicou-lhe a verdadeira situação.
— Retire os rifles do depósito, — disse, — e forneça
munição aos homens. Iremos abrir fogo, mas afirmo-lhes
que não há nenhuma possibilidade de escapar. A última
coisa que poderemos fazer é deixar atrás de nós uma
pequena lembrança de nossas atividades e de nossa bona
fides!
Quando o homem saiu, voltou-se para Vera.
— Querida, — disse gentilmente, — você deve voltar.
— Vim para ficar, — disse ela. — Não desejo fim melhor do
que este.
Ele olhou-a pensativamente, ternamente. Então, tomou sua
face com as duas mãos e beijou-a longamente nos lábios.
— Seja feita sua vontade! — disse. — Você me dará coragem,
como nada me poderia dar, estando assim a meu lado!
Beijou-a de novo e sua cabeça repousou em seus ombros e
seus braços rodearam-lhe o pescoço.
Ela estava feliz. Nenhuma alegria que ela pudera ter na vida
fora tão grande como a presente.
Uma hora antes de romper o dia, Festini afastou-se da
mulher que tanto se arriscara por ele e saiu para fazer uma
inspeção.
Uma nova sentinela fora colocada no lugar de Gregório,
Festini estava regressando e atravessou o aposento que lhe
servia de dormitório comum e escritório para os da
quadrilha, quando um tilintar de campainha fê-lo parar, de
improviso. Voltou-se.
A casa possuía ligação telefônica e uma hora antes da che-
gada de TillizinI, ainda que ele não o soubesse, os fios
haviam sido desligados.
Adiantou-se para o aparelho e tomou o receptor.
Seria possível, por algum feliz acaso, que tivessem restau-
rado os fios e que ele pudesse comunicar-se com alguns
agentes da «Mão Vermelha», em Londres? O pensamento
não lhe havia ocorrido antes, mas, à primeira palavra que
ouviu, seus lábios entreabriram-se num sorriso irônico.
— É você, Festini? — perguntou a voz.
— Sim, — respondeu o conde, — creio que você é meu
amigo Tillizini, não?
— Sim, sou eu, — respondeu o outro com calma. — Não
tem nada para me dizer?
Festini abaixou a cabeça. Durante um grande momento ficou
em silêncio.
— Nada tenho para dizer, — afirmou. — Você ganhou e eu
perdi! Isso é tão evidente, que não precisa de explicação.
— Nada mais? — interrogou outra vez.
Festini acreditou perceber uma nota de amargura.
— Nada mais, — replicou firmemente. — Que poderia dizer-
lhe? A não ser que perco com bom coração. Depois de tudo,
tantas vezes deixei de lado meu credo, com respeito à vida e
à morte, que ainda agora, frente à crise suprema de minha
vida, não posso achar nenhum pensamento mais
reconfortante que o do credo dos outros.
Ouviu a voz de Tillizini que estalava numa gargalhada. Um
riso baixo, divertido, mas com certo tom de desespero.
— Como isto é próprio de você, Festini! — disse-lhe, —
como isto é próprio de você!
— Que mais? — perguntou-lhe o conde. — Não esperaria
que me arrependesse, nem oferecesse condições, não é?
Desprezar-me-ia, se assim o fizesse, tal como aconteceria
comigo, se me oferecesse um modo de fugir! Suponho, —
perguntou-lhe, — que está falando de algum lugar seguro,
não?
— Estou falando de um dos destróieres, — respondeu o
outro. — Interceptamos seu telefone.
— Que está cortado, — disse Festini friamente.
— Que está cortado, — repetiu o outro. — E Vera? —
perguntou Tillizini, de repente.
— Gostaria de não falar desse assunto, — disse Festini.
— Está com você?
— Sim, está aqui, — replicou Festini, depois de vacilar um
momento. — Em justiça para comigo mesmo, procurei
persuadi-la a voltar para junto dos seus. Poderia tirá-la daqui,
sem nenhuma dificuldade.
— E ela recusou-se?
— Sim, recusou-se, — afirmou Festini. — Penso que será
melhor assim.
Ele estava de pé, com um dos cotovelos apoiados contra a
parede. Quem não tivesse conhecimento das circunstâncias,
poderia ser levado a pensar que ele desenvolvia uma
conversação trivial e corrente, de pensamentos ordinários e
sem conseqüências de importância.
Houve um grande silêncio e foi Festini quem tornou a falar.
— Em toda sua filosofia, Tillizini, disse-lhe, — e admito que
possua um vasto e amplo conhecimento dos assuntos
humanos,
- Alguma vez, ocorreu-lhe pensar nessa coisa maravilhosa
que é a vida? Afaste do pensamento as paixões e loucuras de
uma vida e considere o essencial e a parte útil da existência.
Existe algo tão devotado, tão especial, tão puramente nobre?
E eu creio. — Tillizini ouviu-o rir, — eu creio que todos os
aborrecimentos e dificuldades da minha vida, todos, os
crimes, como você os chama, todos os meus afãs e
aventuras, valeram esta recompensa que tenho. Tenho aqui
o prêmio, provavelmente, muito mais valioso e belo que os
dez milhões de libras que havíamos pedido ao Governo. E a
propósito, suponho que iá o adotaram como cidadão,
acrescentou lentamente.
— Isso vale muito mais! — afirmou Tillizini.
— Isso vale tudo, — disse Festini e sua voz vibrou. — Sem
isto, a filosofia seria coisa fútil, a vida não valeria a pena!
Sobreveio uma nova e grande pausa.
— Não tem mais nada a me dizer? — perguntou Tillizini.
— Nada, — respondeu Festini. — Nada mais do que já disse.
Acaso, não é o bastante? — perguntou. — Que deseja,
Tillizini? Um arrependimento...? Que glutão você se tornou!
Um arrependimento lacrimoso? Que aceite e confesse meus
pecados e maldades? Que implore clemência? — Tornou a
rir. — Não acredito que tenha esperado isso de mim, não é.
verdade, meu amigo?
— Não sei exatamente o que esperava! Creio que isso é tudo,
-disse a voz de Tillizini.
— Então, dir-lhe-ei «au revoir»! — exclamou Festini.
— Adeus! — respondeu logo a voz do outro.
Houve um silêncio tão grande que Festini pensou que o
outro houvesse desligado o receptor.
Estava a ponto de desligar também, quando ouviu
novamente a voz de Tillizini.
— E «bom voyage»! — disse.
Festini sorriu e os receptores telefônicos soaram ao mesmo
tempo.

CAPÍTULO XIX
A EXECUÇÃO DA LEI

A aurora começava a espairar-se com um tom cinzento
sobre o Essex.
Sir Ralph Morte-Mannery, envolto em peles, dormitando
em seu automóvel, foi despertado com a chegada de alguém,
que trazia uma chícara de café.
Um jovem oficial, com a gola do casaco levantada até as
orelhas, tinha aberto a porta do carro e com um sorriso
oferecia- lhe a bebida.
— Temo que não seja muito, Sir Ralph, — disse, — mas é
tudo que lhe podemos oferecer.
— Está na hora? — perguntou Sir Ralph.
— Quase, — respondeu o outro.
Sir Ralph bebeu o café e, devolvendo a xícara ao homem
que a tomou, desceu do carro para a estrada.
A esquerda e à direita, viam-se tropas acampadas. Eram as
forças da infantaria, alinhadas em filas sucessivas aqui e ali.
Um pouco mais atrás, sobre uma lombada, os cavalos de uma
bateria de campanha estavam sendo presos às peças de
artilharia.
No centro do rio, os destróieres levantavam as âncoras e, a
Um cabo de distância um do outro, iam avançando
lentamente pelo rio.
No centro de uma planície verdejante, elevava-se uma casa.
Uma coberta de teto grande e baixo aparecia muito perto do
edifício. Não se notava sinal de vida, com exceção de uma
débil coluna, de fumaça, que subia de uma das chaminés da
rasa.
Dois oficiais a cavalo, chegaram a galope ao lugar onde es-
cava o cavalheiro. Um deles cumprimentou-o.
— Bom dia, Sir Ralph. Os juízes esperam-no. Desmontou do
animal e entregou o cavalo a um soldado que esperava. Os
dois homens começaram a andar ao largo do caminho.
Chegaram à fileira de soldados, que se achava mais próxima
da casa.
Uma grande mesa havia sido colocada no meio do caminho
e estava coberta com um pano cinza, rodeada de uma
coleção de cadeiras diferentes umas das outras, trazidas da
localidade mais próxima.
Um homem de chapéu copado e com abrigo de peles
caminhava de um lado para outro, quando Sir Ralph chegou.
Voltou-se e cumprimentou-o, tirando o chapéu.
— Sir Ralph Morte-Mannery, — disse formalmente, — estou
comissionado pelo Governo de Sua Majestade para entregar-
lhe uma cópia da Lei que foi aprovada, ontem, à noite, pela
Câmara dos Comuns e que recebeu a aprovação nas
primeiras horas desta manhã.
Entregou o documento a Sir Ralph, que o tomou, fazendo
uma ligeira inclinação de cabeça.
— O senhor mesmo encontrar-se-á especificado neste
documento como o Comissário, encarregado de dar
cumprimento às disposições desta Lei.
Sir Ralph abriu o envelope e extraiu folhas de papel escritas à
máquina.
Leu o preâmbulo. Era uma lei que fora posta em vigor, ante
o perigo que ameaçava a Inglaterra. Chegou na parte que
determinava os deveres do Comissário e pôs-se a ler o
parágrafo detidamente.
Logo, aproximou-se da mesa e quatro homens foram
instalar- se a seu lado, ficando dois à direita e dois à
esquerda.
Sir Ralph tirou o chapéu e sua voz foi um pouco estridente e
trêmula.
Frank Gallingford, que se achava parado à curta distância
com Tillizini, observava a cena extraordinária, com enorme
interesse. O sentido da tragédia desse momento parecia
oprimi-lo.
Ouviu a voz do cavalheiro, entrecortada, enquanto lia essa
curta sentença:
... Por tudo o que, eu Ralph Morte-Mannery, Comissário de
Sua Majestade, segundo o designa esta Lei, declaro que todas
as pessoas que nesse momento habitem ou se encontrem no
lugar conhecido como Falle's Wharf, no condado de Essex,
são pessoas sem nenhuma proteção da Lei e, portanto,
declaro que são culpadas de crime, que por esta Lei assim ficam
especificados e são merecedoras do castigo de morte, e eu,
em virtude do poder e autoridades que me foram conferidos,
imponho a todos eles, conjunta ou separadamente, a
sentença que a Lei ordena, que se faça fogo contra eles até
que morram e que seus corpos sejam logo queimados...
Sua voz vacilou, um pouco. Quando terminou a leitura os
demais presentes viram que seus lábios se moviam, como se
fizesse uma prece.
Então, da casa, partiu o primeiro desafio da «Mão
Vermelha»...
Ouviu-se uma descarga distante e Sir Ralph caiu de bruços
na mesa... Estava morto.
Festini tinha visto a cerimônia, de longe e fez logo a exata
posição de seu significado. Era um exímio atirador... A
batalha prosseguiu durante vinte e cinco minutos. A
infantaria avançava e, aproveitando-se das ondulações do
terreno, que pudessem oferecer amparo, começou a fazer
descargas cerradas, contra a casa e contra a coberta.
Três minutos depois de começado o ataque da infantaria,
entrou em ação a bateria do 73º de Artilharia de Campanha.
E simultaneamente os destróieres começaram a atirar tuas
granadas em cima da vivenda.
Mas, a «Mão Vermelha» morria lutando. Tiro sobre tiro
continuava partindo de seu interior. A cabana estava em
chamas... parte da casa havia voado, expondo à vista a nudez
de seu inferior.
Foi, então, que Frank pegou Tillizini pelo braço.
— Deus do céu! — disse. — Olhe!
No alto do teto, acabava de surgir duas figuras humanas: um
homem e uma mulher!
O homem olhava com toda calma a avalanche destruidora,
que avançava contra eles.
A mulher — Frank pôde vê-la com os binóculos de
campanha, tinha a mão colocada no ombro dele. Frank deu
um passo atrás: — É Vera! — murmurou.
Tillizini fez um sinal afirmativo com a cabeça.
Assim parece, — disse. — A mulher é mais alta do que eu
imaginava.
Foi esse o seu único comentário.
Lá estavam os dois, oferecendo um alvo para os atiradores,
mas, a presença da mulher fez desviar a mira dos fuzis dos
soldados. Continuaram lá, sem sofrer dano. Viram quando a
mão de Festini se levantou, num gesto de desafio. Em
seguida, viram-no vacilar e cair.
A mulher ajoelhou-se a seu lado e tomou-o nos braços,
prendendo-o com firmeza, junto do peito.
O que era fácil de ver para os homens da infantaria, ficava
oculto às pessoas de bordo.
De repente, diretamente acima de suas cabeças, viu-se
estalar uma granada e as duas figuras humanas, apertadas
uma nos braços da outra, perderam-se de vista, no momento
em que o teto voou pelos ares...
Frank voltou-se para olhar Tillizini. O rosto do italiano es-
tava mais branco que nunca e os seus olhos,
desmesuradamente abertos.
O inglês não podia falar. Passou o lenço pela fronte, coberta
de suor e tinha as mãos trêmulas.
— A Inglaterra deve-lhe algo, professor Tillizini, — disse
Frank, fitando com assombro seu companheiro silencioso.
Tillizini não deu nenhuma resposta.
Quando, um pouco mais tarde, cheio de cansaço e de
tristeza, apresentou-se diante do Primeiro Ministro e
recebeu as congratulações que o dignitário de Estado
entendeu que lhe eram devidas, sentiu-se mais inclinado a
julgar o papel decisivo que havia desempenhado em todo o
assunto.
— A detenção dessa quadrilha, — disse o Primeiro Ministro,
com entusiasmo, — e a destruição do homem mais perigoso
da Europa, são coisas que se devem unicamente ao senhor,
professor Tillizini. Soube frustrar cada um de seus golpes.
Quase poderia parecer, — disse com um sorriso, — que o
senhor estava dentro de sua mente e que sabia qual iria ser
seu próximo movimento.
— Isso é muito provável, — disse Tillizini. — Eu conhecia
muito bem a Festini e também os métodos que empregava.
Sabia muita coisa de sua infância, de seus pais e das
condições de sua vida.
Ficou pensativo, por um momento, como se estivesse
extraindo as recordações do fundo de sua mente.
— O ancião, Conde Festini, tinha dois filhos. O mais velho, a
quem odiava, por alguma razão ignorada, e o caçula, a quem
adorava e assim o pôs a perder! O Conde Festini foi sempre
um líder destas espécies de organizações. Dizia que
perseguia uma «vendetta», que datava de duzentos anos
atrás! O ancião conseguiu levá-la a cabo, ao destruir o último
dos fatores que se lhe opunham.
E concluiu tristemente:
— Não foi culpa do homem morto, hoje, — acrescentou, —
que as coisas se encaminhassem para esse destino e tivessem
tal desfecho. Foi educado e adestrado neste trabalho... foi
um elemento esperto e voluntarioso para a «Mão
Vermelha», até que por seu próprio gênio, chegou a se
converter em seu diretor.
— E que aconteceu ao Irmão mais velho? — perguntou o
Primeiro Ministro com curiosidade.
— Eu sou o irmão mais velho! — disse Tillizini e seu sorriso
tinha alguma coisa de malignidade.

 
 
Lançamento Arcanjo Micael
A Quarta Praga - Edgar Wallace
 
 
 
 
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
sinopse:
 
Outra tentativa de conquistar o mundo, desta vez, desencadeando
um vírus mortal que irá causar destruição imediata e fatal.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Este e-book representa uma contribuição do grupo Arcanjo Micael para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras
 

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