quarta-feira, 5 de outubro de 2011 By: Fred

<> livros-loureiro <> Lançamento Arcanjo Micael - O Abade Negro - Edgar Wallace

EDGAR WALLACE

O ABADE
NEGRO

Tradução de OCTÁVIO MENDES CAJADO


EDITORA CULTRIX
CAPÍTULO I

— Tomás!
— Pronto, Excelência.
Tomás, o lacaio, com um olhar de interesse concentrado no
rosto antipático, ficou esperando, enquanto o homem pálido
atrás da grande escrivaninha da biblioteca separava uma
pilhazinha de notas do Tesouro.
A caixa de aço judiada de que elas haviam sido tiradas estava
cheia, até a tampa, de notas de Banco e do Tesouro, de todas
as denominações, em tremenda confusão.
— Tomás! — voltou ele, em tom absorto.
— Sim, Excelência.
— Ponha este dinheiro naquele envelope... naquele não, seu
idiota, no cinzento. Está sobrescritado?
— Está, Excelência: "Herr Lubitz, Frankforterstrasse, 35,
Lípsia".
— Feche o envelope, leve a carta ao correio e mande-a
registrada. O Sr. Richard está no escritório dele?
— Não, Excelência, o Sr. Richard saiu há uma hora.
Harry Alford, 18º Conde de Chelford, suspirou. Ainda não
completara trinta anos. Sobre o rosto magro e pálido como o
dos homens votados aos estudos, o cabelo de um negro
luzidio lhe realçava a macilência da pele. A biblioteca em
que trabalhava era uma sala muito alta, com as paredes
divididas em duas partes iguais por uma galeria que percorria
três lados do aposento e à qual se chegava mediante uma
escada circular de ferro, num dos cantos do cômodo. Do
teto ao chão, cada polegada de espaço da parede estava
coberta de estantes de livros, com essa notável exceção.
Acima da grande lareira de pedra havia um retrato de corpo
inteiro de uma formosa mulher. Quem quer que tivesse
visto Sua Excelência não poderia enganar-se quanto à
relação que existia entre ele e a beldade de olhar desvairado.
Era sua mãe; possuía os mesmos traços delicados, o mesmo
cabelo preto, os mesmos olhos negros e insondáveis. Lady
Chelford havia sido a mais famosa debutante do seu tempo e
o seu trágico fim causara sensação no princípio da década de
1890. Não havia outro quadro na sala.
Os olhos dele buscaram o quadro. Ao ver de Harry Alford, a
Mansão de Fossaway, com toda a sua beleza e todo o seu
encanto, era um pífio escrínio para uma jóia daquelas.
Na sóbria libré preta, o cabelo empoado de branco, o lacaio
demorava-se.
— É só, Excelência?
— É só, — respondeu Sua Excelência, gravemente.
Entretanto, quando o homem se endereçou, sem fazer
barulho, à porta:
— Tomás! Ouvi casualmente umas coisas quando você
passou pela minha janela, hoje cedo, com Filling, o
cavalariço...
— Ele estava me falando a respeito do Abade Negro,
Excelência.
O rosto pálido crispou-se espasmodicamente. Até à luz do
dia, com o sol a jorrar pelas janelas coloridas e a traçar, no
soalho, arabescos escarlates, azuis e cor de ametista, a
simples menção do Abade Negro fez-lhe o coração pulsar
mais depressa.
— Qualquer empregado meu que discutir o Abade Negro
será imediatamente despedido. Faça-me o favor de dizer isso
aos seus colegas de serviço, Tomás. Um fantasma!
Misericórdia! Vocês enlouqueceram?
O rosto se acarminara, as veiazinhas das têmporas latejavam
e, sob o império da cólera, os olhos escuros pareciam refluir
para dentro da cabeça.
— Nem uma palavra! Entendeu? É mentira! Uma deslavada e
maldosa mentira dizer-se que Fossaway é assombrada! Uma
cretinice desses salafrários que andam por aí. E basta!
Despediu da sua presença, com um gesto, o homem que se
inclinara e voltou ao estudo do livro de letras pretas,
chegado da Alemanha naquela manhã.
Depois de fechar a porta da biblioteca, Tomás pôde dar-se ao
luxo de contrair os traços amarelados num sorriso que lhe
mostrava todos os dentes. Mas só por um segundo, pois,
logo a seguir, reassumiu a expressão de gravidade. Devia
haver quase mil libras na caixa de aço e Tomás já cumprira
três anos de cadeia por um décimo daquela soma. Nem o Sr.
Richard Alford, que sabia quase tudo, tivera conhecimento
desse fato interessante.
Tomás precisava escrever uma carta, pois mantinha lucrativa
correspondência com alguém que consagrava especial
interesse à Mansão de Fossaway mas, primeiro, teria de
retratar o essencial da conversação ao Sr. Glover, o
mordomo.
— Pouco me importa o que diz Sua Excelência (e também
não sei por que haveria ele de dizer isso a um lacaio e não a
mim); mas o fantasma existe e toda a gente já o viu! Eu não
andaria pela Alameda dos Olmos, de noite, sozinho, nem
por cinqüenta milhões de libras!
O imponente homem sacudiu a cabeça que os anos haviam
prateado.
— E Sua Excelência também acredita. Eu quisera que ele
estivesse casado, isso sim. Teria muito mais bom senso do
que temi. - E nós estaríamos livres do Sr. Chato Alford...
hein, Sr. Glover?
O mordomo fungou, desdenhoso.
— Há os que gostam dele, e há os que não gostam, —
sentenciou o oráculo. — Nunca trocamos uma palavra mais
ríspida, Tomás... Há alguém à porta.
Tomás precipitou-se para a entrada da sala e abriu a porta
enorme. Estava lá uma moça. Uma moça bonita, de beleza
atrevida, lábios vermelhos, olhos brilhantes, que vestia
roupas caras.
Tomás sorriu, reconhecendo-a.
— Bom dia, Srta. Wenner... que surpresa!
— Sua Excelência está, Tomás?
O lacaio franziu os lábios dubiamente.
— Estar, está, senhorita, mas receio não poder levá-la até ele.
Não me censure, por favor, são ordens do Sr. Alford.
— Do Sr. Alford! — sorriu ela com desprezo. — Você está
querendo dizer-me que fiz toda a viagem de Londres até
aqui e não posso ver Lorde Chelford?
Tomás, contudo, não tirou a mão da porta. Gostava da jovem
que, no tempo em que fora secretária de Sua Excelência,
nunca se dera ares de importância (o pecado imperdoável
para a sala dos criados), e sempre tivera um sorriso para o
mais humilde dos funcionários domésticos. Tê-la-ia deixado
entrar prazerosamente e sabia que Sua Excelência se teria
agradado de vê-la por ali, mas em algum lugar, pairava Dick
Alford, homem de poucas palavras, não só capaz de mostrar-
lhe a porta da rua, mas também de fazê-lo voar por ela com
um pontapé.
— Sinto muito, senhorita, muito mesmo; mas ordens são
ordens, como sabe.
— Entendo! — voltou ela, com um inclinação pressaga de
cabeça. — Ordens para que eu seja enxotada do que poderia
ter sido a porta da minha casa, Tomás.
Ele procurou expressar fisionomicamente toda a sua
simpatia, mas só conseguiu assumir um ar pateta. Ela sorriu-
lhe, apertou-lhe amavelmente a mão e afastou-se da entrada.
— A Srta. Wenner, — relatou Tomás, — aquela que Alford
despediu porque Sua Excelência começou a embeiçar-se por
ela...
Nesse momento soou a campainha da biblioteca e Tomás
deu- -se pressa em atender ao chamado.
— Quem era aquela dama... que vi pela janela?
— A Srta. Wenner, Excelência.
Uma sombra perpassou pelo rosto de Harry Alford.
— Você... não lhe pediu para entrar?
— Não, Excelência; o Sr. Alford deu ordens...
— Ah! Naturalmente... sim. Eu me havia esquecido. Talvez
seja melhor assim. Obrigado.
Ele abaixou o abajur verde sobre os olhos, pois até durante o
dia trabalhava com luz artificial, tamanha era a escuridão da
biblioteca, e tornou ao estudo do livro.
Entretanto, o seu espírito não estava todo concentrado no
trabalho. A certa altura levantou-se e pôs-se a andar de um
lado para outro da sala, as mãos enclavinhadas à sua frente, o
queixo encostado no peito. Deteve-se diante do retrato da
mãe, suspirou e voltou para a escrivaninha. Havia uma
notícia, que ele recortara de um jornal de Londres e que leu
pela terceira vez, agradavelmente surpreendido pela insólita
experiência de ver-se objeto de um comentário de jornal e,
não obstante, irritado pelo assunto em que se baseava a
notícia.
Chelfordbuiy, sossegada aldeia de Sussex, está empenhada
no emocionante esporte da caça aos fantasmas. Após um
período de inatividade, o Abade Negro de Fossaway voltou
a aparecer. Reza a lenda que, há setecentos anos, Hubert de
Redruth, Abade de Chelfordbuiy, foi assassinado por ordem
do segundo Conde de Chelford. A partir de então, de
tempos a tempos, o seu "fantasma" tem sido visto. No curso
dos últimos anos circularam pela região histórias
horripilantes de um Ser Invisível que gritava e uivava como
um demônio, porém o barulhento trasgo só foi realmente
visto na semana passada.
Mas a Mansão de Fossaway não tem apenas almas do outro
mundo. De acordo com a lenda, há quatrocentos anos, um
grande tesouro em ouro foi ali escondido em algum lugar;
tão bem escondido, na verdade, que nunca se descobriu,
embora sucessivos Condes de Chelford tivessem
diligenciado encontrar o ouro amealhado.
O atual Conde de Chelford, que, a propósito, está noivo da
Srta. Leslie Gine, única irmã do Sr. Artur Gine, o conhecido
advogado, informou ao nosso representante local que não
duvidava que a aparição do Abade Negro fosse uma
brincadeira, de muito mau gosto, de alguns jovens patuscos
da vizinhança.
Ele fez menção de rasgar o pedaço de papel mas, pensando
melhor, colocou-o debaixo de um peso de papéis.
Aquela referência às brincadeiras dos rapazes da aldeia era
tranqüilizante e poderia ser confortadora quando chegasse a
noite e ele necessitasse de coragem.
Pois Lorde Chelford acreditava no Abade Negro tão
piamente quanto proclamava o seu ceticismo.
A mão irrequieta aproximou-se do botão da campainha
sobre a mesa.
— O Sr. Richard já voltou?
— Ainda não, Excelência.
Visivelmente agastado, Lorde Chelford bateu na mesa com a
palma da mão.
— Onde, diabo, se mete ele todas as manhãs? — perguntou,
em tom irritado.
Muito sabiamente, Tomás fingiu não ter ouvido.

CAPÍTULO II

Dick Alford estava sentado num torniquete, no topo de um
morrinho, de onde avistava o distrito de Sussex numa
extensão de quinze milhas. Bastava-lhe virar a cabeça para
enxergar a herdade e os telhados e cúpulas verdes da Mansão
de Fossaway, com os seus vastos relvados e as suas sebes de
teixos aparados. Mas nem o trigal, nem os pastos, nem a
mansão, nem os jardins lhe interessavam naquele instante.
Pois tinha os olhos e a mente fitos na jovem que caminhava
a passos rápidos pelo caminho tortuoso que a traria, dali a
pouco, à sua presença.
— Espião! — saudou-o ela, em tom de censura.
Não era tão alta quanto a rapariga inglesa comum, mas a
esbeltez a fazia parecer mais alta, e a agilidade dos
movimentos supunha uma energia maior do que a sugerida
pelo corpo frágil. Delicadamente modelado, o rosto
patenteava o requinte sutil da sua classe. Mãos e pés
pequenos e belos, a cabeça bem posta, olhos cinzentos e
profundos, uma boca vermelha que sorria com facilidade,
Leslie Gine, ainda que vestisse farrapos teria sido,
indisfarçavelmente, uma formosa dama.
Lá estava ela, com o chapeuzinho de amazona meio de
través, o traje preto e bonito de montaria suavizado pela gola
de linho.
Do seu posto de observação em cima do torniquete, Dick
Alford tinha uma haste de capim entre os dentes brancos e
observava-a com ar de aprovação.
— Esteve cavalgando, Leslie?
— Estive cavalgando, — replicou ela gravemente. E ajuntou:
— um cavalo.
Ele circunvagou os olhos com expressão de inocência.
— E onde está o venturoso animal? — perguntou.
Ela examinou-o, desconfiada, mas nem um músculo do rosto
trigueiro e magro se mexeu.
— Apeei para apanhar umas flores do campo e o bandido
fugiu. Você o viu! — acusou ela.
— Vi qualquer coisa com jeito de cavalo correndo para
Willow House, — confessou ele. — Pensei que a tivesse
derrubado.
Ela inclinou a cabeça.
— Pois só por causa disso você pode ir procurá-lo... Ficarei
esperando aqui, — disse a jovem e, quando ele saltou do
torniquete com um gemido, prosseguiu: — Eu pretendia
mesmo pedi-lo a você. Assim que o vi, disse entre mim: "Lá
está um homem preguiçoso que precisa de exercício!" Afinal
de contas, as futuras cunhadas têm privilégios.
Ele estremeceu. E ela talvez notasse a sombra que lhe toldou
momentaneamente o rosto, pois estendeu a mão e reteve-o.
— Deixe, Dick. Um dos cavalariços saberá encontrá-lo. O
coisa ruim é tão esfomeado que, a esta hora, deve estar a
caminho da cocheira. Não, não me refiro ao cavalariço.
Sente-se, quero falar com você.
Num salto, encarapitou-se no torniquete que ele deixara
vago.
— Richard Alford, não me parece que você esteja satisfeito
com a perspectiva de ver-me senhora da Casa de Fossaway.
— Mansão, — corrigiu ele.
— Não fuja do assunto... Está ou não está?
— Não vejo a hora, — volveu o rapaz, em tom displicente.
— Verdade?
Ele tirou do bolso da calça uma cigarreira amolgada de prata,
escolheu um cigarro, e acendeu-o.
— Minha querida Leslie... — principiou, mas ela sacudiu a
cabeça. Agora estava séria.
— Você acha que eu... interferirei nas coisas? Na
administração da propriedade... Sei que o pobre Harry seria
incapaz de administrar uma chacrinha... na... bem, em todas
as espécies de coisas...? Pois acho que você se engana.
Ele soprou três anéis de fumaça antes de responder.
— Eu gostaria que você administrasse a propriedade, —
replicou tranqüilamente. — Seria uma bênção para mim.
Não, não é isso o que me preocupa. Com o dinheiro que
você tem... perdoe-me a brutalidade... a propriedade pouco
importa. Um administrador seria capaz de fazê-lo tão bem
quanto qualquer filho segundo!

CAPÍTULO III

Ele falara sem azedume, sem qualquer vestígio de
autocomiseração, e ela o ouvira em silêncio. Richard era
filho de um segundo casamento, e isso piorara as coisas para
ele. Quando o velho Lorde Chelford seguira ao túmulo a
mãe de Dick, fora seu o quinhão do filho segundo. A
propriedade, o título, o próprio carro que usara como seu,
passaram às mãos de seu irmão. Uma propriedade minúscula
em Hertfordshire, que rendia duzentas libras por ano,
algumas jóias antigas de sua mãe e mil libras em dinheiro era
quanto cabia ao filho segundo. E as mil libras nunca tinham
sido pagas. Misteriosamente, haviam sumido.
O Sr. Artur Gine se encarregara do inventário. Em quaisquer
circunstâncias, Dick se sentia melhor quando não se
lembrava das mil libras. Entretanto, fosse por que fosse,
estava pensando nelas naquele momento e, como se lhe
tivesse adivinhado vagamente os pensamentos e lhe
associasse a reserva com a lembrança de seu irmão, Leslie
perguntou:
— Você não gosta de Artur, gosta?
— Por que pergunta? — volveu ele, genuinamente surpreso.
Nunca deixara transparecer a sua aversão ao casquilho
advogado.
— Eu sei, — volveu ela, inclinando a cabeça. — Ele, às
vezes, me exaspera e não me admiraria que um homem
como você o odiasse.
Dick sorriu.
— Seja como for, Harry não o odeia, e é ele a pessoa que
importa.
Leslie o fitou, balançando, distraída, o chicotinho.
— Não consigo capacitar-me de que estou prestes a casar...
foi uma proposta tão engraçada, Dick, tão formal, tão...
irreal! Creio que, se tivesse sido feita de qualquer outra
maneira...
E abanou a cabeça.
Dick perguntou a si mesmo, com tal ou qual melancolia,
como teria seu irmão feito a proposta. Harry era meio
bisonho no jogo do amor; tivera, de uma feita, uma bonita
secretária e, numa tarde cálida de junho, Dick interrompera
o que equivalia a uma proposta de casamento da arrojada
jovem. O desconcertado Harry teria anuído às suas sugestões
matrimoniais, não fora o casual aparecimento de Dick... E a
calculista Srta. Wenner deixara a Mansão de Fossaway um
tanto ou quanto à pressa. O episódio voltou-lhe à mente.
— Então, se ele lhe tivesse proposto casamento da maneira
convencional, você não o teria aceitado?
— Não sei, — retrucou a jovem, em tom de dúvida. — Mas
foi extravagante e... esquisito. Gosto imensamente de Harry.
E muitas vezes me tenho perguntado se ele gostaria de mim
se. — Ela não concluiu a sentença.
— Se você não fosse tão horrivelmente rica? — voltou Dick
com um sorriso. — A sua pergunta não é muito lisonjeira
para ele.
A moça estendeu os braços e o rapaz ajudou-a a descer, se
bem que isso não parecesse necessário, pois era, por via de
regra, uma criaturinha muito ágil.
— Dick, — perguntou ela quando ele transpôs o torniquete e
ambos se encaminharam, lado a lado, para a estrada, — o
que é que eu devo fazer?
— A respeito do quê?
— A respeito de Harry e de tudo o mais.
Ele não encontrou resposta para isso.
— Artur deseja muito que eu me case, — continuou ela. —
E, francamente, não sou avessa a esse casamento... ou, pelo
menos, não creio que o seja. Julgo que a maioria das moças
na minha posição tem os seus casamentos arrumados como
se arrumou o meu e, até há pouco tempo, eu aceitava a idéia
como parte do inevitável.
— E por que mudou de idéia agora? — indagou ele de
supetão, vendo o rubor inundar o rosto dela.
— Não sei.
A resposta foi muito breve, quase rude.
E ela, então, viu a expressão nos olhos dele — o desejo
ardente, infinito, e a total desesperança. E, num lampejo,
veio-lhe o conhecimento de si mesma.
Por algum motivo que não conseguiu entender, sentiu-se
repentinamente sem fôlego, e quase encontrou dificuldade
para falar. Teve a impressão de que as batidas do seu coração
deviam ser audíveis e lutou, desesperadamente, para
recobrar o equilíbrio. Vívida, diante dos olhos, surgiu-lhe a
imagem do noivo, o jovem magro e irritadiço — o fraco que
possuía tudo o de que precisa o homem, exceto a virilidade.
Uma criatura digna de dó, torturada pelos nervos, ora
súplice, ora ameaçadora — que não se dava conta da
impressão que causava à mulher destinada a partilhar da sua
vida. E dessa imagem mental, os olhos dela passaram, meca-
nicamente, para o homem ao seu lado; calmo, sereno,
radiante de força e de confiança em si.
Dez minutos depois, ela regressava a Willow House,
pelejando, em seu coração, com um problema que lhe
parecia praticamente insolúvel.
Guiando devagar para casa, Dick Alford divisou a figura alta
e mapa do irmão, à espera, na extremidade da alameda dos
olmos.
O vento lhe agitava as abas da longa sobrecasaca; quando se ,
erguia em pé, encurvava-se um pouco e tinha o cacoete de
projetar a cabeça para a frente, o que lhe emprestava a
aparência de um grande pássaro desajeitado. Ao aproximar-
se, Dick percebeu que o rosto dele estava escuro de raiva.
- — Eu o incumbi de muitos encargos, Richard, mas
entenda que eu mesmo quero tratar dos meus casos de
amor!
O sangue afluiu ao rosto de Dick Alford, mas ele não deu
outra demonstração da sua mágoa nem da sua cólera.
— Não o admitirei... compreendeu? — A voz de Lorde
Chelford estridulava de fúria infantil. — Não quero que você
interfira nos meus assuntos particulares. Você já afastou uma
moça de mim, mas agora não me tomará Leslie!
— Mas eu não estou... — acudiu o irmão, com ímpeto.
— Está... está! Você não quer que eu me case! Não sou bobo,
Dick! Você é o segundo na lista dos herdeiros! Pois eu vou-
me casar com Leslie Gine... ponha isso na cabeça! Você não
desmanchará o nosso noivado.
— Mas por que é. que você está dizendo essas coisas horrí-
veis? — acudiu Dick. — Livrei-me de Wenner porque ela
não era a esposa para você...
— Você não queria que eu me casasse! Está à espera dos
meus sapatos, dos sapatos de um morto! — volveu o irmão
mais velho, quase a berrar. — A última coisa que você quer
ver no mundo é uma nova Condessa de Chelford. Você sabe
disso, você sabe disso!
Dick Alford não respondeu. Deus era testemunha de que
seu irmão falava a verdade. Seria para ele deplorável o dia
em que Harry Alford trouxesse uma esposa àquele casarão,
para compartir do medonho segredo que pairava, como uma
nuvem, sobre a Mansão de Fossaway.

CAPÍTULO IV

Os olhos azuis de Dick Alford examinaram o lacaio com um
sorriso de arrelia, enquanto empurrava para um lado a
dilapidada e velha máquina de escrever, reacendia o
cachimbo e esticava o corpo.
— O Abade Negro? Não me diga! Você o viu, Tomás?
— Não, senhor, eu não o vi. Mas o Sr. Cartwright, o ven-
deiro lá na aldeia de Chelford...
E fez uma descrição gráfica do horror, do assombro e da
confusão do Sr. Cartwright.
— Eles telefonaram lá do "Leão Vermelho" para perguntar se
Sua Excelência ouvira alguma coisa a respeito. — O próprio
Tomás, que não acreditava em nada a não ser em Tomás,
estremeceu. — É a primeira vez que ele foi visto depois de
muitos anos, segundo dizem todos, muito embora tenha sido
ouvido uivando e gemendo. Ninguém sabe quem pôs fogo
na residência do vigário quando se achava de férias, na
praia...
— Chega, Tomás. Quanto a Cartwright, ou estava bêbedo, —
atalhou Dick, jovialmente, — ou viu uma sombra.
Através da janela, olhou para o relvado, banhado pelos raios
alvacentos da lua cheia.
— A gente vê coisas ao luar que nunca existiram na terra
nem no mar. Suponho que Sua Excelência tenha dito que o
Abade Negro não deve ser discutido?
— Disse, sim, senhor.
— Então cale a boca! — ordenou Dick.
Mastigando o cachimbo, atravessou a sala e entrou na
biblioteca penumbrosa.
Lorde Chelford mexeu-se, constrangido, na poltrona.
Depois, estendendo a mão, Abriu uma caixa de ouro e dela
tirou um cigarro.
— O meu cachimbo contra os seus fedidos. Vale cem libras!
— exclamou Dick, com um sorriso prazenteiro. — Cigarros
ainda tolero, mas cigarros perfumados...
— Se não gosta deles, Dick, pode sair, — resmoneou, agas-
tado, Sua Excelência. E, logo, à sua maneira brusca: — Você
já viu esse recorte de jornal?
Tirou o pedaço de papel de sob o peso de cristal e Dick leu-o
por alto.
— Estamos ficando famosos, Harry, — disse ele, — mas não
há nada sobre mim, o que não é gentil.
— Não seja idiota. Como é que isso foi parar nos jornais?
— Como é que as coisas vão parar nos jornais? — perguntou
Dick, preguiçosamente. — A nossa assombração é quase tão
útil quanto um agente de publicidade.
Harry Chelford afastou-se com um gesto de profundo
cansaço, tocou com os dedos o manuscrito que estava ao
alcance de sua mão e olhou do irmão para a porta. Era um
gesto de despedida e Dick levantou-se.
— Você não acha que já trabalhou demais por esta noite? —
indagou, solícito. — Parece completamente exausto.
— Nunca me senti melhor em minha vida, — redarguiu o
outro, enfático.
Dick virou a cabeça para ler a página impressa que seu irmão
mais velho estivera copiando, e viu de pronto que o seu
esforço fora baldado; o livro era escrito em alemão antigo, e
as habilidades lingüísticas de Dick não iam além de um
relativo domínio do francês dos restaurantes. Lorde
Chelford depôs o livro com um suspiro e voltou a sentar-se
na poltrona almofadada.
— Você, com certeza, me considera um idiota que está
perdendo tempo com isto, — disse ele, erguendo a mão para
as estantes enfileiradas, — quando poderia estar-me
divertindo a valer com Leslie?
Dick assentiu com a cabeça.
— Acho que você poderia empregar-se mais
proveitosamente fora de casa. Com efeito, para um futuro
nubente, é o mais pacato que já conheci.
Havia superioridade no sorriso de Harry Chelford.
— Felizmente, Leslie já sabe que vai desposar um rato de
biblioteca e não um atleta, — disse ele. Ato contínuo,
erguendo-se, acercou-se da poltrona em que Dick se sentara
e deixou cair a mão sobre o ombro dele. — Que me diria
você se eu lhe contasse que estou a pique de descobrir o
verdadeiro tesouro de Chelford?
Dick sabia exatamente o que diria, mas replicou,
diplomaticamente:
— Eu diria que você está quase descobrindo a pedra filosofal,
— respondeu ele.
Mas o irmão falava sério. Pôs-se a andar de um lado para
outro da biblioteca, as mãos nas costas, o queixo no peito.
— Eu esperava que você dissesse uma coisa dessas. Aliás,
ficaria muito admirado se não o fizesse. Mas o tesouro de
Chelford existe, Dick, e, em algum lugar, com ele, está o
maior tesouro de todos!
O irmão ouvia, paciente. Já sabia de cor a história das mil
barras de ouro puro, cada uma das quais pesava trinta e cinco
libras. A lenda do tesouro de Chelford era inseparável dos
domínios de Chelford.
Harry caminhou a passos rápidos para a sua mesa, abriu uma
gaveta e dela retirou um livrinho de capa de pergaminho. As
páginas, amarelecidas pela idade, estavam cobertas de uma
escrita que desbotara e assumira um tom verde pálido.
— Ouça, — disse ele, e pôs-se a ler.
No décimo quinto dia do mês, que era o dia da festa de São
Tiago, chegou Sir Walter Hythe Kt. ds seu cruzeiro pelos
mares da Espanha, para cujo custeio levantei primeiro três
mil e oitocentas libras e oito mil libras de Bellitti o
Lombardo, e Sir Walter Hythe trouxe consigo, em dez
carroças, mil lingotes de ouro, pesando, cada um, trinta e
cinco libras, que ele tirara dos dois navios espanhóis
"Esperanza" e "Escurial", e os citados lingotes ele os colocará
em lugar seguro se o tempo estiver seco e a seca continuar,
se bem as chuvas estejam próximas, a julgar pelos presságios,
julgando prudente não dar parte do caso a Lorde Burleigh, à
conta de Sua Majestade a Rainha e da sua cupidez. Ele trouxe
também o frasco dé cristal da Água da Vida, que foi dado a
Don Cortes pelo sacerdote do povo asteca, uma gota da qual
deixada cair sobre a língua ressuscitará os próprios mortos,
segundo o jurou Fra Pedro de Sevilha. Isto esconderei com
sumo cuidado no sítio secreto em que o ouro será guardado.
A Sir Walter Hythe Kt. outorguei permissão para ficar com
cem barras do mesmo peso, o que ele fez, agradecendo-me
civilmente e zarpando de Chichester em seu navio o "Bom
Pai", navio esse que soçobrou nas costas de Kent, tendo
perecido no naufrágio Sir Walter Hythe, o comandante do
seu navio e toda a sua companhia. Tal foi o seu terrível
infortúnio. Quanto a mim, estando em algum perigo à conta
da parte que representei no promover o bem-estar da minha
verdadeira e soberana senhora, Mary...
Lorde Chelford ergueu os olhos e encontrou o olhar
decidido do irmão.
— O escrito termina aqui, — disse ele. — Tenho a certeza de
que não foi interrompido pela chegada dos soldados de
Elizabeth a fim de prendê-lo por haver participado da
conspiração para por Mary no trono. Ele deve ter tido
tempo para esconder o tesouro. Onde está o frasco de
cristal?
— Pergunte antes onde está o ouro, — sobreveio o prático
Dick. — Se bem conheço a Rainha Elizabeth, ela ficou com
ele! Ninguém jamais o encontrou. .. há quatrocentos anos os
nossos respeitáveis antepassados têm procurado esse ouro...
Lorde Chelford fez um gesto colérico.
— Ouro... ouro... ouro! Você não pensa em outra coisa!
Maldito seja o ouro! Encontre-o e guarde-o. É o frasco que
eu quero! — A voz tornou-se-lhe um murmúrio, o rosto se
lhe umedeceu de repente. — Dick, eu tenho medo da
morte! Santo Deus! Você não sabe quanto! O medo dela me
persegue dia e noite... Fico aqui sentado, contando as horas,
perguntando a mim mesmo em qual delas o meu espírito se
apartará de mim!
Dick ouvia, e os seus olhos não deixavam o rosto do irmão.
Aquele seria o marido de Leslie. A idéia fê-lo estremecer.

CAPÍTULO V

Se o Honorável Richard Fallington Alford tivesse sido
considerado pelos compiladores de tais volumes
suficientemente importante para ter a sua biografia incluída
numa obra popular de consulta, o trabalho da sua vida, o seu
passatempo favorito e a sua recreação seriam definidos como
"tomar conta dos domínios de Chelford". Diziam os seus
intendentes que ele conhecia cada haste de relva; os seus
arrendatários juravam-no capaz de avaliar uma safra
pendente até o último penny. Conhecia a Mansão de
Fossaway, a sua força e a sua fraqueza, melhor do que o
arquiteto que a, levantara — era capaz de indicar os pontos
em que os alicerces haviam sido mal feitos pelos
construtores elisabetanos. Sabia dizer onde se tinham
erguido os muros do antigo castelo que Ricardo de Iorque
queimara e arrasara, decapitando o quarto conde pela sua
aleivosia, debaixo do grande.arco, um de cujos pilares em
ruínas ainda mostrava a cabeça cinzenta e escalavrada acima
das rosas que agora o cercavam. Consagrava às amplas terras
de Chelford um amor leal e apaixonado, que qualquer
amante invejaria.
Ele se achava a caminho da herdade, e o motivo que ali o
levava era prosaico. Uma vaca morrera durante a noite e o
retireiro o informara de que descobrira sintomas de febre
aftosa.
As ruínas familiares da abadia avultavam pouco adiante; o
arco partido ao meio, como enorme ponto de interrogação,
prendeu-lhe a atenção e voltou a suscitar o tão discutido
problema da restauração. Algum dia, quando chovesse na
horta de Chelford; quando ficasse provada a existência
daquele veio de carvão; ou quando Harry casasse com
mulher rica. Este último era um pensamento desagradável.
Apertou os lábios num esgar de repugnância.
Sobresteve, de repente. Uma figura caminhava por entre as
ruínas — uma mulher. Estava de costas para ele e,
manifestamente, não se dera conta da sua presença.
Qualquer coisa lhe pareceu familiar — Dick afastou-se do
caminho e partiu na sua direção.
Era evidente que ela não o ouvira pois, quando o rapaz lhe
falou, estremeceu, despediu um gritinho e voltou-se para
encará-lo, assustada.
— Bom dia, Srta. Wenner, — disse ele, polido. — Pelo visto,
a senhorita madrugou.
Não lhe foi preciso perguntar a si mesmo se a moça já lhe
perdoara a penosíssima entrevista que precedera o seu
afastamento da Mansão de Fossaway. Ao reconhecê-lo, os
seus olhos fuzilaram de ódio.
— Bom dia, Sr. Alford, — respondeu ela, com idêntica
polidez. — Estou hospedada na aldeia e deu-me vontade de
vir aqui para rever o lugar.
Ele concordou gravemente com a cabeça.
— A senhorita teve a mesma vontade ontem, — disse, — e
tentou avistar-se com meu irmão.
— E daí? — voltou ela, em tom de desafio.
Já lhe dei a entender, Srta. Wenner, que todos seríamos
muito mais felizes se a senhorita nunca mais transpusesse a
portaria, — retrucou ele, com calma. — Detesto precisar
dizer isso a uma mulher, mas a senhorita deveria ser a
primeira a reconhecer a posição sumamente desagradável
em que me coloca. Cuidei que tivesse compreendido.
— O senhor estragou e arruinou a minha vida, — volveu a
formosa criatura de cabelinho na venta, — com a sua
interferência, depois de todo o meu trabalho! Depois de
todas elas... refiro-me às horas que passei com Sua
Excelência trabalhando no Tesouro, e ele me disse que fui a
mais valiosa secretária que ele já teve...
Dick deixou-a falar até romper numa crise de soluços
incoerentes.
— Imagino que o senhor queira que eu me retire agora, —
disse ela afinal, engolindo em seco, e ele fez que sim com a
cabeça.
— Irei consigo até o Corte de Fontwell pelo caminho mais
curto para a aldeia, — ofereceu-se o moço. Mas a Srta.
Wenner estava tão absorta na sua desgraça manufaturada
que nem sequer se doeu do oferecimento.
Que estaria fazendo a jovem tão cedinho nas ruínas da
abadia? Ele sabia que não adiantaria perguntar-lhe.
Ao passarem pelo íngreme caminho que levava à estrada, ela
falou com maldade na voz, sem olhar para o companheiro:
— Eu não me casaria com ele nem por um milhão de libras!
Ele vai-se casar com Leslie, não vai? Pois que seja muito
feliz!
— Transmitirei a ele o seu bondoso recado, — volveu Dick
com ironia; mas a resposta foi imprudente, porque a deixou
possessa.
— Pois ele que tome cuidado para não a perder, é só o que
digo! — berrou a jovem. — Eu sei! Toda a gente sabe! O
senhor também está querendo o dinheiro dela... o filho
segundo está apaixonado por ela... Bonita perspectiva para
Harry Alford!
Ele deixou-se ficar, balançando as pernas, sentado no alto da
ribanceira, observando-a, até perdê-la de vista.
Toda a gente sabia que ele amava Leslie Gine! E ele mesmo
só viera a sabê-lo naquele momento!
CAPÍTULO VI

Em toda a cidade de Londres não haveria talvez escritório
mais elegante do que aquele em que passava as suas horas de
tranquilo expediente o Sr. Artur Gine. Era uma sala ampla,
apai- nelada de madeira branca, com mísulas róseas
folheadas de prata nas paredes. Cobria o soalho grosso tapete
cor-de-rosa em que os pés da gente afundavam como
afundam num velho gramado; e o mobiliário que guarnecia a
sala figurava entre os mais finos e mais caros. Os visitantes e
clientes que tinham negócios com o elegante advogado
eram avisados, à entrada, de que não deviam fumar em sua
augusta presença.
O Sr. Gine raras vezes comparecia aos tribunais. O seu
principal funcionário, homem rijo e grisalho de cinqüenta
anos, que, no entender dos colegas do Sr. Gine, era o
cérebro do negócio, redigia quase todos os arrazoados,
entrevistava a maioria dos clientes, deixando ao patrão
apenas os mais importantes.
O Sr. Gine passou os olhos pelas cartas que haviam sido
abertas para a sua inspeção e pô-las de lado. Apertou por
duas vezes o botão de ônix de uma companhia, segundos
depois, entrava na sala o funcionário de rosto duro,
sobraçando uma pasta de papéis.
— Feche a porta, Gilder. Que é isso?
Gilder atirou os papéis sobre a mesa envernizada.
— Intimações, quase tudo, — retrucou, lacônico.
— Para mim?
Gilder fez um gesto afirmativo com a cabeça e Artur Gine
folheou, displicente, os documentos.
— Teremos dores de cabeça um dia se algumas destas
intimações forem a juízo, — observou Gilder. — Até agora
tenho conseguido mantê-las fora dos tribunais, mas há aí
pelo menos três que precisam ser pagas. Ainda não tive
ocasião de conversar com você depois que voltei das férias.
Perdeu muito em Goodwood?
— Oito ou nove mil, — disse Artur Gine, indiferente. —
Pode ter sido mais e pode ter sido menos.
— Isso quer dizer que não sabe porque não pagou, — voltou
Gilder com rudeza.
— Paguei algumas... as mais urgentes, — afirmou o outro. —
E que é isto?
Tornou a percorrer as intimações com o dedo manicurado a
primor.
— Uma delas é muito séria, — explicou Gilder, separando-a
das restantes. — Os depositários dos bens de Wellman estão
lhe cobrando três mil libras... o empréstimo que Wellman
lhe fez.
— E você não pode dar um jeito neles?
Gilder abanou a cabeça.
— Você sabe que não posso dar jeito em depositários. E isso
ficará muito feio se chegar ao tribunal.
Artur Gine deu de ombros.
— Um empréstimo não é feio...
— Você era advogado de Wellman, — atalhou Gilder. — E
Wellman era incapaz de gerir os seus negócios. Repito que
vai ficar feio, e a Ordem dos Advogados começará a fazer
perguntas. Você terá de arrumar o dinheiro para resolver o
assunto fora do tribunal.
— Que são as outras? — perguntou Artur Gine, acasmurrado.
— Há uma de mil e duzentas libras, correspondente à
mobília fornecida a Willow House, e outra do vendedor de
Willow House, exigindo a parte do preço da venda que
ainda não foi paga.
Artur Gine recostou-se na poltrona, tirou do bolso um palito
de ouro e pôs-se a mastigá-lo.
— Qual é o total?
— Umas seis mil libras, — respondeu Gilder, juntando as
intimações. — Você não pode arranjá-las?
O patrão sacudiu negativamente, a cabeça.
— Uma promissória?
— E quem é que vai avalizá-la? — perguntou o advogado,
erguendo os olhos.
Gilder coçou o queixo.
— Que tal Lorde Chelford? — perguntou.

CAPÍTULO VII

Artur Gine riu-se.
— E que imagina você que me diria Chelford se eu lhe
apresentasse uma proposta dessa natureza? Você parece
esquecer-se, meu caro, de que, para Chelford, sou o irmão
de uma jovem que, ao completar vinte e cinco anos, entrará
na posse de pouco menos de um milhão de libras. E não sou
apenas o irmão, sou também o depositário do dinheiro dela.
De mais a mais, estou administrando os bens da mãe dele.
Que pensaria ele? Chelford é um tolo, mas não é tão tolo
assim, e eu gostaria de recordar-lhe que todos os negócios
dele estão nas mãos do Filho Segundo.
— Você se refere a Alford. Por que lhe chama assim?
— Porque ele sempre foi conhecido como Filho Segundo,
desde criança, — tornou o outro, impaciente. — É um
demônio astuto, não se esqueça, Gilder. Não sei se desconfia
de que sou um impostor, e de que a fortuna de Leslie é um
mito, mas momentos houve em que ele me fez algumas
perguntas sumamente embaraçosas.
— A fortuna é um mito? — inquiriu Gilder, e o outro olhou-
o com ar sonso.
— Você devia saber, meu amigo, — respondeu. — Há oito
anos que temos vivido dela! Os crupiês de Monte Carlo
recolheram ao seu tesouro boa parte dessa fortuna... e vários
bookmakers que eu poderia citar construíram com ela belos
palacetes. Mito? Não era mito há dez anos. Eram duzentas
mil libras bem contadinhas. Mas hoje...
Ele abriu os braços e considerou as intimações com um
sorriso cerebrino.
— O que é que você espera conseguir de Chelford... ele não
tem dinheiro? — indagou Gilder.
O Sr. Gine riu-se sem abrir a boca.
— Você pode estar certo de que, antes de dar-me a despesa e
o trabalho de comprar, ou quase, uma casa perto dos
domínios de Chelford, e antes de preocupar-me em colocar
Leslie e ele em contato, tomei a precaução elementar de
calcular-lhe a posição. Ele é relativamente pobre, porque o
irmão não quer vender nenhuma das propriedades. Tem a
obsessão da família... a divisa deles é "Agüenta Firme". Harry
Chelford vale um quarto de milhão... fora o tesouro
enterrado!
Riram-se ambos.
— Você teve sorte até certo ponto, — acudiu Gilder, em tom
sério. — Foi sorte sua herdar o cargo de advogado dele...
Nesse momento, entrou um funcionário com algumas cartas
para assinar. Depois que ele se foi, Gilder perguntou:
— Sua irmã ainda pensa que vai herdar alguma coisa?
— Ela tem essa ilusão, — retorquiu o outro, friamente. — É
claro que pensa! Você não imagina, por acaso, que Leslie se
prestaria a essa espécie de extorsão, imagina?
Tirou uma caneta de uma bandeja de prata, que se achava à
sua frente, mergulhou-a no tinteiro e, puxando para junto de
si um pedaço de papel, rabiscou uns números.
— Seis mil libras é muito dinheiro, — disse, por fim. —
Perdi três vezes essa quantia quando Black Satin perdeu por
cabeça no Grande Prêmio de Drayton. A única coisa a fazer
é apressar o casamento.
— E que me diz da propriedade de Yorkshire? — sugeriu o
gerente da firma.
Artur Gine fez uma careta.
— Mandei um homem comprá-la. Eu poderia ter tido um
lucro de vinte mil libras na compra. Ali há carvão à beça;
isso eu já averigüei. Mas o maldito Filho Segundo me
atrapalhou o negócio!
Seguiu-se longo silêncio.
— O que é que você vai fazer? — inquiriu Gilder.
— Não sei. Não consigo pensar em mais nada. — Artur Gine
deixou cair a caneta. — Esta situação é uma terrível tortura
para um homem com a minha sensibilidade. Você não
sugere nada?
— Dê-me cinco minutos, — pediu Gilder, e saiu.
Enquanto Gilder se encaminhava para a sua sala, um
empregado entregou-lhe uma carta. Era dirigida a ele
pessoalmente e escrita por mão pouco afeita a escrever.
Fechada a porta do seu escritório particular, abriu o
envelope.
A carta principiava, sem mais preâmbulos:
Sua Excelência ainda está trabalhando no Tesouro. Recebeu
um livro velho mandado da Alemanha na última terça-feira,
escrito por um alemão que esteve neste país há centenas de
anos. Não consegui ler o título por causa das letras
engraçadas, que parecem inglês antigo. Sua Excelência
recebeu também, mandado por um livreiro de Londres, um
plano da Mansão de Fossaway. O irmão de Sua Excelência, o
Sr. Alford, vendeu a Quinta Vermelha ao Sr. Leonard por
3.500 libras (nesse ponto o Sr. Gilder sorriu). A Srta. Gine
veio tomar chá ontem com Sua Excelência e o Sr. Alford e,
depois do chá, a Srta. Gine e Sua Excelência foram dar um
passeio no parque. Há por aí um falatório, segundo o qual o
Abade Negro teria sido visto perto da velha abadia. Foi visto
por Tomás Elwin, o filho abobado de Elwin, o retireiro de
Sua Excelência, mas ninguém dá atenção a isso. Ele foi visto
agora pelo Sr. Cartwright, o vendeiro. Sua Excelência
recebeu uma oferta pela sua propriedade de Yorkshire, mas
ouvi o Sr. Alford aconselhá-lo a não vender, pois tem a
certeza de que ali existe carvão.
Gilder meneou a cabeça, compreendendo como o plano do
seu patrão dera em água de barreia.
... Quando eu estava levando chá para a biblioteca, ouvi Sua
Excelência dizer que desejava que o casamento se realizasse
em outubro, mas a Srta. Gine disse que gostaria que fosse
depois do Natal. Sua Excelência disse que não tinha
importância porque ele estava mesmo muito ocupado. O Sr.
Alford disse que achava que o contrato de casamento devia
ser redigido por Sampson & Howard, que eram os antigos
advogados de Lorde Chelford, mas Sua Excelência
respondeu que o contrato estaria melhor nas mãos do Sr.
Gine. Não ouvi mais porque o Sr. Alford me mandou
embora da sala. A Srta. Wenner, que costumava ser
secretária de Sua Excelência, chegou ontem de Londres, mas
o Sr. Alford deu ordens para não a deixar entrar. Sua
Excelência não a viu...
O espia do Sr. Fabrian Gilder dava outros informes sobre
assuntos secundários, menos interessantes. O destinatário
releu a carta, enfiou-a no bolso e manteve-se atarefado à sua
mesa durante cinco minutos.
Voltou para encontrar o patrão inclinado sobre a
escrivaninha, com a cabeça entre as mãos, e colocou um
pedaço de papel à sua frente.
— Que é isso? — perguntou Gine, assustado.
— Uma promissória, pagável em seis meses, de sete mil
libras. Acrescentei mil para dar sorte, — respondeu Gilder
friamente.
Gine leu o documento. Era uma nota promissória, precisava
apenas da sua assinatura e da de Harry, Conde de Chelford,
para poder converter-se em metal sonante.
— Não me atrevo a fazê-lo... simplesmente não me atrevo a
fazê-lo!
— Mas você não precisa dizer-lhe que se trata de uma
promissória — volveu Gilder. — Pode chamá-lo de parte,
contar-lhe uma história... você tem a imaginação fértil...
Sugiro, porém, que lhe diga que precisa da assinatura dele
para liberar algumas propriedades de sua irmã, e depois que
o nome dele estiver nas costas do título.
Artur Gine ergueu rapidamente a vista. Teria sido, porven-
tura, mera coincidência a sugestão daquele estratagema? Não
havia nada no rosto do outro que desse a entender o
contrário.
— E quando se vencer? — perguntou, irresoluto, enquanto
virava e revirava o documento nas mãos,
— Daqui a seis meses ele estará casado e, se as coisas não
tiverem melhorado para você, seu cunhado terá de pagar a
promissória ou abafar o caso.
Os olhos dos dois homens se encontraram.
— Você está à beira da ruína, meu jovem amigo, — instou
Gilder, — e confesso que estou preocupado. Se você
afundar, lá se vai o meu ganha-pão.
O quanto isso era verdadeiro, só o soube Artur num dia
muito amargo.
— Você se saiu melhor do que eu, — resmungou ele,
escrevendo o nome de um banco no rosto do título.
— Acontece que eu gasto menos do que você e, quando
ganho algum, sei guardá-lo.
— Você mesmo poderia levantar essa importância, — voltou
o patrão, num tímida tentativa de piada.
— Poderia, — anuiu Gilder em tom severo, — mas, como eu
já disse, sei zelar do que é meu, e emprestar dinheiro a você
não é bem a minha idéia de um bom investimento.
Ele saíra da sala mas, logo depois, voltou e, fechando a porta
com cuidado atrás de si, perguntou:
— Você conhece uma tal Srta. Wenner?
O Sr. Gine franziu o cenho.
— Conheço. O que é que ela quer?
— Ela diz que precisa vê-lo sobre um assunto urgente e
pessoal. É uma de suas... amigas?
Artur sacudiu a cabeça.
— N... não... Fui apresentado a ela. Era secretária de
Chelford. Você não pode descobrir o que ela quer?
— Tentei, mas parece que o negócio é com você mesmo.
Quer vê-la? Não será difícil despistá-la.
Artur refletiu por um momento. Ela talvez tivesse alguma
coisa importante para dizer-lhe.
— Faça-a entrar, — ordenou.
Minutos depois, Mary Wenner entrava na sala e
cumprimentava-o com um gesto familiar.
— Bem, minha querida, isso é o que chamo um prazer
inesperado. Cada vez que a vejo, você me parece mais
bonita.
Ela aceitou o cumprimento como coisa que lhe era devida e
sentou-se na borda da mesa.
— Estive em Fossaway, Artur, — disse ela.
— Tolinha, — sorriu ele. — Eu supunha que aquele caso
estivesse liquidado. Você precisa ser boazinha, Mary.
Chelford vai casar com minha irmã.
— Que maravilha! Pois isso não me surpreende. Eu vi você
trabalhando quando estive em Fossaway.
Ela escorregou de cima da mesa e colocou as mãos nos
ombros
dele.
— Artur, estou cansada de bater à máquina! E sinto uma
vontade danada de vingar-me daquele cachorrão sem
entranhas do Dick Alford. Fui despedida uma vez por haver
pedido um homem em casamento... Pois faço questão de ter
uma segunda oportunidade. Temos sido bons amigos, Artur.
Alarmado, ele murmurou qualquer coisa.
— Ouça... não rejeite um bom negócio. Case comigo e eu lhe
trarei um dote muito maior que o que sua irmã levará a
Harry Alford.
Ele encarou com ela.
— Você? Um dote? — tartamudeou.
Ela acenou lentamente com a cabeça.
— Case comigo, que eu o levarei a um lugar onde você
poderá por as mãos em quinze toneladas de ouro espanhol...
o tesouro de Chelford! Dois milhões e meio de libras!

CAPÍTULO VIII

Quinze toneladas de ouro! Dois milhões e meio de libras
esterlinas!
Artur Gine fitou, incrédulo, a jovem. Mas ela não estava
falando por falar; via-se-lhe claramente pelo rosto corado e
pelos olhos brilhantes que acreditava no que dizia. Por um
momento, ele não pôde falar.
— Quinze toneladas de ouro? — Artur franzia o cenho e
sorria ao mesmo tempo. — Você ficou louca, Mary?
— Louca, eu? — A jovem sacudiu energicamente a cabeça.
— Sim, admito que você pense assim, mas não pensará por
muito tempo! Estou-lhe dizendo que encontrei o tesouro de
Chelford.
O advogado recostou-se pesadamente na poltrona, os olhos.
pasmados ainda fitos nos dela, incapaz de dizer o que quer
que fosse.
— Tolice! — conseguiu murmurar, afinal. — Não existe
nenhum tesouro de Chelford! Convivendo tanto tempo com
Harry Alford, você deve ter ficado tão doida quanto ele!
Ela encaminhou-se lentamente para a escrivaninha e, com
as palmas das mãos sobre o ressalto da mesa, inclinou-se para
ele.
— É o que você pensa, não é? — principiou com voz firme.
— Fui secretária de Lorde Chelford por três anos, e é
verdade que ele me impingia de manhã à noite essa história
do tesouro. A vista de um livro de letras pretas até hoje
ainda me faz mal, e os planos da Mansão de Fossaway que
estudei... bem, não gosto nem de pensar neles! Vivi com
esse tesouro durante três anos, Artur, e havia momentos em
que sentia vontade de gritar quando se falava nele. Fiquei de
tal jeito que cheguei até a gostar de Dick Alford só porque
nunca me falava sobre isso. Depois, um belo dia, chegou um
pacote de planos de Londres... Harry dera ordens a um
velho livreiro que lhe mandasse tudo o que encontrasse a
respeito de Chelfordbury ou da Mansão de Fossaway. Harry
fora à cidade naquela manhã e, como eu não tinha outra
coisa que fazer, comecei a examinar as velhas folhas
empoeiradas para arrumá-las em ordem alfabética. E na
terceira folha encontrei uma coisa que me abriu os olhos.
— O que foi? — perguntou Artur, despreocupado.
Ela olhou para ele com um sorriso calmo.
— Muita coisa terá de acontecer antes que eu lhe conte isso.
— disse ela. — Artur, se eu lhe der esse dinheiro, ou reparti-
lo com você, casará comigo?
— Se você pudesse colocar ao meu alcance um milhão, ou
meio milhão, — respondeu ele, devagar, — eu me casaria
com você nem que fosse a mulher mais feia da terra, quanto
mais sendo o mais saudável, o mais bonito dos anjinhos...!
— Deixe essas coisas para depois, — atalhou ela, prática.
Abriu a bolsa e tirou dela um papel, que ele observou
fascinado. Mas se esperava ver à sua frente, preto no branco,
o tesouro de Chelford, Artur Gine ficaria decepcionado.
— Não entendo muito de advocacia, — disse Mary, alisando
o pedaço de papel e colocando-o sobre a mesa, — mas acho
que isto obriga dos dois lados.
Ele apanhou o papel com ar desapontado e leu-o:
Em consideração por receber a metade do tesouro de
Chelford, eu, Artur Gine, de Willow House, Chelfordbury,
Sussex, concordo em unir-me com Mary Agnes Wenner
pelos sagrados laços do matrimônio, um mês depois de ter
sido o tesouro achado e dividido.
— Isso está em ordem? — perguntou ela, observando-lhe o
rosto.
Ele depôs o papel sobre a mesa.
— Minha querida menina... — principiou, no mais suave dos
seus tons.
— Ouça, Artur, — sobreveio a rapariga, voltando a
encarapitar-se na mesa. — Este é o momento para dizer
"sim" e "não", "farei" e "não farei". Não estou apaixonada por
você, e você não está apaixonado por mim. Mas quero um
lar e uma posição. Eu talvez não seja uma dama, mas sei me
portar como tal, e já vivi o tempo suficiente com gente
cheia de nós pelas costas para não dar cincadas. É sim ou
não?
Artur voltou a olhar para o papel.
— Não lhe parece, — disse ele, — que o tesouro de Chelford
não é seu nem meu para podermos dividi-lo? Que ele
pertence a Lorde Chelford, aos seus herdeiros e aos seus
sucessores?
— É tesouro achado, — disse ela, surpreendentemente. —
Conheço as leis do país, porque conversei com Harry sobre
esse assunto uma porção de vezes. Tesouro que se encontra
escondido, depois de centenas de anos, tem de ser dividido
entre o Estado e a pessoa que o achar.
Ele abanou a cabeça com um sorriso.
— A nossa Mary é advogada! — disse em tom galhofeiro, —
Engana-se, minha querida, Isso é só quando não se encontra
o dono do dinheiro. No caso presente, não há dúvida
nenhuma de que o tesouro pertenceria a Chelford.
Ele viu a consternação estampar-se no rosto dela e
prosseguiu:
— Não creio que isso seja um grande inconveniente para
nós, — ajuntou, fitando nos dela os seus olhos. — Não se
pode perder o que nunca se teve, não é mesmo?
A Srta. Wenner despediu um suspiro profundo de alívio.
— Imagino que seja de Harry, naturalmente, mas depois do
jeito que ele me tratou e de tudo o que fiz por ele...
— Claro, claro, — tornou Artur, apaziguante. — Não
precisamos preocupar-nos com Harry. A única coisa que
importa é a seguinte: você achou mesmo o tesouro?
Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Você o viu?
— Não, — hesitou Mary. — Não vi. Não tive tempo. Mas vi
as caixas através das grades. A porta estava fechada, e fiquei
tão excitada que precisei sair para andar um pouco. Nisso,
Dick Alford me avistou.
Artur sentia-se perplexo. Conhecia a jovem; tinham-se dado
muito bem no tempo em que ela fora secretária de Chelford,
quando lhe prestara bons serviços.
— Bem, vamos então ao que interessa, — sobreveio ele,
bruscamente. — Onde e quando você viu esse tesouro?
— Eu lhe direi quando. Foi há dois dias, — retrucou a jovem,
para surpresa dele, que supunha que ela se reportasse ao
tempo em que morava na Mansão de Fossaway.
— Há dois dias?
— Há dois dias, — confirmou ela. — Quanto ao lugar, há um
questão que precisa ficar esclarecida antes de chegarmos a
esse ponto, Artur. Você vai assinar o acordo?
Ele tornou a olhar para o papel. A sua experiência jurídica,
os seus instintos naturais contrários à aposição do seu nome
a qualquer documento capaz de comprometê-lo, levavam-
no a contemporizar.
— É sim ou não, — disse ela, como se lhe tivesse lido a
mente. — Não estou disposta a bancar a boba com você por
aí, a não ser que o veja disposto a agir. Levarei o caso a
Harry e, se eu o colocar de posse desse dinheiro, talvez ele
mesmo case comigo.
E, vendo que ele não se mexia, pegou o papel, dobrou-o
com determinação e tornou a enfiá-lo na bolsa.
— Que pressa é essa? — acudiu Artur, alarmado. — Mary,
você está maluca se espera que eu tome uma decisão
importante assim sem haver refletido maduramente no caso.
Não compreende o que está-me pedindo para fazer? Está-me
propondo um roubo puro e simples e quer que eu me torne
seu cúmplice. Afinal de contas... — interrompeu-se,
encolhendo os ombros.
— Se a consciência o atormenta, — volveu ela, — deixemos
as coisas neste pé. Não sou da espécie de moça que se atira
aos braços de qualquer homem. Levarei o caso a Harry e
verei se a consciência dele está ocupada.
Voltou-se para sair mas, antes que chegasse à porta, ele a
deteve.
— Não seja boba e não seja desarrazoada. — O advogado
estava visivelmente agitado. — É uma coisa muito grande
que você está pedindo...
— E é uma coisa muito grande que estou dando, — tornou
ela, impaciente. — Dois milhões e meio de libras. Não há
nada mesquinho nisso.
Ele travou-lhe o braço e fê-la voltar.
— Sente-se e não seja tola. Eu já lhe disse que me casarei
com você amanhã, e digo mais: nunca houve momento em
que o dinheiro me fosse mais oportuno do que este.
— Você assinará aquela nota?
Ele releu-a numa volta de mão, assegurando-se mentalmente
de que não assumia obrigação alguma se o tesouro não se
materializasse, tomou de uma caneta, fez uma pequena
emenda, enquanto ela o observava desconfiada, e assinou,
com um floreio.
— O que foi que você pôs no papel? — indagou a moça.
— Uma saída para Artur Gine, — replicou ele, com um
sorriso cerebrino. — Reza agora o documento: "Em
consideração por receber, por conta de meu cliente Lorde
Chelford, etc., etc."
A princípio, ela não compreendeu. Logo, porém, um lento
sorriso lhe aclarou o rosto.
— Entendo. Isso quer dizer que, se alguma coisa acontecer,
você estará agindo em nome dele, e não no seu. Artur, há
momentos em que o julgo inteligente!
— Eu lhe direi o quanto sou inteligente quando tiver nas
mãos a primeira barra do tesouro de Chelford. E você saberá
o quanto é inteligente depois que eu tiver empregado a
última. Diga-me agora: onde está esse ouro?
Ela considerou-o por um segundo e, a seguir, abaixando a
voz:
— Nos subterrâneos da Abadia de Chelford.
Por um segundo ninguém falou. Logo:
— O senhor quer receber sua irmã, Sr. Gine? Ela acaba de
chegar.
Artur Gine girou sobre si mesmo, com uma imprecação nos
lábios. Gilder entrara silenciosamente na sala, os olhos
inescrutáveis parados no patrão. Nenhum músculo do seu
rosto indicava se ele ouvira ou não as últimas palavras.


CAPÍTULO IX

A resolução de Leslie Gine de ir à cidade naquela manhã foi
obra de um súbito impulso. O dia era todo seu e poderia
fazer dele o que bem entendesse. Por uma razão qualquer, a
idéia de almoçar sozinha não lhe agradou. Acudiu-lhe a
lembrança maluca de ir à Mansão de Fossaway, mas
lembrou-se de que aquela quarta-feira era o dia inteiramente
consagrado por Dick Alford às visitas aos seus arrendatários.
E não tentou sequer explicar a si mesma por que a
perspectiva de almoçar tête-à-tête com o noivo era ainda
mais desagradável que a de almoçar sozinha.
A caminho da estação, cuidou ver uma forma familiar
atravessando o campo na direção da estrada, um quarto de
milha mais adiante, e o coração entrou a bater-lhe mais
depressa sem nenhum motivo conhecido. O alto barranco
do corte por onde passava a estrada bloqueou-lhe a visão
mas, quando emergiu e desceu a íngreme ladeira que
conduzia à estrada da aldeia, conheceu que não se enganara,
e freou o carro no momento em que Dic Alford abria uma
porteira.
Ele cortejou-a com um gesto e um sorriso e, para sua
consternação, teria passado adiante se ela não o chamasse.
— Você estava nervoso e enfezado hoje cedo, — disse ela e,
para surpresa sua, ele o reconheceu, se bem a jovem não
tivesse notado em suas maneiras nada que justificasse a
observação.
— Estou, de fato, aborrecido. Se há uma coisa que não quero
ver são as nossas boas quintas transformadas em casas de
campo dos fidalgos da cidade! Vendi a Quinta Vermelha ao
Sr. Leonard na semana passada, com a impressão de que o
velho... — ia dizer uma palavrão, mas conteve-se a tempo
— cavalheiro tencionava ampliar a sua propriedade, muito
embora eu não atinasse com o motivo do seu desejo de
comprar a Quinta Vermelha, que são as terras mais fracas da
redondeza. Pois ele acaba de revendê-la a um sujeito
qualquer de Londres... se bem o comprador não saiba que a
venda não terá valor sem a minha assinatura.
— Um estranho? — inquiriu ela.
— É um cara que esteve morando aqui durante o verão. Tem
um chalé nos arredores.
— No Ribeirão dos Corvos? — voltou ela, surpresa.
— Esse mesmo. Nunca o vi. Mas supus que só pretendesse
demorar-se alguns meses. Agora vejo que o miserável
comprou a Quinta Vermelha e tenciona construir uma casa
de estuque e janelas salientes! E garanto que mandará cavar
um lago artificial, plantará um roseiral e transformará a terra
produtiva de Deus numa estufa de flores desenxabidas!
— E por que não? — perguntou Leslie, e Dick olhou para ela.
— Afinal de contas, você mesmo disse que aquelas eram as
piores terras do lugar; ora, se não podem ser úteis poderão,
ao menos, ser bonitas. Eu gosto de lagos artificiais e
canteiros de rosas.
A despeito do seu mau humor, ele pôs-se a rir.
— Então é provável que você vá à festa de inauguração do Sr.
Gilder, — disse.
Ela espantou-se.
— De quem?
— Do Sr. Gilder. Ele é qualquer coisa em Londres... talvez
seja até um camarada importante no ramo dele, mas eu
gostaria que tivesse ido cantar em outra freguesia. Quanto a
Leonard eu já lhe declarei que não irei ao seu enterro.
— Você devia envergonhar-se disso, Dick! — voltou ela,
indignada. — Pobre velho! — Logo, em tom diferente: —
Você não sabe o primeiro nome dele?
— De quem?... De Leonard?
— Não seja estúpido.. . Do Sr. Gilder.
Dick franziu o cenho.
— Fabrian, — disse, afinal. — Que pelo nome não se perca!
Até parece uma sociedade secreta!
Leslie perguntou a si mesma se Artur saberia desse
empreendimento do seu gerente: era pouquíssimo provável
que o Sr. Gilder comprasse alguma propriedade naquelas
redondezas sem consultar o chefe. Naquele momento,
porém, pareceu-lhe de bom alvitre mudar de assunto.
— Se você fosse amável, bondoso e fraterno, — propôs, —
iria comigo até a estação e guardaria o meu carro como um
homem gentil.
Ele não respondeu de pronto e, por um instante, ela zangou-
se com a implícita recusa. Logo, porém:
— Estou gastando o tempo do meu amo, — disse ele, — mas
há ocasiões em que o prazer precisa interferir na obrigação,
e esta é uma delas. Não se incomoda que eu dirija? Não
tenho confiança em mulheres motoristas.
— Você é muito rude, — tornou a jovem; não obstante,
afastou-se para deixá-lo tomar o volante.
Atravessaram lentamente as alamedas umbrosas, passaram
por um trecho de mato, todo verde-oliva, castanho
amarelado e púrpura com o fim do outono, e chegaram à
estação dez minutos adiantados.
— Você não recebeu mais visitas do seu Abade Negro? —
indagou Leslie, enquanto se encaminhavam para a
plataforma da estação.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não; a polícia apareceu ontem à noite para investigar. Mas
não creio que isso vá muito longe. Você leu a história no
jornal, com certeza?
Ela fez que não com a cabeça.
— Falatório de criados, — explicou.
— Pois eu francamente não acredito no tal Abade Negro, —
continuou Dick. — O estranho é que Harry tenha medo
dessa assombração. Nunca sai de casa quando há notícia de
que o velho Abade está por perto.
— Você também não acredita?
Ele apertou os lábios.
— Quando eu vir um fantasma, acreditarei nele. Enquanto
isso, continuo polidamente cético.
Quando o trem saiu da estação, ela pôs a cabeça para fora da
janela e olhou para trás. Ele continuava em pé, imóvel, na
plataforma, onde ela o deixara; se bem não pudesse ver-lhe o
rosto, percebeu que ele não tirava os olhos dela e cuidou
distinguir-lhe certa tensão na atitude — tudo o que, somado,
era muito agradável à Srta. Leslie Gine.


CAPÍTULO X

Por estranho que possa parecer, ela nunca visitara o escri-
tório do irmão em High Holborn. Deixou o táxi parado à
porta e subiu de elevador aos seus magníficos aposentos. O
motivo da visita era prosaico. Saíra de casa sem um níquel:
fato de que só se apercebeu quando o cobrador, percorrendo
os vagões, chegou ao compartimento em que ela estava e
despertou-a do seu devaneio para constatar que não tinha
passagem nem dinheiro para pagá-la. Deu ao cobrador o seu
cartão e um táxi a levou a Holborn.
Lá a esperava outra experiência inédita. Um homem alto,
vigoroso, de cabelo grisalho e rosto forte, simpático, fora
recebê-la na sala de espera. Ela lembrou-se do pescador
solitário que se quedava, horas e horas, à margem do
Ribeirão dos Corvos, aparentemente sem pescar coisa
alguma. Com que, então, era aquele o temível Sr. Gilder, de
quem Artur falara tantas vezes! Tinha o queixo quase
quadrado e a boca tão apertada que se diria desprovida de
lábios; um nariz grande, um par de olhos cinzentos
penetrantes debaixo de sobrancelhas irregulares e desiguais;
tudo isso e mais a largura dos ombros transmitiam uma
impressão imponderável de força.
— É a Srta. Gine, naturalmente? — disse ele. — Eu lhe teria
reconhecido o parentesco com seu irmão ainda que não
soubesse o seu nome.
Leslie sentiu um pequenino choque ao saber-se, de alguma
forma, parecida com Artur, pois a beleza de Artur pertencia
a uma variedade que ela não invejava nem admirava.
— Ele está ocupado neste momento. Se a senhorita quiser
fazer o favor de sentar-se, irei avisá-lo.
Os olhos dele não deixavam o rosto dela. A jovem
encontrara inúmeras vezes, em histórias, a palavra "devorar"
empregada para descrever certa intensidade de olhar, e
pensou, naquele instante, que os personagens de ficção
deviam olhar mais ou menos como o Sr. Gilder eslava
olhando. Não que ele a encarasse com impertinência; era a
concentração, a sondante investigação daqueles olhoa
cinzentos e brilhantes que a faziam contorcer-se por dentro.
— Ouvi dizer que o senhor vai morar perto de nós, Sr.
Gilder? — indagou ela, e ele se sentiu obviamente
desconcertado.
— Bem... sim... — respondeu, muito sem jeito, — Comprei
um pedacinho de terra perto de sua casa. Gosto muito
daquela região.
— Seremos vizinhos, — voltou ela, com um sorriso,
conquanto a perspectiva não lhe desse prazer.
— Sim... sim... Creio que o seremos, Srta. Gine.
— Será ótimo para Artur. Imagino que tenha sido por
sugestão dele que o senhor resolveu comprar?
Ele tinha o cacoete de cofiar um bigode invisível, pois trazia
todo o rosto escanhoado.
— Bem... não, — retrucou. — Ainda não contei ao Sr. Gine
que comprei a propriedade. Julguei que outra ocasião seria
mais oportuna. Comprei-a por uma ninharia... três mil e
quinhentas libras.
Ela ergueu rapidamente os olhos.
— Uma ninharia meio cara, — observou, e percebeu
incontinenti que cometera um erro.
Desta vez ele se mostrou visivelmente desconcertado.
— Sim; arranjei o dinheiro emprestado.
Ela teve a impressão de que ele estava querendo pedir-lhe
um favor e adivinhou qual seria: Leslie possuía o dom
misterioso de ler a mente dos outros e de reunir-lhes os
pensamentos superficiais; naquele momento em que Fabrian
Gilder deixou cair a máscara a leitura foi mais fácil ainda. Ele
entreabriu os lábios para falar, pensou melhor, percebendo
talvez a gélida atmosfera de uma recusa que ainda não se
efetivara, e disse:
— Vou ver se seu irmão pode atendê-la.
Ato contínuo, dirigiu-se à sala de Artur Gine, a cabeça ainda
zonza da visão que lhe surgira por entre a névoa cinzenta da
sua monótona existência.
Dia após dia a observara, sem que ela o soubesse. Deixava a
vara e a linha espetadas atrás das árvores para vê-la passar.
Ela era o amor in excelsis — a perfeita realização de trinta
anos de sonhos.
Levou um segundo para reaprumar-se antes de girar a
maçaneta da porta e entrar, e emudeceu de espanto ante as
palavras que lhe chegaram aos ouvidos.

CAPÍTULO XI

— Minha irmã? — repetiu Artur. Olhou de Gilder para Mary
, Wenner. — Venha ver-me mais tarde, — ajuntou em voz
baixa. — Gilder, acompanhe a Srta. Wenner pela porta
lateral.
Gilder abriu a porta particular e acompanhou a jovem até o
corredor.
— Onde é que a senhorita está morando? — perguntou.
Havia em sua voz um tom de tamanha autoridade que a
rapariga, momentaneamente, se sentiu perplexa.
— Cranston Mansions, 37. Por quê? — inquiriu, com certa
malícia que, embora indicasse ressentimento, era um
convite a nova investida.
— Porque quero vê-la, — respondeu Gilder. — Posso passar
pelo seu apartamento numa destas noites?
A Srta. Wenner sentiu-se um tanto ou quanto chocada com
aquilo. Momentos havia em que o seu senso de propriedade
era facilmente ultrajado. Mas, curiosa também, longe de
agastar-se contra a abordagem autoritária, agradou-se dela.
— Pode, sim, quando quiser, contanto que me avise antes.
Pedirei a uma amiguinha que me faça companhia.
Os lábios duros de Gilder se crisparam.
— A menos que a senhorita faça absoluta questão de uma
dama de companhia, não arranje nenhuma, — disse ele. —
Tenho muita coisa para dizer-lhe e eu não quero que os
outros a ouçam.

— Você foi uma patetinha vindo à cidade sem dinheiro, —
disse Artur, enquanto tirava três notas da carteira. — Aqui
está o bastante para fazê-la feliz pelo resto da vida.
— Quinze libras farão isso? — riu-se ela; e já se dispunha a
partir, quando se lembrou.
Artur ouviu, assombrado, as notícias.
— Gilder comprou uma casa em Chelfordbury? Não é
possível! — exclamou. — Ele me teria contado. Por que
diabo quer ele uma casa?... De mais a mais, não tem
dinheiro.
— Não tem? — perguntou ela, surpresa.
Artur coçou o queixo, irritado.
— Imagino que tenha; mas uma casa em Chelfordbury... isso
é extraordinário! Eu nem sequer imaginava que ele
conhecesse o lugar.
— Pois é o homem que esteve no Ribeirão dos Corvos o
verão inteiro, — disse ela.
— O pescador! — Artur assobiou. — Que sujeito misterioso!
Está visto, — apressou-se a ajuntar — que não há mal
nenhum em querer alguém morar em Chelfordbury, e não
vejo motivo por que ele não haveria de comprar uma casa.
Mas, sim, senhor! que venha raposa matreira!
O homem estava perturbado; ela percebeu que ele procurava
esconder a preocupação atrás de uma frivolidade de atitudes
transparente demais para ela.
— É claro que eu sabia que alguém alugara o chalé do
pescador, como lhe chamam, mas pensar que ele esteve lá
esses três meses e nem uma vez se deixou identificar!
— Ele tem um carro, se é o mesmo homem que morava no
chalé, — confirmou Leslie. — Dick Alford está furioso!
Artur riu-se intimamente.
— Pobre Dick! — exclamou, em tom bem-humorado. — Ele
detesta essa história de casas de campo e, quando lhe propus
lotearmos uma das suas propriedades ao norte em chácaras
residenciais, quase me arrancou a cabeça do lugar. Harry
teria feito isso imediatamente, e eu espero, minha querida,
que você, depois que estiver casada, consiga persuadi-lo.
Ele interrompeu-se, com ar expectante.
— Pois sim... quando eu estiver casada, — assentiu ela, e o
tom da sua voz fez o irmão considerá-la atentamente.
— Menina, — acudiu ele, — afaste os seus pensamentos do
filho segundo! É um sujeito bem apessoado, não há termo de
comparação entre ele e o irmão! Mas é um filho segundo, o
que quer dizer que pouco falta para estar arruinado. E você
não pode viver de bonitezas ou de...
Ouvindo-o, ela ergueu lentamente os olhos.
— O que é que você quer dizer... que eu não posso viver de
bonitezas? Por que acentua tanto o fato de Dick Alford ser
pobre? Por acaso não tenho a minha herança?
Ele não respondeu de pronto; mas, pouco depois, deixando
cair as mãos, disse, a rir:
— É claro que tem, gatinha. Só que... bem, quero que você
faça alguma coisa por si. Conquiste um nome na região. Já
não será pouca coisa ocupar a posição que Harry lhe oferece.
Dick é um ótimo sujeito... um dos melhores, embora não vá
muito com a minha cara. Mas não tem um gato para puxar
pelo rabo, Leslie. Seria o mesmo que você casar com um
fidalgote arruinado da província...
Ele se deteve diante do olhar firme da irmã.
— Outra vez, Artur! Sem dar a entender que eu preferiria
casar com Dick Alford, fico a perguntar-me por que o
problema da pobreza dele o interessa tanto. Se você lhe
chamasse um plebeu, ou joão-ninguém, eu compreenderia,
mas você insiste em falar na riqueza do meu noivo, e isso
me parece estranho.
Artur despediu uma longa e sonora gargalhada, mas a alegria
dele soou insincera aos ouvidos sensíveis da irmã.
— Você devia ser advogada, Leslie! Palavra de honra, estou
pensando seriamente em fazê-la preparar-se para um exame!
Você ficaria linda de peruca e beca! E agora, menininha,
trate de dar o fora daqui, porque tenho muitíssimo trabalho
para fazer.
Ele colocou o braço sobre o ombro dela e acompanhou-a até
a porta. Depois, quando ouviu gemer o elevador que a
levava para o andar térreo, suspirou, aliviado. Fechou a porta
do escritório, tocou a campainha e pediu ao funcionário que
se apresentou:
— Faça o favor de pedir ao Sr. Gilder que venha cá.

CAPÍTULO XII

Ouvindo o recado, Gilder conheceu que a jovem contara ao
irmão; e se bem possuísse um generoso quinhão de coragem
moral, foi-lhe necessário fazer um esforço consciente para
responder ao chamado.
— Gilder, que história é essa de você ter comprado a Quinta
Vermelha? — perguntou Artur, áspero.
— E por que não deveria eu comprar a Quinta Vermelha? —
respondeu Gilder no mesmo tom.
— Não sei de razão alguma por que você não deveria com-
prá-la, — voltou Artur, depois de refletir por um momento;
— mas é curioso que não me tenha dito nada.
— Julguei que você pudesse objetar. Os homens de negócios
não gostam que os companheiros chatos de trabalho morem
perto deles. Foi estupidez minha não lhe ter contado. Há
três meses que tenho vivido num chalé em Chelfordbury...
e isso, porventura, também seria objetável? Peço-lhe que me
perdoe se o digo, mas embora eu sempre tenha tido por
você o respeito que se deve a um patrão, nunca o considerei
como o meu senhor feudal!
Artur sorriu por um segundo.
— Eu ignorava que você estivesse tão bem de vida, Gilder!
O Sr. Gilder inclinou a cabeça.
— Já lhe dei a entender que amealhei somas consideráveis.
Aliás, também não me pareceu necessário mantê-lo a par da
minha conta-corrente bancária.
— Você tem recebido um salário modesto, — disse Artur em
tom significativo. — Eu mesmo reconheço que não é uma
quantia generosa; e por certo não é uma quantia que permita
a um homem poupar o suficiente para comprar, reconstruir
e manter a Quinta Vermelha.
Por única resposta, Gilder meteu a mão no bolso e, sacando
de um caderninho de couro da Rússia, depô-lo sobre a mesa.
O nome, em letras de ouro, que se lia na capa era o de um
bookmaker que tinha uma das mais vultosas contas do seu
patrão. Com essa firma perdera Artur as suas maiores
apostas, pois Truman lhe oferecera facilidades que as outras
firmas lhe haviam negado.
— Truman? — Ele carregou o sobrolho. — O que é que tem
isso com o caso? Você andou apostando em cavalos?
Gilder sacudiu a cabeça.
— Não, — disse simplesmente. — Eu sou Truman.
Artur Gine contemplava-o, boquiaberto. Truman! O
bookmaker a quem, semanas após semanas, ele viera pagando
milhares e milhares de libras!
— Então, o dinheiro que você tem... é o meu dinheiro!
— O seu dinheiro? — volveu o outro, calmo. — Se Truman
não o tivesse tomado, outro bookmaker o teria feito. Todas
as vezes que você ganhou, recebeu... tem alguma queixa?
— O meu dinheiro! —murmurou Artur.
Gilder devolveu o caderninho ao bolso.
— Você se lembra de que, há cinco anos, se queixou de que
não conseguia encontrar bookmakers que aceitassem apostas
grandes por telegrama, poucos minutos antes da corrida?
Pois essa conversinha me deu uma idéia. Eu sabia que você
perdia regularmente, que era uma dessas pessoas...
infelizes...
— Diga "idiotas"... é a palavra que está nos seus lábios.
— A palavra era "otário", — volveu o Sr. Gilder com muita
calma. — Eu sabia que você era uma dessas pessoas que não
podem parar de apostar. Por isso Truman passou a existir.
Você recebeu o regulamento da firma, em que se destacava
a importante concessão que lhe permitiria apostar grandes
somas de dinheiro, por telegrama, minutos antes da corrida.
Sabe quanto perdeu nos últimos cinco anos?
Artur estava pálido de fúria mas, dominando-se, abanou
negativamente a cabeça.
— Sessenta e três mil libras, só para Truman, — disse o outro
devagar. — E eu as ganhei!
— Suponho que você não seja também Rathbura & Cia.? —
perguntou Artur, mencionando outra firma de bookmakers
que embolsara boa parte dos seus recursos.
Para assombro seu, Gilder fez um sinal afirmativo.
— Sou Rathburn & Cia. E sou também Burton & Smith. Na
verdade, sou os três bookmakers para os quais você tem
perdido dinheiro, a uma média de trinta mil libras por ano,
nos últimos cinco anos. É bobagem você ficar com essa cara,
Gine. Não cometi crime nenhum. Nas raras ocasiões em que
você ganhou alguma coisa, foi pago. As suas perdas não
teriam sido tão desagradáveis se o ganhador tivesse sido um
desconhecido. Eu topei o risco... a minha sorte contra a sua.
Quando comecei, arrisquei a minha fortunazinha... três mil
libras, ganhas à custa de privações e economias. Se você
tivesse tido sorte, eu estaria arruinado.
— Em vez disso, você teve sorte... e estou arruinado, —
acudiu Artur Gine, com voz rouca. Fora-se-lhe a costumeira
calma. — Você tem razão, se bem tudo isso seja meio...
desconcertante.
Olhou, curioso, para o rosto inescrutável do seu funcionário
principal, forcejando por reajustar a sua estimativa de um
homem que sempre tivera na conta de um criado superior,
ou pouco mais. Depois, percebendo o lado cômico da
situação, pôs-se a rir.
— Se eu não tomar cuidado, acabarei com pena de mim
mesmo, e isso me seria odioso, Gilder! Com que, então, você
é um homem rico, hein? Que pretende fazer com o
dinheiro?
Os olhos de Gilder não deixaram o rosto do outro.
— Vou estabelecer-me no campo e casar.
— Esplêndido! — Havia uma nota irônica na voz de Artur
Gine. — E quem é a felizarda?
Passou-se algum tempo antes que Fabrian respondesse. Fitou
os olhos bem abertos no rosto do antigo patrão e, em
seguida, muito deliberada e muito lentamente, informou:
— É meu desejo e minha intenção desposar a Srta. Leslie
Gine.
Nenhum músculo do rosto de Artur Gine se contraiu; a sua
cor não mudou. Mas em seus olhos fuzilou uma luz intensa,
maligna e diabólica. Por um segundo o imperturbável Gilder
teve medo. Teria ido longe demais? Os dois homens estavam
aprendendo alguma coisa naquele dia. Gilder teve uma visão
momentânea de algo muito feio e ameaçador mas, logo a
seguir, as cortinas se cerraram e o eu interior de Artur Gine
dissipou-se num sorriso enigmático.
— Isso é muito interessante e muito. .. petulante da sua
parte, Gilder! Infelizmente, tenho outros planos.
Levantou-se, desapressado, da poltrona, rodeou a
escrivaninha e foi postar-se diante do outro, com as mãos
enfiadas nos bolsos.
— O que é que você está preparado para pagar pelo privilégio
de ser meu cunhado? — perguntou, em tom arrebento.
Fabrian Gilder aceitou o desafio.
— A devolução da metade do dinheiro que você perdeu em
apostas nos últimos cinco anos.
Artur sacudiu a cabeça.
— Não é o bastante, — declarou, sorrindo.
— O cancelamento de quatro promissórias, — continuou
Gilder deliberadamente, — redigidas e aceitas por Lorde
Chelford, mas cujo aceite, em cada caso, foi falsificado por
você.
Artur Gine recuou, vacilante, até a mesa, o rosto branco e
contorcido, e Gilder prosseguiu:
— Você, com certeza, não imagina que foi por acaso que eu
lhe sugeri que conseguisse o aval de Chelford numa
promissória, imagina? Setenta e cinco mil libras não lhe
bastavam, hein? Pois eu lhe ofereço esta alternativa: cinco
anos em Dartmoor!

CAPÍTULO XIII

Leslie passara uma tarde cacete, e não uma vez, senão
muitas, se arrependera de haver prometido voltar ao
escritório do irmão, que a levaria de carro a Willow House;
não fora essa combinação, e poderia voltar a Chelfordbury
mais cedo, de trem, pois as compras que fizera não lhe
haviam tomado mais que uma hora.
Telefonou ao irmão para sugerir-lhe esse plano, certa de que
ele concordaria, mas, para sua surpresa:
— Creio que é melhor você voltar comigo. Venha para cá às
quatro e meia, em lugar de vir às cinco. A propósito, Gilder
nos convidou para tomarmos chá em seu apartamento. Você
não se importa, não é mesmo ?
— O Sr. Gilder? — exclamou ela, surpresa, e ele apressou-se
a continuar:
— Precisamos ser gentis com ele. Vai ser nosso vizinho, e,
afinal... não é má pessoa.
Teve vontade de pretextar uma dor de cabeça e poupar-se a
uma experiência que, para dizer o menos, não era
totalmente do seu agrado. Artur, porém, raro lhe pedia um
favor e via-se pelo tom de sua voz que ele estava ansioso por
que ela acedesse a esse gesto de civilidade para com o seu
principal funcionário; um tanto ou quanto relutante,
concordou.
Se ele deu tento da relutância da irmã, furtou-se a comentá-
la e pareceu ter pressa de desligar o telefone. Não havia
razão para que a projetada visita a deixasse intranqüila e,
todavia, por algum motivo obscuro, a experiência iminente
pairou, como uma nuvem, sobre ela durante o resto da
tarde. Desta feita, ao voltar ao escritório, entrou pela porta
particular de Artur. Encontrou-o só, sentado à mesa numa
atitude familiar, com a cabeça entre as mãos, os olhos
sombrios parados no berço do mata-borrão. Ocorreu-lhe que
o rosto do irmão estava mais pálido que de costume; e havia
em seu olhar uma expressão de pessoa cansada e acuada, que
a assustou. Ele obrigou-se a sorrir para recebê-la, mas o
sorriso não a iludiu.
— Você não está bem, Artur? — perguntou, ansiosa.
— Estou ótimo, — riu-se ele; — aconteceu apenas que tive
um dia muito trabalhoso. Devo parecer exausto.
Dir-se-ia, porém, que ele não quisesse discutir o seu caso,
pois foi diretamente ao assunto da visita surpreendente que
deveriam fazer.
— Gilder tem um apartamento pertinho de Regenfs Park, —
disse Artur. — Seja tão gentil com ele quanto puder, Leslie.
Ele me tem sido utilíssimo. A propósito, — ajuntou, muito
sem jeito, — o nosso amigo é solteiro.
A observação fê-la sorrir; em seus sonhos mais alucinados
não teria imaginado que essa declaração pudesse ter algum
interesse especial para ela.
— Nunca imaginei que ele fosse tão... tão próspero, — disse
ela. — Não, não quero dizer que celibato seja sinônimo de
pobreza, mas a propriedade em Chelfordbury e o
apartamento em Regent's Park não são exatamente o que a
gente esperaria.
— Ele não é má pessoa, — repetiu Artur, ao tocar a
campainha. — Creio que você gostará dele: ele é... gozado.
"Gozado" não era a palavra que teria usado, na verdade, mas
foi a única que encontrou no momento. Como se estivesse à
espera do chamado, o Sr. Gilder apareceu em resposta ao
toque da campainha. Trazia no braço um casaco leve e, na
mão, um chapéu cinzento e imaculado de feltro. E, mais
uma vez, Leslie se sentiu desagradavelmente consciente do
exame do homem.
— Conhece o Sr. Gilder, Leslie?
A inquietude e a apreensão dele estavam-se comunicando a
ela. Por mais que o tentasse, a jovem não conseguia sacudir
de si a sensação de intranqüilidade. A atmosfera estava
elétrica; ela teria sido realmente insensível se não
respondesse à tensão ambiente.
Durante todo o trajeto, o Sr. Gilder falou quase sem
interrupção. Tinha uma voz grossa, mas agradável, e sabia
conversar.
Falou sobre aviação, rádio, sobre os livros que lera — Dumas
era o seu favorito — sobre a guerra, a Rússia, a Renascença
italiana, os escritores norte-americanos, o tempo, pólo —
enfim, sobre quase todos os assuntos que ocupavam a
atenção pública. Leslie percebeu que ele estava tentando
impressioná-la, e não viu nisso mais que o desejo natural de
um homem de parecer bem aos olhos de uma mulher.
O apartamento era maior do que ela esperara, e um dos
muitos do mais exclusivo edifício de apartamentos daquela
zona. Artur examinou-o, cheio de coisas caras, com o
semblante taciturno. Uma das suas semanas negras em Ascot
deveria ter mobiliado três apartamentos daqueles, pensou, e
o diabinho do ressentimento e da aversão criou forças em
seu coração.
O chá foi servido por duas criadas muito bem uniformizadas,
e o Sr. Gilder desempenhou com perfeição o papel de
anfitrião. Possuía um biblioteca de livros antigos raros, que
ela precisava ver, e levou-os a uma sala cujas paredes
estavam cheias de estantes, que recordaram a Leslie, se bem
não houvesse semelhança alguma entre os dois interiores, a
sala em que o seu noivo passava a maior parte do tempo.
Gilder estava mostrando à jovem uma primeira edição muito
rara, quando aconteceu uma coisa surpreendente.
— Você se incomodaria se eu me ausentasse por cinco
minutos, Leslie? Quero ver um sujeito que mora do outro
lado do parque.
A voz de Artur Gine estava rouca, a sua simulação de
desenvoltura era um completo desastre. A jovem olhou para
ele assombrada e, a seguir, examinou o mostrador do seu
reloginho de pulso.
— Se você pretende estar de volta a Willow House a tempo
de jantar... — começou ela.
— Não levarei mais que um quarto de hora, — atalhou ele,
num desespero. — Se você não se incomoda...
E antes que a irmã pudesse pronunciar uma palavra,
desapareceu. Tudo tão inesperado, tão estranho, que ela não
conseguia compreender direito o que acontecera, e a última
coisa que lhe passaria pela cabeça era que Artur a estivesse
deixando delibera- mente só com aquele homem grisalho.
Assim que a porta se fechou, após a partida do irmão dela,
Fabrian Gilder recolocou cuidadosamente na estante o livro
que estivera examinando.
— Estarei em minha casa nova na primavera, — disse ele, —
e espero vê-la com mais freqüência, Srta. Gine.
Ela deu-lhe uma resposta convencionalmente polida.
— A minha ambição sempre foi estabelecer-me no campo e
praticar os meus dois passatempos favoritos que são pescar e
ler. Felizmente, estou em condições de poder retirar-me da
minha profissão... seu irmão provavelmente já lhe disse que
sou um homem rico.
Qualquer coisa no tom dele chamou-lhe a atenção. Seu
coração principiou a bater um pouco mais depressa e, pela
primeira vez, ela teve consciência de estar sozinha com ele.
— Não sou velho... considero os cinqüenta anos como a
melhor parte da vida... e creio que não me falta capacidade
para fazer a felicidade de qualquer mulher.
Ela enfrentou-lhe o olhar com firmeza.
— Espero que tenhamos o prazer de conhecer sua esposa, —
disse Leslie.
Ele não respondeu, e ela principiou a sentir alternadamente
calor e frio sob o exame daqueles desapiedados olhos
cinzentos. E, num átimo, antes que ela compreendesse o
que estava acontecendo, as duas manzorras dele lhe
seguravam os braços e ele a mantinha a alguma distância de
si, perscrutando-lhe o rosto.
— Há uma única mulher no mundo para mim, — disse ele, e
a voz lhe soou roufenha de emoção; — um rosto que me
enche os olhos dia e noite! Leslie, durante todos esses meses
você não esteve íora da minha vista nem da minha mente!
— Solte-me! — gritou ela, lidando por livrar-se.
— Eu a quero! Eu trabalhei por você! Eu fiz planos por sua
causa! Leslie, eu a amo como você nunca mais será amada!
Eu
quero... eu a quero!
Ele a estava puxando cada vez mais para junto de si, os seus
olhos a arderem como brasas; fascinando-a a ponto de deixá-
la num estado de apatia que era uma quase passividade. Ela
não encontrava em si mesma reservas para combatê-lo e não
conseguia fazer outra coisa senão olhar, indefesa, para o
rosto duro.
Ouviram bater à porta. Ele afastou-a de si, o rosto
convulsionado de raiva.
— Quem é? — perguntou com desabrimento.
E a voz da empregada respondeu:
— O Sr. Richard Alford quer vê-lo, senhor!

CAPÍTULO XIV

Esperando na bonita sala de estar e perguntando a si mesmo
como faria para iniciar o que prometia ser uma discussão
desagra- dabilíssima, Dick Alford viu abrir-se a porta e uma
jovem de rosto lívido correr para ele.
— Oh, Dick, Dick! — soluçou ela.
Um segundo depois, estava em seus braços, o rosto
encostado ao seu peito.
— Pelo amor de Deus, o que foi que aconteceu? Como é que
você veio parar aqui? — perguntou ele, assombrado.
Antes que ela pudesse responder, o corpanzil de Fabrian
Gilder assomou à porta. O homem não falava, mas a cólera
que lhe ardia no olhar era eloqüente.
— E então, que deseja? — atroou ele.
Dick afastou a moça delicadamente de si.
— Por que é que você está aqui, Leslie?
— Artur me trouxe, — explicou ela, ainda ofegante. — Sinto
muitíssimo fazer um papelão desses, mas...
Os olhos de Dick se transferiram da jovem para o homem
imóvel à porta e ele principiou a compreender.
— Artur trouxe-a aqui? — Dick falava com vagar, — E
deixou-a sozinha... com esse homem?
Ela assentiu com a cabeça.
— Ele é seu amigo?
Ela abanou a cabeça negativamente.
— Eu o conheci hoje.
A pouco e pouco, a explicação do desespero dela começou a
clarear no espírito do rapaz, e uma raiva fria lhe senhoreou o
coração. Um momento desastrado para o regresso de Artur
Gine. Dick ouviu o tinir da campainha, passos apressados no
vestíbulo e viu o rosto lívido do advogado, que o sorriso
forçado tornava medonho.
— Alô, garota! Que aconteceu? — perguntou.
Ele não olhou para o dono da casa; e Dick, ao notá-lo, sentiu
crescer a fúria dentro de si.
— Acho melhor você levar Leslie para casa, — disse ele. —
Tenho um negocinho a tratar com o Sr. Gilder.
— Posso perguntar-lhe com que direito o senhor dispõe dos
meus convidados? — interveio Gilder, mas Dick não lhe deu
atenção.
— Tome conta de sua irmã, Gine, — advertiu, e havia uma
ameaça mal velada nas suas palavras. — Terei o prazer de
fazer-lhe uma visita esta noite.
Ele pegou na mão da moça; ela continuava pálida e trêmula,
mas sorriu-lhe.
— Fiz um papel ridículo, não fiz? — disse ela, em voz tão
baixa que só ele pôde ouvi-la. — Dick... talvez eu esteja
ficando meio nervosa e possa ter interpretado mal...
Ele bateu-lhe delicadamente na mão e conduziu-a, passando
por Gilder, ao vestíbulo. Artur seguiu-lhes no encalço. Foi
Dick quem abriu a porta e esperou, paciente, que os dois
irmãos se retirassem. A seguir, voltou-se para enfrentar o
enraivecido dono do apartamento.
— Tenho, de fato, negócios a tratar com você, Gilder, mas
isso pode esperar. Em primeiro lugar, eu gostaria de
perguntar-lhe o que foi que disse à Srta. Gine?
— Isso é exclusivamente da minha conta, — respondeu
Gilder, com o olhar firme; readquirira o completo domínio
de si mesmo, se não da situação.
— Da minha também, — voltou Dick, muito calmo. — Você
não sabe que a Srta. Gine está noiva de meu irmão?
Gilder passou a língua pelos lábios secos.
— Isso, na realidade, não me interessa, — respondeu. Em
seguida, após alguns segundos de reflexão: — Serei franco
com você. Alford... não custa nada esclarecer o assunto.
Pedi a Srta. Gine em casamento.
— Deveras? — tornou Dick, suavemente. — E que disse a
isso a Srta. Gine?
— Você não lhe deu oportunidade para responder. Mas,
pensando bem, creio que não haverá dificuldade.
Dick não escondeu um sorriso. Juiz sagaz de homens,
compreendera perfeitamente a situação ao ver o rosto de
Artur quando este voltara ao apartamento.
— Não sei qual é a ascendência que você tem sobre Gine, ou
que terríveis ameaças lhe fez.
Viu o homem estremecer, e riu-se.
— Essa passou bem perto do alvo, não passou? Mas, seja qual
for a influência que você tem, Gilder, não se casará com
Leslie Gine.
Os olhos de Gilder estreitaram-se.
— Isso é uma ameaça?
— Tome como ameaça, ou como um amável cumprimento,
ou como bem entender, — volveu Dick, com o sorriso
malicioso. - E agora, se não se incomoda, vamos aos
negócios. Você comprou uma propriedade nossa... a Quinta
Vermelha. Pagou três mil e quinhentas libras por ela a
Leonard. Pois eu vim pedir-lhe que desista da compra e
aceite um lucro de quinhentas libras.
— Em outras palavras, quer comprá-la de volta? Pois nada
feito? — ripostou Gilder, desabrido. — Pretendo morar na
Quinta Vermelha e não há uma única lei neste país que mo
impeça. Você pode não gostar da minha presença, mas isso
pouco me faz. Não estou morando em Chelfordbury pelo
prazer de vê-lo todos os dias.
Dick meneou a cabeça.
— Eu me perguntei por que você haveria de querer viver ali,
mas creio que agora já sei. A oferta que lhe fiz não invalidará
nenhuma ação que eu possa intentar. Infelizmente para
você, Leonard não tem o poder de transferir a propriedade
sem a anuência de meu irmão... o que quer dizer, sem a
minha anuência, pois tenho procuração dele. Leonard pode
conservar a propriedade, mas você não pode. Como
advogado não precisará que eu lhe explique os embaraços de
um contrato de aforamento, e é apenas isso que Leonard
possui. Se quiser questionar, eu o levarei aos tribunais, e
você sabe que terei ganho de causa. Estou-lhe oferecendo
uma oportunidade para resolver o caso amigavelmente.
— Que eu recuso, — tornou o outro, prontamente.
Dick inclinou a cabeça.
— Muito bem. Mas é provável que você, depois de refletir
no assunto numa atmosfera mais calma, venha a mudar de
opinião.
Saiu da sala, balançando o chapéu. Chegado à porta, voltou-
se.
— No que respeita à Srta. Leslie Gine, igualmente fará bem
pensando melhor no caso.
— E se eu não quiser?
Mais uma vez o sorriso estranhíssimo.
— Azar seu, — disse Dick, misterioso.

CAPÍTULO XV

Quando os Gines se aproximavam de Chelfordbury, Leslie
fez a pergunta que lhe tremera nos lábios durante todo o
longo percurso.
— Artur, você sabe o que o Sr. Gilder queria de mim? — E,
como ele não respondesse: — Pediu-me em casamento.
O irmão continuou a evitar-lhe os olhos.
— Minha querida mocinha, — disse Artur, tentando mos-
trar-se jovial, — na realidade pouco importa a pessoa que
você venha a desposar, contanto que seja feliz. Gilder é um
homem muito sólido; possui uma considerável fortuna
particular.
Dessa feita ela voltou-se toda e encarou com ele.
— Artur, por que é que você insiste nessa questão de for-
tuna? Onde está o meu dinheiro?
A pergunta fora feita à queima-roupa e não havia tergiversar.
Ele decidiu-se a enfrentar uma situação que surgia agora pela
primeira vez.
— O seu dinheiro? Hom'essa, está investido, naturalmente!
A despeito de todo o seu esforço, não conseguira apresentar
o tom convincente que era tão necessário.
— A sua fortuna está em toda a sorte de ações e títulos. Que
estranha pergunta para me fazer, menina!
— Quanto dinheiro eu tenho? — insistiu ela, impiedosa.
— Aproximadamente um quarto de milhão... pouco mais ou
pouco menos. Pelo amor de Deus, não me fale em dinheiro,
minha querida.
— Mas eu quero falar em dinheiro. Artur, ainda me resta
algum?
— Como você é bobinha! É lógico que sim! Oxalá eu tivesse
a metade do que você tem! Você é uma garotinha muito rica
e deverá ser uma garotinha muito feliz.
Ela abanou a cabeça.
— Pois acho que não tenho nada, — exclamou, e o coração
dele se confrangeu.
Com tremendo esforço de vontade ele enfrentou-lhe o olhar
inquisitivo.
— Por que é que você diz isso?
Ela meneou a cabeça.
— Não sei... de certo modo, espero ser pobre. Sei que herdei
algum dinheiro porque você me mostrou o testamento há
muito tempo. Mas é você, Artur, quem tem tomado conta
dele, e qualquer coisa me diz que nem tudo tem sido ouro
sobre azul para você.
— Está insinuando que roubei a sua fortuna? — atalhou ele,
erguendo a voz, e ela sorriu.
— Eu seria incapaz de acusá-lo disso. Acho possível que
você tenha investido a minha fortuna... imprudentemente!
E é muito possível que aquele quarto de milhão tenha
minguado, minguado, até desaparecer. É isso?
Ele não respondeu.
— É isso?
— Eu gostaria que você não me fizesse perguntas idiotas, —
respondeu ele, por fim, irritado. — Está claro que não é isso!
Por um momento, sentiu o desejo de contar-lhe a verdade;
mas a vaidade, o temor do possível efeito que a notícia teria
sobre' a única pessoa no mundo a quem consagrava um
pouco de afeto inibiram-lhe a confissão.
E voltou, naturalmente, ao único pensamento presente em
seu espírito enquanto ela tagarelava e ele matutava. A sua
última esperança residia na descoberta do tesouro de
Chelford.

CAPÍTULO XVI

Para indizível alívio do irmão, Leslie mostrou-se
extremamente jovial durante o jantar, e a lembrança de
Fabrian parecia ter-se, de fato, dissipado.
— Leslie, — pediu ele, depois que o café foi servido, —
quero que me faça um grande favor. Eu estava imaginando
se você não gostaria de convidar Mary Wenner para passar
conosco um fim de semana? Terei muito serviço e ela é uma
excelente estenógrafa. Mas serei totalmente franco com
você e lhe direi que essa não é a única razão por que eu
gostaria que você a convidasse. Ela se meteu numa espécie
de enrascada e desejo ajudá-la.
Se Leslie Gine fosse curiosa, tê-lo-ia talvez interrogado mais
acerca dessa mítica enrascada.
— Não sei por que ela não deveria vir, — acedeu a jovem. —
Se você me der o endereço, escreverei a ela.
— Para ser perfeitamente sincero, gosto daquela moça. Não é
uma dama, naturalmente, mas acontece que, hoje em dia, o
termo "dama" é vago e sem sentido. E não houve realmente
nada no caso dela com Harry. Quero dizer, não foi coisa
séria.
— Nunca pensei que fosse, — conveio Leslie.
E não se falou mais no assunto de Mary Wenner.
Súbito, ouviram soar a campainha na copa e Leslie correu
para a porta. Através do vidro avistou a claridade de uma
camisa branca na entrada não iluminada, e acendeu a luz.
Era Dick. Com uma praga, Artur Gine deu-se pressa a fugir
para o quarto, batendo a porta com força. Ele esperara que
Dick houvesse esquecido a ameaça de ir visitá-los naquela
noite.
— Entra Richard de Chelford! — anunciou a jovem,
dramaticamente, ao abrir a porta. Travou-lhe do braço e
conduziu-o à sala de estar.
— Artur está invisível esta noite; trabalhando muito. Ele não
gosta de você, e você não gosta dele, de modo que não
seremos interrompidos. Dick, você foi um amor chegando
como chegou esta tarde.
— Gilder lhe propôs casamento, não foi isso?
— Ele contou a você? — Ela desferiu um longo suspiro. —
Foi, fiquei pasmada. Imagino que tenha sido muito
lisonjeiro, mas porque terá ele feito isso tão
precipitadamente?
Dick tirou um cigarro da caixa que ela lhe ofereceu e
acendeu-o antes de responder.
— Foi exatamente o que vim descobrir, — disse, afinal. —
Sinto-me assim como um grande inquisidor, mas preciso
saber. Você tem certeza de que Artur não lhe deu nenhum
aviso dessa proposta?
— Absoluta. Ele ficou tão espantado quanto eu.
— Vocês discutiram o assunto? — perguntou rapidamente o
rapaz.
Ela hesitou.
— Sim, falei sobre isso no carro quando vínhamos para cá, e
Artur se mostrou... espantado.
— Só espantado... não ficou furioso?
— Pode ser que tenha ficado furioso também. Artur não
costuma demonstrar seus sentimentos.
— Imagino que não, — volveu Dick, secamente. — E, logo:
— Quer perguntar a ele se posso vê-lo por cinco minutos?
Ela considerou-o com o olhar perturbado.
— Vocês não vão brigar?
Dick sacudiu a cabeça.
— Não. Só vou fazer-lhe uma ou duas perguntas. Você
compreende que eu tenho o direito de saber.
— Por que "tem o direito"?
— Acha que não? — perguntou ele gentilmente.
Os olhos dela procuraram os dele por um segundo, e logo se
afastaram, ao ler neles algo que a emocionou e magoou. Sem
uma palavra, saiu da sala e foi bater à porta de Artur.

CAPÍTULO XVII

O advogado nem sequer fez menção de levantar-se da
poltrona quando Dick entrou, fechando a porta atrás de si.
— Sente-se, por favor, Alford. Leslie me disse que você
queria falar comigo.
— Leslie não precisava ter dado esse recado. Eu já lhe havia
dito, esta tarde, que viria aqui para ouvir uma explicação.
— Sobre?
— Sobre o incidente desagradável no apartamento de Gilder.
Esse homem propôs casamento a sua irmã... você sabe disso?
— Leslie me contou, — disse o outro, depois de uma pausa.
— E você ficou aborrecido, imagino eu? Vai despedir
amanhã o seu funcionário?
O outro recostou-se na poltrona.
— Não vejo por que deva despedi-lo, — retrucou, friamente.
— Afinal de contas, não é crime nenhum um homem
propor casamento a uma moça bonita. Está visto que ele não
é a espécie de pessoa que eu escolheria para cunhado, mas se
os irmãos tivessem de escolher os maridos das irmãs, Alford,
haveria casamentos muito estranhos por aí!
— Em que se baseia a ascendência dele? — perguntou Dick
tranqüilamente.
— Eu não...
— Qual é o motivo da influência dele sobre você?
— Que diabo está querendo dizer?
— O que eu disse. Você jamais toleraria que um homem
como Gilder requestasse sua irmã, sem falar no insulto que
ele dirigiu à futura Condessa de Chelford, a menos que
tivesse tamanho domínio sobre você que toda a sua
indignação natural fosse esmagada pelo medo de uma
conseqüência que ele brandisse sobre a sua cabeça.
Artur Gine encontrou dificuldade para controlar a voz.
— Meu caro rapaz, isso é puro melodrama! — zombeteou
ele. — Domínio sobre mim! Você, com certeza, andou
estudando a última peça de Drury Lane! Está claro que eu
preferiria ver Leslie casada com seu irmão, mas não
colocarei obstáculos no seu caminho se o coração dela
pender para outra pessoa.
— Para Gilder?
— Para Gilder, — confirmou Artur, gravemente, como se o
assunto tivesse sido objeto de profundas reflexões e
ponderações.
Foi quando Dick Alford fez uma pergunta que o pôs em pé,
lívido e trêmulo.
— É por causa das promissórias?
— Das... das o quê? — gaguejou o advogado.
— Das quatro promissórias pretensamente aceitas por meu
irmão... visto que as assinaturas foram falsificadas. Pensei
que você soubesse que eu as vi. Foram-me mostradas no
banco e,
felizmente, não as repudiei... felizmente para você, quero
dizer. Quando fui vê-las outra vez, haviam sido resgatadas.
Suponho que o Sr. Fabrian Gilder as resgatou. Isso deve ter-
lhe custado pouco mais de cinco mil libras, e acredito que
ele não o tenha feito por mero altruísmo.
A boca de Artur Gine estava seca; ele mal podia falar.
— Só hoje é que fiquei sabendo, — murmurou. — Harry
estava doente na ocasião. O dinheiro me era devido por...
por... custas judiciárias. Fui ao banco para pagá-las e descobri
que elas tinham sido pagas.
— Era essa a razão da ascendência?
Ele não enfrentou o olhar decidido que se fixava nele.
— Sim, era essa a razão, se é isso o que quer saber. Você não
há de imaginar que eu consentiria no casamento de Leslie
com um porco como Gilder a não ser... a não ser que ele
tivesse alguma coisa contra mim, não é mesmo? Você não
compreende a minha posição, Alford? Estou arruinado! Esse
sujeito poderia mandar-me para a cadeia... e ainda pode.
Dick abanou a cabeça.
— Despeça-o amanhã. Se ele apresentar as promissórias, eu
me encarregarei de fazer que Harry reconheça as
assinaturas.
As cores voltaram ao rosto cadavérico do advogado.
— Você fará isso? — perguntou, veemente. — Meu Deus!
você não sabe o peso que me tirou da cabeça. Você é um
anjo! Eu o despedirei amanhã.
Ele estendeu a mão ansiosa e Dick apertou-a com alguma
hesitação. Nas melhores ocasiões, Artur Gine não o
impressionava; naquele momento, quase incoerente de
alívio, pareceu-lhe um lamentável covarde.
— Pagarei tudo a Harry, até o último penny. Tenho agora
um negócio em vista, que me trará uma fortuna, e assim
poderei pagar todas as minhas dívidas e reabilitar-me outra
vez.
Havia comicidade na situação; pois o negócio destinado a
reabilitar-lhe a fortuna era nada menos que o roubo
desavergonhado da herança de Harry Chelford! Artur,
entretanto, não tinha consciência da ironia da situação.
Trataria de Gilder na manhã seguinte. Graças a Deus, não se
afundara ainda mais na lama! O conhecimento de que na sua
carteira havia outra promissória ainda não colocada em
circulação não bastou a enfriar o virtuoso ardor que ele
experimentava. Dali por diante seguiria o bom caminho.
— Há uma coisa que você poderia fazer por mim, Alford...
apressar o casamento. Marque-o para o mês que vem, se
puder.
Leslie é apenas uma tolinha, está tentando adiar o inevitável,
o que é muito natural, não acha? Você não poderia apressar
Harry...?
Dick Alford encarou-o com firmeza.
— Essa questão deve ficar inteiramente a cargo de Leslie,
disse ele. O tom era definido e final.
Saíram juntos da biblioteca; Leslie, que estava esperando
meio temerosa, viu o sorriso no rosto do irmão e suspirou,
reconhecida.
Artur não poderia mostrar-se mais expansivo.
— Aqui há uma coisa que interessará a você!
Apontou para a parede. Pendente de um escuro escudo de
madeira, via-se uma adaga de ferro — preta e sinistra, o cabo
alisado pelo uso, a longa lâmina cheia de dentes. Dick já a
vira antes.
— Isto aqui devia estar em sua casa, Alford. A adaga
verdadeira do verdadeiro matador do Abade Negro: Hubert
de Redruth! Veja as armas dele no punho.
— Já vi, — volveu Dick, lacônico. — Ponha o casaco e
vamos dar uma volta, Leslie, — sugeriu, e o obsequioso
Artur, que teria anuído a qualquer projeto que ele
propusesse, secundou-lhe a sugestão.

CAPÍTULO XVIII

A noite estava escura e fria. Era noite de lua cheia, que se
divisava, a intervalos, por entre as nuvens. Leslie enfiou o
braço no braço dele, enquanto cruzavam a alameda que
conduzia à estrada.
— Vocês brigaram?
— N-não, não brigamos, — respondeu Dick. — Houve um
pouco de franqueza, mas creio que muita coisa se esclareceu
e, afinal de contas, foi para isso que vim. Ele vai despedir
Gilder amanhã.
— Você seria um irmão maravilhoso, — disse ela.
— Eu sou, — tornou ele, brusco, e ela sorriu no escuro. — O
seu bonito irmão pediu-me que a persuadisse a casar no mês
que vem, e eu disse-lhe, à queima-buxa, que não faria nada
disso. Sabe, Leslie, que você e Harry nunca se vêem entre
um fim de semana e outro?
Fazia muito tempo que ela o sabia, e era um constante
motivo de autocensura o sentir-se cada vez menos desejosa
da companhia do noivo.
— Na verdade, ele não se interessa por mim, Dick, — disse a
jovem. — Harry está tão absorto na sua caçada ao tesouro e
na sua estranha caçada ao elixir da vida...
— Ele falou a você sobre isso?
— Falou, naturalmente! Você sabe, Dick, que ele quase me
convenceu de que há qualquer coisa nessa idéia? — replicou
ela, em tom de gracejo. E ajuntou, depois de uma pausa: —
Você não acha?
— Na Água da Vida... talvez.
— E no tesouro?
— Pode ser. Gerações de Chelfords têm andado em cata
desse maldito ouro, e creio que nos últimos quatrocentos
anos já se gastou quase tanto dinheiro na busca quanto vale
o tesouro! A mim ninguém me convence de que a Boa
Rainha Bess, de piedosa memória, não empalmou o tesouro
inteirinho!
— Pois eu tenho absoluta certeza de que não, — foi a res-
posta surpreendente. — Andei lendo com muito cuidado a
história elisabetana, e o ano em que o seu antepassado
escondeu o dinheiro foi o ano em que a Rainha andava tão
precisada de dinheiro que precisou pedi-lo emprestado aos
lombardos.
Ele se deteve.
— Verdade? — perguntou, incrédulo.
— Absoluta. E se você não fosse tão cético e tivesse lido um
pouco mais, saberia o que qualquer criança de escola poderá
dizer-lhe, isto é, que em 1582 a Rainha estava quebrada.
Você faz objeção à palavra vulgar?
— É uma palavra familiar, — riu-se ele.
Haviam chegado ao corte profundo. Ele dobrou à esquerda,
abriu uma porteira e os dois subiram um caminhozinho que
levava às ruínas da Abadia de Chelford.
A lua se mostrava entre dois montes de nuvens.
— Você devia ver a abadia à luz da lua, se nunca a viu. É
bonita, — disse o rapaz, dando-lhe a mão para ajudá-la a
subir o íngreme atalho.
Ao chegarem ao ponto de onde se avistavam os muros e as
torres partidas daquele antigo sítio de paz, alguma coisa da
solenidade da cena penetrou-lhe o coração, e ela
permaneceu imóvel, olhando, fascinada, para os escombros
do que fora outrora uma grande abadia. As ruínas ficavam na
superfície mais ampla do que localmente se conhecia pelo
nome de "O Morro" — o alto aterro que se estendia,
praticamente, da abadia à estrada, acompanhando, o curso
do pequeno Ribeirão dos Corvos. Aqui, rezava a tradição,
erguera-se antanho um local de sacrifício, antes que se
erigisse a igreja inglesa de pedra, antes que os monges
normandos houvessem cinzelado o granito da sua grande
abadia.
— É maravilhoso! — exclamou a jovem.
Tê-la-iam enganado os seus olhos? Seria capaz de jurar que
vira qualquer coisa mover-se na sombra da velha torre. Ele
ouviu-lhe o respirar apressado.
— Que foi? — perguntou.
— Não sei... minha imaginação, talvez. Pensei ver alguém
movendo-se ali.
Ele seguiu-lhe a direção dos olhos.
— Não poderia haver ninguém aqui, a esta hora da noite, a
não ser o Abade Negro, — volveu o rapaz, em tom jocoso.
— E nós não temos medo dele, temos?
— Eu, não, — disse ela com uma firmeza que estava longe de
sentir.
Nesse momento, ouviu uma coisa — uma coisa que lhe
mudou o sangue em água. Era um gemido baixo de angústia,
um soluçante diminuendo de sons, que principiava numa
nota alta e ia descendo a escala até tornar-se inaudível.
— Que foi isso? — perguntou ela, agarrando-lhe o braço.
Ele não respondeu; estava forçando a vista na direção das
sombras, tentando enxergar.
Repetiu-se o som; desta vez, um gemido que rematava num
berro. Ele segurou a moça pelo ombro. Avistara uma figura
que se esgueirava da abadia na direção do rio. Uma figura
alta, negra, claramente visível ao luar. Ela viu-a também.
— Não me deixe, Dick! — suplicou, ao perceber que o rapaz
procurava desvencilhar-se dela.
Depois, de repente, sentiu que a tensão dele se afrouxava.
— Deixe-o ir, — murmurou Dick, mais para si mesmo.
Ela agarrou-se a ele desesperadamente, freneticamente,
quando a figura tropeçou e partiu, cambaleando, para as
árvores que num instante a engolfariam. A Coisa hedionda
corria, parando de vez em quando para voltar-se e
apostrofar, numa linguagem incompreensível, o homem e a
mulher que permaneciam imóveis na borda do corte.
Bracejando como um demente, uivando de medonha
alegria, gritando de medo sem sentido, desapareceu na
escuridão do mato, uma coisa obscena e suja, que pertencia
aos sonhos maus e às hórridas imaginações da loucura. De
longe, da distância,, chegou-lhe o uivo e, a seguir, a noite o
engoliu.
— Que coisa horrível! — Ela sentiu que as pernas lhe fal-
tavam e não se lembrou de mais nada.

CAPÍTULO XIX

Leslie abriu os olhos e forcejou por identificar o rosto
inclinado sobre ela. Estava deitada à beira da estrada, pois
Dick a carregara até o corte, na direção de Willow House.
— Que coisa medonha! — Ela estremeceu e fechou os
olhos. — Era o Abade Negro?
Dick Alford não replicou de pronto. Estava tão preocupado
com a moça que lhe esqueceram todos os outros interesses.
— Agora estou bem, — disse ela e, com a ajuda dele, ergueu-
se, trêmula, em pé. — Eu lhe disse que era uma boba. Este é
o meu dia de veneta. Que era aquilo, Dick?
— Estava longe demais para eu poder vê-lo, — respondeu o
rapaz; — provavelmente um dos nossos estúpidos aldeões
sob a influência da bebida.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não, não era isso Dick! Era... — Tornou a estremecer. —
Acho melhor voltar para casa.
— Creio que você fará bem, — tornou ele, gravemente. —
Eu agora daria tudo para não tê-la trazido aqui.
Ela riu-se, ainda insegura, e achegou-se ainda mais ao
companheiro.
— De certo modo, gostei, — confessou; enquanto
caminhavam, sem pressa, para a casa dela. — Sabe, Dick,
tive uma porção de sonhos esquisitos: pouco antes de
acordar, tive a impressão de que alguém me beijava. Era tão
convincente que ainda sinto os lábios no meu rosto.
— Eu a beijei, — disse ele, sem se envergonhar. — Cuidei
que o choque a devolvesse à vida!
O riso dela era quase histérico, pois os nervos de Leslie
estavam tensos.
— Você poderia, ao menos, tê-lo negado, — acudiu. — Você
não tem sutileza, Dick!
Enquanto caminhavam passo a passo para a casa, ela o viu
olhar uma ou duas vezes para trás.
— Você não está esperando que... que a coisa venha atrás "de
nós, está? — perguntou, sem poder impedir que os dentes
lhe
batessem.
— Não, imaginei ter ouvido o barulho de um automóvel (o
que era verdade). Eu juraria ter visto um clarão do outro lado
da lombada, mas devo ter-me enganado.
Não se enganara, e sabia-o. Um carro os seguira, subindo de
manso o morro até o corte; ele vira distintamente os raios
refletidos dos faróis e ouvira o macio ronronar do motor. E,
o que era mais certo do que qualquer outra coisa, como o
carro não poderia tef virado naquela estrada estreita, o
motorista desconhecido devia ter apagado as luzes e
desligado o motor.
— Deixe-me vê-la. — Fê-la virar-se para a luz do luar e
ergueu-lhe o rosto. — Não sei se você está horrivelmente
pálida ou se isso é um truque da lua, mas o caso é que me
parece muito mal! É melhor que vá diretamente para a cama
e, se possível, sem ver seu irmão.
— Por quê? — inquiriu ela, surpresa.
— Em primeiro lugar, porque não quero que se divulgue essa
história de alma do outro mundo. Em segundo lugar... bem,
isso não tem importância.
— Estou contente por haver saído, — disse Leslie, em voz
baixa. — E estou contente... — Mas não concluiu a frase.
O silêncio que se seguiu foi um tanto perturbador para
ambos. Em seguida, ela se colocou diante dele.
— Dick, você quer que eu case com seu irmão?
Ele não respondeu.
— Quer? Quer mesmo?
Ela ouviu-o suspirar no escuro. Não podia ver-lhe o rosto,
pois estavam à sombra de um grande cedro, pertinho da
casa.
— Não sei, — disse ele. Havia uma desolação em sua voz que
ela já notara uma vez. — Não se trata de eu querer ou não.
Não posso oferecer razão nenhuma pela qual não deva
realizar-se "o casamento. Você terá de fazer o que quiser,
Leslie. A decisão é exclusivamente sua... e se eu fosse um
homem habituado a rezar, passaria o resto da noite rezando
para que você decidisse bem.
— Você quer que eu case com ele?
— Não posso dizer-lhe.
A voz lhe soou dura, e uma onda de cólera e ressentimento
desarrazoados contra o alheamento dele a empolgou.
— Não tornarei a fazer-lhe essa pergunta, — disse, com voz
trêmula. — Boa noite, Dick.
Ela entrou correndo no vestíbulo e subiu para o quarto.
Muito tempo depois que a jovem se fora ele continuava
olhando, ansioso, para a porta que a tragara.
Com algo semelhante ao desespero no coração, Dick Alford
seguiu a passos rápidos pela estrada na direção do Corte de
Fontwell. Tinha, momentaneamente, algo para distrair-lhe o
espírito.
Não havia sinal de automóvel e, em lugar de passar pelas
porteiras do corte, continuou seguindo o espigão do morro.
Logo depois, viu um novo rastro: o rastro de pneumáticos
cuja banda de rodagem tinha por desenho uma seta.
Distinguiu o local exato em que o carro parara. Na aparência,
o motorista não fizera tentativa alguma para virar, mas
andara de marcha-à-ré um bom trecho. Seguiu o rastro até
vê-lo fazer um círculo, aparentemente num campo aberto.
A porteira estava fechada mas, na terra argilosa, a marca das
rodas era bem visível.
Quinta Vermelha, pensou Dick. Abriu o portão e entrou no
campo. A busca foi rápida, pois não tardou a encontrar o
carro estacionado junto da sebe que corria paralela à estrada.
Os faróis tinham sido apagados, mas o radiador ainda
esíava quente. Examinou com cuidado o automóvel;
trazia chapa de Londres c era novo; um carro dc
turismo norte-americano, com todos os aparelhinhos
de praxe. Anotou o número da chapa, voltou à
porteira, sentou-se sobre ela e ficou esperando.
A vigília não foi prolongada. Do seu posto de
observação avistava, acima do morro, a curva superior
tio arco da abadia e, cinco minutos depois de haver
tornado a sua posição, viu ima figura silhuctada
contra o horizonte cruzar a ladeira e descer a encosta
na sua direção.
Rodeava o parque dc Fossaway uma cerca de tela de
arame de malhas largas, que não oferecia obstáculo
algum a quem quisesse transpô-la; era evidente,
porém, que o estranho não fizera um perfeito
reconhecimento do terreno, pois Dick ouviu tinir a
tela quando um objeto pesado colidiu com ela, depois
un a praga e, logo a seguir, discerniu uma figura que
escalava a cerca E saltava para a estrada.
Durante alguns segundos ele a perdeu de vista mas,
logo depois, a reviu, contrastando com o alvor da
estrada. E veio na sua direção.
— Boa noite, Sr. Gilder, — cumprimentou o rapaz,
polidamente. — Está apreciando as vistas de
Chelfordbury?
Gilder estremeceu violentamente e quase deixou cair
a bengala pesada que trazia.
— Olá! — tartamudeou ele. — Quem é?
Um jato de luz saltou-lhe da mão e concentrou-se no
inquiridor.
— Oh, é você! — exclamou, respirando fundo. —
Puxa! você me assustou! Eu estava justamente
admirando as suas velhas ruínas ao luar. São bonitas.
— Em nome das ruínas eu lhe agradeço, — disse Dick,
com perfeita cortesia. — Quaisquer coisas agradáveis
que se possam dizer sobre a Abadia de Chelford são
profundamente apreciadas pelo seu atual proprietário.
O homem estava desconcertado e manifestamente
constrangido.
— Deixei o meu carro no campo; achei que ele talvez
pudesse atrapalhar o tráfego... — principiou.
— O tráfego por aqui, principalmente entre as dez
horas da noite e meia-noite, não é muito imenso. Mas
se você tem a ilusão de que a Quinta Vermelha lhe
pertence, é muito compreensível que o seu
automóvel esteja estacionado lá. Entretanto,
considero suspeitíssimas as suas perambulações pelas
vizinhanças do parque de Fossaway a esta hora da
noite, sobretudo depois de certas coisas que
aconteceram recentemente.
— Acha que sou o Abade Negro? — voltou o homem,
desdenhoso, e do escuro veio o riso surdo de Dick.
— Existem muitas possibilidades interessantes a seu
respeito, Gilder. O que é que você esperava encontrar
na abadia?
— Eu já lhe disse que estava apenas admirando a
paisagem à luz da lua. Se isto constituir um crime,
você poderá acusar-me perante a justiça.
Com as mãos enterradas nos bolsos, Dick observou o
homem entrar no carro, acender os faróis e acionar o
motor.
— O lugar para admirar as ruínas é no topo do morro e
não dentro delas, — exclamou. — Se você fosse um
admirador normal, não teria desaparecido da minha
vista. Permita-me lembrar também que não era
necessário apagar as luzes nem esconder o carro...
Aconselho-o a tomar cuidado, Gilder.

CAPÍTULO XX

Dick separou diligentemente as cartas e, escolhendo
uma delas, abriu-a. Trazia as armas reais e um simples
endereço: "Nova Scotland Yard". Fora escrita por um
velho companheiro dc escola.
Meu caro Dick, — Devo agradecer-lhe a sua carta, um
tanto quanto extraordinária, mas receio que não
possamos atendê-lo oficialmente. Detetives
particulares, naturalmente, não servem ao seu
intento, e o máximo que posso fazer em seu benefício
é o seguinte. Temos um sargento-detetive aqui na
chefatura, chamado Huttler — você talvez tenha
visto o nome dele ligado ao roubo de Hatton Garden.
É um homem eficientíssimo, que já está na lista de
promoções, mas tem uma aparência esquisita. Na Yard
chamamos "Mono Puttler", embora ele seja
universalmente estimado, apesar do apelido pouco
lisonjeiro. Puttler nunca tira férias e toda a gente
supõe que ele passe as horas de folga em
investigações criminais e durma num canto qualquer
da Yard. Puttler tem direito a uma licença de seis
semanas. É claro que, em circunstâncias normais, ele
não pensaria em tirar nem seis minutos, mas tivemos,
ambos, uma conversinha e, com a plena aprovação do
chefe (foi preciso contar-lhe o que você queria)
Putler passará as férias na Mansão de Fossaway. Como
eu já disse, é uma figura de aspecto estranho,
abstêmio furioso, membro zeloso da igreja e tem
opiniões violentas acerca de música sacra. Você
poderá fiar-se inteiramente da sua discrição.
Informei-o de que terá dez libras por semana e todas
as despesas pagas. Eu quisera poder achá-lo aí
permanentemente, mas confio em que, dentro de seis
semanas, as suas dificuldades estarão solucionadas.
Dick enfiou a carta, com cuidado, no bolso interno do
paletó, cruzou a sala e entrou na biblioteca. Lorde
Chelford ouviu fechar a porta e ergueu os olhos.
— Alô, Dick! — exclamou, amável. — Quais são as novi-
dades?
Antes de responder, Dick Alford encaminhou-se para a
janela através da qual avistara o irmão, fechou-a e trancou-a.
— Que aconteceu? — resmungou Chelford.
— O nosso diabólico amigo tem sido visto e acho aconse-
lhável que a sua janela permaneça fechada.
Harry Chelford levou a mão aos lábios.
— Não se pode fazer nada com esse sujeito? — perguntou,
irritado. — Onde está a polícia? Para que a pagamos? É
monstruoso que toda a região viva aterrorizada por um...
Francamente, Dick, você não pode fazer alguma coisa?
— Mandei vir um homem amanhã para fazer investigações.
Carregou meticulosamente o fornilho do cachimbo e
acendeu-o com um palito de fósforo tirado de um recipiente
de prata, que se achava sobre a mesa de Harry.
— Fui à casa de Leslie, — disse ele. — Esqueça esse livro
infernal e converse comigo.
Com evidente relutância, Lorde Chelford fechou o grosso
volume cuja leitura o absorvia e recostou-se, resignado, na
poltrona.
— Leslie? Tenho-a visto pouco. É uma moça muito
inteligente e sabe o quanto sou ocupado. Nem todas as
mulheres demonstrariam a mesma compreensão. Você viu
Artur?
Dick fez que sim com a cabeça.
— Recebi um recado telefônico dizendo que ele viria aqui
hoje cedo. Quer que eu assine um documento qualquer, em
conexão com os bens de Leslie. Bom sujeito, esse Artur.
— Muito, — conveio Dick, sem nenhum sarcasmo na voz.
— Sim, devo muito a Artur. — Harry olhava através dos
óculos de aros de chifre e meneava a cabeça à medida que
falava.
— Eu não teria conhecido Leslie, e não teria tido a menor
idéia de casar, — prosseguiu, candidamente, — mas Artur
fazia muita questão de arranjar um marido para ela que não
fosse um caça-dotes. E, naturalmente, o dinheiro será útil.
Dick ouviu, paciente, a desconexa justificativa para o
próximo casamento. Já a ouvira antes, expressa nos
mesmíssimos termos.
— Mas, afinal, para que queremos o dinheiro? — perguntou.
— Não somos pobretões.
Harry Chelford encolheu os ombros magros.
— Acho que não somos, — replicou, em tom indiferente. —
Nunca me preocupei com dinheiro. Você é um camarada
tão esperto, Dick, que não precisei aborrecer-me com isso.
Céus, não sei onde eu estaria, se não fosse por você. Você
consegue tudo o que quer, Dick?
O outro acenou afirmativamente com a cabeça.
Os seus olhos vasculhavam a escrivaninha e, volvido algum
tempo, deram com um livro que raro se encontrava muito
longe da mão de Sua Excelência. Levantou-se, estendeu o
braço e pegou o livro, enquanto Chelford o observava, com
um sorriso triunfante.
— Você também, hein, meu velho? Eu sabia que, mais cedo
ou mais tarde, isso acabaria acontecendo. Você é sensato
demais para rejeitar como mito o tesouro de Chelford.
Dick virou as velhas páginas cobertas de uma escrita pálida:
o diário daquele Senhor de Chelford que pagara pela sua
deslealdade às mãos do carrasco.
A idéia lhe acudira no meio da noite anterior e, durante o
dia, o livro lhe entrara e deixara o espírito nos momentos
mais estranhos e incongruentes. Se bem não fosse verdade
que ele se tinha convertido à crença do irmão na existência
do tesouro, a vaga lembrança de umas linhas do diário lhe
espertara a curiosidade. Topando com o trecho, leu:
Esses lingotes ele os colocará no lugar seguro, se o tempo
ainda estiver seco e se a seca continuar, embora as chuvas
estejam próximas.
— Estou apenas perguntando a mim mesmo, — disse ele, ao
devolver o livro, — qual seria o efeito da seca sobre o
esconderijo; e por que a chuva lhe estragaria os planos,
como aparentemente havia de estragá-los.
— Ha, ha! — sobreveio Sua Excelência com alegria quase
ruidosa. — O veneno está produzindo efeito, Richard! Você
ainda será um caçador de tesouros tão ardente quanto eu.
Quer que eu lhe diga onde estava escondido o ouro? —
Inclinou-se para a frente, os cotovelos fincados na mesa, os
olhos fuzilantes. — Numa caverna, ou numa câmara
subterrânea qualquer. Há três referências neste diário a um
picão. — Virou rapidamente as páginas. — Preste atenção,
aqui está uma, — disse ele, e leu:
Neste dia Tom Goodman me trouxe o picão de
Brightelmstone.
— Que vem a ser Brighton, presumo eu, — obtemperou
Dick.
O irmão assentiu com a cabeça, voltando as páginas.
— Aqui está outra referência.
O novo picão chegou. Deixei-o perto do lugar, e os pas-
palhos que o virem mal saberão do valor que ele tem para
mim.
Dick sorriu-se.
— Deve ter sido qualquer coisa notável em matéria de
picões, — disse ele. — Não se faz alusão ao tamanho nem à
forma.
— Em parte alguma; procurei-a pelo diário todo.
Ouviu-se uma batida à porta; era Tomás.
— Vossa Excelência quer tomar o café aqui?
— Não, leve para o quarto.
— Você vai trabalhar esta noite, Dick? — perguntou
Chelford.
— Depois que você tiver ido para a cama, Harry, — tornou
Dick a rir-se, — e acho que já está na hora. Num desses dias
você ainda terá um colapso nervoso e terei de chamar a sua
abominação preferida.
— Credo! — estremeceu Chelford. — Nunca traga um mé-
dico para dentro desta casa... eu os odeio!
Ergueu-se, esticou os braços, bocejou, e Dick seguiu-o para
fora da sala.
— Dormirei bem esta noite, — anunciou Sua Excelência,
atirando para trás o longo cabelo negro, com um gesto
característico. — Se eu tivesse conhecido antes aquele
negócio!
— Que negócio? — inquiriu Dick, bem-humorado.
Não se passava um dia sem que um novo remédio
patenteado entrasse na casa, alguma panacéia, acompanhado
de páginas e páginas de literatura impressa. O hábito dos
remédios de Lorde Chelford era um círculo vicioso. A bula
de cada panacéia lhe revelava sintomas de que ele jamais
tivera consciência até então. E logo que ele se decidia por
uma droga qualquer, esta era suplantada por outra, ainda
mais deslumbrante em suas promessas.
Sobre uma mesinha, à beira da cama, havia um jarro de água
quente e um copo. Chelford abriu uma lata escolhida no
meio da confusão de frascos e caixas, tirou duas pilulazinhas
e deixou-as cair no copo d'água. A seguir, mexeu-as até
dissolvê-las, enquanto Dick o observava, entre divertido e
penalizado.
— Ah! — Chelford depôs o copo sobre a mesinha. — Isto é
que é! Nada de drogas, Dick... apenas uma mistura de
elementos naturais, que trazem repouso ao cérebro cansado
e sono aos olhos doridos.
— Parece-me que você está citando a bula, — disse Dick,
pondo-se a rir. — Até a cocaína é um elemento natural. E
não há nada mais próximo da natureza do que a morfina.
Você é um velho garoto mimado, Harry, e, se me deixasse,
eu levaria todas- essas garrafas infernais e as jogaria dentro
do lago.
— E eu, provavelmente, estaria morto dali a um mês, —
atalhou Harry com um sorriso, principiando a despir-se, — e
você teria de responder a processo por assassínio!
Dick cerrou a porta atrás de si, esperou o ruído do ferrolho e
desceu para o seu quarto. O café o esperava e ele meteu
ombros à tarefa de três horas: abrir cartas, responder a elas,
examinar
folhetos, verificar contas. Havia cheques para assinar,
envelopes para sobrescritar, e eram quase três horas quando
ele se ergueu, com os músculos duros, abriu uma poria
envidraçada, e saiu para o relvado.

CAPÍTULO XXI

Já havia um prenúncio de aurora no céu. O ar estava suave e
puro e ele sorveu largos haustos da champanha da natureza
antes de acender o cachimbo e por-se a caminhar, sem
ruído, ao longo do gramado, seguindo uma direção paralela à
frente da casa.
Nunca se sentira mais insone, e estava debatendo consigo
mesmo se devia tomar um banho frio e continuar algum
trabalho que deixara inacabado na véspera, quando viu, por
um segundo, um pontinho de luz a distância. Um pontinho
branco, semelhante a uma estrela, que luziu e sumiu quase
instantaneamente.
A casa e as árvores circundantes lhe obstruíam a visão, mas
uma caminhada de cinco minutos o levou, através de uma
plantação rala, aos campos do Priorado. Ou estava muito
enganado, ou o ponto luminoso viera da direção das ruínas
da abadia. Deixou-se ficar, por dez minutos, à sombra de um
bosque, mas nenhuma luz apareceu. E, logo, ao erguer o pé
para dar um passo à frente, viu-a outra vez — um brilho
momentâneo; desta feita, não havia dúvida possível:
provinha mesmo da abadia. Furtivamente, subiu ao topo do
Morro, detendo-se para observar.
Novamente a luz, desta vez a menos de cinqüenta jardas, e
ele distinguiu o vulío de um homem que se movia de
mansinho, entre os muros partidos. Vasculhava o chão com
diligência, enquanto a lanterna lhe balouçava de um lado
para outro.
— Perdeu alguma coisa? — perguntou Dick.
O visitante virou-se, com um grito de susto.
— Olá! Quem é você? — perguntou com voz rouca, e Dick
reconheceu a voz. Era Artur Gine!
Momento penoso e constrangedor para Artur Gine!
— Olá! — repetiu, muito sem jeito. — Eu não conseguia
dormir.
— Estava procurando um soporífico? — perguntou Dick,
polido. — Você devia ter ido à nossa casa; meu irmão tem
uma farmacinha, e talvez encontrássemos alguma coisa para
a sua insônia.
— Deixe de gracinhas, — resmungou Artur, sem conseguir
recompor-se. — O que eu queria dizer é que, não podendo
dormir, saí para dar uma volta. Este lugar me interessa.
— Você, por acaso, não viu o Abade Negro? — continuou
Dick no mesmo tom de conversação urbana. — Não? Era de
imaginar. Já é um pouco tarde para ele. Os fantasmas da
nossa família recolhem-se cedo. São uma turma respeitável,
e o Abade, como você provavelmente não ignora, era um
homem altamente respeitável e até religioso, se bem, creio
eu, não fosse poupado pela voz ignominiosa do escândalo.
Enquanto falava, caminhava ao lado de Artur na direção do
corte da estrada, e a luz não lhe permitia ver o escuro rubor
que subira ao rosto bem talhado, mas adivinhou-o.
— Não quero brigar com você, Alford, mas faço veemente
objeção aos seus sarcasmos. Não sei por que eu deveria
explicar-lhe o que quer que fosse, mas você se mostrou meu
amigo esta noite e estou-lhe dizendo a verdade.
Francamente, não é bonito da sua parte duvidar da minha
palavra.
Dick não respondeu, mas postou-se, em atitude de
observação, no alto do barranco, até que o homem
abespinhado desapareceu da sua vista. Que significava tudo
aquilo? perguntou a si mesmo. Que fascínio exerciam as
ruínas da abadia sobre aquelas pessoas tão díspares? Primeiro
Mary Wenner, depois Gilder, agora Artur Gine. Que haveria
naquelas pedras vetustas, capazes de tirar da cama o exigente
advogado àquela hora da madrugada para fazer uma busca?
Conhecia-o muito bem, muito melhor até do que ele o
supunha. Era um homem que detestava qualquer espécie de
desconforto, mas lá estava, às quatro horas da manhã,
vestindo um absurdo mas adequado traje de golfe, de talho
irreprochável, com uma alavanca numa das mãos e uma
lanterna na outra, revolvendo o entulho da abadia e
procurando — o quê? O tesouro!
Só nesse momento a solução ocorreu ao espírito de Dick
Alford, e ele precisou sentar-se no bloco mais próximo de
arenito para poder rir à vontade até que as lágrimas lhe
assomaram aos olhos.
O tesouro! Harry infetara aquela gente prosaica com a sua
obsessão. Mas como? Obviamente, Mary Wenner era o elo
de ligação. Em dado momento, lembrou-se ele, a rapariga
fora uma entusiástica coadjutora dos esforços de Harry, e
acreditava tão implicitamente na existência desse ouro
mítico quanto o seu patrão. Artur era amigo dela: ouvira-os
tratarem-se por "você"; e, através de Artur, Gilder, com
certeza, tivera conhecimento do assunto. Assim, tudo se
explicava! E o tesouro de Chelford, manifestamente, era o
negócio que Artur Gine estava esperando.
Durante todo o trajeto que fez, de volta a casa, Dick sorriu
para si mesmo, até que lhe acudiu um pensamento que
deixava a história menos engraçada. E se eles estivessem
certos e ele estivesse errado? E se existisse, efetivamente,
um tesouro? Mas tanto que lhe ocorreu o pensamento,
afastou-o com uma gargalhada. Aquela gente apenas refletia
o entusiasmo e a crença de Harry.
Fechou a porta do escritório e subiu para o quarto, que
olhava para os jardins da Mansão de Fossaway. Defronte da
sua porta havia um estreito corredor, que desembocava
numa escada igualmente estreita, pela qual se chegava aos
aposentos dos criados. Ao ouvir-lhe os passos na grande
escadaria, uma figura penumbrosa, que estivera rondando o
corredor, esgueirou-se para a entrada estreita e ali se
acachapou. Tomás, o lacaio, viu Dick entrar no quarto e
fechar a poria, e respirou, aliviado. Esperou, mas não ouviu
mais nada.
Reinava o silêncio na Mansão de Fossaway. Nenhum som
chegava do mundo exterior. Cinco minutos depois, Dick
dormia profundamente. Cerrara as cortinas, para que a
claridade não lhe interrompesse o sono, e o quarto
mergulhara numa escuridão quase total.

De ordinário, ele teria ouvido um som, o som das tábuas do
soalho que estalavam do outro lado da porta, e teria
despertado incontinenti. Por duas vezes as tábuas rangeram
debaixo de um peso respeitável, mas ele não se mexeu.
Nisso, a maçaneta da porta girou de mansinho e a própria
porta se moveu uma fração de polegada. A coisa do lado de
fora pôs-se à escuta, arreganhando os dentes brancos num
sorriso. Chegou-lhe o som da respiração regular de Dick
Alford e abriu a porta um pouco mais; a seguir, de gatinhas,
aproximou-se da cama, tateando, à procura do estrado.
O intruso não emitia som algum e, todavia, todo o seu corpo
era sacudido pelo riso. Enfiou a mão no bolso e dele retirou
uma faca de mola, abriu-a com cuidado e experimentou-lhe
o fio com o polegar. Ato contínuo, lentamente, os seus
dedos longos se adiantaram, tentando localizar a posição do
corpo. O Anjo da Morte pairou, naquele segundo, sobre o
homem adormecido.
Da sala no andar térreo subiu a voz de uma mulher —
desvairada — fora de si de terror.
— Dick... Dick, pelo amor de Deus!
Dick virou-se, intranqüilo, na cama e entreabriu os olhos.

CAPÍTULO XXII

— Dick!
Era a voz de uma moça, estridente de medo, que vinha da
sala. lá embaixo.
— Dick!
A coisa que empunhava a faca deixou-a cair, recuou na
direção da porta,, hesitou por um segundo, e saiu.
— Dick!
Novamente a voz, e Dick despertou. Estaria sonhando?
Escorregando da cama, abriu a porta e chegou ao patamar da
escada.
— Quem está chamando? — perguntou, rouco de sono.
— Sou eu... Leslie! Dick, preciso de você.
Ele voltou para o quarto, arrancou um roupão do cabide e
disparou escada abaixo, arrumando-se enquanto descia. Ela
estava em pé, no meio da sala escura. Não trazia chapéu;
enfiara os pés descalços num par de chinelos e um casaco
sobre o que era, evidentemente, uma saia vestida à pressa.
— Que aconteceu, meu bem?
Ele abriu a porta do seu escritório e fê-la entrar. Ela tremia
da cabeça aos pés.
— Não sei. Alguma coisa medonha aconteceu, — ofegou a
moça. — Pensei que o meu carro o acordasse... você não
ouviu?
— Alguma coisa medonha aconteceu? O quê? — perguntou
ele, depressa.
— Não sei. Acho que estou vendo tudo fora de proporção...
vi Artur lutando com um homem no gramado. Foi horrível.
Imaginei estar enganada e fui ao quarto dele, mas a cama
estava vazia e nem fora desarrumada. Enquanto eu descia a
escada e chegava ao gramado, eles desapareceram. Oh, Dick,
o que é que pode ter acontecido?
— Lutando? — O tom do rapaz era de incredulidade. — Vi
Artur... não sei há quanto tempo; talvez há uma ou duas
horas. Não sei quanto tempo dormi.
Já era dia; o relógio sobre o consolo da lareira indicava cinco
horas e um quarto.
— Espere um minuto. Estarei com você num instante.
Subiu correndo a escada e, cinco minutos depois, estava
junto
dela, vestido, e, ajudando-a a entrar no carro, fez voar o
automovelzinho pela alameda.
— Como foi que você entrou em casa?
— Pelo escritório. Toquei a campainha da porta, mas nin-
guém atendeu. Então, experimentei as suas portas
envidraçadas e vi que estavam abertas.
— Sempre me esqueço do fechá-las. Ainda bem que mi
esqueci. E elas nunca mais serão fechadas no futuro. Agora,
conte-me direitinho o que aconteceu.
Ela contou a história coerentemente. O simples contacto
com aquele homem lhe restituía a coragem. E à proporção
que se tornava mais calma, tornava-se penitente.
— Você há de pensar que vivo tremendo de medo! — disse,
em tom lamentoso. — Não sei que horas eram... deve fazer
meia hora, mais ou menos... eu estava dormindo quando
ouvi vozes. Fui à janela e olhei. Estava escuro; há uma
porção de árvores defronte da casa; mas vi dois homens, e
não teria sabido que um deles era Artur se não o tivesse
ouvido falar, com raiva.
- Ouviu alguma coisa do que ele disse?
— Não, os dois estavam muito longe. Perto dos loureiros,
que escondem a casa da estrada. Depois vi Artur bater no
homem, e os dois se engalfinharam, e foi tudo o que vi.
Quando consegui chegar lá embaixo, eles tinham
desaparecido. — Logo, em outro tom: — Mas você disse que
o viu? Como foi isso?
Dick apresentou uma versão do seu encontro com Artur
imerecidamente lisonjeira para o advogado.
— Mas não pode ser verdade! — volveu ela, perplexa. — Ele
nem sequer se deitou. Que significa tudo isso, Dick?
— Só Deus sabe! — respondeu Dick, piedosamente. — Eu
quisera que o meu amigo Puttler estivesse aqui.
O carro passou pelo corte e tomou a longa reta que conduzia
a Willow House; estavam entrando na alameda quando Dick
viu um homem caminhando à sua frente.
— Lá está o seu Artur, — disse ele, e ela expediu um gritinho
de alegria.
Era Artur, mas com uma diferença. O nariz sangrara e um
dos olhos estava ligeiramente descolorido. Em outras
circunstâncias, Dick teria rompido numa gargalhada, mas a
jovem se mostrava tão aflita com as contusões sofridas pelo
irmão que teria sido até brutal encontrar motivo de riso na
desordem em que se achava o ajanotado causídico.
— Não foi nada, — disse ele, mal-humorado. — Topei com
um caçador furtivo e acabei discutindo com ele.
As calças novas de golfe estavam sujas e rasgadas ao nível
dos joelhos; os nós das mãos de Artur, escoriados,
sangravam. Dick percebeu que aquele não era o momento
de fazer perguntas, e seguiu os irmãos ao interior da casa,
como um interessado e cauto observador dos
acontecimentos.
Os criados tinham sido acordados e um deles trouxe um
pouco de café. Semimorto de sono, Dick aceitou,
agradecido, a xícara fumegante.
— O que é que você acha que aconteceu, Dick? —
perguntou ela, depois que Artur subiu para o quarto a fim de
tratar dos seus ferimentos, tendo recusado o auxílio que a
irmã lhe oferecera.
— Acho que ele nos contou o que aconteceu. Teve um
desentendimento com um caçador furtivo... uma briga
comum. É uma dessas coisas desagradáveis que o melhor dos
homens nem sempre consegue evitar.
Ela dirigiu-lhe um olhar desconfiado.
— Você não está sendo sincero, Dick. E não pode ter sido
um caçador furtivo. Tenho absoluta certeza de que era o Sr.
Gilder.
Dick não estava preparado para refutar esse ponto de vista.
Já lhe ocorrera a probabilidade de que o adversário de Artur
fora o seu funcionário principal. Mas por que estaria Gilder
nas imediações de Willow House àquela hora da manhã?
Numa ocasião mais propícia, pediria a Artur Gine que lhe
contasse a verdade.
Percebeu que ela estava olhando para ele e, encontrando-lhe
os olhos, viu uma coisa que o fez perder a respiração.
— O que é que eu faria sem você? — perguntou ela, com um
gesto de impotência. — Corro para você todas as vezes que
me magôo, e você aparece, num passe de mágica, todas as
vezes que estou em dificuldades! Dick, um dia desses ainda
serei uma vergonha para o meu sexo!
— Espero que não, Leslie, — respondeu ele, sorrindo. — O
que é que você tem em mente de tão vergonhoso?
Ela inclinou gravemente a cabeça.
— Você vai ver. Também sei ser misteriosa!
Ele não aceitou a oferta do carro dela e voltou a pé para casa.
A menos que o soporífico tivesse surtido efeito, Harry teria
ouvido o ruído do carro, pois o seu quarto deitava para a
alameda. Mas nenhum som chegou da Câmara do Rei, como
era grandiloqüentemente chamado o seu quarto de dormir, e
Dick, recolhendo aos seus aposentos, despiu-se.
Já ia deitar-se quando o seu pé tocou numa coisa dura e
brilhante. Abaixou-se e apanhou-a.
— Misericórdia! — murmurou, e acendeu a luz.
A faca era nova e tinha o fio de uma navalha. Virou-a e
revirou-a nas mãos, com sobrecenho. Em seguida, trancou a
porta. Não costumava dormir atrás de portas trancadas. Mas
compreendera que as vinte e quatro horas por que estava
passando fervilhavam de possibilidades desagradáveis.

CAPÍTULO XXIII

O escritório de Gine & Gine amanheceu em rebuliço no dia
seguinte, mercê de uma ocorrência totalmente inesperada.
Pela primeira vez nos seus vinte e cinco anos de conexão
com a firma, o Sr. Fabrian Gilder não aparecera. Em lugar do
Sr. Gilder chegara uma nota, endereçada ao funcionário mais
antigo, em que se pedia que certa gaveta da sua mesa fosse
aberta e o conteúdo dela enviado, por mensageiro especial, à
casa do Sr. Gilder, em Regenfs Park. Um pós-escrito
rematava a nota:
Ê pouco provável que eu volte à firma. Entreguei o meu
pedido de demissão ao Sr. Gine e tenciono dedicar o meu
tempo ao desenvolvimento dos meus negócios particulares.
Um telegrama de Artur Gine incumbia o funcionário mais
antigo de ocupar o posto do renunciante Gilder: arranjo não
muito satisfatório para o funcionário mais antigo, pois
circulavam rumores desagradáveis a respeito de Gine &
Gine, insinuações de terríveis acontecimentos futuros, que
faziam tremer em sua base os membros mais antigos do
pessoal.

Dick Alford tomou banho e barbeou-se pouco antes do
almoço, desceu e constatou que o trem do meio-dia lhe
trouxera um visitante.
Embora nunca o tivesse visto, reconheceu o Sargento
Puttler pela descrição que o seu amigo lhe enviara. Era um
homem alto e escaveirado de quarenta anos. Os olhos
castanhos e cansados, que olhavam com suave melancolia
das órbitas fundas, lembraram-lhe um chimpanzé doente e
macambúzio que vira, certa vez. A testa era baixa, o lábio
superior comprido e os braços quase alcançavam os joelhos.
Acrescentados a uma curvatura constitucional do corpo,
esses traços concorriam para a aparência pouco atraente. O
pobre Sr. Puttler não era alheio ao molde simiesco em que
se lhe modelara a forma e esta, ao que tudo indicava, o
deprimia e alegrava, alternadamente.
— Então, senhor, que tal lhe pareço? — perguntou, sem
sorrir, apesar do brilho de malicioso júbilo nos olhos
castanhos. — Tenho conhecido pessoas que desmaiam ao
ver-me pela primeira vez, sobretudo pessoas românticas.
— Não desmaiarei, — prometeu Dick, com um sorriso, —
provavelmente porque não sou romântico.
O lacaio entrou nesse momento; devia possuir uma alma
ultra-romântica, pois vacilou e pestanejou visivelmente à
vista do estranho de braços compridos.
— Leve o Sr. Puttler ao quarto dele. Depois, Puttler, venha
almoçar, que eu tenho uma coisa para contar-lhe.
O aparvalhado Tomás subiu a escada à frente do estranho e
conduziu-o ao quarto pegado ao de Dick. A governanta fora
avisada da sua chegada e o quarto estava pronto. Puttler
colocou a maleta no chão e circungirou os olhos pelo
formoso aposento.
— Há mais alguma coisa que eu possa fazer, meu senhor? —
perguntou Tomás.
O Sargento Puttler piscou para ele.
— Nada, obrigado. — E, quando Tomás fez menção de
retirar-se: — A propósito, como é que você se chama agora?
— Eu, senhor...? O meu nome é Tomás Felizão.
Puttler abanou tristemente a cabeça.
— Tomás Azarão, — disse ele; — Dito Pé-frio ou Zé
Urucubaca. O seu patrão já sabe que o seu nome é Sleisser e
que você passou uns tempos em Dartmoor?
— Não, — retrucou o homem, taciturno.
— Pois saberá, Tomás... saberá, — afiançou gentilmente o
detetive, e o lacaio, com um olhar assassino, esgueirou-se
para fora do quarto.
O Sr. Puttler desceu vibrando de satisfação.
— O senhor tem certeza de que aquele é o meu quarto, Sr.
Alford? — indagou. — Não está, porventura, esperando o
Príncipe de Gales? Sempre alimentei a secreta ambição de
dormir numa cama de sobrecéu. Pronto, Sr. Alford.
— Primeiro que tudo, preciso apresentá-lo a meu irmão. A
propósito, ele possui um temperamento meio nervoso, e eu
lhe disse que você pertence a uma firma de contadores, e
veio aqui ajudar-me a por em ordem os meus livros.
O Sr. Puttler exprimiu a sua anuência a essa branda forma de
logro. Foi levado à biblioteca e formalmente apresentado.
Harry Chelford estava tão acostumado ao advento dos
extraordinários convidados de Dick, que não viu nada de
insólito no aparecimento do simiesco Puttler. Felizmente
era míope e, conquanto fosse para ele uma experiência
assustadora ver-se apertando a mão de outra pessoa por cima
de uma escrivaninha imensamente larga, que um homem
comum não abarcaria, não compreendeu a causa do
fenômeno.
Dick recebia contadores, corretores de imóveis, um ou
outro intendente ocasional, de modo que não havia
novidade alguma no convite. Estranhos de sábia carantonha
sentavam-se à sua mesa, de onde em onde, eram-lhe
apresentados e desapareciam da sua lembrança.
— Ficará seis semanas, — explicara-lhe o irmão, — e você
não deverá achar ruim se o vir rondando o lugar, porque eu
quero uma avaliação do imóvel, e ele tem os seus métodos
especiais.
— Você poderia mandá-lo avaliar o Abade Negro, — acudiu
Harry, entre severo e divertido. — Nós precisamos, Dick,
menos de um avaliador que de um bom policial.
Dick Alford achava que o convidado poderia exercer as duas
funções, mas guardou para si a observação.
Conduziu o visitante de volta ao seu escritoriozinho, fechou
a porta com cuidado e sentou-se à mesa.
— Agora, fique à vontade. Fuma?
O Sr. Puttler remexeu no bolso e de lá trouxe um cachimbo
preto.
— Não é muito aristocrático, — disse, à guisa de escusa, —
mas prefiro isto a charutos e cigarros.
— Eu lhe farei companhia.
O escritório tinha duas portas: uma, que se abria para a sala e
outra, para um corredor de serviço, que ia dar no quarto da
governanta. Havia dois minutos que os dois estavam
conversando, conquanto a contribuição do Sr. Puttler ao
discurso se resumisse em uma ou outra pergunta ocasional,
quando Tomás chegou sem ruído pelo corredor lateral, deu
uma espiada na sala e voltou para a porta do escritório. Havia
um quê de apreensão no rosto magro e informe, não de todo
infundado. Inclinando-se, aplicou um olho à fechadura. Só
conseguia ver a ponta do sofá e a cabeça e os ombros do
estranho visitante. Este segurava qualquer coisa na mão —
uma faca de cabo branco — e examinava-a com curiosidade.
Tomás inclinou a cabeça e comprimiu o ouvido de encontro
ao buraco da fechadura.
Dick tinha as costas voltadas para a porta e falava em tom
mais baixo que o usual, o que representava uma
desvantagem para o escutador, visto que só lhe chegavam
poucas frases claras e inteligíveis.
"... pode ter sido alguém admitido na casa por um dos
criados", foi a primeira coisa que ouviu. Poucos minutos
depois, o Sr. Puttler, cuja voz era nítida, perguntou: "A
janela da biblioteca estava aberta?" E ele ouviu Dick
responder "Estava", ajuntando qualquer coisa
incompreensível.
As solas e os saltos das botas de Tomás eram de borracha.
Foi até à sala para fazer outro reconhecimento, e voltou ao
posto de escuta, a tempo de ouvir Dick declarar:
— Meu irmão não tem um único inimigo no mundo. Receio
já não poder dizer o mesmo...
De uma feita, o escuta captou a palavra "tesouro" e, de outra,
ouviu o nome de "Artur Gine", mas não ficou sabendo a
troco de quê. Tomás fez nova visita à sala. Não poderia
arriscar-se a ser visto com o ouvido colado à porta. Segundo
lhe pareceu, não estava sendo observado. O velho mordomo
de Chelford encontrava-se na sala dos* criados. Dick e o
irmão não almoçavam antes das duas, horário miserável do
ponto de vista dos criados, mas muito conveniente para
Dick e a sua peculiar ocupação.
Voltou a espiar pelo buraco da fechadura. O detetive
continuava com a faca na mão e observava-a atentamente.
Ouviu-o dizer, "Isto é novo" e, logo em seguida, Dick
encetou uma declaração longa e aparentemente
explanatória, nenhuma palavra da qual chegou aos ouvidos
do enfadado explorador. Este ansiava, principalmente, por
ouvir alguma referência a si mesmo. Mas, ou esta não foi
feita, ou o próprio nome lhe escapou.
Logo após, entretanto, identificou uma expressão familiar.
Dick Alford discorria sobre o Abade Negro, e Tomás ouviu
uma sumária descrição do abantesma. Depois, a voz fez-se
mais baixa e, concomitantemente, o aflito lacaio ouviu os
passos majestosos do mordomo, esgueirou-se na direção do
quarto da governanta e estava atarefado na louçaria quando o
imponente Sr. Glover o encontrou.

CAPÍTULO XXIV

O almoço não foi uma refeição cordial. Harry adquirira o
hábito vergonhoso de trazer um livro para a mesa das
refeições, e absorveu-se totalmente na leitura do volume,
deixando Dick e o visitante encarregados de sustentar a
conversação, como se ele não estivesse presente. Só uma
vez Dick interrompeu a leitura do irmão.
— Leslie vem tomar chá, — anunciou. — Ela telefonou
pouco antes do almoço.
Harry Alford ergueu os olhos e pareceu consternado.
— Isso é uma lástima! Eu havia prometido a mim mesmo
uma tarde sem interrupções com Fra Heikler. Acabo de
receber uma edição fac-similada, que me mandaram de
Lípsia. Como você deve estar lembrado, Dick, Heikler era
um monge enclaustrado do tempo de Elizabeth, sendo a
nossa uma das poucas abadias que não sofreu a interferência
de Henrique VIII, nem de Elizabeth; em parte, segundo me
parece, porque a nossa ordem de monges era infensa aos
jesuítas.
Dick ouviu, paciente, e quando o irmão esgotou a história
dos Monges Negros de Chelfordbury:
— Você terá de ser delicado e aparecer para o chá; depois
disso, Leslie, sem dúvida, não fará objeção a que você volte a
Fra Heikler, que era alemão, suponho eu?
— Era alemão, — confirmou Harry gravemente. — E as
circunstâncias que o trouxeram a Chelfordbury foram
notáveis.
— O melhor alemão a cujo respeito já li — atalhou o Sr.
Puttler — chamava-se Robinson Crusoe.
Dick reputou grosseira a piada do conviva mas, a ser assim, o
Sr. Putler não tivera consciência do seu humor. Harry
encarou no "conador". Ele levava realmente muito a sério as
declarações desse gênero.
— Não estou muito familiarizado com Robinson Crusoé, —
acudiu ele, — mas o senhor, sem dúvida, labora em erro
quando afirma que era alemão. Sempre considerei tais
personagens tipicamente inglesas.
— Ele era alemão, — voltou, com firmeza, o Sr. Puttler, —
muito embora pouca gente se dê conta do fato. Se o senhor
examinar a primeira página da história encontrará estas
palavras: "Meu pai era um mercador de Bremen", e Bremen
fica na Alemanha, ou eu sou holandês. E se o pai era alemão,
ele também era alemão, pois naquele tempo não havia o que
hoje se conhece por naturalização.
Essa prova de erudição literária da parte do visitante
produziu notável mudança na atitude de Harry. Até então se
diria que Puttler nem sequer existisse. Não havia diferença
entre ele, o leiteiro, o vendeiro e o estafeta da aldeia.
Travou-lhe afetuosamente do braço e conduziu-o à
biblioteca, onde Dick os deixou, sabendo exatamente a
natureza dos .ensinamentos que o Sr. Puttler receberia; pois
o primeiro gesto de Harry foi abrir a escrivaninha e tirar o
Diário. Dick sentiu-se aliviado por lhe tirarem Puttler por
uma ou duas horas. Naquele dia estava experimentando uma
sensação incrível de alívio. Um grande fardo fora removido
dos seus ombros e uma das suas mais prementes e secretas
aflições quase se dissipara.
Percorreu a metade da alameda ao encontro do automóvel
de Leslie e saltou sobre o estribo com o carro ainda em
movimento.
— Estou treinando para ser condutor de bonde, —
exclamou, jovial. — Já escolhi a minha profissão, para
quando você chegar à Mansão de Fossaway, senhora de
todos estes domínios.
— E quando será isso, Dick? — perguntou ela, sem voltar o
rosto para ele.
— Nunca, espero eu.
Com a alegria que lhe transbordava do coração, ele não
mantivera o costumeiro policiamento da língua e as palavras
lhe saíram da boca antes que pudesse detê-las. Por duas
vezes fora apanhado desprevenido, e teria dado tudo para
desdizer o que dissera.
Aparentemente, ela não emprestou grande significação às
suas palavras, acelerando o carro até chegar ao amplo
espaço, forrado de cascalhos, diante do velho pórtico. Dick
saltou quando Leslie fez parar o automóvel e ajudou-a a
descer.
— Preciso prepará-la para conhecer um curioso personagem,
— disse o rapaz, e descreveu o Sr. Puttler com traços mais
reais do que lisonjeiros.
— Quem é ele, Dick?
— Um contador, — respondeu, desenvolto. — Mas é tam-
bém um sujeito divertido, cheio de conhecimentos
misteriosos. Quer ver? Você sabe que Robinson Crusoé era
alemão?
— Pois é claro! O pai dele morava em Bremen, — disse ela, e
ele ainda se ria quando chegaram à biblioteca.
Em presença da noiva, Lorde Chelford deu mostras de um
nervosismo e de uma gaucherie que só teriam sido
compreensíveis se a estivesse encontrando pela primeira
vez. Não se afizera de todo a novidade do noivado, e a
atitude que assumia diante dela era menos de reverência que
de respeitoso temor.
— Como vai, Leslie?
Nunca a beijara; naquele momento, segurou-lhe a mão por
uma fração de segundo e largou-a, como se ela o queimasse.
— Você conhece o Sr. Tuttler?
— Puttler, — emendou o outro, e Leslie, olhando para os
olhos melancólicos, leu neles alguma coisa que escapara a
Dick e que possivelmente, nem os mais íntimos
companheiros do Sr. Puttler tinham visto.
Ela não lhe fez o pífio cumprimento de sentir pena dele,
conquanto lesse naquelas profundezas rasgadas, às vezes, de
súbitos relâmpagos, um anélito de simpatia feminina que a
Natureza, pela sua obra cruel, lhe negara de antemão.
— Prazer em conhecê-la, Srta. Gine. Conheço seu irmão... O
Sr. Artur Gine, o advogado, não é? Foi o que pensei.
— Artur não veio? — perguntou Harry.
— Não, — respondeu Dick. — Vamos tomar chá na sala.
Você virá depois, Harry?
— Claro, claro, — apressou-se a dizer o outro. — Desculpe-
me, querida. — Era com esforço que empregava até uma
expressão tão conhecida de afeto.
Quando chegaram à bela sala de estar, com as janelas abertas
para o terraço, e uma profusão de magníficos crisântemos
sulfurinos, que surgiam acima da balaustrada de pedra,
perceberam que estavam sós. O Sr. Puttler derretera no
meio do caminho. Ele explicou mais tarde que desejava dar
uma volta pelo jardim, mas a jovem conheceu que o
misterioso instinto do homem lhe contara que, à de todas as
pessoas do mundo, aqueles dois preferiam a companhia uni
do outro.
— Você dormiu? — perguntou ela.
Ele acenou afirmativamente com a cabeça.
— Só me levantei para o almoço. E você?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não pude dormir. Pobre Artur!
— Você experimentou um bife? — perguntou Dick, com
rudeza. — Francamente, se há duas coisas que não conheço
juntas são um olho preto e Artur Gine!
— Ele está tremendamente abalado, — voltou a moça em
tom sério. — Nunca o vi tão transtornado. Era mesmo o Sr.
Gilder.
— Eu sabia. Ou melhor, tinha um palpite. Você descobriu a
causa da briga?
Ela hesitou.
— Não sei; creio que foi qualquer coisa a meu respeito.
— O que é que Gilder estava fazendo em sua casa?
— Artur não me contou, — respondeu Leslie. — Do que ele
me disse deduzi que o Sr. Gilder estivera espreitando Artur e
o seguira a algum lugar.
— Às ruínas da abadia... é, é bem possível. E seu irmão,
naturalmente, objetou contra isso. Por que estarão eles à
espreita um do outro?
— Artur está espreitando Gilder? — perguntou ela, surpresa.
— É o que parece. Leslie, quero contar-lhe uma coisa que
ninguém mais sabe, nem mesmo Harry. Talvez traga um
pouco de tranqüilidade ao seu espírito nas horas escuras da
noite. Puttler é um detetive, um homem da Scotland Yard.
Ela encarou com ele.
— Um detetive? Mas por que...?
— Têm acontecido coisas ultimamente que não me agradam
muito. Tenho ficado quase doente de preocupação por causa
delas, e embora eu seja perfeitamente capaz de lidar com a
maioria das contingências, o Senhor ordenou que eu
descanse sete em cada vinte e quaíro horas, e alguém tem de
ficar acordado enquanto eu estou dormindo.
— O Abade Negro... é isso o que o preocupa?
Ele mordeu o lábio pensativamente.
— Sim e não. Alguns aspectos da atividade do Abade Negro
me perturbam mais do que eu gostaria de confessar. Leslie,
você acredita no tesouro?
— No tesouro de Chelford? — tornou ela, espantada. — E o
que é que você quer dizer com isso de acreditar nele? É
verdade que o ouro foi trazido para a Mansão de Fossaway
em outro tempo, não é?
— Perfeitamente. E também é verdade, imagino eu, que foi
levado daqui. Mas você acredita que ele tenha alguma
existência, que possa ser encontrado? Se alguém escavasse
cada polegada quadrada do parque, demolisse esta nossa
velha casa, sondasse as entranhas da terra, você acha que o
ouro poderia ser encontrado? Porque, se você não acredita,
outras pessoas acreditam, além de Harry.
— Você acredita? — A pergunta era um desafio.
Ele arrancou do peito um suspiro profundo.
— Sei lá! Estou pronto para acreditar em qualquer coisa! E eu
supunha que a minha distinta inteligência jamais chegaria a
tais profundezas. Mas, Leslie, meu bem, estou ficando... —
ele interrompeu-se, à procura de uma palavra.
— Convencido?
— Não exatamente convencido, mas abalado em minha
obstinação. Comecei a duvidar do meu próprio ceticismo, e
essa é a pior condição mental a que um homem pode
chegar... ou quase.
— Harry já sabe que você se converteu? — E os olhos dela
piscaram, maliciosos.
— Desconfia, — disse Dick, deprimido. — Se eu imaginasse
que o dinheiro estava aqui...
Ela encarou firmemente com ele.
— Seria muito importante para você, Dick?
— Para mim pessoalmente, — ele sacudiu a cabeça, — Deus
sabe que não. Seria muito importante para a... — Deteve-se,
e ajuntou, logo depois: — Para Harry. Eu ia dizer para a
propriedade. A propriedade, para mim, é algo distinto de
qualquer personalidade. Representa a soma dos esforços de
homens que já morreram, e o resultado cumulativo de todo
o seu trabalho.
Ela fitou-o por um largo espaço, com surpresa e admiração.
Amava-o assim, compenetrado e grave.
— Você transformou a Mansão de Fossaway e os domínios
de Chelford numa espécie de fetiche, não transformou?
— Será? — Ele parecia genuinamente surpreendido. — Não
sei... — Logo depois, desatou a rir. — Nada mau para um
filho segundo exaltar as propriedades que nunca serão suas,
acima da personalidade do homem que as herdará! Isso o
torna superior ao próprio herdeiro. Traduza fetiche por
vaidade, pois disso tenho o meu quinhão.
— Duvido, — respondeu ela tranqüilamente. — Vamos para
o terraço. As suas flores são lindas.
— Tudo no jardim... — principiou ele, mas ela o conteve
com um dedo admonitório.
— Se você cair na vulgaridade, vou procurar Puttler.

CAPÍTULO XXV

Dick observou que, enquanto Harry se achava presente, as
atitudes da jovem eram um tanto forçadas e irreais, e ela
parecia nervosa; estremecia quando lhe dirigiam a palavra e
contentava-se de ouvir, sem participar da conversação. Só
quando Harry voltou, com uma desculpa esfarrapada, à
biblioteca, ela tornou à vida, e a velha Leslie de sempre saiu
do seu esconderijo. A certa altura enquanto Dick e o irmão
conversavam sobre os subterrâneos de Chelford, ela saíra
para o terraço e, com o rabo dos olhos, ele a vira de perfil:
uma garota esbelta, de aparência frágil, rosto delicado, cabelo
maravilhoso; naquele cenário, parecia quase etérea. Dir-se-ia
que uma velha obra-prima de Botticelli ganhara vida.
Quando a porta se fechou, após a saída de Harry, ela voltou
e sentou-se, fazendo uma careta.
— Foi muita grosseria de minha parte sair? Dick, não consigo
interessar-me de maneira alguma pelas coisas que fascinam
Harry! Quais serão os seus temas de conversação quando o
tesouro for encontrado?
— O tesouro? Oh, você se refere ao ouro? Ele, provavel-
mente, falará sobre você.
Ela fez uma pequenina moue.
— Sou moça demais para interessar a Harry, trezentos anos
moça demais, — disse ela. — Agora me fale do seu detetive.
Gostei do que vi nele. Será o seu anjinho da guarda? E, Dick,
se ele tiver de patrulhar a região... é assim que se fala? eu
gostaria que incluísse Willow House. Sou até capaz de
emprestar-lhe o meu carro.
— Você está realmente assustada?
Ela pensou um pouco antes de responder.
— Acho que estou. Quando eu era criança, o primeiro raide
aéreo me fascinou, o segundo me pareceu interessante mas,
depois do terceiro ou do quarto, eles se tornaram... simples
raides aéreos. E o Abade Negro é... é muito pitoresco, Dick,
mas um pouco aterrador. Não foi você que me disse que
Harry tem medo dele?
— Um pouco.
— Por quê?
— Harry tem um temperamento naturalmente nervoso, —
explicou Dick. — As pessoas nascem assim, e é absurdo falar
em "covardia" no caso delas. Ora, eu nasci sem saber o que
são nervos, e atrevo-me a dizer que, se me visse perseguir o
Abade Negro, você talvez me julgasse terrivelmente
corajoso. Na realidade, isso só acontece porque não tenho
imaginação.
— Isso não é verdade, — acudiu ela. — Por que é que você
tem a mania de amesquinhar-se?
— Porque sou, por natureza, excessivamente modesto, —
replicou ele, em tom grave.
Nesse momento, os dois avistaram o Sr. Puttler passeando
no meio das longas filas de roseiras, que se erguiam paralelas
à ala oriental. Desceram juntos a escada do terraço e
interceptaram-no.
— É um lugar lindo, — exclamou o Sr. Puttler meneando a
cabeça com admiração. — Nunca vi tanta rosa junta na
minha vida, a não ser no mercado de Covent Garden. mas
aquilo não são rosas, são apenas mercadoria.
— Eu disse à Srta. Gine que você é detetive, Puttler.
Puttler franziu o cenho.
— O senhor conhece a Srta. Gine melhor do que eu, —
replicou em tom bem-humorado. — Pessoalmente, acho a
vida muito mais fácil de se viver quando não se abre a boca.
Não que eu queira censurar, — apressou-se a acrescentar. —
Acontece que essa é a minha maneira de raciocinar e a
minha maneira de falar. Em nossa divisão havia um
funcionário que, de simples policial, passou a
superintendente pelo simplíssimo processo de nunca dizer
nada a ninguém. Um dia, o superintendente disse a esse
homem, cujo nome era Carter: "Carter, não posso
compreender..."
Craque! Uma bala passou assobiando perto do rosto do
detetive, atingiu o tronco de uma árvore e estilhaçou um
trecho da casca. De uma moita de azáleas, a duzentas jardas
de distância, subiu uma pálida nuvem azulada.
— Deitem-se no chão! — ordenou Dick, com voz rouca, e
puxou Leslie para baixo, a tempo.
Craque! A segunda bala zuniu mais baixo. Uma lasca de ma-
deira passou voando pela orelha da moça.
— Há alguém naquelas moitas que não gosta de mim, —
comentou o Sr. Puttler.
Sacando do bolso uma Browning de cano longo e
agachando-se, partiu na direção da moita, ziguezagueando
enquanto corria.
Soou o terceiro tiro, e o homem que corria caiu para a
frente, de borco, e ficou imóvel.

CAPÍTULO XXVI

— Vá para trás daquela árvore e não se mexa, — gritou Dick
em tom autoritário, mas pela primeira vez Leslie não lhe
obedeceu.
Estava pálida, mas não exibia outros sinais de medo quando
se ajoelhou ao seu lado e principiou a desabotoar o colarinho
do homem ferido.
— Ele está sem sentidos. Mas não creio que seja alguma coisa
pior do que isso, — observou Dick. — A princípio, pensei
que estivesse liquidado... Olhe para o bota dele!
A sola havia sido arrancada.
O detetive gemeu e abriu os olhos.
— Olá! Que aconteceu? — perguntou, circunvolvendo os
olhos. — Aquele camarada me alvejou?
— Não creio que ele o tenha ferido muito.
Dick estava olhando para o pé do homem. A bala
ricocheteara, produzindo um corte não muito profundo no
peito do pé, mas não havia outro ferimento.
— Você se sente em forma para tomar conta da Srta. Gine?
— perguntou Dick.
O detetive procurou à sua volta a arma que deixara cair,
apanhou-a e pôs-se em pé. Sem outra palavra, Dick transpôs
correndo o gramado na direção da moita e a jovem o
observou, aterrada, esperando, a cada segundo, ouvir o tiro
seguinte e fatal.
Passados cinco minutos, ele se ergueu atrás das moitas,
segurando qualquer coisa na mão, que examinava
curiosamente ao caminhar para eles.
- Um rifle Lee-Enfield, modelo do exército, — anunciou.
— Encontrei estas cápsulas.
Colocou-as na mão do detetive. Puttler examinou com o
máximo cuidado os cartuchos queimados.
- O senhor, naturalmente, não o viu? — perguntou.
- Não, suponho que ele tenha dado a volta para os fundos
da casa. Estas moitas se estendem, praticamente, da ala
ocidental da Mansão de Fossaway até a extremidade do
Morro. É possível, evidentemente, que ele ainda esteja
escondido entre as folhagens, mas o mais provável é que
tenha escapado assim que o viu cair. Acho melhor
entrarmos, que vou procurar um par de sapatos para você, a
menos que tenha um par de reserva.
— Não foi acidente: isso eu posso assegurar-lhe, — disse o
Sr. Puttler, tratando do seu ferimento. — Os dois primeiros
tiros atingiram a árvore, a três polegadas de distância um do
outro. Vai dar parte à polícia, Sr. Alford?
Dick refletiu por um momento e decidiu-se pela negativa;
para surpresa de Leslie, o detetive aprovou-o.
— Acho que tem razão, — conveio Puttler. — Onde fica o
estande mais próximo de tiro ao alvo?
— A umas quinze milhas daqui, — replicou Dick,
sardóônico.
— Não enverede por esse lado.
— Não estou enveredando por lado nenhum, — voltou o
detetive. — Estou apenas prevendo possíveis álibis. Passei a
vida toda diante de álibis, agitando uma bandeira vermelha.
Por baixo do queimado da tez, o rosto de Dick estava
cinzento. Dir-se-ia que ele houvesse envelhecido de
repente, e Leslie considerou-o com ansiedade.
— Dick, contra quem estavam atirando?
— Não sei se estavam atirando contra alguém, — respondeu
ele em tom cansado. — Deram apenas umas salvas para
assustar-nos.
A seguir, pôs-se a rir; um riso duro, selvagem, que a fez
encolher-se.
— Perdão, Leslie; acho que estou ficando assustado.
Ouvindo-o, ela sorriu.
— Despeça-se de Harry por mim, Dick, por favor. Prometi a
meu irmão que chegaria cedo a casa. Não, é verdade, você
não precisa levar-me. Não tenho medo nenhum de ser
assaltada por bandidos armados.
— Nem eu, — declarou Dick, — mas não me fio muito em
você como motorista.
Aborrecida com a falsa acusação, ela se esqueceu de obstar a
que ele a acompanhasse.
Quando Dick regressou a casa, Puttler já havia feito um
curativo no pé. O ferimento era tão insignificante, que pôde
calçar os sapatos, e zombou da idéia de ficar de molho
naquela noite.
— Escapei por um triz, — disse ele, — mas estou contente
por haver recebido a bala e por esta não haver atingido o
alvo pretendido.
— A quem se destinava a bala? — perguntou Dick com
firmeza.
A resposta veio sem hesitação:
— À Srta. Leslie Gine: pensei que o senhor soubesse.
Dick não encontrou resposta pois, no fundo do seu coração,
sabia que Puttler estava dizendo a verdade.

CAPÍTULO XXVII

O Sr. Fabrian Gilder, ex-gerente da firma Gine & Gine, agora
um cavalheiro aposentado, era, em certo sentido, um
homem duro. Não perdoava as menores injúrias e, no
passado, saíra muitas vezes do seu caminho para vingar-se
dos que tinham tido a imprudência de afrontá-lo. E Artur
Gine o ofendera de forma imperdoável. Alguns dias antes,
Gilder teria considerado simplíssimo vingar-se do seu
inimigo; agora, porém, a acusação de falsificação, com que
pretendia desmoralizá-lo, só vingaria se quatro promissórias,
que se achavam em seu poder, fossem repudiadas pelo
homem que pretensamente as avalizara.
Naquele momento não lhe era dado fazer outra coisa senão
apresentar os interessantes documentos, o que fez por
intermédio do seu banco. Dick, todavia, já tomara as
providências necessárias para resgatá-las. Não era um ato
totalmente filantrópico da sua parte, pois, homem de
negócios, tirou do francamente relutante Sr. Gine as
melhores dentre algumas ações invendáveis, mas a que ele
atribuía algum valor. As promissórias, que se haviam
renovado de tempos a tempos, foram pagas, e isso liquidou a
possibilidade com que contava o Sr. Gilder de por em prática
a sua ameaça.
Era o tipo do homem que medrava na oposição. Se bem se
pudesse dizer que se apaixonara por Leslie Gine desde a
primeira vez em que a vira, meses antes da cena
desagradável em seu apartamento, o seu desejo crescia à
proporção que diminuíam as suas probabilidades de
conquistá-la.
Na noite em que Dick o encontrara examinando as ruínas da
abadia, o Sr. Gilder voltara ao corte da estrada ao supor que a
costa estivesse livre e descobrira mais uma pessoa à cata do
tesouro. Assistira à entrevista entre os dois homens e seguira
Artur de volta a Willow House, com a única intenção de
oferecer a sua ajuda, devidamente remunerada, no
descobrimento da mítica fortuna. Pois o Sr. Gilder ouvira o
suficiente, no dia em que surpreendera o seu patrão com
Mary Wenner, para saber que, em algum lugar debaixo da
abadia, jazia a fortuna, ou a sua chave. Alcançara Artur na
alameda, e encontrara-o pessimamente humorado, furioso
com o homem pela interrupção da sua busca e sentindo
ainda as aguilhoadas do sarcasmo de Dick Alford.
A princípio, surpreendido pelo inesperado aparecimento do
seu principal funcionário, Artur o apostrofara e, ali mesmo,
o despedira do serviço, desafiando-o a fazer o que quisesse.
O primeiro murro partira de Gilder.
Quando Artur estava de muito mau humor dizia coisas que
nenhum homem que se preza pode suportar, e o olho preto
do advogado era um anúncio da sua indiscrição.
Gilder podia ser bookmaker, mas não era ladrão. "Ladrão",
pelo menos, seria um epíteto extravagante para descrever-
lhe a duplicidade. Retornou a Londres quase louco de raiva,
mas um dia passado na cama lhe restaurou o equilíbrio
mental e ele se pôs a meditar na melhor maneira de frustrar
os planos que o ex-patrão arquitetara para obter a posse do
tesouro. A essa altura, Gilder também estava convencido: as
suas últimas dúvidas tinham sido afastadas. A princípio,
considerara com ceticismo a existência do tesouro, mas sabia
que coisas desse gênero tinham acontecido, e animava-o o
desejo natural de participar de qualquer projeto que
produzisse imediatamente, e sem grande trabalho, uma vasta
soma, jamais sonhada.
O talho no lábio curou-se em poucas horas, se bem
continuasse inchado e, à tarde do segundo dia após o seu
afastamento da firma Gine & Gine, vestiu-se com grande
apuro, chamou um táxi e deu ao chofer um endereço que
rabiscara no punho branco da camisa.
Mary Wenner ocupava um minúsculo apartamento, cujas
divisões todas caberiam numa sala ampla, encarapitado no
último andar de um edifício perto da Rua Baker, de onde se
descortinava a vista inefável da estação de bondes e das
manobras que se realizavam naquele centro movimentado;
além disso, por via de regra, ela não era incomodada por
visitas, pois não havia elevadores no edifício, e subir a pé
quatro escadas íngremes não deixava de ser uma respeitável
empreitada.
O forte do Sr. Gilder não eram os exercícios físicos, e ele
amaldiçoou o parcimonioso construtor que se esquecera de
dotar o prédio desse fácil método de transporte. Não
obstante, escalou os quatro andares e, logo depois, premia o
botão da campainha polida do N.° 37.
— Que prazer inesperado, Sr. Gilder! — exclamou a Srta.
Wenner em tom convencional. — Garanto-lhe que nunca
pensei que o senhor cumprisse a sua promessa. Tenha a
bondade de sentar-se.
Ela era realmente bonita, observou ele; no seu vestidinho
simples de casa era até mais bonita do que envergando
roupas sofisticadas. Embora pequeno, o apartamento estava
bem mobiliado, sem ter, no entanto, móveis caros. Acudiu-
lhe a impressão de que ela comprara tudo aquilo com o seu
dinheiro, e uin sentimento de simpatia pela moça aninhou-
se-lhe no coração. Pois Fabrian Gilder era uma estranha
mescla de puritano e aventureiro. Mais tarde, Mary pôde
agradecer ao apartamento a ocorrência de sucessos agra-
dáveis.
Havia apenas uma cadeira em que poderia sentar-se, e ele
não se fez de rogado.
— Aceita uma chávena de chá? Eu ia agora mesmo tomar o
meu, — disse ela. — Passei o dia todo fazendo compras.
— A senhorita está... trabalhando? — inquiriu Gilder com
delicadeza.
— Não, não me dedico ao comércio, — replicou a Srta.
Wenner, mais corretamente. — Só as pessoas comuns
"trabalham": as pessoas finas "dedicam-se ao comércio".
Ela saiu, desaparecendo num compartimento misterioso, que
apenas tinha espaço suficiente para uma mesinha de cozinha
e um fogão a gás, e ele ouviu o tilintar de uma xícara
batendo num pires, e o "plomp!" de uma boca de gás ao ser
acendida. Pouco depois, ela voltava, o rosto afogueado,
pedindo desculpas.
— As criadas são tão estúpidas, não é mesmo? — exclamou.
— Nunca se pode confiar nessa gente comum, que trabalha
por dia. Eu tinha uma empregada excelente, mas ela saiu
para casar, a idiotinha!
Contou-lhe que recebia poucas visitas. A "costureira" vinha
duas vezes por semana. Possuía uma amiga muito querida,
que passava as noites de terça-feira com ela e, às vezes,
dormia no apartamento. Mas visitante do sexo masculino era
o mais raro de todos os fenômenos.
— A gente precisa ter muito cuidado, — sentenciou
respeitosamente a Srta. Wenner. — A reputação de uma
moça é o seu bem mais precioso... o senhor não concorda?
O Sr. Gilder concordava.
— Foi o que eu sempre disse a respeito do meu trabalho com
Harry... desculpe-me, com Lorde Chelford. Éramos tão bons
amigos que nunca me passou pela cabeça chamá-lo de outro
jeito senão pelo nome de batismo.
— E a senhorita também chamava Richard Alford pelo nome
de batismo? — perguntou o Sr. Gilder, não sem malícia.
Ela arrebitou o narizinho.
— Aquele! — respondeu, desdenhosa. — Tomo tanto
conhecimento dele quanto de qualquer outro criado! Ele é
instruído e tudo o mais... esteve em Eton e Harrow (o
próprio Sr. Gilder arregalou os olhos ouvindo isso), mas a
gente julga um homem pelos modos e não pela instrução.
Não há dúvida nenhuma de que Dick Alford tem modos de
porco!
Ela falou com sentimento e alguma veemência. O Sr. Gilder,
que estava a par das circunstâncias, compreendeu e quase a
aprovou.
— Eu ia dizendo que, lá em Fossaway, achei muitas vezes
que não era direito eu ficar naquele casarão sem a
companhia de outra senhora, a não ser a governanta, que,
naturalmente, é uma criada e... Oh! você está aqui, Gladys!

CAPÍTULO XXVIII

— A senhorita se dá bem com Gine, não se dá? — perguntou
Gilder, enquanto bebericava o chá.
Mary abaixou os olhos com pudico enleio.
— Somos bons amigos, mas só. Pode ser até que venhamos a
ser mais íntimos... quem sabe? Ele sempre se portou como
perfeito cavalheiro e tratou-me como a uma dama. Devo
dizer isso em abono de Artur. Mas é meio exasperante, o
senhor não acha? - perguntou num tom algo exagerado de
ingenuidade pueril.
— Eu o deixei, — anunciou, lacônico, o Sr. Gilder. —
Discordamos acerca de certos planos de ação. Na realidade,
brigamos feio e chegamos até a vias de fato... estou-lhe
dizendo isso porque a senhorita, provavelmente, mais cedo
ou mais tarde, saberá da história pela boca dele.
Mary estava chocada; e quando Mary estava chocada cobria
a boca generosa com as mãozinhas muito alvas.
— Não me diga! — acudiu, com voz abafada. — Sopapos? Foi
isso?
E inclinou a cabeça na direção dos lábios dele.
— Foi isso, — confirmou Gilder.
— Sopapos! — repetiu Mary Wenner. — Que coisa
repugnante e vulgar!
— Eu queria falar com a senhorita a respeito de Artur Gine,
— tornou Gilder, atalhando-lhe o pasmo horrorizado. — Não
somos amigos, mas isso não quer dizer que eu lhe queira
mal. Naturalmente, porém, como estamos separados, não
me sinto na obrigação de protegê-lo e colocar-me entre ele
e as suas vítimas,
— ajuntou, dando ênfase à última palavra — como tenho
feito até agora. A senhorita o conhece tão bem quanto eu,
— prosseguiu, quando ela fez menção de falar. — Conhece a
vaidade dele; sabe perfeitamente o quanto ele é insincero e
indigno de confiança; sabe também que ele não cumpriria
promessa alguma que fizesse, mesmo que pusesse o preto no
branco.
Ele a observava atentamente enquanto falava e percebeu que
as sobrancelhas dela se arqueavam.
— Deveras? — tornou a moça, friamente. — Não entendo de
leis, mas não sei como um cavalheiro, ou até um homem
comum, poderá fugir... qual é mesmo a expressão?... às suas
obrigações legais.
— Então a senhorita não conhece Artur Gine tão bem
quanto eu. Mas isso não interessa. Não vim aqui para
desacreditá-lo nem para amesquinhá-lo aos seus olhos. Não
que eu pudesse fazê-lo, - ajuntou, antecipando-se um tanto
ambiguamente ao protesto dela. — Mas sou de opinião que
uma moça não deve ser enganada, sobretudo uma moça que
trabalha, que talvez não tenha ninguém para zelar pelos seus
interesses. E eu lhe afirmo que esse sujeito seria incapaz de
seguir uma linha reta, ainda que fosse arremessado por um
canhão. Agora, que me diz do tesouro de Chelford?
Ela empertigou-se na cadeira e uma expressão de espanto
total lhe contraiu o rosto.
— O senhor sabe? — perguntou, com a respiração suspensa.
— É claro que eu sei! A senhorita vai ajudá-lo a encontrar o
tesouro e, em troca... — Fez uma pausa. — Em troca, ele
prometeu desposá-la, — concluiu.
O Sr. Gilder não estava apenas jogando verde para colher
maduro.
— Foi ele quem lhe disse isso? tornou ela, com surpresa na
voz. — Espero que não acredite, Sr. Gilder, que eu me atirei
aos braços dele. Isso é uma coisa que eu não faria nem pelo
melhor homem do mundo. — Considerou-o
pensativamente e acrescentou:
— Nem velho, nem moço. Confio em que Artur, como
cavalheiro que é, cumpra a promessa que fez. Farei por ele
uma coisa importantíssima...
— O que eu quero esclarecer é o seguinte: — prosseguiu ele.
— Que garantias ele lhe deu?
— A sua palavra de honra, — respondeu, dramática, a Srta.
Wenner.
— Eu já imaginava. E que outro documento de valor?
— Eu lhe mostro.
Ela dirigiu-se ao aposento contíguo, que era, evidentemente,
o seu quarto de dormir e, voltando com a bolsa, colocou-a
sobre o joelho, abriu-a e tirou, entre outras coisas, um
pedaço de papel, que entregou ao Sr. Gilder. Este leu-o
rapidamente, observou a cuidadosa emenda feita por Artur,
e devolveu-o.
— Não vale nada, — declarou, e o rosto dela expressou toda
a sua consternação. — Que há aqui para impedi-lo de
procurar Chelford e fazer negócio com ele? E onde entraria
a senhorita? Além disso, isto é o que se chama,
juridicamente, uma promessa feita sob coação, isto é,
forçada. Agindo em nome do cliente ele poderá alegar que
precisou fazer a promessa para obter a informação que a
senhorita se recusava ilegalmente a fornecer-lhe.
Ela esguardou-o, espantada.
— É ilegal saber e não contar?
Ele assentiu com a cabeça.
— Saber da existência de um tesouro escondido e recusar-se
a prestar informação é crime em alguns países, e eu lhe
asseguro que é crime na Inglaterra. Mas isso não interessa.
Qual é a sua participação em tudo isso, Srta. Wenner?
Ela mordeu o lábio cogitativamente.
— Nunca vi as coisas por esse prisma, — confessou. — O
que é que eu posso fazer, Sr. Gilder?
— Obrigue-o a desposá-la primeiro. Eu poderia redigir-lhe
um acordo que seria legalmente compulsório, mas duvido
até de que isso pudesse ajudá-la. E por que precisa confiar
nele? — perguntou, sem mais cerimônias.
Ela abaixou os olhos.
— Em quem, ou no quê, posso confiar? — perguntou, e tirou
do vestido uma migalha invisível. — Este mundo é tão
medonho, e os homens são tão enganadores, Sr. Gilder!
— Suponha que eu lhe conte, — acudiu Fabrian Gilder,
sombrio, — que Gine está tentando antecipar-lhe a
descoberta?
— Como assim? — Mary Wenner não era muito forte em
requintados floreios oratórios.
— Suponha que ele esteja tentando passar-lhe a perna...
tentando encontrar o ouro sem a sua ajuda?
— Ele não se atreveria!
— Pois já se atreveu. Desconfiando do seu plano, há duas
noites principiei a vigiá-lo. Às três horas da manhã ele se
dirigiu às ruínas da Abadia de Chelford, levando consigo
uma alavanca.. .
Enquanto ele falava, o acarminado do rosto dela se tornou
mais profundo e os olhos aboticados mais brilhantes.
— Cachorro! — murmurou ela. — Macaco traiçoeiro e sa-
fado!
Volvido algum tempo, acalmou-se.
— Em quem se pode confiar? — perguntou, amarga. — Em...
quem... se... pode... confiar?
— Pode confiar em mim. — A voz de Fabrian Gilder era
suave, quase súplice. Ele era um homem bem apessoado,
observou ela; os cabelos grisalhos davam-lhe distinção.
— A senhorita não exigiria de mim um documento legal.
— Exigiria, sim, — volveu ela, obstinada. — Não confio nos
homens.
— Pois eu lhe darei o documento que quiser. Chegarei até a
comprometer-me irremediavelmente.
— Não creio que eu exigisse tanto, — tornou Mary, tossindo,
sem compreender.
— Quero dizer que eu correria até o risco de ser preso, e
nem tomaria as precauções que Artur Gine tomou.
Ela levou o lencinho aos olhos.
— Naturalmente, Sr. Gilder, não o conheço o bastante, mas
não direi que desgosto do senhor. Eu sempre disse a Ágata...
a minha amiga terça-feira, como lhe chamo... "O Sr. Gilder é
um perfeito cavalheiro". De fato, eu... Sr. Gilder, qual é o seu
primeiro nome?
— Fabrian.
Ela se atardou com ternura na pronúncia do nome e sorriu,
um sorriso melancólico e oblíquo.
— Eu o chamarei de Fabe, que tal? É um lindo nome. Como
eu estava dizendo, não pretendo atirar-me aos braços do
meu homem.
— Vamos lá hoje à noite.
O rosto dela mudou.
— À abadia... hoje à noite?
Ele confirmou com a cabeça.
— O meu carro nos levará até lá em uma hora e meia, e
poderemos esperar que escureça; e a não ser que haja muita
escavação para fazer...
— Não há escavação nenhuma, — disse ela. — Mas esta
noite?
— E por que não? O meu chalé fica a menos de uma milha
da abadia. Se o ouro estiver lá e for atingível, poderíamos
voltar ricos.
Ela pensou no assunto e disse, em seguida:
— Sei que o senhor pensará que isso é horrível da minha
parte, Sr. Gilder... Fabe... o nome soa familiar, não soa?...
mas eu gostaria de alguma coisa com o preto no branco.
Imediatamente, o Sr. Fabrian Gilder apresentou o rascunho
de um documento que seria capaz de levá-lo à forca,
observou em tom de gracejo; ao lê-lo, a própria Mary
Wenner, com o seu aguçado instinto das precauções, ficou
impressionada. O advogado passou-o a limpo com a caneta-
tinteiro que trouxera, em papel que ele mesmo arranjou.
Aliás, enfiara a caneta no bolso pensando exatamente numa
contingência daquelas. Era uma caneta nova, cheia de uma
tinta comprada numa loja de novidades na Rua Wardour, e
que, segundo o vendedor, desapareceria seis horas depois de
ter sido escrita.
A Srta. Wenner leu de fio a pavio o documento, dobrou-o,
enfiou-o na bolsa e desapareceu no quarto de dormir.
Voltou pouco depois com a bolsa, mas palpitou ao Sr. Gilder
que o documento ficara guardado em lugar seguro.
— E agora, Fabe, a que horas você quer sair?
— Às nove e meia? — sugeriu ele, e ela concordou.
— E não se preocupe em levar uma alavanca, — disse ela,
um tanto maldosamente, ao lembrar-se da miserável traição
de Artur Gine. — Levarei todas as ferramentas necessárias
na bolsa.

CAPÍTULO XXIX

Eram quase dez horas quando a jovem apareceu. Vestia uma
longa capa de chuva e acomodou-se no assento do carro, ao
lado dele, com uma desculpa fluente.
— Eu quase não vim, — declarou. — Depois que você se foi,
lembrei-me daquele horroroso Abade Negro.
Gilder achou graça.
— Você não acredita nesse tipo de palhaçada, acredita? —
perguntou, enquanto o carro descia, célere, a Rua Baker.
— Não sei. — O tom era de dúvida. — Ele apareceu uma ou
duas vezes enquanto eu estava em Fossaway, mas nós
costumávamos acreditar que eram histórias dos aldeões. De
acordo com os jornais, ele tornou a aparecer ultimamente...
brr! — A jovem estremeceu.
Ele bateu no bolso significativamente com a mão.
— Eu trago aqui uma coisa muito ruim para abades, negros
ou brancos! — declarou. — Não se aflija, menininha.
— Não, Fabe, — tornou ela, obediente.
Com muita delicadeza, ele deu a entender que ela poderia
chamá-lo pelo nome de batismo, que os pais lhe haviam
dado. Esse nome não tinha diminutivo, explicou, e justificou
a correção mostrando a possibilidade de que ela o chamasse
e ele não soubesse com quem ela estava falando.
— Não acredito em noivados longos, você acredita? —
indagou a rapariga, saindo pela tangente.
— Não, não acredito. Os noivados devem ser curtos... e
doces.
Riram-se ambos, e chegaram de excelente humor às ruas
desertas de Dorking.
Mary tagarelava, a intervalos, e só se calou durante as cinco
milhas de chuva de vento, que entrava debaixo da capota do
carro e lhe fustigava o rosto.
— Que noite horrível! — queixou-se ela.
— Pelo contrário, eu não teria escolhido noite melhor, se
pudesse dar ordens ao tempo.
O carro, que se movera até então silenciosa e suavemente,
diminuiu a marcha ao subir o morro que conduzia ao Corte
de Fontwell. Ele desligou o motor e, acionando os freios,
desceu e foi abrir a porteira que dava acesso aos campos da
Quinta Vermelha. Em seguida, caminhando ao lado do
carro, destravou-o e dirigiu-o para o mesmo lugar em que
Dick o encontrara, poucas noites antes.
— Aqui estamos.
Ele tomou-lhe o braço; ela estava tremendo e, quando falou,
ele ouviu-lhe o bater dos dentes.
— Eu quisera não ter vindo, — lastimou-se Mary,
estremecendo e apontando para um sítio no escuro. — O
que é aquilo lá? — murmurou, com medo na voz.
— É um cipreste podado, — disse ele. — Realmente, não há
nada que possa assustar... Mary.
— Não sei, não sei, — volveu ela, com voz trêmula. — Não
solte o meu braço, por favor. Você trouxe uma pistola?
Ele assegurou-lhe que trouxera.
Atrás do portãozinho, que ele sabia aberto, no alto da
íngreme ladeira escorregadia, à frente deles, em meio à
treva, erguiam-se as ruínas solenes.
— Prefiro não acender luz alguma, — disse Gilder em voz
baixa. — Foi assim que descobriram Gine. Você sabe o
caminho?
— Se puder ver a torre.
Inclinando-se para ver melhor, ele deu com o vulto da torre
arruinada e guiou-a nessa direção. De uma feita, ela tropeçou
num monte de pedras, e teria gritado se a mão dele não lhe
cobrisse a boca.
— Pelo amor de Deus, tenha cuidado! — instou o homem.
Agora, como é que a gente chega ao subterrâneo?
— Espere. — Ela soltou-lhe o braço e encaminhou-se para a
parede da torre. Ele tornou a vê-la, enquanto ela procurava
orientar-se, tateando as pedras. Pouco depois, a rapariga
murmurou: — Venha.
Gilder a seguiu. Ela estendeu a mão e agarrou a dele.
— Há um degrau que desce, — sussurrou.
Estavam entrando na torre, embora ele não se lembrasse de
ter visto nenhuma abertura. Ouviu um rangido de metal
enferrujado.
— É muito estreito; a gente tem de passar espremida.
A abertura, calculou ele, teria, quando muito, uns trinta
centímetros de largura, e não lhe foi muito fácil transpor o
obstáculo.
— É uma grande pedra angular, — disse ela, em voz baixa.
Gira sobre si mesma e abre como uma porta. Era assim que o
velho Abade costumava sair quando andava de amores com
Lady Chelford... você ouviu a fofoca, não ouviu?
A "fofoca" tinha oitocentos anos de idade, mas era novidade
para ele.
— Se você tiver uma lanterna, pode acendê-la.
Ele tirou a lanterna do bolso e acendeu-a. Estavam numa
câmara minúscula de pedra, no topo de uma escada circular,
coberta de musgos. Acima deles se erguia um teto
abobadado, que se diria talhado numa pedra só, e era muito
possível que o fosse, pois as medidas interiores da torre não
ultrapassariam quatro por cinco. Ele pôde ajuizar da grossura
das paredes; haviam sido construídas num tempo em que as
paredes não tinham por única função sustentar o teto.
— Venha. — Ela seguiu à frente, pisando com sumo cuidado
nos degraus resvaladiços.
Ele contou vinte e cinco degraus, findos os quais chegaram a
um espaçoso aposento de pedra, porém tão castigado pelo
tempo que semelhava uma caverna natural. As paredes e o
teto haviam perdido a simetria e somente o feitio retangular
mostrava tratar-se de obra de mãos humanas.
— Você trouxe a chave?
Ele fez um gesto afirmativo. Muitos anos antes, Gine & Gine
haviam defendido um famoso ladrão, obtendo-lhe a
absolvição baseados num erro processual. Como recompensa
pelo seu serviço, o réu dera de presente ao advogado uma
chave que, afirmava, seria capaz de abrir qualquer porta,
grande ou pequena.
— Aqui está o lugar. — Ela continuava falando em
murmúrios. conquanto fosse pouquíssimo provável que dali
pudessem ser ouvidos.
Em cada canto do aposento, defrontando-os à medida que
eles se afastavam da escada, havia uma portazinha estreita,
profundamente recuada na parede, lembrando ao Sr. Gilder
as portas das celas de Dartmoor; a semelhança, aliás, era
ainda maior em outro sentido. Na parte superior da porta à
mão esquerda via-se uma grade fina de ferro, que consistia
em três barras enferrujadas.
— Veja! — sussurrou ela.
Ele projetou a luz da lanterna no interior da cela, uma
caverna profunda e estreita, com um banco de pedra de cada
lado. Sobre o banco havia inúmeros cilindros de forma
significativa. O advogado focalizou o mais próximo;
ostentava um curioso selo numa das extremidades.
O coração de Fabrian Gilder pulsou mais forte. A mão da
jovem, que lhe segurava o braço, estava tremendo.
— Estou tão assustada, — choramingou ela.
— Assustada por quê?
— Tenho tanto medo daquele horrível Abade Negro!
Ela estava à beira de uma crise histérica. Ele precisava
trabalhar depressa.
Na terceira tentativa a chave girou na fechadura com um
rangido horrível, e ele, empurrando-a, abriu a porta.
Nisso, a jovem segurou-lhe o braço, num frenesi.
— Veja! Oh, meu Deus! Veja! — berrou, e ele voltou-se. Em
pé, no topo da escada, estava uma figura de preto, com o
rosto oculto por longo capuz. Dois olhos brilhantes, febris,
seguiam o casal. Terrível, ameaçador, o Abade Negro os
vigiava em silêncio.

CAPÍTULO XXX

Com uma imprecação, Gilder arrancou a pistola do bolso
mas, ao fazê-lo, o feixe de luz da sua lanterna abaixou-se por
um segundo. Quando tornou a erguê-lo, com a pistola na
mão, a figura sumira.
— Não vá, não vá! — gritou Mary, agarrada ao braço dele.
— Oh, Sr. Gilder! Oh, Fabrian, não me deixe!
Ele a empurrou para um lado, precipitou-se para a escada
circular e pôs-se a subir com cautela. Ouviu o respirar
soluçante da rapariga atrás de si.
— Não me deixe! Não me deixe no escuro! — suplicava ela.
Mais alto, mais alto, cauto, vigilante, mas nenhum sinal do
hábito negro. A camarazinha, logo acima, estava como eles a
haviam deixado; a abertura minúscula que servia de porta
continuava aberta.
Esbarrando nele ao passar, a moça tropeçou e vacilou ao
chegar ao ar aberto, e caiu de joelhos.
— Leve-me embora! Leve-me embora! — desvairava-se ela.
— Oxalá eu nunca tivesse vindo!
Gilder virou-se com uma maldição e fechou a porta de
pedra. Depois, ora carregando, ora arrastando a moça, fora
de si de tanta raiva, à qual se mesclava não pouco medo,
conseguiu levá-la até a estrada e até o carro.
Chovia a cântaros. Ele empurrou para trás a capota do carro,
para que toda a força da tempestade se abatesse sobre ela —
não se atrevia a assumir o encargo de uma rapariga à beira de
um chilique. Levá-la-ia de volta ao apartamento — e teria,
depois, muito tempo para voltar e investigar aqueles
cilindros.
Quanto ao Abade Negro... Respirou um pouco mais depressa
ao recordar-se da experiência aterradora. Fosse quem fosse
—e não tinha dúvida alguma de que era humano — ainda
haveria de arrepender-se da sua interferência.
— O que é que você vai fazer? — perguntou Mary.
— Levá-la para casa. Tentaremos outra vez amanhã à noite.
A propósito, como foi que você fez girar aquela pedra
angular?
— Isso eu não posso contar-lhe, Fabrian, — disse ela com
firmeza e sinceridade. — É o único poder que tenho sobre
você.
— Não seja estúpida. Você usou um estilete ou coisa
parecida, não usou? Notei que havia um espaço entre duas
pedras, que parecia artificial.
— Uma tesoura, — confessou ela. — Há um ferrolho de
ferro dentro da fenda... Foi por acaso que o encontrei.
Ele agora sabia tudo o que queria saber; poderia dispensá-la
pelo resto da noite e, talvez, pelo resto da vida. Recusou-lhe
o convite para subir e tomar qualquer coisa e, assim que a
viu pelas costas, voou de volta a Sussex.
Eram duas horas no mostrador iluminado do seu relógio
quando entrou no campo de marcha à ré e subiu a ladeira
que conduzia às ruínas. Dali por diante progrediu sem fazer
barulho, passo a passo, detendo-se de quando em quando
para ouvir. Mas não havia sinal nem som do homem
mascarado.
Encontrou o canto da torre, deslocou o ferrolho com o
canivete e, empurrando a pedra tosca, cujas bordas se
desmancharam em suas mãos, abriu a porta.
Parando apenas para examinar a câmara superior, desceu de
manso a escada, a pistola numa das mãos, a lanterna na
outra. Não havia sinal do intruso, mas...
A porta do quarto do tesouro estava fechada. Empurrou-a, e
ela se escancarou. Percorrendo com a lanterna a longa cela
estreita, viu uma coisa que fez com que o sangue lhe fugisse
do rosto. Os "lingotes" haviam desaparecido. Todos. Em
nenhum dos bancos, nem no direito, nem no esquerdo,
ficara um único cilindro. Bagas de suor lhe desciam pelo
rosto quando ele se voltou, jurando matar qualquer
assombração humana que se lhe antolhasse, pois trazia o
coração amargurado contra quem quer que lhe houvesse
obstado à empresa.
Efetuou nova inspeção da câmara subterrânea. À diferença
da primeira, a segunda porta do lado oposto era sólida. Nem
buraco de fechadura, nem grade, permitiam que se visse o
interior do aposento que ela guardava. Palpitou-lhe que,
atrás da porta tachonada, havia um quarto semelhante àquele
em que os cilindros haviam sido guardados. Experimentando
a chave na fechadura, não obteve resultado algum. Meteu o
ombro na porta, mas esta não saiu do lugar.
Diante desse quarto, o piso consistia numa comprida laje de
pedra, que se estendia, sem solução de continuidade, até o
centro do cômodo, e era de largura idêntica à da estreita
passagem. Teria isso algum significado especial? Ajoelhando-
se, examinou com cuidado a pedra. Era diferente do resto do
pavimento. As lajes quebradas que formavam o piso do
quarto tinham sido alisadas pela passagem de gerações de
homens; aquela lousa oblonga fora rudemente lavrada, mais
como a superfície inferior de uma pedra de pavimentação do
que como a sua superfície cinzelada. Pisou numa
extremidade e sentiu que ela cedia um pouquinho; pisou na
outra e sentiu a mesma coisa. No meio se via um grampo de
ferro, equilibrando a pedra e, debaixo dele, um espaço oco.
Algum dia ou alguma noite voltaria e levaria a cabo uma
inspeção mais cuidadosa.
Chegou à câmara superior para ver-se diante de um
problema mais urgente. No momento em que ia apagar a
lanterna, preparando-se para passar pela abertura, viu a pedra
mover-se. E antes que pudesse correr e impedi-lo, a pedra
voltou ao seu lugar. Do lado de fora ouviu uma gargalhada
apavorante.
Encurralado! Empurrou a porta, mas ela não se moveu.
Polegada por polegada, examinou-lhe a superfície. Deve
haver uma abertura em algum lugar, refletiu. Lembrou-se da
história do abade amoroso e das suas excursões clandestinas.
Era evidente que existia um meio de abrir a porta pelo lado
de dentro.
Examinou a parede; nada apareceu. Ocorreu-lhe, então,
percorrer com a luz, lentamente, o assoalho, feito de pedras
quadradas. Uma delas, menor do que as outras, atraiu-lhe a
atenção, pois estava num nível diferente do resto; ele
puxou-lhe a extremidade e, com esforço, conseguiu deslocá-
la. Debaixo da pedra, viu um grande anel de ferro, tão
adelgaçado pela ferrugem quanto uma lâmina de barbear.
Embrulhou-o num lenço e puxou-o para cima. O anel cedeu
um pouco e, nesse momento; Gilder viu mover-se a porta.
Voltou a puxar com força o círculo de ferro e este,
lentamente, obedeceu. Embora a porta se tivesse mexido
apenas uma polegada, ele conheceu que ela já estava livre do
dispositivo invisível que a segurava. Correndo para ela,
empurrou-a com toda a força. A pedra se afastou e ele saiu,
cambaleante, para a luz fantasmagórica da madrugada.
A tempestade passara; lá em cima, as estrelas brilhavam no
céu, que empalidecia. Longe, à sua esquerda, um penacho de
fumo subia das retorcidas chaminés da Mansão de Fossaway.
Fabrian
Gilder enxugou o suor do rosto esbraseado e lidou por
vencer a amargura da derrota. Nisso, a seus pés, vislumbrou
qualquer coisa. Inclinou-se, com um grito, e apanhou-a. Era
um dos cilindros, pesado e carregado, que haviam deixado
cair os que tinham esvaziado o subterrâneo. Não pesava o
bastante para conter ouro. Percebeu-o incontinenti. A capa
era de chumbo. Arrancou o selo, esperando encontrar uma
abertura, mas o cilindro fora selado nas duas extremidades.
Carregou-o rapidamente ladeira abaixo e, ao abrigo do corte
da estrada, sacou da faca, rasgou a fina ponta de chumbo, e
retirou do interior do cilindro uma folha cuidadosamente
enrolada de pergaminho. Abriu-a e esbugalhou os olhos. Era
um antigo missal, formosamente pintado e, como obra de
arte, inestimável, mas fraco substituto para trinta e cinco
libras de ouro sólido!

CAPÍTULO XXXI

E isso era tudo o que os mais cilindros continham, pensou,
não sem alguma satisfação. Quem quer que o tivesse
observado — e ele suspeitava de Artur Gine, naturalmente
— estaria desapontado também.
Era naquela sala que os velhos monges tinham guardado a
sua música antiga; havia um certo humor negro na
lembrança de como passara a noite e da recompensa que
tivera.
Atravessou a estrada, abriu a porteira, entrou no campo
onde largara o carro, e ali ficou imóvel, petrificado de
espanto. O automóvel desaparecera!
Os rastros eram perfeitamente visíveis. Passavam pelo corte
e seguiam a estrada na direção de Willow House. Não havia
nada a fazer senão segui-los, a pé. Uma milha além da
residência de Artur Gine ficava o Chalé do Ribeirão dos
Corvos, sua propriedade, pensou com satisfação, lugarzinho
abrigado e confortável, onde ele poderia tomar um banho
quente dali a uma hora e uma chávena fumegante de chá
dali a quinze minutos. Animadora perspectiva para um
homem molhado até os ossos, esfalfado, e com os pés em
brasa.
Os rastros passavam pela entrada para Willow House e
continuavam na direção do chalé. E quando, afinal, ele
dobrou a última curva da estrada e deparou com a sua
pequena casa de campo, deu com o automóvel parado diante
da por:a. Não viu sinais de criatura viva. Fez a volta da casa,
vasculhou a pequena plantação à esquerda e desceu às
margens do córrego, antes de abrir a porta do chalé e entrar.
Enfiou a chave na fechadura e, para sua surpresa, à simples
pressão de sua mão, a porta se abriu. A porta que dava para a
sala de jantar moveu-se antes que ele girasse a chave na
fechadura. Olhou, imobilizado pelo assombro. Ardia um
fogo na grelha, sobre a qual fumegava uma chaleira. Um
bule aberto descansava na lareira, e alguém abrira uma lata
de biscoitos. Ouviu passos no cômodo contíguo e voltou-se
para enfrentar o intruso; ao avistá-lo, abaixou o cano da
Browning.
— Tomás! — exclamou, incapaz de acreditar no que via. —
O que é que você está fazendo aqui?
— Fui despedido esta manhã, — retrucou, lacônico, o ex-
lacaio.
— Esta manhã? Mas se o dia mal clareou!
Tomás assentiu com a cabeça.
— Alford me encontrou andando pela casa quando eu devia
estar na cama, dormindo, e botou-me para fora.
— Mas por quê?
O homem pareceu meio sem jeito.
— Como é que eu vou saber por quê? Aquele cachorro
nunca foi com a minha cara. Creio que ele desconfiou de
que eu escrevia para o senhor.
Gilder sabia que a história era mentirosa, e se destinava a
ressaltar a obrigação que ele porventura devesse ao ex-
criado. Tomás fora-lhe valioso correspondente: tudo o que
acontecia na Mansão de Fossaway lhe tinha sido fielmente
participado.
— Você está em apuros. O que foi que andou fazendo?
O homem comprimiu os lábios.
— Bem, — hesitou, — creio que posso contar-lhe a verdade.
O senhor já ouviu falar em Mono Puttler? Espere um
minuto, que farei o chá.
Pegou na chaleira, que fumegava, e encheu o bule, e só
depois que o colocou no descanso, junto à lareira, continuou
a narrativa.
— Mono Puttler é um "tira". Todo criminoso em Londres o
conhece, e se o conheço tão bem quanto outro qualquer, foi
porque ele me pespegou três anos por um servicinho que fiz
no Hotel Westinghouse.
— Roubo? — perguntou o outro, para quem aquilo era
novidade.
— Um serviço interno, — volveu Tomás, objetivo. — O
senhor pode chamar de roubo, se isso lhe dá prazer. O certo
é que o Mono me pegou e me pôs na geladeira por três
longos e cansativos anos. Quando saí, arrumei esse emprego.
Havia uns bicos nesse também. Chelford não é homem para
contar os seus trocos, e Alford não se atreve a perguntar-lhe
o que fez com o dinheiro quando o irmão lhe pede mais.
— Um ex-sentenciado, é? — Gilder se sentia ligeiramente
chocado e considerou o homem por um novo ângulo. — Eu
não sabia disso; se soubesse, nunca o teria empregado!
— Precisei enganar um pouquinho, — confessou Tomás,
com um sorriso.
— A mim, você me enganou direitinho! — replicou Gilder.
— Não o enganei, exatamente, — disse o outro, achando
graça. — Mas no dia em que fui ao seu escritório e o senhor
começou a interrogar-me sobre como andavam as coisas na
Mansão em relação a Gine, percebi que poderia ganhar
alguns dólares honestamente.
— E então? — Continue a falar sobre o seu amigo Mono...
qual é o nome dele?
— Puttler. Chegou ontem.
— À casa de Chelford? — inquiriu Gilder, surpreso.
— Sim, — confirmou Tomás. — Alford está fingindo,
dizendo que o homem é contador, mas não é, não, é tira
mesmo. Conheci-o assim que o vi e, o que é pior, ele me
conheceu. Eu tinha entrado para o serviço de Chelford com
falsas recomendações e percebi que estava liquidado logo
que vi aquela cara feia. E o certo é que ontem à noite, Alford
me deu o bilhete azul, mandando que eu desinfetasse o beco
hoje. Mas ainda pego aquele sujeito um desses dias, —
concluiu, com uma expressão feia no rosto.
— Mas por que hoje cedo? — perguntou Gilder.
— Era o que eu ia contar-lhe, — tornou o outro, impaciente.
— Chelford tem uma caixa onde guarda dinheiro, na
biblioteca, na segunda gaveta à esquerda, e costuma ter ali
uma boa bolada. Ele é meio infantil em questões de
dinheiro. Eu sabia que, se botasse as mãos naquela grana,
poderia tirar o suficiente para ser feliz e deixar o suficiente
para que Chelford não pudesse jurar que eu levara algum ou
não. Entrei na biblioteca, lá pelas quatro horas da manhã de
hoje, e já ia subir quando Alford me surpreendeu e me
mandou subir, vestir e sumir. Obedeci. Aquele cara tem
qualquer coisa na cabeça: nunca dorme!
— Ele pegou você com o dinheiro? — perguntou Gilder,
repugnado.
— Não, senhor... Joguei o que tinha tirado pela janela, assim
que o tirei. Depois, fui buscá-lo.
— O que é que o Sr. Alford estava fazendo, perambulando
pela casa, àquela hora?
O homem fez uma careta.
— Nunca se sabe quando ele está por perto, — respondeu.
— Ele não é humano; eu já lhe disse que o homem não
dorme!
Conquanto Gilder tivesse a certeza de que Tomás falava a
verdade, estava igualmente persuadido de que lhe ocultava
qualquer coisa. Pareceu-lhe distinguir lacunas na história,
que transpunha com facilidade. Prudentemente, decidiu não
ser aquela a hora de interrogá-lo. Acerca de um ponto já
tomara uma decisão. Tomás e ele precisavam separar-se, e
quanto antes, melhor.
— E por que foi que você veio para cá?
— Pensei que o senhor estivesse em Londres, — disse o
outro, friamente. — Já esive aqui antes, entende, e julguei
que o senhor não se incomodasse se eu usasse a sua casa por
um ou dois dias... talvez uma ou duas semanas, — ajuntou,
sem tirar os olhos do rosto do advogado.
Gilder coçou o queixo com expressão pensativa.
— Não sei se será muito bom para mim saberem por aí que
você é um ex-sentenciado.
— Ninguém precisa saber; por que saberia?
— Você trouxe o meu carro para cá?
Tomás fez que sim com a cabeça.
— Eu pretendia, primeiro, ir à Quinta Vermelha; há ali um
cavalariço que é meu amigo. Nisso, vi o seu carro e imaginei
que lhe tivesse acontecido alguma coisa. Esperei um pouco
e, como o senhor não aparecesse, trouxe-o para cá.
— Alguém o viu?
— Ninguém. Ainda estava escuro.
Que estaria ocultando o homem? A impressão de Gilder,
habilidoso leitor de pensamentos, era de que Tomás estava
quase estourando com uma informação vital. Por uma ou
duas vezes a .informação estivera na ponta da sua língua,
mas ele conseguira refreá-la.
— Você poderá ficar aqui, se quiser; eu vou para a cidade.
Mas se receber uma carta da polícia local dizendo que você
está morando em minha casa, escreverei dizendo que não o
autorizei a ficar aqui. Entende que preciso proteger-me?
— Entendo, sim, senhor.
Mais uma vez os seus lábios se moveram, como se preten-
desse falar e, mais uma vez, ele se reportou.
— O que é que você quer dizer-me?
— É grande demais para dizer. Vou guardá-lo. Talvez, se o
senhor voltar mais tarde, eu lhe conte uma história que vale
um milhão de dólares.
Tomás passara, de uma feita, doze meses numa penitenciária
do Canadá e, depois disso, gostava de bancar o bandido
americano.
— Um milhão de dólares!

CAPÍTULO XXXII

Gilder serviu-se de chá, comeu alguns biscoitos e, saciada a
fome, foi para o quarto e tirou do armário uma muda
completa de roupa. Como a água estivesse muito fria para
um banho, contentou-se em esfregar o corpo com uma
toalha áspera e úmida. Sentiu-se outro homem depois de
barbeado, limpo e aquecido. Voltou a Tomás, que fumava
um cachimbo curto, de raiz de roseira, os olhos postos no
lume.
— Quando você resolver falar, será melhor mandar-me um
telegrama... não de Chelfordbury, mas de Horsham.
Escreveu o endereço numa página do seu caderninho de
notas, arrancou-a e en'regou-a ao ex-lacaio; em seguida,
acionando a manivela do carro, voltou para Londres na
manhã cinzenta.
Às dez horas foi despertado de um sono profundo para
atender ao telefone. Era Mary Wenner, e ele amaldiçoou-a
mentalmente.
— É você, Fabe? Fiquei tão preocupada durante toda a noite,
querido. Você não voltou àquele lugar horrível, voltou?
— Irei vê-la hoje à tarde, — atalhou ele. — Não fale pelo
telefone: pode ser ouvida.
Ele não tinha a menor intenção de vê-la naquela tarde, nem
em qualquer outra, mas, nessa questão, a sua vontade não foi
o fator determinante. Logo após o chá, quando já se
preparava para sair, ela entrou pela sala de jantar sem ser
anunciada. Ele estremeceu, só ao pensar no que a rapariga
teria dito aos criados. Mary aproximou-se, inclinou-se,
beijou-o pudicamente na testa, e sentou-se ao lado dele.
— Querido, — disse ela, e Fabrian cerrou pacientemente os
olhos, — você se importará se eu fizer uma coisa que talvez
pareça um pouquinho marota?
— Não me importarei... — principiou ele.
— Mas, querido, é uma coisa que afeta a sua honra! — Os
olhos dela, sérios, estavam postos nos olhos dele. — Você
nunca deverá pensar que não lhe sou fiel, nem nada
parecido, mas ele me escreveu uma carta tão suplicante...
— Quem escreveu? — perguntou o Sr. Gilder, subitamente
interessado.
— Artur. Recebi também uma carta da irmã dele, convidan-
do-me para passar o fim de semana com eles. Eu,
naturalmente, preferiria ficar aqui na cidade com você. Mas
sinto que devo ter uma explicação com Artur e comunicar a
ele que as minhas afeições já não lhe pertencem. Afinal de
contas, mesmo que não tenhamos conseguido a fortuna, sei
que estou tratando com um cavalheiro que não me quer
apenas pelo meu dinheiro. E você não é exata- mente um
pobretão, não é, querido? Fui perguntar a um jovem
indivíduo que conheço na Agência Stubbs, e lá me
contaram que você é homem de cem mil libras, pelo menos.
Gilder grunhiu.
— E tenho a sua promessa por escrito.
— Sim, você tem tudo, minha querida Mary, — assentiu ele,
em tom cansado.
— E, Fabe, querido, aconteceu uma coisa tão esquisita com
aquele papel! Quando o tirei hoje cedo de baixo do
travesseiro, sabe o que aconteceu? As palavras tinham
desaparecido! Senti uma tontura que você não imagina!
Ele mexeu-se, constrangido, na cadeira.
— Que coisa mais extraordinária! — conseguiu exclamar.
— Fiquei tão transtornada com esse negócio que levei o
papel a um cavalheiro meu amigo, que está no ramo das
prestidigitações. Você, provavelmente, já o viu: ele tira
coelhos de cestas de papel, e disse que você deve ter usado
tinta invisível; depois, mostrou-me como se faz para trazer a
tinta de volta e torná-la permanente.
— E você fez isso? — perguntou Gilder com voz cava.
— É claro que fiz, querido! Basta a gente espremer um limão,
esfregá-lo sobre o papel e segurar o papel diante do fogo.
A cabeça de Gilder principiou a girar. A única coisa que
conseguiu dizer foi "Oh!" Aquilo era inconveniente —
muito inconveniente; se bem, pensando melhor, não
passasse de uma dificuldade facilmente transponível. Na pior
das hipóteses, poderia comprá-la com mil libras; além disso,
a promessa de casamento era aleatória. Mesmo assim, não
deixava de ser um documento assaz desagradável para ser
apresentado num processo de quebra de promessa de
casamento; pois, confiado na qualidade invisível da sua tinta,
ele fizera um acordo muito prejudicial para si.
— Você vai passar o fim de semana com os Gines?
— Creio que sim, querido. — A hesitação era afetada, e ele o
sabia; ela já se decidira. — Francamente, acho que devo ir.
Artur é um velho amigo e, embora não represente nada para
mim, isto é, não representa mais do que o pó debaixo dos
meus sapatos, e eu esteja pensando tanto em atirar-me aos
braços dele quanto em voar para a Lua, ainda assim acho que
devo ir.
— Então, pelo amor de Deus, vá — disse ele com
brusquidão. Ela murmurou os seus agradecimentos e ter-se-
ia demorado um pouco mais se ele não a tivesse
acompanhado até a porta, abrindo-a com muita ênfase.
Ele inferiu que, embora não o desobrigasse da sua promessa,
ela ainda não perdera de todo a esperança de seduzir Artur
Gine.
Mary Wenner acabara de sair quando chegou um garoto
com um telegrama. Gilder estava esperando notícias de uma
das suas firmas de corretagem de apostas, ora em fase de
liquidação, visto que o seu único cliente suspendera as
atividades. O telegrama fora enviado de uma aldeia que
distava cinco milhas de Chelfordbury e rezava:
"Venha o mais depressa que puder. Grandes novidades. T."
Falaria Tomás? E que teria ele para dizer?

CAPÍTULO XXXIII

O cavalariço que trouxe o cavalo de Dick Alford até a porta,
tinha notícias para comunicar.
— Aquele sujeito foi visto ontem à noite, senhor.
— Que sujeito? — perguntou Dick, montando.
— O Abade Negro, senhor. Gill, o couteiro, lá no Chalé do
Prado Grande, viu-o hoje de madrugada, às quatro horas,
atravessando o Prado Grande. Quando Gill foi buscar a sua
arma, ele tinha desaparecido.
— E o que é que o Abade Negro estava fazendo no Prado
Grande? — perguntou Dick, sardónico. — Colhendo
boninas?
— Já não é tempo de boninas, — voltou o cavalariço, que
não se destacava pela imaginação. — Mas Gill afirma que, se
ele tivesse a espingarda na hora, teria atirado.
— E teria havido um inquérito, e a melhor coisa que Gill
poderia esperar seria uma condenação por homicídio
culposo. Diga a Gill, de minha parte, que o Abade Negro
deve ser apanhado... à unha! Um fantasma vivo nos poderá
contar muita coisa, mas um fantasma defunto é praticamente
inútil como órgão de informações.
Ele galopou através dos prados mais próximos, atrás da casa
e, evitando as ruínas da abadia, chegou ao tortuoso Ribeirão
dos Corvos. Deixando o cavalo andar a passo, seguiu a
margem do córrego, com o espírito tão absorto nos
acontecimentos das últimas vinte e quatro horas que teria
passado sem dar pela presença da jovem deitada de bruços
na margem oposta.
— Bom dia, Sir Galaad!
Ele freou o cavalo e olhou à sua volta, atônito. Logo depois a
viu.
— Bom dia, Guinevra! — saudou-a, e virando a cabeça do
cavalo na direção do curso d'água, desceu com cuidado o
declive e obrigou a montaria relutante a entrar no riacho.
— Cuidado!
— Há um vau aqui, — disse ele. — Na verdade, — conti-
nuou, ao emergir com a barrigueira do cavalo pingando, —
este é o Chelford original. Cavaleiros com armaduras e,
provavelmente, bretões vestidos de penas e folhas,
atravessaram o Ribeirão dos Corvos neste lugar. O que é que
você está fazendo aqui?
Apeou, deixando pender as rédeas e permitindo que o
animal pastasse à vontade. Ela estava deitada a fio comprido,
apoiada nos cotovelos. Imediatamente debaixo dela havia
uma laje, em cujo centro fora cavado um buraco de uns
cinqüenta centímetros de diâmetro. Ao vê-lo, ele desatou a
rir.
— Leslie, que perguntas tem você para fazer ao Poço dos
Desejos?
Porque se chamava Poço dos Desejos, nunca o soubera —
nenhuma água subira jamais daquela funda cavidade, que,
por algum capricho da natureza, descia a profundezas nunca
sondadas. Sem embargo disso, gerações de rústicos amantes
tinham vindo prostrar-se naquele lugar e desabafado as suas
mágoas gritando-as para dentro do poço. E rezava a tradição
que o poço lhes respondia clara e inteligentemente.
— Estou fazendo perguntas sobre mim.
O rosto dela estava escarlate, provavelmente em
conseqüência da postura inusitada.
— E que disse o poço? — zombou ele.
Ela ergueu-se sobre os joelhos e afastou os cabelos que lhe
caíam sobre a testa.
— Não digo... Pergunte qualquer coisa!
Com um resmungo e um gemido, o rapaz estendeu-se sobre
a relva quente, colocou as mãos na boca e gritou para dentro
da cavidade:
— Que vai acontecer a Leslie?
Os dois esperaram e, logo, o eco voltou, estranhamente
distorcido e, contudo, distinto:
— Case com ela!
Riram-se ambos. Era o truque de algum espaço oco, lá
embaixo, que, através dos séculos, enviava a mesma resposta
a todas as perguntas.
Ele pôs-se em pé.
— Eu gostaria que você não andasse por aí sem a minha
companhia, — disse, em tom sério, e ela riu-se.
Nunca a vira mais bonita do que naquela manhã. Uma coisa
de ar e de sol, uma irrealidade misteriosa que não pertencia
ao mundo sórdido em que ele vivia.
— Levantei-me cedo e estava entediada, por isso saí
andando; de repente, lembrei-me do poço e perguntei a
mim mesma se ele já teria aprendido algum truque novo.
Artur está com muita vergonha do olho machucado e não
quer sair enquanto o rosto não voltar ao normal. Pobre
Artur! — Ela hesitou, olhando para ele. Você não
descobriu... — Porém não terminou a frase.
— O cavalheiro que andou dando os tiros? Não, mas nós já
temos um bom palpite. A propósito, despedi Tomás. Você se
lembra daquele lacaio sem-vergonha, que estava sempre
perto da gente quando não devia estar?
— O que foi que ele fez? — perguntou ela.
— Nada de especial. É um ex-sentenciado: Puttler
reconheceu-o assim que chegou; encontrei-o às três horas
da manhã de hoje saindo da biblioteca, e mandei-o revirar os
bolsos. Ele não tinha muita coisa em seu poder, mas tudo faz
crer que o que tinha era furtado. O coitado do Harry se
preocupa tão pouco em contar o dinheiro que tem que será
quase impossível obter-se uma condenação. Tomás,
naturalmente, jurou que o dinheiro que encontrei... e que
não era muito... lhe pertencia, e como seria um transtorno
acordar Harry, o qual, aliás, certamente não me daria
informações seguras, deixei-o ir com o que levava.
— Onde está ele agora?
— Espero que tenha tomado o primeiro trem para Londres.
Não creio que se aventure a dar um golpe nas vizinhanças
mas, pelo sim pelo não, acho melhor você contar a seu
irmão.
Depois de um momento de silêncio, ela perguntou:
— Você encontrou o rifle?
Ele sacudiu negativamente a cabeça.
— Era um rifle do exército, e não existem dessas coisas em
Fossaway, embora existam na aldeia. Na verdade, quase
umas doze pessoas que trabalham na propriedade pertencem
ao Exército Territorial. Diz Puttler que os responsáveis são
um bando de caçadores furtivos.
Dick não sabia mentir, mas Leslie não desconfiou de nada e
não lhe contestou a teoria. Se o tivesse feito, poderia ter
argumentado que os caçadores furtivos usam espingardas e
armadilhas, e que um rifle como instrumento para matar
caça era quase tão útil quanto um martelo-pilão a vapor para
pregar tapetes no chão.
Atravessaram o campo na direção de Willow House. Dick ia
puxando o cavalo pela rédea.
— Quero que me faça uma promessa, Leslie, — disse ele.
— Qual é? — perguntou ela, sabendo de antemão qual seria.
— Quero que me prometa desistir desses passeios matinais a
pé, usar o seu carro quando sair, e não se afastar das estradas.
As sobrancelhas dela se ergueram.
— Por quê? Haverá, por acaso, algum perigo? Você não está
com medo do Abade Negro, está?
Ele, porém, não respondeu ao sorriso dela.
— Não, — retrucou, — não tenho medo especificamente do
Abade Negro, mas tenho muito medo de alguma coisa que
está por trás do Abade Negro.
Ela percebeu que ele não desejava ser interrogado, e mudou
de assunto. Contou-lhe que estava esperando uma visita, e
só quando lhe disse quem era é que os olhos dele piscaram.
— Santo Deus! Aquela moça! Imagino que você saiba que
estará abrigando uma perigosa rival?
— Não fale assim, — admoestou-o ela. — Tenho até pena da
moça.
— Não fale assim, — arremedou ele. — Você não precisa ter
pena de Mary. Se não falarem a meu respeito, terão um fim
de semana muito agradável. Mas no que concerne a Richard
Alford, ela é fanática. Não lhe contarei as coisas horrorosas
que a Srta. Wenner diz de mim, para você não ficar com
raiva dela.
— Como é que você sabe? Muita gente diz coisas horrorosas
de Richard Alford.
— Mas não a você, — voltou ele, tranqüilamente. Ela
enrubesceu e mudou de assunto outra vez.
— Não sei por que me levantei tão cedo; só me deitei às duas
horas.
— Eram duas e dez quando a sua luz se apagou, — precisou o
rapaz, e ela o fitou, espantada.
— Como é que você sabe?
— Acertei de passar pela sua casa.
A explicação foi dada com tanta presteza, que ela ficou
desconfiada.
— O Abade Negro andou passeando por aí ontem à noite.
Puttler e eu fizemos uma caçadinha.
— Vocês o viram?
Ele sacudiu a cabeça.
— Ninguém o viu, exceto um couteiro apavorado.
De repente, ela voltou-se para ele com um gritinho de
surpresa.
— Era você!
— Era eu o quê?
— Eu estava certa de ter visto alguém na extremidade infe-
rior da alameda. Você estava fumando um charuto: vi o
brilhozinho vermelho; a princípio, pensei que fosse Harry e,
hoje cedo, encontrei o toco de um charuto perto do portão.
Richard Alford, você dorme?
— Freqüentemente, — disse ele com um sorriso, e envol-
veu-lhe o ombro com o braço. — Estou sendo fraternal, não
se assuste, — ajuntou, em tom de gracejo. — Leslie, querida,
promete?
— O quê? o J?
— Não andar pelos campos a qualquer hora. Não quero
alarmá-la... sinto-me um bruto assim mesmo... mas pode
haver perigo de verdade nos próximos dois dias. Por favor,
não me pergunte o que é, porque não posso dizer-lhe; nem
eu mesmo tenho a certeza de saber.
Ela meditou nas palavras dele durante longo tempo.
— É qualquer coisa que se relaciona com o tesouro de
Chelford? — perguntou, e, para surpresa sua, ele fez que sim
com a cabeça.

CAPÍTULO XXXIV

Leslie estivera vagamente consciente de que um homem se
achava, em pé, diante do portão de Willow House. Vira-o
quando se encontrava a certa distância e agora,
aproximando-se, teve a impressão de que ele a esperava,
para falar-lhe. Era um homem alto, que envergava um terno
cinza mal-ajeitado e um boné de golfe. O homem tirou as
mãos dos bolsos quando ela se acercou e levou a mão ao
boné. Nesse momento, Leslie reconheceu o desditoso
Tomás, o ex-lacaio.
— Bom dia, senhorita, — disse ele.
— Bom dia, Tomás.
A jovem considerou com maior interesse a figura alta, magra
e mal-ajambrada.
— Posso dizer-lhe duas palavrinhas, senhorita?
Ela hesitou.
— Receio não poder fazer nada por você, Tomás. O Sr.
Alford me contou que o despediu.
Ele forçou um sorriso.
— O Sr. Alford não gosta de mim, senhorita. Fui acusado
falsamente, e vou procurar meu advogado quando chegar à
cidade. Um minuto, — ajuntou, à pressa, vendo-a abrir o
portão. — Eu poderia contar uma coisa importantíssima para
a senhorita.
Os olhos cinzentos fitaram-se nele com firmeza.
— Você não pode contar-me nada que tenha a menor
importância para mim, Tomás... — principiou ela.
— Oh, não? — A cabeça dele subia e descia, numa sucessão
de inclinações. Lembrava grotescamente um mandarim
cabeceador, que lhe adornava a secretária. — A senhorita
não sabe o que eu sei. Eu poderia contar-lhe uma coisa, e
poderia contar uma coisa ao Sr. Gine, que ninguém sabe. As
pessoas falam sobre o tesouro de Chelford...
— Não quero ouvir mais nada, — atalhou e, voltando-se,
subiu a alameda.
Por um momento, ele a resguardou como se pretendesse
acompanhá-la mas, pensando melhor, acendeu o cigarro que
se apagara e dirigiu-se, pachorrento, para a sua casa
emprestada. Nisso, uma idéia lhe ocorreu. Além da cerca
baixa de madeira, erguia-se espessa moita de loureiros. Para
o caso de um dos seus planos ser posto em prática, e ele
precisar sair à pressa de Chelfordbury, talvez valesse a pena
fazer o reconhecimento daquela casa. Pulou a cerca e entrou
a caminhar, cauteloso, por entre os arbustos.
— Com quem é que você estava falando, Leslie?
Deitado numa cadeira preguiçosa, estendida no gramado,
Artur Gine tinha o olho coberto por uma espécie de parche
branco.
— Tomás, — disse ela.
— O lacaio de Fossaway? O que foi que ele trouxe... algum
recado?
— Não, foi despedido, — disse a moça ao passar pelo irmão.
— Dick desconfia que ele tenha roubado qualquer coisa e
deu-lhe a conta hoje cedo.
— Quer dizer que você viu Dick? — indagou Artur surpreso.
— Sim, encontrei-me com ele; estava a cavalo e ia ver o
moleiro. — Ela demorou-se atrás da cadeira do advogado.
— Você parece estar-se encontrando sempre com esse
camarada, — volveu o irmão, em tom cogitativo. — É Dick
pra cá e Dick pra lá. Acha que está certo, Leslie, brincar com
fogo desse jeito? Você nunca me conta que se encontrou
com Harry.
— Harry não sai da biblioteca, — voltou ela, com um sorriso,
— e é difícil deixar de encontrar Dick quando a gente sai de
casa. Não que eu alguma vez tenha tentado deixar de
encontrá-lo.
Ele tirou o cigarro da boca e pôs-se a contemplá-lo,
cismarento, apertando os lábios.
— Dick é um bom sujeito, — repetiu, — mas creio ser
desnecessário relembrar-lhe que é um filho segundo, tão
pobre quanto um rato de igreja. Sim, Leslie, insisto na
pobreza. Afinal de contas, casando com Harry, você não se
casa com um pobretão. E eu lhe digo francamente que você
precisa casar com um homem rico!
A verdade estava surgindo — ela se enrijou para enfrentá-la.
— Que aceite a minha fortuna sem pedir explicações, —
disse ela, serenamente. — Se eu me casasse com Dick, que é
um, homem de negócios, ele talvez quisesse examinar os
meus títulos e ações.
Um tenso momento de silêncio. Depois:
— Não existem títulos nem ações!
Ele precisara apertar os dentes para fazer a confissão. Mas
não pôde encarar com ela; não se atrevia a olhar à sua volta
nem a enfrentar os olhos da irmã.
— Não existem títulos nem ações? — repetiu ela,
pausadamente. — Nesse caso, o que eu disse no carro estava
certo? Não tenho nada!

CAPÍTULO XXXV

Proclamara-se a verdade. Em pé, rígida, atrás da cadeira do
irmão, Leslie baixara os olhos para ele.
— Não tenho nada? — perguntou.
Ele precisou molhar os lábios antes de poder falar.
— Tenho tentado reunir a coragem necessária para contá-lo
a você há muito tempo, — disse ele. — Sou um covarde...
um canalha! Você tem umas poucas mil libras que não pude
tocar, mas o fato é que gastei todo o resto da sua fortuna.
Erguendo os olhos para ela, não viu o olhar de condenação
que esperava. Não havia desprezo nem consternação em seu
rosto. Os lábios vermelhos estavam crispados num meio
sorriso, e em seus olhos brilhavam tão-só a bondade e a
piedade.
— Graças a Deus! — murmurou a jovem, e ele não conse-
guiu compreendê-la.
— Isso significa, naturalmente, que Chelford terá de aceitá-la
sem fortuna, — voltou Artur.
Ela abanou a cabeça.
— Já escrevi a Harry, desfazendo o noivado, — respondeu
Leslie. Depois, enfiando o braço no braço dele, propôs: —
Vamos entrar para tomar café. Este é um dos dias mais
felizes da minha vida.
A carta chegou às mãos de Harry Alford, Conde de
Chelford, em companhia de duas ou três outras cartas
pessoais; a sua principal correspondência mantinha-a ele
com os livreiros de Londres, pois era um inveterado
colecionador de tomos antigos. Olhou para a carta,
reconheceu a letra, carranqueou, e virou-a do outro lado.
Em seguida, com mostras de tédio, abriu o envelope.
Meu caro Harry, — Refleti, durante muito tempo, em que
temos tão pouca coisa em comum que o nosso casamento
não teria possibilidades de proporcionar felicidade a nenhum
de nós. Creio que a atitude mais correta seria eu devolver o
meu anel de noivado mas, feliz cu infelizmente, você se
esqueceu de presentear-me com esse penhor de afeição!
Desejo-lhe toda a sorte de venturas, e espero continuarmos
bons amigos.
Harry leu a carta, esfregou a testa, perplexo e, ato contínuo,
levantou-se da cadeira e saiu quase correndo da biblioteca.
Dick estava no gramado, brincando com o cachorro, quando
o irmão irrompeu no escritoriozinho.
— Veja isto! O que é que você me diz de uma coisa dessas?
Dick leu a carta com o rosto perturbado.
— Lamento muito, — disse ele.
— Você lamenta! — estridulou Harry. — É vergonhoso!
Leslie tratou-me deveras muito mal... mas essa referência ao
anel de noivado é de um mau gosto atroz.
— Pensei que você lhe tivesse dado um anel de noivado, —
volveu o paciente Dick. — Não deu?
— É uma prática bárbara e estúpida. Nunca sonhei em dar
um anel a ela. E por que o daria? Ela já tem um anel, um
lindo anel. Você deve ter visto... um brilhante que ela usa
sempre. Que sentido tem isso? A referência é de péssimo
gosto... chocante!
E não obstante, apesar da agitação e da cólera, Dick cuidou
distinguir um tom de alívio na voz do irmão. Mas a sua
vaidade fora ferida, e este é um lugar muito dolorido, até
para gente de maior estatura do que Lorde Chelford.
— Sem nenhum aviso. Ela esteve ontem aqui, e não me disse
uma só palavra a respeito!
— Você também não lhe deu oportunidade, — acudiu Dick.
— Mal falou com ela e, positivamente, Harry, nem se deu ao
trabalho de entretê-la. Seja razoável.
Harry acariciou o queixo e olhou através das grossas lentes
dos óculos de aros de chifres.
— Acho que não, — aquiesceu, com súbita brandura. — Na
verdade, não fui feito para o casamento. Não quero outra
coisa senão os meus livros e a minha missão. Mas esse
negócio vai-me deixar com cara de bobo, Dick. — A cólera
recomeçava a avolumar-se. — Toda a gente no condado
sabe que éramos noivos e virá aqui, espiar, para descobrir o
que aconteceu. Teremos aqueles jornalistas odiosos sentados
à nossa porta, e isso é mais do que eu posso suportar!
— Deixe, então, os jornalistas comigo, — sobreveio Dick. —
Eu lhes darei todas as explicações de que eles precisarem, e
eles se arrependerão de tê-las pedido. Aos jornalistas, eu os
como vivos!
Nem assim o irmão se abrandou totalmente.
— Por que foi que ela fez isso? — Acha que encontrou
alguém de quem gosta mais? — Olhou atentamente para
Dick, com o seu jeito de míope. — Seria ainda pior. Estou
muito aborrecido com Artur Gine. Ele jogou essa moça em
cima de mim.
— Não falemos sobre isso, — atalhou Dick, ríspido. — Não é
uma atitude muito digna para se tomar.
O irmão olhou, indeciso, para a carta.
— O que é que eu vou fazer?
— Escreva uma carta bonita, restituindo-lhe a liberdade, —
sugeriu Dick. — É a única coisa que você pode fazer.
— Mas você acha que ela tem outro homem em vista?
— Provavelmente terá uma dúzia, — voltou o outro,
brutalmente. — Faça o que lhe digo, Harry.
E Harry Chelford voltou resmungando à biblioteca.
Com que, então, ela o fizera! Dick nem sabia se devia sentir-
se jubiloso ou deprimido. Uma semana antes, ter-se-ia
julgado o homem mais ditoso da Inglaterra; hoje —
encolheu os ombros robustos, tirou o cachimbo do bolso e,
com gestos selvagens, enfiou o fumo no fornilho. Isto
significaria um rompimento, pelo menos durante algum
tempo, entre os Gines e Harry, e dessa possibilidade nasceu
um pensamento alarmante. E se Harry transferisse a
administração jurídica dos seus bens para outra firma? Seria a
ruína de Artur Gine. Até aquele momento, Dick pudera
cobrir os desfalques do irmão de Leslie Gine e, dali a alguns
meses, teria apagado todos os vestígios deles, sem prejuízo
para a propriedade. Mas naquela fase, se Harry insistisse...
— Sua Excelência quer vê-lo, senhor.
O segundo lacaio aparecera sem que ele desse por isso.
Dick endureceu-se para a entrevista e entrou na biblioteca.
O irmão estava sentado à escrivaninha, a cabeça entre as
mãos, o cabelo em desalinho, uma ruga colérica a franzir-lhe
a pele branca da testa.
— Dick, vou romper com esses Gines, — anunciou. —
Quero que você peça aos seus advogados que tomem conta
dos meus negócios em lugar de Artur, e diga-lhes que sejam
muito cuidadosos e verifiquem item por item. Aquele sujeito
administra os bens de minha mãe e, por alto, calculo que ele
tenha em seu poder quase cinqüenta mil libras em valores.
Se estiver faltando um penny que seja, Dick, processarei
esse indivíduo... juro por Deus que o processarei! Ele me fez
de bobo perante todo o condado e, se me for dada meia
oportunidade, eu me vingarei.
Dick sentiu apertar-se-lhe o coração.
— Quais são os advogados que você sugere?
— Sampson & Howard. São gente de bem e não vão à missa
com Artur. Você se encarrega disso por mim, Dick?
Dick assentiu com a cabeça. Assim que pôde escapar da
presença do irmão, foi à garagem e, tirando o carro, rumou
para Willow House. Artur ainda estava no gramado,
passeando de um lado para outro e, da sua atitude de
depressão, Dick inferiu que alguma coisa insólita acontecera.
Talvez tivesse sabido do rompimento do noivado. Nesse
ponto, porém, as suas conjeturas eram infundadas.
— Quero vê-lo, Gine.
Artur Gine estremeceu e voltou-se ao som da voz.
— Alô! — disse ele, sem jeito. — Harry já sabe?
Dick fez que sim com a cabeça.
— E está muito zangado, com certeza?
— Está furioso. Foi sobre isso que vim vê-lo. Onde está
Leslie?
— Lá dentro. Você quer vê-la?
— Não, — respondeu Dick, calmamente. — Quero falar com
você. Vamos dar uma volta.
Afastaram-se o suficiente para que da casa ninguém pudesse
ouvi-los, e Dick principiou:
— Harry decidiu tirar a administração jurídica da proprie-
dade das suas mãos, Gine. Ele me falou hoje cedo em alguns
fundos que você estaria gerindo... cerca de cinqüenta mil
libras de valores da falecida Lady Chelford. Esse dinheiro
está intacto?
Artur não respondeu.
— O dinheiro está intacto? — insistiu Dick,.
— Não, — retrucou o outro, com voz rouca; — nem um
penny.
Dick olhou horrorizado para o homem.
— Você quer dizer que o dinheiro se perdeu?
Artur fez um gesto afirmativo. E explicou:
— Persuadiram-me a investir num campo de petróleo no
Texas. As ações não valem nem dois centavos o milheiro.
Dick gemeu.
— Louco, louco varrido! — murmurou. — Você
compreende o que isso significa? Não vou poder protegê-lo
agora, nem mesmo por Leslie. Você é um doido!
Artur Gine passou a mão pelos olhos, num gesto cansado.
— Você não tem amigos capazes de ajudá-lo?
Os lábios do advogado crisparam-se.
— Com cinqüenta mil libras, não, — disse, bruscamente. —
Receio, Alford, que terei de passar por isso. Tenho sido um
patife, um presumido, um estúpido cretino... Sou culpado de
tudo o que poderá acontecer-me, e não me queixarei.
— Ainda temos uma semana, — ponderou Dick. — Posso
adiar a transferência por sete dias; mas depois que os
documentos estiverem nas mãos dos outros advogados, nada
o salvará.
Uma semana! Artur Gine beliscou o lábio inferior, em pos-
tura meditativa. Sete dias. No que lhe dizia respeito, ainda
que tivesse sete anos para repor as coisas no lugar, não via
jeito de fazê-lo.
— E tire da cabeça a idéia de descobrir o tesouro de Chel-
ford, — admoestou Dick. O choque fez o homem pular.
— Ué, mas como é que você sabe...? — gaguejou.
Sei tudo a respeito. E digo-lhe que desista. Isso não é
solução. É apenas roubar Pedro para pagar Pedro; pois se
houver algum ouro... e duvido muito que haja... pertence a
Harry e terá de ir para as mãos de Harry. E a fortuna de
Leslie? É claro que não existe. Ela já sabe?
- Contei-lhe esta manhã, — disse o homem, e Dick, então,
compreendeu a sua depressão. — Ela recebeu a notícia
como um anjo; na realidade, pareceu-me quase feliz. E eu
lhe asseguro que não compreendo por quê. As mulheres são
umas coisas esquisitas.
— Pois eu conheço uma mulher que é a coisa mais
maravilhosa do mundo, — disse Dick, suavemente.
Não esperou por Leslie, mas saiu à pressa, como chegara, e o
homem que estivera deitado a fio comprido debaixo das
moitas de loureiros, esperou que os dois interlocutores
desaparecessem; em seguida, rastejou penosa e
cuidadosamente de volta à estrada, galgou o muro, saltou, e
endereçou-se à agência telegráfica mais próxima para
mandar as suas novidades.

CAPÍTULO XXXVI

O Sr. Gilder chegou ao chalé à noite e encontrou o seu
"arrendatário" sentado na escada, fumando cachimbo.
Afortunadamente, o chalé se erguia no meio de uma rala
plantação de árvores, e o córrego, nos fundos,
impossibilitava a aproximação de quem quer que viesse por
ali. Não obstante, o Sr. Gilder sentiu-se alarmado pela falta
de precaução do homem.
— Se quiser ficar, terá de permanecer dentro de casa. Eu já
lhe disse que não quero que se saiba que você está morando
aqui. E então, quais são as grandes novidades?
— Entre, — convidou Tomás, com um sorriso, e Fabrian
achou que o convite para entrar em sua própria casa era um
tanto supérfluo.
Mau contador de histórias, foi só com freqüentes "Entende o
que eu digo?" e muita prolixidade, que Tomás conseguiu
deslindar a sua emaranhada narrativa.
— Andei rondando a casa a manhã inteira. Eu queria dar um
dedinho de prosa com a mocinha.
— A respeito do quê? — perguntou o outro.
— A respeito de uma certa coisa.
— Pois então, entenda bem, Tomás: você não tem nada que
falar com a Srta. Gine... percebeu? Não deve aproximar-se
dela, nem chegar perto da casa.
— Pois olhe, não foi nada mau que eu estivesse lá hoje cedo,
— volveu Tomás, arreganhando os dentes num sorriso. —
Porque ouvi uma coisa que o fará pular de alegria!
Tomás levou meia hora para repetir, com razoável exatidão,
a conversa que surpreendera no gramado. Quando chegou
ao ponto vital, o Sr. Gilder assobiou.
Artur Gine administrara os domínios de Chelford sem a sua
assistência, e Gilder ignorava as particularidades da
propriedade como se trabalhasse em outro escritório.
— Cinqüenta mil, é? — meditou. — Pois isso é mais do que
Artur Gine será capaz de reunir em pouco tempo.
— E foi o que ele disse, — volveu Tomás. — Ele disse a
Alford: "Amigos? Com cinqüenta mil libras, não". Foram
essas as suas palavras.
— Você ficou sabendo quando se completará a transferência,
isto é, quando os valores serão entregues aos outros
advogados?
— Daqui a uma semana, — informou Tomás. — O Sr. Alford
disse: "Posso segurar uma semana, mas não posso adiar por
mais tempo. E depois que esses papéis estiverem nas mãos
dos outros, você estará perdido".
Cinqüenta mil libras! Gilder andava de um lado para outro da
sala estreita, com as mãos nas costas.
— Você disse que o noivado com Sua Excelência foi des-
feito?
— Ele não disse isso, — tornou o homem, — mas foi o que
entendi. Ele disse: "Harry está muito zangado?" Harry é Sua
Excelência, e Alford disse: "Está, e vai mudar os seus
advogados". E ele disse: "E a fortuna de Leslie?"
— Diga Srta. Gine, ouviu? — interrompeu Gilder, desabrido.
— Ele não disse Srta. Gine, ele disse "Leslie". Mas para
obsequiá-lo, direi Srta. Gine, — anuiu Tomás. — Ele disse:
"E a fortuna da Srta. Gine? Não existe?" E Gine disse: "Nem
um penny".
Isso não era novidade para Gilder — Artur já lho havia
contado.
— E outra coisa, Sr. Gilder... O Abade Negro apareceu por aí
a noite passada. E tenho uma idéia a respeito dele. Sua
Excelência tem verdadeiro pavor do Abade Negro. O senhor
sabia?
— Não me fale no Abade Negro! — bradou o homem.
Queria arquitetar os seus planos e a tagarelice do hóspede o
perturbava. — Fique aqui dentro e não se mostre a ninguém.
Acho até que seria melhor você ir para Londres esta noite.
Tem dinheiro?
- Tenho algum. Mas fui um idiota! Há um velho diário na
biblioteca, que Sua Excelência, se o perdesse, pagaria umas
duas mil libras, para reavê-lo; e eu estive com ele nas mãos!
Era isso o que deveria ter afanado.
- E se o diário fosse encontrado cm seu poder, você estaria
na cadeia. Entretanto, pegou o dinheiro e safou-se com ele.
O ex-sentenciado não tinha visto as coisas por esse prisma.
- Isso é verdade, — concordou. — Que cabeça que o senhor
tem, Sr. Gilder! Puxa, se eu tivesse a sua inteligência...
Mas o Sr. Gilder não estava de maré para lisonjas.
- Tenho uma idéia, — prosseguiu Tomás, sem perceber o
aborrecimento que estava causando. — Deixe-me ir a
Londres esta noite e voltar amanhã.
Gilder, porém, não o ouviu. Cinqüenta mil libras! E por esse
preço poderia comprar — Leslie Gine! As suas pulsações se
aceleraram. Não haveria restrições nem condições. Ela faria
alegremente o sacrifício pelo irmão. Desta vez os tinha, aos
três, na palma da mão: Leslie, Artur Gine, e, por último, mas
não menos odiado, Dick Alford.
Via agora o que tinha de fazer; o plano, à prova de erros, era
infalível. Nada mais se erguia entre ele e a realização do que
fora, um dia, uma esperança louca e insensata.
— Uma semana? Você tem certeza?
Tomás acenou afirmativamente. Os seus olhos astutos não
haviam deixado o rosto de Gilder. Sem dar tento do curioso
escrutínio, Fabrian perguntou:
— Por que você acha que a notícia me interessa?
O homem sorriu e piscou expressivamente o oiho esquerdo.
— O senhor não me pediu para contar-lhe quantas vezes a
senhorita ia à Mansão dc Fossaway? Não me recomendou
que lhe escrevesse tudo o que acontecesse entre ela e Sua
Excelência?
Gilder permaneceu em silêncio. Não lhe era confortadora a
idéia de haver empregado um homem como aquele para
vigiar a jovem que ele amava.
— É melhor você ficar por aqui, — ponderou. — Não quero
que seja visto pelo pessoal da aldeia, nem pela gente da
Mansão de Fossaway. Alguém já sabe que você está em
minha casa?
— Não, senhor. Nem mesmo a Srta. Gine: ela não me
perguntou...
Gilder interrompeu-o, brusco.
— Se for à cidade, vá à noite, e volte à noite. Pensando bem,
não estou muito ccrto de que não seja uma boa ideia ficar
mesmo por aqui.
Regressou a Londres mais tarde e passou a noite procedendo
a um meticuloso exame das finanças. Tirara da cabeça todos
os pensamentos acerca do tesouro de Chelford. Justificara-
se, com efeito, a confiança de Mary Wenner. Ele mesmo se
enganara ao olhar através da grade e dar com os cilindros
bem arrumadinhos sobre o banco. Quem os tirara dali? O
Abade Negro? Devia de haver alguma explicação para esse
personagem. Fabrian tinha idéias próprias a seu respeito, mas
ainda não soara o momento de pô-las à prova.
Passou a manhã seguinte na zona comercial de Londres e
em Somerset House, examinando o testamento da falecida
Lady Chelford. Os bens do espólio haviam sido
minuciosamente especificados, particularizando-se a
natureza dos títulos e ações confiados a Artur Gine, e tendo
sido John Henry Gine, tio de Artur, nomeado depositário. A
busca realizada nos arquivos do tribunal não indicou
nenhum sucessor do tio por morte deste e, aparentemente,
não se nomeara outro depositário, ficando os valores em
poder de Artur. Este teria, naturalmente, autoridade
suficiente para vender e reinvestir, e não haveria dificuldade
alguma se se entregassem ações de valor correspondente aos
novos advogados de Harry Chelford.
Artur Gine passara um dia ocupadíssimo na solidão do seu
escritório. A tarefa não era agradável: estivera pondo em
ordem o caos dos seus negócios e, à proporção que crescia a
lista das dívidas, ele parecia envelhecer.
Interrompera o trabalho unicamente para almoçar com a
irmã, e Leslie, supondo que a causa da sua aflição fosse o
desbarato da fortuna dela, fez o que pôde para animá-lo. A
sua primeira providência fora calcular os remanescentes do
dissipado quarto de milhão da moça, e o que restava era
lastimosamente pouco, não chegando sequer a duas mil
libras. Ele contou-lhe isso ao almoço.
— Mas é, realmente, muito mais do que eu esperava, —
exclamou a irmã, sorrindo. — Poderemos viver dois anos
com esse dinheiro.
Ele esteve para dizer-lhe que, provavelmente, teria de viver
cinco anos com menos ainda, mas preferiu calar a notícia até
que fosse inevitável a sua divulgação.
As einco horas da tarde ela estava tomando chá sozinha,
quando a criada lhe trouxe um cartão. Leslie não ouvira a
chegada do carro.. pois a sala de estar ficava nos fundos da
casa. Pegou no cartão e leu-o.
— Não quero ver esse cavalheiro, — declarou. — Peça ao Sr.
Gine...
Nesse momento, porém, lembrou-lhe a luta no gramado e o
olho machucado de Artur.
— Eu o receberei. Diga-lhe que entre.
Ela recebeu Gilder com uma inclinaçãozinha distante.
- Receio que a senhorita não me considere um visitante
bem-vindo, — disse ele; — mas tenho um negocinho para
discutir consigo, e lhe ficaria muito grato se me desse alguns
minutos do seu tempo.
- Tenha a bondade de sentar-se.
Ele a contemplava com aquele olhar estranho, faminto, que
ela já lhe vira no rosto em outra ocasião.
- Como a senhorita provavelmente sabe, durante muitos
anos, fui a mão direita de seu irmão. Em decorrência disso,
tenho um conhecimento muito íntimo dos negócios dele; e
não só dos negócios dele, mas também dos negócios dos
seus clientes. Sei, por exemplo, que a sua fortuna, Srta. Gine,
é um mito.
Se ele esperara impressioná-la, ficou desapontado. Ela
limitou-se a fazer um leve gesto de assentimento.
— Eu também sei, Sr. Gilder, — disse ela. — Espero que o
senhor não tenha feito uma viagem tão longa só para me
contar isso?
Por um segundo, ele vacilou. Esperava que a informação
fosse a primeira de duas tremendas sensações; ela notou-lhe
a decepção estampada no rosto e sorriu-se intimamente.
— Há outra questão, — tornou ele, recobrando-se, — que
lhe interessa diretamente. Seu irmão administrava a
propriedade da falecida Lady Chelford, isto é, tinha a seu
cargo títulos e ações no valor de cinqüenta e uma mil libras.
Antigamente, era essa uma atribuição comum dos
advogados; hoje, naturalmente, os valores estariam em
poder de um banco, que lhes creditaria automaticamente os
dividendos.
O coração dela quase parou de bater. Ele viu a cor
desamparar-lhe o rosto e sentiu-se mais senhor de si.
— Meu irmão tem... esse dinheiro? — perguntou ela.
— Tinha. — Gilder deu ênfase à palavra. — Ouvi dizer que o
atual Lorde Chelford está trocando de advogado e que, daqui
a uma semana, os valores serão transferidos a outra firma.
Ela não pôde falar, pois sabia que ele estava dizendo a ver-
dade e compreendia muito bem o que implicava a narrativa.
— Cinqüenta mil libras é muito dinheiro, — continuou
Gilder, com voz suave. — Uma soma dificílima de se
levantar numa semana. E, dentro de uma semana, é preciso
que o dinheiro esteja nas mãos de seu irmão.
Leslie ergueu os olhos e, vendo-lhes o sofrimento, Fabrian
quase sentiu pena da moça.
— O senhor quer dizer... que o dinheiro... que Artur não
tem as ações para transferir?
Ele assentiu com a cabeça.
— Tem certeza? — Absoluta.
Seguiu-se longo silêncio. E o tique-taque do reloginho fran-
cês lhes chegou tão alto aos ouvidos que ambos,
instintivamente, olharam ao mesmo tempo para o consolo
da lareira.
— E por que me diz tudo isso?
Ele limpou a garganta.
— Há poucos dias, eu lhe confessei, talvez desastradamente,
que a amava. A senhorita talvez não acredite na... na
afetuosa reverência que lhe consagro... mas eu a amo! Não
há nada no mundo que eu não seja capaz de fazer pela
senhorita, nem há preço algum que eu não pague.
Os olhos dela não vacilaram; dir-se-ia que estivesse lendo os
pensamentos do seu interlocutor.
— Até a ponto de arranjar cinqüenta mil libras numa
semana? — inquiriu, em voz baixa.
— Até esse ponto, — respondeu ele.
Ela pôs-se lentamente em pé.
— Quer fazer-me o favor de escrever o seu endereço?
Tão calma era a sua voz, que ela parecia estar discutindo um
negócio corriqueiro qualquer.
— Sei onde mora, mas não me lembro do nome do prédio,
nem do número.
Ele escreveu com mão pouco firme e deixou o papel onde a
moça o colocara.
— Preciso saber amanhã, — disse Gilder. — Sim ou não.
Ela deixou pender a cabeça.
— O senhor saberá amanhã, — assegurou-lhe. — Se eu
prometer desposá-lo, pode arrumar o dinheiro... que não
faltarei à minha palavra.
Sem dizer mais nada, ele encaminhou-se para a porta, vol-
tou-se e dirigiu-lhe profunda inclinação. Em seguida, saiu da
sala. Leslie ouviu roncar o motor do automóvel, cada vez
mais distante. Mesmo assim, não se mexeu.

CAPÍTULO XXXVII

Passando pela Rua Wardour naquela tarde, Dick Alford vira
um rosto familiar. Um homem saíra de uma loja com um
embrulho debaixo do braço e, reconhecendo-o, dera meia
volta e afastara-se à pressa. Dick sorrira; fora-lhe impossível
não reconhecer Tomás, e perguntara a si mesmo qual seria a
natureza da compra.
Olhou para a vitrina da loja e ficou espantado; pois Tomás
não parecia pertencer à espécie de homem capaz de apreciar
as frivolidades que ali se exibiam.
Dick não estava bem-humorado. Fizera duas visitas e, em
ambas, a sua solicitação fora delicadamente repelida. Ia agora
em demanda da derradeira esperança. O grande banco da
cidade estava fechado quando ele chegou, mas o porteiro
admitiu-o à presença do velho que fora o maior amigo de
seu pai. A guerra transformara o simples Sr. Jarvis, banqueiro
provinciano da década de 1880, em Lorde Clanfield,
presidente da maior organização bancária de toda a Europa.
Ele recebeu cordialmente o rapaz, que sempre distinguira.
— Sente-se, Dick. Que foi que o trouxe aqui?
Simples e brevemente, Dick expôs o seu negócio, e Lorde
Clanfield franziu o cenho.
— Cinqüenta mil libras, meu caro rapaz! Você as quer para
si?
— Não, quero-as para um grande amigo meu. — Foi-lhe
preciso fazer um esforço para descrever Artur nesses termos
lisonjeiros. — Ele se meteu numa enrascada.
Sua Excelência abanou a cabeça.
— Não pode ser, Dick. Se fosse para você, se fosse para tirá-
lo de uma enrascada... embora você não seja do tipo de
rapazes que se metem em enrascadas... eu lhas daria do meu
próprio bolso.
— O senhor não pode emprestar-me esse dinheiro mediante
uma garantia pessoal minha?
Sorriu-se o banqueiro.
— Emprestar-lhe, Dick, seria dar-lhe! E que probabilidades
teria você de pagar cinqüenta mil libras? Um filho segundo!
Harry casa-se ainda este ano, e a propriedade terá um
herdeiro no ano que vem! Não, não, meu velho, seria
impossível!
Em desespero de causa, Dick Alford contou a história,
omitindo apenas os nomes. O velho ouviu-o com o
semblante grave.
— Ele terá de agüentar as conseqüências, Dick, — ponderou.
— Se você o livrar desse apuro, ele, provavelmente, se
meterá em outro pior. A pobre moça... tenho pena dela.
Você, naturalmente, se refere a Gine? Não, não, não tenha
medo, não direi uma palavra. Mas já tinha as minhas
desconfianças, há muito tempo. Deixe-o tomar o seu
remédio, Dick, e faça o que puder pela moça. Depois que o
camarada estiver atrás das grades, e toda essa miserável
encrenca tiver acabado, venha pedir-me o dinheiro que
quiser... para ela. Conheci-lhe o pai e o tio, e o tio-avô, que
lhe deixou muito dinheiro, o qual, suponho eu, deve ter-se
evaporado como o resto, e estou disposto a fazer o possível
para ajudá-la. Mas não empenhe o seu crédito, Dick, por
aquele salafrário.
Dick voltou da cidade cansado e deprimido, tão desalentado
que desistiu até de entrevistar o quarto homem que
tencionava procurar. A sua única esperança era agora o
irmão, e ele lhe conhecia tão bem a obstinação que não se
animava a esperar ajuda desse setor, pois não poderia sequer
solicitá-la sem trair a identidade do mutuário, o homem por
quem Harry concebera um ódio desarrazoado.
Mono Puttler foi esperá-lo na estação e trazia novidades.
— Aquele patife do Tomás ainda está por aqui, — anunciou.
— Tem parado no chalé de Gilder.
— Sim?
Dick não se preocupava realmente com Tomás, nem com
Gilder, nem com coisa alguma deste mundo senão com a
profunda tristeza que estava à espera de Leslie Gine.
— Gilder esteve hoje na terra. Um perfeito dandy. Trajado
como um doutor, com roupas novas, chapéu coco... e tudo o
mais.
— Onde foi que ele esteve? — perguntou Dick, com súbito
interesse.
— Não sei. Tenho a impressão de que foi visitar o Sr. Gine.
Vi o carro dele saindo da alameda, e o homem satisfeitíssimo
consigo mesmo. E encontrei o rifle.
— Onde o encontrou? — inquiriu Dick, rápido.
— Defronte do riacho. Alguém deve ter querido atirá-lo
dentro d'água, mas faltou força. Havia ainda três ou quatro
cartuchos no carregador... um Lee-Enfield de caça.
Tentaram a faca e tentaram o rifle; e eu me pergunto, que
novidade prepararão agora para nós?
— Você viu Harry?
— Vi-o esta tarde, — replicou o jovial Puttler. — Ele me
impingiu aquela piada do picão, mas não lhe revelei os meus
pontos de vista.
Apesar da ansiedade, Dick sorriu.
— Você tem pontos de vista sobre picões?
— Tenho, sim, senhor, — voltou o outro, confiante. — Ele
acha que picão é um instrumento. Mas aconteçe que, no
tempo de Elizabeth, como agora, "picão" também significava
"pedra", "cascalho".
Dick sobresteve e olhou para o detetive.
— É isso mesmo? — perguntou.
— É isso mesmo. O novo "picão", a que se faz referência no
diário, é um carregamento de cascalho que ele recebeu de
Brigh- thelmstone. Isto é, Brighton. Ora, por que haveria o
velho de querer cascalho? Evidentemente para misturar a
alguma espécie de concreto, ou argamassa.
— Pelo amor de Deus, não comece a falar no tesouro, que eu
enlouqueço! — gemeu Dick. — De qualquer maneira, você
não acredita na existência dele, graças a Deus!
— Acredito, — declarou, enfático, o homem surpreendente.
— Estou tão certo de que essas mil barras de ouro existem
quanto estou certo de estar caminhando por esta estrada.
Seu irmão tem um livro que mostra todas as contas
particulares da Rainha Elizabeth; lá está o milhão que ela
roubou dos navios espanhóis que aproaram para um porto
inglês quando iam a caminho da Holanda; lá está o dinheiro
que ela obteve de Drake e outros bandidos, que costumavam
singrar os mares; mas não há a menor alusão ao ouro de
Chelford.
— Então, onde está ele? — perguntou Dick, exasperado.
— Pergunte-me antes de eu ir embora, — replicou o outro,
misteriosamente.

CAPÍTULO XXXVIII

Leslie escreveu e queimou, na lareira do seu quarto, uma
dúzia de cartas antes de redigir aquela que foi finalmente
colocada num envelope e endereçada ao "Sr. Fabrian Gilder,
Regency Mansions, 35, Londres".
Prezado Sr. Gilder, — Concordo com as suas condições. O
dinheiro, ou as ações equivalentes, deve ser depositado na
agência de Horsham do Southern & Midland Bank, em
nome de Leslie Gilder, de sorte que eu possa ter o controle
da conta assim que me casar. Não espero que o senhor
confie na palavra de um membro da minha família, e
presumo que queira que o casamento se realize nos
próximos dias. Quer fazer-me o favor de encarregar-se dos
aprestos da cerimônia o mandar-me dizer quando e onde
deverei encontrar-me consigo. Espero que seja no cartório,
mediante licença especial. Só lhe posso dizer que, embora
esse casamento não tenha sido escolhido por inim, o senhor
pode confiar que serei uma esposa fiel.
Sinceramente, Leslie Gine.
A última correspondência era apanhada, por um estafeta de
motocicleta, numa caixa postal que ficava a menos de cem
metros da casa. Havia uma coleta anterior mas, fosse como
fosse, Leslie não se decidiu a por a carta no correio senão no
último momento. As dez horas eram um horário
inusitadamente tardio para uma coleta de província, mas
acontece que, sendo aquela a última caixa no percurso do
carteiro, isso representava um arranjo especialmente
conveniente, não só para os habitantes da Mansão de
Fossaway, mas também para os arrendatários que desejavam
dar notícia das suas entregas diárias.
Ela viu Artur ao jantar, depois de haver escrito a carta mas,
tirante a troca de umas poucas observações corriqueiras, não
se falaram. Ele voltou ao escritório, levando consigo o café,
e Leslie ficou sozinha, entregue à contemplação do seu
negro futuro. Quisera ter visto Dick antes de escrever, mas
agora já era tarde demais. Gilder lhe pedira uma resposta
naquela noite, e ela prometera responder.
Que diria Dick? A jovem esfregou os olhos com força, como
se quisesse esconder a visão do rapaz, e os lábios lhe
tremeram.
"Nada de fraquezas, Danton!" Era uma citação favorita da sua
infância, e fora o seu lema em todos os momentos em que
sentira a proximidade das lágrimas.
Tirou a carta da bolsa e pôs-se a contemplá-la. Selada,
sobrescritada, bastava-lhe colocá-la na caixinha de correio
para que, dali por diante, o curso da sua vida se desviasse
completamente e lhe oferecesse uma nova perspectiva: a
mais árida, a mais sombria perspectiva com que uma mulher
já defrontara.
Uma caminhada de poucos minutos levou-a à caixa, e ali
esperou. Um pingo grosso de chuva caiu-lhe na mão; ouviu
gemer o vento ao passar pelas árvores; e, logo, muito longe,
avistou um pontinho de luz e ouviu o ronco distante da
motocicleta do carteiro. Enfiou a carta na caixa e voltou-se
para desandar o caminho percorrido.
Ocorreu-lhe, então, que o estafeta cruzaria com ela e a
jovem não desejava vê-lo. Para onde iria? O coração e a
vontade indicavam a Mansão de Fossaway. Dick —
precisava ver Dick. Lutou contra a loucura; a luz da
motocicleta tornou-se mais brilhante. Leslie pôs-se a correr,
na direção do forte, atravessou o portão e subiu o aclive que
conduzia à abadia. Lá se sentou para recobrar o fôlego e,
pouco depois, viu o reflexo de um farol e ouviu o ronco da
motocicleta, que passava.
Lá se ia o destino, na estrada escura, barulhento, aos
solavancos. A luz vermelha desapareceu, e ela levantou-se,
passou lentamente pelas ruínas da abadia, sem pensar sequer
em assombrações ou almas do outro mundo, e tomou o
caminho mais baixo e mais curto para Chelford.
Já atravessara a metade do Prado Grande, quando se deteve.
O medo lhe apertava o coração; sentia a pele arrepiada no
pescoço e, voltando-se, olhou para trás. Alguém a estava
seguindo. Conscientemente, não ouvira som algum, mas um
misterioso sinal lhe apressara as batidas do coração. Não via
ninguém. Aquilo devia ser obra da sua fantasia, disse entre
si; aqui, entretanto, a razão e o instinto estavam em
desacordo, e o instinto venceu. Ela sabia que havia alguém
imediatamente atrás de si, a menos de vinte metros de
distância.
Aproximava-se cada vez mais da casa, quando, a súbitas,
girou sobre si mesma. Alguém estava atrás dela: agora tinha
certeza. Ouviu os passos sobre o cascalho da estrada.
— Quem está aí? — gritou.
Não ouviu resposta, mas os passos cessaram. Ele poderia
estar caminhando sobre a borda relvosa do caminho, pensou
e, voltando-se, subiu correndo a alameda. Quem quer que a
estivesse seguindo corria também. Ouviu um sussurro
sibilante e o sangue gelou-lhe nas veias. Depois, no
momento em que saiu de entre as árvores, avistou uma
figura que contrastava com o brilho do lago redondo,
avistou-lhe a forma — o longo hábito e o pesado capuz.
Com um grito, saiu correndo.
Se continuasse naquele caminho e passasse além da janela,
chegaria ao escritório de Dick. Viu, com um ofego de alívio,
que a porta estava aberta e uma luz brilhava lá dentro. Por
cima do ombro tornou a ver a forma estranha, e gritou. Num
átimo, Dick saiu do escritório e a apanhou nos braços.
Ele ouviu-lhe a história, que ela contou entre arquejos; a
seguir, quase carregando-a, levou-a para a sala, fê-la sentar-
se numa cadeira e saiu correndo para o jardim. Minutos
depois, voltava.
— Não vi nada. Você diz que era o Abade Negro?
— Não sei; era uma coisa com um hábito e um capuz: disso
tenho certeza.
Má introdução para a história que precisava contar-lhe; na
verdade, em seu terror, quase lhe esquecera o objetivo da
visita.
— Artur veio com você?
Ela sacudiu a cabeça.
— Dick, eu sei, — foram as primeiras palavras que
pronunciou depois de recobrar o fôlego.
— O que é que você sabe?
— A respeito do dinheiro de Lady Chelford.
Ela viu alterar-se o rosto dele.
— Ele lhe contou? — perguntou o rapaz, cujo rosto se
afogueava.
— Artur, não. Foi Gilder.
— O Sr. Gilder contou a você? Eu sabia que ele tinha estado
aqui e visitado a sua casa. Foi para isso que veio?
Ela inclinou afirmativamente a cabeça.
— Para nada mais?
— Sim; veio oferecer-me o dinheiro.
Os olhos dele se estreitaram.
— Ah, sim? Mediante um certo preço, naturalmente.
Ela confirmou, com um gesto.
— E você... o que foi que você disse?
Ela encontrava dificuldade para respirar; falar, naquele
instante, lhe seria impossível, a menos que quisesse fazer
um papelão.
— Você concordou?
— Acabei de por no correio uma carta para ele.
Ela viu-o morder o lábio, onde não demorou a surdir um
ponto de sangue. Se ele tivesse gritado, se a tivesse
amaldiçoado, ela talvez o suportasse; mas Richard Alford
apenas olhou para ela. E nada havia em seu olhar que fosse
descaridoso.
— Oh, Dick, Dick! — Leslie soluçava no peito dele e os
braços do rapaz a conchegavam de si, confortando-a.
— Você não pode fazer isso, meu bem. Qualquer coisa é
melhor do que isso.
Ela sacudiu a cabeça, incapaz de falar.
— Estou-lhe dizendo que qualquer coisa é melhor do que
isso. — A voz lhe soava dura, inflexível. — É melhor que
Artur passe cinco anos na cadeia do que viver você no
inferno a vida inteira! Conheço aquele homem... conheço o
tipo... não é a idade, é o espírito, é o coração, que é mau. Se
ele tivesse vinte anos, eu lhe diria, "Não, você não pode
fazer isso, Leslie".
Ela afastou-se brandamente dele e enxugou os olhos.
— Preciso, Dick; dei a minha palavra. Não posso enganá-lo.
A última coisa que eu lhe disse foi: "Se eu disser que casarei
com o senhor, pode arranjar o dinheiro... não faltarei à
minha palavra". Não posso faltar; seria faltar a mim mesma.
O rosto dele, contraído, era de intenso sofrimento.
— Não pode ser! — bradou. — Alguma coisa tem de
"acontecer. Não sei o quê... — e interrompeu-se.
— O que foi isso? — perguntou ela, com voz entrecortada.
De algum lugar do jardim veio um grito agudo, que não
parecia humano. Logo depois, o grito se repetia: um misto
de soluço e de gemido, que lhe gelou o coração.
— Fique aqui, — ordenou Dick, ao precipitar-se para a janela
aberta, mas ela saiu atrás dele.
— Você não vai! Você não pode ir! — gritou, desvairada. —
Dick, alguma coisa medonha está acontecendo. Oh, meu
Deus! Dick, ouça, Dick!
Desta feita o grito foi mais fraco e morreu num lamento
fino.
Ele afastou-a para um lado e correu para o gramado.
— De onde é que você acha que veio?
— De lá. — Ela apontou para a alameda. — Deixe-me ir com
você. . . deixe, por favor! — implorou. — Não tenho
coragem de ficar sozinha.
Ele hesitou.
— Então venha, — anuiu, ríspido e agarrou-lhe o braço com
uma força que a fez encolher-se.
Juntos corriam na direção da alameda, quando ele se deteve.
— Volte e vá buscar a minha lanterna. Está em cima da
escrivaninha. Esperarei aqui.
Ela voltou voando para a sala, agarrou a lanterna com mãos
trêmulas, tão trêmulas que mal podia segurá-la, e foi juntar-
se a ele.
— Foi ali. Ouvi qualquer coisa há um segundo. Se eu não
tivesse prometido esperar...
Acendeu a luz, espalhando-a sobre o chão à sua frente, e
caminhando adiante dela. Logo depois ela o viu deter-se e
um círculo de luz focalizou qualquer coisa pardacenta,
amontoada no chão.
— Fique onde está, — ordenou ele, — e não olhe para cá.
Uma voz chamou-o à distância: era Puttler, que, orientado
pela lanterna, não tardou a surgir em cena.
— Quem é? — perguntou.
— Não sei, — respondeu Dick em voz baixa.
A seus pés estava a figura encolhida de um homem. Jazia de
borco e vestia, da cabeça aos pés, um longo hábito preto,
amarrado ao nível da cintura por uma corda.
— O Abade Negro? — perguntou Puttler, incrédulo. — Está
morto?
— Parece, — replicou Dick, e apontou para o ombro mo-
lhado e para o horror da garganta.
Puttler ajoelhou-se, enfiou os braços por baixo do corpo, e
deitou-o de costas.
Um capuz cobria o rosto, que ele ergueu delicadamente.
— Deus misericordioso! — disse Dick com voz abafada.
Estava olhando para o rosto cinzento de Tomás, o lacaio.

CAPÍTULO XXXIX

— Tomás... o Abade Negro!
Dick contemplou, atônito, a coisa lamentável; em seguida,
lembrou-se da jovem e, depois de dar algumas instruções em
voz baixa a Puttler, foi ter com ela.
— Ele está... morto?
— Sim, receio que sim.
— Quem... quem é?
— Um dos criados, — replicou o rapaz, evasivamente.
— Não é Tomás?
Por que pensava que fosse Tomás ela mesma não saberia
dizê-lo.
— É... é Tomás.
Ela não fez outras perguntas, e eles voltaram em silêncio
para a sala. Dick tocou a campainha, e ordenou ao lacaio que
atendeu:
— Peça ao Sr. Glover que venha cá.
O velho mordomo chegou apreensivo. Todos os criados
tinham ouvido o grito no parque.
— Onde está Sua Excelência?
— Foi-se deitar há uns cinco minutos, Sr. Alford.
— Terá ouvido. . . alguma coisa?
— Não, senhor. Ele fica tão zangado quando a gente fala no
Abade Negro...
— E como sabe você que era o Abade Negro? — perguntou
Dick, áspero, e o mordomo explicou que alguém vira a
figura no jardim.
— Estava tentando abrir uma janela. Uma das criadas,
olhando do seu quarto, viu-o andando no caminho
pavimentado, embaixo, e deu o alarma. Ele feriu alguém, Sr.
Richard?
— Não, não feriu ninguém, — respondeu Dick.
Afastou o mordomo na direção da sala e fechou a porta atrás
de si.
— Um homem foi encontrado no jardim com uma roupa de
abade negro... e está morto... assassinado!
— Santo Deus, senhor! — exclamou o criado, assustado. — É
alguém que conhecemos?
— Tomás, — respondeu Dick, lacônico, e o velho,
cambaleando, apoiou-se à parede apainelada.
— O nosso Tomás? Tomás Felizão, o homem que foi
despedido?
Dick assentiu com a cabeça.
— Tomás — murmurou o velho. — É terrível! O senhor
acredita...
Dick cortou-lhe prontamente a pergunta.
— Faça o que eu digo; mande os criados para a cama. A
polícia não demora, mas darei um jeito para que o pessoal só
seja interrogado amanhã cedo.
E voltou para junto da moça.
— Quanto a você, minha jovem, — disse, com um sorriso
severo, — parece que passo a vida levando-a de volta para
casa.
— Eu não poderia ficar? — perguntou ela, tímida.
Dick abanou a cabeça.
— Teremos de chamar a polícia, e quero manter o seu nome
fora desse negócio. Artur está em casa?
— Sim, Artur está em casa, — respondeu ela, desacorçoada.
Nesse momento, soou a campainha do telefone, e ele
atendeu
— É da casa de Lorde Chelford? — perguntou uma voz
desconhecida.
— É, — confirmou Dick.
— Estou falando da subagência do correio. Não é Lorde
Chelford quem está no aparelho?
— Não, é o Sr. Alford.
— Bem, então ouça, Sr. Alford. O senhor, por acaso, mandou
alguma coisa importante pela caixa local do correio?
— Por quê? — acudiu Dick, rapidamente.
— Porque o nosso estafeta comunicou que mexeram na
caixa. Ele não pôde introduzir a chave, de modo que as
cartas colocadas entre as seis e as dez horas ainda não foram
apanhadas.
Dick não conteve uma exclamação.
— Certo! Então, quando tudo estiver normalizado, peça ao
estafeta que traga as cartas à Mansão. Há uma ou duas que
desejo retirar.
O homem do outro lado hesitou.
— Bem, em face das circunstâncias, não há dúvida, — disse
ele, e Dick, desligando o aparelho, voltou-se lentamente
para a jovem.
— A correspondência que estava na caixa do correio não foi
recolhida.
A pouco e pouco, a significação das palavras lhe penetrou o
espírito.
— O que é que eu devo fazer? — murmurou ela.
— Dê-me autorização para retirar a sua carta dirigida a
Gilder. Ainda há seis dias.
Ela conteve a respiração. Por um segundo, a visão do irmão
em trajes de sentenciado lhe surgiu diante dos olhos; depois,
olhou para o homem que estava à sua frente, e um pouco da
vitalidade, da confiança dele a penetrou.
— Farei o que você disser, — assentiu ela, com uma vozinha
que era pouco mais que um murmúrio. — Mas, Dick, o que
é que vai acontecer?
— Cumprirei a minha obrigação, — prometeu Dick.
E durante toda a noite sem sono, enquanto virava de um
lado para outro da cama, ela meditou nessas palavras, mas
não acertou com a solução do seu mistério.

CAPÍTULO XL

Barbudo, olhos cansados, Puttler arrastou-se até o escritório
e serviu-se de uma grande chávena de chá, que o mordomo
trouxera, e bebeu-a de um trago.
— A Scotland Yard me encarregou deste caso, e o senhor
pode agradecê-lo à sua boa estrela! — informou ele. —
Considerando-se que tivemos de fazer todo o nosso trabalho
entre as onze e as quatro da manhã, desconfio que bati um
recorde em matéria de investigação. Os trajos monacais de
Tomás foram alugados, como o senhor imaginou, numa casa
de roupas de teatro na Rua Wardour...
— Eu o vi sair de lá com um pacote debaixo do braço e per-
guntei a mim mesmo o que faria ele com uma fantasia, —
interrompeu Dick.
— Esse é o fato no 1, — contou Puttler. — O fato n.° 2 é que
ele se preparava para dar no pé. Chegou até a tentar abrir a
caixa postal, provavelmente um pouco antes, naquela
mesma noite. O senhor manda dinheiro pelo correio?
— Meu irmão manda, freqüentemente. Ê um hábito que já
tentei curar, mas sem êxito.
— Esse é o fato n.° 2, — continuou Puttler. — Ele não pôde
abrir a caixa, mas encontramos a chave em seu poder. Já
limpara tudo o que havia de valor na casa de Gilder.
Encontrei-lhe a mala feita e escondida no campo, onde o
senhor diz que Gilder estaciona o automóvel. E,
obviamente, ele vinha aliviar seu irmão de quaisquer
haveres que pudesse encontrar na biblioteca. Achei as
ferramentas espalhadas num canteiro, debaixo de uma das
janelas da biblioteca.
— E como é que ele foi morto? — perguntou Dick.
Puttler coçou a cabeça.
— Por um regimento de soldados, a julgar pelo seu aspecto!
Conversaram até que o Sr. Glover, com olhos de sono,
entrou
cambaleante no escritório e pediu permissão para recolher-
se. Em seguida, saíram para a manhã fria e foram juntar-se
aos policiais que estavam esquadrinhando o jardim.
— Suponho que o melhor que temos a fazer é irmos para a
cama também, — sugeriu Dick. E, nesse instante, Puttler
abaixou-se e apanhou qualquer coisa escondida no meio da
relva.
Era uma longa adaga, com o punho de aço enegrecido pelo
tempo e a lâmina revestida de uma película ainda úmida. Os
dois se entreolharam.
— O senhor conhece isto?
Dick assentiu mudamente.
— O que é? — perguntou Puttler.
— É a adaga que pertenceu outrora a Hubert de Redruth... o
Abade Negro! — respondeu Dick.
O queixo do homem caiu.
— E de onde vem?
Dick sacudiu a cabeça.
— A última vez em que a vi, — disse lentamente, — estava
pendurada na sala da casa de Artur Gine.

CAPÍTULO XLI

— Cada vez mais curioso, — observou Puttler, que não
escondia as suas inclinações literárias.
Dick ouviu o próprio nome gritado por uma voz agitada e,
olhando à sua volta, viu o mordomo, que se aproximava
correndo, já sem olhos de sono, mas muito alerta e muito
pálido.
— Que aconteceu, Glover?
— A criada... a idiotinha só agora me contou... assustada! —
arquejou o velho e apontou para as janelas abertas do
escritório.
Passou-se algum tempo antes que a criada pudesse falar com
coerência. Quando o conseguiu, narrou a pasmosa história.
Fora deitar-se pouco depois das onze, com enxaqueca. Não
ouvira o grito mas, em dado momento, que precisou, pois
tinha um despertador de mostrador fosforescente junto da
cama, a 1 hora e 45 minutos, ouviu "uma terrível comoção"
no andar inferior. O seu quarto ficava imediatamente acima
do quarto de Lorde Chelford. Ouviu gritos, berros, barulho
de vidros quebrados e sons de luta.
— Depressa, depressa, mulher! — instou Dick, frenético de
ansiedade. — Lá embaixo, no quarto de Sua Excelência...
você tem certeza?
— Tenho, sim, senhor, — choramingou a rapariga. — Eu
simplesmente não me atrevia a levantar-me, com medo de
ser assassinada. Fiquei lá, desmaiei, e voltei a mim outra vez.
Antes que ela terminasse, Dick se precipitava pelo salão e
subia a escada de dois em dois degraus. Tentou abrir a porta
do quarto de Harry, mas achou-a trancada. Chamou-o pelo
nome, bateu com desespero nas almofadas da porta, mas não
obteve resposta.
— É melhor arrombarmos, — sugeriu Puttler. — O senhor
tem um machado?
O Sr. Glover desceu à procura do instrumento e voltou com
um machado e um abridor de caixotes. Num segundo, a
almofada da porta voou pelos ares e Dick espiou.
Todas as cortinas, exceto uma, estavam corridas, e a exceção
admitia luz suficiente para permitir-lhe o exame do quarto.
Ao seu primeiro olhar, sentiu apertar-se-lhe o coração. O
quarto se achava em tremenda confusão; as roupas de cama
haviam sido atiradas ao chão, dois espelhos comuns e um
espelho de báscula tinham-se espatifado; a janela sem
cortina estava aberta. Dick enfiou a mão pelo buraco feito na
almofada e abriu a porta. Os dois homens precipitaram-se no
interior do aposento.
Havia vestígios de uma luta terrível. Os restos de duas
cadeiras jaziam espalhados pelo chão. A mesa em que se
achavam os remédios fora derrubada e o chão, cheio de
vidros quebrados, ainda estava molhado pelos remédios
derrubados.
Puttler acercou-se da cama. A metade do colchão se
arrastava no soalho, mas os travesseiros continuavam em
seus lugares, e num deles e numa parte do lençol de baixo
viam-se grandes manchas de sangue.
Dick examinou a janela aberta: três ou quatro vidraças
revestidas de chumbo quebradas, e a barra de aço, que
mantinha abertas as janelas, torta, como se um grande peso
houvesse descansado sobre ela. O chão do jardim ficava a
uns quatro metros e meio abaixo da janela e, ali, uma grande
moita de azáleas fora destroçada, como se algo muito pesado
houvesse caído em cima dela. Sem hesitar, Dick passou as
pernas sobre o peitoril, equilibrou-se e saltou para o chão.
Havia sangue nas folhas dos arbustos; mas não viu pegadas.
Examinando o solo, deu com uma mancha de sangue num
dos botaréus da parede.
A essa altura, Puttler, que escolhera um meio mais calmo de
descer, juntara-se a ele, e os dois homens continuaram
explorando o caminho pavimentado, e procurando novos
indícios.
— Isso aconteceu quando estávamos no jardim com a polícia
local, — disse Puttler.
Ele se censurara a noite inteira, mas Dick silenciou-o.
— Não se pode fazer nada, — sobreveio o rapaz. — A culpa
é tanto minha quanto sua. Eu deveria esperar uma coisa
dessas, depois da morte de Tomás. Sabendo o que sei,
deveria ter subido ao quarto dele e ficado em sua companhia
ou, pelo menos, de atalaia fora do quarto. Pobre Harry!
Pobrezinho!
Não pôde continuar falando. Havia lágrimas em seus olhos.
— Que é isto?
A parte pavimentada do caminho terminava abruptamente e
era continuada por um caminho de cascalho, onde se viam
marcas de alguma coisa pesada que por ali fora arrastada. E as
marcas cessavam tão repentinamente quanto o pavimento.
— Espere, — disse Dick, ao atinar com a solução.
Correu ao longo da parede daquela ala, dobrou a esquina, e
se deteve diante da primeira janela da biblioteca. Estava
aberta. Erguendo-se com a força dos braços, deixou-se cair
no interior da sala escurecida e abriu as cortinas. Até aquele
momento, não havia examinado a biblioteca; o seu olhar
experimentado, familiarizado com quase todos os livros nas
estantes, contou-lhe que alguém estivera ali. Uma seção das
prateleiras tinha sido quase toda esvaziada. Uma gaveta da
mesa de Harry fora arrombada e, no soalho deu com uma
caixa vazia de metal.
Fez um breve exame, voltou ao ar livre pela janela, e contou
ao detetive a descoberta que fizera.
Além do caminho de cascalho e das marcas de arrasto,
perdiam-se todos os traços de Harry. À frente deles, a uma
distância de quatro ou cinco centenas de jardas, fluía o rio.
À esquerda, e invisível dali, erguiam-se as ruínas da abadia.
Uma hora de buscas não os deixou mais próximos da ver-
dade, e Dick voltou à sua sala para encontrar o primeiro dos
repórteres descabelados descendo de um automóvel alugado.

CAPÍTULO XLII

O Sr. Gilder levantou-se às seis horas naquela manhã.
Passara uma noite agitada e saudou prazeroso a madrugada.
A primeira entrega do correio só se fazia às oito horas, e ele
foi pessoalmente receber o carteiro à porta. Levou a meia
dúzia de cartas para o quarto e examinou-as com
sofreguidão. Só uma delas trazia um carimbo familiar do
correio, mas fora sobrescritada com uma letra conhecida.
Abriu-a e encontrou apenas alguns garranchos:
Se não nos tornarmos a ver, agradeço-lhe a bondade, e
peço- lhe que não pense muito mal do seu velho amigo.
Com que, então, Tomás se fora! Com uma praga atirou a
carta à lareira e voltou, abordando o estafeta quando este já
descia, depois de haver entregue a correspondência nos
andares superiores.
— Não, senhor, não há outra carta, — disse o homem,
depois de passar novamente em revista o maço de missivas.
— Mas há nova entrega às nove e meia. A correspondência
que vem do interior nem sempre chega à cidade a tempo de
ser incluída na primeira.
Gilder bateu a porta com força e voltou, embezerrado, para
o quarto. A essa hora, os criados já estavam em atividade. Às
nove horas trouxeram o desjejum, mas a vista do conteúdo
dos pratos não o tentou.
Os jornais lhe foram colocados, dobrados, nas mãos. Abriu o
primeiro e, na página central, um parágrafo lhe chamou a
atenção:
"ESTRANHO SUCESSO EM MANSÃO ASSOMBRADA"
Pelo telefone, Chelfordbury, 2 horas da manhã.
"Teve trágica seqüência o aparecimento do Abade Negro nos
jardins da Mansão de Fossaway. Às onze horas da noite
passada, ouvindo gritos, o Sr. Richard Alford correu para o
jardim e deparou com o cadáver de um homem vestido de
monge. Ele havia sido terrivelmente mutilado, exibindo
nada menos do que nove ferimentos. O homem foi
identificado como sendo Tomás Felizão, ex-lacaio a serviço
do Conde de Chelford."
Gilder soltou uma exclamação e depôs o jornal. Tomás! O
seu primeiro pensamento foi para si mesmo. Se se divulgasse
que aquele homem estivera hospedado em seu chalé, ele
seria envolvido no caso; far-se-iam investigações, e ele
figuraria num inquérito de instrução, se não viesse a figurar
num processo de assassínio. A sangue-frio, maldisse o morto
pela sua insensatez.
Gilder não alimentava a menor dúvida sobre o que ocorrera.
Tomás voltara à Mansão de Fossaway para buscar o resto do
dinheiro que vira na caixa de metal na sala de Lorde
Chelford. E então — seria Tomás, afinal de contas, o Abade
Negro? Era muito possível que tivesse usado o mesmo
disfarce em outras ocasiões, pois estaria em posição
favorável para essa palhaçada.
Momentaneamente, os pensamentos em torno da carta
esperada se dissiparam. À proporção, porém, que se ia
familiarizando com a tragédia, os seus cismares voltavam a
Leslie Gine.
Tornou à bibliotecazinha onde trabalhava, abriu a
combinação de um cofre de parede e dele tirou uma carta.
Lera-a muitas e muitas vezes depois de havê-la escrito e, a
cada leitura, sentia o calor do envaidecimento que os
homens derivam da contemplação da própria generosidade.
"Minha querida Leslie, — Obrigado pela sua carta. Não
duvidei de que você cumprisse a sua palavra. Encontrará a
minha resposta inclusa — um cheque em branco. Não faço
estipulações, não imponho condições. Preencha o cheque
com a importância de que seu irmão precisa para livrar-se da
sua terrível situação. Dei ordens ao banco para que pague o
cheque sem discussão. — Fabrian."
Era característico do homem, que tinha três contas
bancárias, mandar o cheque de uma agência em que o seu
saldo perfazia exatamente a soma necessária para liquidar a
dívida de Artur. Teria sido a coisa mais simples do mundo
preenchê-lo com a soma exata, mas havia certa nobreza,
certa munificência, no cheque em branco. Dir-se-ia uma
carta branca sacada por conta da sua fortuna. Recolocou a
carta no envelope, devolveu-a ao cofre e já lhe encostara a
porta quando soou a campainha do telefone.
Era o homem que tomara o seu lugar no escritório. Queria
saber se ele, Gilder, tinha notícias de Gine.
— Não o vemos desde que o senhor saiu do escritório, e as
cartas que lhe mandamos para assinar não nos foram
devolvidas.
Gilder confortou o aflito cidadão assegurando-lhe que Artur
apareceria num dia qualquer da semana. No fundo de sua
mente ainda persistia uma grande intranqüilidade acerca da
tragédia de Chelfordbury. Mandou uma criada comprar um
exemplar das edições esportivas, mas estas ainda não haviam
chegado a Regenfs Park, e resolveu tomar um táxi que o
levasse a Picadilly Circus e, se necessário, à Rua Fleet, a fim
de adquirir os exemplares. O passeio serviria também para
encher o tempo enquanto não chegasse a correspondência
do interior.
Foi em Oxford Circus que viu os primeiros resumos da
matéria dos jornais. Dizia o primeiro: "Terrível Tragédia
numa Aldeia de Sussex"; o segundo fê-lo dar um salto no
assento do táxi: "Conhecido Conde Raptado e Assassinado".

CAPÍTULO XLIII

Gilder mandou parar o táxi e, descendo, agarrou o primeiro
jornal. Uma espalhafatosa manchete prendeu-lhe a atenção:
"LORDE CHELFORD RAPTADO POR ASSASSINO
DESCONHECIDO. TEME-SE DUPLA TRAGÉDIA NUMA
ALDEIA DE SUSSEX".
Havia outros títulos e subtítulos, mas os seus olhos passaram
incontinenti à história.
"Às onze horas da noite passada ouviram-se gritos nos
jardins da Mansão de Fossaway, a formosa mansão Tudor
que tem sido residência de campo dos Condes de Chelford
há centenas de anos. O Honorável Richard Alford, único
irmão de Lorde Chelford, saiu para o jardim, acompanhado
pelo Sargento-Detetive Puttler, que se hospedava na mansão
como convidado do Sr. Alford. Eles ficaram horrorizados ao
descobrir, estendido na relva, o corpo morto de um homem
que envergava o hábito do famoso Abade Negro. A polícia
local foi imediatamente chamada e mal iniciara as suas
investigações quando, à sua revelia, ocorreu segunda
tragédia. Uma criada a serviço do Conde de Chelford, Alice
Barter, que dorme numa dependência acima do quarto
ocupado por Lorde Chelford, afirma que, à uma hora da
manhã, ouviu sons de luta nos aposentos de Sua Excelência.
Aterrorizada, não deu parte da ocorrência senão às quatro
horas da manhã. Arrombou-se a porta do quarto de Lorde
Chelford e uma cena terrível se deparou aos olhos dos
policiais. O cômodo estava numa tremenda confusão;
espelhos e móveis tinham sido feitos em pedaços;
depreendia-se, evidentemente, das indicações, que ocorrera
uma luta terrível e que, desacordado ou morto, Lorde
Chelford fora levado até a janela e dali atirado ao jardim.
Uma investigação realizada nas imediações demonstrara,
sem possibilidade de contestação, que o seu corpo tinha sido
arrastado por certa distância. No momento em que
telefonou, afirmou o nosso correspondente, ainda não se
descobrira vestígio algum do corpo mas, em face de certos
indícios, era indubitável que o desventurado fidalgo fora
vítima de um ou mais assassinos. Alguns pertences seus
desapareceram, ao passo que um cofrezinho, que ele
guardava na gaveta da mesa da biblioteca, foi encontrado
vazio. O Sargento-Detetive Puttler, da Scotland Yard, está
encarregado do caso."
O jornaleiro ainda estava esperando o pagamento. O Sr.
Gilder enfiou a mão no bolso mecanicamente e, dando-lhe
um xelim, voltou ao carro.
— Dê uma volta pelo Outer Circle, — ordenou. Precisava de
tempo para pensar.
De maneira vaga e inquieta compreendeu que se achava
profundamente envolvido na tragédia. Fabrian Gilder
possuía o espírito do advogado. Percebeu a conexão entre
ele, Tomás e Chelford. Tomás, ladrão conhecido, acoitado
em seu chalé, sai de casa, com ou sem colaboradores, e é
assassinado. Chelford, até há pouco noivo da jovem que ele,
Gilder, requestava, desaparece em circunstâncias que não
deixam dúvidas quanto à sua morte.
Chegado ao seu apartamento, anunciaram-lhe:
— O Sr. Artur Gine está à sua espera na biblioteca.
— O Sr. Gine? — exclamou, espantado. — Quando foi que
ele chegou?
— Há dez minutos.
— Oh! — fez o Sr. Gilder, desconcertado.
Teria ela mandado o irmão em lugar da carta? Teria contado
a ele? Como quer que fosse, era mister enfrentar a situação.
Encaminhou-se com ar despreocupado para a pequena
biblioteca e encontrou Artur sentado numa poltrona, com
um livro na mão e um charuto pela metade entre os dentes.
— Bom dia, Gilder.
A voz soou jovial, quase amável e, por um momento, o
coração do Sr. Gilder lhe saltou dentro do peito. Aquele era,
sem dúvida, um amistoso embaixador enviado pela moça
para proceder aos arranjos necessários.
— Creio que devemos esquecer o que passou, — principiou
Artur. — Ambos perdemos a cabeça e não há razão para
mantermos acesa a velha discórdia. O charuto não o
incomoda?
Recolocou no lugar o livro que tirara da estante, limpou os
joelhos cuidadosamente, e pôs-se a rir.
— Pelo visto, você está pensando em casar com Leslie?
Gilder fez um sinal afirmativo com a cabeça, sem desfitar a
vista do visitante.
— Está esperando carta dela? Pois acho que não vai recebê-
la.
— Por que não? — perguntou o outro, sentindo apertar-se-
lhe subitamente o coração.
— Porque o amigo Tomás, que passou a noite roubando por
atacado... a propósito, roubou uma adaga antiquíssima da
minha sala, um bule de prata e outros etceteras... rematou a
sua infâmia tentando roubar a caixa do correio. Não
conseguiu abrir a caixa, mas inutilizou a fechadura.
Gilder voltou a respirar.
— Quer dizer que não houve coleta? — indagou, com voz
rouca. — Bem, isso é um alívio.
Havia um brilho malicioso nos olhos de Artur Gine; a
descoloração do olho esquerdo reduzira-se a um verde
pálido.
— Ouvi dizer que você vai ajudar-me?
— Vou livrá-lo dos seus apuros.
— Ocorreu-me — Artur inclinou-se para um lado e, com
extremo cuidado, deixou cair as cinzas do charuto num
cinzeiro posto sobre a mesa da biblioteca — ocorreu-me que
você talvez quisesse dar-me uma prova irrefutável das suas
boas intenções.
— Não compreendo.
Artur hesitou.
— Eu gostaria que você me escrevesse uma carta, declarando
que me empresta essa soma, aliás respeitável. Entenda,
Gilder, embora você planeje casar com minha irmã, sou
suficientemente vaidoso para desejar que isso não seja
considerado como presente nem como o preço... o preço do
casamento dela... senão como um empréstimo feito a mim.
— Ele riu-se. — Não me olhe assim, meu caro. Não estou
pedindo o seu dinheiro, estou procurando salvar a minha
consciência. Não quero que se diga por aí: "Leslie Gine foi
vendida por cinqüenta mil libras". Quero poder mostrar que
você apenas me emprestou o dinheiro.
Um lento sorriso iluminou o rosto de Gilder.
— Não faço a menor objeção a isso, — disse ele. — Dou-lhe
a caria agora, se você quiser. Posso começá-la chainando-lhe
"Meu caro... Artur"?
— Encantado, — murmurou Artur.
— É preciso manter as aparências, — disse Gilder, enquanto
escrevia, rapidamente; — e, na verdade, não lhe guardo
rancor, Gine. Você me tem sido útil.
— Utilíssimo, — confirmou Artur, sem animosidade.
O homem passou o mata-borrão sobre a carta, entregou-a a
Artur Gine, e este leu-a com cuidado.
— Obrigado, — disse, dobrando a folha de papel e enfiando-
a no bolso. — Você talvez me julgue um fraco... o que
realmente sou... e vaidoso: receio que não haja dúvidas
quanto a isso! Você terá notícias de Leslie quando se
consertar a caixa postal... isto é, se as cartas estiverem
intactas. Há suspeitas de que o nosso amigo Tomás, frustrada
a tentativa de abrir a caixa e inspirado pelo instinto de
destruição que caracteriza o criminoso desequilibrado, atirou
dentro dela um par de fósforos acesos. Tive a curiosidade de
enfiar o nariz na fenda em que se introduz a
correspondência e sou de opinião que a teoria da polícia tem
todas as probabilidades de ser correta.
Levantou-se, apanhou o chapéu de seda e reprimiu um
bocejo.
— Tivemos uma noite muito movimentada na minha parte
do mundo. Você, provavelmente, já leu tudo nos jornais,
não leu?
— Lorde Chelford já foi encontrado?
Artur meneou negativamente a cabeça.
— Até a hora em que saí, não. Infelizmente, Leslie foi
testemunha, senão do assassínio, pelo menos do achado do
primeiro corpo. A pobrezinha estava em frangalhos. Não a
incomode nesses dois próximos dias, sim?
Estendeu a mão fria e macia e Gilder apertou-a.
— Creio que nos entenderemos, Gine.
— Estou certo disso, — conveio Artur. — Agora, se você
não faz questão, mostre-me a saída. O seu apartamento me
parece uma caixa de surpresas, e quando abro uma porta
nunca sei se vou entrar numa sala ou num armário.
Artur dispensou o seu carro. Um táxi levou-o ao centro e
outro a um pequenino apartamento em Gray's Inn, onde
parava quando ficava na cidade. Vestiu um terno azul liso,
raspou cuidadosa e relutantemente o bigode e tirou do bolso
um par de óculos novos, que acabara de comprar. Mirando-
se ao espelho com certa dose de satisfação, sentou-se para
escrever uma carta à irmã e, em seguida, dando uma vista
d'olhos final ao apartamentozinho em que passara muitas
noites agradáveis de solteirão despreocupado, fechou a
porta, saiu e colocou a carta na agência do Correio de
Holborn.
Outro táxi o levou ao aeródromo de Croydon, onde chegou
no princípio da tarde. Exibiu ao funcionário o novíssimo
passaporte.
— Está em ordem, Sr. Steele, — disse o funcionário. — O
seu táxi está esperando.
O "táxi" era um robusto aviãozinho de dois lugares. Cinco
minutos após a sua chegada, ele estava galgando o azul e,
logo, não era mais que um pontinho no céu brumoso, que
voava em direitura à França, dali talvez a Gênova e, muito
provavelmente, a bordo de um transatlântico italiano, ao Rio
de Janeiro. Tudo dependeria do modo pelo qual o Sr. Fabrian
Gilder engolisse a pílula que Artur lhe ministrara.

CAPÍTULO XLIV

— Queimada, — disse Dick, com enorme satisfação. — O
pobre homem sempre fez algum bem na vida... Deus me
perdoe por falar mal dele. Onde está o seu Artur?
— O meu Artur foi cedinho para a cidade, — replicou Leslie.
— Não há notícias de Harry?
Ele sacudiu a cabeça.
— Nenhuma.
Dick parecia terrivelmente cansado e abatido, pensou ela.
— Lamento tanto!
Ele tomou-lhe a mão entre as suas.
— Eu gostaria que você saísse daqui, Leslie, — disse o rapaz.
— Que tal fazer uma longa viagem?
— Acha que estou correndo algum perigo?
— Tenho certeza disso. Seria uma crueldade não lhe contar a
verdade. O tiro desfechado outro dia destinava-se a você.
Foi disparado por um homem que deve ser um dos melhores
atiradores da Inglaterra, e a altura da marca da bala nos
revelou que ele mirou diretamente ao seu coração.
Ela ouvia-o, estupefata, incapaz de acreditar.
— Mas por quê? — perguntou, atônita. — Não tenho
inimigos, Dick; nunca fiz mal a ninguém. Quem poderia
fazer uma maldade dessas?
— Se eu lhe contasse, você, provavelmente, continuaria sem
entender. Há um homem neste mundo que a odeia e que
me odeia e que, do seu ponto de vista, tem fundadas razões
para isso. Agora que lhe contei a verdade, promete viajar?
Ela pensou por alguns instantes.
— Esperarei o regresso de Artur, — disse, por fim, — e
pedirei a ele que me leve para Londres.
E com isto, Richard Alford ficou satisfeito.
Ia sair, quando a motocicleta de Puttler surgiu na alameda.
— Alguma coisa errada? — perguntou Dick, depressa.
— Não sei. Veja isto.
Tirou do bolso uma grande folha de papel almaço;
toscamente escritas a lápis, liam-se as seguintes palavras:
"Lorde Chelford está bem. Não procurem por ele pois, do
contrário, será morto. O Abade Negro".
Havia alguns erros de ortografia. O papel fora encontrado
espetado no galho de uma árvore, e o furo feito na parte
superior da folha mostrava onde o homem misterioso a
perfurara.
— Encontramo-la a meio caminho entre as ruínas e a casa,
— explicou Puttler. — E o mais curioso é que tínhamos
andado vasculhando aquela parte do jardim quinze minutos
antes.
Dick devolveu-lhe a folha de papel.
— Isso será uma piada de mau gosto ou você acredita neste
papel? — perguntou Leslie, ansiosa. — E, Dick, será que eu
não posso ajudar? Conheço tão bem a Mansão de Fossaway,
e estou certa de que há lugares que a polícia ainda não
investigou. Sabe que existem umas cavernas pequenas nas
margens do Ribeirão dos Corvos?
— Foram todas exploradas e nenhuma tem tamanho
suficiente para abrigar um cachorro grande, — respondeu
Dick. — Se você quiser mesmo ajudar, vá à Mansão e ponha
a minha correspondência em ordem. Ela tem sido
negligenciada estes dias, e há uma porção de contas e coisas
que precisam ser registradas.
A bem dizer, pensou ele, não tinha necessidade dela, mas
enquanto a jovem estivesse por ali, melhor seria que ficasse
sob as suas vistas. Pode ser que ela suspeitasse dos motivos
dele mas, mesmo assim, aceitou, agradecida, a oferta.
— Vá de automóvel, — recomendou ele; — não saia da
estrada principal e não ande por atalhos. Não pare para falar
com ninguém, por mais que conheça a pessoa, e não dê
atenção se alguém gritar o seu nome.
A despeito da sua ansiedade, ela riu-se.
— Como tudo isso parece alarmante!
Depois que ele se foi, Leslie ocupou-se dos assuntos da casa,
deu as ordens para o jantar daquela noite, e estava a pique de
sair, quando alguém tocou a campainha da frente. Acabara
de por o chapéu, diante do espelho, quando a criada entrou
no quarto.
— A Srta. Wenner? — exclamou a jovem, pasmada, e só
então se lembrou de que, a pedido de Artur, escrevera
convidando-a para passar com eles o fim de semana.
Ali estava uma complicação que não previra. E, todavia, no
espaço entre o quarto e a sala, chegou à conclusão de que, se
havia alguma coisa bem-vinda naquele momento era a
companhia de uma mulher.
Mary Wenner estava no vestíbulo e saudou-a efusivamente,
como se fossem amigas íntimas, conquanto, na realidade,
Leslie escassamente a conhecesse.
— Minha querida, sinto-me tão contente por estar de volta a
este lindo e velho lugar! — exclamou ela. — Não pude
deixar de pensar, enquanto passava pela querida Mansão de
Fossaway, o quanto tudo isto é perfeitamente sereno.
Leslie sentiu vontade de gritar! Sereno!
— Talvez não seja tão sereno quanto parece, Srta. Wenner, -
replicou, secamente.
— Chame-me Mary, — pediu a moça. — Detesto tanto os
formalismos e as reservas! Será tão sem graça se Artur me
chamar pelo primeiro nome e a senhorita me chamar Srta...
quero dizer...
— Pois eu a chamarei de Mary com prazer, — atalhou Leslie.
— E você sabe o meu nome?
— Um lindo nome, — voltou a extática Srta. Wenner. — A
única coisa que atrapalha é que a gente não sabe se é nome
de homem ou de mulher, não é mesmo? Isso não lhe
parece, às vezes, muito embaraçoso?
— A mim, até agora, não me pareceu, — respondeu a jovem,
conduzindo a visitante para o seu quarto.
Havia qualquer coisa em Mary que lhe agradava.
Inconscientemente, era divertida, mas tinha um valor
autêntico, pensou Leslie, que conhecia muito bem as
mulheres.
— Você ainda não sabe o que aconteceu na Mansão de
Fossaway? — perguntou, surpresa por não ouvir da outra
alusão alguma às novidades.
Espantada, Mary ouviu tudo, enquanto os seus lábios
formavam um O de assombro e de horror.
— Tomás? Mas se ainda outro dia conversei com ele! Você
acha que Harry foi morto?
Leslie abanou a cabeça.
— Não sei o que pensar. O Sr. Alford confia muito em que
ele ainda esteja vivo, e acabou de receber uma estranha
mensagem, que parece justificar essa crença.
A rapariga estava horrorizada e Leslie percebeu que ao
horror se misturava a consternação.
— Harry Alford era o melhor sujeito do mundo, — disse
Mary, sincera. — Meio irritadiço de génio e difícil... não a
incomoda que eu fale sobre ele?
— Não. Você provavelmente não sabe que o nosso noivado
foi desfeito.
Este pareceu o maior dos choques.
— Desfeito? Garanto que foi obra de Dick Alford.
— O Sr. Alford nada teve com o caso, — volveu Leslie, e
Mary fez uma rápida reavaliação do caráter de Dick; ela era
uma criatura eminentemente ajustável.
— Na realidade, Dick Alford não é mau sujeito, — sobreveio,
diplomaticamente. — Há muita coisa nele que eu aprecio. E
é tão bonito!
Mary era um gamin ladino e perspicaz, que vencera mercê
da habilidade em ajustar os seus pontos de vista às situações
num abrir e fechar de olhos. E compreendeu, numa fração
de segundo, que só poderia almejar a uma perfeita harmonia
com a irmã de Artur Gine se as suas opiniões sobre Richard
Alford sofressem radical transformação.
— Não me dei muito bem com ele; costumava achá-lo um
pouco mandão. Mas isso deve ter sido uma verdadeira
provação para ele, pobrezinho! — E continuou, depois de
uma pausa: — Parece que cheguei numa hora muito
imprópria, Srta... Leslie. Quer que eu volte para Londres?
— Espere, — disse Leslie e, precipitando-se escada abaixo,
chamou Dick ao telefone. Ele acabara de chegar quando o
chamou.
— Claro, — disse ele. — Traga-a para cá. A mim me parece
boa idéia. E, Leslie, talvez você prefira passar a noite aqui.
Artur poderá vir também... deixe uma nota ou telegrafe para
ele.
A idéia era tão sedutora que ela não lhe opôs obstáculos e
voltou para transmitir o convide de Dick à sua convidada. A
Srta. Wenner aceitou com uma alacridade quase indelicada.
— Eu talvez possa ajudar um pouco, — sugeriu. — Conheço
as entradas e saídas do lugar, bem como todos os cantos e
esconderijos. Foi o tesouro que fez tudo isso, Leslie! Ele
anda sempre atrás daquela estúpida Água da Vida e não me
surpreenderia se se tivesse metido em más companhias.
— Mas Harry nunca saiu!
— Saiu, sim, como não! — foi a resposta surpreendente. —
Ele escapulia muitas vezes para Londres, quando o Sr. Alford
estava fora. E havia nisso qualquer coisa esquisita, porque
Harry me fez prometer que eu jamais contaria ao Sr.
Richard... era assim que ele se referia ao irmão.
— E quantas vezes aconteceu isso? — perguntou Leslie.
— Às vezes, uma escapada por mês, outras, duas ou três. Ele
nunca saía pela frente; seguia o caminho do campo,
atravessava o corte, e eu costumava mandar um táxi de
Horsham buscá-lo. Tomava o trem em Horsham, e voltava
pelo mesmo caminho, e mais de uma vez telefonou antes de
voltar, para saber se o Sr. Richard já regressara.
Leslie perguntou a si mesma se Dick estaria a par disso.
— Sei que ele chegou a ir três vezes na mesma semana
quando o Sr. Richard estava em Yorkshire, tomando conta
da propriedade de Doncaster, — disse Mary. E ajuntou,
virtuosa: — Espero não ter cometido nenhuma indiscrição:
afinal, todos os jovens são um pouco impetuosos.

CAPÍTULO XLV

As duas moças almoçaram sozinhas, pois Dick mandara
recado dizendo que não voltaria a tempo.
— Este lugar me dá arrepios, — observou Mary com um
estremecimento, e o nervosismo dela não era afetado. —
Tudo isso é medonho! O pobre Tomás assassinado, e Harry
levado ninguém sabe para onde... oh! — Pôs-se em pé de
um salto, o rosto muito pálido. — Eu sei onde Harry está, —
bradou, trêmula de excitação. — Eu sei, eu sei!
— Onde? — indagou a assombrada Leslie.
A moça saiu correndo da sala para o vestíbulo.
— Onde está o Sr. Alford? — perguntou depressa. — Preciso
vê-lo imediatamente.
— Ele telefonou da Quinta Vermelha, — disse Leslie, que a
seguira. — Talvez ainda esteja lá.
Ela girou a manivela do antiquado aparelho e deu o número
da Quinta Vermelha.
— É você, Dick? Que sorte!
— Imaginei que fosse você. Aconteceu alguma coisa? —
perguntou, ansioso, o rapaz.
— Não; Mary Wenner tem uma coisa para dizer-lhe. —
Leslie abaixou a voz e ajuntou: — Ela acha que sabe onde
Harry está escondido.
Fez-se silêncio do outro lado da linha.
— Ela não...
— Não, não, não. — Em presença de Mary, era-lhe impos-
sível assegurar a Dick que a moça não estava tentando causar
sensação.
— Irei imediatamente, — prometeu o rapaz.
Saíram as duas para a alameda a fim de encontram-se com
ele, e Mary expôs a sua teoria.
— Eu devo ter ficado louca para não lhe falar sobre isso
antes. Não sei onde estava com a cabeça, — disse ela. —
Depois da minha caça ao tesouro e da horrível experiência
que tive naquela noite com Gilder, não pensar nisso agora,
quando, praticamente, vim aqui para mostrar o lugar ao Sr.
Gine... bem, fico surpresa comigo mesma!
Dick ouvia com crescente impaciência esses ^olegômenos.
— Onde acha que está meu irmão?
— Onde? — exclamou a Srta. Wenner, triunfante. — Ora
essa, debaixo da abadia... é lá que ele está. Eu lhe mostro.
Cruzaram lado a lado o campo e, enquanto caminhavam, a
Srta. Wenner relatou a surpreendente história das suas
aventuras em cata do tesouro.
— Eu sabia, naturalmente, que ele não me pertencia, ainda
que o encontrasse, — prosseguiu, virtuosamente, — mas o
Sr. Gilder se mostrou tão insistente que não pude recusar-
me, sobretudo depois que ele escreveu com tinta invisível,
embora eu tenha feito voltar a tinta outra vez, como ele
verificará um dia destes.
Leslie ouvia, mal acreditando nos seus ouvidos. Entretanto, a
menos que Mary Wenner tivesse uma imaginação de
natureza particularmente inventiva, seria pouquíssimo
provável que houvesse arquitetado toda aquela história.
Dick examinou a grande pedra angular da torre. Quedou-se
ao pé dela, observando-a, curioso, enquanto a jovem, com
um par de tesouras que tirou da bolsa, empurrou para trás o
trinco e fez a pedra girar ruidosamente sobre os gonzos
invisíveis.
A abertura teria, quando muito, uns quarenta centímetros.
Um homem gordo jamais poderia entrar por ali, como Dick
observou.
— É melhor vocês ficarem; eu vou descer, — disse ele.
— O senhor vai precisar de luz, — avisou Mary.
Havia uma lanterna em seu bolso. Ele passara a manhã
esquadrinhando lugares escuros. Num segundo, desceu a
escada coberta de musgo, e Leslie esperou, com o coração
aos pinotes, que ele voltasse. Pouco depois, ouviram-lhe a
voz.
— Desçam.
— Eu é que não, — bradou Mary. — Já estive lá uma vez,
muito obrigada!
E Leslie aventurou-se sozinha, guiada pelo foco de luz que
ele mostrava, de degrau em degrau.
Agora, ela estava em pé, com ele, na sala abobadada. Dick
experimentou uma, depois a outra, das duas portas que se
viam na antecâmara, mas nenhuma cedeu aos seus esforços.
A escuridão era completa, a não ser pelo raio de luz da
lanterna, em forma de leque. Ele dirigiu-o para a parede e
para o chão e, logo depois, ela percebeu que o foco se
detinha sobre uma laje partida.
— Que é isso? — perguntou.
— Nada, — respondeu ele, depressa, Transferira a luz para a
estreita entrada da sala. — Vamos subir; não há nada aqui
senão camundongos e recordações. Eu sempre soube da
existência de subterrâneos debaixo da abadia. Na realidade,
creio até que um dos meus recentes antepassados deixou um
relatório sobre eles.
Por mais que caminhasse imediatamente atrás dela, a sua voz
vinha de muito longe. Ela seguia sem que ele lhe desse
assistência da sua lanterna, de modo que precisou subir às
apalpadelas. Ao virar a cabeça, notou que Dick subia a
escada de costas, o facho de luz projetado sobre a escada.
— Depressa, — disse ele, lacônico, e ela, tropeçando nos
últimos degraus, emergiu à luz abençoada do dia.
Passou-se algum tempo antes que o rapaz se juntasse a elas e,
quando ele apareceu, Leslie notou que até os seus lábios
estavam brancos.
— O que foi que você viu, Dick? — perguntou.
— Nada, — respondeu ele, e fechou bem fechada a porta de
pedra.
Do grupinho, apenas a Srta. Wenner não se impressionara
pela atmosfera que Dick trouxera da sala abobadada.
— ... pelo que disse o Sr. Gilder... e eu não confio intei-
ramente nele, como você há de compreender, Leslie... havia
apenas peças de música em cilindros de chumbo.. . Foi essa
a palavra, "cilindros", embora me parecessem rolos. E esse
Abade Negro deve tê-los retirado quando saímos. O Sr.
Gilder ficou desapontado. Foi até muito grosseiro comigo ao
telefone. Sou de opinião que um cavalheiro deve saber
controlar-se em todas as circunstâncias, você não acha,
querida?
Leslie concordou mecanicamente.
Que teria visto Dick? Que objeto se lhe deparara, por um
segundo, à luz da lanterna?
Perto da casa, ele desculpou-se. Precisava voltar à Quinta
Vermelha a fim de concluir a entrevista com o obstinado Sr.
Leonard: mas não levou o carro. Explicou que iria pelo
atalho e Leslie não julgou azado o momento para interrogá-
lo. Ficou a observá-lo, até que Dick desapareceu atrás de
uma saliência do terreno. Rumava para a abadia. A outra
moça já ia a caminho de casa, a fim de terminar o seu
almoço, e Leslie hesitou. A idéia de que ele pretendia
revisitar a sala escura encheu-a de um pânico cego. Quis
chamá-lo e trazê-lo de volta, mas ele já não poderia ouvi-la,
e ela, obedecendo a um impulso, foi-lhe no encalço.
Só tornou a avistá-lo ao galgar o segundo dos mansos aclives.
Mas ali se deteve; ele talvez se zangasse ao saber-se
espreitado, e ela deitou-se na relva, observando-o. Viu-o
chegar à torre quadrada, parar no canto e, aparentemente,
evaporar-se.
Estava a ponto de erguer-se e correr na direção das ruínas,
segui-lo às entranhas da terra, quando ele tornou a aparecer.
Adiantou-se lentamente, virou-se, fechou a porta de pedra e
escorou-se nela, com a cabeça sobre o braço, imagem viva
de uma trágica aflição.

Dick olhou para o envelope e virou-o. Fora endereçada ao
Sr. Fabrian Gilder.
— O que foi que você disse? — perguntou o rapaz.
— Eu disse que havia pensado no assunto e que chegara à
conclusão de que não podia casar com ele... principalmente
agora, quando faz tão pouco tempo que Harry desapareceu.
Ele pegou a carta, tirou a carteira do bolso, destacou dela um
selo do correio e colou-o no envelope.
— Essa eu faço questão de mandar, — declarou, com
determinação. Depois, vendo-lhe o rosto cansado: —
Pobrezinha, você tem passado uns maus bocados.
A pressão da mão dela, o amor e a compreensão que lhe
soavam na voz, quase levaram a melhor sobre ele; foi-lhe
preciso apertar os dentes para não a tomar nos braços e,
naquele lugar de tragédia e de horror, falar-lhe do amor que
o sacudia e que acrescentara nova e pesada carga aos seus
nervos já demasiado tensos.
— Vá deitar-se cedo, — disse ele, forcejando por parecer
alegre, — e acorde com a aurora. Estarei ocupado até muito
tarde.
— O mordomo me contou que você mandou preparar uma
cesta de comida para os policiais.
— É verdade; os dois homens que estão patrulhando o corte
precisam de alguma comida leve. Não podem vir para cá e
nós não temos homens para substituí-los, — explicou
calmamente o rapaz.
Leslie teve a sensatez de não insistir no assunto.
Foi só mesmo em atenção às suas instâncias que, ao cair da
noite, Mary Wenner concordou em ficar. A moça era um
feixe de nervos, estremecia a cada som, empalidecia e corava
sempre que se abria uma porta, e o ruído de um prato que
caíra na copa, enquanto as duas estavam jantando, fê-la
gritar.
— Não posso fazer nada, meu bem; sou naturalmente
temperamental, — confessou. — E esta casa está-me dando
nos nervos! Se não fosse para não deixar outra jovem sem
uma dama de companhia, eu teria voltado a Londres antes
do escurecer.
E contou a Leslie que estivera na biblioteca naquela tarde, e
que a vista da sala familiar, com a cadeira vazia, quase fora a
gota a entornar o cálice.
— Tive de chorar, — admitiu, — e não me envergonho
disso. Harry era um dos melhores... você não se importa que
eu o chame de Harry, não é, querida? — E como Leslie
sacudisse negativamente a cabeça, prosseguiu: — Não digo
que eu gostasse dele como deve gostar uma moça do
homem amado, mas ele era um anjo. Tinha os seus repentes,
como todos nós, mas em conseqüência apenas da sua
energia. Nunca compreendi por que ele odiava o Sr. Alford.
Leslie fitou-a, incrédula.
— Odiava o Sr. Alford! — repetiu. — Você deve estar enga-
nada. Eles eram muito bons amigos.
Mary fez que não com a cabeça.
— Não eram, não, — contestou. — E tudo aconteceu por
causa do retrato de Lady Chelford.
- Da falecida Lady Chelford?
- Essa mesma. Foi há três anos. Dick Alford sugeriu que se
mudasse o retrato para a galeria. Creio que foi tolice dele
dizer isso, sabendo que Harry adorava a mãe, e quando ele
disse também que o quadro era deprimente... essa, então, foi
a maior tolice de todas... Harry subiu a serra! Foram
horríveis as coisas que ele gritou para o Sr. Alford... na
minha presença! Dick Alford compreendeu o seu erro,
como eu mesma o percebi: procurou pacificar Harry mas,
durante quinze dias, não se falaram.
Leslie permaneceu em silêncio. A pouco e pouco, a vida
íntima da Mansão de Fossaway principiava a revelar-se-lhe
aos olhos; nada percebera das correntes contrárias, que se
chocavam, jamais desconfiara, nem mesmo vagamente, do
antagonismo que devera ter sido visível para a secretária de
Harry Alford.
— Eles eram muito amigos, às vezes. Você pensaria que
Harry gostava dele, e eu acredito que gostasse; mas as brigas
costumavam rebentar de vez em quando, e uma vez
rebentaram porque Dick ficava sempre de costas para o
quadro e nunca punha os olhos nele. Dick odiava o tal
retrato, disso eu tenho certeza. Está claro que ele nunca me
fez confidências. Não éramos o que se poderia chamar de
bons amigos. Acho até que foi tolice minha comprar a briga
de Harry, mas nunca gostei dc Dick... não se importa que eu
o chame de Dick?... depois disso.
Olhou nervosamente pela janela. O sol já se escondera, e o
crepúsculo começara a invadir o grande parque.
— Eu me darei por feliz se conseguir dormir alguma coisa
esta noite, — disse ela. — Posso deixar aberta a porta do
meu quarto e uma luz acesa?
— É claro que sim, — sorriu Leslie.
— Existe uma fechadura na porta externa e pedi a Glover que
me encontrasse a chave, — continuou Mary Wenner. —
Francamente, Leslie, se ele não a tivesse encontrado, eu não
teria ficado, nem por todo o dinheiro do mundo.
L.eslie compreendeu que seria imprudente teimar no
assunto, pois ela relutava tanto em passar a noite debaixo
daquele teto quanto a sua recente amiga.

CAPÍTULO XLVIII

— Vocês não se zangarão se eu deixar um dos homens de
Puttler do lado de fora da porta dos seus quartos? —
perguntou Dick. — Não se alarmem se o ouvirem andando
durante a noite.
— Aconteceu alguma coisa, Dick? — perguntou Leslie.
— Não, não aconteceu nada; mas eu soube que a Srta.
Wenner estava um pouco nervosa.
— Estava, não, estou, — acudiu a Srta. Wenner. — É muita
bondade sua, Sr. Alford.
— E é melhor que vocês conservem as janelas trancadas, —
prosseguiu Dick. — Há um sistema de ventilação nos
quartos, de modo que não correrão o risco de acordar com
dor de cabeça. Boa noite.
Depois que ele se foi, Mary Wenner ficou olhando
fixamente para a companheira.
— Você ouviu o que ele disse sobre conservar as janelas
trancadas? — perguntou, em tom cavernoso. — Santo Deus!
— Não seja boba, Mary.
A jovem estava longe de sentir-se segura, mas precisava dar
o exemplo.
— Vamos, que eu a ajudarei a trancá-las.
— "Conservem as janelas trancadas", — repetiu Mary
Wenner. — Aqui há dente de coelho!
Fecharam, uma por uma, as janelas chumbadas e abaixaram
os trincos. De repente, Mary agarrou violentamente o braço
da amiga.
— Há um homem debaixo da minha cama! — arquejou,
olhando desvairadamente para a colcha caída.
Com o coração a bater descompassado, Leslie ergueu a
colcha e puxou de sob a cama um par de botas, cujas solas
tinham sido vistas pela rapariga assustada, e ambas abriram a
rir, histericamente.
— Eu quisera poder levar a minha cama para o seu quarto. —
Mary contemplava desacorçoada a pesada cama de sobrecéu
que lhe fora destinada.
— Venha dormir comigo, — propôs Leslie. — A minha
cama é grande. — E o oferecimento foi aceito com gratidão.
— Olhe primeiro por baixo da sua cama, — recomendou a
Srta. Wenner. E só depois de observado esse ritual começou,
muito lentamente, a despir-se.
Embaixo, na biblioteca, Dick se mantinha em conferência
com Puttler, que acabara de voltar de uma rápida visita a
Scotland Yard.
— Na opinião do Comissário, o senhor devia ter aqui uma
dúzia de homens e dar uma batida em regra, — disse Puttler.
— Eu trouxe três, e creio que todos devem ficar dentro de
casa. Um na ala oriental, outro na ocidental, e um
patrulheiro no vestíbulo. O senhor e eu, além dos
"meganhas" locais, ficamos no jardim. Embora eu pense que
dará no mesmo ficarmos aqui... seria preciso um batalhão
para patrulhar direito a propriedade. A propósito, quando eu
estava explorando os arredores hoje cedo, encontrei um
grande aterro na parte nordeste, perto do rio. Um dos seus c
outeiros me disse que se chama a Cobiça de Chelford. Que
negócio é esse?
Dick não se sentia com veia arqueológica, mas explicou:
— Um dos meu antepassados.. . não sei qual deles... planejou
e pôs em prática um grande furto. Você sabe,
provavelmente, que a carta pela qual recebemos estas terras
do Rei Henrique estabelece, como divisa da propriedade, ao
norte, o curso do Ribeirão dos Corvos, e o engenhoso
Chelford daquele tempo teve a idéia de mudar o leito do
Ribeirão dos Corvos, de modo a acrescentar uns mil acres
mais à propriedade. O curso natural do Ribeirão dos Corvos
é pelo Prado Grande. Foi um desses furtos astutos que fez de
nós, proprietários rurais, o que somos! Como eu estava
dizendo, não sei qual dos Chelfords arquitetou o roubo,
porque não existem registros escritos, mas a lenda nos
chegou de boca em boca, por assim dizer.
Ele ergueu os olhos para o grande retrato que encimava a
lareira e sacudiu a cabeça.
— Minha senhora, — murmurou, — Vossa Excelência me
tem dado muito trabalho!
Puttler pareceu interessado.
— Como assim? — perguntou.
— Eu lhe contarei um dia destes, — prometeu Dick. — Será
que as moças estão dormindo?
Subiu silenciosamente a escada. O homem que estava de
serviço no corredor acendeu a lanterna à altura do seu rosto
quando ele se aproximou.
— Não se ouve nada, — murmurou, e Dick voltou, em
silêncio, para baixo.
Combinaram que ele e Puttler dormiriam algumas horas
cada um, enquanto o outro patrulharia o jardim, rodeando o
grupo de edifícios. Às duas horas da manhã, Dick foi
acordado de um sono profundo pelo outro, que lhe sacudia
delicadamente o ombro.
— Não aconteceu nada, — informou o detetive, dirigindo
um olhar amistoso ao sofá em que Dick estivera dormindo.
— Esquentei um pouco de café para o senhor.
Uma espiriteira estava acesa sobre a mesa e o bule, em cima
dela. fumegava. Dick deitou café preto numa xícara e acabou
de acordar escaldando a garganta.
— Um dos locais supôs ver alguém se mexendo e chamou-o
à fala, — relatou Puttler, refestelando-se no sofá com um
suspiro de satisfação. — Mas, provavelmente, foi apenas um
arbusto. Esses caras são nervosos... vêem um Abade Negro
em cada sombra!
Dick sorveu o líquido fervente e quebrou um biscoito com a
mão livre.
— Graças a Deus isto não pode durar muito! — disse ele. —
A propósito, você trouxe os papéis de Londres?
— Entreguei-os ao senhor na biblioteca, estavam no enve-
lope azul.
Dick depôs a xícara.
— Acho melhor guardá-los no cofre. Não quero que os cria-
dos os vejam.
Atravessou o vestíbulo, abriu a porta da biblioteca, fez o
gesto mecânico de acender a luz, e só então se lembrou de
que, momentaneamente, a Mansão de Fossaway estava
privada dos serviços da sua pequena casa de força. Voltou ao
escritório, apanhou a lanterna e, tornando à biblioteca,
atravessou-a até chegar à mesa. Encontrando o envelope
onde o deixara, enfiou-o no bolso. Ao fazê-lo, percebeu que
por ali passava um vento frio. Dirigiu a luz da lanterna para
as janelas. A da ponta estava aberta; um das cortinas, que
havia sido arrancada do lugar, jazia amontoada no chão.
Foi até à porta, chamou Puttler em voz baixa e o detetive
veio ter com ele.
— Alguém esteve aqui, — disse Dick, e apontou para a
cortina e para a barra partida, que a sustentara.
Era fácil reconstituir a entrada do intruso na biblioteca. Duas
vidraças próximas da maçaneta que prendia uma das folhas
da janela tinham sido quebradas e, evidentemente, o
visitante noturno, ao entrar, devera ter perdido o equilíbrio;
agarrando-se à cortina para equilibrar-se, trouxera-a para o
chão, espedaçando a barra, que pendia, inútil.
— Passei por aqui há dez minutos, — disse Puttler, — e a
janela estava fechada.
— É possível que ele já estivesse aqui dentro nesse instante,
— replicou Dick, pensativo. — Que terá sido levado daqui?
Examinou a mesa. Era evidente que o intruso não abrira
nenhuma gaveta, muito embora, se o tivesse feito, os seus
esforços teriam sido baldados, visto que Dick, pela manhã,
retirara da sala todos os documentos ali existentes. Ao darem
a volta da sala, Puttler tropicou em alguma coisa no escuro.
— De onde veio isto? — perguntou.
Era uma escada pequena, e Dick reconheceu nela uma das
duas que faziam parte do mobiliário da biblioteca, e eram
utilizadas para alcançar os livros colocados na última
prateleira da divisão inferior.
— Quando a vi pela última vez, estava na extremidade da
sala, — disse ele.
Dirigiu a lanterna para as estantes, à procura de uma falha
nas longas fieiras de livros. Ao fazê-lo, o foco luminoso
passou pelo espaço, entre as prateleiras, ocupado pelo retrato
da falecida Lady Chelford. Viu a enorme moldura de ouro,
divisou, de passagem, uma mão branca que pendia
graciosamente e, logo, qualquer coisa fez voltar a lanterna.
Ouviu o detetive praguejar em voz baixa Ele próprio não
conseguia falar. A luz da lanterna focalizava o lugar onde
estivera o rosto da mulher e onde, agora, havia apenas um
espaço vazio e negro.
O rosto e os ombros do quadro tinham sido cortados da
moldura e as tiras soltas de tela indicavam que esta fora
cortada por mão inexperta.

CAPÍTULO XLIX

Nenhum dos dois falou até voltar ao pequeno escritório,
quando Puttler olhou deprimido para o companheiro.
— Como é que o senhor explica isso?
— Sei lá! — redarguiu Dick.
A porta do escritório estava fechada e recoberta por uma
cortina escura, colocada naquele dia com essa finalidade.
— Acho melhor sair, se bem eu não creia que encontre
alguma coisa.
— Espere até que cu tome o que sobrou do seu café. Irei
com o senhor, — disse Puttler. — Não, Sr. Alford, nunca
senti menos sono na minha vida. O dia estará clareando
daqui a duas horas. Espere.
Apagou o lampião de querosene requisitado da cozinha, e a
sala ficou às escuras.
— Agora, pode abrir as cortinas e sair, — disse ele, — se é
isso o que pretende.
Dick descerrou ligeiramente as cortinas e olhou para fora. O
mundo dormia em paz, envolto em silêncio, à pálida luz da
lua e, quando ele abriu a porta, o doce cheiro da terra e a fria
madrugada o saudaram, fragrantes.
Erguera o pé para transpor o limiar quando a manzorra de
Puttler se lhe fechou em torno do braço.
— Espere, — tornou a murmurar.
Dick imobilizou-se. E, no mesmo tom:
— Não vejo nada!
Mas Puttler continuou a segurá-lo, a cabeça inclinada,
prestando atenção.
— Está bem, — disse ele, soltando a mão e saindo à frente de
Dick.
Olhou rapidamente para a esquerda e para a direita.
— O que era? — perguntou Dick, surpreso.
— Alguém estava respirando, — foi a resposta surpreen-
dente. — O senhor talvez não acredite que eu seja capaz de
ouvir alguém respirando a doze jardas de distância, mas sou.
É uma das minhas muitas qualidades animais.
Tomou impulso, transpôs o caminho de cascalho num salto
e pôs-se a caminhar sobre a relva, sem fazer barulho,
dirigindo-se para a esquerda. Logo após, Dick viu-o voltar,
pé ante pé. O detetive passou por ele e desapareceu,
contornando o edifício. Minutos depois, estava de volta.
— O ouvido e o olfato são as minhas duas qualidades. O
senhor não está sentindo cheiro nenhum?
Dick aspirou o ar da manhã.
— Não, — confessou.
— Venha comigo.
Desta feita, seguiu sem bulha pelo caminho, explicando que
estava com medo de acordar as moças, que dormiam logo
acima daquele lugar. Foram até o fim da ala e, ali, o sargento
se deteve.
— Agora está sentindo algum cheiro? — perguntou.
Dick tornou a aspirar o ar. Sentiu um cheiro adocicado, o
perfume de alguma flor exótica, que lhe era familiar.
— Alguém fuma cigarros perfumados nesta casa? — indagou
o detetive, e Dick sentiu-se repentinamente gelado.
— Harry!
— Seu irmão? — Os olhos encovados de Puttler observaram-
no à meia luz. — Isso não significa necessariamente que ele
os esteja fumando. Onde ficavam guardados?
— Em regra geral na biblioteca.
Puttler principiou a cafungar o chão com a ajuda da lanterna.
Não fora muito longe quando viu qualquer coisa e apanhou-
a. Era um cigarro fumado pela metade com uma ponta cor-
de-rosa.
— Hum! — murmurou Puttler, e prosseguiu na busca; uma
busca que não lhe trouxe novos indícios.
Voltando sobre os seus passos, passaram pela porta do
escritório e Puttler, que caminhava um pouco à frente,
tropeçou em alguma coisa e clareou o chão com a sua luz.
— Os senhores têm uma penca de escadas por aqui, Sr.
Alford, — observou, em voz baixa. — Uma escada de
biblioteca no jardim? Que negócio é esse?
A escada jazia no chão, paralela à direção da alameda, e o
detetive examinou-a, degrau por degrau.
— Sou capaz de jurar que esta não estava aqui ontem à noite,
— disse ele.
— Não, — conveio Dick, perplexo; — ela costuma ficar
pendurada em dois cabides perto da garagem.
Ergueu-a. Era uma escada comprida, leve, triangular, que se
estreitava na ponta, utilizada pelos criados para a limpeza das
janelas pelo lado de fora.
— É melhor mandar prendê-la com uma corrente, — foi
tudo o que disse Puttler, concluída a inspeção. — O homem
que a trouxe para cá foi o homem que cortou o seu
suprimento de luz e, a propósito...
A distância, no jardim, ouviu-se debilmente a voz de um
homem, que os chamava à fala em estilo militar.
— Alto! Quem vem lá?
— É Renwick, da polícia local, — disse Puttler
imediatamente.
Correram na direção do som da voz e, dali a pouco, viam o
lampejar da sua lanterna; e foi um homem terrivelmente
assustado que os interpelou minutos depois. Não vira nada,
disse ele, mas ouvira vozes.
— Uma das vozes estava rindo. A princípio, pensei que fosse
o senhor, sargento, mas, quando tornei a ouvi-la, pareceu-
me tão selvagem que fiquei meio nervoso.
— Alguém respondeu à sua interpelação?
— Não, mas as vozes se calaram. Não consegui ouvir a da
mulher...
— A voz da mulher? — atalhou Dick. depressa. — Era uma
mulher? — Você não está enganado?
— Sou capaz de jurar, — tornou o vigia. — Foi a voz da
mulher que ouvi primeiro, e era a voz do homem que ria.
Creio que devem ter parado assim que ergui a lanterna.
— Em que direção?
O policial apontou para o Prado Grande, a depressão rasa, a
modo de vale, que corria paralela à elevação de terra sobre a
qual se erguia a abadia. À esquerda havia alguns chalés,
ocupados, em geral, por pessoas que trabalhavam na
propriedade, dois couteiros, um carroceiro e um cavalariço.
Fora de um desses chalés que o Abade Negro tinha sido
visto por um couteiro aterrado.
— As vozes soavam como se se afastassem de você sobre o
aterro na direção do rio... ou das ruínas? — inquiriu Puttler.
— Bem, — confessou o homem, — é possível que fossem
naquela direção: não posso ter certeza.
— Isto, sem dúvida, é extraordinário, — comentou o
sargento, enquanto caminhavam na direção indicada pelo
homem.
— Ele deve ter-se enganado, — observou Dick, enfático. —
Eles estavam-se afastando...
— Eles, — repetiu Puttler significativamente. — Pois não
creio que o homem se enganasse.
Chegaram ao aterro e seguiram ao longo do topo, até ficarem
numa direção paralela à abadia, mas não encontraram sinal
algum de homem nem de mulher, e voltaram. A despeito
dos seus protestos de que estava sem sono, o Sargento
Puttler não resistiu à sugestão de que devia aproveitar a sua
quota do sofá. Dick ficou sozinho, vigiando.
Ao despontar da aurora, era um homem exausto. Por duas
vezes durante a noite visitara os dois homens postados nos
corredores do andar superior; encontrara-os acordados, mas
sem novidades.
— Graças a Deus que alguém, pelo menos, dormiu nesta
casa? — murmurou ao passar debaixo da janela das moças, e
ergueu os olhos.
O vento da manhã, que agitava as ramagens e enchia o
mundo com a música amena das folhas farfalhantes, movia
também as vidraças da janela do quarto que ele destinara a
Mary Wenner. A janela ia de um lado para outro,
lentamente, e ele, em seu íntimo, verberou a moça por não
lhe haver executado as ordens.
Às seis horas, o primeiro dos criados já estava trabalhando; a
fumaça subia, preguiçosa, por uma das grandes chaminés
espiroladas. Ele se mantinha numa invejosa contemplação
do Sargento Puttler, quando a porta do escritório se abriu
violentamente e Mary Wenner apareceu. Vestia um
penteador e os cabelos, em desalinho, lhe caíam sobre o
rosto.
— Sr. Alford, — perguntou, agitada, — o senhor viu Leslie?
Ele ergueu-se em pé num instante, e o movimento
despertou
o detetive.
— Não; ela está com você, não está?
— Fomos juntas para a cama, — disse a moça, com voz
trêmula, — mas, quando acordei, agora há pouco, ela não
estava no quarto. Esperei um pouco, pensando que estivesse
tomando banho," e depois saí e perguntei ao homem que o
senhor colocou ali. Ele disse que ela não tinha saído do
quarto!
Ouvindo-a, Puttler ergueu-se também.
— A escada! — disse, simplesmente, e Dick cambaleou sob a
força do golpe.
O Terror Negro da Mansão de Fossaway tinha em seu poder
a mulher por quem ele teria dado a própria alma com alegria.
Correndo para o gramado, Puttler escoldrinhou o chão
debaixo da janela. Sim, lá estavam as marcas da escada na
terra de um canteiro, e na própria escada encontrou indícios
comprobatórios. Erguendo-a contra a parede, marinhou por
ela e, chegado ao último degrau, notou que o seu peito
ficava ao nível do peitoril da janela. Erguendo-se com a
força dos braços, saltou para o quarto e entrou a vasculhá-lo,
à procura de alguma pista. A essa altura, Mary Wenner,
seguida de Dick, havia entrado pela porta.
— O penteador dela está aqui, — choramingou Mary,
apontando para o cabide onde se via o quimono
dependurado. — Mas os sapatos não estão. Ela deve ter-se
vestido, e eu não a ouvi.
O homem cansado à porta do quarto não escutara som
algum durante a noite. Grosso tapete cobria o soalho. Mary
afirmou que, ao despertar, notara que a porta de
comunicação entre os dois quartos estava fechada.
Não ouvira coisa alguma e assegurou que tinha o sono leve,
o que, a bem dizer, não era exato. Quando fora dormir, a
vela estava queimando. Examinando-a, Dick percebeu que
ela não poderia ter ouvido por mais de uma hora. Havia dois
palitos de fósforo queimados na salva, o que significava que a
vela fora apagada uma vez e reacendida.
— É de pasmar que ela não me tenha acordado! Tenho o
sono tão leve!
Dick deixou a moça prosseguir em suas explicações ao vigia
que estivera de guarda do outro lado da porta, durante a
noite.
— Foi a voz dela, naturalmente, que o patrulheiro ouviu no
escuro. E eu me censuro por não haver tido logo essa idéia.
— A culpa foi toda minha! — protestou Dick, amargamente.
— Oh, Deus! não consigo suportar essa idéia!
E saiu, empenhado numa busca solitária; ninguém o viu
esgueirar-se pelos fundos da casa, e caminhar oculto pela
margem do ribeirão. Quando voltou, após uma ausência de
duas horas, Puttler contou-lhe que havia um recado do
Ministério do Interior à sua espera. Do Ministério lhe
haviam telefonado duas vezes. Dick conseguiu a ligação
depois de esperar um pouco, e ficou sabendo que estava
falando com um importante subsecretário.
— O senhor poderia vir a Londres por uma hora?
— É indispensável? — perguntou Dick, e relatou,
sucintamente, os sucessos da noite anterior.
— Aconselho-o a vir ver-nos o mais depressa possível. Em
vista das circunstâncias, quanto antes, melhor.
Dick desligou o aparelho com uma imprecação e, dessa vez,
pegou o grande carro de Harry, de dois lugares, um carro
que o irmão usara apenas uma dúzia de vezes, mas cujo uso
negara, sistematicamente, a quem quer que fosse.
No momento em que ia sair, lembrou-se de uma resolução
tomada naquela noite; subiu correndo ao quarto e,
trancando a porta, abriu uma gaveta fechada da cômoda e
dela retirou qualquer coisa, que colocou com todo cuidado
na mala. Aquilo precisava ser removido de Fossaway Manor
o mais depressa possível, pensou. Colocou a mala no porta-
malas do carro e fê-lo voar pela alameda abaixo.
No meio do caminho entre Horsham e Dorking, um
motorista, que vinha na direção oposta por outra estrada,
cruzou com ele em alta velocidade. Dick acionou os freios e
o carrão derrapou, estrondejando na guia de concreto do
passeio. Entretanto, como tudo não passara de um susto,
Dick continuou, não sem haver lançado um olhar assassino
ao motorista do outro automóvel culpado do quase acidente.
Não ouviu abrir-se a porta do porta-malas, nem viu a mala
castanha saltar e rolar sobre o pavimento. Mas o homem do
outro carro viu tudo isso através dos seus enormes óculos de
aviador e, dando nova partida ao seu carro, conduziu-o até a
guia.
E ali, naquele instante, Fabrian Gilder descobriu o segredo
do Abade Negro!

CAPÍTULO L

Às nove horas da manhã, o Sr. Fabrian Gilder se levantara
com a intenção de fazer uma rápida visita à sua casa de
campo.
Folheou os matutinos. Não havia nada de novo em relação a
Chelfordbury, exceto a breve entrevista que Dick concedera
a um repórter; a notícia, em muitos sentidos, era assaz
confortadora para Gilder, pois explicava por que a jovem...
Nesse momento, os seus olhos deram com uma linha:
"Informou o Sr. Alford que convidou a Srta. Leslie Gine para
hospedar-se na Mansão de Fossaway enquanto o irmão dela
estivesse no estrangeiro..."
No estrangeiro? Fabrian Gilder franziu a testa. Se Artur Gine
embarcara para o estrangeiro deveria ter saído
repentinamente. Fazia apenas um ou dois dias que se tinham
visto. Mas talvez fosse uma das mentiras de Dick Alford para
por a salvo a reputação dá moça. Mesmo assim, era
inquietante.
Estava parafusando o assunto, quando a criada lhe trouxe a
correspondência da manhã, e a primeira carta que viu exibia
uma letra muito conhecida. Era de Leslie. Abriu-a, com
mãos trêmulas, tirou do envelope a meia folha de papel e leu
as poucas linhas. Não as leu uma, senão muitas vezes. Então
era isso? Ela mudara de idéia.
Não lhe ocorreu que a moça não lhe fizera promessa alguma.
Mas sentia-se tão seguro de si, estava tão persuadido de que
ela aceitaria a sua proposta, que teve a impressão de ter sido
enganado.
Tirou do cofre a carta que escrevera a Leslie e já se dispunha
a rasgá-la em pedacinhos, quando se lembrou de que, dentro
da carta, havia um cheque em branco. Tirou do envelope a
folha de papel de carta e procurou o bilhete cor-de-rosa que,
em sua magnificência, assinara com um floreio complacente.
Não estava lá.
Gilder explorou o interior do envelope com sobrecenho.
Sumira! Vasculhou o cofre: poderia ter caído, muito embora
lhe fosse difícil imaginar como; mas não havia sinal do
documento. Abriu a gaveta e tirou o talão de cheques. Lá
estava o canhoto e, escrito nele, "Para Leslie..." Tencionara
mostrar-lhe num desses dias, quando ela se revelasse mais
compreensiva.
Com a cabeça nas mãos, tentou rememorar a ocasião em que
vira o cheque pela última vez, e recordou a manhã em que
Artur Gine viera visitá-lo. A essa lembrança, empalideceu.
Teria realmente fechado o cofre? Procurou lembrar-se outra
vez, minuto por minuto, da manhã fatídica. Estivera relendo
a carta, colocara-a no cofre, fechara a porta e, então... o
telefone chamara e ele se esquecera de acionar a fechadura
do segredo!
Puxou o telefone para junto de si e pediu, furioso, um
número. Eram nove e vinte; a maior parte do pessoal do
banco já devia ter chegado. Quando responderam ao
chamado:
— Sou o Sr. Gilder. O gerente está?... Não? Então chame o
subgerente. É urgentíssimo.
Esperou que o funcionário fosse investigar. Dali a pouco
ouviu a voz de um homem que ele conhecia — o próprio
gerente.
— Acabei de chegar. Aconteceu alguma coisa?
— Fletcher, você se lembra de que eu lhe disse que mandaria
um cheque de cinqüenta mil libras e lhe pedi para pagar?
— Lembro-me, sim; e já paguei.
Por um segundo, Gilder ficou sem fala.
— E quem o apresentou?
— Artur Gine... o cheque estava em nome dele... Aliás, eu
lhe escrevi ontem à noite; não recebeu minha carta?
— Ainda não abri toda a correspondência, — replicou Gilder
com voz firme. — Muito obrigado.
Recolocou o fone no gancho, respirando pesadamente.
Agora relembrava claramente todos os acontecimentos
daquela manhã: a vinda de Artur Gine e a sua proposta,
aparentemente absurda, de que ele, Gilder, escrevesse uma
nota, manifestando-se disposto a emprestar-lhe o dinheiro.
Nisso estava o truque! Artur não somente obtivera as
cinqüenta mil libras, mas também, com a carta, dispunha de
uma resposta cabal a qualquer acusação de fraude.
Sentou-se com as mãos enclavinhadas, todas as veias da testa
inchadas, a morte no coração. Trapaceado! Mas ela haveria
de saber. Participara da fraude — inconscientemente, talvez,
mas não deixara de participar. Ela deveria ter falado ao irmão
sobre o dinheiro.
Fosse lá o que fosse, Fabrian Gilder possuía o dom de pensar
com clareza. Depois de cinco minutos de uma fúria
devastadora, voltava a ser o homem frio de sempre. É
evidente que ela não poderia ter secundado a fraude. Fora a
circunstância de haver esquecido o cofre aberto e a
conhecia abelhudice de Artur Gine — incapaz de resistir até
à leitura das cartas particulares de Gilder, pois lhe faltava de
todo o senso da discrição.
Que poderia fazer agora? Repisou cuidadosamente o assunto
e traçou o seu plano. Contaria à moça, que assim talvez se
considerasse comprometida. Se ela tivesse algum senso de
honra, cumpriria a promessa, sem embargo do que escrevera
na última carta.
Telefonou para que lhe mandassem o carro da garagem e
abeirou-se da mesa do desjejum, fazendo uma tentativa para
comer.
Experimentaria Leslie primeiro, sem nada lhe dizer sobre a
carta que dera a Artur, e ameaçando-o de um mandado de
prisão por fraude. Isto talvez lhe reforçasse, em vez de
enfraquecer, a posição. Foi-se sentindo melhor, à medida
que o pensamento tomava forma.
À sua esquerda, a estrada estava desimpedida; à direita, tinha
a visão um tanto ou quanto obstruída. Buzinou e entrou na
estrada principal a trinta milhas por hora.
Divisou o carro a tempo, acionou os freios e engatou a mar-
cha à ré. O carrão à sua frente derrapou; surpreendeu o
brilho rancoroso nos olhos de Dick Alford e, em seguida,
viu-lhe a mala; encostando o carro na guia da calçada,
apanhou-a. A sua primeira idéia fora deixá-la; não o movia
nenhum desejo especial de ajudar o filho segundo; mas
existem certas decências inatas que devem ser observadas
pelos motoristas, ainda que se detestem; apanhou a mala
caída no meio da rua e atirou-a na parte traseira do seu
automóvel.
Nisso, a mala se abriu e, quando ele se voltou para fechá-la,
viu uma coisa que o fez mudar de idéia. Saindo do carro,
ergueu a mala acima da calçada e deixou cair o conteúdo —
o hábito e o capuz escuros do Abade Negro!

CAPÍTULO LI

Com que, então, Dick Alford era o Abade Negro!
Inacreditável! Mas conseguia avaliar a importância do seu
achado. Aqui, portanto, estava a maior alavanca de todas.
Diante disso, a ameaça de uma acusação contra o irmão de
Leslie Gine perdia todo o peso. Fechou a mala, recolocou-a
no assento traseiro do carro e, pondo-o novamente em
movimento, guiou um pouco mais devagar para
Chelfordbury.
Parou na aldeia, onde foi reconhecido, e ouviu, em primeira
mão, do estalajadeiro, a história dos estranhos sucessos
ocorridos na "casa grande".
— Dizem que aconteceu alguma coisa à jovem senhora de
Willow House.
— O que! — Gilder quase berrou a palavra. — Você está
falando da Srta. Gine?
— Sim, da Srta. Gine, — confirmou o homem. — Ainda não
conheço a história toda, pois até agora só chegaram boatos,
mas por Deus, Sr. Gilder, nunca houve tantos boatos nesta
aldeia desde que vim morar aqui, há quarenta e oito anos!
Alguns dizem que Sua Excelência foi assassinado — baixou a
voz e olhou em torno de si — pelo irmão! O Sr. Alford é um
homem duro, embora as pessoas que trabalhem para ele não
tenham nada para dizer em seu desabono, mas isso, a mim,
não me parece possível.
A mente de Gilder girava, num turbilhão. Não queria saber
coisa alguma acerca de Dick Alford, nem da sua reputação.
— Quem lhe contou essa história a respeito da Srta. Gine? —
perguntou, e o estalajadeiro, circunvagando a vista pelo
grupo formado à frente do "Leão Vermelho", apontou para
um homem.
— Ele é carroceiro lá na casa grande.
— Faça-o vir aqui, — disse Gilder.
E quando o carroceiro se avizinhou:
— Que história é essa a respeito da Srta. Gine?
O homem pareceu encalistrado ao ver-se convertido em
centro das atenções gerais.
— Não sei nada a respeito, não, senhor, — disse ele. — Só o
que ouvi aquele cavalheiro com cara de macaco dizer ao Sr.
Richard. Ele disse, "Não creio que possa acontecer algum
mal a ela". E uma das criadas falou que a moça que
costumava ser secretária de Sua Excelência...
— A Srta. Wenner? Ela está aqui? — perguntou Gilder,
depressa.
— Está, sim, senhor, chegou ontem à noite.
— Que tem ela? — perguntou Gilder.
— Dizem que chorou a manhã inteira. Isso é tudo o que sei.
Disseram que aconteceu uma desgraça à moça hoje cedinho,
e que o Sr. Richard tem corrido como um doido de baixo
para cima e está com uma cara de assustar a gente.
— Espero que se faça alguma coisa a respeito desse Abade
Negro, — interveio o estalajadeiro. — A mulherada aqui de
casa anda tão amedrontada que quer passar acordada a
metade da noite.
Gilder considerou-o com estranha expressão.
— Você não precisa ter medo do Abade Negro, — disse ele.
— Eu mesmo esconjuro hoje esse fantasma.
— O senhor, Sr. Gilder? — acudiu o homem, surpreso.
Aquela não era ocasião para confidências e Gilder, voltando
ao carro, manobrou-o e subiu a estrada até chegar à entrada
da propriedade. Ali o policial de serviço lhe teria barrado a
passagem se não fosse um homem da polícia local, que o
conhecia.
— O Sr. Alford não está. Quer falar com o Sargento Puttler?
— É o homem que está hospedado na Mansão? Que é ele,
afinal... um policial?
— Um homem da Scotland Yard, — respondeu o policial de
Sussex, com certo orgulho. — Embora, na minha opinião,
eles não sejam muito melhores do que os nossos detetives.
Faça o favor de dizer-lhe que o senhor me viu e que lhe
recomendei que só fosse à mansão se tivesse negócios para
tratar, sim?
Evidentemente, tais haviam sido as instruções recebidas pelo
policial; Gilder prometeu transmitir fielmente o recado e
continuou a subir a alameda. Não havia ninguém para
recebê-lo quando parou diante do velho portal esculpido
mas, tanto que desceu do carro, um homem de braços
compridos e rosto esquisito apareceu, vindo, aparentemente,
de parte alguma.
— Bom dia, — disse o visitante.
— Bom dia, Sr. Gilder, — respondeu Puttler. — O Sr. Alford
foi à cidade.
— Quero ver a Srta. Gine, — disse Gilder, observando o
homem com atenção.
Se ele esperava que o experimentado sargento-detetive se
traísse, ficou desapontado. Puttler limitou-se a encará-lo
com os olhos melancólicos.
— O senhor quer ver a Srta. Gine, é? Pois receio que ela
também não esteja em casa.
— Nesse caso, eu talvez possa ver a Srta. Wenner.
O sargento coçou o queixo.
— Ela não está muito bem, — respondeu; — na realidade,
está deitada, e o médico recomendou que não a
perturbassem,
— Ela está passando mal?
— Não, não está passando muito mal. Ao mesmo tempo, —
continuou Puttler, juridicamente, — também não está
passando muito bem! Acontece que ficou com os nervos
abalados depois de dormir uma noite nesta casa, e eu,
sinceramente, não posso censurá-la por isso.
— O senhor sabe aonde foi a Srta. Gine?
Puttler meneou negativamente a cabeça.
— Não, — respondeu, sem mentir, — não posso dizer-lhe
isso; ela também não me disse aonde ia.
— O senhor talvez me responda esta pergunta, — voltou o
exasperado Sr. Gilder: — aconteceu alguma coisa a ela?
— Que eu saiba, — retrucou o imperturbável detetive, —
não aconteceu coisíssima alguma. O senhor é amigo dela?
— Sou o seu noivo, — redargüiu Fabrian, obedecendo a um
súbito impulso.
Nesse ponto ele teve a satisfação de ver que o sargento ficou
espantado.
— Oh, sim, já sei, o senhor é o cavalheiro com quem ela não
vai casar.
Isso foi dito com toda a inocência, sem qualquer traço de
impertinência. mas o Sr. Gilder ficou vermelho e branco.
— Como vê, Sr. Gilder, — prosseguiu o sargento, — ouvi
muita coisa acerca de... de negócios por aqui; a bem dizer,
sou uma autoridade no tocante às fofocas e escândalos dos
últimos vinte anos. E estou muito satisfeito com a sua
presença, porque há uma ou duas perguntas que gostaria de
fazer-lhe. Por exemplo, eu gostaria de saber como foi que o
senhor colocou o seu chalé à disposição de um ex-
sentenciado, vulgo Tomás Felizão...
Gilder, porém, tinha a resposta na ponta da língua:
— Eu não sabia que o homem era um ex-sentenciado. Ele
me disse que havia sido despedido da Mansão e, como eu
precisasse de um caseiro, e ele se oferecesse para trabalhar
por uma soma irrisória, empreguei-o. Fiquei terrivelmente
surpreendido e chocado ao saber da sua morte, porém muito
mais chocado ao tomar conhecimento da sua reputação.
Puttler se mostrou polidamente interessado. Mas se supunha
ver-se livre de Gilder com tamanha facilidade, não conhecia
a pertinácia do homem.
— Creio que preciso ver a Srta. Wenner antes de partir, —
insistiu o advogado. — De qualquer maneira, eu gostaria que
o senhor mandasse avisá-la de que eu...
Puttler sacudiu a cabeça.
— Não pode ser, Sr. Gilder, — atalhou, quase jovial. — Sou,
nesse momento, uma combinação do Conde de Chelford e
do médico da família. Em outras palavras, tudo corre por
minha conta na ausência do Sr. Alford. Se não fizer questão
de esperar até que ele chegue, a sala de estar estará à sua
disposição, mas compreenda, Sr. Gilder, que, em hipótese
nenhuma, poderá interrogar os criados. Admiro muito os
detetives amadores em meus momentos de lazer, mas este é
um dos meus dias mais trabalhosos, e não posso permitir
qualquer interferência no caso, por bem intencionada que
seja.
Gilder teve de aceitar o convite. Decidira não sair da casa
enquanto não soubesse a verdade sobre Leslie Gine. O
detetive conduziu-o à sala de estar, cujas longas janelas
estavam abertas.
— Peço-lhe que não se ausente daqui antes da chegada do Sr.
Alford. Se precisar de alguma coisa, faça o favor de tocar a
campainha. — E, vendo a luz nos olhos de Gilder: — Um
dos meus homens, que é um criado de primeira ordem, terá
prazer em atendê-lo.
Entretanto, não lhe foi preciso esperar muito tempo. Dick,
que fora voando para a cidade, infringindo todas as normas
de velocidade, e tão preocupado com o objetivo da sua visita
que até se esquecera de haver posto a mala no porta-malas,
teve a sorte de liquidar a entrevista em quinze minutos.
Uma entrevista importantíssima, da qual dependia, em
grande parte, o seu próprio futuro; e ele tinha tantas coisas
em que pensar que lhe esqueceram completamente a mala e
o seu conteúdo. O carro, branco de poeira, subiu à toda a
alameda e foi parar no amplo espaço diante da portada.
Identificou o outro carro e reconheceu nele o automóvel
que quase provocara um feio acidente naquela manhã.
— É Gilder, não é? — perguntou, ao descer.
— É Gilder, sim, senhor, e cheio de pontos de interrogação.
O senhor viu o Secretário?
Dick assentiu com um movimento de cabeça.
— Vi. Ele foi muito bom, mas um tanto vago. Deu-me doze
horas para encontrar Harry, vivo ou morto.
— O senhor não lhe contou a respeito da Srta. Gine?
— Ele nem sequer se interessou, — respondeu Dick, com
uma risada dura. — Harry, a propriedade, o título... tudo,
exceto Leslie! Foi esse o tema da sua conversação. Em doze
horas preciso encontrá-lo... e creia-me, Puttler, em doze
horas o encontrarei!
Entrou na sala de estar e cumprimentou Gilder secamente.
— Quer falar comigo?
— Eu queria saber o que aconteceu a Leslie Gine.
— Prouvera a Deus que eu soubesse!
O homem encarou com ele.
— Não lhe aconteceu nada de mal? — perguntou em voz
baixa, e Dick perdoou-lhe tudo pela sinceridade da
preocupação.
— Receio que se trate de algo muito desagradável, — disse
ele, e contou a história.
Enquanto falava, viu modificar-se o rosto do homem e um
sorriso cético contrair-lhe os lábios.
— Tenho uma coisa para dizer-lhe, e gostaria de dizê-lo
diante de uma testemunha, Alford.
— A mim? — volveu Dick, surpreso e por cima do ombro,
chamou Puttler, que passava pela porta naquele momento.
— O Sr. Gilder quer dizer uma coisa... e presumo que seja
coisa de natureza desagradável. Talvez fosse melhor você
ouvir, Puttler.
— Alford acaba de contar-me que a Srta. Gine desapareceu, e
disso se infere, naturalmente, que foi o Abade Negro o autor
do desaparecimento. Isso, aliás, me parece extremamente
provável, porque o Abade Negro tem o máximo interesse
em apoderar-se dessa jovem.
— Sensação, — murmurou o detetive, mas Gilder não deu
tento da interrupção.
— Por algum tempo, um estranho abentesma vem
assombrando esta região, objeto de terror para Lorde
Chelford, destinado, possivelmente, a cobrir a série de
violências recentemente perpetradas. Chelford é um fraco...
você sabe disso; Alford... mas os fracos têm filhos e, depois
que nascer o filho de Harry Alford, as suas esperanças de
sucessão irão por água abaixo.
— O que é que você está sugerindo? — perguntou Dick, com
firmeza.
— Estou sugerindo que você é o Abade Negro!
Nem sequer uma contração das pálpebras alterou o sem-
blante de Dick.
— E não somente sugiro, como estou preparado para prová-
lo. Quando você foi à cidade hoje cedo, quase abalroou o
meu carro. Pois bem, ao derrapar, a sua mala saltou do porta-
malas. Apanhei-a, atirei-a no meu carro e verifiquei que
estava aberta. Nessa mala se achava a túnica do Abade
Negro, já gasta, muito usada! Você será capaz de negá-lo?
— O senhor precisa provar o que diz, — interveio Puttler.
— Provar! — gritou o outro, triunfante. — Pois vou provar!
Atravessou rapidamente o vestíbulo e dirigiu-se para o local
onde estava estacionado o seu carro, seguido pelos dois
homens. Deixara a mala debaixo de um tapete, na parte
traseira do carro.
— Aqui está a mala, — disse ele, tirando o tapete do lugar. —
E aqui... — continuou, abrindo a mala... Estava vazia!
— É aqui? — repetiu Puttler, encorajando-o.
— Estava aqui há poucos minutos. Vi-a antes de entrar no
jardim. Alguém a tirou. Você! — concluiu, apontando para
Dick.
Este sorriu.
— O Sargento Puttler é testemunha de que saí diretamente
do meu carro para a sua augusta presença, — respondeu,
sarcástico.
— Por que não me acusa? — acudiu Puttler. — Estive o
tempo todo aqui fora.
O homem frustrado alternou os olhos entre um e outro. Era
impossível acreditar que os dois estivessem conluiados.
Conhecia
Puttler de nome e sabia-o um dos melhores funcionários
que já tivera a Scotland Yard. Deu de ombros e deixou
pender as mãos ao lado do corpo.
— Você me venceu, Alford, — disse, — por enquanto.
Estou convencido de que a Srta. Gine se acha dentro de um
raio de uma milha desta casa, e não descansarei enquanto
não for encontrada. Afinal, por que você fez isso?... Ela
gosta de você, e não havia necessidade...
— Não seja idiota, Gilder, — atalhou Dick, desabrido. — Se
quiser ajudar, ajude! Mas pouco ajudará se continuar
pensando que ergui minha mão contra Leslie Gine. Não me
importa que você seja amigo ou inimigo, mas se puder
ajudar a trazê-la de volta sã e salva, eu lhe pedirei de joelhos
que o faça!
A voz lhe soava trêmula, vibrante; havia em seus olhos um
brilho que nem o próprio Gilder, apesar de toda a sua
prevenção, poderia interpretar mal. Estendeu a mão e Dick
Alford apertou-a com uma força que o fez encolher-se.

CAPÍTULO LII

A despeito de todos os seus sombrios prognósticos acerca da
noite que passaria sem dormir, assim que a Srta. Wenner
colocou a cabeça no travesseiro, a sua respiração tornou-se
regular e até audível. Leslie Gine sorriu para si mesma ao
virar-se e apagar a vela silenciosamente. Não fazia dez
minutos que se achava deitada quando compreendeu,
baseada em experiências anteriores, que muitas horas
cansativas se passariam antes que os seus olhos se çerrassem
num sono reparador.
Restava-lhe a alternativa de reacender a vela e ler, ou contar
miríades de carneiros, e o primeiro plano foi um tanto
dificultado pelo fato de não haver no quarto nada para ler, e
ela não querer incomodar a sentinela, pois isso,
provavelmente, despertaria Mary. Quedou-se, portanto,
perfeitamente imóvel, dominando um desejo maluco de
virar-se a cada instante, procurando transformar a sua mente
em algo totalmente vazio.
Com tanta coisa para ocupar-lhe os pensamentos, com as
últimas vinte e quatro horas e todos os choques terríveis que
elas lhe haviam trazido, os seus esforços por transformar a
mente num repolho deram em água de barreia.
Ouviu um relógio distante da aldeia dar as horas e meias-
horas, e sentiu-se grata ao soar uma hora da manhã, pois
refletiu que havia transposto o ponto culminante da noite e
que dali a pouco chegaria o dia abençoado. Ouvia rangidos e
estalidos esquisitos na casa velha; estranhos passos furtivos,
que pareciam muito reais; dedos que alisavam lambris de
madeira, rumores indistintos que lembravam risos. Apesar
da sua coragem, Leslie levantou-se, acendeu a vela outra vez
e sentiu-se mais feliz.
Ficou deitada de costas, olhando para o teto, forcejando por
concentrar-se numa rachadura que corria de um canto a
outro; e, enquanto olhava, afigurou-se-lhe que o quarto
ficava perceptivelmente mais escuro, inundado de uma
estranha luz extraterrena.
E então viu, atrás da porta, um grande cabide de roupas, de
aço, que não se lembrava de ter visto antes; e, presa a ele,
havia uma corda e alguma coisa informe dependurada,
incrivelmente mole - uma mulher! Arregalou os olhos,
quase gritou, mas pôs a mão a tempo diante da boca.
Compreendeu que estivera sonhando, e alcançou o lenço
para enxugar o rosto molhado. Não havia cabide nenhum
atrás da porta
— nada. Estremeceu e virou-se de lado, olhando pela
vigésima vez para o seu relógio. Uma hora e vinte e cinco
minutos.
Tap, tap!
Aquilo, sim, era bastante distinto. Vinha do quarto que Mary
Wenner devera ter ocupado.
Um silêncio, e depois o som inequívoco do cascalho atirado
à janela. Talvez fosse Dick querendo vê-la. Desceu da cama,
vestiu um penteador, abriu a porta do quarto escuro, e
entrou. As janelas estavam fechadas mas, ali chegada,
assustou-se ao ouvir um terceiro punhado de cascalho, que
soou com aterradora nitidez.
Com mãos trêmulas, puxou o trinco e abriu a vidraça. Um
homem estava de pé, lá embaixo e, por um segundo, não o
reconheceu. E, logo, tudo começou a girar à sua volta; foi-
lhe preciso agarrar-se ao peitoril da janela para não cair.
Era Harry Alford!
— É você, meu bem? — Se bem fosse pouco mais que um
sussurro, a voz dele soava notavelmente clara.
Ela conseguiu responder:
— Sim.
Sentia-se tão aparvalhada que não foi capaz sequer de fazer
uma das mil perguntas que trazia na ponta da língua. Harry!
E vivo!
— Você está correndo um terrível perigo, — disse ele. —
Desça. Vou arranjar uma escada.
Antes que ela pudesse responder, ele desapareceu e, pouco
depois, voltava carregando uma escada triangular, que
encostou à parede da casa. A ponta da escada ficou a trinta
centímetros do parapeito.
— Não posso ir, Harry; não estou vestida. Além disso, a Srta.
Wenner está aqui.
Ele ergueu um dedo aos lábios.
— Não a acorde, — recomendou.
Harry trazia um rolozinho na mão e ela notou que ele estava
sem chapéu.
— Você não pode vestir-se? Preciso vê-la.
— Posso chamar Dick?
— Não, não. — Em sua energia, quase levantou a voz e
olhou para trás, por cima do ombro. — Isso estragaria tudo,
e colocaria a vida dele em perigo. Vista-se depressa, meu
bem.
Que deveria ela fazer? O seu primeiro instinto mandava-a
correr para a porta e dizer ao guarda o que vira; o segundo,
obedecer-lhe. A veemência dele e o terror que havia em sua
voz fizeram-na ceder à sugestão de Harry. Vestiu-se, à
pressa, à luz da vela, esperando e rezando para que Mary
Wenner despertasse. De uma feita, bateu na cama, mas a
Srta. Wenner dormia serenamente, com um sorriso seráfico
no rosto bonito, e o único sinal que deu de haver notado
alguma coisa foi murmurar: "Dick!"
O ridículo interlúdio devolveu a coragem a Leslie; pois ela
não poderia achar graça e ter medo, ao mesmo tempo.
Dick talvez estivesse esperando lá embaixo, pensou, e,
equilibrando-se sobre o parapeito, estendeu o pé, encontrou
o primeiro degrau da escada, e desceu. Em pé, no canteiro,
Harry parecia curiosamente alerta e vigilante.
— Que aconteceu, Harry? — perguntou ela em voz baixa,
mas ele tornou a levar um dedo aos lábios e conduziu-a, não,
como ela esperava, para a frente da casa, mas, por um amplo
trajeto, cosido sempre à sombra das árvores, até o roseiral,
perto das cocheiras. Um cão latiu quando eles passaram em
silêncio.
— Não posso ir mais longe, Harry.
— Você precisa, precisa! — A voz dele era instante, compe-
lia. — Estou-lhe dizendo que não só a minha, mas também a
sua vida está correndo perigo.
— E a Srta. Wenner? — Ela recuou.
— Não a tocarão. O espírito de minha mãe velará por aquela
pobre moça... ela morreu naquele quarto.
Leslie sentiu dificuldade para respirar.
— Sua mãe? — perguntou, num sussurro de terror.
— Venha! — Impaciente, ele agarrou-a pelo braço e levou-a
mais para diante, até que ela viu, à sua beira, o brilho do
Ribeirão dos Corvos.
— Mas, Harry, não posso ir mais adiante. — Estacou, reso-
luta. — Tenho certeza de que você está enganado. Onde
andou todo esse tempo? Toda a gente tem estado à sua
procura, e Dick ficou terrivelmente preocupado.
Ele riu-se. (Fora a risada que o policial ouvira.)
— Dick ficou preocupado? Essa é boa!
Nesse momento, ao chegar-lhe aos ouvidos a interpelação
de uma voz distante, ela viu-lhe o rosto à luz da lua.
Barbudo, a roupa em desalinho, tinha o rosto e as mãos
sujas; estava sem colarinho e compunha uma estranha figura
de homem de sobrecasaca, sem colarinho, de aparência
selvagem. Lentamente, ela recuou, o pavor e o medo
estampados no rosto, e ele a agarrou pelos pulsos.
— Se gritar, eu a jogarei dentro do rio e ficarei de joelhos
sobre o seu corpo, até você morrer, — murmurou ele num
tom tão calmo e normal que ela não pôde acreditar que ele
estivesse falando sério.
E, contudo, um sentido adicional lhe dizia não só que ele
falava sério, mas também que ela estava correndo um perigo
mortal. Ele continuou a segurar-lhe o pulso pois, do
contrário, ela teria fugido, embora tivesse pouquíssimas
probabilidades de escapar a um homem que, em seus dias de
escola, fora notável corredor. Naquele momento, lembrou-
se de mais uma coisa, e sentiu-se engulhada. Harry Alford
capitaneara o time de sua escola em Bisley e levantara todos
os troféus. Aquele jovem pálido, anêmico, fora o maior
atirador do seu tempo. O maior atirador! Rememorou a bala,
que lhe fora destinada, e ele sentiu-a resistir um pouco mais,
mas sem uma palavra. Ela não poderia perder a coragem
naquele momento de crise.
Caminhavam em direção às ruínas. Perto da borda do corte,
dissera-lhe Putíler, estavam estacionados dois homens; não
tardariam a vê-la. Harry, porém, não foi além da torre
quebrada; nesse ponto estacou e afastou o bloco de pedra.
Ela compreendeu; desceriam à medonha caverna
subterrânea, aonde fora com Dick. Dick Alford sabia que o
irmão estava ali! Percebeu-o muito antes de ver a cesta,
ainda cheia de comida, que ficara no último degrau da
escada coberta de musgo.

CAPÍTULO LIII

Harry acendeu uma vela e, guiada por ela, Leslie desceu a
íngreme escada circular.
— Ele me trouxe essa comida... o demônio! — Harry apon-
tava o dedo trêmulo para a cesta.
— Foi Dick que a trouxe? — perguntou ela, com voz
insegura.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Envenenada, — exclamou. — Mas ele não me pega, não!
Está tudo envenenado!
Desdobrou com cuidado um guardanapo branco e mostrou
uma delicada pilha de sanduíches; em seguida, pegou um
deles e mostrou-o.
— Veja! Veja os cristais brilhando sobre a carne, — disse, viu
a coisa brilhar na carne branca.
A seguir, ele ergueu a garrafa e contemplou-a com um
sorriso.
— Era infantil demais! Ninguém, a não ser um bobo, seria
capaz de imaginar que eu pudesse ser enganado.
Tornou a colocar a garrafa e os sanduíches no lugar, com
todo o cuidado, e cobriu-os com o guardanapo que estivera
sobre a cesta.
— Venha, — disse ele, e os dois se adentraram na sala.
Ela viu um grande buraco no chão e um pedra ao lado, que
havia sido afastada do centro.
— Tenho um lampião lá embaixo. Preparei este lugar há
muito tempo para uma emergência dessa natureza. Luz e
comida... e toda a água que você precisar. Quer entrar
primeiro?
Muito cortês e polido, tomou-lhe a mão para guiá-la, e
suspendeu a luz de modo que ela pudesse ver a escada,
descendo imediatamente depois e recolocando a pedra no
lugar.
— Quer segurar a vela? — pediu ele.
Ela tremia tão violentamente que os seus dedos se cobriram
de cera fervente, mas não sentiu a dor; tinha os olhos fitos
no homem, fascinada.
Ele acendeu um novo lampião, que parecia queimar gás de
parafina e levou algum tempo para produzir uma luz
brilhante, que iluminou a sala. Era duas vezes mais espaçosa
do que o aposento superior, e nem as paredes nem o piso
mostravam sinais de estragos. Dir-se-ia quase tão nova
quanto no tempo em que os construtores normandos a
entregaram aos Monges Negros de Chelfordbury.
As primeiras coisas insólitas que ela viu foram dois rifles de
caça, num canto da sala. Seguindo-lhe os olhos, ele sorriu.
— Não venderei minha vida sem luta, — declarou, com
firmeza.
A mobília consistia numa mesa velhíssima de refeitório,
cujo tampo deveria ter, pelo menos, dez centímetros de
espessura, um longo banco de madeira e uma cadeira alta,
semelhante ao trono de um bispo. Não havia janelas visíveis,
mas o teto não chegava a encostar nas paredes; ao que tudo
indicava, existia um espaço à volta da sala, pelo qual entrava
o ar.
— Desculpe-me, — disse ele.
Pegou o rolo que estivera carregando, desenrolou e, para
assombro dela, beijou-o apaixonadamente antes de levá-lo
para uma cama baixa, de cuja existência ela ainda não se dera
conta, e pregou-o, com tachas, numa viga que aparecia entre
as fieiras de pedras e que era, na verdade, o único pedaço de
madeira que ela vira em toda a construção.
Leslie olhou, pasmada, e conheceu instantaneamente o
retrato. Era a cabeça da mãe dele.
— Como é linda! — suspirou Harry. — Como é maravilhosa!
Sabe. Leslie, sinto agora que nada mais tem importância!
Sorriu para ela e pareceu, naquele momento, tão feliz que a
moça sentiu vontade de chorar.
— Richard a odiava! — prosseguiu ele. — Nunca perdia uma
oportunidade de falar mal dela. Fiquei sabendo que, na
minha ausência, ele costumava levar os criados à biblioteca
e, juntos, riam-se e zombavam dessa formosa mártir.
— Que absurdo, Harry! Você sabe que Dick seria incapaz de
fazer uma coisa dessas, — acudiu ela, tomando, sem querer,
a defesa do rapaz.
Mas ele não se zangou, nem se mostrou ressentido.
— Você não o conhece, — tornou, simplesmente. — Dick é
o Abade Negro. Só o descobri há uma ou duas semanas,
quando entrei no quarto dele e dei com a roupa numa caixa.
Ele se esquecera de guardá-la.
Ela não acreditou na única verdade que ele lhe dissera até
aquele momento, mas percebeu que seria uma imprudência
de sua parte, para não dizer outra coisa, contrariá-lo.
— Harry, você sabe que não posso ficar aqui, — disse ela. —
Só há uma sala, e gosto de tomar banho todos os dias...
Ele atravessou o aposento, afastou para um lado um saco de
aniagem que escondia um dos cantos, e apontou dramático:
— Você aqui encontrará tudo o que precisar. Esta sala é sua.
Dormirei lá em cima, e só descerei ao primeiro sinal de
perigo, para você ou para mim. A situação exige calma e
paciência, e sei que a minha futura esposa tem que farte tais
qualidades.
Ele voltara a ser o velho Harry sorridente e jovial.
— A propósito, existem muitos livros para ler... eu trouxe
alguns da casa. Como fossem meio pesados, precisei arrastá-
los um pouco mas, graças a Deus, consegui exatamente o
que queria.
Ela os viu, então, pela primeira vez, empilhados numa ponta
da mesa Ele tomou de um volume e pôs-se a folheá-lo com
carinho.
— Você não lê alemão? Se não me engano, já lhe ouvi isso. É
uma pena, porque aqui está uma narrativa sumamente
fascinante, feita por um estranho, dos Chelfords daquele
tempo. Você gostará de saber que localizei o tesouro. Não
foi difícil. Eu sempre soube que estava atrás da segunda
porta da sala lá de cima.
— Faz muito tempo que você conhece este lugar?
Ele assentiu com a cabeça.
— Faz seis anos. Encontrei-o no vigésimo primeiro
aniversário da morte de minha querida mãe. Creio que eu
deveria dizer do "assassínio", pois não há dúvida que meu
pai, que possuía todas as piores qualidades de Dick, a
matou... enforcou-a.
— Naquele quarto? — perguntou ela com voz tensa, o rosto
contraído de horror. — Atrás da porta?
Ele meneou afirmativamente a cabeça.
— A coisa foi abafada. O meu esperto pai era um homem
importante demais para ser processado por crime de morte,
e circulou a história de que ela dera cabo da própria vida.
Todas as suas palavras eram outras tantas mentiras, e ela o
sabia, mas ele acreditava na história. Explicou, com clareza,
como funcionava a luz; mostrou-lhe um lugarzinho onde ela
poderia lavar-se, com um filete de água que escorria da
rocha nua, através de uma frincha, para profundezas
invisíveis; e chegou até a fazer-lhe um resumo sucinto da
história do lugar. Fora construído pelo próprio Abade Negro
para as suas atividades especiais.
— Pensei, a princípio, que houvesse outra saída aqui, ou
melhor, uma entrada para as amigas dele, mas não consegui
descobri-la.
Pegou um dos rifles, empurrou o ferrolho para trás com mo-
vimentos experientes e, subindo dois degraus, destravou a
pesada viga de carvalho que mantinha a pedra no lugar.
A laje girou sobre si mesma, e a jovem pensou poder travá-la
quando ela voltasse ao lugar; mas ele, evidentemente, estava
preparado para isso, pois ela o ouviu arrastando outra pedra
pesada, com que calçou a primeira, a fim de que esta não
pudesse voltar.
— Boa noite, Leslie, — disse ele, olhando para ela através
dos óculos. — Não faz mal que eu deixe a luz acesa? Eu
gostaria de ler um capítulo antes de dormir.
Durante um quarto de hora nenhum som quebrou o
silêncio. Ela sentou-se na cama, as mãos travadas sobre os
joelhos. Nisso, ouviu-o mexer-se, e a sua respiração se
acelerou, mas ele queria apenas fazer uma pergunta.
— Diga-me, Leslie, Tomás deixou algum parente? Eu gostaria
de prover à subsistência dessa gente. Ele me aborrecia e,
francamente, não me arrependo de o haver matado. Mas
não gostaria de saber que os seus parentes estão passando
privações em conseqüência do meu ato de justiça.
Ela abanou a cabeça.
— Não sei, — disse, e não lhe pareceu ouvir a própria voz.


CAPÍTULO LIV

Ela não poderia dizer por quanto tempo ficou ali, imóvel.
Achava-se numa espécie de coma, paralisada por uma
sensação de impotência. Já se deveriam ter passado horas
quando o ouviu mexer-se e, com o cobertor sobre o braço e
o rifle na mão, descer a escada e travar a laje.
— Que foi? — perguntou ela.
— Não fale... é ele! — murmurou, e sentou-se ao lado dela,
com a mão no seu ombro.
Leslie ouviu o som de passos acima da cabeça. Dick!
Precisou morder o lábio para abafar um grito. Harry a estava
vigiando — gritasse e estaria morta. Dick não conseguiria
deslocar a laje a tempo, ainda que localizasse o som. Dali a
pouco, os passos se afastaram e ela sentiu afrouxar-se a
pressão sobre o ombro.
— Sinto muito havê-la incomodado.
Harry apanhou o cobertor e o rifle e subiu os degraus; ela o
viu puxar a pedra para a frente e, pouco depois, tudo voltava
ao silêncio.
Ele deixara uma caixa de fósforos e uma vela sobre a mesa.
Ela acendeu a vela e levou-a para a minúscula caverna onde
corria a água. Não conseguiu ver o teto; supôs que o
comodozinho se estendesse por toda a altura da torre e que,
em algum lugar, lá em cima, estivesse a borda da escada
circular que a trouxera à caverna superior.
Erguendo a luz sobre a cabeça, forçou a vista para o alto e,
pouco depois, viu grandes arcos de ferro, em forma de D,
fincados na parede a intervalos regulares de trinta
centímetros; chegavam até o topo — e o mais abençoado
sinal de todos — divisou uma estrela lá em cima.
Não obstante, estava perplexa. O Abade era havido por
mulherengo, e pouquíssimo provavelmente as visitantes que
partilhavam da sua solidão entrariam ali por um processo tão
precário. Estendeu a mão, mas notou que esta ficava quase a
um metro do arco mais próximo, e nada havia no aposento
em que pudesse trepar. Aproximou-se, sem ruído, da cama e
arrancou um lençol; apanhou o rifle que ali ficara e, fazendo
um grande esforço, conseguiu introduzir uma das pontas do
lençol pelo primeiro arco. Dez minutos depois de um
trabalho insano, a ponta descia e ela se viu dona de uma
corda. Amarrou as pontas do lençol e experimentou o peso
do próprio corpo. O ferro agüentou; deu um salto, e
conseguiu subir, valendo-se apenas dos braços, até alcançar
o primeiro arco. Tinha a impressão de que os braços lhe
estavam sendo arrancados das articulações; embora sem
fôlego, prosseguiu e, erguendo-se quanto pôde, atingiu o
terceiro arco; em seguida, encolhendo as pernas, apoiou os
pés no primeiro. Esperou um pouco, para recobrar o fôlego,
e principiou a subir. Subiu, subiu, e o coração lhe caiu aos
pés. Acima da sua cabeça, via agora uma tela de aço, que
fechava toda a abertura da torre. Ser-lhe-ia impossível enfiar
sequer o braço por ela, pois as malhas eram muito estreitas;
com uma acerba sensação de desapontamento, tornou a
descer e escorregou pelo lençol até o chão.
Não havia escapar desse jeito. Desfez o nó do lençol e
recolocou-o na cama, manchado de ferrugem e rasgado nas
pontas. Trouxe o rifle de volta consigo. Entusiasta também
do tiro ao alvo, conhecia o mecanismo da arma. Tirando o
magazine, encontrou-o inteiramente carregado. Ali, pois,
estava alguma coisa; a sua confiança aumentou, embora
rezasse para nunca precisar utilizar aquela arma contra o
louco que dormia tão sossegado lá em cima. Valer-se-ia do
rifle apenas para assustá-lo numa emergência.
Voltou ao improvisado lavatório e ergueu os olhos. O dia já
vinha rompendo, e ela tomou uma súbita resolução. O
homem se mostrara quase normal, tal e qual o conhecera, e
Leslie imaginou que aquilo fora apenas um intervalo, e
haveria momentos em que ela teria de atirar para salvar a
vida. Silenciosamente, subiu a escada, com o rifle na mão,
ouviu-o mexer-se e, logo depois, a voz estridente
perguntando:
— Onde é que você vai? Volte para trás, sua megera!
Ergueu a coronha do rifle e empurrou com força e pedra que
servia de calço. A laje voltou ao seu lugar e,
instantaneamente, ela fez girar a pesada viga que a mantinha
travada. Ouviu-o espernear e gritar lá em cima; ouviu,
trêmula de horror, as ameaças que, supunha, nenhuma
língua humana seria capaz de proferir; desceu, cambaleante,
os degraus, e caiu.

CAPÍTULO LV

Um alto funcionário da Scotland Yard havia chegado e
estava entrevistando Dick na biblioteca.
— A culpa é toda minha. Eu sempre soube que meu irmão
era excêntrico e, há cerca de um ano, me persuadi de que o
horrível traço de loucura que a sua pobre mãe lhe transmitiu
estava progredindo de maneira que só poderia ter um fim.
Supliquei-lhe que consultasse um médico, mas ele odiava os
médicos. Eu trouxe os melhores alienistas de Londres sob
vários pretextos, às vezes disfarçados em intendentes, outras
em possíveis compradores da nossa propriedade mas, em
presença deles, ele se portava tão sensatamente que me foi
impossível conseguir um atestado.
"A minha posição era muito delicada Sou, como o senhor
sabe, o herdeiro da propriedade. Qualquer medida que eu
tomasse teria por conseqüência dar-me a posse dela e, mais
tarde, quando o pobre Harry morresse, pois um médico me
afirmou que ele morreria dentro de poucos anos, eu seria
estigmatizado como o seu verdadeiro assassino, e a minha
preocupação era salvar o nome da família. O meu maior
receio era que ele viesse a casar."
— O senhor não poderia ter contado tudo isso à moça?
Dick permaneceu em silêncio por algum tempo.
— Neste caso, não. Havia razões por que...
E o funcionário, compreendendo vagamente, mudou de
assunto.
— Então, era o senhor o Abade Negro?
— Na maioria das vezes, — confessou Dick. — Meu irmão
tinha pavor do Abade e não sairia de casa se soubesse que a
Abade Negro andava por perto. Eu ambicionava
principalmente retê-lo em casa, onde, sob as minhas vistas,
ele não teria oportunidade de entregar-se aos extraordinários
paroxismos que realmente alarmaram a região. O homem
que os aldeões temiam e que chamavam de Abade Negro
era, efetivamente, Harry. Sempre fui um Abade Negro
muito quieto, — ajuntou Dick, com um pálido sorriso, — e
não tinha outro propósito senão conservar meu irmão em
casa. Embora deva dizer que nem sempre fui feliz.
— Receio que a verdade terá de divulgar-se agora, — disse o
funcionário, sacudindo a cabeça.
— Eu bem quisera que se tivesse divulgado na semana
passada, — replicou Dick, amargamente.
— Na sua opinião, seu irmão é o responsável pelo
desaparecimento da Srta. Gine?
— Sem dúvida nenhuma. Ele deve tê-la atraído à janela
persuadindo-a a descer para o jardim. Harry era muito
convincente; ninguém o julgaria jamais fora do seu juízo
perfeito, senão, eu, que vi — respirou fundo — o que vi. E,
no entanto, sob certos aspectos, é um esportista, foi um dos
melhores atiradores da Inglaterra quando rapaz, grande
corredor, e um sujeito maravilhoso nos esportes ao ar livre,
até cerca de oito anos atrás, quando* o micróbio do tesouro
lhe invadiu a cabeça e ele se afastou de todos e se entregou
de corpo e alma a essa caça maluca.
— O ouro?
Dick sacudiu a cabeça.
— Não. Se fosse apenas o ouro, teria sido um interesse-
inteligente em sua vida.
Descreveu a busca do elixir, a famosa Água da Vida, citada
pelo antigo Chelford em seu diário.
— Não será, provavelmente, mais que um frasco de vinho
nativo... araca, ou coisa que o valha, — disse Dick. — Pobre
Harry!
A Srta. Wenner se declarara decidida a partir pelo primeiro
trem da manhã, mas mudara de idéia. É possível que a
chegada de Fabrian Gilder a tivesse influenciado nesse
sentido. E ela possuía uma solução para o desaparecimento
de Leslie.
— Vocês revistaram a abadia? — perguntou, não uma, senão
uma dúzia de vezes.
Dick estava cansado; a abadia fora o seu primeiro
pensamento. Suspeitara de que fosse aquele o esconderijo de
Harry, levara-lhe pessoalmente uma cesta de provisões, mas
vira depois que a cesta não fora tocada.
Havia uma possibilidade em relação à caverna subterrânea, a
saber, a segunda porta, e ele ordenara ao ferreiro e ao seu
ajudante que estivessem na torre de pedra às duas horas da
tarde, com instrumentos, um dos quais teria de ser trazido
de Londres.
De repente, Dick viu folhas caírem de uma moita de lourei-
ros e ouviu um estrondo. Um dos policiais que ainda estava
patrulhando o jardim gritou para ele, mas, não podendo
ouvir o que o homem dizia, correu-lhe ao encontro.
Chegando mais perto, viu-o apontando para as ruínas.
— Veio de lá, — gritou o policial, e Dick mudou de direção.
Ele estava voando ladeira acima quando soou outro tiro e,
desta feita, localizou-o com precisão. Alguém atirava da
torre.
Felizmente, ele fizera preparativos para a visita do ferreiro, e
havia uma série de lampiões perto da entrada. Deteve-se o
suficiente para acender um deles, puxando o trinco para trás
com o canivete, empurrou para o lado a pedra angular e
desceu correndo a escada. Não havia ninguém na sala.
Experimentou a porta misteriosa; essa também estava
fechada. Alguém lhe gritou o nome do patamar, em cima, e
ele respondeu:
— Desça, Gilder. Não há ninguém aqui.
Gilder desceu a escada com cuidado e olhou à sua volta com
os olhos penetrantes e astutos. Em seguida, lembrando-se,
apontou para a laje.
— Já experimentou isto? Eu pretendia dizer-lhe antes.
— O que é?
— Não sei, mas tudo faz crer que a pedra gira sobre um pivô.
Se for esse o caso, haverá vigorosos suportes por baixo, que
precisarão ser cortados.
Gilder escarranchou-se no chão, o ouvido colado à fenda.
— Não há nada audível aqui, — disse ele. — Mas você não
está sentindo um cheiro?
Aplicou o nariz à fenda.
— Há um lampião de querosene queimando lá embaixo, ou
que esteve queimando recentemente.
Deitado no chão, Dick aspirou o ar.
— De fato, — concordou. E chamou: — Leslie!
Moita. Tornou a chamar, com idêntico resultado.
Gilder subiu a escada e examinou as ferramentas que tinham
sido trazidas para a investigação da tarde. Escolheu duas
serras e outro lampião. E, depois de acendê-lo, desceu para
junto de Dick.
— Há de ser, de certo, um suporte de carvalho; os antigos
construtores raramente usavam ferro, — observou.
Tirando o paletó, arregaçou as mangas da camisa. A lâmina
fina da serra trabalhava entre as pedras e, volvido algum
tempo, ele entrou a serrar com muito cuidado.
— É madeira, — confirmou. — Você verá que a sua parte
também é.
Ambos trabalhavam na mesma ponta, pois, como ele
assinalara, haveria apenas uma viga, estando a outra ponta da
pedra cortada de viés para ajustar-se à borda do piso. A
madeira parecia rocha, de tão dura, e os dois homens
transpiravam antes de haver serrado a metade do suporte.
Pouco depois, Dick retirou a sua serra. Cortara o carvalho e
ouvira cair a extremidade solta. Poucos segundos depois, a
serra de Gilder transpôs o último obstáculo. Cautelosamente,
colocou o pé sobre a borda, fez pressão para baixo, e a tampa
de pedra se abriu.
Os dois olharam para a caverna escura; o cheiro do lampião
era pungentíssimo. Dick abaixou a sua luz e perscrutou a
sombra. Não encontrou sinal de vida humana. Viu a
extremidade de uma cama, uma mesa e, no chão, um rifle.
Desceu a escada e, balançando o lampião à sua volta,
chamou:
— Leslie!
Um eco zombeteiro voltou-lhe da cavernazinha, na
extremidade mais remota da câmara. O lugar estava vazio; o
homem e a mulher que, cinco minutos antes, haviam
travado uma luta sem misericórdia, haviam desaparecido.


CAPÍTULO LVI

— Leslie!
Tornou a chamar, a voz rouca de ansiedade. Vira dois
sapatinhos ao pé da cama. O chapéu dela caíra ao chão,
amassado, informe. Pegando o rifle, tocou-lhe o cano; ainda
estava quente e, debaixo da torre, havia quatro cartuchos
vazios. Em seguida, erguendo a lanterna, viu os arcos de
ferro espetados na superfície áspera da parede, e concluiu
que ela escapara por ali. Um minuto depois, saltava e,
agarrando o primeiro arco, subiu os demais até o topo, sem
fazer conta de uma ou duas rachas ominosas que o peso do
seu corpo produziu na parede, ao nível dos arcos. A grade
no topo o deteve. Vira-a, mas cuidara poder removê-la.
— Eles não podem ter saído por aqui, — disse, sem fôlego,
ao voltar para o chão.
Gilder coçou o cabelo grisalho.
— Mas, então, por onde diabo terão ido? — perguntou,
irritado.
Vasculharam cada polegada do comprido aposento,
afastaram a cama da parede mas, debaixo dela, só
encontraram um sólido pavimento de pedra. A mesa se diria
pregada no chão; não conseguiram movê-la.
— Você não está notando nada neste piso? — perguntou
Gilder de repente. — Não é horizontal.
Prestando atenção, Dick percebeu que o outro tinha razão.
O piso se inclinava gradualmente para baixo, a partir da
caverna onde havia água, até a parede atrás da escada. Gilder
saiu à procura de um martelo, e os dois, agora reforçados por
Puttler e pelo homem da Scotland Yard, percorreram cada
polegada de parede e de chão, percutindo e ouvindo. Não
encontraram nenhum lugar oco. Os quatro homens
agarraram o lado da mesa e tentaram erguê-la, mas o mesmo
teria sido tentar mover a própria parede. Ela possuía uma
grossa base de carvalho, da qual subiam três pilares que
sustentavam o tampo, pesadíssimo.
Para Dick, era claro o que acontecera. A jovem tinha sido
atacada e, tendo descoberto aquela nesga de céu, apoderara-
se de um rifle e atirara, para chamar a atenção. Depois fora
subjugada e... quê?
A água descia por uma frincha cavada na rocha sólida, de
uns quinze ou vinte centímetros de largura. Era impossível
que algum ser humano tivesse descido pela greta estreita
mas, para maior garantia, ele mandou quebrar as bordas da
rocha cavada pela água. A esse tempo, o ferreiro estava
esperando lá em cima. Dick lhe pedira que trouxesse as
ferramentas; a segunda porta talvez apresentasse alguma
solução.
Durante meia hora trabalharam com macacos e alavancas,
até rebentarem a fechadura e abrirem a porta. Surgiu diante
deles uma sala semelhante, na forma e no tamanho, àquela
que Mary Wenneir descobrira; com uma diferença: lá não
havia bancos de pedra e no centro do cômodo via-se uma
abertura circular. Dick ajoelhou-se ao pé dela e abaixou o
lampião; ouviu o manso rumorejar da água, e viu a luz
refletida a uma distância considerável.
— Um poço, — disse ele. — Todas essas velhas construções
têm um poço interno. Há um na Torre de Londres, no
centro do calabouço.
A sala fora usada como prisão num período distante. A
intervalos, das paredes, pendiam correntes enferrujadas,
presas a peias de ferro. Num dos cantos viu um monte de
frangalhos, vislumbrou um osso de uma alvura de leite e
estremeceu. Qual seria a história desse pobre desgraçado que
fora arrancado à luz do sol de Deus para morrer
miseravelmente, naquele lugar escuro e medonho?
— Bem, não há nada aqui, — disse Gilder, lançando os olhos
em torno de si.
Dick amarrou o lampião à extremidade de uma corda e fê-lo
descer, lentamente. A uns nove metros de profundidade,
pelo que lhe foi dado calcular, o lampião tocou na água. Os
velhos construtores tinham construído esplendidamente. As
paredes verdes, cobertas de mato, pareciam intactas. E,
nesse momento, o seu coração quase parou. Via adiantar-se
uma mão, saída aparentemente da sólida alvenaria do poço,
uma mão branca em que cintilava um brilhante solitário, que
ele conhecia muito bem. E, vinda de baixo, ouviu uma voz
abafada; na sua agitação, porém, a corda que segurava o
lampião escorregou-lhe da mão e caiu dentro d'água.
Em sua fúria, ele maldisse em voz alta a própria negligência
criminosa.
— Dêem-me outro lampião! — gritou, e, puxando o que
caíra na água, desamarrou-o, jogou-o para um lado e atou em
seu lugar o lampião aceso que Puttler lhe entregou. — E
arranjem uma corda... depressa.
Mas a corda mais próxima estava na Mansão de Fossaway.
Dick fumegou de impaciência e teria tentado descer pelas
próprias paredes traiçoeiras do poço se Puttler não o tivesse
impedido.
Após uma eternidade, um dos detetives voltou correndo
com uma corda. Deixando cair uma ponta, prenderam a
outra a uma alavanca, que colocaram atravessada entre os
batentes da porta aberta. Dick escorregou pela corda, com a
alça do lampião presa entre os dentes. As paredes do poço
estavam úmidas e escorregadias e, pouco depois, ele chegava
ao lugar em que vira a mão da moça.
Era um pequeno respiradouro retangular, de uns quinze
centímetros por dez. Tentou devassá-lo com a ajuda do
lampião, mas não enxergou coisa alguma senão a áspera
parede de rocha. Chamou a jovem pelo nome, mas não
obteve resposta, e a palavra "Leslie" voltou-lhe, ecoando, do
interior.
Viu, então, que os respiradouros ocorriam a intervalos
regulares, Os dois primeiros estavam escondidos por plantas
aquáticas pendentes, mas eram visíveis por quem estivesse
abaixo deles. Do outro lado da construção de pedra havia
uma espécie de galeria natural, e ele se lembrou de ter
ouvido que, num período remoto, a abadia fora construída
sobre uma antiga catacumba inglesa. Muito provavelmente,
cada uma das aberturas representava um "patamar", ou o
lugar em que alguma escada espiralada natural tocava na
parede em seu giros.
Ele fizera com a corda um laço tosco para o pé e os outros
lhe passaram uma alavanca na ponta de outra corda. Com
isso, Dick atacou o buraco na parede, mas viu-se empenhado
numa tarefa impossível. Somente um explosivo alargaria o
diâmetro daquelas aberturas. Estava quase morto de fadiga, e
os companheiros tiveram de içá-lo para que ele pudesse
descansar um pouco. Puttler ansiava por descer, mas Dick
insistiu em que voltassem a arriá-lo. Desta feita levou
consigo uma vara, à cuja ponta amarrara uma lampadazinha
elétrica. O fio corria ao longo da vara, que era um pedaço de
bambu, e terminava numa pequena bateria, guardada em seu
bolso. Ele ligou a luz e enfiou a lâmpada através da abertura.
Via agora a parede, que julgara de rocha natural, grosseira-
mente lavrada, mas não distinguiu mais do que uns trinta
centímetros de chão de cada lado. Retirando a vara,
introduziu a mão, porém não conseguiu tocar outra coisa
senão a parede externa do poço.
— Cuidado! — O grito de aviso era de Gilder e vinha de
cima. Ele retirou a mão rapidamente.
— Afaste-se da parede... empurre com os pés! — berrou
Gilder.
Dick viu, num relance, uma mão suja projetar-se por um dos
respiradouros, viu o reluzir do aço e sentiu ceder a corda à
medida que os fios, um por um, iam sendo cortados. Depois,
com um estalido, a corda se partiu e ele foi caindo, caindo,
até que as águas pungentemente amargas o engoliram.
O rapaz tocou o fundo com os pés e, imprimindo um
impulso ao corpo, voltou à tona outra vez. Sentia-se gelado
até a medula dos ossos. Viu a lanterna descer na sua direção
e ouviu a voz de Gilder:
— Segure-se na corda o suficiente para manter-se à super-
fície.
Silenciosamente, obedeceu. Tinha os olhos no respiradouro,
como Puttler, que deitado de bruços no chão, a cabeça e os
ombros além da borda, cobria com o seu revólver o lugar de
onde surgira a mão.
Atiraram-lhe a ponta cortada da corda. Alcançando-a, ele
conseguiu agarrá-la, porém não com força suficiente para
subir por ela. A cãibra lhe atacara as pernas. O frio
paralisante da água era assombroso e, em dado momento, o
medo lhe deu a impressão de que a sua vida acabaria
miseravelmente naquele buraco escuro. Não via onde apoiar
os pés em nenhum dos lados e, se não o acudissem logo,
conheceu que não conservaria os sentidos por mais tempo.
Quase ao seu alcance estava a mais baixa das pequenas aber-
turas, mas não lhe pareceu valer a pena procurar alcançá-la.
A corda do lampião servia para mantê-lo à tona d'água, e o
calor do pavio que ardia era o seu único conforto.
— Dick! — Ouviu o próprio nome sussurrado com selvagem
intensidade. — Dick, segure a minha mão!
A mão que lhe era oferecida saiu do respiradouro inferior.
Com grande esforço, ele estendeu o braço e alguém lhe
agarrou o pulso. Nisso, perdeu os sentidos.
Quando voltou a si estava deitado ao ar livre; o calor dos
raios do sol deixavam-no sonolento.
— Onde está Leslie? — perguntou, forcejando por soerguer-
se sobre os cotovelos.
Os outros o olharam, perplexos, imaginando que ele
estivesse delirando.
— Como foi que eu saí?
— Gilder desceu para buscá-lo quando o viu cair.
— Mas Leslie me pegou pelo pulso, — disse ele, exaltado. —
Ela estava lá... você não viu, Puttler?
Puttler sacudiu a cabeça.
— Eu o vi segurando-se na parede no momento em que
chegava a corda nova, e Gilder desceu para buscá-lo.
Dick estava lívido.
— Vocês não viram? Vocês não ouviram?
Fazendo um esforço para levantar-se, passou a mão pela
testa. Estivera sonhando? Seria aquilo parte do delírio da
morte, que quase o levara? Mas tinha certeza, tanta certeza
quanto de qualquer outra experiência humana que já tivera.
A mão de Leslie saíra da parede e lhe agarrara o pulso. Vira
cintilar o brilhante à luz do lampião e depois não se lembrara
de mais nada. Mas fora Leslie. Ainda lhe sentia a pressão dos
dedos sobre a pele. Não estivera sonhando. Em algum lugar,
nas profundezas da terra, estava a mulher que ele amava e
não podia salvar. Cobriu o rosto com as mãos e, por um
momento, os seus ombros estremeceram convulsivamente,
como os ombros de um homem que soluça.

CAPÍTULO LVII

Em pé no interior da torre, Leslie deu um tiro para o ar. O
projétil bateu na grade de ferro e ricocheteou com um silvo
colérico, que se diria o zumbir de uma abelha. Nenhum som
lhe veio do aposento superior. Se conseguisse atrair Dick
para as ruínas, poderia indicar-lhe a sua posição. Mas Harry
tinha um rifle! O pensamento gelou-lhe o sangue nas veias.
Ela talvez tivesse atraído o rapaz para a morte.
Por um momento pensou em afastar a laje que impedia a
comunicação com o cômodo superior e forçar a passagem
ameaçando-o com o rifle. Mas era tarde demais Logo lhe
ouviu a voz, cavernosa e distante.
— Leslie!
Ela subiu um degrau para poder ouvi-lo melhor.
— Eles vêm vindo, Leslie. Você lhes dirá que eu não a
maltratei. não dirá?
— Sim, sim, — replicou ela, ansiosa.
Ele não disse mais nada depois disso, até que ela ouviu um
arrastar e um bater de pés acima da cabeça, e o ouviu dizer:
— Olá, Dick, meu velho! Espero não ter dado muito trabalho
a você.
Ouviu, em seguida, um som prolongado e indistinto, que
poderia ter sido uma voz. Em sua ansiedade, empurrou o
suporte de carvalho; dali a um segundo, a pedra se afastou e
ela subiu os últimos degraus da escada. Não enxergava nada;
o lugar estava completamente às escuras.
— Dick! — chamou.
Nesse momento, Harry agarrou-lhe a mão e ela
compreendeu, horrorizada, que todo o arrastar de pés e toda
a conversação haviam sido apenas uma farsa representada
por ele.
Ainda estava segurando o rifle, mas antes que pudesse
levantá-lo, ele o agarrara e lho arrancara das mãos. Ela ouviu
a arma cair com estrépito no chão do aposento inferior.
Quase inconsciente de medo e terror, já se debatia com
menos energia. Ele a segurava nos braços e a sua força era
surpreendente.
— Vamos lá para baixo, minha querida, — murmurou ao
ouvido dela. — Finalmente conheço a verdade! Então, é
Dick que você quer, não é? Querido Dick!
Ele ria-se mansamente ao arrastá-la para o topo da escada.
— Vai descer ou prefere que eu a empurre? — perguntou,
em tom tão normal que parecia estar dizendo qualquer coisa
sobre o assunto mais corriqueiro do mundo.
Com joelhos trêmulos ela desceu os degraus para o aposento
iluminado, e ele a seguiu, detendo-se apenas para travar
firmemente a pedra.
— Sente-se. — Apontou para o banco ao pé da mesa e ela
sentou-se incontinenti. Tinha o rosto lívido; as suas últimas
reservas de coragem estavam praticamente esgotadas. —
Você me magoou de maneira imperdoável, Leslie, —
prosseguiu ele, com os olhos solenes fitos nos olhos da
jovem. — Compreende o que fez? Tratou com desprezo
Harry Alford, décimo oitavo Conde de Chelford, Visconde
de Carberry, Barão Alford.
Com a solenidade da criança que recita uma lição, repetiu os
títulos que possuía, incluindo uma remota baronia da
Aquitânia, que os Chelfords haviam possuído num passado
longínquo. Senhoreou-a a estranha sensação de achar-se em
presença de um juiz, ouvindo os termos de uma acusação
por um crime hediondo que cometera.
— Você tentou por em perigo a minha vida; conspirou com
aqueles que me odeiam; manteve, atraiçoadamente,
comunicação com os meus inimigos e os confortou.
Havia outras acusações, que teriam soado igualmente
ridículas em outras ocasiões, que a teriam deixado furiosa,
mas ela preferiu poupar as forças para a luta iminente.
O rifle dele estava encostado aos degraus, mas ele lhe
barrava a passagem com o corpo. Circunvolvendo os olhos à
procura de uma arma, não viu outra coisa senão o lampião,
pesado demais para ser usado.
— Para você, — rematou ele num tom de profunda gravi-
dade, — só pode haver um castigo: a morte!
Antes que a garganta seca da jovem pudesse emitir um som,
ele se arremessou a ela, empurrando-a contra a borda da
mesa. Ela puxou violentamente a mão dele, mas não
conseguiu arredá-la de si. Aquilo era a morte! Um barulho
ensurdecedor nos ouvidos, uma luz ofuscante diante dos
olhos; Leslie estava perdendo a consciência. Nisso, sentiu a
mesa mover-se, a princípio, lentamente, depois tão depressa
que ela perdeu o equilíbrio. A grande mesa deslizava no
sentido longitudinal, na direção da parede. O aperto da mão
dele afrouxou-se e, naquele instante, ele soltou-a; Leslie
estendeu a mão, porém não encontrou coisa alguma. Ouviu
um baque e um gemido e deu um passo à frente — em
pleno espaço. Não viu a caverna hiante diante de si. Fez um
esforço desesperado para recobrar o equilíbrio, agarrou-se à
borda dura do piso ao cair e entrou a escorregar, a
escorregar, por uma escada que estalava e se quebrava
debaixo dela, até que os seus pés tocaram algo mole e fofo.
Acima da sua cabeça ouviu um som prolongado e profundo,
um baque macio, e o silêncio.

CAPÍTULO LVIII

Harry estava inconsciente. Ela sentiu-lhe o rosto, e os seus
dedos tocaram uma substância quente e úmida.
Não enxergava coisa alguma; a escuridão era impenetrável.
Nenhum som vinha do cômodo de que ela caíra. O piso era
grosso, a pesada base de carvalho da mesa, que deslizava —
sobre roletes, imaginou ela, tão eficientes quanto o haviam
sido centenas de anos antes, quando o Abade Negro
encontrara essa oportuna saída — voltara ao seu lugar. Se
ela, ao menos, tivesse uma luz! Acudiu-lhe a idéia de revistar
o infortunado Harry. Pouco depois encontrava uma caixa de
prata cheia de fósforos. Riscou um deles e olhou à volta.
Jaziam os dois no pé do que fora antigamente uma escada de
madeira. Os degraus estavam quebrados, o corrimão
pesadamente entalhado apodrecera, deixando duas brechas
abertas. A metade dos degraus sumira, a outra metade
acabara de quebrar-se com a sua queda.
Harry estava estendido num recesso aberto na rocha sólida,
e à direiía e à esquerda havia uma estreita passagem, por
onde corria água. Ela saiu da alcova e acendeu outro fósforo.
A passagem era tão tortuosa que só se via um metro, se
tanto, em cada direção. Poças de água parada enchiam as
cavidades do solo; longas pencas de fungos cinzentos, que
lembravam cachos de uvas, pendiam do teto. Sem embargo,
o ar era suave. Vinda da passagem à esquerda, uma branda
corrente de ar lhe acariciou o rosto. Mas como ainda não
pudesse investigá-la, voltou para junto de Harry.
Imaginou, a princípio, que o homem inconsciente
carregasse dois lampiões, mas verificou que o segundo
pacote era uma lanterna de reserva. Acendeu a luz e
examinou o teto acima da escada quebrada. Notou que era a
parte inferior de uma grossa prancha de madeira. De onde
estava, via os roletes sobre os quais corria a mesa: robustos
cilindros de carvalho. Perto da parte superior da escada, dois
grandes cabos de madeira, semelhantes à coronha de
enormes pistolas Browning, projetavam-se para baixo, e ela
conjeturou que serviriam para mover a mesa dali de baixo.
Quando tornou a olhar para Harry, ele tinha os olhos
admirados voltados para cima.
— Que aconteceu? — perguntou.
— Devemos ter caído por um alçapão, — explicou ela. —
Você acha que pode alcançar aqueles cabos? — E mostrou-
os.
Ele ergueu-se em pé com movimentos inseguros, recolocou
os óculos, que lhe haviam caído no tombo, e olhou para os
cabos. Somente dois degraus permaneciam intactos.
Experimentou um, mas este se quebrou debaixo dos seus
pés.
— Não consigo alcançá-los. Devem estar a mais de três
metros de altura.
Nesse momento, observando-lhe o ferimento, fê-lo sentar-
se e pensou-o com um pedaço de seda arrancado da barra da
saia.
— Como diabos chegamos a este lugar infernal? — pergun-
tou ele, intrigado. — Onde estamos?
- Debaixo da abadia, — retrucou ela, e o sobrecenho dele
terminou numa careta de dor.
— Onde está Dick?
— Acho que está lá em cima.
E, afinal, por que estaria ali o rapaz? Ele não saberia encon-
trar o caminho da câmara inferior, pensou ela, com o
coração opresso.
— Você pode andar?
Ele espraiou os olhos em derredor, consternado.
— Andar eu posso, mas para onde?
— Vamos experimentar primeiro a passagem da esquerda, —
sugeriu ela, e ele concordou.
À primeira volta, Leslie se deteve. Distinguira um bruxulear
de luz e, fazendo uma inspeção, encontrou um buraco
retangular, aparentemente talhado na rocha; a extremidade
mais distante estava coberta de uma vegetação pendente, e
através dela, Leslie distinguiu perfeitamente a luz, um leve
brilho amarelo. Prosseguiram na escalada e, logo depois,
chegaram a outra pequena abertura. Aqui, portanto, estava
uma das fontes de suprimento de ar, se bem pouco ar
chegasse por ali, pois quando a jovem acendeu um fósforo
diante do respiradouro, a chama quase não oscilou.
— Até onde teremos de ir? — perguntou Harry com voz
fraca. — Estou exausto.
— Precisamos continuar, — disse ela. — Isto,
provavelmente, nos levará a algum lugar, ao ar livre.
Ele descansou a mão sobre o ombro dela e, caminhando
devagar, deram mais uma volta completa da tortuosa
passagem. Dessa vez, encontraram um respiradouro não
coberto pelo mato. A luz agora era mais forte e, olhando
pela abertura, cuidou ver uma corda balançando. E ouviu
também qualquer coisa — vozes. Não era ilusão; alguém
estava falando a uma distância imensa, segundo lhe pareceu.
Tornou a olhar. A corda parecia muito próxima, porém,
quando ela enfiou a mão pela abertura e tentou agarrá-la,
conheceu que tinha sido vítima de uma ilusão de ótica.
Chamou, mas não obteve resposta. Devia ter imaginado as
vozes.
Nesse momento ouviu um grito distante e a luz amarela que
brilhara à entrada se apagou.
— Não posso ir mais longe. — Harry, que se encostara à
parede, escorregou por ela abaixo e foi cair sentado, com a
cabeça sobre o peito.
— Não faz mal que eu o deixe no escuro? — perguntou
Leslie.
Ele sacudiu a cabeça com ar cansado e, deixando-o, ela
continuou a subir, até dar consigo numa passagem reta e
estreita.
Compreendeu que estava passando debaixo do Aterro, o alto
barranco que acompanhava o curso do Ribeirão dos Corvos.
Que pés ligeiros haviam passado por ali? perguntou a si
mesma. Que de medos ou esperanças, desejos ou desesperos,
haviam corrido ao longo daquele áspero chão de pedra?
Inconscientemente, estivera reconstruindo uma antiga
relação de causa e efeito. O efeito levou-a a estacar. No meio
da passagem erguera-se uma parede; sólida barreira de
alvenaria, que impedia qualquer progresso.
Embora não soubesse, nem pudesse adivinhar, ali estava o
obstáculo que o vingativo Senhor de Chelford construíra
depois de mandar o seu assassino matar o homem que o
desonrara. Não mais se ouviriam os passos leves de frágeis
mulheres ao longo da passagem secreta, e depois que Ivone
de Chelford morrera com o coração dilacerado, nenhum pé
de mulher voltara a agitar aquele pó.
Leslie voltou, sentindo que a coragem principiava a faltar-
lhe. Aproximando-se do sítio em que o deixara, ouviu o riso
manso de Harry e a sua pele se arrepiou.
— Leslie, Leslie! — murmurou ele, ansiosamente. — Você
não faz idéia da sorte que eu tive!
E quando a luz da lanterna dela o envolveu também, ela viu
o Harry exaltado de sempre.
— O que acha você que aconteceu?
Ela, agora, tinha consciência de vozes. Ouviu um grito e
ouviu uma resposta fraca mas, por fraca que fosse,
reconheceu a voz. Era a voz de Dick.
— Que aconteceu? — perguntou, depressa.
Ele curvou-se, sacudido pelo riso silencioso, e por um
momento não pôde falar. Em seguida, mostrou-lhe a faca.
— Com isto, — disse, envaidecido. — Eu o vi descer.. e
quando a corda chegou bem perto... eu poderia tocá-la.
Então, lembrei-me de que trouxera a minha faca, estendi a
mão e, antes que eles pudessem içá-lo, cortei-a.
Ela o fitou, horrorizada.
— Estava alguém na corda? — perguntou, contendo a res-
piração.
Ele assentiu gravemente a cabeça.
— O arqui-inimigo da raça humana, — respondeu em tom
sóbrio, — Richard Alford.
Petrificada de terror, ela aproximou o ouvido do
respiradouro e ouviu Dick falando. Logo, sem uma palavra,
disparou pela descida abaixo. Deu voltas e voltas pela
passagem circular até sentir-se quase tonta. Pouco depois,
chegou ao respiradouro inferior, estendeu a mão e arrancou
a vegetação que obstruía a abertura.
— Dick, Dick! — chamou ela.
Via-o agora, pois o respiradouro ficava logo acima do nível
da água. O rosto dele estava cinzento e tenso.
Ela estendeu a mão e, pouco depois, fechou-a em torno do
pulso gelado do rapaz. Naquele momento, porém, a mão de
Harry caiu sobre o seu ombro e ela foi arrastada para trás.
Sentiu o pulso escorregar, ouviu o esparrinhar da água no
momento em que Dick caiu, e perdeu os sentidos.

CAPÍTULO LIX

Voltou a si e viu tudo tão escuro que não pôde acreditar que
os seus olhos estivessem abertos senão depois de sentir as
pálpebras. Não ouvia som algum. Estava deitada sobre o chão
duro e irregular em que caíra, pensou, mas, quando
estendeu a mão à procura do respiradouro, os seus dedos
tocaram a rocha áspera. Tateando ao redor, à cata da
lanterna, nada encontrou. Logo depois, entretanto, esbarrou
numa superfície lisa e fria. Era a faca de Harry, uma faca de
mola, de lâmina comprida.
Sentia-se cansadíssima. O piso tosco lhe arrebentara as meias
de seda e os seus pés se achavam terrivelmente machucados.
Esperou algum tempo antes de acender o primeiro fósforo,
pois a caixa já estava pela metade. Percebeu que se
encontrava numa parte do sistema subterrâneo que não
conhecia. O teto era mais alto; as paredes bojavam como os
lados de uma ampulheta, e o piso havia sido grosseiramente
pavimentado. A intervalos parecia haver nichos, alcovas, na
parede, e ela se lembrou dos túneis suíços com os seus
nichos de segurança. Não havia sinal da lanterna;
evidentemente Harry a levara consigo ao sair. Entretanto,
não era do seu feitio deixá-la assim; nem mesmo no seu
delírio ele o teria feito, pensou ela.
Quando o palito de fósforo acabou de queimar-se, ouviu
passos hesitantes que reecoavam na passagem. Fechou a
faca, enfiou-a no bolso e esperou. Ele devia estar muito
longe dali quando ela o ouviu pela primeira vez; a passagem
atuava como um grande megafone.
— Você está bem, Leslie? — Ele voltara a ser o Harry de
todos os dias. — Sinto muito ter precisado deixá-la, mas este
lugar me assusta e precisei andar por aí para ver se
encontrava uma saída.
— Onde estamos?
— Não sei. Carreguei-a até aqui por aquele miserável troço
circular, e você pesava como o diabo, — ajuntou ele, tão
ingenuamente, que a moça riu pela primeira vez naquele
período de horror. — Sabe, Leslie, — prosseguiu Harry,
acocorando-se no chão ao lado dela, — tenho uma idéia.
Lembra-se daqueles buracos pelos quais espiamos?
— Sim, lembro-me deles, — disse ela, conjeturando o que
viria depois.
— Sabe que estão colocados ao lado de uma espécie de poço?
Nem uma palavra sobre Dick. Já lhe esquecera o corte da
corda e o horror que se lhe seguira.
— Porventura já lhe ocorreu, — continuou ele, — que o
tesouro pode estar no fundo do poço? Essa idéia só me
acudiu há poucos minutos. Se pudéssemos sair daqui e
conversar com Dick, ele é um diabo tão engenhoso que
certamente encontraria a abertura do poço, dentro talvez da
própria abadia. A maioria desses edifícios medievais tinha
um poço no centro e conservava fechado o seu suprimento
de água.
— Você não encontrou saída?
— Não. Meti-me numa espécie de labirinto e tive a
impressão de que não sairia mais dali. Misericórdia! Olhe
para os seus pés!
Eles estavam, de fato, em lastimosa situação, inchados e
sangrando. Num abrir e fechar de olhos, Harry tirou os
sapatos.
— Ponha-os, — disse, em tom autoritário, e quando ela quis
protestar, agarrou-lhe o pé e enfiou-o no sapato. — Fui um
grande corredor no meu tempo, — ajuntou, com certo
orgulho na voz, — e correr descalço era a minha
especialidade, para usar uma horrível expressão teatral.
Os sapatos eram grandes demais para ela, mas quanto
conforto ofereciam depois de andar descalça naquele chão
tão áspero!
— Há um lugar que não explorei, a passagenzinha lateral da
esquerda. Houve ali uma espécie de desabamento e as
rochas parecem podres. Não me animei a tentar a
exploração. A propósito, por que foi que você desmaiou? —
inquiriu ele, abruptamente.
— Não sei... acho que foram os meus nervos.
Seria inútil e até perigoso contar-lhe o que acontecera ao pé
da parede do poço.
— Imaginei que fosse isso. Mas se já se sente melhor agora,
poderemos continuar.
Ele ia na frente, ligando e desligando a lanterna, a intervalos.
Queria economizar as baterias, explicou, que já tinham dado
sinais de cansaço. Durante o tempo todo, falou sem parar.
Tinha planos para o futuro da abadia e entusiasmava-se ao
expor o seu projeto.
— Isto aqui não é nem uma toca anglo-saxã; provavelmente
remonta aos dias dos habitantes originais da Grã-Bretanha,
— disse ele. — Estamos palmilhando caminhos
originalmente talhados por homens das cavernas. Isso não a
emociona, Leslie?
— Terrivelmente, — retrucou ela, com inconsciente ironia.
— Mandarei iluminar este lugar; será necessário aumentar o
suprimento de eletricidade, mas Dick se encarregará disso.
Poderei apresentá-lo à nação ou aos Comissários
Eclesiásticos... Ainda não sei a quem. Não há dúvida de que,
de um ponto de vista arqueológico...
Ele assim falava e ela o seguia, às vezes prestando atenção, às
vezes com o espírito absorto em seus dolorosos
pensamentos. Estaria Dick a salvo? Tinha a certeza de que
ele não estava só; havia homens no topo do poço e eles o
salvariam. Não era possível que Dick morresse naquele lugar
escuro, que a sua vida esplêndida terminasse tão
tragicamente. A caminhada era cansativa, pois não cessavam
de subir. Já deviam ter percorrido cerca de quatrocentos
metros quando ele se deteve.
— Aqui está a passagem lateral, — anunciou, e advertiu-a:
— Não entre; as pedras ainda estão caindo.
Projetou a sua luz no interior da cavidade — não era mais do
que isso — e ela viu um monte de rocha caída no meio do
caminho. Entre a parte superior do monte e o teto havia
apenas espaço suficiente para uma pessoa passar de rastros.
Mas o que ela notou instantaneamente foi a forte corrente
de ar que lhe soprou no rosto quando parou para olhar pela
abertura.
— Deve ser este o caminho, Harry, — disse, incontinenti; -
você não está sentindo o ar?
— Já notei, — conveio ele, mas relutava em entrar no atalho
pouco promissor.
— Você precisa ir, Harry, — instou a jovem. — Estamos
descendo cada vez mais, e cada vez mais longe da abadia.
Como você mesmo disse, daqui para a frente é apenas um
labirinto que nos leva sempre de volta ao lugar de onde
saímos.
— Está certo, — acedeu ele, com evidente desprazer. — Mas
é melhor eu ir na frente.
Arrastou-se, cauteloso, sobre a pilha de pedras e escorregou
do outro lado.
Ela ouviu-lhe a voz.
— Aqui está bom, — disse ele. Em seguida, aclarou-lhe o
raminuo e ela o seguiu.
A passagem era muito alta; tratava-se de uma fissura natural
da rocha. Não obstante, a mão do homem devera ter andado
por ali, pois o piso tinha sido nivelado, e havia vestígios de
vida animal. Uma longa forma preta esgueirou-se pelo
caminho e desapareceu num buraco. A jovem soltou um
gritinho e recuou.
— Não é nada, é apenas uma doninha, — acudiu Harry,
calmamente. — E aonde chega uma doninha, chegaremos
nós.
A passagem tornara-se mais larga, e agora patenteava o
trabalho do homem. Estavam numa câmara quadrada: o teto,
de pedra abaulada, parecia bojar para baixo, como se
sustentasse um peso superior à sua capacidade, mas isto era
escondido pelas longas estalactites, que cintilavam à luz da
lanterna. E ela estremeceu. Estava tão frio, que teve a
impressão de haver entrado numa câmara frigorífica.
— Nem porta, nem passagem. Eu gostaria de saber qual foi a
idéia deste lugar.
Era a primeira câmara feita pela mão do homem que eles
tinham visto. Úmidas e brilhantes, as paredes ressumbravam
água; do teto gotejava a água sem cessar, mas apenas uma
poçazinha se juntara no chão; o resto se dispersava e,
aparentemente, voltava à rocha sólida.
— Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, —
recitou Harry e apontou para o piso e para a sua pequena
depressão em forma de pires.
Não havia sinal de porta em nenhuma das entradas, e ele
seguiu à frente da moça pela entrada arqueada, andou alguns
metros, e parou, olhando para cima.
— A luz do sol!
A primeira coisa que ela teve consciência foi o calor que,
longe da camarazinha, tornava a sentir.
Haviam chegado ao fundo de um poço seco, que era uma
fissura natural. De onde estavam, viam os lados ásperos da
rocha projetando-se a intervalos. Em alguns pontos, a
abertura do poço era tão ampla que permitia a passagem de
um homem adulto; em outros, apenas um braço teria podido
introduzir-se entre as projeções rochosas. Mas lá estava ela,
uma visão clara do céu, e a jovem observou um fenômeno
que os mineiros conhecem, a vista de uma alva e trêmula
estrela à luz do dia.
— É daqui que vem o ar, — disse Harry. — Agora vamos ver
aonde nos conduz esta passagem.
Descobriu que ela conduzia a uma parede de rocha. Os dois
se entreolharam no escuro.
— Precisamos voltar.
Mal havia ele pronunciado essas palavras quando se ouviu
um fracasso distante, o piso debaixo dos seus pés
estremeceu, e a passagem pela qual haviam chegado à Sala
Fria inundou-se de poeira.
— Espere, — disse ele, e saiu correndo.
Minutos depois, voltava. Ela só pôde ver-lhe o rosto através
do reflexo da luz da lanterna projetada sobre o solo.
— O teto caiu, — disse ele, e a voz lhe tremia. — Ou muito
me engano, Leslie, ou estamos liquidados.

CAPÍTULO LX

— Durante muito tempo desconfiei que a rocha sobre a qual
fora construída a abadia estava cheia de passagens. Meu pai
me disse qualquer coisa a esse respeito, e já vi um velho
plano, que mostrava um sistema complicado de corredores,
mas a família sempre supôs que isto se devesse, em grande
parte, à imaginação do artista, — disse Dick.
— E você tem o plano agora? — perguntou Gilder.
Dick sacudiu a cabeça.
— Harry levou consigo todas as coisas dessa natureza,
quando saiu de casa.
— Não estará entre os livros que o senhor encontrou na
câmara subterrânea? — acudiu Puttler.
Fez-se uma busca na biblioteca, mas sem êxito.
Estavam a caminho das ruínas quando Puttler avistou o
avião. O aparelho descreveu dois círculos sobre o lugar onde
estavam, e a seguir principiou a descer.
— Creio que esse sujeito vem vindo para cá, — disse ele.
E vinha mesmo. O avião ainda rugiu por uns cem metros ou
mais e, em seguida, aterrou. Logo depois, viram descer um
homem. Embora trouxesse na cabeça um capacete de
aviador, Dick reconheceu-o. Era Artur Gine.
Gine enfrentou o sobrecenho de Gilder com uma
gargalhada.
— Tenho algum dinheiro seu, Gilder, — disse ele, e arran-
cou, com certa dificuldade, um enorme pacote do bolso do
casaco de couro. — Esta é, mais ou menos, a quantia que lhe
devo, a não ser que tenha havido alguma depreciação do
franco depois que saí de Paris. E agora faça o que quiser!
Gilder recebeu o pacote sem dizer uma palavra, e Artur
voltou-se para Dick Alford.
— Li a respeito de Leslie nos jornais franceses, — disse ele
simplesmente, — e por isso voltei. Ela já foi encontrada?
Dick sacudiu a cabeça.
— Você tem alguma idéia do lugar onde ela está?
Dick contou-lhe tudo o que acontecera naquela tarde, e
Artur Gine ouviu-o em silêncio. Quando Dick falou em
dinamite, ele objetou:
— Estudei um pouco de engenharia antes de entrar para a
Faculdade de Direito, e posso dizer-lhe, baseado nos meus
conhecimentos elementares da ciência, que você,
provavelmente, fará explodir todo o poço e, se houver
alguém do outro lado, que Deus o ajude!
Acompanhou-os à câmara do poço e desceu com a corda
para fazer uma inspeção. Quando voltou à superfície, o seu
relatório não foi muito animador.
— Pelo que vejo, — disse ele, — se bem possamos alargar a
abertura de qualquer um desses respiradouros, poderemos
também provocar um desmoronamento de rocha no
interior. Estamos lidando com superfícies que foram
expostas à ação química do ar.
Desceu e inspecionou o aposento inferior, que era novo para
ele e. como os outros tinham feito, tentou puxar a mesa para
um lado. Depois, fez o que os outros não tinham tentado;
empurrou a mesa por uma das extremidades e sentiu-a
mover-se, a princípio devagar, depois mais depressa, como
se tivesse colocado em movimento um contrapeso. Teve
apenas o tempo suficiente para saltar sobre a mesa e agarrar-
se à sua borda quando a abertura apareceu debaixo dos seus
pés.
Dick viu a escada quebrada e, sentado na borda do buraco,
deixou-se cair sobre o chão de pedra no momento em que a
pedra, deslizando, voltava ao seu lugar. Os outros tornaram a
empurrá-la e calçaram-na, e Artur e Gilder juntaram-se a ele
lá embaixo, carregando lampiões. Ele viu qualquer coisa mais
escura no chão e apanhou-o. Era um pedaço de seda.
— Este é o caminho, — disse, calmamente. — Eu irei pela
esquerda: vá você pela direita, Gilder.
Artur fez um rápido cálculo mental.
— A passagem esquerda o levará até o poço, e ou estou
muito enganado, ou você encontrará os respiradouros à sua
direita. Irei com você, se não se importa.
Os homens galgaram o aclive traiçoeiro e chegaram ao
primeiro respiradouro; em seguida, continuaram subindo,
até alcançarem a passagem reta, pela qual Leslie fizera a sua
infrutífera jornada. Também se viram detidos pela parede, e
desandaram o caminho percorrido. Não havia sinal de Leslie
nem de Harry mas, quando Dick passou pela alcova onde
caíra ao saltar da sala do Abade, encontrou um palito de
fósforo queimado.
Tornou a subir, numa longa e firme escalada.
— Estamos perto da superfície do solo, — disse Artur.
A frente deles surgiu o lampião de Gilder. Estava voltando
para encontrar-se com eles.
— A passagem termina numa espécie de labirinto, — relatou
ele. — Há uma passagem lateral, mas totalmente bloqueada
pela rocha.
Voltaram com ele ao local e Artur Gine examinou os
destroços.
— O teto caiu aqui, — calculou. — E é impossível dizer há
quanto tempo. Esta pedra é velha mas, no meu entender, o
desmoronamento vem-se processando há anos.
Dick emergiu, à luz do sol que transmontava, com o rosto
desfigurado branco de poeira. Artur sentou-se numa pedra, a
cabeça entre as mãos, numa personificação do desespero. O
próprio Gilder perdera a calma habitual e não fazia outra
coisa senão olhar tragicamente para as ruínas, que ocultavam
tanta coisa. O arco quebrado das janelas, avermelhado à luz
do sol poente, era, mais do que nunca, um ponto de
interrogação. Havia naquilo tudo o que quer que fosse
demoníaco, qualquer coisa que resumia o espírito que os
olhava malignamente e zombava deles:
— Vamos voltar para casa, — disse Dick e, para o intendente
que se aproximara: — Não, não vou querer a dinamite... por
enquanto.
Caminharam, desalentados, pelo Aterro, e Artur Gine, o
mais deprimido de todos, fechava a fila. De repente,
ouviram-no gritar e voltaram-se. Ele estava apontando para
o outro lado do rio.
— O que foi? — perguntou Dick, correndo ao seu encontro.
— O poço dos desejos... você não tinha pensado nisso? —
replicou Artur, contendo a respiração.
— O poço dos desejos?
E Dick lembrou-se, então, do ponto de encontro dos
namorados da aldeia, a fenda insondável na terra em cujo
interior, quando menino, atirara pedras, ouvindo-as bater de
rocha em rocha até que o ruído delas se extinguia.
— Aquilo vai dar em algum lugar, — voltou Artur. — Po-
demos tentar, pelo menos.
Dick correu para a margem, atirou-se na água e vadeou o
ribeirão. Os dois homens o seguiram, e qualquer coisa
murmurou no coração de Dick Alford que aquela era a sua
última esperança.

CAPÍTULO LXI

— Que horas são? — perguntou Harry.
Fazia duas horas que ele não abria a boca; mantinha-se
sentado, segurando os joelhos, a cabeça inclinada para a
frente, perdido nas syas alucinações.
— Empreste-me a lanterna.
Ela devolveu-lhe a lanterna.
— Um quarto para as sete, — disse Leslie. — Harry, estou
sentindo tanta fome...
— Você? — perguntou ele, surpreso. — Pois eu não sinto
fome, sinto... Não sei.
Dali a pouco, voltou a falar.
— Como foi que chegamos aqui? Sei que o teto desabou, mas
como chegamos a este lugar miserável?
— Você esteve muito mal, — disse ela, delicadamente. —
Veio para cá enquanto estava mal.
— Ah, foi? — Ele pareceu assombrado com a resposta e não
tornou a falar durante cinco minutos. — Parece que me
lembro agora de ter estado mal. Tenho o sono tão agitado e
sonhos tão horríveis! O pobre Dick vivia a azucrinar-me por
causa dos meus remédios patenteados... é um cara gozado, o
velho Dick, mas é um grande sujeito.
Ele falava com tanta sinceridade, com tamanho entusiasmo,
que o coração dela se confrangeu por alguma razão
desconhecida.
— Teremos de sair daqui, — disse Harry.
Ela não lhe respondeu.
Pela décima vez ele acendeu a lanterna e examinou o teto.
— É abobadado, — murmurou. — Espero que nada aconteça
neste lugar.
Ela notou que ele tremia.
— Nada vai acontecer, Harry, — sobreveio, procurando
apaziguá-lo. — Vamos sair daqui e vamos dar um vastíssimo
jantar para comemorar o nosso salvamento.
Ele riu-se mansamente.
— Nunca sairemos, — tornou, prazenteiro. — Este ó o fim
da Casa de Chelford. — Pensou por alguns instantes, e
prosseguiu: — Mas é claro que não! Dick, naturalmente,
herdará a propriedade Não é estranho, Leslie, que ele jamais
consentisse no meu casamento? Essa é a única coisa a
respeito de Dick que não consigo entender, porque ele não
é ciumento, nem invejoso, mas um sujeito bom, de enorme
coração... e, no entanto, não queria que eu me casasse. Não
lhe parece estranho?
— Não creio que você tenha razão, Harry, —
contemporizou ela. — Ele só não queria que você se casasse
com a mulher errada.
— Mas ele não queria que eu me casasse com você, — insis-
tiu Harry, já indignado. — E se existir no mundo uma moça
melhor do que você, eu gostaria muito de conhecê-la! É
verdade que sou '' um tremendo comodista, mas...
— Alô!
A voz retumbante parecia vir de alguém que estivesse na
câmara. Ela o sentiu estremecer e, mais uma vez, o seu
corpo frágil foi salteado de tremores.
— O que foi isso? — perguntou, com voz rouca.
— Alô!
A voz soou novamente. Ela tirou-lhe a lanterna da mão e
correu para o lugar onde vira a luz do dia.


— É você, Dick? — gritou a jovem com toda a força dos
pulmões e, logo em seguida, ouviu um rouco "Graças a
Deus!"
E, então, da Sala Fria, rompeu uma explosão de gargalhadas
demoníacas. Era-lhe preciso ainda contornar o perigo mais
grave. Ela estava sozinha com um louco!

CAPÍTULO LXII

Leslie não viu a luz do dia, e supôs que a noite houvesse
caído, até que uma mancha de um vermelho dourado surgiu
acima do lugar em que ela se achava.
— Harry está com você?
— Está, — replicou a jovem. — Um momento.
Voltou para encontrá-lo encolhido contra a parede, e
agarrou-o pelos ombros.
— Harry, — disse, em tom súplice, — eles nos encontraram!
Ele encarou-a com sobrecenho.
— Quem nos encontrou?
— Dick... todos. Agora não precisaremos esperar muito
tempo.
Ele molhou os lábios.
— Dick e todos, — murmurou em tom vago. — Isso é
estranho... eles nos encontraram!
Ela voltou correndo ao poçozinho.
— Você está com fome? — reboou a voz.
— Muita, — respondeu ela. — Mas não faz mal... Ainda
posso agüentar mais doze horas. Estamos numa esoécie de
sala subterrânea. O teto da passagem desabou.
— Qual é o comprimento da passagem? — perguntou Dick
depressa.
Ela refletiu por um momento.
— Uns quarenta metros, acho eu. Não pode ser muito
menos.
— A que distância de vocês está o bloqueio? — E quando a
moça respondeu, ouviu um gemido. — Leslie.
— Sim?
— Vou mandar-lhe uma coisa na ponta de uma corda. É uma
bússola de bolso. Diga-me exatamente o que ela indicar.
A bússola chegou, por fim, amolgada, com o vidro
quebrado. Ela colocou-a no chão.
— Ponha-a onde eu possa vê-la, — pediu ele. — Você tem
luz aí?
A jovem projetou o facho da lanterna sobre o aparelhinho.
— Onde é o norte? Toque apenas o lugar com o dedo. Es-
pere, vou mandar buscar um binóculo.
Dez minutos se passaram, e ele tornou a dizer:
— Agora, mostre-me.
E quando ela indicou o norte, ele perguntou-lhe onde ficava
a caverna.
— Exatamente a oeste, — exclamou a moça, com um trê-
mulo triunfo. — Vocês vão demorar muito para alcançar-
nos?
Ele não respondeu a isso.
— Diga-me a quantos passos você está da bússola.
E quando ela contou os passos e comunicou-lhe o resultado,
o rapaz tornou a gemer.
A essa altura, o engenheiro a quem ele telefonara à tarde já
estava lá.
— A caverna fica exatamente debaixo do leito do rio, —
declarou o engenheiro.
— Não poderíamos alargar este buraco? — indagou Dick.
O outro sacudiu negativamente a cabeça.
— Impossível. O senhor levaria um mês, ou quase, para
chegar até lá. Há uma longa falha na rocha neste ponto, que
explica o curso do rio, — ajuntou ele. — As duas margens
são sólidas; posso assegurar-lhe isso porque o meu
predecessor fez perfurações à procura de água, a pedido do
senhor seu pai.
Dick gemeu. Poderia manter viva a moça durante um mês,
mas a tensão resultante daquela situação acabaria por matá-
la. Nisso a solução ocorreu, simultaneamente, a duas
cabeças.
— Por que não quebramos a represa do Ribeirão dos Corvos?
— disse ele, e Puttler, que tinha a mesma sugestão na ponta
da língua, assentiu em silêncio.
— Exatamente, — disse ele. — Desfaça a obra do seu
antepassado. Desvie de novo o curso do rio para o Prado
Grande... há ali um leito natural para ele!
Às dez horas, ônibus e caminhões ainda subiam a alameda;
carros de báscula, cheios de carrinhos de mão e ferramentas
eram rapidamente descarregados ao lado do aterro. Toda a
região sul de Sussex trabalhava para cortar a represa do
Ribeirão dos Corvos, e o grande aterro ia-se tornando cada
vez menor. Dali a pouco, à medida que as águas subiam,
passaram a cair no leito que haviam deixado centenas de
anos antes e reassumiram o seu curso irregular, derrubaram
um celeiro que fora evacuado à pressa, envolveram as
paredes de um chalé, cujos habitantes tinham sido
removidos a tempo. Pouco a pouco, a água no velho leito
artificial baixou, baixou, até converter-se numa massa escura
de vegetação aquática e formas prateadas, que saltavam in
extremis. Ratões-do-banhado, trutas e lúcios foram atirados à
margem, às pazadas, e o leito do rio atacado por homens que
trabalhavam num ritmo febril, revezando-se de meia em
meia hora.
— Se houver rocha aí, — disse o engenheiro, — estaremos
fritos! Na minha opinião, há apenas areia.
— É cascalho? — sugeriu Puttler.
— Não, senhor, não há cascalho. É um fato curioso, mas
nunca se achou cascalho no Ribeirão dos Corvos.
Encontraram areia agora, — disse ele, olhando para o
interior da perfuração que os homens estavam fazendo com
troncos de árvores. — E muito me agrada que não haja
cascalho... a areia é muito mais fácil de se trabalhar.
Ele mal pronunciara essas palavras quando o capataz gritou:
— Encontramos cascalho, chefe!
— Cascalho!
O engenheiro desceu pela escada ao interior da perfuração.
— É apenas uma camada, — explicou ao voltar, — mas
mesmo assim é surpreendente. Abre toda a sorte de
possibilidades.
Foi depois que se descobriu o cascalho que a voz de Harry
lhe respondeu.
— É você, Dick? O que é que vocês estão fazendo aí em
cima?
Soava-lhe na voz toda a irritação e toda a rabugice antigas.
Dick descreveu sucintamente o que estava sendo feito.
— Você não poderia mandar-me alguma coisa para eu
trabalhar aqui embaixo? — perguntou Harry. — Tenho a
certeza de que poderia facilitar as coisas para vocês.
Não o querendo contrariar, Dick Alford encontrou uma
pequena alavanca e, com suma dificuldade, conseguiu fazê-
la chegar às mãos do irmão. Por causa da sua forma e do seu
tamanho, a operação foi penosamente lenta, e Harry,
impaciente, fumegava lá embaixo.
— Depressa, pelo amor de Deus, — berrou ele. — Você não
há de imaginar que eu queira ficar aqui embaixo, não é?
Tenho muitíssimo trabalho para fazer... e você sabe disso
perfeitamente, Dick.
Dick não respondeu, mas a sua ansiedade crescia. Conhecia
muito bem Harry e os seus sintomas para ignorar o que
aconteceria se a irritação chegasse a ponto de não poder ser
controlada, e foi com um suspiro de alívio que sentiu a
alavanca presa entre as mãos sôfregas do irmão.
— Use-a com muito cuidado, — recomendou. — Os homens
estão trabalhando aqui de cima e você poderá provocar um
desmoronamento se não tomar a máxima cautela.
Mas ele falava para o vento. Harry se fora e foi Leslie quem
respondeu.
— Quanto tempo vai demorar, Dick? — indagou ela.
— Não sei, meu bem. Algumas horas, quando muito. Você
está bem?
Uma pequena hesitação.
— Estou, estou bem.
— E Harry?
Uma pausa mais longa.
— Acho que sim. Não seria possível mandar alguma coisa
que ele possa tomar?
No princípio da noite, Dick tentara fazer chegar ao par
aprisionado um tubinho de borracha, mas a tentativa
baldara.
— Vou tentar, — prometeu, e saiu à procura de um dos dois
médicos que haviam sido chamados.
Obteve do facultativo duas pilulazinhas castanhas,
embrulhou-as em papel, lastreou-as e deixou-as cair no
fundo do poço dos desejos.
— Obrigada, — disse ela em voz baixa. — Ainda não poderei
usá-las; neste momento, aliás, ele está muitíssimo ocupado.

CAPÍTULO LXIII

Não havia dúvidas quanto à atividade de Harry. Trouxera,
rolando, um pesado matacão dos destroços que bloqueavam
a passagem e, colocando-o no centro do piso, conseguira
alcançar, por seu intermédio, o teto de pedra, formado de
seis setores em forma de pétalas. Removera a lente da
lanterna, de modo que a luz se tornara difusa; e Leslie tinha
uma vista melhor do aposento.
Havia pequenos orifícios, a intervalos, que pareciam haver
outrora encerrado cabides de chapéus, se bem a jovem
tivesse dificuldade em imaginar por que haveria alguém de
descer até ali para dependurar o chapéu. Foi então que lhe
ocorreu à mente a verdadeira serventia daquele cômodo.
Encontrou encostado à parede um gancho longo e
enferrujado, tão fino que seria capaz de quebrá-lo. Aquilo
fora o depósito de carnes da abadia, o equivalente medieval
da geladeira. A atmosfera era frigidíssima. Parecia muito
distante da abadia mas, na realidade, não distaria mais do que
uns cento e cinqüenta metros. Tendo encontrado a caverna,
os. velhos monges tinham-na arrumado, reforçado, forrado
e adaptado ao seu uso. Isso explicava por que o aposento, tão
apartado do edifício principal, recebera a atenção do antigo
arquiteto.
— Dick não tem a menor intenção de libertar-nos. Creio que
você já devia saber disso, — sobreveio Harry.
— Pois eu tenho a certeza de que você está enganado, Harry.
Mas a oposição só servia para exacerbá-lo, e ele voltou,
desabrido:
— Você é uma tonta! Todas as mulheres são tontas! Estou-
lhe dizendo que isto é uma conspiração. Dick tem tanta
intenção de libertar-nos quanto...
Deteve-se, de repente, e passou a mão pelos olhos.
— Eu quisera ter trazido o retrato, — murmurou, e olhou
furioso para ela. — Por sua causa não pude trazê-lo, e agora
ficou lá, para aquele porco divertir-se com ele!
Ela ergueu os olhos para o teto.
— Você está fazendo um ótimo trabalho, Harry.
Havendo-se-lhe distraído a atenção, ele tornou ao teto.
— Confie em mim, Leslie, — disse ele. — Sou a única pessoa
no mundo em quem você pode confiar. Você não tem
inimigos. O Abade Negro está morto! Matei-o e muito me
orgulho disso. Cada Chelford deveria matar, pelo menos, um
Abade Negro, e eu tenho a aprovação do meu ilustre
antepassado.
A essa altura, a ponta da alavanca penetrara fundo na brecha
que ele abrira, e Harry principiou a fazer pressão sobre o
instrumento. Observando-o, ela viu que a pedra se movia.
Esta descaiu, de repente, um oitavo de polegada, e ele gritou,
excitado.
— Veja, veja! — disse, com a voz estridente. — Dick nunca
imaginou que eu fosse capaz de fazer isso pois, do contrário,
não me deixaria usar a alavanca.
A pedra descaiu ainda mais, até ficar perceptivelmente fora
do lugar.
— Tome cuidado, Harry, — advertiu ela. — Isso pode desa-
bar de repente e machucá-lo.
Ele teve o bom senso de perceber que ela tinha razão,
mudou a posição da alavanca e pôs-se a trabalhar do lado
oposto. E então, sem outro aviso, o que Leslie predissera
aconteceu. Ele saltou no momento em que o setor, com
estrondo, despencou lá de cima e foi espatifar-se no chão.
— Veja, veja! — exclamou. — Consegui!
Uma chuva firme de cascalho estava caindo. Harry cutucou
o teto com a ponta da alavanca, e o chuveiro aumentou até
formar um monte no chão.
Nesse momento, viu o ângulo de uma caixa.
— Olhe, olhe, olhe!
As mãos trêmulas mal podiam segurar a alavanca. Com a
energia da demência, vingou retirar o cascalho que ficara
debaixo da caixa e, logo em seguida, agarrando-a por um dos
cantos, puxou-a, livrando-a do cascalho que a retinha. Era
uma arca de lata, miniatura das que ela vira na Mansão de
Fossaway, com uns quinze centímetros de comprimento,
dez de largura e outros tantos de altura. Manejando a
alavanca, ele forçou a fechadura e arrebentou a chapa de
ferro oxidado que a prendia. Dentro encontrou o que
parecia ser uma trouxa de pano desbotado. Retirou o pano da
caixa.
— Aqui há uma coisa pesada, — disse, com voz rouca. As
mãos lhe tremiam tanto que ela, apiedada, se adiantou e
ajudou-o a desembrulhar a coisa que estivera guardada na
arca. Instantes depois, viu o que era: um longo frasco
contendo um líquido incolor. A garrafa tinha a boca coberta
de selos.
Ele arrancou-lha das mãos, com um olhar desvairado.
— O elixir! — grasnou. — A Água da Vida! Oh, Deus seja
louvado!
Leslie procurou arrebatar-lhe o vidro, mas Harry rosnou
para ela como um cão raivoso.
— Demônio! — berrou. — Você está conluiada com Dick!
Estão querendo tirar-me a vida! Mas não o conseguirão, não
o conseguirão!
O frasco fora arrolhado com um pedaço de madeira, que
inchara. Ele meteu-lhe os dentes e, dali a pouco, retirava a
rolha.
— Viverei eternamente! Mas você morrerá! Ele a encontrará
aqui morta, e compreenderá...
Harry levou o frasco aos lábios e bebeu. Ela cobriu os olhos
com as mãos e, quando ele se moveu, empunhou a faca.
Nesse momento, ouviu qualquer coisa precipitar-se
fragorosamente no chão e olhou. O cascalho continuava
escorrendo, como areia em ampulheta, mas algo grande e
pesado despencava com estrondo. Dir-se-ia uma grotesca
vela amarela, mas o seu peso era tamanho que, ao tocar o
pavimento, a primeira barra quebrou-o. Outra se seguiu. Ela
observava, fascinada, à proporção que elas caíam, a princípio
devagar, depois muna torrente, de um espaço triangular do
teto — vintenas, centenas de velas amarelas, a cair com um
ribombo ensurdecedor, às duas e às três, no meio do
cascalho.
— O ouro, o ouro! — berrou Harry. — Mas ele nunca o terá!
Levantou o lampião mas, quando o braço dele se ergueu, ela
se abaixou depressa. Chegou-lhe aos ouvidos o estardalhaço
do lampião ao espatifar-se na parede e ela recuou, agachada,
na direção do poço dos desejos. Ouviu um estampido na
câmara; um setor do teto dera de si e, silvando e se
atropelando, o cascalho e os lingotes vieram abaixo,
enchendo o aposento. As pedras corriam em torno dela
como uma torrente. Leslie forcejou por manter-se acima da
avalancha e sentiu-se cada vez mais engolfada por ela.
— Dick, Dick! — gritou, mas ele não a ouviu.
O rapaz chegara ao teto quebrado da Sala Fria e escorregava
sobre o monte de cascalho, debaixo do qual um homem
morrera antes de libertar-se o alude de pedra. Mais tarde, o
encontraram, segurando um frasco de cristal na mão. E
ninguém soube jamais qual fosse o conteúdo do frasco.

CAPÍTULO LXIV

Quando Leslie Gine despertou, a luz do sol espiava por entre
as cortinas cerradas. Ela sentou-se bruscamente e a cabeça
entrou a girar-lhe, a girar-lhe. Nesse momento,
relembrando, fechou os olhos, como se quisesse afastar uma
visão de horror.
— Oh, você acordou? — exclamou Mary Wenner, entrando,
com espalhafato. — Dick mandou-me saber notícias. Todos
estão terrivelmente preocupados por sua causa... até Fabe,
embora eu não seja ciumenta, como todo o mundo sabe.
— Que horas são?
Nisso, com um estremecimento, lembrou-se de que alguém
lhe fizera a mesma pergunta. Há quanto tempo? Uma
eternidade!
— Meio-dia e trinta e cinco minutos, — respondeu a Srta.
Wenner, consultando o seu relógio. — Estive lá fora
observando os trabalhadores. Francamente, querida, isto
mais parece um terreno que está sendo loteado do que os
jardins da Mansão de Fossaway. Carrinhos de mão, gente
com pás e picaretas, e não sei que mais! Dizem que a
brincadeira vai custar a Sua Excelência vinte mil libras.
Leslie considerou-a assombrada.
— Sua Excelência? — perguntou, com voz abafada.
— Refiro-me a Dick, — volveu a calma Srta. Wenner. — Rei
morto, rei posto! Esse é o meu lema. — Depois, em tom
mais sisudo, e como que corrida da sua falta de coração,
ajuntou: — Pobrezinho! Foi melhor para ele. Fabe regressou
a Londres.
— Quem é Fabe? Ah, sim, o Sr. Gilder! — tornou a jovem,
com um tênue sorriso.
A Srta. Wenner abateu pudicamente a vista para o chão.
— Estamos noivos. Foi tudo idéia dele porque, como você
sabe, Leslie querida, não sou do tipo de moça que se atira aos
braços de ninguém. Mas ele me persuadiu. — E rematou,
suspirando fundo: — Acho melhor assim. Os anos estão
chegando e uma moça não pode continuar bonita para
sempre.
Leslie pôs os pés no chão e levantou-se. Ainda não estava
muito firme, e a dor que sentia nos pés era atroz, a despeito
dos curativos que o médico lhe aplicara.
— Devo dizer-lhe que Artur se portou muito bem, — tornou
a Srta. Wenner, ajudando-a a vestir-se. — Foi, naturalmente,
um grande golpe para ele.
— O quê? — Leslie ainda estava um pouco ofuscada.
— O meu noivado, — disse Mary. — Ah, você não sabia!
Artur gostava muito de mim, eu o reconheço. Mas, em face
das circunstâncias, achei que não ficava bem casar com um
cavalheiro que está de mal com o meu noivo; você não
acha, Leslie?
— Eu não tinha a menor idéia de que houvesse alguma coisa
entre Artur e você, — respondeu Leslie com sinceridade.
A Srta. Wenner voltou a suspirar.
— Muito pouca gente sabia disso. Talvez seja essa a melhor
solução. É o que Artur pensa. Não é como se eu me tivesse
atirado aos braços dele, de modo que não há prejuízo para
ninguém.
Leslie estava calçando um par de chinelos masculinos
quando desceu a ampla escadaria. A porta do escritório de
Dick se achava aberta, e ela o viu sentado numa funda
poltrona de vime, no gramado, com um cachimbo entre os
dentes e uma pilha de documentos sobre os joelhos, que
examinava lentamente, um por um.
Ele circunvolveu os olhos e levantou-se da poltrona ao som
da voz dela. A moça viu-lhe o rosto e ficou impressionada.
— Dick, você parece que tem cem anos de idade!
— Pois eu me sinto como se tivesse mil, — disse ele, e
conduziu-a à poltrona. — Sente-se. Bem, este é o fim,
Leslie... e o começo.
Ela assentiu com a cabeça.
— Creio que conseguimos conservar a parte mais feia da
história fora dos jornais. Pobre Harry! — Havia lágrimas em
seus olhos, que ele não procurou esconder. — Pobre vítima!
— Vítima do quê?
— Da mãe dele, — volveu Dick. — Em momento algum ela
foi normal. O meu pobre pai só veio a descobri-lo depois
que a criança nasceu, e a morte da mulher aliviou uma das
maiores tristezas da sua vida. A outra foi... Harry! Bem,
agora que você conhece os segredos de todos nós, Leslie,
que lhe parece?
— Quem era o Abade Negro? — perguntou ela. E ouviu,
assombrada, a resposta.
— Eu, — replicou ele, serenamente. E contou-lhe tudo o
que havia contado a Gilder. — O estranho é que Harry deve
ter visto o ouro antes de morrer. Como fomos tolos! O diário
nos dizia, com uma clareza meridiana, que o velho Lorde
Chelford escolhera o leito do rio para esconder o seu
tesouro. Fora um ano de seca, o rio estava seco e,
provavelmente, ele encontrara uma grande aberta nesse
leito. Escondera ali o seu ouro e cobrira-o com uma camada
de cascalho, que as águas não levariam.
— Você agora está muito rico, Dick?
Ele assentiu lentamente com a cabeça.
— Creio que sim. Há ainda umas poucas provações e
dificuldades à nossa frente, Leslie querida, mas, quando elas
se acabarem e tudo voltar à normalidade, faremos uma
viagem e ficaremos um ano no estrangeiro, esquecendo-nos
de todas as horas medonhas que passamos.
Ela tomou-lhe a mão entre as suas.


 
 
 
 
 
Lançamento Arcanjo Micael 
O Abade Negro - Edgar Wallace
 
 
 
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
 
 
Sinopse:
 
Qual é o mistério que provoca medo da morte no coração  do jovem Conde de Chelford? Quem é o fantamasgórico e  aterrador Abade Negro que vagueia pelas ruínas de  Chelfordbury? Onde está enterrado o tesouro? Edgar  Wallace jamais criou personagem tão sinistro quanto o  Abade Negro. Esta é uma história de mistério, suspense  e de pavor que emocionará todos os leitores.
 
 
 
 
 
 
 
PASTAS LANÇAMENTOS Arcanjo Micael:
 
http://rapidshare.com/users/KPGYUD
http://www.mediafire.com/?q6ebsi7j6b5cv
 
 
 
 
 
 
 
Este e-book representa uma contribuição do grupo Arcanjo Micael para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor, adquirindo suas obras
 

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