segunda-feira, 19 de novembro de 2012 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livros Loureiro: A Vida e as Extraordinárias Aventuras do Soldado Ivan Tchônkin - Vladímir Voinóvitch

A VIDA E AS EXTRAORDINÁRIAS
AVENTURAS DO SOLDADO IVAN
TCHÔNKIN


VLADÍMIR VOINÓVITCH


Círculo do Livro


PARTE I


1


Pois bem, torna-se impossível dizer claramente se tudo aconteceu
ou não, porque o incidente que pôs todo o caso em movimento
(movimento esse que até recentemente continuara) sucedeu na
aldeia de Krásnoie há tanto tempo que não resta praticamente
qualquer testemunha ocular dessa época. As que existem se saem
com todos os tipos de relatos diferentes e algumas não conseguem
lembrar-se de coisa alguma. Ademais, para sermos fiéis à verdade,
não foi o tipo de incidente do qual alguém se lembraria por tanto
tempo. Quanto a mim, consegui reunir tudo que ouvi falar sobre o
assunto e aduzi um pouco mais por conta própria; talvez tenha
aduzido mais do que me contaram. Mas ao fim fiquei tão
empolgado por esse relato que resolvi escrevê-lo. Se lhe parecer


desinteressante, cacete, ou mesmo tolo, basta cuspir e esquecer que
comecei a narrá-lo.
A coisa aconteceu pouco antes do início da guerra, no final de maio
e início de junho de 1941, em algum lugar por lá.
Era um dia quente comum, típico daquela época do ano. Todos os
kolkhózniks estavam trabalhando nos campos, mas Niúra
Beliachova, que trabalhava no correio e não se achava diretamente
ligada ao kolkhoz1, estava de folga e trabalhava em sua horta,
fazendo leiras para batatas.
O calor era tanto que percorrer o comprimento de três canteiros
esgotara Niúra por completo. Tinha o vestido encharcado nas costas
e sob os braços; onde secara ele se pusera branco e endurecido pelo
calor do suor. O suor caía-lhe sobre os olhos e Niúra parou para
arredar alguns feixes de cabelos negros que tinha sob o lenço e olhar
para o sol a fim de calcular quanto tempo faltava para a hora do
almoço.

Não chegou a ver o sol porque uma grande ave de ferro, o bico
retorcido a encobrir o sol e o resto do céu, vinha diretamente para
cima dela.

— Ai! — berrou tomada de pavor, e cobriu o rosto com as mãos,
caindo desmaiada em uma vala.
Borka, o porco, fossando perto da varanda, tratou de se escafeder,
mas vendo que não corria perigo voltou ao mesmo lugar de antes.
Após algum tempo Niúra se reanimou. O sol lhe esquentava as
costas e ela percebeu o cheiro de terra seca e estrume. Em algum
lugar os pardais chilravam e galinhas cacarejavam. A vida
prosseguia. Niúra ergueu o olhar e viu a terra em torrões abaixo de
si.
"O que estou fazendo, deitada aqui?", pensou, perplexa, e
imediatamente se lembrou da ave de ferro.
1 Kolkhoz: fazenda coletiva, na URSS. Kolkhózniks: os agricultores que fazem parte de um
kolkhoz. (N. do E.)


Niúra era uma jovem educada. Às vezes lia O Caderno do Ativista,
que o organizador do Partido, Kilin, encomendava com
regularidade. O Caderno afirmava em termos totalmente destituídos
de qualquer incerteza que as superstições eram uma herança
do passado obscuro e deviam ser por completo desarraigadas. Essa
idéia se afigurava inteiramente correta aos olhos de Niúra. Ela
voltou a cabeça para a direita e viu sua própria varanda e Borka, o
porco, ainda fossando por ali como antes. Nada havia de
sobrenatural em tudo isso. Borka sempre fossava quando
encontrava o lugar adequado, e mesmo se o lugar não fosse
adequado fossava por lá, de qualquer jeito. Niúra voltou mais a
cabeça e viu o céu de um azul puro e o sol amarelo.
Incentivada, virou a cabeça para a esquerda, e seu rosto baixou no
mesmo instante. Aquela ave terrível realmente existia; lá estava, não
muito longe do jardim de Niúra, asas verdes e grandes espalhando-
se bastante para os lados.
"Dê o fora daí!", ordenou-lhe Niúra, em pensamento. Queria
persignar-se, mas era difícil fazê-lo, pois estava caída sobre o
estômago e tinha medo de se levantar.
Foi quando um pensamento lhe ocorreu como um choque elétrico.
"Está claro, é um aeroplano!" E realmente assim acontecia. O que
Niúra interpretara como sendo uma ave de ferro era um aeroplano
comum, e o que lhe parecera um bico retorcido era a hélice, agora
parada.
Quase raspando o telhado de Niúra o aeroplano tocara o chão,
correra pela relva e viera parar tão perto de Fedka Rechetov que sua
asa direita quase o derrubara. Fedka, um grandalhão de rosto
avantajado e cabeça ruiva, mais conhecido pelo apelido de
"Grandão", estivera cortando a relva com a foice.
Vendo Grandão, o piloto desafivelou o cinto de segurança, inclinou-
se para fora da cabine e gritou:

— Ei, mujique, que aldeia é essa?

Grandão não ficou absolutamente surpreso ou assustado.
Aproximou-se do aeroplano e explicou prontamente que sua aldeia
se chamava Krásnoie, embora costumasse chamá-la de Griáznoie
anteriormente, e que as aldeias de Kliukvino e Nova Kliukvino
faziam parte de seu kolkhoz embora estivessem do outro lado do
rio, enquanto a Velha Kliukvino, que ficava no lado do rio em que
se achavam, pertencesse a outro kolkhoz. Seu kolkhoz chamava-se
Folha Vermelha e o outro era Vorochi-lov. Tinham ocorrido três
mudanças de presidente nos últimos dois anos, lá por Vorochilov.
Haviam trancafiado o primeiro por roubo, o segundo por seduzir
menores e o terceiro, que fora enviado até lá para endireitar as
coisas e que endireitara as coisas por algum tempo de início,
começara a beber e continuara bebendo até beber tudo o que
possuía e todos os fundos do kolkhoz. Finalmente as coisas haviam
piorado de tal maneira que, durante um acesso de D T ¹ e l e fora
enforcar-se, deixando um bilhete com uma só palavra, "Eh",
acompanhada por três pontos de exclamação. Ninguém fazia a
mínima idéia do que esse "Eh!!!" significava. Quanto a seu próprio
presidente, ele também bebia incontrolavelmente, mas não era
ainda
O que alguém pudesse chamar de caso sem esperanças. Grandão
estava prestes a proporcionar ao piloto maiores informações sobre a
vida dos povoados vizinhos, quando começaram a chegar pessoas
correndo.

Como de costume as crianças foram as primeiras a chegar. Vinham
acompanhadas por mulheres às pressas, algumas com criancinhas e
outras grávidas, e muitas com os filhos pequeninos e também
grávidas. Havia até mesmo algumas com uma criança presa às
saias, outra a lhes segurar a mão, um bebê aninhado no braço e mais
um amadurecendo no ventre. Por falar no assunto, em Krásnoie (e

1"Delirium tremens". (N. do E.)


Krásnoie por acaso será uma exceção?) as mulheres se deliciavam
em ter muitos filhos, e estavam sempre grávidas ou haviam
acabado de ter um bebê, e às vezes acabavam de ter um bebê e já
estavam grávidas de novo.
Os velhos e as velhas vieram arrastando os pés em seguida. Depois
os demais kolkbózniks abandonaram o trabalho nos campos
próximos e vieram às pressas, empunhando ainda as foices,
ancinhos e cortadoras, formando uma visão que em muito se
parecia ao quadro Levante dos camponeses, pendurado no clube do
distrito.
Niúra, ainda deitada na horta, voltou a abrir os olhos e se ergueu
sobre o cotovelo.
"Deus", um pensamento alarmante percorreu-lhe o cérebro, "estou
deitada aqui enquanto todos foram dar uma boa olhada."
Pernibamba, as pernas ainda atacadas de medo, Niúra se contorceu
com agilidade, passando pela cerca de trilhos, e disparou em
carreira na direção da multidão que pouco a pouco engrossava.
As mulheres estavam nas fileiras de trás e Niúra as acotovelou para

o lado, gemendo:
— Oi, meninas, deixem-me passar!
E as mulheres abriram caminho para Niúra porque dava para
perceber, em sua voz, que ela precisava estar lá.
Veio depois uma fileira de mujiques, mas Niúra os acotovelou
igualmente, dizendo:
— Oi, mujiques, deixem-me passar!
Finalmente encontrou-se na fileira da frente, bem próxima do
aeroplano. Dava para ver uma faixa larga de óleo que corria por
todo o comprimento da fuselagem e o piloto em seu paletó de couro
inclinado na asa, fitando cheio de confusão a multidão, e girando
seu capacete destroçado e óculos escuros em um dos dedos.
Grandão se achava em pé, ao lado de Niúra. Olhou-a de cima a
baixo, riu e depois disse com ternura:

— Parece que você ainda está viva, Niurka. Pensei que tinha
morrido. Você sabe, eu vi esse aeroplano. Estou lá cortando o feno
quando vejo que ele vem. Bem na direção de seu teto, Niúra, ia
bater na sua chaminé. Depois, eu digo, vai derrubar a velha Niúra.
— Bosta de cavalo! — disse Nikolai Kurzov, em pé à direita de
Grandão
Grandão parou no meio do que dizia, olhou Nikolai de cima a
baixo, tarefa bem fácil para ele, criatura mais alta do que Nikolai, e
depois fez uma pausa para pensar, dizendo:
— Bosta de cavalo vem de cavalo. E eu não sou cavalo. Assim
sendo, cale essa boca e fique com ela fechada até eu dizer que pode
abrir. Entendeu? Não fui eu quem se intrometeu por aqui.
Grandão olhou para a multidão, piscou o olho para o piloto e
depois, satisfeito com a impressão que havia causado, prosseguiu:
— Niurka, aquele aeroplano passou a um dedo de sua chaminé, no
máximo. No mínimo, menos ainda. Se tivesse derrubado sua
chaminé, estaríamos lavando seu cadáver amanhã. Eu não ia ajudar
a lavá-lo, mas Kolka Kurzov ajudaria, com certeza. Ele é muito
curioso nessas coisas de corpo de mulher. No ano passado foi
trancafiado em Dolgov durante três dias por ter entrado no
banheiro das mulheres e ter se escondido sob o banco. É isso
mesmo.
Todo mundo prorrompeu em gargalhadas, embora soubessem que
não era verdade e que Grandão acabara de inventar aquilo, naquele
instante. Quando haviam parado de rir, Stepan Lukov perguntou:
— Grandão! Ei, Grandão! Quando você viu que o avião ia derrubar
a chaminé ficou com medo ou não?
O rosto de Grandão retorceu-se de desdém. Queria cuspir, mas não
havia onde, com tanta gente por ali. Por isso engoliu o cuspe e disse:
— E por que eu iria ficar com medo? O aeroplano não é meu, a
chaminé também não é. Se fosse minha, talvez ficasse com medo.

Foi exatamente quando um dos garotinhos que corriam em meio às
pernas dos adultos rompeu por ali e bateu com um pau na asa,
fazendo-a soar como um tambor.

— O que está fazendo aqui? — gritou o piloto para o menino.
Assustado, o garotinho mergulhou na multidão, mas voltou
momentos depois, desta feita sem o pau.
Tendo ouvido o som que a asa fazia, Grandão sacudiu a cabeça, e
com maldade escondida perguntou ao piloto:
— Isso é coberto de pele de porco? O piloto
respondeu:
— É coberto com percalina.
— O que é isso?
— Uma espécie de tecido — explicou o piloto.
— Engraçado — disse Grandão. — Pensei que era tudo feito de
metal.
— Se fosse tudo de metal — voltou Kurzov a se intrometer — o
motor não conseguiria tirá-lo do chão.
— Não é o motor que o tira do chão, é a força de sustentação —
disse o armazenista Gladichev.
Todos respeitavam Gladichev por sua erudição, mas dessa vez
duvidaram do que ele afirmava.
As mulheres não davam atenção a essas conversas, outra coisa lhes
chamara a atenção. Avaliavam o piloto, olhavam-no diretamente e
debatiam os pontos positivos de sua indumentária, sem se
embaraçarem de modo algum por sua presença, como se ele fosse
um objeto inanimado.
— Meninas, aquela jaqueta de couro é de puro terneiro — declarou
Taika Gorchkova. — Olhem, é até franzida. Dá para ver que não
negam o bom couro a eles.
Ninka Kurzova contrapôs:
— Isso não é terneiro, isso é couro de cabrito.

— Ei, não acredito! — prorrompeu Taika. — Que quer dizer com
couro de cabrito? Couro de cabrito tem borbulhas.
— E o dele também.
— E onde é?
— Vá apalpar e você vê — disse Ninka.
Taika olhou o piloto com expressão de dúvida e proclamou:
—Eu ia apalpar, sim, mas ele deve sentir cócegas.
O piloto corou, cheio de embaraço e sem a menor idéia de como
devia portar-se diante daquilo.
Salvou-o Golubev, o presidente do kolkhoz, que chegava ao cenário
naquele momento em seu carrinho de duas rodas.
Toda a questão viera apanhar Golubev exatamente quando ele e
Volkov, o contador de um só braço, estavam a questionar Vovó
Dúnia sobre a questão da mistura alcoólica que ela fazia em casa. Os
resultados do interrogatório eram evidentes: o presidente desceu do
carrinho com cuidado especial, a ponta da bota procurando devagar
a braçadeira de ferro que estava presa ao lado e servia como degrau.
O presidente estava bebendo com muita freqüência e bastante
ultimamente, à altura do presidente que se enforcara na Velha
Kliukvino. Algumas pessoas achavam que bebia porque era um
bêbado, já outras pensavam que o motivo eram problemas
familiares. O presidente tinha família numerosa — a esposa, que
sofria sempre de problemas renais, e seis filhos, que andavam por
ali sujos, sempre brigando, e comiam muito.
Tudo isso não teria sido tão terrível se, por infortúnio, as coisas no
kolkhoz não estivessem andando mal. Não o que alguém chamaria
de muito mal; podia-se até afirmar que as coisas iam bem, só que
pioravam a cada ano.
De início, quando todos haviam arrastado seus pertences e
empilhado tudo em um só grande monte, tal fora uma visão cheia
de inspiração, e encarregar-se de tudo aquilo parecera idéia bastante
agradável; mais tarde, todavia, alguém pensara melhor e fora

apanhar suas coisas de volta, mesmo que isso não devesse ser feito.
Desde então o presidente se sentia como a mulher velha que haviam
colocado em cima do montão a fim de guardá-lo: as pessoas a
cercavam por todos os lados, agarrando seus pertences de qualquer
maneira; se ela agarrasse um pela mão, imediatamente outro
começava a puxar algo que estava por baixo — ela partia na direção
do segundo e o primeiro conseguia safar-se. O que se pode fazer?
Fora uma vivência dura para o presidente, já que não compreendia
que a culpa não era apenas sua. Vivia na expectativa constante da
chegada de alguma comissão de inspeção — ocasião em que pagaria
por tudo, e pagaria todo o preço. Até então, todavia, haviam
conseguido arranjar-se. De quando em vez diversos inspetores
distritais, examinadores e instrutores vinham de carro e tomavam
vodca com ele enquanto comiam toucinho com ovos, assinavam os
documentos comprobatórios e partiam de carro, e tudo ao mesmo
tempo. O presidente deixara até mesmo de receá-los, mas, como não
era imbecil, compreendia que as coisas não podiam seguir sempre
assim e que um dia uma Comissão de Inspeção de
Responsabilidade Máxima apareceria de repente e resolveria a
questão de uma vez.
Assim é que Golubev não teve a menor surpresa ao tomar
conhecimento de que um aeroplano pousara nos arrabaldes da
aldeia, perto da casa de Niúra Beliachova. Percebera que o dia da
verdade chegara, e se preparara para enfrentá-lo com coragem e
dignidade. Ordenou a Volkov, o contador, que juntasse o pessoal, e
depois de sorver um gole de chá para refrescar um pouco o hálito
montou no veículo de duas rodas e partiu para onde o aeroplano
pousara, decidido a enfrentar seu destino.
Quando apareceu, a multidão abriu caminho, formando um
corredor vivo entre ele e o piloto. Com os passos bem firmes o
presidente rumou para o piloto, estendeu o braço para ele enquanto
se achava a alguma distância.

— Golubev, Ivan Timofêievitch, presidente do kolkhoz

— apresentou-se, sem errar uma só palavra, soprando para o lado a
fim de não se arriscar.
— Tenente Melechko — apresentou-se o piloto.
O presidente ficou um tanto surpreso pelo fato de que o
representante da Comissão Máxima fosse tão jovem e de patente tão
modesta, mas não o deixou perceber e disse:
— Prazer em conhecê-lo. Em que posso ajudá-lo?
— Não tenho certeza — disse o piloto. — Meu tubo de óleo partiu, e
o motor parou. Por isso tive de fazer um pouso forçado aqui.
— Seguindo ordens? — indagou o presidente.
— Que quer dizer com "ordens"? — retrucou o piloto. — Estou lhe
contando que foi um pouso forçado. O motor parou.
"Isso mesmo, isso mesmo, pode vir com essa", pensava Ivan
Timofêievitch enquanto dizia em voz alta:
— Se é alguma coisa no motor, podemos ajudar. Stepan — disse,
voltando-se para Lukov —, dê uma espiada nisso aí e veja o que
pode fazer. Ele trabalha com nossos tratores — explicou para o
piloto. — Sabe desmontar qualquer máquina e montar outra vez.
— Quebrar e consertar são duas coisas diferentes — confirmou
Lukov, tirando uma chave inglesa do bolso lateral da jaqueta suja
de graxa e partindo diretamente para o aeroplano.
— Ei, ei, não, não faça isso. — O piloto tratou de impedi-lo com
rapidez. — Isso não é um trator, é uma máquina de voar.
— Não tem diferença — prosseguiu Lukov, cheio de esperanças. —
O mesmo tipo de porcas nas duas. Você roda para um lado, aperta.
Roda para o outro lado, afrouxa.
— Você não devia ter pousado aqui — disse o presidente —, mas lá
perto da Velha Kliukvino. Eles têm um posto de máquinas e tratores
e uma oficina. Lá poderiam consertar direitinho.
— Quando se faz um pouso forçado — explicou o piloto, cheio de
paciência —, não se escolhe o lugar. Eu vi que o campo não estava
plantado e tratei de descer.

— Nós praticamos o sistema de grama, por isso o campo não está
plantado — disse o presidente a se justificar. — Talvez você queira
examinar os campos e nossos livros. Meu gabinete está aberto para
isso.
— E para que preciso de seu gabinete? — perguntou o piloto, com
raiva ao notar que o presidente continuava querendo chegar a
algum ponto do qual não fazia a menor idéia. — Mas espere um
pouco. Existe um telefone em seu gabinete? Preciso fazer uma
chamada.
— Por que telefonar agora mesmo? — perguntou Golubev,
ofendendo-se. — Primeiro você deve ver o que se passa, conversar
um pouco com as pessoas.
— Escute — implorou o piloto. — Por que está querendo me deixar
doido? Por que devo falar com essa gente? Preciso falar é com meus
superiores.
"Que conversa esta!", observou Golubev para si mesmo. "Trata-me
com educação. Nada de palavrões. Não fala com as pessoas, vai
diretamente aos superiores."
— A seu critério — disse Golubev, o destino pressagiado na voz. —
É só que, a meu ver, não dói conversar com as pessoas. Elas vêem
tudo, sabem de tudo. . . quem esteve aqui, quem disse o quê, quem
andou esmurrando a mesa. Ai, de que adianta falar! — E Golubev,
balançando a mão em desagrado, convidou o piloto a embarcar em
seu carrinho. — Entre, eu o levo lá. Telefone o quanto quiser.
Mais uma vez a multidão abriu caminho. Golubev ajudou
obsequiosamente o piloto a embarcar no carrinho, depois montou,
fazendo com que a mola do lado cedesse e rangesse.
2


Murchando com o calor, a camisa desabotoada e as botas sem graxa
há muito tempo, cobertas por uma camada espessa de poeira, o


Capitão Zavgórodni, oficial de serviço da unidade, estava sentado
na varanda no quartel-general e observava o que acontecia diante
da entrada dos alojamentos, onde a companhia do comandante se
encontrava aquartelada.

O seguinte acontecia por lá: Ivan Tchônkin, soldado baixote e de
pernas tortas do Exército Vermelho, tendo ainda um ano de serviço
ativo a cumprir, a gandola pendurada para baixo na correia e o
quepe cobrindo-lhe as orelhas grandes e vermelhas, as perneiras
mal colocadas e escorregando pelas pernas, achava-se em posição
de sentido diante do sargento-mor da companhia, Peskov, e o
olhava apavorado, os olhos inflamados pelo sol.

O sargento-mor, criatura bem-alimentada, faces rosadas e cabelo
louro, refestelara-se em um banco de pranchas sem pintura, com as
pernas cruzadas e fumando um cigarro.

— No chão! — ordenou o sargento, e não o fez em voz muito alta,
como se não estivesse com grande vontade de emitir essa ordem;
Tchônkin obedientemente jogou-se ao chão.
— Ultima forma! — Tchônkin saltou e pôs-se em pé. — No chão!
Última forma! No chão! Camarada capitão — gritou o sargento a
Zavgórodni —, que horas são em seu relógio de ouro?
O capitão consultou o grande relógio feito nas usinas de Kirov (não
era de ouro, naturalmente, o sargento apenas brincava) e respondeu
ociosamente:

— Dez e meia.
— Tão cedo — lamentou o sargento —, e o calor já mata
a gente. — Ato contínuo voltou-se para Tchônkin. — Última forma!
No chão! Última forma!
Alimov, o ordenança, apareceu na varanda.

— Camarada sargento — gritou —, estão chamando ao telefone.
— Quem é? — perguntou o sargento, relanceando o olhar
malsatisfeito ao redor.

— Não sei, camarada sargento. A voz era tão rouca, parecia alguém
com resfriado.
— Pergunte quem é.
O ordenança desapareceu, passando pela porta, e o sargento voltou-
se para Tchônkin.
— No chão! Última forma! No chão!
Logo o ordenança voltava, caminhava até o banco e, lançando um
olhar cheio de simpatia a Tchônkin, esparramado na poeira,
informou:
— Camarada sargento, estão chamando do banho. Querem saber se
o senhor vai apanhar o sabão ou manda alguém até lá.
— Você não vê que estou ocupado? — disse o sargento, sofreando a
raiva. — Diga a Trofímovitch para apanhar. — E voltou-se para
Tchônkin: — Última forma! No chão! Última forma! No chão!
Última forma!
— Ei, sargento — disse Zavgórodni, agora curioso —, por que faz
isso com ele?
— Este aqui, camarada capitão, este é um palerma e porcalhão — o
sargento apressou-se a explicar, e ordenou novamente a Tchônkin
que se jogasse ao chão. — No chão! Está quase dando baixa e ainda
não aprendeu a fazer continência. Última forma! Em vez de
cumprimentar corretamente, ele abre os dedos até a orelha. E não
marcha, arrasta os pés como se estivesse passeando. No chão! — O
sargento tirou do bolso um lenço e enxugou o suor na testa. — Eles
acabam com a gente, camarada capitão. A gente gasta tempo com
eles, prepara-os, escangalha o sistema nervoso e quase não vale a
pena. Última forma!
— Mande para além do posto — propôs o capitão. — Deixe-o
marchar por lá, de um lado para outro, dez vezes em passo de
parada, fazendo continência.
— Uma possibilidade — reconheceu o sargento e cuspiu o cigarro.
— Muito boa idéia, camarada capitão. Tchônkin, ouviu o que o
capitão disse?

Tchônkin limitou-se a ficar onde estava, ofegante, sem responder.

— Olhe para ele! Coberto de poeira, o rosto imundo; isso não é
soldado, é uma piada de mau gosto. Dez vezes de lá para cá, até o
poste, e. . . — ordenou o sargento de súbito: — marcha rápida!
— É assim — aprovou o capitão, empertigando-se. — Sargento,
ordene que ele aponte melhor o dedo do pé, quarenta centímetros
acima do chão. Eh, que palerma!
Incentivado com o apoio proporcionado pelo capitão, o sargento
ladrava as ordens:
— Suspenda essa perna. Dobre o cotovelo. Dedos na têmpora.
Ainda hei de lhe ensinar como cumprimentar seus oficiais
comandantes. Meia-volta. . . marcha rápida!
Nesse momento o telefone tocou no corredor do quartel-general.
Zavgórodni olhou para lá, mas não se levantou. Não sentia a menor
inclinação a se mexer. Gritou:
— Sargento, olhe, as perneiras se desamarraram. A qualquer
instante ele vai tropeçar e cair. Olhe só, você vai morrer de rir. O
que o Exército tem a ver com um espantalho como esse, afinal, hein,
sargento?
No corredor, entrementes, o telefone tocava mais alto e com mais
insistência. Zavgórodni levantou-se com grande relutância e entrou
no quartel-general.
— Alô, Capitão Zavgórodni falando — disse inquieto ao telefone.
A distância entre a aldeia de Krásnoie e o local do acampamento era
cerca de cento e vinte quilômetros, talvez mais, e a transmissão
telefônica se mostrava a mais abominável. A voz do Tenente
Melechko surgia entremeada de estalidos e música, e foi preciso
grande esforço da parte do Capitão Zavgórodni para compreender
do que se tratava. Desde o início ele não atribuiu a devida
importância à mensagem do tenente e queria voltar ao espetáculo
que o telefonema viera interromper. A caminho do telefone para a
porta, entretanto, o significado do que acabara de ouvir chegou-lhe
à percepção consciente. Compreendendo então o que acontecera,

abotoou a gola da gandola, limpou as botas uma na outra e foi
apresentar-se ao chefe do Estado-Maior.
Zavgórodni bateu à porta com o punho (o chefe do Estado-Maior
tendia um pouco para a surdez) e sem esperar que atendessem
entreabriu-a, cruzou o umbral e gritou:

— Solicito permissão para entrar, camarada major.
— Negada — disse o major em voz baixa e sem erguer o olhar dos
documentos que lia.
Zavgórodni, entretanto, não deu atenção às palavras do major; não
conseguia lembrar-se de um só caso em que o chefe do Estado-
Maior houvesse dado permissão a pessoa alguma para fazer
qualquer coisa.
— Solicito permissão para me apresentar, camarada major.
— Negada — disse o major, erguendo a cabeça e interrompendo a
leitura. — É esse o aspecto que tem, capitão? Não fez a barba, os
botões não foram polidos, as botas não foram engraxadas.
— Vá à. . . — disse o capitão em voz baixa, fitando chistosamente o
major, olho a olho.
Pelo movimento dos lábios do capitão o major pôde compreender
aproximadamente o que lhe fora dito, mas não podia ter certeza, já
que era impossível imaginar tamanha impertinência por parte de
um oficial comum, e assim, fingindo não ter compreendido,
continuou com o que estava dizendo:
— Se não tem dinheiro para comprar graxa na cantina posso dar-
lhe uma lata de presente.
— Obrigado, camarada major — disse Zavgórodni com grande
educação. — Solicito permissão para informar que o motor do
Tenente Melechko pifou e que ele teve de fazer um pouso forçado.
— Pousou? Onde?
— Na terra.
— Pare de fazer brincadeiras. Quero saber precisamente onde
Melechko pousou.
— Perto da aldeia de Krásnoie.

O major encaminhou-se ao mapa pendurado à parede e procurou
por ali até encontrar Krásnoie.

— Mas o que devemos fazer? — Confuso, voltou-se para
Zavgórodni, que se limitou a dar de ombros.
— Você é o chefe, sabe melhor que eu. Em minha opinião, o
comandante do regimento deve ser informado.
O major jamais se distinguira antes por grande coragem ao lidar
com os superiores, e neste momento, devido à sua surdez, receava-
os ainda mais, sabendo que a qualquer instante poderiam transferilo
para a reserva.
— O comandante está ocupado neste instante — decla-rou-—
Dirigindo os vôos.
— O pouso forçado é questão aeronáutica — lembrou-lhe
Zavgórodni. — O comandante devia tomar conhecimento.
— Isso quer dizer que, em sua opinião, está certo perturbar o
comandante, neste caso?
Zavgórodni não disse coisa alguma.
— Mas talvez Melechko possa cuidar de si mesmo de um jeito ou de
outro, não?
— Solicito permissão para me ausentar da unidade, camarada
major. Apresentar-me-ei pessoalmente ao comandante.
— É a atitude correta — disse o major, animando-se mais. — Vá lá
pessoalmente e dê parte do ocorrido. Como oficial de serviço da
unidade você tem esse direito. Mas espere, Zavgórodni, como pode
partir? E se alguma coisa acontecer à unidade, de repente?
Zavgórodni já não lhe dava ouvidos; saíra do aposento e fechara a
porta ao se retirar.
Voltou ao quartel-general cerca de uma hora depois com o
comandante do regimento, Tenente-Coronel Opalikov, e o engenheiro
do regimento, Kudlai. O Tenente-Coronel Pakhomov,
comandante do batalhão e encarregado da manutenção da pista de
pouso, também viera ao quartel-general. Ele e o major haviam

esclarecido algumas questões entre si. Quando Opalikov apareceu,
Pakhomov queria sair, mas Opalikov o obrigou a ficar. Começaram
a discutir que providências tomar. Kudlai afirmou que não havia
motores sobressalentes no depósito e que não poderiam arranjar
outro, com a divisão, em menos de uma semana. Zavgórodni
propôs que as asas fossem despregadas e o aeroplano posto em
veículo e trazido de volta ao acampamento. O major propôs que o
rebocassem, o que provocou um sorriso de desdém de Zavgórodni.
O Tenente-Coronel Pakhomov nada disse, limitou-se a fazer
anotações no caderninho para demonstrar seu zelo no serviço.
Opalikov ouvia-os com desdém. Em seguida levantou-se e
caminhou de um extremo a outro da sala.

— Tendo ouvido e levado cuidadosamente em conta toda a idiotice
que vocês dois, conforme a capacidade individual, acabaram de
propor, chego à conclusão de que deixaremos o aeroplano onde está
até que um motor possa ser levado até lá. Se arrastarmos o
aeroplano até aqui por cento e vinte quilômetros, nada restará dele
senão lenha para o fogo. Enquanto isso será destacado um guarda
para lá, quando mais não seja para impedir que os meninos
saqueiem a nacele. Cuide disso _ordenou, apontando para
Pakhomov.
O Tenente-Coronel Pakhomov colocou o caderninho de anotações
no peitoril da janela e se pôs em pé.
— Desculpe-me, mas não daria certo — disse com grande timidez.
Embora fosse igual a Opalikov em patente e tivesse mais idade,
além de não se achar diretamente subordinado a ele, Pakhomov
considerava Opalikov superior; sabia que Opalikov estava mais
próximo dos oficiais superiores e se tornaria coronel antes dele,
motivo pelo qual o tratava com mais respeito do que recebia de sua
parte.
— E por que não vai dar certo? — perguntou Opalikov, impaciente,
pois não lhe agradavam quaisquer objeções, em momento algum.

— Toda a companhia do comandante já está na segunda semana de
guarda, sem ninguém para rendê-la. — Ato contínuo Pakhomov
apanhou o caderninho e o abriu. — Sete na enfermaria, doze
arranjando lenha, um de folga. Aí temos todos.
— Não há um só homem? Algum vagabundo, qualquer um. Que
fique à toa com o aeroplano, só é preciso que haja alguém por lá.
— Não existe ninguém, camarada tenente-coronel — afirmou
Pakhomov, o olhar tão condoído que se tornava impossível não
acreditar.
— Certo, a coisa parece ruim. — E Opalikov voltou a pensar; de
repente gritou: — Hurra! Já sei! Escutem, você manda aquele. . .
aquele seu soldado fedorento que monta no cavalo.
— Fala de Tchônkin? — perguntou Pakhomov, incrédulo.
— Tchônkin. Naturalmente. Mas que cabeça eu tenho!
maravilhava-se Opalikov, batendo com a palma da mão na testa.
— Mas ele é. . . — procurou objetar Pakhomov.
— Ele é o quê?
— Não vai haver ninguém que traga lenha para a cozinha.
— Ninguém é indispensável — decretou o comandante do
regimento.
Sua afirmação recebeu aprovação e o Tenente-Coronel Pakhomov
não se atreveu a fazer qualquer outra objeção.
3


Caro leitor! Você naturalmente notou que Ivan Tchônkin, o soldado
que ainda tinha um ano de serviço ativo, era baixote, tinha as
pernas tortas e até mesmo orelhas vermelhas. "Mas que figura triste,
essa!", dirá, com indignação. "Que tipo de exemplo é este para a
geração mais jovem? E onde foi que o autor viu um aspas herói
aspas assim? " E eu, o autor, de costas para a parede e pego pela


gola, como dizem, com a mão na botija, terei de reconhecer que
nunca o vi em parte alguma e que o inventei com a minha cabeça,
não para usá-lo como exemplo, mas apenas para passar o tempo.
"Suponhamos que seja assim", dirá você sem acreditar muito, "mas
por que inventar personagens, afinal? O autor não podia tirar um
herói militar da vida real, um estudante alto, forte, disciplinado e
bom de teoria militar e política?" Está claro que poderia fazê-lo, mas
era tarde demais. Todos os bons estudantes já haviam sido
agarrados e só me restou Tchônkin. De início fiquei perturbado,
mas passei a aceitá-lo. Afinal de contas o herói de seu livro é como
seu próprio filho, você usa o que tem, não pode jogá-lo fora. Talvez
os filhos de outras pessoas sejam um pouco melhores, um pouco
mais espertos, mas ainda assim amamos os nossos, ainda mais,
exatamente por serem os nossos.
Antes de entrar para o Exército a biografia de Tchônkin não
continha página alguma que estonteasse e cativasse a atenção, mas
ainda assim parece adequado usar algumas palavras para dizer de
onde ele viera, como a vida o tratara e o que ele fizera antes.
E assim, em certa aldeia perto do Volga viveu certa feita uma
Mariana Tchônkin, camponesa comum e viúva. Seu marido,
Tchônkin, falecera em 1914 na Guerra Imperialista, que, como todos
sabem, mais tarde se transformou em Guerra Civil

e se estendeu por muito tempo. Durante a Batalha de Tsaritsin a
aldeia onde Mariana vivia tornou-se encruzilhada militar usada ora
pelos vermelhos ora pelos brancos, ambos a demonstrar preferência
pela casa espaçosa e vazia de Mariana. A certa altura um certo
guarda-marinha, Golitsin, que tinha relações bastante obscuras com
a ilustre família de príncipes russos do mesmo nome, alojou-se por
toda uma semana no lar de Mariana. Depois abandonou a aldeia e
provavelmente nunca voltou a pensar nela. Mas a aldeia não o
esqueceu. Quando, um ano depois, ou talvez mais (ninguém contou
com exatidão), Mariana deu à luz um filho, toda a aldeia se saiu
com risadinhas, achando que aquilo não poderia ter acontecido sem


o auxílio do príncipe. A bem da verdade, o pastor local, Serega,
também estava sob suspeita, mas foi veemente ao negar tudo.
Mariana deu ao filho o nome de Ivan e o patronímico de
Vassílievitch, tendo em vista o falecido marido, Vassíli.
Os seis primeiros anos de Ivan, dos quais não tinha qualquer
recordação, foram passados na pobreza. Era frágil a saúde da mãe,
que não cuidava bem da casa, mas, ainda assim, eles foram tocando
na maior miséria até que, um dia, ela se afogou no rio. No início do
inverno ela descera ao Volga para enxaguar a roupa e caiu na água.
Foi nessa altura que as recordações de Tchônkin sobre si próprio e o
mundo em volta tiveram início.
Ivan não ficou inteiramente sozinho — foi aceito pelos vizinhos, que
talvez fossem seus parentes, já que seu último nome era o mesmo.
Haviam vivido sem filhos por muitos anos e tinham até pensado em
adotar alguém no orfanato, quando surgiu oportunidade tão
perfeita. Deram a Tchônkin roupas e botas, e, quando cresceu um
pouco, começaram a prepará-lo para o trabalho agrícola. Às vezes
era mandado revirar o feno ou escolher batatas no porão, ou fazer
alguma coisa assim, na fazenda. E lhe pagavam pelo trabalho.
E então, em época que todos conhecem, teve início uma caça aos
kulaks¹ na aldeia. Embora nenhum deles fosse encontrado, tornava-
se imperativo descobrir alguns, quando mais não tosse para
servirem de exemplo. A escolha desabou sobre os Tchônkin, que
exploravam a mão-de-obra, e a mão-de-obra infantil, ainda por
cima. Os Tchônkin foram exilados e Ivan terminou num orfanato
onde, por mais de dois anos, atormentaram-no com aritmética. De
início ele suportou tudo obedientemente, mas quando chegaram a
dividir números inteiros em fração não agüentou mais e deu o fora
1 Camponês abastado que tinha a seu serviço agricultores, antes da Revolução. (N. do E.)

rumo à aldeia natal.


A essa altura crescera um pouco e estava forte o bastante para
apertar barrigueiras de arreio. Deram-lhe um cavalo e mandaram-
no trabalhar numa fazenda de gado leiteiro. Pensando em suas

origens nobres as pessoas diziam a Tchônkin:

— Príncipe," vá selar o Ruano e traga um pouco de estrume.
Ninguém o chamava de "Príncipe" no Exército porque nenhum
deles lhe conhecia o apelido e nada havia de principesco em seu
aspecto que o desse a entender. O comandante do batalhão,
Pakhomov, deu uma olhada em Tchônkin e determinou:
— Para o estábulo.
Escolha perfeita. O estábulo era o lugar adequado para Tchônkin. A
partir de então esteve sempre montado, a carregar lenha e batatas
para a cozinha. Acostumou-se com rapidez ao Exército e
rapidamente aprendeu suas regras fundamentais, quais sejam:
"Quanto menos você fizer, melhor", "Não se apresse a executar
ordens, é bem possível que surja uma última forma", e assim por
diante.
E embora durante todo o seu tempo no Exército Tchônkin não se
tornasse maquinista ou mecânico, como outros de sua idade, teria
ficado inteiramente satisfeito com a vida se não fosse pelo sargentomor.
Tchônkin não era mandado a trabalhos, não tinha de lavar o
soalho dos alojamentos e fora substituído no treinamento de
parada. Praticamente não o viam nos alojamentos; no inverno
dormia geralmente na cozinha e no verão em cama de feno nos
estábulos. Como estava diretamente ligado à cozinha recebia rações
número 5, isto é, o mesmo que o pessoal de vôo. Havia apenas uma
obrigação universal da qual Tchônkin não se encontrava isento —
instrução política.

4


No verão, quando fazia bom tempo, a instrução política era
geralmente ministrada ao ar livre, na orla de um pequeno bosque ao
lado do acampamento. Sempre atrasado, Tchônkin chegara com
atraso, mas dessa feita não por culpa sua. Em primeiro lugar o
sargento-mor o maltratara; em seguida, e no último instante,
Churka, o cozinheiro, o enviara ao depósito para apanhar sémola.
Mas o chefe do depósito não pôde ser encontrado e Tchônkin teve
que percorrer todo o acampamento à cata dele. Já estavam todos
reunidos quando Tchônkin finalmente chegou montado ao bosque.
Sua aparência levou o encarregado de instrução política, o Politruk
Iartsev, a observar com delicado sarcasmo que, tendo Tchônkin
chegado, tudo podia ser considerado em ordem e eles podiam
começar.
Os soldados se haviam sentado em uma clareira relvada em volta
do toco grosso em que o Politruk Iartsev tomara assento.
Tchônkin tirou o bridão do cavalo, prendeu-o a uma árvore
próxima onde podia pastar e escolheu um lugar para si, na frente,
mas a boa distância do politruk. Só depois de se haver sentado e
cruzado as pernas é que Tchônkin olhou em volta. No mesmo
instante percebeu que não podia ter escolhido lugar pior. Bem ao
lado, fitando-o com olhos zombeteiros e azul-claros, achava-se seu
inimigo declarado, Samuchkin. Esse tal Samuchkin jamais perderia
uma só ocasião de fazer sujeira com Tchônkin: no refeitório
Samuchkin misturava o sal com açúcar, e no alojamento (nas raras
ocasiões em que Tchônkin tivera de dormir lá) Samuchkin
amarrava-lhe as calças à gandola de serviço para que assim
chegasse tarde à formatura. Certa feita chegara a ponto de dar a
Tchônkin uma "viagem de bicicleta", entre os dedos do pé do
adormecido Tchônkin seu inimigo Samuchkin colocara tiras de
papel, incendiando-as depois. Por esse motivo Samuchkin recebeu


dois dias de trabalhos a mais, enquanto Tchônkin ficara de cama
por três.
Tchônkin percebeu que estaria muito melhor sentado em um
formigueiro do que ali, ao lado de Samuchkin, de cujo espírito
brincalhão não podia esperar nada de bom.
O assunto a ser examinado era "O caráter moral do soldado do
Exército Vermelho". O Politruk Iartsev apanhou suas anotações da
grande pasta amarela que tinha sobre as pernas, virou as páginas e
fez uma breve revisão do material já estudado.

— Quem quer falar primeiro? Tchônkin? — perguntou, espantado
pelo fato de este ter levantado a mão.
Tchônkin se pôs em pé, puxou a camisa para baixo atrás do cinto, e,
ora sobre um pé, ora sobre outro, fitou diretamente os olhos de
Iartsev. Esse olhar silencioso continuou até que Iartsev não mais o
pudesse agüentar.
— Por que não está resumindo a matéria?
— Não estou preparado, camarada politruk — murmurou Tchônkin
com hesitação, baixando o olhar.
— Por que levantou a mão, então?
— Eu não levantei a mão, camarada politruk. Estava tirando um
besouro da camisa. Samuchkin pôs um besouro nas minhas costas.
— Um besouro? — interpelou Iartsev, a voz cheia de maldade. — E
para que está aqui, Camarada Tchônkin, para estudar ou apanhar
besouros?
Tchônkin não disse coisa alguma. O politruk se levantou e em sua
agitação começou a caminhar de um lado para outro na grama.
— Estamos aqui — começou, escolhendo cuidadosamente as
palavras — para estudar um assunto muito importante: o caráter
moral do soldado do Exército Vermelho. No treinamento político
você, Camarada Tchônkin, está muito atrás dos outros homens, que
prestam atenção ao instrutor em aula. O exame sobre instrução
política está cada vez mais próximo, e o que você vai ter para

mostrar-lhes, quando o exame chegar? E, já que falamos nesse
assunto, Tchônkin, a sua disciplina deixa muito a desejar. Na última
vez em que fui oficial de dia você deixou de se apresentar para a
ginástica. Aqui temos um exemplo concreto de instrução política
fraca que leva a uma direta transgressão da disciplina militar. Sente-
se, Camarada Tchônkin. Pois bem, quem quer falar primeiro?
O Comandante de Esquadrão Balachov ergueu a mão.

— Bem — disse Iartsev —, por algum motivo Balachov é sempre o
primeiro a levantar a mão. E é sempre um prazer ouvir o que ele
tem a dizer. Fez alguma anotação, Camarada Balachov?
— Fiz — reconheceu Balachov, com muita modéstia mas convicto
de seu valor.
— Eu sabia que sim — disse Iartsev, fitando Balachov com evidente
afeição. — Você pode começar.
O politruk voltou a sentar-se no toco da árvore e fechou os olhos
contando com o verdadeiro deleite de resposta correta e precisa que
Balachov lhe proporcionaria.
Balachov abriu o caderno de anotações, tamanho padrão e coberto
de papelão, e começou a ler em voz alta e expressiva, sem usar uma
só palavra que fosse sua.
Enquanto Balachov lia os soldados descobriam modos de passar o
tempo. Um deles escondeu-se atrás das costas de outro e se deixou
levar por Madame Bovary, dois outros jogavam batalha naval,
enquanto Tchônkin se entregou por completo aos pensamentos.
Todos os tipos de pensamentos ocorriam a Tchônkin. Com base em
sua atenta observação e na sondagem das leis da vida Tchônkin
compreendera que geralmente faz calor no verão e frio no inverno.
Mas se fosse de outro jeito, estava pensando, frio no verão e calor no
inverno, nesse caso o verão seria chamado de inverno e o inverno,
de verão. Em seguida um novo pensamento, ainda mais sério e
interessante, veio a Tchônkin, mas passou-lhe pela mente de modo
tão imediato que não deu para apanhá-lo de volta, por mais que se
esforçasse. Saber que perdera um pensamento era algo que causava

grande pesar a Tchônkin. Nesse exato instante recebeu uma
cutucada na ilharga. Olhou e viu Samuchkin, a quem esquecera por
completo. O dedo indicador de Samuchkin fazia-lhe sinal para que
se aproximasse e ouvisse o que lhe tinha a dizer. Tchônkin hesitou.
Samuchkin estava tramando outra coisa. Na presença do politruk
Samuchkin não se atreveria a perguntar-lhe no ouvido, mas podia
cuspir nele.

— O que quer? — perguntou Tchônkin, em murmúrio.
— Não fique com medo — cochichou também Samuchkin,
inclinando-se à orelha de Tchônkin. — Você sabe que Stálin teve
duas mulheres ao mesmo tempo?
— Dê o fora daqui.
— Estou dizendo a verdade. Duas esposas.
— Pare com isso — disse Tchônkin.
— Se não acredita em mim, pergunte ao politruk.
— Que tenho com isso? — replicou Tchônkin, mantendo-se firme.
— Pergunte, pergunte a ele, seja meu amigo. Eu mesmo ia
perguntar, mas podia não dar certo. Na última vez fiz muitas
perguntas.
Tornava-se evidente, com base no semblante de Samuchkin, como
era importante que Tchônkin lhe prestasse esse favor, realmente
muito pequeno. E o bondoso Tchônkin, que não sabia recusar coisa
alguma a ninguém, finalmente cedeu.
Balachov continuava a ler as anotações. O politruk ouvia apenas em
parte, na certeza de que o consciencioso Balachov copiara tudo
diretamente do manual e não ia dizer coisa alguma que fosse
surpreendente. Mas o tempo terminava e Iartsev tinha de fazer
perguntas a outros estudantes. Interrompeu Balachov.
— Obrigado, Camarada Balachov — disse. — Tenho uma pergunta
a lhe fazer. . . por que motivo nosso Exército é chamado de "Exército
do povo"?
— Porque serve ao povo — respondeu Balachov, sem a menor
hesitação.

— Correto. E os exércitos dos países capitalistas, a quem eles
servem?
— A uma classe de capitalistas.
— Correto — disse Iartsev, muito satisfeito. — Foi um prazer ouvilo.
Você pensa corretamente, extrai as conclusões corretas do
material que estudamos. Vou dar-lhe nota "Excelente" e pedirei ao
chefe do batalhão que registre uma anotação de nossa apreciação
em seus assentamentos.
— Eu sirvo ao povo trabalhador — disse Balachov, em voz baixa.
— Sente-se, Camarada Balachov. — O olhar estreito e perfurante do
politruk examinava os soldados sentados à frente. — Quem gostaria
de desenvolver ainda mais os pensamentos do orador?
A mão de Tchônkin se erguera, chamando a atenção de Iartsev.
— Camarada Tchônkin, como deseja que seja interpretado o seu
gesto? Está travando nova batalha com os besouros?
Tchônkin levantou-se.
_ Uma pergunta, camarada politruk.
_ Pode falar.
Um amplo sorriso surgiu no rosto do politruk: a pergunta de
Tchônkin seria simples ou até mesmo estúpida, mas ainda assim,
ele, Iartsev, tinha o dever de descer ao nível de qualquer soldado e
desfazer-lhe a ignorância. Iartsev estava enganado. A pergunta
talvez tenha sido estúpida, mas não era tão simples.


— É verdade — perguntou Tchônkin — que Stálin costumava ter
duas mulheres?
Iartsev se pôs em pé a um salto, como se houvesse sentado em uma
tacha.
— O quê?! — estrugiu, estremecendo de fúria e medo. — O que
disse? Você não vai me meter nisso. — Mas Iartsev percebeu
imediatamente que dissera a coisa errada e parou por completo de
falar.

Os olhos de Tchônkin piscavam, tomados de confusão. Não fazia
idéia do que despertara a fúria do politruk e procurou explicar-se.

— Eu não queria dizer nada, camarada politruk. Eu só queria
perguntar. . . Acabei de ouvir que o Camarada Stálin teve. . .
— Ouvir? Ouvir de quem? — berrou Iartsev, em frenesi. — De
quem, estou lhe perguntando? Você está cantando a música de
outra pessoa, Tchônkin!
Tchônkin olhou desalentadamente para Samuchkin, que examinava
com seriedade as páginas de A história abreviada do Partido
Comunista da União Geral como se todo o incidente nada tivesse a
ver com ele. Tchônkin percebeu que Samuchkin negaria qualquer
referência a si sem, ao menos, piscar. E, embora Tchônkin ainda não
pudesse compreender a raiva inacreditável do politruk, tornava-selhe
claro que Samuchkin o levara a outro passeio, não a um "passeio
de bicicleta" desta feita, mas talvez a um tipo pior de passeio.
Tendo começado a gritar, o politruk não conseguiu mais parar. Ele
arrasou Tchônkin, dizendo que era a tanto que podia levar a
imaturidade política e a falta de vigilância, que pessoas como
Tchônkin eram verdadeiras minas de ouro para nossos inimigos
que estavam sempre à espreita procurando a menor rachadura que
fosse para se infiltrarem e começarem a agitar suas tramas
desavergonhadas; que pessoas como Tchônkin eram uma vergonha,
não apenas para sua unidade e companhia, mas para todo o
Exército Vermelho.
Não se podia imaginar como o monólogo de Iartsev teria acabado se
não fosse interrompido por Alimov, o ordenança. Era evidente que
Alimov viera correndo por toda a distância do acampamento até lá,
pois precisou de bastante tempo para recuperar o fôlego. Ofegando,
rígido na continência, olhou para Iartsev sem dizer uma só palavra,
o que levou Iartsev a perder-se no raciocínio e interrogá-lo:
— O que você quer?
— Camarada politruk, peço permissão para lhe falar — Alimov
conseguiu estertorar.

— Permissão concedida — cedeu Iartsev, voltando a sentar-se
fatigadamente no toco de árvore.
— Por ordem do comandante do batalhão, o soldado Tchônkin é
chamado ao alojamento.
Essa guinada dos acontecimentos veio satisfazer tanto a Tchônkin
quanto a Iartsev.
Ao desatar o cavalo, Tchônkin se amaldiçoava por deixar que o
Demônio se apoderasse de sua língua. A primeira pergunta que
fazia, desde que entrara no serviço militar, e que I ninho de
marimbondos levantava! Tchônkin decidiu com firmeza que a partir
dali jamais faria qualquer pergunta, e assim ' não se meteria em
encrenca tão séria que não mais tivesse saída.
5


O Sargento-Mor Peskov estava sentado no depósito, cortando fatias
finas de sabão com um pedaço de fio marrom, preparando-se para o
próximo dia de banho do regimento. Foi quando o chamaram ao
telefone e recebeu ordens do comandante do batalhão, Pakhomov,
para encontrar Tchônkin no mesmo instante, dar-lhe uma arma e
rações para uma semana e prepará-lo para prolongado serviço de
guarda.
Peskov não fazia idéia do tipo de guarda de que se tratava ou por
que haveria de ser prolongado, mas disse: "Sim, senhor!", porque
estava acostumado a executar as ordens sem fazer perguntas e ao pé
da letra. Enviou o intendente, Trofímovitch, que estivera a ajudá-lo
a cortar fatias de sabão, até o depósito, e despachou o ordenança,
Alimov, para que encontrasse Tchônkin. Feito isso, cortou o resto do
sabão em fatias, limpou as mãos na toalha e sentou-se para escrever
uma carta à noiva, que morava na cidade de Kotlas.


Peskov servira mais dois anos na ativa após a primeira convocação
e queria reengajar-se, mas a noiva não lhe aprovava a intenção. Ela
achava melhor que um homem casado trabalhasse numa fábrica, em
algum lugar, em vez de servir o Exército. O Sargento-Mor Peskov
não concordava com ela, e lhe escrevia:

"E, Liúba, você continua dizendo que a vida civil é melhor que o
serviço militar. Liúba, você não está com a noção correta, porque o
principal para todos os soldados do Exército Vermelho e suportar
todos os encargos e privações do serviço militar. E também treinar
os subordinados. Você sabe que o nosso Pais está cercado pelos
quatro lados por assédio capitalista e nossos inimigos só têm um
objetivo — estrangular a terra dos sovietes e levar nossas esposas e
filhos para a escravidão. Por esse motivo, todos os anos, jovens
soldados, filhos de operários e do campesinato trabalhador, são
convocados para o serviço militar. E nós, veteranos, temos de
transmitir a eles nossa experiência de luta e nossas habilidades
militares. Nossa causa é a preparação da geração jovem. Mas isto é
uma questão muito importante — as pessoas precisam de rigor em
dose diária, porque a gente é decente com elas e elas dão a volta e se
comportam como suínos conosco. Vamos examinar uma família
comum, por exemplo. Se você não cria um filho com rigor, usando a
correia nele, ele cresce e se torna um ladrão ou bandido, e os filhos,
Liúba, são nosso objetivo na vida. E se você não tiver objetivo na
vida pode acabar se enforcando ou dando um tiro na cabeça (veja
Maiakóvski ou Essênin, por exemplo)"

Peskov pôs um ponto no final da frase, mergulhou a caneta na tinta
e começou a pensar no que ia escrever em seguida. Queria unir de
algum modo a questão da família e casamento com aquela da
capacidade de defesa do Estado, mas não percebia ainda como fazêlo.
A essa altura alguém bateu à porta e lhe descarrilhou o trem de
pensamentos.


— Entre — respondeu Peskov.
Tchônkin entrou. O desastre ocorrido na instrução política o
perturbara de tal maneira que se esqueceu até das obrigações
impostas pelo regulamento, como a de dar parte de sua chegada.
Tchônkin, em vez disso, limitou-se a dizer:
— Você me chamou, camarada sargento?
— Eu não o chamei. Ordenei que se apresentasse — corrigiu-o
Peskov. — Saia e depois volte, e dê parte de sua chegada como um
soldado deve fazer.
Tchônkin voltou-se para a porta.
— Última forma! — disse Peskov. — Como é que se faz meia-volta?
Tchônkin quis fazê-lo corretamente, porém, atrapalhando-se, não
parou de voltar-se para a direita. Só na terceira tentativa conseguiu
uma meia-volta que se parecia a algo militar e dessa feita Peskov
finalmente se apiedou dele, deixou-o sair, para voltar e dar parte de
que tinha chegado. Depois enfiou os regulamentos sobre guarda e
serviço de guarnição nas mãos de Tchônkin e o despachou para o
alojamento a fim de aprender quais os deveres de uma sentinela. O
próprio Peskov permaneceu no depósito para terminar a carta, à
qual aduzia novos pensamentos, inspirado no contato com
Tchônkin:
"Assim sendo, Liúba, na fábrica você tem um engenheiro com
educação superior e uns dez a doze homens trabalhando com ele.
Pode dar-lhes ordens para fazer qualquer coisa no trabalho, mas
depois do trabalho, nos dias de folga, não são subordinados a ele e
podem fazer o que quiserem — como diz o ditado, você é o seu
próprio chefe e eu sou o meu. Para nós, no Exército, tal situação é
impossível. Em minha companhia tenho noventa e sete soldados e
subordinados de comando. Posso dar-lhes qualquer ordem a
qualquer momento e eles a executam sem fazer perguntas, ao pé da
letra, a tempo e de acordo com o regulamento e a disciplina militar,
embora eu só tenha estudado até a quinta série".


A essa altura Peskov foi de novo interrompido. A porta se abriu e
alguém entrou no depósito. Julgando tratar-se novamente de
Tchônkin, Peskov disse, sem voltar a cabeça:

— Saia, bata e entre outra vez.
— Bato em você — foi a resposta que recebeu. Peskov voltou-se no
banquinho como um pião, deu um
salto e se pôs em posição de sentido ao mesmo tempo, pois era o
Tenente-Coronel Pakhomov que tinha diante de si.
— Camarada tenente-coronel, durante sua ausência não houve
incidentes na companhia. . . — começou a dizer Peskov, em
continência, mas Pakhomov o atalhou.
— Onde está Tchônkin?
— Mandei-o familiarizar-se com os regulamentos sobre o serviço de
guarda e guarnição — informou Peskov, no melhor estilo.
— Mandou-o para onde? — Pakhomov não entendera.
— Para o alojamento, camarada tenente-coronel — tratou de
explicar Peskov.
— O quê, ficou doido? — berrou Pakhomov. — Há um aeroplano
esperando por ele e você o mandou estudar regulamentos. O que foi
que eu lhe disse ao telefone? Para chamar Tchônkin imediatamente
e prepará-lo para a partida.
— Sim, camarada tenente-coronel — disse Peskov, correndo Para a
porta.
— Espere aí! Você tem as rações dele?
— Trofímovitch foi buscar, mas ainda não voltou. Talvez esteja
conversando com o intendente.
— Ele vai conversar, vai, sim. . . comigo. Vá buscá-lo e traga as
rações aqui, imediatamente!
— Vou mandar o ordenança agora mesmo — disse Peskov.
— Deixe o ordenança para lá — atalhou Pakhomov. — Vá você
mesmo e vá correndo! Dou-lhe cinco minutos. Prisão por vinte e
quatro horas para cada minuto a mais. Entendeu? Correndo!

Com o Sargento-Mor Peskov o tenente-coronel falava de modo
muito diferente daquele com que se dirigira ao comandante, uma
hora antes. E o modo pelo qual o Sargento Peskov havia falado com
Tchônkin tinha pouquíssima semelhança com o modo como agora
falava com o Tenente-Coronel Pakhomov. Quanto a Tchônkin, não
havia pessoa alguma a quem ele pudesse falar assim, a não ser um
cavalo, porque, em questão de patente, um cavalo era menos ainda
do que Tchônkin. E menos que um cavalo não havia coisa alguma.
O Sargento-Mor Peskov correu para fora, onde consultou o relógio
de algibeira e observou a hora; estava inclinado a seguir andando,
mas olhou em volta e viu o tenente-coronel a fitá-lo da janela.
Peskov saiu em disparada.
Tinha de correr à extremidade oposta do acampamento, cerca de
quatrocentos metros. Não se via uma só construção por todo aquele
caminho atrás da qual pudesse esconder-se e recuperar o fôlego,
saindo da visão de Pakhomov. Peskov sentia-se como se estivesse
em um campo de disparos. Estava com vinte e cinco anos de idade,
mas nos dois anos que se haviam passado desde que se reengajara
só correra uma vez, e fora o medo que o levara a tanto. A perda
desse hábito fazia-se sentir agora, ainda que a seu favor possamos
afirmar que o calor era algo com que também era preciso lutar.
Como de costume o depósito estava fresco e à sombra. Raios
espaçados de luz solar atravessavam os buracos na parede e no teto,
perfuravam a escuridão e acentuavam o contraste dos caixotes,
barris, sacos e carcaças de carne pendentes do pendurai. À porta
entreaberta Dúdnik, o intendente, estava sentado dormindo,
esgotado pelo calor, o queixo apoiado na mão. Assim que caía no
sono o queixo escorregava da palma suada e batia na mesa. Dúdnik
abria os olhos, olhava com suspeita e hostilidade para a mesa, mas
logo, incapaz de resistir à tentação, voltava a apoiar o queixo na
mão.
De língua para fora Peskov chegou correndo ao armazém, afundou-
se ao lado de Dúdnik sobre um caixote de cevada e perguntou:


— Você viu Trofímovitch?
Mais uma vez Dúdnik bateu na mesa, depois fitou Peskov,
aturdido.
— O quê?
Peskov olhou com respeito para o queixo de Dúdnik, queixo que
agüentava golpes assim.
— Seus dentes estão inteiros? — perguntou.
— Os dentes vão bem — replicou Dúdnik, sacudindo a cabeça e
bocejando. — Mas acho que a mesa vai ter de ser consertada. Quem
você está procurando?
— Trofímovitch esteve aqui?
— Ai, Trofímovitch. Ele esteve aqui — disse Dúdnik fechando os
olhos e mais uma vez apoiando o queixo na mão.
— Não durma ainda — e Peskov sacudiu Dúdnik pelo ombro. —
Para onde ele foi?
Sem abrir os olhos Dúdnik indicou com a mão livre a porta.
— Por ali.
Sabendo que era tudo que ia obter de Dúdnik como informação,
Peskov saiu, e logo estacou hesitante. Para onde ir? Pensou em
todos os lugares onde Trofímovitch poderia estar, mas achou que
seria possível encontrá-lo em qualquer um deles e lhe pareceu
difícil escolher um lugar que fosse mais provável que outro. Tirou o
relógio da algibeira e consultou-o rapidamente. Mais de cinco
minutos se haviam passado desde que a ordem lhe fora dada.
Suspirou, sabendo que o Tenente-Co-ronel Pakhomov nunca falava
à toa. Depois compreendeu, de repente, que algo da máxima
importância devia estar acontecendo, já que despachariam
Tchônkin para algum lugar de aeroplano. Talvez o próprio
Tchônkin se houvesse tornado repentinamente importante, seria
isso? Ele, Peskov, jamais fora levado a lugar algum de avião. A
compreensão da importância oo que sucedia fez com que o cérebro
de Peskov trabalhasse corri mais eficiência ao voltar a tentar

adivinhar com exatidão onde Trofímovitch podia estar se
escondendo; e então, sem maior hesitação, partiu rumo à cantina.
Peskov não se enganara, pois lá estava Trofímovitch em pé diante
de Tosia, o zelador, na cantina vazia, contando-lhe o enredo do
filme Corações de quatro pessoas. A mochila contendo as rações
destinadas a Tchônkin achava-se no chão, aos pés de Trofímovitch.
Um minuto depois o Tenente-Coronel Pakhomov olhou pela janela
e viu o seguinte:
Trofímovitch dando saltos muito ágeis e descendo o caminho para
os alojamentos, mochila às costas, e Peskov cor rendo atrás dele,
incitando-o à frente com o punho cerrado.
Ao anoitecer daquele dia o Sargento-Mor Peskov estava em
confinamento solitário na casa de guarda do batalhão, pros-j
seguindo a carta que mandava à noiva na cidade de Kotlas.

"Naturalmente, Liúba, levando tudo em conta", escrevia ele, "a vida
no Exército não é um torrão de açúcar. Existe o i tipo de pessoa que
não usa sua posição para fortalecer a disciplina militar, mas, por
outro lado, usa-a para vangloriar-se sobre os subordinados. E está
claro que na vida civil uma situação assim é impossível porque,
depois de uma pessoa trabalhar oito horas na fábrica, pode pensar
em si como homem livre, e se algum engenheiro ou capataz lhe der
ordens para fazer alguma jcoisa pode dizer-lhe para onde ir, e estará
coberto de razão."

6


Quanta verdade, na afirmação de que a vida de uma pessoa está
cheia de surpresas! Se tudo houvesse corrido normalmente naquele
dia Tchônkin teria carregado lenha para a cozinha depois da


instrução política, depois haveria almoçado, tirado sua soneca e
após essa soneca tomaria banho. Iam distribuir uniformes novos
após o banho. (Tchônkin já contava pôr de lado o uniforme e dois
jogos de panos para os pés, reservando-os para o dia de sua
próxima desmobilização.) Após o banho teria voltado aos estábulos
e depois ao armazém, a fim de apanhar a comida para o jantar, e em
seguida, à noite, um concerto de amadores seria dado ao ar livre
num palanque_ de tábuas.
E, de repente — pimba —, era chamado ao alojamento, davam-lhe
um fuzil, um capotão enrolado e uma mochila, punham-no a bordo
de um aeroplano e uma hora e meia depois ja estava só o Demônio
sabia onde, em alguma aldeia da qual jamais ouvira falar, e nunca
desconfiara que existisse.
Tchônkin continuava um tanto mareado, sendo aquele o primeiro
vôo de avião em toda a sua vida, mas os outros pilotos (aquele que

o levara para lá e o que encontrara esperando) cobriram o avião
danificado com lona que amarraram ao chão. Uepois tinham
embarcado no aeroplano que estava funcionando e decolado,
partindo como se nunca ali houvessem estado, deixando Tchônkin
frente a frente com o aeroplano e a multidão que o cercava. Essa
multidão, todavia, começou gradualmente a se dispersar, deixando
Tchônkin sozinho.
E caminhou em volta do aeroplano, puxou os ailerons e a barra do
leme, desferiu um pontapé forte na roda. Depois Cuspiu. para que
guardar aquilo? Guardar contra quem, por quanto tempo? Nada lhe
haviam dito. O Tenente-Coronel Pakhomov falara-lhe uma semana,
talvez mais. Em uma semana a pessoa morria de tanta solidão.
Antes ele conversava com o cavalo e aquilo era ótimo. Gostava mais
de conversar com os cavalos do que com as pessoas, pois se dissesse
alguma coisa errada a uma pessoa entrava em encrencas, mas tudo
que se dizia a um cavalo era aceito. Tchônkin batia papo com seu
cavalo, consultava-o, narrava-lhe a história de sua vida, falava-lhe
sobre o sargento, queixava-se de Samuchkin, Churka, o cozinheiro,

e, se o cavalo entendia ou não, o fato era que continuava sacudindo
a cauda, balançava a cabeça — o cavalo respondia. Mas como se
podia falar com uma engenhoca, um monte de porcas e parafusos
sem vida? Tchônkin voltou a cuspir e caminhou do nariz à cauda do
avião, depois da cauda para o nariz.
Olhou em volta. O cenário local não lhe agradava, em absoluto. A
trezentos passos de onde se encontrava, um pequeno rio cor de
cobre (com o nome Tiopa) passava, luzidio, entre os salgueiros.
Tchônkin não precisava saber o nome do rio para considerá-lo
repulsivo. O bosque de árvores tortas estendendo-se mais para
baixo na margem do Tiopa agradava-lhe ainda menos e o resto do
cenário não valia qualquer comentário. O chão era nu, desigual,
rochoso, a aldeia pobre. Duas casas tinham paredes de tábuas, e as
demais, feitas de troncos enegrecidos, estavam semi-enterradas no
chão. Algumas tinham tetos de telhas, outras de palha.
A aldeia se achava deserta. Por mais que se olhasse não se via
ninguém. Nisto nada havia de surpreendente — todos trabalhavam.
E os que não estavam trabalhando tinham se refugiado do calor nas
cabanas. Só um bezerro malhado, que evidentemente se desgarrara
da manada, estava no meio da estrada, a língua para fora por causa
do calor.
Um homem com ancinhos amarrados às costas passou de bicicleta
ao longo do rio.

— Ei, ei, ei! — gritou Tchônkin para ele, mas o ciclista não parou,
nem se voltou; era evidente que não tinha ouvido.
Ivan colocou a mochila na asa do avião e abriu-a para ver o que lhe
tinham preparado. A mochila continha dois pães, uma lata de carne,
uma lata de peixe, uma lata de concentrado alimentar, um pedaço
de salsicha dura como pau e alguns torrões de açúcar envoltos em
papel de jornal. Não era o que se podia chamar de fartura, como
provisões destinadas a uma semana.

Se soubesse o que ia acontecer ele teria cuidado melhor de si, no
refeitório dos pilotos, mas de que adiantava agora. . .
Tchônkin voltou a percorrer a extensão do aeroplano. Alguns
passos à frente, alguns passos para trás. Tal situação, naturalmente,
tinha seu aspecto bom. Ele não era agora o Tchônkin de quem
qualquer um podia se aproximar, dar um tapa no ombro e dizer:
"Ei, você, Tchônkin", e também não podiam mais cuspir-lhe na
orelha; era uma sentinela — sua pessoa se tornara inviolável.
Qualquer um havia de pensar duas vezes antes de lhe cuspir na
orelha. É qualquer coisinha e "Alto! Quem vem lá?", ou "Pare ou
atiro!" Coisas sérias.
Mas se tudo aquilo fosse olhado por outro aspecto. . .
Tchônkin parou e, descansando encostado no aeroplano, se pôs a
pensar. Haviam-no deixado sozinho por uma semana sem qualquer
outro para substituí-lo. E daí? De acordo com os regulamentos a
sentinela não podia comer, beber, fumar, rir, cantar, conversar ou
dar alívio às tripas. Devia ficar em pé por toda uma semana! Em
uma semana, querendo ou não, seria preciso desobedecer às
normas! Tendo isso presente, Tchônkin caminhou até a cauda e
rompeu as normas ali mesmo. Olhou em volta. Nada. Tchônkin
começou a cantar.

"Um cossaco galopava pelo vale,

Pelas terras do Cáucaso. . . "

Era a única canção que conhecia do começo ao fim. Uma canção
simples, cada dois versos se repetiam:

"Pelo pomar verde galopava.

Um anel em sua mão brilhava. . .

Pelo pomar verde galopava.


Um anel em sua mão brilhava. . . "

Tchônkin silenciou e aguçou o ouvido. Nada, ainda! Podia cantar
até explodir e ninguém lhe daria importância. De repente se sentiu
mais sozinho do que antes, e também com uma necessidade
genuína de falar com alguém sobre qualquer assunto.
De costas para o avião Tchônkin via agora uma carroça que
levantava nuvens de poeira na estrada, rumando para a aldeia.
Tchônkin protegeu os olhos com a mão, e olhando com firmeza
distinguiu dez mulheres sentadas na carroça, as pernas penduradas
pela beirada, e outra de vestido vermelho, em pé, guiando os
cavalos. Tal visão trouxe a Tchônkin uma animação indescritível,
animação que se tornava maior à medida que a carroça se
aproximava. Quando estava bem perto Tchônkin endireitou o
uniforme, abotoou a gola e partiu correndo para a estrada.

— Ei, meninas! — gritou. — Aqui!
As meninas se puseram a gritar e a rir e aquela que guiava os
cavalos gritou em resposta:
— Todas de uma vez ou uma de cada?
— Todas juntas e a gente dá um jeito depois — disse Tchônkin,
acenando para elas.
As moças se tornaram ainda mais atrevidas e fizeram gestos a
Tchônkin como a convidá-lo para embarcar na carroça, mas aquela
que guiava gritou algo que fez com que o próprio Tchônkin
estacasse.
— Ei, meniiinas — esgoelou Tchônkin com excesso de emoção, mas
já não o podiam ouvir. A carroça desaparecera na curva e tudo que
restara era a poeira branca, que pairou no ar sufocante por muito
tempo.
Tudo isso causou um efeito dos mais agradáveis em Tchônkin.
Apoiou-se no fuzil, avassalado por pensamentos sobre o sexo
oposto, pensamentos que de modo algum eram permitidos pelo
regulamento. Voltou a olhar ao redor, mas não como fizera antes,

sem pensar em coisa alguma, só por olhar; agora já tinha algo bem
claro em que pensar.
E o descobriu.
Na horta mais próxima Tchônkin viu Niúra Beliachova, que, após
seu repouso vespertino, voltara a sair para cuidar das batatas. Sua
cortadeira seguia em ritmos medidos enquanto ela punha à mostra
diversos lados do corpo, e Tchônkin, a observá-la atentamente,
avaliava um por um todos os méritos em suas formas amplas.
Tchônkin sentiu-se imediatamente atraído por ela, mas relanceando
o olhar ao aeroplano só conseguiu suspirar. Mais uma vez começou
a caminhar ao lado do avião — alguns passos à frente, alguns para
trás. Fosse lá como fosse as passadas à frente tornavam-se mais
largas, as passadas para trás mais curtas, até que finalmente o peito
de Tchônkin bateu em uma cerca feita de paus compridos e tortos.
Isso lhe causou tamanha surpresa que, ao fitar o olhar indagador de
Niúra, ele percebeu que devia oferecer alguma explicação pelo que
estivera fazendo e o fez como se segue:
_ Estou precisando de um pouco de água.
Para enfatizar o que dizia cutucou a barriga com um dedo.
_ Não vejo impedimento — disse Niúra. — Só que minha
água está quente.

— Qualquer coisa serve — propôs Tchônkin, muito agradável.
Niúra deixou a cortadeira no sulco da terra, entrou na casa e voltou
imediatamente, segurando uma concha preta de ferro. A água
estava realmente quente, sem graça, com gosto de madeira do
barril. Tchônkin tomou um gole, depois inclinou-se para a frente e
derramou o resto sobre a cabeça.
— Ah, isso é bom — disse, exagerando na satisfação. — Não é
verdade?
— Pendure a concha na cerca — disse Niúra, voltando à cortadeira.
Encontrar-se com Tchônkin a excitara, mas não o deixou perceber,
contando que ele se fosse. Tchônkin, todavia, não tinha a menor
vontade de se retirar. Ali ficou por algum tempo sem dizer coisa

alguma e depois fez a pergunta que tocou diretamente no cerne da
questão.

— Você mora sozinha ou tem marido?
— Para que quer saber? — perguntou Niúra.
— Apenas curiosidade — respondeu Tchônkin.
— Casada ou não, não é de sua conta.
A resposta satisfez Tchônkin. Devia significar que ela era sozinha,
mas seu orgulho virginal a impedia de responder a perguntas como
aquela, de modo direto.
— Quer que a ajude? — ofereceu-se.
— Não precisa — disse Niúra. — Eu dou conta. Tchônkin, no
entanto, já jogara o fuzil por cima da cerca,
contorcia-se e passava em meio aos trilhos. De início Niúra
protestou por simples questão de decoro, depois entregou a
Tchônkin sua cortadeira e foi buscar outra no telheiro da vaca.
Quatro mãos aliviavam o trabalho, e Tchônkin operava com
facilidade e rapidez, dava para ver que não era a primeira vez que
fazia aquilo. De início Niúra tentou acompanhá-lo, mas Jogo, vendo
que seus esforços de nada serviam, ficou para trás. guando pararam
para descansar ela observou com curiosidade:
— A gente vê que você é homem do campo.
— Dá para ver, é? — perguntou Tchônkin surpreso.
— Claro — afirmou Niúra, abaixando o olhar com embaraço. —
Tivemos gente da cidade que veio aqui para ajudar. Dava vergonha
só de olhar para eles. Nem sabiam como segurar uma cortadeira. O
que será que ensinam a eles, lá na cidade?


— Isso é fácil — esclareceu Tchônkin. — Ensinam a viver do que o
campo produz.
— Com certeza — concordou Niúra.
Tchônkin cuspiu nas mãos e retomou o trabalho. De vez em
quando, enquanto o acompanhava, Niúra dava uma espiada no
novo conhecido. Observara de imediato, é claro, que ele era tudo
menos alto, não chegava a ser um dos homens mais bem

apessoados em que já pusera os olhos, mas após tantos anos de
solidão mesmo um homem como Tchônkin se afigurava bem.
Notou que ele era destro e tinha uma certa graça e que,
naturalmente, seria uma grande ajuda. Quanto mais pensava nisso
mais gostava dele, e algo como a esperança começou a reluzir em
sua alma.

7


Niúra estava inteiramente sozinha no mundo. Em toda a aldeia não
havia mulher mais sozinha que ela, desde que não levassem em
conta Vovó Dúnia, mas a vida de Vovó já chegava ao fim, enquanto
Niúra acabara de completar vinte e quatro anos. Achava-se no
maior viço da vida e, no entanto, já se punha um pouco idosa, por
assim dizer, no tocante a casamento. As moças que se mostravam
mais rápidas em tudo haviam conseguido casar-se antes dos vinte
anos e não perdiam tempo em ter filhos (Taika Gorchkova, com a
mesma idade de Niúra, tivera o quinto filho naquele inverno). Não
seria tão ruim se ela fosse mais feia do que as outras, mas acontece
que não era assim. Deus não lhe negara rosto ou corpo, e embora
não fosse uma beleza também não era uma aberração. A própria
Ninka Kurzova, que tinha uma marca de nascimento no meio do
rosto, descobrira a felicidade e se casara com Kolka, e já estava em
seu quarto ou quinto mês de gravidez.
Niúra não era a única que deixara de encontrar alguém, é claro, mas
as outras pelo menos tinham os pais ou os irmãos e irmãs. Niúra
não tinha ninguém. Antes contara com dois irmãos mais velhos,
mas não se lembrava deles. Um perdera a vida num incêndio, com
três anos, e o outro, um pouco mais velho, morrera de escarlatina.
A mãe de Niúra falecera quatro anos atrás. Uns dois anos antes
estivera a se queixar de dor nas costas — alguma coisa quebrada ou


entortada, talvez devido a um resfriado, talvez por causa do
trabalho pesado, como se pode saber? Talvez devesse deitar-se de
vez em quando e descansar, mas isso era possível quando o chefe de
brigada fazia tudo, menos arrastá-la da casa com uma corda? Era
preciso trabalhar. E havia também a casa com afazeres pequenos e
maiores, sempre precisando de conserto. É verdade que dava para
falar com o médico do Exército, mas este se encontrava a sete
quilômetros de distância, em Dolgov. Sete quilômetros para lá e sete
para cá, na volta. Ademais ele dava o mesmo tratamento a todos —
enfiar os pés em água quente e depois deitar por baixo de coberta
grossa. De manhã estaria tudo certo, era o que dizia. Não se podia
sair do trabalho se não se estivesse com febre. Eles lhe diziam: se
deixarem todo mundo sair quem vai trabalhar?
Quando a situação piorara e ela começara a gritar o pai de Niúra
fora ao presidente (aquele antes de Golubev) a fim de pedir um
cavalo, mas o presidente lhe dissera:

— Não posso lhe dar um especial, mas se algum for para lá será seu.
Quando finalmente seguiu um para lá, já não era mais necessário. O
cemitério de Krasnóvskoie ficava perto, logo atrás de onde as
pessoas tinham as hortas e jardins, e levaram o caixão para lá a
braço.
O pai de Niúra viveu mais um ano em Krásnoie, mas depois de
arranjar um passaporte, às escondidas, partiu para a cidade a fim de
tentar ganhar a vida. Trabalhou como bisca-teiro durante a
construção de uma usina de energia elétrica, depois entrou para a
polícia. Muitas vezes, quando pessoas de sua aldeia apareciam na
cidade, a fim de venderem os produtos trazidos do kolkhoz, podiam
vê-lo no mercado, andando por ali uniformizado e armado,
afugentando os especuladores. De início escrevia para Niúra de vez
em quando, mas depois se casou, a mulher teve um filho e suas
cartas se tornaram ainda mais escassas, até que finalmente pararam,
e agora só raramente ele lhe mandava cumprimentos por meio de
algum conhecido.

Talvez outro motivo pelo qual nada aparecera para Niúra em
matéria de casamento fosse sua natureza tímida e o fatc de que não
tinha inclinação a se tornar mais atraente. Seu primeiro namorado
desistiu porque ela não dizia uma só palavra, e ele declarou que não
se podia nem ficar sentado e conversar com ela. O segundo tentou
convencê-la a fazer o que ele queria, antes de casar, e com isso ficou
magoado, porque Niúra não confiou nele, não topou a parada. Ela
confiou no terceiro, mas também este desfez o namoro porque ela
concordara com facilidade demasiada. E de repente não havia mais
pretendentes; com o passar do tempo tornavam-se mais e mais
escassos, e a nova geração já apresentava outras garotas para
escolher. E foi assim que Niúra ficou sozinha.
A solidão imprimia cunho especial em sua vida. Dava, até, para ver
a relação que mantinha com a vaca. Para as outras pessoas a vaca
era uma vaca. Davam-lhe de comer, ordenhavam-na, levavam-na ao
pasto e era tudo. Mas Niúra cuidava e zelava da sua vaca —
esfregava-a a fim de limpá-la, tirava até os ciscos de seu pêlo. E
falava com a vaca, a voz cheia de ternura como se a vaca fosse uma
pessoa, e, se por acaso tivesse alguma coisa especial (um pedaço de
açúcar, algum piróchki), dividia com a vaca, porque esta também se
relacionava com ela de maneira humana. Quando a manada era
tangida de volta para a aldeia, a vaca de Niúra irrompia e corria
para casa o mais depressa que podia, tamanha a falta que sentia de
Niúra. Gostava de brincar com a dona — investia sobre ela com os
chifres como se fosse a sério, só que o fazia com gentileza, era uma
brincadeira. Mas se via alguém causando dificuldades a Niúra
deixava de brincar, baixava a cabeça, os olhos se injetavam e ela
partia em direção ao ofensor; quem quer que fosse, tinha de se
cuidar!
Quanto a Borka, o porco, estava sempre atrás de Niúra, como um
cachorrinho. Cerca de dois anos antes Niúra o recebera do kolkhoz
como bacorinho de três dias, pensando em matá-lo um dia. Mas o
bacorinho se mostrou doentio e assim ficou durante muito tempo.


Niúra cuidou dele como se fosse um filho: dava-lhe leite com
mamadeira, punha garrafas de água quente em sua barriga,
banhava-o com sabão no cocho, enrolava-o em seu lenço e o levava
para a cama consigo. Niúra o fez viver, e quando Borka se tornou
grande não mais conseguiu matá-lo. Por isso Borka vivia em
companhia de Niúra, como um cachorro. Sujo e magrelo, corria pelo
quintal, perseguia as galinhas, acompanhava Niúra até o correio, e
vinha recebê-la quando ela voltava. Seus guinchos de alegria, ao regresso
de Niúra, podiam ser ouvidos em toda a aldeia.
Até as galinhas de Niúra não eram como as galinhas de outras
pessoas. Quando ela se sentava na varanda, lá estavam a seu lado.
Uma se encarapitava no ombro de Niúra, outra na cabeça, e ali
ficavam sentadas sem mover uma só pena, como se estivessem no
poleiro. Com medo de espantá-las, Niúra também não se movia.
Muita gente na aldeia zombava dela por esse motivo, mas Niúra
não dava importância. Em vez disso pensava: era só achar um
homem, mesmo que não fosse muito bonito ou sabido, desde que
fosse um bom homem e bom para ela, e quando não mais se sentisse
em dívida com ele, abrir-lhe-ia toda a alma. E agora aquele homem
baixote e uniformizado orelhas vermelhas aparecendo sob o quepe,
caminhava à sua frente, pelo sulco, sacudindo a cortadeira. Quem
era ele, esse homem, e o que queria? Talvez apenas passar tempo,
talvez não. Sempre é difícil dizer de imediato.
Por mais longo que seja, até o dia de verão chega ao fim. O ar se
movimentava vindo do Tiopa, soprava com frescor, e o sol
vermelho e grande, dividido em dois por uma nuvem penugenta,
tocara a orla do horizonte enfumaçado. O gado começou a mugir na
outra extremidade da aldeia e, deixando Tchônkin no jardim, Niúra
partiu correndo para receber sua vaca Boniteza. No caminho
encontrou-se com Ninka Kurzova, que trazia uma corda comprida e
também ia buscar sua vaca. Elas seguiram juntas caminhando.


— E então, recolheu as batatas? — perguntou Ninka, com o maior
despeito. É desnecessário dizer que toda a aldeia já tinha
conhecimento de que Niúra não trabalhava sozinha no jardim.
— Ainda resta um bocadinho para fazer — respondeu Niúra.
— Mas com um ajudante, agora a vida fica mais fácil — e Ninka
piscou o olho.
— Certo, muitas mãos aliviam o trabalho — disse Niúra
enrubescendo.
— Ele é um cara decente, pelo menos? — perguntou Ninka,
recolhendo com eficiência a informação que queria.
— Quem sabe? — Niúra deu de ombros. — Já, já, não dá para saber.
É meio baixinho, mas sabe trabalhar. De jeito nenhum eu pude
emparelhar com ele no jardim.
— Hummmm — aprovou Ninka —, e como se chama?
— Ivan — declarou Niúra com orgulho, como se fosse seu próprio
nome.
— Solteiro?
— Não perguntei.
— Devia perguntar. Devia perguntar logo de cara.
— Mas eu ia me sentir mal se perguntasse.
— É verdade que perguntar logo de cara deixa a gente meio
sem jeito — replicou Ninka, cheia de confiança —, mas faça assim
como quem não quer nada, e aí tudo dá certo. Mas ele vai mentir
para você, não tenha dúvida.
_ E por que haveria de mentir?
_ E o que mais ele pode fazer? — contrapôs Ninka.
_ Essa a nossa vida. . . os homens dizem mentiras e as mulheres
acreditam. E este, ainda por cima, é um soldado. Tudo


o que ele quer é passar o tempo. Procure descobrir quando
conversar com ele e veja se dá uma espiada nos seus documentos.
Mas talvez não digam nos documentos, eles não são a
mesma coisa que um passaporte.
— Então, não tem jeito? — perguntou Niúra.

— Parece que não.
— Não sei por quê, mas tenho confiança nele — disse Niúra. — Ele
não parece ser mentiroso.
— Se você confia nele isso é de sua conta — disse Ninka com
indiferença. — Mas em seu lugar eu não daria nada a ele, antes da
hora.
— E quem está dando alguma coisa a ele? — disse Niúra, sentindo-
se embaraçada.
— Não estou dizendo que você esteja dando, mas que pode dar.
Você sabe como são os homens, e ainda mais os soldados; eles
arranjam o que querem e depois riem da gente.
Dito isso, Ninka deu um salto na direção da cerca, pois Boniteza
vinha galopando pela estrada, passando pela aldeia com um
cachorrinho a latir desesperadamente em seu encalço. Boniteza
corria para Niúra em tal velocidade que não parecia existir força
capaz de detê-la, mas fez uma parada perfeita bem em frente de
Niúra.
— Um diabo, essa aí! — disse Ninka, assustada. — Cuidado para
não se espetar, Niúra.
— A mim ela não espeta — proclamou Niúra, cheia de confiança, e
começou a coçar Boniteza entre os chifres. Sem fôlego por haver
corrido tanto, Boniteza arquejava, as narinas abrindo e fechando.
— E agora, onde está aquela porcaria que eu tenho? — disse Ninka.
— Vou correr e ver. . . talvez tenha entrado no jardim de alguém.
Apareça para bater um papo — era seu convite costumeiro. —
Vamos cantar um pouco e dar umas risadas.
Ninka, em seguida, seguiu pela estrada sacudindo a corda.
Voltando, Niúra entrou na casa de Vovó Dúnia e comprou meio
litro de mistura caseira. Receava que Vovó Dúnia começasse a lhe
fazer perguntas sobre o destino dessa bebida e imaginou dizer que
talvez seu pai aparecesse. Mas Vovó Dúnia estivera provando sua
própria mistura e chegara ao ponto em que nada mais a interessava.

Quando Niúra chegou à varanda, depois de ter ordenhado a vaca,
Tchônkin já terminara o último canteiro de batatas e estava sentado
na grama, fumando.

— Cansado? — perguntou Niúra.
— Claro que não — disse Tchônkin. — Eu faço esse trabalho para
me divertir.
— Arrumei a mesa ali — disse Niúra, sobrepujando a timidez.
— Mesa? — O olhar de Tchônkin se iluminou, mas depois,
lembrando-se de sua situação, ele limitou-se a suspirar. — Não
posso. Sinto muito, mas não posso. Preciso ficar ali — e apontou o
avião com um gesto de aborrecimento.
— Céus, mas quem vai pôr a mão naquilo! — disse Niúra
acalorada. — Por aqui as pessoas nem trancam as portas.
— Não trancam, mesmo? — perguntou Tchônkin, a esperança
aumentando. — Quer dizer que nunca aconteceu que um objeto
pertencente a alguém. . .
— O que quer dizer? — perguntou Niúra. — Moro aqui desde que
nasci e não me lembro de nada disso. Uma vez, quando era muito
pequenina, antes mesmo do kolkhoz, Stepan Lukov. . . ele mora ali,
no outro lado do gabinete. . . não conseguiu achar o cavalo e todos
disseram que tinham sido os ciganos. Mas depois acharam o cavalo.
. . ele tinha passado para o outro lado do rio, só isso.
— E se os meninos chegam aqui e começam a desaparafusar as
coisas? — perguntou ele, cedendo gradualmente.
— Os meninos já estão todos na cama — asseverou Niúra.
— Bem, está certo — resolveu Ivan. — Vou entrar por, digamos,
dez minutos, mais ou menos.
Tchônkin apanhou o fuzil, Niúra pegou as cortadeiras.
A parte dianteira de sua cabana era limpa e arrumada. Na mesa
larga estavam a garrafa com um trapo servindo de rolha, um prato
de batatas fritas e outro de pepinos. Tchônkin percebeu no mesmo
instante que ali não havia carne bastante, e deixando o fuzil correu
de volta ao aeroplano, à procura da mochila. Rapidamente, Niúra

cortou a salsicha em fatias grossas; porém, não abriu nenhuma das
latas de comida, não queria perder mais tempo.
Sentou Tchônkin no banco perto da parede e sentou-se em frente a
ele. Tchônkin serviu a mistura caseira, um copo cheio para si e
meio copo para Niúra; ela não permitiu que fosse além da metade.
Ele ergueu o copo e propôs um brinde:
_ Ao nosso encontro!
Tchônkin começou a sentir-se bem depois do segundo copo.
Desabotoou a gandola, tirou o cinturão e sentou-se encostado na
parede; de sua cabeça haviam sumido todos os pensamentos
referentes ao aeroplano. Como num nevoeiro o rosto de Niúra
flutuava no crepúsculo e se tornava dois rostos, voltando depois a
juntar-se em um só.-Tchônkin sentia-se animado, leve, livre. Fez
sinal a Niúra para que viesse ter com ele, com um movimento da
mão, dizendo:

— Venha cá.
— Para quê? — perguntou Niúra.
— Não há motivo.
— Se não há motivo podemos continuar a falar assim — resistiu
Niúra.
— Venha — disse Tchônkin, melancólico. — Não vou mordê-la.
— Mas isso é estúpido — disse Niúra, andando, dando a volta e
sentando-se no banco à esquerda de Tchônkin, a certa distância
dele.
Silenciaram ambos. O relógio antigo, na parede em frente,
tiquetaqueava alto, mas não dava para ser visto na escuridão da
sala. A noite caíra.
Tchônkin suspirou fundo e aproximou-se de Niúra. Ela suspirou
ainda mais fundo e se afastou. Tchônkin voltou a suspirar e
aproximou-se. Niúra suspirou de novo e se afastou. Logo se
encontrava na extremidade do banco, não seria seguro afastar-se
mais.

— Começou a fazer frio aqui, não é? — perguntou Tchônkin, pondo
a mão esquerda em seu ombro.
— Não é tanto assim — objetou Niúra, sacudindo o ombro para ver
se lhe tirava a mão.
— Não sei, mas minhas mãos estão geladas — disse Ichonkin,
colocando a mão direita nos seios dela.
— Você sempre anda por aí, voando em aviões? — perguntou
Niúra, na última e desesperada tentativa de se libertar. , —
Sempre — disse Tchônkin, enfiando a mão por baixo o braço dela, e
por trás de suas costas, para desatar-lhe o sutiã.
8


Não era dia, mas também não era noite, não havia luz e nem
escuridão. Tchônkin acordara porque sentira que alguém roubava
seu aeroplano. Pulou da cama — não havia pessoa alguma
dormindo ao lado — e foi correndo para a varanda. Foi quando viu
Samuchkin amarrando um cavalo branco, que se parecia ao Ruano,
no avião.

— O que está fazendo? — berrou Tchônkin.
Sem responder, Samuchkin pulou com rapidez para a cabina e
fustigou o cavalo com as pontas das rédeas. O cavalo empinou e,
sacudindo os cascos, começou a voar, levantando-se da própria
terra. As mesmas mulheres que haviam passado por Tchônkin
aquele dia, na carroça, estavam sentadas na asa mais baixa, com as
pernas dependuradas. Niúra se achava entre elas, acenando com a
cortadeira para Tchônkin e fazendo-lhe sinal para vir também.
Tchônkin seguiu correndo atrás do aeroplano, e sempre que parecia
que ia pegá-lo o aeroplano voltava a deslizar e fugia. Tornava-se
cada vez mais difícil correr, o capotão enrolado passado pelo ombro

e o fuzil a impedir-lhe os movimentos. Compreendeu que o fuzil de
nada lhe servia, porque o sargento deixara de lhe dar qualquer
munição. Depois de se livrar do fuzil pôde correr muito mais
depressa. Exatamente quando estava quase emparelhado com o
aeroplano e ia agarrar a cortadeira que Niúra lhe estendia, o
sargento lhe apareceu à frente, de súbito, e perguntou em tom
ameaçador:

— Por que não faz continência?
Tchônkin parou por um momento, diante do sargento, sem saber se
respondia ou continuava a perseguir o aeroplano. O sargento
gritou:
— Muito bem, dez vezes até o poste e continência todas as vezes!
Tchônkin olhou em volta, aflito, desejando executar a ordem do
sargento antes que o aeroplano se afastasse ainda mais, e não
percebeu um só poste por ali.
_ Quer dizer que não está vendo o poste! — estrugiu o sargento. —
Muito bem, nesse caso vou lhe arrancar o olho e mostrar como um
soldado deve enxergar!
Ato contínuo o sargento foi até Tchônkin, arrancou-lhe o olho
direito, ergueu-o no ar à sua frente, e com esse olho arrancado
Tchônkin pôde realmente ver um poste em péssimo estado, com
uma lâmpada acesa em cima. Ele pensou: "Por que será que a
lâmpada está acesa, se há tanta luz por aqui sem ela?" Apanhou seu
olho com o sargento e partiu rumo ao poste, mas logo, lembrando-
se do avião, olhou para trás.
O aeroplano estava bem atrás dele. Pairava imóvel no ar enquanto o
cavalo sacudia os cascos inutilmente, sem conseguir andar. "É
preciso acalmar esse bicho", pensou Tchônkin, e depois percebeu o
Politruk Iartsev, que aparecera de trás de uma montanha e o
chamava com o dedo. Tchônkin olhou para o sargento a fim de
pedir sua permissão, mas o sargento estava ocupado com outra
coisa — montava nas costas do Intendente Trofímovitch, em volta
de uma espécie de trilho circular, no centro do qual se encontrava o



Tenente-Coronel Pakhomov, a esbordoá-los um de cada vez com o
chicote comprido.
Tchônkin caminhou até Iartsev, que se inclinou para falar-lhe ao
ouvido. Isso causou tamanho medo a Tchônkin que ele cobriu a
orelha com a palma da mão.

— Não tenha medo, ele não cospe — disse Samuchkin, falando por
trás. Ivan retirou a mão, Iartsev transformou-se imediatamente em
besouro e se pôs a rastejar, entrando na orelha de Tchônkin. Aquilo
fazia cócegas. Tchônkin estava prestes a sacudir Iartsev e tirá-lo de
lá quando ele disse, baixinho:
— Não fique nervoso, Camarada Tchônkin, sua pessoa é inviolável.
Não posso lhe fazer nada. Fui instruído para lhe informar que o
Camarada Stálin nunca teve esposas, porque ele mesmo é uma
mulher.
Tendo dito isso Iartsev transformou-se de volta em um nomemto,
pulou para o chão e desapareceu atrás da montanha.
Foi nesse exato instante que o Camarada Stálin desceu
vagarosamente do céu. Tinha bigode, o cachimbo entre os dentes e
usava vestido de mulher. Nas mãos trazia um fuzil.
— Este fuzil é seu? — perguntou severamente Stálin, com leve
sotaque georgiano.
— Sim — murmurou Tchônkin, a língua presa, e estendeu a mão
para apanhar o fuzil.
O Camarada Stálin, todavia, afastou-se e disse:
— E onde se acha o sargento?
O sargento precipitou-se para lá, montado em Trofímo-vitch, que
escavava o chão com os cascos e procurava livrar se sacudindo o
lombo, mas o sargento se firmara bastante, mantendo-o preso pelas
orelhas.
— Camarada sargento — disse Stálin. — O soldado Tchônkin
abandonou o posto e perdeu também sua arma de combate. Nosso

Exército Vermelho não precisa de soldados assim. Eu o aconselho a
fuzilar o Camarada Tchônkin.
O sargento desmontou vagarosamente de Trofímovitch, apanhou o
fuzil com o Camarada Stálin e ordenou a Tchônkin:


— No chão!
Tchônkin jogou-se ao chão. A poeira pantanosa embaixo dele o
engolia, entrava-lhe pela boca, pelas orelhas, pelos olhos. Procurou
arredar a poeira com as mãos enquanto aguardava a ordem "Última
forma!", mas ela não foi dada. Tchônkin afundava cada vez mais.
Foi nesse instante que algo muito frio tocou-lhe a nuca. Sabia que
era o cano de um fuzil e que a qualquer instante um tiro se faria
ouvir. . .
Tchônkin acordou suando frio. Havia uma mulher perto dele, com a
cabeça em seu ombro, mas de imediato ele não conseguiu se
lembrar de quem era, e como haviam chegado a isso, de dormirem
na mesma cama. Só quando viu o fuzil sossegadamente pendurado
no cabide é que tudo lhe voltou à memória. Tchônkin saltou para o
chão frio e correu à janela, pisando nos cordões da calça enquanto
corria.
Lá fora havia claridade e o aeroplano continuava no mesmo lugar,
as asas grandes e sem graça formando silhueta clara contra o céu a
clarear. Tchônkin suspirou de alívio. Olhando em volta deparou
com o olhar de Niúra. Ela teria fechado os olhos se houvesse tempo
para tanto, mas agora seria estúpido não olhar, embora estivesse
envergonhada. Envergonhava-se também de que seu braço branco e
roliço estivesse nu até o ombro e fora das cobertas. Ela puxou
vagarosamente o braço a fim de escondê-lo, ao mesmo tempo em
que sorria com embaraço. Tchônkin também estava embaraçado,
mas, não querendo demonstrá-lo e não sabendo ao certo o que
fazer, aproximou-se de Niúra, tomou-lhe a mão, apertou-a com
gentileza e disse:
— Como vai?

Aquela manhã as mulheres que tocavam o gado para o pasto viram
Tchônkin sair descalço e sem camisa da casa de Niúra. Ele foi até o
aeroplano e passou bastante tempo a desamarrá-lo. Depois
derrubou parte da cerca, empurrou o aeroplano para o jardim de
Niúra e, afinal, recolocou a parte da cerca que retirara.

9


O Presidente Golubev distinguíase por tendencia irreprimível a
pensar melhor em praticamente tudo. Quando a esposa lhe
perguntava de manhã: "O que você quer, omelete ou batatas?", ele
respondia: "Quero batatas".
Ela preparava a panela de ferro fundido, enchendo-a de batatas,
tiradas do forno, e nesse exato instante ele percebia com certeza
absoluta que o que realmente desejava era omelete. A esposa
empurrava a panela de volta para o forno, a fim de buscar ovos. Ao
regressar defrontava-se com a expressão de culpa do marido: ele
voltara a querer batatas.
Às vezes ele se enraivecia:

— Basta me dar uma coisa ou a outra, não me faça pensar em
questões tão estúpidas!
Golubev sentia-se sempre oprimido pela liberdade de escolha.
Sofria insuportavelmente quando pensava em que camisa deveria
usar naquele dia, a verde ou a azul. ou que botas, as novas ou as
velhas. Na verdade muita coisa fora feita na Rússia nos últimos
vinte anos, de modo que Golubev não tinha motivo para duvidar,
mas ainda assim as dúvidas continuavam e às vezes estendiam-se a
coisas que, na ocasião, não deviam ser questionadas. Não era à toa
que Boríssov, o secretário da Comissão Distrital da Estação de
Máquinas e Tratores, às vezes dizia a Golubev:

— Livre-se de suas dúvidas. É hora de trabalhar, não de duvidar. —
E às vezes aduzia: — Lembre-se de que está sob vigilância
constante.
Isso, no entanto, era algo que ele dizia não apenas a Golubev, mas a
muitas outras pessoas, também Boríssov não especificava que tipo
de vigilância existia ou como se efetuava, e talvez ele próprio não
soubesse.

Certa feita Boríssov conduzia uma conferência da Comissão
Distrital para os presidentes de kolkhoz. O tema era o aumento da
produção leiteira no quadrimestre corrente. O kolkhoz de Golubev
ficava em algum ponto, no meio dos índices, e ele não se via
louvado nem criticado. Golubev permanecia sentado, olhando para

o novo busto de Stálin, feito de gesso que se achava perto da janela,
sobre pedestal marrom. Quando a conferência terminou e todos
começaram a se retirar, Boríssov deteve Golubev.
O secretário parou ao lado do busto de Stálin, afagou-o
maquinalmente na cabeça e disse:
— A questão é a seguinte, Ivan Timofêievitch, o seu organizador
partidário, Partorg Kilin, diz que você não está dando muita atenção
às campanhas de auxílio visual. De modo mais detalhado, você não
deu dinheiro bastante para o gráfico de crescimento da produção
industrial.
— Não dei e não darei — retorquiu Golubev com firmeza. — Não
tenho dinheiro para a cobertura das vacas e tudo que Kilin faz é
desenhar seus diagramas, jogando fora todo o dinheiro do kolkhoz.
— O que quer dizer com isso, que ele joga o dinheiro fora? —
perguntou o secretário. — Você percebe o que está dizendo?
— Percebo — disse Ivan Timofêievitch. — Compreendo tudo. Só
que não posso dispor do dinheiro. O kolkhoz tem pouquíssimo, nem
mesmo sabemos como vamos tapar os buracos. Mas está claro que
tudo tem de sair de minha pele, porque eu sou o presidente.
— Antes de tudo você é um comunista, depois um presidente. E os
diagramas possuem grande importância política. É estranho ouvir

um comunista subestimá-los. E ainda não sei se o que você está
dizendo é apenas um erro ou uma convicção tirme. Mas se pretende
ficar nessa posição seremos obrigados a lhe dar uma boa espiada de
novo, haveremos de enxergar até o seu coração, com os diabos!
Em sua raiva Boríssov dera uma palmada na cabeça de stálin e
depois sacudira a mão, cheio de dor. No mesmo instante a
expressão de dor, no semblante, transformou-se em expressão de
medo mortal.
A boca de Boríssov secou. Abriu-a e fitou Golubev como se
estivesse hipnotizado. Enquanto isso, Golubev também estava
morto de medo. Ele não quisera ver, mas tinha visto! Que diria se
Boríssov fugisse e confessasse?, nesse caso Boríssov estaria a salvo e
ele, Golubev, pegaria a pena por não dar parte de Boríssov logo de
início. E, se desse parte, eles cuidariam de examiná-lo porque ele
vira o que tinha visto.
Tanto Boríssov quanto Golubev pensavam na história do estudante
que tentara atingir o mestre com a atiradeira e, em vez disso,
acertara num Retrato, partindo-lhe o vidro. Se houvesse apenas
arrancado o olho do professor talvez o considerassem apenas um
delinqüente juvenil, mas atingir o Retrato era nada mais nada
menos que uma tentativa de assassinato. O paradeiro desse escolar
era ainda desconhecido.
Boríssov foi o primeiro a descobrir uma saída para a situação.
Extraiu do bolso uma cigarreira de metal, abriu-a e estendeu-a a
Golubev. Este hesitou — devia aceitar ou não? Finalmente aceitou.

— Sim, e de que estávamos falando? — perguntou Boríssov, como
se nada houvesse ocorrido, embora se distanciasse um pouco do
busto, só por via das dúvidas.
— Das campanhas de auxílio visual — relembrou Golubev
obsequiosamente, passando a controlar-se um pouco mais.
— Então, o que eu dizia — prosseguiu Boríssov, o tom de voz
muito diferente — é que você não deve subestimar a importância

política das campanhas de auxílio visual, Ivan Timofêievitch, e eu
lhe peço como amigo para fazer o favor de cuidar disso.

— Está certo, cuidarei — prometeu sombriamente Golubev, aflito
por se retirar.
— De modo que nos entendemos — disse Boríssov, já mais
animado. Tomou Golubev pelo braço e enquanto o levava à porta
disse, baixando a voz: — E mais uma coisa, Vániuchka: como
camarada, quero adverti-lo para ter cuidado, está sob vigilância
constante.
Golubev saiu. O dia continuava seco e ensolarado e o presidente o
notou com desagrado, já que a chuva era mais do que necessária.
Seu cavalo, preso à cerca de ferro, estendia-se para um arbusto mas
não conseguia alcançá-lo. Golubev montou em seu carrinho de duas
rodas e tocou o animal. O cavalo seguiu por um quarteirão e depois,
sem que lhe dissessem coisa alguma, parou por puro hábito diante
de um edifício de madeira com o letreiro "SALA DE CHÁ". Em frente
havia um carrinho cheio de latas de leite. O presidente imediatamente
reconheceu o carrinho como pertencente a seu kolkhoz.
Golubev amarrou o cavalo no mesmo poste a que o outro estava
preso, subiu os degraus que rangiam e abriu a porta. A sala de chá
cheirava a cerveja e sopa de repolho azedo.
A mulher entediada que atendia ao balcão virou-se para ver quem
entrava.
—Alô, Ivan Timofêievitch.


— Alô, Aniuta — respondeu o presidente, lançando um olhar para
o canto onde Grandão dava conta de uma cerveja. Ao ver o
presidente, Grandão se pôs em pé.
— Está certo, pode sentar-se — ordenou Golubev, querendo que
Aniuta lhe servisse o de costume, cento e cinqüenta gramas de
vodca e um copo de cerveja. Depois jogou a vodca na cerveja, como
sempre fazia, e foi ter à mesa de Grandão. Este tentou levantar-se de
novo, mas Golubev o impediu, segurando-o pelo ombro.

— Entregou o leite? — perguntou o presidente, bebericando do
copo.
— Tudo entregue — afiançou Grandão. — Eles disseram que o teor
de gordura estava baixo.
— Darão um jeito — disse Golubev, dando de ombros. — Por que
está sentado aqui?
— Acabei de encontrar Niurka, a dos correios, e lhe prometi uma
carona de volta — explicou Grandão. — Por isso estou esperando.
— Bem, ela continua vivendo com o soldado? — perguntou Ivan
Timofêievitch com alguma curiosidade.
— E por que não haveria de estar? — retorquiu Grandão. — Ele é
melhor do que uma empregada, com certeza. Ela vai trabalhar e ele
apanha água, racha lenha e prepara a sopa. Depois veste o avental
dela e anda por lá como uma mulher, arrumando a casa. Eu mesmo
vi, mas agora as pessoas estão dizendo que ele passou a bordar
guardanapos. — A essa altura Grandão explodiu em gargalhadas.
— Juro que nunca vi um homem andando por aí com avental de
mulher e fazendo bordados. Mas o mais interessante é que ele devia
ficar por aqui uma semana, e já se passou semana e meia e ele não
se mexe. Não sei, Ivan Timofêievitch, talvez seja a ignorância
falando, mas as pessoas estão com a idéia de que o soldado não está
aqui por nada, e alguns dizem até que ele está aqui como parte de
uma investigação.
— Que tipo de investigação? — As orelhas do presidente se
aguçaram.
Grandão sabia como Golubev ficava nervoso com essa questão, e
estivera propositalmente a visá-lo. Notou com prazer que suas
palavras causavam o efeito desejado.


— Quem sabe de que tipo? — redarguiu. — Uma coisa é certa,
porém: eles não o manteriam aqui sem motivo. E, s o aeroplano está
quebrado, devia ser consertado. E se está ruim demais para ser
consertado deviam livrar-se dele. Por que manter um homem aqui,
sem outro motivo? Por isso as pessoas estão com dúvidas, Ivan

Timofêievitch. Há um boato correndo por aí — Grandão baixou a
voz e inclinou-se para o presidente — de que eles vão acabar com os

kolkhozes.

— Esqueça isso — disse o presidente, com raiva. — Nunca vai
acontecer e não fique com tais esperanças. Precisamos de trabalho
feito, e não circular boatos.
Golubev terminou a bebida e se levantou.
— Eis o que você faz, Grandão — disse em conclusão. — Não espere
por Beliachova se ela demorar muito. Não há motivo para esperar.
Que ela volte para casa andando, não é uma grande dama.
Tendo se despedido de Aniuta o presidente saiu, montou no
carrinho e partiu para casa. Mas Golubev ficara pensando nas
palavras de Grandão, ainda mais quando conjugadas com a
advertência feita por Boríssov de que ele estava sob vigilância
constante. Mas que tipo de vigilância? E como a efetuavam? Seria
por meio daquele soldado? Não fora mandado especialmente para
lá? Na verdade não parecia ser do tipo de home que mandariam,
mas os que mandavam tais pessoas não eram idiotas — não
mandariam alguém que os outros pudessem nota imediatamente
ser um enviado seu. Se, ao menos, pudesse ter certeza! Mas como
descobrir? Naquele momento um pensamento audacioso atravessou
o cérebro de Golubev: "E se e for logo a esse soldado, esmurrar a
mesa e lhe disser: 'Qual a sua missão e quem o mandou aqui?' E se
isso for me cria problemas é melhor que aconteça logo, e não
enquanto fico sentado por aqui esperando, sem saber ao menos em
que tipo de problemas estou".

10


Assim é que semana e meia havia decorrido desde que Tchônkin
chegara a Krásnoie e se instalara na casa de Niúra. Já se acostumara
ao lugar e passara a conhecer todos, sentia-se muito em casa. Não
havia sinais de que, algum dia, Tchônkin seria levado de Krásnoie.
Não se podia afirmar que Tchônkin desgostasse dessa vida. Ao
contrário, não havia toque de alvorada, outros toques de corneta,
para não falar na ginástica ou instrução política. Embora se
houvesse saído bem no Exército, no que dizia respeito à lenha, ali
em Krásnoie tinha pão, leite, ovos, tudo fresco, cebolas tiradas da
horta e uma mulher ao lado — que mais podia desejar? Qualquer
pessoa na situação de Tchônkin gostaria muito de permanecer em
posto igual, até que seu tempo de serviço militar terminasse, e
trataria até mesmo de se reengajar por mais um ano. A despeito de
tudo havia algo, na situação de Tchônkin, que não lhe trazia paz —
ou seja, ele deveria ficar por ali uma semana, a semana já passara e
não recebera notícia de sua unidade, nenhuma outra instrução sobre

o que fazer. Se haviam resolvido mantê-lo ali deviam ter-lhe
informado, e um pouco mais de rações não faria mal a ninguém. Era
uma boa coisa que se houvesse instalado também, pois, de outra
forma, seu cinturão já estaria dando duas voltas completas.
Naqueles últimos dias, sempre que saía, Tchônkin erguia a cabeça e
fitava o céu procurando um pontinho aumentando devagar, levava
a mão à orelha para ouvir o ruído de um motor se aproximando.
Mas nada, nada a ser visto, nada a ser ouvido.

Desalentado e sem saber que medidas tomar, Tchônkin resolveu
apelar para um vizinho inteligente, pedindo-lhe orientação. O
vizinho de Niúra, Kuzmá Matvêievitch Gladichev, era homem
nessas condições.
Kuzmá Gladichev era conhecido como homem erudito não apenas
em Krásnoie, mas em toda a região. Uma das muitas provas de sua


erudição era a latrina de madeira que tinha na horta, e na qual
escrevera em letras negras e grandes, em inglês, "WATER CLOSET".
Embora ocupasse o cargo, de nenhum brilho e baixo salário, de
armazenista do kolkhoz, Gladichev dispunha de muito tempo livre
para suplementar seu conhecimento e guardava na mente
informações tão diversificadas, vindas de campos tão variados, que
seus conhecidos só conseguiam suspirar com inveja e respeito. "Ele
é mesmo uma coisa", afirmavam. Muitas pessoas diziam que se
podia acordar Gladichev à meia-noite e fazer-lhe qualquer pergunta
e que, sem parar para pensar, ele daria resposta muito detalhada e
explicaria qualquer fenômeno natural do ponto de vista da ciência
moderna, sem trazer à baila as forças sobrenaturais ou divinas.
Gladichev era inteiramente autodidata, pois seria ridículo atribuir
qualquer mérito de seus conhecimentos à escola paroquial, que ele
só freqüentara dois anos. O conhecimento acumulado por ele
poderia ter chegado à sua cabeça sem fazer qualquer sentido, não
fora pela Revolução de Outubro, que libertara o povo de todas as
formas de escravidão e permitia a qualquer cidadão subir às
culminâncias reluzentes e pétreas da ciência. Também devia ser
mencionado o fato de que muitas idéias científicas originais haviam
surgido no espírito libertado de Gladichev, antes da época deste
relato. Nada na vida passava por ele sem lhe sugerir todos os tipos
de idéias. Digamos, por exemplo, que Kuzmá vê algumas baratas no
fogão. Logo sua mente se põe a trabalhar: "Por que não se pode
prendê-las juntas", pensaria ele, "e fazer com que caminhassem na
mesma direção? A energia assim coletada poderia ser utilizada em
nossa agricultura". Kuzmá vê uma nuvem e pensa: "Por que não
fechá-la em algum tipo de invólucro e usá-la como balão? Embora
isso fosse muito difícil de verificar, afirma-se agora que foi
realmente Gladichev quem, muito antes do Professor Chklóvski,
propôs pela primeira vez a teoria de que os satélites de Marte são de
origem artificial.


Mas além de todas essas idéias a que nos referimos de passagem
havia uma à qual Gladichev resolvera dedicar toda a vida,
imortalizando assim seu nome nos anais científicos; inspirado pelos
ensinamentos progressistas de Mitchurin e Lissenko, ele
empreendera a criação de um híbrido da batateira e do tomateiro,
isto é, uma planta que crescesse com os tubérculos da batata no
chão, ao mesmo tempo em que tomates crescessem pela parte de
cima. No espírito dessa grande época Gladichev chamou seu futuro
híbrido de "Trilha Para O Socialismo" ou "TPOS" em forma
abreviada. Pretendera espalhar suas experiências por todo o
território do kolkhoz, mas não o permitiram e teve de se limitar aos
confins de sua própria horta. Por esse motivo era, às vezes,
obrigado a comprar batatas e tomates dos vizinhos.
Até então tais experiências não haviam produzido qualquer
resultado concreto, embora certas características do TPOS
começassem a surgir: as folhas e caules pareciam-se às da batateira,
enquanto as raízes eram iguaizinhas às do tomateiro. A despeito de
seus numerosos fracassos Gladichev não desanimava,
compreendendo que a verdadeira descoberta científica exige mãode-
obra e não poucos sacrifícios. Aqueles que sabiam de suas
experiências não acreditavam muito nelas, mas a obra de Gladichev
fora notada e recebera apoio, o que jamais teria acontecido nos dias
dos czares.
A certa altura o jornal distrital Tempos Bolchevistas imprimiu um
artigo grande e de duas colunas sobre Gladichev, sob o título geral
de "Pessoas na aldeia nova". A coluna se intitulava "Um criador
nato". Trazia até uma fotografia dele, inclinado sobre o híbrido
como se pudesse discernir, ali, o leve esboço do futuro de nosso belo
planeta. Após o artigo publicado no jornal distrital surgiu um artigo
num jornal da União Soviética, lidando com o problema da
"Criatividade científica das massas", mencionando Gladichev pelo
nome, entre outros. Em sua pesquisa e esforço contra as
dificuldades gerais Gladichev extraíra apoio da resposta de certo


acadêmico agrícola, embora tal resposta viesse em negativa. Em
carta enviada pessoalmente a Gladichev, o acadêmico fizera ver que
as experiências de Gladichev eram anticientíficas e, ao mesmo
tempo, sem futuro. Mesmo assim aconselhava Gladichev a manter o
ânimo e> citando o exemplo dos alquimistas antigos, fazia ver que
na ciencia nenhum trabalho é feito em vão, uma coisa é procurada e
outra descoberta. A despeito daquilo que tinha a dizer, a carta
causou forte impressão em Gladichev, ainda mais porque fora
datilografada com papel especial de uma instituição respeitável,
fora endereçada a Gladichev como "Estimado Camarada Gladichev"
e fora assinada pelo acadêmico. A carta produzia a mesma
impressão em todos os que a liam, mas sempre que o "criador nato"
começava a examinar as possibilidades que a nova planta TPOS
abriria para o mundo as pessoas se entediavam, retirando-se; como
muitos gênios científico>, Gladichev tivera de viver em estado de
isolamento total até que Tchônkin surgisse.
Gladichev gostava muito de falar sobre seu trabalho, e Tchônkin
estava entediado e nada tinha contra ouvi-lo. Isso os juntou e eles se
tornaram amigos. Quando Tchônkin saía de casa com algo para
fazer, ou só por sair, lá estava Gladichev trabalhando no jardim,
fazendo montes de terra, arrancando ervas, regando, sempre
usando a mesma roupa: culotes de cavalaria enfiados em botas
gastas de couro de bezerro, uma antiga camisa rasgada e um chapéu
de palha com aba larga, que se parecia a um sombreiro mexicano.
Onde ele o conseguira, eis algo que ninguém sabia.
Tchônkin acenava para ele.

— Olá, vizinho.
— Bom dia para você — respondia Gladichev, muito
educadamente.
— Como vai a vida? — perguntava Tchônkin com interesse.
— Trabalhando e andando — vinha a resposta modesta. E assim,
palavra por palavra, a conversa deles tomava peito, suave e
naturalmente.

— E então, quando essas batatas com tomates vão começar a
aparecer?
— Calma, ainda é cedo. Tudo a seu próprio tempo, como dizem.
Ainda terão que acabar de florir.
— Mas como vai ser? Se nada sair delas também este ano, o que vai
fazer então? — perguntou Tchônkin com curiosidade.
— Este ano algo deve aparecer — prometeu Gladichev, com um
suspiro de esperança. — Mas venha olhar você mesmo. Estamos
arranjando um caule como o da batateira e a forma da folha é igual
à do tomateiro. Está vendo?
— Sim, mas quem sabe? — retorquiu Tchônkin com dúvidas. — Já
não dá para distinguir um do outro.
— O que quer dizer com isso, que não se distingue um do outro? —
redarguiu Gladichev, ofendido. — Olhe só como estas plantas estão
cheias.
— Cheias estão, não há dúvida — concordou Tchônkin, e logo seu
rosto se iluminou. Uma idéia lhe ocorrera. — Escute, não podia dar
um jeito para os tomates ficarem por baixo e as batatas por cima?
— Não, não daria certo assim — explicou Gladichev, com paciência.
— Isso contradiria as leis da natureza, porque a batata é parte do
sistema de raízes enquanto o tomate é um legume que fica acima do
chão.
— Mesmo assim, seria uma coisa de chamar a atenção — disse
Tchônkin, recusando-se a desistir.
Talvez as perguntas de Tchônkin parecessem estúpidas a
Gladichev, mas quanto mais estúpida a pergunta tanto mais
inteligentemente pode ser respondida. As conversas deles davam
grande prazer a ambos, e sua amizade se fortalecia a cada dia que
passava. Já haviam resolvido reunir-se com suas esposas, Tchônkin
e Niúra, e Gladichev e sua esposa Afrodite (era como Gladichev a
chamava, e as outras pessoas haviam passado a chamá-la, embora
ao nascer ela houvesse recebido o nome de Efrossínia).

11


Tchônkin conseguira realizar muito trabalho aquele dia. Apanhara
água, partira lenha, dera de comer a Borka e preparara o jantar para
si e Niúra. Geralmente, quando havia feito tudo, ele se sentava à
janela, exatamente como estava, usando ainda o avental de Niúra e
apoiando a cabeça na mão, à espera de Niúra. Ou, às vezes, para
passar o tempo mais depressa, ele fazia seu bordado enquanto
estava ali sentado. U soldado sentado à janela com um avental de
mulher e fazendo bordado é uma visão ridícula, mas que dizer se
Tchônkin gostava de bordar? Gostava de observar os pequenos
pontos transformarem-se na imagem de um galo, uma rosa ou coisa
assim.

No momento ele começara novamente a bordar, mas não conseguia
prestar atenção ao trabalho, pois os pensamentos sobre a incerteza
de sua situação vinham distraí-lo. Diversas vezes fora até a varanda,
na esperança de bater um papo co Gladichev, mas ele não estava
por lá. Tchônkin não achav certo visitá-lo em casa e perturbá-lo,
ainda mais porque nunca o fizera antes.

Para passar o tempo de algum modo, pôs-se a trabalhar em tarefa
muito mais desengraçada do que bordar, ou seja, lavar o chão. Ao
terminar, Tchônkin levou a água suja até o portão e jogou na
estrada.

Uma menina com cerca de cinco anos de idade, usando vestido de
algodão estampado de flores, brincava com Bork perto da cerca;
tirara a fita de seda dos cabelos e a passara em volta do pescoço do
porco. Borka retorcia a cabeça, tentando olhar a fita, mas não o
conseguia. Quando a menina viu Tchônkin, tirou apressadamente a
fita de Borka e a apertou na mão.

— Você é filha de quem? — perguntou Tchônkin.
— Dos Kilin. E você, é filho de quem?
— De mim mesmo — sorriu Ivan.

— E eu sou de meu papai e minha mamãe — jactou-se a menininha.
— E de quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?
— De Stálin — disse a menininha e tratou de afastar-se correndo,
embaraçada.
— Continue com seu Stálin — disse Tchônkin, sacudindo a cabeça
enquanto a via afastar-se.
Também ele, todavia, amava Stálin a seu próprio modo.
Balançando o balde vazio Tchônkin regressou a casa, quando
Gladichev apareceu na varanda, descabelado, faixas vermelhas nas
faces.
— Ei, vizinho — disse Tchônkin, satisfeito por vê-lo. — Estive
esperando você aqui mais de uma hora. "Pois é, onde foi aquele
Gladichev?", era o que perguntava a mim mesmo.
— Dormi um pouco — disse Gladichev ainda atordoado,
espreguiçando-se e bocejando. — Eu me deito com um livro depois
do almoço, para ler um pouco sobre a seleção das plantas, e acho
que isso me faz dormir. Puxa, esse calor. . . um castigo, não acha? Se
não vier alguma chuva vai queimar tudo.
— Escute, vizinho — disse Tchônkin. — Você quer fumo? Eu tenho
um pouco de fumo bom e forte, plantado em casa. Pega a gente na
garganta. Niurka comprou no mercado de Dolgov, outro dia.
Tchônkin empurrou o avental para o lado e tirou do bolso uma lata
de óleo de arma cheia de fumo e um pequeno embrulho de jornal.
— Nada é mais pernicioso à saúde do que o fumo — declarou
Gladichev, aproximando-se da cerca que separava as duas hortas.
— Os cientistas calcularam que uma gota de nicotina pode matar
um cavalo.
Gladichev, todavia, não recusou a oferta feita por Tchônkin.
Acendeu e começou a tossir imediatamente.
— Coisa forte, sem dúvida — disse com aprovação.

— Forte como Sansão. Faz os jovens andarem e os velhos dormirem
— explicou Tchônkin. — Mas escute, vizinho, tenho um pequeno
favor a lhe pedir.
— Que tipo de favor? — E Gladichev cerrou os olhos Para fitá-lo.
— Nada, na verdade, só uma burrice.
— Vamos ver do que se trata.
— Ora, nem vale a pena falar sobre isso.
— Muito bem, se não vale a pena falar sobre isso, não fale —
retorquiu Gladichev.
— Você tem razão, é claro — concordou Tchônkin. — Mas preciso
dizer uma coisa. Eles me mandaram aqui por uma semana e me
deram rações para uma semana; já passou semana e meia e
ninguém vem me buscar. E nem uma palavra a respeito de outras
rações para mim. Será que tenho de viver de uma mulher, agora?
— Você tem razão, não está bom — disse Gladichev. — Vão
começar a chamá-lo de Gigolô Tchônkin.
— Bem, esqueça isso — objetou Tchônkin. — Escute, chame a sua
mulher do que quiser, mas vai me chamar de Vânia, como sempre.
Mas é o seguinte o que quero lhe falar. Tenho que escrever uma
pequena carta para o meu comandante. . . dizendo que ainda estou
aqui e perguntando o que vai acontecer comigo. Você é um
camarada educado. Eu conheço bem as letras, mas escrevo muito
mal. Tudo ia bem na escola, mas depois veio o kolkhoz, veio o
Exército; se você não estiver dormindo está em cima de um cavalo,
puxando rédeas para a direita e para a esquerda, e toda aquela coisa
da escola não adianta nada.
— Você sabe assinar seu nome? — perguntou Gladichev.
— Sim, claro que sei. Sei ler e assinar meu nome. Quer ouvir como
assino meu nome? Primeiro escrevo I de Ivan e depois o T, depois o
C e o H, depois uma rodelinha, e a coisa vai assim, depois ponho
uma linha torta com dois cortes por baixo da coisa toda de um lado
da página até o outro. Entendeu?

— Entendi — disse Gladichev. — Mas você tem papel e tinta?
— O que você acha? — perguntou Ivan. — Não é Niúra quem
dirige o correio? Vou lhe contar uma coisa, não é trabalho que
qualquer um possa fazer. Precisa de miolos.
— Está certo — concordou Gladichev finalmente. — Iremos à sua
casa. Minha mulher está em casa com o garoto e eles atrapalharão. E
isto é uma questão importante. Essa carta deve ser politicamente
correta.
Uma hora depois o documento politicamente correto havia sido
redigido. Dizia o seguinte:
"Ao comandante de batalhão Camarada Pakhomov. Do soldado do
Exército Vermelho Camarada Tchônkin, Ivan.

COMUNICADO

Solicito permissão para comunicar que, durante sua ausência e
minha estada em meu posto, guardando o equipamento militar do
aeroplano, não ocorreu incidente nenhum. Também solicito
permissão para dizer que, criado no espírito da dedicação completa
ao nosso Partido, ao nosso Povo e à pessoa do Grande Gênio Cam.
Stálin, J. V., estou pronto a servir mais, fielmente, na defesa de nossa
Pátria Socialista e na proteção de suas Fronteiras, para cujo fim
solicito que me envie rações para um período ilimitado de tempo e
também meu uniforme novo, que até agora não recebi.
Por favor, não deixe de atender a este pedido.
Sem mais. . . "

— Bom trabalho — disse Tchônkin, aprovando a redação de
Gladichev e apondo sua assinatura, que ia de um lado a outro da
página, exatamente como prometera fazer.
Gladichev acrescentou o endereço ao envelope selado que Tchônkin
lhe deu e se retirou, satisfeito.

Tchônkin colocou o envelope sobre a mesa, apanhou o guardanapo
preso no bastidor e sentou-se à janela. Lá fora o calor já não era
tanto, o sol estava perto de se pôr. Niúra devia estar chegando,
Borka, o porco, já esperava por ela no morro além da aldeia.

12


O Presidente Golubev amarrou o cavalo no portão de Niara e subiu
até a varanda. Não se pode dizer que ele estivesse em plena
compostura; muito ao contrário, entrava na casa de Niúra com o
mesmo tipo de agitação que sentia quando ia ver o primeiro-
secretário da Comissão Distrital. Mas a caminho da casa de Niúra o
Presidente Golubev resolvera entrar, e não queria recuar agora de
tal decisão.

Bateu à porta e abriu-a sem esperar resposta. Ao ver Golubev, os
olhos de Tchônkin examinaram o aposento, tomados de susto e
confusão, procurando um lugar onde guardar o bordado.

— Está bordando um pouco? — perguntou educadamente o
presidente, mas a suspicacia transparecia na voz.
— É coisa que a gente faz para passar o tempo — explicou
Tchônkin e jogou o bordado sobre o banco.
— Com certeza — disse o presidente, batendo os pés no umbral e
sem saber como manter a conversa. — Sim, sim — aduziu.
— Não vamos ficar por aí dizendo "sim" o dia todo — propôs
Tchônkin, de bom humor.
"Ele faz rodeios e desvia a gente", observou o presidente para si
mesmo. Golubev resolveu adotar um caminho diferente — as
questões externas.
— Os jornais dizem — começou com cautela, aproximando-se da
mesa — que os alemães estão bombardeando Londres.

— Eles são capazes de dizer qualquer coisa no jornal — explicou
Tchônkin, evitando uma resposta direta.
— O que quer dizer? — perguntou Golubev. — Em nossos jornais
tudo que publicam tem um motivo.
— E para que você está aqui? — perguntou Tchônkin, percebendo
algo esquisito.
— Não há motivo — respondeu o presidente, despreocupadamente.
— Passei só para ver como você ia. Escrevendo um despacho? —
perguntou, notando sobre a mesa o envelope com endereço militar.
— Só o que me dá na cabeça.
"Puxa, que sujeito esperto!", exclamou o presidente para si próprio.
"Cutuquei-o de um lado e de outro, mas ele só responde como se
não soubesse de nada. Talvez tenha educação superior. Talvez até
fale francês."
— Quês quessé? — e Golubev surpreendeu-se dizendo de repente,
em voz alta, a única expressão que conhecia em francês.
— Hem? — Tchônkin ergueu os olhos assustados para encará-lo e
começou a bater as pálpebras, que se haviam avermelhado com a
confusão.
— Quês quessé? — repetiu o presidente, obstinado.
— O que é isso, de que está falando? — indagou Tchônkin, agora
preocupado. Em sua agitação começou a andar de um lado para
outro. — Escute, pare de falar essas palavras. Fale como deve falar,
e não de outro jeito. Não estou falando feito doido com você.
— Dá para ver que você não está falando feito doido — disse o
presidente, resolvendo adotar a ofensiva. — A vigilância está sendo
efetuada aqui. Você deve pensar: "Aqueles idiotas não vão
entender". Mas agora até os idiotas ficaram espertos. E
compreendemos tudo. Talvez nem tudo esteja perfeito por aqui,
mas não está pior que em outras partes. Veja o "Vorochilov", veja o
"Legado de Ilitch". . . é a mesma história por toda parte. E o motivo
pelo qual plantamos em terreno congelado no ano passado foi

termos recebido ordens para tanto. As ordens vieram de cima, mas

o kolkhóznik tem resposta para tudo. Para não falar no presidente.
E, então, você vem voando em seu aeroplano e começa a escrever!
— Golubev estava gritando, ficava cada vez mais indignado. — Vá
escrever o que quiser. Escreva que o presidente arruinou o kolkhoz,
que é um beberrão. Andei bebendo hoje. Venha cá, sinta o cheiro. —
E, aproximando-se de Tchônkin, soprou-lhe bem no nariz. Tchônkin
recuou.
— O que foi que eu fiz? — perguntou Tchônkin, procurando
justificar-se. — Só faço o que me mandam fazer.
— É isso o que você devia ter dito logo no começo, que recebeu
ordens para vir — proclamou Golubev, quase alegremente. — Em
vez de ficar sentado aí como um camundongo disfarçado de
mulher. E quais são suas ordens? Você quer meu cartão do Partido?
Aqui está. Prisão? Muito bem, estou pronto. É melhor a prisão do
que viver assim. Tenho seis filhos, vou dar um saco a cada um e eles
podem sair pedindo esmolas pelas aldeias. Mas poderão comer, de
algum jeito. Vá em frente, escreva, escreva! — Cheio de confusão,
bateu a porta e se retirou.
Somente lá fora Golubev compreendeu que fizera uma asneira, e
percebeu que dessa feita ia realmente ser pego.
"O que quer que aconteça", pensava com irritação enquanto
desamarrava o cavalo, "é melhor acontecer agora do que enquanto
eu fico aqui sentado tremendo, esperando a coisa estourar. O que
acontecer aconteceu."
Volkov, o contador, estava à sua espera no gabinete com o relatório
financeiro. O presidente assinou o relatório sem mesmo olhá-lo,
sentindo com isso um prazer vingativo. "Espero que haja realmente
alguma coisa futricada por aqui, pois não importa mais." Depois
ordenou a Volkov que preparasse um cheque para o gráfico sobre o
qual Boríssov lhe falara. Em seguida mandou embora o contador.


A sós, Golubev podia sentir-se mais calmo, e começou a arrumar o
monte de papéis que tinha na mesa. Não estavam absolutamente
organizados, e então o presidente resolveu colocá-los em pilhas
separadas, de acordo com sua categoria. Arrumou os papéis de
entrada em uma pilha e os papéis de saída (que não haviam,
todavia, saído ainda) em outra. Fez pilhas separadas para
documentos financeiros e para os relatórios dos kolkhózniks. Nesse
exato instante Golubev teve a atenção chamada por uma conversa
que vinha do outro lado da divisão que separava seu gabinete do
corredor.

— Quando você entra na cela pela primeira vez, eles enfiam uma
toalha limpa diante de seus pés.
— Para quê?
— Vou lhe contar. Se é a sua primeira vez, você passa por cima da
toalha. Mas se você for um patife de verdade, limpa os pés na toalha
e depois joga no penico.
— Isso é duro para a toalha.
— Mais duro ainda para você, se passar por cima dela.
Eles começam ali mesmo com você. . . Esqueço como chamam.
Espere aí, já sei. . . A iniciação.

— E do que se trata?
— De início eles mandam você para a quinta esquina. Sabe o que
isso quer dizer?
— Isso, eu sei.
— Depois vem o pulo de pára-quedas.
— Que tipo de pulo de pára-quedas você pode fazer em uma cela?
— Escute só. . .
Golubev achou tal conversa muitíssimo interessante e acreditou
piamente nela. Ocorreu-lhe até que talvez não fosse um acidente
estar ouvindo aquilo, que talvez toda essa informação viesse bem a
calhar, no futuro não muito distante. As vozes eram conhecidas, a
que fazia as perguntas pertencia a Nikolai Kurzov. A voz que

respondia às perguntas também era conhecida, mas, por mais que
se esforçasse, Golubev não conseguia identificá-la.

— É assim que funciona o salto de pára-quedas: pegam você pelos
braços e pelas pernas e jogam no chão três vezes, de costas.
— Mas isso machuca — disse Kurzov.
— Aquilo lá não é uma casa de descanso — explicou aquele que
narrava. — De qualquer modo, depois disso você é um dos
camaradas e pode participar nas eleições, juntamente com todos os
outros.
— E eles têm eleições de verdade por lá?
— E por que não? Vocês têm eleições até por aqui, não é? Lá eles
elegem um líder. Um homem se senta com um pedaço de papel com
os sobrenomes preso entre os joelhos. Todos os outros são
vendados, ficam com as mãos amarradas e fazem rodízio, vindo até
ele e puxando os pedaços de papel com os dentes.
— Não é tão ruim — disse Kurzov, satisfeito. — Nada de muito
pavoroso nisso aí.
— Claro que não é tão pavoroso. Só que, quando chega a sua vez,
você não chega aos joelhos, você pega é a bunda nua do sujeito.
O presidente era criatura melindrosa, e ao ouvir esse detalhe seu
rosto se encrespou. Queria ficar sabendo quem estava contando
aquela história interessante e saiu para o corredor como se estivesse
apenas a caminho de dar uma espiada no gabinete da brigada.
No banco comprido por baixo da parede coberta de recortes de
jornais achavam-se sentados Nikolai Kurzov e Liócha Jarov. Este,
três anos antes, pegara oito anos por roubar um saco de farinha do
moinho. Vendo o presidente, Liócha se pôs em pé num salto e tirou
da cabeça o quepe, cuja viseira fora rasgada, descobrindo a cabeça
escanhoada e coberta de pêlos curtos.
— Olá, Ivan Timofêievitch — disse, no tom de voz que as pessoas
usam quando encontram alguém que há muito não vêem.
— Olá — disse o Presidente Golubev, taciturno, como se houvesse
visto Liócha na véspera. — Você já saiu?

— Saí cedo — explicou Liócha. — Recebi dois dias de folga por cada
dia que servi.
— Veio falar comigo?
— Isso mesmo — disse Liócha.
— Está certo. Entre, então.
Liócha acompanhou o presidente ao seu gabinete, limpando
cuidadosamente as botas esfrangalhadas, como se tivesse medo de
acordar alguém. Esperou que o presidente se houvesse sentado e só
então sentou-se também na beira do banco em frente a Golubev.
— Então, o que tem a dizer a seu favor? — perguntou o presidente,
ainda taciturno, após algum silêncio.
— Vim pedir-lhe trabalho, Ivan Timofêievitch — disse Jarov em
atitude de respeito, puxando nervosamente.o gorro que pusera
sobre o joelho.
O presidente levou alguns momentos pensando.
— Trabalhar, é o que diz? — perguntou então. — Que tipo de
trabalho posso lhe dar? Sua reputação não é das melhores, como
sabe, Jarov. Estou precisando empregar um homem na fazenda de
gado leiteiro. Poderia mandar você, mas você ia começar a roubar o
leite.
— Não roubo, Ivan Timofêievitch — asseverou Liócha. — Que um
raio me fulmine, eu não roubo.
— Deixe para lá as promessas — atalhou Golubev. — Para você as
promessas são mais fáceis do que jogar fora um palito. Quantas
vezes eu já lhe disse antes: "Cuidado, Jarov, está se comportando
mal, vai acabar perdendo". Eu lhe falei ou não?
— Falou, sim — concordou Jarov.
— Pois é, falei. E o que você costumava dizer nessas ocasiões? "Não
é nada, a gente resolve." Agora você vê o que "nada" significa, não
vê?
— Não há motivo para recordarmos o passado, Ivan Ti-mofêievitch
— disse Liócha, no seu tom mais sincero. Suspirou fundo,

prosseguiu: — Muitas vezes pensei em suas palavras, lá no campo.
Lembro-me de uma vez em que estávamos jantando, exatamente
quando eles serviam a compota. . .

— Eles servem mesmo compota por lá? — perguntou o presidente
com mais do que simples curiosidade.
— Depende do chefe. Um nos mata de fome, e outro, se quer
cumprir o plano, alimenta-nos, veste-nos, desde que se dê tudo o
que se tem, só isso.
— Então, em outras palavras, existem alguns chefes bons? — voltou
a perguntar o presidente, a esperança transparecendo na voz,
empurrando um maço de cigarros Delhi na direção de Jarov. — Tire
um. E diga-me uma coisa: o que eles têm por lá em matéria de
recreação?
— O que você quiser — explicou Liócha. — Cinema, espetáculos de
amadores, um banho a cada dez dias. Os espetáculos de amadores
são melhores do que os da cidade. Tivemos um "artista do povo" no
campo e dois "artistas festejados", e já nem sei quantos outros
artistas comuns. De modo geral tivemos uma turma bastante
educada por lá. — Liócha baixava a voz. — Muitos deles. Tivemos
também um membro da academia. Cumprindo dez anos. Queria
sabotar os carrilhões no Kremlin para darem a todo o país a hora
errada.
— Ora essa! — E o presidente fitava Liócha com incredulidade.
— Ora essa, uma vírgula. Estou lhe dizendo, existe muita
destruição e sabotagem no país, Ivan Timofêievitch. Por exemplo,
esses cigarros que você fuma também têm sabotagem.
— Dê o fora daqui — disse o presidente, mas tirou o cigarro da
boca e o fitou com desconfiança. — Que tipo de sabotagem? O que
acontece, estão envenenados, ou coisa que o valha?
— Pior — disse Liócha, convicto do que afirmava. — Você pode
decifrar a palavra "Delhi" para mim?
— O que há para decifrar aí? Delhi é Delhi, uma cidade da índia.

— Ora — suspirou Liócha. — E você é um homem instruído. Pois
bem, se quer saber, se pegar letra por letra "Delhi" significa
"Derrubemos e Estraçalhemos o Leninismo Humanista
Internacional".
— Psiu, fale baixo — disse o presidente, olhando para a porta. —
Isso nada tem a ver com você ou comigo. Prefiro saber como é a
vida por lá.
Nesse momento Nikolai Kurzov, sem esperar que o chamassem, foi
entrando no gabinete do presidente. Tinha de serrar madeira de
manhã e pediu ao presidente para lhe dar dois quilos de carne.
— Venha amanhã — disse o presidente.
— Que amanhã é esse? — contrapôs Nikolai. — Eu preciso pegar o
trem assim que amanhecer.
— Não importa. Vá depois de amanhã. Eu faço uma nota dizendo
que o retive por aqui.
O presidente esperou até que a porta se fechasse à retirada de
Nikolai e voltou-se de imediato para Liócha.
— Fale um pouco mais.
(Vovó Dúnia, que trabalhava o mínimo, na mercearia, notou que a
luz ficou acesa no gabinete do presidente até uma da madrugada.)
O presidente continuou a perguntar a Liócha sobre a vida no
campo, e os relatos feitos tornaram bem claro que a vida não era tão
horrível por lá. Trabalhava-se dez horas, enquanto aqui Golubev
tinha de se movimentar desde o amanhecer até o crepúsculo. Por lá
serviam três refeições por dia, aqui não era sempre que ele
conseguia comer duas vezes. E não ia ao cinema há mais de seis
meses.
Ao se separarem, Golubev prometia um bom emprego a Liócha.
— Enquanto isso você vai trabalhar como pastor — explicou. —
Você vai pastorear o gado do povo. Sabe qual é o pagamento?
Quinze rublos pagos pelo dono e meio dia de trabalho do kolkhoz.
Você come nas casas do povo. Cada semana com uma família. Você

trabalha um pouco como pastor, depois vamos dar uma espiada por
aí e talvez achemos algo' um pouco melhor, mais tarde.
O presidente voltou para casa em bom estado de espírito, aquele
dia. Afagou as cabeças dos filhos adormecidos e chegou a ponto de
dizer uma palavra de ternura para a esposa, tão desacostumada a
qualquer afeição vinda do marido que foi para o corredor e
derramou algumas lágrimas.

Tendo enxugado as lágrimas ela trouxe ao marido uma tigela de
barro cheia de leite frio. Ivan Timofêievitch tomou quase toda a
tigela, depois despiu-se e foi se deitar. Por muito tempo, todavia,
não conseguiu adormecer. Suspirava e se remexia na cama,
lembrando-se de tudo que Liócha lhe contara, até o mais
insignificante detalhe. Depois a fadiga se apoderou dele, as
pálpebras pesaram e fecharam-se. "Mesmo por lá as pessoas vivem",
pensava Golubev ao adormecer.

13


— A Terra tem a forma de uma esfera — explicou Gladichev a
Tchônkin, um dia. — Está sempre girando em torno do Sol e em
torno de seu eixo. Nós não sentimos esse movimento porque
também estamos girando juntamente com a Terra.
Não era a primeira vez que Tchônkin ouvia falar sobre esses giros
da Terra. Alguém já lhe dissera isso antes, embora não se lembrasse
de quem. O que não conseguia compreender era como as pessoas
continuavam em cima da Terra, e por que a água não partia pelo
espaço, arremessada fora.
Era a terceira semana da estada de Tchônkin em Krásnoie e ainda
não recebera sinal ou qualquer palavra de sua unidade. Uma das
botas já começava a furar e ninguém viera de carro ou avião para

lhe dar ordem alguma sobre o que devia fazer em seguida.
Tchônkin, naturalmente, ignorava que Niúra não havia despachado
a carta que ele lhe dera para mandar. Contando que os superiores
dele se esquecessem da existência de Tchônkin, e não querendo
lembrá-los, mesmo à custa de não receber suas rações, Niúra levara
a carta na bolsa de lona por diversos dias, depois a queimara
quando Ivan não estava por perto.
Nessa ocasião ocorriam fatos pelo mundo, fatos esses que ainda não
tinham relação direta com Niúra ou Tchônkin.
A 14 de junho efetuou-se uma conferência no quartel-general de
Hitler para dar os arremates a um plano chamado "Barbarossa".

Nem Tchônkin nem Niúra tinham a mínima noção desse plano.
Cuidavam de suas próprias vidas, que pareciam mais importantes.
Niúra, por exemplo, estivera com aspecto terrível nos últimos dias;
perdia cabelo como um gato e quase não conseguia andar. Embora
ela e Tchônkin fossem cedo para a cama, ele não a deixava dormir.
Mesmo durante o dia, assim que Niúra atravessava o umbral de sua
casa, cansada do trabalho, Tchônkin lhe caía em cima como um
animal faminto e a arrastava para a cama, com mala de correio e
tudo o mais. Às vezes ela se escondia no palheiro ou no galinheiro,
mas Tchônkin conseguia encontrá-la. Não havia como fugir ao
homem, e ela chegou a queixar-se com Ninka Kurzova, que se
limitou a rir, invejando Niúra em segredo, já que ela própria encontrava
dificuldades em pegar o seu Nikolai pelo menos uma vez por
semana.
No mesmo dia em que os arremates estavam sendo feitos na
Operação Barbarossa, porém, Niúra e Tchônkin tiveram um
desentendimento, desentendimento esse um tanto esquisito de
descrever.
Era noite e Niúra, tendo regressado do centro distrital, entregado a
correspondência e cedido duas vezes a Tchônkin, arrumava a casa.
Para não atrapalhá-la Tchônkin saíra com a machadinha e se pusera
a consertar a cerca. Endireitou um esteio, depois deu alguns passos


para trás; seus olhos se apertaram e o que via lhe trazia grande
satisfação. "Que competente sou", pensava ele. "Tudo em que ponho
a mão sai ótimo."
Niúra olhou casualmente pela janela e também sentiu satisfação.
Desde que Ivan aparecera sua casa fora gradualmente posta em
ordem. O fogão não soltava mais fumaça, a porta fechava, o
gadanho fora travado e afiado. Até uma coisinha como um pedaço
de ferro para raspar a lama dos pés — aquilo estaria ali se não fosse
a presença de um homem?
Um bom homem, um homem mau, ali por muito tempo ou apenas
de passagem, o fato estava em que ele era seu. E o bom não era só
que ele a ajudava na casa e depois partilhava a cama, mas o
conhecimento de que estava presente. Era bom poder dizer a uma
amiga ou vizinha a quem encontrava: "Ontem meu homem
consertou o telhado, pegou vento frio e se resfriou um pouco, teve
de tomar leite quente". Era até agradável dizer: "Quando o meu fica
piçudo pega logo nas tenazes do fogão ou atiçador e começa a
quebrar tudo que temos na casa, até o último prato". Isso era uma
queixa, mas, no fundo, uma forma de vanglória. Está claro que não
se podia dizer que ele inventou a máquina a vapor ou promoveu a
fissão do átomo, mas, pelo menos, fez alguma coisa, provou que
tem valor, e pode-se dar graças por isso. "O meu homem! O meu!"
Às vezes arranja-se um que não tem aspecto dos melhores — cego
de um olho, corcunda, bebe tudo o que ganha, deixa a mulher e os
filhos semimortos de pancada. É livrar-se dele, acabou-se. Mas ela
não se livra dele. "Ele é meu. Bom, mau ou indiferente, mas não seu,
não dela, é meu!"
Niúra se punha pensativa enquanto olhava pela janela. Houvessem
ou não convivido por muito tempo, já estava presa a ele, dera-lhe o
coração. Mas aquilo valia a pena? Não teria de dilacerar o coração
por causa dele, e isso brevemente? Seria possível que um dia
voltasse para casa e nada mais houvesse senão as quatro paredes?


Pode-se conversar com as paredes, mas elas não costumam
responder.
Tchônkin acertou o último esteio e recuou dois passos, machadinha
à mão. Parecia bom. Certo, alinhado. Plantou a machadinha no
esteio da cerca e tirou do bolso a lata de fumo para enrolar e um
pedaço de jornal. Acendeu e bateu na janela.

— Escute, Niúra, ande depressa por aí. Já vou entrar e a gente vai
brincar um pouquinho.
— Continue, diabo doido — respondeu Niúra, praguejando com
afeição. — De quanto você é capaz?
— Quanto você quiser — prometeu Tchônkin. — Se você não
ficasse com tanta raiva seria o dia todo.
Niúra livrou-se dele com um aceno da mão. Ivan se afastou do
peitoril da janela pensando no que o futuro poderia trazer-lhe. Foi
quando ouviu a voz de alguém bem atrás de si, e por segundos se
assustou, chegando a tremer de surpresa.
— Ei, soldado, pode me dar um cigarro?
Tchônkin ergueu o olhar e viu Grandão em pé a seu lado, trazendo
uma vara de pescar em uma das mãos e uma vara flexível com
talvez dez peixinhos na outra. Tchônkin voltou a tirar do bolso a
lata de fumo e o jornal, e entregando-os a Grandão perguntou:
— Como vai a pescaria?
Grandão encostou uma vara na cerca, segurou a outra com os
peixes sob o braço e enrolando um cigarro disse com relutância:
— Que pescaria por lá! É uma piada. Estes não são peixes. Vou dar
essas coisinhas ao gato. Por lá dava para pegar lúcio grande, com
isca, lúcio deste tamanho. . . — Acendeu o cigarro no de Tchônkin e
tocando-lhe o ombro esquerdo com a mão direita estendeu o braço
esquerdo para demonstrar de que tamanho os lúcios costumavam
ser. — Agora não dá para achar um só lúcio por lá durante o dia,
mesmo com lanterna. A carpa comeu todos, é o que acho. Você,
então, está vivendo com Niúra? — perguntou, mudando
abruptamente de assunto.

— Pois é — disse Ivan.
— Está pensando em ficar com ela quando sair? — sondou
Grandão.
— Ainda não resolvi — disse Tchônkin, em tom pensativo, e sem
saber se devia confidenciar suas dúvidas a um homem que mal
conhecia. — É claro que Niurka é uma boa garota, de bom aspecto,
mas você sabe, ainda sou jovem e preciso dar uma olhada por aí,
ver as coisas e depois oficializar tudo e me instalar em vida familiar.
— E para que precisa olhar por aí? — perguntou o homem. — Trate
de casar-se, é isso. Afinal de contas Niúra tem casa própria, tem
uma vaca. Onde é que você vai achar outra garota assim?
—Bem, parece verdade. . .
— É o que estou lhe dizendo. . . trate de casar-se. Niúra é uma
menina boa, mesmo, ninguém vai lhe falar nada de ruim sobre ela.
Por todo o tempo em que morou sozinha nunca se misturou com
ninguém, nunca teve um homem na vida. O único que teve foi
Borka, esse, sim.
— Quem é esse Borka? — perguntou Tchônkin, aguçando os
ouvidos.
— Quem é Borka? O leitão dela, é claro — explicou Grandão
prontamente.
Tchônkin engasgou com a fumaça, tomado de surpresa, começou a
tossir, jogou o cigarro ao chão e o esmagou com o calcanhar.
— Pare com essas besteiras — redarguiu com raiva. — Que negócio
é esse de Niúra e um leitão?
Grandão fitou-o com seus olhos azul-claros.
— O que foi que eu lhe disse? Nada de ruim aconteceu por aqui.
Todos sabem que uma mulher sozinha também tem necessidade,
isso mesmo. Avalie por si mesmo. . . ele podia ser um jantar há
muito tempo, mas ela não quer matá-lo, e por quê? Como pode
matá-lo, quando ele vai à cama dela? Ele se põe debaixo das
cobertas e ficam ali como homem e mulher. Pode perguntar a

qualquer pessoa na aldeia, qualquer um pode lhe dizer. . . você não
achará melhor do que Niurka.
Satisfeito com a impressão que havia causado, Grandão apanhou a
vara de pescar e seguiu em frente, calmo e vagaroso, puxando a
fumaça do cigarro. Tchônkin, por outro lado, ficou ali bastante
tempo, com a boca aberta e o olhar confuso a acompanhar Grandão,
sem saber como lidar com as notícias que acabara de receber.
Com a saia arregaçada para cima, Niúra lavava o soalho, quando a
porta foi escancarada e Tchônkin apareceu.

— Espere um pouco, estou lavando o chão — disse Niúra, sem
observar seu estado de agitação.
— Que me importa? — exclamou Tchônkin, e foi passando com as
botas sujas até a prateleira onde pendurara o fuzil. Niúra estava a
ponto de repreendê-lo quando compreendeu que alguma coisa o
perturbara.
— O que há com você? — perguntou.
— Nada. — E Tchônkin agarrou o fuzil, abrindo o ferrolho para ter
a certeza de que havia um cartucho lá dentro.
Niúra colocou-se à porta, o trapo na mão.
— Deixe-me passar! — Tchônkin foi até ela e tentou empurrá-la do
caminho com a coronha do fuzil, usando-o como um remo.
— O que deu em você? — gritou Niúra, procurando fitá-lo olho a
olho. — Para que esse fuzil?
— Deixe-me passar, já lhe disse — disse Tchônkin em-purrando-a
com o ombro.
— Diga-me o motivo — insistiu Niúra.
— Bem, está certo. — Tchônkin pôs o fuzil sobre o pé e fitou-a olho
a olho. — O que se passou entre você e Borka?
— De que está falando? Que Borka?
— Todo mundo sabe qual é o Borka. Borka, o leitão. Você andou
dormindo com ele muito tempo, ou o quê?
Niúra tentou sorrir.
— Vânia, você está brincando, não?

Por algum motivo sua pergunta acabou com o resto de compostura
que havia em Tchônkin.

— Vou lhe mostrar quem está brincando! — E Tchônkin a ameaçava
com a coronha do fuzil. — Diga-me, sua cadela, quando é que
começou a andar com ele?
Niúra o fitava tomada de pânico, como se quisesse calcular se
Tchônkin enlouquecera. Se não enlouquecera, era ela a louca, pois
sua pobre inteligência não conseguia entender o que ele dizia.
— Céus, o que se passa aqui! — gemeu Niúra.
Deixou o trapo cair e, levando as mãos molhadas à cabeça,
caminhou até a janela. Sentou-se no banco e começou a chorar
baixinho, indefesa, como as crianças doentes choram quando não
têm força bastante para chorar.
Tchônkin não contara com tal reação. Ficou confuso e bateu os pés

pela porta aberta, sem saber o que ia fazer em seguida. Depois
encostou o fuzil na parede e caminhou até Niúra.


— Escute, Niúra — disse, depois de algum silêncio. — Mesmo que
tenha havido alguma coisa, não me importa. Eu dou um tiro nele e a
coisa acaba. Pelo menos teremos alguma carne, por pouca que seja.
Tudo o que ele faz, aliás, é correr pelo quintal como um cachorro,
estamos desperdiçando comida com ele.
Niúra continuou chorando e Tchônkin não sabia se ela o ouvira ou
não. Passou a palma grossa das mãos pelos cabelos dela e, depois de
pensar um pouco, apresentou a questão de modo diferente:
— Mas se não houve nada entre vocês, então é só falar, Niúra. Eu
não fiz isso para ser mau. Banquei o bobo, apenas. Grandão esteve
tagarelando comigo e depois vim para cá e comecei a tagarelar
também, sem pensar em mais nada. Você sabe como as pessoas são,
Niúra, elas são más, não prestam. Quando uma mulher ou moça
vive sozinha não há o que não digam contra ela.
Suas palavras, todavia, não tiveram qualquer efeito tranqüilizador.
Em vez disso produziram a reação oposta! Niúra começou a chorar,

a voz já não era a sua; caiu no banco, passou os braços por ele e
começou a estremecer de soluços, todo o corpo a se sacudir.
Em desespero, Tchônkin correu e se colocou à frente dela,
procurando fazer algo. Depois caiu de joelhos e começou a puxar
Niúra do banco, gritando-lhe ao ouvido:

— Escute, Niúra, o que se passa? Eu não estava falando sério.
Ninguém me disse nada. Eu inventei tudo, foi uma brincadeira. Eu
sou um idiota, está ouvindo? Niúra, sou um idiota. Você quer me
bater na cabeça? Bata com o ferro, não me importa, mas pare de
chorar.
E na verdade Tchônkin agarrou o ferro encostado ao banco e o
colocou na mão de Niúra. Ela jogou,-o para o lado e Tchônkin
instintivamente deu um pulo para trás, livrando-se assim de ter o
pé atingido. Por estranho que fosse, depois de ter jogado fora o
ferro, ela se acalmou e ficou calada; apenas os ombros continuavam
a tremer. Tchônkin disparou para o corredor e trouxe de lá uma
concha com água. Os dentes batendo na concha, Niúra tomou a
água de um só gole e depois colocou a concha no banco diante de si.
Sentou-se, enxugou as lágrimas com a gola do vestido e, quase
calma, perguntou:
— Quer comer?
— Não seria mau — concordou Tchônkin com alegria, satisfeito por
aquilo ter acabado. Suas dúvidas pareciam agora ridículas. E ele
tivera de aceitar tamanha estupidez! E de quem, de Grandão, que só
sabia dizer bobagens.
Ivan correu para fora e trouxe a machadinha de volta ao corredor.
Exatamente quando passava pela porta que dava para o telheiro da
vaca ouviu o grunhido abafado de Borka e, mais uma vez, uma
dúvida sombria atacou-lhe a alma. Embora quisesse, não podia
suprimi-la.
Niúra tinha posto duas canecas de leite fumegante e ainda fragrante
na mesa e estava batendo agora no forno com as tenazes, tentando

tirar de lá a paneja de ferro cheia de batatas. Tchônkin veio ajudá-la
e sentou-se à mesa.

— Escute, Niúra — disse, puxando para perto de si o leite. — Não
me importa se você ficar com raiva ou não, vou matar Borka
amanhã.
— Por quê? — perguntou ela.
— E que importa por quê?
— Por nada. Só porque as pessoas começaram a falar assim você
precisa matar esse porco, só para eles não terem de que falar.
Tchônkin fitou-a com cautela, mas desta feita Niúra não
prorrompeu em lágrimas. Serviu as batatas, empurrou um prato
para Tchônkin e tomou o outro para si, dizendo com amargura:
— E você acha que, se matar, as pessoas vão parar de falar? Ora,
Vânia, você não conhece a gente daqui. Eles vão dar pulos de
alegria. Olhe o que eles vão dizer: "Por que será que ele matou o
porco tão de repente?", e: "Está claro o motivo. Porque Niúra vivia
com ele". E assim por diante. Uma pessoa diz uma coisa, a outra
aumenta um pouco e nem no livro se vai achar uma história melhor.
"Uma noite essa Niurka sai para tirar leite da vaca e deixa Ivan em
casa. Ele espera, espera, mas nada de Niurka. 'Vou dar uma olhada',
é o que pensa, 'e ver se ela está dormindo.' Vai ao telheiro e lá está
Niurka. . . "
— Cale a boca, você! — berrou Tchônkin de repente, empurrando a
caneca e derramando leite sobre a mesa.
O quadro que Niúra pintara afetara Tchônkin com tanto vigor como
se ele o houvesse visto com os próprios olhos, e, a despeito do
arrazoado que ela lhe dera para convencê-lo, enfureceu-se de novo.
Derrubou o banco e correu para o fuzil que se achava perto da
porta, mas Niúra foi mais rápida e lá se colocou como uma estátua.
Tchônkin não conseguia arredá-la do caminho.
Repetiram a cena anterior — Tchônkin esbarrava em Niúra com os
ombros e dizia:
— Deixe-me passar! E ela respondia:

— Não deixo!
— Deixe-me passar!
— Não deixo! Ele insistia:
— Deixe-me passar!
Mas ela permanecia firme:
— Não deixo!
Finalmente tudo aquilo cansou Tchônkin e ele sentou-se no banco,
segurando o fuzil entre os joelhos.
— Está muito claro que Grandão dizia a verdade a seu respeito,
Niurka — afirmou, cheio de raiva. — Se não tivesse havido alguma
coisa entre você e Borka, nesse caso você não se importaria tanto
assim. Há muito tempo ele já devia ter sido comido. É hora de fazer
bacon daquele bicho, mas você está ao lado dele. E assim é a coisa,
não vamos mais viver juntos. Desse modo a questão agora é a
seguinte. . . um ou outro, eu ou o porco. Eu lhe dou cinco minutos
para pensar, pouco mais de cinco. Depois apanho minhas coisas, e
até logo, acabou.
Tchônkin olhou para o relógio de parede que ficava em frente à
janela, anotou a hora e, de caneta na mão, deu as costas a Niúra a
fim de aguardar-lhe a decisão. Ela puxou o banquinho e sentou-se à
porta. Ali ficaram ambos em silêncio, como em uma estação
ferroviária quando todas as palavras que preparamos já foram ditas
e só resta o beijo de despedida e, a essa altura, somos informados de
que o trem está com duas horas de atraso.
Passaram-se cinco minutos, pouco mais de cinco minutos, seis
minutos. Tchônkin voltou-se para Niúra e perguntou:
— Bem, você resolveu?
— O que há para resolver? — disse ela, com tristeza. — Você
sozinho resolveu tudo, Vânia. Faça o que achar que deve fazer. Mas
não vou deixar que mate Borka. Faz poucos dias que eu o conheço,
mas você precisa se lembrar de que ele mora aqui já há dois anos.
Eu o recebi do kolkboz quando era pequenino, com seis dias de

idade. Dei-lhe leite com mamadeira, lavei-o no cocho e pus garrafas
de água quente na barriguinha dele quando estava doente. Você
pode rir se quiser, mas ele agora é como se fosse um filho para mim.
E não existe pessoa a quem eu seja mais querida do que ele, porque
ele vem me receber quando venho do trabalho e vai comigo quando
vou trabalhar. Não importa qual seja o tempo, assim que começo a
subir aquele morrinho ele vai a meu encontro, no meio da neve e
mesmo no meio da lama. E nesses momentos meu coração dá um
salto tão grande que preciso me abaixar até ele e chorar como uma
idiota, porque me sinto tão feliz ou tão triste que não sei, o mais
certo são as duas coisas. Eu já me acostumei ao seu modo, Vânia, e
passei a gostar de você, gostar de verdade, como se fosse o meu
marido, mas hoje você está aqui, amanhã não está, vai descobrir
outra, outra melhor e mais bonita do que eu. E, quando eu estiver
sozinha, Borka virá e esfregará a orelha em minha perna, e eu me
sentirei melhor no mesmo instante. Afinal de contas ele é uma alma
viva.
Suas palavras comoveram Tchônkin, mas ele não estava com
vontade de recuar porque tinha opinião fixa sobre as mulheres — é
só dar um dedo a elas e elas querem o braço todo.

— Bem, o que podemos fazer, Niurka? É uma vergonha.
— Você resolve, Vânia.
— Bem, está certo — disse Tchônkin, apanhando o fuzil, o casaco e
a mochila. Depois aproximou-se de Niúra. — Eu vou embora, sabe,
Niúra?
— Vá. — Niúra olhava distraidamente para o canto.
— Seja como quiser — disse Tchônkin, e retirou-se. Chegara a noite.
As primeiras estrelas haviam surgido no
céu. Um rádio preso a um poste próximo do gabinete do kolkhoz
tocava as canções de Dunaievski, com letras de Lebedev-Kumatch.
Tchônkin jogou os pertences perto do avião, sentou-se na asa e ficou
pensando nos caprichos do destino. Não fazia muito tempo, menos
de uma hora antes, era um homem inteiramente feliz, e, embora

soubesse que tudo aquilo era temporário, mesmo assim fora o
homem da casa, o chefe da família; mas, de repente, tudo fora
derrubado e arredado dali, e mais uma vez estava só, sem lar, atado
àquele aeroplano defeituoso como um cachorro a uma casa de
cachorro. Mas mesmo o cachorro amarrado à casa de cachorro
achava-se melhor do que Tchônkin porque, pelo menos, recebia
comida por ser cachorro, enquanto ele, Ivan, fora abandonado aos
caprichos do destino — quem sabia se eles alimentavam a intenção
de vir buscá-lo um dia?
Não é confortável ficar sentado numa asa inclinada, e a temperatura
caía. Tchônkin caminhou até o monte de feno na horta de Niúra,
apanhou algumas braçadas e começou a prepará-lo a fim de passar
a noite deitado no feno e coberto pelo capotão.
Não se sentia muito mal, desse modo. De qualquer maneira estava
acostumado a dormir assim e, ademais, pensava que a qualquer
instante Niúra sairia da casa e começaria a lhe pedir desculpas,
dizendo também que voltasse. Mas ele diria: "Não. De jeito nenhum.
Foi assim que você quis e é assim que vai ser". Jamais pensara que o
ciúme o acometeria por causa de uma mulher, e olhem só de quem
sentia ciúmes! O ruído dos grunhidos de Borka chegou a seus
ouvidos, vindo do telheiro, e de repente Tchônkin imaginou com
clareza os dois juntos, e ficou arrepiado de nojo. Devia matá-lo, era

o que Tchônkin pensava, mas por algum motivo não tinha mais
raiva ou desejo de caminhar até lá e fazê-lo naquele instante.
Após as canções de Dunaievski vieram as notícias mais recentes,
acompanhadas por um comunicado da TASS.

"Talvez seja sobre a blização", pensou Tchônkin. "Desmobilização",
"mobilização" eram palavras além de sua capacidade de pronúncia,
mesmo para si próprio. Não era esse, todavia, o tema do
comunicado.

"A Alemanha", anunciava o locutor, "está observando as condições
do pacto de não-agressão germano-soviético com tanta firmeza


quanto a União Soviética. Diante disso, os círculos soviéticos
acreditam que os boatos sobre as intenções alemãs de violar o pacto
e desferir um ataque à União Soviética não têm qualquer base. . . "

"Base", pensava Tchônkin. "Depende do tipo. Se a base do terreno é
margosa, nesse caso só serve para gramado. Mas se for seca e
arenosa não pode ser melhor para batatas. Embora nao dê para
comparar com a terra preta. Essa é boa para cereais, para tudo. . . "
Bastou pensar em cereais e pão para sentir dor no estômago.
Sim, ele sabia que jamais devia ter dito tudo aquilo. Quando
Grandão estivera tagarelando, ele poderia ter só ouvido, em vez de
aceitar como um idiota. Agora, era só olhar para ele! Não, tinha de
se ater ao que havia afirmado, embora provavelmente não devesse
haver verdade alguma naquilo. Puxa, como queria comer!
A essa altura já escurecera e as estrelas se espalhavam por todo o
céu. Uma estrela amarela, a que mais brilhava em meio a todas,
achava-se tão baixa sobre o horizonte que parecia passível de ser
alcançada por quem caminhasse até lá, estendesse a mão e a tocasse.
Gladichev dizia que todos os corpos celestes giravam e moviam-se
no espaço, mas aquela estrela não girava. Estava parada num lugar,
e por mais que Tchônkin apertasse os olhos não conseguia observar
qualquer movimento nela.
O rádio começou a resfolegar, e parou no meio de uma irradiação
de música alegre, sendo substituído por um acordeão que alguém
começara a tocar ali por perto e por um baixo desconhecido, que
berrava para que toda a aldeia ouvisse:

"A mãe deu à luz um arruaceiro

e Arruaceiro foi o nome que lhe deu.

Ela afiou um punhal finlandês

e o deu a seu arruaceiro".


E então, de algum outro lugar, veio a voz alta de uma mulher:

— Katka, sua cadela miserável, você vem para casa ou não vem?
E logo o acordeonista começou a tocar Amplo o mar, embaralhando-
se desavergonhadamente na melodia, provavelmente
porque não conseguia achar os botões certos na escuridão.
Em seguida o acordeonista silenciou e outros ruídos, antes
imperceptíveis, podiam ser ouvidos agora — o pipilar de um
camundongo do campo, o cricrilar dos grilos, uma vaca comendo
feno. Em algum lugar as galinhas se sobressaltavam e cacarejavam,
tomadas de susto sonolento.
Foi quando uma porta rangeu. Tchônkin aguçou as orelhas.
Não era a porta de Niúra, mas a de seu vizinho. Gladichev veio até
a varanda e ali ficou por algum tempo suspirando, provavelmente
acostumando-se à escuridão; depois partiu para a casinha,
tropeçando em meio aos canteiros de legumes e puxando baforadas
do cigarro. Depois disso voltou a ficar na varanda por algum tempo,
tossiu um pouco e depois cuspiu o cigarro ao chão e entrou na casa.
Momentos depois Afrodite saiu e deu uma mijada rápida, perto da
varanda. Tchônkin ouviu-a fechando a porta e levando muito
tempo a procurar o ferrolho. Niúra não saiu, não veio pedir-lhe
perdão e, ao que parecia, não pretendia fazê-lo.


14


Alguém tocou no ombro de Tchônkin, que ergueu o olhar e viu o
rosto de Grandão, azul àquela luz fraca.

— Vamos — disse Grandão baixinho, e estendeu a mão para
Tchônkin.
— Aonde? — perguntou Tchônkin, com surpresa.

— Aonde devemos ir — foi a resposta.
Tchônkin não sentia vontade de levantar-se e sair pela noite afora
sem saber para onde ou por quê, mas não conseguia recusar-se
quando ouvia a palavra "devemos".
Caminharam juntos, passando entre árvores altas com troncos
brancos que se pareciam a bétulas. Não eram bétulas, contudo, mas
outro tipo de árvore coberta por camadas espessas de geada branca.
A grama também estava coberta de geada, geada branca muito
singular na qual não se podiam distinguir sinais ou pegadas.
Tchônkin notou tudo isso, embora continuasse apressado, com
medo de perder de vista Grandão, rujas costas desapareciam e
reapareciam a sua frente. Havia uma coisa que Tchônkin não
conseguia sondar — como se obtinha orientação naquela floresta
estranha, onde não se percebia o menor dos sinais ou trilhas? Estava
prestes a indagar a Grandão a esse respeito quando, nesse exato
instante, surgiu diante deles uma cerca alta com um portão pelo
qual Tchônkin conseguiu passar muito apertado, atrás do guia. No
outro lado da cerca via-se uma cabana que Tchônkin reconheceu de
imediato,-embora não contasse vê-la ali — era a cabana de Niúra.
As pessoas em pé na varanda, em pequenos grupos ou sozinhas,
eram todas desconhecidas de Tchônkin. Todos os seus paletós
idênticos e escuros estavam desabotoados. Era evidente que
fumavam e conversavam, já que suas bocas se abriam e fechavam,
mas não emitiam som algum. Mesmo o
acordeão tocado pelo rapaz, que usava botas de cano alto e estava
esparramado na varanda, não emitia som. Outro rapaz usava
sandálias e dançava acocorado e dando saltos diante do
acordeonista, mas em movimento tão lento que parecia estar
nadando debaixo da água. Também não emitia som algum. O
silêncio era total, até mesmo quando ele batia nos joelhos.
— O que eles estão fazendo aqui? — perguntou Tchônkin a
Grandão, e teve a surpresa total de não ouvir a própria voz.

— Pare de tagarelar — atalhou-o Grandão com severidade. Isso foi
o choque final para Tchônkin, pois a voz de Grandão não lhe
chegara por vibração sonora, não passara por suas orelhas, mas
tomara alguma outra rota para chegar até ele.
A indiferença estampada no semblante, o acordeonista abriu
caminho para eles e Tchônkin subiu devagar os degraus da
varanda, atrás de Grandão. Depois empurrou a porta e abriu-a com

o pé, deixando que Tchônkin entrasse à frente. Em vez da passagem
que Tchônkin esperava havia uma espécie de corredor comprido
com paredes cobertas de ladrilhos brancos luzidios e um tapete
vermelho que se estendia pelo soalho. Tchônkin e Grandão
seguiram por esse tapete e, a distâncias, curtas figuras silenciosas
apareciam diante deles, saindo quer da parede à esquerda quer da
parede à direita; olhavam atentamente os rostos deles e depois
batiam em retirada, desmanchando-se de volta nas paredes. Outros
que se assemelhavam a eles, ou talvez fossem as mesmas figuras a
regressar (Tchônkin não lhes percebia os semblantes), viravam-se
para fitá-los e voltavam a se dissolver. Tudo isso se repetiu
inúmeras vezes e o corredor parecia infinitamente comprido,
quando Grandão fez Tchônkin parar e apontou para a direita
dizendo:
— Por aqui!
Em sua confusão os pés de Tchônkin continuaram a seguir, sem
conseguir andar; à frente só via aquela mesma parede coberta de
ladrilhos brancos e luzidios que agora refletiam sua imagem e a de
Grandão. Não se via porta alguma, nem mesmo algo que de longe
se parecesse a uma porta.
— Por que eles estão aí?
— Prossiga — ordenou Grandão, com impaciência.
— Para onde? — perguntou Tchônkin.
— Bem em frente. Não tenha medo.

Grandão o cutucou e para sua surpresa Tchônkin passou pela
parede sem encostar em coisa alguma, sem se prender em nada,
como se a parede fosse feita de nevoeiro.
Um salão espaçoso e fartamente iluminado se abria diante de
Tchônkin. A fonte da luz azulada e fraca não estava à vista. A mesa
comprida e retangular, no centro do salão, fora generosamente
servida com bebidas e comidas. Os convidados enxameavam em
torno dela, como moscas.
Pelo barulho que vinha da mesa, pelo estado de espírito dos
convidados e pelo cenário geral Tchônkin não tardou a perceber
que se tratava do casamento de alguém. Um olhar à cabeceira da
mesa veio imediatamente confirmar que era isso.
Na cabeceira da mesa estava sentada Niúra, em vestido branco de
noiva, o rosto radiante de felicidade. Entronizado a seu lado em
cadeira alta, como o costume determina, achava-se o noivo, um
rapaz atraente e de jaqueta de veludo marrom, um botão de
"Atirador Vorochilov" na lapela direita. Sacudindo com vigor os
braços curtos e dizendo algo alegre e rápido a Niúra, o noivo
examinava o ambiente com seu olhar traquinas até que a sua
atenção se cravou em Tchônkin, a quem dedicou um aceno simples
e amistoso. Tchônkin olhou para o rapaz — não parecia ser do lugar
ou do Exército, mas, ainda assim, ele achava que eles se haviam
conhecido antes, tinham bebido juntos, coisa assim, de algum modo
se conheciam.
Niúra ficou embaraçada ao ver Tchônkin, e baixou o olhar. Depois,
compreendendo que agia como uma tola, voltou a erguer os olhos; a
essa altura estavam com expressão de desafio e o desejo de se
justificar. Seus olhos pareciam dizer: "Você nunca me ofereceu coisa
como esta. Você só viveu comigo, apenas. Por que eu haveria de
esperar, que esperança podia ter? Afinal de contas o tempo passa e
um dia fica tarde demais. Por isso a coisa saiu deste jeito".
Tudo isso causou um efeito perturbador em Tchônkin. Não que ele
ficasse com ciúme (embora houvesse algum ciúme, é verdade). O


que o acometia, principalmente, era uma sensação de ter sido
ofendido e injustiçado. Afinal de contas ela poderia ter-lhe dito o
que queria, e ele teria pensado no assunto e talvez se casasse com
ela. Mas Niúra não dissera uma só palavra, e, por não ter dito, por
que convidá-lo ao casamento? Devia ser só para zombar.
Tchônkin, contudo, não exprimiu nada disso em palavras nem
permitiu que transparecesse. Cumprimentou os noivos, como o
costume determina, e disse educadamente:

— Olá.
Em seguida cumprimentou a todos, com um "olá" geral.
Ninguém respondeu ao cumprimento de Tchônkin, mas, atrás dele,
Grandão o cutucou indicando um banco vazio à mesa. Tchônkin
instalou-se no banco, e depois olhou em volta.
À esquerda achava-se um homem idoso e gorducho, usando uma
camisa ucraniana bordada e tendo por cinto uma faixa retorcida de
seda. Tinha o rosto redondo, o nariz pequeno e gordo, pálpebras
pálidas e grossas que espumavam sob os olhos. O alto da cabeça era
naturalmente calvo, e o resto fora raspado até brilhar. Atrás da
orelha direita havia um corte pequeno e não-cicatrizado. Os
diversos pontos negros em cima da cabeça davam a impressão de
que cigarros haviam sido apagados ali. Os olhinhos nadando em
meio à gordura do rosto, o homem olhou bonachão para os recém-
chegados e lhes dedicou um sorriso amistoso.
A pessoa à direita de Tchônkin era ainda mais agradável de
contemplar — uma jovem com seus dezessete anos, os seios
começando a se formar, as extremidades das tranças amarradas com
fitas. Sem usar colher, apenas a boca, a menina comia sua kasha
amanteigada diretamente no prato e lançava olhares furtivos e
traquinas a Tchônkin. Só então ele observou que, como a menina,
todos os outros convidados enfiavam os rostos nos pratos e não
tinham garfos ou colheres diante de si. "Não entendo; uma cambada
de bárbaros", pensou Tchônkin, e olhou interrogativamente para
Grandão, que se sentara à sua frente, no outro lado da mesa.

Grandão fez sinal para que não se perturbasse, tudo estava como
devia ser. A mulher de rosto vermelho, no sarafan de crepe da
China, sentada ao lado de Grandão, no entanto, começou a piscar e
a fazer todos os tipos de caretas, o que embaraçou Tchônkin. Ele
corou e voltou a olhar o homem a seu lado, que lhe sorriu e disse:

— Não fique com medo, meu caro rapaz, somos todos amigos por
aqui. Ninguém vai magoá-lo.
— Não estou com medo — disse Tchônkin, reunindo coragem.
— Está com medo, sim — disse o homem, sem acreditar no que
Tchônkin afirmara. — Está só fingindo que não, mas está com medo
mesmo. Como se chama?
— Meu nome é Tchônkin. Vânia Tchônkin.
— E o seu patronímico?
— Vassílievitch — informou Tchônkin prontamente.
— Um bom nome — comentou o vizinho, aprovando-o. — Já houve
um czar chamado Ivan Vassílievitch, Ivan, o Terrível. Você já ouviu
falar dele, com certeza, não?
— Ouvi falar alguma coisa.
— Foi um bom homem, tinha coração — disse o vizinho de
Tchônkin, com sinceridade nas palavras. Aproximou o copo de
vodca de Tchônkin, depois tomou outro para si. — Vamos beber,
Vânia.
Tchônkin pretendia esvaziar o copo de um só gole e prender a
respiração, como sempre fazia ao beber vodca, de modo que ela
descesse logo, mas verificou que a vodca não tinha gosto algum,
nem cheiro, era apenas água. Mesmo assim sua cabeça começou a
zunir, a alegria aumentou imediatamente e Tchônkin começou a
sentir-se um pouco mais à vontade.
O homem a seu lado empurrou um prato de pepinos em conserva e
batatas fritas em sua direção. Tchônkin procurou um garfo e, não o
descobrindo, estava a ponto de apanhar com as mãos, quando o
vizinho interveio:
— Coma com a boca, Vânia. É mais fácil assim.

Tchônkin aceitou o conselho e tentou. Era melhor, na verdade, e a
comida parecia ter mais sabor. Por que as pessoas haviam
inventado todos aqueles garfos e colheres, afinal? Era preciso estar
sempre lavando-os, um aborrecimento.
O homem ao lado de Tchônkin não parava de fitá-lo, sorrindo
bonachão, e foi quando perguntou:

— Pelo distintivo em sua lapela, Vânia, eu diria que você está na
Força Aérea.
Ivan achava-se prestes a dar alguma resposta evasiva quando a
moça à direita interveio.
— Não — disse, a voz fraca e de cana rachada. — Ele monta a
cavalo.
Tchônkin ficou surpreso. Ela era tão jovem e sabia, mas como?
— Você monta mesmo um cavalo? — disse o homem, satisfeito em
ouvi-lo. — Que formidável! Os cavalos são tão bonitos! Eles não
buzinam para a gente, não estralejam e não têm cheiro de gasolina.
Gostaria de saber quantos cavalos você tem em sua unidade.
— Quatro — esganiçou a mocinha.
— Não são quatro, em absoluto — disse Tchônkin. — São três. A
égua pampa quebrou a perna e eles a mandaram para a fábrica de
cola.
— A pampa foi para a fábrica de cola, eu sei, mas a baia teve um
potrinho — disse a jovem, comprovando o que afirmava.
— Não discuta com ela, ela sabe — declarou o homem à esquerda
de Tchônkin. — É melhor me dizer o que anda mais depressa: um
aeroplano ou um cavalo?
— Uma pergunta estúpida — disse Tchônkin. — Quando um avião
voa baixo e em cima da gente, zuuumm e vai embora, mas quando
está subindo e subindo, começa a reduzir a velocidade.
— Não diga — disse o homem, sacudindo a cabeça, espantado.
Depois começou a fazer outras perguntas a Tchônkin. Qual sua
idade, há quanto tempo estava no Exército, o que lhe davam para

comer por lá, que tipo de roupa recebia e por quanto tempo tinha de
ficar com as perneiras. Tchônkin respondeu à vontade e sem
reservas até que, de súbito, parou, compreendendo que estava
transmitindo segredos militares à primeira pessoa que encontrara.
Como podia ter feito aquilo? Quantas vezes lhe haviam dito,
quantas vezes tinham advertido: feche a boca! Uma boca aberta é o
melhor amigo do inimigo!
A essa altura o inimigo de camisa bordada perdera toda a vergonha
e não fazia tentativa alguma para esconder o lápis, que já se
movimentava sobre o caderninho que tinha sobre os joelhos.

— Ei, escute, você aí, do que se trata? — Tchônkin se atirou sobre o
homem, procurando agarrar o caderninho. — Dê-me isso aqui!
— O que se passa? Por que está gritando? — perguntou o homem,
fechando o caderninho. — Para que os gritos? As pessoas vão
pensar que há alguma coisa errada.
— Para que está escrevendo? — Não havia como impedir Tchônkin,
agora. — Mas, então, estamos com um escritor por aqui, hem? Dê-
me isso, estou mandando.
Tchônkin atirou-se sobre o oponente, e quase arrebentara o
caderninho do homem quando, com agilidade surpreendente, ele o
enfiou na boca e engoliu num instante, com lápis e tudo.
— Sumiu tudo — disse sorrindo maliciosamente e estendendo para
Tchônkin as mãos vazias.
— Não me venha com esse "sumiu tudo" — estrugiu Tchônkin,
atacando de punhos cerrados. — Vou arrancá-lo de sua garganta.
E Tchônkin realmente o teria arrancado da garganta do homem,
mas ele se esquivou a tempo e começou de repente a gritar,
frenético:


— Amaaargo!
Tchônkin lembrou-se de que estava num casamento, e agarrando a
garganta do homem começou também a gritar, por uma questão de
decoro:

— Amargo!
Todos os presentes pegaram o refrão, e logo toda a mesa começou a
gritar:
— Amargo! Amargo!
Enquanto isso o homem de camisa bordada começara a engasgar
um pouco e a ponta do caderninho aparecera em sua garganta.
Tchônkin estava prestes a agarrá-la com a mão livre e olhou
rapidamente os noivos a fim de verificar se estavam olhando. Mas o
que viu o privou imediatamente de todas as forças e de seu desejo
de apanhar o estúpido caderninho.
Noivo e noiva haviam se levantado decorosamente, como
determinam os costumes, quando os convidados gritavam:
"Amargo". Com o olhar indagavam se deveriam beijar-se ou se os
convidados haviam apenas começado aquele berreiro na falta de
outra coisa melhor para fazer. Vencendo seu embaraço o noivo
passou o braço por Niúra e, puxando-lhe a cabeça abruptamente,
colou, nos pálidos lábios dela, os seus. Tchônkin esfriou ao se
lembrar de onde, quando e em que circunstâncias conhecera o
noivo. Pois como poderia não se lembrar, quando o noivo era nada
menos que Borka, o leitão, que, embora usasse jaqueta de veludo
com o botão de atirador, e embora se parecesse com um ser
humano, ainda assim continuava sendo um leitão?
Tchônkin quis gritar para as pessoas, chamar-lhes a atenção para o
que acontecia — um leitão beijando uma moça —, mas isso teria
sido esforço perdido, pois seria abafado pelos gritos de "Amargo!
Amargo!" que vinham de todos os lados, embora não fosse
"Amargo!" o que gritavam, mas alguma outra palavra que Tchônkin
também conhecia. Relanceou o olhar ao redor e só então
compreendeu com clareza total o que se passava, percebeu que não
havia pessoas sentadas por ali, em absoluto, apenas porcos comuns
batendo com as patas na mesa e grunhindo como os porcos devem
grunhir.

Tchônkin cobriu o rosto com as mãos e afundou-se no banco. Oh,
senhor, o que estava acontecendo, em que se metera? Nunca na vida
rogara a Deus, mas desta feita não havia como evitá-lo.
O silêncio fez com que Tchônkin prestasse atenção. Ele descobriu o
rosto, tirando as mãos. Todos os porcos estavam fitando-o em
silêncio. Pareciam esperar que ele fizesse algo. Sentia-se muito mal,
e o olhar deles o levava a encolher-se. Depois o sortilégio se desfez.


— Por que estão olhando para mim, por quê? — começou a gritar
desesperado, olhando um focinho e depois outro.
Suas palavras, no entanto, não trouxeram mais resposta do que se
houvessem caído em poço profundo.
Ele passou a olhar o homem à esquerda. O leitão gordo e
sarapintado na camisa ucraniana bordada fitava Tchônkin sem
piscar, os olhinhos pequenos e sem vida nadando em gordura.
— Seu porco velho — gritou Tchônkin, agarrando-o pelos
ombros e sacudindo-o. — Por que está olhando para mim? Por quê?
O porco não respondeu, limitou-se a sorrir e em silêncio arredou de
seus ombros as mãos de Tchônkin, usando para isso as fortes patas
dianteiras. Tchônkin percebeu que nada podia ser obtido pela força,
e deixou a cabeça baixar ao peito.
Foi quando a voz alta de Grandão, o porco, ecoou pelo silêncio:
— Tchônkin, por que não estava grunhindo?
A cabeça de Tchônkin virou-se para Grandão; de que estava falando
aquela criatura?
— Você não estava grunhindo, Tchônkin — persistiu Grandão.
— Isso mesmo, não estava grunhindo — corroborou o porco de
camisa ucraniana, como se seu único desejo fosse o de obter a
verdade.
— Não estava grunhindo! Não estava grunhindo! — esganiçou a
porquinha de tranças para todo o salão.
Procurando salvação Tchônkin olhou para Niúra, que, apenas ela
em meio a todos, mantivera certo aspecto humano. Embaraçada, ela
baixou o olhar e disse baixinho:

— Vânia, também acho que você não estava grunhindo
— Interessante — disse Borka, o noivo. — Todos grunhem, menos
ele. Talvez você não goste de grunhir.
Tchônkin sentiu a boca ressecada.
— Mas eu. . .
— Mas você o quê?
— Eu não sei — murmurou Tchônkin, o olhar cravado no chão.
— Ele não sabe — esganiçou a porquinha.
— Isso mesmo, ele não sabe — confirmou o porco de camisa
bordada, em tom amargo.
— Não compreendo — disse Borka, espalhando bem as patas. —
Grunhir é uma coisa tão boa! Todos sentem tanto prazer em
grunhir! Grunha, por favor.
— Grunha, grunha — começou a cochichar a porquinha para
Tchônkin, cutucando-o com o cotovelo.
— Vânia — disse Niúra, com afeição —, grunha. O que vai custar a
você? Eu também não sabia, mas agora aprendi, e é muito fácil.
Diga "Huhn, huhn". . . é só isso que precisa.
— E que importa a vocês? — gemeu Tchônkin. — Por que precisam
que eu grunha? Eu não digo a vocês o que devem fazer. Grunham
se quiserem, mas por que haveria eu de grunhir? Não sou um
porco, sou um ser humano.
— Ele é humano — esganiçou a porquinha.
— Diz que é humano — repetiu o porco de camisa ucraniana, cheio
de surpresa.
— Um ser humano? — interpelou Borka.
A afirmação de Tchônkin parecia tão ridícula a todos os porcos que
eles bateram com as patas em uníssono sobre a mesa, e depois
começaram a grunhir de prazer. O porco de camisa bordada enfiou
o focinho úmido na orelha de Tchônkin. Ivan levou a mão à orelha a
fim de defendê-la, mas já não a encontrou. O porco se voltara para

outro lado e a estava mastigando calmamente como se não fosse
uma orelha, mas, digamos, uma folha de repolho, ou coisa assim.
A porquinha inclinou-se atrás de Tchônkin e perguntou ao porco:

— Tem bom sabor?
— Horrível — disse o porco, enrugando a cara ao engolir a orelha.
— Horrível o quê? — perguntou Tchônkin, ofendido. — A sua é
melhor?
— Eu tenho orelhas de porco — respondeu o suíno com ar de
superioridade. — Indispensáveis para a fabricação de carnes
gelatinadas. E você estaria muito melhor grunhindo do que
tagarelando.
— Grunha, grunha — cochichou a porquinha.
— Já lhe disseram para grunhir — disse Grandão.
Tchônkin, agora, enfurecia-se.
— Huhn, huhn, huhn — disse, imitando os porcos. — Está bem?
Satisfeito?
— Não — disse Grandão, fechando a cara. — Não estamos
satisfeitos. Você está grunhindo como alguém que é obrigado a
grunhir. E você devia grunhir alegremente, do fundo do coração, de
modo que possa gostar, como gostamos. Vamos, continue
grunhindo.
— Vamos. — A porquinha o cutucava com o cotovelo.
— Huhn, huhn — gritou Tchônkin, e uma imitação de prazer
extraordinário surgiu-lhe no rosto.
— Pare aí — interrompeu Grandão. — Você só está fingindo gostar,
mas não está gostando de verdade. Não queremos que você grunha
contra a vontade, queremos que você goste mesmo. Muito bem,
vamos tentar juntos. Huhn, huhn!
De início Tchônkin grunhiu com relutância, mas, depois, contagiado
pelo prazer imenso de Grandão, começou a grunhir com prazer
idêntico; grunhiu com tudo o que tinha, lágrimas de alegria e
ternura marejando nos seus olhos. Arrebatados pela alegria de

Tchônkin todos os porcos começaram a grunhir com ele, batendo
com as patas na mesa. A porca de cara vermelha e sarafan de crepe
da China inclinou-se sobre a mesa para beijar Tchônkin quando
Borka, de repente, saltou da jaqueta de veludo e agora, inteiramente
transformado em porco, começou a galopar pela mesa, indo de uma
extremidade à outra, fazendo a volta e pulando de volta à jaqueta.
Nesse exato instante bandejas douradas apareceram na extremidade
oposta da mesa e foram passadas de um porco a outro. "Será
porco?", e Tchônkin estremeceu ao pensar, mas foi tomado de pavor
ainda maior ao notar que não era carne de porco, em absoluto;
muito ao contrário, era humanorco.
Na primeira travessa, em estado de nudez total e inteiramente
pronto para consumo, enfeitado com cebolas e ervilhas, estava o
Sargento Peskov. Nas bandejas seguintes, igualmente enfeitados,
vinham o Intendente Trofímovitch e o soldado Sa-muchkin, "Fui eu
quem os traiu", percebeu Tchônkin, sentindo que em sua cabeça os
fios de cabelo se punham em pé.

— Sim, Camarada Tchônkin, você revelou um segredo militar e nos
traiu a todos — confirmou o Politruk Iartsev, contorcendo-se na
bandeja seguinte, o corpo azulado de tanto frio. — Você traiu seus
camaradas, sua pátria e a pessoa do Camarada Stálin.
Então apareceu uma bandeja trazendo a pessoa do Camarada Stálin.
Sua mão pendia da bandeja, segurando o famoso cachimbo. Stálin
ostentava, atrás do bigode, seu famoso sorriso de astúcia.
Tomado por pavor indescritível Tchônkin derrubou o banco e
disparou para a saída, mas tropeçou e caiu. Seus dedos agarraram-
se ao umbral da porta, as unhas dos dedos se partiam, tentou
arrastar-se e nadar para sair, mas não conseguiu. Alguém o
segurava com firmeza pelas pernas. Foi quando Tchônkin juntou
todas as forças, e com esforço imenso libertou-se em safanão e bateu
com a cabeça dolorosamente na asa do avião.


Era um dia claro e ensolarado. Tchônkin achava-se sentado no feno
por baixo do avião, ainda inteiramente desnorteado. Alguém lhe
puxava a perna. Tchônkin olhou e viu que era Borka, o leitão. Não o
Borka de jaqueta de veludo que estivera sentado à mesa, mas aquele
Borka sujo e de costume, que evidentemente acabara de sair de um
poço de lama e se apoderara da perneira aberta de Tchônkin, tendo-
a entre os dentes; puxava a perna de Tchônkin, as patas dianteiras e
curtas escoran-do-se no chão, grunhindo de prazer.

— Dê o fora daqui, cobra venenosa, praga! — gritou Tchônkin
frenético, quase perdendo a consciência.
15


Ao ouvir a voz do dono, e julgando ter sido chamado, Borka
acorreu a cumprimentar Tchônkin com um gritinho de alegria e a
lamber-lhe a orelha. Mas o único cumprimento que Borka recebeu
foi um murro no focinho, murro desferido pelo punho de Tchônkin.
Surpreendido por tal acolhimento Borka começou a gritar
lastimosamente. Saltou para um lado e afundou-se no chão
poeirento sobre o queixo (isto é, aquilo que se chama de queixo
quando se fala de pessoas), estendeu as patas diante de si, olhou
para Tchônkin com aqueles olhos pequeninos e depois começou a
choramingar como um cachorrinho.

— Vou lhe dar um troço para chorar direito — ameaçou Tchônkin,
enquanto se acalmava e começava a recuperar a noção das coisas.
Dito isso, olhou em volta. Havia um velho cobertor de flanela no
chão ao lado, cobertor que ele devia ter jogado fora enquanto
dormia. Havia também um bilhete preso numa pedra próxima. Era
de Niúra, que, como sempre, se atrapalhara ao escrever: "Eu foi

trabalhar xave debaicho da varanda sopa repôlio no fogon, come
bem, çaldações, Niúra". Tudo no bilhete dava a entender que ela
não sentia raiva dele e estava pronta a recomeçar se Ivan não
continuasse teimoso.

— Ora essa — disse Tchônkin em voz alta, quase rasgando o
bilhete, mas pensou melhor e, dobrando-o em quatro, guardou-o no
bolso da gandola. A referência à sopa de repolho acertara Ivan
exatamente no estômago e ele se lembrou de que não comera coisa
alguma desde o almoço da véspera.
Borka, que a essa altura se acalmara e fazia silêncio, recomeçou a
choramingar como a suplicar que prestasse atenção nele, que era
uma pobre e esmurrada criatura. Ivan fitou-o severamente, com o
canto do olho, mas Borka parecia tão deplorável e magoado que
Ivan não agüentou e, batendo-lhe no queixo, chamou:

— Venha cá!
As palavras não conseguiriam descrever a presteza comi que Borka
perdoou o mal que lhe havia sido injustamente infligido e partiu
rumo ao dono, guinchando e grunhindo com tamanha felicidade
que todo o seu corpo parecia dizer: "Não sei o que lhe fiz de errado,
mas fiz, se você acha que fiz. Pode me bater, pode me matar se
quiser, é só me perdoar".
— Está certo, está certo — resmungou Tchônkin e começou a coçar
Borka atrás da orelha, o que fez com que ele imediatamente caísse
na grama, onde se colocou inicialmente de lado e depois, por muito
tempo, de costas, os olhos fechados em bem-aventurança, as patas
curtas e magras bem juntas e estendidas para cima.
Finalmente Tchônkin se cansou, deu um soco no flanco de Borka e
disse:
— Dê o fora daqui!
Em questão de dois segundos Borka estava em pé e partira
correndo. Olhou um tanto desconfiado para Tchônkin, a distância,


mas não vendo maldade nos olhos do dono sentiu-se reconfortado e
partiu atrás de uma galinha que passara correndo.
Tchônkin levantou-se, sacudiu o feno da roupa, enrolou as
perneiras, apanhou o fuzil que estava no chão e depois olhou ao
redor. Na horta vizinha via-se a figura de Gladichev, tão reconhecível
como parte da paisagem, os ombros caídos. Caminhava
pelos canteiros, debruçava-se sobre cada planta de TPOS e lhe
murmurava algumas palavras de sortilégio. Sua esposa, Afrodite,
mulher suja de rosto sonolento e cabelo desgrenhado, estava
sentada na varanda com o filho de um ano, Hércules (outra vítima
da erudição de Gladichev), ao colo. Fitava o marido com
indisfarçado nojo.
Para que os fatos referentes à relação entre o plantador e a esposa
sejam inteligíveis para o leitor devemos fazer uma pausa, ainda que
breve, a fim de apresentar o relato acautelador desse casal muito
mal composto.
Gladichev se casara com Afrodite cerca de dois anos antes do início
de nossa história, quando já chegava aos quarenta. Nos cinco anos
anteriores, após o falecimento de sua mãe, Gladichev morara
sozinho, na suposição correta de que a vida familiar não era
favorável a seus esforços científicos. Mas ao se aproximarem os
quarenta anos Gladichev resolveu casar-se (talvez a natureza se
fizesse ouvir nele ou talvez estivesse cansado da solidão). Tal
questão, todavia, não se revelou absolutamente simples, a despeito
de haver um excedente de moças casadouras na aldeia. Elas
agüentavam seus discursos sobre o híbrido notável em que estava
trabalhando, e concordavam até em trabalhar lado a lado com ele e
partilhar o encargo de sua cruzada científica, contando, enquanto
isso, que com o tempo tal tolice passaria sozinha. Mas quando as
coisas estavam com aspecto perfeito a noiva de Gladichev
atravessava o limiar de seu futuro lar. Era muito raro que uma delas
ficasse ali por mais de meia hora. Afirmava-se que dava para
desmaiar em menos de dois minutos e o motivo era o seguinte:


dentro de casa Gladichev guardava adubos para suas experiências
de cruzamento dentro de potes especiais. Entre estes havia os potes
de composto de turfa e aqueles que continham excremento de vaca
e de cavalo, bem como alguns com excremento de galinha. Gladichev
atribuía enorme importância aos adubos. Ele os misturava
em combinações diversas, colocava-os no fogão e no peitoril da
janela para fermentarem em determinada temperatura. Isso ocorria
não apenas no verão mas também no inverno — com todas as
janelas fechadas! E somente a futura Afrodite, que não alimentava
ilusão alguma no tocante a seus encantos, conseguira agüentar tudo
aquilo. Queria realmente casar-se.
Quando Gladichev percebeu que era ela sua única possibilidade,
resolveu esquecer de uma vez por todas seu sonho de casamento.
Mais tarde, todavia, voltou a pensar e aceitou Efrossínia, que de
nada valia para ninguém mais, na suposição de que ela retribuísse
tanta nobreza com devoção completa a ele e à sua ciência.
Mas, como dizem por aí, o homem propõe e Deus dispõe. De início
Efrossínia realmente o recompensou, mas, depois de dar Hércules à
luz, declarou guerra aos potes de Gladichev, sob o pretexto de que
eram ruins para o bebê. Começou por insinuações e tentativas de
persuasão, depois fez cenas. Levava os potes para o corredor e
Gladichev os trazia de volta. Tentava quebrar os potes e Gladichev
lhe dava murros, embora de modo geral deplorasse a violência.
Mais de uma vez ela apanhou o bebê e foi para a casa dos pais, que
viviam no outro lado da aldeia, mas sempre sua mãe a mandava de
volta.
Finalmente reconciliou-se com tudo, desistiu e deixou de cuidar de
si. Se nunca fora conhecida como uma beleza, só Deus sabia o que
passara a ser seu aspecto agora.
E aí temos toda a história, em poucas palavras.
Voltemos agora ao ponto em que tínhamos parado.


Assim é que Ivan se achava em pé ao lado do avião, Gladichev
cavava em sua horta e Afrodite, com o bebê no colo, estava sentada
na varanda, fitando o marido com indisfarça-do nojo.

— Ei, olá, vizinho. — Era Tchônkin chamando Gladichev, que se
levantou de um de seus arbustos TPOS, levou dois dedos ao chapéu
e respondeu educadamente:
— Eu lhe desejo um bom dia.
Tchônkin encostou o fuzil no aeroplano e caminhou até a cerca que
separava as duas hortas.
— O que é isso? Vejo que está trabalhando no jardim. Ainda não se
cansou?
— Como posso dizê-lo? — respondeu Gladichev, impelido por
digna reserva. — Não é para mim este trabalho, não é para qualquer
ganho pessoal, mas para o interesse da ciência. Mas você, por acaso,
passou a noite debaixo do seu avião?
— Nós, tártaros, não damos a menor importância a onde passamos
a noite — gracejou Tchônkin. — Agora está quente, não é inverno.
— Eu saí de manhã e vi as pernas de alguém aparecendo por baixo
do avião. Por isso pensei: "Será mesmo Vânia quem está dormindo
lá agora?" Depois disse a Afrodite: "Vá olhar. Parece que as pernas
de Vânia estão lá embaixo daquele avião". Escute, Afrodite — e ele
gritou para que a esposa viesse prestar testemunho: — Lembra-se
de que hoje de manhã eu lhe disse para ir olhar? Eu disse que as
pernas de Vânia pareciam estar debaixo daquele avião.
Afrodite olhou para ele com a mesma expressão no rosto e não a
mudou, nem reagiu de forma alguma às palavras do marido.
Tchônkin fitou Gladichev, suspirou e para sua própria surpresa
disse:
— Escute, eu e minha mulher brigamos. Por isso saí, sabe o que
digo? Por isso estou dormindo aqui fora, agora.
— É mesmo? — disse Gladichev, inquieto.
— É mesmo — confirmou Ivan, evitando resposta mais direta. — Eu
digo uma coisa a ela, ela diz uma coisa a mim, você sabe, uma coisa

leva a outra, o negócio explode e foi assim. Escute, não me importa
droga nenhuma. Agarro meu capote, meu fuzil, meu saco. . . o que
mais tenho?. . . e vou para fora.

— É uma reviravolta e tanto — comentou Gladichev, sacudindo a
cabeça, tomado de surpresa. — Por isso eu saí de manhã cedo e vi o
que pareciam suas pernas embaixo do avião. Vocês brigaram,
então?
— Pois é, brigamos — disse Tchônkin, entristecendo mais ainda.
— Talvez você tenha feito a coisa certa — conjeturou Gladichev.
Olhou apreensivo para a esposa, depois passou a um cochicho. —
Se quer saber, vou lhe contar uma coisa. Não se amarre com essas
mulheres, Vânia. Dê o fora enquanto está novo. Você sabe, elas são.
. . é só olhar a minha, ali sentada, aquela cascavel. Na próxima vez
que estiver falando com ela, observe a língua, é partida. Ferroa
como um réptil. Não há palavras para descrever o que já passei com
aquela ali, Vânia. Pois é, e sou o único? O sexo oposto trouxe
sofrimento ilimitado aos homens, quer examinemos uma época
contemporânea de desenvolvimento, quer os fatos do passado
histórico. . .
Olhando de esguelha a esposa, Gladichev começou a murmurar
ainda mais baixo, como se estivesse transmitindo uma informação
supersigilosa.
— Quando o Czar Nicolau I exilou os decembristas para a Sibéria,
ou sei lá para onde, as esposas deles não ficaram contentes, não,
tiveram de apanhar os trapos e seguir atrás deles, embora não
houvesse estrada de ferro naqueles dias. Mataram os cavalos de
tanto andar, puseram doidos os cocheiros e quase morreram
também, mas finalmente chegaram aonde queriam chegar, está
entendendo? Eu nunca diria nada de ruim sobre Niúra, Vânia. É
uma mulher educada, com alguma compreensão das coisas. Mas,
ainda assim, dê o fora enquanto é tempo.

— Eu daria — disse Tchônkin. — Mas esta engenhoca aqui não me
deixa. — E ele apontou para o aeroplano, aduzindo com tristeza
depois de pensar um pouco: — Estou morrendo de fome. O
estômago ronca à beça.
— Quer comer alguma coisa? — perguntou Gladichev, surpreso. —
Ora, por que não disse antes? Vamos para minha casa. Acendemos


o fogareiro e fritamos uma omelete em gordura de bacon. Tem até
um pouquinho. . . — e Gladichev piscou para Tchônkin — de
mistura caseira. Vamos lá. Ao mesmo tempo você pode ver como
vivo.
Tchônkin não precisava de outro convite. Escondeu o fuzil debaixo
da palha, rastejou por baixo da cerca e, pisando cuidadosamente
entre os canteiros, acompanhou o anfitrião que seguia à frente em
passadas muito independentes. Chegaram à varanda e, lá, Afrodite
fez uma careta e lhes deu as costas.
— Você devia, pelo menos, pôr um pedaço de oleado por baixo do
garoto — resmungou Gladichev, enquanto passava. — Senão ele vai
mijar na sua saia.
Indiferente, Afrodite ergueu o olhar e disse:
— É melhor você dar uma cheirada na casa. E deixar que seu
convidado cheire, também.
Dito isso ela novamente lhes virou as costas. Gladichev abriu a
porta e deixou que Tchônkin entrasse primeiro.
— Viu como ela fala comigo? — disse a Ivan. — É a mesma coisa
todos os dias. Essa imbecil imunda. Meus cheiros têm objetivos
científicos, os dela são puro relaxamento.
No vestíbulo reinava a escuridão, e Gladichev acendeu um fósforo
que iluminou o corredor estreito e uma porta coberta com aniagem
de saco. Gladichev abriu a porta, o que imediatamente libertou tal
cheiro que Tchônkin recuou, tomado de surpresa. Se não houvesse
tapado imediatamente o nariz talvez caísse ao chão. Mantendo o
nariz bem fechado Tchônkin entrou na cabana atrás do dono, que
então se voltou e lhe disse:

— Está claro que logo no início causa um pouco de choque' mas eu
já estou acostumado, isso não me incomoda de modo algum. Abra
uma narina um pouco, e quando estiver acostumado ao cheiro abra
a outra. Você pode achar que o cheiro é nojento, mas na verdade ele
é sadio e benéfico ao organismo e tem todas as espécies de
propriedades valiosas. Por exemplo, a firma francesa Coty fabrica
os perfumes mais sutis a partir da merda. Vá dando uma olhada por
aí enquanto eu vou preparar a omelete para nós. Vamos comer
alguma coisa. Agora também estou com vontade de comer um
pouco.
Enquanto Gladichev bombeava e acendia o fogareiro de pressão
Tchônkin continuou na peça dianteira da casa. Ao se acostumar ao
cheiro Tchônkin aceitou o conselho de Gladichev e abriu
inicialmente uma narina e depois a outra. Olhou em volta do
quarto, e realmente teve uma visão espantosa.
Em primeiro lugar — aqueles potes. Havia uma multidão deles, e
não estavam apenas sobre o fogão e no peitoril da janela, mas
também no banco perto da janela, por baixo do banco, atrás do
estrado da cama de ferro, que não havia sido arrumada os
travesseiros estavam de qualquer maneira, abandonados onde
haviam sido deixados.
Em cima da cama, como de costume, havia molduras com flores e
pombas. Essas molduras continham fotografias do dono da casa,
tiradas desde os anos de sua juventude até a atualidade, fotografias
da esposa Afrodite e de numerosos parentes de ambos os lados.
Acima desta iconostase via-se uma fotografia dos Gladichev juntos,
feita por encomenda e executada a partir de diversos instantâneos,
tão cuidadosamente pintada pelo artista desconhecido que os
rostos, na pintura, não apresentavam a menor semelhança com os
fotografados. A parede em frente à janela também servia como uma
espécie de museu — as molduras ali penduradas continham as
cartas e artigos que Gladichev recebera por causa de sua pesquisa
científica e das quais já falamos. Em moldura separada achava-se

preservada a carta recebida do conhecido acadêmico agrícola, à qual
também já nos referimos.
Na parede entre as janelas estava pendurado um fuzil calibre 16, de
um só cano, que o leitor, naturalmente, já adivinhou que terá de ser
disparado a alturas tais, mas se disparará ou negará fogo eis algo
que continua sem se saber, apenas o tempo o mostrará.
Tchônkin ainda não conseguira olhar direito tudo o que se achava
no aposento quando a omelete ficou pronta e Gladichev o chamou
para a mesa.
Também a peça dos fundos não se mostrava muito asseada, mas,
pelo menos, parecia um pouco mais limpa do que a sala da frente.
Continha um armário com pratos, um berço pendurado no telhado
(a cama de Hércules) e uma mala velha sem tampa e cheia de livros
esfrangalhados, na maioria eruditos (por exemplo, Mitos da Grécia
antiga e a brochura popular A mosca, disseminador ativo de
doença), e uma seqüência completa do periódico O Milharal, desde

o ano de 1912. Essa mala era a fonte principal da qual Gladichev
extraía sua erudição.
A omelete e a gordura de porco chiavam na frigideira sobre a mesa
grande, cuja toalha de oleado ostentava círculos marrons, marcas de
pratos quentes ali colocados antes. Por mais estonteado que o cheiro
o deixasse (embora ele houvesse realmente se acostumado um
pouco àquilo), a fome punha Tchônkin ainda mais tonto; e ele nao
precisou de um segundo convite: sentou-se à mesa sem maiores
formalidades.
Gladichev tirou dois garfos da gaveta, limpou-os na camisa, colocou
um diante do convidado, e tomou para si aquele que tinha um
dente a menos. Tchônkin estava a ponto de enfiar o garfo na
omelete quando o anfitrião o deteve, dizendo:

— Espere um pouco.
Apanhou dois copos empoleirados no armário, examinou-os contra
a luz, cuspiu neles, limpou-os também na camisa e colocou-os sobre

a mesa. Depois correu até o vestíbulo e voltou de lá com uma
garrafa parcialmente cheia de mistura caseira, tampada com uma
rolha feita de jornal enrolado. Gladichev serviu metade do copo
para o convidado, depois encheu outro meio copo para si.

— Aí estamos, Vânia — disse, puxando o banco para si e
retomando a conversa. — Em geral reagimos com melindres à
merda, como se ela fosse uma coisa ruim. Mas se olharmos bem o
assunto veremos que pode ser a substância mais valiosa na terra,
pois a vida vem da merda e volta para a merda.
— De que jeito? — perguntou Tchônkin educadamente, fitando
com olhar faminto a omelete que esfriava, mas resolvendo não
começar antes do anfitrião.
— Do jeito que você quiser. — E Gladichev foi apresentando sua
idéia, sem observar a impaciência do convidado. — Avalie por si
mesmo. O chão precisa ser fertilizado com merda para termos uma
boa colheita. Todas as ervas, cereais e frutos que nós e os animais
comemos vêm da merda. Os animais nos dão leite, carne, lã e tudo o
mais. Nós usamos isso e depois transformamos em merda outra
vez. Essa é a origem de. . . como posso dizer. . . a circulação da
merda na natureza. Vamos perguntar a nós mesmos por que motivo
devemos usar a merda na forma de carne ou leite ou mesmo deste
pão aqui, isto é, em forma processada e beneficiada. Surge a
pergunta legítima: não seria melhor livrarmo-nos de nossos
preconceitos e falsos melindres e usar a própria merda, em forma
pura, como uma espécie de vitamina maravilhosa? No início, é claro
— Gladichev se corrigiu, ao observar que Tchônkin se encolhia —,
haveríamos de tirar-lhe o cheiro natural e então, quando o homem
estivesse acostumado, era só deixar como estava. Mas, Vânia, essa
tarefa pertence a um futuro distante e às futuras realizações da
ciência. Proponho que brindemos ao êxito de nossa ciência, ao
poder soviético e à pessoa do Camarada Stálin, um gênio de fama
mundial.

— Ao nosso encontro — apressou-se Tchônkin a corresponder.
Bateram os copos, Ivan sorveu o conteúdo do copo e quase caiu da
cadeira. No mesmo instante perdeu o fôlego, como se lhe
houvessem dado um murro no estômago. Sem ver coisa alguma
diante de si Tchônkin enfiou cegamente o garfo. na frigideira,
arrancou um pedaço de omelete e com a ajuda da outra mão
engoliu esse pedaço, queimando-se enquanto o fazia. Só então
soltou o ar que explodia nos pulmões.
Gladichev, que sorvera o conteúdo do copo sem qualquer
dificuldade, olhou para Ivan e dedicou-lhe um sorriso astuto.
— E então, Ivan, que acha da mistura caseira?
— Coisa de primeira — louvou Tchônkin, enxugando as lágrimas
com a palma da mão. — Tira o fôlego da gente.
Com o mesmo sorriso no rosto Gladichev puxou a lata rasa que
usava como cinzeiro para si, cuspiu nela um pouco da bebida e
depois jogou um fósforo em cima. A mistura caseira pegou fogo,
com uma chama azul embaciada.
— Está vendo isso?
— Você faz com cereal ou com raiz de beterraba? — perguntou
Tchônkin, curioso.
— Com merda, Vânia — disse Gladichev, sopitando o orgulho.
Tchônkin engasgou.
— O que quer dizer? — perguntou, afastando-se da mesa.
— Receita muito simples, Vânia. — Gladichev estava aflito por
explicar. — Você pega um quilo de açúcar com um quilo de merda. .
.
Derrubando o banquinho Tchônkin partiu para a porta. Quase
derrubou Afrodite e a criancinha na varanda. A dois passos da
varanda ele se agarrou na parede de toras da cabana e ali botou as
tripas para fora.
Em seu encalço veio o anfitrião perplexo, que, batendo fortemente
os pés no chão, desceu a varanda.

— Vânia, o que se passa? — perguntou com muita solidariedade,
tocando Tchônkin no ombro. — Essa mistura é pura, Vânia. Você
mesmo viu como queimou.
Ivan estava prestes a responder, mas com a simples menção à
mistura caseira novos espasmos lhe tomaram o estômago e mal teve
tempo de abrir as pernas para não manchar as botas.
— Oh, senhor! — disse Afrodite de repente, em angústia indefesa.
— Você deu a merda para outro beber, seu tirano maldito, não há
como impedi-lo. Eu cuspo em você! — disse, e cuspiu com gosto na
direção do marido.
Gladichev, entretanto, não se ofendeu.
— Em vez de cuspir você devia trazer uma maçã lá do porão. Não
está enxergando que o homem passa mal?
— Sim, aquelas maçãs! — gemeu Afrodite. — Aquelas maçãs
também cheiram a merda. Toda a casa está entupida de merda, você
devia cair nela, devia afogar-se nela, seu idiota miserável. Eu vou
abandoná-lo, cabeça de titica. Vou pedir esmolas com a criança,
antes de ficar enterrada em merda.
Sem hesitar um só instante, ela apanhou Hércules e saiu correndo
pelo portão. Deixando Tchônkin sozinho, Gladichev correu no
encalço da mulher.
— Para onde vai correndo, Afrodite? — gritava atrás dela. — Volte,
estou dizendo. Não nos envergonhe diante de todos. Ei, Afrodite!
Afrodite parou, voltou-se e começou a gritar com raiva na cara de
Gladichev:
— Eu não sou a sua Afrodite. Eu sou Froska, entendeu isso, seu
imbecil de orelha torta? Froska!
Deu meia-volta e, segurando a criança quase morta de medo com os
braços bem para cima, continuou correndo pela aldeia, dando saltos
e tropeçando.
— Eu sou Froska, gente, escutem o que digo, sou Froska! — Não
parava de gritar com um deleite frenético, como se houvesse

acabado de recuperar o dom da fala após anos da mais completa
mudez.

16


A 21 de junho Schulenburg, o embaixador alemão na URSS, recebeu
uma nota onde se dizia que de acordo com as informações
soviéticas as tropas alemãs estavam se concentrando nas fronteiras
ocidentais da União Soviética. O governo soviético solicitava ao
governo da Alemanha que esclarecesse o assunto. Essa nota foi
passada a Hitler poucos minutos antes do início da guerra.

Nesse momento Tchônkin, que reatara com Niúra na noite anterior,
continuava dormindo. Foi então despertado por um chamamento
da natureza. Por algum tempo permaneceu sentado sem se mexer,
resolvendo não sair daquele cobertor quente, contando em segredo
que a necessidade passasse sozinha. Mas a necessidade não passou.
Esperou até não lhe restar mais um segundo de espera. Enfiando os
pés nas botas e jogando o capote sobre os ombros nus ele saiu
correndo para a varanda, mas não havia como ir mais longe.

Era uma manhã clara e fresca. O orvalho se mostrava bem espesso
na relva, nas folhas das árvores e nas superfícies lisas do aeroplano.
O sol já vencera o horizonte e se tornava visivelmente menor. As
janelas refletiam a luz vermelha do sol e o silêncio perfeito era
rompido de quando em vez pelo mugir baixo e sonolento das vacas.
Tchônkin estava a ponto de despertar Niúra para que ela pudesse
ordenhar Boniteza e mandá-la ao pasto, mas, nesse momento,
mudou de idéia e resolveu fazer tudo sozinho. Quando ia apanhar o
balde de leite Niúra acordou e quis levantar-se, mas Tchônkin lhe
disse:

— Está tudo certo, durma mais um pouco.

Tchônkin foi para o celeiro da vaca.

Depois de ordenhar Boniteza, abriu metade do portão
duplo, mas a vaca não quis passar. Estava acostumada a que
abrissem as duas metades do portão. "Animal estúpido", pensou
Tchônkin, e estava a ponto de dar-lhe um pontapé, mas ficou com
pena dela.

— Vá andando — murmurou em paz, abrindo a outra metade do
portão.
Com um olhar desconfiado para Tchônkin, sacudindo a cabeça
coberta de chifres curtos, Boniteza partiu em triunfo para a saída do
curral, exatamente quando a manada se aproximava.
As vacas se espalhavam por toda a estrada ampla, farejando os
postes, mourões e portões ao passarem, suspirando cheias de sono.
O novo pastor, Liócha Jarov, veio oscilando atrás da manada,
montado a cavalo. Uma antiga jaqueta de edredom servia-lhe de
sela. Um braço rasgado pendia dali e se balançava como pêndulo
sincronizado com a marcha do cavalo.
Ao ver o pastor, Tchônkin achou que talvez gostasse de passar o dia
em sua companhia. Foi até o portão e chamou:
— Ei, você aí, como vai a vida?
Liócha puxou as rédeas, fez parar o cavalo e olhou com curiosidade
para Tchônkin, a quem via pela primeira vez.


— Não está ruim de todo — disse, depois de pensar um pouco. — A
vida é muito boa.
Silenciaram e Tchônkin olhou para o céu claro, dizendo:
— Parece que vamos ter bom tempo hoje.
— Bom tempo, se não chover.
— Não tem chuva sem nuvem — observou Tchônkin.
— Sem nuvens, isso mesmo, nada de chuva.
— Às vezes a gente tem nuvens e mesmo assim não tem chuva.
— Às vezes — concordou Liócha.

Nesse diapasão eles se separaram. Jarov tocou o cavalo a fim de
emparelhar com a manada e Tchônkin voltou à cabana.
Niúra dormia, estendida por toda a cama. Seria uma pena acordá-la,
e Tchônkin deu voltas em torno da cabana por algum tempo e
depois, sem ter o que fazer, aproximou-se de Niúra.

— Escute, vá levantando — disse, tocando-lhe o ombro. O sol,
agora, entrava pela janela, em raios cheios de poeira que tocavam na
parede em frente onde se encontrava o relógio de mostrador
empenado. O relógio era velho, o mecanismo cheio de poeira, e algo
lá dentro estava sempre estalando e esfregando. Os ponteiros
indicavam quatro horas — nesse momento os alemães
bombardeavam Kíev.
PARTE II
1


A notícia de que a guerra começara pegou todos dormindo porque
ninguém estivera dando a mínima atenção ao assunto. É verdade
que cerca de uma semana e meia antes Vovó Dúnia andara falando
de um sonho que tivera, no qual sua galinha Klachka dera à luz um
cabrito com quatro chifres. Os peritos, entretanto, haviam
considerado inofensiva essa visão; o pior que podia significar, a seu
ver, era chuva. Agora tudo vinha adquirir significado novo.
Tchônkin não tomou conhecimento imediato do que acontecera
porque estava sentado na casinha, sem pressa alguma de sair. O
tempo de Tchônkin não fora dividido e distribuído para qualquer
objetivo nobre; seria apenas para viver e contemplar o fluxo da
vida, sem extrair dali qualquer conclusão: resumia-se em comer,
dormir, beber e atender às necessidades psicológicas ou chamados


da natureza, não apenas naqueles momentos decididos pelos
regulamentos do serviço de guarda e guarnição, mas quando as
necessidades surgissem.
A casinha de verão ficava na faixa de legumes. Raios de sol
atravessavam-lhe a estrutura frágil, moscas verdes zumbiam por ali
e uma aranha descia de pára-quedas de um canto da teia.
Pedaços quadrados de jornal haviam sido pregados na parede à
direita de Tchônkin. Ele os arrancava um após outro e lia,
adquirindo assim muita informação fragmentária sobre os assuntos
mais diferentes.
Já se familiarizava com diversos:

"MPORADA DE TERAPIA NOS BALNEÁRIOS DO VOLG

ÇÃO MILITAR NA SÍR

ÇÃO MILITAR NA CHIN

APEÇARIA 'LÊNIN STÁLIN DURANTE A REV"
Leu o artigo intitulado "Protesto alemão aos Estados Unidos", em
seu todo:

"Berlim, 18 de julho, (TASS) Segundo um boi Do Gabinete Alemão de
Informação do governo dos EUA em nota de 6 de junho exigiu do
encarregado de nego alemão em Washington que os empregada
biblioteca de Informações alemã em Nova York, Transoc
ailway Society abandonem território dos Estados Unidos, exigência
e pelo fato de que os empregos cupados com, por assim dizer, atos
inadmissíve governo alemão declin exigência como infundadas a
apres protesto contra a atividade dos EU tradizendo o tratado"

Tchônkin não começara a tecer suas considerações sobre as
atividades dos EUA quando o grito distante de Niúra alcançou-lhe
os ouvidos:


— Váááánia!
Tchônkin aguçou as orelhas.
— Vânia! Onde está?
"Um bicho devia pegar você, Vânia, aonde foi agora?" Era Niúra,
perturbada, aproximando-se mais. Não havia como contornar a
situação, precisava responder-lhe em seguida.
— Para que tanta afobação? — perguntou, sem poder evitar o
embaraço. — Estou aqui.
Niúra se achava ao lado. Por um furo pôde ver-lhe o rosto,
afogueado de agitação.
— Saia depressa! — disse Niúra. — É a guerra!
— Era só o que faltava! — disse Tchônkin, menos surpreso do que
pesaroso. —-Com a América, é isso?
— Com a Alemanha!
Intrigado, Tchônkin assobiou e depois começou a abotoar-se.
Alguma coisa, naquilo tudo, não lhe parecia certa, e quando saiu
perguntou a Niúra quem lhe estivera dizendo tanta bobagem.
— Foi o rádio que disse.
— E ele está dizendo agora?
— Acho que não — respondeu Niúra. — Todo mundo foi correndo
para uma reunião no gabinete. Você acha que a gente deve ir?
Tchônkin se pôs pensativo, inclinou a cabeça para o lado.
— Se é assim que as coisas estão, acho que não existe reunião para
mim. Minha reunião é aqui mesmo, devia queimar essa porcaria —
disse, e cuspiu com irritação no avião.
— Esqueça isso — propôs Niúra. — Quem precisa desse negócio?
— Antes, ninguém. Mas agora vai servir. Você vai ouvir o que estão
dizendo por lá, fico aqui porque alguém pode chegar voando.
Um minuto depois, fuzil ao ombro, Tchônkin caminhava em volta
do aeroplano, revirando a cabeça de um lado para o outro na
expectativa de um ataque, quer por parte dos alemães quer por
parte dos seus oficiais comandantes. O pescoço já doía e os olhos

estavam ofuscados quando os ouvidos aguçados de Tchônkin
perceberam um som que aumentava gradualmente, zi zi zi.

— Aí vem! — Tchônkin se agitou e torceu o pescoço. Pequena
mancha surgira diante de seus olhos e aumentava agora, assumindo
gradualmente a forma de um aeroplano. De repente, todavia, a
mancha desapareceu e o som acabou. Nesse exato instante alguma
coisa espetou Tchônkin; ele deu violento tapa na própria testa e
assim matou o mosquito.
"Não era um aeroplano", disse a si mesmo e limpou o mosquito nas
calças.
Talvez tenha sido o tapa na testa ou talvez algum fator não-
mecânico no cérebro de Tchônkin, mas alguma coisa lhe aconteceu e
esse deslocamento deu passagem ao pensamento alarmante de que
estava desperdiçando o tempo, que de nada valia para ninguém e
que ninguém ia ser mandado ali por sua causa. Tchônkin nunca
pensara estar destinado a qualquer coisa extraordinária, mas ainda
assim jamais duvidara de que um dia o chamariam. Não precisaria
ser muita coisa, até mesmo para alguma bobagem, ou para dar a
vida livremente por algo que valesse a pena, sem qualquer
pensamento de recompensa, mas agora tudo parecia dizer que sua
vida de nada servia a ninguém. (É claro que, olhando do ponto de
vista dos acontecimentos que abalavam o mundo, um fenômeno
natural modesto como a vida de Tchônkin era do menor valor
possível; ele, no entanto, não tinha qualquer outra coisa de mais
valor que pudesse partilhar com a terra em que nascera.)
Tristemente ciente de sua inutilidade, Tchônkin abandonou o
objetivo de sua proteção e partiu para o gabinete, onde as pessoas
estavam reunidas e aguardavam agora uma explicação.

2


Eles formavam um semicírculo amplo diante da varanda do
gabinete, que era circundada por um corrimão. Vigiavam
pacientemente a porta coberta de feltro grosso e esfarrapado,
contando que as autoridades logo surgissem e lhes proporcionassem
alguns detalhes. Os homens fumavam sombriamente, as
mulheres choravam baixinho e as crianças olhavam os pais sem
compreender aquela tristeza que se apoderara deles já que, na
imaginação infantil, nada no mundo é mais divertido do que a
guerra.
Era meio-dia e o sol escaldava, o campo havia parado, as
autoridades ainda não se tinham apresentado. Com o tempo, as
pessoas começaram a trocar palavras. Grandão era o centro das
atenções, como de costume. Consolava os companheiros dizendo
que a guerra não duraria além da primeira estação de chuvas,
quando toda a máquina alemã certamente soçobraria na lama russa.
Kurzov concordou com ele, mas sugeriu que não perdessem de
vista o fato de que o alemão se alimentava de concentrados
alimentares e podia durar muito. A despeito de seus noventa anos
de idade e mente débil, além da surdez total, Vovô Chápkin batia
papos por ali, tentando descobrir qual o objetivo da reunião.
Ninguém lhe respondia, mas finalmente Grandão teve pena e,
fingindo segurar uma metralhadora, imitou uma rajada prolongada
de fogo, em sons que eram inaudíveis para Chápkin: "Pam, pam,
pam, pam!" Em seguida, como se estivesse galopando em fogoso
corcel, Grandão começou a brandir um sabre imaginário sobre a
cabeça.
Vovô Chápkin prestou atenção a tudo isso mas ainda assim
observou que nos dias de antigamente eles plantavam o trigo e o
colhiam antes de debulhá-lo.
Pouco a pouco a multidão se dividiu em pequenos grupos
separados, cada qual com sua conversa e nenhuma delas rela



cionada à guerra. Stepan Lukov discutia com Stepan Frolov,
dizendo que se alguém atrelasse um elefante à locomotiva o elefante
venceria o cabo-de-guerra. Sentindo-se um pouco provocado,
Grandão asseverou que podia copiar o retrato de qualquer dirigente
ou animal, desmanchando-o em quadradinhos e copiando cada
quadradinho separadamente.
Em outra ocasião Tchônkin teria parado para se maravilhar diante
do talento invulgar de Grandão, mas naquele momento não se
achava inclinado a tanto. Preocupado com seus próprios
pensamentos de infortúnio, ele deu a volta até uma pilha derrubada
de achas de pinheiro. O próprio Ivan escolheu uma acha sem resina,
sentou-se nela e atravessou o fuzil sobre os joelhos. Ainda não
chegara a extrair do bolso a lata de fumo, quando Gladichev se
aproximou.

— Escute, vizinho, pode me dar um pedaço de jornal para eu
enrolar o fumo que você vai me oferecer? E deixei os fósforos em
casa.
— Tome — disse Tchônkin, sem erguer o olhar. Era o último fumo
que lhe restava.
Gladichev acendeu, inalou fundo, cuspiu um fragmento de fumo
que viera à língua e fez bem alto:
— Uh-huh!
Tchônkin nada disse e continuou a olhar em frente.
— Uh-huh! — fez Gladichev ainda mais alto, no esforço de chamar
a atenção de Tchônkin.
Tchônkin nada disse.
— Não agüento! — disse Gladichev, erguendo os braços. — Meu
cérebro se recusa a aceitar. Eles devem, de fato,.ter alguma
consciência. . . comeram a gordura de nosso bacon e manteiga e
agora fazem essa sujeira conosco, quer dizer, refiro-me ao ataque
traiçoeiro que nos desfecharam.

Mesmo diante de tais palavras Tchônkin não ofereceu qualquer
resposta.

— Não, pense só — insistia Gladichev, acalorado. — Sabe, Vânia, é
uma vergonha completa. As pessoas não deviam ir à guerra, Vânia,
deviam trabalhar para o bem das gerações futuras, porque foi o
trabalho, apenas o trabalho, que transformou o macaco no homem
contemporâneo.
Gladichev olhou então para Tchônkin, e subitamente compreendeu
algo.
— Mas, Vânia, você provavelmente não sabe que o homem
descende do macaco, não?
— Eu diria que ele vem da vaca — contrapôs Tchônkin.
— O homem não podia descender da vaca — replicou Gladichev,
cheio de convicção. — E você poderia perguntar o motivo.
— Não pergunto — disse Tchônkin.
— Bem, mas poderia — persistiu Gladichev, tentando arrastá-lo a
um debate a fim de demonstrar sua erudição. — Vou lhe dizer por
quê: a vaca não trabalha, o macaco trabalhou.
— Onde? — perguntou Tchônkin de repente, fitando Gladichev
com dureza.
— O que quer dizer com isso, onde? — E Gladichev se surpreendeu.
— Estou lhe perguntando: onde é que seu macaco trabalhou? —
perguntou Tchônkin, ficando cada vez mais irritado.
— Numa fábrica, num kolkboz, numa usina, onde?
— Que idiota você é! — exclamou Gladichev, agitado.
— Que tipo de fábrica, kolkhozes e etcétera poderia ter existido
naquelas condições primevas? O que se passa com você, meu
amigo? Não enlouqueceu? As coisas que diz! O macaco trabalhou
na selva, foi lá que trabalhou. De início trepava nas árvores
procurando bananas, mas depois começou a derrubá-las batendo
com um pau. Só mais tarde ele apanhou a pedra. . .
Sem dar a Tchônkin oportunidade alguma de pensar, Gladichev
atirou-se a uma breve exposição da teoria da evolução; chegou à

altura do desaparecimento da cauda e dos pêlos, mas não conseguiu
encerrar sua preleção, pois, perto do gabinete, as pessoas se
ajuntavam e murmuravam. O Partorg Kilin aparecera na varanda.

3


— Qual o motivo dessa reunião?
Apoiando-se no corrimão pelos cotovelos, Kilin examinava um
semblante após outro, esperando que todos se acalmassem e
parassem de falar. As pessoas se entreolhavam sem saber como
explicar o que era evidente.
— E então? — Kilin fixou o olhar no chefe da brigada de campo. —
O que tem a dizer, Chikalov?
Chikalov ficou confuso, recuou, pisou no pé de Grandão e levou um
sopapo na nuca. Estacou então e ali ficou plantado, a boca aberta.
— Estou esperando, Chikalov — Kilin lembrou-lhe.
— Você sabe que eu. . . quero dizer, nós. . . Houve um boletim —
explicou finalmente Chikalov, recuperando a voz.
— Que tipo de boletim?
— E essa, agora? — Chikalov se espantara, olhando em volta como
a procurar testemunhos. — Por que está brincando comigo? Você
não ouviu, o que foi? Houve um boletim.
— O que se passa com você? — e Kilin ergueu as mãos em
desespero. — Houve um boletim, então. E você quer me dizer que o
boletim disse que as pessoas não precisam mais trabalhar e deviam
reunir-se e formar uma multidão. Foi isso o que disse o boletim?
Chikalov abaixou a cabeça e calou-se.
— Que tipo de gente é esta! — lamentou Kilin, do ápice do cargo. —
Vocês não têm consciência. Percebo que até uma guerra serve para
vocês pararem de trabalhar. Vão se dispersando e não quero ver

uma pessoa aqui, dentro de cinco minutos. Fui claro? Estou
colocando a responsabilidade sobre os chefes-de-brigada Chikalov e
Taldikin.

— Você devia ter dito logo — disse Chikalov, satisfeito
por terem as coisas sido devolvidas à normalidade. Voltou-se
então para falar com a multidão: — Muito bem, dispersem-se!
Ei, vocês todos, ficaram surdos ou o quê? Estou falando sozinho?
Por que estão aí com essas caras de idiotas? Vamos andar!
Estendendo os braços peludos Chikalov empurrou uma mulher
que tinha uma criança no colo. A mulher começou a gritar
e a criancinha a chorar.


— Por que está empurrando? — interveio Kurzov, tentando
defender a mulher. — Ela está com uma criança.
— Vamos andando, dêem o fora daqui! — Chikalov empurrou-o
com o ombro. — Com criança ou sem criança, não vamos ficar por
aqui e discutir.
O pequenino Taldikin veio correndo e atacou Kurzov, dando-lhe
murros com os pequenos punhos.
— Muito bem, chega — disse Chikalov, e prorrompeu em uma
torrente de palavrões. — Não há motivo para bagunça, vão
poupando os seus nervos, vão para casa, com calma, tomem um
pouco de vinho. . .
— É só não empurrar! — e Kurzov continuava resistindo. — Não
existe lei dizendo que você precisa empurrar.
— Ninguém está empurrando — arrulhou Taldikin. — Eu só lhe fiz
um pouco de cócegas, assim.
— E não existe lei dizendo que deve fazer cócegas, também —
persistiu Kurzov.
— Esta é a lei para você! — concluiu Chikalov, enfiando o punho
enorme sob o nariz de Kurzov.
Taldikin, entrementes, farejava a multidão como um cachorrinho
peludo, aparecendo e logo desaparecendo.

— Dispersem-se, todos, acabem com isso! — esganiçava na vozinha
doce de que era dotado. — O que estão olhando? Isto não é um
jardim zoológico. Se querem um jardim zoológico vão para a
cidade. E você, vovô — agarrava: Chápkin pela manga —, está
dormindo ou o quê? Aqui não tem nada interessante para você. É
no cemitério que devia estar pensando, entendeu? O cemitério,
estou lhe dizendo! — e gritava nas orelhas do velho, enormes, com
penugens brancas. — Você já viveu três dias mais do que devia,
entendeu? Mexa esses pés, vovô, um na frente do outro. Isso
mesmo, agora entendeu!
Gradualmente Chikalov e Taldikin obtiveram vitória completa
sobre os aldeões. Por algum tempo o terreno diante do gabinete
ficou deserto.
4


As instruções do partorg pareceram surpreendentes a muitos.
Também teriam parecido surpreendentes a ele mesmo,.não fora. . .
Mas tudo deve vir a seu tempo.
Umas três horas antes de tudo isso acontecer, Kilin e Go-lubev se
haviam revezado, fazendo girar a manivela do telefone de
campanha. O presidente substituía o partorg, o partorg o
presidente, e de nada tudo aquilo valia. O receptor de ferro
encostado na orelha, ouviam estática, estalidos, música, a voz do
locutor do rádio repetindo o boletim sobre o início da guerra e
alguma mulher amaldiçoando algum Mítia que vendera seu
samovar e edredom para beber. A certa altura uma voz masculina
nervosa surgiu e exigiu falar com Sokolov.

— Que Sokolov? — perguntou Golubev.

— Você sabe — disse a voz. — Diga a ele que se não aparecer
amanhã às zero oito zero zero horas terá de assumir a
responsabilidade pela lei marcial.
O presidente estava querendo explicar que não havia nenhum
Sokolov por lá, mas a voz com raiva desaparecera e esse
desconhecido Sokolov, talvez sem desconfiar de coisa alguma, já
estava sendo encaminhado a um tribunal militar.
Golubev cedeu o lugar ao partorg e foi ao canto, abrindo o cofre de
metal onde se guardavam os documentos secretos e financeiros.
Enfiou a cabeça no cofre, e parecia um fotógrafo a ponto de dizer:
"Firme! Lá vai!" Não foram essas suas palavras, em absoluto. Um
som baixinho de gargarejo de dentro do cofre e logo Ivan
Timofêievitch retirava a cabeça e enxugava os lábios na manga.
Defrontando-se com o olhar censurador do partorg, Golubev tirou
um livro de assentamentos do cofre e o folheou sem maior interesse,
recolocando-o logo no lugar. Ao diabo com tudo, estava pensando,
agora não faz mais diferença.
A guerra vai apagar tudo isto. O principal é chegar à frente de luta o
mais depressa possível; por lá era arranjar um peito cheio de
medalhas ou a cabeça cheia de balas mas, de qualquer modo, daria
para viver como um homem honesto. Por azar, devido aos pés
chatos, Ivan Timofêievitch fora declarado incapaz para o serviço
militar, embora contasse esconder esse defeito quando fizesse
exame na junta médica.
Enquanto Golubev fazia planos para o futuro, Kilin prosseguia
obstinadamente a girar a manivela do telefone. Tudo que se
pudesse imaginar era ouvido no receptor, menos o que ele queria
ouvir.

— Alô, alô! — continuava gritando Kilin de vez em quando.
Alguém lhe disse:
— Vá comer um quilo de merda. — Kilin preferiu não considerar
aquilo um ataque pessoal.

— Deixe para lá — aconselhou Ivan Timofêievitch. — Vamos fazer
uma reunião, preparar o relatório e tudo estará certo.
Kilin lançou-lhe um olhar prolongado e duro e voltou a atacar o
telefone com fúria ainda maior. De repente, por mágica a mais pura,
a voz veludosa da telefonista veio flutuando pelo fio:
— Telefonista!
Kilin ficou tão estupefato que não conseguiu proferir uma só
palavra; só sabia bufar baixinho no receptor, que umedecera nas
mãos suadas.
— Telefonista! — repetiu ela num tom de voz onde afirmava
claramente que todo o seu trabalho na mesa telefônica era aguardar
chamadas de Krásnoie.
— Telefonista! — gritou Kilin, recuperando o controle de si e com
medo de perdê-la. — Querida, por favor. . . Estou chamando desde
ontem. . . Boríssov. É. . . urgentemente necessário. . .
— Vou ligar — disse a moça com simplicidade, e mais uma vez,
como por mágica, uma voz masculina veio ao receptor.
— Aqui Boríssov.
— Serguei Nikanóritch — começou o partorg a dizer mais que
depressa —, aqui é Kilin, de Krásnoie. Golubev e eu estivemos
querendo lhe falar, não deu para ser antes, as pessoas estão
esperando, o trabalho parou, a situação é esquisita aqui, não
sabemos o que fazer.
— Não entendo — disse Boríssov, a voz a espelhar surpresa. — Não
entendo o que você não sabe. Você fez uma reunião?
— Claro que não.
— Por quê?
— Por quê? — repetiu Kilin. — Não sabemos o que fazer. Você
mesmo sabe que isso é uma questão nacional e não recebemos
instruções. . .
— Agora entendi. — E a voz de Boríssov começou a vibrar com
ironia. — E, quando você vai verter água, desabotoa sozinho a
braguilha ou aguarda instruções?

Boríssov não deixou por menos, levou todo o peso dessa ironia à
cabeça calva de Kilin, como se ele próprio não estivesse, momentos
antes, telefonando para todos, na esperança de receber o mesmo
tipo de instruções salvadoras.

— Bem, está certo — disse, substituindo finalmente a raiva por
misericórdia. — Você deve efetuar uma reunião espontânea, usando
o discurso de Molotov como orientação. O mais cedo possível.
Reúna as pessoas. . .
— As pessoas já se reuniram há muito tempo — folgou Kilin em
informar, e piscou o olho para o presidente.
— Muito bem, isso é ótimo. — E Boríssov começou a ronronar. —
Ótimo. . . — repetiu, desta feita sem tanta certeza. E logo estacou.
— Não compreendo!
— Não compreende o quê? — perguntou Kilin, surpreso.
— Não compreendo como as pessoas se reuniram. Que pessoas, e
quem as reuniu?
— Ninguém as reuniu — informou-lhe Kilin. — Elas se reuniram
sozinhas. Você imagina só? Assim que ouviram o rádio vieram
correndo, os velhos, as velhas, os homens, as mulheres e as crianças.
..
Enquanto dizia isso Kilin pressentia que Boríssov não estava
gostando de algo em seu relatório (agora o próprio Kilin estava um
tanto insatisfeito, por algum motivo), e sem completar a frase
grandiloqüente ele ficou por ali mesmo e silenciou.
— Então — disse Boríssov, pensativo. — Então isso quer dizer que
eles ouviram sozinhos e foram correndo sozinhos. . . Eis o que você
vai fazer, meu amigo: espere por mim e não desligue o telefone. . .
Mais uma vez os ruídos, estalidos, música e outros sons claros e
não-claros podiam ser ouvidos no receptor.
— Bem, o que se passa? — perguntou o presidente, murmurando.
— Ele foi ver o que Revkin tem a dizer — explicou o partorg, num
palpite, encobrindo o receptor com a palma da mão. Kilin

atravessou diversas mudanças de expressão fisionômica: corou,
empalideceu, esfregou a calva desigual com o lenço sujo até que
ficasse encharcado.
A telefonista apareceu duas vezes.


— Está falando?
— Ainda estamos falando, ainda estamos falando — apressou-se
Kilin a explicar.
Finalmente ouviu a batida distante, acompanhada pela voz
insinuante de Boríssov:
— Escute, meu amigo, você está com seu cartão do Partido?
— Como pode perguntar, Serguei Nikanóritch? — assegurou-lhe
Kilin. — Como sempre, onde deve estar, no meu bolso esquerdo.
— Pois isso é ótimo — aprovou Boríssov. — Monte num cavalo e
trate de vir à Comissão Distrital. E traga o seu cartão.
— Para quê? — Kilin não estava entendendo.
— Para poder entregá-lo.
Jamais Kilin contara com tamanha reviravolta nos acontecimentos.
Olhou para o presidente, que se valera da seriedade da conversa e
seguira para o cofre, mas Golubev, agora, estacou a meio caminho e
respondeu ao olhar de Kilin com outro, de preocupação fingida.
— Mas, para quê? — perguntou Kilin, desanimado. — O que foi
que eu fiz?
— Você desencadeou a anarquia, foi o que fez! — E Boríssov
deixava que tais palavras caíssem como gotas de chumbo derretido.
— Quem já ouviu falar em pessoas a se reunirem por si mesmas,
sem qualquer controle por parte da liderança?
Kilin enregelava por dentro.
— Mas escute, Serguei Nikanóritch, quer dizer, você mesmo disse. .
. uma reunião espontânea. . .
— A espontaneidade, Camarada Kilin, precisa ser controlada! —
estralejou Boríssov.
Alguma coisa desligou o interruptor. A música voltava a ser ouvida
e a mulher misteriosa dizia ao misterioso Mítia que perdoava o

edredão a ele, mas era melhor arranjar-lhe um samovar, não
importava onde ou como.

— Alô, alô! — gritou Kilin, julgando que a linha houvesse caído.
Mas a telefonista explicou educadamente que o Camarada Boríssov
concluíra a conversa. Kilin baixou devagar aquele receptor
escorregadio, recolocou-o no gancho e respirou fundo. "Mas vejam
só que coisa", pensava arrasado. "Você pensa que fez tudo certo e
depois embrulha tudo com um erro político. Mas está claro que a
coisa é muito simples, muito fácil de entender. Eu mesmo podia ter
calculado. A espontaneidade precisa ser controlada. Mesmo se
estiver caminhando na direção desejada precisa ser dirigida, pois de
outra forma ela pode resolver fazer o que lhe agradar. Aí está a
coisa toda. De qualquer modo é bom que Boríssov me tenha
chamado de camarada. Ele podia ter dito cidadão. Os erros políticos
são fáceis de cometer e difíceis de corrigir. Como eles dizem, temos
campos de trabalho coletivo para corrigir enganos assim."
— Bem, o que ele disse? — a pergunta feita pelo presidente
finalmente chegou aos ouvidos de Kilin.
— Quem? — perguntou Kilin.
— Boríssov, quem podia ser? Ele lhe deu alguma instrução?
— Instrução? — e Kilin repetiu a pergunta, com ironia. — E,
quando você vai verter água, pede instruções também? Precisamos
agir, esta a instrução que existe.
Com essas palavras Kilin foi para a varanda. Valendo-se da
oportunidade que surgira e sem esperar instrução alguma o
presidente mergulhou a cabeça mais uma vez no cofre e só saiu dali
algum tempo depois.
5



Controlar o espontâneo é algo um tanto difícil, é verdade, porém

muitas pessoas já se habituaram a fazê-lo.
Após a multidão se ter dispersado — com relutância evidente, mas
ainda assim se tinha dispersado — os chefes-de-brigada Chikalov e
Taldikin voltaram ao gabinete e sentaram-se no banco de terra lá
fora, aguardando outras ordens das autoridades superiores.

— Que tipo de gente é essa, afinal? — admirava-se Taldikin, que
ainda não se acalmara dos esforços mais recentes. — Você os toca
daqui, eles não vão! Todos teimosos como um jumento, não se
mexem! Você sabe, eu entendo assim: se as pessoas encarregadas
dizem: "Dispersem-se", a gente se dispersa. As pessoas
encarregadas sabem melhor o que devem fazer, não chegaram
aonde estão com cabeças iguais às nossas. Mas não, todos
continuam montadinhos, continuam como se fossem príncipes ou
coisa assim.
— O que é certo é certo — concordou Chikalov, em tom sério. —
No tempo em que eu era moço a gente os tocava com os fuzis. —
Ficou pensativo e sorriu, recordando uma época distante da vida. —
Lembro-me de 1916, eu estava servindo em Peterburd, era sargentomor
na ocasião. Eles tinham por lá o tipo de gente que não quer
trabalhar, mas logo de manhã agarra aqueles trapos com toda
aquela besteirada escrita, e prende os trapos nos paus e sai
desfilando para mostrar a todos que sabe ler e escrever. Às vezes a
gente saía e tirava toda aquela porcaria deles, e a gente ficava com
tanta raiva que dizia: "Você e um besteiro, por que está fazendo
isso?", e eles diziam: "Não sou eu o besteiro. Você é o besteiro, eu
não tiro faixas de você. E você que tira faixas de mim". E eu dizia a
eles: "Eu não sou besteiro, você é que é o besteiro porque eu tenho o
fuzil e você não tem nada".

— E que tipo de palavras eles escreviam nesses panos que
chamavam de faixa? — perguntou Taldikin, interessando-se e
contando que fossem palavras de baixo calão.

— As palavras? — repetiu Chikalov. — Vou lhe dizer, palavras de
besteiro. Coisa como "Abaixo Lênin" e "Abaixo Stálin".
Nesse ponto Taldikin começou a ter dúvidas.
— Espere aí — interrompeu o outro. — Alguma coisa está errada no
que você diz. Não havia nenhum Lênin ou Stálin em 1916. Quero
dizer, eles estavam vivos, mas não estavam dirigindo ainda o
governo dos operários e camponeses.
— É? — perguntou Chikalov.
— É — respondeu Taldikin.
— Você, então, está dizendo que a gente não tinha nem Lênin nem
Stálin, nessa época. E quem tínhamos, então?
— Todo mundo sabe disso — explicou Taldikin, com confiança. —
Em 1916 era o Czar Nicolau Aleksándrovitch, imperador e
autócrata.
— Você é burro, Taldika — comentou Chikalov, com solidariedade.
— Você é chefe-de-brigada e não tem miolo bastante para
compreender que Nicolau, esse, veio depois. E Kerenski veio antes
dele, também.
— Isso me dá nojo — disse Taldikin, não agüentando mais. — Você
acha que Kerenski, então, foi um czar?
— E não foi isso?
— Ele foi Primado-Ministro.
— Você embaralhou tudo — suspirou Chikalov.
— Qual era o nome de Kerenski?
— Aleksadr Fiódorovitch.
— Está vendo? E o czar era Nicolau Aleksándrovitch. Assim sendo,
tinha de ser filho de Kerenski.
A cabeça de Taldikin rodopiava. Ele queria objetar, mas não sabia o
que dizer..
— Muito bem, está certo — concordou. — E quando você acha que
foi a Revolução?
— Que revolução?

— A de outubro. — E Taldikin acentuava tudo de que tinha certeza.
— Foi em 1917.
— Não tenho tanta certeza. — Chikalov sacudiu a cabeça, tomado
de indecisão. — Em 1917 eu também estava servindo em Peterburd.
— Foi lá que aconteceu, em Peterburd — concordou Taldikin,
animando-se.
— Não — retorquiu Chikalov, cheio de convicção. — Talvez tenha
acontecido em outro lugar, mas não foi em Peterburd.
Essa última observação arredou as sombras do espírito de Taldikin.
Até aquele momento ele se julgara conhecedor da história em
questão, e julgava saber o que acontecera, mas Chikalov
apresentava tudo de modo tão diferente que Taldikin foi obrigado a
pensar, pensar, pensar, mas não conseguia pensar em coisa alguma
e terminou dizendo, sem maior convicção:
— Mas agora ouvi dizer que eles não acabam com essas
demonstrações. Meu sobrinho esteve em Moscou no último ano, no
Primeiro de Maio, e diz que uma multidão de pessoas seguiu
aclamando pela praça e Stálin se achava lá em cima no manzo-léu
acenando com a mão.
Kilin inclinou-se pela janela e ordenou a Chikalov que entrasse no
gabinete. Chikalov se pôs em pé. No gabinete do presidente o
trabalho seguia à toda. O aposento estava escuro como uma casa de
banho devido à fumaça de cigarros. Tendo descoberto um pouco de
espaço para si na beira da escrivaninha, o partorg começara a
redigir ordem para a reunião, determinando ali e acolá que trechos
deviam ser interrompidos por aplausos e especificando que tipo de
aplauso devia ser empregado (tempestuoso, prolongado ou apenas
comum). Empurrou o que escrevera para o presidente, que, embora
usasse o método de um dedo, datilografou tudo aquilo com
bastante desenvoltura na máquina de escrever.
— Bem, o que diz, Chikalov? — perguntou Kilin, sem se afastar de
sua composição.

— Aqui está. — Chikalov aproximou-se da mesa. — Tudo foi feito
como mandou.
— Quer dizer que você os dispersou todos?
— Todos — confirmou o chefe-de-brigada.
— Até o último homem?
— Até o último homem. Taldika é o único que ficou. Devo correr
com ele também?
— Ainda não precisa. Leve-o para ajudar. Quero que todos eles
estejam aqui presentes no gabinete, em meia hora. Faça uma lista de
todos que não aparecerem.
Dito isso o partorg ergueu a cabeça e fitou o chefe-de-brigada nos
olhos, prosseguindo:


— Qualquer um que não aparecer precisa estar doente na cama, ou
então leva uma multa de vinte e cinco dias de trabalho e nem um
segundo menos. Entendeu, Chikalov?
— Sim — assentiu Chikalov com ar sombrio. — Posso começar?
— Comece. — E o partorg deu-lhe permissão, voltando ao que
escrevia.
Chikalov se retirou. Taldikin estava sentado na varanda, fumando.
— Vamos embora — foi o que Chikalov lhe disse, sem interromper
os passos.
Taldikin levantou-se e caminhou a seu lado. Quando haviam dado
cerca de cinqüenta passos, pensou em fazer uma pergunta:
— Para onde vamos?
— Trazer todos de volta para cá.
Não se pode afirmar que a boca de Taldikin se abrisse com surpresa
ou qualquer coisa desse tipo, mas ainda assim manifestou algum
interesse:
— Então para que nós tocamos com todos daqui, logo no começo?
A essa altura Chikalov parou e olhou para Taldikin. No gabinete ele
não sentira surpresa alguma porque, de modo geral, não tinha
capacidade de sentir surpresa. Haviam-lhe dito para dispersar a
multidão, ele a dispersara. Haviam-lhe dito para trazê-la de volta,

ele a traria de volta. Mas a pergunta do camarada o obrigou a
pensar, talvez pela primeira vez na vida. Por que os haviam tocado
dali, então? Chikalov coçou a nuca, pensou um pouco e se saiu com
a seguinte conjetura:

— Não sei por quê. Para emancipar o terreno.
— Emancipar para quem?
— O que quer dizer com isso, para quem? Para o povo. Para haver
algum lugar para onde tocá-lo.
Isso era mais do que Taldikin podia agüentar e ele se exasperou.
— Pronto! — Ele fez um dedo girar na têmpora. — Posso ser burro,
mas sua cabeça está vazia.
— E na sua tem alguma coisa?
— Isso mesmo, tem uma coisa na minha.
— Muito bem, digamos que sim — concordou Chikalov.
— Vamos dizer que tem alguma coisa na cabeça. Pois então me
explique por que eles tocaram o povo dali.
— Só para se divertirem — respondeu Taldikin em tom confiante.
— Que imbecil! — E Chikalov sacudia a cabeça. — Para quem isso
ia ser divertido?
— Para os patrões — disse Taldikin. — A questão é que, para eles, é
como se fosse uma mulher. Você quer a mulher e ela concorda logo;
bem, isso não é muito interessante. Mas se ela começar brigando,
criar um caso, depois disso a gente a agarra. Isso é o que se chama
de prazer de verdade.
— O que você diz é correto — concordou Chikalov, ani-mando-se.
— Eu me lembro daquela mulher, lá em Peter-burd.. .
Para dizer a verdade, após todos esses anos o autor já não consegue
lembrar-se de que tipo de mulher Chikalov apanhara ou que
aventuras haviam tido os dois, mas o que se sabe com certeza é que
em pouco tempo se formou um quorum perto da varanda do
gabinete. . . E dessa feita as pessoas apresentaram um pouco de
resistência (Taldikin tinha razão) e todos tiveram de ser
influenciados pessoalmente (alguns no pescoço, outros no assento).

Mas era assim que devia ser (Taldikin estava certo, de novo): sem
alguma resistência o vencedor não tem prazer na vitória.

6


Reunião é uma providência pela qual grande número de pessoas se
juntam, algumas para dizer o que realmente não pensam, outras
para não dizer o que realmente pensam.
O presidente e o partorg foram para a varanda e teve início o de
costume. O partorg declarou aberta a reunião e deu a palavra ao
presidente. O presidente propôs que fosse eleito um presídio e deu
a palavra ao partorg. Assim trocaram de lugares diversas vezes, e
enquanto um falava o outro batia palmas, exortando os demais a
fazerem o mesmo. As pessoas aplaudiam educada mas
apressadamente, na esperança de que algo mais substancial logo
fosse dito.

— Camaradas! — começou o partorg no discurso e imediatamente
ouviu soluços. Descontente, ele olhou para ver quem estava
causando a perturbação. O que viu foram os rostos das pessoas.
— Camaradas! — repetiu, sentindo que não poderia dizer uma só
palavra a mais, pois apenas nesse instante se apercebia por
completo de tudo que acontecera, o pesar que desabara sobre todos
eles, entre os quais se achava. Vistos contra tal pesar seus medos e
truques astutos mais recentes não pareciam ter qualquer
significado. E agora o texto que redigira também parecia
insignificante, vazio, estúpido. O que podia dizer a essas pessoas
que, naquele exato instante, esperavam palavras que ele não tinha
para dizer? Momentos antes não pensara em si próprio como todos
os outros — ele, um representante de poder mais forte, que sabe e
compreende quando, o que e como mover-se? Agora de nada sabia.

— Camaradas! — recomeçou e olhou para o presidente, indefeso,
pedindo apoio.
O presidente acorreu ao gabinete, a fim de trazer água
de lá. A garrafa de água não estava no gabinete, de modo que foi ao
tanque onde havia uma torneira e uma caneca presa por corrente. O
presidente pisou na corrente e arrancou a caneca e metade da
corrente. Quando a caneca apareceu diante de Kilin ele a agarrou
com ambas as mãos e passou muito tempo tomando pequenos
goles, no esforço por recuperar o controle de si.

— Camaradas! — começou pela quarta vez. — O ataque traiçoeiro
pela Alemanha fascista. . . — Sentia algum alívio ao pronunciar a
primeira frase. Gradualmente apoderou-se do texto e o texto
apoderou-se dele. Os padrões conhecidos de palavras embotavam-
lhe o pesar, distraíam-lhe o espírito e logo a língua de Kilin
tagarelava sozinha, como uma parte separada e independente do
corpo. — Nós defenderemos nosso solo, responderemos a cada
golpe com outro golpe, com trabalho heróico faremos frente. . .
O choro, na multidão, cessara. As palavras de Kilin haviam-lhes
sacudido os tímpanos, mas não alcançaram suas almas. Os
pensamentos das pessoas voltavam às suas preocupações comuns.
O único que se mantinha à parte da multidão era Gladichev, em pé
perto da varanda; as mãos prontas a aplaudir de novo, ele prestava
atenção ao desenvolvimento do pensamento do orador.

— Isso mesmo! — exclamava com convicção nos momentos
adequados, assentindo com a cabeça de chapéu de palha com aba
larga.
Tchônkin se pusera em pé, atrás de todos. O queixo descansando no
cano do fuzil, procurava discernir a substância do que Kilin dizia.
Tendo resumido o discurso de Molotov, Kilin passou dos tópicos
gerais aos particulares — às questões concretas de seu próprio
kolkhoz. Recentemente o kolkhoz alcançara êxitos novos e sem
precedentes. Empregando métodos agrotécnicos avançados, o


plantio de leguminosas fora terminado antes da época comum. O
partorg informou quanto havia sido plantado, em que superfície,
quantas batatas e outros legumes haviam sido plantados, quanto
estrume e adubo químico a mais haviam sido levados ao campo.
Olhando para a folha de papel Kilin jorrava as cifras como uma
máquina de calcular.

Tchônkin se absorvera no partorg, o olhar cravado nele, mas algum
pensamento vago o impedia de prestar atenção às cifras e comparálas.
Erguendo a cabeça com desânimo Tchônkin olhou para trás e
notou subitamente a distância, na estrada baixa ao lado do rio, um
cavalo baio que puxava com esforço uma carroça na qual Raissa, a
moça do armarinho da aldeia, se sentava sobre um monte de
mercadorias. Tal visão levou Ivan a compreender subitamente que
aquilo de que não conseguira lembrar-se estava, de algum modo,
ligado a Raissa, à carroça ou ao cavalo.
Quando finalmente percebeu, Tchônkin começou a abrir caminho
em meio à multidão rumo a seu vizinho e amigo, que se colocara
bem à vista diante de todos, as mãos prontas a aplaudir.

— Escute, escute, vizinho — disse Tchônkin, puxando Gladichev
pelo cotovelo. — O que quero lhe perguntar é o seguinte: o que me
diz do cavalo?
— Que tipo de cavalo? — E Gladichev voltou-se para ele, um tanto
perplexo.
— Você sabe, um cavalo, um cavalo — e a percepção tardia de
Gladichev causava raiva em Tchônkin. — Um animal de quatro
patas. Ele trabalha, também. Assim sendo, por que o cavalo não se
tornou homem?
— Ora, você é uma coisa! — Gladichev chegou a cuspir, de tanta
irritação, mas cuspiu exatamente no momento errado, pois a
multidão prorrompia agora em aplausos. Percebendo o que se
passava, o plantador começou de imediato a aplaudir também,

olhando com devoção o orador de modo que o fato de ter cuspido
não fosse interpretado como tendo algo a ver com o discurso.
Entrementes, tendo concluído a parte positiva do discurso, o orador
passava à parte que continha as críticas.

— Mas, camaradas — dizia —, lado a lado com nossos grandes
êxitos no aumento das colheitas, existem deficiências especiais que,
se forem somadas, parecem, digamos, nefastas. Por exemplo,
Gorchkova, Evdokia, atrasa constantemente o pagamento, quer do
imposto de renda quer do imposto local. Rechetov, Fiodor, permitiu
danos infligidos a um campo do kolkhoz, deixando que seu gado
particular pastasse ali, motivo pelo qual a administração o multou
em quarenta dias de trabalho. Uma vergonha, camaradas, é o que
temos aí, uma vergonha. Não precisamos ir longe para achar
exemplos em que até mesmo nosso chefe-de-brigada, Taldikin,
demonstrou atitude nada camarada para com uma mulher. De
modo mais claro, no dia popularmente mencionado como dia de
Ivan, Taldikin, quando se achava sob influência do álcool, bateu na
esposa com um eixo de carroça. Taldikin, isso aconteceu ou não?
Nada tem a dizer? Que vergonha! E todos estamos envergonhados
por sua causa. Olhe, se sua mulher fizer alguma coisa errada, dê-lhe
uma palmada no traseiro. [Animação. Gargalhadas.] Você pode até
usar uma correia e ninguém vai lhe dizer nada. Mas um eixo de
carroça. . . Isso é muito pesado. Logo prosseguia:
— E agora, camaradas, passo à questão seguinte. Para nós é uma
questão penosa, muito penosa. Estou pensando na falta de trabalho
pelo número mínimo de dias de trabalho. A situação parece tão
ruim que sentimos vontade de arrancar o cabelo e gritar.
Infelizmente ainda existem certas pessoas entre nós que dividem as
coisas. . . Isto é meu e isto é do kolkhoz. . . e existem pessoas que
não querem trabalhar, empregam sua idade e enfermidades para
não trabalhar. Fechando a raia neste aspecto está Jikin, Iliá. Dá até
para dizermos que ele estabeleceu uma nova marca, tendo
trabalhado desde o início do ano até o presente num total de

nenhum total e setenta e cinco por cento de um dia de trabalho.
[Animação. Gargalhadas. Exclamação de Gladichev: "Uma
vergonha!"] Compreendo, naturalmente, que Jikin é um combatente
incapacitado da guerra civil, e não tem as pernas. Mas agora está
aproveitando as pernas que não tem. A chefia do kolkhoz e do
Partido não se compõe de animais e nós temos sentimentos por
outras pessoas. Camaradas, ninguém está obrigando Jikin a
trabalhar como correio ou a ajudar a fazer o feno. Mas ele pode
perfeitamente ajudar na extirpação de ervas. Que se sente em um
sulco e rasteje de uma planta a outra com a velocidade que puder,
tirando as ervas e assim preenchendo os requisitos mínimos de um
dia de trabalho. De nada adianta ele enfiar aquelas pernas que não
tem em nossas caras. [Exclamação de Gladichev: "Isso mesmo!"]
O orador silenciou, avaliando a impressão que causara nas pessoas
que tinha à frente, e então, tendo demorado o que quis, prosseguiu:

— Camaradas, li recentemente a novela de Nikolai Os-trovski,
Como o aço foi temperado. É um livro muito bom e eu o recomendo
a todos os que sabem ler. Conta a história de um homem que
atravessou o fogo e a água da Revolução e da Guerra Civil e
terminou não apenas sem braços e pernas, mas cego dos dois olhos,
e que, preso à cama pela dor, encontrou coragem e força em si para
servir a seu povo e escrever esse livro. Ninguém exige isso de vocês.
Vocês não estão por aí escrevendo livro algum. Mas eu os aconselho
a lerem um pouco. Principalmente você, Camarada Jikin. Está
presente ou não? [A voz de Chikalov: "Não está".] Pois então, vocês
vêem, ele não atendeu, nem mesmo apareceu numa ocasião como
esta. Vocês vão dizer: "Mas ele não tem pernas". Não preciso que me
digam isso. Mas quando Jikin precisa ele vai por aí em sua tábua de
roletes, tão bem quanto muitas pessoas de bicicleta. Ivan
Timofêievitch é minha testemunha; uma vez tivemos de correr atrás
de Jikin e não conseguimos pegá-lo. Ora, ele bem podia ter vindo
aqui na tábua com rodinhas, não? Podia ter vindo, sim. Está claro
que Jikin é um homem digno e ninguém está tentando tirar isso

dele. Mas os serviços passados não dão a ninguém o direito de
descansar sobre os louros, com pernas ou sem pernas. [Exclamação
de Gladichev: "Isso mesmo!"]
Tendo encerrado as críticas de suas deficiências o partorg mais uma
vez enfiou o nariz na folha de papel, porque chegara o momento de
apresentar a conclusão triunfal do discurso e convinha não cometer
erro algum.
Quanto mais o partorg falava, mais aflição se exprimia no rosto do
presidente. A multidão diminuía perceptivelmente. Primeiro foi
Vovó Dúnia que desapareceu atrás da esquina do edifício. Foi
acompanhada pouco depois por Ninka Kurzova, que sumiu
também. Tudo isso não escapou aos olhos de Taika Gorchkova, que,
cutucando o marido, Michka, com o cotovelo, indicou Ninka com
um movimento dos olhos. Taika e Michka começaram a deslizar na
direção da esquina enquanto aplaudiam as últimas observações do
orador. Quando Stepan Lukov se adiantou naquela mesma direção,

o presidente não disse uma só palavra, mas brandiu o punho
cerrado em sua direção. Lukov parou. Mas bastou que Ivan
Timofêievitch olhasse um instante para outro lado, e Lukov, Frolov
e até a esposa do presidente desapareceram da multidão. O
presidente fez sinal a Chikalov, que lançava olhares nervosos ao
redor. Chikalov foi na ponta dos pés até a varanda, ouviu as ordens
cochichadas, assentiu e sumiu de vista, não reaparecendo.
O Partorg Kilin nada observava disso, enquanto dizia a parte final
do discurso. Mas ao se aproximar do fim ele ergueu a cabeça para
receber o inevitável aplauso estrondoso e tudo o que viu foram as
costas dos ouvintes que se afastavam à vontade. A única pessoa em
pé na praça empoeirada diante do gabinete era Ivan Tchônkin. O
queixo apoiado no fuzil, Tchôn-kin se achava perdido em
pensamentos tristes sobre as origens do homem.

7


Raissa, a almoxarife, estava sozinha na loja, sentada e ponderando
sobre o imponderável. Na véspera apanhara uma carga de
mercadorias no Sindicato dos Consumidores do Distrito, e
resolvendo tirar vantagens por ter um cavalo aquele dia não seguira
diretamente para casa, mas partira na outra direção, para a casa da
cunhada, que vivia a cerca de doze quilômetros de Dolgov. Na casa
da cunhada, Raissa tomou vinho tinto, ouviu o gramofone, cantou
um pouco, foi deitar-se tarde e levantou-se tarde. Fez a refeição
matinal (que também incluía vinho tinto) e, quando arreou o cavalo,
já passava de meio-dia, finalmente partiu. Esteve na estrada
bastante tempo, mas não encontrou pessoa alguma. Finalmente
chegou de volta à aldeia, inteiramente insciente dos acontecimentos
que transpiravam no grande mundo. Viu, é claro, uma grande
multidão perto do gabinete, ao entrar na aldeia, mas não atribuiu
qualquer importância àquilo, pensando: "Não deve ser nada".
Raissa chegara com a carroça à loja, desembarcara a mercadoria e
estava começando a colocá-la nas prateleiras. Foi exatamente
quando Vovó Dúnia surgiu à sua frente, pedindo para comprar
cinqüenta sabonetes.

— Quantos? — perguntou Raissa estupefata.
— Cinqüenta.
— E para que precisa de tanto? — perguntou Raissa, ainda sem
entender.
— Você sabe como é, Raiuchka, com tudo isso acontecendo —
explicou a velha, bajulando. — É preciso estocar.
— Tudo o que está acontecendo, o quê?
— Você sabe. . . — e Vovó Dúnia ia se referir ao ataque traiçoeiro,
mas, percebendo a tempo que Raissa não fazia idéia do que se
passava, começou a murmurar sobre alguns convida

dos que esperava receber. Raissa não achou que tal explicação fosse
satisfatória.

— Para que tanto sabonete para os convidados? — perguntou,
incapaz de compreender o que realmente sucedia. — Dois
sabonetes, está certo; três está certo; até dez. Mas cinqüenta? Para
quê?
— Nunca se sabe — explicou Vovó Dúnia, sacudindo a cabeça,
evasiva, e sem a mínima intenção de ceder coisa alguma.
— Muito bem, vá em frente, apanhe o sabonete, se é o que quer. —
Raissa cedeu e puxou uma caixa de sabonetes ainda fechada,
tirando-a do canto. Ao lado a caixa continha trinta e oito sabonetes,
dos quais Raissa tirou dois para si própria.
— Pode me dar um saquinho para eles? — perguntou Vovó Dúnia,
olhando pesarosa os dois sabonetes postos de lado.
— Você me devolve? — perguntou Raissa.
— Naturalmente que devolvo! — asseverou Vovó Dúnia,
ofendendo-se. — Não preciso das coisas dos outros, Raiuchka. Não
sou ladra, você sabe.
Raissa ajudou a pôr tudo no saco sujo e depois o atirou sobre o
balcão.
— Quer mais alguma coisa?
— Um pouco de sal — disse a vovó, soltando o fôlego que
prendera.
— Quanto?
— Um saco e meio deve bastar.
— O que há com você, mulher, ficou maluca? O que vai fazer com
tanto sal?
— Eu tenho repolho, pepino e tomate para pôr em conserva.
— E agora são pepinos e tomates? E que me diz das beterrabas, vai
fazer conservas também?
— Também podia fazer — concordou Vovó Dúnia. — E você sabe
como é. . . um dia tem sal, no dia seguinte não tem, ou então tem

sal, mas você não tem o dinheiro. Não precisa ficar nervosa, é só me
dar um pouco de sal.

— Bem, está certo — concedeu Raissa. — Vou lhe dar um saco, mas
não me peça mais.
— Um saco chega. — E, percebendo que o tempo escasseava, Vovó
Dúnia, por sua vez, cedeu.
Não havia lugar, no saco maior, para pôr o sal. Tiveram de tirar os
sabonetes, derramar o sal, cobrir com jornal e depois recolocar os
sabonetes por cima.
— Só isso? — perguntou Raissa, esperançosa. Vovó Dúnia hesitou e
depois disse:
— Eu também preciso de alguns fósforos.
— Quantos? — perguntou Raissa, cansada. — Mil caixas?
— Deixe de besteiras — retorquiu a velha, cheia de nobre
indignação. — Cem caixas servem.
— Dou-lhe dez — disse Raissa.
Chegaram a um acordo na base de vinte caixas. Vovó Dúnia não ia
mais brigar, e jogou os fósforos no saco. Usando o ábaco, Raissa
somou o total que era devido. Vovó Dúnia enfiou a mão dentro dos
culotes, procurou ali por algum tempo e tirou um pequeno maço
formado por um trapo sujo com flores estampadas cheio de uma
pilha de rublos. Ela não era dona de grande instrução, mas sabia
contar. Mesmo assim colocou os rublos no balcão um por um,
parando a cada vez e olhando para Raissa na esperança mística de
que essa dissesse: "Chega", mas Raissa era mulher paciente e
esperou que Vovó Dúnia pusesse no balcão até o último rublo que
devia. Com o dinheiro restante a mulher comprou dois quilos de
fermento seco, seis pacotes de chá da Geórgia, dois pacotes de pó
dentifrício Manhã e, para a sobrinha, uma bonequinha numa caixa
de papelão com os dizeres "Boneca Tânia n.° 5 com chapéu".
Sem querer perder um segundo mais, a velha jogou o saco às costas.
— Cuidado agora para o botão da sua barriga não soltar! — gritou-
lhe Raissa enquanto a velha saía.

— Não se preocupe — respondeu a velha, ao fechar a porta e
desaparecer.
Raissa nem mesmo tivera tempo de pensar no comportamento
singular de Vovó Dúnia quando a porta se escancarou e Ninka
Kurzova irrompeu por ela. Seu lenço caía para o lado, os cabelos
estavam despenteados e o rosto afogueado. Sem mesmo dizer alô,
começou a examinar as prateleiras, revirando os olhos inflamados.
— O que deseja hoje, Ninka? — perguntou Raissa em tom bondoso.
— O quê? — Ninka começava febrilmente a tentar lembrar-se do
que precisava, mas tudo em que pensara a caminho dali lhe
escapara por completo.
— É tudo o que tem a dizer?
— Você tem sabonete? — perguntou Ninka, lembrando-se do que
queria.
— Precisa de muito? — indagou Raissa, lançando cauteloso olhar
de esguelha aos dois sabonetes que guardara para si.
— Cem sabonetes — proferiu Ninka.
— Você ficou doida ou coisa assim? — retorquiu Raissa, incapaz de
se controlar.
— Muito bem, noventa — disse Ninka, tirando dez.
— Tem certeza de que não quer cento e noventa?
— Dê-me o que você tem, mas ande depressa.
— E onde vou arranjar tudo isso para você se Vovó Dúnia acabou
de limpar a loja?
— Ah, Vovó Dúnia!
Ninka correu para a porta, mas Raissa chegou lá antes e barrou-lhe
o caminho.
— Deixe-me passar! — disse Ninka, empurrando-a.
— Calma! Ninka, conte-me, por que todos estão procurando
sabonete? Aconteceu alguma coisa?
Por um instante Ninka ficou sem voz, fitando Raissa sem entender.
— Você não sabe o que aconteceu?
— Não.

— Então você é uma burra! — disse Ninka e, empurrando Raissa
para o lado, deu um salto e saiu da loja.
8


Vovó Dúnia levava seu saque para casa. Não era carga leve. Só o sal
pesava dezoito quilos, e havia trinta e seis sabonetes, cada qual
pesando quatrocentos gramas. Mais dois quilos de fermento, o pó
dentifrício e a boneca Tânia n.° 5 com chapéu. E era preciso lembrar
que o próprio saco pesava um quilo. Não importa o que dissessem,
uma carga respeitável. Quanto mais se adiantava tanto mais a velha
parava para descansar, apoiando o saco na cerca mais próxima.
Como afirma o ditado, todavia, as cargas que escolhemos não
pesam em nossas costas. Além disso, sua sensação de vitória trazia-
lhe forças novas. E assim, tendo descansado pela última vez, Dúnia
já estava em sua própria cabana, faltando-lhe dez passos, quinze no
máximo, quando alguém puxou com força o saco que tinha às
costas.
Vovó Dúnia voltou-se e lá estava Ninka Kurzova.

— Vovó, deixe ver esse saco. Vamos dividir — disse Ninka, falando
depressa.
— Hein? — em momentos de desastre pessoal Vovó Dúnia ficava
imediatamente surda dos dois ouvidos.
— Vamos dividir pela metade, sem erros — repetiu Ninka.
— Ninuchka, como posso ter bezerros? — queixou-se a velha. —
Faz mais de um ano que vendi minha vaca. Não tinha o que lhe dar
de comer. A cabrita teve filhote no inverno mas depois morreu na
primavera. — Sacudiu a cabeça com tristeza, sorriu.
— Não me venha com essa de cabritos, quero o sabonete, não sou
criança — disse Ninka.

— Você tem razão, os idiotas vivem de esperanças — concordou
Vovó Dúnia.
— Escute — e Ninka a fitava com cansaço. — Vamos
dividir por bem, para eu não ter de tirar tudo de você, sabe como é?
— É duro para mim ficar de pé — suspirou Dúnia. — Minhas
pernas ultimamente doem muito. . .
— Sua velha! — Quase fora de si, Ninka soltou o saco, agarrou
Vovó Dúnia pela parte dianteira do vestido e começou a gritar em
sua orelha: — Pode tagarelar o que quiser, é só me dar o sabonete.
Para que precisa dele? Eu tenho família e filhos. . . logo terei, aliás.
Pare de puxar, quero esse saco.
— Ah, é o sabonete que você quer! — disse a velha, reconhecendo
com relutância ter entendido. — Vá falar com Raissa, ela tem
alguns.
— Mentira! — gritou Ninka.
— Não grite comigo — disse Vovó Dúnia, ofendida. — Não sou
surda, você sabe? É só pedir e eu dou. Naturalmente. Não somos
vizinhas? Se não ajudarmos uma a outra quem vai fazer isso?
Vovó Dúnia baixou o saco ao chão e passou muito tempo a
desamarrá-lo com dedos que de repente se punham desobedientes,
pondo à prova a paciência de Ninka. Depois enfiou a mão lá dentro
e começou a vasculhar o interior, examinando cada sabonete.
Queria escolher o menor de todos, mas cada um que pegava era
maior que o anterior. Finalmente suspirou, tirou um sabonete e o
colocou diante de si na grama. O semblante cheio de tristeza, olhou
para ele — naturalmente não era dos maiores. Mentalmente cortou
o sabonete em dois, mas a imaginação de Ninka proporcionava a ela
uma imagem muito diferente. Vovó Dúnia suspirou mais uma vez e
começou a amarrar o saco.
— Espere aí, vovó! — e Ninka voltou a agarrar o saco. — Vamos
espalhar tudo isso aí e dividir com justiça. Metade do que está aí é
sua, a outra metade é minha. Se não for assim, fico com tudo.

— Ninka, o que está dizendo? — A velha estava ficando seriamente
preocupada. — Você está insultando uma velha. Você sabe que eu a
embalava no berço? É melhor me soltar antes que eu comece a
gritar.
— Grite o que quiser! — disse Ninka, e empurrou a velha.
— Santos do céu! — Vovó Dúnia prorrompeu em lágrimas, caindo
de costas no chão.
Ninka não lhe deu atenção alguma, agarrou o saco e saiu correndo.
Correu um pouco, depois parou, voltou-se, apanhou o sabonete que
Vovó Dúnia pusera na grama e retomou a carreira. Foi quando
alguém agarrou o saco por trás.
— Agora você vai ver uma coisa, besta velha! — ameaçou Ninka,
julgando tratar-se de Vovó Dúnia. Mas, ao se voltar, era Michka
Gorchkov que via, tendo Taika bem a seu lado.
— Que pressa é essa? — Michka sorria. — Vamos dividir isso aí.
— Imediatamente — disse Ninka, puxando o saco para si. — O
mais depressa que puder.
— Aaaai! — berrou Taika e agarrou Ninka pelos cabelos.
— Estou sendo roubada! — berrou Ninka e deu um pontapé no
estômago de Taika. A essa altura uma multidão enorme já se
aproximava, vinda da horta de Stepan Frolov. Bem à frente da
coluna de ataque, Grandão brandia um pau que arrancara da cerca
de alguém.
9


Quando o Presidente Golubev e o Partorg Kilin, Tchônkin a fechar a
retarguarda, chegaram à cena do incidente, um espetáculo
inacreditável se lhes deparou. Os cidadãos de Krásnoie estavam
todos emaranhados em uma bola imensa que se parecia a uma hidra


de muitas cabeças, muitos braços e muitas pernas, zumbindo,
arquejando e sacudindo os membros, como a tentar arrancar algo de
suas próprias entranhas. Apenas partes das pessoas podiam ser
vistas, e tais partes da forma mais confusa. Os poucos cabelos que
haviam restado na cabeça do presidente se puseram em pé quando
ele viu Stepan Lukov com dois seios de mulher sair do montão
rastejando. Olhando melhor, viu que os seios eram de Taika
Gorchkova. Dois pés calçados em botas de lona, pertencentes a
pernas muito distantes entre si, esforçavam-se para voltar à pilha.
Uma terceira perna, visível por causa das calças rasgadas, ficara em
pé, reta, como uma antena de rádio; essa perna fora tatuada do
tornozelo ao joelho com tinta azul desbotada pelo tempo, com os
dizeres: "Perna direita".
Tal espetáculo contristador era completado pelos cachorros que
tinham vindo correndo de todos os cantos da aldeia. Corriam em
meio ao pandemônio geral, latindo sem parar. Para sua surpresa
Tchônkin observou Borka entre eles, correndo por ali, grunhindo e
guinchando mais do que todos os outros, como se tentasse provar
que era o cachorro mais forte.

Tchônkin descobriu seu amigo e vizinho Gladichev por perto, em
pé ao lado da confusão. As mãos cruzadas atrás das costas, Kuzmá
Matvêievitch olhava e se contristava por seus concidadãos, ao
observar-lhes as paixões desencadeadas.

— Vânia, aqui temos uma demonstração perfeita para vo
cê, agora pode ver de onde vem esse animal que tão orgulhosamente
se chama de homem.
Gladichev olhou para Tchônkin e sacudiu a cabeça com tristeza.
Exatamente nesse instante a hidra cuspiu para fora um sabonete
semi-esmagado que pousou exatamente nos pés do plantador.


— E é por isso que as pessoas deixam de ser humanas — disse
Gladichev, apontando para o alvo de tanta infelicidade e arredando-
o de si fatigadamente, com a ponta da bota. Gladichev se afastou,

empurrando o objeto de seu desdém com os pés, como se estivesse
perdido em devaneios científicos. Não dera cinco passos, entretanto,
quando um menino veio se contorcendo pelo lado, agarrou o
miserável sabonete correndo e, escapando à mão áspera do
plantador, partiu em carreira.

— Aí estão eles, a geração nova — anunciou Gladichev, voltando a
ter com Tchônkin. — Nossos sucessores e nossa esperança. Veja por
que motivo lutamos, e veja agora o que estamos encontrando. Um
inimigo traiçoeiro ataca o país, as pessoas estão morrendo pela
Rússia, e aquele moleque tira o último sabonete de um velho.
Gladichev respirou fundo e puxou o chapéu de palha sobre a testa,
esperando em vão outro presente do destino.
10


Após uma confusão momentânea, Kilin e Golubev se empenharam
em batalha desigual com aquela massa inconsciente. Tendo
orientado o partorg a entrar pelo outro lado o presidente partiu de
cabeça, entrando na confusão, e, em pouco tempo, arrastou de lá
Nikolai Kurzov, com um pedaço de sabonete preso a um ombro da
camisa rasgada, a cabeça branca de pó dentifrício.

— Fique aqui mesmo! — ordenou-lhe Ivan Timofêievitch, e mais
uma vez mergulhou na confusão, mas quando conseguiu chegar ao
fundo encontrou o mesmíssimo Kurzov por lá. Dessa feita não tinha
apenas a camisa em frangalhos, também o nariz fora amassado e
havia a marca distinta do calcanhar de alguém em sua face direita.
A despeito de sua natureza geralmente calma, Golubev enlouqueceu
de raiva. Saindo com Kurzov, levou-o a Tchônkin.

— Vânia, seja camarada e guarde este aqui. Se alguma coisa
acontecer, atire. Eu me responsabilizo — prometeu Golubev.
Pela terceira vez o presidente partiu rumo à hidra, que
imediatamente o engoliu.
Kurzov se acalmou assim que foi posto sob guarda e não fez
tentativa alguma de fuga, limitou-se a ficar ali, respirando fundo e
tocando o nariz inchado com um dedo sujo.
Enquanto isso os olhos de Tchônkin procuravam Niúra, que se
achava em algum lugar naquele tumulto. Tchônkin ficava nervoso
em pensar que ela podia ser esmagada ali. Quando o vestido que
tão bem conhecia passou diante de seus olhos, ele não agüentou
mais.
— Aqui, tome isto — disse, empurrando o fuzil na direção de
Kurzov. Ato contínuo correu até a montoeira, contando poder
agarrar Niúra e tirá-la de lá. Foi nesse exato instante que alguém lhe
deu um empurrão forte no flanco. Tchônkin cambaleou e tirou uma
perna do chão, no esforço por recuperar o equilíbrio, mas alguém
lhe puxou a outra perna e ele desabou no monte geral. Rodopiaram-
no como uma lasca de madeira em um rodamoinho. Logo estava lá
no fundo, no instante seguinte nadava até a parte superior e voltava
a cair no meio entre corpos que cheiravam a suor e querosene.
Alguém o agarrou pela garganta, alguém o mordia e arranhava, e
Tchônkin também mordia e arranhava alguma outra pessoa.
Tchônkin achava-se agora no fundo de tudo, sendo arrastado no
chão pela nuca, a boca cheia de poeira e os olhos, de pó dentifrício;
tossindo, espirrando e cuspindo, estava quase tirando tudo quando
o rosto encontrou algo macio, quente e conhecido.
— Niúra, é você? — mal conseguiu arquejar.
— Vânia! — gritou Niúra com alegria, libertando-se de alguém a
pontapés.
Nem Vânia nem Niúra estavam em condições de conversar, de
modo que ficaram ali deitados, um contra o outro no fundo dos
elementos desencadeados, até que alguém enfiou o calcanhar no

queixo de Tchônkin. Foi quando ele percebeu que era hora de sair
dali e começou a recuar, arrastando Niúra pelos pés.

11


— Então — disse o Partorg Kilin, segurando o saco contendo o que
restava das provisões. — Agora é uma história diferente. Agora
vocês todos vão juntar-se perto do gabinete e daremos um fim a
essa reunião. Quem pensar de outra maneira não recebe coisa
alguma deste saco. Vamos, Ivan Timofêievitch.
Kilin lançou o saco muitíssimo mais leve ao ombro e partiu à frente.
Vovó Dúnia chorava, sentada na poeira do local de batalha. As
mãos escuras na cabeça, a gota a atacá-la, chorava sem parar. Um
pouco para o lado estava uma caixa de papelão estraçalhada e,
perto dela, a boneca Tânia n.° 5, agora sem chapéu, a cabeça
levemente rasgada.
Grandão tomou a velha pelo cotovelo e ajudou-a a levantar-se.
— Vamos, vovó — convidou. — Não há motivo para chorar. Vamos
bater um pouco de palmas.
12



Nem mesmo haviam conseguido reunir a multidão perto do
gabinete quando uma coluna de poeira se levantou nas cercanias da
cidade e começou a rumar rapidamente em sua direção. O povo
correu para um lado, a coluna se aproximou do gabinete e depois
parou. No meio da poeira apareceu um ônibus MK. As pessoas se
surpreenderam, as autoridades se puseram inquietas. Um MK
significava nada menos do que alguém vindo da província. No
distrito, nem mesmo o Primeiro-Secretário Revkin andava num
veículo daqueles.
Do MK começaram a desembarcar pessoas com caderninhos e
máquinas fotográficas. Uma delas correu para a porta traseira e a
abriu. Surgiram pela porta, em primeiro lugar, as costas de alguém,
encobertas em material azul-escuro, seguidas pelo resto de seu
dono, mulher alentada em roupa de lã e blusa branca, medalha no
peito esquerdo.

— Liuchka, Liuchka. — Era como um som de folhas secas
farfalhando, saído da multidão.
— Cumprimentos, vizinhos — disse em voz alta a mulher recém-
chegada e abriu caminho para a varanda passando pela multidão,
que lhe deu respeitosa passagem. Enquanto seguia ela lançou um
cumprimento separado para Grandão, que a fitava com ironia.
— Olá, irmão — disse ela.
— Olá para você, também, se somos amigos — respondeu Grandão.
Nesse momento a mulher observou a presença do minúsculo Egor
Miakichev, que procurava esconder-se na multidão.
— Egor! — Ela correu para lá e puxou Egor para o meio de todos. —
Por que não veio cumprimentar sua amada esposa? Não está
satisfeito por vê-la?
— Bem — murmurou Miakichev, tomado de embaraço e baixando
o olhar.
— Não venha com "bem" para cima de mim — disse Liuchka. —
Beije sua esposa, que há tanto tempo você não vê. Só que, antes, vá

limpar a boca, dá para ver que andou comendo ovos crus. —
Inclinou-se à frente e apresentou uma face a Miakichev, depois a
outra. Miakichev limpou os lábios com a manga suja da camisa e
beijou onde havia sido ordenado. O rosto de Liuchka se contorceu.

— Que Deus nos ajude, o fedor de fumo, nele, é uma coisa! Quase
tão bom quanto o cheiro de um homem. Mas eu senti sua falta, mais
do que você imagina. Não parava de pensar em como aquele
marido meu estaria se dando por lá. Não estaria chateado na cama
fria? Ou talvez já tivesse arrastado alguém para lá com ele.
Intimidado, Miakichev fitou a esposa sem piscar.
— Para que deveria arrastar alguém para lá — disse Grandão, em
voz alta —, quando dorme com um cavalo na estrebaria?
Alguém na multidão deu um ronco, todos os demais silenciaram.
Os jornalistas entreolharam-se, Liuchka estacou e fitou o irmão com
olhar duro.
— Outra vez com os seus truques antigos, irmão? — perguntou, a
ameaça oculta na voz.
— Claro que sim — Grandão apressou-se a concordar.
— Pois bem — disse Liuchka. — É melhor tomar cuidado, a piada
pode acabar com você.
Vagarosamente subiu os degraus da varanda e desapareceu em
seguida atrás da porta que fora escancarada por Kilin.
Aquele grande número de visitantes congestionara o gabinete.
Liuchka sentou-se imediatamente à mesa do presidente, Kilin
encontrou para si um lugar ao lado, os jornalistas sentaram-se junto
à parede e Golubev permaneceu em pé perto do cofre, fechando a
porta deste com o ombro.
— E assim, camaradas — disse Liuchka, a voz animada, cheia de
vida —, como vai a vida?
— Como vai a vida? — repetiu o partorg, espalhando as mãos em
gesto de dúvida. — Nós simplesmente vivemos aqui, à moda do
campo. Ainda há pouco estávamos tendo uma pequena desavença
com o povo.

— Qual é o problema? — perguntou Liuchka.
— Nada de importante. — Kilin esquivou-se à pergunta.
— Vamos saber das suas notícias. Você passa todo o tempo na
capital, deve estar tomando chá com Stálin pelo menos uma vez por
dia.
— Bem, talvez não seja tanto assim, mas nós nos encontramos às
vezes.
— Que tipo de camarada ele é? — perguntou Golubev, no mesmo
instante.
— O que posso contar? — disse Liuchka, ficando pensativa. — Um
homem muito simples — disse, lançando um olhar de esguelha aos
jornalistas. — E muito modesto. Quando há uma recepção no
Kremlin, ele nunca deixa de me chamar e me cumprimentar, tomar-
me pela mão e dizer: "Olá, Liuchka. Como vai você? Como vai a
saúde?" Um ser humano muito compreensivo.
— Compreensivo? — repetiu depressa o presidente. — E então,
qual tem sido o aspecto dele, ultimamente?
— Parece bem — disse Liuchka e, de súbito, rompeu em lágrimas.
— Está tudo tão difícil para ele, agora! Ter de pensar por todos nós,
sozinho.
13

Liuchka nascera e fora criada em família de camponeses pobres.
Durante o verão trabalhara como lavradora e passara os invernos
sem sair do fogão, já que não possuía botas de feltro nem calças.
Sem a coletivização não se teria tornado uma famosa ordenhadora,
porque a vaca semimorta de sua fazenda não produzia notáveis
quantidades de leite. Quando, por resultado de alimentação
deficiente, a vaca ficou inteiramente morta, deixou de servir para


coisa alguma. A própria vida de Liuchka talvez chegasse ao mesmo
triste fim. Porém, alterações favoráveis ocorreram bem a tempo.
Liuchka fora uma das primeiras pessoas a se registrar para o
kolkhoz. Depois de se apresentar haviam-lhe dado vacas que
tinham, antes, pertencido a kulaks, e embora tais vacas não
produzissem leite, como costumavam fazer antes, continuaram a
dá-lo em abundância, por uma questão de inércia. Gradualmente
Liuchka se aprumou. Comprou sapatos, algumas roupas boas;
casou-se com Egor, ingressou no Partido. Pouco depois os operários
e os heróis do trabalho começaram a despontar por toda a parte, e
por todos os títulos Liuchka se enquadrava nessa categoria à
perfeição. As primeiras notícias sobre suas realizações começaram a
surgir na imprensa local e regional, mas sua ascensão verdadeira
teve início quando um jornalista escreveu um artigo sensacional
(baseando-se nas palavras dela, ou então ele próprio forjando tudo
aquilo), onde se dizia que Liuchka acabara com o método antiquado
de ordenhar as vacas e a partir de agora ia agarrar as quatro tetas ao
mesmo tempo, duas em cada mão. Assim é que tudo começara.
Fazendo um discurso no Kremlin, numa conferência de lavradores
coletivos, Liuchka assegurou aos presentes, bem como
pessoalmente ao Camarada Stálin, que havia liquidado para sempre
com aquela técnica antiquada. E em resposta

ao Camarada Stálin, pedindo: "Gente! Gente!", ela se comprometera
a ensinar o método a todas as ordenhadoras em seu kolkhoz.

— Vai dar certo no caso de todas? — perguntara o Camarada Stálin,
manhosamente.
— Claro, Camarada Stálin, pois toda ordenhadora tem duas mãos
— dissera Liuchka com muita desenvoltura e estendera as mãos
diante de si.
— Você está certa.
O Camarada Stálin sorrira e assentira. A partir desse momento
Liuchka nunca mais pôde ser encontrada em seu kolkhoz. Estava
participando no Soviete Supremo ou presente a uma conferência, ou

então recebendo uma delegação de estivadores ingleses, batendo
papo com o escritor Lion Feuchtwanger ou recebendo alguma
condecoração no Kremlin. Grande fama alcançou Liuchka, os
jornais falavam a seu respeito, o rádio a comentava, os jornais
cinematográficos a exibiam. A revista Ogoniok publicou seu retrato
na capa e soldados do Exército Vermelho escreviam-lhe propondo
casamento.
Liuchka ficara inteiramente esgotada. Um dia correndo à sua aldeia
natal a fim de tirar um retrato puxando as tetas de uma vaca, depois
seguindo para uma sessão da Academia de Agricultura, um
encontro com escritores, um discurso para os veteranos da
Revolução. . . Os jornalistas não lhe davam descanso. Aonde quer
que ela fosse eles iam com certeza. A própria Liuchka se tornara
algo parecido a uma vaca leiteira para eles. Esquetes e artigos eram
escritos a seu respeito, canções compostas em seu louvor. Até ela
própria, sem saber o que fazer, começara a acreditar que todos
aqueles jornalistas haviam sido criados apenas para escreverem a
seu respeito, sua vida, tirar-lhe o retrato.
Um chamado movimento Miakichev surgiu, e tornou-se muito
popular. Os miakichevitas (assim se chamavam) prometeram mais
realizações, encheram os mais altos órgãos governamentais,
contaram suas vivências aos jornais e apareceram nas telas dos
cinemas. Ninguém mais restava para ordenhar as vacas.

14


— O que vamos fazer com vocês? — dizia irritadamente o partorg,
falando com a multidão. — Então vocês estão aqui agora, reunidos.
E acham que estão presentes de modo organizado. Mas daqui de

onde me encontro não observo organização alguma. Tudo o que
vejo é todo mundo querendo ficar para trás, de modo que possa ser
o primeiro a correr até a loja. Nenhum de vocês tem vergonha. Até o
fato de Liuchka estar aqui não envergonha vocês. A nossa lendária
Liuchka. Que muitas vezes esteve pessoalmente com o Camarada
Stálin. Que tem jornalistas com ela, que pode escrever sobre tudo
isto nos jornais, vocês sabem? Camaradas jornalistas — Kilin
voltou-se para um deles —, eu solicito pessoalmente que escrevam
sobre tudo isso e publiquem por toda a União Soviética. Escrevam
que em nosso kolkhoz as pessoas não têm consciência. As pessoas
são conscientes em toda parte, menos aqui. Que aprendam a ter
alguma vergonha. Juro que elas se estendem e se arrastam como
uma manada de bois. Muito bem, agora vão chegando para perto, e
se não sabem como se apresentar vou lhes dizer como. . . todos os
homens dão as mãos, as mulheres no meio. É assim que devem
ficar. Mas isso também não adianta. Como vão bater palmas? Dêem
os braços. Agora, sim.
Tendo dessa maneira criado a ordem Kilin passou a palavra a
Liuchka. Esta se adiantou e nada disse por momentos, depois
começou a falar tranqüilamente a seu modo pessoal.

— Homens, mulheres! — começou. — Grande infortúnio caiu sobre
todos nós. Um inimigo traiçoeiro atacou nosso país sem declarar
guerra. Não fazia muito tempo eles fingiam ser nossos amigos. Dois
anos atrás estive em Moscou e tive a oportunidade de ver de perto o
Ribbentrop deles. Vou contar-lhes a verdade, não me causou grande
impressão. Não era coisa boa de se ver, parecia-se um pouco ao
nosso, digamos — e olhou em volta procurando alguém a quem
comparar, embora houvesse preparado antecipadamente a
comparação —, ao nosso Ste-pan Frolov, só que tinha um pouco
mais na cabeça, é claro. Ele sorri e faz seus brindes sprechen Sie
Deutsch, mas enquanto isso Kliment Efrêmovitch Vorochilov
cochichava em meu ouvido: "Liuchka, não pense que ele é tão
amigo assim, ele tem uma pedra escondida nas costas e você devia

ver de que tamanho". Agora eu me lembro das palavras de Kliment
Efrêmovitch, e fico pensando. Sim, é verdade, estava escondendo
uma pedra atrás das costas, uma pedra de chão. Homens, mulheres,
agora, quando o infortúnio já está conosco, nada nos resta senão
cerrar fileiras em volta do nosso Partido e em volta da pessoa do
Camarada Stálin. Quando for a Moscou e o vir, o nosso, o nosso
Stálin, permitam que diga a ele, em nome de vocês, que todos os
trabalhadores de seu kolkhoz darão até a última gota de sua força. . .
Tire essa máquina da minha cara. — Foi inesperado, causou deleite
a todos, Liuchka dirigia-se ao jornalista que se debruçara sobre o
corrimão a tirar-lhe o retrato. — Tire de lado. . . Cada última gota de
sua força para aumentar nossa colheita. Tudo para a frente, tudo
pela vitória!
Liuchka silenciou, levou momentos para ordenar os pensamentos.
Depois prosseguiu:

— Para vocês, as mulheres, fazemos um apelo especial. A qualquer
dia, agora, nossos homens, nossos maridos, nossos pais, nossos
irmãos, estarão partindo para defender nossa liberdade. Guerra é
guerra, e pode ser que nem todos eles voltem para casa, mas
enquanto estiverem fora daqui estaremos entregues a nós mesmas.
Não será fácil. Haverá as crianças e vocês terão de limpar, cozinhar,
lavar em casa e cuidar das hortas, e também não se esquecerão do
kolkhoz. Quer gostemos quer não, cada uma de nós tem de fazer o
trabalho de dois ou três, agora. Para nós mesmas e para nossos
homens. Temos de levar essa coisa ao fim, e levaremos. Homens,
vão para a frente! Cumpram seu dever como homens, defendam
nossa pátria contra o inimigo até que não reste um só deles. E não se
preocupem conosco, Tomaremos o seu lugar. . .
Liuchka falava com simplicidade e clareza, e os que se achavam em
pé à frente dela estavam chorando e sorrindo em meio às lágrimas.
A própria Liuchka teve de levar o lenço aos olhos diversas vezes.
Após o discurso embarcou no MK com todos os jornalistas e,

levantando uma coluna de poeira, partiram céleres para esferas
mais elevadas.
Como havia sido prometido, o sal, os fósforos e o sabonete foram
divididos após a reunião. Niúra também recebeu sua parte — meio
sabonete, um saco de sal e cerca de duas caixas de fósforos. A noite
já caíra quando voltou para casa. Tchônkin estava sentado à janela,
e com um pedaço de lona e linha marrom comum (não tinha linha
encerada) tentava consertar as botas.

— Aqui está o que nos deram — disse Niúra, colocando seu
quinhão sobre a mesa.
Tchônkin olhou para aquilo sem maior interesse.
— É, pode ser que eles venham amanhã — disse, suspirando.
— Quem? — perguntou Niúra.
— Quem, quem. — Tchônkin se enraivecia. — Há uma guerra e eu
estou preso aqui. . .
Niúra não disse coisa alguma. Tirou a sopa de ervilha do fogão,
trouxe-a à mesa e prorrompeu em lágrimas.
— O que há com você? — perguntou Tchônkin, surpreso.
— Para que tanta pressa de sair correndo para a guerra? —
perguntou Niúra, em meio às lágrimas. — Você vai estar melhor lá
fora do que aqui, comigo?
15


Gladichev não conseguia dormir. Fitava a escuridão e suspirava,
gemia, apanhava bichinhos no corpo. Mas não eram os bichinhos
que o impediam de dormir, eram os pensamentos. Todos eles
giravam em torno da mesma coisa. A pergunta estúpida feita por
Tchônkin, na reunião, viera perturbá-lo e, ao que parecia, abalara
até sua fé inabalável na ciência e nas autoridades científicas.


— Por que um cavalo não se transforma em homem? — E, na
verdade, por que não se transformava?
Apertado na parede por Afrodite, Gladichev lá estava deitado,
pensando. Era verdade, todos os cavalos executavam muito
trabalho, mais do que qualquer macaco já executara. Dá para
montar neles, arar com eles, eles puxam todos os tipos de cargas. O
cavalo trabalha horas prolongadas no inverno e no verão e nunca
tem férias ou dias de folga. Não é de modo algum o mais estúpido
dos animais, porém de todos os cavalos que Gladichev já conhecera
nenhum se transformara ainda em ser humano. Incapaz de
descobrir qualquer explicação conveniente para esse mistério da
natureza, Gladichev suspirava ruidosamente.
— Você não dorme? — perguntou Afrodite em murmúrio bem alto.
— Estou dormindo — respondeu Gladichev, com raiva, e voltou-se
para a parede.
O sono acabara de apoderar-se de Gladichev quando Hércules
acordou e começou a chorar.
— Psiu, psiu, psiu — fazia Afrodite para ele e começou a balançar
ruidosamente o berço, sem sair da cama. Hércules não se aquietou.
Afrodite passou as pernas para fora da cama, tirou Hércules do
berço e começou a dar-lhe o seio. O bebê
acalmou-se e começou a estalar os lábios. Enquanto o alimentava
Afrodite remexia com a mão livre no berço, certamente para mudar
as roupas encharcadas. Mas quando o recolocou no berço Hércules
recomeçou a chorar. Afrodite balançou o berço e se pôs a cantar:


"Boa noite, durma bem,
Herculinho, meu neném. . . "

Não conhecia as outras palavras e continuou a repetir os dois
versos, sem parar:

"Boa noite, durma bem,


Herculinho, meu neném. . . "

Finalmente a criança adormeceu, Afrodite se aquietou e o dono da
casa estava a ponto de dormir. Mas assim que fechou os olhos teve a
certeza absoluta de que ouvia a porta da rua ser aberta. Ficou
surpreso. Teria se esquecido de trancá-la antes de se deitar? E
mesmo se houvesse esquecido, quem viria perturbar as pessoas em
hora avançada, ainda mais se»não havia luz acesa à janela?
Gladichev aguçou os ouvidos, talvez estivesse imaginando coisas.
Não. Alguém viera pelo vestíbulo e estava agora tateando
cegamente pelo corredor. As passadas se aproximavam cada vez
mais até que, finalmente, abriu-se a própria porta do dormitório
com um rangido. Gladichev levantou-se sobre o cotovelo e olhou
atentamente para a escuridão. Para sua grande surpresa reconheceu

o intruso, era Ossoaviakhim¹, o cavalo castrado. Gladichev sacudiu
a cabeça a fim de se controlar e convencer-se de que aquilo não era
imaginação, acontecia na verdade. Era realmente Ossoaviakhim (a
quem Gladichev conhecia bem, já que o usava para transportar
provisões até o armazém), que agora se apresentava em pé e
pessoalmente no meio do quarto, respirando com ruído.
— Olá, Kuzmá Matvêievitch — disse ele, inesperadamente, em voz
humana.
— Olá, olá — respondeu Gladichev controlando-se, percebendo
bem como tudo aquilo era singular.
—Vim informá-lo, Kuzmá Matvêievitch, de que agora me tornei um
ser humano e não vou mais carregar mantimentos.
Por algum motivo o cavalo suspirou e bateu com os cascos no chão,
descansando o corpo.


— Psiu, silêncio — sibilou Gladichev. — Vai acordar a criança.
Movendo Afrodite de leve, sentou-se na cama e, sentindo alegria
invulgar por ser, talvez, o primeiro ser humano a testemunhar

fenômeno tão notável, perguntou com impaciência: — Como
conseguiu transformar-se em ser humano, Óssia?

— Eis como aconteceu — disse Ossoaviakhim, pensativo. — Andei
trabalhando muito ultimamente, você mesmo sabe disso. . .
transportando mantimentos do armazém, sem rejeitar até o
transporte de esterco, para não falar no trabalho de arar o campo.
Não disse não a nada daquilo e assim, como resultado de todo o
meu trabalho penoso, finalmente transformei-me em ser humano.
1 Sigla de "Sociedade de Auxílio à Defesa, Aviação e Construção Química da URSS". (N. do

T.)
— Interessante — comentou Gladichev. — Isso é muito
interessante, só que, agora, quem vou usar para transportar os
mantimentos?
— Esse é um problema seu, Kuzmá Matvêievitch — respondeu o
castrado, sacudindo a cabeça. — Vai ter de encontrar um substituto.
Pode até pegar o Tulipa, ele não vai se tornar humano por muito
tempo.
— E por quê? — perguntou Gladichev, mais uma vez surpreso.
— Ele é preguiçoso. Por isso, só trabalha tocado a chicote. Enquanto
você não bate nele, ele não se mexe de onde está. E sabe o que você
precisa atravessar para se tornar um ser humano? — Ossoaviakhim
repentinamente começou a relinchar, mas controlou-se no mesmo
instante. — Perdoe-me, Kuzmá Matvêievitch, algumas
reminiscências de meu passado cavalar ainda aparecem.
— Está certo, acontece — concordou Kuzmá Matvêievitch,
perdoando-o. — Mas o que eu gostaria de saber é o seguinte: o que
você pretende fazer agora? Vai ficar no kolkhoz ou o quê?
— Dificilmente — suspirou Ossoaviakhim. — Com meu talento
nada existe para mim aqui. Acho que vou, digamos, para Moscou,
deixar que os professores me examinem. Talvez possa fazer uma
série de conferências. E, Kuzmá Matvêievitch, a vida está só

começando para mim. Eu gostaria de me casar e ter filhos, ajudar na
promoção do progresso da ciência e aqui estou, incapaz.

— Por quê?
— Por quê? É o que perguntou? — Ossoaviakhim sorriu com
amargura. — O que foi que você fez comigo oito anos atrás? Privou-
me daquelas partes do corpo que são indispensáveis para a
propagação da espécie.
Foi um momento infeliz para Gladichev. Sentia-se embaraçado e
pareceu até corar, boa coisa estar escuro demais para que pudessem
notar.
— Perdoe-me, amigo Óssia — pediu com sinceridade. — Se
soubesse que você iria se tornar um ser humano jamais o teria
permitido. Eu pensei: "Ele é um cavalo, e um cavalo é um cavalo".
Se soubesse. . .
— Se eu soubesse. . . — Ossoaviakhim repetia aquelas palavras em
zombaria. — E o que é um cavalo? Também não é uma criatura
viva? Alguém cuja última alegria você pode arrebatar assim? Nós
não vamos ao cinema, não lemos livros, só nos resta um prazer, e lá
vem você com sua faca. . .
Os ouvidos de Gladichev se aguçaram. Alguma coisa não estava
certa no que esse Ossoaviakhim dizia. Mal se transforma em ser
humano e começa a criticar. Isso era, naturalmente, uma realização
importante do ponto de vista biológico, mas, do ponto de vista
político, transformar um cavalo em ser humano é apenas metade do
problema. A questão principal é saber em que tipo de ser
humano. . . o tipo soviético ou o outro tipo? Tendo utilizado
vigilância correta e oportuna Gladichev fez ao castrado uma
pergunta do tipo conhecido como "embatucador".
— Pois bem, responda-me uma coisa, Óssia: se eles mandarem você
para a frente, por exemplo, para quem vai lutar, por nós ou pelos
alemães?
O castrado fitou Gladichev com compreensão e sacudiu a cabeça,
como a dizer: "Que pessoa estúpida!"

— Eu ir para a frente de luta é coisa fora de cogitações, Kuzmá
Matvêievitch.
— E por que é tão fora de cogitações no seu caso? — indagou
Gladichev, muito insinuante.
— Porque — disse o castrado, com raiva — não tenho com que
puxar um gatilho. — Não tenho dedos.
— Agora achei! — E Gladichev, dando um tapa forte na testa,
acordou.
Abriu os olhos e percebeu que era inteiramente incapaz de
compreender para onde o castrado fora. Tudo no quarto se achava
exatamente como antes e ele, Gladichev, continuava deitado em sua
cama, em seu colchão de penas, ainda apertado à parede por
Afrodite. Ela, agora, jogava todo o peso sobre ele, estalando os
lábios e assobiando enquanto dormia, com êlan repelente. O quarto
estava quente e abafado. Gladichev empurrou a esposa com o
ombro — nada. Empurrou pela segunda vez, com a mesma falta de
êxito. Ficou enraivecido e, apoiando braços e pernas na parede,
acertou com o traseiro em Afrodite, de tal maneira que ela rolou e
quase caiu da cama. Logo deu um salto.
— Hein? O quê? — disse ela, na sua incapacidade de compreender
o que se passava.
— Está me ouvindo, Afrodite? — murmurou Gladichev. — Onde se
meteu aquele castrado?
— Que castrado? — Afrodite sacudia a cabeça, procurando acordar
por completo.
— Você conhece o castrado Ossoaviakhim — disse Gladichev,
irritado pela lerdeza mental da esposa.
— Oh, meu Deus! — murmurou Afrodite. — Só Deus sabe de que
ele está tagarelando agora. Agora foi inventar um castrado. Volte a
dormir.
Afrodite deitou-se de bruços, enterrou o rosto no travesseiro e
voltou imediatamente a dormir.

Gladichev ficou deitado a seu lado, fitando o teto. A consciência lhe
voltava gradualmente e, afinal, compreendeu que o castrado lhe
viera em um sonho. Gladichev não desconhecia os livros, já lera
Sono e sonhos, o que agora vinha ajudá-lo a avaliar corretamente
seu sonho mais recente. No dia anterior Tchôn-kin se saíra com
todos os tipos de besteira, por isso ele tivera o sonho, descobria
agora. Mas ainda assim havia um tipo de pensamento estranho que
não encontrava palavras para ser enunciado, que não o largava e o
atormentava, não fazia a mínima idéia do que significava. Não
podia voltar a dormir. Ali ficou a se remexer e se revirar até que a
primeira claridade do dia surgiu pela janela. Foi quando rastejou
sobre Afrodite e, imerso em pensamentos, vestiu as calças.
Essa manhã Niúra acordara antes de Ivan, quando ainda não
amanhecera. Estivera a se revirar e se remexer na cama e finalmente
desistira, resolvendo sair de lá. Ainda era cedo para ordenhar a vaca
e ela pensou em descer até o rio a fim de trazer água antes que
amanhecesse. Apanhou os baldes e a canga no vestíbulo, abriu a
porta e quase morreu de susto — havia alguém sentado em sua
varanda.

— Quem é? — perguntou com medo e, só para estar a salvo, puxou
a porta mais para si.
— Não tenha medo, Niúra. Sou eu, Gladichev. Surpresa, Niúra
voltou a entreabrir a porta.
— O que está fazendo, sentado aí?
— Estou apenas sentado — explicou Gladichev de modo vago. — O
seu homem já levantou?
— Ora essa! — E Niúra riu. — Dorme como uma pedra. O que se
passa?
— Preciso falar com ele — respondeu Gladichev, novamente
evasivo.
— Quer que o acorde? — Niúra estimava o vizinho como homem
erudito e calculava que Gladichev não perturbaria pessoa alguma
sem motivo.

— Não, não, não vale a pena.
— Por que não vale? Vou acordá-lo. Que levante. De noite ele está
querendo correr para a guerra, mas de manhã dá um trabalhão para
acordar.
Gladichev não apresentou maiores objeções, já que a idéia que
desejava transmitir ao amigo, embora não fosse muitíssimo séria,
ainda assim podia ser difícil de guardar para si.
Minutos depois Tchônkin saía para a varanda, usando somente as
calças.
— Quer falar comigo? — perguntou, bocejando e se coçando.
Gladichev retardou a resposta. Esperou até que Niúra houvesse
apanhado os baldes e estivesse a boa distância deles; só então,
embaraçado por ter tirado um homem da cama por coisa tão trivial,
começou, com incerteza na voz:
— Lembra-se de ontem, de sua pergunta sobre o cavalo?
— Que cavalo? — Ivan não compreendera.
— Sobre o cavalo, de modo geral, por que ele não se transforma em
ser humano.
— Aaahhh! — Ivan lembrava-se de que realmente houvera um tipo
de conversa assim, na véspera.
— A questão é a seguinte — disse Gladichev, com orgulho. —
Compreendi o motivo pelo qual o cavalo não se transforma em ser
humano. Ele não se transforma em um ser humano porque não tem
dedos.
— Ora, você me surpreende — disse Tchônkin. — Disso eu sabia,
sabia desde garotinho que os cavalos não têm dedos.
— A questão não é essa. Não estou lhe dizendo que eles não têm
dedos, estou lhe dizendo que não se transformam em seres
humanos porque não têm dedos.
— E eu estou lhe dizendo que todos sabem que os cavalos não têm
dedos.

A essa altura começaram a discutir do modo como as pessoas
discutem muitas vezes, cada qual tentando provar algo inteiramente
diferente à outra e sem procurar compreender o que a
outra diz.
A discussão estava quase se tornando áspera quando Afrodite saiu
para a varanda, em roupa de baixo, e chamou o marido para a
primeira refeição do dia. Kuzmá Matvêievitch partiu para casa, a
discussão ficara inacabada. Sobre a mesa encontrou uma omelete
feita com gordura de bacon, tão quente que ainda chiava. Gladichev
puxou a frigideira para si, sentou-se no banco e imediatamente
sentiu algo por baixo, não tão agudo quanto duro e desigual. Deu
um salto e se voltou. Havia uma ferradura no banco.

— O que é isso? — perguntou com severidade à esposa, mostrando-
lhe a ferradura.
— E como haveria eu de saber? — respondeu ela e deu de ombros.
— Estava perto da porta. A princípio eu ia jogar fora, mas pensei
que talvez servisse para. . .
Afrodite não chegou a terminar a frase. Gladichev agarrou a
ferradura, saiu de um salto da mesa e partiu para fora da casa, a
camisa fora das calças e esvoaçando ao vento.
Mesmo a alguma distância Gladichev observou uma reunião perto
dos estábulos que incluía, entre outros, o Presidente Golubev, o
Partorg Kilin, os dois chefes-de-brigada e o cavalariço, Egor
Miakichev.
— O que se passa aqui? — perguntou Gladichev.
— Um cavalo fugiu — explicou Miakichev.
— Qual deles? — Gladichev gelou por dentro, enquanto calculava a
resposta.
— Ossoaviakhim. — E dito isso o cavalariço cuspiu irritado. —
Estávamos calculando que cavalos entregar ao Exército, esse entre
eles, e ontem à noite ele partiu a cerca e foi embora. Ou talvez os
ciganos o tenham roubado.

— Também pode ser — Gladichev apressou-se a concordar.
16


O Tenente-Coronel Opalikov se pusera de braços e pernas abertos,
enquanto o engenheiro do regimento Kudlai e dois técnicos
graduados o ajustavam em seu pára-quedas. Opalikov exibia
expressão sombria. Em questão de minutos teria de levar seu
regimento para lá e dirigi-lo para o distrito Tiraspol, como fora
ordenado. O itinerário tinha sido ajustado e delineado, as instruções
haviam sido trazidas com o pessoal de vôo. Os comandantes de
esquadrão tinham-se declarado prontos para voar. "Tiraspol, pois é,
Tiraspol", pensava Opalikov. "Que diferença faz saber onde se será
derrubado a tiros? E eles têm de derrubar a tiros, não há onde se
esconder lá em cima. Essas porcarias em que voamos não agüentam

o páreo com esses Mes-serschmitts. Muito bem", dizia a si próprio,
"a questão não é essa." Já vivera trinta e quatro anos, era o bastante.
Nem todos chegavam a essa idade. Já vira um pouco do mundo.
"Mas, Nadka, Nadka. . . " Ao pensar na esposa seu estado de
espírito passou de ruim para pior. "Vou esperar por você", dissera
ela. "Claro, vamos ver, ela esperará com certeza, na cama de outro
sujeito. Cadela!" Quando as outras mulheres tinham sabido que era
a guerra haviam começado a soluçar, mas aquela só conseguira se
sair com uma pequena lágrima. Aquela figueira estéril! Devia ter
ficado muito feliz. O marido na frente de luta e liberdade total para
ela. Não que lhe faltasse liberdade suficiente, anteriormente. Seria
capaz de arrastar qualquer um no qual pudesse pôr as mãos, para
ficar-lhe em cima. Às vezes ele caminhava pela cidade e nada mais
sentia senão vergonha. Parecia-lhe que todos o indicavam de dedo
apontado. Aí vem ele, o comandante do regimento. Ele pode

comandar um regimento, mas não pode manter a própria mulher na
linha. No Exército tudo fica à vista de todos. Pior do que numa
aldeia. Todos sabem tudo sobre os outros. Mesmo quando ela e o
intendente, no depósito, em cima de um monte de casacos velhos. . .
Como se pode chegar a um ponto tão baixo! Dessa vez ele ia matá-la
a tiros, sacara a pistola do coldre. . . Mas a mão não lhe obedecera.
Tudo aquilo, naturalmente, era culpa sua. Como Kudlai dissera,
"Você precisa olhar bem, quando está comprando. . . " Ela era sim,
do modo mais evidente, uma criatura insaciável. "Pois muito bem,
ao diabo com ela", pensava o Tenente-Coro-nel Opalikov, enquanto
Pakhomov se aproximava em sidecar.

— Camarada tenente-coronel — Pakhomov levou a mão à têmpora
em continência, assim que saltara do sidecar.
— O que está acontecendo no seu lado? — interrompeu Opalikov,
erguendo um pouco a perna para facilitar a Kudlai passar a correia
do pára-quedas em volta.
— Completado o carregamento de equipamento de escalão de
aeroporto — informou Pakhomov. — Acho que vamos precisar de
uns quatro dias para chegar a Tiraspol.
— Ótimo, ótimo — disse Opalikov, e ajudado pelo engenheiro
subiu para a asa. — Então nós estaremos esperando por você em
Tiraspol.
Opalikov entrou na nacela e começou a procurar uma posição
cômoda. Colocou o estojo de mapas sobre os joelhos e voltou a
examinar mentalmente a primeira parte do itinerário. Decolagem.
Reunião em zona de encontro. Depois um curso de duzentos e
cinqüenta e sete graus, quatro graus de correção de vento. Depois
de passar do ponto de controle, uma volta de vinte graus para a
esquerda. Tudo normal, tudo correto, com exceção de Nadka. . .
Opalikov levantou a cabeça.
Pakhomov continuava perto do aeroplano, ora sobre um pé, ora
sobre o outro.

— O que mais tem por aí, Pakhomov? — indagou Opalikov,
dedicando atenção ao subordinado.
— É só que não sei o que fazer com Tchônkin — disse o
comandante do batalhão, tomado de incerteza.
— Com Tchônkin, quem? — As sobrancelhas de Opalikov se
ergueram em perplexidade.
— O soldado que está guardando o aeroplano.
— Ah — Opalikov pôs os pés nos pedais, verificou os lemes e
ailerons, ligou a ignição. — Quer dizer que ele ainda não foi
substituído?
— Ainda não — disse Pakhomov. — E o aeroplano continua por lá.
— Aquilo não era um avião — disse Opalikov, confirmando com
um aceno desdenhoso da mão. — É um caixão. E o que esse
Tchônkin está fazendo por lá?
— Monta guarda — respondeu Pakhomov, dando de ombros. ..—
Ouvi dizer que até. arranjou um casamento.
Sorriu, sem saber como exprimir sua atitude com relação ao que o
soldado fizera.
— Casou? — Opalikov arquejou, o cérebro não conseguia acomodar
tal pensamento, casar-se em época como aquela! E por quê? Ali
estava ele com uma esposa, sem saber o que fazer com ela. — Bem,
já que ele se casou que fique por lá — resolveu. — Não tenho tempo
para pensar nele agora. Kudlai! — gritou para o engenheiro. — Diga
a cada regimento para ligar os motores.
O destino de Tchônkin havia sido decidido.
17

— Vou pôr a sopa de repolho no fogo, você pega a vaca e traz para
casa — disse Niúra. Colocou a cabeça no fogão e começou a soprar
ruidosamente o fogo.
— Em dois segundos. — Tchônkin estava limpando os botões da
túnica, usando pó dentifrício, e não tinha vontade de ir a lugar
algum.
— Um segundo, agora — observou Niúra. — Pode limpar os botões
depois.
Acabara de voltar de Dolgov com a bolsa cheia, entregara o correio;
agora estava cansada e amolada pelo fato de que Tchônkin não
preparara o jantar.
Tchônkin deixou de lado a túnica e a escova, caminhou até Niúra
por trás e agarrou-a com ambas as mãos.
— Dê o fora daqui. — Niúra sacudiu o traseiro, cheia de desagrado.
Ali ficaram a se debater um pouco, Tchônkin fazendo ver que ainda
era cedo e que estava com dor nas costas, mas de nada serviu — no
fim teve de ceder.
Brincou um pouco com Borka no quintal, bateu um papo com Vovó
Dúnia na rua, outro com Vovô Chápkin, que estava sentado ao ar
livre num banco de tela, e finalmente chegou ao correio quando
notou uma multidão formada principalmente de mulheres. Os
únicos homens presentes eram Grandão, Volkov, o contador, e um
outro que Tchônkin não conhecia. Todos os outros se encontravam
na frente. A cidade fora quase esvaziada durante a primeira semana
de guerra. As pessoas reunidas diante do gabinete olhavam em
silêncio para o alto-falante, de onde saía um ruído estalejante.
— Para que estão aqui? — perguntou Ivan a Ninka Kurzova.
Ninka não respondeu, apenas levou um dedo aos lábios. Foi
quando alguém tossiu de dentro do alto-falante e uma voz com
claro sotaque georgiano disse baixinho:


— Camaradas! Cidadãos! Irmãos e irmãs! Soldados de nosso
Exército e Marinha! Falo a vocês, meus amigos!

Tchônkin suspirou e permaneceu imóvel, sem arredar os olhos do
alto-falante.
O alto-falante voltou a tossir, depois alguma coisa começou a
gargarejar, como se a pessoa diante do microfone estivesse a
derramar água ou a sufocar de soluços. Esse gargarejo durou
bastante tempo e causou efeito opressivo nos ouvintes. Depois
terminou, e a voz com sotaque recomeçou a falar, baixinho e em
tom sensato:

— O traiçoeiro ataque armado desfechado pela Alemanha de Hitler
sobre nossa pátria, iniciado a 22 de julho, continua ainda. A
despeito da resistência heróica do Exército Vermelho, a despeito do
fato de que as melhores divisões do inimigo e as melhores unidades
de sua Força Aérea já foram destruídas e encontraram seus túmulos
no campo de batalha, o inimigo continua a se arrastar à frente,
trazendo forças novas para a luta. As tropas de Hitler conseguiram
tomar a Lituânia, uma parte importante da Letônia, a parte
ocidental da Bielo-Rússia e parte da Ucrânia ocidental. A força aérea
fascista está ampliando a área de operações de bombardeio e
bombardeando as cidades de Murmansk, Orcha, Moguilev,
Smolensk, Kíev, Odessa, Sebastopol. Nossa pátria enfrenta grave
perigo. . .
Vovó Dúnia, em pé atrás de Tchônkin, começou a soluçar. Ninka
Kurzova, tendo acabado de se despedir do marido, que partira para
a frente de batalha na véspera, começou a apertar os lábios. As
demais começavam a se remexer e fungar.
Tchônkin ouviu as palavras pronunciadas com aquele forte sotaque
georgiano e acreditou implicitamente nelas, mas havia certas coisas
que não conseguia compreender. Se as melhores divisões do
inimigo e as melhores unidades de sua Força Aérea haviam sido
esmagadas e encontrado suas sepulturas, de que valia ficar tão
perturbado? Seria mais fácil esmagar-lhe as unidades e divisões
mais fracas. Além disso não conseguia compreender a expressão
"encontraram seus túmulos no campo de batalha". Por que lá, e não

em algum outro lugar? E quem cavara esses túmulos para eles?
Tchônkin visualizava imensa quantidade de pessoas caminhando
por campos desconhecidos à procura de suas sepulturas. Por um ou
dois segundos chegou a sentir pena delas, embora soubesse muito
bem que não devia. Refletindo em coisas assim Tchônkin perdeu
boa parte do que o orador estivera afirmando e agora levantava a
cabeça para ouvir novamente o que se dizia.

— O Exército Vermelho, a Marinha Vermelha e todos os cidadãos
da União Soviética devem sustentar cada centímetro de terra
soviética, devem lutar até a última gota de seu sangue por nossas
cidades e aldeias e demonstrar a coragem, iniciativa e gana
características de nosso povo. . .
Todos ouviam e assentiam, inclusive Tchônkin. Estava pronto a
lutar, mas não sabia com quem e como. Quando c homens estavam
sendo levados para a frente de luta o capitã do comissariado militar
estivera sentado na varanda do gabinete batendo um papo com o
presidente. Tchônkin se dirigira a ele com todo o devido respeito,
solicitara isto e permissão daquilo, mas o capitão nem dera ouvidos
ao que ele tinha a dizer, retrucando:
— Está em seu posto? Quem lhe deu o direito de abandonar o
posto? Meia-volta! A seu posto, acelerado, marche!
Fora essa toda a sua conversa. Mas Stálin, este, não teria dito tal
coisa, era esperto, sabia compreender e ver como as coisas deviam
ser feitas. Não era de espantar que as pessoas o amassem. E ele
cantava bem, era de notar. Valenki, Valenki. Mas como pode cantar
com voz de mulher? Foi quando a canção terminou, seguida por
uma explosão de aplausos.
— Uma beleza! — foi o que Tchônkin ouviu, dito por alguém atrás
dele. Sobressaltado, voltou-se. Brincando com o chicote,
boquiaberta, Taika Gorchkova fitava o alto-falante. Era agora a
pastora, já que Liócha Jarov fora levado para a frente de luta.
Tchônkin relanceou o olhar ao redor e, sem ver ninguém senão
Taika, voltou a fixar os olhos nela.

— Essa foi Ruslanova cantando, pode crer, ela sabe cantar de
verdade — repetiu Taika.
— O quê, você já levou as vacas? — perguntou Tchônkin.
— Faz muito tempo. E daí?
— Está certo, tudo certo.
Surpreso por ter perdido as vacas que eram levadas de volta,
Tchônkin partiu para casa. É claro que a vaca voltaria sozinha,
conhecia o caminho. Ainda assim era estranho que ele se ocupasse a
tal ponto com os pensamentos que não tivesse notado pessoa
alguma indo para casa. Agora parecia que eles não tinham ido para
casa e continuavam juntos, só que, por algum motivo, seguiam para
um lugar diferente. Parecia que se dirigiam à casa de Gladichev.
Sim, isso mesmo, era o que sucedia.
— Para que você está aqui? — voltou Tchônkin a indagar a Ninka
Kurzova. Ninka voltou-se e olhou-o de modo um tanto estranho,
como se algo houvesse acontecido a ele. Logo todos começaram a
voltar as cabeças na direção de Tchônkin, fitando-o com alguma
espécie de vaga curiosidade. Ele ficou confuso, não fazia a menor
idéia do que se passava e começou a olhar para si mesmo,
examinando-se, talvez estivesse com a roupa suja em algum lugar.
Foi quando Grandão apareceu, saindo da multidão e caminhando
na sua direção, os braços abertos.
— Vânia, meu companheiro, por que está aí? — chamou.
— Venha cá depressa. Tenho uma coisa para lhe mostrar. Uma coisa
e tanto.
Tomou Tchônkin pelo braço e o levou pela multidão, que
prontamente abriu passagem para os dois. Quando finalmente
chegou à cerca do vizinho Tchônkin não acreditou no que via. A
horta notável criada pelo trabalho diário e pelo gênio de Gladichev
era, agora, cenário de devastação terrível. Tinha sido inteiramente
pisada e amassada como se uma manada de elefantes houvesse
passado por ali. Aqui e acolá os remanescentes estraçalhados do que
já tinham sido plantas de TPOS exibiam apenas caules cortados, e o

único arbusto que escapara milagrosamente se apresentava em

verde luxuriante contra um pano de fundo de destruição total.
O culpado e responsável por toda a catástrofe, Boniteza, a vaca,
provavelmente deixara este último arbusto para sobremesa. Em pé
no meio da horta ela estendia agora a cabeça para esse arbusto e
certamente o teria apanhado, não fosse o dono da horta que a
segurava pelos chifres; cheio de desespero e fúria cega ele estava
decidido a salvar pelo menos aquele último exemplar do milagre
que criara.

As botas de lona sujas, firmes no chão e distantes entre si, Gladichev
se encontrava diante da vaca como um toureador. Ele recorria às
últimas forças, esforçando-se para repelir aquela bárbara chifruda.

Bem ao lado de Gladichev, puxando-lhe a manga, Niúra soluçava
inconsolavelmente.

— Matvêievitch! — As lágrimas desciam-lhe pelo rosto.
— Solte a vaca. Por favor, por favor. O que vai fazer com ela?
— Cortar-lhe o pescoço — disse Gladichev, a expressão turva.
— Oh, meu Deus! — gemeu Niúra. — Ela é a única que tenho.
Solte-a!
— Vou cortar-lhe o pescoço — insistiu Gladichev, e começou a
puxar a vaca para o paiol. A vaca enfiou as patas no chão e começou
a procurar o último arbusto TPOS, querendo comê-lo. Na varanda,
indiferente a tudo aquilo, Afrodite alimentava Hércules ao seio.
Tchônkin olhou em volta, cheio de confusão, sem saber o que fazer.
— Por que está aí parado, Vânia? — Grandão sorriu para ele, com
aprovação. — Vá salvar a vaca. Ele mata a vaca, você sabe? É só um
corte, e pronto.
Grandão piscou para Volkov, o contador, que estava ao
lado.
Tchônkin não tinha o menor desejo de se envolver, mas Gladichev
não soltava o animal e Niúra chorava. Com relutância Ivan enfiou a
cabeça entre os esteios da cerca.

— Oi! — guinchou uma vozinha fraca, pertencente a Zinaida
Volkova, a esposa do contador. — Oi, meninas, agora vai ser
assassinato!
A visão de Tchônkin, que se aproximava, deu coragem a Niúra e ela
passou à ofensiva.
— Seu maldito tirano! — gritou e agarrou a orelha vermelha e
direita do inimigo.
— Então é assim! — berrou Gladichev afrontado, e com o pé deu
um empurrão no estômago de Niúra.
Niúra caiu de costas em uma vala e começou a berrar com toda a
força dos pulmões.
Tchônkin correu até ela, e viu que nada de pavoroso acontecera.
Estava viva e nem mesmo se machucara.
— Por que está berrando? — perguntou com grande compostura
enquanto a ajudava a ficar em pé e a limpar o vestido. — Ninguém
lhe fez nada. Está claro que Kuzmá Matvêievitch lhe deu um
empurrãozinho, mas você pode entender o que ele fez. Qualquer
um faria a mesma coisa. O homem trabalhou todo o verão
molhando, cuidando da horta como se fosse o próprio filho, e olhe
só o que aconteceu. E você, Kuzmá Matvêievitch — Tchônkin se
dirigia ao vizinho —, pelo amor de Deus, perdoe a vaca, você sabe
que a vaca não é um ser humano. Ela não faz idéia de que isto é seu
e aquilo é de outra pessoa, ela só vê o verde e vai engolindo, é o que
acontece. Ora, anteontem
Niúra pendurou uma jaqueta verde na cerca e a vaca foi lá e a
engoliu, só deixou de fora a manga esquerda. E agora você vai fazer
isso, seu estrupício do rabo — disse Tchônkin, brandindo o punho
cerrado para a vaca. — Solte-a, vizinho. Eu vou castigá-la para
nunca mais enfiar o focinho na horta de ninguém.
Com essas palavras Tchônkin colocou as mãos em cima das mãos
de Gladichev, em volta dos chifres de Boniteza.


— Saia daqui — disse Gladichev, e empurrou Tchônkin com o
ombro.

— Saio uma droga — retorquiu Tchônkin, e retribuiu o empurrão
com outro. — Não. Você, Kuzmá Matvêievitch, solte a vaca, e
Niurka e eu lhe pagaremos uma indenização por sua horta.
— Imbecil! — disse Gladichev, os olhos marejados. — Como pode
indenizar uma pesquisa científica? Eu ia criar um híbrido de
importância mundial, uma cruza entre batata e tomate.
— Nós pagaremos — afiançou-lhe Tchônkin. — Juro que
pagaremos. Aliás, que importa que eles cresçam juntos ou separados?
Com o ombro Tchônkin continuou a empurrar o vizinho teimoso, e
já conquistara o controle completo de um dos chifres. Agora
puxavam a vaca em direções opostas, o que era mais fácil para o
animal, devido à distribuição igual das forças.
Chegara o momento da verdade. Tchônkin empurrava Gladichev
com o ombro esquerdo e Gladichev reagia com o direito.
Encostada na cerca a multidão já não respirava. Trocando os seios
Afrodite continuava a alimentar Hércules. Tudo estava silencioso. O
único ruído que se ouvia era o bufado forte das facções em luta e os
suspiros de indiferença da vaca, que não perdera absolutamente o
desejo de comer o último arbusto do malfadado híbrido.
A multidão esperava, em silêncio, o que ia acontecer.
— Ei, soldado, dê-lhe um murro no olho — aconselhou Grandão, a
voz surpreendentemente alta.
— Oi, mulheres, fechem os olhos, vai ser assassinato! — Zinaida
Volkova gritou com estridência.
Seu marido, que não estava muito distante, começou a abrir
caminho em meio à multidão e em direção da esposa.
— Assassinato, assassinato, vai ser assassinato — dizia ela
febrilmente, como se estivesse a repetir um sortilégio.
Finalmente o contador alcançou a esposa, arredou Ninka
Kurzova da frente, tomou-lhe o lugar e então, com a maior calma,
virou-se cuidadosamente e com a mão que restava desferiu
tamanho tapa na cara de Zinaida que se outras pessoas não a



segurassem ela teria caído. Levando ambas as mãos à face, e agora
silenciosa, Zinaida começou a se retirar da multidão enquanto o
contador se voltava para Grandão, pondo-se calmamente a explicar

o que fizera.
— Quantas vezes eu disse a ela para ficar com o nariz fora da vida
dos outros! Aquela vez em que Kolka Kurzov brigou com Stepan,
que veio de Kliukvino, ela também ficou olhando a briga, gemendo
e gritando, e por isso tomaram o nome dela como testemunha. E é
claro que quando o juiz a chamou a primeira coisa que fez foi
desmaiar, tiveram de trazê-la de volta com respiração artificial.
— Você mesmo devia dar-lhe um jeitinho — aconselhou Grandão
com alacridade. — Isso daria um fim a seus dias de testemunha.
— Assassinato! — uivou Zinaida em voz frenética, agora que
finalmente se desembaraçara da multidão. E então, ainda com as
mãos na face, saiu correndo pela aldeia.
Em resposta a seu grito Tchônkin e Gladichev afrouxaram ao
mesmo tempo os chifres que seguravam. A vaca o percebeu,
sacudiu a cabeça, e os dois oponentes, que não contavam com
tamanha traição, foram jogados de costas em direções opostas.
Sem perder um segundo, mas sem apressar os passos Boniteza
arrecadou o último híbrido milagroso, com raízes e tudo, e pôs as
mandíbulas a funcionar com calma.
Já sobre as mãos e joelhos Gladichev se pôs em transe, observando a
vaca.
— Oh, mamãe! — Tomado de paixão estendeu a mão para a vaca,
capengou em sua direção, de joelhos. — Seja boazinha, solte-a, por
favor, solte isso!
Lambendo-se, suspirando e olhando com suspicácia para
Gladichev, a vaca recuou um passo.
—Solte isso! — Sem se levantar dos joelhos estendeu as mãos para a
cara da vaca. Alguma coisa verde e esfarrapada lampejou por
instantes nas mandíbulas abertas da vaca. Gladichev quis pegá-la,
mas nesse exato instante a vaca a engoliu e o último híbrido notável

desapareceu em sua barriga sem fundo. Sobrepujando a paralisia
momentânea Gladichev se pôs em pé de um salto e correu para
casa, berrando tresloucadamente.
Também Tchônkin levantou-se do chão. Sem olhar para pessoa
alguma sacudiu a poeira das calças e com uma das mãos agarrou a
vaca pelo chifre, cerrou o punho e esmurrou Boniteza na cara com
toda a força que tinha. A vaca repuxou a cabeça para trás, mas não
lutou muito. Tchônkin começou a puxá-la para o paiol, tendo
berrado a Niúra para correr à frente e abrir o portão.

— Então é assim — disse Grandão em tom pesaroso, mas estava
equivocado.
Nesse exato instante, descabelado, os olhos fuzilando selvagemente,
Gladichev saía correndo para a varanda tendo nas mãos
um fuzil Berdan, calibre 16. A multidão arquejou.
— Eu disse que ia ser assassinato — asseverou Zinaida, que voltara
bem a tempo.
Gladichev levou o fuzil ao ombro e virou-o para Tchônkin.
— Vânia! — gritou Niúra, desesperada.
Tchônkin se voltou. Com os dedos firmes em volta dos cornos da
vaca ficou a espiar diretamente o cano do fuzil Berdan, parecendo
ter criado raízes no chão, estatelado. Um pensamento dos mais tolos
— "estou com sede" — perpassou-lhe o cérebro e ele passou a língua
pelos lábios.
O estalido seco do gatilho ecoou como um graveto que se partia. "É
isso", pensou Tchônkin. Mas, então, por que não sentia dor alguma?
Por quê? Por que Gladichev voltava a engatilhar o fuzil? Outro
estalido.
De repente a voz alta, clara e sensata de Afrodite se fez ouvir:
— Seu imbecil! Onde está atirando? E com quê? Você usou toda a
pólvora que tinha para fazer adubo, há muito tempo.
Um murmúrio ecoou na multidão. Gladichev voltou a engatilhar o
fuzil, olhou para o barril e então, convicto de que não havia pólvora

por ali, jogou o fuzil ao chão com estrondo, sentou-se na varanda e
começou a chorar amargamente, as mãos na cabeça.
Tchônkin ainda estava com os dedos passados em volta dos chifres
de Boniteza e continuava em pé no mesmo lugar, como se o
houvessem colado ali. Niúra foi ter com ele e pôs a mão em seu
ombro.

— Vamos embora, Vânia — disse com ternura.
Ele a olhou sem entender, sem compreender o que ela queria.
— Para casa, estou dizendo. Vamos agora! — gritou Niúra como se
estivesse falando com um surdo.
— Oh, para casa. — Tchônkin sacudiu a cabeça ao regressar-lhe a
percepção das coisas. Os dois se puseram a trabalhar. Tchônkin
tomou um dos chifres e Niúra o outro; eles começaram a puxar a
vaca, agora satisfeita e cheia de docilidade.
Gladichev, entrementes, continuava chorando alto e vociferando na
varanda. Pondo à mostra o cabelo encaracolado e branco da barriga
Gladichev usava a orla da camisa esfarrapada para enxugar os
olhos.
Tchônkin não agüentava aquilo, e deixando a vaca e Niúra para trás
foi ter com o inimigo recém-derrotado.
— Olhe, vizinho — disse, tocando com a ponta da bota na ponta da
bota de Gladichev. — Não chore, você sabe? . . . tudo vai dar certo,
não se lamente tanto. Quando a guerra acabar serei desmobilizado e
nós plantaremos sua horta de volta com aqueles TPOS. A horta de
Niúra também.
Tocou no ombro de Gladichev em sinal de reconciliação. O outro
estremeceu, eclodiu em um berro, agarrou a mão estendida de
Tchônkin e quase a mordeu. Porém, Tchônkin a tirou no momento
exato e deu um salto para o lado. Mantendo distância Tchônkin
olhou com apreensão e pena para o plantador, sem saber o que
fazer em seguida.
Niúra veio ter com Tchônkin e começou a puxá-lo.

— Ora, Vânia, seu burro. Que opinião está tentando mudar, de
quem sente pena? Ele sentia pena de você quando mirou sua cabeça
com a arma? Ele podia matá-lo!
— E daí, se queria? — contrapôs Tchônkin. — Sabe como é, quando
um homem se perturba assim. Matvêievitch, você não ia mesmo . . .
— E Tchônkin se apoiava num pé, depois no outro, mas não
conseguia aproximar-se mais de Gladichev.
18

Num domingo, no depósito do kolkhoz na cidade de Dolgov, um
homem idoso que estivera vendendo perneiras de couro cromado
de bezerro foi preso. Não era apenas uma questão de estar
vendendo perneiras, e o fato de que fossem feitas de couro cromado
de bezerro nada tinha a ver com o assunto. A questão era que, ao
lhe perguntarem o nome, sua resposta fora de tal natureza que Klim
Svintsov, mandado ao mercado para descobrir qualquer pessoa que
estivesse disseminando boatos falsos e maliciosos, não teve escolha
senão pegar o velho patife por aquele lugar vulgarmente conhecido
como cachaço, e levá-lo ao Lugar Certo. Ainda mais porque era
exatamente ali, no Lugar Certo, que Svintsov servia como sargento.
Para os leitores vindos de galáxias distantes e desconhecedores de
nossos costumes terrenos pode ocorrer uma pergunta legítima — o
que significa o Lugar Certo? Certo para quem e para quê? Neste
particular o autor oferece a seguinte explicação: nas épocas antigas,
descritas pelo autor, existia por toda parte uma certa instituição que
não era tanto militar quanto militante. No decurso dos anos ela
travara uma guerra terrível contra seus próprios cidadãos e o fizera
com êxito infalível. Seu inimigo era numeroso, porém desarmado —
a constância desses dois fatores formara a vitória dessa instituição


ao mesmo tempo impressionante e inevitável. A espada castigadora
da instituição pairava constantemente sobre todos, pronta a descer
sempre que necessário, ou mesmo sem qualquer motivo. Tal
instituição adquirira a reputação de ver tudo, ouvir tudo, saber tudo
e, se alguma coisa não estivesse certa, a instituição estaria lá no
mesmo instante. Por esse motivo as pessoas diziam: "Se você for
esperto demais acaba no Lugar Certo; se usar muito a boca vai
acabar no Lugar Certo". Tal estado de coisas era considerado
inteiramente nor


mal, embora, pensando bem, não houvesse motivo para que uma
pessoa não fosse esperta, se assim tivesse vindo ao mundo. E por
que motivo uma pessoa não devia usar a boca além da conta, se
tivesse com quem falar e algo sobre o que falar? Em sua caminhada
pela vida o autor conheceu pessoalmente grande número de
pessoas que pareciam destinadas pela natureza ao objetivo expresso
de perder-se pela boca. Existem, ademais, muitas variedades
diferentes de tagarelice. Uma pessoa diz o que deve e outra diz algo
que não deve. Se você disser o que deve terá tudo de que precisa e
até um pouco mais. Mas se você disser o que não deve acaba no
Lugar Certo — isto é, na própria instituição de que falávamos
acima. Acrescentaremos que tal instituição funciona pelo princípio:
"Bata nos seus para que os estranhos tenham medo". Não vou
afirmar coisa alguma sobre os estranhos, mas os "seus" realmente
passaram a receá-los. Na verdade, assim que surgia uma
exacerbação de contradições em país estrangeiro ou uma crise de
todo o seu sistema, ou uma decadência geral, essa instituição
agarrava os seus e os arrastava ao Lugar Certo, onde não havia
espaço bastante para todos.
No momento em que o Sargento Klim Svintsov apanhou o tagarela
malicioso no mercado, havia bastante espaço no Lugar Certo. Os
últimos quatro que tinham chegado ao Lugar Certo, cada qual a seu
modo, haviam sido despachados para outra parte antes mesmo do
início da guerra. A instituição reorganizara com rapidez suas


operações, adaptando-as às necessidades do tempo de guerra e
atendendo assim às ordens emitidas pelo chefe da instituição,
Capitão Afanassi Miliaga, que recebera suas instruções dos que
estavam ainda mais acima dele, os quais, por sua vez, haviam
recebido suas instruções das autoridades máximas. O cumprimento
das instruções devia ser orientado pelo discurso histórico do
Camarada Stálin. Nesse discurso histórico, entre outras coisas, fora
afirmado: "Devemos organizar uma luta impiedosa contra todos os
desorganizadores da retaguarda, disseminadores de pânico,
disseminadores de boatos; devemos eliminar todos os espiões,
sabotadores, pára-quedistas inimigos e prestar assistência rápida e
completa a nossos combatentes".
Tal citação, na forma de cartaz em colorido desenho, achava-se
afixada no gabinete do Capitão Miliaga, bem em frente de seus
olhos. E por trás do Capitão Miliaga via-se a conhecida fotografia de
Stálin segurando a meninazinha nos braços. A meni-nazinha sorria
para Stálin, Stálin sorria para a meninazinha. Ao mesmo tempo,
contudo, ele espiava a nuca de Miliaga, como a procurar descobrir
se algum pensamento desnecessário estaria enxameando por lá.
Na segunda-feira o capitão apareceu para trabalhar, como sempre
na hora certa.

— A pontualidade é a educação dos reis — gostava de dizer aos
subordinados e nunca deixava de aduzir: — Falando-se
figurativamente, é claro (de modo que ninguém desconfiasse de que
ele estivesse alimentando sentimentos monarquistas).
O capitão encontrou o Sargento Svintsov na sala de espera narrando
seus problemas a Kapa, a secretária. A esposa de Svintsov fora com
os filhos para a casa da mãe em Altai, onde ficaria por algum
tempo. Ele mesmo escrevera para que não voltasse, estaria mais
segura por lá. Contava tudo isso a Kapa como preparativo para a
parte seguinte da conversa.
— Kapitolina — disse, aflito, fitando a secretária com olhos bestiais
—, um homem sem mulher é como um touro sem vaca. — Suas

comparações eram sempre diretas e cruas. — Um homem não pode
viver sem mulher. Venha viver comigo um pouco, eu lhe dou um
pedação de crepe da China verdadeiro. Assim, além do prazer, você
também arranja um vestido.
Kapa estava habituada às propostas dele, e não se ofendia.

— Klim — disse, rindo —,vá ao banheiro e tome um banho de água
fria.
— Não adianta. — O semblante de Klim se ensombrecía. — Preciso
de uma mulher. E não vá pensar que não sou um homem de
verdade.
— Klim, o que está dizendo! — Kapa se mostrava horrorizada.
— Estou falando com franqueza. Sei que você dorme com seu
marido e com o capitão também. Ora, você pode dar um tempinho a
mim. É melhor viver com três homens do que com dois.
— Klim, você é um idiota! — A Kapa não agradavam alusões às
relações que mantinha com o capitão.
Svintsov fechou a cara e olhou para Kapa, taciturno.
— Se você não quer morar comigo — disse, depois de pensar um
pouco —, por que me xinga? Você tem uma amiga?
— Klim, você pode viver com qualquer mulher?
— Claro, qualquer mulher.
A conversa foi interrompida pelo aparecimento do Capitão Miliaga.
Ele se distinguia das outras pessoas pelo fato de que estava sempre
sorrindo. Seu sorriso era agradável, bonito, correspondia
plenamente a seu sobrenome1. O capitão sorria quando dizia "alô",
sorria ao interrogar os prisioneiros, sorria quando os outros
soluçavam; em suma, estava sempre sorrindo. Também agora,
sorridente, cumprimentou Kapa e depois se voltou com um sorriso
para Svintsov, que derrubara a cadeira ao aparecimento do capitão,
a fim de se colocar em posição de sentido à porta.
— Está aqui para falar comigo? — Sim.
— Entre, então. Miliaga apanhou com Kapa a chave de seu gabinete
e entrou à frente. Abriu as persianas, escancarou a janela que dava

para um pequeno pátio interno e respirou fundo aquele ar fresco
que vinha de lá.
No pátio o Tenente Filippov achava-se ocupado adestrando o
pessoal. Além de Filippov esse pessoal se compunha de cinco
homens. Em época normal nunca havia tempo para adestramento,
era sempre trabalho demais para executar. Mas agora, naquele
período curto de transição, quando passavam para condições de

1 "Miliaga" significa "bom sujeito", em russo. (N. do T.)

estado de guerra, surgira um dia disponível, para não mencionar o
fato de que também haviam sido recebidas instruções para ser dada
atenção especial ao adestramento.
Os cinco homens, em fila indiana, praticavam as manobras de
desfile. O Tenente Filippov caminhava a um lado e, inspirando os
subordinados com o próprio exemplo, erguia as pernas calçadas
com botas de couro cromado de bezerro, elevando-as bem alto no
ar.

— Bem, o que tem a me contar, Svintsov? — perguntou o capitão,
sem se voltar para ele.
— Não é grande coisa. — Svintsov bocejou ociosamente, cobrindo a
mão com o punho cerrado. — Nossos rapazes encontraram um
cavalo perdido.
— Que tipo de cavalo?
— Um castrado. Fizeram perguntas por aí e ninguém sabe de quem
é.
— E onde está agora esse castrado?
— Amarraram a uma árvore no pátio. — Deram feno ele?
— Para que dar de comer ao cavalo de outro?
O capitão voltou-se e fitou Svintsov com ar de repreensão.
Ora, Svintsov, percebe-se logo que você não gosta de animais.

— Também não gosto muito de gente — reconheceu Svintsov.
— Está certo, está certo, que mais?

— Ontem, camarada capitão, apanhei um espião.
— Um espião? — O capitão animou-se. — Onde está ele?
— Vou trazê-lo agora mesmo.
Svintsov saiu da sala e o capitão sentou-se à mesa. Um espião seria
coisa muito oportuna, naquele momento. Ele olhou para o cartaz
que tinha diante de si: " . . . eliminar os espiões, sabotadores, páraquedistas
inimigos. . ." "Bem, se a questão é eliminá-los, vamos
eliminá-los", pensou o capitão e sorriu para si mesmo.
A fim de não desperdiçar tempo até que Svintsov voltasse o Capitão
Miliaga passou a examinar a correspondência sigilosa. Tal
correspondência era composta de toda espécie de circulares, trechos
das ordens dadas a órgãos governamentais superiores, decisões das
comissões executivas e das atas de certas reuniões de alto nível. Os
temas variavam muito: controle maior sobre a coleta de cereais;
preparativos para o novo plano de bônus de guerra; controle maior
sobre as pessoas que fugiam às obrigações militares; controle maior
sobre a seleção de pessoal; adaptação das empresas industriais para
a produção de guerra; a batalha contra os boatos e a necessidade de
disseminar contraboatos.
A porta se escancarou. Cutucado por Svintsov, um homem idoso e
malvestido, cuja nacionalidade podia ser percebida à primeira vista,
entrou no gabinete. Tendo avaliado o gabinete e seu conteúdo o
velho sorriu afavelmente e, de mão estendida, aproximou-se do
capitão.
— Max como é que o xenhor vai, chefe! — disse, e sua pronúncia de
russo não era nada perfeita.
— Max como é que o xenhor vai, chefe, max como é que o xenhor
vai, chefe! — repetiu o capitão, brincando e retirando as mãos das
costas.
O prisioneiro teve a agradável surpresa de notá-lo e indagou se o
capitão pertencia à mesma minoria nacional que ele. O capitão não
se ofendeu mas respondeu negativamente.

—Não pode xer! — O prisioneiro ergueu as mãos, sem acreditar. —

E com expressão de tanta inteligênxia!
Ele olhou ao redor, tomou uma cadeira próxima à parede,
aproximou-a da mesa do Capitão Miliaga e sentou-se. Via de regra
os visitantes que chegavam àquele gabinete se mostravam mais
reservados em matéria de comportamento. Tornava-se claro que o
velho ainda não compreendia aonde o haviam levado, pensou o
capitão alegremente, mas não o deu a entender. Não disse coisa
alguma até mesmo quando o visitante colocou os cotovelos em sua
mesa, como se fosse o dono do lugar, lançando ao capitão um olhar
cheio de confiança.

— Extou pronto a ouvir — disse o velho, cheio de benevolência.
— Ouvir a mim? — O capitão sorriu. — Acho que é melhor fazer o
contrário. . . eu ouvir você.
O velho mostrou-se pronto a isso e concordou com a proposta do
capitão.
— Em primeiro lugar — começou —, faxa o favor de mandar
alguém falar com minha espoja, Txilia. . . ela extá xentada no banco
perto do portão. . . e dijer a ela que eu volto logo.
O capitão se surpreendeu um pouco e perguntou ao prisioneiro
como obtivera a informação de que Tsilia estava sentada no banco
perto do portão e não alhures.
— Poxo explicar com xatisfação — disse o velho. — Eu xá não xou
tão xovem que a minha Txilia foxe pensar que eu extou paxando a
noite com alguma xilkxa.
— É muito natural — concordou prontamente o capitão —, mas sua
idade pode causar preocupações de outro tipo à sua esposa. Ela
pode pensar que você sofreu um ataque do coração, ou que você. . .
Que Deus não o permita, jamais lhe desejaria isso. . . mas ela
poderia pensar — e os olhos do capitão começavam a cintilar com
alegria — que você houvesse caído, por exemplo, diante de um
automóvel. Que me diz? Coisas assim acontecem, como sabe. Afinal
de contas você tem de concordar que na vida tudo pode acontecer.

— De que extá falando? — O prisioneiro sacudiu a mão. — A
minha Txilia tem xempre tanto medo que xempre imagina o pior.
— Ahá! — e o capitão prorrompeu em um sorriso de satisfação
completa. — Você quer dizer que vir para cá é pior do que cair na
frente de um automóvel. Dá para ver que é um homem muito
inteligente e gosto de observar como avalia com tanta precisão sua
situação. Mas assim sendo você devia concordar que mandar
alguém à sua esposa e dar-lhe a esperança de que você logo voltará
seria algo prematuro. Você sabe, não gostamos de nos separar de
nossos convidados tão depressa, e, levando-se isso em conta, valeria
mesmo a pena perturbar a velha sem um bom motivo? Em certa
medida seria, eu diria até, desumano.
— Eu compreendo — concordou o velho. — Compreendo voxê
muito bem. Também é um prajer para mim ver xua cara, chefe, mas
ainda axim a xente vai ter de xe despedir muito xedo e eu lhe digo
por quê. Mas antes de tudo faxa o favor de mandar embora exe
idiota — e o velho apontava com o polegar para Svintsov, em pé
atrás dele.
— O que foi que disse? — perguntou o capitão, prelibando muito
divertimento. — Você disse. . . esse idiota?
— Xe não é axim voxê me faz o favor de dijer o que ele é, então.
Pergunte a ele por que ficou me xateando no mercado. O que foi
que eu fij a ele?
— Sim, a bem da verdade — o capitão voltou a cabeça para o
subordinado —, Svintsov, o que foi que ele lhe fez?
— Deixe que ele próprio lhe conte — resmungou Svintsov
muitíssimo taciturno.
— E vou contar — ameaçou o prisioneiro. — Vou contar tudo
ejatamente como acontexeu.
— E terei grande satisfação em ouvir o que você vai dizer — foi a
afirmação sincera do capitão.
Estendeu a mão atrás de si, apanhando no cofre uma pilha de papel
pautado, e a colocou na mesa diante de si. A primeira folha dizia:

"INTERROGATÓRIO N.°
Cidadão ( ) ...................................................................................................


(Nome, patronímico e prenome)
Ano de nascimento ................................................................................. .
Origem social ..............................................................................................
Nacionalidade ..........................................................................................
Filiação partidária ...................................................................................


Educação ...................................................................................................


Trabalho e local onde trabalha ................................................................
Acusado, suspeito (sublinhe um deles) de crimes citados nos estatutos
do Código Criminal da
RSFSR; artigos números ............................................................................


O capitão tirou a caneta de ponta dourada de um copo de ferro que
tinha à mesa, sublinhou "Acusado" e depois olhou com
benevolência para o velho sentado à frente.


— E então? — disse.
— Quer dizer que voxê vai mesmo excrever o que eu vou dijer? —
perguntou o convidado, quase lisonjeado.
— Naturalmente — assentiu o capitão.
— Muito bem, então vá em frente — suspirou o acusado. — Eu xou
um velho, rexebo penxão de doje rublos por mês, mas eu tenho
olhos, vejo as coijas. Na manhã de domingo minha expoja Txilia me
acordou às xete e vinte. Pegou ixo aí? Ela me dixe: "Moijei, a xente
não tem nada para comer. Você pre-xija ir ao mercado e vender
alguma coija". Eu xou xapateiro profixional e xempre tenho um
pouco de couro, por ixo peguei umas perneiras de couro cromado e
fui para o mercado. Aí exe idiota xeu veio e me perguntou que
direito eu tinha de extar explorando. Expliquei a ele que explorar. . .
pode anotar aí. . . é quando a xente compra barato e vende caro.
Mas eu não extou comprando nada, xó vendendo. Depoij ele me
perguntou qual era o meu xobrenome e eu dixe a ele. Depoij ele me

agarrou pela gola e comexou a me puxar para aqui, para o xeu
departamento. E xuntou xente e todo o mundo dixe que eles
pegaram um expião. Prexijo lhe dizer com muita franqueja que não
xou expião. Tenho profixão muito boa e xempre ganho o meu pão.
E xe ele não goxta do meu nome. . .

— Qual é o seu nome? — interrompeu Miliaga, a caneta parada em
cima do documento.
— Meu nome é Xtálin.
O capitão estremeceu, mas ainda assim não se esqueceu de sorrir.
— O que foi que disse?
— Voxê ouviu muito bem o que eu dixe.
O capitão recuperou o controle de si. Já encontrara todos os tipos de
loucos, entre eles os que sofriam de manias de grandeza. Piscou o
olho para Svintsov, que estendeu a mão (com que força se deve
bater em um velho?), e o impostor caiu ao chão.
—Ai, ai — gemia o velho ao começar a se levantar. — Oi, chefe, exe
idiota xeu extá atraj de mim outra vez! Olha, o xangue xai de meu
narij. Por favor anote ixo aí nos xeus documentos.
Voltando com esforço a ficar em pé o velho se pôs diante do capitão,
segurando o nariz, do qual, na verdade, caíam gotas grandes e
vermelhas ao chão.
— Não é nada. — O capitão sorria. — O homem ficou um pouco
nervoso. Mas talvez ele tenha bons motivos para isso. Talvez ele seja
do tipo nervoso e você o insultou chamando de idiota. E quando
você o insulta insulta também esses órgãos públicos que ele
representa. Para não mencionar o fato de que você se atreveu a usar
esse nome tão querido de todos nós, esse nome que apenas um
homem em nosso país pode usar, e você sabe de quem estou
falando.
— Ei, chefe! — O impostor sacudiu a cabeça. —-Por que extá
falando axim comigo? Voxê não pode comexar a imaxinar o que vai
acontexer quando voxê olhar meus documentos. Vai lamber meu
xangue no xão com a língua, e o xeu idiota também. Depois vou até

aí, baixo as minhas caixas e voxê e xeu idiota vão beixar meu
trajeiro.
Desta feita o murro desferido por Svintsov fez o homem erguer-se
do chão antes de cair. A dentadura saiu voando da boca, bateu na
maçaneta da porta e se partiu em duas. Levando as mãos à cabeça o
impostor começou a gemer e a soltar gritos incoerentes.
— A bem da verdade, Svintsov, onde estão os documentos dele? —
perguntou o capitão.


— Não sei — disse Svintsov. — Não olhei.
— Olhe, então.
Svintsov inclinou-se sobre a vítima, vasculhou-lhe as roupas e
depois colocou um passaporte antigo e surrado sobre a mesa do
capitão.
Levemente enojado o capitão abriu o passaporte e não pôde
acreditar no que via. Talvez pela primeira vez na vida o sorriso
sumiu de seu semblante. De repente o gabinete pareceu escurecer e
ele acendeu a lâmpada de mesa. As letras, laboriosamente
preparadas na tinta de nanquim da burocracia, dançavam diante
dos olhos de Miliaga e ele não conseguia colocá-las em ordem.
Slátin, Sátlin, Sáltin. . . Não havia como enganar-se, Stálin. Stálin,
Moissiei Solomónovitch. Seria um parente? O capitão estremeceu, já
podia se ver encostado à parede. Oh, meu Deus, o que se passa
aqui! É claro, e o pai de Stálin não era sapateiro?
— Svintsov — disse o capitão, sem ouvir a própria voz —, saia
deste gabinete!
Svintsov saiu, mas isso não tornou mais fácil a posição do capitão.
Por um curto período Miliaga simplesmente enlouqueceu e se
empenhou em uma atividade inteiramente sem sentido, puxando
papéis a si e depois arredando-os. Finalmente agarrou o peso de
papel e o colocou sobre o passaporte, soprou sobre ele e com as
duas mãos empurrou-o até a beira da mesa.

O prisioneiro, entrementes, continuava no chão na posição anterior,
ainda a se contorcer e com as mãos na cabeça, como a recear que ela
pudesse destacar-se do corpo por completo.
O capitão empurrou para o lado a cadeira, e em posição de sentido
pronunciou a plenos pulmões, como se estivesse dando uma ordem:


— Olá, Camarada Stálin!
Stálin tirou uma das mãos do rosto e olhou desconfiado para o
capitão.
— Alô, alô — disse, com cautela. — A xente já se conhexe.
Ele devia ter ajudado o velho a se levantar, mas o capitão não
conseguia decidir-se. Os joelhos tremiam-lhe e na boca sentia um
gosto como o de querosene.
— Você. . . — disse, engolindo a saliva —, você. . . — lambeu os
lábios — . . . você é o pai de Stálin?
— Ai, tudo extá doendo em mim! — Stálin rastejava pelo chão,
sobre as mãos e os joelhos; apanhou inicialmente metade da
dentadura, depois a outra. — Meus dentes! — gemeu, olhando os
pedaços. — Meu Deus, como vou fajer xem eles?
Pôs-se em pé com esforço, sentou-se diante do capitão e fitou-o olho
a olho.
— Extá com medo agora, seu cachorro? — perguntou, cheio de
alegria perversa. — Xente-se, xeu cachorro, vai levar xem pancadas
na cabexa. E agora, onde é que eu vou arranjar dentes como extes?
— Mandaremos fazer novos para você — apressou-se o capitão a
afiançar.
— Novos — zombou o velho. — E onde é que vai arranjar dentes
novos como exes é o que eu queria xaber. Meu filho fez extes dentes
para mim. Voxê acha que alguém aqui nexta xidade sabe como
fazer axim?
— Estes dentes foram feitos pessoalmente pelo Camarada Stálin? —
O capitão se comovia e estendeu a mão. — Posso tocar neles?

— Idiota — disse Stálin, arredando os pedaços para que não fossem
alcançados. — Xuas mãos estão xeias de xangue e voxê quer tocar
meus dentes com elas.
Nesse momento um lampejo salvador de recordação se fez
vislumbrar no crânio do capitão. Se aquele era o pai de Stálin isso
queria dizer que o próprio Stálin devia chamar-se Jossif
Moissiêievitch. Mas, afinal de contas, o nome de Stálin. . . seu nome
era. . . Miliaga se via inteiramente incapaz de recordar o
patronímico do amado chefe.
— Sinto muito — começou com indecisão —, mas a mim parece que
o sobrenome do pai de Stálin não era Stálin. E Solomon também não
era o primeiro nome dele. — O capitão começava a recuperar
gradual controle das faculdades mentais. — E assim sendo por que
você está tentando passar por pai do Camarada Stálin?
— Porque eu xou o pai do Camarada Xtálin. Meu filho, o Camarada
Xinovi Xtálin é o protético mais conhexido em Gomei.
— Então é isso! — Ao capitão voltava o seu natural jocoso. — De
qualquer modo, nossos protéticos não trabalham mal, pode crer.
O capitão apertou o botão da campainha. Kapa apareceu à porta.
— Svintsov! — ordenou o capitão.
— Voxê não vai chamar aquele idiota de volta para cá, vai? —
perguntou Stálin, começando a preocupar-se. — Voxê xabe, não
aconxelho voxê a fajer ixo. Voxê ainda é jovem, tem tudo à xua
frente. Por que haveria de arruinar xua carreira? Ex-cute o conxelho
de um velho.
— Já ouvi você. — E o capitão sorria.
— Então excute mais um pouco. Não vou cobrar pelo meu
conxelho. Xó quero dijer a voxê que xe alguém descobrir que voxê
prendeu Xtálin e bateu nele, mesmo se não era exe Stálin, ou mesmo
o pai dele, mas só Xtálin, meu Deus, voxê não imagina o que vai lhe
acontexer!
O capitão ficou pensativo. Talvez o velho tivesse razão, tratava-se
realmente de uma situação delicada.

Svintsov entrou.

— Chamou-me, camarada capitão?
— Retire-se — ordenou Miliaga. Svintsov retirou-se.
— Escute — disse o capitão. — Moissiei. . . Bem, bem. . .
— Solomónovitch — ajudou Stálin, sem perder a noção de sua
própria dignidade.
— Moissiei Solomónovitch, por que você tem esse sobrenome?
Afinal de contas você sabe a quem pertence.
— Em primeiro lugar, pertenxe a mim — proclamou Moissiei
Solomónovitch. — E porque meu pai foi um Xtálin e meu avô antes
dele também foi um Xtálin. Meu avô tinha uma pequena fábrica
onde ele fazia axo. E por exe motivo ele rexebeu o nome de Xtálin ¹.
— Mas ainda assim é uma coincidência desastrosa.
— Dejaxtroja para voxê, mas muito boa para mim. Porque xe o meu
xobrenome foxe Xpulman ou, quem sabe, Ivánov, então o xeu idiota
podia arrancar meus dentes xempre que ele quijexe. O chefe lá em
Gomei sugeriu muitas vejes para eu mudar meu xobrenome, mas
xempre respondi a ele em uma xó palavra. . . não. Por falar nixo, ele
xe parexia muito com voxê. Xerá que não é o xeu irmão, por acajo?
— Eu não tenho irmão algum — asseverou o capitão. — Fui filho
único.
— Xinto pena de voxê. — Stálin se solidarizava. — Um filho único,
ixo nunca é bom. Ele pode crexer e xe tornar um egoísta.
O capitão não deu qualquer resposta a tal observação. Rasgou as
atas do interrogatório e jogou os pedaços de papel na cesta. Depois
se levantou, estendeu a mão e anunciou ao convidado que prezava
muito tê-lo conhecido. Mas o convidado não tinha pressa alguma
em se retirar. Solicitou que antes de sair da instrução suas perneiras
lhe fossem devolvidas e que lhe dessem a permissão por escrito
para ir à policlínica distrital a fim de consertar a dentadura.
— Trataremos disso. — O capitão chamou Kapa e ordenou-lhe que
preenchesse os formulários necessários.

Kapa ficou abalada por tal ordem, sem saber o que a determinara. A
instituição sempre demonstrara interesse pelas pessoas, mas nunca
a tal ponto!

— Talvez você possa mandá-lo depois a um centro de recuperação
de saúde — disse, zombeteira.
O velho empertigou-se e solicitou que, por enquanto, não fosse
mandado a qualquer centro de recuperação de saúde.
— Eu goxto muito dexes lugares, prinxipalmente a Criméia —
1"Stal" significa "aço" em russo. "Stálin" pode ser "homem de aço", como acontece no caso
de Iossif Stálin. (N. do T.)

— explicou. — A Criméia é a pérola do xul, doxe como mel com
axúcar. Mas tenho medo de que os alemães cheguem lá em pouco
tempo.
— Os alemães curarão você, sem dúvida — observou Ka-pa, de
modo significativo.
No mesmo instante ia deplorar tal observação imprudente que
fizera.
— Parexe que exa moxa é um pouco anti-xemita — disse Stálin, com
preocupação evidente quanto ao futuro dela. — Mas ela é jovem,
não acho que ela tenha crexido no regime antigo, e deve xer
membro do Partido ou do Komxomol.
Olhando para Kapa como se fosse uma infeliz aleijada ele suspirou,
gemeu, sacudiu a cabeça e disse com amargura que se ela não
mudasse de convicções também teria de beijar-lhe "o assento".
Antes de iniciar a cerimônia, no entanto, ela teria de limpar os
lábios.
— Por cauja de minha espoja, Txilia — explicou. — Ela xente muito
xiúme. E xe apanhar algum xinal de batom vai haver o diabo, muita
perturbação na família.

Sem fazer a mínima idéia do que acontecia Kapa olhou o capitão.
Por que ele permitia que aquele velho descarado falasse assim? Por
que não ordenava fuzilamento imediato?

— Kapochka — O capitão sorriu para ela, com pressa evidente de
acabar com o incidente —, por favor preencha o formulário para
esse camarada.
Ofendida, os lábios apertados, Kapa partiu a fim de executar a
ordem. Voltou imediatamente, e sem olhar para o velho perguntou-
lhe qual seu sobrenome. O velho abriu a boca, pronto a falar, más o
capitão o atalhou.
— Nenhum sobrenome é necessário — apressou-se a dizer. —
Preencha em nome do. . . do portador.
— Não compreendo nada disso — declarou Kapa. —-Que tipo de
pessoa é essa que não tem sobrenome?
— Eu tenho xobrenome — afirmou o velho.
— Sim, ele tem um sobrenome — confirmou o capitão —, mas é um
segredo. — Dito isso sorriu para Kapa e para o velho, com muito
respeito. — Vá escrever o que mandei. O portador desta nota é
recomendado. . .
Minutos depois o capitão acompanhava o velho até o portão, como
se o mesmo fosse um distinto convidado. E na verdade havia uma
velha sentada no banco perto do portão. Segurava no regaço uma
bolsa rasgada de vime e olhava em frente. Dava para ver
imediatamente que esperar era seu estado natural, tinha o hábito de
preencher os minutos e horas de sua espera enumerando os grandes
homens que sua gente já dera ao mundo. Nesse momento fitava em
frente e contava os nomes, dobrando os dedos enquanto
murmurava:
— . . .Marx, Einstein, Spinoza, Lincoln, Trótski, Sverdlov,
Rothschild. . .
— Txilia — disse Stálin. — Quero lhe aprejentar este ra-paj. É um
moxo muito interexante.

— Ele é judeu? — E Tsilia se empertigou.
— Ele não é xudeu, mas é um moxo muito interexante. . .
— Ora! — Tsilia sacudiu a cabeça, perdendo todo o interesse por
Miliaga. — Onde foi que você arranjou esse hábito? Assim que
chegamos a qualquer lugar novo você começa logo a falar com os
goim. Não consegue achar outro tipo de companhia?
— Txilia, o que voxê está dijendo é errado. Exte é um moxo muito
bom. É até um pouco melhor do que aquelç em Gomei. Aquele em
Gomei me prendeu na cadeia por três dias depois de eu explicar a
ele por que não devia me prender na cadeia. Mas exte aqui
entendeu logo.
De volta ao gabinete o Capitão Miliaga disse algo conciliador a
Kapa e recebeu dela uma carta que não viera na correspondência do
dia. Devia ser uma carta anônima. O endereço da instituição fora
escrito com a mão esquerda e não havia indicação do remetente. Ali
não se percebia qualquer coisa fora do comum. Os cidadãos quase
sempre escreviam cartas à instituição chefiada por Miliaga sem
endereço do remetente, e tais cartas, com raras exceções, eram
escritas com a mão esquerda (as exceções eram os canhotos, que
usavam a mão direita). Via de regra tais cartas continham denúncias
menores. Alguém criticava o sistema de racionamento. Alguém
exprimia dúvidas sobre nossa rápida vitória sobre os alemães.
Alguém fizera um relato de teor duvidoso na cozinha. Um
camarada vigilante solicitava que fosse prestada atenção ao trabalho
do poeta Issakóvski. "As palavras do poeta", escrevera o camarada
vigilante, "na canção Nenhum mundo é melhor do que este são
ouvidas em disco e irradiadas por toda a União Soviética. Entre
outros versos existe aquele que é bem conhecido, 'De manhã ela viu
a cacatúa'. Mas se ouvir com cuidado você entenderá outra coisa:
'De manhã ela viu a falcatrua'. É o que o verso diz, se você ouvir
com atenção." O camarada vigilante sugeria que o poeta fosse convidado
a comparecer ao Lugar Certo e que lhe perguntassem
frontalmente: "O que é isso, um engano ou intenção maliciosa?" Ao

mesmo tempo o autor da carta informava que já indagara ao jornal
local sobre essa questão escandalosa, mas até então não recebera
resposta. "O silêncio persistente do jornal", concluía o camarada
vigilante, "obriga a pessoa a pensar que o diretor pode estar em
conluio criminoso com o poeta Issakóvski, e, se assim for, isso não
constitui indicação de uma organização ampla de destruidores e
sabotadores? "
Em favor da instituição devemos afirmar que pouquíssimas eram as
cartas de tal tipo que a levavam a adotar providências; de outra
forma não restaria uma só pessoa em liberdade em todo o país.
E assim a carta mais recente que chegara ao correio parecia, de
início, ser inteiramente comum. Mas por algum motivo ocorreu ao
capitão que aquela carta podia conter mensagem importante. Ele a
abriu, e tendo lido as primeiras linhas percebeu que não se
enganara.

"Por esta informamos que o desertor e traidor da pátria, Camarada
Tchônkin, Ivan, está oculto em nossa aldeia de Krás-noie e reside no
lar da agente postal, Beliachova, Niúra; que a pessoa dele está
armada e que ele tem material de combate, também, na forma de
um aeroplano que não está voando em batalha contra os agressores
fascistas alemães, mas fica em uma horta de legumes sem servir a
objetivo nenhum em período de graves provações para nosso país.
Embora o lugar dele seja na frente de batalha, o soldado do Exército
Vermelho Tchônkin, Ivan, não está lutando na frente de batalha,
mas se ocupa com a pouca-vergonha e todos os tipos de embriaguez
e vandalismo. O referido Tchônkin, Ivan, tem exprimido idéias
imaturas e descrença nos ensinamentos do marxismo-leninismo e
também nos ensinamentos de C. Darwin referentes à origem do
homem, ensinamentos de acordo com os quais o macaco se
transformou em homem por meio de trabalho e de atos inteligentes.
Além do acima referido ele permitiu que a vaca de Beliachova, Niúra,
causasse danos criminosos à horta do conhecido plantador e


naturalista local, Gladichev, Kuzmá Matvêievitch, e por esses atos
Tchônkin indubitavelmente causou grande prejuízo à nossa ciência
agrícola soviética e território virgem da hibridização. Solicitamos
que reprimam esse desertor atrevido e o chamem a se explicar de
acordo com toda a severidade da lei soviética. Seus, sinceramente,
os moradores da aldeia de Krásnoie."
O capitão leu a carta de ponta a ponta e sublinhou as palavras
"desertor, traidor, Tchônkin" com o lápis vermelho. Sublinhou o
nome "Gladichev" com o lápis azul, depois escreveu "remetente" ao
lado, juntamente com um ponto de interrogação.
A carta não poderia ter chegado em momento melhor. Era hora de
começar a levar a efeito as ordens do comandante supremo. O
capitão chamou o Tenente Filippov.

— Filippov — disse-lhe —, reúna tantos homens quantos precisar.
Amanhã você vai a Krásnoie prender um desertor chamado
Tchônkin. Obterá uma ordem do procurador. E descubra quem é
esse Gladichev. Ele talvez venha a ser útil mais tarde.
19


Desde o anoitecer o céu estivera cheio de nuvens de tempestade e
agora começava a chover. Choveu por toda a noite, sem parar, e de
manhã a estrada estava tão enlameada que não se podia pensar em
usá-la. Niúra seguiu a pé pelo lado da estrada; as botas grandes, que
tinham sido do pai, não paravam de escorregar, tinha de segurá-las
pela parte de cima. Sua bolsa se tornava pesada com a chuva e
sempre lhe escorregava do ombro. Tendo chapinhado por dois
quilômetros e meio ela chegou à primeira encruzilhada da estrada,
ponto em que pôde ver um caminhão leve, coberto de lona.


Diversos homens estavam ocupados, cavando ao lado do caminhão.
Encharcados e cobertos de lodo da cabeça aos pés, limpavam a
estrada diante do caminhão, alguns com pás, outros com as
próprias mãos. Um deles, com dois bordados pequenos na lapela, se
mantinha um pouco afastado e fumava, protegendo com a palma da
mão o cigarro que se desintegrava com a chuva. Um homem
enorme e desengonçado veio de trás do caminhão, trazendo um
pedaço de compensado que usava como pá. Ao ver Niúra, que
passava ao lado do caminhão, ele parou e fitou-a com os olhos
bestiais de que era dotado, por baixo das sobrancelhas ruivas.

— Uma mulher! — gritou com espanto, como se o encontro
ocorresse em terra desabitada.
Os homens de uniformes cinzentos pararam de trabalhar, viraram
na direção de Niúra e começaram a olhá-la dos pés à cabeça, em
silêncio total. Niúra encolheu-se diante de tal olhar.


— Ei, moça! — gritou aquele que fumava. — Falta muito para
Krásnoie?
— Não, não falta — disse Niúra. — Vão mais um quilômetro, mais
ou menos; passem por cima daquela elevação e
dali já dá para ver a aldeia. Quem estão procurando por lá? —
perguntou, juntando coragem.
— Vocês estão com um filho da puta desertor morando por lá? —
confidenciou um soldado empunhando uma pá, próximo ao
tenente.


— Prokopov — atalhou o tenente com seriedade. — Feche a boca.
— O que foi que eu disse de errado? — Prokopov jogou a pá ao
chão, foi ao caminhão e se pôs atrás do volante. O caminhão
começou a movimentar-se, andou um pouco e voltou a atolar-se na
lama. Niúra prosseguiu por onde ia, seguiu por algum tempo na
estrada, depois quebrou à direita e desceu com pressa, tomando a
margem do rio de volta a Krásnoie.

Tchônkin dormia tanto que, de início, não conseguiu acordá-lo. Foi
até preciso jogar-lhe água fria no rosto. Niúra falou-lhe dos homens
atolados na estrada e o que tinham dito sobre o desertor.

— Pois que peguem o desertor deles — disse Tchônkin, sacudindo
a cabeça sonolento e incapaz de perceber qualquer sentido em tudo
aquilo. — O que tem isso a ver comigo?
— Oh, Senhor! — Niúra erguia as mãos em desespero. — Você não
percebe quem é o desertor? É você!
— Eu, desertor? — Tchônkin se admirava.
— Não, talvez seja eu. Tchônkin pôs os pés no chão.
— Tem alguma coisa errada no que você diz, Niúra — afirmou
com desagrado. — Pense por si. . . que tipo de desertor eu posso
ser? Fui mandado aqui para guardar esse aeroplano. Desde que
escrevi à minha unidade ninguém veio para me substituir. Não
posso abandonar o posto sozinho, isso é contra os regulamentos.
Assim sendo, como é possível eu ser um desertor, hein, hein?
Niúra começou a chorar e implorou a Tchônkin que adotasse
providências urgentes, pois não havia como provar a eles o que
afirmara.
Tchônkin pensou por instantes, depois sacudiu a cabeça, cheio de
decisão.
— Não, Niúra, não vou me esconder porque não tenho o direito
de abandonar meu posto. E ninguém pode me substituir no posto,
com exceção do cabo da guarda, o comandante da guarda, o oficial
de serviço ou. . . — Tchônkin pensou por algum tempo sobre qual
seria a outra pessoa responsável que poderia substituí-lo e resolveu
que, depois do oficial de serviço, não estaria subordinado a nenhum
outro senão a um general. — . . .Ou um general — concluiu, e
começou a se vestir.
— O que você vai fazer, então? — indagou Niúra.
— O que posso fazer? — Ele deu de ombros. — Vou montar guarda.
. . e é só deixar alguém tentar se aproximar. . .

Continuava chovendo. Tchônkin envergou o sobretudo e passou o
cinturão de cartuchos por cima.

— Você vai atirar neles? — perguntou Niúra, tomada de medo.
— Se me deixarem em paz, não atiro — prometeu Tchônkin. — Mas
se não me deixarem não podem pôr a culpa em mim.
Niúra correu até ele, agarrou-o pelo pescoço e prorrompeu em
choro.
— Vânia — suplicava, sufocando em lágrimas. — Por favor, não
resista a eles. Eles o matarão.
Tchônkin passou a mão pelos cabelos de Niúra, que estavam
molhados.
— O que se pode fazer, Niurka? — suspirou. — Ainda sou a
sentinela. Vamos nos despedir agora, por via das dúvidas.
Beijaram-se três vezes e logo Niúra, sem saber como, fez o sinal-dacruz
diante de Tchônkin.
Ele passou o fuzil pelo ombro, puxou o quepe sobre os olhos e saiu.
A chuva parecia ter parado e um leve arco-íris começara a brilhar
em algum lugar para os lados de Nova Kliukvino.
Ivan seguiu até o aeroplano, os pés colando na lama e sentindo a
água entrar pela bota direita, que estava furada. A chuva ondulava
como campo de trigo. Gotas pesadas pairavam nas orlas retesadas
da lona que cobria a asa. Tchônkin subiu para a asa inferior da
direita, pois assim a asa superior o protegia da chuva. Não era local
dos mais cômodos, já que a asa tinha inclinação e ele escorregava.
Por outro lado a vista era boa; ambas as estradas, a de cima e aquela
que seguia a orla do Tiopa, achavam-se bem visíveis.
Uma hora decorreu e ninguém apareceu. Outra meia hora se passou
e Niúra lhe trouxe o desjejum, batatas e leite. Foi quando a chuva
parou e o sol se apresentou. O sol refletia-se nas poças de água,
reluzia em cada gota. Talvez fosse o sol, talvez o desjejum, talvez
fossem as duas coisas, mas o estado de espírito de Tchônkin
melhorou muito, e a sensação de perigo iminente o deixou.
Começou até a adormecer.

— Ei, soldado!
Tchônkin sobressaltou-se e agarrou-se ao fuzil. Era Gran-dão, em pé
ao portão. Estava descalço e ambas as pernas das calças haviam sido
arregaçadas quase até o joelho. No ombro passara uma rede de
arrasto.
— Estou procurando alguém para pescar com rede — explicou,
fitando Tchônkin com curiosidade.
— Para trás! — disse Tchônkin e se virou, ainda de olho em
Grandão.
— O que há com você? — retorquiu o outro, com surpresa. — Tem
alguma coisa contra mim? Se é o que lhe contei a respeito de Borka
você se engana. Eu não vi, talvez ela não tenha dormido com ele.
Ato contínuo, Grandão pendurou a rede de arrasto na cerca,
inclinou-se e enfiou um pé pelas réguas da cerca. Estava prestes a
colocar o outro pé quando Tchônkin desceu da asa.
— Ei, ei, não passe por aí ou atiro — gritou e apontou o fuzil para
Grandão.
Grandão bateu em retirada e apressadamente retirou a rede da
cerca.
— Juro que você está doido, camaradinha.
Nesse momento um caminhão coberto apareceu sobre o morro. O
motorista pisou no acelerador e virou o volante com força. A seu
lado, agarrado em pé à porta da cabine, o tenente, coberto de lama,
dava ordens. Os outros homens de uniforme cinzento, enlameados
da cabeça aos pés e espumando de suor, empurravam o caminhão
para a frente. O caminhão continuava deslizando, a traseira a
balançar de um lado para outro. Observando essa visão inesperada,
com grande curiosidade Grandão se afastou para o lado.
— Ei, camarada, venha ajudar! — gritou o tenente para ele, a voz
roufenha.
— Ele pensa que eu não tenho coisa melhor para fazer —
murmurou Grandão.

Ato contínuo, girou sobre os calcanhares e seguiu vagarosamente.
Mas a curiosidade o venceu, ele voltou e partiu na direção do
caminhão, que, a essa altura, já parara diante do gabinete do

kolkhoz.

20


Ivan Timofêievitch Golubev estava sentado no gabinete, pelejando
com a redação de um relatório referente à produção de feno no
último período de dez dias. É desnecessário dizer que o relatório era
falso, já que não houvera praticamente qualquer produção de feno
durante o referido período. Os homens estavam de partida para a
frente de luta, as mulheres os preparavam, que colheita fora aquela!
A Comissão Distrital, todavia, não aceitava a validade desses
motivos. Boríssov o amaldiçoava pelo telefone, exigindo que o
plano fosse cumprido. Sabia naturalmente que, em momentos
assim, estava exigindo o impossível, mas o papel que falava em
trabalho completado era mais importante para ele do que o trabalho
em si mesmo — Boríssov também estava sendo amaldiçoado pelos
que o dirigiam. E assim é que Boríssov juntava papéis e documentos
vindos de todos os kolkhozes, compilava as cifras e as enviava à
província, onde outros relatórios eram compilados na base dos
relatórios distritais, e assim a coisa seguia até lá em cima.

Por esse motivo é que naquele instante Golubev se achava sentado
no gabinete fazendo a sua parte pela grande causa do papelorio.
Com a régua traçava quadrados na folha de papel, quadrados onde
lançava os hectares, medidas métricas, porcentagens e dias de
trabalho, em frente aos nomes dos chefes-de-brigada. Depois
chamou Volkov, o contador, que se encontrava sentado na sala ao


lado. Volkov somou com rapidez as cifras de cada coluna, usando o
ábaco, e o presidente lançou-as na coluna intitulada "Total". Depois
de dispensar o contador o presidente pôs sua assinatura
perfeitamente legível no relatório, soprou sobre o documento
recém-preparado e o arredou de si a fim de admirá-lo a distância.
As cifras pareciam impressionantes e o presidente quase acreditou
nelas. Executado o trabalho, Golubev levantou-se para espreguiçar.
Ainda espreguiçando foi ter à janela e ali ficou paralisado, as mãos
no ar.
Um caminhão leve, coberto por lona, estava parado diante do
gabinete. Via-se um grupo de homens enlameados, em uniformes
cinzentos, em pé ao lado do caminhão, e dois deles já subiam a
escada.

— É agora! — gemeu o presidente. Por mais que se houvesse
preparado para o destino, o aparecimento repentino dos homens de
cinzento o havia pego desprevenido. Ainda mais porque ele pedira
que o mandassem para a linha de frente, e parecia que tal solicitação
ia ser deferida. Agora tudo acabara. O presidente começou a
movimentar-se pelo gabinete. O que podia fazer? De nada
adiantava sair correndo; ademais, não havia tempo — já dava para
ouvir-lhes as passadas na porta ao lado, no gabinete do contador.
Esconder-se? Ridículo. De repente seu olhar recaiu no relatório que
acabara de preparar. Ali estava, a prova! Ele assinara sua própria
sentença. E agora? Queimar? Não havia tempo. Rasgar? Eles
poderiam colá-lo. Só havia uma saída. Ivan Timofêievitch amassou
o papel e enfiou-o na boca. Mas não teve tempo bastante para engolir.
A porta se abriu, dois homens apareceram. O primeiro, o nanico,
tinha dois bordados na lapela e o outro, de rosto bestial, ostentava
triângulos na sua.
O tenente usou a manga para enxugar o suor da testa, que assim
ficou manchada com lama, e disse: "Olá". Um som débil e parecido a
um mugido foi o que obteve em resposta.

Supondo estar lidando com um surdo-mudo comum o tenente fez
uma careta involuntária, pois não gostava de pessoas incapazes de
responder às suas perguntas.

— Onde está o presidente? — perguntou com severidade. —O
cabeça! — E usou as mãos para indicar uma cabeça grande.
— Muuu — mugiu o presidente, cujo dedo humildemente indicava
o próprio peito.
O tenente surpreendera-se no início, jamais vira antes um
presidente surdo-mudo (como pode falar nas reuniões?), mas, se a
coisa era assim, seria assim, e começou a tentar comunicar-se com a
ajuda das mãos.
— Você entende, existe uma certa pessoa aqui, um desertor,
entendeu? — E fazendo o melhor que podia o tenente de início
imitou uma batalha (bum, bum), depois um homem que fugia do
campo de batalha.
— E o que temos a fazer é. . . — ele arrancou a pistola do coldre e a
enfiou no estômago do presidente. — Mãos para cima!
O queixo do presidente se entreabriu, a bola coberta de saliva caiu-
lhe da boca; ele começou a balbuciar e depois desabou no chão,
esparramando-se e batendo com a nuca ao cair.
O tenente perdeu as estribeiras. Olhou para o presidente no chão,
depois para o soldado que continuava imóvel e calado, à porta.
— Que diabo. . . — murmurou, confuso. — Assim que ele vê uma
arma desmaia, e por algum motivo esse camarada come papel.
Apanhou no chão a bola de papel amassado, desdobrou-a com
muito nojo, examinou-a e depois jogou-a sobre a mesa. Cutucou o
presidente com a ponta da bota, inclinou-se e começou a dar-lhe
tapas nas faces.
— Ei, levante-se, está ouvindo? Levante-se. Pare de fingir. —
Tomou a mão do presidente e apalpou-lhe o pulso. — Eu não sei
dizer se está batendo ou não.
Desabotoou a jaqueta e a camisa do presidente e levou o ouvido a
seu peito.

— Svintsov, pare com esses pés — ordenou. Depois ouviu com
atenção. Se o coração batia era tão de leve que não dava para ouvir.
— E então? — perguntou Svintsov, curioso.
— Não dá para dizer.
O tenente levantou-se e estava prestes a limpar os joelhos, mas
baixou um olhar às calças e convenceu-se de que o esforço não
compensava.
— Vá você, dê uma escutada, talvez ouça melhor do que eu.
Svintsov inclinou-se e pôs o ouvido no peito de Golubev, depois
ergueu a cabeça e disse:
— Camundongos.
— Que camundongos? — O tenente não compreendia.
— Camundongos arranhando por baixo do soalho — explicou
Svintsov. — Também podem ser ratos. Os guinchos são baixos
demais para serem de camundongos. Eu tinha alguns no meu
porão, no ano passado. A princípio não entendi, pensei que eram
camundongos e feito um idiota joguei minha gata lá em baixo. Eles
avançaram nela, comeram-lhe o rabo. Quase não saiu viva de lá.
— Svintsov, eu mandei você ouvir camundongos? O coração dele
está batendo ou não?
— Quem sabe? — respondeu Svintsov. — Não sou médico. Não sei
muito dessas coisas. Acho que a gente devia abrir a janela e deixar
entrar um pouco de ar. Se ele estiver vivo, volta a si; se estiver
morto vai começar a ficar azul, primeiro o nariz, não é assim que a
gente sabe?
— Quem sabe alguma merda? — replicou o tenente, tomado de
fúria. — Os nervos das pessoas estão estourando. Por que têm tanto
medo de nós? A gente não agarra qualquer um que passa, é preciso
haver uma ordem. Muito bem, ao diabo com ele, que fique aí. Vá ao
outro gabinete e traga aquele camarada que só tem um braço. Mas
não seja muito bruto com o homem. Se ele morrer onde vamos
achar outro para ser nossa testemunha?

Svintsov abriu a porta do gabinete ao lado e chamou o contador.
Timidamente Volkov atravessou o umbral. Assim que viu o
presidente caído no chão, por baixo da mesa, Volkov ficou
inteiramente verde e começou a tremer de pavor.

— Conhece esse homem? — O tenente apontou para o corpo
esparramado e imóvel no chão.
— Nunca o vi antes! — gritou Volkov, mordendo a língua de tanto
medo.
— O que quer dizer? — O tenente estava espantado. — Quem é
esse homem?
— O Presidente Golubev — balbuciou Volkov, encabulado pelo
absurdo de suas próprias respostas. — Mas eu só o vejo no trabalho,
e no que toca a relações pessoais nunca sequer conversamos.
— Nunca conversam, então? — O tenente olhou para Volkov com
imensa suspicacia. — Você quer dizer que o vê todos os dias e
nunca trocam uma só palavra?
— Nem uma palavra. . . Eu juro, nenhuma. Não sou membro do
Partido, é claro. . . Não recebi tanta instrução, nada sei sobre esse
tipo de coisa.
— Vamos ensinar-lhe a compreender — disse Svintsov, de onde se
achava.
— Embora uma vez ele me tenha dito que as obras de Marx e
Engels são de compreensão difícil para um operário. Ele disse que
se precisava de preparo político especial para ler.
— Então — disse o tenente. — É isso?
— É isso.
Svintsov lançou-se sobre Volkov e colocou seu imenso punho
cerrado, vermelho e cheio de sardas e marcas de nascimento, bem
em seu nariz.
— Pare de ficar calado ou lhe achato esse nariz. O tenente faz
perguntas como homem educado, você responde como homem
educado, seu porcaria.

Era impossível imaginar como tudo aquilo teria acabado se o
tenente não se tivesse lembrado de que viera ali não para interrogar
Volkov, mas com outro objetivo. Interrompendo as observações
grosseiras de Svintsov informou a Volkov que ele recebia a
distinção de ser a testemunha oficial na prisão do desertor
Tchônkin.

21


Os sete homens de cinzento seguiram em fila para a única rua larga
de Krásnoie. O oitavo homem era o contador Volkov, que ficava
para trás o mais que podia, olhando em volta cheio de pavor como
se contasse com um ataque repentino a qualquer instante.
Assim que os aldeões viram os homens chegando esconderam-se
nas cabanas e passaram a olhá-los com muito cuidado, por trás das
cortinas. Às crianças pararam de chorar, até os cachorros já não
latiam nos portões.
Formou-se silêncio como aquele que precede o amanhecer, quando
todos que se deitam tarde já foram para a cama e aqueles que
acordam cedo ainda não levantaram.

As pessoas olhando por trás das cortinas ficavam paralisadas
quando a fila se aproximava de sua cabana e soltavam um suspiro
de alívio quando ela passava. Mais uma vez prendiam a respiração
com medo e curiosidade — para onde iam? Para a casa de quem?
Quando os cinzentos passaram pela casa de Gladichev tornou-se
claro a todos que iam para a de Tchônkin; tinha de ser ele, só
restava aquela cabana, a última da aldeia.


— Pare! Quem vem lá? — surgiu a voz forte de Tchônkin,
sobressaltando a todos. Após o silêncio anterior a voz parecera tão
alta que toda a aldeia pudera ouvir.
— Amigo — bradou o tenente, sem parar de andar, e fez sinal aos
homens para que se adiantassem imediatamente.
— Parem ou atiro! — E Tchônkin fechou o ferrolho do fuzil.
— Não atire, você está preso! — gritou o tenente, abrindo o coldre
enquanto avançava.
— Parem ou atiro! — repetiu Tchôrikin e, adotando a posição
correta, disparou um tiro de advertência para o alto.
— Baixe as suas armas! — Em movimento rápido o tenente sacou a
pistola do coldre e, sem fazer mira, disparou na direção de
Tchônkin. Este mergulhou agilmente por baixo da fuselagem e saiu
se arrastando do outro lado do aeroplano. A bala perfurara o capo
do motor e se alojara lá dentro.
Tchônkin colocou o fuzil na extremidade da fuselagem próxima à
cauda e cuidadosamente ergueu a cabeça. Os cinzentos se
aproximavam. Todos, agora, haviam sacado as pistolas. Volkov, o
contador desarmado, ficava cada vez mais para trás, aumentando a
distância entre si e o tenente, e procurava esconder-se atrás das
costas largas de Svintsov. Sem perder um segundo Tchônkin fez
mira no peito do tenente e puxou o gatilho. Nesse momento exato,
todavia, alguém lhe cutucou o cotovelo, o que, por sua vez, salvou a
vida do tenente. A bala passou zunindo pela orelha dele.
— No chão! — gritou o tenente e foi abnegadamente o primeiro a se
jogar na lama.
Tchônkin estremeceu e voltou-se. Assustado pelo tiro Bor-ka, o
porco, fugira para um lado, mas agora voltara a se aproximar de
Tchônkin em expressão de amizade cautelosa.
— Xô! — Tchônkin ameaçou Borka com a coronha do fuzil, mas,
achando que Tchônkin brincava, Borka o acometeu e não foi fácil
fazê-lo sossegar. Embora os cinzentos continuassem lado a lado na

lama, em companhia do oficial comandante, podiam levantar-se a
qualquer momento e atacar.
O tenente foi o primeiro a se controlar.


— Ei, você! — descolando-se do chão ele levantou um tipo de papel
sobre a cabeça. — Você está preso. Aqui está a ordem para sua
prisão, assinada pelo procurador.
— 0 procurador assinou mesmo? — perguntou Tchônkin, um tanto
espantado.
— O que está pensando, que eu desejo enganá-lo? — disse o
tenente, ofendido não tanto por si como pela instituição a que
servia. — Não fazemos prisões sem a sanção do procurador.
— O procurador sabe qual é o meu nome?
— Mas é claro. Você não é Tchônkin?
— Sou eu. Quem mais? — E ele prorrompeu em risada, embaraçado
pelo fato de que pessoas tão importantes se afastassem das questões
importantes com que se ocupavam, de que houvessem se lembrado
de seu nome e o tivessem lançado em um documento oficial.
— E então, vai render-se? — perguntou o tenente. Tchônkin pensou
no assunto. De fato uma ordem era um
documento sério, mas os regulamentos não diziam se é possível
tirar uma sentinela do posto com uma ordem.
— Não posso, camarada tenente, não posso — explicou Tchônkin, a
voz cheia de compreensão. — É claro que compreendo, você tem
um trabalho a fazer. Mas se você fosse cabo da guarda, ou
comandante da guarda, ou mesmo oficial de serviço. . .
— Considere-me o seu oficial de serviço — concedeu o tenente.
— Não — disse Tchônkin. — Não há ninguém com sua cara em
nossa unidade. Eu conheço pessoalmente todos os oficiais
comandantes, costumava trabalhar no refeitório, entendeu? E você
também não está usando o uniforme certo.
— Muito bem — replicou o tenente com raiva. — Se você não quer
entregar-se por bem, vai entregar-se por mal.

Levantou-se cheio de decisão e começou a caminhar na direção de
Tchônkin, a pistola numa mão e na outra, sobre a cabeça, a ordem
de prisão. Seus homens também se levantaram e começaram a
avançar cuidadosamente, atrás do tenente. Vol-kov, o contador,
permaneceu onde se encontrava.

— Ei! Ei! — gritou Tchônkin. — É melhor ficarem onde estão. Vou
atirar! Estou em meu posto, sabia?
Tchônkin queria evitar de qualquer maneira o derramamento de
sangue, mas já não o atendiam. Compreendeu que as negociações
haviam terminado e mais uma vez passou o fuzil pela fuselagem.
Borka continuava a atrapalhá-lo, agarrando a bainha do seu
sobretudo com os dentes até que ele começasse a coçar-lhe o flanco
com a mão esquerda, repetindo sempre: "Bória-bor-bor-bor". Não
era fácil segurar o rifle com apenas uma das mãos, mas pelo menos
Borka já não atrapalhava. Ele se aquietara e estava deitado na lama,
as patas para cima. Como todos os porcos, adorava que lhe fizessem
festas.
— Tchônkin! — advertiu o tenente, ao se aproximar, brandindo a
ordem e a pistola. — Nem pense em atirar, vai ser pior para você.
Um tiro se fez ouvir; a bala perfurou a ordem no local exato em que
o procurador afixara seu selo e a assinatura.
Dessa feita, sem esperar que mandassem, os homens se jogaram ao
chão, imitados pelo tenente.

— Olhe, veja o que fez, seu cretino! — gritou o tenente, à beira das
lágrimas. — Você arruinou o documento assinado pelo procurador.
Atirou em um selo com o emblema da União Soviética! Vai pagar
por isso!
O tiro seguinte obrigou o tenente a mais uma vez enfiar o nariz na
lama. Procurando não levantar a cabeça o tenente voltou o rosto
para Svintsov.
— Svintsov, rasteje pela direita. Precisamos distraí-lo.

— Sim, senhor — respondeu Svintsov, erguendo um pouco as
costas. Nesse exato instante uma bala despachada por Tchônkin
ferrou essas costas como uma abelha raivosa.
Svintsov enfiou-se de novo na terra úmida e começou a gemer com
voz inumana.
— O que houve, Svintsov? — perguntou o tenente, preocupado. —
Está ferido?
— Ai, ai, ai! — uivava Svintsov, não pela dor, mas pelo medo de
que o ferimento fosse fatal.
Protegido pelo avião, Tchônkin mantinha vigilância sobre os
inimigos. Estavam todos deitados na lama e, com exceção do que
tinha cabelos vermelhos, não davam qualquer sinal de vida. Por trás
de todos eles estendia-se o contador Volkov, que se metera em toda
aquela embrulhada por puro acidente.
Tchônkin ouviu as passadas de alguém que vinha devagar, por trás.
— Quem é? — sobressaltou-se.
— Sou eu, Vânia. — Era a voz de Niúra.
— Ah, Niurka. — Tchônkin rejubilava-se. — Venha cá. Mas não
ponha a cabeça para fora, eles a matam. E com Borka um
pouquinho, sim?
Niúra acocorou-se ao lado de Borka e começou a coçá-lo atrás da
orelha.
— Pois é, você está vendo? — perguntou Tchônkin, com alguma
satisfação. — E você tinha medo.
— Mas o que vai acontecer agora? — perguntou Niúra.
— Agora? — Tchônkin não tirava os olhos dos homens que se
estendiam na lama. — Eles podem ficar ali até que alguém me
substitua.
— Mas o que vai acontecer se você tiver de ir à casinha?
— Se eu tiver que ir. . . — Tchônkin ficou pensativo e descobriu
imediatamente uma solução para a dificuldade. — Nesse caso você
pode montar guarda por alguns minutos.
— E se escurecer? — perguntou Niúra.

— Montaremos guarda quando estiver escuro.
— Seu grande tolo — suspirou Niúra. — Eles estão de cinzento,
nem dá para vê-los na lama. E quando escurecer você não poderá
ver coisa alguma.
— Lá vem você, chateando-me outra vez. — Tchônkin estava com
raiva de Niúra, demonstrando esse hábito singularmente humano
de extravasar sua raiva com as pessoas que lhe dizem a verdade
desagradável, como se ficar calado melhorasse a situação. Imerso
em pensamentos, Tchônkin começou a examinar todas as
alternativas possíveis. Finalmente encontrou a solução.
— Niurka — disse, mais animado. — Corra até a casa e traga a sua
bolsa de correio e um bom pedaço de corda, entendeu?
— Não — disse Niúra.
— Depois você vai ver por quê. Vá agora.
22


Pouco depois, os que o quisessem podiam ver o seguinte: Niúra
saiu de casa com um pedaço comprido de corda e sua bolsa de lona
de correio. Caminhou atrás dos homens estendidos na lama e fez
sinal a Tchônkin com a mão.

— Ei, você! — gritou Tchônkin, atrás do avião. — Niúra vai dar a
volta agora. Entreguem seus revólveres a ela. Se alguém resistir
dou-lhe um tiro no mesmo instante. Entenderam?
Ninguém respondeu. E como Niúra estava habituada, ao escamar o
peixe, a começar pela cabeça, foi em primeiro lugar ao tenente.
— Dê o fora daí, sua cadela, ou atiro em você — sibilou o tenente,
sem erguer a cabeça.
Niúra estacou.
— Vânia! — gritou.
— O quê?
— Ele está me xingando.
— Muito bem, fique de lado! — E Tchônkin mirou o tenente,
apertando o olho esquerdo.

— Ei, não atire! Eu só estava brincando! Tome minha pistola.
O tenente jogou a pistola por cima das costas, bastante alto no ar, de
modo que Tchônkin pudesse vê-la. A pistola caiu aos pés de Niúra,
esparramando lama. Ela retirou a lama da arma e colocou-a na
bolsa.
— Ei, você, o que está esperando? — Niúra foi até Svint-sov, que
parecia empenhado na tentativa de abraçar toda a terra.
— Não estou esperando nada, meu benzinho — disse Svintsov,
gemendo. — Está ali.
E realmente sua pistola Nagan estava longe do dono, em cima de
uma faixa seca do terreno. Niúra também jogou essa arma na bolsa.


— Ai — gemeu Svintsov. — Ai, não agüento.
— Você está ferido? — perguntou Niúra, preocupando-se.
— Isso mesmo, meu benzinho. Preciso de curativo. Estou
sangrando feito um porco. Tenho três filhos, quem vai cuidar deles?
— Já, já, assim que eu puder, é só ter um pouco de paciência —
prometeu Niúra e começou a apressar-se. Embora Svintsov, por
todos os títulos, nada fosse senão um animal, até um animal em
sofrimento desperta a piedade em uma pessoa normal.
A partir de então foi fácil. Os demais oponentes da força-tarefa,
seguindo o bom exemplo do oficial graduado, obedeceram sem
fazer perguntas e entregaram as armas. Não ofereceram resistência
alguma quando Niúra os amarrou, todos juntos, com um pedaço de
corda, do modo como os alpinistas se amarram antes de uma subida
difícil.
23


O dia de trabalho chegava ao fim. Não havia chegado notícia
alguma do pelotão despachado para capturar o desertor e o Capitão


Miliaga começava a ficar nervoso. Kapa, a secretária, estivera no
telefone por duas horas, perturbando as telefonistas, mas nenhuma
delas conseguia ligação com o telefone de Krásnoie.

— Alguma coisa? — Miliaga não parava de perguntar. Kapa dava
de ombros delicadamente, com ar de culpa,
como se fosse responsável por tudo aquilo, e mais uma vez
acionava a manivela do telefone.
Quando só faltavam dez minutos para o encerramento do trabalho
Kapa começou a arrumar o cabelo, sem saber se valeria a pena ou
não. Se o patrão a chamasse seu cabelo iria desarrumar-se, mas
provavelmente não a chamaria hoje, já que aqueles idiotas chefiados
por Filippov haviam conseguido perder-se em algum lugar e o
chefe não estaria em estado de espírito favorável a ela. Precisamente
às dezoito horas a campainha em sua janela tocou com estridência.
Kapa se controlou e, remexendo o traseiro um pouco mais do que
de costume, entrou no gabinete do capitão, desabrochando-se num
sorriso nada oficial ao vê-lo.
O capitão respondeu com um sorriso e a sugestão de que ela fizesse
um pequeno passeio até a aldeia de Krásnoie, já que ninguém mais
restava e não podia deixar a instituição naquele momento.
— Algum cavalo se perdeu por aqui, apanhe-o se quiser — disse o
capitão.
— Eu não sei andar a cavalo — explicou Kapa com timidez.
— Nesse caso vá correndo. Você é jovem, sete quilômetros não é
muita distância.
— De que está falando, Afanássi Petróvitch? — redarguiu Kapa,
magoada. — Como é que vou andar numa lama como aquela?
— Não tem nada de mais, calce as botas de borracha — explicou o
capitão. — Você só precisa ir para lá, volta depois no caminhão.
Além disso, aposto que você os encontra no meio do caminho.
Kapa quis levantar outras objeções, mas o capitão sorriu friamente
e, dirigindo-se a ela pelo sobrenome (sinal de irritação extrema),

tornou perfeitamente claro que embora ela fosse civil sua posição
numa instituição militar durante tempo de guerra a obrigava a
executar ordens sem fazer perguntas, à risca e no mesmo instante, e
ela assinara concordando com tudo ao ser contratada para aquele
lugar.
Os lábios trêmulos, Kapa disse:

— Sim, senhor! — e saiu correndo do gabinete. Partiu para casa
correndo a fim de apanhar as botas de borracha, e a caminho de lá
fez o mais terrível dos votos: que nenhuma discussão ou ameaça
(mesmo de ser despedida) poderia obrigá-la a deitar-se com aquele
homem sem coração naquele horroroso sofá amassado, rasgado e
sujo de tinta.
Não conseguiu, todavia, levar a cabo suas ordens. O marido, diretor
da usina local de leite, que desde muito desconfiava estar sendo
tapeado, saiu-se com um acesso de ciúme e trancou-a a chave no
depósito.
O sol se punha quando o Capitão Miliaga, ainda sem subordinados
e sem notícias de Kapa, passou a chave na porta da instituição que
lhe havia sido confiada, fechou-a com enorme cadeado, selou o
cavalo extraviado e partiu atrás do grupo desaparecido.
24


Pela estrada que secara ao final do dia o cavalo levava o Capitão
Miliaga com rapidez, aventurando-se no desconhecido. Às vezes,
por excesso de energia, irrompia em trote, mas o capitão o segurava,
desejando prolongar o prazer inesperado daquela cavalgada.
Miliaga sentia-se melhor. Olhava despreocupadamente para um
lado e outro, absorvia a visão do campo ao entardecer, notava como


tudo era muito especial. "Puxa", pensava. "Como a natureza é bonita
por aqui! Em que outro país se encontram tais pinheiros e bétulas?"
Miliaga jamais estivera em outro país, mas ainda assim, devido ao
patriotismo inato de que era possuidor, achava-se convicto de que
não avia vegetação digna de atenção em qualquer outra parte do
mundo. "Tão bela!", rejubilava-se, enchendo de ar os pulmões
saturados de fumaça. Seria de pensar que o teor de oxigênio era
mais alto ali do que no gabinete. Ultimamente, Miliaga estivera
passando noite e dia no gabinete, assim causando o maior dano
possível tanto a si próprio quanto à pátria. Na verdade nunca fora
muito zeloso. Sempre procurara a mediocridade, compreendendo
que era tão perigoso ser operário de choque na fre 'te invisível como
ficar atrás. Na vida dos que serviam a instituição existiam, às vezes,
momentos de aflição em que a legalidade triunfava. No decurso de
sua carreira Afanássi Miliaga passara duas vezes por esses
momentos desagradáveis. Em ambas as ocasiões todos, de cima até
embaixo, haviam sido tosados, mas em ambas as ocasiões Miliaga
conseguira sair inteiro e até progredir no serviço, passando de
supervisor maior a chefe da divisão distrital. Isso lhe permitia
encarar o futuro com otimismo reservado e esperança de que
conseguiria sobreviver ao próximo triunfo da legalidade.
Divertindo-se dessa maneira Miliaga não observou que

escurecia. Quando chegou a Krásnoie já era noite. Detendo-se na
primeira cabana o capitão ouviu que uma mulher repreendia
alguém por trás do portão.

— Borka, seu diabinho, você vem para casa ou quer que esquente
seu traseiro com minha vara?
Um grunhido alegre foi ouvido em resposta, e com base nele o
capitão, inclinado a analisar e comparar os fatos e coisas simples,
depreendeu que Borka não era um ser humano.
— Ei, menina — chamou o capitão na escuridão —, sabe onde estão
os nossos operários?
— Que operários?

— Você sabe — disse Miliaga, com timidez. Seguiu-se um momento
de silêncio atrás do portão e logo
a voz da mulher voltou, cautelosa:
— E quem pode ser você?
— Você sabe demais, você envelhece muito cedo — brincou o
capitão.
— Estão todos aqui, na cabana — disse a moça com indecisão,
depois de pensar um pouco.
— Posso entrar? — perguntou Miliaga.
A moça hesitou e mais uma vez respondeu sem convicção:
— Está bem.
O capitão saltou com agilidade para o chão, amarrou o cavalo na
cerca e passou pelo portão. A mulher, que era jovem (mesmo na
escuridão ele conseguira observá-la), chamou o Borka invisível de
parasita, abriu a porta e deixou o capitão entrar à frente.
Ele seguiu por um vestíbulo escuro, roçando em objetos que faziam
barulho, e depois tomou um corredor, a mão tateando pela parede.
— A porta é para a direita — disse a moça. Tateando até encontrar a
maçaneta, Miliaga entrou em
uma espécie de quarto e apertou os olhos — uma lamparina a óleo
ardia sobre a mesa. Após se ter acostumado um pouco àquela luz
Miliaga pôde distinguir todos os seus homens, sete ao todo. Cinco
estavam sentados em um banco na parede. O Tenente Filippov, a
face apoiada no punho, dormia no chão e o sétimo, Svintsov, estava
deitado numa cama, o traseiro para o ar, gemendo baixinho. Um
soldado de insígnia azul-clara estava sentado num banquinho no
meio do quarto, segurando um fuzil com a baioneta armada. Assim
que o soldado viu Miliaga entrar apontou a baioneta para ele.
— O que se passa aqui? — perguntou o capitão, com severidade.
— Pare com os gritos — ordenou o soldado. — Há um ferido
dormindo.
— E quem é você? — gritou Miliaga, a mão correndo para o coldre.

Nesse momento o soldado saltou do banco e encostou a baioneta no
estômago do capitão.
— Mãos para cima!
— Eu já lhe dou "mãos para cima". — O capitão sorriu, procurando
abrir o coldre.
— Enfio isto em você — avisou o soldado.
Examinando o olhar impiedoso do soldado o capitão compreendeu
que estava em apuros e ergueu vagarosamente as mãos.
— Niurka — disse o soldado à moça, ainda em pé à porta —, tire o
revólver dele e jogue-o na bolsa.
25
Diversos dias haviam decorrido desde que o departamento do
Capitão Miliaga tinha desaparecido, mas ninguém no distrito
parecia notá-lo. E afinal de contas não era uma agulha que sumira
no palheiro, mas uma instituição respeitada, que ocupava lugar
destacado entre outras instituições. Uma instituição sem a qual
quase não se podia dar um passo. E lá estava inteiramente sumido,
ninguém dava a isso a menor importância. As pessoas viviam,
trabalhavam, tinham filhos e morriam, e tudo isso sem
conhecimento dos órgãos competentes. As coisas seguiam por si
mesmas.
Ninguém sabe por quanto tempo essa situação vergonhosa podia
ter continuado se o primeiro-secretário da Comissão Distrital,
Camarada Revkin, não começasse pouco a pouco a perceber que de
algum jeito algo estava faltando no mundo ao redor. Tal sensação
singular fortaleceu-se pouco a pouco; veio cravar-se nele como um
espinho na carne e, aonde quer que fosse, Revkin pensava nisso —..
em seu gabinete na Comissão Distrital, na conferência de operários
destacados, na reunião do Soviete Distrital, mesmo em casa. Não
conseguindo chegar a qualquer compreensão do que sentia perdeu

o apetite, ficou perturbado e certa vez chegou a vestir as ceroulas
compridas por cima dos culotes de montaria e estava prestes a ir
trabalhar assim, mas Motia, seu motorista pessoal, soube impedi-lo
com muito tato.
E assim é que uma noite, quando Revkin estava na cama, olhando
para o teto, suspirando e fumando cigarro após cigarro, a esposa
Aglaia, deitada a seu lado, perguntou:
— O que se passa com você, Andrei?
Ele julgara que a esposa estava dormindo e a pergunta inesperada o
fez engasgar com a fumaça.
— O que quer dizer? — perguntou, pigarreando.
— Nos últimos dias você anda, não sei, nervoso: está com um
aspecto terrível, não come, e não pára de fumar. Algum problema
no trabalho?
— Não — disse ele. — Tudo está muito bem por lá.
— Você se sente bem?
— Perfeitamente.
Nenhum dos dois falou, por momentos.
— Andrei — voltou a esposa, perturbada —, conte-me, falando um
comunista com outro, você por acaso está com pensamentos
incorretos?
Revkin conhecera Aglaia mais de dez anos antes, quando ambos
ajudavam a executar a política de coletivização. Aglaia, na época
uma moça do Komsomol de vinte e cinco anos de idade e fogo nos
olhos, conquistara o coração de Revkin porque sabia passar dias e
noites inteiros na sela, seguindo loucamente pelo distrito, caçando e
desmascarando kulaks e destruidores. Seu jovem e forte coração
não tinha piedade pelos inimigos, que na época estavam sendo
despachados para a terra fria em grandes números. Nem sempre
compreendia a linha partidária humana, aquela que não permitia à
pessoa matá-los onde os encontrava. Agora dirigia o Lar Infantil.

Sua pergunta pôs Revkin pensativo. Ele apagou um cigarro e
acendeu outro.

— Sim, Glachka — confirmou, concluindo o pensamento. — Parece
que você tem razão. Estou realmente com pensamentos incorretos.
Recaíram em silêncio.
— Andrei — disse Aglaia baixinho e inexoravelmente —, se você
próprio tem esses pensamentos incorretos, nesse caso deve contar
tudo ao Partido.
— Sim, devia — concordou Andrei. — Mas o que vai acontecer ao
nosso filho? Afinal de contas ele só tem sete anos.
— Não se preocupe. Eu o criarei para ser um bom bolchevista. Ele
conseguirá até esquecer o seu nome.
Ajudou o marido a preparar as malas, mas recusou-se a passar o
resto da noite na mesma cama com ele, devido a considerações de
natureza ideológica.
De manhã, chegando a seu automóvel, Revkin ordenou que o
motorista Motia o levasse à instituição, pois se desacostumara de
caminhar e não conseguiria chegar lá a pé.
Para sua grande surpresa não havia nenhuma das Pessoas
Certas no Lugar Certo. Não se viam sentinelas, ninguém em serviço
e um cadeado enorme pendia do grande portão verde. Revkin bateu
à porta e no portão e tentou olhar pela janela do primeiro andar —
não via ninguém lá dentro.
Era estranho, pensava Revkin. Como era possível que não houvesse
ninguém trabalhando em uma instituição assim?


— Esse cadeado deve estar aí há uma semana — comentou Motia,
como a ler os pensamentos de Revkin. — Talvez tenham sido
despedidos.
— Despedidos, não, liquidados — corrigiu Revkin com severidade
e ordenou a Motia que o levasse à Comissão Distrital.
A caminho para lá Revkin achou que na verdade o desaparecimento
de instituição tão importante não podia ser explicado por coisa

alguma, exceto por liquidação. Mas se assim era, por que não fora
informado? De qualquer modo seria possível, ainda mais no tempo
de guerra, liquidar uma organização que ajuda o Estado a se
defender dos inimigos internos? E onde a explicação para tal
acontecimento, senão nas intrigas dos próprios inimigos que
haviam, de modo evidente, acelerado suas atividades?
Tendo se trancado no gabinete Revkin telefonou para o distrito
vizinho e, por meio de perguntas medidas e cautelosas, verificou
desse modo que a instituição continuava existindo e estava em
plena operação. Tal informação não lhe facilitou coisa alguma.
Agora a situação parecia ainda mais confusa, seria necessário iniciar
uma investigação imediata.
Revkin apanhou o telefone e pediu uma ligação para o Capitão
Miliaga.

— Ele não atende — disse a telefonista, e só então Revkin
compreendeu o absurdo total do telefonema que pedira. Isso
porque se Miliaga estivesse lá não haveria motivo algum para
chamá-lo. Por outro lado, todavia, quem mais podia sondar o
problema complexo do desaparecimento das Pessoas Certas, ainda
mais quando eram elas que deviam lidar com tais problemas?
Era necessário apresentar uma resolução, pensou o secretário, no
sentido de que fossem estabelecidas duas instituições em cada
distrito. A primeira executaria suas funções costumeiras e a
segunda ficaria de olho na primeira para não deixá-la desaparecer.
Revkin anotara essa idéia no calendário da mesa e logo outra lhe
ocorria: quem iria ficar de olho na segunda instituição? Isso
representava uma terceira a ser criada, e uma quarta para a terceira
e assim por diante, ad infinitum, e quem ficaria para fazer
qualquer outra coisa? Tudo se transformava num círculo vicioso.
Não havia tempo para a meditação prolongada, entretanto. A ação
se tornava necessária.
Revkin enviou o chofer Motia ao mercado a fim de descobrir o que
as mulheres velhas estavam comentando. Motia regressou pouco

depois e informou que as mulheres diziam que, ao que parecia, todo

o pessoal da instituição fora levado à aldeia de Krásnoie a fim de
prender algum desertor. Um fio fora descoberto para a meada. Mais
uma vez Revkin sentia-se engrenado com o mundo, e a sensação
estranha, aquele espinho na carne, desapareceu como se o
houvessem retirado com pinças.
Revkin chamou Krásnoie. O Presidente Golubev (que parecia ter
voltado ao mundo dos vivos) atendeu ao telefone.
À pergunta de Revkin referente ao paradeiro do grupo que fora a
Krásnoie, Golubev respondeu:
— Tchônkin e a pequena dele os prenderam.
É desnecessário dizer que a ligação estava horrível. Mostrava-se
difícil, ademais, imaginar que algum Tchônkin e uma pequena
houvessem prendido todos de uma vez e tudo ao mesmo tempo.
Isso era simplesmente impossível. E assim afigurou-se a Revkin que
Golubev dissera "pandilha dele" e não "pequena dele".
— E qual é o tamanho da pandilha? — indagou Revkin.
— Deixe-me ver. . . — Golubev hesitou, chamando à recordação a
imagem de Niúra. — . . .De bom tamanho, ao todo.
Revkin acabara de desligar e todo o distrito começou a formigar
com boatos dos mais pressagos. As pessoas diziam que a pandilha
de Tchônkin estava agindo naquela região, numerosa e bem
armada. No tocante à pessoa do próprio Tchônkin surgiram as
opiniões mais disparatadas. Alguns diziam que Tchônkin era um
criminoso que fugira da prisão com a pandilha. Outros afirmavam
que ele era um general branco que estivera morando na China até
recentemente e agora planejava atacar a União Soviética; reunia
tropas em grande número e todas as pessoas com raiva do poder
soviético acorriam para lhe engrossar as fileiras, vindas de todos os
cantos da terra.
Um terceiro grupo refutava as versões anteriores afirmando que,
tendo fugido dos alemães, Stálin se escondera sob o nome de
Tchônkin. Diziam que suas hordas eram exclusivamente formadas

por gente de nacionalidade georgiana, mas que essa mulher era
russa, vinda das hostes do povo comum. E adiantavam-se
afirmando que Stálin se indignara sobremodo ao observar o que se
passava no distrito e que estava chamando todos os chefes e
castigando-os com severidade por destruidores e sabotadores. De
modo especial ele prendera todo o pessoal da instituição, com o
Capitão Miliaga à frente, e ordenara que fossem fuzilados no
mesmo instante.
Tsilia Stálin levou essa notícia para casa, ao sair de uma fila onde
estivera esperando que lhe vendessem querosene.

— Moiche, já soube da notícia? — disse ao marido, sentado à janela,
batendo pregos na sola de um sapato. — As pessoas estão dizendo
que um certo Tchônkin atiro "de gói seu conhecido. . .
— Xim, ouvi — disse Solomónovitch, tendo anu
os pregos da boca. — Ele era um moxo interexante e xnuo muita
pena dele.
Tsilia foi acender o fogão de querosene, mas voltou no mesmo
instante.
— Moiche — disse, cheia de emoção —, você ia que esse Tchônkin é
judeu?
Moissiei Solomónovitch pôs de lado o martelinho.
— Xônkin? — repetiu com surpresa. — A mim parexe um nome
xudeu.
— Tchônkin? — Tsilia olhou para o marido como se ele fosse um
idiota.
— Ora essa! O que está dizendo? Nesse caso, o que me diz de
Revkin e Zuzkin?
Voltando ao fogão de querosene ela não parava de repetir o nome
de Tchônkin, de diversos modos, sacudindo a cabeça grisalha cheia
de dúvidas.
A fim de neutralizar de algum modo esses boatos nefastos o jornal
local, Tempos Bolchevistas, apresentou uma série de artigos em uma
seção do jornal intitulada Informação Divertida. Por exemplo,

publicaram uma história sobre um tritão que havia sido congelado
por cinco mil anos e revivera depois de ser aquecido; e outra sobre
um certo artesão popular muito hábil, metalúrgico da cidade de
Tcheboksara, que escrevera todo o texto do artigo de Gorki, "Em
que lado estais, mestre de cultura?", em um grão de trigo. Mas como
os boatos continuavam a circular, o jornal, no esforço por dirigir a
atenção do povo, começou a publicar um debate em suas páginas,
sob o título geral de "As regras de etiqueta — necessárias ou não?"
No primeiro artigo a surgir nessa seção, Neujelev, leitor da
Comissão Distrital, escreveu que a vitória da Revolução de
Outubro, de significado histórico de âmbito mundial, não apenas
levara os povos de nosso país ilimitado à libertação quanto ao
domínio dos capitalistas e latifundiários como negara os antigos
padrões éticos e morais e os substituíra por outros que refletiam as
transformações radicais ocorridas nas relações sociais. Os novos
padrões distinguiam-se primordialmente por sua clara atitude no
tocante às classes. A sociedade do socialismo vitorioso, afirmava ele,
não aceita as regras burguesas de etiqueta que têm o laivo da
exploração. Expressões como "senhor", "seu humilde criado", e
assim por diante, desapareceram para sempre. A palavra
"camarada", com que nos dirigimos uns aos outros, não apenas dá
testemunho da igualdade entre os variados grupos da população,
mas da igualdade entre homens e mulheres também. Ao mesmo
tempo rejeitamos qualquer manifestação de niilismo na esfera das
relações dos trabalhadores. Neujelev sustentava que a despeito dos
novos princípios certos padrões tradicionais de comportamento
deviam ser preservados mesmo em nossa sociedade socialista.
Como exemplo, no tocante aos transportes públicos (que, por falar
nisso, jamais haviam existido em Dolgov), devia-se dar o lugar aos
inválidos, às pessoas avançadas em idade, mulheres grávidas e
mulheres com crianças. Um homem devia cumprimentar antes uma
mulher, mas não devia ser o primeiro a lhe estender a mão para
apertar; devia deixar que a mulher entrasse antes no aposento e


devia descobrir a cabeça quando entrava em algum lugar. Não era
obrigatório, naturalmente, beijar a mão de uma dama, mas era
necessário demonstrar cortesia e sensibilidade aos vizinhos e aos
camaradas no trabalho. Neste particular tais vestígios do passado
como a grosseria social e a linguagem baixa eram inteiramente
intoleráveis. Tocar instrumentos musicais após as onze horas
também se mostrava inadmissível. Tendo citado diversos exemplos
negativos o autor concluía o artigo dizendo que a cortesia mútua
era o alicerce da atitude sadia da qual, em análise final, dependia
nossa produtividade de trabalho. E como a vitória na frente de luta
dependia de nosso trabalho na retaguarda, a conclusão inevitável se
apresentava por si.
O seu artigo causou forte impressão em bom número de pessoas.

Por falar no assunto, dois cidadãos destacados residiam na cidade
de Dolgov nessa época. Anos haviam-se passado desde que alguém
se lembrara dos seus nomes, suas patentes ou dos cargos que
ocupavam. Os antigos diziam que os dois eram criaturas um tanto
excêntricas que, usando chapéus de palha no verão e chapéus altos,
de pele de ovelha, no inverno, encontravam-se na Praça da
Coletivização, passeavam tranqüilamente pela Rua do Correio para

o mercado do kolkhoz e voltavam. Durante essas caminhadas eles
não paravam de olhar para trás, sobre os ombros, enquanto
conversavam em murmúrios sobre os temas mais atualizados. O
fato de se encontrarem em Dolgov, no ápice das operações militares,
e não no Exército, no campo de batalha, levava as pessoas a supor
que os dois não estavam em idade recrutável.
Na noite do dia em que o jornal apresentara o artigo de Neuzhelev
esses dois pensadores se achavam como de costume na praça e se
cumprimentaram, levando as mãos aos chapéus.

— E então, o que tem a dizer sobre tudo isso? — perguntou o
Primeiro Pensador logo de início e imediatamente voltou a cabeça

para a direita, esquerda, para trás e logo para a esquerda e direita,
para ter certeza de que ninguém os acompanhava e ouvia.
O Segundo Pensador nem mesmo lhe perguntou o que queria dizer.
Como se comunicavam constantemente bastava-lhes a mais leve
alusão para que se compreendessem. O Segundo Pensador também
executou o ato quase habitual de virar a cabeça para os lados e para
trás, e depois disse:

— Ora, esqueça! Eles têm de encher o espaço do jornal com alguma
coisa. . .
— É a sua opinião? — voltou o Primeiro Pensador, semicerrando os
olhos. — Eles não têm outro assunto para apresentar, é assim? Os
alemães tomaram os Estados bálticos, a Bielo-Rússia, a Ucrânia e
estão agora em frente a Moscou, para não falar na confusão total no
distrito. A colheita não foi feita, o gado não foi alimentado, aquela
pandilha de Tchônkin está por aí à solta, e o jornal do distrito nada
faz senão escrever sobre os bons modos?
— Esqueça — repetiu o Segundo Pensador. — Um dos leitores tem
uma idéia. . .
— É exatamente aí que você se engana! — berrou o Primeiro
Pensador, cheio de alegria. Era sua frase suprema; em todas as
discussões com o amigo ele esperava, o coração palpitando, por um
momento assim para dizer: "É exatamente aí que você se engana!"
— Não estou enganado em coisa alguma — resmungou com
desagrado o Segundo Pensador.
— Eu lhe asseguro que está enganado. Creia em mim, eu conheço o
sistema. Ninguém tem qualquer idéia sem ordens vindas de cima.
Aqui tudo é ao mesmo tempo mais complicado e mais simples. Eles
finalmente compreenderam — o Primeiro Pensador girou a cabeça
em volta e depois baixou a voz — que sem o regresso aos valores
antigos perderemos a guerra.
— Porque não estamos beijando as mãos das damas?

— Sim, exatamente! — exclamou o Primeiro Pensador. —
Precisamente por esse motivo. Você não compreende essas coisas
elementares. Isso não é uma guerra entre dois sistemas, mas entre
duas civilizações. A que se revelar superior sobreviverá.

— Calma aí! — O Segundo Pensador espalhou as mãos, detendo o
outro. — Isso é ir longe demais. Em certa época os hunos. . .
— Para que está trazendo os hunos à conversa? Lembre-se de
Alexandre, o Grande!
E por ali seguiram. Os hunos, Alexandre, o Grande, a guerra com os
filisteus, as Cruzadas, a travessia dos Alpes, a Batalha da Maratona,
a tomada de Ismaília, o rompimento da Linha Maginot. . .
— Você não compreende! — O Primeiro Pensador começou a
bracejar em volta. — Existe grande diferença entre Verdun e
Austerlitz.
— Para que está arrastando a sua Austerlitz para cá? Tome
Trafalgar.
— Tome você.
Desse modo iam discutindo horas seguidas, sacudindo os braços,
parando, baixando os braços, voltando a erguer as vozes enquanto
seguiam da praça para o mercado e do mercado para a praça. Não
chegavam a qualquer conclusão ou acordo, mas ainda assim
respiravam o ar puro, e todos sabem que o ar puro tem grande valor
para o corpo. Separando-se muito depois da meia-noite nenhum
deles conseguiria dormir por algum tempo, cada qual recordando
os detalhes da conversa, e cada qual pensando, enquanto isso: "Já
sei o que vou lhe dizer amanhã. . . "
O artigo sobre bons modos também causara impressão vigorosa
sobre outros moradores da cidade. Num artigo polêmico intitulado
"E por que não?" uma antiga mestra-escola, embora atribuísse à
interpretação de classes o que lhe era devido, ainda assim
sustentava que as mãos das damas não só podiam ser beijadas,
como deviam ser. "É belo, elegante e cavalheiresco", afirmava. E o

cavalheirismo, em suas palavras, constituía um traço inato do
homem soviético. Recebeu resposta na réplica mordaz escrita pelo
distinto magarefe Terenti Knich, intitulada "Olhem só o que eles
querem agora!" Que motivo existia, perguntava ele, para que um
trabalhador beijasse a mão de alguma dama? E se essa mão não
houvesse sido lavada ou, o que era pior, tivesse cascas de ferida?
"Para mim basta, sinto muito", escrevia Knich. "Vou falar
francamente, como um trabalhador. . . se não tiver um certificado
médico não beijo sua mão." O poeta local Serafim Butilko
manifestou seus sentimentos num longo poema intitulado "Eu vejo

o comunismo claramente a distância" que, falando-se no assunto,
não apresentava qualquer relação direta com o tema em debate.
Ao resumir esse debate o jornal agradeceu a todos que haviam
participado, repreendeu a mestra-escola e Knich por seus
extremismos e finalmente concluiu que a própria existência de
pontos de vista divergentes sobre a questão examinada dava
testemunho da seriedade e oportunidade da questão levantada por
Neuzhelev, e que essa questão não devia ser posta de lado: sua
solução não seria uma questão simples.

Enquanto o jornal distraía o populacho, os chefes distritais faziam
uma seleção entre todas as histórias mais prováveis para chegarem
à conclusão de que muito provavelmente Tchônkin era o
comandante dos pára-quedistas alemães que haviam pulado sobre o
distrito a fim de perturbarem o trabalho da retaguarda e
prepararem o terreno para um ataque armado nesse setor.
Sem saber como agir, as autoridades distritais correram às
autoridades provinciais e estas, por sua vez, recorreram às
autoridades militares. Uma unidade de infantaria foi desviada de
um escalão a caminho da frente de guerra e mandada à campanha
para liquidar a pandilha de Tchônkin (o "chamado Tchônkin", como
diziam agora os documentos secretos).


Já entardecia quando, observando todas as regras de camuflagem, o


regimento chegou à aldeia de Krásnoie e a cercou.
Dois batalhões bloquearam ambas as extremidades da estrada, e o
terceiro entrincheirou-se ao longo das hortas (havia uma barreira
natural no quarto lado, o rio Tiopa).
Dois batedores foram mandados à frente para reconhecerem o
terreno.


26


Para Tchônkin não fora muito complicado prender todo o quadro
da instituição distrital. As dificuldades reais surgiram depois. Todos
sabem que as pessoas têm o hábito de dormir de vez em quando, e
durante esse tempo perdem a percepção, sendo que qualquer um
pode tirar vantagem.
Niúra começou a substituir Tchônkin, mas isso não era muito fácil,
já que não tinha quem a substituísse em suas obrigações como
agente postal e era preciso, ademais, cuidar da casa.
Por cima de tudo isso verificou-se que os trabalhadores da
instituição, como seres mortais comuns, tinham de atender ao
chamamento da natureza diversas vezes por dia. Por algum motivo
não acontecia que mais de um deles tivesse de atender a esse
chamamento de cada vez. Isso não constituía problema quando
Niúra se achava presente. Enquanto Tchônkin escoltava o
prisioneiro seguinte que precisava ir, Niúra guardava os demais.
Mas quando Niúra não se achava presente, ou quando dormiam, os
outros podiam fugir, embora estivessem com as mãos amarradas.
De início Tchônkin os levava juntos, todos de uma vez, mas logo se
saiu com outro método. Encontrou uma velha coleira de cachorro
na tulha e passou-lhe uma corda forte. O problema fora concludente


e irrevogavelmente solucionado. Se alguém tinha de ir era preciso
colocar antes a coleira e depois estava livre para caminhar dentro
dos limites determinados pelo comprimento da corda. A casinhola
de inverno achava-se no curral coberto, ligado à cabana principal
por pequeno corredor estreito. (Mais tarde as testemunhas
prestariam seu depoimento afirmando que a qualquer momento
que olhassem pela janela poderiam vê-lo — Tchônkin sentado num
banquinho perto da porta entreaberta, segurando o fuzil com uma
das mãos e tendo na outra um pedaço de corda enrolando no pulso
e se retesando na direção da outra extremidade.)
Surgia agora a maior dificuldade. A reduzida quantidade de
alimentos de Niúra estava acabando. Verificou-se que os
trabalhadores da instituição tinham tanto apetite quanto qualquer
grupo social. De início Niúra sustentou com coragem todos os
encargos e privações do serviço militar, mas chegou a um ponto em
que não podia agüentar.
Voltara para casa à hora de costume. O sol se punha, mas a noite
ainda estava distante. Como de hábito Tchônkin se achava sentado
no banquinho à porta, encostado na maçaneta e com os pés
separados, o fuzil nas mãos. Os prisioneiros se haviam arrumado
em seu lugar ao canto. Três deles estavam ao chão jogando uma
partida furiosa de cartas, um quarto esperava a vez para ir à
casinha, dois dormiam, cada qual usando parte da velha jaqueta de
edredom de Niúra como travesseiro, e o sétimo prisioneiro estava
no banco, olhando pensativamente pela janela e vendo o rio, a
floresta, a liberdade.
Com exceção de Tchônkin ninguém prestou a menor atenção a
Niúra. O próprio Tchônkin nada lhe disse, apenas ergueu a cabeça e
lançou-lhe um olhar prolongado, cheio de solidariedade. Sem dizer
uma palavra ela jogou a bolsa porta adentro e passou sobre as
pernas estendidas de Tchônkin. Enfiando a cabeça no fogão ela
tirou de lá a panela de ferro fundido, que continha o grande total de
uma batata cozida, com casca. Niúra revirou a batata na mão, jogou



a ao canto e prorrompeu em lágrimas. Também isso não pareceu
causar surpresa a ninguém. Apenas o Capitão Miliaga, que estava
de costas para Niúra e sem querer voltar-se, perguntou a Svintsov:
— O que se passa ali?
— A mulher está chorando — explicou Svintsov, e ao fitá-la sua
expressão deixava transparecer algo semelhante a compreensão.
— E por que ela chora?
— Ela está com fome — disse Svintsov, sombrio. »ó
— Não há perigo, logo estaremos dando de comer a ela ..—
prometeu o capitão, jogando o valete de ouros.
— Com certeza. — Svintsov jogou as suas cartas e partiu para o
canto.
— O que há com você? — perguntou o capitão, surpreso.
— Chega — disse Svintsov. — Estou farto de cartas.
Espalhou o sobretudo no chão, deitou-se de costas e se pôs a fitar o
teto. Recentemente uma espécie de sentimentos vagos havia
começado a se agitar no tolo espírito de Svintsov, causando-lhe
opressão e alarma.
Tais sentimentos geralmente recebem o nome de dores da
consciência, mas Svintsov, que jamais sentira qualquer coisa
parecida antes, não conseguia identificá-los. (Svintsov antes se
relacionava às pessoas como se estas fossem árvores — se lhe
mandassem cortá-las, ele as cortava; se não lhe mandassem cortá-las
ele não lhes punha a mão.) Mas certa feita, recentemente, tendo
acordado no meio da noite, começara de súbito a pensar em si:
santo Deus, como acontecera que ele, Svintsov, um mujique simples
e gentil, se tornasse um assassino? Se Svintsov houvesse recebido
melhor instrução teria descoberto a explicação de sua vida na
necessidade histórica, mas era homem ignorante e sua consciência,

uma vez desperta, recusava-se a voltar ao sono. Ela o mordia e não
lhe dava paz.
Svintsov deitou-se ao canto e fitou o teto enquanto os camaradas
continuavam a falar sobre Niúra. Edrenkov disse:


— Talvez esteja com medo de que nós a torturemos, quando
sairmos disso.
— Pode ser — disse o Capitão Miliaga. — Mas ela está errada em
não acreditar que sejamos humanos. Não usamos métodos especiais
com as mulheres. Isto é, com as mulheres — aduziu, depois de
pensar um pouco — que não persistem em seus erros.
— Sim — disse Edrenkov. — Eu me sinto mal por essa mulher. Se
ela não for para o pelotão de fuzilamento vai ter de servir pelo
menos dez anos. E é duro para as mulheres, lá nos campos. Ficam
com o chefe, são dadas ao supervisor. . .
— Eu já lhe dou uma coisa, já, já, a cabeça quebrada com esta
panela! — disse Niúra com fúria, apanhando a panela de ferro
fundido.
, — Ei, calma aí! — disse o Tenente Filippov, afogueado. ,n-Soldado
Tchônkin, ordene a ela que ponha a panela no devido lugar. A
Convenção de Genebra determina o tratamento humano dos
prisioneiros de guerra.
O tenente era um grande advogado e não parava de atormentar
Tchônkin com essa convenção, de acordo com a qual, ao que
parecia, era preciso dar aos prisioneiros muita comida, bebida,
roupa e tratá-los com cortesia. Tchônkin teria ficado muito satisfeito
em viver assim, mas não sabia como fazer para receber tratamento
do tipo genebrino.
— Deixe para lá, Niurka, não se misture com eles — pediu. —
Sua panela vai quebrar, só isso. Segure aqui. Volto
logo.
Entregou a Niúra o fuzil e saiu correndo para o vestíbulo.
Regressou de lá com um copo de leite e um pedaço de biscoito


negro e quebradiço que preparara especialmente para Niúra,
usando os cereais destinados a Borka.
Niúra levou o biscoito aos dentes, mas as lágrimas corriam por suas
faces e caíam no leite.
Tchônkin fitou-a com piedade, compreendendo que precisava fazer
algo. Não bastava que ela o sustentasse, agora ele a sobrecarregara
com toda aquela gente. Talvez ela se fartasse de todos e os pusesse
para fora a pontapés. Mas para onde ele iria com eles, nesse caso?
Assim que os prendera, Tchônkin imaginara que em algum lugar
alguma figura mais destacada perceberia o fato. Se eram capazes de
esquecer um soldado seria de imaginar que o desaparecimento de
toda uma organização distrital causaria efeito em alguém, que eles
tentariam descobrir como uma coisa assim havia acontecido. Mas
não, um dia transcorria após outro e tudo permanecia tão tranqüilo
e sossegado como se nada houvesse ocorrido em parte alguma. O
Tempos Bolchevistas, além dos acontecimentos mundiais no
resumo do Sovinsformbureau, publicava toda espécie de besteiras,
mas não dizia coisa alguma sobre o desaparecimento da instituição.
Isso levava Tchônkin a concluir que as pessoas observam o que está
bem diante dos olhos, mas o que não se achar ali passa
despercebido.

— Niurka — disse Ivan, decidido. — Você fica vigiando um pouco.
Eu voltarei logo.
— Aonde vai? — perguntou Niúra, surpresa.
— Depois você verá.
Tchônkin alisou a gandola até o cinturão, limpou as botas com um
trapo e saiu. No vestíbulo, apanhou uma garrafa de oitocentos
gramas e seguiu diretamente para a casa de Vovó Dúnia.

27


Sentado em seu gabinete o Presidente Golubev examinava
documentos oficiais, em seu estado comum de abatimento. O sol se
punha. Cavalos, árvores, cercas, pessoas e cachorros lançavam
sombras compridas no chão, estimulando os pensamentos
melancólicos e o desejo de beber. Ele não tomara um só gole desde o
dia em que fora ao centro distrital e solicitara que o enviassem à
frente de batalha. Por boa hora tentara provar à doutora ruiva que
ter os pés chatos não era motivo bastante para ser obrigado a ficar
ocasionalmente na retaguarda. Erguera a voz com ela, tentara a
lisonja e tentara até seduzi-la sem, entretanto, maior entusiasmo. No
final ela começara a ceder, mas quando passou os dedos compridos
e finos em suas costelas ficou horrorizada, levando as mãos à
cabeça.

— Meu Deus! — disse. — O seu fígado é duas vezes maior do que o
normal. Você bebe?
— De vez em quando — disse Golubev, evitando-lhe o olhar.
— Devia parar — afirmou ela taxativamente. — E alguém pode ter
uma atitude tão descuidada para com a própria saúde?
— Absolutamente não — concordou Golubev.
— É simplesmente bárbaro! — prosseguiu ela.
— Sim, é mesmo — afirmou Golubev. — Vou parar hoje.
— Muito bem, então. — Ela afrouxara. — Dentro de duas semanas
pode voltar à junta e se a Comissão Distrital não se opuser você
poderá servir.
Após sua conversa Golubev partiu para casa. Como de costume, o
cavalo parou em frente à casa de chá, mas Golubev o tocou com as
pontas das rédeas e prosseguiu. No último dia e meio não tomara
uma só gota. "Sim", pensava com alguma

satisfação, olhando pela janela, "ainda tenho força de vontade."
Nesse exato instante Tchônkin apareceu no campo visual do
presidente. Atravessava a praça na direção do gabinete, trazendo
um certo objeto aerodinâmico que o olhar experiente de Ivan
Timofêievitch reconheceu de imediato. Uma garrafa. Ele engoliu a
saliva e parou de respirar. Tchônkin estava agora no gabinete, as
botas fazendo ruído sobre os degraus. O presidente arrumou os
papéis sobre a mesa e assumiu uma expressão oficial. Bateram à
porta.

— Sim — disse o presidente e estendeu a mão para pegar um
cigarro.
Tchônkin entrou, disse alô e parou à porta equilibrándose ora num
pé ora noutro.
— Entre, Vânia — convidou o presidente, sem despregar os olhos
da garrafa. — Entre, sente-se.
Tchônkin caminhou sem maior segurança até a mesa e sentou-se na
beira da cadeira que rangia.
— Vamos, Vânia, não seja tímido — incentivou o presidente. —
Sente-se direito, Vânia, ponha toda a bunda na cadeira.
— Estamos bem assim.
Referindo-se a si próprio como "nós", cheio de confusão, Tchônkin
passava a mão naquela parte da anatomia à qual o presidente se
referira com tamanha delicadeza. Mesmo assim não se atrevia a
sentar-se melhor.
Seguiu-se um silêncio prolongado e penoso. Golubev fitava o
visitante com grande expectativa, mas era de crer que o gato
houvesse comido a língua de Tchônkin. Este finalmente se
controlou e começou:
— Escute, a coisa é a seguinte. . . — e se esforçava tanto que ficou
rubro, depois silencioso, sem saber o que diria em seguida.
— Entendo — disse o presidente, sem esperar que Tchônkin
prosseguisse. — Vânia, não fique nervoso, é só dizer por que veio.

Quer fumar? — O presidente empurrou um maço de cigarros
Kazbek (não estivera fumando Delhi por algum tempo) na direção
de Tchônkin.

— Não — disse este, mas serviu-se assim mesmo de um cigarro. Em
seguida acendeu o filtro, em vez de acender a ponta oposta, jogou o
cigarro ao chão e esmagou-o com o calcanhar.
— Escute, o negócio é o seguinte. . . — recomeçou e logo, com
indecisão repentina, colocou a garrafa diante de Golubev. — Quer
beber?
O presidente olhou para a garrafa, passou a língua nos lábios e logo
lançou um olhar desconfiadíssimo a Tchônkin.
— Você está fazendo isso por amizade ou como suborno?
— Como suborno — confirmou Tchônkin.
— Nesse caso, não. — Ivan Timofêievitch arredou cuidadosamente
de si a garrafa, empurrando-a na direção de Tchônkin.
— Se é não, então é não — concordou Tchônkin prontamente e
apanhou a garrafa, pondo-se de pé.
— Calma aí — disse o presidente, começando a ficar inquieto. —
Por que não dizemos que você tem um problema que pode ser
solucionado pelos trâmites normais? Então poderemos beber por
amizade e não porque haja um suborno. O que você acha?
Tchônkin recolocou a garrafa sobre a mesa e empurrou-a na direção
do presidente.
— Beba — disse.
— E você?
— Você serve, eu bebo.
Meia hora depois, operada uma redução drástica no teor da garrafa,
Golubev e Tchônkin já eram amigos do peito. Ali estavam sentados,
fumando cigarros Kazbek, enquanto o presidente se queixava da
vida:
— Antes, Vânia, era duro — disse. — Mas agora está pior que
nunca. Eles levaram os homens para a frente. Só ficaram as
mulheres. É claro que as mulheres são uma grande força, ainda

mais num sistema como o nosso, mas levaram meu malheiro para a
frente e que mulher pode levantar um malho enorme como aquele?
Estou falando de mulheres sadias, mas não há uma só mulher sadia
na aldeia. Uma está grávida, a outra amamentando, outra põe a
mão nas costas, faça sol ou faça chuva, e me diz: "Este tempo me
mata". Os de cima não fazem idéia daquilo por que passamos. Tudo
para a frente, tudo pela vitória, é o que estão exigindo agora. Eles
vêm, me amaldiçoam, telefonam para mim, amaldiçoam de novo.
Boríssov me amaldiçoa, Revkin me amaldiçoa, minha mãe é isto,
minha mãe é aquilo. A Comissão Regional me chama e declara que
não pode dizer uma palavra sem xingar, também. Por isso eu lhe
pergunto, Vânia, como é que posso continuar assim? É por esse
motivo que estou pedindo que me mandem para a frente, ou
mesmo para a prisão, ou mesmo para a boca do Diabo, qualquer
coisa para me livrar deste kolkhoz. Que outro fique com o lugar,
para mim chega. Mas para dizer a verdade, Vânia, eu realmente
quero encerrar pondo as coisas no lugar por aqui, de modo que
alguém se lembre de mim com um pouco de bondade. Mas não é
assim que o negócio está saindo.
Desalentado, o presidente sacudiu a cabeça e entornou meio copo
de mistura caseira em um só gole. A conversa chegara agora ao
ponto mais vantajoso para Tchônkin e ele não podia perder a
oportunidade.

— Se as coisas estão tão difíceis para você — disse, em tom casual
—, posso ajudá-lo.
— Como você vai me ajudar? — perguntou Golubev, com aceno
negativo da mão.
— Posso, sim — insistiu Tchônkin, enchendo os copos. — Aqui,
tome, molhe por dentro. Se você quiser, amanhã cedo eu trago os
prisioneiros para o campo e eles podem cavoucar todo o kolkhoz
para você.

O presidente estremeceu. Empurrou o copo para Tchônkin e depois
arredou a mesa. Sacudiu a cabeça e se pôs a olhar Tchônkin
prolongadamente, sem piscar. Tchônkin sorriu.

— O quê? — disse Golubev, o medo dando saltos na voz. — Onde
você arranjou essa idéia?
— Você resolve — Tchônkin deu de ombros. — Eu só quero ajudálo.
Você devia olhar a cara deles; é só fazê-los trabalhar direito e eles
removem montanhas.
— Não, Vânia — disse o presidente com tristeza. — Não posso
fazer isso. Vou lhe dizer uma coisa: como comunista, tenho medo
deles.
— Meu Deus, por que ter medo deles? — Tchônkin ergueu as mãos
em desalento. — É só me dar um campo liso para eu poder vê-los
todos ao mesmo tempo e montar guarda. Se você não quer essa
gente, posso ir a outro kolkhoz com eles. Qualquer um os aceitaria
agora e agradeceria, ainda por cima. Você sabe, não estou pedindo a
você qualquer dia de trabalho, só três refeições por dia, é tudo.
Vencido o medo inicial Golubev se punha pensativo. De um modo
geral era uma proposta tentadora, mas ainda assim o presidente
vacilava.
— Os clássicos do marxismo — disse com incerteza — afirmam que
não existe grande proveito a ser extraído do trabalho escravo. Mas
para dizer a verdade, Vânia, não estamos em posição de dar as
costas a um pouco de proveito, por menor que seja. Continuemos
bebendo.
Mais tarde Tchônkin deixava o presidente em leve balanço causado
pela bebida e por seu excelente estado de espírito. No bolso da
esquerda da gandola tinha um pedaço de papel no qual o
presidente escrevera, com caligrafia alcoolizada e desigual: "Ao
chefe-de-brigada Camarada Chikalov: a turma do Camarada
Tchônkin deve ser posta em trabalho temporário. Registre-os como
voluntários". Havia também outro pedaço de papel no mesmo bolso

— instruções para que a equipe de Tchônkin recebesse uma semana
de mantimentos antecipadamente.
28


Acordando na manhã seguinte com a cabeça dolorida, Ivan
Timofêievitch Golubev recordava-se vagamente de detalhes
isolados daquilo que acontecera na noite anterior, mas não
conseguia convencer-se a acreditar naquilo. "Não pode ser", dizia a
si próprio. "Sou um homem condenado, é claro, mas ainda assim
não poderia fazer uma coisa dessas. Deve ter sido só um sonho ou
alguma coisa que imaginei quando estava de cara cheia."

O que quer que fosse, todavia, Golubev não foi trabalhar. Declarou-
se doente e mandou a esposa ao gabinete para descobrir o que se
passava por lá. Logo a esposa regressava e trazia o recado de
Chikalov, de que tudo corria de acordo com o plano e que a turma
de Tchônkin recebera a linha de frente do trabalho. Por dentro o
presidente gemeu, mas o recado lhe veio de tal modo que tudo lhe
pareceu inteiramente normal (e por que não?). Finalmente acalmou-
se um pouco, vestiu-se, fez a refeição matinal, foi para o estábulo,
apanhou um cavalo e partiu para olhar o que se passava. A turma
de Tchônkin (agora até o presidente começava a chamá-la assim)
trabalhava com todos os homens no grande batatal. Quatro deles
tiravam as batatas, dois enchiam os sacos e os dois outros (o Capitão
Mili aga e o Tenente Filippov) arrastavam os sacos até a estrada.
Com o fuzil nos joelhos Tchônkin se achava calmamente sentado
numa antiga e abandonada máquina semeadora e vigiava-os
preguiçosamente enquanto trabalhavam, sacudindo a cabeça de vez
em quando para não adormecer.


Ao ver o presidente, Tchônkin acenou amistosamente. Porém, Ivan
Timofêievitch passou em frente como se não houvesse observado
coisa alguma.

29


O trabalho enobrece o homem, mas depende de quem. Os
prisioneiros de Tchônkin receberam seu novo destino de maneiras
variadas. Alguns ficaram indiferentes, calculando que trabalho era
trabalho. Alguns estavam até satisfeitos — era melhor passar o
tempo no campo aberto do que numa cabana abafada e cheia de
bichinhos. O Tenente Filippov suportava com firmeza suas
privações, mas lutava contra as violações das leis internacionais
cometidas por Tchônkin, referentes ao trata-j mento dos prisioneiros
de guerra (os oficiais comandantes, in-l sistira o tenente, não devem
ser usados em trabalho braçal).
A mudança de situação causara o mais inesperado dos efeitos em
Svintsov. Caindo com sofreguidão no trabalho simples de camponês
que conhecia desde a infância, começara de repente a sentir um
prazer inexplicável e enorme. Trabalhava mais que todos, chegava
ao ponto de esgotamento. Cavava ai batatas, derramava-as nos
sacos, arrastava os sacos até a estrada; torturava-se com o trabalho e
não o achava bastante. Após o jantar estendia o capote no chão e
dormia como um defunto! Porém, logo de manhã levantava-se antes
de todos e esperava com impaciência o regresso ao campo.
De início o próprio Capitão Miliaga ficou satisfeito coni esse novo
rumo dos acontecimentos, pois, além de qualquer; sombra de
dúvida, tal ato acarretava a Tchônkin a penalidade suprema. Em
suas fantasias o capitão imaginava com que zelo interrogaria


Tchônkin; bastava o pensamento para que seus lábios finos
formassem um sorriso vingativo. Mas nos últimos! dias o capitão
havia passado a uma preocupação terrível. Ocorria-lhe uma
sensação semelhante àquela que Tchônkin tiverd no primeiro dia da
guerra, ao se convencer de que não tinha serventia para pessoa
alguma. Mas Tchônkin jamais acreditara de modo especial que era
um dos poucos escolhidos, e tal não se podia afirmar com relação ao
capitão. O fato de que ninguém havia sido mandado para tirá-lo
dessa situação, por tanto tempo, causava-lhe grande preocupação.
O que podia estar acontecendo? Teria a cidade de Dolgov sido
tomada pelos alemães? Teria a instituição sido liquidada? Poderia a
ordem de usar a instituição na frente de trabalho ter sido dada a
Tchônkin por autoridade maior? Miliaga buscava resposta a tais
perguntas, mas nenhuma lhe ocorreu. E então, um belo dia, formou-
se uma resolução dentro da cabeça engenhosa do capitão: precisava
fugir. Fugir, desse no que desse. O capitão passou a familiarizar-se
com Tchônkin, estudar-lhe os hábitos e modos, pois, para derrotar o
inimigo, é preciso de início conhecê-lo. O capitão inspecionou o
terreno em volta, mas era terreno plano, dificultando a fuga sem o
risco de levar um tiro, risco ao qual o capitão não queria se expor.
Em sua cabeça, todavia, outro plano audaciosamente concebido já
amadurecia.

30


Embora a ciência afirme que o trabalho escravo não se justifica, a
prática de utilizar os trabalhadores da instituição no kolkhoz Folha
Vermelha viera provar o contrário. As organizações distritais
começaram a receber informações de uma colheita de batata
descrita em tais cifras que o próprio Boríssov se perl turbou e


telefonou a Golubev para dizer: "Está certo, pode] mentir, mas não
exagere". Golubev respondeu que não estava disposto a enganar o
seu próprio governo e que os documentos refletiam apenas o estado
real da situação. O conselheiro da Comissão Distrital, Tchmikalov,
foi despachado por Boríssov 2 Krásnoie e de lá regressou ao distrito,
confirmando que os relatórios espelhavam a verdade real, que ele
vira com seus próprios olhos as montanhas de batatas, montanhas
essas que correspondiam aos relatórios que haviam recebido. Como
havia sido informado no kolkhoz, tal produtividade fora alcançada
pelo emprego pleno da força de reserva de mão-de-obra.
Finalmente d distrito o aceitou como verdade e o jornal recebeu
ordens de publicar um artigo generalizando a experiência vivida
naquela fazenda notável. A fazenda de Golubev era apontada como
exemplo às demais e fazia-se a pergunta: "Por que Golubev pode I
vocês não podem?" As notícias sobre o kolkhoz chegaram 1 capital
da província e Golubev fora até mencionado em relata rio oficial em
Moscou. Pouco depois disso Golubev ficou sabendo que alguém no
nível distrital tivera a brilhante idéia de enviar um relatório sobre a
colheita de batatas que havia sido completada antes do tempo ao
Camarada Stálin, em pessoa. Compreendendo que seu destino fora
traçado, Ivan Timofêií vitch convidou Tchônkin e se saiu com duas
garrafas da mal pura mistura caseira, coisa de primeira classe.

— Bem, Vânia — disse, quase com júbilo. — Agora conseguimos.
— O que se passa? — indagou Tchônkin.
Golubev contou-lhe tudo. Tchônkin coçou a nuca, disse que nada
havia a perder e insistiu em que o presidente o mandasse a uma
nova frente de trabalho. O presidente concordou e prometeu
mandar a turma de Tchônkin para o silo. O acordo foi selado com
um gole e quando, ao crepúsculo, os dois deixaram o gabinete,
estavam tendo alguma dificuldade em se equilibrar sobre os pés. O
presidente parou na varanda para fechar a porta. Tchônkin parou
ao lado de Golubev, marcando o tempo com os pés.

— Vânia, você é um homem muito esperto — disse o presidente
indistintamente, enquanto lutava com o ferrolho naquela escuridão.
— No início você parecia um idiota total. . . mas olhando melhor dá
para ver a mente de um estadista. Você não devia ser soldado, devia
estar comandando uma companhia.
— Uma divisão serve — jactou-se Tchônkin. Agarrando-se ao
corrimão com uma das mãos, urinava ao lado da varanda.
— Bem, uma divisão pode ser um pouco de exagero. Tendo
abandonado a tentativa de descobrir a fechadura,
o presidente se pusera agora ao lado de Tchônkin e também
começava a urinar.
— Muito bem, um regimento — disse Tchônkin, reduzindo o preço
enquanto abotoava a braguilha. Foi quando um degrau apareceu
por baixo do pé, degrau esse no qual não reparara, e ele rolou pela
varanda abaixo.
O presidente permaneceu na varanda, agarrando-se ao corrimão e
esperando que Tchônkin se levantasse. Tchônkin não se levantou.
— Ivan — chamou Golubev na escuridão. Não obteve
resposta.
Para não cair, o presidente deitou-se e rastejou da varanda ao chão,
de bruços. Depois começou a rastejar de quatro, procurando na
relva orvalhada até encontrar Tchônkin. Este estava caído de costas,
os braços abertos, roncando serenamente. Golubev montou em
Tchônkin e deitou-se em perpendicular a ele.
— Ivan — chamou.
— Hein? — Tchônkin se remexeu.
— Está vivo? — perguntou o presidente.
— Não sei — disse Tchônkin. — O que está em cima de mim?
— Devo ser eu — disse Golubev, depois de pensar ura pouco.
— E quem é você?
— Eu? — O presidente estava prestes a se ofender, mas, coçando a
memória, compreendeu que a bem do fato não tinha certeza total de

quem era. Mesmo assim, mediante grande esforço, relembrou-se: —
Sou Golubev, Ivan Timofêievitch.

— E o que é isso em cima de mim?
— Sou eu. — Golubev começava a se enraivecer.
— Você pode sair daí? — perguntou Tchônkin.
— Sair? — Golubev tentou levantar-se sobre as mãos ej os joelhos,
mas os braços cederam e mais uma vez ele desabou em cima de
Tchônkin.
— Calma — disse o presidente. — Em um segundo vou me levantar
e você põe as pernas em mim. E não vá enfiá-las no meu cu, seu
filho da puta. Ponha no meu peito. É assim.
Tchônkin finalmente conseguiu empurrá-lo. Agora estavam?
deitados lado a lado.
— Ivan — disse Golubev, depois de alguns segundos.
— O que é?
— Ao diabo com isto. Vamos embora.
— Muito bem, vamos embora.
Ivan se colocou em pé mas não ficou assim muito tempo; j voltou a
desabar no chão.
— É assim que se deve andar — explicou Ivan Timofêievitch,
pondo-se de quatro. Tchônkin tomou a mesma posição e os dois
amigos partiram para locais desconhecidos.
— Bem, está gostando assim? — perguntou o presidente, depois de
algum tempo.
— Muito bom — disse Tchônkin.
— Esse modo de andar é melhor ainda do que o comum — afirmou
convictamente o presidente. — Se você cair não se machuca. Jean-
Jacques Rousseau disse que o homem devia caminhar de quatro e
voltar à natureza.
— Quem é esse Jan Jak? — perguntou Tchônkin, que achava difícil
pronunciar aquele nome estranho.

— E quem sabe, com os diabos? — retorquiu o presidente. — É um
francês.
Em seguida respirou fundo e se pôs a cantar:
"De cabana em cabana, pela aldeia,
os paus em pressa começam a andar. . . "


Tchônkin juntou-se a ele.

"As cordas zumbiram, tocaram um som.

Nunca vimos antes coisa assim. . . "

— Ivan — disse o presidente, lembrando-se subitamente de algo.
— O quê?
— Eu fechei o gabinete ou não?
— E quem vai saber? — perguntou Tchônkin, inteiramente
despreocupado.
— Vamos voltar.
— Está certo.
Caminhar de quatro era muito bom, sem dúvida, embora o orvalho
lhes molhasse as mãos e encharcasse as calças no joelho.
— Ivan!
— Hein?
— Vamos cantar um pouco.
— Está certo — disse Tchônkin, e começou a entoar a única outra
canção que conhecia:
"O cossaco galopava pelo vale,

pelas terras caucasianas. . . "

O presidente juntou-se a ele:

"O cossaco galopava pelo vale,


pelas terras caucasianas. . . "

Tchônkin iniciou o verso seguinte:

" Pelo pomar verde galopava. . . "

Foi quando um pensamento passou pela mente de Tchônkin e o fez
parar.

— Escute — disse ao presidente. — Está com medo?
— De quem?
— De meus prisioneiros.
— E por que haveria de ter medo deles? — disse o presidente,
lançando toda a cautela ao vento. — Vou partir para a frente de
luta. Você sabe o que fazer com eles. Eu. . .
A esta altura Ivan Timofêievitch empregou um verbo que poderia
levar um estrangeiro, desconhecedor das sutilezas de nossa língua,
a concluir que as relações de Golubev com os empregados da
instituição eram de uma natureza íntima.
Mas Tchônkin não era estrangeiro e compreendeu o que Golubev
dizia figuradamente. O presidente passou a enumerar certas
organizações do governo, do Partido e também organizações
sociais, bem como uma série de destacados camaradas, com quem
suas relações eram, falando-se figuradamente, íntimas.
— Ivan! — O presidente lembrou-se repentinamente de outra coisa.
— O quê?
— Aonde vamos?
— Ao gabinete, eu acho — disse Tchônkin, sem maior certeza.
— Onde fica?
— E como vou saber, com os diabos?
— Calma, acho que estamos perdidos. Temos de calcular nossa
direção.
O presidente deitou-se de costas e começou a vasculhar o céu
noturno, procurando a estrela do norte.

— Para quê? — indagou Tchônkin.
— Não me aborreça — disse o presidente. — Primeiro encontramos
a Ursa Maior e dali são quatro polegadas até a estrela do norte. Se
você achar a estrela do norte, acha o norte.
— O gabinete fica para o norte? — indagou Tchônkin.
— Não me aborreça.
O presidente continuava deitado de costas. Algumas das estrelas
achavam-se em parte obscurecidas por nuvens de chuvas e as
outras estrelas continuavam a se dobrar, triplicar e quadruplicar;
ademais eram tantas estrelas que, a julgar por elas o norte se
encontrava em todas as direções e isso servia magnificamente ao
presidente, pois lhe permitia rastejar para onde quisesse.
Ao retomar a posição anterior, de quatro no chão, Tchônkin saiu à
frente e, de repente, sua cabeça entrou em contat com alguma coisa
dura. Começou a tatear na escuridão.
O que ele apalpava era a roda de um caminhão, muito
provavelmente aquele em que os cinzentos haviam chegado. E isto
significava que o gabinete devia estar ao lado. E assim ocorria.
Contornando o caminhão Tchônkin arrastou-se um pouco mais até
encontrar uma parede, um branco nebuloso na escuridão.
— Parece o gabinete, Timofêievitch — Tchônkin chamou de lá.
O presidente veio se arrastando. Passou a palma da mão pela
parede áspera.
— Pronto, está vendo? — disse com prazer. — E você pergunta por
que consultar a estrela do norte! Olhe em volta, o ferrolho deve
estar por aí.
Ao tatearem pela parede não paravam de esbarrar um no outro e a
rastejar em direções opostas, repetindo aquilo diversas vezes.
Tchônkin foi o primeiro a avaliar a situação.
— Escute, Timofêievitch, o cadeado tem de estar na porta, e a porta
tem de estar na varanda.

O presidente aplicou-se alguns momentos para pensar bem e depois
verificou estar de acordo com o raciocínio de Tchônkin.
Não é para voltarmos a rir de um homem embriagado, mas apenas
pelo bem da verdade devemos dizer que mesmo quando
encontraram a porta Tchônkin e o presidente não conseguiram lidar
com ela, por algum tempo. Como criatura viva o cadeado não
parava de escorregar-lhes das mãos, e a cada vez que escorregava
batia no joelho do presidente de modo tão doloroso que um homem
sóbrio teria perdido o uso da perna, mas, como todos sabem, Deus
dá a cada bêbado um pouco mais de proteção.
Cada qual tomou seu caminho para casa. Continua o mistério sobre
como Tchônkin encontrou a estrada; só se pode supor que
rastejando de quatro ele alcançara um pouco mais de sobriedade.
Quando passava pelo portão, Tchônkin percebeu os ruídos
abafados de vozes masculinas que vinham por trás das hortas de
legumes e notou o brilho de um cigarro aceso.

— Ei, quem está aí? — gritou ele.
O brilho desapareceu e Tchônkin se pôs em pé, aguçando os olhos e
ouvidos, mas nada havia para ser visto, nada para ser ouvido.
"Eu devo ter bebido tanto que estou vendo coisas", disse Tchônkin a
si próprio, e entrou na cabana.
31


O pavio na lamparina de óleo já se queimara quase até o fim; a luz
débil da pequena chama quase não preenchia o aposento.
Niúra achava-se sentada no banquinho à porta, o fuzil bem
apertado entre os joelhos. Os prisioneiros, esgotados com o dia de
trabalho, dormiam lado a lado no chão.


— Onde andou? — perguntou Niúra com raiva, mas em voz baixa
para não despertar os prisioneiros.
— Onde quer que eu tenha estado, não estou mais lá — respondeu
Tchônkin, e agarrou-se à maçaneta para não cair.
— Ei, você se encharcou? — arquejou Niúra.
— Sim. — Tchônkin concordou, com um sorriso idiota. — E tinha
de me encharcar, Niúra, amanhã eles vão mandar a gente para
outro setor.
— De que está falando? — perguntou Niúra.
Com dois dedos da mão livre Tchônkin tirou do bolso da gandola o
bilhete escrito pelo presidente, bilhete esse que lhe conferia mais
mantimentos, e o entregou a Niúra. Esta levou o bilhete à lamparina
e, movendo os lábios, começou a examinar o teor do que ali estava
escrito.
— Deite-se e descanse um pouco, você ainda não dormiu, sabia? —
disse ela, e a ternura trazia cor à sua voz.
A resposta de Tchônkin foi um tapa no traseiro dela.
— Nada, você vai descansar. Eu durmo uma hora de manhã.
Tirou o fuzil de Niúra, sentou-se no banco e encostou-se no batente
da porta. Niúra se deitou vestida, de rosto para a parede, e logo
adormecia. Tudo estava silencioso. Até o tenente guinchava como
um cachorrinho enquanto dormia, estalando os lábios e fazendo
barulho. Uma mariposa cinzenta fazia círculos
acima da lamparina a óleo e não parava de bater no vidro; finalmente
afastou-se em vôo. Estava abafado e úmido e logo a chuva
seria ouvida caindo em meio às folhas.
Para não adormecer, Tchônkin foi até o balde ao canto, tirou uma
concha cheia de água e a jogou no rosto. Assim que retomou a
posição anterior recomeçou a luta contra o sono.
Segurava o fuzil bem apertado entre os joelhos e as mãos, mas os
dedos não paravam de se soltar, e eram necessários esforços
heróicos para não cair do banco. Diversas vezes ele se apanhou no
último instante, então arregalava os olhos para vigiar o aposento



mas tudo parecia calmo e sossegado, os únicos ruídos eram a chuva
lá fora e um camundongo roendo madeira.
Finalmente cansado de lutar consigo mesmo, Tchônkin bloqueou a
porta com a mesa, deitou a cabeça sobre ela e dormiu. Mas não
dormiu com tranqüilidade. Sonhou com Kuzmá Gla-dichev, com o
Presidente Golubev, a Ursa Maior e Jean-Jacques Rousseau, bêbado
e rastejando para trás, de quatro, saindo da casa de Vovó Dúnia.
Tchônkin compreendeu que Rousseau era seu prisioneiro e que
tentava fugir.

— Pare! — ordenou-lhe Tchônkin. — Aonde vai?
— De volta — disse Jean-Jacques, a voz rouca. — De volta à
natureza — e, ato contínuo, rastejou mais para os arbustos.
— Pare! — gritou Tchônkin, agarrando Rousseau pelos cotovelos
escorregadios. — Pare ou eu atiro!
Tchônkin surpreendia-se por não ouvir sua própria voz, e isso
também lhe trouxe medo, mas Jean-Jacques também sentia medo de
Tchônkin. De repente fez uma careta deplorável, começou a
choramingar e disse, com capricho infantil:
— Preciso ir! Preciso ir! Preciso ir!
Tchônkin abriu os olhos. Jean-Jacques viera a seus pés e tomara a
aparência do Capitão Miliaga. O capitão puxava Tchônkin do outro
lado da mesa, com as duas mãos amarradas, e exigia
insistentemente:
— Ei, seu palhaço, acorde! Preciso ir!
Tchônkin olhava estupefato para seu prisioneiro furioso, incapaz de
decidir se estava sonhando ou acordado. Ao compreender que
estava acordado, sacudiu-se e se pôs em pé com relutância. Arredou
a mesa, apanhou a coleira de cachorro pendurada ao prego e
murmurou:
— Eles precisam ir, eles precisam ir. O dia não foi comprido
bastante para eles. Venha daí com esse pescoço.

O capitão se inclinou à frente e Tchônkin fechou a coleira no terceiro
buraco, de modo que ficasse bastante apertado sem estrangular
Miliaga; puxou a corda para ver se estava firme e depois ordenou:

— Está certo, pode ir, mas ande depressa.
Tchônkin passou a extremidade livre da corda pela mão e afundou-
se em pensamentos. Tais pensamentos eram bem simples. Olhando
para a mosca que rastejava no teto ele pensava: "Ali vai uma
mosca". Olhando para a lamparina, pensava: "A lamparina está
acesa". Adormeceu. Mais uma vez sonhava com Jean-Jacques
Rousseau, que pastava na horta de Gladichev. Tchônkin gritou para
Gladichev:
— Ei, escute, não foi a vaca que engoliu os seus TPOS, foi o Jean-
Jacques.
Gladichev sorriu com maldade e disse, levando os dedos ao chapéu:
— Não se preocupe com os TPOS, é melhor você ter cuidado, ele está
se desamarrando e fugindo.
Tchônkin acordou apavorado. Tudo estava tranqüilo, Svint-sov
roncava, a lamparina ardia e a mosca rastejava agora na direção
oposta. Tchônkin puxou a corda de leve. O capitão continuava por
lá.
"O que há com ele, está constipado, alguma coisa assim?", pensou
Tchônkin fechando os olhos.
Jean-Jacques desaparecera em algum lugar. Uma moça arrastava a
cesta com roupa lavada, trazendo-a do rio. Ao se aproximar sorriu
de modo tão radioso que Tchônkin teve de sorrir também. Não foi
surpresa quando ela colocou a cesta no chão, tomou-o nos braços e
começou a embalá-lo e a cantar:
"Lá-rá-lá-lá,

As aves voam.

As aves voam


Pro berço de Vânia".

— Quem é você? — indagou Tchônkin.
— Não me reconhece? — A mulher sorriu. — Sou sua mãe.
— Mamãe! — Tchônkin estendeu os braços para enlaçá-la.
Nesse exato instante homens em gandolas cinzentas saltaram de
trás dos arbustos. Tchônkin pôde reconhecer Svintsov,
o Tenente Filippov e o Capitão Miliaga entre eles. O capitão estendeu
os braços para Tchônkin.
— É ele! É ele! — começou a gritar Miliaga, o rosto retorcido num
sorriso horrível.
Agarrando o filho ao seio, a mãe de Tchônkin começou a berrar: —
Assassinato. — Tchônkin também queria gritar mas não conseguiu
e acordou. Olhou em volta, a mente embaralhada.
Tudo estava calmo e tranqüilo, a lamparina de pavio curto ardia
com chama fraca. Os prisioneiros dormiam no chão e Niúra dormia
na cama, agora de costas para a parede.
Tchônkin olhou para o relógio, notou que este parara. Não sabia por
quanto tempo estivera dormindo mas achou que tinha sido
bastante. O Capitão Miliaga continuava no toalete, a prova disso era
a corda enrolada na mão de Tchônkin.
— Pois é, fica sentado aí todo o tempo — disse Tchônkin em voz
alta e puxou a corda para informar ao capitão que seu tempo
terminara. Tchônkin esperou o tempo que achou suficiente para o
capitão vestir as calças, voltou a puxar a corda. Ninguém respondia
na outra extremidade. Levantou-se e puxou a corda com mais força.
Dessa feita ela começou a vir, mas não com facilidade.
— Venha, venha, por que tanta resistência? — resmungou
Tchônkin, puxando cada vez mais corda. Agora dava para ouvir
passadas no corredor, mas não se pareciam aos passos macios do
Capitão Miliaga. Eram passos curtos e rápidos, como se alguém em
sapatos de sola dura estivesse andando pelo corredor.

Uma desconfiança terrível perpassou o cérebro de Tchônkin. Puxou
a corda com toda a força que tinha e a porta se escancarou; coberto
de excremento da cabeça às patas e uma expressão de perplexidade
no rosto sonolento, Borka, o porco, rolou para o quarto.

32


Tendo escapado e alcançado a liberdade o Capitão Miliaga sentia ao
mesmo tempo uma animação tremenda e total colapso físico. Suas
batidas cardíacas eram inteiramente irregulares, as mãos tremiam,
as pernas não lhe obedeciam. Fugir, agora, não fazia sentido algum
para o capitão. Lá na cabana havia calor e uma espécie de conforto,
mas aqui fora reinavam a chuva, o frio, o negrume era total e não
sabia para onde correr e com que objetivo.

Não sentira o menor nervosismo enquanto cortava a corda com a
foice que encontrara mais cedo naquele dia ou enquanto colocava
calmamente a coleira no porco, embora o animal houvesse
escoiceado e se debatido. O portão para o paiol da vaca fora
arrancado por fora, mas o capitão descobrira um buraquinho bem
por baixo do teto e se arrastara por ali com grande esforço,
rasgando o ombro da camisa enquanto o fazia; agora ali estava sem
a menor idéia do motivo pelo qual o fizera. Tudo às escuras, chovia
forte, gotas frias de chuva rolavam do teto e lhe caíam no pescoço e
escorregavam devagar por suas costas. Mas tudo isso estava mais
que distante de seus pensamentos ao se pôr com a nuca encostada à
parede de troncos, chorando.

Se alguém aparecesse e perguntasse por que estava chorando
Miliaga não poderia responder. De alegria por estar livre de novo?
Mas não havia alegria. De fúria? Por causa do desejo de vingança?
Nesse momento não sentia um nem outro. Tudo quanto sentia era


indiferença completa por seu destino, desesperança, a inutilidade
completa de tudo o que podia fazer. Para o Capitão Miliaga aquela
era uma situação desconhecida. Não se mexia de onde estava,
mesmo sob o risco de ser pego por Tchônkin a qualquer momento, e
continuou a chorar sem saber por quê. Talvez fosse apenas um
acesso de histeria resultante das experiências recentes e difíceis
pelas quais passara.
De repente sobressaltou-se. Já não se sentia sozinho no quintal.
Olhando para a escuridão pôde compor o esboço de alguma
criatura estranha, alguma coisa enorme. Não percebeu de imediato
que era o próprio aeroplano, que dera origem a toda aquela loucura.
Ao compreender do que se tratava Miliaga acalmou-se um pouco e
ao se acalmar começou a pensar melhor.
O aeroplano se achava na orla da horta, a cauda apontando para a
cabana. Assim sendo, a cidade de Dolgov devia estar
aproximadamente na mesma direção da asa direita do aeroplano, e
significava que podia correr nesse sentido. Mas de que adiantaria
Dolgov a ele, se não restava uma só pessoa na instituição, senão
Kapa, a secretária? Isso significava que devia ir diretamente à
província, a Lujin, o chefe do gabinete provincial. E contar o que a
ele? Que um só soldado, com fuzil modelo 1891/1930, prendera todo

o pessoal do gabinete distrital? Naqueles dias isso era a garantia de
um tribunal militar e pelotão de fuzilamento. Se avaliasse a situação
com sobriedade, contudo, poderia arrumar um jeito de escapar.
Ainda mais porque Miliaga sabia alguma coisa sobre Lujin. De
modo especial, alguma coisa sobre os antecedentes do chefe
provincial. Talvez o próprio Lujin houvesse esquecido que antes da
revolução seu pai fora chefe de polícia na província vizinha, mas
ele, Miliaga, não se esquecera, e estivera guardando essa informação
por via das dúvidas. Isto capacitava Miliaga a alimentar a esperança
de que Lujin talvez não quisesse ir até o nível de um tribunal. Ainda
mais por ser principalmente o Tenente Filippov quem devia ser
incriminado por toda aquela questão embaraçosa. O que podia ele

fazer? tinha de ser adeus, Filippov, embora sentisse naturalmente
um pouco de pena pelo sujeito. No que dizia respeito a Tchônkin,
ele, Miliaga, cuidaria pessoalmente do assunto.
Ao se lembrar de Tchônkin o capitão sorriu com expressão de
vingança. Enxugou as lágrimas. A vida voltava a fazer sentido e por
isso valia bem a pena chapinhar pela chuva, no meio da escuridão.
O capitão descolou-se da parede e deu um passo à frente. O pé
deslizou em direções diferentes, depois prendeu-se no chão
encharcado. Ainda assim estava com as botas fortes e boas, haveria
de safar-se.
Já dera a volta ao aeroplano quando ouviu uma porta ranger atrás
de si. Sem refletir um só instante o capitão jogou-se à lama. Alguém
viera à varanda, mas, agora que tinha recuperado a vontade de
vencer, o capitão estava pronto a suportar coisa pior do que aquilo a
fim de se salvar.

— Dá para enxergar alguma coisa? — De algum lugar,
provavelmente da cabana, vinha a voz preocupada de Niúra.
— Nada, coisa nenhuma — respondeu Tchônkin, e estava muito
mais perto. — Acenda a lanterna, sim?
— Não tenho querosene — respondeu Niúra. — E se eu trouxer a
lamparina para fora os outros vão fugir também.
A lama, em seu ruído característico ao ser pisada, chegava aos
ouvidos do capitão. A qualquer instante agora Tchônkin pisaria
nele e tudo estaria perdido. Se agarrasse Tchônkin pela perna, ele
cairia. . . ?
— E então, alguma coisa? — voltou Niúra a perguntar.
— Nada — disse Tchônkin. — Minhas botas estão horríveis. Não
adianta pelejar nessa lama com elas e sem resultado. Ele já deve
estar muito longe agora.
— E o que ele iria fazer, esperar por você? Volte para cá, não
adianta ficar amassando lama.
Tchônkin parou sobre o capitão por mais um minuto mais ou
menos, depois seus passos começaram a se distanciar.

O Capitão Miliaga esperou. Aguardou até que Tchônkin houvesse
chegado aos degraus, estalando o ferrolho e fechando a porta ao
passar. Foi quando o capitão avançou de quatro na lama. Olhando
para trás e sem ver qualquer coisa perigosa, pôs-se em pé de um
salto e pulou por cima da cerca. Foi quando duas figuras em capas
de chuva, como que surgidas da própria terra escura, saltaram à sua
frente. O capitão estava prestes a gritar mas não lhe deram tempo.
Uma das figuras bateu-lhe com a coronha do fuzil e o capitão
perdeu a consciência.

33


O quartel-general do regimento ficava situado em um dos paióis
vazios na extremidade distante das hortas de legumes na aldeia. O
paiol fora dividido em duas partes, a primeira alojava as sentinelas,
o oficial de serviço, o escriturário e diversas dessas pessoas que
gostam de estar sempre por perto dos encarregados.
Sentado no colchão de palha, ao canto, o telefonista falava baixinho
ao aparelho:

— Gaivota, Gaivota, esta é para a sua mãe, aqui é Filhote de Águia,
por que diabo não responde?
A segunda metade do paiol, separada da primeira por uma divisão
de troncos e iluminada por lamparina a óleo sobre um caixote,
alojava o comandante do regimento, Coronel Lapchin, e seu
ajudante, o Segundo-Tenente Bukachov.
O coronel se preparava para uma conferência sobre estratégia, no
gabinete do comandante de divisão, quando os batedores Sirikh e
Filiukov entraram trazendo aos ombros algo comprido, enlameado
e se parecendo a um tronco, que jogaram a um canto sobre a pilha
de palha bolorenta.
— O que é isso? — perguntou o coronel.

— Apanhamos um prisioneiro, camarada coronel — disse o
Sargento Sirikh, em posição de sentido. Tinha a face direita coberta
de barro.
O coronel aproximou-se da coisa estendida na palha e enrugou o
rosto.
— Não acho que seja um prisioneiro — declarou, depois de pensar
um pouco. — Acho que é um cadáver.
— Foi o Filiukov, camarada coronel — disse Sirikh, com a
familiaridade imprópria que apenas um batedor seria capaz
de usar. — Eu disse a ele: "Vá com calma", e ele meteu a coronha do
fuzil. . . bam!

— O que há com você, Filiukov? — O coronel passou a fitar o outro
batedor.
— Fiquei com medo, camarada coronel — explicou Filiukov, e
falava com sinceridade. Começou a fazer seu relato, também com
familiaridade imprópria, mas a sua era de tipo diferente daquela de
Sirikh. Filiukov era um desses meninos do interior, ainda não
apavorados, que supõem serem todos, no Exército, o mesmo que
ele, e que um coronel é algo parecido ao chefe-de-brigada do
kolkhoz. — Escute, foi assim que aconteceu, camarada coronel. Eu e
o sargento aqui rastejamos até uma cerca, não era cerca grande, uma
daquelas com fibra de bétula. A gente estava de barriga no chão.
Ficamos ali uma hora, duas horas. Ninguém por lá, estava escuro,
muita chuva.
— Filiukov agarrou a cabeça com as mãos enlameadas e a sacudiu
de um lado para o outro para exprimir o horror da situação. —
Mesmo com as capas de chuva a água vazava de cima, mas por
baixo a gente estava com a barriga molhando toda. Olhe, foi assim.
— E levantou a capa de chuva e mostrou o ventre que realmente
estava molhado e sujo.
— Por que me conta tudo isso? — perguntou o coronel, surpreso.

— Calma. Dê-me uma tragada. — Sem a menor hesitação Filiukov
praticamente arrancou o cigarro da mão do coronel. Puxou algumas
baforadas sôfregas, jogou a guimba no chão e esmagou-a com o
calcanhar. — Pois é, a gente estava ali e eu disse ao sargento:
"Vamos embora". Mas ele disse: "Vamos esperar". Aí a gente ouviu
uma porta abrindo. Alguém estava dando a volta por trás da cerca,
batendo os pés na lama. Depois veio a voz de um homem pedindo
alguma coisa, depois uma voz de mulher que respondeu: "Não tem
querosene". Aí ele foi embora e ninguém voltou. Eu pensei: "Pois é,
ela foi embora". Assim que pensei isso lá está ele, subindo para sair.
..
— Filiukov acocorou-se e arregalou os olhos, levou ao semblante a
sua expressão máxima de pavor. — E vinha bem em cima da gente.
Por isso agarrei o fuzil e. . . — Filiukov recuou, arrancou o fuzil do
ombro e ameaçou com ele o coronel.
O coronel deu um pulo para o lado.
— O que está fazendo, o que está fazendo? — disse, fitando
Filiukov com imensa desconfiança.
— Estou lhe mostrando — explicou Filiukov, pondo o fuzil no
ombro. — Não tem dúvida, pode cortar minha cabeça se ele não
está vivo. Eu também sou do Volga, camarada coronel. A gente
tinha alemão aos magotes morando por lá. Eu não conhecia o outro
tipo, mas sei muito sobre os alemães. Eles são gente cheia de vida.
Pode bater em outro camarada como eu bati nesse aí e ele está
morto. Dá para matar um gato. Mas o alemão sai vivo. E por quê?
— Filiukov não respondeu à sua própria pergunta, abriu as mãos e
levou-as à cabeça exprimindo o estado supremo de perplexidade
por tal mistério da natureza.
— Mesmo assim você matou aquele — disse o coronel, com
severidade.
— De que está falando? — retorquiu Filiukov, sem demonstrar a
mínima fé em sua própria força. — Estou lhe falando, ele está vivo e
respirando. — Dito isso caminhou até o corpo estendido e começou

a apertar-lhe o estômago com o pé, de leve. O peito do homem
realmente começou a arfar, mas era difícil saber se era por estar
respirando ou porque Filiukov o bombeava.

— Ele está nas últimas — retorquiu o coronel. — Deixe-o em paz,
Filiukov. Vocês dois podem ir.
Os batedores se retiraram.
Por algum tempo o coronel ficou ali a observar o prisioneiro.
— É claro que tiveram de arrastá-lo pela lama, de modo que não dá
para perceber o uniforme ou as insígnias — murmurou em voz alta.
Depois ergueu a cabeça. — Subtenente?
— Senhor! — respondeu Bukachov.
— Que língua você estudou na escola?
— Alemão, camarada coronel.
— Se o prisioneiro voltar a si você pode interrogá-lo? Bukachov
hesitou. Ele estivera nas aulas de alemão, mas
havia estudado? Era a matéria à qual ele mais costumava faltar a
fim de ir ao cinema. Naturalmente lembrava-se de alguma coisa.
"Anna und Marta baden" e "Heute ist das Wasser warm". E
diversas outras palavras isoladas.
— Então? — O coronel esperava.
— Vou tentar, camarada coronel.
— Pois tente. Não temos nenhum intérprete por aqui. O coronel
levantou o capuz da capa de chuva, colocou-o
por cima do quepe militar e se retirou.
34


Embora um regimento houvesse sido mandado para liquidar a
quadrilha ou pandilha de Tchônkin, em vista de sua importância o


comandante de divisão, General Drinov, tomara a direção global da
operação.
O general fizera uma carreira fabulosa em curto espaço de tempo.
Quatro anos antes ainda ostentava apenas uma faixa e comandava
uma companhia, mas a sorte viera bafejá-lo. Seu comandante de
batalhão lhe confidenciara que podiam dizer o que quisessem sobre
Trótski, mas que fora ele o comandante-chefe durante a Guerra
Civil. Talvez o comandante de batalhão de memória tão extensa
viesse a ser varrido de qualquer modo, mesmo sem fazer afirmações
de tal teor, mas nesse caso teria sido difícil dizer qual efeito causaria
no destino do futuro general. Mas tudo deu certo, na melhor
maneira possível: Drinov dera parte ao Lugar Certo e tomara o
lugar do comandante de batalhão.
A partir de então as coisas não poderiam ter andado melhor. Dois
anos mais tarde, agora usando três faixas na lapela, encontrava-se
na guerra contra os finlandeses brancos.
Ali seus talentos de comando se revelaram com todo o brilho.
Drinov foi distinguido por sua capacidade de obter suas coordenadas
fácil e rapidamente em qualquer situação, mesmo a mais
complexa, embora, por outro lado, em meio a todas as decisões
possíveis ele invariavelmente adotasse a mais estúpida. Tal não o
impediu, todavia, de sempre cair em pé, e ao final da campanha
finlandesa achava-se em Moscou, desta feita com quatro faixas na
lapela. No Salão Georgievski do Kremlin o próprio Vovô Kalínin
apertou a mão firme de Drinov, e a apertou usando as duas,
dizendo algumas palavras ao presenteá-lo com a Ordem de
Combate da Bandeira Vermelha.

Drinov fora elevado ao generalato em tempo bem recente por suas
realizações destacadas no terreno da ciência militar, quais fossem:
durante os exercícios de campo ordenara que os homens de sua
própria unidade recebessem o fogo de granadas de fragmentação
não detonadas, como aproximação máxima quanto às condições de
batalha. Drinov sustentara que durante tal treinamento somente os


maus soldados morriam, aqueles que não sabiam se entrincheirar.
De um modo global Drinov não via utilidade para soldados que não
sabiam como se entrincheirar. O próprio Drinov gostava muito de
se achar bem entrincheirado.
Enquanto o regimento tomava suas posições de ataque os soldados
de um outro batalhão, de engenharia, demoliram o banheiro de
alguém e construíram um abrigo de três camadas, com os troncos. O
Coronel Lapchin chegara e, tendo apresentado o passe à sentinela à
entrada, descera os quatro degraus de madeira e depois batera com
as botas encharcadas, ao passar. A fumaça de cigarro enchia o
abrigo, enfunando-se como se algo estivesse a pegar fogo. Um cocho
de zinco, muito provavelmente vindo do banheiro recém-demolido,
achava-se no centro do aposento, aparando as gotas grossas de lama
que caíam do teto.

Diversos homens em capas de chuva reuniam-se em volta de uma
mesa que fora feita com madeira bruta; o chapéu de couro de
carneiro, pertencente a Drinov, oscilava acima de todas as outras
cabeças.
— Solicito permissão para estar presente, camarada coronel. —
Calmamente, com aquela familiaridade que só os militares
próximos em patente se podem permitir, o coronel levara a mão ao
quepe, em continência.

— Ah, é você, Lapchin — disse o general, vendo-o em meio às
ondas de fumaça. — Concedido, concedido. De outra forma
teríamos os homens reunidos e o comandante ausente.
Ao se aproximar da mesa Lapchin percebeu todos os três
comandantes de seu batalhão, o chefe de estado-maior, o comandante
da divisão de artilharia e um oficial do SMERSH, homem
baixote e de aspecto comum. Debruçados sobre a mesa haviam
debatido sua missão de combate e estudavam um diagrama que
estava sendo explicado em voz suave por um homem que Lapchin
não reconheceu. Esse homem usava capa de chuva feita de lona, o


capuz jogado para trás, e botas de couro de bezerro manchadas, até
os joelhos, com barro. Sua indumentária não o distanciava muito
dos demais oficiais presentes, mas o quepe amarrotado denunciava

o fato de ser um civil.
— Apresente-se. — O general assentiu para o civil. — O secretário
da Comissão Distrital local.
— Revkin — disse o secretário, estendendo a Lapchin sua mão fria.
— Lapchin — respondeu o coronel.
— E então, Lapchin — disse o general. — Alguma notícia?
— O Sargento Sirikh e o soldado Filiukov acabaram de regressar do
reconhecimento — informou o coronel, um tanto inquieto.
— Sim, e daí?
— Trouxeram um prisioneiro.
— O que diz ele? — O general estava intrigado.
— Ele não diz coisa alguma, camarada general.
— Que negócio é esse de não dizer? — O general se afrontava. —
Faça-o falar!
— É difícil — Lapchin sorriu. — Está desacordado. Quando o
encontraram, os batedores acertaram as coronhas nele com força
demasiada.
— E então, está vendo? — O general esmurrou a mesa, começava a
enraivecer-se. — No momento em que precisamos de informações e
precisamos tanto, acabam com o prisioneiro valioso, e o fazem a
coronhadas. Quem saiu no reconhecimento?
— Sirikh e Filiukov, camarada general.
— Sirikh deve ser fuzilado!
— Mas foi Filiukov quem bateu no homem, camarada general.
— Filiukov deve ser fuzilado.
— Camarada general. — O coronel tentava interceder em favor do
batedor. — Filiukov tem dois filhos.
O general empertigou-se, o olhar fuzilando de raiva.
— A mim parece, camarada coronel, que ordenei o fuzilamento
de Filiukov, e não dos filhos dele.

O oficial do SMERSH sorriu. Ele dava valor ao bom humor. O
coronel também sabia como lidar com o humor do general, e levou
a mão ao quepe em continência, dizendo em tom obediente:

— Sim, camarada general, Filiukov será fuzilado.
— Bem, parece que finalmente acertamos um caso —-disse o
general, satisfeito e de novo com algum bom humor.
Afinal de contas o coronel devia responder "Sim, senhor!" de modo
militar e não debater como se fosse uma velha mercadejando. —
Aproxime-se mais da mesa — disse o general, agora inteiramente
calmo.
Os oficiais abriram espaço para o coronel.
Um mapa simplificado da aldeia de Krásnoie e das cercanias fora
esboçado a lápis em folha grande de papel vegetal por cima de um
mapa em escala de duas polegadas. As casas eram representadas
por quadradinhos, e dois dos quadrinhos no meio haviam sido
marcados com cruzes.

— Olhe só. Ele diz — disse o general, indicando Revkin — que aqui
— e espetou o lápis em um dos quadrados — e aqui — espetou
outro — ficam situados o gabinete do kolkhoz e a escola. Seria de
supor que o inimigo aquartelou as forças principais nesses dois
edifícios, os dois maiores do lugar. E assim o primeiro batalhão
atacará daqui para aqui. — 0 general traçava uma ampla flecha
curva cuja ponta se detinha no quadradinho representando o
gabinete do kolkhoz. — O segundo batalhão atacará aqui. — A
segunda flecha foi até a escola. — E o terceiro batalhão. . .
"Está bem", pensava o Coronel Lapchin, plhando aquelas flechas.
"Talvez ainda possamos salvar Filiukov. O principal é dizer 'Sim,
senhor!' quando se deve, e depois deixar a ordem para lá."

35


O Capitão Miliaga não pôde abrir os olhos por muito tempo após
voltar à consciência. A cabeça estalava de dor, e ele procurou
lembrar-se de onde entrara em luta tão feia e contra quem, mas não
conseguia lembrar-se de coisa alguma. Sacudiu-a, abriu os olhos
mas voltou a fechá-los assim que teve uma visão inteiramente
inesperada. Achava-se em alguma espécie de paiol. Um rapaz louro,
com cerca de vinte anos, usando capa de chuva, encontrava-se
sentado num caixote de granadas, no canto mais distante,
escrevendo algo, com um estojo de mapas e um papel sobre os
joelhos. Outro homem sentava-se de costas para o capitão, no outro
canto da porta entreaberta. Os olhos do capitão começaram a
examinar o aposento. Faltava sentido a tudo aquilo. E então, das
profundezas do cérebro, veio a consciência de que ele estava indo
para algum lugar e não chegara lá. Havia um soldado, uma mulher.
. . Ah, sim, Tchônkin. Tudo lhe voltava agora, com exceção dos
últimos minutos. Lembrava-se de ter pedido permissão para ir ao
banheiro, cortara a corda e amarrara o leitão na mesma. Depois
rastejara pela horta, estava chovendo, havia muita lama. Tudo
enlameado. O capitão apalpou-se. A túnica e as calças estavam
cobertas de lama, que havia, na verdade, começado a secar. Mas o
que sucedera depois? E como viera parar ali? Quem era essa gente?
O capitão começou a olhar melhor para o louro, que era, sem
dúvida alguma, um soldado. A avaliar pelo aspecto tratava-se de
alguma espécie de unidade de batalha, mas como podia ser unidade
de batalha se a linha de frente estava tão longe? Não devia fazer
muito tempo que ele rastejara pela horta, já que a lama não tivera
tempo de secar. Tê-lo-iam trazido ali de avião, ou coisa assim? O
capitão continuou a observar o soldado louro, por trás, os

olhos semicerrados. O soldado deixou de examinar o documento e
olhou para o capitão. Cruzaram os olhares, o soldado sorriu.

— Guten Morgen — disse de repente.

O capitão baixou as pálpebras e começou a pensar depressa. O que
dissera ele? Uma coisa esquisita, algo que não era russo. "Guten
Morgen." Parecia alemão. Uma recordação o acudiu, vinda dos
idos do tempo. 1918. Uma cabana ucraniana, paredes de barro. Um
alemão de cabelos vermelhos que usava óculos e estivera aboletado
em sua cabana. Todas as manhãs ele vinha do quarto ao lado, em
camiseta, e dizia à mãe de Miliaga: "Guten Morgen, Frau
Millev", pronunciando o sobrenome à moda alemã.
O homem de cabelos vermelhos era alemão, e isso queria dizer que
falava alemão. Aquele também falava alemão. Já que falava alemão
devia ser alemão. (Durante seus anos de serviço na instituição o
Capitão Miliaga aprendera a pensar com lógica.) Isso significava
que ele, Capitão Miliaga, de algum modo fora capturado pelos
alemães. Desejava que assim não fosse, mas a verdade tinha de ser
enfrentada (os olhos de Miliaga estavam fechados nesse exato
instante). Pela leitura dos jornais o Capitão Miliaga sabia que os
alemães não demonstravam qualquer misericórdia para com os
membros da instituição ou para com os comunistas. Miliaga era as
duas coisas ao mesmo tempo e, por questão de má sorte, seu cartão
partidário tinha de estar ali, no bolso. Era fato que as mensalidades
não haviam sido pagas desde abril, mas ele não achava que os
alemães levassem isso em conta.
Ele voltou a abrir os olhos e sorriu para o soldado louro e jovem
como se estivessem mantendo uma conversa muito agradável.

— Guten Morgen, Herr — disse, lembrando-se de outra palavra,
embora não tivesse plena certeza de que fosse apropriada para o
momento.
Entrementes, vasculhando a memória o Subtenente Bu-kachov
vasculhara seu alemão o bastante para formar uma frase simples.

— Kommen Sie, Herr.

"Ele deve estar querendo que eu vá até lá", raciocinou o capitão,
notando que a palavra "Herr" devia estar corretíssima, já que o
alemão louro a empregara.
Ele se levantou, lutou contra a tontura e se aproximou da mesa,
sorrindo para o alemão. Mas o alemão não respondeu e disse,
taciturno:


— Sitzen Sie.
O capitão compreendeu que havia sido convidado a sentar, mas
olhando em volta e não vendo coisa alguma que se assemelhasse a
uma cadeira ou banco agradeceu educadamente ao soldado,
assentindo com a cabeça e pondo a palma da mão onde uma pessoa
normalmente a põe para indicar o coração. A pergunta seguinte,
"Namen? ", não fez sentido algum para o capitão, mas calculando
qual tinha de ser a primeira pergunta em um interrogatório
percebeu que a mesma se referia ao nome do prisioneiro. Isso o
levou a pensar. Era impossível esconder o fato de que pertencia às
forças de segurança e ao Partido; seu uniforme denunciava o
primeiro e a mais superficial revista do que tinha no corpo revelaria

o último. Miliaga lembrou-se então da frase que sempre empregara
para dar início aos seus próprios interrogatórios: "Uma confissão
sincera pode melhorar a sua situação". Embora soubesse por
experiência própria que uma confissão sincera jamais melhorava a
situação de ninguém, não lhe restava agora outra esperança;
também alimentava a fraca esperança de que os alemães fossem um
povo civilizado e fizessem as coisas de modo diferente.
— Namen? — repetiu com impaciência o subtenente, sem saber se
pronunciava a palavra corretamente. — Du Namen? Sie Namen?
Miliaga tinha de responder à pergunta para impedir que o alemão
louro ficasse com raiva dele.
— Ich bin Capitão Miliaga — disse afobadamente. — Milleg,
Milleg, fershten? — Começava a verificar que sabia um pouco de
alemão.

— Capitão Milleg. — O tenente lançou o primeiro dado
informativo em seu formulário de interrogatório. Olhou para o
prisioneiro sem fazer a mínima idéia de como ia perguntar em que
arma ele servia.
O prisioneiro, todavia, antecipou-se a ele e apressou-se a
testemunhar.
— Ich bin ist arbeiten . . . arbeiten, fershten?
Usando as mãos o capitão fingiu estar fazendo alguma espécie de
trabalho, cavando uma horta ou enchendo alguma coisa.

— Ich bin ist arbeiten . . . — Pensou em como podia identificar a
instituição, mas, de súbito, encontrou uma analogia inesperada: —
Ich bin arbeiten in Russisch Gestapo.

— Gestapo? — O soldado louro fechou a cara e lançou no papel sua
própria interpretação do que o prisioneiro dissera. — Du
Kommunisten, fuziliert pam pam?
— Ja, ja — confirmou prontamente o capitão. — Und
Kommunisten und não-partint, tudo fuziliert, pam, pam. —O
capitão estava brandindo a mão direita como se empunhasse uma
pistola e estivesse a dispará-la.
Foi quando Miliaga desejou informar a seu interrogador que tinha
grande experiência na luta contra os comunistas e que ele, Capitão
Miliaga, podia prestar serviços à instituição alemã, mas não sabia
como exprimir pensamento tão complexo.
Entrementes o subtenente anotava no relatório: "Enquanto servia na
Gestapo o Capitão Milleg executou comunistas e elementos não-
partidários".
Bukachov sentia-se avolumar-se no peito o ódio por esse agente da
Gestapo. "Vou matá-lo agora mesmo", pensou. Já estava com a mão
no coldre quando se lembrou de que estava fazendo relatório e
devia controlar-se. Recuperado o controle fez a pergunta seguinte:
— Vot ist seu Ferband dislotsirt?

O capitão fitou o jovem soldado louro e sorriu, tentando
compreender, mas nada entendera. Tudo que podia imaginar era
que a pergunta evidentemente tinha algo a ver com uma banda.

— Wass? — perguntou.
O subtenente repetiu a pergunta. Não tinha certeza de que a
construíra corretamente e começou a perder a paciência.
Mais uma vez o capitão não compreendeu, mas vendo que o jovem
soldado perdia a calma Miliaga resolveu proclamar sua fidelidade.
— Es Hebe Genosse Hitler. — E trazia uma palavra nova a uma
construção já muito conhecida. — Heil Hitler! Staliti kaput!
O subtenente suspirou. Esse fascista era um fanático total, mas não
se lhe podia negar coragem. Louvava seu chefe quando sabia que ia
morrer. Bukachov teria gostado de comportar-se assim, caso fosse
prisioneiro. Quantas vezes Bukachov o visualizara, eles a torturá-lo,
enfiando-lhe agulhas por baixo das unhas, queimando, entalhando
uma estrela de cinco pontas em suas costas, mas ele nada lhes diz,
não pára de gritar: "Viva Stálin!" Mas Bukachov não se achava
inteiramente convicto de que encontraria coragem bastante em si e
por isso sonhava em tombar no campo de batalha com o mesmo
grito nos lábios.
O subtenente não reagiu aos gritos sem sentido do alemão e
prosseguiu com o interrogatório, fazendo as perguntas em alemão
macarrónico misturado com russo. Por sorte o prisioneiro
compreendia um pouco de russo e, de algum modo, Bu-kachov
conseguiu arrancar-lhe algumas informações.
O capitão interpretou a palavra "F'erband" como significando a
instituição para a qual ele, Miliaga, trabalhava.
— Ali — disse logo, apontando a mão nesta ou naquela direção. —
Ist Haus, nach Haus ist Tchônkin. Fershten?

— Fershten — disse o subtenente, sem dar a perceber que era
precisamente Tchônkin o alvo de seu interesse especial.

A testa enrugada de tensão e dor, o prisioneiro continuou a falar,
esforçando-se para descobrir as palavras estrangeiras e certas.

— Ist Tchônkin und ein zwei, drei. . . sete. . . sieben Russisch
Gestapo. . . amarrados mit um Strippe, mit uma Korden . . .
Fershten? — mediante gestos o capitão procurou descrever uma
série de pessoas amarradas juntas. — Und ein Flug, Aeroplanen
— e balançou os braços como uma ave.
— Gaivota, Gaivota! — veio a voz da divisão ao lado. — Ei, filho da
mãe, por que você não fala?
O Capitão Miliaga ficou espantado. Jamais desconfiara de que a
língua alemã tivesse tanto em comum com o russo. Ou então. . .
Mas Miliaga não concluiu o pensamento. A cabeça estourava de dor
e um leve enjôo surgia-lhe à garganta. O capitão engoliu a saliva e
disse ao soldado louro:
— Ich bin doenten, fershten? Mein cabeça, mein Kopf . . . bum
bum. Bateu com o punho de leve no alto da cabeça, depois aninhou
a face na palma da mão. — Ich bin dormiren ja ja.
Sem esperar permissão e trêmulo de fraqueza Miliaga atirou-se à
camada de palha, deitou-se e mais uma vez ficou desacordado.
36


A conferência com o comandante da divisão continuava em marcha.
Só houvera pequena interrupção quando os comandantes de
batalhão se retiraram para transferir suas subunidades para as
posições de ataque, de acordo com o plano. Tendo dado as ordens
para se entrincheirarem nas novas posições, os comandantes
voltaram ao abrigo.


O problema de armas e munições estava agora sendo examinado.
Ao que parecia o regimento tinha apenas um canhão de quarenta e
cinco milímetros com três petardos, uma metralhadora tipo Maxim
e nenhum cinturão de balas, dois morteiros de batalhão sem
granadas, dois fuzis, uma quantidade limitada de cartuchos para
cada subunidade e uma garrafa de líquido inflamável para cada três
homens.

— Fica inteiramente claro — advertiu o general — que as armas e
munições são limitadas. O fator surpresa terá de ser empregado ao
máximo. A munição deverá ser usada parcimoniosamente.
A porta se abriu e um soldado envergando sobretudo encharcado
entrou no abrigo.
— Camarada general! — gritou, fazendo continência. — Solicito
permissão para falar com o camarada coronel.
— Concedida — disse o general.
O vapor emanando do sobretudo, o soldado voltou-se para o
coronel.
— Camarada coronel, solicito permissão para falar.
— O que tem aí?
O soldado entregou-lhe uma carta e, tendo pedido permissão para
se retirar, saiu do abrigo.
O coronel rasgou e abriu o envelope, leu o relatório e o entregou em
silêncio ao general.
O relatório dizia:


"Ao comandante do regimento Coronel Lapchin. Do Subtenente
Bukachov.

RELATÓRIO


Com esta informo que eu, Subtenente Bukachov, interroguei o
soldado do Exército alemão aprisionado pelos batedores Sirikh e
Filiukov.
No decurso do interrogatório o prisioneiro reconheceu que é o
oficial da Gestapo Milleg. Seu serviço na Gestapo se distinguiu por
sua crueldade e impiedade. Participou pessoalmente na execução
em massa de comunistas e de cidadãos soviéticos que não
pertenciam ao Partido.
Ao mesmo tempo o prisioneiro também afirmou que o quartel-
general do chamado Tchônkin está situado na cabana mais distante,
que pertencia à agente postal Beliachova antes da ocupação e agora
se acha defendida por um destacamento reforçado de homens da
Gestapo, unidos entre si pelos laços mais firmes. Existe um campo
de pouso e um aeroplano ao lado da casa, aparentemente usado
para manter contato com as unidades regulares do Exército nazista.
O referido Milleg evitou proporcionar respostas mais detalhadas.
Durante o interrogatório comportou-se de modo desafiador, como
um fanático. Diversas vezes gritou refrões fascistas ('Heil Hitler!'
principalmente), fez declarações revoltantes contra o sistema social
e político de nossa pátria. Diversas de suas injúrias blasfemas
referiam-se à pessoa do Comandante I. V. Stálin.

Subtenente Bukachov"

— Pois bem — disse o general. — É isso que eu chamo de
informação valiosa. O Subtenente Bukachov deve receber uma
condecoração. As posições de ataque devem ser mudadas de acorde
com os novos dados que acabamos de receber. Para não nos
estendermos em demasia, todas as forças de ataque devem
concentrar-se no quartel-general do chamado Tchônkin.
Dito isso puxou o mapa para si, riscou os retângulos que
representavam as posições de movimentação dos batalhões e os

levou às posições novas. Riscou também as setas antigas e traçou
outras, novas. Agora todas as três setas convergiam para a cabana
de Niúra Beliachova.

37


Após ter interrogado o prisioneiro o Subtenente Bukachov
preparara o relatório e o enviara ao comandante do regimento por
uma das sentinelas de folga. Podia agora dormir um pouco, mas
não sentia vontade e resolveu escrever uma carta à mãe. Abriu o
caderninho, puxou para perto de si a lamparina de pavio e, em sua
letra ainda não-definida, de escolar, começou a escrever depressa:


"Minha querida, boa mamãezinha:


Quando receber esta carta seu filho talvez não esteja vivo.
Chamado por sinal verde entrarei em batalha no próximo
amanhecer. Esta será minha primeira batalha. Se for também a
última peço que não chore. Reconforte-se ao pensar que o seu filho,
Subtenente Bukachov, deu sua vida jovem pela pátria, pelo Partido,
pelo grande Stálin.
Acredite em mim, ficarei feliz em perder a vida se, de algum modo,
minha morte limpar a mancha de vergonha que nos foi causada
pelo seu ex-marido, meu ex-pai."


Depois de escrever a palavra "pai" Bukachov perdeu-se em
pensamentos. A noite em que o pai fora preso surgia-lhe aos olhos
com todos os detalhes, como se tudo houvesse acontecido na
véspera. Nessa ocasião Bukachov estava na oitava série.



Quando eles vieram e começaram a bater na porta com as coronhas,
todos no apartamento haviam entrado em comoção, mas o pai
dissera calmamente à mãe:

— Calma, vou atender. É comigo.
Mais tarde essas palavras, "É comigo", tornaram-se, na opinião de
Bukachov, a prova mais forte contra o seu pai. Significavam que ele
sabia ser o culpado, porque um homem inocente não seria capaz de
tal sentimento.
Quatro homens haviam entrado. Um empunhava pistola; dois,
fuzis, e o quarto, um homem de óculos, morava no andar abaixo
deles e lá estava como testemunha. A testemunha tremia de medo e,
como posteriormente se verificou, tinha bons motivos, pois também
ele fora preso um pouco mais tarde, em relação ao caso do pai de
Bukachov.
Haviam rasgado todos os colchões e travesseiros de penas (as penas
continuavam voando pelo pátio três dias depois), tinham quebrado
os móveis e também os pratos. O que brandia a pistola pegava os
jarros de flores, segurava-os acima da cabeça e os estraçalhava
jogando-os no meio da sala, fazendo ali uma pilha de barro
quebrado e terra.
Depois disso haviam-se retirado, levando seu pai.
Liócha Bukachov continuara esperançoso por algum tempo. Para
ele era difícil crescer acostumado à idéia de que o pai, um herói da
Guerra Civil, um portador de ordens que recebera uma arma (um
sabre com punho de ouro) do Comitê Executivo Central de Todas as
Rússias e que mais tarde se tornara diretor de uma das maiores
usinas metalúrgicas do país, se mostrara nada mais do que um
espião comum trabalhando em colaboração com a polícia secreta
polaca. Por infortúnio, todavia, tudo aquilo logo seria confirmado.
Diante das provas o pai de Bukachov declarara que quisera fazer
parar um dos fornos Martin de modelo mais recente. Para Liócha
fora impossível desacreditar, já que seu pai fornecera tal
depoimento. Mas havia uma única coisa que Liócha achava difícil

de aceitar: por que motivo seu pai quisera fazer parar aquele forno?
Poderia ele pensar que a perda desse forno levaria todo o Estado
soviético a entrar em colapso? Se havia conseguido esconder sua
verdadeira natureza ao Partido, ao povo e finalmente à sua própria
família com tanta astúcia e por tanto tempo, não poderia ser
estúpido a esse ponto. E tivera oportunidades muito melhores de
executar sabotagem. Não, Liócha não conseguia entender aquilo, e
era precisamente esse o ponto que mais o atormentava.
Bukachov levantou-se e começou a caminhar de um lado para o
outro no paiol. O prisioneiro continuava deitado na sala, olhos
fechados, o rosto pálido. Havia por ali um cheiro de feno e> algures,
um grilo cricrilava. Voltou a sentar-se, suspirou e molhou o lápis de
tinta indelével com saliva.

"Querida mamãe, talvez você me condene por ocultar a verdade
sobre meu pai quando ingressei na escola de preparação de oficiais.
Sei que me comportei como um covarde, mas não vi outro modo de
agir. Eu queria defender a pátria junto com meu povo e tinha medo
de que não deixassem. . . "

O subtenente colocou o lápis para o lado e ficou pensativo. Devia
dar algumas instruções no caso de sua morte, mas não sabia que
tipo de instruções. Em tempos idos as pessoas faziam testamentos,
mas ele nada tinha para deixar a ninguém. Mesmo assim escreveu:

"Mamãe, se você encontrar Lena Sinelnikova, diga-lhe que a estou
libertando da promessa que me fez (ela sabe do que estou falando) e
venda meu terno, não guarde. O dinheiro que arranjar vai servir
para ajudar.
Com esta encerro minha carta. Resta menos de uma hora para
darem o sinal de ataque. Adeus, minha querida mamãe. Seu filho
que a adora, Liócha."

Após o nome pôs a data e a hora, quatro e sete.


O Subtenente Bukachov dobrou a carta em triângulo, colocou o
endereço e a guardou no bolso esquerdo juntamente com os
documentos. Se saísse vivo destruiria a carta, se perdesse a vida
haveriam de pô-la no correio.
Aproximava-se do amanhecer, tinha de apressar-se. O subtenente
rasgou outra folha de papel do caderninho e escreveu uma
declaração à organização partidária de sua unidade. Não
apresentava os motivos que justificavam o pedido, mas escrevia
com simplicidade e modéstia: "Se eu morrer quero ser considerado
um comunista". Depois assinou o nome e colocou a data. Deixando
a tinta secar saiu para esticar as pernas. Continuava escuro, mas a
distância um leve esboço já podia ser distinguido e em alguma parte
lá por baixo toda uma faixa branca de neblina pairava sobre o rio. A
sentinela de serviço à entrada do paiol fumava, escondendo o
cigarro com a palma da mão. O subtenente estava prestes a
repreendê-la, mas mudou de idéia.
"Que direito moral tenho eu de repreender um homem que tem
duas vezes a minha idade?", pensou, e voltou para o paiol.
Quando Bukachov olhou para onde deixara a declaração destinada
ao Partido viu que o caderninho estava lá mas a declaração sumira.
"Que diabo é isso?", pensou o subtenente, e começou a vasculhar os
bolsos. Encontrou o cartão de identidade, a carta à mãe e finalmente
a fotografia que tinha de Lena Sinelnikova, mas sua declaração ao
Partido não estava lá.
Bukachov olhou com desconfiança para o prisioneiro, que
continuava dormindo ao canto embora não estivesse tão pálido
quanto antes. Mas ele não iria roubar a declaração, de nada lhe
serviria. O subtenente pegou a lanterna e começou a vasculhar as
imediações. Olhou em todos os cantos, rastejou de joelhos, revirou
todos os caixotes e caixas mas a declaração não pôde ser achada.
Sua procura foi interrompida por sons que vinham de fora. Saiu
apressadamente e viu o comandante da divisão em pé à entrada do
paiol, a pistola enfiada na barriga da sentinela, fazendo uma


preleção inteiramente composta de referências à mãe da sentinela.
Atrás do general, àquela luz pré-alvorada, podia-se ver o Coronel
Lapchin, o oficial do SMERSH e algumas outras figuras sombrias.
Agarrado ao fuzil a sentinela fitava o general, os olhos
esbugalhados de pânico. O subtenente se colocou em posição de
sentido. Seu aparecimento distraiu a atenção do general e ele gritou:

— E quem é esse aí?
— O Subtenente Bukachov — informou Bukachov, cheio de medo.
— Meu ajudante — esclareceu Lapchin.
— O que se passa com você, seu sub, seu filho da puta, não viu esse
estúpido fumando em serviço?
— A culpa é minha, camarada general-de-exército! — A sentinela
finalmente recuperava o controle de si e de imediato promovia
Drinov a três postos acima.
Era lisonja grosseira, mas Drinov também era grosseiro. Abrandou e
resmungou.
— Culpado, a culpada é sua mãe. Você vai pagar sua culpa em
batalha. O Camarada Revkin, secretário da Comissão Distrital, está
hoje conosco. — Ato contínuo apontou para o homem em pé ao
lado do oficial do SMERSH. — Ele vai ver tudo isso e depois vai dizer:
"Oh, como fazem as coisas no Exército! " Um imbecil como este
pode arruinar toda a nossa camuflagem e eliminar uma divisão
inteira. E então, sub, tudo tranqüilo?
— Tudo tranqüilo, camarada general!
— Muito bem, nesse caso vamos entrar.
38



O Capitão Miliaga foi despertado por um som cujo significado não
apreendeu. Ergueu-se sobre o cotovelo, não viu pessoa alguma no
paiol. O soldado louro que estivera sentado à mesa partira para
algum lugar. Talvez ele devesse partir também. Relanceou o olhar
em volta e viu uma pequena janela próxima ao teto. Também
houvera uma janelinha próxima ao teto na cabana de Niúra
Beliachova. Se ele pusesse os caixotes um em cima do outro. . .
Cinco homens entraram no paiol. O primeiro era Grandão, tinha o
rosto vermelho como um tijolo: estava acompanhado por outro
homem magro, depois outro em botas de cano alto, em seguida um
camarada de aspecto comum, de quem o capitão gostou à primeira
vista, e finalmente pelo jovem soldado louro. O que usava as botas
de cano alto despertou de imediato o interesse do capitão. Tinha um
rosto pavorosamente conhecido. Naturalmente, tratava-se do
Secretário Revkin. Os alemães não podiam fazer idéia de quem ele
era, ou não o estariam tratando assim. Nesse exato instante o
capitão percebeu como salvar-se. Prestaria tamanho serviço aos
alemães que talvez se esquecessem de fuzilá-lo. Deu um salto e
partiu na direção de Revkin. Este estacou, perplexo. O jovem
soldado levou a mão ao coldre.

— Afanássi Petróvitch? — conseguiu Revkin finalmente perguntar,
sem certeza. — Camarada Miliaga?
— O lobo é seu camarada! — sorriu Miliaga e voltou-se para o
homem alto que, de modo mais evidente, era figura principal ali. —
Por favor, bitte, escute o que digo, este Schwein ist secretário do
die Districten Commission, Revkin, Districten Fübrer,
fershten?
— Afanássi Petróvitch — disse Revkin, ainda mais espantado a essa
altura. — O que'há com você, meu velho? Trate de se controlar.
— Agora são eles que vão ter de controlar você. E você vai ver o
que vão lhe dar — prometeu Miliaga.

Inteiramente perplexo, Revkin olhou para o general, que revirou as
mãos igualmente atônito e balançou a cabeça.

— Que diabo é isso, seu filho da puta? — exclamou o general,
tomado de surpresa.
Ouvindo novamente essa frase tão conhecida Miliaga caiu na maior
confusão. Olhou para os militares, fitava um e depois o outro,
incapaz de compreender o que se seguia. Uma idéia frágil, todavia,
começava a luzir em sua cabeça. Nesse exato instante, todavia,
diversos homens com submetralhadoras entraram ali. As estrelas
grandes em seus capacetes brilhavam com as gotas de chuva. A
resposta começou a amanhecer no espírito nublado do capitão.
— Quem é ele? — perguntou o homem alto, falando russo perfeito.
— O prisioneiro, camarada general — afiançou Buka-chov,
adiantando-se. — O capitão da Gestapo.
— Então é esse? — perguntou o general, lembrando-se do relatório.
— De que está falando, Gestapo? — objetou Revkin, e ofereceu uma
explicação sucinta, referindo-se à pessoa do Capitão Miliaga.
— Mas fui eu quem o interrogou. — Bukachov se confundia. — Ele
me disse que tinha matado comunistas e membros não-partidários
ativos.
— Não consigo entender esta merda — afirmou Drinov
inteiramente confuso. — Talvez ele possa contar pessoalmente.
Quem é você? — indagou diretamente a Miliaga.
Miliaga estava perdido, atônito, esmagado. Quem era quem,
naquele lugar? Tudo sem pé nem cabeça. Quem era essa gente? E
quem era ele?


— Ich bin . . .
— Está vendo, está vendo? — O general voltou-se para Revkin. —
Eu lhe disse que ele era alemão.
— Nein, nein! — Miliaga começou a gritar cheio de pavor,
misturando todas as palavras que conhecia, de todas as línguas. —
Eu niet alemão, eu nichts alemão. Mim rússki, camarada general.

— Que diabo de russo você é que não consegue nem falar a língua?
— Eu falo — afiançou Miliaga, levando a mão ao coração e dando
início à tentativa fervorosa de convencê-lo. — Eu falo. Eu mesmo
muito pode. — Tentando convencer o general ele gritou: — Viva o
Camarada Hitler!
Não era esse, naturalmente, o nome que ele quisera dizer. Foi
apenas um engano trágico. Mas o grave estado em que estivera
desde sua captura levara tudo a se embaralhar na pobre e batida
cabeça de Miliaga. Depois de gritar essa última frase o capitão levou
as mãos à cabeça, caiu ao chão e começou a rolar, plenamente ciente
de que não lhe perdoariam isso e que ele próprio não o teria
perdoado.

— A ser fuzilado! — disse o general com aceno característico da
mão.
Dois soldados da escolta do general apanharam o capitão por baixo
dos braços e começaram a arrastá-lo dali. O capitão resistiu,
gritando palavras de algum tipo, mistura de russo e alemão (ficou
apurado que ele conhecia essa língua estrangeira um pouco bem
demais), as pontas das botas enlameadas, mas feitas de cromo de
bezerro, traçando dois sulcos sinuosos pelo chão de terra quase todo
coberto de palha.
Muitos corações se apertaram de piedade enquanto o Capitão
Miliaga era arrastado. Até o Subtenente Bukachov sentiu alguma
pena, embora soubesse racionalmente que o capitão merecia aquele
destino.
Acompanhando com o olhar o colega em seus momentos finais, o
oficial do SMERSH pensava: "Você é um idiota, capitão! Eh, que
idiota!"
E realmente o Capitão Miliaga, que até recentemente fora o terror
do distrito, pereceu como um idiota, devido a nada mais que um
desentendimento. Afinal de contas, se ele soubesse se orientar
quando estava sendo interrogado e compreendesse que se achava


entre amigos teria realmente começado a falar sobre uma Gestapo
russa? Teria ele chegado a ponto de gritar "Heil Hitler!", "Stalin
kaput!" e outros refrões anti-soviéticos? De modo algum! Sempre
se considerara patriota de primeira categoria. Era inteiramente
possível que, tendo alcançado o posto de general, pudesse reformar-
se com bons vencimentos, desfrutando seu descanso tão merecido e
jogando dominó com os colegas pensionistas. Com toda a
probabilidade teria feito preleções em salões de reunião, instruindo
os jovens sobre o patriotismo, o comportamento civilizado na vida
cotidiana e a intolerância por qualquer manifestação de ideologia
exótica.

39


Tchônkin não sabia que tipo de perigo pairava sobre ele, mas teve o
pressentimento de dificuldades relacionadas à fuga do Capitão
Miliaga.
Por esse motivo, pouco antes do amanhecer, valendo-se do fato de
que tanto os prisioneiros como Niúra estavam no sono profundo
que antecede o romper do dia, Tchônkin abriu a mochila, vestiu
roupa de baixo limpa e começou a vasculhar seus pertences,
arrumando-os. Caso algo lhe acontecesse queria deixar a Niúra
alguma recordação sua.
Os pertences de Tchônkin não chegavam a grande coisa. Além da
roupa de baixo havia uma muda de roupas de inverno para os pés,
agulha e linha, o coto de um lápis-tinta e, envoltas em pedaços de
jornal, seis fotografias suas, tiradas da cintura para cima. Seus
colegas soldados tiravam fotografias para levarem alegria aos


parentes e namoradas, mas Tchônkin não tinha a quem alegrar. Por
isso todas as seis fotografias haviam continuado em seu poder.
Tirou aquela que estava em cima do maço e a levou à lamparina.
Fitando sua imagem Tchônkin, de um modo geral, ficou bastante
satisfeito.
O sargento intendente Trofímovitch, que ganhava um pouco de
dinheiro por fora tirando retratos, fotografara Tchônkin com auxílio
de um pano de fundo especial onde surgiam tanques descendo o
morro enquanto aeroplanos cruzavam os céus. Pairando acima da
cabeça de Tchônkin, como um halo, via-se a inscrição: "Saudações
do Exército Vermelho".
Achando para si um lugar na beirada da mesa, ele lambeu o lápis
por muito tempo enquanto pensava no que ia escrever. Depois
lembrou-se da inscrição que Trofímovitch certa feita lhe
recomendara. Pondo a língua para fora começou a riscar laboriosamente
as letras desiguais, quase em tipo de imprensa:

"Que uma luz terna brilhe em seu olhar
Ao ver essa imagem minha.
Talvez assim possa se recordar
De quem partiu e a deixou sozinha".


Pensou um pouco e depois aduziu: "A Niúra B., de Vânia T., nos
dias em que viveram juntos".
Escondeu o lápis no bolso e colocou a fotografia sobre o peitoril da
janela.
Lá fora a luz aumentava e a chuva parecia ter parado. Era hora de
despertar Niúra e dormir um pouco também; logo teria de levar os
prisioneiros para o trabalho e lá, no campo aberto, teria de ficar de
olho neles para que não viesse a fugir outro, como o chefe fugira.
Sentia pena de acordar Niúra. Sentia pena, aliás, nem era esse o
motivo. Por todo o tempo em que haviam estado juntos ela passara
por tantas coisas, por sua causa, até mesmo os mexericos que


circulavam, e nunca se queixara. Certa feita, era verdade, insinuara
timidamente que não faria mal oficializar aquilo, mas sem
permissão do oficial comandante o soldado do Exército Vermelho
não podia casar-se. E tal era fato, naturalmente, mas para ser sincero
não era a permissão o que faltava; faltava que, levando tudo em
conta, Tchônkin conseguisse decidir-se.
Caminhou até Niúra e a tocou de leve no ombro.

— Niurka, ei, Niurka — disse com ternura.
— Hein? O quê? — Niúra acordou com sobressalto e o fitou, os
olhos ainda vazios por causa do sono.
— Escute, pode ficar em meu lugar um pouquinho? — pediu. —
Estou com tanto sono que não dá para ficar de olhos abertos.
Niúra prontamente saiu da cama, enfiou os pés nas botas, apanhou
o fuzil e sentou-se à porta.
Sem se despir Ivan deitou-se onde ela estivera dormindo. O
travesseiro continuava quente e ele fechou os olhos, e exatamente
quando sua consciência começava a perder o rumo entre o sonho e a
realidade ouviu alguma espécie de som estranho, algo que
arquejava e era acompanhado pelo tilintar de vidro. Ivan voltou
imediatamente a si e sentou-se na cama. Svintsov e Edrenkov
haviam acordado. Niúra continuava sentada à porta, mas o seu
semblante manifestava preocupação.
— Niurka — Ivan chamou-a em cochicho.
— Hein? — respondeu ela também cochichando.
— O que. foi isso?
— Parecem tiros.
De repente os tiros se fizeram ouvir, mas dessa feita pareciam vir de
outra direção. Tchônkin estremeceu.
— Que seja feita a sua vontade! — murmurou Niúra.
Os últimos prisioneiros acordavam, agora. Apenas o Tenente
Filippov continuava a estalar os lábios, dormindo. Svintsov
levantou-se sobre o cotovelo e fitou Niúra, depois Tchônkin, depois
voltou a Niúra.

— Niurka — disse Ivan, amarrando apressadamente os cordões
das botas. — Dê-me um fuzil e apanhe um revólver na bolsa, o
maior que encontrar.
Tchônkin saiu sem calçar as perneiras. Lá fora tudo estava tranqüilo
e enlameado, mas a chuva parara. A alvorada ainda não rompera,
embora a visibilidade já fosse bastante boa. O avião, asas pesadonas
e abertas, continuava no mesmo lugar.
Tchônkin olhou em volta e surpreendeu-se pelo que via.
Montes brancos de neve rolaram a cerca de duzentos metros de
distância do outro lado dos canteiros da horta.
— Que diabo é isso? — maravilhava-se. — De onde vem a neve, em
tempo assim?
Observou que aqueles montes de neve vinham em sua direção.
Agora Tchônkin se surpreendia ainda mais e os fitava com maior
dureza. Só então percebeu que não eram montes de neve, de modo
algum, porém grande quantidade de pessoas que, alinhadas,
rastejavam na direção dele, Tchônkin. O que não sabia é que não se
tratava de primeira força de ataque, cuja missão consistia em jogar
garrafas de líquido inflamável sobre o inimigo, como continuação à
barragem de artilharia. Ao receberem equipamento não houvera
quantidade suficiente de sobretudos no depósito e os soldados
haviam recebido capas de camuflagem para inverno, que usavam
agora devido ao mau tempo. "Alemães!", pensou Tchônkin. Nesse
exato instante um tiro de fuzil se fez ouvir e uma bala passou
próxima à orelha de Tchônkin. Ele se jogou ao chão. Rastejou pela
lama até o pé do lado direito do chassi e colocou o fuzil entre o pé
do chassi e a roda.
— Ei, você, renda-se! — veio o grito das capas brancas a distância.
"Russos não se rendem", esteve Tchônkin a ponto de gritar, mas
sentiu-se embaraçado. Em vez de fazê-lo ele apertou a face na
coronha do fuzil e disparou uma vez, sem mira. Foi o bastante. Fogo
esporádico começou a ser feito contra ele, pelo lado inimigo, e as
balas passavam assobiando sobre sua cabeça. A maioria delas

passou, mas diversas atingiram o aeroplano, rasgando o pano ou
esbatendo-se em clangor ao alcançar o motor. Tchônkin enterrou o
rosto no chão e, poupando cartuchos, disparava de vez em quando,
sem olhar para onde. Usou o primeiro pente de balas e depois
enfiou o segundo. Os projéteis continuavam a sibilar por perto,
alguns passavam bem baixos. Se ao menos o sargento lhe houvesse
dado um capacete, pensava Tchônkin com anseio profundo, mas
faltou-lhe tempo para acalentá-lo mais. Alguma coisa macia caíra ao
seu lado e o sobressaltava. Voltou a cabeça de leve e abriu os olhos.
Era Niúra quem estava a seu lado. Apertando-se ao chão, como ele,
disparava as duas pistolas para cima, ao mesmo tempo. A bolsa
com as outras pistolas estava a seu lado, de reserva.

— Niurka — Tchônkin cutucou a amiga.
— Hein?
— Por que os deixou?
— Não se preocupe — disse ela, puxando os dois gatilhos ao
mesmo tempo. — Eu os obriguei a descer para o porão, depois
preguei o alçapão. — Ei, olhe!
Tchônkin ergueu mais a cabeça. Os brancos agora se adiantavam
em carreirinhas curtas.
— Não poderemos enfrentá-los assim, Niurka — disse Tchônkin.
— Você sabe usar uma metralhadora? — perguntou ela.
— Sei, mas onde vou arranjar uma?
— Na nacela, é claro.
— Ei, por que não pensei nisso? — Tchônkin deu um salto e bateu
com a cabeça na asa. Escondido atrás da fuselagem rasgou algumas
tiras do encerado, trepou na asa e estava na nacela de trás antes que
os brancos pudessem reagir. Realmente lá se encontrava um reparo
de metralhadora e a própria arma, cheia de munição. Tchônkin se
agarrou às braçadeiras, mas a metralhadora não girava. O reparo
enferrujara por falta de uso e por causa da chuva.
Tchônkin tentou afrouxá-la com o ombro, mas aquilo não cedeu. Foi
quando alguma coisa pesada caiu na asa de cima, embora nenhum

disparo houvesse sido feito. E logo outra, depois outra. Começaram
a bater nas asas, e, em volta do aeroplano, o ruído de vidro partido
tornava-se constante e surgia um cheiro acentuado, como o de
querosene. Tchônkin pôs a cabeça para fora e viu uma nuvem de
garrafas cheias de líquido amarelo, que voavam em sua direção,
jogadas pelos brancos atrás da cerca. A maioria das garrafas batia
na lama, porém diversas alcançavam o aeroplano, rolavam pelas
asas e iam esbater-se no motor. (Mais tarde foi verificado que
ninguém instruíra os soldados da força de ataque no sentido de que
deviam acender as garrafas de líquido inflamável antes de serem
arremessadas, e eles simplesmente se limitavam a jogá-las assim
mesmo, como estavam.)
Niúra surgiu na asa ao lado.

— Niurka, abaixe a cabeça! — gritou Tchônkin. — Eles a matarão!
— Por que diabo estão jogando garrafas? — gritou Niúra na orelha
de Ivan, disparando uma das pistolas ao ar.
— Não se preocupe, Niurka, depois catamos tudo e recebemos o
depósito — disse Tchônkin, achando tempo para fazer uma piada.
Depois deu-lhe uma ordem. — Já sei, Niurka. Você agarra o avião
pela cauda e balança o bicho para lá e para cá, entendeu?
— Entendi! — berrou Niúra, descendo do avião em rastejo
reptiliano, arrastando-se sobre a barriga.
40

O General Drinov achava-se sentado no abrigo, três andares para
baixo, acompanhando toda aquela ação militar pelo periscópio. Não
que fosse covarde, já demonstrara coragem muitas vezes, mas
simplesmente achava que a patente de general lhe conferia o


privilégio de sentar-se em abrigos e viajar exclusivamente em carros
blindados. Pelo periscópio via seus soldados avançando na direção
da cabana mais distante, de início rastejando, depois em corridinhas
curtas à frente. O fogo que faziam recebia resposta, porém fraca. O
general ordenou ao telefonista que o ligasse ao comandante do
ataque e comunicou a ordem de iniciar o ataque.

— Sim, Camarada Um! — respondeu o comandante do batalhão.
Logo depois dava para perceber um movimento incrementado na
linha de ataque.
Os soldados da força atacante, usando capas brancas, haviam
chegado à cerca. O general podia ver cada soldado erguer-se um
pouco do chão e brandir o braço.
"Estão jogando as garrafas agora", calculou.
Mas por que não se via chama alguma?
O general foi novamente ligado ao comandante do batalhão.
— Por que as garrafas não estão com fogo?
— Também não compreendo, Camarada Um.
— Eles não estão acendendo com fósforos? — indagou o general.
A respiração ofegante do comandante do batalhão podia ser ouvida
pelo telefone.
— Estou perguntando — disse Drinov, sem esperar resposta. — Eles
estão acendendo as garrafas ou não?
— Não, camarada general.
— E por que não?
— Eu não sabia que era para fazer isso — confessou o comandante
do batalhão, após algum silêncio.
— Vai saber tudo em sua corte marcial — prometeu-lhe o general.
— Qual oficial comandante tem patente igual à sua?
— O Subtenente Bukachov.
— Transfira o comando do batalhão a ele e considere-se preso.

— Sim, Camarada Um — veio a resposta pesarosa. Nesse momento
a metralhadora começou a tagarelar. Pego de surpresa, o general
jogou o telefone para o lado e voou ao periscópio.
Dava para ver que a linha de ataque caíra enquanto os soldados da
força atacante, tendo se jogado ao chão, rastejavam de volta e
batiam em retirada. Suas capas já não eram mais tão brancas ou,
para sermos mais precisos, já não tinham mais coisa alguma de
branco, e assim se haviam tornado inteiramente adequadas como
camuflagem.
Girando o periscópio um pouco para a esquerda o general viu que o
fogo de metralhadora vinha do aeroplano, que girava sobre si,
movimentado por uma força desconhecida.

— Que diabo se passa por lá? — admirava-se o general. E logo,
ajustando o foco, admirou-se ainda mais. Alguma pessoa
claramente pertencente ao sexo feminino e usando vestido
estampado de flores e jaqueta de edredom desabotoada, um lenço
que lhe caíra aos ombros, empurrava o avião para a frente e para
trás. Agora o flanco do aeroplano estava voltado em sua direção e o
general pôde perceber claramente a estrela vermelha na cauda.
"Não é um dos nossos?", foi o que passou pelo cérebro do general.
Não, não podia ser. Um truque típico do inimigo. Por esse motivo a
mulher o girava assim, para enganá-los. Voltou ao telefone e
chamou o comandante do regimento.
— Escute, Número Dois — disse o general —, aqui é Número Um
falando! Quantas granadas restam no canhão?
— Uma, Camarada Um — disse Número Dois.
— Ótimo — disse Número Um. — Mande arrastar o canhão até
aquela casinha com escrita estrangeira e mande disparar à queima-
roupa naquele avião.
— Mas tem uma metralhadora por lá, Camarada Um!
— E daí?

— Ela não nos deixa chegar perto. Está disparando, vai morrer
gente.
— Vai morrer! — rugiu o general. — Ora, com que, então, temos
um humanista por aqui! Isto é guerra, e na guerra morre gente.
Mande aquele canhão, é uma ordem.
— Sim, Camarada Um.
Nesse momento a metralhadora silenciou.
Tendo repelido o ataque, Tchônkin tirou as mãos dos gatilhos. O
silêncio começou imediatamente a estrugir em seus ouvidos. Do
lado inimigo também não vinha fogo algum.
— Niurka — chamou Ivan, voltando-se.
— O quê? — Niúra encostava-se à cauda do avião, o rosto
vermelho, ofegante, suada, como se houvesse saído de um banho de
vapor.
— Vivos, hein? — Tchônkin sorriu para ela. — Muito bem,
descanse um pouco.
Já estavam em plena luz do dia e Tchônkin não teve dificuldade
alguma em ver os soldados nas capas enlameadas, e que haviam
jogado as garrafas, como os demais nos sobretudos cinzentos, em
número muito maior. Achavam-se todos deitados no chão, sem dar
qualquer sinal de vida, e até a sensação de perigo parecia ter
começado a esmaecer.
Em algum lugar um galo começou a cantar, e a cantar alto. Um
segundo galo respondeu, e logo vinha o terceiro. . .
"Ah, as vozes desses galos", pensava Tchônkin, sem notar que os
artilheiros arrastavam o canhão de quarenta e cinco milímetros,
encobertos pela casinha de Gladichev, na qual estavam escritas as
palavras inglesas "WATER CLOSET".


— Niurka — chamou Ivan com ternura. — Descansou um pouco?
— Por quê? — Niúra enxugou o rosto com a ponta do lenço.
— Podia me trazer um pouquinho de água? Estou com sede. Vá
correndo, porque eles podem pegá-la.

Inclinando-se à frente Niúra correu.
Um tiro atrasado se fez ouvir, mas Niúra já dera a volta pela cabana.
A primeira coisa que Niúra fez, na cabana, foi verificar a porta do
porão, mas tudo estava certo por ali, os prisioneiros continuavam lá
embaixo e não mostravam sequer os narizes.
Niúra estava começando a tirar água do balde quando houve uma
explosão ensurdecedora, fazendo o chão ceder sob seus pés;
enquanto caía ouviu o ruído de vidros partidos.


41


Tinha sido um tiro perfeito. A única granada restante acertara bem
no alvo. Os soldados continuavam deitados, aguardando a resposta
do inimigo. Não veio resposta alguma.
Nessa altura o Subtenente Bukachov, agindo temporariamente
como comandante do primeiro batalhão, se pôs sobre as mãos e os
joelhos.

— Pela pátria! — gritou, a voz rouca de agitação. — Por Stálin!
Hurra!
Com um salto se pôs em pé e começou a correr pela grama
molhada, brandindo no ar a pistola.
Seu coração parou por instantes ao perceber que estava sozinho,
não vinha ninguém atrás de si. Mas no instante seguinte ouviu um
fabuloso "Hurra!" e o ruído de dezenas de pés correndo atrás dele.
Notou então que o segundo batalhão vinha correndo pela estrada,
em linha irregular, também gritando "Hurra!", enquanto o terceiro

batalhão, tendo dado a volta pela aldeia, embaixo, aproximava-se
pelo lado do rio.
O Subtenente Bukachov e suas Águias foram os primeiros a pular
aquela cerca e irromper pela horta de legumes. O que viram por ali
pareceu-lhes muito além do alívio. Não viam montes de cadáveres
inimigos, não viam soldados inimigos a se renderem, tomados de
pânico. Eles viram um aeroplano destroçado, cuja asa superior
direita tinha sido cortada por um fragmento de granada e agora
pendia de cabos finos e cuja cauda fora atirada ao lado.
Não muito longe do aeroplano um soldado do Exército Vermelho
estava caído no chão revirado e uma mulher em jaqueta de
edredom, desabotoada, os cabelos desgrenhados, soluçava
inconsolavelmente sobre ele.
Bukachov estacou. Os soldados que vinham correndo atrás

estacaram também e do outro lado se levantaram nas pontas dos
pés para verem o que acontecia na frente. O subtenente, tomado de
confusão, tirou o capacete da cabeça. Os demais soldados seguiram-
lhe o exemplo. O Coronel Lapchin se aproximou e igualmente se
descobriu.

— Qual é o nome desse soldado? — perguntou à mulher.
— Tchônkin, Vânia, meu marido — disse Niúra, afogan-do-se em
lágrimas.
O carro blindado chegou ruidosamente ao cenário. Os metralhadores
saltaram e começaram a empurrar os soldados para o
lado, abrindo caminho para o general, que se esforçava para sair do
veículo. Retiraram parte da cerca, de modo que o general não
tivesse de levantar os pés do chão. As mãos cruzadas nas costas, o
general caminhou descansadamente até o aeroplano. Vendo
Tchônkin estendido no chão tirou devagar seu chapéu de pele de
carneiro.
O Coronel Lapchin acorreu ao general.
— Camarada general — informou —, a missão de liquidar a
pandilha de Tchônkin foi cumprida.

— Esse, então, é Tchônkin? — perguntou Drinov.
— Sim, camarada general, esse é Tchônkin.
— E onde está a pandilha?
O coronel começou a virar a cabeça, tomado de confusão. Nesse
momento a porta da cabana se abriu e diversos soldados armados
trouxeram para fora um grupo de homens em capotes cinzentos,
todos amarrados entre si.
— São eles, é essa a pandilha — disse um dos soldados lá de trás.
— Que quer dizer com pandilha? — Revkin entrou em cena. —
Estes são nossos camaradas.
— Quem os chamou de pandilha? — perguntou o general e fitou os
soldados, que agora se amontoavam. A confusão grassava nas
fileiras. Os soldados recuavam, cada qual procurando esconder-se
atrás das costas do outro.
— Desamarre-os! — ordenou o general ao Coronel Lapchin.
— Desamarre-os! — ordenou o coronel ao Subtenente Bukachov.
— Desamarrem-nos! — ordenou Bukachov aos soldados.
— Mas, enquanto isso, onde está a pandilha? — perguntou o
general, voltando todo o corpo para ver Revkin, em pé a seu lado.
— Terá de perguntar a ele — disse Revkin e apontou para o
Presidente Golubev, que acabara de chegar em seu carrinho de duas
rodas. — Ivan Timofêievitch — gritou Revkin para ele —, onde está
a pandilha?
Golubev amarrou o cavalo na cerca e se aproximou.
— Que pandilha? — perguntou, olhando com piedade seu
companheiro de bebedeiras da véspera.
— O que quer dizer? — Revkin começava a se alarmar.
— Lembre-se de que eu falei ao telefone, perguntei-lhe sobre meus
camaradas aqui e quem os prendera. E você me diz. . . Tchônkin e
sua pandilha.
— Eu não disse "pandilha". — Golubev fechou a cara.
— Eu disse "pequena". Aquela ali, Niúra.

Ao ouvir seu nome Niúra começou a soluçar ainda mais. Uma
lágrima quente caiu no rosto de Tchônkin. Este estremeceu e abriu
os olhos, pois não estava morto, sofrera apenas uma leve concussão.

— Ele está vivo! Vivo! — As vozes vinham dos soldados.
— Vanechka! — gritou Niúra. — Você está vivo! — e começou a
cobrir-lhe o rosto com beijos.
Tchônkin esfregou a têmpora.
— Acho que dormi mesmo — disse com incerteza e depois
percebeu a presença de tantos rostos curiosos a fitá-lo. Fechou a cara
e pousou o olhar em um dos homens em pé à frente, aquele que
segurava o chapéu de couro de ovelha. — Quem é esse? —
perguntou a Niúra.
— Ó Diabo é quem sabe — respondeu Niúra. — Algum figurão.
Não sei quem são.
— Mas esse é um general, Niurka — disse Ivan, depois de pensar
um pouco.
— Isso mesmo, filho, sou um general — disse com ternura o
homem do chapéu de pele de ovelha.
Tchônkin lançou-lhe um olhar desconfiado.
— Niurka — pediu, tomado de emoção. — Eu não estou sonhando,
estou?
— Não, Vânia, isto não é um sonho.
Tchônkin não acreditou inteiramente nela mas achou que um
general era um general e devia ser tratado de acordo, mesmo em
sonho. Procurando com a mão no terreno ao lado encontrou o
quepe e o puxou sobre as orelhas. Levantou-se, pernibambo, e,
sentindo-se um pouco enjoado e tonto, fez continência, os dedos
bem abertos na têmpora.
— Camarada general — informou, engolindo a saliva —, durante
sua ausência não houve incidente. . .
Sem saber mais o que dizer Tchônkin silenciou e, piscando muito,
fitou o general.

— Escute, meu filho — disse o general, pondo na cabeça o chapéu
de pele de ovelha. — Você quer me dizer que lutou sozinho contra
todo um regimento?
— Eu não estava sozinho, camarada general. — Tchônkin encolheu
a barriga e encheu o peito.
— Ah, você então não estava sozinho — disse o general, satisfeito.
— Com quem estava então?
— Com Niurka, camarada general! — berrou Tchônkin, ao voltar a
si.
As gargalhadas explodiram em meio aos soldados.
— Quem está rindo aí? — O general examinou as fileiras com
olhar raivoso. No mesmo instante as gargalhadas pararam. — Não
há nada do que rir por aqui, seus filhos da puta! — prosseguiu o
general, que gradualmente voltava a lembrar-se daquelas melhores
expressões de seu repertório. — Um maldito soldado com um fuzil,
pam pam pam, e todo um regimento não agüenta. E você,
Tchônkin, vou lhe dizer agora mesmo, pode se parecer a um idiota,
mas é um herói. Em nome do comando, puta que o pariu, declaro a
nossa gratidão a você e vou agraciá-lo com essa condecoração.
O general enfiou a mão na parte externa da capa de chuva, tirou de
lá uma de suas próprias condecorações e a colocou na túnica de
Tchônkin. Pondo-se inteiramente em posição de sentido Tchônkin
lançou um olhar à condecoração, depois passou a fitar Niúra.
Imaginava como seria maravilhoso se tirassem seu retrato agora,
pois, depois daquilo, ninguém ia acreditar que o próprio general o
condecorara. Pensou em Samuchkin, no Sargento Peskov, no
Intendente Trofímovitch — se ao menos pudessem vê-lo agora!
— Camarada general, solicito permissão para lhe falar! — e o
Tenente Filippov fazia continência perfeita.
O general levou um susto e olhou para o tenente de modo nada
amistoso.
— Muito bem, fale — concordou com relutância.

— Por favor, tome conhecimento deste documento! — O tenente
desdobrou uma folha de papel com pequeno buraco no canto
inferior direito. O general apanhou o papel e começou a lê-lo
devagar. Quanto mais lia tanto mais fechava a cara. Era uma ordem,
uma ordem para a prisão do traidor da pátria: Tchônkin, Ivan
Vassílievitch.
— Mas onde está o selo? — perguntou o general, na esperança de
que a ordem não tivesse sido redigida de modo legal.
— O selo foi tirado a tiro durante a batalha — explicou o tenente,
cheio de dignidade, baixando o olhar.
— Bem, nesse caso — disse o general, um tanto confuso.
— Bem, nesse caso. . . Se é assim, naturalmente. . . Não tenho
motivo para desacreditar. Aja de acordo com a ordem.
O general recuou, dando espaço ao tenente. O tenente aproximou-se
de Tchônkin e levou dois dedos à condecoração recém-agraciada,
como se estivesse extraindo um prego. Tchônkin recuou
instintivamente, mas era tarde demais. Com um puxão o tenente
arrancava a condecoração, juntamente com um pedaço de sua
túnica.
— Svintsov! Khabibullin! — veio a ordem. — Levem o prisioneiro!
Agarraram Tchônkin pelos cotovelos e um murmúrio percorreu as
fileiras de soldados. Não haviam entendido coisa alguma.
Lembrando-se do papel educador do comandante, o General
Drinov voltou-se para os soldados e declarou:
— Camaradas soldados, minha ordem de que Tchônkin fosse
condecorado foi revogada. O soldado Tchônkin revelou-se um
traidor da pátria. Ele fingiu ser herói para conquistar soezmente
nossa confiança. Entenderam?
— Sim! — gritaram os soldados sem grande convicção nas vozes.
— Coronel Lapchin — ordenou o general. — Ponha o regimento em
forma e conduza-o ao ponto de embarque do escalão.
— Sim, camarada general!

O Coronel Lapchin correu para a estrada e, de costas para a aldeia,
pôs as mãos nas cadeiras.

— Regimento! — gritou com toda a força dos pulmões.
— Por batalhões, em colunas por quatro, marche!
Enquanto o regimento entrava em forma na estrada, o general e
Revkin embarcaram no veículo blindado e se afastaram. Golubev
tratou de se retirar antes que algo também lhe acontecesse.
Finalmente o regimento estava em forma, ocupando toda a estrada,
de uma extremidade à outra da aldeia.
— Regimento, firme! — comandou o coronel. — Sentido! E agora,
cantando, em frente. . . — O coronel prolongou a pausa— . .
.marche!
As botas ressoavam na estrada úmida. A voz alta do primeiro
cantor emergiu de dentro da formação:
"O cossaco galopava pelo vale,
pelas terras caucasianas galopava. . . "


Centenas de vozes se uniram à canção.
Meninos de toda a aldeia corriam ao longo da formatura e
buscavam marchar no mesmo passo. As mulheres acenavam com os
lenços e enxugavam as lágrimas.
Uma égua estropiada veio por trás do regimento, arrastando o
canhão de quarenta e cinco milímetros, e por trás do canhão vinha
Iliá Jikin, o veterano da Guerra Civil, empurran-do-se sobre sua
tábua com roletes. Tendo chegado ao centro da aldeia, Jikin desistiu
e voltou.
Logo após a partida do regimento os moradores de Krásnoie viram

o caminhão leve saindo do quintal de Tchônkin.
O tenente estava sentado na boleia, ao lado do motorista. Na parte
traseira do caminhão quatro homens seguravam Tchônkin pelos
braços, o que não era necessário, já que ele não procurava fugir.

Soluçando e cambaleando Niúra corria atrás do caminhão. Seu
lenço caíra aos ombros, seu cabelo esvoaçava.
— Vânia! — gritava Niúra, os soluços a sufocá-la. — Vanechka! —
Estendia os braços para o caminhão, enquanto corria.
Para acabar com aquela cena deplorável o tenente ordenou ao
motorista que tocasse mais depressa. O motorista pisou no
acelerador. Niúra não podia competir com o caminhão e, cambaleando
pela última vez, caiu ao chão. Mesmo lá do chão, todavia,
continuou com os braços estendidos na direção do caminhão que se
afastava com rapidez. . . O coração de Tchônkin doía de piedade
por Niúra. Esforçou-se mas não conseguiu soltar-se, eles o
seguravam bem.

— Niurka! — gritou, sacudindo a cabeça em desespero. — Não
chore, Niurka! Eu voltarei.
42


Ao pôr-do-sol daquele dia o armazenista Gladichev saiu de casa
com a intenção de examinar o local da batalha recentemente
travada. Ao caminhar pelo campo arado, no outro lado do morro, a
cerca de quilômetro e meio da aldeia, encontrou um cavalo morto,
morto por bala perdida. De início Gladichev julgou que o cavalo
não fosse daquela localidade, mas quando se aproximou mais
reconheceu Ossoaviakhim. O castrado fora claramente morto ali
mesmo — havia um ferimento negro e lacerado em sua orelha e
uma linha de sangue congelado descia daí para os lados. Gladichev
sorriu, em pé ao lado do castrado morto. Para que esconder? Ele
acreditara no sonho singular que tivera. Não que acreditasse
inteiramente, mas atribuía certa credibilidade ao mesmo. Tudo


acontecera de modo tão coincidente que se tornava difícil
permanecer firme em suas convicções antimísticas. Se fosse contar a
alguém o acontecido seria a vergonha, viriam as risadas, a
vergonha. . .

Gladichev notou subitamente que não havia ferradura na pata
dianteira do castrado.

— É o limite — murmurou. E então, inclinando-se, fez uma segunda
descoberta. Havia um pedaço de papel amassado no chão, por baixo
do casco do cavalo. Acometido pelo pressentimento de algo
extraordinário Gladichev apanhou o pedaço de papel, aproximou-o
dos olhos e ali ficou paralisado, estupefato.
A despeito do crepúsculo que se formava e de sua visão, que não
era das melhores, o plantador nato pôde ler aquelas letras grandes e
maltratadas por baixo da lama e manchas de sangue: "Se eu morrer
peço ser considerado um comunista"

— Santo Deus! — berrou Gladichev, e, pela primeira vez em muitos
anos, persignou-se.
1963-1970

O AUTOR E SUA OBRA

Vladimir Voinóvitch é provavelmente um dos mais populares
escritores soviéticos dissidentes em atividade. Sua obra mais
conhecida, " A vida e as extraordinárias aventuras do soldado
Ivan Tchônkin", denuncia e ridiculariza, através da desajeitada
e simplória figura de um guarda do Exército Vermelho,
todas as sacrossantas instituições da União Soviética, questionando
a reforma agrária e educacional e tecendo cáusticas
considerações sobre o Partido, a burocracia, o Exército e o
próprio Stàlin.
O livro, um clássico no gênero, combina a irreverência e a
comicidade da narrativa com um estilo ágil e incisivo, na
melhor tradição de Gógol e Saltikov-Schedrin. A força da sátira


de Voinóvitch, aliada à originalidade com que trata o tema do
naturalismo rural, foram responsáveis por diversos elogios da
crítica internacional.
Concluído em 1970, o romance foi proibido pela censura
política da União Soviética, tornando impossível sua
publicação por qualquer editora daquele país. Circulando
secretamente, não tardaram a se fazer sentir as primeiras
repercussões (inclusive no exterior) e uma certa fama lendária.
Somente depois de perder todas as esperanças de ver seu
trabalho impresso na URSS, Voinóvitch autorizou sua
publicação no Ocidente. Hoje, o impacto de "Ivan Tchônkin" já
se soma às denúncias dos demais escritores soviéticos
dissidentes divulgados internacionalmente, adquirindo a força
de um significativo libelo em defesa dos direitos humanos.
Vladimir Voinóvitch nasceu na Ásia central. Trabalhador
braçal, durante boa parte de sua vida pôde ser considerado um
escritor-modelo, perfeitamente inscrito dentro dos padrões
ideais do modo de vida russo. Tendo apoiado a luta pelos
direitos civis desde 1966, foi expulso em 1974 do Sindicato dos
Escritores por ter manifestado solidariedade a Soljenítsin.
Desde então, pesa sobre ele o estigma de persona non grata ao
governo de seu pais.


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Lançamento Livros Loureiro
A Vida e as Extraordinárias Aventuras do Soldado Ivan Tchônkin - Vladímir Voinóvitch
 
 
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Digitalização: M. Loureiro
Livro de Vera Amaral
 
 
 
Sinopse:
 
O livro é gostoso. A linguagem é fácil, lembra as leituras efetuadas em voz alta. É linear, direto, conta uma história divertida sobre as confusões e peripécias nas quais o personagem principal se vê envolvido

O retrato que Voinóvitch pinta da extinta União Soviética em um período específico da Segunda Guerra Mundial (o rompimento com os alemães) é extremamente mordaz, irônico, ridicularizando uma sociedade embasada na burocracia e na "lavagem cerebral".

Não é difícil imaginar as dificuldades enfrentadas pelo autor na época. E penso que essas dificuldades, nas devidas proporções, também estariam presentes hoje, caso ele retratasse com tanto sarcasmo a igreja ou mesmo a estrutura da sociedade capitalista. Basta lembrar filmes como "Je vous salue Marie", "Paixão de Cristo" e "O Código da Vinci". Ou, da mesma época da história, o macartismo.

 
 
 
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É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autoradquirindo suas obras



Foi o tempo que investiste em tua rosa que fez tua rosa tão importante.

(Antoine de Saint-Exupéry)




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